Você está na página 1de 264

MAÇOS NA GAVETA:

REFLEXÕES SOBRE A MÍDIA

Livro Macos na gaveta.indb 1 17/8/2009 14:21:51


Livro Macos na gaveta.indb 2 17/8/2009 14:21:51
Beatriz Kushnir
(Organização)

MAÇOS NA GAVETA:
REFLEXÕES SOBRE A MÍDIA

Niterói, 2009

Livro Macos na gaveta.indb 3 17/8/2009 14:21:51


Copyright © 2009 by Beatriz Kushnir (Organização)
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal
Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 -
Niterói, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.editora.uff.br
E-mail: secretaria@editora.uff.br

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da


Editora.

Normalização: Caroline Brito de Oliveira


Revisão: Rozely Campello Barrôco
Capa: Giselle Macedo
Editoração eletrônica: Margret Gouveia Engel
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo
Projeto gráfico: José Luiz Stalleiken Martins

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP


K 97 Kushnir, Beatriz
Maços na Gaveta: reflexões sobre mídia / Beatriz Kushnir (Organização)
Niterói : EdUFF, 2009.
264 p. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Inclui Bibliografias
ISBN 978-85-228-0523-5
1. Jornalismo. 2. História da mídia. I. Título. II. Série
CDD 070.09.4

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Reitor: Roberto de Souza Salles


Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos
Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges
Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes
Assessora de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos

Comissão Editorial
Presidente: Mauro Romero Leal Passos
Ana Maria Martensen Roland Kaleff
Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Kuayer
Livia Reis
Luiz Sérgio de Oliveira
Editora filiada à
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos

Livro Macos na gaveta.indb 4 17/8/2009 14:21:51


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 7
PRETÉRITO IMPERFEITO: ARTE, MECENATO, IMPRENSA
E CENSURA EM BELÉM DO PARÁ 1898-1908, 11
Aldrin Moura de Figueiredo

MEIOS DE COMUNICAÇÃO E POLÍTICA: O JORNAL


E O RÁDIO NAS ELEIÇÕES DE 1958 EM UBERLÂNDIA, 35
Regma Maria dos Santos

SEM AVIÕES DA PANAIR E IMAGENS DA TV EXCELSIOR NO AR:


UM EPISÓDIO SOBRE A RELAÇÃO REGIME MILITAR E TELEVISÃO, 53
Áureo Busetto

INTELECTUAIS DE ESQUERDA E TELEVISÃO


NO BRASIL DOS ANOS 1970, 65
Giordano Bruno Reis dos Santos

UM LIVRO PARA A HISTÓRIA, 77


João Amado

IMPRENSA ALTERNATIVA – COMENTÁRIOS SOBRE O ACERVO, 93


Sandra Alves Horta

VENCER E CONVENCER: A REVISTA GENTE NA ANTESSALA


DO GOLPE DE ESTADO DE 1976, 107
Norberto Osvaldo Ferreras

SOLICITANDO AO PUEBLO ARGENTINO: ANTAGONISMO DE CLASSES


E CONTENDAS ENTRE TRABALHADORES E EMPRESÁRIOS NOS
COMUNICADOS PUBLICADOS NA IMPRENSA, 123
Marina Maria de Lira Rocha

A PROPAGANDA POLÍTICA E IDEOLÓGICA


NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, 141
Roberto Elísio dos Santos

O PAPEL DA IMPRENSA POR ELA MESMA:


GOLPE, DITADURA E TRANSIÇÃO EM JORNAIS
E REVISTAS BRASILEIROS, ENTRE 1984 E 2004, 159
Flávia Biroli

Livro Macos na gaveta.indb 5 17/8/2009 14:21:51


CAMPO JORNALÍSTICO, CAMPO DA SAÚDE
E RACIONALIDADES POLÍTICAS A PARTIR DO
ESTUDO DE CASO DE UM INTELECTUAL-JORNALISTA, 177
Mônica Carvalho

NAS TEIAS DA LEI: LIMITES E INTERDITOS


NO ACESSO À INFORMAÇÃO, 197
Beatriz Kushnir

AGENTES PRIVADOS NA ESFERA PÚBLICA: A MÍDIA COMO ATOR


POLÍTICO/IDEOLÓGICO E EMPRESARIAL, 219
Francisco Fonseca

O JORNALISMO E SEU PAPEL NAS


SOCIEDADES DISCIPLINARES, 233
Mayra Rodrigues Gomes

O EFEITO MEDIÁTICO ALCANÇADO PELOS TERRORISTAS


E APROPRIADO PELO GOVERNO AMERICANO, 245
Elson Lima

PEQUENAS BIOGRAFIAS DOS AUTORES, 257

Livro Macos na gaveta.indb 6 17/8/2009 14:21:51


APRESENTAÇÃO

A ideia desta coletânea é do professor Dr. Norberto Osvaldo Ferre-


ras, meu colega de doutoramento na UNICAMP e agora no NEC – Núcleo de
Estudos Contemporâneos do Departamento de História da UFF. Desafiada
a reunir análises sobre censura e imprensa, aceitei a provocação, inspirada
pelo incômodo de constatar as inúmeras reflexões que não conseguem
chegar ao público leitor. Por isso, este volume recebeu o título de Maços na
gaveta: reflexões sobre mídia.
Desde 2003, em parceria com Mônica Carvalho e, recentemente, com
Áureo Busetto, organizo nos encontros nacionais e regionais da ANPUH o
Seminário Temático (ST) “História e Comunicação: Mídias, Intelectuais e
Participação Política”. Iniciado na Nacional de João Pessoa, em 2003, conti-
nuado na Regional do Rio, em 2006, na Nacional de São Leopoldo, em 2007,
e na Regional de São Paulo, em 2008, este ST tem como objetivo principal a
constituição de um fórum multidisciplinar que reúna os profissionais que
ponderam sobre as “Mídias” enquanto temática – historiadores, cientistas
sociais, jornalistas, literatos etc.
As “Mídias” são apreendidas não só como fonte da análise, mas, prin-
cipalmente, como elemento fundamental de investigação. O mote é a relação
de poder nesse “universo de conivências” das redações, rádios, TVs, como
também nos intercâmbios com a sociedade civil e as esferas de governo. A
proposta é inserida em uma temática da História do Tempo Presente, tendo
como tópicos o trabalho intelectual e a questão da ética, centrando-se nas
práticas de um ofício – as do intelectual/jornalista – e nas regras a serem
seguidas, especialmente nos momentos de ruptura dessas normas.
Assim, tópicos como: o percurso dos meios de comunicação, conglo-
merados de informação etc., bem como dos seus jornalistas são focos de
reflexão e análise nos textos que se seguem. Da mesma forma, ajuizamentos
de cunho teórico e/ou análises de processos históricos tornam-se igualmente
importantes e necessários. Questões como o acesso à informação e o inter-
dito; a(s) censura(s); a percepção da imprensa como empresa privada que
vende um serviço de utilidade pública; a atuação de intelectuais (jornalistas/
homens de jornal), engajados politicamente à esquerda e/ou a serviço do
Estado – Earthly authority ou intelectocratas –, seus itinerários e vínculos
políticos; a constituição das esferas públicas e a função da imprensa versus
o processo de cidadania republicana brasileira são demandas importantes
a serem aglutinadas.

Livro Macos na gaveta.indb 7 17/8/2009 14:21:52


8
Apresentação

As redes de convivência e os códigos de sociabilidade no inte-


rior desses grupos de jornalistas/intelectuais firmam-se como a clave
para compreender os valores e as propostas constituídas nessas
comunidades e sua sintonia com o panorama político no Brasil do
século XX. As práxis jornalísticas percebidas como uma encenação
das regras sociais, de uma suposta vigília ao poder e da utopia de
uma liberdade de expressão absoluta, remetem a temas tão presentes
e contemporâneos. Este fórum deseja contemplar apreciações tanto
no que se convencionou chamar História do Tempo Presente, como
igualmente nas relações do historiador e/ou dos cientistas sociais,
tidos como os “responsáveis” por tal “História”, e os jornalistas e sua
“História do imediato”.
Fruto desses encontros e do circuito de trocas que o ST propor-
cionou, nesses cinco anos de existência, a reunião destes 15 textos
representa uma fração pequena, mas não diminuta, dos olhares diver-
sos que o assunto permite. Concretizam a multidisciplinaridade tão
acalentada, tendo um grupo representativo de trabalhos, num leque
amplo de assuntos que percorrem o “século curto”, à la Hobsbawm.
O artigo de Aldrin Moura de Figueiredo mergulha na relação
entre a produção artística, as malhas político-administrativas, a im-
prensa e a censura em Belém na virada do século XIX para o século XX.
Utilizando as trajetórias de variados pintores, tanto paraenses como
de outras áreas do país, mostra como se conformou um mercado de
pinturas com galerias, sob incentivo governamental, e, com isso, uma
crítica especializada que pretendeu ditar os traços estéticos por meio
da imprensa local. Já o trabalho de Regma Maria dos Santos expõe
por quais caminhos os meios de comunicação podem exercer influên-
cias sobre os rumos políticos da sociedade, expandindo e diluindo
diferentes discursos políticos. Para tal, observa o caso das eleições
municipais de Uberlândia, em 1958.
A análise de Áureo Busetto retrata a relação entre ditadura mi-
litar e televisão, seguindo o caso da TV Excelsior. Demonstra como o
regime autoritário criou barreiras econômico-financeiras àqueles que,
se não discordavam, não desejavam manter seus negócios à sombra da
política oficial. Num diálogo interessante e não planejado, a reflexão
de Giordano Bruno Reis dos Santos discute a mesma temática, porém
sob o prisma da TV Globo. Para tal, cruza num jogo de espelhos as
trajetórias de um homem articulador importante da emissora, Walter
Clark, e de intelectuais das esquerdas que foram contratados pela
mesma na década de 1970.
“Um livro para a história”, de João Amado, busca verificar o po-
sicionamento dos jornalistas que escreveram a coletânea organizada

Livro Macos na gaveta.indb 8 17/8/2009 14:21:52


9

Beatriz Kushnir
por Alberto Dines, Os idos de março e a queda em abril, editada nos
primeiros dias após o 31 de março. As ponderações de “Imprensa
Alternativa – Comentários sobre o Acervo”, de Sandra Horta, relatam
e analisam a política cultural de acumulação do acervo “Imprensa
Alternativa”, do Centro de Imprensa Alternativa e Cultura Popu-
lar da extinta Rioarte, e que se encontra em depósito no Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro.
“Vencer e Convencer: a revista gente na antessala do golpe de
Estado de 1976”, de Norberto Osvaldo Ferreras, investiga, a partir de
reportagens publicadas no magazine voltado para as classes médias
Gente y La Actualidad, o processo de construção de consenso para o
golpe militar de 1976 na Argentina e o posicionamento desta impren-
sa no convencimento da população ao projeto militar. No âmbito da
América Latina, “Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de
classes e contendas entre trabalhadores e empresários nos comunica-
dos publicados na imprensa”, de Marina Maria de Lira Rocha, faz-nos
conhecer os comunicados publicados nos periódicos argentinos La
Nación, Clarín e La Opinión, entre junho de 1975 e março de 1976, por
organizações trabalhistas e empresariais, verificando os antagonis-
mos entre as classes e os projetos políticos para a solução da crise
no país.
O artigo de Roberto Elísio dos Santos mapeia a temática da
história em quadrinhos, como um produto de cultura de massas e que
teria por objetivo entreter e divertir, a partir do seu uso como veículo
de transmissão e persuasão de valores e ideias políticas. Para tal,
aborda momentos significativos da história mundial recente, com os
discursos oficiais e aqueles de questionamento. Ao passo que o artigo
“O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição em
jornais e revistas brasileiros, entre 1984-2004”, de Flávia Biroli, analisa
os discursos sobre si na ditadura pelas reportagens dos jornais O Glo-
bo, Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio
da Manhã, e as revistas Veja, Isto É, Carta Capital e Época, durante os
períodos rememorativos do golpe, percebendo o enfoque na oposição
entre a repressão e a liberdade de expressão e de informação.
“Campo jornalístico, campo da saúde, e racionalidades políticas
a partir de um estudo de caso de um intelectual-jornalista”, de Mônica
Carvalho, infere a questão percebendo as narrativas científicas res-
paldadas por intelectuais. Procura verificar a inserção do “intelectual-
jornalista” no jornalismo, focando um estudo de caso do Dr. Drauzio
Varella, principalmente como cronista da Folha de S. Paulo. Por sua
vez, o meu artigo discute as questões prementes que envolvem a le-
gislação e o acesso aos documentos centrados na História do Tempo

Livro Macos na gaveta.indb 9 17/8/2009 14:21:52


10
Apresentação

Presente, nos arquivos brasileiros. A censura ao acesso e à ausência


de um debate sobre este interdito são os motes da reflexão.
O artigo de Francisco Fonseca esquadrinha as características
essenciais da mídia contemporânea e suas consequências sociais, de-
batendo a relação entre as esferas pública e privada sob a perspectiva
do pensamento liberal que baliza a atuação das empresas midiáticas.
Em “O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares”, de Mayra
Rodrigues Gomes, analisa-se, a partir das concepções de Foucault,
a disciplinaridade e a vigilância, o papel da produção jornalística,
suas pautas e polêmicas sensacionalistas no direcionamento das
questões sociais. Analisando a atuação da mídia dos Estados Unidos
a partir do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, o artigo de
Elson Lima aponta as delicadas relações estabelecidas entre a esfera
pública do Estado e a esfera privada das empresas de imprensa e de
outros setores nas respostas ao fato que, para muitos, simboliza o
início do século XXI.
A nossa ambição, minha e de Norberto, tenho certeza, foi e é a
de possibilitar o retirar de maços das gavetas. Esta primeira tentativa
não poderia ter acontecido sem a parceria e o profissionalismo de ex-
alunos, agora colegas, Marina Maria de Lira Rocha e Giordano Bruno
Reis dos Santos. Agradeço o engajamento e a aposta aceita de pronto.
Esperamos, Norberto e eu, que este volume seja o início de muitos e
o princípio de novas investidas.

Cidade Nova, 24 de julho de 2008.

Livro Macos na gaveta.indb 10 17/8/2009 14:21:52


PRETÉRITO IMPERFEITO:
ARTE MECENATO, IMPRENSA E CENSURA EM BELÉM DO PARÁ,

1898-1908*

Aldrin Moura de Figueiredo

Se houver Mecenas, Flaco, não faltarão Virgílios.


(Marcial, Epigramas.)

Arte e mecenato são termos praticamente análogos na cultura oci-


dental contemporânea. O nome remete a um mito originário: Caius Cilnius
Maecenas (c. 70 a.C.–8 a.C.), cidadão romano, político, estadista e patrono das
letras. Administrou a fortuna da sua família, por volta de 74 a.C./64 a.C., sendo
inclusive um conselheiro hábil e de confiança do imperador César Octaviano
Augustus. Mecenas, além de representar o imperador como tribuno, foi em
muitas ocasiões orador, patrono e amigo para várias missões políticas. Mais
tarde, aposentou-se e devotou todos os seus esforços a seu círculo literário
famoso, que incluiu Horácio, Virgílio e Propertius, patrocinando-os com bens
materiais e proteção política. Aos seus protegidos provou ser um amigo e
um patrono eficiente e generoso.1 O mito projetou o símbolo do patronato
rico, protetor das artes e o nome ficou associado, especialmente a partir do
renascimento italiano, àquele que patrocina as artes, a ciência e o ensino,
muitas vezes com benefícios fiscais.2 Famílias de reis, príncipes, burgueses,
oligarcas, em várias partes do mundo, tomaram a si o título de mecenas das
artes em alusão ao modelo civilizatório da cultura clássica. Pessoas como o
xá do Irã, Abbas I (1571–1629), ou o cardeal Alessandro Farnesi (1520–1589),
ou ainda o famoso marajá do Punjab, Ranjit Singh (1780–1839), foram tomadas
pela historiografia da arte como representantes dessa tradição.3
No Brasil do século XIX, o imperador Pedro II (1825–1891) simbolizou
e deu sentido ao amante das artes, da ciência e das letras nos trópicos, para
o que foi preparado desde a mais tenra idade.4 A erudição dos homens do
Império foi, de certo modo, espelho e contraponto para os intelectuais da
República. A partir da década de 1890 e nas décadas iniciais do século XX,
houve uma participação política e cultural dos bacharéis, maçons e dos
chamados coronéis. Pelo interior do país, quem organizava a vida política,

Livro Macos na gaveta.indb 11 17/8/2009 14:21:52


12
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

diretamente no contato com a população, era a figura do coronel – no


norte, chamado de coronel de barranco, em alusão à região ribeiri-
nha do vale amazônico. Importante dizer que se tratava de um líder
essencialmente civil, num país ainda maciçamente rural, no qual se
tinha que caminhar muito para fazer política. De fato, era o coronel
o principal elo entre a população e o Estado.5 Ele garantia os votos
locais do governador do Estado, em troca do apoio à sua liderança
municipal, e dispunha de grande prestígio e poder devido ao fato de
a Constituição de 1891 ser descentralizada, garantindo aos estados e
municípios grande autonomia legislativa e de polícia. Em vista disso,
muitas vezes o coronel ocupava o cargo de Intendente Municipal, chefe
de polícia, vereador ou, mesmo quando não ocupava cargos políticos,
em geral indicava os candidatos às eleições.6
Em Belém do Pará, no auge da produção da borracha, ninguém
representou melhor a figura do coronel do que o próprio intendente
da capital, Antonio José de Lemos (1843-1913). A biografia do líder
é muito esclarecedora. Ainda jovem, deixou o Maranhão e chegou
a Belém com patente na Marinha brasileira e com a experiência de
ter lutado na Guerra do Paraguai. Ingressou no jornal A Província do
Pará e foi galgando postos até conseguir arrendar e depois comprar
o periódico. Aí estava o início de sua ascensão política na sociedade
paraense. Lemos foi vogal de Belém, deputado estadual e até secre-
tário de governo estadual, no qual se notabilizou por recepcionar e
ser sensível aos apelos dos políticos do interior, enquanto as outras
autoridades os ignoravam, por julgarem-nos políticos menores, e assim
foi conquistando o respeito e o apoio de diversas autoridades.7 Em 1897
chegou ao ápice de sua carreira política, quando foi eleito intendente
da capital, Belém.8 Sua gestão ficou marcada pela profunda reforma
urbana que imprimiu à cidade, tentando aproximar a capital do Pará
dos modelos europeus. Assim, foram editadas muitas medidas que
regravam os hábitos e modos citadinos, definindo as fachadas das
casas, demolindo cortiços, e estabelecendo rígidos padrões para as
posturas urbanas. Em 1902, a cidade de Belém já havia sido chama-
da de Paris n’América ou de Petit Paris e o projeto do intendente se
ampliava com a construção de diversos palácios, palacetes, bolsa
de valores, grandes teatros, igrejas, necrotério, grandes praças com
lagos e chafarizes, infraestrutura sanitária, alargamento e calçamento
de vias, construção da malha de esgoto na área central, aterramento
e drenagem de rios e córregos e plantação de centenas de mudas de
mangueira nas avenidas e boulevards.9
As transformações urbanas foram acompanhadas por um gran-
de projeto de estabelecimento de instituições culturais importantes:

Livro Macos na gaveta.indb 12 17/8/2009 14:21:52


13

Aldrin Moura de Figueiredo


um Instituto Histórico e Geográfico e uma Academia de Letras, ambos
fundados em 1900. Desde 1890, pelo menos, várias sociedades científi-
cas e literárias foram criadas especialmente sob o incentivo de Lauro
Sodré (1858-1944), militar, político e um dos mais expressivos líderes
republicanos brasileiros que esteve à frente do governo do Pará, en-
tre 1891 e 1897. Sua atuação no campo das artes e das ciências pode
ser comparada à atuação de Antonio Lemos no campo urbanístico.
Lauro Sodré vinha incentivando, desde 1892, a contratação de artis-
tas europeus e a organização de exposições de arte no Liceu Benja-
mim Constant, antigo Liceu Paraense. Artistas como D. Mendelson,
Domenico de Angelis, Giovanni Capranesi, Davi Widhopff, Maurice
Blaise passaram a atuar no ensino e no mercado de artes que então
se constituía, seguindo uma tradição que foi modelar para um tipo de
“Estado Mecenas”, no qual o governo seria o principal patrocinador
das artes.10 Nas primeiras décadas do século XX, a imprensa paraense
revelou um importante grupo de críticos de arte atuante nos comen-
tários das mostras e exposições que se realizavam na cidade. João
Affonso do Nascimento, Alfredo Sousa, Antonio Marques de Carvalho
e José Eustaquio de Azevedo ficaram conhecidos pelo rigor de suas
análises de artistas e obras, pela busca de um padrão de qualidade
para os salões locais e pelo debate em torno da censura e da liberdade
no campo da arte.
Pinacotecas privadas e públicas foram organizadas. Antonio
Lemos projetou uma coleção de arte para a municipalidade de Belém,
por meio de um grande acervo de telas comprado por seus anteces-
sores e que estavam guardados no antigo Paço Municipal.11 A este
acervo soma-se um outro, pertencente ao governo estadual, projetado
por Lauro Sodré, continuado por José Paes de Carvalho (1850–1943),
governador entre 1897 e 1901, e ampliado por Augusto Montenegro
(1867–1915), governador entre 1901 e 1909.12 A partir de 1895, pelo
menos, temporadas artísticas começaram a ser organizadas com
maior frequência. Galerias de arte foram abertas em casas comerciais
e em residências particulares. O mecenato e o colecionismo viraram
moda entre a elite enriquecida pela borracha. O memorialista Ino-
cêncio Machado Coelho descreve em detalhes o esplendor artístico
que atingiu Belém nos 30 anos que se seguiram ao auge e declínio da
goma elástica, entre 1888 e 1918. Diz ele que “a cidade inteira era um
autêntico museu e as galerias de pintura pertencentes a amadores, ao
Estado e à Prefeitura Municipal ostentavam telas dos mais renomados
pintores nacionais e estrangeiros”. Ele se refere a uma compra desen-
freada de objetos de arte em antiquários e lojas europeias, sobretudo
na França, na Itália, na Inglaterra e na Holanda.13 Na década de 1970, o

Livro Macos na gaveta.indb 13 17/8/2009 14:21:52


14
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

cronista referia-se como um verdadeiro milagre à existência do Pala-


cete Faciola com o último reduto em Belém “do que se deve e se pode
chamar, a justo título, uma galeria de objetos de arte”. O conjunto de
telas, alabastros, bronzes, esmaltes, porcelanas, mármores, móveis
e “tudo aquilo em que deixaram sua marca” a mão de artistas como
Emile Gallé (1846-1904), a quem o Sr. Faciola teve a oportunidade de
conhecer em Paris.14
Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1922), conhecido crítico
literário brasileiro, escreveu em 1908 sobre sua visita à galeria particu-
lar do sr. Antonio Paes Barreto, advogado, político e homem de letras
em Belém. Tratou dos 130 quadros a óleo que viu na casa do “fidalgo
cavalheiro” paraense. Com atenção, descreveu a “riqueza” concentrada
em “66 quadros clássicos das várias escolas européias”:

Quanto aos mestres antigos, mal contenho minha emoção ao


dizer que a opulenta galeria [...] conta no número dos seus pri-
mores a soberba Leda, de Ticiano, por alguns reputada a obra-
prima do mestre veneziano. Notam-se ainda: uma caçada real de
Velásquez, uma Diana, de Rubens, uma Paisagem, de Poussin, e
um São Pedro, de Guido Reni [...] o que equivale a dizer que essa
galeria ultrapassou o limite da maioria das galerias particulares
americanas, e que colocou o direito de ser colocada entre muitas
do Velho Mundo; tanto mais se se considerar que ainda figuram
nela várias obras de pintores de renome universal: Tintoreto,
Murillo, Corot [...] e outros.15

Antes de Duque-Estrada, o escritor Alberto Caetano (1843–1924)


já havia comentado em Lisboa sobre o modo como Paes Barreto ad-
quiria seus quadros e todo o processo de restauro e autenticação da
autoria das telas. Ao se referir ao famoso quadro de Ticiano Vecelio
(c.1490–1576), diz que a tela, “com visíveis sinais de ter sido dobrada
e redobrada”, deve ter sido transportada ao Pará “em alguma das anti-
gas patronas que usavam os soldados”.16 Essa história correu mundo.
Vários críticos e especialistas em arte se interessaram pelo assunto
e pela coleção de arte que havia no Pará. Vitor Salacha publicou em
Paris, na La Revue du Bien dans la Vie et dans l’Art, em 1906, uma de-
talhada notícia da descoberta da Leda de Ticiano em Belém do Pará
e da atuação neste processo de artistas-restauradores europeus.17
Gonzaga Duque (1863-1911) escreveu, para a revista Kosmos, uma
acurada notícia sobre o quadro de Ticiano que se encontrava “perdi-
do” há mais de 200 anos e das atribulações para o reconhecimento
da autenticidade da tela.

Livro Macos na gaveta.indb 14 17/8/2009 14:21:52


15

Aldrin Moura de Figueiredo


Não descansou, porém, o Dr. Paes Barreto. Fez uma viagem à
Itália e mostrou seu quadro a diversos diretores de museus e ama-
dores. A uma voz, todos concordaram em considerá-lo obra feita em
Veneza, no século XVI, arriscando alguns que os vermelhos traíam o
Ticiano. Partiu o doutor Barreto para Paris e ali entregou a tela aos
cuidados dos peritos restauradores do Museu Nacional do Louvre, os
srs. François Touret e René de Waele que, depois de longo trabalho
de um ano, a recompuseram quase totalmente no seu valor primitivo.
O fundo reapareceu. É idêntico aos de muitos quadros do grande
mestre: a sua paisagem característica. A posição da mão direita, com
o dedo mínimo levemente erguido, e o polegar afastado da palma, o
panejamento cujas dobras afetam a forma de um V invertido, e parti-
cularmente a mistura dos verdes com os vermelhos, donde resultavam
efeitos não comuns, levaram os peritos a atribuir o quadro a Ticiano,
e do que passaram documento.18
Arte, riqueza e mecenato foram parte de um modo de vida
abastado e de um circuito cultural proeminente na capital do Pará. O
memorialista Apolinário Moreira comenta sobre o cenário musical, as
recepções elegantes, o uso corrente do idioma francês, as reuniões
familiares no passeio público, a indumentária e até mesmo o uso de um
Compêndio de Civilidade, escrito pelo bispo do Pará, D. Macedo Costa
(1830-1891).19 Frequentadores assíduos dos salões de arte, homens
de letras, profissionais liberais, educadores e seus familiares compu-
nham uma parte importante da elite cultural da cidade. Na primeira
década do século XX, este círculo esteve relacionado em grande me-
dida com a figura do intendente Antonio Lemos. Para se ter uma ideia
disso, seria interessante citar a exposição de arte organizada como
parte dos festejos de seu aniversário em 1908. Não é exagero dizer
que Antonio Lemos estava no foco central dessa exposição. Além de
uma grandiosa tela sobre a fundação da cidade, encomendada pela
intendência municipal, boa parte dos quadros apresentados ao público
guardavam referências diretas à figura do aniversariante. Entre os 109
trabalhos expostos, havia uma significativa coleção de 14 paisagens
feitas no retiro Moema – morada de campo da família Lemos. Entre as
representações, estavam o campanário da igrejinha, a vista de um lago
no interior da propriedade, várias tomadas do bosque, da floresta e
do parque no entorno da casa, além de algumas aquarelas com vistas
dos recantos preferidos de seu proprietário.20
Mas não era somente em seu sítio que o velho Lemos era reitera-
damente lembrado. Ao lado de inúmeras telas, desenhos e painéis com
representações de pontos da cidade – ilustrativos da reforma urbana
empreendida pelo prefeito –, havia também algumas incursões do

Livro Macos na gaveta.indb 15 17/8/2009 14:21:52


16
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

pintor pelas insígnias pessoais do mecenas, especialmente os selos


e ex-libris feitos a bico de pena. O interessante é que essa atitude do
artista, aparentemente bajulatória, vista com os olhos de hoje, era
então elogiada até pela imprensa opositora. A relação de fidelidade
entre o mecenas e seu protegido era, antes de qualquer coisa, um
eloquente sintoma de civilidade. Assim como os artistas italianos
do século XVII foram financiados pelo mecenato inglês e, no século
seguinte, os pintores venezianos relacionavam-se com os mecenas
franceses, Theodoro Braga representava, na leitura dos críticos da
época, a incursão da arte brasileira nesse novo percurso da civilização
nacional.21 Lemos, por seu turno, constituía, na lembrança de Humber-
to de Campos, um de seus protegidos à época, a imagem inequívoca
de “senhor onipotente do Pará”.22
Na larga aura mitológica solidificada em torno de Antonio Le-
mos, o mecenas-oligarca sobressaiu de forma exemplar. Foi o mesmo
Humberto de Campos (1886-1934) quem elaborou uma fórmula expli-
cativa para essa idiossincrática figura. Afirmava o literato maranhen-
se que “não era sem fundamento que se acreditava, outrora, que as
organizações individuais viajavam em silêncio”, tudo para esclarecer,
afinal, que “os homens se repetem nos homens”. Aí estava a chave do
entendimento. E continuava: “Alexandre reapareceu em Napoleão. Paul
Saint-Victor descobriu em Carlos XII a mais completa encarnação de
Átila. E não seria difícil ver em Antonio Lemos a inoportuna repetição
de um Médici ou do Rei Sol, desvalorizada, apenas, no homem e na
obra, pelo evidente prosaísmo da época e pela triste vulgaridade do
cenário”. Essa incessante busca dos correligionários em “compreen-
der a revelação de um espírito acabadamente aristocrático” passava
necessariamente pela desvalorização da época e ambiente dessa
reencarnação.23 Belém, todos sabiam, poderia ser, no máximo, uma
cópia de suas pretensas congêneres europeias, e a “Belle Époque”
paraense estava muito distante de uma leve sombra da renascença
italiana do século XVI ou da ilustração francesa do século XVIII. Mas,
pelo menos num ponto, os contemporâneos do intendente concorda-
vam: existia de fato um projeto artístico-civilizador empreendido pelo
mecenas do Pará. Essa é também a conclusão da historiadora Maria
de Nazaré Sarges, biógrafa do político, afirmando que essa proteção
aos artistas e a dinamização das belas-artes faziam parte de “uma
estratégia de autopromoção do intendente”, ligando-se, ao mesmo
tempo, ao “consumo burguês” e ao “mercado de artes” – formas de
“inserção da cidade no mundo civilizado”.24 Se isto é verdade, a ex-
posição de Theodoro Braga, nas comemorações do aniversário em
1908, simbolizava muito evidentemente essa estratégia política do

Livro Macos na gaveta.indb 16 17/8/2009 14:21:52


17

Aldrin Moura de Figueiredo


prefeito. O mecenato era, tanto para o protetor como para o artista,
o percurso civilizado de vinculação da cidade com a arte brasileira,
seguindo de perto um caminho já perfeitamente consolidado e admi-
rado no Velho Mundo.
Na primeira década do século XX, Belém recebeu anualmente os
mais importantes artistas brasileiros de então. Financiados pela elite
local e pelo poder público, esses pintores retrataram a história, cenas e
cenários da cidade, no intuito de conferir à capital do Pará uma espécie
de identidade visual, marcada pelo traço da pintura acadêmica. Porém,
a simples referência ao cânone abraçado por esses pintores à guisa de
uma espécie de tirania classificatória, imposta pela crítica e pelos his-
toriadores das artes, está longe de revelar o amplo debate em torno das
artes plásticas e seus entrecruzamentos com os projetos políticos
das elites intelectuais locais, que ambicionaram inserir a Amazônia
no epicentro interpretativo da história nacional. Em meio a uma tur-
bulenta transformação urbanística, a fama de Belém como uma nova
vitrine para os artistas nacionais corria pelo país afora. Foi então que
muitos pintores brasileiros, alguns já consagrados, passaram a incluir
a cidade no roteiro de suas viagens. Abria-se na região, enriquecida
pela exploração da borracha, um novo mercado para as artes plásticas
no Brasil. Governantes, intendentes municipais, financistas e grandes
comerciantes tomavam a si a tarefa do mecenato, patrocinando artistas
de várias origens, com encomendas de obras que pudessem descrever
a natureza amazônica, em seu estado natural, mítico e edênico. Ao
mesmo tempo, era necessário apresentar a civilização que chegara à
selva, tornando a capital do Pará o mais próximo de suas pretensas
congêneres à margem do Tâmisa e do Sena.
Em 1905, foi a vez do fluminense Antônio Parreiras (1860–1937)
trazer para Belém 41 telas a óleo. Considerado um evento de relevo,
o vernissage acabou sendo organizado no foyer do Teatro da Paz,
permanecendo a exposição aberta entre 10 e 30 de junho.25 Ao todo,
27 obras foram vendidas e a imagem dos trabalhos no salão virou
cartão-postal, editado na tipografia de E. F. Oliveira Júnior. O êxito
de Parreiras não viera do nada. Recepcionado por Theodoro Braga,
que já o conhecia do Rio de Janeiro, o pintor acabou conseguindo um
trânsito invejável entre alguns letrados da elite local. O intendente
Antônio Lemos adquiriu três telas preparadas especialmente para a
exposição de Belém, além de encomendar ao pintor nada menos do que
um conjunto de oito trabalhos reproduzindo os principais logradouros
e monumentos da capital paraense. Ainda em 1905, foram retratados
o Bosque Municipal, em dois estudos; a velha Catedral da Sé; a Praça
da República; a Calçada do Largo da Pólvora; a Praça Batista Campos,

Livro Macos na gaveta.indb 17 17/8/2009 14:21:52


18
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

por dois ângulos distintos; e, por fim, a Avenida São Jerônimo, uma das
mais elegantes da cidade.26 Pode-se afirmar, desse modo, que Antônio
Parreiras inaugurou na administração municipal a fase das grandes
encomendas de pinturas, consolidando a imagem do intendente Le-
mos como mecenas e apreciador do requintado universo artístico. Em
apenas dez dias, Parreiras vendeu todos os seus quadros, guardando
em memória biográfica o feito entre os paraenses.27

Fig. 1 – Antonio Parreiras, Clareira no bosque, 1905 (óleo s/tela, 99,3x149,5)


Fonte: Acervo MABE

Destino semelhante teve a segunda mostra de Carlos Azevedo, aberta


a 31 de janeiro de 1906, no mesmo Teatro da Paz, também imortalizada
em cartão-postal. Entre as 60 telas expostas, abundavam as paisagens
locais, eventos históricos, cenas cotidianas e retratos de homens ilustres
da terra — tudo muito ao gosto dos frequentadores mais habituais.
Além dos compradores da elite paraense, o costume da aquisição de
peças pelos governantes, para ornamento das repartições públicas,
tornou-se regra. Nessa exposição, Antônio Lemos chegou a ter um re-
trato seu apresentado ao público, e ainda adquiriu outras obras para o
acervo da municipalidade, dentre as quais uma, pintada meses antes,
representando a Entrada do Círio no Arraial de Nazaré, hoje parte do
acervo do Museu de Arte de Belém.28 Ao mesmo tempo que, segundo
o juízo de um viajante estrangeiro, a capital do estado firmava-se como
um dos principais centros culturais do país,29 alguns ilustres visitantes

Livro Macos na gaveta.indb 18 17/8/2009 14:21:53


19

Aldrin Moura de Figueiredo


nacionais se queixavam, nesse mesmo ano de 1906, de ter passado por
Belém sem conhecer o senador Lemos, o que era “como ir a Roma e não
ver o Papa”, tal a mitificação e o fetiche construídos em torno desse
líder político.30 Nessa aura de corte, os pintores nacionais tinham a
possibilidade de organizar várias mostras e, enfim, alcançar o objetivo
de viver da arte. A construção da imagem moderna da cidade fremente,
ao modo das europeias, muito endossada durante a virada do século XIX
e as primeiras décadas do XX, especialmente por ilustres forasteiros
que chegavam da França,31 serviria ainda mais para solidificar o papel
do mecenato na postura e atuação das principais lideranças políticas
locais. Assim como Carlos de Azevedo, também Theodoro Braga foi um
protegido do intendente Antônio Lemos. Em 13 de maio de 1906, esse
pintor inaugurava a sua primeira aparição, também no Teatro da Paz,
com 45 trabalhos de desenho, pintura e arte aplicada. A cada evento,
maior era a repercussão junto ao público, com reiterados anúncios e
comentários nos jornais diários que circulavam na cidade.

Fig. 2 – Carlos Custódio de Azevedo, Entrada do Círio no arraial de Nazaré, 1905


(Óleo s/tela, 30,5x55,6cm)
Fonte: Acervo MABE

A obra de Theodoro Braga estava sendo muito aguardada pelos


aficcionados da pintura, mais até do que os trabalhos de Carlos de Azeve-
do. A razão disto residia no fato de o pintor ter conseguido em pouco tempo
um lugar de destaque entre os novos talentos brasileiros. Sua formação
artística havia iniciado no Recife, pela mão do paisagista Telles Júnior,
por volta de 1892, quando, aos 20 anos, cursava o penúltimo período

Livro Macos na gaveta.indb 19 17/8/2009 14:21:53


20
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

da Faculdade de Direito daquela capital. Isso foi apenas o começo de


uma longa carreira. Em 1894, depois de se formar, transferiu-se para o
Rio de Janeiro, onde, na Escola Nacional de Belas Artes,32 foi orientado
por três nomes há muito reconhecidos: Belmiro Almeida, Daniel Bérard
e pelo célebre Zeferino da Costa. Aprovado com “distinção”, em 1899,
recebeu como prêmio uma viagem à Europa por cinco anos. Seguindo
para a França, fixou-se em Paris por dois anos onde recebeu aulas de
Jean-Paul Laurens (1838-1921),33 tido como um dos mais importantes
mestres da pintura histórica francesa, durante a terceira República.34
Sob a orientação de Laurens, visitou vários centros artísticos europeus
a fim de se aprimorar no estudo das dimensões na descrição de temas
históricos.35 Esse período se transformou numa fase decisiva na obra
futura do pintor, na constituição de um estilo próprio e de um projeto
de obra, qual seja o de elaborar uma versão pictórica da história da
Amazônia. Essa perspectiva ficará mais clara e evidente depois de
1903, quando do seu retorno a Belém.
Theodoro Braga, a partir de então, firmou-se como o nome mais
influente da pintura paraense, nas duas primeiras décadas do século
XX. Apadrinhado pelo intendente municipal Antônio Lemos, o artista
transformou a pintura em assunto de governo e o tema da história
pátria em matéria de interesse popular. Entre 1903 e 1905, Theodoro
Braga se dedicou a costurar um novo momento nas artes plásticas
do Pará, com iniciativas de aproximação entre artistas, literatos e
autoridades do governo local em torno do debate do nacionalismo,
da identidade regional e da história pátria. Sua atividade como pintor
se enredou cada vez mais nos estudos genéricos, sem uma linha te-
mática definida, para o universo urbano de Belém. Da composição de
uma tela como A aparição de São Lucas, de 1903, com uma evidente
motivação pessoal, o artista passou a se dedicar cada vez mais aos
motivos e paisagens locais ou, ainda, a temas da história da Amazônia
e do Brasil. Numa singela representação do antigo serviço de Captação
d’água, em tela datada de 1905, Theodoro articulava vários elementos
descritivos – tanto a referência à imagem pitoresca da cidade, quanto
ao subentendido progresso pelo qual a vida urbana estava passando
naquele momento. Um outro ponto digno de ênfase é que a mostra de
1906 fora inaugurada no mesmo Teatro da Paz, exatamente no dia 13 de
maio. A data por certo não havia sido escolhida à toa, pois o emblema
da abolição da escravatura viria a ser relembrado.36

Livro Macos na gaveta.indb 20 17/8/2009 14:21:53


21

Aldrin Moura de Figueiredo


Fig 3 – Theodoro Braga, A aparição de São Lucas, 1903
Fonte: Acervo MABE

Fig. 4 – Theodoro Braga, Captação de Água, 1905 (Óleo s/tela, 44x93cm)


Fonte: Acervo MABE

Livro Macos na gaveta.indb 21 17/8/2009 14:21:54


22
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

Nesse período, e a partir daí, a ênfase na história tomou conta da


obra de Theodoro Braga. O motivo desta escolha não se devia unica-
mente ao fato de a pintura histórica ainda ser considerada como a mais
alta categoria acadêmica e nem de ter sido a principal influência de seu
mestre francês Jean-Paul Laurens. Aqui está a fresta da significação da
produção da arte, com seus processos técnicos, estilos e conflitos com a
realidade. Na trajetória da pintura de Theodoro Braga, o momento em que
esses paradigmas eclodiram, com plena visualidade, não é difícil de ser
percebido. De fato, ainda na temporada de 1906, uma das mais prolíficas
do artista, apareceu aquela que seria a sua definitiva inclinação para os
temas da história pátria. Entre agosto e outubro seguem duas exposições,
ambas dedicadas inteiramente aos “assuntos locais”, com tomadas e mo-
tivos escolhidos nos “cantos pitorescos e antigos da cidade de Belém”.37
Esses eventos foram como que preparatórios para solidificar o traço do
pintor, a recepção do público, e os laivos da crítica com o acontecimento
de 1908, planejado que estava desde essa época.
Apesar de escrever num jornal de oposição ao governo de
Antônio Lemos, o crítico Alfredo Sousa, por seu turno, que também
era amigo de Theodoro Braga, foi quem melhor propagandeou a mais
recente linha temática do artista. O mais interessante é que isso não era
nenhuma novidade ou causa de estranheza entre os leitores da gazeta
oposicionista. Na verdade, desde maio anterior, quando da primeira
exposição, o crítico vinha anunciando a versatilidade do pintor entre
o desenho, o óleo e a arte aplicada como um sólido preparo técnico
capaz de pôr em prática suas ambições diante da arte nacional.38 Em
vista disso, o momento agora era o de reiterar e ampliar seus elogios.
Sem o menor constrangimento, Alfredo Sousa definiu seu amigo como
“o mais completo pintor nacional” que até então “o Pará tinha admirado
dentro de seus muros”. Para enfatizar sua opinião, pôs-se a analisar
duas das telas apresentadas, comentando a “radiante luminosidade”
das paisagens nativas pintadas a óleo – com destaque para Um cacury
e O Paracauary, cenas ribeirinhas típicas do vale amazônico, onde
emergiam tonalidades únicas, expressivas de uma cor local.39
Mas não foram somente as telas a causarem impacto entre os
frequentadores das mostras de 1906. Ainda na exposição de agosto, um
aspecto muito comentado foi o das inovações de montagem e instalação.
Como a instalação foi realizada em sua residência, os quadros foram
colocados no próprio ateliê do artista e na escola de desenho que funcio-
nava na sala ao lado, com livre acesso a todos os visitantes. O impacto
foi imediato. É evidente que a ousadia do pintor em mostrar sua obra
entre os instrumentos de trabalho estava avalizada pelo estágio ainda
recente que havia feito entre os parisienses. Por isso mesmo, observar as

Livro Macos na gaveta.indb 22 17/8/2009 14:21:54


23

Aldrin Moura de Figueiredo


aquarelas com representações das pequenas cidades da Ilha do Marajó,40
encimadas em cavaletes, circundadas por tintas, pincéis e paletas, signifi-
cava, antes de tudo, o convívio com a excêntrica atualidade havida como
importada da Europa. O sucesso foi repetido em outubro. Se o ar pitoresco
das paragens marajoaras do estuário amazônico havia conquistado os
espectadores da outra vez, o que dizer se o tema escolhido fossem os
costumes, as festas e os lugares mais prosaicos da própria capital do
estado? Além de agradarem a Alfredo Sousa e aos visitantes, as aqua-
relas foram muito elogiadas por Antônio Lemos, principal incentivador
do artista. O encerramento em três de novembro teve ares de festa: era
a véspera de seu embarque para Lisboa, onde iria investigar a história
da fundação de Belém, para a execução da grande tela encomendada
pelo prefeito.41 Clóvis de Morais Rêgo, biógrafo do pintor, afirma que a
ideia da composição dessa cena já existia há quase uma década.42 Esse
projeto teria ficado mais explícito em 1899, quando o painel Últimos dias
de Carlos Gomes, de Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi, teve a
sua apoteótica instalação no prédio da Intendência, na sala do antigo
Conselho Municipal. Em seu relatório daquele ano ao Legislativo, Lemos
já anunciava seu intuito de “dotar o edifício do governo municipal com
outro [quadro] não menos importante, rememorativo da fundação desta
cidade”.43 No entanto, até 1904, Lemos afirmava não ter podido “ainda
incumbir artista idôneo” para a obra, mas continuava angariando “es-
clarecimentos históricos relativos ao fato”.44 Em 1906, com o sucesso
das exposições de Theodoro Braga, o projeto tomou corpo. O artista
viajou para Portugal à cata dos documentos sobre a conquista da Ama-
zônia, porventura guardados nos arquivos da antiga Corte do Império
Ultramarino. Faltando apenas 15 dias para a partida de Theodoro Braga
para Portugal, o pintor francês Joseph Casse, contratado para fazer a
nova decoração no antigo Palácio dos Governadores, fez uma exposição
de 25 telas no salão nobre do Teatro da Paz. O resultado da mostra fez
com que o artista fosse convidado a fazer outras obras de semelhante
cacife em outros prédios de Belém, como na Capela do Instituto Gentil
Bittencourt, importante centro do ensino republicano local, à época sob
a tutela do governo estadual.
Logo em março, chegou Francisco Aurélio de Figueiredo Melo
(1854-1916), irmão de Pedro Américo (1843-1905), para uma mostra de
66 telas no Teatro da Paz. No dia 17 daquele mês, recebeu “os amigos e
jornalistas” em vernissage. A surpresa foi grande, pois o artista paraibano
resolveu fazer uma retrospectiva de sua carreira, mostrando as duas fases
distintas de sua produção artística. Theodoro Braga, que já o conhecia
de outros tempos, comentou, a partir do que ouviu de informantes que
estiveram presentes na mostra, sobre as “suas duas características

Livro Macos na gaveta.indb 23 17/8/2009 14:21:54


24
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

maneiras de pintar”, as quais, inclusive, estavam devidamente expres-


sas “pelos nomes que ele tomara na sua laboriosa vida de artista”. Os
quadros mais antigos, que traziam a assinatura de Aurelio de Figueiredo,
lembravam, como assinalou o próprio Theodoro Braga, a escola francesa
do último quartel do século XIX, da qual também Theodoro havia sido
discípulo; a segunda parte da coleção trazia a grafia de Francisco Aurelio,
pela qual o autor aproximava-se “dos nossos impressionistas, afastando
assim por completo, de sua primeira maneira, da qual nenhum detalhe
é lembrado”. O fato clamava pela opinião de Theodoro Braga que, sem
hesitar, afirmou sua preferência por aquela “primeira feição” que, entre
outras virtudes, o fazia “pensar também nas másculas figuras do seu
inesquecível irmão”,45 amplamente reconhecido pela preocupação com
a figura humana, muito mais do que com a paisagem em si, tida como
característica de seu contemporâneo Victor Meireles (1832–1903).46 Mais
uma vez, como já era de se esperar, Antônio Lemos estava por perto,
financiando a próxima investida de Aurélio de Figueiredo, em sua versão
de primeira hora. Resultado: em apenas quatro meses, o pintor reaparecia
com uma nova safra, agora no Salão da Biblioteca e Arquivo Público do
Pará. O destaque dessa vez ficou por conta de duas grandes telas, em
tamanho natural e corpo inteiro, retratando o Barão do Rio Branco e o
senador Antônio Lemos,47 ícones consagrados no Pará como mentores
políticos – o primeiro, figura de proa no abolicionismo, e o segundo, figura
central nas duas primeiras décadas de republicanismo.

Fig. 5 – Francisco Aurélio de Figueiredo e Mello, Corcovado, 1903


(óleo s/tela, 46,8x 74,4cm)
Fonte: Acervo MABE

Livro Macos na gaveta.indb 24 17/8/2009 14:21:54


25

Aldrin Moura de Figueiredo


Ainda em julho de 1907, o paulista Benedito Calixto (1853-1927),
que aportou em Belém já com a fama de pintor premiado, trouxe 32
telas para sua exposição. O assunto era dos mais recorrentes à época:
paisagens e vistas de seu Estado natal, ao lado de alguns momentos da
história da nação. A cidade continuava muito atraente para os forastei-
ros, especialmente para aqueles que residiam no Rio de Janeiro, no qual
a disputa por espaço de divulgação era cada vez maior. Vários quadros
de Calixto foram adquiridos pelo governo do Estado e pela intendência
municipal de Belém: recantos de jardins, cenas de trabalho e suas fa-
mosas composições marinhas.48 Assim como Parreiras ou Aurélio de
Figueiredo, Calixto representava muito bem essa ambição dos pintores
brasileiros de formação acadêmica em retratar e escrever a história
do país, a partir das imagens de seus recantos natais. Mais até, do que
Theodoro Braga, o experiente pintor paulista esteve, nesses inícios de
século XX, mergulhado numa impressionante investigação histórica
sobre São Paulo, nos tempos da Colônia e do Império, principalmente
sobre Santos, cidade em que viveu boa parte de sua vida.49 Por isso
mesmo, não é difícil entender o porquê de esse artista ter-se tornado
uma referência entre os paraenses do início do século XX. Esse diálogo
no campo das artes ampliava o círculo dos visitantes e aficcionados. As
famosas cores das marinhas e dos recantos urbanos do pintor paulista
fizeram eco entre os críticos e compradores locais. Theodoro Braga
lembrou que, um mês e meio depois do retorno de Calixto, o Teatro
da Paz abriu sua galeria com as obras do carioca Joaquim Fernandes
Machado, com reputação equivalente à do pintor paulista.

Fig. 6 – Benedito Calixto, Recanto de Jardim, 1906 (óleo s/tela, 49x73cm)


Fonte: Acervo MABE

Livro Macos na gaveta.indb 25 17/8/2009 14:21:54


26
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

Não terminara o ano de 1907 e mais um artista, procedente da


capital da República, desembarcava com seus quadros no cais de
Belém. Antônio Fernandez era espanhol de nascimento, mas formado
pela Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Trouxe 74 obras, com
técnicas muito variadas, desde óleos sobre tela, passando pelos pas-
téis e aquarelas, até os menos usuais, nesse tipo de mostra, desenhos
a bico de pena. No conjunto das obras, o ponto de convergência era o
mesmo: paisagens brasileiras.50 O evento, no entanto, não alcançou o
mesmo sucesso dos anteriores. O modo formal e burocrático com o
qual a crítica tratou da exposição de Antônio Fernandez revelou que
os níveis de exigência e a velha simpatia com os pintores de fora ha-
viam mudado. Isso quer dizer que a mídia impressa atuou fortemente
na crítica e, de certo modo, na censura das mostras de arte. Para
muitos críticos, a mesmice em temas e traços dos pintores deixava
transparecer, muitas vezes, uma certa esterilidade no aprendizado
dos ateliês europeus e nas academias de belas-artes. Os rigores da
forma, o estereotipado receituário de cenas e fórmulas não era mais
garantia de aplausos. O próprio crítico Alfredo Sousa que, anos an-
tes, fora um dos grandes incentivadores do maior número possível
de mostras, utilizava-se, agora, dos mesmos conceitos acadêmicos,
para exigir maior inventividade e criatividade dos pintores. Se por um
lado, o domínio da técnica mantinha o pintor distante dos ecletismos,
por outro, era responsável pela falta de individualidade nos riscos de
muitas mãos consagradas.51 O recado de Alfredo Sousa serviria, assim,
a pintores de diversas escolas. Longe de representar uma crítica ao
projeto nacionalista da pintura histórica sob o cânone republicano,
essa crítica almejava angular o esquadro dos pintores em novas
descobertas. A cada grande tela, sob narrativa visual, deveria nascer
a verdadeira síntese da história. A imperfeição do passado seria o
principal ângulo de revisão da história visual, escrita pelas tintas nos
contornos da censura e do patrocínio de intelectuais e governantes
que pensaram as artes como tradução de uma experiência concreta
diante da própria história que estavam construindo.

Livro Macos na gaveta.indb 26 17/8/2009 14:21:54


27

Aldrin Moura de Figueiredo


Notas
* Este artigo, especialmente preparado para esta coletânea, é parte de uma pesquisa
mais ampla sobre pintura e círculos intelectuais na Amazônia, que desenvolvo na
UFPA, com o auxílio do CNPq. Agradeço a Beatriz Kushnir e Norberto Osvaldo
Ferreras pelo convite e a Jorge Nassar, Rosa Arraes e Maria Amélia Morgado pela
reprodução das imagens que pertencem ao acervo do Museu de Arte de Belém.
1 AVALLONE, Riccardo. Mecenate. Napoli: Libreria scientifica editrice, 1963 e o clás-
sico de HOLLAND, Francis. Caius Maecenas. In: ______. Seneca. London: Longmans,
1920. p. 187–205.
2 PATURZO, Franco. Mecenate: il ministro d’Augusto: politica, filosofia, letteratura
nel periodo augusteo. Cortona: Calosci, 1999, e o texto seminal: SCHOMBERG,
Ralph. The life of Mæcenas: with critical, historical, and geographical notes. 2a ed.
London: Printed for A. Millar, 1766.
3 WELCH, Anthony. Shah Abbas & the arts of Isfahan. New York: The Asia Society,
1973; ROBERTSON, Clare. Il gran cardinale: Alessandro Farnese, patron of the arts.
New Haven: Yale University Press, 1992; ANAND, Mulk Raj. Maharaja Ranjit Singh
as patron of the arts. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1982.
4 Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002; CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
5 CUNHA, Marly Solange Carvalho da. Terra, poder e as relações familiares: José
Porphirio de Miranda Jr. Revista de Cultura do Pará, Belém, v. 17, p. 65–107, 2006b.
6 O termo coronel começou a ser usado, no Brasil, por líderes políticos locais, já
no período da Regência, a partir de 1831, quando foi criada a Guarda Nacional
em substituição às Companhias de Ordenanças. A patente mais alta na Guarda
Nacional era a patente de coronel, a qual era atribuída ao fazendeiro mais impor-
tante de uma região, na qual havia um batalhão formado da Guarda Nacional. Os
fazendeiros sustentavam as tropas dos voluntários da pátria, convocando-as e
soldando-as, ganhando, assim, um apoio descomunal nesse período. Aos poucos,
após a Guerra do Paraguai, a Guarda Nacional foi tornando-se simbólica, não reun-
indo mais tropas, até ser extinta em 1918 no período de Venceslau Brás. Sobre a
questão, ver os clássicos: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local
na vida política brasileira: da Colônia à Primeira República. São Paulo: Anhembi,
1957; LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime rep-
resentativo no Brasil. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. Sobre a Amazônia,
ver GEFFRAY, Christian. A opressão paternalista: cordialidade e brutalidade no co-
tidiano brasileiro. Rio de Janeiro: Educam, 2007.
7 CUNHA, Marly Solange Carvalho da. “Intendentes Matutos”: as disputas políticas
no Pará Republicano (1897–1912). Projeto de dissertação de mestrado em História
Social da Amazônia, UFPA, Belém, 2006a.
8 SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do Velho Intendente: Antonio Lemos (1869–
1973). Belém: Paka-Tatu, 2004.
9 SARGES, Maria de Nazaré. La Belle-Époque en la Amazonia en la época del caucho.
In: PÉREZ, José Manuel Santos; PETIT, Pere (Org.). La Amazonia Brasileña en Per-
spectiva Histórica. Salamanca: Aquilafuente, 2006. p. 91–107.
10 CUMMINGS JR., Milton; KATZ, Richard (Ed.). The patron state: government and the
arts in Europe, North America, and Japan. New York: Oxford University Press, 1987.
11 Hoje este acervo faz parte da coleção do Museu de Arte de Belém (MABE). Para
uma análise ampla desse processo de constituição das coleções museológicas e
suas relações com o público, ver BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain; SCHNAPPER,
Dominique. L’Amour de l’art, les musées d’art européens et leur public. 2a ed. Paris:
Éditions de Minuit, 1969 e OLES, James (Ed.). De artesanos y arlequines: forjando una
colección de arte mexicano. Cidade do México: Museo Nacional de Arte, 2005.

Livro Macos na gaveta.indb 27 17/8/2009 14:21:55


28
12 Hoje este acervo faz parte da coleção do Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP).
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

13 COELHO, Inocêncio Machado. Os gallé de Antonio Faciola. A Província do Pará,


Belém, 29 fev. 1976.
14 Vitralista francês, Gallé foi um dos expoentes da art nouveau. Trabalhou com vidros
opacos e semitransparentes, ganhando fama internacional pelos motivos florais.
No mobiliário, reinaugurou a tradição da marchetaria. A principal temática de seus
artefatos eram flores e folhagens, realizadas em camadas sobrepostas ao vidro,
técnica por ele desenvolvida, cujo nome em francês é “paté de verre”, trabalhando
com maestria a opacidade e translucidez do material, inclusive numa coleção com
paisagens tropicais brasileiras do final do século XIX. Cf. THIEBAUT, Philippe. Les
dessins de Gallé. Paris: Musée d’Orsay, 1993; LE TACON, F. Emile Gallé: maître de
l’art nouveau. Strasbourg: Nuée bleue, 2004 e COELHO, Inocêncio Machado. Os
gallé de Antonio Faciola. A Província do Pará, Belém, 29 fev. 1976.
15 DUQUE-ESTRADA, Osório. O norte. Porto: Livraria Chardron, 1909. p. 36.
16 CAETANO, Alberto. A Leda, quadro de Ticiano. Revista Ocidente, Lisboa, 30 out. 1906.
17 SALACHA, Victor. La Léda du Titien. La Revue du Bien dans la Vie et dans l’Art,
Paris, p. 3-8, out. 1906.
18 DUQUE, Gonzaga. A Lenda Ticianesca. Kosmos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 9, set. 1906.
19 MOREIRA, Apolinário. O último discurso acadêmico. Revista da Academia Paraense
de Letras, Belém, p. 77, jan. 1977. p.77.
20 EXPOSIÇÃO de pintura. Folha do Norte, Belém, p. 1, 15 dez. 1908.
21 EXPOSIÇÃO Theodoro Braga. Folha do Norte, Belém, p. 1, 17 dez. 1908. Ver também
HASKELL, Francis. Patrons and painters: a study in the relations between Italian
art and society in the age of the Baroque. New York: Knopf, 1963.
22 CAMPOS, Humberto de. Antonio Lemos. In: ______. Carvalhos e roseiras: figuras
políticas e literárias. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1954. p. 23. Referência a SAINT-
VICTOR, Paul. Hommes et dieux: études d’histoire et de littérature. Paris: Michel
Lévy, 1867.
23 Ibid., p. 25.
24 SARGES, Maria de Nazaré. Memória iconográfica e mecenato durante a época áu-
rea da borracha: o projeto artístico-civilizador de Antonio Lemos. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DA ANPUH, 20., 1999, São Paulo. Anais... São Paulo: Humanitas: ANPUH,
1999. v. 2, p. 971.
25 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará, 1888–1918: retrospecto histórico dos últimos trinta
annos. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará, Belém, v. 7, p. 153, 1934.
26 Todo esse acervo, oriundo da antiga Intendência Municipal, pertence hoje ao Mu-
seu de Arte de Belém (MABE).
27 PARREIRAS, Antônio. Viagem ao Norte. In: ______. História de um pintor contada
por ele mesmo: Brasil – França, 1881-1936. 3a ed. Niterói: Niterói Livros, 1999. p.
123. Sobre a estada de Parreiras em Belém, ver: FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. O
vernissage da história: Antonio Parreiras, Benedito Calixto e Theodoro Braga em
Belém do Pará, 1903–1908. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 5, p. 116–125, 2003.
28 ARRAES, Rosa. Inventário. In: FUNDAÇÃO CULTURAL DO MUNICÍPIO DE BELÉM.
Museu de Arte de Belém: memória & inventário. Belém: MABE, 1996. p. 46.
29 COUDREAU, Henri. L’Avenir de la capitale du Pará. Anais da Biblioteca e Arquivo
Público do Pará, Belém, v. 8, p. 221–245, 1913.
30 GODINHO, Victor; LINDENBERG, Adolpho. Norte do Brasil através do Maranhão, do
Pará e do Amazonas. Rio de Janeiro: Laemmert, 1906. p. 122. A construção da memória
de Lemos, incluindo aí a do mecenas, foi analisada cuidadosamente por SARGES, Ma-
ria de Nazaré. Memórias do velho intendente: Antônio Lemos, 1869–1973. Tese (Douto-
rado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1998.

Livro Macos na gaveta.indb 28 17/8/2009 14:21:55


29
31 Cf. BONNEFOUS, Jean de. En Amazonie. Paris: Kugelmann, 1898. p. 51; COUDREAU,

Aldrin Moura de Figueiredo


Henri. L’Avenir de la capitale du Pará. Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará,
Belém, v. 8, p. 221-245, 1913 e COUDREAU, Henri. Les Français en Amazonie. Paris:
Picard-Bernheim, 1887.
32 Nos últimos meses na Escola de Belas Artes, também atuou como ilustrador da re-
vista carioca Vera Cruz, fundada em 1898, órgão literário que reunia muitos autores
ligados ao movimento simbolista. Cf. PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plás-
ticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p. 85.
33 RÊGO, Clóvis de Morais. Theodoro Braga: historiador e artista. Belém: Conselho
Estadual de Cultura, 1974. p. 28.
34 CARS, Laurence des. Jean-Paul Laurens et la peinture d’histoire sous la troisième
République. In: ________. Jean-Paul Laurens, 1838–1921: peintre d’histoire. Paris:
Réunion des Musées Nationaux, 1998. p. 23–34.
35 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Theodoro Braga e a história da arte na Amazônia. In:
______. A fundação da cidade de Belém. Belém: Museu de Arte de Belém, 2004. p. 31–87.
36 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; ALVES, Moema Bacelar. Rasgou-se o véu da noite
escura: arte, poesia e abolição no Grão-Pará, 1870–1888. Política Democrática, Bra-
sília, DF, v. 21, 2008.
37 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto histórico dos últimos trinta
annos. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará, Belém, v. 7, p. 153, 1934.
38 SOUSA, Alfredo. Exposição de pintura. Folha do Norte, Belém, p. 1, 15 maio 1906.
39 SOUSA, Alfredo. Impressões de arte. Folha do Norte, Belém, p. 1, 17 ago. 1906.
40 Ibid. O crítico comentou, em especial, o Farol de Soure e Barrancos do Porto, ambos
sobre a cidade de Soure, no litoral nordeste da ilha.
41 SOUSA, Alfredo. Impressões de arte: Theodoro Braga, aquarelista. Folha do Norte,
Belém, p. 1, 01 nov. 1906.
42 RÊGO, Clóvis de Morais. Theodoro Braga: historiador e artista. Belém: Conselho
Estadual de Cultura, 1974. p. 18.
43 INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE BELÉM. Relatório apresentado ao Conselho Munici-
pal de Belém na Sessão de 15.11.1902 pelo Exmo Sr. Intendente Antônio José de
Lemos; 1897–1902. Belém: Typ. de Alfredo Augusto Silva, 1902. p. 205.
44 INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE BELÉM. Relatório apresentado ao Conselho Munici-
pal de Belém na Sessão de 15.11.1904 pelo Exmo Sr. Intendente Antônio José de
Lemos. Belém: Typ. de Alfredo Augusto Silva, 1904. p. 200.
45 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará, 1888–1918: retrospecto histórico dos últimos
trinta annos. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará, Belém, v. 7, p. 153,
1934. p. 153–4.
46 SALGUEIRO, João Vicente. Victor Meireles e Pedro Américo. In: SOUZA, Wladimir
Alves de et al. Aspectos da arte brasileira. Rio de Janeiro: Funarte, 1981. p. 43.
47 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto histórico dos últimos
trinta annos. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará, Belém, v. 7, p.
153–154, 1934. p. 154.
48 Hoje, parte dos acervos do Museu do Estado do Pará [MEP], no prédio do antigo
Palácio dos Governadores, e do Museu de Arte de Belém [MABE], no antigo Palacete
Azul da Intendência Municipal de Belém.
49 IHGSP, Coleção Benedicto Calixto [CBC], Manuscritos diversos sobre assuntos rel-
ativos a Santos, pasta I (10 documentos); Capitania de São Vicente, pastas II – A-B;
III; IV; V; Cartas de interesse histórico dirigidas a Benedicto Calixto, pasta IV – A-B
(notar especialmente as correspondências com Theodoro Sampaio (1902), Toledo
Piza (1894–1903); Von Hering (1901–1904) e Rocha Pombo (1908). Para uma leitura
dos referenciais históricos de Calixto, vide ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a
construção do imaginário republicano. Bauru: Edusc, 2003.

Livro Macos na gaveta.indb 29 17/8/2009 14:21:55


30
50 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto historico dos últimos
Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

trinta annos. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará, Belém, v. 7, p.


153-154, 1934. p. 154.
51 Ver o artigo de SOUSA, Alfredo. “Exposições de pintura na Capital do Pará”. Correio
de Belém, Belém, 17 de dezembro de 1907, p. 2, sob o pseudônimo “Alfi”, no qual
faz um apanhado das últimas mostras ocorridas em Belém, apontando as virtudes
do acesso às belas-artes e os defeitos ligados à repetitividade dos pintores. Para
uma análise dessa questão na crítica internacional do século XIX, ver GOLDSTEIN,
Robert Justin. Political censorship of the arts and the press in nineteenth-century
Europe. Basingstoke: Macmillan, 1989.

Referências

ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário


republicano. Bauru: Edusc, 2003.
ANAND, Mulk Raj. Maharaja Ranjit Singh as patron of the arts. Atlantic
Highlands: Humanities Press, 1982.
ARRAES, Rosa. Inventário. In: FUNDAÇÃO CULTURAL DO MUNICÍPIO
DE BELÉM. Museu de Arte de Belém: memória & inventário. Belém:
MABE, 1996.
AVALLONE, Riccardo. Mecenate. Napoli: Libreria scientifica editrice, 1963.
BONNEFOUS, Jean de. En Amazonie. Paris: Kugelmann, 1898.
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain; SCHNAPPER, Dominique. L’Amour
de l’art, les musées d’art européens et leur public. 2. ed. Paris: Éditions
de Minuit, 1969.
BRAGA, Theodoro. A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto histórico
dos últimos trinta annos. Revista do Instituto Historico e Geographico
do Pará, Belém, v. 7, p. 153-154, 1934.
CAETANO, Alberto. A Leda, quadro de Ticiano. Revista Ocidente, Lis-
boa, 30 out. 1906.
CAMPOS, Humberto de. Antonio Lemos. In: . Carvalhos e rosei-
ras: figuras políticas e literárias. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1954.
CARS, Laurence des. Jean-Paul Laurens et la peinture d’histoire sous la
troisième République. In: . Jean-Paul Laurens, 1838-1921: peintre
d’histoire. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1998. p. 23-34.
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
COELHO, Inocêncio Machado. Os gallé de Antonio Faciola. A Província
do Pará, Belém, 29 fev. 1976.

Livro Macos na gaveta.indb 30 17/8/2009 14:21:55


31

COUDREAU, Henri. L’Avenir de la capitale du Pará. Anais da Biblioteca

Aldrin Moura de Figueiredo


e Arquivo Público do Pará, Belém, v. 8, p. 221-245, 1913.
. Les Français en Amazonie. Paris: Picard-Bernheim, 1887.
CUMMINGS JR., Milton; KATZ, Richard (Ed.). The patron state: gover-
nment and the arts in Europe, North America, and Japan. New York:
Oxford University Press, 1987.
CUNHA, Marly Solange Carvalho da. “Intendentes Matutos”: as disputas
políticas no Pará Republicano (1897-1912). Projeto de dissertação de
mestrado em História Social da Amazônia, UFPA, Belém, 2006a.
. Terra, poder e as relações familiares: José Porphirio de Mi-
randa Jr. Revista de Cultura do Pará, Belém, v. 17, p. 65-107, 2006b.
DUQUE, Gonzaga. A Lenda Ticianesca. Kosmos, Rio de Janeiro, v. 3,
n. 9, set. 1906.
DUQUE-ESTRADA, Osório. O norte. Porto: Livraria Chardron, 1909.
EXPOSIÇÃO de pintura. Folha do Norte, Belém, p. 1, 15 dez. 1908.
EXPOSIÇÃO Theodoro Braga. Folha do Norte, Belém, p. 1, 17 dez. 1908.
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. O vernissage da história: Antonio
Parreiras, Benedito Calixto e Theodoro Braga em Belém do Pará, 1903-
1908. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 5, p. 116-125, 2003.
. Theodoro Braga e a história da arte na Amazônia. In:
A fundação da cidade de Belém. Belém: Museu de Arte de Belém, 2004.
p. 31-87.
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; ALVES, Moema Bacelar. Rasgou-se o
véu da noite escura: arte, poesia e abolição no Grão-Pará, 1870-1888.
Política Democrática, Brasília, DF, v. 21, 2008.
GEFFRAY, Christian. A opressão paternalista: cordialidade e brutalidade
no cotidiano brasileiro. Rio de Janeiro: Educam, 2007.
GODINHO, Victor; LINDENBERG, Adolpho. Norte do Brasil através do
Maranhão, do Para e do Amazonas. Rio de Janeiro: Laemmert, 1906.
GOLDSTEIN, Robert Justin. Political censorship of the arts and the press
in nineteenth-century Europe. Basingstoke: Macmillan, 1989.
HASKELL, Francis. Patrons and painters: a study in the relations
between Italian art and society in the age of the Baroque. New York:
Knopf, 1963.
HOLLAND, Francis. Caius Maecenas. In: . Seneca. London:
Longmans, 1920. p. 187-205.

Livro Macos na gaveta.indb 31 17/8/2009 14:21:55


32

INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE BELÉM. Relatório apresentado ao


Pretérito imperfeito: arte, mecenato, imprensa e censura em Belém do Pará, 1898-1908

Conselho Municipal de Belém na Sessão de 15.11.1902 pelo Exmo Sr.


Intendente Antônio José de Lemos; 1897/1902. Belém: Typ. de Alfredo
Augusto Silva, 1902.
INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE BELÉM. Relatório apresentado ao
Conselho Municipal de Belém na Sessão de 15.11.1904 pelo Exmo Sr.
Intendente Antônio José de Lemos. Belém: Typ. de Alfredo Augusto
Silva, 1904.
LE TACON, F. Emile Gallé: maître de l’art nouveau. Strasbourg: Nuée
bleue, 2004.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MOREIRA, Apolinário. O último discurso acadêmico. Revista da Aca-
demia Paraense de Letras, Belém, p. 77, jan. 1977.
OLES, James (Ed.). De artesanos y arlequines: forjando una colección
de arte mexicano. Cidade do México: Museo Nacional de Arte, 2005.
PARREIRAS, Antônio. Viagem ao Norte. In: ______. História de um
pintor contada por ele mesmo: Brasil – França, 1881-1936. 3. ed. Niterói:
Niterói Livros, 1999.
PATURZO, Franco. Mecenate: il ministro d’Augusto: politica, filosofia,
letteratura nel periodo augusteo. Cortona: Calosci, 1999.
PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política
brasileira: da Colônia à Primeira República. São Paulo: Anhembi, 1957.
RÊGO, Clóvis de Morais. Theodoro Braga: historiador e artista. Belém:
Conselho Estadual de Cultura, 1974.
ROBERTSON, Clare. Il gran cardinale: Alessandro Farnese, patron of
the arts. New Haven: Yale University Press, 1992.
SAINT-VICTOR, Paul. Hommes et dieux: études d’histoire et de littéra-
ture. Paris: Michel Lévy, 1867.
SALACHA, Victor. La Léda du Titien. La Revue du Bien dans la Vie et
dans l’Art, Paris, p. 3-8, out. 1906.
SARGES, Maria de Nazaré. La Belle-Époque en la Amazonia en la épo-
ca del caucho. In: PÉREZ, José Manuel Santos; PETIT, Pere (Org.). La
Amazonia Brasileña en Perspectiva Histórica. Salamanca: Aquilafuente,
2006. p. 91-107.

Livro Macos na gaveta.indb 32 17/8/2009 14:21:55


33

. Memória iconográfica e mecenato durante a época áurea da

Aldrin Moura de Figueiredo


borracha: o projeto artístico-civilizador de Antonio Lemos. In: SIM-
PÓSIO NACIONAL DA ANPUH, 20., 1999, São Paulo. Anais... São Paulo:
Humanitas: ANPUH, 1999.
. Memórias do velho intendente: Antônio Lemos, 1869-1973.
Tese (Doutorado em História)-Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, 1998.
. Memórias do Velho Intendente: Antonio Lemos (1869/1973).
Belém: Paka-Tatu, 2004.
SALGUEIRO, João Vicente. Victor Meireles e Pedro Américo. In: SOUZA,
Wladimir Alves de et al. Aspectos da arte brasileira. Rio de Janeiro:
Funarte, 1981.
SCHOMBERG, Ralph. The life of Mæcenas: with critical, historical, and
geographical notes. 2. ed. London: Printed for A. Millar, 1766.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2002.
SOUSA, Alfredo. Exposição de pintura. Folha do Norte, Belém, p. 1, 15
maio 1906.
. Exposições de pintura na Capital do Pará. Correio de Belém,
Belém, p. 2, 17 dez. 1907.
. Impressões de arte. Folha do Norte, Belém, p. 1, 17 ago.
1906.

Impressões de arte: Theodoro Braga, aquarelista. Folha


.
do Norte, Belém, p. 1, 01 nov. 1906.
THIEBAUT, Philippe. Les dessins de Gallé. Paris: Musée d’Orsay,
1993.
WELCH, Anthony. Shah Abbas & the arts of Isfahan. New York: The
Asia Society, 1973.

Livro Macos na gaveta.indb 33 17/8/2009 14:21:55


Livro Macos na gaveta.indb 34 17/8/2009 14:21:55
MEIOS DE COMUNICAÇÃO E POLÍTICA: O JORNAL E O RÁDIO NAS
ELEIÇÕES DE 1958 EM UBERLÂNDIA*

Regma Maria dos Santos

O propósito deste artigo é entender como os meios de comunicação


participam das determinações e dos rumos políticos de uma sociedade.
Em particular, observa a imprensa do interior brasileiro e a expansão dos
discursos políticos possibilitados pelo rádio e pelo jornal. Este tema apre-
senta-se, no entanto, como um desafio, tanto no tratamento teórico, quanto
na referência documental que procura explorar. No caso do rádio, houve a
diluição da originalidade pela própria especificidade do meio, o imediatismo.
Logo, restou buscar sua memória na publicação dos jornais, e mesmo nos
documentos oficiais como as atas da Câmara Municipal.
A pesquisa foi delimitada entre os anos 1958 e 1963 pela especifici-
dade de, nesse período, assumir a prefeitura de Uberlândia o dono de uma
rede de emissoras radiofônicas, Geraldo Mota Batista,1 que se utiliza tanto
do jornal quanto do rádio para realizar sua campanha política. O acesso
aos meios de comunicação justifica sua entronização na vida pública local,
restrita até então aos setores tradicionais e conservadores da sociedade
uberlandense.
Pertencendo anteriormente ao quadro político do PSD (Partido So-
cial Democrático), ao qual também pertencia o então presidente Juscelino
Kubistchek de Oliveira, obteve com facilidade as concessões necessárias
para ampliação de sua rede de emissoras. Estudar, pois, as relações que se
tramam entre esse personagem político e os elementos de que dispõe para
sua eleição é uma das tarefas propostas.
Quanto à documentação, os jornais do período constituem fonte bá-
sica de pesquisa, e devem aqui ser destacados em sua representatividade
no período abordado.
O jornal O Repórter tinha, no ano de 1963, 31 anos de existência
quando o seu até então diretor-proprietário, João de Oliveira, o vendeu à
Editora OVD de São Paulo. Ao se referir à venda do jornal, João de Oliveira
sentenciou que o mesmo tivera existência inteiramente independente de
qualquer credo ou partidarismo. No entanto, durante a campanha eleitoral
de 1958, o jornal assumiu uma postura claramente ligada aos interesses do

Livro Macos na gaveta.indb 35 17/8/2009 14:21:55


36
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

Partido Republicano, apoiando a candidatura do ex-vereador Geraldo


Ladeira à Prefeitura Municipal.
O jornal Correio de Uberlândia, fundado em 1938, e ainda hoje
em circulação, manteve, no período analisado (1958 a 1962), uma
disposição totalmente contrária ao jornal O Repórter, pois era ligado
à UDN (União Democrática Nacional). Seu diretor-gerente, Valdir Mel-
gaço Barbosa, candidata-se, nas eleições de 1958, a vereador por esse
mesmo partido, utilizando-se do jornal como porta-voz, da mesma
forma como fizera Carlos Lacerda com o jornal Tribuna da Imprensa.
A clareza dessa predisposição partidária no jornal é confirmada
ainda pelo apoio ao candidato a prefeito José Fonseca e Silva, tendo
sido ele o primeiro prefeito eleito em Uberlândia, no ano de 1948,
através do voto popular. Embora derrotado em 1959, seu colega de
chapa, Raul Pereira Rezende, foi eleito vice-prefeito pela UDN, ao lado
de Geraldo Ladeira do PR, já que se votava em separado.
O jornal O Triângulo, fundado em 1928, funcionando primeira-
mente em Araguari, depois em Uberaba e, finalmente, em Uberlândia,
em 1956 fazia parte da Empresa Gráfica do Triângulo Ltda. que era de
propriedade de Renato de Freitas e Rafael Marino Neto, personalida-
des políticas locais. Sua tendência partidária é visivelmente notada
na fase das eleições de 1958, quando apoia o candidato Toninho
Rezende à Prefeitura e o seu diretor, Rafael Marino Neto, à vereança
pelo Partido Social Democrata (PSD), não sendo eleito para o cargo.
Apesar da não representatividade desses no poder, sua atuação no
meio público é sempre contundente quando das sessões da Câmara
que investigavam e avaliavam a atuação do prefeito eleito Geraldo
Ladeira. O diretor Renato de Freitas foi posteriormente eleito no ano
de 1967 para a prefeitura da cidade.
Outra fonte documental consultada foram as atas da Câmara
Municipal de Uberlândia. Pudemos observar que expressavam o con-
teúdo das discussões travadas dentro do Legislativo, e mesmo fora
dele, através, principalmente, das rádios locais.
Dispomos também das correspondências recebidas e expedidas
pela Câmara Municipal, que nos certificam quanto aos atos do prefeito
e sua relação com o Legislativo, bem como deste com a sociedade em
geral, sejam associações de classe ou pessoa física e jurídica.
Os processos administrativos compõem também o quadro docu-
mental, indicando a formalização das prestações de contas nos vários
anos do governo Ladeira, a criação de comissões e de atos realizados
pelo poder público, como regulamentação de leis que dispõem sobre o
salário mínimo, a isenção de impostos sobre atividades jornalísticas,
recursos contra atos de prefeito, entre outros.

Livro Macos na gaveta.indb 36 17/8/2009 14:21:55


37

Regma Maria dos Santos


A partir dessa documentação, questionamos a forma como se
estabelece a relação entre o discurso e a própria realidade, sabendo-
se que, apesar das características progressistas e dos princípios da
ordem e da moral vigentes em Uberlândia, existe também o que não
se pode prever, como o tumulto, o caos, a desordem, provocados pelo
movimento denominado “Quebra-Quebra”, no ano de 1959,2 e a eleição
de um prefeito sem tradição na política local.
Um segundo questionamento refere-se à relação entre os apa-
ratos técnicos da sociedade moderna, especificamente o rádio, e a
construção de um personagem político. Isso significou um redimensio-
namento das práticas políticas dos partidos locais, construindo novas
relações de poder, o que significa que há, então, uma publicização
das estratégicas políticas que terão como respostas dos receptores
o comparecimento às urnas e o voto. Tanto o ouvinte como o leitor
serão tratados como eleitores, redimensionando, assim, a esfera de
entrecruzamento entre as noções de público e privado. De acordo
com Pierre Nora,

Saber é a primeira forma de poder numa sociedade de infor-


mação democrática. O corolário nem sempre é falso: quem
detém o poder é tido como quem sabe. Daí uma dialética
nova, própria a fazer surgir nas nossas sociedades um tipo de
acontecimento ligado ao segredo, à política, à conspiração, ao
rumor e aos ruídos. Pois é ao mesmo tempo verdadeiro e falso
que não se fala tanto para esconder o essencial, que o sistema
que favorece o nascimento do acontecimento é também, mas
não apenas, fabricantes de ilusões, que tantas confissões dis-
simulam uma falsidade.3

Não é por acaso que um radialista se torna político, pois, podendo


se valer dos instrumentos da comunicação, pode afirmar um determi-
nado tipo de “saber”, já que possui um determinado tipo de poder.4
Não temos, portanto, um candidato qualquer, mas distinto de
tantos outros. Carnavalizando o pleito eleitoral e a própria política
local, se elege graças ao seu poder de seduzir o público a partir de
seus programas no rádio, impondo durante a gestão de seu governo
um novo método de tratar a coisa pública. Todas as querelas político-
partidárias são discutidas nos programas de rádio e/ou aparecem
como crônicas em jornais.
Não é por acaso que durante seu governo se cria o Departamento
de Imprensa e Propaganda do Município, que cuidará de esclarecer e
justificar os atos do prefeito nos meios de comunicação local. Cabe,

Livro Macos na gaveta.indb 37 17/8/2009 14:21:55


38
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

ainda, questionar qual foi a ação efetivamente desempenhada pelos


meios de comunicação local – rádio e jornal – nas questões políticas
emergentes. Em sua pesquisa sobre o rádio no período Vargas, Lenharo
constrói importantes reflexões:

O rádio permitiu uma encenação de caráter simbólico e envol-


vente, estratagemas de ilusão participativa e de criação de um
imaginário homogêneo de comunidade nacional. O importante
do rádio não era exatamente o que era passado e sim como era
passado, permitindo a exploração de sensações e emoções
propícias para o envolvimento político dos ouvintes. Efeitos
sonoros de massa podiam atingir e estimular a imaginação
dos rádios-receptores, permitindo a integração, em variados
tons entre emissor e ouvinte, para se atingir determinadas
finalidades de participação política.5

Partindo desses pressupostos, constatamos que nas eleições de


1958, em Uberlândia, foram eleitos para ocupar os cargos legislativos
dois empresários da comunicação, sendo estes Valdir Melgaço Barbosa,
diretor do jornal Correio de Uberlândia, e Moacyr Lopes de Carvalho,
dono da Rádio Educadora. Nessa mesma eleição, o prefeito vencedor do
pleito é o dono de um consórcio de rádios, duas delas em Uberlândia,
a Rádio Difusora e a Rádio Bela Vista, posteriormente instalada.
Outro fato já declarado refere-se à relação entre jornais e rá-
dios e os partidos políticos: o jornal Correio de Uberlândia e a Rádio
Educadora, de linha declaradamente udenista; o jornal O Repórter, do
PR, bem como a Rádio Difusora; e finalmente o jornal O Triângulo e a
Rádio Cultura, representantes pessedistas.
Por essas constatações, não podemos negar, portanto, que tais
meios – rádio e jornal – foram responsáveis por um redimensionamento
do pensamento político local, já que tornaram possível a eleição de
personalidades políticas ligadas a eles.
Dessa forma, analisaremos as relações entre os meios de comu-
nicação de massa e a política, procurando traçar as práticas inseridas
por esses meios na predisposição partidária de cada órgão – rádio e
jornal nas eleições de 1958, notando basicamente a atuação da fala
e da escrita no desempenho de uma determinada atividade política.
Procuramos, assim, refletir a respeito das questões que se eviden-
ciam num determinado período da história local, enfatizando o processo
de construção de uma nova prática política que se manifesta numa
cultura política distinta, peculiar e ainda hoje importante definidora dos
rumos da administração pública nas diversas instâncias de poder.

Livro Macos na gaveta.indb 38 17/8/2009 14:21:56


39

Regma Maria dos Santos


1. O discurso radiofônico

Ao procurarmos relacionar os elementos que na contempora-


neidade redimensionam o cotidiano, refletimos basicamente sobre
o uso da imprensa falada (rádio) e escrita (jornal) na determinação
dos novos rumos políticos de uma sociedade. Ambos, por seu caráter
pluridimensional, ampliam as referências obtidas parcialmente sobre
determinados aspectos da realidade.
De acordo com artigo intitulado “O Pioneiro do Futuro: Geraldo
Motta Baptista”, temos a sugestão de que seu governo representou a
passagem de um posicionamento provinciano, politicamente falando,
para um posicionamento moderno, que demole o coronelismo e o
apadrinhamento político, colocando a cidade na senda do progresso.6
A utilização do rádio como instrumento e prática moderna dentro da
política é constantemente ressaltada na documentação analisada,
como podemos observar neste artigo:

Meus amigos: tenho acompanhado com o necessário interesse


a perlenga travada entre o candidato do PR (antigo pessedista)
e seus antigos companheiros do PSD, através da Rádio Cultura
emissora adquirida às vésperas das eleições, num trabalho, é
claro, pessoal e político junto a J.K. e Valadares. [...] O primeiro
candidato do P.R. partido em decadência, diz na sua rádio que o
PSD nunca preocupou com problemas da cidade, esquecendo-
se, no entanto, que há 60 dias atraz fazia parte deste mesmo
partido. [...] Retruca, da outra rádio, o seu adversário: mal agra-
decido, candidato do PR; você foi o único beneficiado com o PSD.
Conseguiu mais de 4 rádios para seu uso pessoal, conseguiu
empréstimos, arranjou emprego para seu irmão, fez serviço de
corretagem a custa do prestigio que procurava usufruir no PSD
e hoje é você mesmo que quer atacar o PSD por isto ou aquilo.
Porque razão quando estava do lado de cá, nada fez pelo povo?
Porque você é vaidoso, mentiroso, leviano e demagogo e nunca
quis trabalhar pela cidade. O que você quer é falar sozinho na
rádio sem contestação. Você foi ao Rio de Janeiro denunciar
que a Rádio Cultura era de elementos comunistas, como fez a
Educadora em tempos idos. [...] 7

Depois de eleito, o prefeito Geraldo Ladeira continua ainda a


utilizar o rádio como instrumento político pelo qual justifica seus atos
e declara suas omissões, sendo, por isso, ferrenhamente questionado
por seus adversários.

Livro Macos na gaveta.indb 39 17/8/2009 14:21:56


40
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

Mesmo as questões políticas referentes às relações entre Execu-


tivo e Legislativo municipais deslocaram-se das instâncias normais, ou
seja, Câmara e Prefeitura, para o rádio, tornando acessíveis aos ouvintes
disputas anteriormente processadas em bastidores. Em um artigo do
jornal Correio de Uberlândia podemos observar essa predisposição:

É preciso que haja um entrosamento entre executivo e legislativo,


porque dele haverá o beneficio da coletividade, a grandeza e a
prosperidade de nossa comuna. Mas, o que teremos notado
é que a colaboração do executivo com o legislativo se processa
apenas em crônicas radiofônicas, razão por que sua bancada
está agora se movimentando no sentido de fazer valer o pres-
tígio do poder legislativo.8

A querela que se travava diante de um novo espaço político abala


os setores mais tradicionais da política local, que envidava esforços no
sentido de resgatar para os espaços instituídos – Câmara e Prefeitura –
as discussões políticas. No entanto, apesar de tais prerrogativas serem
alardeadas, a utilização política do rádio já estava consolidada. Em
diversas atas da Câmara Municipal desse período, observamos, ainda,
a utilização do rádio com o intuito de formalizar atitudes políticas e
revelá-las dentro de um caráter de maior amplitude e alcance.
Em termos das relações de poder evidenciadas por esses
meios, seria interessante voltar a frisar que a Rádio Cultura foi criada
às vésperas da eleição e pertencia aos membros do PSD, que fazem
oposição não só ao prefeito municipal (PR) mas também à maioria
constituída na câmara pela UDN.
Espaço aberto a debates, esse meio é também utilizado como
“palanque”, no qual discursavam os políticos de cada agremiação,
como nos é sugerido neste artigo que publica a palestra do candi-
dato a vereador pelo PSD, Rafael Marino Neto, nos microfones da
Rádio Cultura:

Caro eleitor. Boa Noite. Convidado a Participar do programa


– Futura Comarca Municipal – instituído em boa hora pela
direção da Rádio Cultura de Uberlândia, para expor minha
plataforma política como candidato a vereador ao eleitorado
da cidade jardim.9

Após a eleição, não contando com a participação direta de Rafael


Marino Neto na câmara municipal, os diretores da rádio criaram um
programa político de fiscalização.10

Livro Macos na gaveta.indb 40 17/8/2009 14:21:56


41

Regma Maria dos Santos


A UDN, ao fazer coligação com o PRP (Partido da Representação
Popular), traz para si o tripé das discussões entre as rádios, já que o
vereador Moacyr Lopes de Carvalho, eleito por esse partido, é diretor
da Rádio Educadora.
Outro ponto, relativo à própria especificidade do rádio, ou seja,
o seu imediatismo, possibilita – a menos que algum programa seja
gravado – que se confirmem afirmações feitas por estes ou aqueles,
no sentido de referendar alguma crítica ou fala insidiosa contra algum
inimigo ou rival político. Nesses termos, uma interessante discussão
processada na Câmara dos Vereadores, com a participação do prefeito
municipal, na qual um dos vereadores questiona a fala do prefeito, ao
que este responde que o vereador não ouviu bem ou não compreendeu
o sentido de suas palavras.11
Compreender o sentido das palavras que já se diluíram no
momento em que foram ditas é como exigir que se atestem, por
meio da confiabilidade, aquilo que talvez justamente se preferisse
contestar. Estabeleceu-se, então, o impasse que gera sérios conflitos
na administração municipal.

2. O discurso jornalístico

Por justamente conter o discurso e ser quase impossível


contestar seu conteúdo – a menos que por interpretação de força
ideológica –, o jornal impresso, também elemento de debate políti-
co, é, nesse período analisado, importante elemento que dá voz aos
interesses políticos e partidários que determinam a realidade social,
paralelamente ao rádio. Logo, é importante considerar que o jornal,
como fonte documental, situa-nos diante de inúmeras possibilidades
interpretativas, como ressalva Maria Helena Capelato:

A reconstituição das lutas políticas e sociais da imprensa tem


sido o alvo de muitas pesquisas recentes. Nos vários tipos
de periódicos e até mesmo em cada um deles encontramos
projetos políticos e visões de mundo representativos de vá-
rios setores da sociedade – a leitura dos discursos expressos
nos jornais permite acompanhar o movimento das idéias que
circularam na época. A análise do ideário e da prática política
dos representantes da imprensa revela a complexidade da
luta social. Grupos se aproximam e se distanciam segundo as
conveniências do momento; seus projetos se interpenetram se
mesclam e são matizados. Os desencadeados para efetivação
dos diferentes projetos se inserem numa luta mais ampla que

Livro Macos na gaveta.indb 41 17/8/2009 14:21:56


42
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

perpassa a sociedade por inteiro. O confronto das falas, que


exprimem idéias e práticas, permite ao pesquisador captar,
com riqueza de detalhes, o significado da atuação de diferentes
grupos que se orientam por interesses específicos.12

Confirmando tais considerações, durante o período do governo


de Geraldo Ladeira, temos três jornais dispostos como elementos
fundamentais na definição das estratégias do jogo político local.
Juntamente com o rádio, são importantes elementos promotores da
discussão pública, reafirmando seu papel.
O jornal O Repórter, em edição que antecede ao pleito eleito-
ral, confirma sua predisposição partidária, noticiando realização da
convenção do partido que teve lugar no auditório da Rádio Difusora,
sendo convocada pelo presidente Adelcio Cunha e por Geraldo Mota
Batista:

A reunião teve lugar no auditório da Rádio Difusora, cujo recinto


ficou superlotado em vista do grande número de pessoas pre-
sentes inclusive muitas senhoras e senhoritas. [...] Homologadas
foram as candidaturas de Geraldo Mota Batista, para prefeito
e do advogado Pedro Schwindt Filho para deputado estadual.
Nesta oportunidade, o candidato Geraldo Mota Batista fez as
suas despedidas do Partido Social Democrático, profundamente
emocionado, do qual fora por força de acontecimentos de to-
dos conhecidos com outros destemidos e leais companheiros,
obrigado a sair.13

Contraditoriamente, em artigo que aborda mais um aniversário


de fundação do jornal, podemos ler, neste mesmo editorial, a seguinte
afirmação de princípios:

Ninguém desconhece que a imprensa livre e democrática tem


atuação decisiva no progresso das comunidades. Assim sendo,
deve colocar-se acima das questiúnculas políticas, dos choques
grupais e das lutas partidárias, atuando com serenidade e de-
sapaixonadamente, fazendo apenas campanhas construtivas
e criticando com elevação de princípios.14

Contradições à parte, ao assumir a prefeitura, o candidato repre-


sentado por esse jornal, já no início de suas atividades, foi questionado
pela dispensa de empregados da Prefeitura, fato averiguado por este
periódico, ainda porta-voz dos interesses do Partido Republicano.15

Livro Macos na gaveta.indb 42 17/8/2009 14:21:56


43

Regma Maria dos Santos


Passando por uma reviravolta, o mesmo jornal, após apoiar
claramente o prefeito, passa a criticá-lo nitidamente como se nada
tivesse feito para que o mesmo fosse eleito e nenhuma responsabili-
dade lhe fosse devida.
Daí por diante, as críticas foram sempre severas e enfáticas,
questionando minuciosamente os atos do prefeito municipal como ve-
mos pelos títulos dos artigos publicados: “Inquérito na Câmara envolve
o Prefeito: Acusado de embolsar milhares de cruzeiros. Enquanto êle
se defende falta dinheiro para pagar os diaristas”;16 “Prefeito cumpre
ameaça: demitido funcionário com oito anos de serviço – pai de três
filhos – vítima de péssimo administrador”.17
Ao mesmo tempo, são publicadas nas páginas desse jornal
palestras proferidas ao microfone da Rádio Educadora por António
Humberto de Souza, que relaciona fatos inerentes à vida pública com
a administração, insinuando ser o prefeito demagógico, desonesto
e incompetente.
Os ataques vão diluindo-se, mas ainda em crônica pela Rádio
Educadora, do radialista Dantas Ruas, vemos a conivência do jornal
com a emissora, através da crônica diária “Eu destaco você”, lida em
14 de setembro de 1961 e publicada no jornal O Repórter: “Eu destaco
você, prefeito municipal, pelo mal que você vem causando à nossa
cidade, com uma administração desplanificada e personalista [...].”18
Aprendida a lição, esse jornal apoia a campanha contrária ao sr.
Geraldo Ladeira nas eleições do ano de 1962, como constatamos: “Sim,
o povo saberá castigar nas urnas aquêles demagogos que mandaram
imprimir o seu nome na embalagem (saco de papel), saco êste que veio
aumentar em Cr$ 5,00 no custo do arroz que lhe era fornecido.”19
E realmente foi confirmada a previsão do jornal, já que Geraldo
Ladeira candidatou-se a deputado estadual e foi derrotado, sendo
eleito Valdir Melgaço Barbosa, diretor do jornal Correio de Uberlândia,
pela UDN. Na ocasião, veicularam-se vários ataques à pessoa do em-
presário Geraldo Ladeira por meio de publicações que questionavam
sua idoneidade.20
No ano de 1962, embora às vezes se destacassem alguns artigos
que referendavam a candidatura de Tubal Vilela para a prefeitura, o
jornal O Repórter manteve certa distância da política partidária, não
destacando nenhuma coligação como preferencial. No ano de 1963, o
jornal foi vendido à Editora OVD, transferindo a direção, a redação e
a orientação do jornal.
O segundo jornal de circulação diária no período é o Correio de
Uberlândia, cujo diretor-gerente, Valdir Melgaço Barbosa, fora eleito
vereador pela legenda da UDN. Sua campanha, bem como a dos demais

Livro Macos na gaveta.indb 43 17/8/2009 14:21:56


44
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

candidatos, foi veiculada intensamente pelo jornal, como notamos no


artigo de Lycidio Paes:

Entre os moços convocados pelos dirigentes brigadeiristas um


existe que merece referência especial: é o diretor desta folha
[...]. Filiado pessoalmente à UDN e mantendo o jornal senão
como órgão oficial pelo menos com tendência udenista, estas
colunas não se transformaram em pelourinho de campanha
sistemática. Aqui há inteira liberdade de pensamento, mesmo
em oposição aos dogmas da casa.21

Utilizando-se da dissidência partidária dos candidatos do PSD


local, que permitiu a fundação do PR em Uberlândia, com representa-
ção de Geraldo Ladeira, candidato a prefeito, o jornal da UDN não se
poupou da tarefa de mostrar aos eleitores o embate gerado por essas
questões no âmbito partidário:

Sem prestígio maior que conseguir estações de rádio, os adver-


sários de José Fonseca e Silva não obtiveram meios de terminar:
Escola Vocacional, Centro de Saúde, grupos escolares etc.
Estes homens, hoje adversários, nada mais são que “farinha
do mesmo saco!”22

Quando consciente da derrota de seu candidato e obrigado a


reconhecer a vitória de Geraldo Ladeira, o jornal enfatizou que esta
só foi possível graças ao seu prestígio pessoal.23
Ao realizar um balanço político do ano de 1958, o jornal expressa
claramente sua indignação quanto à eleição de um radialista:

Prevalece o processo de pregação política adotada pelo


radialista. O povo preferiu o homem do rádio, ao homem do
comércio, ao homem do campo. [...] Fazemos votos que Câmara
não vote “impeachement” contra o Sr. prefeito que tem 2/3 do
legislativo contra.24

As primeiras críticas à atuação do prefeito não tardaram a chegar,


ocorrendo mesmo antes de sua posse, quando, por exemplo, se discute a
lei orçamentária a ser aprovada na Câmara para o exercício de 1959.25
Não é por acaso que o prefeito municipal, criando o Departa-
mento de Imprensa da Prefeitura, loca espaço no jornal Correio de
Uberlândia, denominado de “Gabinete do Prefeito”, no qual rebate
críticas recebidas e expõe os atos do chefe do Executivo municipal,

Livro Macos na gaveta.indb 44 17/8/2009 14:21:56


45

Regma Maria dos Santos


reconhecendo a importância dos meios de comunicação e os valori-
zando sobremaneira.26
Posicionando-se contra os próprios articulistas do jornal, o
Departamento de Imprensa da Prefeitura diz valorizar o eleitor e
sua capacidade de discernimento sobre os acontecimentos e não
sobre a interpretação pronta e acabada dos rivais políticos do
prefeito municipal.
No entanto, a oficialização do Departamento Municipal de
Imprensa é feita por meio de projeto do vereador Valdir Melgaço
Barbosa, que, não contraditoriamente, pôde, através das páginas do
seu jornal, lucrar com o espaço vendido à Prefeitura, justificando ser
de importância para Uberlândia a criação de um órgão que divulgue
a cidade tanto interna como externamente.
Os conflitos políticos, no entanto, não parecem ser atenuados
no segundo ano do mandato do prefeito, que já nos primeiros meses
enfrenta uma séria crise em função dos impostos e da lei de autoria
do vereador e jornalista Valdir Melgaço.27
No ano de 1961, as críticas à administração municipal processa-
ram-se ainda de forma intensa através do jornal Correio de Uberlândia,
o que levou o prefeito a uma declaração sobre o seu governo nos dois
anos em que estava à frente do Poder Executivo municipal. No entanto,
mais uma vez, a Câmara municipal propõe, através de denúncia dos
atos do prefeito, enquadrá-lo na lei de responsabilidade.28
Um ano eleitoral, no qual as querelas políticas locais assumem
novo sentido, 1962, define-se por ser especialmente o ano em que o
jornal Correio de Uberlândia ressaltará a concorrência de seu diretor-
gerente ao cargo de deputado estadual, competindo com o então
prefeito Geraldo Ladeira.29
Por conseguinte, foi a UDN, através de intensa campanha eleito-
ral, a grande vitoriosa nas eleições de outubro, elegendo Raul Pereira
de Rezende como prefeito e Chico Rivalino como vice.30
Após quatro anos de questionamentos, críticas e incitações,
consegue o jornal Correio de Uberlândia, porta-voz explícito da União
Democrática Nacional, instalar-se no poder, garantindo uma votação
expressiva que elege prefeito, vice-prefeito, maioria na Câmara e
deputado estadual.
Contemporâneo aos dois jornais já citados e analisados, o jornal
O Triângulo situa-se como o representante político do PSD – Partido
Social Democrático. Fundado em Araguari em 1928, o jornal transfere-
se para Uberaba no ano de 1945. Em fins de 1955, o jornal é transferido
definitivamente para Uberlândia.

Livro Macos na gaveta.indb 45 17/8/2009 14:21:56


46
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

O jornalista Rafael Marino Neto, diretor d’O Triângulo, é can-


didato no ano de 1958 à Câmara dos vereadores pelo PSD. Por isso
mesmo, utiliza o jornal como meio de comunicação, com o intuito de
veicular sua campanha. Ao lado do jornal, há também a Rádio Cultura,
inaugurada no mesmo ano sob a mesma direção d’O Triângulo.31 Esse
veículo é de extrema importância no desfecho da campanha eleitoral
no ano de 1958, quando o candidato do PSD à Prefeitura, Toninho
Rezende, pode aí expressar o seu pensamento vivo, como o fazem
Geraldo Ladeira, por meio da Rádio Difusora, e Raul Pereira, por meio
da Rádio Educadora.32
O programa de governo do candidato à Prefeitura, Toninho Re-
zende, também era esmiuçado no jornal, seja em forma de entrevistas,
declarações ou mesmo em artigos editoriais.
Após a eleição e a ciência da derrota de seus candidatos, o
jornal, que defendia inclusive a eleição do então prefeito Afrânio Ro-
drigues da Cunha a deputado federal, critica o fato de serem eleitos
“paraquedistas” e atenta ao fato de que os resultados comprovam
o desgaste dos partidos em face das rupturas ocorridas no meio
político uberlandense.33
Quanto ao poder local, após a posse do prefeito Geraldo Ladeira,
o jornal O Triângulo posiciona-se referendando a administração ante-
rior, que era do PSD, defendendo o ex-prefeito Afrânio Rodrigues da
Cunha. Por outro lado, o jornal busca sempre pinçar a característica
demagógica do prefeito, afirmando que este confunde sua profissão
de radialista com a de chefe do Poder Executivo.
Mas o primeiro embate direto entre o prefeito eleito e a direção
do jornal deu-se em função de uma concorrência pública para pu-
blicação do expediente da Prefeitura municipal, durante o exercício
de 1959. Tratando então as questões de forma meramente política,
o jornal nega-se a participar de uma segunda concorrência. A partir
daí, as críticas contra a atuação do prefeito tornam-se mais sérias e
enfáticas, tanto quando trata da dispensa de empregados da Prefeitura
e da política salarial, como da execução de obras públicas.34
Sempre usando de tom sarcástico, o jornal debocha das atitudes
do prefeito, considerando que o mesmo não se dispõe a levar a sério
o exercício da vida pública. Quando aparecem oportunidades reais
para fazer uso político dos “deslizes” do prefeito, o jornal o faz com
ironia, como no caso das biografias.35
Com o desfecho da política nacional, evidenciado pela renúncia
de Jânio Quadros e a posterior perseguição aos órgãos de imprensa no
país, o jornal assume um tom mais moderado e passa a se situar como
importante defensor da liberdade de imprensa e da luta pela legalidade

Livro Macos na gaveta.indb 46 17/8/2009 14:21:56


47

Regma Maria dos Santos


na posse do vice João Goulart. Em termos locais, o jornal passa a
assumir uma postura menos eloquente ao questionar as atitudes do
prefeito, embora ainda se posicione contrário ao seu governo.36
Noutro momento, essa postura moderada talvez seja também
reflexo da vontade política do diretor do jornal, Renato de Freitas,
de se tornar candidato à Prefeitura no ano de 1962. O que chama a
atenção, no entanto, é a afirmação da característica apartidária de sua
candidatura, como percebemos nesta declaração:

De fato, sou candidato à Prefeitura de Uberlândia, foram as


palavras textuais do dr. Renato de Freitas, e, logo em seguida,
o ilustre entrevistado, afiançou: Candidato sim, mas sem qual-
quer compromisso partidário com quem quer que seja. Mas sob
qual legenda se registrará: Todos os partidos que me louvarem
com seu apoio, poderão se assim o quizerem, registrar o meu
nome, pois, como sabem, nas eleições por voto majoritário,
não há o chamado voto legenda. Desta maneira, aliás, poderei
continuar fiel ao meu compromisso de não comprometer-me
politicamente com ninguém.37

Não teve, no entanto, essa campanha política o mesmo teor de


paixão que a de 1958, sendo a discrição característica primordial, princi-
palmente por parte deste matutino, que não chega sequer a comentar o
resultado favorável à UDN quando se elege Raul Pereira de Rezende.38
Podemos perceber, assim, que cada meio de comunicação –
rádio e/ou jornal – exerceu papel preponderante de porta-voz das
discussões político-partidárias nos anos de 1958 a 1962, cada um
representando determinado partido ou proposta política.
No entanto, ao constatarmos que na campanha de 1962 o calor
efusivo das campanhas eleitorais de 1958 não se repete, acreditamos
que os conceitos e as práticas políticas redimensionam-se. Podemos
justificar essa análise na avaliação de Celina Rabelo Duarte:

É principalmente a partir do final da década de 50, com o avanço


dos processos de industrialização e urbanização, que a imprensa
começa a abandonar seus resquícios de “imprensa política” para
assumir as características de uma imprensa de massa. Isto é, os
constrangimentos de ordem político-econômica que incidem
sobre os jornais enquanto empresas, no sentido de impedir-lhes
uma atuação política independente, e que já se mostravam na
década de 40, são agora gravemente acentuados.39

Livro Macos na gaveta.indb 47 17/8/2009 14:21:56


48
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

Avaliamos, pois, que a importância dos meios de comunicação na


produção de uma determinada história é dada também por sua valori-
zação enquanto agente de informação e elemento de transformação.
Os novos rumos que a política local e nacional traçaram a par-
tir de 1962, observando tais pressupostos, reavaliam o papel desses
meios e imprimem a eles novas características, não mais aquela dos
antigos populistas, mas passam a ser alvos da segurança nacional,
alterando-se então a própria política de comunicação no Brasil.

Os decretos no 21.111 de 12 de março de 1932 e 29.783 de 19 de


março de 1951 que regulavam a política de comunicação no
Brasil estavam superados. Foram considerados anarquistas e já
não satisfaziam a fúria e a arrogância autoritária do militarismo
que começava a despontar no sombrio horizonte dos últimos
vinte anos da política brasileira. No dia 2 de setembro de 1961,
a tirania militar dá o “golpe de misericórdia” na liberdade de
nosso país. Instala-se aqui, mais uma vez o Estado de Sítio.
Cria-se o Serviço de Censura Militar dirigido por cinco majores
do exército e membros do Conselho de Segurança Nacional. A
partir desse instante, todas as emissoras, oficiais ou particula-
res, não poderiam mais transmitir seus noticiários sem que eles
fossem previamente censurados. Este era em síntese, o quadro
geral da nossa política de comunicação nessa época.40

Atualmente assistimos ainda ao discurso da “imparcialidade” e


da “neutralidade” dos meios de comunicação em relação a questões
políticas partidárias, mas, como constatamos, mesmo pertencendo a
empresários, esses meios se ligam a determinados grupos de poder
respondendo a diferentes interesses, continuando, assim, a redimen-
sionar o nosso cotidiano e a interferir em nossa história.

Notas
* Este artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado defendida no Pro-
grama de Mestrado em História da PUC-SP, intitulada: Os meios de comunicação na
memória e no discurso político em Uberlândia (1958 – 1963).

1 É interessante destacar que este prefeito foi eleito pelo nome Geraldo Ladeira
(cujo apelido se deve à semelhança deste com o apresentador César Ladeira, da
Rádio Nacional do Rio de Janeiro). Temos na documentação pesquisada seu nome
descrito de diversas formas: “Geraldo Motta Baptista, Geraldo Motta Batista,
Geraldo Mota Baptista” e outras variações possíveis. Preferimos, assim, utilizar
nas referências textuais, o nome que o popularizou, Geraldo Ladeira, utilizando
as outras formas apenas nas citações literais da documentação.

Livro Macos na gaveta.indb 48 17/8/2009 14:21:56


49
2 SANTANA, Eliene Dias de Oliveira. Memórias e cidade: Uberlândia e o movimento

Regma Maria dos Santos


popular de 1959. In: BRITO, Diogo de Souza; WARPECHOWSKI, Eduardo Moraes
(Org.). Uberlândia revisitada: memória, cultura e sociedade. Uberlândia: EDUFU,
2007. p. 251–291.
3 NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: no-
vos problemas. 2a ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1979. p. 88.
4 Através do artigo “A Campanha Eleitoral de Ladeira” do jornal O Repórter de
24/10/1958, podemos observar esta premissa: “A Mais Original Campanha Eleitoral
Feita em Minas foi a do Sr. Geraldo Ladeira, que ganhou a Prefeitura de Uberlândia,
derrubando a cúpula de políticos tradicionais e contra todo mundo. O Sr. Ladeira,
atacado por não ter nascido na cidade, ia a cada ataque no microfone para a res-
posta clássica. E quando o povo pensava que ele ia desancar o adversário, man-
dava botar o disco que era resposta aos ataques: ‘Descansa tua cabecinha no meu
ombro e chora’. Quando a UDN aliou-se ao PRT, mandou tocar durante o dia can-
ção de Alvarenga e Ranchinho: ‘Eram duas caveiras que se amavam’. O seu ‘slogan’
principal foi: ‘Alô, alô, papai, tudo azul’. Isto porque seu pai morava em Campinas
e pelo rádio acompanhava suas engraçadas palestras. Agora está no Rio, gozando
as delícias do mar e tem encontro marcado com JK que, antes da campanha, lhe
disse: - ‘Vá Geraldo, ganhe e volte para falar comigo’.”
5 LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986. p. 40.
6 “O Pioneiro do Futuro: Geraldo Motta Baptista”. Boletim Informativo NUHCIS, Uber-
lândia, ano 3, no 6, 2o sem. 1990.
7 “G. Ladeira é candidato mentiroso, leviano e demagogo”. Correio de Uberlândia,
Uberlândia, 28 set. 1959.
8 “Geraldo Ladeira não tem correspondido à confiança da Câmara”. Correio de Uber-
lândia, Uberlândia, 4 jun. 1959. Grifo nossos.
9 “Palestra proferida pelo candidato a vereador Rafael Marino Neto”. O Triângulo,
[S.l.], 27 set. 1959.
10 “Tribuna do povo, novo programa político”. O Triângulo, [S.l.], 15 fev. 1959.
11 CÂMARA MINICIPAL DE UBERLÂNDIA. Ata da Sessão Extraordinária realizada em
21/1/1960. Livro no 79, p. 58.
12 CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto:
Edusp, 1985. p. 34.
13 “Realizou-se a convenção do Partido Republicano com êxito absoluto”. O Repórter,
[S.l.], 3 maio 1958.
14 O Repórter, [S.l.], 25 dez. 1958.
15 “Dispensa de Empregados da Prefeitura”. O Repórter, [S.l.], 28 fev. 1959.
16 O Repórter, [S.l.], 6 set. 1961.
17 O Repórter, [S.l.], 8 maio 1961.
18 O Repórter. [S.l.], 18 set. 1961.
19 “Política”. O Repórter, [S.l.], 14 fev. 1962.
20 “Autoridades”. O Repórter, [S.l.], 1 mar. 1962.
21 “Uma Candidatura”. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 17 ago. 1958.
22 “Adversários de Fonseca são equivalentes em desprestigio”. Correio de Uberlân-
dia, Uberlândia, 28 set. 1958.
23 “Com um terço da votação apurada: tudo indica que Ladeira foi o eleito do povo”.
Correio de Uberlândia, Uberlândia, 7 out. 1958.

Livro Macos na gaveta.indb 49 17/8/2009 14:21:56


50
24 “Panorama Político Uberlandense: 58”. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 24-25
Meios de comunicação e política: o jornal e o rádio nas eleições de 1958 em Uberlândia

dez. 1958.
25 “Aprovado o orçamento apresentado: prefeito”. Correio de Uberlândia, Uberlândia,
30 nov. 1958.
26 “Gabinete do Prefeito”. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 14 jul. 1959.
27 “Câmara inclinada a decretar afastamento do Prefeito”. Correio de Uberlândia,
Uberlândia, 21 jan. 1960.
28 O processo se desenrolou em termos legais de forma lenta, e, quase ao final do
ano, a comissão ainda não havia conseguido apurar devidamente os fatos, rolan-
do ainda mais o prazo para averiguação das contas da prefeitura (“Prefeito na
Lei Responsabilidades: perda do cargo”. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 9 maio
1961).
29 “Candidatura desta casa”. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 13 maio 1962.
30 “Vitoriosa a chapa de Raul e Chico Rivalino”. Correio de Uberlândia. 11/10/1962.
31 “No ar a Rádio Cultura de Uberlândia”. O Triângulo, [S.l.], 5 set. 1958.
32 “Toninho Rezende agradece à mulher uberlandense pela Rádio Cultura”. O Triân-
gulo, [S.l.], 21 set. 1958.
33 “Uberlândia deu 6.612 votos para o candidato paraquedista e apenas 15.148 dos
seus 25 mil votos para Afrânio e Rondon”. O Triângulo, [S.l], 15 out. 1958.
34 “Alô, alô, Sr. G. Ladeira”. O Triângulo, [S.l], 1 mar. 1959.
35 Jornalistas passaram por Uberlândia dizendo-se representantes da editora norte-
americana H.W. Company, com o objetivo de relacionar o nome de pessoas ilustres
para publicar sua biografia no livro: “Who’s who in Latin America”, o que custaria
a cada biografado a quantia de 20 dólares. No entanto, o fato foi descoberto pela
Delegacia de Furtos e Roubos de Belo Horizonte, que afirmou tudo não passar
de uma fraude. Encabeçando a lista dos que caíram no “conto” da biografia está
o sr. prefeito municipal, Geraldo Ladeira, seguido dos vereadores Valdir Melgaço
Barbosa, Moacyr Lopes de Carvalho e outros 50 personalidades locais. “‘Dinheiro
de trouxa, matula de malandro’, e muita gente boa foi no ‘Conto da Biografia’”. O
Triângulo, 11 abr. 1961.
36 “Prefeito deixa a cidade em verdadeiro abandono”. O Triângulo, [S.l.], 22 jul. 1961.
37 “Renato de Freitas candidato a Prefeito”. O Triângulo, [S.l.], 14 jan. 1962.
38 “Posse do novo prefeito”. O Triângulo, [S.l.], 27 jan. 1963.
39 DUARTE, Celina Rabelo. Imprensa e redemocratização no Brasil: um estudo de duas
conjunturas: 1945 e 1974-1978. Dissertação (Mestrado)–Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 1987. p. 155.
40 CALDAS, Waldemir. Cultura de massa e política de comunicação. São Paulo: Global,
1986. p. 85.

Referências

CALDAS, Waldemir. Cultura de massa e política de comunicação. São


Paulo: Global, 1986.

CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo:


Contexto: Edusp, 1985.

Livro Macos na gaveta.indb 50 17/8/2009 14:21:57


51

DUARTE, Celina Rabelo. Imprensa e redemocratização no Brasil: um

Regma Maria dos Santos


estudo de duas conjunturas: 1945 e 1974-1978. Dissertação (Mestrado)–
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1987.

LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas, SP: Papirus,


1986.

NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre.


História: novos problemas. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1979.

SANTANA, Eliene Dias de Oliveira. Memórias e cidade: Uberlândia e o


movimento popular de 1959. In: BRITO, Diogo de Souza; WARPECHO-
WSKI, Eduardo Moraes (Org.). Uberlândia revisitada: memória, cultura
e sociedade. Uberlândia: EDUFU, 2007. p. 251-291.

Livro Macos na gaveta.indb 51 17/8/2009 14:21:57


Livro Macos na gaveta.indb 52 17/8/2009 14:21:57
SEM AVIÕES DA PANAIR E IMAGENS DA TV EXCELSIOR NO AR:
UM EPISÓDIO SOBRE A RELAÇÃO REGIME MILITAR E TELEVISÃO

Áureo Busetto

Conversa sobre a Excelsior numa mesa de bar

No final de 1974, a cantora Elis Regina lançava, em seu LP intitulado


Elis, a gravação de “Saudades dos aviões da Panair”, canção composta por
Milton Nascimento e Fernando Brant. Na letra da canção, o narrador traça
suas lembranças da infância e observações sobre o presente, expressas em
conversa numa mesa de bar. O narrador relembra a experiência que teve ao
voar pela primeira vez: “Levei um susto imenso/Nas asas da Panair/Descobri
que as coisas mudam/E que tudo é pequeno/Nas asas da Panair”. A lição
sobre movimento e perspectiva aprendida no voo da Panair foi capaz de
assustar o narrador quando menino, mas sem lhe causar pavor. Segundo
ele, “um medo” somente nasceria “muito depois” em sua vida, porém não
sem ele descobrir qual a sua arma contra aquele sentimento: “Descobri que
minha arma/É o que a memória guarda/Dos tempos da Panair”. E, ao observar
que naquele momento “velhos e moços” apenas podiam lembrar “o que já
foi”, resolve brindar as lembranças do tempo da Panair: “Cerveja que tomo
hoje/É apenas em memória/Dos tempos da Panair”.
“Saudades dos aviões da Panair” é mais uma canção de protesto pro-
duzida durante o regime militar, portanto, em tempos da vigência da censura
oficial. Milton Nascimento e Fernando Brant, nos versos daquela canção,
associam, de maneira bastante subliminar, o período pré-64, quando o Brasil
respirava ares da democracia, ao tempo que os aviões da Panair cruzavam
os céus. Remetem, indiretamente, o ouvinte mais atento e informado à per-
seguição política que o regime militar investira contra a família Simonsen,
a qual, ligada ao ramo de exportação de café e proprietária da companhia
aérea Panair do Brasil e da TV Excelsior, tinha como patriarca Mário Wallace
Simonsen, um dos poucos empresários da comunicação social a apoiar o
presidente Goulart no momento do Golpe de 1964. Perseguição que resultara
no arbitrário fim da TV Excelsior.
E o ano do lançamento da gravação de “Saudades dos aviões da Panair”
contribuía para que pessoas mais informadas pudessem entender o recado

Livro Macos na gaveta.indb 53 17/8/2009 14:21:57


54
um episódio sobre a relação regime militar e televisão
Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar:

dos compositores, pois em abril de 1974, e após quatro anos da TV


Excelsior ter sido retirada do ar, o filho de Mário Wallace Simonsen,
Wallace Neto, era denunciado pelo Ministério Público, conjuntamente
com quatro antigos diretores da emissora, por crime falimentar da
TV Excelsior S/A. Para muitos tal notícia tratava apenas de mais um
episódio de uma história de insolvência de fortuna familiar mal ad-
ministrada. Visão que setores do regime militar se empenharam em
forjar e que muito os agradava, dado que ela possibilitava reforçar
a imagem do regime como defensor da democracia e moralização
do Brasil. Afinal, oficialmente não se tratava do fechamento de uma
emissora de TV por motivos políticos, mas medidas legais contra
uma empresa televisiva falida, portanto, prestadora de serviço público,
posto que fruto de concessão do Estado brasileiro.
Contudo, muito além das aparências e visões oficiais, tratava-
se do final da mais trágica novela sobre a televisão brasileira, cujo
enredo, muito pouco conhecido pela população em geral do período,
e mesmo hoje, foi suficiente para ceifar uma das mais férteis expe-
riências televisivas do país. Todavia, é um episódio que permite ao
historiador, sobremaneira o ocupado com a temática mídia e política,
conhecer e compreender muito sobre a dinâmica das relações entre
o autoritarismo do regime militar e a TV.

Padrão Excelsior de qualidade

Em julho de 1960, o espectro eletromagnético paulista passa-


va a contar com os sinais da TV Excelsior, canal 9, cuja concessão
pertencia à sociedade composta por Mário Wallace Simonsen, José
Luís Moura (grande exportador de café, tal como Simonsen), Ortiz
Monteiro (à época deputado federal e ex-proprietário da TV Paulista)
e João Scantimburgo (dono do Correio Paulistano). Salvo as comuns
atribulações geradas pelo amadorismo e improviso que grassavam
no meio televisivo, a Excelsior, entre o seu lançamento oficial e seus
primeiros meses de funcionamento, dava provas de que se ocuparia em
inovar a maneira de fazer televisão no país, pois trazia para a telinha
o teatro, a literatura e o cinema produzidos no Brasil, quando não, a
música clássica nacional.
Entretanto, os dois principais proprietários da Excelsior di-
vergiam sobre a condução da emissora. Moura pretendia uma TV
nos moldes da norte-americana, com a exibição de muitos filmes
e sem grandes investimentos em programação própria. Simonsen
preconizava o oposto. Contudo, as divergências que os separariam

Livro Macos na gaveta.indb 54 17/8/2009 14:21:57


55

Áureo Busetto
definitivamente não seriam da ordem da programação, mas diferenças
político-eleitorais. Próximo politicamente do presidente JK, Simonsen
apoiava a candidatura presidencial do marechal Lott. Moura fechava
com a de Jânio. Como resultado final do embate, Simonsen comprou
as ações de Moura e pôde, assim, colocar a emissora a favor da
candidatura situacionista. Mesmo com sua opção político-eleitoral
vencida, Simonsen não encontraria dificuldades em se aproximar do
presidente eleito, o que era, e continua sendo, de grande valia para todo
concessionário de radiodifusão. Sua aproximação com Jânio devia-se
ao fato de Saulo Ramos, advogado de Simonsen e da Excelsior, ter sido
nomeado chefe de gabinete do governo janista.
Não tardaria e Simonsen compraria as cotas dos outros dois
sócios minoritários da Excelsior, bem como colocaria seu filho Walla-
ce Cochrane Simonsen Neto, o Wallinho, à frente da emissora. A TV
Excelsior era a única empresa de Simonsen na área de comunicação
social e estava longe de ter o poder do condomínio Diários e Emissoras
Associados, de propriedade de Assis Chateaubriand, ou de se igualar
ao da rádio e tevê Record, de Paulo Machado de Carvalho. Porém, tal
posição não impedira o crescimento e o êxito da TV Excelsior. Sucesso
obtido em razão dos amplos investimentos aplicados na emissora,
em grande medida oriundos de outros negócios de Simonsen, e do
estabelecimento de uma programação arrojada e inovadora.
Entre o fim de 1962 e o início de 1964, a Excelsior se encontrava
em plena expansão. No início de 1963, Simonsen adquire de Assis Chau-
teuabriand o Canal 2 e instala a TV Excelsior do Rio de Janeiro. Logo
depois, compra 1/3 das ações da TV Vila Rica, de Belo Horizonte, e
adquire metade da TV Gaúcha, de Porto Alegre, além de firmar acordos
com emissoras de Curitiba, Recife, Uberlândia e Cuiabá para exibição
de parte da produção da Excelsior. A tevê de Simonsen propriamente
se tornava a primeira rede de televisão brasileira, pois boa parte de
sua programação era exibida em várias regiões do país. Expediente
possível graças ao recurso do videoteipe (VT) e do transporte rápido
e sem custos adicionais das fitas de programas da Excelsior pelos
vôos da Panair do Brasil.
Em termos da produção televisiva, a direção da TV Excelsior
contratou ótimo elenco de artistas e igual quadro de técnicos, so-
bremaneira profissionais vinculados às suas concorrentes diretas:
TV Tupi, TV Record e TV Rio. Implementou a grade de programação
vertical e horizontal – uma sequência diária com programa infantil,
telenovela, telejornal, shows e filmes. Lançou um casal de bonequinhos
animados como mascote da emissora e que era utilizado em vinhetas
da programação, procedimento que possibilitava aos telespectadores

Livro Macos na gaveta.indb 55 17/8/2009 14:21:57


56
um episódio sobre a relação regime militar e televisão
Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar:

a imediata identificação do canal. Adotou rigoroso controle do tempo


dos intervalos comerciais, os quais não podiam ultrapassar dois mi-
nutos. Implantou a primeira telenovela diária no país: 2-5499 Ocupado.
Inovou na produção de programas musicais, de auditório e de humor,
todos produzidos com requinte e qualidade. Pautada pela ideia de se
firmar como a primeira emissora de tevê a refletir a cultura do país,
deu continuidade aos programas desse teor, à exibição semanal de
filmes nacionais e à de tele-encenações de peças teatrais de drama-
turgos brasileiros. Revolucionou o setor de telejornais com o Show
de Notícias e o Jornal de Vanguarda, os quais eram, ao contrário de
seus congêneres, mais ilustrados, dinâmicos e apresentados por vá-
rios profissionais, muitos dos quais eram destacados jornalistas da
imprensa nacional e emitiam opiniões “ao vivo”.
Não por acaso, a Excelsior se tornava, em 1963, a emissora líder
de audiência nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Resultado
que logo incomodou os demais proprietários de tevês, os quais não
gostavam de ver suas rendas obtidas com a publicidade serem, cada vez
mais, divididas com a emissora de Simonsen, além de reprovarem as
alterações provocadas por esta no meio televisivo, em termos da valori-
zação e do respeito aos profissionais quando das suas contratações.

Excelsa política de uma TV em tempos de golpe

Do ponto de vista político, Simonsen, como um liberal demo-


crata, se colocava na defesa da liberdade de expressão. Formado
na tradição inglesa, era um legalista, acreditava no poder da cons-
titucionalidade, a ponto de não se deixar enredar pela propaganda
anticomunista, chegando, inclusive, a se negar a colaborar com o IPES
e IBAD. Com a renúncia do presidente Jânio e o veto de militares em
relação à posse de Goulart, Simonsen abriu seu escritório paulista à
Campanha da Legalidade. E, mais ainda, incumbiu ao diretor de suas
empresas no exterior, Max Reshulski, a tarefa de “resgatar” Jango na
China. E, para tanto, lançou mão de um voo especial e extraordinário
realizado por sua companhia aérea. Com a emenda parlamentarista
aprovada, Jango retornava ao Brasil nas asas da Panair.
Durante o governo de Jango, o telejornalismo da Excelsior
seguiria apoiando o presidente da República, embora a emissora ga-
rantisse espaço na sua programação a lideranças de oposição, como,
por exemplo, a Carlos Lacerda, ou mesmo àqueles que se colocavam
contra o proprietário da emissora, como era o caso de Hebert Levy.
No início de 1964, Levy, como deputado federal udenista, além de

Livro Macos na gaveta.indb 56 17/8/2009 14:21:57


57

Áureo Busetto
banqueiro vinculado a Bancos internacionais e ligado aos negócios da
cafeicultura, acusava Mário Simonsen de realizar operações econômi-
cas ilícitas e vantajosas com o governo federal. Denúncia que gerou a
abertura de uma CPI, que, instalada para investigar a política cafeeira,
acabaria sendo conduzida de maneira tendenciosa, sobretudo após
o Golpe de 1964, e devassaria apenas uma entre todas as firmas de
café: a COMAL (Companhia Paulista de Comércio do Café), fundada,
em 1926, por Roberto Simonsen e há muito, então, capitaneada pelo
seu sobrinho Mário Wallace Simonsen.
Com a deposição de Jango, a TV Excelsior passaria a viver dias
difíceis. Seu proprietário, alinhado ao presidente deposto, não quei-
ria aceitar, pelo menos tão cedo, a vitória dos militares e ser alijado
das vantagens que usufruía junto ao poder federal. Não por acaso, a
Excelsior carioca não exibiria em seus noticiários os acontecimentos
ligados ao golpe. E a paulista retiraria do ar, no dia 1o de abril, seus
telejornais para não ter de informar sobre o movimento golpista, dei-
xando de atender, dessa forma, à solicitação do governador Adhemar
de Barros para que todas as rádios e tevês paulistas divulgassem os
acontecimentos da “Redentora”. A única imagem ligada ao golpe que
fora exibida pela Excelsior não era, entretanto, favorável ao golpe, pois
apresentava a cena do assassinato de um garoto de 12 anos que, em
frente ao Clube Militar da cidade do Rio de Janeiro, gritara o nome
de Jango. Ato contínuo, o garoto fora alvejado na cabeça por um tiro
disparado pela pistola de um homem com estereótipo de militar.
Exibição ousada, uma vez que a matéria fora apresentada na edição
carioca do Jornal de Vanguarda, então líder de audiência. No dia se-
guinte ao golpe militar, a direção da emissora carioca era inquirida por
não ter feito a cobertura dos acontecimentos. Em São Paulo, o mesmo
ocorreria. Entretanto, um mês depois, jornalistas e profissionais da
Excelsior paulista seriam presos sob alegação de terem promovido
greve no dia 1o de abril, com a finalidade de boicotarem a divulgação
da “Revolução de 31 de Março”.
Mesmo com as dificuldades geradas pelo golpe, a TV Excelsior
continuava, até por força de compromissos comercias assumidos,
exibindo a sua programação normal, exceto na produção dos tele-
jornais. As informações e comentários veiculados nos noticiários
passavam pelo expediente da autocensura, o que resultava na perda
da autenticidade dos telejornais da emissora. Porém, a Excelsior
tentava denunciar a censura sofrida. Seus diretores não reeditavam,
salvo as telenovelas, os programas que tinham partes vetadas pela
censura, e, vez ou outra, exibiam, no lugar das partes censuradas, os
seus mascotinhos com as bocas e os ouvidos tapados, acompanhado

Livro Macos na gaveta.indb 57 17/8/2009 14:21:57


58
um episódio sobre a relação regime militar e televisão
Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar:

da legenda: censurado. Todavia, a emissora, com tal atitude, apenas


conseguia colher mais complicações com a ditadura, o que levou seus
diretores a suspenderem aquela prática.

Trágica novela que não foi ao ar

Mas a Excelsior já era envolta pela intranquilidade. Mário Simon-


sen encontrava-se fora do país. Dias antes do golpe e pressentindo pos-
síveis complicações políticas, partira para a Europa. As perspectivas
sobre o destino da emissora não eram nada positivas. Especulava-se
que o regime cassaria a concessão de funcionamento da Excelsior, ou que,
no mínimo, a TV sofria alguma intervenção oficial.
Entretanto, o regime militar não cassou a concessão pública da
tevê de Simonsen, que tinha vigência até 1970, nem interferiu direta-
mente na Excelsior. A primeira alternativa talvez não fosse tomada em
razão de poder gerar sérios arranhões à imagem de legalidade e de
defensor da democracia que setores golpistas procuravam colar ao
esquema político do recém-instituído regime militar. Caso a medida
de cassação fosse tomada, o regime não a concretizaria sem explicitar
seu caráter eminentemente político ou sua excessiva arbitrarieda-
de. Ademais, havia o risco de que a cassação da Excelsior pudesse
chamar a atenção para as indefinições e ambiguidades em relação
aos princípios do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) em
termos de política da radiodifusão. Já a alternativa da intervenção
não era necessária, pois, de certa forma, já era empregada, porém não
exclusivamente à Excelsior, dado que a censura militar mantinha sob
controle todos os veículos de comunicação social. Assim, ao regime
militar restaria manter a tática de minar os negócios de Simonsen
como meio, menos visível publicamente e mais eficaz, para concluir
a sua perseguição política ao empresário.
Com a conclusão da CPI do Café, em 23 de abril de 1964, Simon-
sen teve cassada a autorização da sua COMAL para exportar. Era o
primeiro golpe que o regime militar desferia contra as finanças de
Mário Simonsen e, indiretamente, contra as da TV Excelsior. Logo,
outros negócios da família Simonsen tornavam-se alvo da devassa
do regime militar. Atitude que recebia o apoio da imprensa em geral,
uma vez que essa desferia constantes acusações e ataques contra
Mário Simonsen.
Em fevereiro de 1965, as finanças Simonsen sofreriam um duro
revés, pois o Ministério da Aeronáutica, em breve despacho e de for-
ma arbitrária, determinou a cassação imediata das linhas aéreas da
Panair do Brasil, cuja maior parte foi automaticamente cedida à Varig,

Livro Macos na gaveta.indb 58 17/8/2009 14:21:57


59

Áureo Busetto
e, depois, outra menor seria concedida à empresa Cruzeiro do Sul.
Sem os negócios da COMAL e sem os voos da Panair, a TV Excelsior
dificilmente se manteria no ar, ou nas mãos de Simonsen. Com tais
medidas, perdia Mário Simonsen, ceifado de importantes sustentá-
culos econômicos. Sofria a Excelsior, cujas finanças e funcionamento
eram feridos de morte. O telespectador deixava de usufruir de ino-
vações qualitativas no setor da produção televisiva promovidas pela
Excelsior. Ganhava a ditadura militar, inclusive com a encampação de
instalações aeronáuticas do empresário. Eram beneficiadas, também,
empresas que concorriam diretamente com as de Simonsen, notada-
mente a Varig, de propriedade de Rubem Berta, o Chase Manhathan
Bank, cujo presidente, David Rockefeller, e o seu representante local,
Walter Moreira Salles, disputavam espaço no comércio internacional
do café e tinham interesses ligados aos negócios da Varig. Ademais,
indústrias norte-americanas de aviação e de tecnologia televisiva
favoreciam-se indiretamente, dado que a Panair, dispondo apenas de
aeronaves fabricadas por empresas europeias, sobretudo de origem
francesa, e a Excelsior, valendo-se apenas de equipamentos da inglesa
Marconi, deixavam de figurar como ótimos veículos de propaganda
indireta da qualidade de marcas europeias na acirrada concorrência
daqueles dois setores que se ampliavam no Brasil.
Por conta de ações políticas do governador Carlos Lacerda
contra as finanças de Simonsen, as ações da TV Excelsior foram se-
questradas pelo poder central. A Excelsior estava fora do controle da
família Simonsen. Lacerda, assim como Adhemar de Barros em São
Paulo, cobiçava a Excelsior e sonhava com seu palanque eletrônico.
Porém, o governo de Castello Branco procurara impedir a realização do
sonho de ambos os governadores, uma vez que reservaria um grande
lote de ações da emissora em nome da União. Apesar do sequestro
das ações, a administração da Excelsior pouco se alteraria. Apenas a
emissora do Rio de Janeiro contaria com um interventor federal, Carlos
Manga. Ademais, funcionários da Excelsior promoviam campanhas
para evitar um possível fechamento da emissora, bem como tentavam
transformá-la em uma Fundação. Projeto natimorto, uma vez que não
encontrava amparo legal.
Com a morte de Mário Simonsen, em Paris, e a apresentação de
garantias à dívida da sua família com o Banco do Brasil, o controle da
Excelsior voltava às mãos de Wallace Neto, agora como bem herdado.
O herdeiro, inicialmente, dava provas de que faria a emissora voltar à
situação anterior. Mas ele talvez desconhecesse que o regime militar
também lhe reservara uma herança: a perseguição política pela via
econômica. Dentro da lógica desta herança, a TV Excelsior encontrava

Livro Macos na gaveta.indb 59 17/8/2009 14:21:57


60
um episódio sobre a relação regime militar e televisão
Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar:

dificuldades para descontar as suas promissórias de publicidade em


Bancos, pois estes fechavam suas portas àquela que era considerada
como emissora indesejável pelo novo regime político; deixava de con-
tar com verbas publicitárias oficiais e tinha restringido o número de
seus anunciantes, uma vez que empresas privadas, aliadas ao regime
militar ou pressionadas por ele, deixavam de anunciar na emissora.
Com prejuízos no faturamento, a produção de programas da emissora
era prejudicada, resultando na queda dos seus índices de audiência. E,
não bastando tudo isso, Wallace Neto fora preso pela Polícia Federal
para prestar depoimentos sobre as finanças da sua rede de TV.
Sem saída imediata, sob pressão dos seus funcionários para
continuar à frente da Excelsior e emocionalmente abalado, Wallace
Neto venderia, no final de 1965, os direitos sucessórios sobre as ações
da sua rede de TV a Edson Leite e Alberto Saad, diretores da Excelsior
de São Paulo, Otávio Frias e Carlos Caldeira Filho, sócios do Grupo
Frical, proprietário da Folha de S. Paulo. A perseguição política do
regime militar aos Simonsen parecia ter alcançando o seu intento.
Tudo indicava que o caso Excelsior já poderia figurar como mais
uma página virada da história subterrânea do então recém instituído
regime militar.

Epílogo – seria cômico, caso não fosse trágico

Durante a administração dos seus novos proprietários, entre


o final de 1965 e começo de 1969, a TV Excelsior deixava de ser uma
empresa na mira do regime militar. Porém, as confusões na vida coti-
diana da emissora não cessariam. A rede continuava, pelo menos no
primeiro momento e apesar de sua considerável dívida, a investir em
equipamentos e instalações. Os sócios não se entendiam. Saad e Leite,
que eram do ramo, entravam em choque com Frias e Caldeira, os quais
queiram imprimir uma administração racionalizada voltada para a
obtenção imediata do maior lucro possível. Em 1968, Saad, primeiro,
e Leite, depois, deixariam a sociedade. Frias e Caldeira seguem como
sócios e contratam diretores, sem vínculos e conhecimento com o
mundo da TV, para gerir a Excelsior. E a emissora perdia a cada novo
dia de programação um pouco de tudo que conseguira anteriormente,
inclusive uma série de ótimos profissionais e artistas.
Em 1969, quando a Excelsior já se encontrava economicamente
inviável, Wallace Neto, residindo em Paris e passando por tratamento
psiquiátrico, seria contatado por um advogado propondo-lhe a compra
da sua ex-rede de TV. Proposta aceita e efetivada por Wallace Neto

Livro Macos na gaveta.indb 60 17/8/2009 14:21:57


61

Áureo Busetto
que, assim, se tornaria vítima da sordidez da ditadura militar e de
alguns de seus colaboradores, como naquele momento parecia ser o
caso do Grupo Frical.
Por ironia, o CBT, alterado pelo Decreto 236/67 – dispositivo
que o tornava mais centralizador e lhe dava roupagem autoritária –,
não seria aplicado pelo governo federal para impedir a retomada da
Excelsior por Wallace Neto. Ademais, Frias e Caldeira conseguiram
que ele firmasse um contrato leonino, pois o documento lhe transferia
a concessão e os equipamentos da Excelsior, mas não os imóveis da
rede de TV.
Wallace Neto volta ao Brasil e reassume a Excelsior que, então,
definhava em enorme crise. Sobravam atrasos em pagamentos de
contas milionárias a distribuidoras de filmes e seriados. Até mesmo
greve de funcionários ocorrera, movimento grevista que, em pleno
processo de endurecimento do regime, fora facilmente autorizado
pelo Ministério do Trabalho. A crise da TV Excelsior aumentava e a
sua audiência desabava, fruto da reação do público diante da queda
de qualidade e da impontualidade da programação da emissora.
Sem condições de gerir a Excelsior, que já contava com 16
pedidos de falência, inclusive por parte da Previdência e da Receita
Federal, Wallace Neto vende, em 31 de março de 1970, sua rede de
tevê a Dorival Masci Neto, ex-deputado e dono da rádio Marconi. En-
tretanto, a escritura de compra e venda é lavrada no nome da esposa
de Masci Neto.
Nessa transação o CBT fora exemplarmente aplicado, uma vez
que o Executivo federal vetara a venda da Excelsior, alegando como
motivo da decisão o fato de Masci Neto ter os seus direitos políticos
cassados, tanto por questões de ordem política como de corrupção.
Preso por 24 horas para prestar esclarecimentos, Wallace Neto fora
solto e forçado a retomar a propriedade da Excelsior. Em meio a tudo
isto, funcionários da empresa promovem campanha, com o apoio de
artistas e técnicos de outras tevês, para manter em funcionamento
a emissora e colherem fundos para atender os empregados mais ne-
cessitados, cujos salários estavam em atraso, bem como decidiram,
em assembleia conjunta, colocar na chefia operacional da Excelsior os
jornalistas Ferreira Neto e Blota Gonzaga, empossar na chefia adminis-
trativa o coronel do Exército Geraldo Martins e entregarem a direção
financeira a Raul Joviano de Almeida. Em julho, estúdios da Excelsior de
São Paulo localizados na Vila Guilherme sofrem um incêndio. O sinistro
é considerado como proposital, mas a autoria é desconhecida.
A Excelsior via crescer, dia a dia, suas dívidas com Bancos,
agências do poder oficial, fornecedores e funcionários, embora esses

Livro Macos na gaveta.indb 61 17/8/2009 14:21:57


62
um episódio sobre a relação regime militar e televisão
Sem aviões da Panair e imagens da TV Excelsior no ar:

resistissem a pedir a falência da emissora. O Ministério das Comuni-


cações, por meio do DENTEL, propunha à presidência da República
a cassação da concessão pública cedida à Excelsior, alegando, para
tanto, falta de condições básicas de funcionamento da empresa. Mo-
tivo que poderia ter sido invocado desde o período em que a Excel-
sior estava nas mãos de Frias e Caldeira e seria suficiente para que a
empresa não retornasse ao controle de Wallace Neto, cujas condições
econômicas eram deficitárias para reassumir a emissora. Todavia, o
jornalista Ferreira Neto tenta convencer o presidente Médici de que é
possível manter a Excelsior e lhe apresenta um plano traçado para a
recuperação da rede de tevê. Mas Médici, sempre feliz com a situação
do Brasil ao assistir aos telejornais, não tardaria em assinar despa-
cho cassando a concessão da Excelsior. Assim, em 1o de outubro de
1970, a TV Excelsior era retirada do ar, findando a sua história como
a primeira rede de TV brasileira cassada oficialmente.
Quinze dias após, era decretada a falência fraudulenta da Te-
levisão Excelsior S/A. Fora do ar, a Excelsior teria os seus despojos
saqueados. Em São Paulo, seus equipamentos foram desviados para
a TV Gazeta, emissora em que Frias e Caldeira tinham interesse.
Apesar de vários nomes envolvidos com a Excelsior, inclusive Frias e
Caldeira, os quais chegaram a afirmar que não tinham nada a ver com
a emissora, Wallace Neto foi o único oficialmente responsabilizado
pela falência da rede de TV.
Era o fim da televisão que incomodara um pouco o regime mi-
litar, mas que dispunha de potencial para incomodar mais, dado que
seus proprietários outrora dispunham de recursos para administrá-la
com mais autonomia em relação ao poder político ou do Estado. Fim da
Excelsior, começo da consolidação da TV Globo, cujo concessionário,
Roberto Marinho, saberia muito bem se valer das inovações trazidas
pelas emissoras de Simonsen ao meio televisivo – como programação
horizontal e vertical, telejornal entre telenovelas e audaciosas campa-
nhas publicitárias – e dos benefícios oficiais originados pela política
do regime militar em integrar o Brasil via televisão.
Ainda que pesassem as circunstâncias de governos militares –
sempre ocupados em forjarem publicamente a legitimidade e a faceta
da eficiência técnica do regime militar –, o fechamento da TV Excel-
sior deixa patente que até mesmo a ditadura militar viu-se obrigada
a recorrer a expedientes políticos velados e, sobretudo, a pressões
econômico-financeiras para cassar concessões legalizadas de canais
de televisão. Em grande medida, tal expediente do regime militar
contra a TV Excelsior se deveu à propositada indefinição do CBT
com relação a uma política de telecomunicações, ainda que a ditadura

Livro Macos na gaveta.indb 62 17/8/2009 14:21:57


63

Áureo Busetto
tivesse efetivado, em 1967, algumas alterações de cunho autoritário
no Código, mediante inclusão do temível Artigo 53. De qualquer forma,
o episódio de perseguição à TV Excelsior serviu para manter conces-
sionários de canais de TV bem sintonizados com a programação de
governos militares. Ainda que, por vezes, ocorressem pequenos emba-
tes de um ou outro concessionário com o regime militar – geralmente
em razão de intervenções pontuais na produção televisiva –, eles não
foram significativos o bastante para ameaçar nenhuma concessão ou
repetir o esquema de perseguição sofrido por Simonsen.

Livro Macos na gaveta.indb 63 17/8/2009 14:21:57


Livro Macos na gaveta.indb 64 17/8/2009 14:21:57
INTELECTUAIS DE ESQUERDA E TELEVISÃO NO
BRASIL DOS ANOS 1970

Giordano Bruno Reis dos Santos

A única constância do
Universo é a mudança.
(Miguel Falabella)

1 – Apresentação

O presente texto intenta discutir a inserção profissional e política


– portanto, áreas da esfera pública – de determinados intelectuais – mais
precisamente, os de esquerda – em meios de comunicação de massa que
iniciavam sua verdadeira trajetória de indústria cultural no Brasil, ou seja,
nos idos da década de 1970, sobretudo em sua primeira metade. Cabe des-
tacar aqui, naturalmente, o auge, à época, do regime autoritário brasileiro
iniciado em 1964, conjugando – a meu ver, não acidentalmente – demonstra-
ções de barbárie mais acentuadas à forte popularidade registrada no governo
de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
A primeira metade dos anos 70 do século XX expressa uma grande
riqueza histórica que vem sendo gradativamente analisada e compreendida.
A modernização conservadora implementada pela ditadura marca o período,
através do epíteto, mistificador e propagandístico, de milagre brasileiro. Tal
época constituir-se-ia como a realização do slogan “Brasil, país do futuro”.
A dinâmica econômica transmitiu uma imagem de modernidade brasileira
que também foi encarnada na indústria cultural que se engrandecia e se for-
talecia, seja através da indústria fonográfica – caso que sem dúvida merece
um detido estudo à parte –, seja pela ativação da produção cinematográfica
– outro campo em que cabe um cuidadoso esquadrinhar –, seja ainda por
meio de uma televisão que se consolidava nacionalmente.
E aqui recai meu objeto de análise: o caso emblemático da Rede Globo
de Televisão, em seu papel central que assumiu à época, em virtude do que
cruzo as experiências biográficas de Walter Clark e de Oduvaldo Vianna
Filho. De um lado, o primeiro tornou-se figura exponencial posto que um

Livro Macos na gaveta.indb 65 17/8/2009 14:21:58


66
Intelectuais de esquerda e televisão no Brasil dos anos 1970

dos grandes artífices do ainda famoso “Padrão Globo de Qualidade”


– inegavelmente uma inovação para a estrutura televisiva que for-
matava as emissoras brasileiras. De outro, o percurso biográfico do
segundo constitui-se em representante da safra de vários intelectuais
de esquerda contratados pela TV Globo no início do decênio de 1970,
cujo sucesso num veículo de comunicação de massas é fonte para a
discussão de inúmeras ambivalências que a chamada “resistência
democrática” teve de enfrentar.

2 – Regime autoritário e indústria cultural televisiva no Brasil:


anos de chumbo e anos dourados

O ano de 1970 iniciou-se já sob a figura, a um só tempo, atemori-


zante e adorada de Médici no comando do Poder Executivo. O clima de
temor era evidente diante do pleno vigor do Ato Institucional Número
5, desde 13 de dezembro de 1968. Havia um controle mais acirrado dos
meios de comunicação, de modo que a censura parecia mais presente e
eficiente. As ações de resistência armada foram sendo gradativamente
sufocadas sob a égide de pesada repressão ao longo do período, im-
pondo sérias e definitivas derrotas às vanguardas organizadas para
a resistência e a revolução. Mostrou-se aí toda a precisão da ação da
polícia política, reestruturada para esse fim, com a reorganização dos
sistemas de informação e com a reformulação da Lei de Segurança
Nacional. Houve, contudo, uma grande aceitação por “parcelas signifi-
cativas da sociedade [que] se identificaram com valores e referências
dos governos militares”.1 Nesse sentido, os sistemas de repressão
foram coadunados com esforços de propaganda política do regime,
que se mostraram profícuos ao trabalhar com signos e significados
presentes na sociedade, capitalizando os efeitos positivos do milagre.
A esses esforços somaram-se as variadas iniciativas de autocensura
e de declarado colaboracionismo no meio jornalístico e televisivo,
destacando-se seu alto escalão em tais missões.2
Os idos de 1970 parecem e aparecem frequentemente dentro
do espectro de anos amargurados e sombrios. Anos durante os quais
muitos morreram e outros mais sobreviveram sob a penumbra da
ditadura. Entretanto, se nem tudo são flores, nem tudo também são
espinhos. Comparados à década anterior, esses anos são em geral
identificados a partir de uma pretensa inércia e esquece-se – por vezes,
deliberadamente – o quão movimentados eles foram. A esse respeito,
Daniel Aarão Reis retrata bem o espírito da época:

Livro Macos na gaveta.indb 66 17/8/2009 14:21:58


67

Giordano Bruno Reis dos Santos


Os anos 70, considerados e aperreados como anos de chumbo,
tendem a ficar pesados como o metal da metáfora, carregando
para as profundas do esquecimento a memória nacional. Eles
precisam ser revisitados, pois foram também anos de ouro,
descortinando horizontes, abrindo fronteiras, geográficas e
econômicas, movendo as pessoas em todas as direções dos
pontos cardeais, para cima e para baixo nas escalas sociais,
anos obscuros para quem descia, mas cintilantes para os que
ascendiam. Naquelas areias movediças havia os que afundavam,
mas também os que emergiam, surgidos de todos os lados,
desenraizados, em busca de referências, querendo aderir. Anos
prenhes de fantasias esfuziantes, transmitidas pelas TVs em
cores, alucinados anos 70, com tigres e tigresas de toda sorte
dançando ao som de frenéticos dancing’ days.3

O processo de modernização conservadora desenvolvido pelo


regime autoritário brasileiro, cujo auge se encontra nesse período,
encontrou ressonâncias na esfera cultural do país, sobretudo no
vertiginoso crescimento pelo qual passaria a indústria cultural na-
cional. Foram anos verdadeiramente flamejantes e emergentes para
o mercado de consumo cultural que iniciava, em grande estilo, sua
massificação. A citação, embora longa, dá conta do espectro que se
formou nessa área:

A partir dos anos 70, concomitante à censura e à repressão


política, ficou evidente o esforço modernizador que a dita-
dura já vinha realizando desde a década de 1960, nas áreas
de comunicação e cultura, incentivando o desenvolvimento
capitalista privado ou até atuando diretamente. As grandes
redes de TV, em especial a Globo, surgiam com programação
em âmbito nacional, estimuladas pela criação da Embratel e do
Ministério das Comunicações, respectivamente em 1965 e 1967,
e outros investimentos governamentais em telecomunicações
que buscavam a integração e segurança do território brasileiro.
Ganhavam vulto diversas instituições estatais de incremento à
cultura, como a Embrafilme, o INL, o SNT, a Funarte e o Conselho
Federal de Cultura. À sombra de apoios do Estado, floresceu
também a iniciativa privada: criou-se uma indústria cultural,
não só televisiva, mas também fonográfica, editorial (de livros,
revistas, jornais, fascículos e outros produtos comercializáveis
em banca de jornal), de agências de publicidade etc. Tornou-se
comum, por exemplo, o emprego de artistas (cineastas, poetas,

Livro Macos na gaveta.indb 67 17/8/2009 14:21:58


68
Intelectuais de esquerda e televisão no Brasil dos anos 1970

músicos, atores, artistas gráficos e plásticos) e intelectuais (so-


ciólogos, psicólogos e outros cientistas sociais) nas agências
de publicidade, que cresceram em ritmo alucinante a partir
dos anos 70, quando o governo também passou a ser um dos
principais anunciantes na florescente indústria dos meios de
comunicação de massa.4

Detendo-me, então, à formatação industrial do aparato tele-


visivo, não é ocioso reforçar que a década de 1970 foi uma época
dourada para a televisão brasileira, especialmente para a Rede Globo
de Televisão. O poder social e o lugar simbólico que ela ocupa hoje
deriva do grande desenvolvimento por que ela passou nesses anos,
impulsionada pelo decantado “Padrão Globo de Qualidade”. Marcos
Napolitano destaca que esse epíteto encarnava, “para os críticos de
esquerda, a antítese da realidade brasileira, miserável e subdesen-
volvida, mascarando um mundo cheio de contradições ao criar um
produto cultural belo e asséptico”.5 Há que se lembrar que tais críticas
são mais posteriores aos anos 1970, também pelo fato de que alguns
expoentes intelectuais de esquerda, com influência na esfera cultural,
foram contratados pela Rede Globo.
Por outro lado, em sua autobiografia, Walter Clark destaca que
o “Padrão Globo de Qualidade” correspondeu não só a uma busca de
qualificação da programação, mas principalmente a uma estruturação
dela em grades encadeadas, de modo que cimentasse a audiência –
algo, até então, pouco experimentado nas emissoras brasileiras de
TV. Em sua visão, aliás, esse “Padrão” ficou estigmatizado como a
forma que a Rede Globo encontrou para se coadunar à censura que
se impingia, de modo que Clark defende que os profissionais da TV
Globo nunca apoiaram o autoritarismo do regime, como se tudo, ao
fundo, se resumisse a uma questão mais formal e técnica. Conforme
suas próprias palavras,

Enquanto a censura agia para subjugar e controlar a arte e a


cultura do país, perseguindo a inteligência, nós continuávamos
trabalhando na Globo para fazer uma televisão com a melhor
qualidade possível. A conjugação desses fatores, entretanto
– censura, de um lado, e obsessão técnica, formalismo, de
outro –, acabou produzindo a idéia de que o Padrão Globo
de Qualidade foi a resposta domesticada da TV à repressão
do regime. Era como se, pelo fato de sermos censurados, não
pudéssemos exigir cada vez mais qualidade de nós mesmos,
mais rigor, mais aplicação. O resultado, então – uma TV sem

Livro Macos na gaveta.indb 68 17/8/2009 14:21:58


69

Giordano Bruno Reis dos Santos


erros, incomparavelmente melhor do que todas as anteriores
–, acabou passando por vitrine de um regime com o qual os
profissionais da TV Globo jamais concordaram.6

Por entre as mesmas páginas, Walter Clark admite que Roberto


Marinho pudesse ter afinidades em linhas gerais com o regime militar
– aliás, afinidades, segundo ele, bastante conscientes, já que Marinho
era, de acordo com sua descrição, sujeito altivo, intelectualmente inde-
pendente e obcecado pelo poder –, o que jamais impediu, todavia, que
a TV Globo sofresse as pressões da censura que outras instituições
culturais sofreram. Clark somente não lembra que os “assessores
militares”,7 encarregados de realizar a mediação do alto escalão dire-
tivo da TV Globo com a cúpula do regime autoritário, podem ter sido
os grandes formatadores da autocensura interna à Globo, assim como
“professores” de censores que trabalhassem para selecionar, também
internamente, a programação televisiva e, consequentemente, sugerir
os cortes e as edições necessárias. Pessoalmente, entretanto, Clark
definiu-se como um simpatizante da oposição, já que “como qualquer
brasileiro minimamente pensante, não achava nenhuma graça em viver
numa ditadura. Os militares sabiam disso, sem dúvida, e também o
pessoal da esquerda, que jamais me hostilizou”.8
Por fim, como um exemplo emblemático do desenvolvimento da
indústria cultural televisiva no Brasil, o próprio Walter Clark pontua a
diversificação de atuação da TV Globo em áreas conexas, a demons-
trar o empresariamento do setor – como a indústria fonográfica, por
meio da criação da Som Livre, que produzia as trilhas sonoras de um
dos carros-chefe da programação, as telenovelas – e como a questão
de responsabilidade social, por meio da Fundação Roberto Marinho,
que atua principalmente na educação.

3 – Intelectuais de esquerda na TV Globo:


ambivalências em meio ao autoritarismo

A Rede Globo de Televisão açambarca nos anos 1970 grande


parte da audiência televisiva. No quesito programação, o “Padrão
Globo de Qualidade” pode ser mapeado através de um jornalismo
que ganha agilidade na cobertura de eventos locais, como o caso da
trágica enchente de 1966 no Rio de Janeiro, assim como promove, pela
primeira vez, uma integração nacional, não por mera coincidência à
semelhança dos projetos e dos discursos do regime, através da estréia
do Jornal Nacional.

Livro Macos na gaveta.indb 69 17/8/2009 14:21:58


70
Intelectuais de esquerda e televisão no Brasil dos anos 1970

O grande carro-chefe que me interessa aqui é, no entanto, a


produção de teledramaturgia em que a TV Globo alçou voo de condor,
ganhando os céus, devido à referência e ao destaque que suas teleno-
velas ganharam. “Durante a década de 1970 as novelas produzidas pela
Rede Globo passam a preponderar de maneira consistente nos índices
de audiência, ocupando os primeiros lugares na escala de programas
preferidos pelo público, na parcela do país então apta a receber sinais
televisivos”.9 A grande novidade desse tipo de produção consistiu
no uso das referências tipicamente brasileiras, e mesmo populares,
mescladas com aspectos clássicos melodramáticos e associadas com
a cultura massificada que se engendrava no Brasil.

Produto inequivocadamente voltado a grandes públicos, a uma


multidão de pessoas, às massas, a telenovela ancora-se, entre-
tanto, em matrizes da cultura popular. Originária de tradições
ao mesmo tempo populares e massivas do melodrama – base
das narrativas orais, do romance-folhetim e das novelas semanais
de inserção francesa, das radionovelas e do cinema de lágrimas
latino-americano e da soap opera norte-americana –, a telenovela
compõe o acervo “popular de massa” da grade de programação
em toda a história da televisão brasileira e latino-americana.10

Em similitude metodológica à autora, que fala em

contextos histórico-culturais “híbridos”, “mestiços”, “simbióti-


cos”, capazes de constituir uma totalidade conflitiva e complexa,
[...] espaço de entrecruzamento, de embate entre elementos da
tradição e outros que circulam de forma abrangente e resultam
de invenções, variações e rupturas engendradas pelo próprio
processo de modernização11

é possível pensar a produção de dramaturgia da TV Globo dos anos


1970 como um caldo cultural que reuniu essas diferentes matrizes, isso
também em razão dos autores dessa produção. Se havia sucesso com
as novelas de Janete Clair, causavam tanto ou mais frisson as novelas
de Dias Gomes e os seriados de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha,
como os Casos Especiais e A Grande Família.
A TV brasileira na década de 1970, assim como outros setores
da indústria cultural nacional, tornou-se um espaço de trânsito, em
especial para uma intelectualidade, também artística, que se via re-
presada num limbo, sobretudo após o AI-5, entre a censura, a prisão,
o exílio e a luta armada.

Livro Macos na gaveta.indb 70 17/8/2009 14:21:58


71

Giordano Bruno Reis dos Santos


Definindo o intelectual a partir das suas relações profissionais
e sociais, dentro de dois níveis, um mais amplo correspondente aos
mediadores culturais, como os jornalistas, e outro mais específico
concernente ao engajamento político e à intervenção socialmente
legítima nos debates públicos, J.-F. Sirinelli pontua que a “função
‘crítica’, que foi mais frequentemente reivindicada pelo intelectual de
esquerda, acarretou relações complexas entre este último e o poder
político”.12 Por isso, conclui defendendo que “mais que à direção da
paisagem ideológica, é uma observação da localização dos intelectuais
– e eventualmente de seu deslocamento – no interior dessa paisagem
que o historiador deve particularmente se dedicar”.13 Em face desse
balizamento teórico-metodológico, é preciso analisar a ida de intelec-
tuais de esquerda para a Rede Globo nos anos 1970 não dentro de um
justiçamento, nem a partir de uma caça às bruxas, mas sim procurar
compreender o que permitiu esse deslocamento de intelectuais, senão
filiados, com grande proximidade do Partido Comunista Brasileiro,
manifestamente opositores à ditadura, para esferas da indústria
cultural que, se não tinham boas relações com o regime autoritário,
mantinham uma cordialidade e receberam incentivos estatais para
seu desenvolvimento.

Voltando ao princípio dos anos 70, sob o governo Médici, quan-


do se consolidou o processo de modernização conservadora
da sociedade brasileira, a atuação dos artistas de esquerda
foi marcada por certa ambigüidade: por um lado, a presença
castradora da censura e a constante repressão a quem ousava
protestar [...]; por outro lado, cresceu e consolidou-se uma in-
dústria cultural que deu emprego e bons contratos aos artistas,
inclusive aos de esquerda, com o próprio Estado atuando como
financiador de produções artísticas e criador de leis protecio-
nistas aos empreendimentos culturais nacionais.14

Parece-me mais adequado falar em “ambivalência” no lugar de


“ambiguidade”, como faz Pierre Laborie,15 ao privilegiar a análise da
experiência social de viver o deslocamento entre polos antagônicos
sem suscitar aí uma contradição, sem pretensões de um julgamento
moral. A realidade de inserção desses intelectuais de esquerda na
TV Globo, como Vianninha, pode ser mais bem compreendida se se
pensa que há um gradiente de ação político-intelectual, a zone grise
(“zona cinzenta”), dentro do qual uma significativa parte da sociedade
sob regimes autoritários move-se, muitas vezes através da própria
indiferença e impassibilidade, contribuindo, de certa forma, para

Livro Macos na gaveta.indb 71 17/8/2009 14:21:58


72
Intelectuais de esquerda e televisão no Brasil dos anos 1970

a perpetuação de tais regimes. Visões dicotômicas que dividem a


posição política dos atores sociais em trincheiras bem definidas e
impenetráveis proporcionam a ideia de que

a relação dos artistas de esquerda com a indústria cultural [...],


particularmente no caso da rede de TV hegemônica no Brasil, a
Globo, [...] tem sido vista ora como capitulação ideológica diante
da burguesia – cuja dominação os artistas ajudariam a garan-
tir, contribuindo para gerar uma ideologia nacional-popular
de mercado, legitimadora da modernização conservadora da
ordem social vigente –, ora como possibilidade de levar uma
visão crítica ao telespectador, contribuindo para mudanças
sociais. Entre essas duas visões opostas, parece haver espaço
para uma série de nuanças.16

Não pretendo aqui afirmar que não houve colaboradores, nem


resistentes. A meu ver, porém, esses tipos quase ideais, embora pos-
sam representar parcelas importantes da sociedade, devendo, por
isso, devem ser objeto de estudo dos historiadores, não respondem
à duração de 21 anos de um regime autoritário no Brasil. Vianninha
é representante de vários personagens históricos que quebram po-
sições políticas absolutizadas – geralmente construídas a posteriori
–, de modo que repercute a zona cinzenta de um ideal nacionalista,
presente tanto nas produções dos intelectuais de esquerda quanto na
retórica autoritária da direita civil-militar.
De um lado, é necessário destacar que o projeto político das
esquerdas dos meios artísticos e intelectuais dos anos 1960 e da
primeira metade dos anos 1970 centrava-se em definir a identidade
do povo brasileiro, buscando as suas raízes para superar, revolucio-
nariamente, o seu subdesenvolvimento, baseando-se, então, no que
Marcelo Ridenti qualificou de “romantismo revolucionário”.17 Cito aqui
um trecho elucidativo de uma entrevista de Ferreira Gullar concedida
a Ridenti, no qual ele fala sobre o Teatro Opinião em seu auge:

[...] nosso problema ideológico era lutar contra a ditadura; nós


não tínhamos teoria, essas teorias complicadas do nacional-
popular, ninguém pensava nisso. Agora, nós achávamos que
devíamos valorizar a cultura brasileira, que devíamos fazer
um teatro que tivesse raízes na cultura brasileira, no povo, na
criatividade brasileira. Nós achávamos que imitar as vanguardas
européias era uma coisa que empobrecia a cultura brasileira.18

Livro Macos na gaveta.indb 72 17/8/2009 14:21:58


73

Giordano Bruno Reis dos Santos


De outro lado, havia um ramo à direita da cultura política na-
cionalista que desaguou nas formas autoritárias civil-militares após
1964. Se as esquerdas definiam-se, em geral, pelo nacional-popular
visando à revolução brasileira, as direitas lutavam, ao menos discur-
sivamente, por uma “revolução democrática”, de sorte que o grande
carro-chefe em matéria de política econômica editada pelos governos
da ditadura, especialmente no milagre, foi o nacional-estatismo, numa
escala sem precedentes em termos de modernização conservadora
interna e conexão com os mercados financeiros internacionais, se
comparado com os períodos de Vargas (1937-1945) e de Juscelino
Kubitsheck (1956-1961).

4 – Comentários finais

Uma cultura política nacionalista foi justamente o que poderia ci-


mentar a presença desses intelectuais na ascendente televisão brasileira
com um grande sucesso junto à opinião pública, já que, quer à esquerda,
quer à direita, essa produção de dramaturgia resgatava traços culturais
efetivamente nacionais em mescla com paisagens massificadas.
Mesmo que esteja sob constante reavaliação, a década de 1960
parece ter espelhado na historiografia as enormes oscilações vulcâ-
nicas que os contemporâneos à época experimentaram e transmiti-
ram por meio de relatos de memória. A década de 1970 aparece, por
contraste, como anos ofuscantemente escurecidos e insalubres, em
que o empastelamento às manifestações políticas públicas merece
sempre destaque. Quero aqui, contudo, salientar enfaticamente que
foram anos que devem ser estudados com o mesmo afinco. Anos de
uma ditadura sangrenta e repressora, milagrosa e modernizadora.
Anos que formam, enfim, um caleidoscópio complexo e repleto de
ambivalências múltiplas que se expressaram pelos diferentes setores
sociais – e os intelectuais de esquerda engagés não poderiam estar
imunes a tais interpenetrações.
Se a ditadura civil-militar, olhando o decênio de 70 do século pas-
sado, sob inspiração do artigo de Elio Gaspari,19 pode ser comparada à
“Alice” que tem de se reajustar visando à perpetuação da legitimidade,
tais intelectuais, como Vianninha, por exemplo, podem ser traduzidos
como “camaleônicos”, em vista de seu trânsito desenvolto entre meios
políticos e culturais bastante diferenciados, por vezes antagônicos,
mas nem por isso encarnando uma contradição insolúvel.

Livro Macos na gaveta.indb 73 17/8/2009 14:21:58


74
Intelectuais de esquerda e televisão no Brasil dos anos 1970

Notas
1 ROLLEMBERG, Denise. A ditadura militar em tempo de radicalização e barbárie
(1968–1974). In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e di-
tadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006. p. 151.
2 Cf. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição
de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
3 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3a ed. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2005. p. 61.
4 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 332.
5 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 2. ed.
São Paulo: Contexto, 2004. p. 90.
6 CLARK, Walter. O campeão de audiência: uma autobiografia. São Paulo: Best Seller,
1991. p. 228.
7 Ibid., p. 199.
8 Ibid., p. 263.
9 HAMBURGUER, Esther. Teleficção nos anos 70: intepretação da nação. In: AA. VV.
Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2005. p. 49.
10 BORELLI, Silvia H. Simões. Cultura brasileira: exclusões e simbioses. In: AA. VV.
Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2005. p. 57.
11 Ibid.
12 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma
história política. 2a ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 257.
13 Ibid., p. 257–258.
14 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 323.
15 LABORIE, Pierre. Les français des années troubles: de la guerre d’Espagne à la
Libération. Nouvelle édition. Paris: Desclée de Brower, 2003.
16 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 324.
17 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. Mar-
celo Ridenti caracteriza todo o espectro do “romantismo revolucionário” baseado
em sua leitura da obra de Michael Löwy, Revolta e melancolia, o romantismo na
contramão da modernidade. Cf. p. 25.
18 Ibid., p. 128.
19 GASPARI, Elio. Alice e o camaleão. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque
de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000

Referências

BORELLI, Silvia H. Simões. Cultura brasileira: exclusões e simbioses. In:


AA. VV. Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2005.

CLARK, Walter. O campeão de audiência: uma autobiografia. São Paulo:


Best Seller, 1991.

Livro Macos na gaveta.indb 74 17/8/2009 14:21:58


75

GASPARI, Elio. Alice e o camaleão. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, He-

Giordano Bruno Reis dos Santos


loisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão
à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

HAMBURGUER, Esther. Teleficção nos anos 70: intepretação da nação. In:


AA. VV. Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2005.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à


Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

LABORIE, Pierre. Les français des années troubles: de la guerre d’Espagne


à la Libération. Nouvelle édition. Paris: Desclée de Brower, 2003.

NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-


1980). 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3. ed. Rio


de Janeiro: J. Zahar, 2005.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record,


2000.

ROLLEMBERG, Denise. A ditadura militar em tempo de radicalização e


barbárie (1968-1974). In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.).
Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.).


Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
.

Livro Macos na gaveta.indb 75 17/8/2009 14:21:58


Livro Macos na gaveta.indb 76 17/8/2009 14:21:58
UM LIVRO PARA A HISTÓRIA

João Amado

Impresso em maio de 1964, mês seguinte à derrubada do presidente


João Goulart, o livro Os idos de março e a queda em abril oferece acesso
ímpar à atuação dos publicistas que o escreveram, caracterizando-se como
importante material para os estudos baseados na história daqueles jorna-
listas. Este instant book, gênero produzido no calor dos acontecimentos, foi
organizado por Alberto Dines, editor-chefe do Jornal do Brasil na época, com
a participação de mais sete integrantes da redação do JB.
Sob diferentes perspectivas, oito jornalistas relataram os eventos
de março e abril de 1964. O livro é composto por oito capítulos, cada um
escrito por um autor diferente. Araújo Neto abre o volume com seu texto “A
paisagem”, no qual procura demonstrar, a partir da aparente calmaria do
início de março de 1964, como os fatos se precipitaram até o seu desfecho.
Araújo Neto destaca o despreparo do presidente e de seu dispositivo militar,
facilmente derrubado pela conspiração vitoriosa.
No segundo capítulo, escrito por Pedro Gomes, e intitulado “Minas do
diálogo ao front”, o foco foi direcionado para Minas Gerais, estado de onde
partiu o movimento militar que deu início ao golpe, e teve como protagonistas
o governador de Minas, Magalhães Pinto, e os conspiradores militares ali
situados, em especial o general Mourão Filho. No texto, produzido a partir da
ótica de Magalhães, impressionam menos a determinação e o voluntarismo
do general e mais a habilidade, a dissimulação e a retórica do governador
mineiro, que, ao final do capítulo a ele dedicado, aparece pregando reformas
para “melhorar as condições de vida deste povo que sofre”.1
No terceiro capítulo, com o título “32 mais 32, igual a 64”, uma referên-
cia ao movimento constitucionalista de 1932, Eurilo Duarte relatou, a partir de
São Paulo, os fatos ocorridos no dia 13 de março, dia do Comício da Central,
até o dia 12 de abril, quando Júlio Mesquita Filho, diretor e proprietário do
Estado de S. Paulo, publicou em seu jornal uma carta datada de 20 de janeiro
de 1962 e dirigida ao grupo que nessa data já conspirava contra o governo
Goulart. Nesta missiva estava apresentado o “roteiro da revolução” que só
viria a acontecer dois anos depois.2
Cláudio Mello e Souza, no capítulo intitulado “O vizinho do presidente”,
foi de avião a Roma ouvir o governador Carlos Lacerda, adversário de João

Livro Macos na gaveta.indb 77 17/8/2009 14:21:58


78
Um livro para a história

Goulart. Neste texto os acontecimentos daqueles dias de março e abril


são narrados na perspectiva de Lacerda e de sua entourage reunida
no Palácio Guanabara, sede do governo da Guanabara. Este palácio é
vizinho ao Palácio Laranjeiras, no qual João Goulart se hospedava nas
suas frequentes visitas à antiga capital da República. Politicamente,
no entanto, os que se reuniam no Guanabara estavam longe – no polo
oposto – dos que frequentavam o Laranjeiras.
Em “A margem esquerda”, Wilson Figueiredo retratou o lado per-
dedor, as esquerdas, que para ele achavam-se protegidas pela história
e acreditavam na predestinação da sua vitória. Sua narrativa, uma
crítica severa aos que foram politicamente alijados pelo movimento
de 1964, termina no dia 2 de abril, quando o governo derrubado não
mais oferecia resistência e os fatos já estavam consumados. Por sua
vez, Antonio Callado escreveu o capítulo intitulado “Jango ou o suicídio
sem sangue”, no qual pintou um quadro nada favorável ao presidente
João Goulart. Para ele Jango era inepto e sabia-se despreparado. O
presidente deposto é comparado a Hamlet, e seu pai seria Getúlio, cuja
alma penada vagava feito fantasma porque não havia sido vingada.
Em “Da conspiração à revolução”, Carlos Castello Branco faz
um relato da articulação entre os militares que derrubaram o governo
Goulart. Para o jornalista, a ruptura institucional teria sido uma “revo-
lução” sem a característica dos “golpes habituais”, pois teria gerado
direito e reformado a Constituição. Representaria, assim, uma nova
dimensão do “legalismo” das forças armadas.3
Finalmente, fechando o volume, em seu texto “Debaixo dos
deuses”, Alberto Dines escreveu seu diário daqueles acontecimentos.
Para ele, o processo que levou à queda de João Goulart “tratava-se de
uma eleição. Houvera uma opção clara. Não foram os planos militares
que derrotaram as esquerdas. Foram os sentimentos contra elas”.4
Ainda segundo Dines, a deposição do presidente João Goulart seria
heróica: “os olhos do mundo fixos em nós, descobrimos que, debaixo
dos deuses, estava o grande herói da façanha: aquele povo que Jango
alijara de seu caminho”.5 Aparentemente orgulhoso do reconhecimen-
to ao papel desempenhado pelo JB na campanha que derrubou João
Goulart, o editor chefe do Jornal do Brasil fez questão de ressaltar, ao
relatar a “Marcha da Vitória” do dia 2 de abril, os aplausos recebidos
pela redação do jornal que comandava.
No prefácio, Otto Lara Resende informa que Os idos de março
nasceu do encontro do editor José Álvaro com Alberto Dines, editor-
chefe do Jornal do Brasil e que pertenceria a um gênero muito em voga
nos Estados Unidos e na Europa. Como reportagem, manteria vivo seu
caráter de “palpitante atualidade” e como livro traria um compromisso

Livro Macos na gaveta.indb 78 17/8/2009 14:21:59


79

João Amado
de depoimento histórico. Para o prefaciador, apesar de ser um híbrido
de jornalismo, literatura e história, a obra seria eminentemente jorna-
lística, pois “um livro desta espécie não passa, em última análise, de
um prolongamento do jornalismo”.6
Os textos, organizados sob a forma de coletânea, não foram publi-
cados no periódico, o que teoricamente ofereceria maior independência
aos autores, já que os profissionais da imprensa não estavam ali como
empregados do jornal, diretamente sob as ordens do proprietário do
veículo. Entretanto, essa condição não significa que aqueles jornalistas
estivessem descolados da realidade que os cercava, nem que o conteúdo
dos textos fosse contraditório com a visão oferecida pelo órgão no qual
trabalhavam, mas sim que se pode presumir que o livro forneça pistas
para melhor compreendermos suas reflexões e que o conjunto da obra
agregue novos elementos aos estudos sobre a atuação dos jornalistas
na legitimação da derrubada do presidente João Goulart.
Quando se pretende examinar a atuação da imprensa no golpe de
1964 é usual nos debruçarmos sobre os periódicos daquele momento
histórico. Mas se a rigor o objeto da investigação não for exatamente a
imprensa, e sim o profissional que nela trabalha, o livro preparado por
jornalistas no calor da hora é fonte inestimável para tal empreitada.
Por outro lado, não podemos perder de vista o destacado papel que
o Jornal do Brasil desempenhou no processo que levou ao golpe de
1964. O livro foi coerente com o posicionamento de quase toda “grande
imprensa” da época e do JB em especial. Afinal, o periódico participou
ativamente do golpe civil-militar que derrubou João Goulart.
Há mais de duas décadas a academia tem se dedicado ao estudo
do livro, enxergando-o não só como fonte, mas também como objeto.
Para descobrir o que liam os franceses no século XVIII, o historiador
Robert Darnton pesquisou documentos de editores do Antigo Regime,
relatos de leitores, processos e inquéritos. Assim, intercalando a aná-
lise do texto propriamente dito com a do contexto social, econômico e
político do século XVIII, buscou entender como os franceses daquele
século liam e, portanto, pensavam.
Roger Chartier, por sua vez, frisou a necessidade do historia-
dor refletir sobre as fontes e os meios que permitem abordar esse
ato efêmero e misterioso que é a apropriação de um texto. Chartier
é contrário à ideia que supõe a servidão dos leitores às “mensagens
inculcadas”. Para ele a recepção é criação e o consumo é produção. No
entanto, não acredita na liberdade absoluta dos indivíduos e na força
de uma imaginação ilimitada. Desta forma, toda apropriação estaria
encerrada nas condições de possibilidade historicamente variáveis e
socialmente desiguais.

Livro Macos na gaveta.indb 79 17/8/2009 14:21:59


80
Um livro para a história

Ciente de que desde meados do século XV o processo de produ-


ção de livros envolve grande número de conhecimentos e procedimen-
tos, Chartier faz um importante alerta que não pode ser esquecido:
o texto do autor não chega ao seu leitor sem que muitas decisões e
operações lhe dêem a forma de livro. E assim como em outras edições
uma mesma obra transforma-se, o conteúdo de um livro, veiculado em
diferentes versões editoriais, também é capaz de criar novos usos e
públicos. Da mesma forma, com o passar do tempo, novas possibili-
dades de leitura de uma mesma edição também podem-se realizar.
Portanto, para melhor compreender os personagens e o contex-
to no qual Os idos de março foi produzido, foram realizadas algumas
entrevistas com os jornalistas que participaram daquele momento
histórico ou refletiram a respeito da obra. As entrevistas apoiaram-se
nos pressupostos metodológicos e nas técnicas elencadas por Vere-
na Alberti, com base na experiência desenvolvida pelo programa de
história oral do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. As entrevistas
individuais, baseadas em roteiros preestabelecidos pelo autor, foram
transcritas e autorizadas.
Depoimentos dos indivíduos que participaram dos aconte-
cimentos pesquisados, assim como os textos escritos, não devem
ser tomados por “verdade”, mas sim encarados como material a ser
analisado e interpretado. Conforme salienta Julie Crikshank, sua im-
portância reside justamente no fato de que os relatos orais sobre o
passado englobam explicitamente a experiência subjetiva e a partir
deles podemos perceber como “o passado é construído, processado
e integrado à vida de determinada pessoa”.7
De forma geral, no momento do golpe, aqueles jornalistas de-
monstraram pouco apreço pela normalidade constitucional e atuaram
na produção do consentimento/consenso social, procurando justificar
a deposição de João Goulart e legitimar o golpe de Estado. Num segun-
do momento, entretanto, esses prestigiados publicistas repudiaram
a ditadura ao perceberem que o novo regime cerceava sua liberdade
de opinião, perseguia colegas de profissão e ia se manter no poder
por mais tempo do que o esperado. Explicar-se-ia assim o posterior
engajamento na “resistência democrática” ao governo militar.
A rápida publicação de Os idos de março e a queda em abril
merece atenção. Segundo Alberto Dines a idéia de fazer o livro não
ocorreu depois do dia 4 de abril, “porque senão, não ficava pronto. [...]
Foi tudo corrido. As pessoas trabalharam em uma semana, cada um
deles”. E lembra o processo de produção da época, mais lento que o
atual: “isto era composto em chumbo, não era computador não”. Outro
autor, Cláudio Mello e Souza, destacou que o editor-chefe do JB “co-

Livro Macos na gaveta.indb 80 17/8/2009 14:21:59


81

João Amado
meçou a motivar todo mundo... Primeiro para que houvesse a eleição
das pessoas entrevistadas... [...] E chegou-se aos personagens que aí
estão”.8 A respeito da produção do livro no calor dos acontecimentos,
Wilson Figueiredo, outro autor, também deu seu depoimento:

O livro foi escrito e impresso em um mês e poucos dias, enquan-


to estavam quentes as informações e disponíveis os persona-
gens. Foi uma iniciativa marcada pela urgência. Todos estavam,
de um modo ou de outro, envolvidos no clima. As redações
tinham estado de olho, o tempo todo, no ciclone sindical, mili-
tar e político que precedeu 1964. O editor do JB era o Alberto
Dines, que teve a iniciativa de reunir os que se dispuseram a
dar conta da pesquisa e do texto, sem prejuízo das obrigações
diárias de cada um, sob pressão da editora. O grande mérito do
livro, a meu ver, foi ter refletido o tumulto daqueles dias, sem
qualquer motivo menor. Foi um desafio editorial que captou as
impressões de um momento acelerado.9

Dispondo de ampla publicidade no Jornal do Brasil, o lançamento


do livro Os idos de março e a queda em abril, “com um coquetel no
Salão Nobre do Copacabana Palace” no dia 19 de junho, às 21 horas,
foi anunciado pelo crítico literário Lago Burnett na seção de literatura
da edição dominical.10
No tocante às redes de convivência que ensejaram sua publi-
cação pouco tempo depois dos acontecimentos, podemos perceber
algumas possibilidades. Se já na primeira leitura de Os idos de março
e a queda em abril fica claro que o livro projetava uma imagem muito
favorável do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, ao longo
da pesquisa que o autor empreendeu para a dissertação de mestrado
surgiram indícios de que uma das motivações para a publicação do
volume tenha sido justamente aumentar o prestígio do então gover-
nador de Minas junto à opinião pública.
Para Pedro Gomes, jornalista que redigiu o capítulo a respeito
dos eventos em Minas Gerais, o mais extenso de todo o volume, Ma-
galhães conversava com diversos governadores, não em termos de
conspiração revolucionária, mas em busca urgente de entendimento
para a defesa das instituições, e acima dos partidos, para que a de-
mocracia e a “civilização brasileira” fossem salvas. Segundo Gomes,
o governador de Minas exercitava “a política aberta do diálogo, na
área estadual e federal, apoiando o programa de reformas de base
para o Brasil [...]”.11

Livro Macos na gaveta.indb 81 17/8/2009 14:21:59


82
Um livro para a história

O jornalista fez questão de distinguir Magalhães Pinto dos


demais atores políticos. Conforme repetido ao longo do seu texto, a
conspiração liderada pelo governador mineiro seria meramente defen-
siva: “de novembro a dezembro de 1963, os temas para uma agenda
conspiratória, defensiva como no caso de Magalhães, ou ofensiva como
no caso de diversos bolsões militares comprometidos com o espírito
de 1954 e 1961, já eram substanciosos [...]”.12
Na visão exposta por Gomes, além da sua moderação e de seus
valores democráticos, Magalhães Pinto não seria um oportunista que
apenas nos últimos momentos aderira à conspiração que derrubou
João Goulart. Ainda neste sentido, Gomes informou que em setembro
de 1962 o general Castelo Branco teria almoçado com Magalhães Pinto,
que “lhe participou à sobremesa: ‘General, vou armar a resistência
de Minas, para enfrentar qualquer ato de subversão do Presidente.
Quando julgar que chegou o momento de lutar pela liberdade, venha
para Minas’”.13
Pedro Gomes ainda afirma que, segundo “um amigo comum”,
Jango teria revelado no final do governo que se arrependera de não
ter tratado Magalhães Pinto “com justiça” e que teria sido ingrato com
o governador de Minas Gerais. Entretanto, ainda segundo Gomes,
Magalhães Pinto não teria agido por ressentimento pessoal e teria
tentado advertir o presidente, mas que suas sugestões caíram no
vazio. Mesmo assim, ao desiludir-se com Jango, teria tido o “cuidado
leal de evitar-lhe a convivência”.14
É plausível que uma das motivações para a publicação de Os
idos de março e a queda em abril tenha sido favorecer a imagem do
governador de Minas Gerais, aspirante ao cargo máximo da República,
junto a importantes parcelas da opinião pública. A respeito da obra,
o jornalista Janio de Freitas concluiu: “aquele livro foi o Magalhães
Pinto que pagou”.15 Esta declaração corrobora a hipótese aventada e
reforça a possibilidade de que o governador de Minas Gerais tenha
patrocinado a impressão do referido volume.
Afinal, não podemos esquecer que o banqueiro José Luiz Ma-
galhães Lins, sobrinho e representante político de Magalhães Pinto
no Rio de Janeiro,16 era homem de grande influência junto à imprensa
carioca e tinha significativa ascendência sobre vários dos autores do
livro. O próprio Alberto Dines teria sido contratado por indicação
de Magalhães Lins.17 Dines afirmou que José Luiz era uma espécie de
“dono da imprensa”, uma “eminência parda. “[...] O José Luiz mandava
na imprensa brasileira, na imprensa carioca, sobretudo. E era muito
amigo do Castelinho... Por causa do Magalhães Pinto... Foi o Zé Luiz
que ajudou o Jornal do Brasil a contratar todas as grandes estrelas”.

Livro Macos na gaveta.indb 82 17/8/2009 14:21:59


83

João Amado
Foi o “czar da imprensa brasileira nos bastidores, mandou na imprensa
brasileira de 60 até setenta e poucos, pelo Banco Nacional de Minas
Gerais”.18
Dines afirmou que “meu primeiro papagaio foi ele quem me deu
em 58, quando eu ainda estava na Manchete”. José Luiz seria amigo
íntimo de Nascimento Brito, proprietário do Jornal do Brasil.19 Ainda
de acordo com Dines, José Luiz foi um importante informante para a
confecção de Os idos de março e era muito ligado a vários dos auto-
res: “Araújo Neto, assim com Zé Luiz, Castelinho, assim com Zé Luiz,
Wilson Figueiredo, assim com Zé Luiz”.20
Quando Os idos de março foi publicado, logo após o golpe, não
estava claro que o regime militar duraria mais duas décadas – naquele
momento, o livro poderia ajudar a sedimentar a liderança de Magalhães
Pinto junto à sociedade civil. Magalhães não abandonou o sonho de
chegar à presidência. Seu projeto político, alentado desde aqueles tem-
pos, permaneceu vivo até o final da década de 1970, quando começou
o ensaio da abertura política em nosso país. Para tal, continuou con-
tando com o apoio, por exemplo, do colunista político Carlos Castello
Branco, na época ainda escrevendo no Jornal do Brasil.21
Se entre os jornalistas foi significativo o apoio à deposição
de João Goulart, podemos observar que as trajetórias desses pro-
fissionais da imprensa não foram homogêneas. Em especial, vale a
pena refletirmos sobre a participação de Antonio Callado no volume
que inspira este artigo. Autor de numerosas obras, Callado produziu
engajadas reportagens publicadas em livro, dentre as quais devem
ser destacadas Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco:
aspectos da luta pela reforma agrária no Brasil, de 1960; Tempo de
Arraes – a revolução sem violência, publicada em 1965, e Vietnã do
Norte, de 1969.22
No entanto, na sua bibliografia completa, constante no site da
Academia Brasileira de Letras, onde estão mais de 20 títulos de sua
autoria, Os idos de março e a queda em abril não foi incluído.23 Teria
esta ausência se devido ao fato de que Callado, um opositor do regime
militar, sentiu-se desconfortável com os ataques feitos por ele contra
o presidente deposto, publicados no referido livro logo depois do
golpe? Crítico do governo Goulart, mais de uma vez Callado foi preso
pelo regime militar.
Em O Estado de S. Paulo de 6 de dezembro de 1997, Ruy Castro
escreveu que o livro Os idos de março e a queda em abril teria sido
“assinado por vários jornalistas que, no futuro, prefeririam omitir esse
livro de suas obras completas”. Segundo Castro, isto ocorreu “porque,
dentro da ‘objetividade’ dos artigos, ele pode ser lido hoje como uma

Livro Macos na gaveta.indb 83 17/8/2009 14:21:59


84
Um livro para a história

visão simpática ao golpe – o que ele era. Na verdade, nenhum daqueles


autores imaginava então que o golpe militar iria se eternizar e dar no
que deu”. Castro, entretanto, acredita que nem todos aqueles jorna-
listas teriam motivos para não querer tê-lo nas suas obras completas,
mas afirmou que Callado, “sem dúvida”, seria um dos que prefeririam
não tê-lo em sua bibliografia, pois “logo seria uma vítima do regime”.
Para Castro, Os idos de março e a queda em abril é

um bom documento de época – retrata bem a preocupação


da imprensa com os rumos do Brasil até o dia 31 de março. É
bom lembrar que, pelo descalabro do governo Jango, todos
os grandes jornais, exceto a Última Hora, foram a favor do
golpe. E que, a partir de 2 ou 3 de abril, apenas o Correio da
Manhã ficou do contra e, por um bom tempo, só na coluna
do Cony. 24

A respeito da participação de Antonio Callado em Os idos de


março, que em princípio pode ser considerada destoante do papel
que desempenhou como crítico do regime militar, o depoimento da
viúva Ana Arruda Callado procura oferecer uma justificativa. Para
Ana Callado, seu marido teria passado pelo mesmo deslocamento de
posição que aquele notado, por exemplo, no Correio da Manhã, “um
jornal que ele tinha dirigido e que ele adorava”. 25 O Correio, que nos
editoriais “Basta!” e “Fora!”, nos dias 31 de março e 1o de abril de 1964,
pedia a expulsão de João Goulart da presidência da República. Já nos
primeiros dias após o golpe, por intermédio, por exemplo, de Carlos
Heitor Cony, o Correio criticava o regime militar.
Segundo Ana Arruda, Antonio Callado “achava Jango fraquíssi-
mo. Uma confusão. Ele achava que não tinha o menor sentido. Callado
era um homem de esquerda, sempre foi um homem de esquerda, mas
muito lúcido. E a esquerda de vez em quando embarcava em canoa
furada. Callado via os furos”. Quanto ao texto do marido em Os idos de
março, ela afirma que, embora o ame até hoje, não gosta daquele seu
texto: “Aquele texto me dá certo incômodo. [...] Aquele texto me chateia”.
Na sua percepção, foi uma pena ele dizer certas coisas contra João
Goulart. Para Ana Arruda, que simpatizava com o presidente deposto,
Jango foi uma vítima e teve seu heroísmo. No entanto, ela afirma que o
entende. Ele seria uma pessoa muito mais madura do que ela própria
e teria também uma visão mais histórica e firme dos problemas. E
compreende também que ele achasse aquele governo uma “porcaria”,
mas frisou que “ele reagiu irado e se arriscou depois”.26

Livro Macos na gaveta.indb 84 17/8/2009 14:21:59


85

João Amado
Para Alberto Dines, a trajetória de Antonio Callado se explica da
seguinte forma: “como grande parte da intelectualidade e da classe mé-
dia liberal brasileira foi virando esquerdista por causa da ditadura”27 De
fato, ele teria apoiado o movimento guerrilheiro de Caparaó, chegando
até mesmo a transportar armas em determinada ocasião.28
Dentre as diversas obras historiográficas que tratam do assun-
to, vale destacar o livro Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do
AI-5 à constituição de 1988, no qual Beatriz Kushnir trata da censura
à imprensa e da relação, por vezes promíscua, entre jornalistas e cen-
sores, e relata diversos casos de colaboração entre os profissionais
da imprensa com o regime militar.29
O Jornal do Brasil foi um dos veículos destacados pela historiado-
ra. A censura era “compreendida como um pacto de responsabilidade”,
e o JB seria um veículo que mantinha este pacto.30 Kushnir afirma
que houve uma mudança de rota no jornal após o AI-5, e descreve
a circular interna de cinco páginas, do dia 29/12/1969, que o diretor
do jornal, José Sette Câmara envia para o editor chefe Alberto Dines.
Na circular há um elenco de normas intituladas “Instruções para o
controle de qualidade e problemas políticos”. Nas questões militares
a diretriz era ter a “máxima discrição e o maior cuidado”. O jornal
definia-se como católico, mas afirmava “que não daria apoio aos pa-
dres francamente comprometidos com atividades subversivas”. As
atividades políticas e a rearticulação do movimento estudantil seriam
tratadas com o máximo cuidado. Também não receberiam apoio do
jornal “as atividades de luta armada, intituladas de subversivas, e as
maquinações de esquerda”.31
Kushnir cita também um artigo de Janio de Freitas, publicado
na Folha de S. Paulo, no dia 15 de dezembro de 1998, na semana em
que se rememorava o AI-5. Neste artigo, Janio de Freitas salientou que
os jornais reagiram contra a censura determinada pelo AI-5 porque
“a imprensa faz questão de que seja seu, localizado nos dirigentes de
cada publicação, o poder de liberar e de vetar”. Mas para Janio de Freitas
“ser contra a censura não significou ser contra o sentido geral do AI-5,
senão contra um dos seus muitos aspectos”. Janio de Freitas destacou
que a imprensa foi uma arma essencial da ditadura e que naqueles
tempos, e desde 1964, o Jornal do Brasil “foi o grande propagandista
das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos
verdadeiros ou falsos do regime”. Segundo Janio, “os arquivos guardam
coisas inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói
da antiditadura tem dependido só de se passar por tal”.32 Em recente
entrevista, Janio de Freitas ofereceu sua visão do comportamento dos
jornalistas no golpe e durante a ditadura.

Livro Macos na gaveta.indb 85 17/8/2009 14:21:59


86
Um livro para a história

O comportamento das chefias de Redação em 1964 e daí em


diante foi o pior possível. Hoje em dia ouço muito falar “o Jor-
nal do Brasil fez”, “o Jornal do Brasil protestou”. Que eu saiba
não. E eu duvido que prove. Os jornais fizeram o jogo do golpe,
depois fizeram o jogo do regime militar. E não foi militar senta-
do nas redações que estava fazendo jornal não. Era jornalista
profissional. Não só apoiou o golpe. Depois continuou servindo
integralmente ao regime militar. Integralmente. Quanto a isso
não há a menor dúvida, basta pegar os jornais antigos. Há mil
episódios. Quando começam aqui no Rio, e no Brasil, os mo-
vimentos armados, as primeiras ações armadas, quem passa
a absurdamente chamar os participantes desses movimentos
de “terroristas”, como ficou consagrado na imprensa brasileira,
não foram os militares, não. Isso foi dado na redação do Jornal
do Brasil por um jornalista que hoje se diz democrata.33

Quem seria o jornalista responsável pela introdução do termo terro-


rista para designar os que pegavam em armas para combater a ditadura?
Ao ser perguntado se o jornalista a quem fez referência é Alberto Dines,
Janio de Freitas não respondeu nem que sim, nem que não.34 Dines, por
sua vez, teria afirmado que “a partir do AI-5 o governo recomendou aos
principais jornais que classificassem de terrorismo todas as ações arma-
das praticadas por guerrilheiros”. 35 Embora não exista uma unanimidade
quanto à primazia da utilização do termo terrorismo para qualificar a
resistência armada ao regime,36 o jornalista José Silveira, secretário de
redação do JB na época, confirma que o Jornal do Brasil foi o primeiro a
utilizar o adjetivo terrorista para nomear esses militantes:

Quem inventou de chamar os caras de terroristas foi o Jornal do


Brasil, assim como inventaram a palavra revolução. [...] Eu não
sei se houve alguma instrução superior para chamar os caras
de terroristas, mas o Jornal do Brasil foi o primeiro a chamar
os caras da luta armada de terroristas.37

Procurado, José Silveira relatou o episódio:

Não sei se houve ordens de cima, mas numa reunião de editores


do Jornal do Brasil, recebemos ordens de Alberto Dines, editor-
chefe do jornal, para chamar todos os participantes da luta arma-
da no Brasil, durante a ditadura, de terroristas. Perguntei se quem
assaltava bancos devia ser chamado de assaltante de banco, e
Dines disse que deviam ser chamados de terroristas.38

Livro Macos na gaveta.indb 86 17/8/2009 14:21:59


87

João Amado
Embora não devamos esquecer que entre os grupos da esquer-
da armada havia os que se autointitulavam terroristas, sem o caráter
pejorativo comumente associado ao termo, pode-se averiguar a
existência de diferentes memórias, em disputa, a respeito da atuação
dos jornalistas no período da ditadura. Grupos diferentes parecem
ter memórias diferentes, e cada grupo constrói a sua. Maurice Hal-
bwachs afirma que para a nossa memória se auxiliar das lembranças
dos outros é necessário que haja pontos de contato suficientes entre
uma e outra para que a lembrança possa ser reconstruída sobre um
fundamento comum.39
Então, em que foi baseada a memória de resistência ao regime
militar? Para essa construção, foi importante o fato de que em fins
de 1968, a ditadura endureceu de vez e até aqueles jornalistas que a
apoiavam enfrentaram problemas: “mesmo figuras tradicionalmente
ligadas ao governo eram censuradas, se assumissem posições mais
críticas ou dissidentes”.40 Por essa razão, muitos jornalistas que na
maior parte do tempo apoiaram o regime militar conseguem passar por
vítimas. É uma outra modalidade de “bolsa-ditadura”, pois usufruem da
memória construída de resistência ao regime de exceção, esquecendo
os momentos de cumplicidade com o governo e lembrando somente
as vezes em que o criticaram.
Atualmente são raros os jornalistas que assumem sua simpatia
pelo regime à época ou querem de alguma forma se identificar com
a ditadura. Na maior parte das vezes, até mesmo jornalistas que con-
quistaram prestígio e “e se projetaram à sua sombra, e que devem a
ela a Sorte”, prestígio, poder e influência que ainda desfrutam, não
defendem a ditadura e tentam construir uma imagem de resistentes
e não de coniventes e/ou colaboradores.41
Além do mais, a “revolução” tomou rumos que desagradaram
até mesmo muitos daqueles que apoiaram com entusiasmo o golpe
de 1964. Portanto, ter participado de uma forma ou de outra do movi-
mento que derrubou o presidente João Goulart, ou ter dado qualquer
sustentação ao regime que estabeleceu como norma o rompimento
autoritário da normalidade constitucional, é uma lembrança que
muitos prefeririam apagar da memória – e da história. Afinal, sejamos
francos, quem gostaria de ser publicamente responsabilizado por ter
ajudado a abrir esta Caixa de Pandora?

Livro Macos na gaveta.indb 87 17/8/2009 14:21:59


88
Um livro para a história

Notas
1 GOMES, Pedro em DINES, Alberto et al. Os idos de março e a queda em abril. Rio de
Janeiro: José Álvaro, 1964. p. 124.
2 DUARTE, Eurilo em DINES, Alberto et al. Os idos de março e a queda em abril. Rio
de Janeiro: José Álvaro, 1964. p. 159.
3 BRANCO, Carlos Castelo em DINES, Alberto et al. Os idos de março e a queda em
abril. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964. p. 306.
4 DINES, Alberto em BRANCO, Carlos Castelo em DINES, Alberto et al. Os idos de
março e a queda em abril. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964. p. 352–353.
5 DINES, Alberto em BRANCO, Carlos Castelo em DINES, Alberto et al. Os idos de
março e a queda em abril. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964. p. 353.
6 RESENDE, Otto Lara em Ibid., p. 9–11.
7 CRIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In:
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. 2o
ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 156.
8 MELO E SOUZA, Cláudio. Entrevista concedida ao autor em 6 de março de 2007, no
Rio de Janeiro.
9 FIGUEIREDO, Wilson. Entrevista concedida ao autor em 7 de maio de 2007, no Rio
de Janeiro.
10 OS IDOS de março. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 jun. 1964. Caderno B, p. 5.
11 GOMES, Pedro. Minas: do diálogo ao front. In: DINES, Alberto et al. Os idos de março
e a queda em abril. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964. p. 71.
12 DINES, Alberto et al. Os idos de março e a queda em abril. Rio de Janeiro: José Ál-
varo, 1964. p. 74.
13 DINES, Alberto et al. Os idos de março e a queda em abril. Rio de Janeiro: José Ál-
varo, 1964.
14 Ibid., p. 76.
15 FREITAS, Janio de. Entrevista concedida ao autor no dia 8 de março de 2007, no
Rio de Janeiro.
16 STARLING, Heloísa Maria Murgel. Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e
o golpe de 1964. 2. ed. Petrópolis, RJ: [s.n.], 1986. p. 139.
17 CONTI, Mario Sergio. Notícias do Planalto. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. p. 414.
Janio de Freitas confirmou esta informação em entrevista ao autor no Rio de Ja-
neiro, em 8 de março de 2007. O próprio Alberto Dines também acredita que “pode
ter sido sugestão dele”, José Luiz Magalhães Lins, que o teria indicado para dirigir
o JB, conforme entrevista ao autor no Rio de Janeiro, em 28 de fevereiro de 2007.
18 ABREU, Alzira Alves de et al. Eles mudaram a imprensa: depoimentos ao CPDOC.
Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 107.
19 Alberto Dines, em entrevista ao autor no Rio de Janeiro, em 28 de fevereiro de 2007,
e Janio de Freitas, em entrevista ao autor no Rio de Janeiro em 8 de março de 2007,
confirmam que Carlos Castello Branco foi indicado para o JB por José Luiz Magal-
hães Lins.
20 DINES, Alberto. Entrevista concedida ao autor em 28 de fevereiro de 2007, no Rio
de Janeiro.
21 BRANCO, Carlos Castello. Retratos e fatos da história recente. 2a ed. Rio de Janeiro:
Revan, 1996. p. 150–153.

Livro Macos na gaveta.indb 88 17/8/2009 14:21:59


89
22 CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco: aspectos da

João Amado
luta pela reforma agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960. Este
livro tratava da luta dos camponeses em Pernambuco. As reportagens que Callado
escreveu e que foram publicadas no livro Tempo de Arraes, foram primeiro publi-
cadas pela José Álvaro Editora. CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução
sem violência. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 31; CALLADO, Antonio.
Vietnã do Norte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
23 Disponível em: <http://www.academia.org.br/cads/8/antonio.htm>. Acesso em: 5 abr.
2006.
24 CASTRO, Ruy. Entrevista concedida ao autor em 29 de março de 2007, no Rio de
Janeiro.
25 CALLADO, Ana Arruda. Entrevista concedida ao autor em 15 de maio de 2007, no
Rio de Janeiro.
26 Idem.
27 Alberto Dines. Entrevista concedida ao autor em 4 de outubro de 2003 no Rio de
Janeiro.
28 Antonio Callado realizou tarefas no “sentido de informações que me davam e tal”
(sic). Mas afirmou que nunca entendeu muito bem “o que eles esperavam com
aquilo”. Outro trecho de seu depoimento a Marcelo Ridenti: “eles pediam a ligação,
a informação, entre eles e, digamos aqui, a cidade, o governo o que eles podiam
fazer... Mas aí que me deu aquela impressão catastrófica de que as ligações eram
muito tênues: se me prendessem e torturassem, eles acabavam me matando, iam
pensar que eu era um herói – quando na realidade eu não sabia de nada. Eu só
sabia que tinha um grupo, lá em Caparaó, tentando fazer alguma coisa, e esperava
que eles fizessem”. Callado teria transportado armamentos trazidos pelo poeta
Thiago de Mello para um local indicado pelo poeta, mas ambos desconheciam de-
talhes operacionais. Marcelo Ridenti. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 145-146.
29 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de
1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
30 Ibid., p. 48.
31 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de
1988. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 49.
32 Ibid., p. 50-51.
33 FREITAS, Janio de. Entrevista ao site Fazendo Mídia. Disponível em: <http://www.
fazendomedia.com/novas/politica210905a.htm>. Acesso em: 8 ago. 2006.
34 FREITAS, Janio de. Entrevista concedida ao autor em 8 de março de 2007, no Rio
de Janeiro.
35 ABREU, João Batista de. As manobras da informação. Rio de Janeiro: Mauad: EdUFF,
2000. p. 25.
36 Leneide Duarte, então trabalhando para o Jornal do Brasil, afirmou que “o Globo
já em 1966 recorria ao termo ‘terrorismo’ para se referir a atentados políticos.
Em editorial intitulado ‘Terrorismo, não’ reproduzido no livro, o jornal, um ade-
sista de primeira hora, defendia o ponto de vista dos militares classificando a re-
sistência armada ao regime como ‘terrorismo’”. (A guerra da informação. <http://
observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/al201220003.htm>. Acesso em: 10
jun. 2007).
37 ABREU, João Batista de. As manobras da informação. Rio de Janeiro: Mauad: EdUFF,
2000. p. 25.
38 SILVEIRA, José. Depoimento concedido ao autor em 18 de maio de 2007, no Rio
de Janeiro.

Livro Macos na gaveta.indb 89 17/8/2009 14:22:00


90
39 A reconstrução da memória seria operada “a partir de dados ou noções comuns
Um livro para a história

que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque eles pas-
sam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se
fizeram e continuam a fazer parte da mesma sociedade. Somente assim podemos
compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e re-
construída.” (HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laís Benoir.
São Paulo: Centauro, 2004).
40 PEREIRA, Álvaro SEABRA, Roberto. Jornalismo político. Rio de Janeiro: Record,
2006. p. 95.
41 REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3. ed. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 7.

Referências

ABREU, Alzira Alves de et al. Eles mudaram a imprensa: depoimentos


ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

ABREU, João Batista de. As manobras da informação. Rio de Janeiro:


Mauad: EdUFF, 2000.

BRANCO, Carlos Castello. Retratos e fatos da história recente. 2. ed. Rio


de Janeiro: Revan, 1996.

CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os galileus de Pernambu-


co: aspectos da luta pela reforma agrária no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1960.

________. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 2. ed. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1979.

________. Vietnã do Norte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

CONTI, Mario Sergio. Notícias do Planalto. São Paulo: Companhia das


Letras, 1999.

CRIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas


questões. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos
e abusos da história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998.

DINES, Alberto et al. Os idos de março e a queda em abril. Rio de Ja-


neiro: José Álvaro, 1964.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laís Benoir.


São Paulo: Centauro, 2004.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à


constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

Livro Macos na gaveta.indb 90 17/8/2009 14:22:00


91

OS IDOS de março. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 jun. 1964. Ca-

João Amado
derno B, p. 5.

REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3.


ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record,


2000.

SEABRA, Roberto. Jornalismo político. Rio de Janeiro: Record, 2006.

STARLING, Heloísa Maria Murgel. Os senhores das Gerais: os novos


inconfidentes e o golpe de 1964. 2. ed. Petrópolis, RJ: [s.n.], 1986.

Livro Macos na gaveta.indb 91 17/8/2009 14:22:00


Livro Macos na gaveta.indb 92 17/8/2009 14:22:00
IMPRENSA ALTERNATIVA – COMENTÁRIOS SOBRE O ACERVO

Sandra Alves Horta

O acervo Imprensa Alternativa foi doado ao Arquivo da Cidade pela


Fundação RIOARTE, órgão da então Secretaria Municipal de Cultura/Prefei-
tura da Cidade do Rio de Janeiro, em 1992. Constava de material audiovisual
e de uma hemeroteca, mas apenas os jornais e revistas serão comentados
aqui. Foi acumulado por iniciativa de Maria Amélia Mello, coordenadora do
Centro de Cultura Alternativa, criado em 1980, quando era presidente daque-
la fundação o escritor José Rubem Fonseca. O objetivo geral que inspirou
a criação do Centro foi “documentar e divulgar, por meio de seminários,
mostras, concursos, aspectos da cultura brasileira” e o objetivo específico
“catalogar o que produziu e produz o país na imprensa alternativa e na
produção cultural independente nos anos 1960/1980”.1
De acordo com a ideia que embasava as ações do Centro, a expres-
são “cultura alternativa” remetia, no Brasil, ao final da década de 1960 e
início da década de 1970, época em que começaram a surgir, em todo o
país, manifestações culturais localizadas fora dos circuitos comerciais de
produção e distribuição e, sobretudo, avessas ao espírito destes circuitos
tradicionais. Segundo, ainda, o pensamento do Centro, imprensa, literatu-
ra, cinema, teatro, música enfrentaram nesse período condições adversas
que acabaram por representar um marco importante e reflexivo na história
da cultura brasileira. Neste sentido, para esse órgão, um enfoque crítico da
realidade sociocultural dos anos de autoritarismo passaria inevitavelmente
pelo estudo dessa produção.2
Assim sendo, o corpo técnico do Centro de Cultura Alternativa divul-
gou seus objetivos nos jornais de grande tiragem do país e efetuou contatos
por correspondência, ou mesmo pessoalmente, tendo sido enviadas mais de
duas mil cartas a intelectuais, artistas, jornalistas, entre outros. Os ideais
que impulsionavam o Centro e os esforços que desenvolveram no sentido
de constituir o acervo obtiveram imediata repercussão entre aqueles seg-
mentos, resultando na doação de cerca de cinco mil peças, entre jornais,
livros, discos, revistas, recortes, fitas, arte postal, quadrinhos, folhetos e
cartazes.
Em agosto de 1984, o Centro reformulou seu conceito de cultura al-
ternativa afirmando que as manifestações culturais à margem do sistema

Livro Macos na gaveta.indb 93 17/8/2009 14:22:00


94
Imprensa Alternativa – Comentários sobre o acervo

não representavam uma cultura alternativa à cultura dominante, mas


uma cultura de resistência à opressão de qualquer natureza, passan-
do, então, a denominar-se Centro de Imprensa Alternativa e Cultura
Popular. Conceito extremamente controvertido, escapa à pretensão
deste trabalho aprofundar a discussão sobre o significado de cultura
popular neste ou naquele contexto. O que nos interessa é que não
houve grandes alterações nas metas e nos programas do Centro, que
deu continuidade à intenção de criar a “oportunidade de tornar vivo
o material reunido”,3 ultrapassando o mero registro e sua preserva-
ção. Procuraram retirar o maior rendimento do acervo, abrindo-o à
pesquisa, realizando estudos, promovendo palestras, projeções cine-
matográficas, concursos, programa na rádio Roquete Pinto, intitulado
“Segundas Intenções”, visando a divulgar e manter o público informado
sobre a produção da cultura de resistência, e colhendo depoimentos
de compositores, teatrólogos, jornalistas, de maneira a produzir um
acervo de história oral sobre o tema.4
Esse acervo multimídia foi constituído entre 1980 e 1982, quando
a ação da censura político-militar já se fazia menos visível sobre os
meios de comunicação, devido à distensão política “lenta e gradual”
iniciada em 1975, no governo do presidente Ernesto Geisel. Os anos
em que a censura foi mais aguda, compreendidos entre 1968 e 1979,
com a edição do AI-5 e a regulamentação da censura prévia por meio
do Decreto no 1.077, de março de 1970, tinham, enfim, de certa maneira,
sido superados. Porém, a censura não fora completamente abolida,
principalmente sobre a imprensa alternativa, pois apesar da suspensão
à censura prévia na maioria dos jornais, ocorrida em 1978, em outubro
do mesmo ano o Centro de Informações do Exército (CIE) elaborou um
estudo minucioso a respeito da imprensa nanica, sugerindo uma série
de sanções econômicas e administrativas para silenciá-la, consideradas
mais eficientes e menos desgastantes do que a censura político-militar
ou as medidas judiciais.5 Embora no início dos anos 1980 os tempos
ainda não fossem de total normalidade democrática, já permitiam um
olhar sobre o passado recente e uma tentativa de resgate, de análise e
compreensão do que o Centro denominara imprensa alternativa.
Voltando a 1964, na medida em que alguns órgãos da grande
imprensa criaram condições para o golpe, uns aderiram no primeiro
momento, outros ainda resolveram se omitir ou mesmo colaborar
para sobreviver, deu-se o ensejo para o surgimento de veículos que
adotaram uma postura de independência em relação à ideologia domi-
nante. Por outro lado, a própria ação da censura, impedindo jornalistas
de trabalhar, cerceando a informação, impondo silêncio sobre temas
de interesse nacional, anulando direitos essenciais dos cidadãos,

Livro Macos na gaveta.indb 94 17/8/2009 14:22:00


95

Sandra Alves Horta


incentivou a proliferação desses periódicos. Antônio Callado explicita
bem essa situação quando diz que “contra sua própria vontade, frus-
trando suas mais caras intenções, a censura, perseguindo jornalistas,
cria um prego, uma pedra, no próprio sapato, ou bota: cria a imprensa
alternativa, nanica”.6
Entre 1964 e 1980, 160 periódicos alternativos surgiram e desa-
pareceram por motivos vários, que vão desde a censura, que atingiu
os meios de comunicação em geral (rádio, televisão, editoras, jornais,
teatro, cinema), à ação violenta dos órgãos de repressão, invadindo
as redações, atacando bancas de jornais, apreendendo as edições,
suspendendo a circulação, dificultando a obtenção de empréstimos,
ameaçando os anunciantes, acabando por tornar esses periódicos
inviáveis economicamente. A história dos jornais políticos mais conhe-
cidos, como Opinião e Movimento, já foi escrita. No entanto, outros tão
combativos, como O Trabalho e O Trabalhador que, respectivamente,
denunciaram “O circo das eleições”,7 apontando a farsa democrática
na sucessão do presidente Geisel ou defendiam a formação do Partido
dos Trabalhadores; 8 como Ex, depois Extra, posteriormente Mais Um,
Politika, Lampião, Crítica, De Fato, Contestado, o Inimigo do Rei, de
linha anarquista, que tratavam de assuntos temerários para a época
como as matérias “Hora de censurar a censura”,9 “O ritual da aflição
nos cárceres políticos”,10 “Cada vez mais difícil ter uma ‘opinião’ em
‘movimento’”,11 em alusão à censura nos dois semanários, aguardam
pelos pesquisadores que desejem narrar suas trajetórias.
Segundo Patrícia Marcondes de Barros, ainda colaboraram para
o colapso da imprensa nanica problemas internos tais como

[...] o modelo ético-político que consistia no repúdio ao lucro


e, mesmo ao desprezo por questões administrativas, de or-
ganização e comercialização. Paradoxalmente, a insistência
numa distribuição nacional antieconômica, a incapacidade de
formar grandes bases de leitores-assinantes e certo triunfalismo
em relação aos efeitos da censura contribuíram para fazer da
imprensa alternativa não uma formação permanente, mas sim,
algo provisório, frágil, vulnerável não só aos ataques de fora
como às suas próprias contradições.12

Alguns estudiosos do tema afirmam que os jornais alternativos


desapareceram principalmente por causa da abertura política, per-
dendo então sua razão de ser, já que sua principal função era ser um
canal de resistência à ditadura. Bernardo Kucinski vai mais além e diz
que problemas partidários ou o sectarismo das correntes políticas

Livro Macos na gaveta.indb 95 17/8/2009 14:22:00


96
Imprensa Alternativa – Comentários sobre o acervo

foram causas mais eficientes que o fim do regime de arbítrio para


calar essa imprensa.13
Seja qual for o motivo que tenha freado o impulso de criar órgãos
de informação, denúncia e discussão independentes e soberanos após
os anos mais duros do regime de exceção, sabemos que a imprensa
alternativa não é um fenômeno apenas do período da ditadura civil-
militar; ela vicejou em diversos momentos da vida política e social do
país e no exterior. São inúmeros os exemplos de jornais de contesta-
ção no Império, de pasquins que atuaram corajosamente no período
regencial, de veículos anarquistas publicados nos primeiros anos da
República. Ainda hoje a imprensa alternativa subsiste principalmente
na Internet, revelando que esse espírito de oposição e de dissensão
nunca deixou de existir, mas que conheceu seus momentos de maior
expansão e vigor entre o AI-5, em 1968, e a Lei da Anistia, em 1979.
Diante desse quadro, o Centro de Imprensa Alternativa e Cultura
Popular decidiu constituir um acervo de imprensa alternativa com a
intenção de preservar o registro de um momento memorável de resis-
tência ao arbítrio, no qual essa imprensa representou um papel signi-
ficativo. Conseguiu, assim, o feito notável de acumular cerca de 1.300
títulos de jornais, revistas e textos mimeografados, publicados num
período que ultrapassa os 20 anos da ditadura militar, estendendo-se
de 1955 a 2002, e que vão desde publicações que veiculam opiniões
de vários grupos de esquerda, de partidos políticos, sindicatos, grê-
mios e diretórios estudantis, jornais de minorias (negro, mulher e
homossexual) a jornais de bairro, revistas literárias, acadêmicas, de
defesa do meio ambiente, de humor, esotéricas, de parapsicologia,
psicologia e culturais (artes plásticas, cinema, música popular e
erudita, teatro, movimentos de contracultura e underground). Esse
trabalho foi, à época, pioneiro. Hoje a Universidade de Brasília e a
Universidade de Campinas possuem acervos significativos sobre
a imprensa alternativa.
Um conjunto tão heterogêneo – uma vez que periódicos que
abrangem um período extenso, assuntos diferentes, origens e objetivos
distintos encontram-se reunidos sob o título Imprensa Alternativa –
nos remete à questão da conceituação. Qual o conceito de imprensa
alternativa que presidia a política cultural e as ações do Centro de
Imprensa Alternativa e Cultura Popular e que orientou a formação
desse acervo? Para o jornalista Maurício Azedo, quando se fala de
imprensa alternativa,

a tendência dominante parece ser a de se considerar como


imprensa alternativa os veículos de natureza política que se

Livro Macos na gaveta.indb 96 17/8/2009 14:22:00


97

Sandra Alves Horta


colocaram em oposição ao sistema implantado no país a partir
de 1964 e 1968, mas, essa definição não abrange toda a riqueza do
fenômeno, que não se manifestou apenas no campo político.14

Ilustra essa associação comumente feita entre Imprensa Alter-


nativa e grupos de esquerda a entrevista concedida recentemente por
Reinaldo Azevedo, por ocasião do fechamento do jornal Primeira Lei-
tura. O citado jornalista respondeu a uma pergunta do repórter – que
caracterizou o jornal que ele dirigia como alternativo, talvez por fazer
contundente e sistemática oposição ao governo atual – afirmando: “ Eu
rejeito o ‘alternativo’ para o que eu fazia. O termo está excessivamente
ligado à imprensa de esquerda, que eu nunca fiz.”.15 No entanto, para
muitos especialistas, essa vinculação não é necessária, pois jornais
de bairro, revistas literárias, veículos estudantis e de minorias (negro,
mulher e homossexual) estão também incluídos nessa categoria e, na
maioria das vezes, sua contestação não passava pela questão política
strictu sensu.
Ao exporem nos relatórios seus objetivos e ações, e ao justificá-
los, o Centro de Imprensa Alternativa e Cultura Popular nos permite
empreender uma leitura do que os intelectuais que o presidiam con-
cebiam como imprensa alternativa. Analisando a produção dos anos
1970/1980, o relatório do Centro dizia:

[...] na literatura, o mimeógrafo começava a ganhar um uso cada


vez mais marcante, no cinema o super-8 estava na ordem do
dia. Criava-se uma nova fonte de produção que arregimentava
todo um novo conjunto de produtos. De um lado, os movimentos
de rebelião da juventude, designados genérica e mundialmente
com o rótulo de contra-cultura. Situava-se aí o questionamento
da racionalidade tecnocrática, das formas tradicionais de luta
política, bem como a ênfase no lúdico, no cotidiano, no prazer,
na força da imaginação.16

Considerava, portanto, como alternativos, os jornais influen-


ciados pela contracultura, movimento surgido nos Estados Unidos
na década de 1950, que procurou revolucionar a poesia, a literatura,
a música, as artes plásticas, muitas vezes discutindo-as sob um
prisma existencial. Temas como misticismo, drogas, astrologia, vida
alternativa, zen-budismo, o apelo ao on the road, no qual pontificavam
os mitos norte-americanos Jack Keroauc e Allen Ginsberg, conquista-
ram incontáveis adeptos no Brasil. Luiz Carlos Maciel, que assinava
uma coluna no Pasquim intitulada “Underground” (lançada em 1969),

Livro Macos na gaveta.indb 97 17/8/2009 14:22:00


98
Imprensa Alternativa – Comentários sobre o acervo

refutava aqueles que se posicionavam contra o movimento, devido à


sua origem estrangeira, dizendo que a influência cultural “deve ser
assimilada de forma crítica e só a compreensão, não a ignorância,
vaidosa, torna a crítica possível”.17 O acervo conta com inúmeros
órgãos representativos desse novo modo de ver e pensar a vida e a
cultura, tais como Flor do Mal, Rolling Stone, Navilouca, que são os
mais conhecidos. Porém Kaos, Flops, Ta-Ta-Ta Jornal, Verbo Encantado,
Vírgula, entre outros, tratam de temas análogos.
Ainda de acordo com o Centro,

Toda a produção independente/marginal/alternativa/nanica/


emergente era, então, ou uma expressão de resistência – num
momento em que os canais mais estabelecidos e sedimentados
se viram fortemente bloqueados, em particular a imprensa – ou
uma expressão do “desbunde” – que obviamente também tinha
um sentido de resistência embora com características próprias;
a literatura presenciou (em especial a poesia) o surgimento de
uma linguagem veiculada através de novos produtos que co-
meçam a ganhar o rótulo de poesia marginal. Surgiram, assim,
formas de produção e distribuição de bens culturais apoiados
sobre o artesanal e o coletivo. Fato, que, por sua vez, abria todo
um novo campo de pesquisa gráfica, visual – com forte ênfase
no baixo custo e no uso de uma criatividade lúdica – um novo
mercado – conseguido freqüentemente no trabalho direto do
próprio produtor que, partindo da idéia de “venda agressiva”,
se tornava anunciante e vendedor de seu próprio produto – e
mesmo um novo tipo de relação com o público.18

Os principais adeptos da produção marginal e venda agressiva


de que fala o Centro foram os jornais literários, vendidos nas ruas,
bares, restaurantes, saídas de teatro e cinema. Eles constituem maio-
ria absoluta no acervo. De acordo, ainda, com o Centro de Imprensa
Alternativa e Cultura Popular, quando os jornais de resistência de-
mocrática entraram em declínio, uma outra imprensa se afirmou nos
anos 1980, criando profundas raízes na realidade social, cultural e
política do país, a denominada imprensa sindical. Apesar de ser por
muitos relegada a um segundo plano, desempenhou um papel muito
importante como formadora de opinião junto a um amplo setor da
nação, os trabalhadores e os funcionários das grandes indústrias e
empresas estatais.19
No acervo há inúmeros jornais publicados por sindicatos, alguns
defendendo as causas dos trabalhadores, maiores salários, melhores

Livro Macos na gaveta.indb 98 17/8/2009 14:22:00


99

Sandra Alves Horta


condições de trabalho como Boca Maldita, órgão do Sindicato dos
Empregados de Estabelecimentos Bancários do Rio de Janeiro; alguns,
ainda, possuem orientação nitidamente de esquerda, político-sindical,
como Alavanca, Jornal Popular Independente, com distribuição nacio-
nal; uns são informativos e alguns, ainda, literários e culturais, como
Movimento Poetas da Praça, editado pela CUT/Bahia, trazendo poesias
ao lado de artigos sobre mobilização da categoria.
Também os jornais e revistas publicados por estudantes figuram
com algum destaque no acervo. O movimento estudantil está presente,
nesse conjunto documental, por meio de periódicos que revelam a re-
beldia e a contestação dos jovens nos denominados anos de chumbo.
Uns são ligados a correntes do movimento estudantil, como Ibiúna;
outros expressam o descontentamento dos diretórios acadêmicos
com o status quo, bem como os debates que ocorrem no seu interior,
como Viração, órgão predominantemente político do Diretório Acadê-
mico Tiradentes, da PUC/RJ; muitos são informativo-culturais, como
o Análise, órgão do Diretório Central das Universidades Mackenzie,
de São Paulo; alguns, ainda, são dedicados a reflexões e discussões
teóricas sobre as disciplinas dos cursos, como Espaço, dos estudantes
de arquitetura de São Paulo; mas a maioria presente no acervo tem
um caráter literocultural, como o Caderno de Poetas, publicação do
Centro Acadêmico Eco, e Cem Flores, do DCE da Universidade Federal
de Minas Gerais.
O Centro preocupou-se, também, em refletir sobre a contribui-
ção que a imprensa alternativa teria trazido para a sociedade brasileira
e indagava:

Passada a década de 70, isto é, passados o fechamento e o


“desbunde”, qual o saldo da cultura alternativa? Basicamente
essa parece ter aberto espaços para as múltiplas formas de
organização a nível da sociedade civil, como por exemplo, as-
sociações de bairros, organização de cooperativas, além de ter
posto em pauta temas de discussões tais como a questão das
minorias culturais, étnicas e sexuais ou mesmo ter renovado
velhas discussões como a crítica ao populismo.20

Segundo Ana Maria Colling, é a partir de 1970 que ocorre uma


verdadeira revolução no mundo feminino; a questão da sexualidade,
antes um tabu, passa a frequentar os temas tratados nas revistas
destinadas às mulheres, antes ocupadas com questões como moda,
culinária e dicas para aprimorar as tarefas domésticas. Para essa espe-
cialista, o ano de 1975 representa um divisor de águas na luta feminina.

Livro Macos na gaveta.indb 99 17/8/2009 14:22:00


100
Imprensa Alternativa – Comentários sobre o acervo

Antes dedicadas a questionar a discriminação social, política e econô-


mica, a discutir temas como sexualidade, contracepção, aborto, dupla
jornada de trabalho, passam a atuar também politicamente, muitas
delas tornando-se militantes e optando pela clandestinidade.21
Jornais como Brasil Mulher, Mulher, O Sexo Finalmente Explícito,
Mulherio, Nós Mulheres, Maria Maria trazem uma nova perspectiva para
a afirmação da mulher em um mundo de ideologia nitidamente mascu-
lina. Entrava em cena a mulher militante, aquela que discutia os temas
candentes da época, se posicionava, contestava. Um exemplo dessa
tendência é o jornal Brasil Mulher que deu destaque nas suas páginas
ao projeto de anistia proposto por D. Evaristo Arns e entra em campo
fazendo coleta de assinaturas para apressá-lo.22 Manifesta-se contra a
censura que tirou de circulação o no 45 do jornal Movimento, que trazia
a matéria intitulada “O trabalho da mulher no Brasil”, reivindicando
a liberação na íntegra do material censurado.23 Além dos assuntos
políticos, o jornal debatia a presença da mulher no mercado de tra-
balho em igualdade com o homem, os direitos da mulher, a criação de
creches, o planejamento familiar.24 Nós, Mulheres, aproximando-se as
eleições municipais de 1976, convoca as mulheres a votar, para garantir
o retorno ao estado de direito por meio das urnas.25
Nesse período também começam a surgir os movimentos de afir-
mação do homossexualismo. No acervo há vários jornais dedicados à
causa. Entender lança uma matéria bastante ousada para a época sobre
casamento gay na Umbanda, tendo em vista o conservadorismo do regi-
me militar.26 Lampião da Esquina, utilizando-se da Declaração Universal
dos Direitos do Animal, proclamada pela UNESCO, faz analogia com
os direitos das minorias, que o jornal define como “um grupo sobre o
qual a sociedade repressiva mantém seus tacões, mesmo que ele não
seja minoritário, como as mulheres...(não são)”.27 Há, ainda, neste con-
junto documental, jornais publicados no exterior, tratando de várias
temáticas. Entre eles, os que também defendiam o fim do preconceito
sexual, como Pafu’era, Sentinel, Sappho, Boca do Noite etc.
Os militares, na tentativa de preservar a moral e os bons
costumes segundo uma visão muito própria, conservadora e autori-
tária, acusavam os comunistas de quererem desestabilizar a família,
pregando amor livre, fazendo propaganda do sexo, da pornografia,
ameaçando desintegrar a sociedade. Por isso, a repressão atingiu
também os periódicos que defendiam interesses das minorias, das
mulheres e dos gays. Lampião da Esquina foi enquadrado na Lei de
Imprensa, acusado de atentado à moral e aos bons costumes. Várias
foram as pressões que o jornal sofreu desde agosto de 1978: visitas
matinais dos agentes do Departamento de Polícia Federal, solicita-

Livro Macos na gaveta.indb 100 17/8/2009 14:22:00


101

Sandra Alves Horta


ções arbitrárias como fiscalização da contabilidade, humilhação de
serem os jornalistas fichados como criminosos. O processo contra o
jornal foi arquivado em outubro de 1979, após parecer do Procurador
da República que dizia: “No caso em exame, a publicação inquinada
de ofensiva à moral pública pode ofender a moral de alguém, mas
não de todos. Portanto, é relativo e não absoluto o conceito de moral
daquele que condena essas publicações”.28
Integram o acervo periódicos como Porantim, que fez a co-
bertura do “1o Congresso de Movimentos Índios de Sudamérica”,
realizado no Peru, 29 Borduna, Nimuendaju, todos envolvidos na luta
pelos direitos indígenas. Inúmeros são também os jornais que contes-
tavam o regime por meio do humor e da sátira. Os mais famosos são
o Pif-Paf, que surgiu um mês após o golpe de 1964, publicou apenas
oito números, pois foi logo fechado pela censura, e o Pasquim, que
chegou a ter 400 mil leitores, passou por diversos dissabores, inclu-
sive com a prisão da maioria dos seus editores e colaboradores, mas
conseguiu sobreviver por muito tempo e inclusive ser retomado e
novamente fechado, agora por outras razões, no século XXI. Pingente,
Babel, Cabeça Feita, de linha anarquista, Gruta, de literatura e humor,
Maturi, contendo textos literários num viés satírico são exemplos de
periódicos humorísticos que integram essa série documental.
Portanto, pela seleção de periódicos, pelos objetivos e ações
do Centro de Imprensa Alternativa e Cultura Popular, concluímos que,
para esse órgão, integram a imprensa alternativa, além dos periódicos
que contestavam diretamente o regime de exceção, que constituíam
veículos de movimentos e correntes de esquerda, todos os que não
possuíam meios de comunicação de massa, que pensavam de forma
independente, que não estavam ligados a esquemas governamentais
ou econômicos e que não aceitavam o autoritarismo dominante não
só na política, mas nos costumes, no comportamento, na linguagem,
nos valores, propondo novos conteúdos e uma diagramação arrojada
para a época.
Para organizar esse conjunto expressivo de periódicos, o
Centro de Imprensa Alternativa e Cultura Popular relacionou todos
os jornais, revistas, cadernos, boletins, suplementos e folhas em um
catálogo, trabalho coordenado por Leila Miccolis e Marcos Augusto
Gonçalves, com a assistência de arquivo de Luis Moreira. Leila tinha
comprovada experiência anterior, é jornalista, poeta e foi, inclusive,
editora do jornal cultural Blocos e colaboradora de várias revistas
e jornais alternativos como Cordão Galope Poético, uma publicação
literária mimeografada, Trote, de poesia, Semente, publicação ecológica
e naturista, entre outros.

Livro Macos na gaveta.indb 101 17/8/2009 14:22:00


102
Imprensa Alternativa – Comentários sobre o acervo

O catálogo diferencia os periódicos intitulados de nanicos (em


geral mimeografados ou em cópia xerox, com tiragens pequenas de
folhas-ofício grampeadas) dos alternativos (tablóides ou minitablói-
des, de médio porte, muitos com esquema de distribuição nacional,
inclusive em bancas). Além do formato, os 560 verbetes com feição
enciclopédica trazem o número de páginas, local da publicação, datas
de publicação, editora, editores, colaboradores, se a impressão é em
preto e branco ou policrômica, tiragem e o perfil da publicação, ou
seja, informações sobre se o periódico é político, literário, de gênero,
de minorias, as principais matérias veiculadas, se contém ilustrações,
fotos, charges etc. Com vistas a obter o máximo de informações, foram
enviados questionários a todas as publicações da época, mas, mesmo
assim, ainda permaneceram muitas lacunas como datas de publicação,
local da edição, nomes incompletos dos colaboradores ou editores
por não constarem dos expedientes dos jornais.
Ao empreendermos a classificação e notação dos periódicos,
para guarda e acondicionamento nas caixas, verificamos que 118
títulos indicados no catálogo do RIOARTE não constavam do acervo
e 735 títulos de publicações não estavam relacionados no catálogo.
Aqueles que foram criados após 1982 ou surgiram antes, mas só foram
integrados ao acervo após esta data, não estão relacionados no pri-
meiro catálogo. Por outro lado, as ausências são atribuídas a perdas
ou descarte pois este acervo permaneceu por muito tempo guardado
sem contar com as condições de armazenamento prescritas pelas
modernas técnicas de preservação.
Fez-se necessário, portanto, a elaboração de um segundo catá-
logo, nos moldes do anterior, reunindo todos os títulos existentes no
acervo. Cumpre observar que adotamos a metodologia empregada na
elaboração do catálogo inicial, pois consideramos que os verbetes con-
tendo os dados essenciais sobre cada publicação facilitam em muito
o trabalho do pesquisador. Em ambos, os jornais estão relacionados
em ordem alfabética, mas na migração dos dados para o programa de
software desenvolvido pela Assessoria de Informática da Secretaria
Municipal das Culturas estão sendo observadas as normas arquivís-
ticas. Portanto, é possível consultá-los por título, data, espécie (nesta
categoria foram agrupados sob as seguintes denominações: jornal,
revista, boletim, cadernos, suplemento, folhas), por conteúdo ou
descrição. Assim, graças ao trabalho pioneiro da equipe do RIOARTE
– somado ao trabalho desenvolvido pelo corpo técnico do Arquivo da
Cidade – temos hoje todo o conjunto documental Imprensa Alternativa
identificado, classificado, acondicionado adequadamente e aberto à
consulta pública.

Livro Macos na gaveta.indb 102 17/8/2009 14:22:01


103

Sandra Alves Horta


A partir das informações veiculadas nos verbetes, foi possível
estabelecer algumas estatísticas capazes de dimensionar este acervo.
A primeira refere-se às datas-limite deste conjunto documental. Exis-
tem periódicos datados de 1955 até 2002, mas a maior incidência está
nas décadas de 1970 e 1980, justamente o período mais autoritário da
ditadura civil-militar. A maior parte dos jornais foi editada no Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, mas há publicações de quase todos
os Estados do país, excluindo Amapá, Rondônia e Roraima. Surpreende
o fato de que no acervo constem jornais de 131 cidades – capitais e do
interior – que editaram algum tipo de periódico, um jornal estudantil
de uma ou duas páginas, de textos ou de poesia. Se ainda hoje o país
conta com um número expressivo de analfabetos e de alfabetizados
funcionais, podemos imaginar a situação há 30 anos. No entanto, te-
mos um quantitativo que revela a capilaridade da imprensa naquele
período e um claro sintoma da necessidade de alguns segmentos da
sociedade de se fazerem ouvir, uma vez que a redução do espaço pú-
blico para discussão e veiculação de ideias era uma realidade. Este é
um fenômeno que merece ser estudado, pois revela que, a despeito
das dificuldades citadas, existia certo vigor das letras no nosso país,
que houve movimentos de vanguarda na literatura e que grupos de
escritores e poetas deram grande importância à divulgação de suas
reflexões e criações literárias.
O fato é que para os historiadores que se debruçam sobre esse
período, para aqueles que estudam comunicação, imprensa, literatura,
artes, cultura sob o ponto de vista da contestação aos padrões esté-
ticos e morais que prevaleciam naqueles anos, a importância deste
acervo é inquestionável.
Falando sobre o papel da imprensa para o entendimento dos
contextos históricos, Alberto Dines diz que “jornalismo e historiografia
são primos – quando se pratica um deles com proficiência, chega-se
inevitavelmente ao outro”.30 Podemos, portanto, afirmar, sem medo
de errar, que onde a imprensa não existe, o historiador se sente des-
falcado de uma de suas principais fontes.

Livro Macos na gaveta.indb 103 17/8/2009 14:22:01


104
Imprensa Alternativa – Comentários sobre o acervo

Notas
1 PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura. Relatório do
RIOARTE. Rio de Janeiro, 1984. p. 2.
2 Ibid.
3 PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura. Relatório do
RIOARTE. Rio de Janeiro, 1984. p. 1.
4 Ibid., p. 3.
5 MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira – 1968-1978. São Paulo:
Global, 1980. p. 136.
6 CALLADO, Antonio em MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira
– 1968–1978. São Paulo: Global, 1980.
7 “O Circo das Eleições”. O Trabalho, São Paulo, no 10, p. 1, 26 set./ 10 out. 1978.
8 “O Partido dos Trabalhadores avança”. O Trabalhador, São Paulo, no 3, p. 1, 10-31
out. 1979.
9 “Hora de censurar a censura”. Crítica, Rio de Janeiro, ano 1, no 47, p. 1, 30 jun./ 6 jul.
1975.
10 “O ritual da aflição nos cárceres políticos”. De Fato, Belo Horizonte, ano 3, no 21, p.
17, mar. 1978.
11 “Cada vez mais difícil ter uma ‘Opinião’ em ‘Movimento’”. Lampião, Porto Alegre,
ano 1, no 1, p. 1, 10 mar. 1976.
12 BARROS, Patrícia Marcondes de. Stultíferas Navis: a imprensa alternativa como
antídoto ao regime militar. In: SEMANA DA HISTÓRIA – O GOLPE DE 1964 E OS
DILEMAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO, 22., 2004, Assis. Anais Eletrônicos... Di-
sponível em: <www.assis.unesp.br/semanadehistoria>. p. 3.
13 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alterna-
tiva. São Paulo: EDUSP, 2003. p. 36.
14 AZEDO em KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários nos tempos da imp-
rensa alternativa. São Paulo: EDUSP, 2003.
15 AZEVEDO, Reinaldo. O fim da Primeira Leitura, um recomeço. Observatório da Imp-
rensa. Entrevista a Luis Antônio Magalhães, em 20/6/2006. Disponível em: <http://
observatorio.ultimosegundo.ig.br/artigos.asp?cod=386IMQ003>.
16 PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura. Relatório do
RIOARTE. Rio de Janeiro, 1993. p. 2.
17 MACIEL, Luis Carlos. Nossa consciência: jornalismo contra cultural – 1970–1972.
Rio de Janeiro: Eldorado, 1973.
18 PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura. Relatório do
RIOARTE. Rio de Janeiro, 1993. p. 3.
19 PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura. Relatório do
RIOARTE. Rio de Janeiro, 1992. p. 4.
20 PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura. Relatório do
RIOARTE. Rio de Janeiro, 1992. p. 3.
21 COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Rosa dos Ventos, 1997. p. 45.
22 “O curso do movimento feminino pela anistia”. Brasil Mulher, Londrina, ano 1, no 0,
p. 1, 9 out. 1975.
23 “Você mulher”. Brasil Mulher, Londrina, ano 1, no 2, p. 8-9, 1975.

Livro Macos na gaveta.indb 104 17/8/2009 14:22:01


105
24 “A procura da igualdade perdida”. Brasil Mulher, Londrina, ano 3, no 12, p. 15,

Sandra Alves Horta


maio 1978.
25 “Eleições”. Nós Mulheres, São Paulo, no 3, p. 8-9, nov./ dez. 1976.
26 “Censurado: homossexuais casam na umbanda”. Entender, São Paulo, no 5, p. 4, 24
dez. 1977.
27 “Lontras, piranhas, ratos, veados”. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 1, no 0,
edição experimental, p. 11, abr. 1978.
28 “Justiça arquiva inquérito contra Lampião”. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro,
ano 2, no 18, p. 1, nov. 1979.
29 “Ameríndia contra o imperialismo”. Porantim, Manaus, ano 2, no 17, p. 1, abr. 1980.
30 DINES, Alberto. O papel do jornal: uma releitura. São Paulo: Summus, 1986. p. 19.

Referências

AZEVEDO, Reinaldo. O fim da Primeira Leitura, um recomeço. Ob-


servatório da Imprensa. Entrevista a Luis Antônio Magalhães, em
20/06/2006. Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.br/
artigos.asp?cod=386IMQ003>.
BARROS, Patrícia Marcondes de. Stultíferas Navis: a imprensa alter-
nativa como antídoto ao regime militar. In: SEMANA DA HISTÓRIA – O
GOLPE DE 1964 E OS DILEMAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO, 22.,
2004, Assis. Anais Eletrônicos... Disponível em: <www.assis.unesp.br/
semanadehistoria>.
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no
Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1997.
DINES, Alberto. O papel do jornal: uma releitura. São Paulo: Summus,
1986.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários nos tempos da im-
prensa alternativa. São Paulo: EDUSP, 2003.
MACIEL, Luis Carlos. Nossa consciência: jornalismo contra cultural -
1970-1972. Rio de Janeiro: Eldorado, 1973.
MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira – 1968-1978.
São Paulo: Global, 1980.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura.
Relatório do RIOARTE. Rio de Janeiro, 1984.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura.
Relatório do RIOARTE. Rio de Janeiro, 1993.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Cultura.
Relatório do RIOARTE. Rio de Janeiro, 1992.

Livro Macos na gaveta.indb 105 17/8/2009 14:22:01


Livro Macos na gaveta.indb 106 17/8/2009 14:22:01
VENCER E CONVENCER:

A REVISTA GENTE NA ANTESSALA


DO GOLPE DE ESTADO DE 1976

Norberto Osvaldo Ferreras

Vencereis, mas não convencereis.


Vencereis porque tendes a força bruta,
mas não convencereis,
porque convencer significa persuadir.
(Miguel de Unamuno) 1

Neste artigo analisaremos a construção da aceitação do Golpe de


Estado que abriu as portas para a ditadura que governou a Argentina entre
24 de março de 1976 e 10 de dezembro de 1983, focando a nossa análise num
meio de comunicação específico: a revista Gente y la Actualidad. Ao analisar
este veículo tentaremos compreender de que forma um Golpe de Estado é
apresentado como inevitável perante a sociedade.
Mesmo antes de ser lançada a primeira proclama, o Golpe Militar que
abriria o caminho ao Proceso de Reorganización Nacional contava com uma
importante base de sustentação e com uma boa aceitação inicial, e que se
baseou na vontade do povo argentino de acabar com o ciclo da violência e
da desordem. Nesse momento, não eram vistas as terríveis possibilidades
abertas pelo Golpe; este era visto como um novo período de exceção que
restauraria a ordem social e política levando tudo a um estado de normalida-
de, como já tinha acontecido no passado. O constante estado de exceção em
que a sociedade argentina tinha vivido desde a década de 1930 nos ajuda a
compreender, mas não a explicar, o estado de inação da sociedade argentina
no momento do Golpe Militar. Mas o consenso do Golpe, fosse este o Golpe
restaurador de velho cunho ou um Golpe de novo tipo, à semelhança do que
acontecia no Chile, contou com o apoio de vastos setores da sociedade. Para
dar embasamento a este apoio, apresentaram-se alguns agentes e atores,
entre eles, a imprensa.

Livro Macos na gaveta.indb 107 17/8/2009 14:22:01


108
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

Na construção social da aceitação do Golpe Militar, a imprensa


argentina teve um papel fundamental. Poucos setores da sociedade
contribuíram tanto para que os militares continuassem no poder quan-
to a imprensa. A contribuição dada pela grande imprensa ao Golpe
Militar deve ser procurada na construção de imagens e estereótipos
dos adversários em disputa. Os grupos guerrilheiros foram apresen-
tados como “subversivos apátridas”, “terroristas”, “agentes do caos”,
entre outros, assim como os dirigentes sindicais que pressionavam o
governo eram os “sindicalistas mafiosos”, “gremialistas gananciosos
ou sanguessugas do país”. Isabel Perón era descrita como a “presidente
incapaz” ou “débil” para encarar os conflitos existentes ou também
como manipulada por José López Rega, Ministro de Bem-Estar Social,
e com a saída deste do país a pressão sobre ela, só podia aumentar,
junto com os juízos de valor. Em contraposição, os militares eram
“honestos e patriotas” preocupados com o destino da nação.
Consideremos a imprensa, nesse caso, como os jornalistas e as
empresas. A imprensa, que é o setor da sociedade que reúne a maior
quantidade de informações por vias informais, e que tem por objeti-
vo justamente o acúmulo e a transmissão da informação, não podia
negar a participação e o conhecimento do que acontecia. Ao mesmo
tempo, os leitores de determinados periódicos e jornais, carregam a
sua parcela de responsabilidade ao fazer eco da linha editorial des-
ses veículos. É claro que não estamos nos referindo aos meios que
estavam nas mãos do Estado, como os canais de TV ou de rádio, e
também não nos referimos àqueles opúsculos sustentados para dar
credibilidade ao regime. Pelo contrário, partiremos justamente daque-
les periódicos que veicularam seu apoio ao regime e que contaram
com um importante público. Meios que poderíamos considerar como
parte da indústria do entretenimento ou editorial argentina, que já
existiam e que continuariam a existir posteriormente. É este o caso
de um periódico semanal que aparecia todas as sextas-feiras, Gente
y la Actualidad, mais conhecido como Gente.
Gente era uma campeã de vendas no período prévio à ditadura
e continuaria a sê-lo durante a mesma. Esta revista tinha como pú-
blico alvo as classes médias, e aparecia com o formato clássico de
um magazine. Neste periódico eram apresentadas entrevistas com
pessoas do meio artístico, intelectual, esportivo, científico. Nela
também podíamos encontrar reportagens sobre centros turísticos
ou lugares exóticos, filmes e artes em geral, “descobertas” científicas
e suas aplicações e uma ou outra matéria sobre política e as denomi-
nadas “atualidades”, que tratavam de eventos ou situações sem um
caráter específico. A maior parte das matérias tinha um caráter geral

Livro Macos na gaveta.indb 108 17/8/2009 14:22:01


109

Norberto Osvaldo Ferreras


e tendiam à simplificação das análises. O uso de imagens tinha como
objetivo uma melhor compreensão dos textos, assim como reforçar
sua linha geral. As reportagens, mesmo aquelas que consideraríamos
de maior transcendência, estavam limitadas a umas poucas páginas,
entendendo que o leitor precisava de uma apresentação sumária dos
fatos porque não disporia de muito tempo, conhecimento ou paciência
para aprofundar a matéria.
Gente apresentava, em um espaço cercado de publicidade e das
beldades do momento, os fatos e os protagonistas da semana, para
que seu público leitor estivesse informado com uma leitura simples
e rápida. Ao mesmo tempo, brindava-os com uma opinião pronta e
articulada sobre o que estava acontecendo. A informação e a opinião
não tinham o mesmo peso para esta revista; de fato a opinião era mais
importante que a informação, que sempre era apresentada de forma
incompleta e parcializada, sem aprofundar com muitos detalhes ou
explicações como tinham sido obtidas essas informações, sempre
credenciando a maior veracidade aos organismos oficiais. Eviden-
temente Gente tinha seu posicionamento político e não era ocultado
pela sua linha editorial, pelo contrário, era explícito: o oficialismo.
Dificilmente este periódico se colocava numa situação de crítica aos
poderes estabelecidos e qualquer ameaça à ordem constituída era
considerada como uma ameaça à Nação. O público da revista foi-se
colocando numa situação de oposição e de crítica em relação à si-
tuação excepcional que atravessou a Argentina nos últimos meses
do governo de Isabel Perón.
Dessa forma, Gente nos permitirá falar sobre a aceitação inicial
da ditadura na Argentina. Mesmo não sendo uma revista política, os
editoriais e a forma como os conteúdos não politizados eram apresen-
tados, como nas entrevistas com pessoas que não eram conhecidas
especificamente pela sua militância, ou a leitura de determinados
acontecimentos que não faziam parte da esfera do político, como espe-
táculos ou eventos esportivos, levavam à construção de um discurso
conservador e contrário à participação popular na política.
Mas, nesta construção de uma interpretação da realidade social
e política, de amigos e inimigos da Nação, a Editora Atlántida, que
publicava Gente, tomou uma posição clara e definida a favor do golpe,
depois de manter durante um tempo uma posição de alinhamento
com o Governo de Isabel Perón. Foi ao longo do ano de 1975 que os
campos foram-se delineando com clareza e Atlántida tomou a posição
do Golpe, junto com a grande imprensa da Argentina. O peronismo de
Isabel podia ser um mal menor, se comparado ao ERP, ao peronismo
de Montoneros ou ao dos Sindicalistas. Mas, quando Isabelita se colo-

Livro Macos na gaveta.indb 109 17/8/2009 14:22:01


110
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

cou nas mãos dos Sindicalistas e ante a possibilidade de acabar com o


“Mal”, representado pela guerrilha, a opção não podia ser outra. Esta
opção sintonizava de gente, um antiperonismo visceral, que só se alterou
quando Juan Domingo Perón se apresentou como oferenda de paz para
uma sociedade dilacerada pelos conflitos internos.
Uma vez tomada esta nova posição, e, principalmente, uma vez
consumado o Golpe, a Editora Atlántida passou a orientar suas revistas
com o intuito de dar-lhe sustentação. Tanto a publicação destinada
ao público infantil Billiken,2 quanto a esportiva El Gráfico, a setorial
Campo Moderno & Chacra (mais conhecida com La Chacra) destinada
às questões agrárias, a feminina Para Tí e, logicamente, o semanário
político Somos passaram a dar apoio ao Golpe e legitimidade aos
novos governantes. E nessa nova estratégia editorial, Gente foi um
dos instrumentos mais importantes na construção da aceitação e do
consenso inicial do Processo de Reorganização Nacional.
Duas questões devem ser esclarecidas: a primeira é que nossa
análise privilegia a revista Gente, porém não devemos desconhecer
que a grande imprensa optou por acompanhar o regime desde o pri-
meiro momento, e ainda antes, pelo que Clarín, La Nación, La Razón,
La Opinión e La Prensa, entre os principais jornais, o apoiaram sem
restrições. E esse apoio foi aprofundado, com a venda às empresas
responsáveis por esses jornais de parte do pacote acionário da com-
panhia de capital misto Papel Prensa S. A., fornecedora de papel para
os jornais. Esse pacote estava em mãos dos herdeiros do falecido
financista David Graiver, acusado de ser o banqueiro de Montoneros.3
Dessa forma, foi cada vez mais difícil questionar os próprios sócios
em tamanho investimento.
É interessante mencionar que o apoio dado por esses jornais não
lhes garantiu nenhum tipo de impunidade, porque foram obrigados
a posicionar-se dentro da disputa no interior do setor militar, o que
se por um lado lhes dava cobertura, por outro os deixava expostos
às represálias dos grupos rivais. Assim, o jornal La Opinión sofreu
a desaparição do seu vice-diretor, Eduardo Sajón, um amigo íntimo
do ex-presidente de facto Gral Alejandro Lanusse, e a expulsão da
Argentina, prévio sequestro, tortura e retirada da cidadania, do seu
diretor, Jacobo Timmerman. E também La Razón foi fechado em 1978
por informar sobre as desavenças no interior das Forças Armadas.4
A segunda questão é que o Processo de Reorganização Nacional
elaborou uma regulamentação para o funcionamento da imprensa,
assim como para qualquer tipo de programação de TV, apresentação
teatral, cinema etc. As normas para a imprensa foram assumidas
sem questionamentos por quase todos os médios de comunicação.

Livro Macos na gaveta.indb 110 17/8/2009 14:22:01


111

Norberto Osvaldo Ferreras


É evidente que existiam vários esquemas de controle desses veículos,
e que foram poucos jornalistas que denunciaram esta regulamentação,
e os que se arriscaram a fazê-lo, pagaram com a prisão ou o exílio,
como foi o caso de Rodolfo Terragno, que publicou em Cuestionario, o
periódico que dirigia, a regulamentação para a imprensa e três meses
depois teve de exilar-se.5
Mas, se Atlántida não se viu beneficiada diretamente com o ne-
gócio do papel nem se sentiu atingida pelas normas regulamentares,
não foi menos solícita na hora de trabalhar em favor da ordem. Como
dizíamos, o semanário Gente teve um papel fundamental na construção
estratégica das novas lideranças, e, principalmente, na do “moderado”
general Jorge Rafael Videla, o homem que seria a rosto visível do novo
projeto político. Sem aprofundar as diferenças existentes no interior
das Forças Armadas, nem mesmo no interior do próprio Exército,6 a
equipe editorial da revista escolheu um grupo, aquele que defendia o
liberalismo econômico. Situou-se, sem reparos, ao lado do general Vi-
dela e do seu Ministro de Economia, José Alfredo Martínez de Hoz.
O melhor momento para compreender a forma como a revista
Gente operou na formação de um novo consenso, e, ao mesmo tempo,
o momento mais difícil para esse periódico, foi o ano de 1975, já que
teve de encarar a difícil tarefa de passar de oposição construtiva do
peronismo oficial e aliado do peronismo de direita para o que estava
por vir. Certamente o peronismo ajudou, e muito, a fazer esta transição,
mas de qualquer forma a passagem foi feita sem explicações. Optar
pelo apoio aos militares que lutavam contra a “subversão”, posicionar-
se contra a corrupção e a politicagem, foram os melhores argumentos,
já que não precisavam de explicações posteriores à mudança de lado.
Por isso é que entendemos que analisar o ano de 1975 nos permitirá
compreender a empatia lograda pela expectativa de Golpe na socie-
dade e como essa expectativa era apresentada por um dos veículos
mais populares do momento: a revista Gente.
O ano de 1975 começou com Gente traçando uma agenda, literal-
mente, para Isabel Perón, esperando que ela atendesse as demandas
da sociedade/Gente.7 Ao colocar os “temas de interesse comum a toda
a sociedade”, na realidade colocava os temas de interesse comum aos
setores representados pela revista. Na primeira página dessa agenda
por eles elaborada o primeiro tema era o do “descanso”, e recomenda-
va muito descanso. O segundo tema era a “economia” que tinha como
desdobramentos o equilíbrio nos preços e a rentabilidade empresária. A
terceira questão estava diretamente relacionada à anterior, os debates
salariais, seguidos do absenteísmo operário. Todos os outros temas, com
exceção do tema Universidade (Atenção, Março e Abril. Muito importante),

Livro Macos na gaveta.indb 111 17/8/2009 14:22:01


112
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

estavam relacionados à política internacional, ao Congresso da Nação


e às eleições que aconteceriam na província de Misiones. A política
estava num segundo plano e a economia era central, diferenciando,
assim, aquilo que era do interesse dos cidadãos comuns e aquilo
que interessava ao governo e aos políticos. Certamente as análises
dos colunistas políticos, tal como Mariano Grondona8 ou Bernardo
Neustadt, colaboraram neste sentido. As análises destes jornalistas
eram reforçadas pela apresentação dos prejuízos sofridos diante de
um péssimo serviço e pelas consultas aos consumidores, e colocar-
se no lugar deles tinha o efeito de comprovação do que estava sendo
dito pelos colunistas. As estatísticas ou os números praticamente não
existiam nas suas análises. O recurso era o do casuísmo ou simples-
mente o do indivíduo ante a máquina.9
Outra forma de criar consenso em relação à política a ser seguida
na luta “antissubversiva” foi a recordação de todos os militares mortos
em atentados ou em confrontos; ou as reportagens sobre os soldados
que combatiam a guerrilha e o aporte social que realizavam na província
de Tucumán, o principal centro de operações antiguerrilheiras.10
Embora a revista optasse por um clima de descontentamento,
até junho de 1975 os membros do peronismo – fossem estes membros
do governo ou do sindicalismo – foram entrevistados e tratados com
consideração, condescendência e até com bom humor antes de serem
questionados.11 Esta parece ter sido uma caraterística editorial: nunca
confrontar com o entrevistado, ou seja, sempre entrevistar as pessoas
afins. Ser leniente com o poder, mesmo que fosse o peronismo, estava
justificado porque questionar os poderes constituídos implicava em
justificar, obliquamente, os grupos antissistema. O que podia ser feito
era apresentar críticas a estilos e práticas, a comportamentos pesso-
ais, mas nunca à pessoa enquanto investida de uma autoridade.
A reviravolta no tratamento do governo de Isabel Perón come-
çou em junho, quando a crise econômica tornou-se irreversível. Os
membros do radicalismo e dos partidos do centro-direita, que até
esse momento recebiam um bom tratamento,12 passaram a ser apre-
sentados como parte de uma oposição madura e leal, parceiros ideais
para resolver a crise econômica e institucional.13 A agenda traçada
pela revista em janeiro, passou a ser cobrada com veemência. A falta
de ações na direção apontada pelos colunistas foi vista como falta de
determinação e capacidade da presidente, que não conseguia controlar
as disputas no interior do peronismo.
Uma interessante reportagem apresenta a virada de Gente em
relação ao governo, intitulada “Crónica de una semana agitada”. Nela, as
únicas questões tratadas são as relacionadas à economia e às exigências

Livro Macos na gaveta.indb 112 17/8/2009 14:22:01


113

Norberto Osvaldo Ferreras


do sindicalismo oficial. Aparecem apenas duas referências ao acionar
insurgente: a liberação de Juan e Jorge Born, irmãos e proprietários da
empresa Bunge & Born, e o ataque ao Regimento I “Patricios”, instalado
num dos bairros nobres da cidade de Buenos Aires.14 Essa reportagem
seria acompanhada de outras num crescendo,15 até a queda da mão
direita de Isabel: José López Rega,16 que paulatinamente passou a ser
responsabilizado pelo caos econômico e moral do governo, embora
López Rega fosse um dos mais convictos militantes contra os grupos
insurgentes e contra qualquer manifestação da esquerda.17
Nesse momento a aposta para a saída da crise política foi o
presidente provisório Ítalo Argentino Luder, que estava no cargo pelo
afastamento de Isabel para tratar um problema de saúde. A expectativa
era a de que ele seria capaz de recolocar a agenda do início do ano e
de dar uma solução definitiva à luta revolucionária. Para isso, em sua
apresentação procurou a empatia do público leitor.18
A partir desse momento, as ações da guerrilha passaram a
ganhar destaque, sendo noticiadas e comentadas. Os editoriais que
as acompanhavam passaram a apresentar um clima de guerra gene-
ralizado. Para além do foco de Tucumán, agora a guerra estava no
coração do país, em Buenos Aires. Os insurgentes apareciam como
grupos anônimos, reforçando o clima de terror e de niilismo. Sem
mencionar os objetivos e as reivindicações do acionar de Montoneros
ou do ERP, as ações passaram a ser meros atos de terror, aos quais
qualquer um estava exposto. A partir dali cada ação insurgente teria
uma reportagem fotográfica (seguindo o conhecido axioma de que uma
imagem vale mais do que mil palavras) e uma editorial.19 Na edição
do dia 31 de julho de 1975, o editorial “Para ganhar esta guerra” que
inaugurou a série dirá:

[...]. PRIMEIRO QUE NADA TEMOS QUE ASSUMIR A NOSSA REA-


LIDADE, ESTAMOS EM GUERRA, E NINGUÉM NOS SALVARÁ SÓ
NÓS MESMOS. DEUS JÁ FEZ DEMAIS PELOS ARGENTINOS. [...]
O alvo desta guerra não é o governo, nem uma classe social,
nem os militares, nem a Universidade, nem os empresários,
nem os dirigentes operários, nem as empresas estrangeiras,
mas O PAÍS NO SEU CONJUNTO.
É por isso que esta é uma GUERRA IDEOLÓGICA, PORQUE
QUEREM IMPOR A TODOS NÓS UM OUTRO DESTINO. [...].
A agressão integral deve ter como resposta uma consciência so-
lidária que situe o conflito no vasto esquema da luta pelo poder
mundial e a nós e ao nosso país, num dos tantos campos de bata-
lha nos quais a dignidade do homem debate-se com pesar. [...].

Livro Macos na gaveta.indb 113 17/8/2009 14:22:01


114
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

Às vezes a violência desaparece até nos dar a idéia de que isto


mesmo que escrevemos é um exagero. [...].
Se o fizermos rápido [refere-se a reconstruir o “Poder Nacional”,
se nos voltarmos aos nossos arsenais PATRIÓTICOS, MORAIS
E INTELIGENTES sem perdas de tempo e carregamos as nos-
sas armas e corremos às nossas posições com PRONTIDÃO E
EM SILÊNCIO, como diziam as velhas ordenanças, poderemos
reverter a cor dos dias que se aproximam e fazê-los celestes e
brancos para nós e negros e infaustos para os nossos inimigos,
que são os inimigos da Pátria.20

E junto ao “terrorismo” o outro grande inimigo passou a ser a


“ineficiência” e a “corrupção”, incluídos neste grupo os setores do go-
verno vinculados ao sindicalismo peronista, que continuava a esticar
a corda do aumento de salários. Assim, numa série de reportagens
isoladas a respeito da realidade argentina, começou a ser instalado
um clima catastrofista sobre o abuso dos sindicatos e sobre a neces-
sidade de um governo isento, acima de qualquer tipo de parcialidade,
ou seja, um governo dos empresários.21 Numa simpática reportagem,
os formadores de opinião do periódico, os já mencionados Neustadt
e Grondona, foram fotografados andando pela rua e comentando a
realidade, como se fossem pessoas comuns e preocupadas, enquanto
questionavam fortemente o governo. Mas, como eram dos simples
cidadãos andando pela rua, não era necessário que fossem muito
precisos.22 Nesse mesmo número, o economista liberal Álvaro Also-
garay reiterava os mesmos argumentos.23 A tática utilizada continuava
a ser a saturação e a crítica dos argumentos dos homens do governo
construída pelos membros dos think tanks do establishment, sem
possibilidade de réplica.24
Na medida em que o ano avançava, o engajamento da revista
Gente na luta contra os revolucionários foi cada vez maior, passando
a ser a divulgadora oficial das informações dos Serviços de Inteli-
gência. Numa reportagem com um grande volume de informação,
esclarecia que selecionava os casos segundo o impacto na opinião
pública. Assim foram apresentados certos acontecimentos com fotos
e pequenos escritos. Na primeira página da matéria, apareciam duas
fotos: na primeira um policial ferido num ataque surpresa em Córdo-
ba; na segunda, um carrinho de neném, com o seguinte texto: “[...] os
sediciosos utilizaram estes artefactos e carrinhos para ocultar as suas
armas e poder aproximar-se do Comando da Polícia sem despertar
suspeitas”. Que ser humano normal poderia proteger-se da polícia com
um carrinho de neném? Todo policial estaria justificado se atirasse

Livro Macos na gaveta.indb 114 17/8/2009 14:22:02


115

Norberto Osvaldo Ferreras


num carrinho de neném? O resto da reportagem continuava, com
tiroteios confusos, policiais atacados e um enorme destaque para
um oficial “sequestrado” e morto, até chegar a dois misteriosos casos
que mereceram um esclarecimento: a morte da família Pujadas e a de
Marcos Osatinsky, ambos em Córdoba.
A família Pujadas Badell integrada pelos pais, um irmão e uma
cunhada de Mariano Pujadas, membro de Montoneros, assassinado
na tentativa de fuga da prisão de Trelew, em 22 de agosto de 1972, foi
aprisionada em sua casa por um grupo de mascarados que os levou
para uma cova, os metralhou até a morte, e, depois, explodiu os cor-
pos com granadas. Como esclarecimento adicional a revista indicava
que Mariano Pujadas era membro da organização declarada ilegal”.
Algo menos misterioso aconteceu com Marcos Osatinsky, liderança
das Forças Armadas Revolucionárias (FAR), que se tinham unido a
Montoneros. No traslado entre a delegacia e a prisão, os membros da
“organização autoproscrita” tentaram libertá-lo e Osatinsky morreu
no confronto. O curioso foi que o corpo foi roubado pelos próprios
Montoneros quando ia ser entregue aos pais de Osatinsky. Anos de-
pois, no testemunho à CONADEP de Teresa Celia Meschiati (Legajo
Conadep no 4279), ficamos sabendo que ambos os casos foram de
responsabilidade do grupo parapolicial Comando Libertadores de
América.25 Mas, a quem interessavam esses detalhes nesse momento?
Era melhor um véu sinistro na forma de agir dos revolucionários ou
era uma ameaça? Por via das dúvidas, aqueles que se vinculavam aos
“terroristas”, deveriam ter cuidado.26
Assim, a desconfiança no governo caía irreversivelmente e a pos-
sibilidade do Golpe crescia. E o semanário percebeu a necessidade de
construir uma nova liderança. Nesse caso, Jorge Rafael Videla aparecia
como o melhor dos candidatos possíveis, e a revista se esforçou em
fazer de um indivíduo sem carisma e sem graça, uma figura simpática.
No número destinado a apresentar à sociedade a máxima autoridade
militar, foi montada uma capa em fundo branco – diferente dos fundos
pretos ou vermelhos com os quais se anunciavam novos confrontos
ou uma crise política ou econômica – com a foto de Videla, em roupas
militares. A seu lado, a figura do momento, o simpático desenho ani-
mado a Pantera cor-de-rosa. Entre os jornalistas, Videla era conhecido
dessa forma. Nesse mesmo número, no qual é detalhada uma ação
do ERP derrubando um avião com gendarmes, Videla é apresentado
como um militar cem por cento profissional, síntese da unidade do
Exército: “Alguém diz, entre os amigos do novo comandante general
do Exército, que se o general Jorge Rafael Videla tivesse algum dia que
estabelecer um programa de governo ‘o seu estatuto seria a pastoral

Livro Macos na gaveta.indb 115 17/8/2009 14:22:02


116
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

de Monsenhor Tortolo’”. Para que deveria precisar de um programa


de governo, algum dia? E continuava dizendo que ele era conhecido
como um “moralista” e que a tal pastoral entendia que o problema da
Argentina era um problema moral. As outras virtudes mencionadas
eram: católico fervoroso, homem de outro tempo, honesto, capaz de
grandes renúncias (como tornar-se ditador?), militar e não político,
conservador no pessoal e no político etc. Que outra pessoa poderia
estar nas antípodas de Isabel? Que pessoa poderia ser mais adequada
para dirigir o país? Para um problema moral, nada melhor, que um
moralista.27
Nesse mesmo momento, Isabel se afastava novamente da presi-
dência para tratar seus problemas de “saúde”, acompanhada das espo-
sas dos comandantes das Forças Armadas. Luder reassumiu o governo e
Gente novamente apontou para a falta de alguém no comando. Enquanto
isso o Exército continuava a proporcionar mártires à sua causa, e Gente
voltava a estabelecer a agenda do presidente, e o primeiro ponto era
“Subversão. Falar com Balbín”.28 Nesse contexto, o clima social ficava
cada vez mais rarefeito, a ponto de o típico Dia da Primavera/Dia do Es-
tudante acabar em pancadaria e luta com a polícia no centro de Buenos
Aires, e de uma nova favela crescer em plena capital.29
Como Gente entendia que a situação era grave e terminal, come-
çou a mostrar os limites da legalidade apontando a possibilidade de
uma saída institucional: o adiantamento das eleições. Para isso, fez uma
pesquisa, na qual os cidadãos, e entre eles algumas celebridades, davam
o seu parecer, como se esta realmente fosse uma pesquisa de opinião,
e não uma pesquisa sobre a própria opinião da revista. Trezentos dos
1.700 consultados tiveram as fotos publicadas, com o seu voto a favor
ou contra o adiantamento das eleições e as suas opções pelos partidos
políticos existentes. O triunfo correspondeu ao radicalismo com 36%
das intenções de voto e 32% para os peronistas.30 Esta era uma de tantas
estratégias para efetivar o adiantamento das eleições, de Isabel para
reter a presidência e dos golpistas para acelerar a saída da presidente.31
E tudo permeado pelas últimas tentativas dos grupos revolucionários
de obter material bélico para o Golpe que se aproximava.32
O interessante dos últimos meses do ano, nesta reviravolta, foi
que Gente passou a explorar um ponto tradicional dos governos pero-
nistas: a corrupção. De alguma forma esse foi o golpe de misericórdia
sobre Isabel. Já se mencionava que ela usava cheques da chamada
“Cruzada da solidariedade”. Na ofensiva final, Gente atacou em todas
as frentes.33 A isso temos de somar que nos últimos dias de 1975, o
ERP atuou em vários setores, tentando elevar a moral dos seus com-
batentes e demonstrar que estava em pé e combatendo.34

Livro Macos na gaveta.indb 116 17/8/2009 14:22:02


117

Norberto Osvaldo Ferreras


O Golpe chegou inexorável e implacável em 24 de março de 1976,
depois de fechar o cerco aos democratas e aos revolucionários por
igual. Videla assumiu a presidência depois de um Golpe incruento na
sua execução, mas terrivelmente sanguinário nas suas consequências
imediatas e mediatas. A revista Gente y la Actualidad apoiou os novos
comandantes da Argentina e não poupou elogios e afagos aos novos
governantes. A sociedade argentina contribuiu em grande medida
para esta nova realidade. É só pensar que Gente era o magazine mais
vendido do momento.
Como dizíamos anteriormente, as forças que combatiam pela
revolução social, nacional e popular ou socialista estavam sem forças e
pensavam estratégias de integração dos seus esforços, principalmente
na nova fase posterior ao Golpe. Ninguém fez nada para impedi-lo, nem
os partidos políticos, nem os revolucionários, nem a própria Isabel. A
revista Gente, muito menos; aliás, no período posterior se colocou na
vanguarda da defesa da Nação, da liberdade econômica, da moral e dos
bons costumes, o que deveria ser tratado numa outra oportunidade.
Ninguém fez mais pelo Golpe e ninguém faria mais pela sua consolida-
ção que esta publicação. O seu papel foi decisivo na apresentação das
novas figuras e no tratamento das mesmas: o insulso Videla, numa capa
da revista, comparado à Pantera cor-de-rosa, sugando a popularidade
e a ingenuidade da personagem; os editoriais dialogados; a linguagem
do homem comum, as matérias com desenhos coloridos sobre os efei-
tos das medidas econômicas e as suas reportagens fotográficas para
sensibilizar o leitor; os militares e políticos golpistas apresentados
como pensadores preocupados. E tudo matizado, por reportagens
com modelos, atrizes de comédia, matérias sobre a quantidade de
pessoas nas praias de Mar del Plata e os divertimentos possíveis, num
clima de caos que deveria voltar à normalidade, em que a vida normal
pudesse acontecer sem aborrecimentos.
Quando nos deparamos com um jornal é preciso formular a
seguinte pergunta: de que forma conteúdo e público se relacionam. O
público demanda uma determinada leitura da realidade ou o periódico
contrabandeia um conteúdo para um público incauto? Entendo que
ninguém é absolutamente ingênuo, e que, por algum motivo, o qual
deve ser buscado na cultura política argentina e na eterna luta entre
peronistas e antiperonistas, para pensar na forma em que alguns
conteúdos podem ter sido contrabandeados, mas que uma forte dis-
posição ao conservadorismo e à ordem.
Se falamos em tempo passado da revista Gente, não é por
desconhecer seu tempo presente. Continua a ser uma das revistas
mais vendidas nas bancas de jornais da Argentina e continua a ser

Livro Macos na gaveta.indb 117 17/8/2009 14:22:02


118
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

uma campeã de vendas, sempre editada pela mesma editora e sem-


pre com a mesma linha editorial. Tirando um breve lapso em que o
Processo naufragava e que outras publicações tomaram seu lugar,
Gente voltou a ser protagonista na década de 1990. O secretário de
redação daquele momento, Samuel “Chiche” Gelblum, tem programas
de grande audiência sobre casos bizarros ou talk shows, mas não faz
nenhuma referência a ter sido responsável pela publicação. Nem Gente
nem Gelblum jamais fizeram uma autocrítica, nem questionaram sua
postura desses anos. Os jornalistas desaparecidos foram quase uma
centena,35 e ao menos dois trabalharam na revista Gente.36
Fecharemos o artigo com a forma em que a própria revista
recordava os 30 anos do Golpe de 1976. A primeira página, e antes de
dedicar 40 das 170 páginas desse número ao casamento de uma atriz
de segundo porte e pouca audiência, era iniciada com uma matéria
titulada “Recordar o passado para construir sabiamente o presente”,
que abordava os seguintes conceitos, que a revista tomava como pró-
prios e aos que não precisava agregar mais comentários:

[...] En estos días los argentinos volvemos nuestra mirada al


pasado para recordar el quiebre de nuestra vida democrática
del 24 de marzo de 1976. Este hecho acontecido en un contexto
de gran fragilidad institucional, y consentido por parte de la
dirigencia de aquellos momentos, tuvo graves consecuencias
que marcaron negativamente la vida y la convivencia de
nuestro pueblo. ¿Qué sentido tiene traer hoy a la memoria
tan doloroso aniversario? ¿Con que espíritu lo haremos?
Estos hechos del pasado, que nos hablan de enormes faltas
contra la vida y la dignidad humana, y del desprecio para la
ley y las instituciones, son una ocasión propicia para que los
argentinos nos arrepintamos una vez más de nuestros errores
y para asimilar, en la construcción del presente, el aprendizaje
que nos brinda nuestra historia. [...] Debe ser este espíritu de
reconciliación el que nos anime en el presente, alejándonos
tanto de la impunidad, que debilita el valor de la justicia,
como de rencores y resentimientos que puedan dividirnos y
enfrentarnos. Una fructífera mirada al pasado debe ayudar-
nos a todos a crecer en nuestra dignidad de hijos de Dios y
a comprometernos responsablemente en la construcción de
una patria de hermanos. [...] Que nuestra fe en Dios, que es
padre de todos, nos fortalezca e ilumine en este camino que
estamos llamados a recorrer todos juntos.

Livro Macos na gaveta.indb 118 17/8/2009 14:22:02


119

Norberto Osvaldo Ferreras


(Declaración difundida al término de la 143a de la Comisión
Permanente del Episcopado Argentino. Buenos Aires, 15 de
marzo de 2006) 37

Notas
1 No dia 12 de outubro de 1936 o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, na frente de
um auditório povoado de partidários do golpista Francisco Franco, sintetizou, na
frase do epígrafe, o dilema que acompanha todos os governos autoritários.
2 O papel do semanário infantil Billiken durante a Ditadura foi analisado por GUITEL-
MAN, Paula. La infancia en dictadura: modernidad conservadurismo en el Mundo
de Billiken. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.
3 Sobre o affaire Graiver, ver GASPARINI, Juan. El crimen de Graiver. Buenos Aires:
Ed. B, 1990.
Para o caso de Papel Prensa ver DUHALDE, Eduardo Luis. El estado terrorista ar-
gentino: quince años después una mirada crítica. Buenos Aires: EUDEBA, 1999. p.
92-93, que cita Horacio Verbitsky.
4 Sobre o caso Timmerman: TIMMERMAN, Jacobo. Prisionero sin nombre, celda sin
número. Buenos Aires: El Cid, 1982; para o fechamento de La Razón ver NOVARO,
Marcos; PALERMO, Vicente. Historia Argentina 9: la dictadura militar 1976/1983: del
golpe de estado a la restauración democrática. Buenos Aires: Paidós, 2003. p.145.
5 ANGUITA, Eduardo; CAPARRÓS, Martín. La voluntad: una historia de la militancia
revolucionaria en la Argentina 1973–1976. Buenos Aires: Norma, 1998. t. 3, p. 37–38.
6 Para maiores detalhes, uma aprofundada apresentação das desavenças no interior
das Forças Armadas, ver NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. Historia Argentina
9: la dictadura militar 1976/1983: del golpe de estado a la restauración democráti-
ca. Buenos Aires: Paidós, 2003. p. 80–106.
7 “La agenda de la Señora Presidente de Enero a Abri”l. Gente, no 494, p. 9–10, 9 jan.
1975.
8 São as seguintes as análises políticas de GRONDONA, Mariano. “Lo que dejó el ’74:
lo que promete el ’75”. Gente, no 495, p. 14–16, 16 jan. 1975; “¿Por qué no hablamos
del presente?”. Gente, no 502, p. 8–9, 8 mar. 1975; “Datos para interpretar los co-
micios en Misiones”. Gente, n. 507, p. 13, 10 abr. 1975; “Diez conclusiones sobre el
comicio misionero”. Gente, no 508, p. 11, 17 abr. 1975; “¿Qué significa la visita de
Kissinger?”. Gente, p. 12–13, no 509, 17 abr. 1975; “1o de Mayo: Memoria, Balance”.
Gente, no 511, p. 4–5, 8 maio 1975.
9 “Argentina pregunta: ¿Por qué andan mal los teléfonos?”. Gente, no 497, p. 8–9,
30 jan. 1975; “Las amas de casa preguntan, Alloatti responde”. Gente, no 497, p.
96–99, 30 jan. 1975 e “Carta abierta a las amas de casa as três”. Gente, no 497, p.
98–99, 30 jan. 1975; Alloatti era o Secretário de Comércio de Isabel Perón. “Pre-
guntas y respuestas para entender el hoy argentino. “El tema $$$$$$”. Gente, n.
516, p. 4–6, 12 jun. 1975. “La loca, loca carrera de los precios”. Gente, n. 521, p.12-
14, 17 jul. 1975 e “Diálogo entre un obrero y un patrón”. Gente, no 521, p. 16–18, 17
jul. 1975; “El mundo, hoy, visto con ojos jóvenes”. Gente, no 522, p. 36–39, 24 jul.
1975; “Julio de 1975, así sienten el hoy los argentinos”. Gente, no 522, p. 70–81, 24
jul. 1975; a extensão desta segunda reportagem se justifica pelo fato de que são
entrevistadas pessoas em diferentes comércios: cabeleireiro, mercearia, farmá-
cia, ônibus e taxi.
10 “Coronel Camilo Arturo Gay”. Gente, no 496, p. 323/1/1975; “Tucumán: la lucha con-
tra la guerrilla”. Gente, no 500, p. 8–11, 20 fev. 1975; “Informe sobre lo que está
pasando en Tucumán”. Gente, no 502, p. 96–97, 8 mar. 1975.

Livro Macos na gaveta.indb 119 17/8/2009 14:22:02


120
11 “Leímos los diarios con Casildo Herreras”. Gente, no 497, p.14–16, 30 jan. 1975; “Lea
Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

esto, Señor pesimista”. Gente, no 501, p.10–12, 27 fev. 1975; “Leímos los diarios con
Taccone”. Gente, no 501, p. 14–15, 27 fev. 1975; “El encuento de dos presidentes”. Gente,
no 509, p. 4–5, 24 abr. 1975; “En el subte con el nuevo Ministro de Economía”. Gente, no
515, p. 4–7, 5 jun. 1975; “Con Calabró de la mañana a la noche”. Gente, no 518, p.108–109,
26 jun. 1975. Casildo Herreras era o Secretário-geral da CGT e Juan José Taccone era
um ex-dirigente sindical e presidente da companhia de eletricidade de Buen. s Aires
(SEGBA). Os dois presidentes mencionados eram Isabel e Pinochet, a quem chamou
de “irmão”. O ministro no metrô era Celestino Rodrigo, responsável por uma desvalo-
rização da moeda argentina sem precedentes e Victório Calabró era o governador da
província de Buenos Aires e um dos mais ferrenhos anticomunistas.
12 “El Senador De la Rúa y la realidad nacional. De vacaciones, un político pasa revis-
ta al país”. Gente, no 497, p.72–75, 10 jun. 1975; “Las cosas que Balbín dijo el lunes
a la Noche”. Gente, no 506, p. 86-89, 3 abr. 1975; “Con Balbín, hablando de su vida y
del país”. Gente, no 509, p. 6–11, 24 abr. 1975.
13 “¿Y qué dice Manrique de las cosas que pasan?”. Gente, no 521, p. 76–77, 17 jul.
1975. Manrique tinha sido membro do primeiro governo ditatorial posterior a
Perón e também do último governo prévio ao seu retorno, ao tempo que liderava
um partido que poderia ser considerado de direita institucional.
14 “Crónica de una semana agitada”. Gente, no 518, p. 4–7, 26 jun. 1975. Juan e Jorge
Born eram os principais diretivos de Bunge & Born.
15 “El momento que vive el país”. Gente, n. 519, p. 4-7, 26 jul. 1975; “La crisis e una
familia como la suya, como la nuestra”. Gente, no 520, p. 4–13, 10 jul. 1975. Nesta re-
portagem sobre a crise, aparece pela primeira vez, no momento da sua designação
como Comandante em Chefe do Estado Maior, o General Videla. O crescendo está
relacionado com a mega desvalorização da moeda encomendada por Celestino
Rodrigo, o austero ministro que andava de metrô.
16 A queda de López Rega, assessor privilegiado de Perón e de Isabel, ministro pleni-
potenciário de Isabel, embora numa posição aparentemente menor, foi produto da
crítica da cúpula do sindicalismo à pífia gestão do Ministro da Economia, o homem
do metrô, Celestino Rodrigo, que tinha sido colocado no cargo por sugestão de
López Rega. López Rega, criador das 3A, ocupava um ministério que parecia uma
brincadeira orwelliana: o Ministério de Bem-Estar Social.
17 “José López Rega, el hombre clave de la crisis: crónica fotográfica de su actuación”.
Gente, no 521, p. 4–9, 17 jul. 1975; “Los libros de López Rega”. Gente, no 524, p.
76–79, 7 ago. 1975 (livros esotéricos, escritos por ele); “¿Qué hace López Rega en
España?”. Gente, no 527, p. 8–9, 28 ago. 1975; “Cómo un periodista busca a López
Rega y jamás lo encuentra”. Gente, no 529, p. 12–13, 11 set. 1975.
18 “Cuando la segunda autoridad del país usaba pantalón corto”. Gente, no 521, p.
10–11, 17 jul. 1975.
19 “Usted jamás la vió. Esto es una bomba”. Gente, no 524, p. 6–9, 7 ago. 1975.
20 “La noche que el país tuvo miedo”. Gente, no 523, p. 122–127, 31 jul. 1975, sendo que
na página 124 está o editorial apresentado: “Para ganar esta guerra”.
21 “Eufóricos de socialización matamos la sociedad”; “Terrorismo económico, ¿pero
de quién?” e “Para saber dónde vamos, tenemos que saber que queremos”. Gente,
no 524, p. 3–57, ago. 1975; “Para saber dónde vamos, tenemos que saber que quer-
emos (2a parte)”. Gente, no 525, p. 4–5, 14 ago. 1975 e “Qué se puede hacer hoy con
100.000 pesos”. Gente, no 525, p. 11–12, 14 ago. 1975.
22 “Neustadt y Grondona ponen las cartas sobre la mesa”. Gente, no 525, p. 14–17, 14
ago. 1975.
23 “Alsogaray habla de este ‘Invierno’”. Gente, no 525, p. 68–69, 14 ago. 1975.
24 “Con Cafiero a 10.000 metros de altura”. Gente, no 526, p. 68–71, 21 ago. 1975; “Al-
sogaray versus Cafiero”. Gente, no 527, p.72–73, 28 ago. 1975; “Así piensa Guido di
Tella: ‘Argentina no tiene un cáncer, solo una pierna fracturada’”. Gente, no 529, p.
4–6, 11 set. 197; “Habla el Ministro Robledo”. Gente, no 531, p. 80–81, 25 set. 1975.

Livro Macos na gaveta.indb 120 17/8/2009 14:22:02


121
25 “15 días de Terror”. Gente, no 527, p. 4–7, 28 ago. 197. O testemunho de Teresa Celia

Norberto Osvaldo Ferreras


Meschiati disponível em: <http://www.nuncamas.org/formularios/formular.htm>.
26 “Las bombas son ciegas y asesinas”. Gente, no 529, p. 8–9, 11 set. 1975.
27 “Quién es y qué piensa el General Videla”. Gente, no 528, p. 14–15, 4 set. 1975.
28 “Licencia presidencial. Asume Luder”. Gente, no 530, p. 4–7, 18 set. 1975e “Hablan
los padres del subteniente asesinado”. Gente, no 530, p. 8–10, 18 set. 1975; “Agenda
de Luder para los próximos días”. Gente, no 531, p. 4–5, 25 set. 1975 e “Prohibido
pasar: la presidente descansa” (com imagens do Exército ocupando a pequena
cidade de Ascochinga). Gente, no 531, p. 6–7, 25 set. 1975.
29 “La Primavera, así no”. Gente, no 531, p. 15–16, 25 set. 1975 e “En pleno 1975, crece
una nueva Villa Miseria”. Gente, no 531, p. 50–53, 25 set. 1975.
30 “Qué es y cómo se hizo esta encuesta”. Gente, no 533, p. 4–11, 9 out. 1975.
31 “Lo que todos quieren saber sobre Victorio Calabro”. Gente, no 533, p.76–77, 9 out.
1975; “El 17 de Octubre por los cuatro costados”. Gente, n. 535, p. 4-7, 23 out. 1975;
“El retono de la presidente, el discurso, la plaza, el futuro”. Gente, no 535, 23 out.
1975; “Reflexiones después del 17”. Gente, no 535, p. 8–9, 23 out. 1975 e “Con Balbín
el 17 de octubre, hablando del país”. Gente, no 535, p. 76–7923 out. 1975; “Alcides
López Aufranc habla en ‘Tiempo Nuevo’ el lunes a la noche”. Gente, no 541, p. 3, 4
nov. 1975.
32 “Cuesta creerlo, costará olvidarlo”. Gente, n. 533, p. 78–87, 9 out. 1975, sobre a
tentativa de tomada de um regimento em Formosa e o sequestro de um avião que
daria apoio à ação. “Así se vive mientras se enfrenta a la muerte”. Gente, no 536, p.
4–13, 30 out. 1975, sobre o único foco da guerrilha rural e no único lugar onde o
Exército atuava legalmente.
33 “Habla el fiscal que investiga a López Rega”. Gente, n. 538, p. 104-105, 13 nov. 1975;
“El caso de los Cheques de la cruzada”. Gente, n. 541, p. 16-17, 4 dez. 1975; “Ra-
diografia de la Empresa Rojas”. Gente, n. 541, p. 110-111, 4 dez. 1975.
34 “El asesinato del General Cáceres y su mujer, Tucumán; un año después, habla la
viuda del Capitán Viola”. Gente, no 542, p. 4–7, 92–95, 11 dez. 1975.
35 Para a Conadep foram 83, para o Centro de Estudios Legales y Sociales (Cels) 98. O
número varia pela profissão, âmbito de trabalho ou filiação sindical.
36 Enrique Walker, secretário de redação desaparecido no dia 17/7/1976 e Marcelo
Gelman, desaparecido no dia 24/8/1976. Fonte: <http://www.desaparecidos.org/
arg/conadep/nuncamas/372.html>.
37 “Recordar el pasado para construir sabiamente el presente”. Gente, no 2.122, p. 3,
21 mar. 2006.

Referências

ANGUITA, Eduardo; CAPARRÓS, Martín. La voluntad: una historia de


la militancia revolucionaria en la Argentina 1973-1976. t. 3. Buenos
Aires: Norma, 1998.

DUHALDE, Eduardo Luis. El estado terrorista argentino: quince años


después una mirada crítica. Buenos Aires: EUDEBA, 1999.

GASPARINI, Juan. El crimen de Graiver. Buenos Aires: Ed. B, 1990.

GUITELMAN, Paula. La infancia en dictadura: modernidad conservadu-


rismo en el Mundo de Billiken. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.

Livro Macos na gaveta.indb 121 17/8/2009 14:22:02


122

NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. Historia Argentina 9: la dictadura


Vencer e convencer: a Revista Gente na antessala do Golpe de Estado de 1976

militar 1976/1983: del golpe de estado a la restauración democrática.


Buenos Aires: Paidós, 2003.

TIMMERMAN, Jacobo. Prisionero sin nombre, celda sin número. Buenos


Aires: El Cid, 1982.

Livro Macos na gaveta.indb 122 17/8/2009 14:22:02


SOLICITANDO AO PUEBLO ARGENTINO:
ANTAGONISMO DE CLASSES E CONTENDAS ENTRE

TRABALHADORES E EMPRESÁRIOS NOS COMUNICADOS

PUBLICADOS NA IMPRENSA

Marina Maria de Lira Rocha

Na realidade, não são as palavras que


pronunciamos ou escutamos,
mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más,
importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc.
A palavra está sempre carregada de um conteúdo
ou de um sentido ideológico ou vivencial.
É assim que compreendemos as palavras
e somente reagimos àquelas que despertam em nós
ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.
(Bakhtin)1

Desde a década de 1980, os focos de análise dos discursos enfatizam


o caráter não passivo dos receptores e seus campos de efeitos possíveis,
considerando os sujeitos criativos e capazes de construírem sentidos
amplos em relação ao discurso que pretende provocar hegemonia. Esta
posição, contudo, pode alocar a significação do discurso fora da sociedade
e descartar a importância de sua produção e posicionamento ideológico
diante das possibilidades de interpretação.2 Enfatizar apenas a significação
é não verificar que produção de discurso e elaboração de significados estão
sempre inter-relacionadas, logo, para compreender a enunciação é preciso
estar orientado por ela e fazer-se entender significa falar a uma comunidade
linguística com ideologias similares.3
Os jornais, ao promoverem seus discursos, expõem suas ideologias
diferindo enquanto instrumentos de construção hegemônica – materiais
privados ligados a uma classe dominante econômica ou politicamente –
ou contra-hegemônica – imprensa alternativa. Neste sentido, os meios de
comunicação têm a capacidade de abarcar funções políticas, legitimando

Livro Macos na gaveta.indb 123 17/8/2009 14:22:02


124
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

ou resistindo ao poder; econômicas, estimulando o consumo a partir


de anúncios e objetivando o lucro tal como uma empresa comercial;
culturais, reproduzindo e criando hábitos e gostos; e jurídico-institu-
cionais, legitimando regras éticas e morais.4 Este trabalho, no entan-
to, considera que a posição econômica do jornal determina outras
funções. Quando se trata da grande imprensa – empresas ligadas à
classe economicamente dominante de uma região que pode ser ou
não também politicamente dominante – os representantes dessa mídia
não possuem autonomia quanto ao contexto social e econômico e,
portanto, selecionam da sua ideologia as informações com objetivos
econômicos, políticos e culturais.5
Mesmo com significados similares, a variação do discurso da
imprensa, que é parte de uma enunciação própria de um grupo social,
em uma situação de competição e repetição de discurso, estabelece
um “contrato de leitura” com leitores que os compram. Se o contrato é
estabelecido no momento da produção, durante a leitura é consumado
pelo leitor, que se reconhece no periódico que lê.6 Logo, consumir
um discurso de uma imprensa é ter certa cumplicidade em relação a
ela, gerada pela participação da produção social e pelas maneiras de
interpretar aquilo que é produzido. As divisões de classe e as relações
entre elas, então, tornam-se mais claras no ato de consumir e produzir
dimensões simbólicas e estéticas diferentes.7
A imprensa, como uma agência privada, elabora, pois, discursos
a partir de sua posição social e compromete-se com um público leitor,
que também faz parte de um grupo social, por meio de um contrato de
leitura imaginado, e se propõe propagadora dessa ideologia. A grande
imprensa, componente de uma classe economicamente dominante,
portanto, publica discursos para a classe à qual pertence e é enten-
dida por ela; ora por outra consumida, esses discursos não seriam
compreendidos da mesma forma.
Na década de 1970, esta imprensa publica anúncios de distintas
organizações sociais, sindicatos, partidos políticos, pessoas físicas
etc., com a finalidade de veicular suas opiniões e propostas. As so-
licitadas como espaços de propaganda foram pouco estudadas pela
historiografia argentina, sendo abordadas apenas como fontes parciais
em estudos mais amplos em relação aos grupos que as publicavam.
Quando se pensa na compra de propagandas, não havia uma
evidência de censura ou do controle editorial a que eram submetidas
as reportagens e, logo, verifica-se nesses espaços uma possibilidade
de expansão de discursos para um público irrestrito àqueles publi-
cadores. Assim, o jornal podia “fazer-se” contraditoriamente quando
permitia a presença de uma reportagem com uma visão sobre a reali-

Livro Macos na gaveta.indb 124 17/8/2009 14:22:02


125

Marina Maria de Lira Rocha


dade enquanto publicava uma solicitada sobre o mesmo assunto, com
perspectivas ideológicas diferentes, trazendo ao seu público outro
discurso que pretenderia suprimir.
Recuperando Bakhtin e sua ideia de que palavras e signos reme-
tem-se ao campo da atividade ideológica e que tomam significações
distintas dependendo do grupo social que os expõem e os escutam,
podemos pensar que a determinação da publicação neste caso é feita
pela organização anunciante, ponderando sua ideologia ao interesse do
público que irá atingir. Neste sentido, os “anunciantes” ora publicam
em jornais que nada têm em comum, atingindo um público diferente do
habitual, mesmo correndo o risco de não ser devidamente entendido,
ora em jornais cujo público é formado pelo mesmo grupo econômico-
social, fazendo com que a mensagem ideológica por trás das palavras
seja compreendida como disposta no comunicado.
Em contextos de crise e disputas pelo poder das palavras,
agregam-se variadas interpretações e ressignificações, ocasionando
uma espécie de confusão linguística dentro dos discursos: ninguém se
entende a não ser os pares. Na década de 1970, a sociedade argentina
entrou em crise econômica e política, e a esperança de solução havia
sido depositada no retorno do general Perón ao poder, de acordo com
as experiências da década de 1940, principalmente fundamentadas
nos ismos anti-imperiais, nacionais e de justiça social. Entretanto, a
“esperança” morre em 1974, deixando como “herdeira política” sua
esposa Isabel Perón.
Na proposta do governo de Isabel para acabar com a crise havia
cinco objetivos básicos: suprimir a subversão, por meio de grupos
paramilitares e Forças Armadas; eliminar a esquerda na educação
geral e na Universidade de Buenos Aires; acabar com as políticas
antiempresariais, invocando a disciplina industrial para atrair o
investimento dos capitais estrangeiro e privado; submeter o sindica-
lismo ao governo; e obter o apoio político das Forças Armadas.8 Tais
objetivos estavam interligados com um projeto maior de eliminação
da dissidência daquilo que o “peronismo oficial” propunha, passando
a combater seus opositores com prisões e censuras.
O plano de repressão acompanhou um plano econômico funda-
mentado no liberalismo e levado à frente pelo Ministro da Economia, em
junho de 1975, Celestino Rodrigo, que era secretário de segurança social
no Ministério de Bem-Estar Social dirigido por López Rega (figura principal
da repressão clandestina no país). Segundo o ministério, devido ao fato
de a violência no país afastar investidores e especuladores, justificando
a repressão, necessitava-se da interferência nos balanços salariais, no
acordo paritário entre empresários e trabalhadores, na contenção do

Livro Macos na gaveta.indb 125 17/8/2009 14:22:03


126
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

deficit fiscal, no reajuste de preços e tarifas, e na ampliação do merca-


do, expandindo o imperialismo estrangeiro no país e transformando
o “Estado pequeno para engrandecer a Nação”.9
Estas políticas, contudo, não foram aceitas pelos trabalhadores
que se manifestaram pela expulsão de Rodrigo do Ministério, López
Rega do poder e do país e, para finalizar, a política, que durou pouco
mais de um mês naquele ano de 1975.10 A presidente, perdendo tal
aliança, compactuou com o sindicalismo burocrático e instituiu como
Ministro da Economia, Antonio Cafiero, dirigente histórico do peronis-
mo, posicionando a Confederación General de los Trabajadores (CGT)
como centro das decisões políticas e deslocando delas a Confedera-
ción General de los Empresarios (CGE) e as empresas.
No princípio de 1976, o governo de Isabel tentou aliar-se nova-
mente ao empresariado e aos militares, colocando Emílio Mondelli,
presidente do Banco Central da República Argentina, à frente do
Ministério da Economia a fim de retomar a política liberal. Apesar de
as manifestações dos trabalhadores não terem sido suficientes para
contê-la, os empresários já não estavam interessados no pacto com o
governo, pois a situação golpista lhes parecia mais favorável. Com
o desagrado dos trabalhadores e as paralisações empresariais, a
situação política do país naufragou e o governo perdeu todas as suas
bases de sustentação.
O peronismo havia perdido, pois, a legitimidade de seu governo,
colocando em risco a legalidade do sistema. A escolha e o apoio da
maioria dos indivíduos a um único projeto, o militar, apesar de não
consensual em sua totalidade, mostra-nos uma confiança de que a
repetição da experiência do país de intervenções autoritárias para
resolução de crises seria a alternativa para mais uma delas, já que o
sonho do retorno de Perón e de um passado imaginado “perfeito”, por
muitos que viviam aquele espaço, não foi real.11
O período entre junho de 1975 e março de 1976 parece ter sido
o melhor momento para publicar direcionamentos sobre um futu-
ro melhor e deslegitimar o presente, aumentando a quantidade de
comunicados na imprensa. Depois de março de 1976, as solicitadas
diminuem drasticamente devido à repressão, já que assiná-las era
expor sua situação política, algo bastante perigoso quando se está
em um projeto aprofundado de aniquilamento do inimigo. As disputas
ideológicas abertas dentro do jornal, pois, estavam findadas.
Para estabelecer fontes com diferentes discursos,12 foram anali-
sados La Nación – publicação de Buenos Aires, fundada por Bartolomé
Mitre,13 em 1870, e ainda pertencente à família (o que nos mostra a re-
lação entre a criação do Estado e da imprensa e a permanência de uma

Livro Macos na gaveta.indb 126 17/8/2009 14:22:03


127

Marina Maria de Lira Rocha


imprensa familiar oligárquica), que tem a característica de possuir
uma continuidade de discurso e público ligados ao grupo dominante
economicamente do país, antiperonista e liberal; Clarín – distribuído
na capital e na Grande Buenos Aires – criado por Roberto Noble, em
1945, e assumido por sua mulher Ernestina Herrera de Noble,14 com
o falecimento do marido em 1969, jornal de posicionamento oscilante
que diversificava seus leitores (lembro aqui Bourdieu que afirma que
quanto mais um jornal se despolitiza mais amplia seu público alvo);
e La Opinión, fundado em 1971 pelo jornalista Jacobo Timerman, cuja
circulação durou apenas seis anos, já que foi fechado pelo governo
militar por praticar “periodismo terrorista”, circulando em Buenos
Aires, La Plata e Córdoba, voltado para uma classe média, principal-
mente os jovens universitários, marcando uma profunda identificação
com as preocupações desta classe, principalmente com os direitos
humanos.15
Desses jornais foram recolhidas 448 solicitadas, das quais 89 se
encontravam em La Nación, 103 no Clarín e 259 em La Opinión.16 Elas
foram agrupadas de acordo com seus publicadores: empresas e orga-
nizações empresariais; sindicatos e organizações de trabalhadores;
pessoas físicas (aqueles que não figuravam em movimentos especí-
ficos); partidos políticos e movimentos sociais (independentemente
da corrente ideológica); governos federal, provincial e municipal.
Constatou-se que a maioria das solicitadas publicadas no primeiro
periódico havia sido redigida por empresas ou grêmios empresariais,
enquanto as publicadas no segundo, por vários publicadores. Já no
terceiro jornal, além de possuir uma maior quantidade de fontes assi-
nadas por organizações trabalhistas, aparecem com mais frequência
solicitadas a respeito de militantes desaparecidos e denúncias de
violência política, assim como censura midiática.
Esta quantificação pode demonstrar a busca das organizações
para atingir um público voltado aos seus interesses. Todavia, o mais
interessante é que, apesar da diferenciação entre os discursos dos
jornais, verifica-se a presença de todas as organizações conflitantes
da sociedade dentro de cada jornal analisado, inclusive, em alguns
casos, se repetindo em todos eles. Demonstra-se, portanto, uma ten-
tativa de se estabelecer contato com todas as vertentes sociais.
Tratarei aqui especificamente de abarcar as solicitadas dos
trabalhadores e do empresariado, a fim de perceber que discursos
possuíam na época e a maneira como expunham tal ideologia para
uma sociedade que pretendiam convencer. Designo como grupo de
trabalhadores aqueles associados a algum sindicato – combativos ou
oficializados – enquanto empresários, aqueles associados a entidades

Livro Macos na gaveta.indb 127 17/8/2009 14:22:03


128
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

empresariais ou empresas. Não que ignore que os movimentos partidá-


rios ou sociais eram compostos também de trabalhadores ou empre-
sários, entretanto, considero que a ideologia proferida é representada
pelo grupo social que a expõe. Portanto, aqueles que se associaram
a determinado grupo se designam como parte dele, representando
o todo social, ou seja, os sindicalizados dizem-se trabalhadores, os
partidários dizem-se partido, os grêmios empresariais, empresários,
e assim por diante.
Nos meses de junho e julho de 1975, os trabalhadores ar-
gentinos, cujas experiências eram marcadas pelo peronismo de
1940-1950, pelo marxismo da década de 1960 e pelas origens anarco-
sindicalistas,17 publicavam seus discursos dirigidos ao público em
geral e aos trabalhadores em particular, defendendo vantagens
econômicas, propostas pelo justicialismo, acompanhadas da retórica
de soberania nacional, nacionalismo econômico e anti-imperialismo.
Todavia, nem sempre associavam-nas à harmonia de classe, tal qual
o peronismo oficial pretendia.

La clase trabajadora argentina ha dado pruebas de su madu-


rez, de su paciencia y de su tolerancia durante largos años
de necesidades insatisfechas y abusos incalificables, esta
en consecuencia libre de toda acusación de avaricia cuando
reclama para si una mayor participación en el producto del
trabajo común, como es indiscutible el derecho que ella tiene
a la defensa de sus intereses profesionales y a las aspiraciones
de una vida mejor.18

Percebe-se que a Juventude Sindical Peronista defendia a venda


da força de trabalho como necessidade para estabelecer o sustento
digno e uma vida melhor. Concomitantemente, entretanto, coloca uma
situação histórica de inferioridade da classe quanto à participação
no produto de seu trabalho comum, fazendo determinada crítica ao
capitalismo que se apropria de sua força de trabalho e do que foi produ-
zido.19 Neste sentido, a JSP critica a materialidade da atividade produ-
tiva do trabalhador, apropriada de maneira injusta pelos capitalistas,
verificando contradições econômicas do sistema na distribuição da
riqueza. A crítica ao capitalismo neste discurso não ultrapassa o limite
econômico, logo, pode ser entendida tanto como uma representação
do peronismo oficial – que propunha um capitalismo social – quanto
como uma fundamentação marxista (tese defendida essencialmente
pelos empresários).

Livro Macos na gaveta.indb 128 17/8/2009 14:22:03


129

Marina Maria de Lira Rocha


A CGT demonstrou ser consciente de que os possuidores da
verdade eram os trabalhadores, mas estes, ao não lutarem pelo
justicialismo, dariam ao inimigo (imperialista) a chance de vencer.
Defendia, logo, a guerra contra a “mentira”, contra o “demoliberalis-
mo capitalista” (representado por Rodrigo e López Rega) que tentava
buscar soluções falsas e não duradouras para a crise. Para ela, a
verdadeira solução seria lutar pacificamente pelos reais interesses
da pátria, representados em Isabel Perón.20

[...] porque como trabajadores y peronistas tenemos la obli-


gación de contribuir activa y protagónicamente a la Unidad
Nacional, por encima de sectores y banderías, en el camino
de la revolución en Paz, para grandeza de nuestra patria y
felicidad de todos sus habitantes. Por ello, en un acto de se-
rena reflexión, luego del agotamiento de todas las etapas del
dialogo, que estamos siempre dispuestos a reanudar en bien
de los objetivos nacionales y el bien estar del pueblo, el Comité
Central Confederal de la CGT resuelve: […] REALIZAR UN CESE
DE ACTIVIDADES POR EL TERMINO DE 48 HORAS […].21

Figuras determinantes da liberação nacional, os trabalhadores


se opunham aos empresários, antinacionais e antiperonistas, não mais
pelo diálogo – apesar de terem tentado estabelecer esta negociação e
de quererem recuperá-lo – mas pela greve com objetivo de respaldar o
movimento. Esta manifestação, contudo, tinha também a finalidade de
repudiar o poder que tentava desnacionalizar a economia e interrom-
per a liberação da pátria e do povo. Segundo Daniel James, as greves
haviam ganhado outra simbolização além da solidariedade entre
trabalhadores: o enfrentamento com o empresariado e o Estado.22 E
parece ser este o sentido da greve no discurso dos trabalhadores da
CGT, que resolveram enfrentar o Estado conformado por López Rega
e Celestino Rodrigo, apoiados pelos empresários liberais.

Defendemos su política en materia de constitución de viviendas, de


reivindicación de los jubilados, del acceso de la mujer en todos los
órdenes de la vida social, de instrumentación del plan nacional de
salud, de surgimiento de un hombre nuevo a través del deporte, de
la afirmación de la soberanía nacional en política internacional, de
proyección económica mediante la creación de nuevas industrias,
de contención de los intereses supranacionales, de afirmación
de la soberanía del pueblo a través del ejercicio del voto libre y
secreto, del sostenimiento de la unidad continental.23

Livro Macos na gaveta.indb 129 17/8/2009 14:22:03


130
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

Como se vê pelo comunicado acima publicado pela Asociación


de Empleados del Estado, a percepção do peronismo pelos sindica-
tos denominados combativos desde o Cordobazo e conhecidos pelas
manifestações e greves,24 que, com algumas exceções, eram tradi-
cionalmente peronistas, era distinta da dos sindicatos burocráticos
e do peronismo oficial, pois, mesmo não renunciando ao peronismo,
valorizavam a soberania do povo e da América Latina.
O Sindicato de Mecánicos e Afines del Transporte Automotor
(SMATA), que, na década de 1970, era conformado por trabalhadores
da IKA-Renault, Transax, Thompson Ramco, Grandes Motores Diesel
de Fiat e outras empresas menores, núcleo decisivo do movimento
dos trabalhadores em Córdoba, declarou greves e ocupou fábricas
na região afirmando:

Se equivocan quienes pretenden encontrarle a esa lucha el


sentido de una confrontación política en falso de intereses
sectoriales o de grupo. Jamás hemos arriado las banderas del
Justicialismo que constituyen nuestra razón de ser y que, hoy
simbolizan nuestra profesión de fe y de lealtad, incaudicable a
la memoria del Teniente General Perón […].25

Neste sentido, o SMATA não defende, pois, uma confrontação


política com o peronismo, mas uma de cunho econômico que reatava
laços com o setor empresarial liberal e prejudicava os trabalhadores.
Logo, não é o peronismo colocado como alvo das manifestações (até
porque Perón é invocado a todo o momento como figura essencial da
luta pela justiça social) mas sim a forma liberal do capitalismo. Além
disso, a ausência de Isabel no poder poderia aumentar a possibilidade
de ausência do movimento trabalhista nas decisões políticas do país,
uma vez que poderia ser mais reprimido do que já era, caso setores
de um empresariado liberal ingressassem no poder.

El gobierno popular garantiza a los trabajadores no sólo nues-


tra participación activa en las grandes decisiones políticas,
sino que nos garantiza también la posibilidad de continuar
construyendo una nueva sociedad, basada en los principios
cristianos y humanistas de nuestra tradición.26

Logo, os trabalhadores propagavam o peronismo e a construção


de uma sociedade com princípios cristãos e humanos, promulgando
lutas por melhorias de condições de vida para a construção de uma
nova sociedade mais justa. Afirmando não haverem participado do

Livro Macos na gaveta.indb 130 17/8/2009 14:22:03


131

Marina Maria de Lira Rocha


poder no país durante muito tempo, reafirmam a necessidade de ob-
terem garantias de participação no governo popular.
A maior campanha contrária ao governo peronista, entretanto,
foi a dos sindicatos de empresários e empresas privadas que enfati-
zavam a destruição da produção industrial, mesmo com a política
liberal do governo, fundamentando-se nas medidas favoráveis aos
trabalhadores e aos sindicatos e na falta de repressão aos movimentos
grevistas. O que é compreensível quando recordamos o golpe como
projeto além da repressão, objetivando a implementação de uma po-
lítica econômica liberal e antiperonista.27

El Centro Industrial de General Pacheco una de las más impor-


tantes fuentes de trabajo y producción del país, se encuentra
paralizada totalmente por la actitud de un pequeño grupo que,
invocando la falta de acuerdo respecto al convenio de trabajo
y asambleas sin recaudos legales ni comunicación al sindicato,
producción deficiente, indisciplina y amenazas, ha culminado
ahora haciendo que el personal hiciera abandono de sus tareas
desde jueves 10 de junio. […] expuso su caso a las autoridades
nacionales las que promovieron una reunión conjunta con la
empresa y el SMATA, después de la cual el Ministerio del Trabajo
ha calificado a esta huelga de ilegal.28

Duas observações devem ser feitas: primeiro a percepção de que


greve era legalizada ou não pelo Ministério do Trabalho desde a Lei de
Associações Profissionais, como forma de limitar tais manifestações.
Depois, a situação de embate entre os trabalhadores e os empresários
com o Rodrigazo, que levava os primeiros a paralisarem a produção
buscando melhorias de vida, mas também o espaço naquela política
peronista.
Com o retorno dos sindicatos como principais aliados da presi-
dente nas decisões do país, imagina-se (corretamente) que suas solici-
tadas passaram a defender mais enfaticamente o governo de Isabel e
suas políticas. Neste sentido, quando todos os outros setores sociais
– Empresários, Forças Armadas, Imprensa, Movimentos Guerrilheiros,
Partidos de Esquerda ou de Direita – mostravam-se contrários a Isabel
Perón e pediam sua renúncia (quase anunciada e muito pronunciada
depois do período de licença que tomou em outubro e novembro de
1975) os sindicatos apoiavam-na como fiel representante de Perón e
do peronismo na Argentina, atacando os “inimigos”.

Livro Macos na gaveta.indb 131 17/8/2009 14:22:03


132
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

En estos días ha arreciado la campaña – que no dudamos en


denunciar como orquestada – que desde ámbitos aparente-
mente distintos, busca empecinadamente deteriorar la imagen
del Gobierno del Pueblo y quebrar el proceso de instituciona-
lización del país, difícil pero edificante luego de largos años
de desaciertos y irrepresentatividad. El total desprecio por la
soberanía popular, libremente expresada en las urnas y el irres-
pectuoso y repudiable ensañamiento con la figura de la señora
Presidente de la República, María Estela Martinez de Perón,
constituyen los signos distintivos de esta maniobra, que podrá
contar con lo respaldo de los diarios de la oligarquía, voceros de
pretensiones imperialistas de derecha o de izquierda, pero que
choca con el alto grado de consciencia cívica y el patriotismo
de las grandes mayorías nacionales.29

Interessante observar que a CGT, criticando setores com


pretensões imperialistas, publica sua crítica naquele instrumento
que diz “respaldar” a manobra golpista, atingindo então um público que
acredita estar sendo influenciado pela ideologia do jornal Clarín. Além
disso, podemos dizer que se o Clarín possui uma ideologia diversa
da CGT, por fazer parte da “oligarquia”, qual seria o motivo, senão
econômico, que explicaria sua atitude tão controversa?
A posição de reafirmar o governo, todavia, pôde também desle-
gitimá-lo, uma vez que as posições defendidas, principalmente quando
se tratava da questão da subversão e do apoio às Forças Armadas,
propagavam o repúdio por assassinatos de generais e convocavam a
sociedade a lutar contra uma subversão “apátrida” que era inimiga do
povo (em certos momentos, poderia ser entendida como os próprios
trabalhadores).30

Hay, como decimos, una confabulación destinada a destruir


al país y vencer al sentimiento argentino. Venga de derecha
o de izquierda, el fin es el mismo. Los personeros del caos
buscan por todos los medios que no podamos trabajar en
tranquilidad en esta tremenda tarea que nos espera. Por eso
golpean nuestras fuerzas armadas, a las que saben pilares
de la reafirmación institucional. […] El pueblo aplastará a los
pigmeos que quieren destruirlos.31

Devemos lembrar que os empresários tinham como uma de suas


principais críticas públicas a aliança entre governo e sindicalismo que,
em vez de apoiar os empresários (não que os empresários quisessem

Livro Macos na gaveta.indb 132 17/8/2009 14:22:03


133

Marina Maria de Lira Rocha


um governo peronista), entregava o país ao marxismo. Assim, o mesmo
marxismo que levava os jovens à subversão era capaz de conduzi-los
ao fracasso econômico e à falta de um futuro.

La propiedad, la iniciativa y la empresa privadas están sucum-


biendo. La injusticia, la arbitrariedad, el desorden y la corrupción
triunfan. Se crean impuestos y contribuciones en beneficios
de los sectores sindicales. […] Es decir se entrega el país al
sindicalismo continuando su camino hacia al marxismo. Señor
Empresario: Todo lo que Ud. defiende esta siendo destruido a
través de una acción perfectamente orquestada que aumentará
en la medida en que Ud. siga esperando que otro lo defienda.32

A Asemblea Permanente de Entidades Gremiales Empresarias,


nesta publicação, comparou os benefícios cedidos aos sindicatos com
a entrega do país ao sindicalismo, logo, aos trabalhadores e, seguindo
o raciocínio, ao marxismo. Se o empresariado continuasse a esperar
uma solução desse governo, todas as propostas e feitos da indústria
argentina seriam destruídos pela ação orquestrada da “esquerda”
infiltrada no país. Assim, legitima a intervenção.
Outro caso bastante presente nos jornais foi o da Hilandería
Olmos S.A., produtora de fibra sintética, hoje Manufactura de Fibras
Sinteticas S.A.(Mafissa), que teve sua intervenção decretada pela
Secretaria de Estado e Comércio, em 21 de outubro de 1975, sob a
alegação de não estar cumprindo sua função social pois havia deci-
dido paralisar suas atividades, mesmo sendo responsável por 80%
da produção. Contrária à decisão, a empresa lançou solicitadas nos
três periódicos, entre os meses de outubro de 1975 e janeiro de 1976,
mostrando que as causas da paralisação foram as ameaças sofridas
por seus diretores, inclusive com o assassinato de Emilio Hassalik,
autoridade técnica da empresa. Enquanto os trabalhadores apoiavam
a intervenção, a Hilandería pronunciou a todos a subversão dos traba-
lhadores e a ameaça à propriedade privada e à liberdade individual,
com discursos sobre o medo do futuro.

¿Es este el destino reservado a la Empresa Privada en Argenti-


na? Adviertan el poder publico, las instituciones de la nación y
todos sus habitantes que no se juega aquí solamente el destino
de un empresa, está en juego la supervivencia de toda una forma
de vida que se extinguirá en forma irremediable en la medida
en que impunemente se pueda subvertir el orden, violentar la
justicia y atropellar la libertad individual.33

Livro Macos na gaveta.indb 133 17/8/2009 14:22:03


134
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

O medo era propagado por todas as solicitadas de empresas,


inclusive aquelas divulgadoras de informação, que em seus próprios
veículos diziam-se “quarto poder”. Contudo, nas solicitadas poderiam
expor suas “verdadeiras” posições políticas. O Editorial Abril, por
exemplo, paralisou suas atividades afirmando sofrer grave repres-
são por parte de um grupo terrorista de extrema direita, que pela
chantagem criminal fez diretores se autoexilarem e o semanário de
opinião Panorama fechar. Passada esta crise, segundo o grupo, pes-
soas “pseudogremiais” de extrema esquerda estariam estimulando
seus trabalhadores a pararem de produzir e provocando o chamado
“terrorismo industrial” e crise de vendas: de “45 publicações, apenas
23 estavam à venda nas últimas semanas”.34
A política de preços – prática do peronismo para conseguir as
paritárias por intervenção estatal, estabelecida por lei em 1973, fixan-
do preços máximos, intervindo nos mercados, proibindo exportações e
priorizando a produção de produtos primários – também era argumen-
to do empresariado.35 Pedindo aumento dos preços do leite a Cámara
Tecnicogremial de Usinas de Pausteurización “ameaça ironicamente”
o comércio de desabastecimento: o governo que teria de lidar com um
país desabastecido e possivelmente com o crescimento do mercado
negro, e a população que pagaria mais caro pelos produtos:

Sería lamentable que por demora injustificada en el recono-


cimiento de un hecho irreversible, se rompa el equilibrio del
mecanismo que posibilita el abastecimiento actual de leche y
sea el consumidor el que sufra las consecuencias futuras que
determinará ese hecho. Reconocemos que las actuales autori-
dades económicas no son las responsables de ese estado de
cosas, pero confiamos en que resultará de su especial interés
solucionar el problema antes de que se deriven consecuencias
mayores.36

Quando Isabel tenta retomar suas alianças com o empresa-


riado, aumentam as solicitadas dos trabalhadores apoiando as Forças
Armadas, denunciando a subversão, e aprofundando suas discussões
com o empresariado. Levada ao público esta oposição e esperança na
FFAA e seus mártires, talvez a opinião pública tenha entendido que o
peronismo já não conseguiria dar conta da harmonia prometida.

A las Fuerzas Armadas: Destacamos su respecto a la voluntad


popular y su respaldo al desenvolvimiento constitucional del
país. Ratificamos la solidaridad activa de los trabajadores en la

Livro Macos na gaveta.indb 134 17/8/2009 14:22:03


135

Marina Maria de Lira Rocha


lucha contra la subversión, y el emocionado homenaje a los hom-
bres que juegan su vida en la defensa de los ideales nacionales
y a quienes la brindaron en holocausto de la nacionalidad.37

Quanto aos empresários, mesmo com Mondelli defendendo uma


menor intervenção do Estado nas políticas econômicas, continuaram
a campanha contra o governo, incentivando o boicote aos aumentos
salariais e uma paralisação das atividades produtivas para a defesa
de todos em 16 de fevereiro de 1976.

¿Por qué paran los empresarios? Porque la crisis que padece el


país afecta a todos. A los empresarios: que asisten a la destruc-
ción de la empresa privada, fuente insustituible de trabajo. A
los trabajadores: que sufren la permanente reducción del poder
adquisitivo de sus salarios y se ven amenazados por la desocu-
pación. A los profesionales: que se ven obligados a optar por la
desjerarquización y el éxodo. A los consumidores: que soportan
el alza incontenible de los precios por la permanente desvalo-
rización de la moneda. A las Fuerzas Armadas y de Seguridad:
que se desangran combatiendo contra la subversión apátrida,
sin contar con la sincera y efectiva colaboración de los poderes
públicos. Al País: porque todos los argentinos son victimas de
un proceso que conduce inexorablemente a la disgregación y el
caos. 16 DE FEBRERO: DIA DE PROTESTA NACIONAL.38

Diante desse apelo dos empresários da APEGE e do apoio de


outras entidades empresariais à paralisação, houve diversas mani-
festações em solicitadas. A CGE – formada por maioria nacionalista –
alegou ser condizente com as reclamações dos empresários, contudo,
não patrocinaria nem aderiria à paralisação por esta prejudicar os
trabalhadores e as instituições nacionais. As 62 Organizaciones Pe-
ronistas ameaçavam levar a questão ao Ministério do Trabalho para
atestar a greve como ilegal. A Federación de Empleados del Comercio
repudiava a paralisação por ser organizada pela oligarquia reacionária.
E assim por diante...
As solicitadas publicadas pelos empresários associavam Isabel
ao fracasso econômico e à possível destruição das empresas priva-
das, da indústria, da produção do país, e, consequentemente, de sua
falência. Neste sentido, o peronismo perderia a capacidade, que só
ele tinha, de levar a Argentina ao futuro glorioso, ao Primeiro Mundo, a
ser potência mundial. O discurso sobre a intervenção como necessária
para a recuperação da nação e do futuro argentino apareceu de forma

Livro Macos na gaveta.indb 135 17/8/2009 14:22:03


136
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

ininterrupta e convincente, proporcionando um convencimento mais


apelativo. Ao mesmo tempo, o discurso dos trabalhadores, possuindo
um projeto peronista com proposta de um capitalismo social para o
país, mostrava a necessidade da distribuição de riquezas e da luta para
os trabalhadores, ou seja, para a classe. Entretanto, ao apresentar um
discurso para a sociedade, demonstrava a “confusão” do país, deslegiti-
mava o governo, mesmo sendo parte dele, não estimulando perspectivas
futuras e limitando-se a denunciar os setores golpistas e criticá-los.
Tais discursos são promovidos durante os acontecimentos,
permitindo-nos permear um pouco a complexa história dos indivíduos
da época e mostrando-nos as influências ideológicas vivenciadas pelas
classes. Percebe-se, assim, a construção de um discurso e de um con-
tradiscurso, nessa dimensão subjetiva imersa na realidade, que conver-
sam e respondem-se. As solicitadas, pois, podem ser reproduções de
palavras da época e das próprias questões que rondavam os grupos
sociais, permitindo-nos ver essas disputas mais claramente, uma vez
que elas propõem uma ideologia, ao mesmo tempo que expõem um
fato. E, mais ainda, dialogam entre si e geram reflexos na sociedade
a partir de estimulações às manifestações físicas e conduzindo às
opiniões sobre suas realidades.

Notas
1 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1981. p. 95.
2 GRIMSON, Alejandro; VARELA, Mirta. Culturas populares, recepción y política: geneal-
ogías de los estudios de comunicación y cultura en la Argentina. [200-]. Disponível
em: <htpp://sala.clacso.org.ar>.
3 A ideologia é entendida como um campo de atividade cuja orientação está funda-
mentada na realidade e na função desenvolvida pelo indivíduo ou grupo social em
determinado contexto.
4 MOTTA, Luiz Gonzaga. Imprensa e poder. In: ______. (Org.). Imprensa e poder. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 13–31.
5 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de
1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
6 VERÓN, Eliseo. Cuando leer es hacer: la enunciación en el discurso de la prensa
gráfica. In: ______. Fragmentos de un tejido. Buenos Aires, Gedisa, 2004. p. 171–183;
______. Prensa Gráfica y teoría de los discursos sociales: producción, recepción,
regulación. In: ______. Fragmentos de un tejido. Buenos Aires, Gedisa, 2004. p. 193–
211.
7 GRIMSON, Alejandro; VARELA, Mirta. Culturas populares, recepción y política: geneal-
ogías de los estudios de comunicación y cultura en la Argentina. [200–]. Disponível
em: <htpp://sala.clacso.org.ar>.
8 DI TELLA, Guido. Perón-Perón (1973–1976). Buenos Aires: Editorial Sudameri-
cana, 1983.
9 ROUGIER, Marcelo; FISZBEIN, Martín. La frustración de un proyecto económico: el
gobierno peronista de 1973–1976. Buenos Aires: Mantial, 2006. p. 94–106.

Livro Macos na gaveta.indb 136 17/8/2009 14:22:03


137
10 Estas manifestações foram conhecidas como Rodrigazo.

Marina Maria de Lira Rocha


11 QUIROGA, Hugo. El tiempo del “proceso”: conflictos y coincidencias entre políticos
y militares (1976–1983). Rosario: Homo Sapiens, 2004.
12 Lembro que jornais alternativos, sem lógica comercial, não possuem anúncios e
consequentemente eram ausentes as solicitadas.
13 Primeiro presidente da República Unida Argentina.
14 Conhecida por ser suspeita de envolvimento com a adoção de crianças apropria-
das pelos militares durante o “Processo de Reorganização Nacional”.
15 BLAUSTEIN, Eduardo; ZUBIETA, Martí. Decíamos Ayer: la prensa argentina bajo el
proceso. Buenos Aires: COLIHUE, 2006.
16 Estes números fazem parte de um levantamento de fontes que não significa o
número total de solicitadas existentes em tais jornais durante o período.
17 JAMES, Daniel. Resistencia e integración: el peronismo y la clase trabajadora argen-
tina (1946–1976). Buenos Aires: Sudamericana, 1998. p. 129–139.
18 “Al Pueblo Argentino”. Solicitada da Juventud Sindical Peronista publicada no La
Opinión, [S.l.], ano 5, no 1.222, p. 5, 14 jun. 1975.
19 O trabalho alienado, oriundo da necessidade de se produzir mais valia, é uma
forma social de atividade produtiva cuja única maneira de superá-la é eliminando
a propriedade privada. Esta transcendência poderia partir da verificação de con-
tradições do sistema capitalista, entretanto só é positiva quando colocada em ter-
mos políticos com categorias morais, estéticas etc, de caráter socialista.
20 “Los trabajadores defendemos el pensamiento de Perón que es defender la patria
y a nosotros mismos”. Solicitada da Confederación General del trabajo publicada
no Clarín, [S.l.], ano 30, no 10.547, p. 19, 5 jul. 1975.
21 Ibid.
22 JAMES, Daniel. Resistencia e integración: el peronismo y la clase trabajadora argen-
tina (1946–1976). Buenos Aires: Sudamericana, 1998. p. 131–132.
23 “Los hechos nos han dado la razón”. Solicitada da ATE publicada no Clarín, [S.l.],
ano 31, no 10.668, p. 22, 12 nov. 1975.
24 Para tais sindicatos ver: BALVÉ, Beba et al. Lucha de calles, lucha de clases: elemen-
tos para su análisis (Córdoba 1971–1969). Buenos Aires: CICSO, 2006. p. 136–142.
25 “SMATA a los trabajadores mecánicos y a la Opinión Pública del país”. Solicitada do
SMATA publicada no Clarín, [S.l.], ano 30, no 10.554, p. 14, 14 jul. 1975.
26 “30 años de lealtad”. Solicitada de Luz y Fuerza publicada no La Opinión, [S.l.], ano
5, no 1.322, p. 10, 16 out. 1975.
27 QUIROGA, Hugo. El tiempo del “proceso”: conflictos y coincidencias entre políticos
y militares (1976–1983). Rosario: Homo Sapiens, 2004.
28 “Ford Motor Argentina S.A. A todo su personal, concesionarios y proveedores”.
Solicitada publicada no La Opinión, [S.l.], ano 5, no 1.244, p. 8, 13 jul. 1975.
29 “Estado de movilización de los trabajadores organizados en defensa de las institu-
ciones y para salvar la patria”. Solicitada da CGT publicada no Clarín, [S.l.], ano 31,
no 10.668, p. 22, 8 nov. 1975.
30 “La delincuencia subversiva sigue atacando al pueblo y la patria”. Solicitada das 62
Organizaciones Peronistas publicada no La Nación, [S.l.], ano 106, no 37.360, p. 11,
5 dez. 1975.
31 “Otra ves se usa la violencia para detener el esfuerzo argentino”. Solicitada das 62
Organizaciones Peronistas publicada no Clarín, [S.l.], ano 30, no 10.558, p. 12, 20
ago. 1975.

Livro Macos na gaveta.indb 137 17/8/2009 14:22:04


138
32 “A los empresarios del país”. Solicitada da APEGE publicada no La Nación, [S.l.],
Solicitando ao Pueblo Argentino: antagonismo de classes e contendas
entre trabalhadores e empresários nos comunicados publicados na imprensa

ano 106, no 37.353, p. 2, 28 nov. 1975.


33 “Despojo y Destrucción”. Solicitada da Hilanderías Olmos S.A. publicada no La
Nación, [S.l.], ano 106, no 37.347, p. 5, 22 nov. 1975.
34 “Al Sr. Ministro del Trabajo, a La opinión pública, a nuestros lectores”. Solicitada do
Editorial Abril publicada no La Nación, [S.l.], ano 106, no 37.333, p. 3, 8 nov. 1975.
35 DI TELLA, Guido. Perón-Perón (1973-1976). Buenos Aires: Sudamericana, 1983. p.
181–184.
36 “Leche”. Solicitada da Camara Tecnicogremial de Usinas de Pasteurización publi-
cada no La Nación, [S.l.], ano 106, no 37.257, p. 8, 21 ago. 1975.
37 “Mensaje al pueblo argentino”. Solicitada da CGT publicada no La Nación, [S.l.],
ano 106, no 37.384, p. 11, 30 dez. 1975.
38 “¿Por qué paran los empresarios?”. Solicitada da APEGE publicada no La Opinión,
[S.l.], ano 5, no 1.416, p. 7, 6 fev. 1976. Grifos do autor.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:


HUCITEC, 1981.
BALVÉ, Beba et al. Lucha de calles, lucha de clases: elementos para su
análisis (Córdoba 1971-1969). Buenos Aires: CICSO, 2006.
BLAUSTEIN, Eduardo; ZUBIETA, Martí. Decíamos Ayer: la prensa ar-
gentina bajo el proceso. Buenos Aires: COLIHUE, 2006.
DI TELLA, Guido. Perón-Perón (1973-1976). Buenos Aires: Sudameri-
cana, 1983.
GRIMSON, Alejandro; VARELA, Mirta. Culturas populares, recepción y
política: genealogías de los estudios de comunicación y cultura en la
Argentina. [200-]. Disponível em: <htpp://sala.clacso.org.ar>.
JAMES, Daniel. Resistencia e integración: el peronismo y la clase traba-
jadora argentina (1946-1976). Buenos Aires: Sudamericana, 1998.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores do AI-5 à
Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Imprensa e poder. In: . (Org.). Imprensa
e poder. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 13-31.
QUIROGA, Hugo. El tiempo del “proceso”: conflictos y coincidencias
entre políticos y militares (1976-1983). Rosario: Homo Sapiens, 2004.
ROUGIER, Marcelo; FISZBEIN, Martín. La frustración de un proyecto
económico: el gobierno peronista de 1973-1976. Buenos Aires: Man-
tial, 2006.

Livro Macos na gaveta.indb 138 17/8/2009 14:22:04


139

VERÓN, Eliseo. Cuando leer es hacer: la enunciación en el discurso de

Marina Maria de Lira Rocha


la prensa gráfica. In: . Fragmentos de un tejido. Buenos Aires,
Gedisa, 2004. p. 171-183.
. Prensa Gráfica y teoría de los discursos sociales: producción,
recepción, regulación. In: . Fragmentos de un tejido. Buenos
Aires, Gedisa, 2004. p. 193-211.

Livro Macos na gaveta.indb 139 17/8/2009 14:22:04


Livro Macos na gaveta.indb 140 17/8/2009 14:22:04
A PROPAGANDA POLÍTICA E IDEOLÓGICA
NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Roberto Elísio dos Santos

Normalmente, e de maneira equivocada, a história em quadrinhos é


considerada um “inocente” produto voltado para leitores infantis. Na ver-
dade, seu consumo é feito por diferentes segmentos de públicos: da criança
no estágio de alfabetização, passando pelo adolescente e chegando até os
fãs de terceira idade. Mas, independentemente da faixa etária ou sociocul-
tural do público, seu conteúdo pode ter elementos simbólicos carregados
de significados políticos e ideológicos, de maneira explícita ou metafórica,
como afirma Cirne:

Discurso ideológico, o quadrinho é também discurso que se faz político


(ao nível de sua superficialidade). Assim como o ideológico se manifesta
nos mais variados níveis de articulação formal, o político manifesta-se
em todos os níveis, seja de modo direto, seja de modo indireto.1

Desde seu aparecimento nas mídias impressas (jornais, folhetos e


revistas), a partir do século XVIII, os quadrinhos buscam entreter seu pú-
blico e, ao mesmo tempo, ser porta-vozes de ideias críticas ou que pregam o
conformismo em relação às normas sociais estabelecidas. Narrativa gráfica
de grande apelo popular, a história em quadrinhos buscou no humor gráfico
(caricatura, charge, cartum) elementos para estabelecer um diálogo com o
leitor sustentado pela leveza da comicidade, presente nos desenhos hiper-
bólicos e não realistas e nos diálogos carregados de chistes e gírias. Esse
procedimento pode ser encontrado nas tiras do Menino Amarelo (Yellow
Kid), realizadas por Richard Felton Outcault. O autor costumava colocar
frases engraçadas e contundentes na camisola do garoto chinês de orelhas
grandes (Figura 1). Em 4 de maio de 1898, por exemplo, publicou um comen-
tário irônico sobre o fim da guerra hispano-americana: “Quer dizer que nós
todos teremos castelos na Espanha em breve?”2

Livro Macos na gaveta.indb 141 17/8/2009 14:22:04


142
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

Figura 1 – Yellow Kid ironiza o resultado da guerra

É preciso ressaltar que o uso de quadrinhos para a difusão de


ideias contrárias ou favoráveis a uma classe social, grupo político ou
nação, em um determinado contexto histórico, não difere da utilização
para a mesma finalidade de outros produtos culturais midiáticos, como
o filme de cinema, o programa de TV ou a música transmitida pelo
rádio. Deve-se considerar, também, no que concerne à propaganda
política e ideológica, que um produto cultural isolado (um filme, uma
série de TV ou uma história em quadrinhos) tem força limitada para
influenciar opiniões e direcionar o imaginário individual e coletivo.
No entanto, a combinação de diferentes meios para a divulgação
de uma determinada ideia pode consolidar valores, preconceitos e es-
tereótipos, principalmente se esse processo de comunicação ocorrer
em uma condição histórica propícia à aceitação dessa ideia. Momentos
de convulsão social ou de conflitos bélicos exacerbam os sentimentos
étnicos, nacionalistas, religiosos etc., possibilitando anuência maior
e até adesão às mensagens veiculadas pelos meios de comunicação
de massa. Nessa situação, os reenvios intertextuais – o intercâmbio
dos conteúdos simbólicos difundidos por diversos produtos culturais
midiáticos – ajudam a consolidar concepções e incentivam a tomada de
posição e podem levar à prática de determinadas ações (engajamento
político, atitudes humanitárias, protesto pacífico, enfrentamento de
grupos contrários, atos de violência e discriminação, entre outros). É
quando a propaganda política ou ideológica torna-se mais eficaz.

Livro Macos na gaveta.indb 142 17/8/2009 14:22:04


143

Roberto Elísio dos Santos


A propaganda ideológica, diferentemente da propaganda comer-
cial – cuja finalidade é convencer o receptor/consumidor a comprar
uma determinada marca de um produto a partir de supostas quali-
dades que a tornam superior às concorrentes –, na visão de Garcia,
tem a função de “formar a maior parte das ideias e convicções dos
indivíduos e, com isso, orientar todo o seu comportamento social”.
Ainda de acordo com esse autor:

Não é mais tão fácil perceber que se trata de propaganda e que


há pessoas tentando convencer outras a se comportarem de
determinada maneira. As ideias difundidas nem sempre deixam
transparecer sua origem nem os objetivos a que se destinam.
Por trás delas, contudo, existem sempre certos grupos que
precisam do apoio e participação de outros para a realização de
seus intentos e, com esse objetivo, procuram persuadi-los a agir
numa certa direção. E eles conseguem, muitas vezes, controlar
todos os meios e formas de comunicação, manipulando o con-
teúdo das mensagens, deixando passar algumas informações
e censurando outras, de tal forma que só é possível ver e ouvir
aquilo que lhes interessa.3

No tocante aos produtos culturais midiáticos, a inserção do dis-


curso político-ideológico na lógica estético-narrativa do espetáculo de
entretenimento foi uma inovação no plano da difusão de ideias. Essa
relação de simbiose entre o discurso político e o discurso ficcional
midiático é denominada por Murray de Popaganda – fusão de Popu-
lar Culture (termo usado por teóricos anglo-saxões para se referir a
produtos da cultura midiática como filmes, programas de TV, música
e quadrinhos) e Propaganda. Para ele:

Com as fronteiras do discurso da propaganda oficial e da cul-


tura popular rompidas completamente, torna-se ilusório e sem
sentido fazer a distinção entre elas como categorias separadas.
Ao invés disso, a interação entre esses dois discursos aparente-
mente separados deveria ser caracterizada como Popaganda.4

Este trabalho tem como objetivo, portanto, apresentar um painel


sobre a história em quadrinhos – um produto de consumo massivo
que teria a função principal de entreter e divertir seu público – como
veículo de transmissão de conteúdo político-ideológico. A análise
realizada abarcou determinados períodos da história recente (Segunda
Guerra Mundial, Guerra Fria e o conflito do Vietnã), mostrados pela

Livro Macos na gaveta.indb 143 17/8/2009 14:22:04


144
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

perspectiva norte-americana, e narrativas significativas cujos dis-


cursos apresentam outra postura (a defesa da unidade europeia nas
aventuras de Asterix e o questionamento da presença dos Estados
Unidos no Iraque na graphic-novel Os Leões de Bagdá).
Para realizar essa análise é preciso utilizar os recursos teóricos
da semiologia, somados aos parâmetros da teoria crítica e ao estudo
de conjuntura, que possibilita perceber as diferentes implicações
históricas (os fatores econômicos, sociais etc.) que influenciam e são
apropriadas pelos conteúdos simbólicos dos produtos culturais. Essa
metodologia se justifica porque o discurso artístico e/ou literário – os
quadrinhos são considerados a nona arte e também denominados por
Will Eisner5 de Arte Sequencial – deve ser entendido, segundo Cirne,
“como uma produção social de signos, como uma prática significante
de significados concretos”.6 Para esse autor, quando se trata de uma
história política, “também não é só o texto que a completa: a carica-
tura, a gag visual, o aproveitamento adequado do plano, o ritmo são
elementos importantes para atingir os fins propostos pelo autor”.7

Os comics durante a Segunda Guerra

De acordo com Murray, “a II Guerra Mundial foi um ponto


marcante para o relacionamento entre a política norte-americana e
a cultura popular [midiática]”.8 Embora a mídia – especialmente os
jornais e o cinema (o filme O Nascimento de uma Nação, de D. W. Gri-
ffith, influenciou vários jovens a se alistarem no exército) – também
tivesse colaborado com as políticas oficiais na Primeira Guerra, o
desenvolvimento alcançado pelos meios de comunicação de massa
(rádio, cinema sonoro e colorido, meios impressos) em meados da
década de 1930 se tornou crucial para que as mensagens políticas
fossem amplamente disseminadas.
No que concerne às histórias em quadrinhos, duas inovações
foram fundamentais para sua popularização. Em primeiro lugar, as
tiras diárias, que, desde o início do século, caracterizavam-se pela
comicidade, passaram, a partir de 1929 (com a publicação de Tar-
zan e Buck Rogers no Século XXV, que deram início à Era de Ouro
dos quadrinhos), a apresentar histórias de aventuras serializadas
(adventure-strips) – cada tira contendo uma sequência da narrativa
que se estenderia por meses até sua conclusão. Na visão de Viana:

O gênero aventura marca uma mudança formal e de conteú-


do. A mudança formal é caracterizada pela substituição dos
desenhos caricaturais por desenhos realistas e a mudança de

Livro Macos na gaveta.indb 144 17/8/2009 14:22:04


145

Roberto Elísio dos Santos


conteúdo [...] substitui os temas familiares, infantis e cômicos
pela tematização da aventura.9

Essas tiras eram distribuídas para publicações americanas e


estrangeiras pelos syndicates (empresas que comercializavam material
editorial e quadrinhos para os jornais). Ao longo da década de 1930, os
syndicates lançaram novas tiras de aventura – Flash Gordon, Fantasma,
Mandrake, Terry e os piratas etc. – que conquistaram o interesse dos
leitores. No período marcado pela Depressão Econômica, quando os
meios de comunicação (rádio, cinema, jornais) tornaram-se uma forma
de lazer barato para as massas afetadas pelo desemprego e pela falta de
perspectivas, as tiras de aventuras ofereciam distração alicerçada
em viagens a lugares exóticos e situações perigosas corajosamente
superadas pelos protagonistas.
A segunda mudança foi a criação das revistas de histórias em
quadrinhos (comic-books) no final de 1933. Essas publicações baratas
inicialmente reuniam tiras de quadrinhos já editadas em jornais, mas,
a partir de 1935, começaram a apresentar material inédito para os lei-
tores. O primeiro título a trazer quadrinhos originais foi New Comics,
cuja editora lançou, em 1938, a revista Action Comics, na qual estreou
o primeiro super-herói das narrativas sequenciais impressas, o Super-
Homem. Com o sucesso de vendas de revistas desse personagem,
os quadrinhos de super-heróis tornaram-se um gênero fundamental
para a indústria editorial de quadrinhos norte-americana. No final
da década de 1930 e no início dos anos 1940 surgiram outros heróis,
como Batman, Robin, Mulher Maravilha, Flash, Lanterna Verde, Capitão
Marvel, Namor, Tocha Humana, Capitão América, entre outros.
Os quadrinhos de super-heróis resgatam para os domínios da
indústria cultural os mitos ancestrais, que se estruturavam a partir
da presença de personagens dotados de poderes mágicos ou de atri-
butos superiores (força, coragem, sabedoria). Pela perspectiva da
semiologia da narrativa, Hamom identifica uma série de constantes
que diferenciam o herói dos demais personagens: suas “qualidades
diferenciais” (poderes), sua “distribuição diferencial” (participação
na história), suas “funcionalidades diferenciais” (desempenho de
uma função mediadora, iniciada quando o personagem recebe uma
missão, que só se resolve no final do relato).10 Esses elementos são
decodificados pelo leitor, que passa a identificar o herói com valores
positivos. Nesse sentido, Cirne define esses personagens:

Seres encantatórios dotados de poderes excepcionais – seja de


modo natural, seja de modo artificial – e basicamente envolvi-

Livro Macos na gaveta.indb 145 17/8/2009 14:22:04


146
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

dos por um mecanismo mitológico estruturado pela sociedade


de consumo, os super-heróis sempre compareceram a serviço
dos valores burgueses tradicionais. [...]
A verdade é que os super-heróis vendiam – e vendem, até hoje
– a “imagem” de um país todo-poderoso sem miséria social,
sem problemas políticos, sem arroubos militares e econômi-
cos imperialistas; os super-heróis [...] são a própria segurança
armada dos Estados Unidos, ao nível individualista pequeno-
burguês, a partir de um maniqueísmo interessante enquanto
modelo ideológico.11

Complementando essa concepção, Viana faz uma distinção entre


o herói e o super-herói: enquanto o primeiro possui “habilidades físi-
cas, mentais ou morais” – sendo, portanto, “aplicável a indivíduos con-
cretos”, com existência real, embora possa ser retratado na literatura,
no cinema ou nos quadrinhos –, os super-heróis “possuem habilidades
sobre-humanas” e, portanto, pertencem ao domínio exclusivo da fic-
ção.12 Além disso, Viana ressalta o caráter axiológico dos super-heróis.
Considerando a axiologia “o padrão dominante de valores em nossa
sociedade”,13 o teórico percebe a tendência dos super-heróis a agir em
prol da manutenção da ordem vigente. O leitmotiv desses personagens
reside em sua constante interferência nos acontecimentos que gerem
algum tipo de desorganização no seio da sociedade.
Além de auferir lucro para as editoras, as revistas de quadrinhos
de super-heróis tornaram-se veículos importantes para a disseminação
da Popaganda oficial durante a Segunda Guerra Mundial. Maniqueístas
em sua essência, essas histórias apresentam personagens fortes ves-
tidos com roupas coloridas, que podem realizar tarefas impossíveis
para o ser humano comum e que lutam contra malfeitores. Como
observa Murray (In MAGNUSSEN e CHRISTIANSEN, 2000, p. 142),
“os super-heróis foram um produto de seu tempo, extremamente
adequados para complementar os mitos políticos dos anos 1940”.14
O teórico salienta que:

[...] um dos mitos culturais recorrentes que aparecem nos


textos de Popaganda se refere à suposta superioridade dos
homens brancos tanto em relação a pessoas de outras raças
como às mulheres. [...] Em seus discursos sobre guerra, esses
textos revelam os preconceitos culturais em questões como
raça e gênero.15

Livro Macos na gaveta.indb 146 17/8/2009 14:22:05


147

Roberto Elísio dos Santos


Dessa forma, as publicações de quadrinhos de super-heróis
tornaram-se o veículo adequado às necessidades do governo norte-
americano durante a Segunda Guerra Mundial. O discurso da Popaganda
insere-se nos enredos (heróis enfrentando espiões ou sabotadores
estrangeiros) e está presente nas capas das revistas, nas quais os pro-
tagonistas, identificados pelo leitor como aqueles que representam o
lado bom, combatem inimigos alemães ou japoneses,16 cumprimentam
soldados e marinheiros norte-americanos,17 ou incentivam a compra
de bônus de guerra.18
No entender de Murray, “a estratégia de ridicularizar o inimigo e
antecipar a vitória é comum à maioria dos textos de Popaganda”.19 Um
exemplo dessa tática é encontrado na capa da revista Batman número
18, de julho-setembro de 1943 (Figura 2): comemorando a data da inde-
pendência dos Estados Unidos (4 de julho), Batman e Robin afastam-se
sorridentes enquanto uma “bombinha gigante” estoura próximo a Hi-
roito, Hitler e Mussolini, retratados de maneira cartunesca. As estrelas
vermelhas que aparecem em torno dos inimigos são metáforas visuais
que indicam a dor sofrida com o estouro da bomba. O texto, também
em vermelho, estimula a compra de bônus de guerra e selos.

Figura 2 – Capa da revista Batman no 18 (1943)

Livro Macos na gaveta.indb 147 17/8/2009 14:22:05


148
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

Outra forma de apresentar os inimigos, nos quadrinhos de heróis,


é pela demonização. Como antípoda ao protagonista, que representa
o bem, o inimigo é sempre um vilão sanguinário, sádico e perverso.
Nazistas e japoneses são mostrados de maneira caricatural, com tra-
ços expressionistas que distorcem seus corpos e rostos, dando um
aspecto ainda mais maléfico a suas figuras – apesar dos crimes contra
a humanidade praticados pelos nazistas, essa representação simbólica
é tendenciosa. Os heróis têm o dever de eliminar sem dó a ameaça que
os adversários representam. Esse é o caso da heroína Black Angel (Fi-
gura 3), ás da aviação, publicada na revista Air Fighters Comics número
2 (editada em novembro de 1942): amarrada e aparentemente indefesa,
ela está nas mãos da Baronesa Sangue (que veste um blusão com a
suástica estampada e tem um chicote nas mãos) e de seu assecla (que
porta um ferro de marcar com símbolo do nazismo). Em segundo plano
aparecem prédios em chamas, denunciando o intuito dos inimigos.

Figura 3 – Página de Black Angel (1942)

Livro Macos na gaveta.indb 148 17/8/2009 14:22:05


149

Roberto Elísio dos Santos


Um personagem emblemático da Popaganda nas histórias em
quadrinhos é o Capitão América, concebido por Jack Kirby e Joe
Simon para a editora Timely Comics. Na história, o franzino Steve
Rogers, após ser rejeitado pelo Exército, aceita ser cobaia em uma
experiência científica para criar um supersoldado, tornando-se o Ca-
pitão América. Já na capa do primeiro número de sua revista, lançada
em março de 1941, o herói dá um soco no ditador alemão Adolf Hitler.
O patriotismo encarnado pelo protagonista não se encontra apenas
em sua fala ou em suas ações, mas também no próprio uniforme que
veste, conforme Bandeira:

O apelo à iconificação do personagem pode ser notado em seu


uniforme, que desde as cores refere-se aos Estados Unidos [...].
Ele possui um “A” na máscara, mais duas asas de águia nas la-
terais desta, uma estrela no peito, listras vermelhas e brancas
na base da cintura, as luvas e botas de bucaneiros, que eram
usadas pelos heróis minutemen da história da independência
americana, além das cores do uniforme, azul, vermelho e bran-
co. A arma escolhida por Kirby foi um escudo, com propriedades
únicas até hoje, tornando-se uma arma mítica do herói.20

Além dos quadrinhos de heróis, outras narrativas gráficas


sequenciais se prestaram à difusão da Popaganda. Até mesmo os
personagens Disney foram porta-vozes da política norte-americana, a
exemplo das tiras protagonizadas por Mickey, publicadas em jornais de
1943 a 1944. Escritas por Bill Walsh, desenhadas por Floyd Gottfredson
e arte-finalizadas por Dick Moores, essas histórias serializadas acom-
panham o personagem criado por Walt Disney protegendo órfãos de
guerra perseguidos por agentes nazistas, vencendo espiões alemães
que controlam o mercado negro de combustíveis e viajando para o
futuro para impedir que seu antagonista, Bafo-de-Onça, conquiste
o planeta usando soldados-robôs, cujas cabeças lembram capacetes de
soldados alemães. Os comic-books com os personagens Disney também
veicularam propaganda política: a capa da revista Walt Disney’s Comics
and Stories número 31, desenhada por Walt Kelly e publicada em abril
de 1943, mostra os sobrinhos do Pato Donald cavando um túnel para
furar a fila e comprar bônus de guerra antes do tio.
Como consequência do conflito bélico, os editores criaram,
também, quadrinhos de guerra (war-comics), que reforçam a ideia da
supremacia militar norte-americana. Os protagonistas, embora não
tenham superpoderes, são destemidos e sempre triunfam diante do
inimigo, que é covarde e traiçoeiro. Em agosto de 1941 – quatro meses

Livro Macos na gaveta.indb 149 17/8/2009 14:22:05


150
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

antes do bombardeio à base americana de Pearl Habor, no Pacífico


– foi lançada a revista Military Comics, que continha histórias com
soldados, marinheiros e aviadores, com destaque para Blackhawk,
piloto concebido por Will Eisner. Outros títulos se seguiram a este,
todos seguindo o mesmo viés, com exceção de Two-Fisted Tales, revista
editada por Harvey Kurtzman na década de 1950, que assumiu uma
postura antibelicista.
Os discursos de propaganda política e ideológica presentes
nas histórias em quadrinhos durante a década de 1940 somaram-se
a outros textos veiculados pela imprensa ou pelo rádio. Contribuição
semelhante e importante foi a do cinema, e não apenas com filmes de
guerra (Sargento York, Garras Amarelas), mas também musicais (A
Canção da Vitória, Marujos do amor, Um dia em Nova Iorque), dramas
(Rosa de Esperança, Um barco e nove destinos), assim como os “filmes-
bananas” que tentavam agradar aos aliados latino-americanos (Uma
noite no Rio, Serenata Tropical) e que tinham Carmem Miranda como
sua principal estrela. Como os estúdios de cinema de Hollywood esta-
vam interessados em ampliar sua participação no mercado latino, os
produtores aderiram à “Política da Boa Vizinhança” promovida pelo
governo norte-americano. Sobre essa questão, afirma Leite:

O aspecto mais saliente dessa experiência norte-americana foi


a junção dos objetivos políticos do governo com os interesses
da indústria cinematográfica, ambos visando atingir a maior
quantidade possível de público. Dessa forma, tornou-se impe-
rioso transformar filmes de propaganda em grandes sucessos
de bilheteria, proporcionando elevados lucros para os grandes
estúdios e, ao mesmo tempo, agentes propagadores do Ame-
rican way of life.21

A Guerra Fria nos quadrinhos

Com o fim da Segunda Guerra, o mapa geopolítico do mundo


estava cindido em dois: de um lado, os países capitalistas, liderados
pelos Estados Unidos, e, de outro, os países socialistas, comandados
pela União Soviética. A partir de 1947, iniciou-se a “Guerra Fria” entre
as duas potências militares, detentoras de armas nucleares e desejosas
de ampliar sua esfera de influência – crise que só terminou no final da
década de 1980. Embora tenha havido conflitos isolados (na Coréia
e no Vietnã), a batalha travada entre os dois polos de poder foi mais
ideológica do que militar.

Livro Macos na gaveta.indb 150 17/8/2009 14:22:05


151

Roberto Elísio dos Santos


Ao longo dos anos 1950, com a “caça às bruxas” promovida pelo
senador Joseph McCarthy, os próprios quadrinhos foram considerados
uma ameaça aos valores americanos. Mas, a exemplo das histórias
produzidas durante a Segunda Guerra, embora em menor escala, vá-
rios quadrinhos elaborados no período da Guerra Fria também foram
empregados para divulgar a visão norte-americana. Os espiões, que
antes eram alemães e japoneses, passaram a ser russos ou chineses,
que cobiçavam segredos militares, informações sobre armamentos e
tecnologia espacial. Agentes secretos e militares americanos foram
protagonistas de várias histórias, como a tira Tales of the Green Berets
(Figura 4), escrita por Robin Moore e desenhada por Joe Kubert em
meados da década de 1960, em que os boinas-verdes são emissários da
“Aliança para o Progresso” nos países do Terceiro Mundo. Esses quadri-
nhos inspiraram o filme Os Boinas-verdes, dirigido e estrelado por John
Wayne em 1968, tendo como pano de fundo a Guerra do Vietnã.

Figura 4 – Os boinas-verdes fazem continência a John Kennedy

O envolvimento norte-americano no conflito do Vietnã é con-


temporâneo da retomada dos quadrinhos de heróis (a chamada Era
de Prata). A gênese do Homem de Ferro, por exemplo, tem lugar no
sudeste asiático, no qual o cientista e empresário americano Tony
Stark (construtor de armas para seu governo) cria uma armadura de
ferro para sobreviver a um estilhaço que se alojou no seu peito e para
escapar dos algozes vietnamitas. Os quadrinhos Disney voltaram a
disseminar conteúdo político-ideológico: o quadrinhista Carl Barks
(criador dos personagens Tio Patinhas, Professor Pardal, Irmãos
Metralha, entre outros), elaborou diversas histórias em que os anta-
gonistas do Pato Donald eram espiões de Brutópia – alusão à União

Livro Macos na gaveta.indb 151 17/8/2009 14:22:05


152
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

Soviética. Em 1965, esse artista realizou a história O tesouro de Marco


Polo (Figura 5), na qual Tio Patinhas e seus sobrinhos procuram um
tesouro em um país asiático assolado pela guerra civil. No desfecho, a
intervenção dos patos põe fim à revolução e reconduz um governante
amigo ao poder.

Figura 5 – Guerrilheiro explode embaixada na


história feita por Carl Barks em 1965

Durante a década de 1980, o medo de um conflito nuclear entre


os Estados Unidos e a União Soviética repercutiu nas páginas das
publicações de quadrinhos – e também no cinema americano, com
a produção de filmes ambientados em um futuro pós-apocalíptico,
além do telefilme O dia seguinte, realizado em 1983, que mostra as
consequências desse tipo de guerra. Esse tema esteve presente nas
graphic-novels Batman – O Cavaleiro das Trevas (de Frank Miller) e
Watchmen (escrita por Alan Moore), ambas publicadas em 1985.

Asterix e a defesa da cultura europeia

A difusão de questões políticas não se restringe aos comics


norte-americanos. Um exemplo da Banda Desenhada europeia car-
regada de conteúdo ideológico pode ser encontrado nas histórias do
guerreiro gaulês Asterix, idealizadas pelo roteirista René Goscinny
e pelo desenhista Albert Uderzo em 1959. Os enredos destacam a
resistência de uma aldeia gaulesa aos invasores romanos em 50 a.C.
como metáfora à rejeição por parte da Europa à supremacia política,
econômica, militar e cultural pretendida pelo governo norte-ameri-
cano. Após a Segunda Guerra, iniciou-se um processo de unificação
europeia com vistas a se tornar um bloco político e econômico forte,
que culminou na criação da União Europeia em 1992 – congregando
27 membros até 2008.

Livro Macos na gaveta.indb 152 17/8/2009 14:22:06


153

Roberto Elísio dos Santos


Do ponto de vista formal, os quadrinhos seguem o estilo gráfi-
co da “linha clara”, no qual as linhas de contorno são finas e não há
sombreado. A defesa de uma unidade europeia caminha paralelamente
ao humor e à aventura. O protagonista, Asterix, é o herói que defen-
de seu povo usando a astúcia (qualidade diferencial que se acentua
na relação com o amigo Obelix, forte e tolo) e a força adquirida pela
ingestão da poção mágica preparada pelo druida (personagem típico
da cultura celta). Em trabalho anterior, assim foram analisadas as
características desse herói:

Asterix não possui os dotes encontrados na maioria dos heróis


de HQs: pequeno, frágil, aparentemente não conta com super-
poderes, não tem identidade secreta nem usa disfarces, sua
força viria da poção mágica feita pelo druida (mas não é seu
o conhecimento ou o uso privativo da poção; ao contrário,
outros moradores da aldeia também a utilizam para enfrentar
os romanos e, além disso, o poder da poção está condicionado
à união dos gauleses).
[...] Como habitante da aldeia gaulesa, Asterix possui funciona-
lidades diferenciais, que definem sua esfera de ação. Tem, em
primeiro lugar, uma função mediadora entre a aldeia e seus
adversários (romanos) ou amigos (povos de outras aldeias).
[...] Na maioria das vezes [sua intervenção] parte de uma tarefa
que lhe é dada no início da história e que deve cumprir para
salvaguardar seu povo.
[...] Em Asterix concentram-se todas as qualidades boas: é inteli-
gente, altruísta (seu “agir” é em função de seu povo), não possui
vícios nem conflitos que o desviem de seu dever, tampouco pos-
sui “calcanhar de Aquiles” que o desarme frente ao inimigo.22

Em várias de suas aventuras, o herói gaulês viaja pela Europa


e interage com outros povos (belgas, bretões, hispânicos, helvéticos,
gregos etc.). Apesar das diferenças entre cada um deles e da existência
de colaboracionistas, todos se unem contra o adversário comum: os
invasores romanos. No início da história Asterix na Córsega, chefes de
diversas aldeias espalhadas pela Europa juntam-se aos gauleses para
combater os romanos – o que salienta a coesão política dos europeus.
Já em Uma volta pela Gália, Asterix e Obelix são desafiados a percorrer
a Gália sem serem detidos pelo exército de Roma e, para provar que
passaram por todas as aldeias, coletam produtos característicos de
cada lugar – o que reforça a ideia de diversidade e compartilhamento da
cultura europeia. Asterix é o elemento catalisador dessa cultura comum:

Livro Macos na gaveta.indb 153 17/8/2009 14:22:06


154
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

na Bretanha, adiciona ervas do oriente à água quente que os bretões


tomam, criando o chá; em sua passagem pela Suíça, inventa a fondue.
E no álbum O dia em que o céu caiu, os gauleses são visitados por
extraterrestres que desejam se apossar da poção mágica. De um lado
estão os walneydistianos e os superclones (que representam os comics
norte-americanos; os primeiros fazem alusão aos personagens Disney e
os outros, aos super-heróis), e, do lado oposto, os nagmas (que se referem
ao mangá japonês). Trata-se de uma narrativa metalinguística, em que se
afirma a força e a resistência da Banda Desenhada europeia ante os quadri-
nhos americanos e nipônicos, difundidos no processo de globalização.

Figura 6 – Diversos chefes europeus reúnem-se na aldeia de Asterix

Uma visão crítica da invasão do Iraque

No entender de Garcia, “quando não conseguem obter o mono-


pólio das informações através do controle ideológico, os grupos pro-
curam neutralizar as ideias contrárias através da contrapropaganda”.23
Esse procedimento – que muitas vezes recorre à difamação e ao
deboche – pode ser realizado à margem dos meios de comunicação
massivos ou utilizando as “brechas” existentes nessas mídias. Na
maior parte das vezes, a contrapropaganda utiliza mídias alternativas
ou produtos artísticos destinados aos intelectuais, como é o caso dos
filmes de Godard ou Costa-Gavras, e de jornais, revistas e livros com
tiragens baixas, voltados para públicos segmentados.
Os comix underground foram, na década de 1960, disseminado-
res da contracultura e de uma postura crítica ao sistema. Já a partir
dos anos 1980, coube às graphic-novels – romances gráficos de alta
qualidade, contendo inovações estéticas, narrativas e temáticas, ven-
didos em livrarias – e a autores independentes – que produzem fora
do esquema comercial das grandes editoras de quadrinhos – abordar
questões relevantes de maneira questionadora. Dessa natureza são os

Livro Macos na gaveta.indb 154 17/8/2009 14:22:06


155

Roberto Elísio dos Santos


trabalhos realizados pelo jornalista e quadrinhista Joe Sacco, autor
de Palestina e Área de Segurança Gorazde.
Também se enquadra nesse tipo de publicação, apesar de ter
sido publicada pelo selo Vertigo (da DC Comics), a graphic-novel Os
Leões de Bagdá (Pride of Baghdad), escrita por Brian K. Vaughan e
desenhada por Niko Henrichon. Baseado em fatos reais ocorridos em
2003, o enredo acompanha quatro leões pertencentes ao zoológico
da capital iraquiana que acabaram soltos devido à invasão norte-
americana. Os felinos simbolizam o povo iraquiano, oprimido durante
anos pela ditadura, e, depois, vítima das ações do Exército dos Estados
Unidos e dos atentados praticados por grupos radicais.
Livres das jaulas que os aprisionavam no zoológico, os leões
– um macho, um filhote e duas fêmeas, sendo a mais velha cética,
acostumada à violência e ao cativeiro, e a mais nova, idealista e
impetuosa – vagam pelas ruínas da cidade bombardeada esperando
alcançar a liberdade, até serem abatidos pelos soldados. O enredo
não discute as razões do conflito, mas apresenta as consequências
da guerra pela visão das vítimas indefesas. Se, após o atentado de 11
de setembro de 2001, a intervenção no Iraque contava com o apoio
da maioria dos americanos, essa adesão diminuiu com a divulgação
das brutalidades cometidas naquele país. A história em quadrinhos,
portanto, fala, em tom de fábula, para os que clamam por soluções
diplomáticas no lugar do uso da força militar. Nesse sentido, esse
produto artístico torna-se uma contrapropaganda ao discurso oficial
do governo difundido em larga escala pela mídia.

Figura 7 – Capa da edição americana da graphic-novel

Livro Macos na gaveta.indb 155 17/8/2009 14:22:06


156
A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

Conclusão

O estudo das histórias em quadrinhos não se esgota na análise


do conteúdo político-ideológico que podem veicular. Como objeto de
pesquisa, os quadrinhos podem ser entendidos por seus elementos es-
téticos e narrativos, como produto de consumo, por sua aplicabilidade
na educação, a partir de sua recepção, entre outras possibilidades. No
entanto, uma visão crítica é sempre necessária em relação aos produ-
tos da cultura midiática, uma vez que eles são disseminadores de ideias
que podem influenciar comportamentos individuais e coletivos.
Como pode ser constatado a partir da análise empreendida neste
texto, o conteúdo simbólico das histórias em quadrinhos – assim como
de outros produtos midiáticos, a exemplo do filme de cinema – pode
ser utilizado na divulgação de discursos comprometidos com a visão
de um governo, de uma classe social ou de um determinado grupo.
De maneira explícita ou velada, a propaganda política e ideológica
assume a forma de entretenimento, mesclando-se à narrativa ficcional,
para atuar sobre o imaginário, facilitando a aceitação de interesses
específicos em uma dada conjuntura histórica. Mas a narrativa gráfica
sequencial é também empregada para disseminar visões críticas e
contrárias ao discurso oficial, em forma de contrapropaganda.

Notas
1 CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. 5a ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1977. p. 20.
2 OUTCAULT, Richard F. The Yellow Kid: a centennial celebration of the kid who started
the Comics. Northampton: Kitchen Sink Press, 1995. p. 125.
3 GARCIA, Nelson Jahr. O que é propaganda ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1982.
p. 10–11.
4 MURRAY, Chris. Popaganda: Superhero Comics and Propaganda in World War Two.
In: MAGNUSSEN, Anne; CHRISTIANSEN, Hans-Christian (Ed.). Comics and culture:
analytical and theoretical approaches to Comics. Copenhagen: Museum Tuscula-
num Press: University of Copenhagen, 2000. p. 142.
5 Cf. EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
6 CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. 5a ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1977. p. 15–16.
7 CIRNE, Moacy. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé,
1982. p. 37.
8 MURRAY, Chris. Popaganda: Superhero Comics and Propaganda in World War Two.
In: MAGNUSSEN, Anne; CHRISTIANSEN, Hans-Christian (Ed.). Comics and culture:
analytical and theoretical approaches to Comics. Copenhagen: Museum Tuscula-
num Press: University of Copenhagen, 2000. p. 141.
9 VIANA, Nildo. Heróis e super-heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achia-
mé, 2005. p. 19–20.

Livro Macos na gaveta.indb 156 17/8/2009 14:22:06


157
10 HAMON, Philippe. Por um estatuto semiológico do personagem. In: BARTHES,

Roberto Elísio dos Santos


Roland et al. Masculino, feminino, neutro: ensaios de semiótica narrativa. Porto
Alegre: Globo, 1976. p. 73-78.
11 CIRNE, Moacy. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé,
1982. p. 37.
12 VIANA, Nildo. Heróis e super-heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achia-
mé, 2005. p. 37-38.
13 Ibid. p. 42.
14 MURRAY, Chris. Popaganda: Superhero Comics and Propaganda in World War Two.
In: MAGNUSSEN, Anne; CHRISTIANSEN, Hans-Christian (Ed.). Comics and culture:
analytical and theoretical approaches to Comics. Copenhagen: Museum Tuscula-
num Press: University of Copenhagen, 2000. p. 142.
15 Ibid., p. 145.
16 Marvel Comics, no 10, ago. 1940.
17 World’s Finest Comics, no 6, jun. 1942.
18 World’s Finest Comics, no 8, dez. 1942.
19 MURRAY, Chris. Popaganda: Superhero Comics and Propaganda in World War Two.
In: MAGNUSSEN, Anne; CHRISTIANSEN, Hans-Christian (Ed.). Comics and culture:
analytical and theoretical approaches to Comics. Copenhagen: Museum Tuscula-
num Press: University of Copenhagen, 2000. p. 143.
20 BANDEIRA, Daslei. O escudo manchado: um herói em tempo de guerra. João Pes-
soa: Marca de Fantasia, 2007. p. 28.
21 LEITE, Sydney Ferreira. O cinema manipula a realidade? São Paulo: Paulus, 2003. p. 38.
22 SANTOS, Roberto Elísio dos. Asterix: quadrinhos e resistência cultural. Comunicação
& Sociedade, São Bernardo do Campo, ano 12, no 21, p. 193–195, jun. 1994. p. 193-195.
23 GARCIA, Nelson Jahr. O que é propaganda ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 60.

Referências

BANDEIRA, Daslei. O escudo manchado: um herói em tempo de guerra.


João Pessoa: Marca de Fantasia, 2007.

CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. 5. ed. Petrópolis,


RJ: Vozes, 1977.

. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro:


Achiamé, 1982.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fon-


tes, 1989.

GARCIA, Nelson Jahr. O que é propaganda ideológica. São Paulo: Bra-


siliense, 1982.

HAMON, Philippe. Por um estatuto semiológico do personagem. In:


BARTHES, Roland et al. Masculino, feminino, neutro: ensaios de semiótica
narrativa. Porto Alegre: Globo, 1976.

Livro Macos na gaveta.indb 157 17/8/2009 14:22:06


158

LEITE, Sydney Ferreira. O cinema manipula a realidade. São Paulo:


A propaganda política e ideológica nas histórias em quadrinhos

Paulus, 2003.

MURRAY, Chris. Popaganda: Superhero Comics and Propaganda in


World War Two. In: MAGNUSSEN, Anne; CHRISTIANSEN, Hans-Chris-
tian (Ed.). Comics and culture: analytical and theoretical approaches
to Comics. Copenhagen: Museum Tusculanum Press: University of
Copenhagen, 2000.

OUTCAULT, Richard F. The Yellow Kid: a centennial celebration of the


kid who started the Comics. Northampton: Kitchen Sink Press, 1995.

SANTOS, Roberto Elísio dos. Asterix: quadrinhos e resistência cultural.


Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, ano 12, n. 21, p.
193-195, jun. 1994.

VIANA, Nildo. Heróis e super-heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de


Janeiro: Achiamé, 2005.

Livro Macos na gaveta.indb 158 17/8/2009 14:22:07


O PAPEL DA IMPRENSA POR ELA MESMA:
GOLPE, DITADURA E TRANSIÇÃO EM JORNAIS E REVISTAS

BRASILEIROS, ENTRE 1984 E 2004

Flávia Biroli

Introdução

Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla sobre as representa-


ções do golpe de 1964 e da ditadura militar recente, na imprensa brasileira,
nas últimas décadas. O foco, aqui, é para a atuação da imprensa na crise, no
golpe e/ou na ditadura militar recente.1 Voltamo-nos, assim, para discursos
que situam, significam e atribuem ações e valores à imprensa, ao jornalismo,
à atuação de jornalistas ou de jornais específicos.
As relações entre mídia, política, memória e história são tratadas a
partir desse recorte. Poderíamos situá-lo por meio das seguintes questões:
como se cruzam as representações sobre a história recente do país e aquelas
que são cultivadas pela própria imprensa sobre seu papel (papel do jornalis-
mo, de jornais e de jornalistas) na sociedade? Quais as sobreposições entre
as significações atribuídas ao golpe e à ditadura e aquelas que compõem um
ethos para o jornalismo, vinculando-o de modo peculiar ao funcionamento
da democracia? E ainda, como crise e golpe ganham sentido em uma tem-
poralidade que, ao que nos parece, delimita a compreensão do passado e
assegura um lugar de relevância para a imprensa no presente?
1964, como se sabe, é um dos marcos relevantes na história recente
do país. Na literatura acadêmica, aparece como ruptura ou momento de
inflexão em análises que procuram, ao mesmo tempo, atribuir sentido ao
fato e à crise que o engendrou.2 Trata-se de um evento significativo em um
imaginário político que é constituído historicamente e que integra as signi-
ficações sociais que “dão sentido” ao presente e àquilo que “somos”.
A mídia pode ser abordada ao menos de duas maneiras em relação a
essa problemática: a) como instituição central aos processos de significação
nas sociedades contemporâneas e, portanto, como instituição (no sentido
corrente) que é central aos movimentos de afirmação-alteração da institui-
ção da sociedade (no sentido que lhe atribui Castoriadis); e b) como ator

Livro Macos na gaveta.indb 159 17/8/2009 14:22:07


160
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

na crise que engendra o golpe de 1964, na ditadura e no processo de


democratização, de forma não homogênea e não determinada.

Imprensa e crise política

A relação entre a imprensa brasileira e a crise política que


precedeu o golpe de 1964 nos parece importante para a análise dos
discursos que, posteriormente, atribuem sentido ao passado recen-
te. Se esse não é – e certamente não é – o único ou o mais central
entre os aspectos que compõem as representações sobre o golpe e
a ditadura na mídia nas últimas décadas, ganha destaque quando
são observadas as sobreposições entre os sentidos assumidos pela
história recente e os sentidos que se associam ao jornalismo e à im-
prensa nos discursos analisados.
Podemos trabalhar com essa questão em pelo menos dois níveis
correlatos às duas maneiras de abordar a mídia, que foram indicadas
há pouco. Um deles diz respeito aos aspectos de maior duração e que
extrapolam os limites da sociedade brasileira, isto é, ao papel assumi-
do pela imprensa na contemporaneidade, e às relações entre esse papel
e formas de sociabilidade e valores políticos. Estaríamos, nesse caso,
no campo das representações de maior duração, que, na esteira do
que nos diz Castoriadis, constroem temporalidade e orientam o fazer
e o representar social e político. O outro, por sua vez, diz respeito às
peculiaridades da atuação da imprensa no Brasil, e, especificamente,
às peculiaridades de sua atuação na crise que antecedeu o golpe na
ditadura e, posteriormente, no processo de redemocratização.
Os dois níveis só podem ser separados por meio de artifícios
teórico-metodológicos que nos auxiliam na análise do problema. Faze-
mos, aqui, essa opção, tratando inicialmente do primeiro deles. Vale
ressaltar, porém, que são imbricados, constituindo-se mutuamente.
Vários autores já observaram as correlações entre os fundamen-
tos do liberalismo e a construção material e simbólica do papel da
imprensa a partir da modernidade, fundado sobre a centralidade que a
“crítica” e a “opinião pública” assumem com o advento do iluminismo
e da esfera pública burguesa.3
Em Crítica e crise, o filósofo alemão Reinhart Koselleck analisa,
em autores que compõem o pensamento iluminista, a relação que se
estabelece entre a percepção da história como progresso e a visão
que os intelectuais têm de seu papel e de sua ação no contexto da
crise que marca a decomposição do regime absolutista, com suas
formas materiais e simbólicas de legitimação. Algumas de suas hi-
póteses a respeito da relação entre crítica, temporalidade e crise no

Livro Macos na gaveta.indb 160 17/8/2009 14:22:07


161

Flávia Biroli
pensamento iluminista parecem-nos particularmente interessantes
para esta reflexão.
No processo histórico em que se estabelece a contestação
da submissão da moral privada à autoridade do Estado, colocando
em questão a divisão entre homem e cidadão, que caracterizou o
período absolutista, ganham relevância as noções de crítica, julga-
mento e opinião. A crítica se estabelece como o movimento da moral
privada em direção à esfera pública, constituindo, paulatinamente, a
legitimidade do ato de julgar as decisões do Estado. Dos súditos, cuja
liberdade consistia na manutenção de seus julgamentos e valores em
sigilo, passa-se ao cidadão como o portador dos valores que definem
a autoridade pública.
Nesse caminho, complexo e não homogêneo, o segredo teria sido
a chave por meio da qual se organizou a atividade crítica. Nas lojas ma-
çônicas ou nos salões, a sensibilidade que nasceu da insatisfação com
o regime absolutista protegeu-se do Estado pelo segredo, cuja função
protetora “encontrava seu correlato espiritual na separação entre moral
e política”.4 A transição de uma liberdade interior moral para uma liber-
dade exterior política teria sido encoberta pelo segredo, não apenas para
o Estado, mas também para aqueles que a viveram. Se foi por meio do
segredo que a consciência privada pôde ampliar-se,5 foi também nesse
movimento que se constituiu uma atividade crítica que se apresenta
como fundada em juízos morais universais e em uma competência que
deles nasceria para julgar, de fora, o domínio da política. Desse modo,

A crítica política não reside somente no juízo moral enquanto


tal. Está presente no momento em que se executa a separação
entre uma instância moral e uma instância política, não só por
submeter a política a um juízo severo, mas também, pelo con-
trário, por separar-se como uma instância que tem a faculdade
de julgar o domínio da política. Esta separação já encerra a
crítica ao Estado.6

Essa divisão, que é ao mesmo tempo pressuposto e conse-


quência da crítica política tal como se constitui, sobretudo no século
XVIII, está na base do pensamento liberal. O paradoxo destacado
por Koselleck nos aparece, assim, como um dos nós desse mesmo
pensamento: a composição de uma crítica política que se estabelece
na medida em que nega seu caráter político, a materialização de uma
crítica ao presente que constrói suas bases de legitimidade na medida
em que obscurece seus liames com os conflitos presentes, situando
no futuro o locus de sentido da crítica e dos críticos.

Livro Macos na gaveta.indb 161 17/8/2009 14:22:07


162
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

A estrutura temporal da crítica corresponderia, assim, à noção de


progresso.7 A obrigação do crítico seria em relação ao futuro. “A vincula-
ção com o futuro, criada pelo próprio juiz racional”, o teria emancipado
para criticar o presente, “proporcionando ao executor da crítica, no
presente, um espaço de absoluta liberdade”.8 Segundo Koselleck, é esta
vinculação com o futuro que, ao mesmo tempo, isenta os atores de sua
responsabilidade política e encobre até o fim o fato de que existe crise
política e de que a crise, como tal, exige decisões políticas.
O estatuto paradoxal da crítica iluminista permite que, ao
mesmo tempo, represente a crise como abertura, mas o faça em uma
filosofia da história capaz de antecipar sua resolução como algo que
se daria no plano moral, considerando-a, como tal, predeterminada.
Dizendo de outro modo, a “pergunta ao futuro” é feita apenas se e na
medida em que se delimita o leque de respostas possíveis em uma
projeção homogênea do tempo, que procura dominar a alteridade que
é constitutiva do social-histórico.
Voltando às palavras do autor,

A filosofia da história, mediante a qual o burguês antecipa o


fim da crise, garantia que a decisão esperada expressava um
juízo moral, pois “a razão prática reinante”, como dizia Kant, era
capaz de fornecer a interpretação “autêntica” da história – uma
história como processo moralmente legal. Assim, a guerra civil
foi invocada na medida em que seu desenlace já estava fixado.
A crise, como crise política, permanecia encoberta.9

Ao dizer que a crise, como crise política, permanecia encoberta,


Koselleck refere-se ao fato de que permanece encoberto o caráter
indeterminado dos eventos humanos, que traz para o centro da com-
plexidade dos eventos e crises as decisões tomadas pelos atores,
sua ação em relação a um presente que não está definido e que não
é uma etapa pré-significada de um tempo histórico homogêneo (do
progresso ou da decadência).
A percepção do tempo histórico como tempo evolutivo-progres-
sivo, situando a crise como uma espécie de intensificação do tempo
em direção a um outro que é apenas o desdobramento do mesmo, faz
com que a crítica se construa e se exerça apenas dentro dos limites que
negam sua existência como crítica política. Se, inicialmente, a necessidade
do segredo constrói essa representação, posteriormente, a construção
de um lugar para o crítico no futuro delimita seus traços.
É central à análise de Koselleck a percepção de que a crítica e
a desvinculação dos atores em relação ao tempo presente constituem

Livro Macos na gaveta.indb 162 17/8/2009 14:22:07


163

Flávia Biroli
uma mesma dinâmica. Nela, seria representada a superioridade de uma
crítica que, de fora da política e, como tal, do próprio presente, seria
capaz de julgá-la e trazer à luz a verdade ocultada (pelo Estado, pela
autoridade). A crise como instante de indeterminação seria, assim, ocul-
tada pela crise vista como episódio de um desenvolvimento já previsto
rumo ao futuro, que asseguraria ao crítico seu pertencimento aos “no-
vos” tempos, na medida em que ele seria portador da ação que denuncia
os obstáculos a uma verdade anunciada, localizada no futuro.

Dominar o tempo, garantir a eficácia do ethos

O recurso a essas reflexões se deve, especificamente, à hipótese de


que existe uma correlação entre a noção iluminista de “crítica”, o esvazia-
mento do político como dimensão da história (Koselleck, na discussão já
mencionada, e D’Allonnes) e a construção de um lugar neutro, apaziguado
ou exterior aos conflitos, para a imprensa. Esse lugar, constitutivo do ethos,
implica na sobreposição de dois aspectos: um, supostamente técnico,
refere-se à objetividade como valor, procedimento e forma de legitimação
do trabalho e do discurso jornalístico; outro, reconhecido como político,
refere-se ao liberalismo como um conjunto de valores não apenas asso-
ciados à imprensa, mas que seria sua condição de existência, marcando-
se, entre outras coisas, por uma defesa da liberdade de expressão que
silencia sobre a relação intrínseca entre as formas de concentração de
poder e as possibilidades e restrições ao exercício dessa liberdade. Ao
longo do século XX, pode-se observar uma transposição, das referências
à tradição liberal, para um conceito amplo (e de certo modo esvaziado) de
democracia na construção de identidades e relevância para o jornalismo.
De maneira correlata, a liberdade de expressão continuaria, predomi-
nantemente, a ser tematizada sem uma referência ao funcionamento das
empresas jornalísticas, à concentração de recursos e poder que permite
delimitar o que é “livremente” dito e publicizado.10
No período que delimita o objeto de análise desta pesquisa, con-
vivem de forma peculiar estratégias para a afirmação da objetividade
e o recurso à democracia como “lugar comum”, no sentido trabalhado
por D’Allonnes, isto é, como clichê, como estereótipo, em formulações
nas quais “o consenso é o correlato da imprecisão semântica e da
diluição do conceito”.11
Embora não seja objetivo deste trabalho tratar da atuação
da imprensa brasileira na crise que antecedeu o golpe de 1964, mas
discutir as representações recentes sobre o golpe e a ditadura nas
páginas de jornais e revistas, é necessário indicar alguns aspectos
relacionados àquela atuação.

Livro Macos na gaveta.indb 163 17/8/2009 14:22:07


164
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

Durante o chamado período democrático de 1945-64, a maior


parte dos jornais e revistas da grande imprensa alinhou-se, em mo-
mentos-chave, a posicionamentos antigetulistas que constituíram, em
alguns momentos e situações, ações e opiniões golpistas. Isso pode ser
observado durante os trabalhos da Constituinte de 1946, a campanha
para as eleições de 1950, a CPI do jornal Última Hora (único jornal, entre
os de maior circulação, ligado a Vargas durante todo o período), as
semanas que antecederam o suicídio de Vargas, as eleições de 1955,12
e, sobretudo, o período entre a renúncia de Jânio Quadros e o golpe
de 1964. Como se sabe, a polarização entre getulismo e antigetulismo
sobreviveu ao suicídio de Vargas e esteve relacionada a outros debates
e conflitos políticos, que não cabe aqui discutir. Quando o foco das
críticas se voltou para Goulart, sobrepuseram-se antigetulismo, anti-
comunismo, resistência à centralidade cada vez maior dos sindicatos
na política, resistência a mudanças sociais e à exposição ampliada de
demandas dos trabalhadores; resistências, enfim, às transformações
em curso, que poderiam reconfigurar os limites do debate público e da
esfera política no Brasil. Os artigos publicados pelo jornalista e político
udenista Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa, naquele momento,
são, talvez, o exemplo mais forte dessas sobreposições.
É importante, para os objetivos deste trabalho, lembrar que La-
cerda não esteve isolado: os principais jornais do país posicionaram-se
a favor do afastamento de Goulart e, com ênfase e envolvimento dife-
renciados, a favor de um golpe que, ao afastá-lo, restauraria a “ordem”
e protegeria o país da demagogia, do sindicalismo, do comunismo,
da subversão dos valores, de uma suposta ditadura de esquerda. É
importante, também, ressaltar que, se não era possível, então, com-
preender que o golpe se desdobraria em uma ditadura militar que
duraria mais de 20 anos (a expectativa de muitos era de um retorno
próximo de eleições que, expurgado o campo político, levariam ao
poder seus candidatos), a aposta de que ele traria ganhos para algu-
mas empresas e empresários da área de comunicação confirmou-se
ao longo do regime (os casos da Rede Globo e do jornal Folha de S.
Paulo são os mais conhecidos).

Um lugar garantido para o jornalismo no presente –


ou a negação do “tempo da ação precária”

No material pesquisado, há poucas referências à participação


de jornais e jornalistas no golpe de 1964. A maior parte das reporta-
gens e artigos que se pronunciaram a respeito da atuação da imprensa
assume um discurso que se constitui na oposição entre repressão

Livro Macos na gaveta.indb 164 17/8/2009 14:22:07


165

Flávia Biroli
e busca pela liberdade de expressão e informação. Em 1984, no ma-
terial relativo aos 20 anos do golpe, e em 1985, no material relativo
à campanha pelas diretas e à eleição do primeiro presidente civil,
pelo Colégio Eleitoral, após 21 anos de ditadura, nenhuma matéria
explicita tal envolvimento. Em 1994, a Folha de S. Paulo o faz, ainda
que com representações que não desestabilizam a polarização entre
censura e liberdade de imprensa, ditadura e resistência. Em meio
aos lugares comuns sobre o combate entre ditadura e imprensa e ao
cultivo recorrente da memória relacionada aos episódios da publi-
cação de receitas de bolo em lugar de material jornalístico, o texto
traz a seguinte passagem:

Otávio Frias Filho, atual diretor de Redação da Folha, diz que


durante o período inicial, o regime militar teve apoio de pra-
ticamente toda a mídia. Seguiu-se um período intermediário,
que coincidiu com o endurecimento do regime, em que algumas
publicações, entre elas O Estado de S. Paulo, tiveram uma atitude
de resistência. A Folha não tinha condições de levar adiante uma
resistência desse tipo, mas teve uma participação realmente
importante no terceiro período do regime militar, a partir do
final do governo Médici e início do governo Geisel, quando o
jornal contribuiu muito para a redemocratização.13

Nenhuma palavra sobre o que significa “não ter condições” ou


sobre o apoio à repressão.14 Menos de um mês depois, uma reporta-
gem a respeito da campanha pelas diretas reforça o discurso anterior.
“Folha apoiou primeiro” é o título do Box, no qual se lê não apenas que
a Folha foi o primeiro veículo de imprensa a apoiar eleições diretas
para a sucessão de Figueiredo, mas também que foi o que “se empe-
nhou mais abertamente pela aprovação da emenda Dante de Oliveira”,
publicando vários editoriais com esse objetivo e lançando “a idéia de
se utilizar a cor amarela como a expressão do desejo de se votar para
presidente”.15
No material do ano de 2004, dois jornais tratariam explicitamen-
te do apoio ao golpe (O Globo e, novamente, Folha de S. Paulo) e um
deles (Jornal do Brasil) trataria do assunto indiretamente, por meio
de uma entrevista com a historiadora Beatriz Kushnir.
O jornal O Globo é o que chega mais perto de uma ruptura ou
deslocamento em relação aos discursos mais estáveis (censura versus
liberdade de expressão). O título – “Militares assumiram com apoio da
imprensa” – e a linha-fina – “Desde o começo do golpe a mídia teve uma
relação amistosa com a ditadura” – abrem o texto, no qual se lê:

Livro Macos na gaveta.indb 165 17/8/2009 14:22:07


166
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

[...] o traço mais forte da relação com o poder, em 21 anos de


regime, não foi exatamente o de confronto, embora eles tenham
existido em alguns momentos. Desde o início, marcado por um
apoio unânime e entusiasmado, a chamada grande imprensa
teve um convívio amistoso com os militares, razão pela qual até
a censura prévia foi irregular e localizada no período.

A reportagem trata, inclusive, do apoio do Globo ao golpe. Trans-


creve trechos de editoriais, reproduz capas de alguns dos principais
jornais no mês de abril de 1964, faz referências ao apoio da Folha ao
regime durante o governo Médici e transcreve um trecho do Dicionário
Histórico-Biográfico da FGV em que O Globo é descrito como “o mais
governista dos jornais”. A discussão não se restringe a essa edição
do jornal, estando presente também em outras edições nos meses de
março e abril de 2004.
Nossa hipótese é de que esse posicionamento crítico se sustenta e
é possível na medida em que se assume a existência de uma ruptura entre
passado e presente, de uma ruptura entre autoritarismo e democracia
que constituiria os modos de agir da mídia no presente. Assim, mesmo
quando se assume que a polarização entre ditadura e imprensa não
corresponde à complexidade desse processo e às ações de jornais e
jornalistas, como nas matérias do jornal O Globo, há uma clara associa-
ção entre crise, autoritarismo e um passado já encerrado que se abriria
para a democracia como realidade consensual. Daí a possibilidade de
se assumir erros, expor o envolvimento com o regime: hoje, implícita
ou explicitamente, propõem os discursos, somos todos democratas
e a imprensa assume seu papel.
Um artigo de Carlos Heitor Cony, publicado na Folha também
em 2004, expõe justamente esse aspecto das representações predo-
minantes. No artigo, ele fala, inicialmente, do apoio amplo ao golpe.
O Correio da Manhã, onde trabalhava e no qual foram publicados os
famosos editoriais pedindo o afastamento de Jango, é caracterizado,
no entanto, não por esse apoio, mas por ter sido o primeiro jornal a
colocar-se contra “a maioria dominante que incluía militares, empresá-
rios, igreja e povo em geral. E a própria mídia”. O mais interessante é
que o artigo caminha de um “todos a favor do golpe”, passando pelos
primeiros atos de resistência, a um “todos contra o regime ditatorial”.
Quando o Correio passou, mais tarde, a denunciar a tortura, a violência
e a “burrice” do “movimento” de 1964, diz Cony, não ficou sozinho na
denúncia crítica, “que logo se tornou aspiração de todos e pela qual
tantos morreram”.16

Livro Macos na gaveta.indb 166 17/8/2009 14:22:07


167

Flávia Biroli
O jornal O Estado de S. Paulo não menciona sua participação no
golpe em nenhum dos textos analisados na pesquisa. Em 2004, como
em 1994, o jornal tematiza a censura sofrida e destaca a atuação de
Júlio de Mesquita Filho e a repressão contra o jornal.17 O marco inicial
das narrativas não é 1964, mas 1968, quando o Estado passa a sofrer a
censura do regime. No texto, 12 de dezembro de 1968 marca o início
de “um dos piores períodos de censura à imprensa no país”. Durante
o governo Castelo Branco, a censura e a repressão teriam sido focadas
em “jornais de tendência política mais à esquerda”, mas teria prevale-
cido “uma certa liberdade”: “na oficina do Estado, naquela madrugada
[de 12/12/1968], até ela começava a desmoronar”.18
Assim, predominantemente, as referências ao tema, em 1994 e
2004, oscilam entre a negação e o reconhecimento da participação da
imprensa no golpe de 1964 (e da complexidade de suas relações com
o regime), mas sem romper com uma oposição simplista entre repres-
são e liberdade, que orienta sua inserção no presente. Há dois textos,
no entanto, que, de maneiras diferenciadas, ultrapassam a oposição
simples entre ditadura/passado e democracia/presente.
Um deles é um artigo publicado, em 1994, pelo jornalista Fernan-
do Pedreira, no Jornal do Brasil. É menos interessante para a discussão
feita neste trabalho, por não tocar na relação específica entre veícu-
los de imprensa e a ditadura, ou nos limites estruturais à liberdade
de expressão e à liberdade de informação, mas trata criticamente a
liberdade que teria sido conquistada.

Trocamos a liberdade pela aparência da liberdade; pelo seu


fantasma colorido. As pessoas se vestem como querem, mas se
vestem todas com as mesmas roupas. Pensam o que querem,
mas pensam todas as mesmas coisas. É uma ‘liberdade’ de mas-
sas, para as massas, regulada e administrada pelo marketing,
pela mídia e pela moda.19

O outro é mais relevante para este trabalho. Foi publicado na


revista Carta Capital e assinado por Aloysio Castelo de Carvalho, autor
da tese de doutorado sobre a CPI do jornal Última Hora.20 Destoa do
discurso predominante porque, ao expor a participação da imprensa
no golpe, levanta hipóteses sobre as razões dessa participação, em
vez de apresentá-la como uma espécie de equívoco corrigido pelo tem-
po. Segundo a análise de Carvalho, jornais da grande imprensa teriam
atuado na reestruturação do poder em 1964 como braço ideológico da
burguesia, em associação com o capital internacional (o que alinha
o autor à tese de René Armand Dreifuss). Ele problematiza, ainda, a

Livro Macos na gaveta.indb 167 17/8/2009 14:22:07


168
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

projeção que posiciona a imprensa no “papel de autêntica representante


da sociedade”, valorizando a “imprensa privada como espaço público
para direção do processo político”, em detrimento de outras formas de
representação e participação. Nesse sentido, segundo o jornalista, “a
concepção liberal de valorizar o papel mediador da imprensa na crise
das instituições representativas teve um conteúdo conservador”.21
Aponta, pois, para uma análise que trata da atuação da imprensa
superando a oposição simplista entre censura de Estado e liberdade,
conferindo a essa atuação caráter político, ao mesmo tempo que desta-
ca explicações de caráter estrutural. As perspectivas que constituem
esse discurso, como foi dito, não obtiveram espaço em outros veículos
e reportagens que compõem o material pesquisado.

Crítica e refúgio no passado: heróis de um tempo que se foi

A maior parte das matérias que compõem nosso objeto de análi-


se constrói-se, assim, na contraposição entre censura de Estado e luta
em prol da liberdade de imprensa, ditadura e resistência. Além das
discussões já citadas, são muitas as matérias que tratam da atuação
de jornalistas individualmente, sem referência à posição das empre-
sas para as quais trabalhavam, construindo-os como heróis de um
tempo que se foi, politicamente ativos em um tempo de polaridades
e conflitos dos quais o presente se teria esvaziado. Indicamos, nes-
sas formulações, a convivência entre uma relação heroicizada com o
passado e o esvaziamento do presente como tempo de conflitos, aberto
a decisões e a formas de comprometimento.
O material traz muitos testemunhos de jornalistas sobre momen-
tos de tensão associados à crise, ao golpe, à ditadura, ao exílio forçado.
Diferentemente da questão anterior, a da participação das empresas
no golpe e na ditadura, este aspecto do material aparece de maneira
bastante homogênea nos diferentes períodos e veículos analisados.
Textos publicados pelo Correio Braziliense na edição de 31 de
março de 1985, focados em depoimentos, compõem-se de represen-
tações bastante semelhantes, por exemplo, àquelas que constituem o
caderno especial sobre o golpe publicado pelo Jornal do Brasil em 11
de abril de 2004. Neste último, o artigo “Aventura em campo minado”
relata a experiência de um jornalista do Última Hora em 31 de março
de 1964, em busca de uma entrevista com o general Olímpio Mourão
Filho, enquanto um outro, “A história pela lente de uma Rolleyflex”,
relata a experiência do jornalista Alberto Jacob, no Palácio da Guana-
bara, durante a noite de 1o de abril. Expõe, também, as representações
às quais me refiro: “Como profissional, Alberto Jacob cumpriu sua

Livro Macos na gaveta.indb 168 17/8/2009 14:22:07


169

Flávia Biroli
função, documentando cada lance, cada fato. Como cidadão, revela,
sentiu-se triste, profundamente triste por estar diante de um futuro
incerto, ainda inatingível pelas lentes da sua Rolleyflex”.
Nos vários artigos, notas e reportagens publicados, baseados
em testemunhos, não há qualquer discussão mais abrangente ou mini-
mamente contextualizada a respeito das relações entre a imprensa e a
queda de Jango, entre a imprensa e o regime. Em geral, a estrutura é:
“fulano” esteve presente durante tais “fatos”, “beltrano” arriscou-se para
conseguir informações durante a repressão exercida pelo regime.
A edição de 4 de abril de 1984 da revista Isto é publicou 24 de-
poimentos sobre o golpe e a ditadura, dados por políticos, jornalistas,
poetas, militares, artistas. São, em geral, críticos ao golpe e à ditadura,
como os do jornalista Raul Ryff (“a revolução de 1964 inviabilizou o
Brasil”), do poeta Carlos Drummond de Andrade (“a vida pública
nesses vinte anos deteriorou-se [...] a revolução prejudicou todos os
brasileiros [...] foi um grande erro histórico”), de Miguel Arraes (“eles
elitizaram o país. Interromperam o avanço para a horizontalidade da
renda [...] temem o reclamo das grandes massas marginalizadas”),
do comediante Renato Aragão (“quero escolher o presidente do meu
país e não deixam”) e do jogador de futebol Sócrates (“nosso povo
perdeu tudo”).
Entre eles, chama a atenção o depoimento da mais jovem entre
as “personagens” da matéria, um rapaz de 20 anos, nascido em 31 de
março de 1964. O título, “Sem culpar ninguém”, reflete o tom dos enun-
ciados que compõem o depoimento publicado: “Não sei se todos esses
governos foram chefiados por militares ou civis [...] Os militares são
todos meio furados [...] Não creio que a Revolução tenha influído na
minha vida” e, finalmente, “Não quero responsabilizar ninguém”.22
Essa percepção, contrastante com o cultivo da imagem de en-
gajamento – sobretudo dos próprios jornalistas – no passado recente,
reapareceria em outros momentos. Em 1994, uma matéria publicada
no jornal O Globo traz um “box” assinado pelo jornalista Luciano
Trigo, nascido em 1964 (informação que consta no final do texto),
discutindo criticamente um suposto saudosismo de jovens que não
viveram a ditadura e suas percepções sobre o presente e o passado
recente. A partir de uma pergunta, que teria sido feita por um jovem
em um encontro sobre a ditadura realizado na PUC-Rio, falando da
“inveja” que sua geração sentia daqueles que viveram a ditadura, o
jornalista levanta hipóteses para explicar esse saudosismo. Uma série
de lugares comuns sobre o período constrói o discurso – a riqueza
ímpar da cultura brasileira, a definição de uma identidade coletiva
pela confrontação com o “inimigo comum”; depois, recentemente, uma

Livro Macos na gaveta.indb 169 17/8/2009 14:22:08


170
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

crescente “alergia à política”, acompanhada de uma crise econômica


que teria levado toda uma geração a um “individualismo materialista”
e a uma ausência de expressão artística autêntica.
A parte final do texto interessa particularmente a esta discussão,
na medida em que expõe uma concepção esvaziada de democracia,
muito presente no material. Após levantar hipóteses para o “fascínio”
dos jovens pelo passado recente, alerta para o risco de se viver “pro-
blemas e angústias de segunda mão” ou transformar “a ditadura em
uma idade de outro”, uma “Arcádia verde-oliva onde buscam refúgio
os que num regime de liberdade não encontram pretextos para o
marasmo cultural”. A sentença, então, é dada:

A democracia pela qual se lutou está aí faz tempo. Não existe mais
censura, a não ser a da falta de talento. Já é hora de parar de culpar
a ditadura pela crise de criatividade e ousadia. Ou então admitir
que neste país a cultura não se dá bem com a democracia.23

A ênfase na democracia conquistada é, sem dúvida, parte das


representações sobre o passado presentes nos textos. Nesse caso,
os silêncios em relação ao presente correspondem a representações
homogêneas e esvaziadas sobre o passado recente.

Crítica e representação homogênea do tempo histórico

Estamos em uma democracia, chegamos a ela. A censura no


passado é a liberdade no presente. Somos todos, afinal, democratas.
Os meios de comunicação podem, agora, livres da censura, colabo-
rar para a consolidação democrática... Essas afirmações compõem
percepções centrais à construção de um ethos para a imprensa e os
jornalistas no material pesquisado.
É exemplo importante a publicação, no Correio Braziliense, em
março de 1984, de discussões e artigos relacionados à mesa-redonda
promovida pelo jornal para discutir telejornalismo e política, com
a presença de Antonio Brito, então editor regional da Rede Globo, e
Alexandre Garcia, na época editor regional da Rede Manchete. À trans-
crição do debate, o Correio adiciona artigos e reportagens escritos
pela equipe do jornal e uma entrevista com Carlos Henrique Santos,
então diretor de jornalismo do SBT.
Os problemas discutidos dizem respeito, sobretudo, às infor-
mações políticas (possibilidades e obstáculos), à relação entre tele-
jornalismo e transição e às peculiaridades do jornalismo televisivo
em relação ao radiofônico e ao impresso.

Livro Macos na gaveta.indb 170 17/8/2009 14:22:08


171

Flávia Biroli
Um dos principais marcos dos discursos que compõem os
debates consiste na afirmação de que não há mais censura por parte
do Estado e, portanto, há liberdade de imprensa, uma vez que seriam
quase inexistentes as restrições por parte das empresas. Alexandre
Garcia afirma que “pode haver insinuação, mas não chega ao ponto
de ser caracterizada como censura”.

[...] a TV Manchete hoje, desde que foi ao ar, não tem sentido
restrições de espécie alguma para a sua cobertura. O que há
são recomendações de ordem geral que mais dizem respeito à
responsabilidade da TV do que outra coisa [...] Na cobertura
política se evita fazer proselitismo das coisas. Trazer o comício
para dentro da televisão, isso não. Existe uma campanha para
eleições diretas, muito bem. Existe, há notícia e vamos noticiar.
Agora, não vamos fazer proselitismo disso.24

Apesar de sua perspectiva ser ancorada em uma noção de


objetividade que legitima o não posicionamento (“não vamos fazer
proselitismo disso” poder ser lido como não vamos nos posicionar
em relação ao isso, vamos noticiar “os fatos”), a TV e o telejornalis-
mo, especificamente, são vistos como parte de um processo amplo
de politização. As pessoas estariam descobrindo que “existe lá um
negócio chamado política que é o que dirige o País”, “iniciando-se
nessa confusão toda...”, como diz Garcia.
Vale destacar a grande ênfase no “novo”, que convive, na ma-
téria, com o silêncio sobre as relações entre as emissoras de TV, em
especial a Rede Globo, e a ditadura. Os seguintes enunciados, proferi-
dos por Brito, funcionam nesse sentido: “Se a gente tem um país novo,
uma TV nova, a gente tem também, é óbvio, um público novo”.25
Além dos aspectos já destacados, o discurso se constitui da
oposição entre censura e livre expressão, repressão e conscienti-
zação, já indicada nos textos anteriores. O interesse crescente pelo
telejornalismo, diagnosticado pelos jornalistas que fazem parte das
reportagens, é vinculado à politização da população, que seria de-
corrente da abertura política. Pouco ou nada se diz sobre o assunto,
no entanto, caracterizando, apenas, os meios de comunicação, e em
especial a televisão, como agentes relevantes desse processo.
Carlos Henrique Santos, então editor do SBT em Brasília, é
bastante enfático:

A última vez que tivemos livre imprensa no País, a TV era muito


incipiente. Passados estes anos de arbítrio, de sufoco político, o

Livro Macos na gaveta.indb 171 17/8/2009 14:22:08


172
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

processo (político) começou a se oxigenar e encontrou a televi-


são já num ponto importante e avançado de desenvolvimento.
Hoje o que nós vivemos é a abertura em rede. Sempre se viveu
no Brasil uma situação onde tudo era dado por um acordo de
elites. E o que esta rede nacional permite é a horizontalização
da informação: a democratização da informação do País que
está sendo conquistada em todos os níveis e sobre todos os
problemas. A partir do momento em que a informação é que
possibilita a formação de uma consciência sobre tudo, a TV
passa a ocupar um espaço de muita responsabilidade neste
processo. Assim, fica mais difícil que tudo se resolva na cúpula,
numa reunião de elites.26

Como se pode observar, o jornalismo (no caso, o televisivo) seria


a grande “vedete” de um movimento de abertura, democratização, des-
coberta. Pode-se, assim, indicar, como parte dessas representações,
a projeção de um lugar de destaque para os jornalistas como atores
nesse processo, em uma progressão que esvazia os conflitos, limites
e restrições que constituem não só a transição para a democracia, em
sentido amplo, mas a atuação dos meios de comunicação de massa,
mesmo com o enfraquecimento da censura de Estado. Talvez possamos
ler a afirmação “a TV deve ter consciência de sua responsabilidade
como veículo de massa” como “a TV deve ser a consciência” da demo-
cratização. É interessante, ainda, a correspondência entre informar-se
e participar, traçada por Antonio Brito: “as pessoas estão buscando
cada vez mais notícias e estão querendo cada vez mais participar [...]
tem que haver um mercado da notícia e esse mercado só haverá se
houver participação, pelo menos isso”.
Formulações semelhantes a respeito do papel do jornalismo
fazem parte de uma reportagem publicada na revista Veja, também
em 1984, a partir de uma pesquisa do Instituto Gallup sobre o nível de
confiança nas instituições, com dados que revelariam um nível baixo
de confiança na imprensa.
Na reportagem, a discussão sobre as razões para a baixa credi-
bilidade se constitui a partir de discursos fundados na oposição entre
censura e livre expressão, associada à oposição entre manipulação e
objetividade, neutralizando algumas possibilidades tímidas de uma
discussão crítica com base no funcionamento da mídia e nas pressões
e influências sofridas.27 Essa crítica é feita pontualmente, como nas
declarações de Luís Inácio Lula da Silva (“os órgãos de comunicação
ainda estão muito subordinados à questão econômica e à ideologia
dos seus proprietários”) e de Leonel Brizola (“tudo é editado como

Livro Macos na gaveta.indb 172 17/8/2009 14:22:08


173

Flávia Biroli
convém ao órgão de imprensa”, “a imprensa se tornou muito empre-
sarial, desapareceram os jornais de opinião”).
A revista, no entanto, assume o discurso da superação da cen-
sura, da manipulação e dos equívocos por meio do aprimoramento da
imprensa, indicando, inclusive, que as percepções das pessoas que
responderam à pesquisa estariam incompletas e distorcidas.28 Dedica
vários parágrafos ao aprimoramento técnico e profissional, visto como
fator importante rumo a uma menor “distorção” da realidade. “Liber-
tada da censura em 1976”, a imprensa poderia, então, exibir seu “vigor
em defesa do bem comum e à custa de embates com o poder”.29

Conclusão

A estrutura temporal da crítica, como na análise de Koselleck,


parece corresponder à noção de progresso. Ancora-se, predominan-
temente, em um passado de embates – esvaziando a complexidade da
crise que levou a 1964, na medida em que suprime conflitos e opções,
apresentando as posições assumidas como “equívocos” superados por
um processo supostamente homogêneo de abertura e democratiza-
ção. Ancora-se, ainda, em um futuro delimitado por uma noção vaga
de democracia, na medida em que o presente é representado como o
contraponto da repressão. A democracia caracterizaria o momento
“novo”, materializando a superação dos obstáculos à liberdade e lo-
calizando a crise, definitivamente, no passado.
Sem assumir um paralelo entre os conflitos que marcaram o
final do século XVIII e os que correspondem ao período pesquisado,
que sabemos não existir, indicamos a existência de elementos comuns
entre as representações que compõem o pensamento iluminista (aqui,
de acordo com as análises de Koselleck) e representações de longa
duração sobre a imprensa e o jornalismo que constituem os discursos
no material analisado. Neles, essas representações nos remetem ao
pensamento liberal clássico, a suas estruturas temporais e à relação
entre progresso e razão, assumindo um funcionamento peculiar na
construção de memórias sobre o passado recente e, sobretudo, de
memórias e projeções sobre a atuação de jornais e jornalistas.
Como na análise de Koselleck, nas representações sobre o golpe
e a ditadura aqui discutidas, a crítica política parece estabelecer-se na
medida em que nega seu caráter político. Materializa-se como crítica
apenas na medida em que obscurece seus liames com os conflitos
presentes, situando, ora no passado, ora no futuro, o locus de sentido
para a crítica. No caso específico do jornalismo, essas representações,
associadas à valorização da isenção e de noções correlatas, isentam

Livro Macos na gaveta.indb 173 17/8/2009 14:22:08


174
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

os atores de sua responsabilidade política e encobrem o fato de que


a crise não é uma determinação localizada no passado e ligada a
uma superação enunciada a priori pelos movimentos de uma história
progressiva. Ao contrário, as decisões tomadas estendem-se sobre
o presente e constituem seus conflitos, ainda que o “desfecho” não
esteja claro, nem seja previsível.

Notas
1 Trabalhamos com textos escritos nos meses de março e abril de 1984, 1994 e 2004
(relacionados aos aniversários do golpe de 1964) e 1985 (relacionados à eleição do
primeiro presidente civil, pelo Colégio Eleitoral). O material coletado consiste em
1.314 matérias, das quais 72 foram agrupadas sob a temática “imprensa”. Foram
analisados os jornais O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do
Brasil e Correio da Manhã e as revistas Veja, Época, Carta Capital e Isto É.
2 Para um mapeamento das perspectivas predominantes nas ciências sociais e na
história sobre o golpe e a ditadura recente, cf. FICO, Carlos. Além do golpe: versões
e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004; FICO,
Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 24, no 47, Dossiê Brasil: do ensaio ao golpe (1954–64), p.
29–60, 2004; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidade e interpre-
tações. In: RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe e a ditadura
militar: 40 anos depois. Bauru: Edusc, 2004. p.15–28.
3 Autores como Darnton, Habermas, Koselleck e Nascimento, no século XX, e como
Tarde e Tocqueville, no século XIX, para citar apenas alguns deles, apresentam
perspectivas e análises relacionadas a essa problemática.
4 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. p. 66.
5 Ibid., p. 74.
6 Ibid., p. 92.
7 Segundo Koselleck, este seria o modus operandi da crítica mesmo quando o pro-
gresso não se apresenta como movimento ascendente, mas aponta para o futuro
como destruição e decadência, o que observa por meio da análise do pensamento
de Pierre Bayle.
8 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. p. 97.
9 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. p. 138.
10 Para análises que retomam o debate a partir das décadas de 1940–50, cf. BIROLI,
Flavia. Liberdade de imprensa: margens e definições para a democracia durante o
governo de Juscelino Kubitschek (1956–60). Revista Brasileira de História, São Pau-
lo, v. 24, n. 47, p. 213–240, 2004; BIROLI, Flavia. Técnicas de poder, disciplinas do
olhar: aspectos da construção do ‘jornalismo moderno no Brasil. História, Franca,
v. 26, no 2, p. 118–143, 2007.
11 Tradução livre da autora. No original, “le consensus est le corrélat de l’imprécision
sémantique et de la dilution du concept” (D’ALLONNES, Myriam Revault. Le dépérisse-
ment de la politique: généalogie d’un lieu commun. Paris: Alto-Aubier, 1982. p. 259).
12 BIROLI, Flavia. Jornalismo, democracia e golpe. Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, v. 22, p. 87–99, 2004.
13 Censores proibiam até noticiário sobre a epidemia de meningite. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 27 mar. 1994. Especial, p. B–10.
14 A esse respeito, cf. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores. São
Paulo: Boitempo, 2004.

Livro Macos na gaveta.indb 174 17/8/2009 14:22:08


175
15 “Folha apoiou primeiro”, em “O Brasil nas ruas”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24

Flávia Biroli
abr. 1994. Caderno Mais!, p. 6.
16 CONY, Carlos Heitor. 40 anos depois. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A2, 28 mar.
2004. Grifos da autora.
17 Em carta datada de 12 de maio de 1964, dirigida a Carlos Lacerda e assinada pelo
próprio Júlio de Mesquita Filho, o diretor do Estadão elogia a atuação de Lacerda
na Europa, enviado para a divulgação da nova ordem que se constituíra com o
golpe. Mesquita fala nas proporções assumidas pelo “nosso movimento”, elogia
Castelo Branco (“finalmente pusemos a mão numa personalidade de primeira or-
dem”) e expressa seu apoio à intenção de Carlos Lacerda de suceder Castelo na
presidência da República (“da sua eleição dependerá, segundo estou convencido,
o resultado final do nosso movimento”). Mesquita expressa, no entanto, sua opin-
ião de que a presidência de Castelo não deveria estender-se apenas até a data,
estabelecida inicialmente, de outubro de 1965 – assunto ao qual Francis se referiu,
no próprio jornal dos Mesquita, em 1994. Essa posição é relativamente conhecida:
o mandato do primeiro presidente militar deveria ser prorrogado por três anos. O
que chama a atenção é a maneira como a explicita, com a intenção de convencer
Lacerda de que a prorrogação não comprometeria sua candidatura, como “líder
incontestável da nova democracia”. Suas palavras: “precisamos queimar até o úl-
timo cartucho em defesa de uma oportunidade como a vitória de 31 de março, que
não se repetirá nestes próximos cinqüenta anos”. Carta de Júlio de Mesquita Filho
a Carlos Lacerda, 12/5/1964. Arquivo Carlos Lacerda, UnB. Documento doado pelo
Acervo Histórico da S. A. O Estado de S. Paulo.
18 “É permitido proibir – A liberdade de imprensa sumiu, entre 68 e 75” e “Os jornais
reagiram com receitas, poesia e outros truques”. O Estado de S. Paulo, São Paulo,
p. H8, 31 mar. 2004.
19 PEDREIRA, Fernando. O funil da liberdade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 11, 13
mar. 1994.
20 CARVALHO, Aloysio Castelo de. A opinião pública e a CPI da Última Hora: o governo
Vargas (1951–54). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
21 CARVALHO, Aloysio Castelo de. A imprensa golpista: o papel dos jornais cariocas
da Rede da Democracia na queda de Jango. Carta Capital, São Paulo, 31 mar. 2004.
22 A revolução revisitada. Isto É, São Paulo, 4 abr. 1984.
23 “Anos verde-oliva seduzem os jovens”, na reportagem “Os vivos e os mortos de
64”. O Globo, Segundo Caderno, p. 1.
24 “Vivemos uma lua-de-mel com a abertura”. Correio Braziliense, Rio de Janeiro, p.
17–18, 27 mar. 1984.
25 Ibid.
26 É preciso consciência e responsabilidade. Correio Braziliense, Rio de Janeiro, p.
24–25, 28 mar. 1984.
27 “Os entrevistados pelo Instituto Gallup acham que a imprensa é benevolente com
os políticos ligados ao governo, com o próprio governo e também com as em-
presas [...] acreditam que os jornais ignoram ou atacam em demasia a polícia, os
sindicatos, os políticos da oposição e os criminosos”. Não se diz nada, no entanto,
sobre as relações complexas entre imprensa e política, entre imprensa e poder
econômico (A imprensa julgada. Veja, Rio de Janeiro, p. 42, 11 abr. 1984).
28 A partir da pesquisa, “resulta lógico supor que, para o brasileiro, a imprensa está
mais perto dos fortes do que dos fracos. Pode ser uma visão incompleta, até mes-
mo distorcida, mas, sem dúvida, trata-se de uma má notícia” (A imprensa julgada.
Veja, Rio de Janeiro, p. 50, 11 abr. 1984).
29 Ibid., p. 46.

Livro Macos na gaveta.indb 175 17/8/2009 14:22:08


176
O papel da imprensa por ela mesma: golpe, ditadura e transição
em jornais e revistas brasileiros, entre 1984 e 2004

Referências

BIROLI, Flavia. Jornalismo, democracia e golpe. Revista de Sociologia


e Política, Curitiba, v. 22, p. 87-99, 2004.

. Liberdade de imprensa: margens e definições para a demo-


cracia durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-60). Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 213-240, 2004.

. Técnicas de poder, disciplinas do olhar: aspectos da cons-


trução do ‘jornalismo moderno’ no Brasil. História, Franca, v. 26, n. 2,
p. 118-143, 2007.

CARVALHO, Aloysio Castelo de. A imprensa golpista: o papel dos


jornais cariocas da Rede da Democracia na queda de Jango. Carta
Capital, São Paulo, 31 mar. 2004.

. A opinião pública e a CPI da Última Hora: o governo Vargas


(1951-54). Tese (Doutorado em História)–Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

CONY, Carlos Heitor. 40 anos depois. Folha de São Paulo, São Paulo,
p. A2, 28 mar. 2004.

D’ALLONNES, Myriam Revault. Le dépérissement de la politique: gé-


néalogie d’un lieu commun. Paris: Alto-Aubier, 1982.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidade e interpre-


tações. In: RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe
e a ditadura militar: 40 anos depois. Bauru: Edusc, 2004. p. 15-28.

FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a


ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar.


Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, Dossiê Brasil: do
ensaio ao golpe (1954-64), p. 29-60, 2004.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto,


1999.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores. São Paulo:


Boitempo, 2004.

PEDREIRA, Fernando. O funil da liberdade. Jornal do Brasil, Rio de


Janeiro, p. 11, 13 mar. 1994.

Livro Macos na gaveta.indb 176 17/8/2009 14:22:08


CAMPO JORNALÍSTICO, CAMPO DA SAÚDE E RACIONALIDADES
POLÍTICAS A PARTIR DO ESTUDO DE CASO

DE UM INTELECTUAL-JORNALISTA

Mônica Carvalho

Introdução

Há alguns anos tenho acompanhado o tema da saúde na mídia, que


ganha cada vez mais destaque e importância como notícia. Primeiramente,
nota-se seu apelo comercial, na medida em que, de forma muito frequente,
as notícias referem-se a novas drogas ou tecnologias biomédicas, suposta-
mente capazes de solucionar certos problemas de saúde. Em segundo lugar,
ao informar acerca deste ou daquele assunto sobre saúde, parece existir
a perspectiva de que a mídia contribua para a melhoria das condições de
vida dos indivíduos e das populações. Contudo, se os aspectos comerciais
e educativos são mais perceptíveis, as racionalidades que lhes servem de
base nem por isso se fazem assim tão explícitas.
Para além dos temas em saúde, também destacam-se as fontes auto-
rizadas a dizerem algo acerca da saúde, ou seja, indivíduos do campo bio-
médico a quem os jornalistas recorrem para produzir notícias fidedignas do
ponto de vista médico e científico. Alguns indivíduos, por ganharem muita
visibilidade nos espaços midiáticos, de fontes transformam-se em “jornalis-
tas” e adquirem espaços fixos e até privilegiados em veículos noticiosos. É
dessa forma que se observa o trabalho do médico Dráuzio Varella no Brasil,
nos últimos anos.
Há quase uma década Varella é personagem comum em jornais, te-
levisão, rádio e internet. Sua carreira midiática ganha grande força com a
publicação de seu livro “Estação Carandiru”, em 1999, sobre sua vivência
como médico na Penitenciária do Carandiru, na cidade de São Paulo. Hoje
desativada, Carandiru foi palco de rebelião em 1992, durante a qual 111 pre-
sos foram mortos em confronto com a polícia. Após tornar-se best seller, o
livro transformou-se no filme Carandiru, que concorreu ao Oscar de melhor
filme estrangeiro em 2002.

Livro Macos na gaveta.indb 177 17/8/2009 14:22:08


178 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

A importância do médico neste ensaio deu-se com a pesquisa


de tese em que analiso o nexo obesidade-pobreza no jornal Folha de
São Paulo.1 Do material extraído deste jornal, cerca de 1/5 constituía-
se discursivamente sob a égide do médico, que, de modo veemente,
defende um modelo darwinista acerca da saúde, em particular da
obesidade como doença ou epidemia de origem ancestral. Dessa forma,
identificamos o médico-jornalista como intelectual-jornalista, tal como
o define Pierre Bourdieu, já que defende certa ordem estabelecida,
cujas bases são concepções político-econômicas neoliberais.

Contextualização da discussão

Em dezembro de 2004, circularam na mídia brasileira os resulta-


dos da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2002/2003, realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por mais de
um mês falou-se a respeito deste tema e de todas as consequências
que ele poderia gerar, pois concluía-se que, no Brasil, havia mais
pessoas obesas do que desnutridas. Isto confrontava o país com uma
tendência epidemiológica há tempos identificada nos países mais ricos:
a transição nutricional. Este fenômeno indica o aumento das doenças
crônicas decorrentes do excesso de ingestão calórica e a diminuição
das doenças provocadas pela desnutrição.
Tanto na literatura oficial científica como na mídia, o acesso e o
excesso destacam-se como pivôs de um cenário no qual a transição
nutricional parece generalizar-se. O acesso é o que o mercado de pro-
dutos alimentícios promove desde a segunda metade do século XX,
assim como as políticas de emergência no combate à fome costumam
oferecer. O acesso também parece conduzir ao excesso: de disponi-
bilidade de alimentos, com o aumento da produção industrial, e de
calorias, com o desenvolvimento do fast food, por exemplo.
No entanto, se o contexto socioeconômico parece ter levado
ao que a Organização Mundial de Saúde (OMS) chama de “epidemia
mundial de obesidade”,2 nos discursos desta e de outras instituições,
assim como nos meios de comunicação, este mesmo contexto fica em
segundo plano e a conduta alimentar individual figura como causa
principal de um grave problema de saúde. Assim, passam a ser valo-
rizadas as políticas de controle de si, baseadas na culpabilização e
responsabilização dos indivíduos sobre o que e o quanto comer em
um ambiente de acesso e excesso ou de facilidades e fartura.
Paralelamente a isto, há os que explicam este novo quadro
epidêmico mundial a partir de aspectos genéticos, embora não seja
a explicação predominante entre os que abordam esse tema no meio

Livro Macos na gaveta.indb 178 17/8/2009 14:22:08


179

Mônica Carvalho
científico. A abordagem evolucionista tem origem na teoria do “gene
poupador”, do geneticista americano James Neel. Ele concebia que,
nos primeiros anos de vida, o gene da diabetes era poupador, ou seja,
era altamente eficiente na utilização da comida, conferindo vantagem
de sobrevivência em tempos de escassez de alimentos nas sociedades
que subsistiam através da caça ou das sociedades agrícolas pré-
industriais. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, as sociedades
teriam passado por mudanças em relação à produção de alimentos,
levando-as da escassez para a abundância, o que tornaria o gene
poupador uma desvantagem atualmente, pois seus portadores seriam
mais susceptíveis à obesidade e à diabetes.3
Porém, a concepção evolucionista generaliza o conceito de gene
poupador de Neel e explica a tendência à obesidade a partir da evo-
lução da espécie humana, segundo a qual seríamos descendentes de
homens e mulheres que sobreviveram a situações de penúria. Segundo
afirma a teoria da evolução aplicada ao ganho de peso, na história da
humanidade sobreviveram os indivíduos que tinham grande capaci-
dade de acúmulo de energia ou caloria, associada a uma competência
fisiológica para economizar essa mesma energia acumulada. Este
mecanismo possibilitou a nossos ancestrais enfrentar os tempos de
escassez alimentar. Por sermos o resultado dessa evolução – ou da
adaptação do ser humano à histórica instabilidade da oferta de ali-
mentos –, também teríamos essas mesmas características fisiológicas:
acumulamos e poupamos energia com facilidade.
Apesar de distinta da concepção socioeconômica, o evolucionis-
mo conduz ao pensamento de que a melhor – talvez única – alternativa
para o problema da obesidade é a mudança na conduta alimentar do
indivíduo. Se o peso da responsabilidade pessoal poderia parecer
menor, contudo, a característica determinista desta concepção nos
remete à obesidade como um problema incontornável e, portanto, à
necessidade de o indivíduo apoiar-se muito mais no esforço pessoal
para resistir ao universo de excessos da atualidade.
Mas a perspectiva evolucionista também tem outras impli-
cações:
(a) Ela é uma maneira de naturalizar a obesidade quando pen-
sada em par com a pobreza. Isto quer dizer que indivíduos
pobres acima do peso ou obesos constituem-se um fenômeno
“natural”, embora isto, ainda assim, seja um problema.
(b) Ela também mostra-se determinista do ponto de vista fisio-
lógico. No caso da obesidade em geral, a condição do obeso
é a de quem precisa se esforçar para manter seu peso ideal;
ele deve ser mais obstinado. Para os que têm mais recursos

Livro Macos na gaveta.indb 179 17/8/2009 14:22:08


180 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

financeiros, as possibilidades são maiores, já que existe a


opção por diversos acompanhamentos profissionais, die-
tas, tratamentos, drogas e até cirurgias, nos casos em que a
obesidade é extrema.
(c) Quando a obesidade é relacionada à pobreza, o determinismo
fisiológico estende-se a um determinismo social. A tendência
“natural” à obesidade seria, em princípio, uma característica
fisiológica que a maioria dos indivíduos parece ter, indepen-
dentemente da classe social ou do nível de renda ao qual
pertença. Contudo, esta mesma tendência, associada às
condições de vida na pobreza – insegurança alimentar, baixo
nível educacional etc. –, representa aumento do risco, já que
as situações de precariedade dos antepassados se mantêm
de forma semelhante até os dias de hoje entre os indivíduos
dos grupos mais pobres. Assim, o mecanismo biológico da
economia de energia passa a ser crucial para a sobrevivência
desses indivíduos que, diante da maior oferta de alimentos
e com a diminuição dos seus preços, em particular dos mais
calóricos, agravado pela falta de opções, devido aos limites
impostos pela baixa renda, têm papel de destaque no fenô-
meno global da transição nutricional.
(d) Por fim, vê-se que a perspectiva evolucionista leva à medicali-
zação da pobreza. Em sua relação com a obesidade, a pobreza
se encontra na raiz da atual “doença” e constitui agravante
do atual estado epidêmico que temos no mundo.
Logo, a concepção evolucionista leva a naturalizar as questões
sociais em geral e, consequentemente, a própria exclusão. Este deter-
minismo social baseia-se no darwinismo social, apropriação de Her-
bert Spencer dos conceitos de evolução e de seleção natural de Darwin
aplicados à dinâmica social, no século XIX. Ao explicar a pobreza e a
miséria a partir de uma perspectiva biológico-determinista, Spencer
naturalizava as desigualdades sociais. Seu propósito era defender
uma prática liberal legítima – a liberdade versus o Estado-coerção –,
negando os princípios de uma política de bem-estar social que, já à
sua época, era praticada na Inglaterra. Para ele, a herança genética
refletia na maior ou menor aptidão de alguns indivíduos para ascen-
derem social e economicamente.4
Importa destacar que o darwinismo social de Spencer adquiriu
força num contexto de produção de saberes sobre as populações a
partir da documentação de dados a seu respeito. Esses dados passam
a ser relacionados a outros fenômenos da vida social que demandam
certo governo, tais como: pobreza, doença, crime, suicídio e tantos

Livro Macos na gaveta.indb 180 17/8/2009 14:22:08


181

Mônica Carvalho
outros. Assim, as populações revelam-se por suas estatísticas e
apresentam suas próprias regularidades, ocorrências de mortes e
doenças etc., cujos efeitos econômicos são mensurados. Logo, a partir
da teoria da evolução, as populações são entendidas organicamente
e os habitantes de uma nação vistos como uma “forma de vida”: eles
adquirem unidade em função de suas diversas características que
se reproduzem através das gerações. Ou seja: as características e os
destinos das populações de modo geral, seus traços físicos, inclina-
ções morais, qualidades estéticas, talentos e capacidades intelectuais
seriam forjados pelas leis da biologia evolucionista.5

A percepção orgânica e evolucionista da ordem social vincula


um antigo modelo de classificação racial da espécie humana a
uma nova base biológica e constitutiva. O bom estado da raça
pode vir a melhorar ou a piorar, e condições externas e internas
que afetaram os índices das gerações, a partir de diferentes
aspectos da raça, produziriam o bom estado da raça de modo
amplo. Consequentemente, sua habilidade para sobreviver,
prosperar e de ter êxito na luta entre as nações. As diversas
patologias sociais agora poderiam ser reconceituadas como
algo que emana a partir das características da raça e dos efeitos
das condições externas e internas sobre estas características
[Tradução nossa].6

Segundo Nikolas Rose,7 isto dá base, por exemplo, a um discurso


de deterioração da “raça inglesa” e, mais tarde, de sua degenerescên-
cia, como consequência da migração do interior para as cidades e de
habitantes de outros países da Europa e de outros continentes para
a Inglaterra; dos efeitos desastrosos da vida moderna; das diferentes
taxas de reprodução dos mais e dos menos aptos. No limite, a per-
cepção da ordem social a partir da lei da evolução pode gerar desde
diferentes formas de racismo no interior de uma mesma sociedade
até, como aconteceu no caso do nacional-socialismo alemão, ações
eugenistas para tornar a maioria da população pertencente às raças
tidas como superiores.
No caso da obesidade, embora nas últimas décadas tenha ad-
quirido estatuto de doença, considera-se todos os aspectos sociais e
morais aos quais um indivíduo obeso, ou apenas acima do peso tido
como ideal, está sujeito atualmente. Na mídia, por exemplo, há situa-
ções em que se vê a utilização de terminologia pejorativa de modo a
expressar desaprovação em relação ao obeso e caracterizá-lo como
aquele que não se cuida, é desleixado, tem limitações físicas, é despro-

Livro Macos na gaveta.indb 181 17/8/2009 14:22:09


182 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

porcional e não se controla.8 Ao mesmo tempo, observa-se também


uma enorme valorização da estética da magreza, o que, implicitamente,
constitui o obeso como o negativo da beleza, do sucesso pessoal, da
ascensão profissional.
De certa forma, parece que este modelo apregoado na mídia
pode refletir-se também em certos grupos sociais. Um exemplo é o
estudo sobre as representações sociais e as práticas de cuidado com
a saúde e a alimentação de funcionários administrativos da cidade
de São Paulo, de Rosa Garcia.9 Ela observou que os sentimentos dos
entrevistados a respeito de suas práticas alimentares revelaram con-
flitos entre os discursos da saúde e do paladar e sentimentos de culpa
pelo consumo do que é considerado inadequado.
Dessa maneira, vê-se que, embora os discursos oficiais baseados
na obesidade se apoiem em supostas evidências sociais ou fisiológicas,
de modo a serem científicas, é importante observar também que esses
mesmos discursos levam a julgamentos e à moralização das práticas
quotidianas na atualidade. Ou seja: mesmo que se fundamentem na
dimensão molecular da fisiologia humana ou em aspectos mensuráveis
da vida social, tais discursos constituem categorias, assim como pres-
crições de “dever-ser”, normas, juízos de valor, estigmatizações, regu-
lações etc., que podem ser aplicadas a futuras políticas de controle.

Campo jornalístico e papel do intelectual-jornalista

Quando reproduzidos na mídia, os discursos científicos trans-


põem os limites do campo de que fazem parte e ganham mais visibili-
dade. Contudo, ao mesmo tempo que populariza e universaliza alguns
modelos interpretativos, a mídia também torna outros modelos menos
visíveis. Ou seja: a “universalização” de certos modelos científicos sig-
nifica o não acesso do vulgo ao universal científico. Isto ocorre devido
à própria dinâmica no interior do campo jornalístico, assim como pelas
relações e mútuas influências entre este e outros campos.
Primeiramente, importa notar que a reprodução do discurso
científico na mídia não se dá pela mera transposição ou adaptação
do conteúdo científico para o universo jornalístico. Além de utilizar
outros discursos para produzir sua própria fala, é nos veículos de
comunicação que ocorrem as escolhas para a produção da notícia,
desde a pauta e as fontes até sua posição na página. É preciso lembrar
que os veículos também são leitores “de outros discursos”, assim como
hiperprodutores “dessa grande conversação, quando funcionam no
processo de organização e oferta das condições através das quais
devem ser lidos os discursos e tidos como verdades”.10

Livro Macos na gaveta.indb 182 17/8/2009 14:22:09


183

Mônica Carvalho
Para Bourdieu, tais “escolhas” levam à filtragem e até censura
do que deve ganhar visibilidade ou não, do que importa ou não no
imenso universo do que se produz nos diversos campos.

Não há discurso (análise científica, manifesto político etc.)


nem ação (manifestação, greve etc.) que, para ter acesso ao
debate público, não deva submeter-se a essa prova de seleção
jornalística, isto é, a essa formidável censura que os jornalistas
exercem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz
de lhes interessar, de “prender sua atenção”, isto é, de entrar
em suas categorias, em sua grade, e ao relegar à insignificância
ou à indiferença expressões simbólicas que mereciam atingir
o conjunto dos cidadãos.11

Todavia, esta aparente autonomia do campo jornalístico é


relativa, pois ele é muito dependente das forças externas exercidas
por outros campos. Sua maior dependência se daria, em particular,
em relação ao campo econômico, mais até do que ao campo político,
já que as ações no campo jornalístico encontram-se extremamente
vinculadas às sanções e oscilações do mercado. Portanto, este campo
depende diretamente da demanda, identificada a partir de índices de
audiência ou vendagem e da consequente atração de anunciantes e
patrocinadores.12 Entretanto, essa dinâmica, que conduz a comporta-
mentos bastante padronizados por parte de jornalistas e veículos de
informação, também é capaz de exercer pressão sobre outros campos,
muitas vezes limitando-os. Bourdieu explica:

Através da pressão do índice de audiência, o peso da economia


se exerce sobre a televisão, e, através do peso da televisão so-
bre o jornalismo, ele se exerce sobre os outros jornais, mesmo
sobre os mais “puros”, e sobre os jornalistas, que pouco a pouco
deixam que problemas de televisão se imponham a eles. E, da
mesma maneira, através do peso do conjunto do campo jornalís-
tico, ele pesa sobre todos os campos de produção cultural.13

A influência do campo jornalístico sobre outros campos ocorre


também a partir da enunciação do que Bourdieu denomina “veredic-
tos”. Trata-se dos balanços anuais e das listas dos “melhores”, por
exemplo, muito comuns nos veículos noticiosos, e que fazem subir ou
descer a “cotação” de políticos, artistas, intelectuais, cientistas etc.
Tais veredictos podem ser utilizados por estes mesmos sujeitos para
manter-se no foco da mídia e das atenções populares e, assim, subir

Livro Macos na gaveta.indb 183 17/8/2009 14:22:09


184 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

cada vez mais sua cotação, dentro e fora do campo de que fazem parte
e, inclusive, no interior do próprio campo jornalístico. Dessa maneira,
surgem em cena o que o autor chama de intelectuais-jornalistas.
O intelectual-jornalista é uma figura híbrida, meio jornalista e
meio especialista, que se insere no jornalismo como uma outra forma
de o campo jornalístico exercer certa influência sobre outros campos.
A partir de seus pareceres ou julgamentos acerca de determinada ques-
tão de seu campo de especialidade, o intelectual-jornalista também
permite que o público não especialista tenha acesso a um discurso
com o qual não está acostumado e que pode auxiliá-lo no processo
de tomada de decisões individuais e até colectivas.

Esses “intelectuais-jornalistas”, que se servem de seu duplo


vínculo para se esquivar das exigências específicas dos dois
universos e para introduzir em cada um deles poderes mais
ou menos bem adquiridos no outro, estão em condições de
exercer dois efeitos principais: de um lado, adotar novas formas
de produção cultural, situadas num meio-termo mal definido
entre o esoterismo universitário e o exoterismo jornalístico;
de outro lado, impor, em especial através de seus julgamen-
tos críticos, princípios de avaliação das produções culturais
que, conferindo a ratificação de uma aparência de autoridade
intelectual às sanções do mercado e reforçando a inclinação
espontânea de certas categorias de consumidores à “alodoxia”,
tendem a reforçar o efeito de índice de audiência ou de lista de
best-sellers sobre a recepção dos produtos culturais e tam-
bém, indiretamente e a prazo, sobre a produção, orientando as
escolhas (a dos editores, por exemplo) para produtos menos
requintados e mais vendáveis.14

Esta personagem passa a ter legitimidade no jornalismo, baseada


tanto em sua “capacidade” para julgar algo que faça parte de seu cam-
po de produção, como por sua visibilidade na mídia. Os intelectuais-
jornalistas acabam por constituir-se em “produtos”: eles servem aos
propósitos comerciais dos veículos e também transformam em produto
o que dizem, assim como seu modo de dizê-lo. Muitas vezes, estabe-
lecem certa “marca estilística” discursiva, de modo a diferenciar-se
de outros de seu campo que podem fazer-lhes concorrência ou para
destacar-se em relação ao modelo jornalístico de produção de notícias.
Isto fica evidente quando vemos, por exemplo, o crítico teatral feroz; o
comentarista político irônico; o médico que fala por metáforas.

Livro Macos na gaveta.indb 184 17/8/2009 14:22:09


185

Mônica Carvalho
Os intelectuais-jornalistas são especialistas aos quais se atribui,
ou que atribuem a si, a função de comentar temas de seu campo – e
até mesmo de outros campos – que estão além dos limites de sua
especialidade. Mas, quando o fazem, é sempre de forma dissimulada
de si mesmos, do vulgo e de agentes do campo jornalístico. Daí sua
propensão à alodoxia, ou seja, a tomar uma coisa por outra e, assim,
reforçar esta mesma tendência em muitos consumidores.
O intelectual-jornalista está voltado ao mercado de grande
produção e por isso opõe-se ao produtor cultural autônomo. Este é
representado pelo sujeito que investe em capital específico e está vol-
tado para o “mercado restrito no qual se tem por clientes apenas seus
próprios concorrentes”. Segundo Bourdieu, quanto mais o intelectual-
jornalista volta-se para as práticas heterônimas, de modo a “vender-se”
mais facilmente, menos ele é reconhecido por seus pares. Ao contrário,
quanto mais autônomo é o produtor cultural, mais reconhecimento
tem em seu próprio campo. Por esta razão, ele seria menos inclinado
do que o primeiro a colaborar com os poderes externos ao próprio
campo, tais como Estado, partido, jornalismo etc.15

Dráuzio Varella: intelectual-jornalista do campo da saúde

Chamado de ficção pelo autor, Estação Carandiru reúne as


crônicas da cadeia, que ele escreveu nos últimos três anos.
Foram 30 horas de entrevistas gravadas com os presos e
funcionários do presídio, tomando o cuidado de preservar as
verdadeiras identidades. Nenhum jornalista [sic] teria extraído
um material como esse. Mas para um médico como o doutor
Varella, que conquistou o respeito dos presos com uma longa
e dedicada convivência, os homens do Carandiru se abriram
como crianças.
(Revista Época)

Em 14 de junho de 1999, a revista Época, semanário brasileiro


de informação, publica uma resenha sobre o livro Estação Carandiru,
então lançado. No trecho acima, extraído desta resenha, o autor do
texto revela-nos que, além dos presos da casa de detenção, o médico
Dráuzio Varella conquistava também o respeito no campo jornalístico.
Seu livro é publicado pela Companhia das Letras, já na ocasião uma
das maiores casas editoras brasileiras. Por isso, não nos espanta que
conseguisse bons espaços de divulgação na mídia. Contudo, no texto
da revista, destacam-se as características da obra e do médico que

Livro Macos na gaveta.indb 185 17/8/2009 14:22:09


186 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

o capacitam a exercer também a profissão de jornalista: ele possui o


domínio técnico da tarefa jornalística e consegue fazer o que “nenhum
jornalista” teria feito. Tal como os homens do Carandiru, os “homens”
do jornalismo também “se abriram como crianças”.
Esta aparição de Varella em Época estava longe de ser a primeira
ou a última. Ele começou sua inserção no campo jornalístico em 1986,
nas rádios de São Paulo, a fazer campanhas para esclarecimento da
população sobre a AIDS, na ocasião, sua especialidade médica. Era
orientado pelo jornalista Fernando Vieira de Melo. Desde então, ganha
cada vez mais espaço em outros veículos, eletrônicos e impressos, até
que publica Estação Carandiru, seu primeiro livro fora da área de saú-
de, que parece ter consolidado sua atuação nos espaços midiáticos.16
Portanto, quando investigávamos acerca do nexo obesidade e pobreza
na Folha, entre 2004 e 2007, sua condição de intelectual-jornalista já
se tinha estabelecido há vários anos.
Ao realizar a busca e a seleção do material na Folha de São
Paulo, entre 1996 e 2005, chegou-se a um total de 65 peças que faziam
referência à relação entre obesidade e pobreza. Desse total, havia nove
textos de Varella para sua coluna no jornal e duas reportagens que o
citavam como fonte. Foi justamente numa dessas reportagens de 1998
que o médico aparece pela primeira vez para falar sobre a obesidade,
embora fosse oncologista.

“Os estudos revolucionam antigos conceitos sobre alimentação


e duração da vida”, diz Drauzio Varella, cancerologista e diretor
do Centro de Pesquisas e Tecnologia da Unip, Universidade
Paulista.
As últimas pesquisas compararam três grupos de camundon-
gos: o primeiro deles comeu à vontade, o segundo recebeu 30%
menos de calorias e o terceiro teve uma redução de 60%.
Depois de anos de acompanhamento, foram tomados em cada
um dos grupos os 10% que viveram mais e tirada a média de
suas idades ao morrer. O segundo grupo viveu cerca de 30%
mais que o primeiro e o terceiro teve uma duração de vida 60%
maior que aquele que comeu à vontade. “Pode-se concluir que a
diminuição do número de calorias é diretamente proporcional
à longevidade”, diz Varella.17

Em 2000, após a publicação do livro, a importância de Varella


aumentou muito para a Folha de São Paulo e outros veículos, que o
contrataram como colunista, comentarista e colaborador em saúde.
Sua estreia como colunista na Folha – colunas quinzenais, a revezar-se

Livro Macos na gaveta.indb 186 17/8/2009 14:22:09


187

Mônica Carvalho
com o cineasta Walter Salles – aconteceu em maio daquele ano, no con-
junto das mudanças provocadas pelo novo projeto gráfico do jornal.
Naquele momento, o médico muda de descrição: de cancerologista e
diretor do Centro de Pesquisas e Tecnologia da UNIP (Universidade
Paulista) passa a ser designado como infectologista e escritor de best-
seller. Dessa forma, fica evidente que o sucesso de seu livro eleva sua
“cotação” na “bolsa dos valores intelectuais”, como diria Bourdieu,18
a ponto de ser contratado pelo veículo.

O objetivo da reforma é dar opção para o leitor que tem tempo de


ler o jornal e para o que não tem. “Um bom jornal, com o bombar-
deio crescente da mídia, é aquele que pode ser lido em 10 minutos
ou três horas. O leitor tem esse direito”, diz Scarpellini.
Outras mudanças serão feitas com a reforma gráfica. O médico
infectologista e escritor Drauzio Varella, autor do best-seller
“Estação Carandiru”, passa a assinar colunas aos sábados
na Ilustrada, revezando-se com o cineasta Walter Salles. Ele
estreia dia 20.19

Hoje, Varella é bastante solicitado pelos jornalistas como fonte


para que diga algo acerca de diversos temas em saúde. Para o mé-
dico, parece não haver impedimento ou constrangimento em falar
sobre quaisquer assuntos fora da infectologia ou da oncologia, suas
especialidades. Além disso, na medida em que foi contratado pelo
jornal para dizer algo sobre o que, em geral, os jornalistas não têm
formação para fazê-lo, também passa a representar a fala ou a opinião
do próprio veículo sobre saúde. Assim, a qualificação médica, que, em
geral, falta ao perfil de um jornalista, e a autoridade para dizer algo
a respeito da saúde das pessoas são atendidos pela presença de um
médico-jornalista.
O termo é uma adaptação do conceito de intelectual-jornalista ao
indivíduo do campo da saúde. Como já foi dito, o lugar do intelectual-
jornalista é um “meio-termo mal definido entre o esoterismo universi-
tário e o exoterismo jornalístico”.20 Isto se observa nas colunas de Va-
rella, quando ele tende a não citar as fontes ou as referências científicas
das quais se vale para construir seus argumentos e apresentar suas
ideias sobre saúde. Frases como: “um estudo conduzido na Inglaterra
recentemente...”;21 “recentemente, foram descritos mediadores quími-
cos envolvidos na regulação do apetite e do peso corpóreo”;22 “um
estudo ajuda a entender algumas características da epidemiologia da
gota”;23 “uma análise crítica de oito estudos recentes mostrou que...”;24
“um estudo recente conduzido pelo Rand Institute concluiu que...”,25

Livro Macos na gaveta.indb 187 17/8/2009 14:22:09


188 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

são exemplos de estudos ou pesquisas que, mesmo valorizadas como


referência por Varella, têm suas autorias desconsideradas no contex-
to de sua coluna, como se sua suposta autoridade médico-científica
bastasse para conferir legitimidade às afirmações que faz.
A posição de Varella é a de médico e jornalista ao mesmo tem-
po, de quem atravessa o discurso biomédico por um modo de dizer
objetivo e direto do jornalista – muitas vezes despreocupado com a
autoria de quem diz através dele – e “lúdico” e “brincalhão”, para não
dizer sarcástico, de um suposto “educador em saúde para as massas”.
A seus textos pode-se aplicar a categoria “grotesco”, tal como Foucault
classificava os textos médico-jurídicos que utilizava como exemplo em
suas aulas e escritos. Aqui, portanto, apropriamo-nos de sua definição
de grotesco como “o fato [...] de deter por estatuto efeitos de poder de
que sua qualidade intrínseca deveria privá-los”, como “uma das engre-
nagens que são parte inerente dos mecanismos de poder”, num contexto
em que se confere lugar e poder à paródia do discurso científico, com
um discurso infantil e moralizante.26 Logo, como médico-jornalista,
Varella reveste-se de seu direito reconhecido mediaticamente e faz uso
de um discurso não científico, repleto de metáforas, “certezas” e juízos
de valor, ou seja, cientificamente desqualificado, embora estatutário.
Vejamos o exemplo a seguir:

Tentar emagrecer é um inferno. Segunda-feira você começa o


regime: duas torradas no café, meia maçã às dez horas, bifinho
de cem gramas com três folhas de alface no almoço, iogurte
desnatado às quatro da tarde e sopinha de cenoura no jantar.
Imbuído das melhores intenções, você resiste quatro semanas
ao suplício da fome permanente, sobe na balança e confere a
recompensa: quatro quilos a menos. Sua mulher fica feliz, e o
pessoal do escritório elogia com a delicadeza masculina: “Dan-
do um fim naquela barriga ridícula, meu?” [sic]
Depois de um mês de dieta rigorosa, no entanto, você começa a
fraquejar, mas apenas em dia de festa: meio sanduichinho, dois
copos de cerveja, um brigadeiro. No dia seguinte, consumido
pelo remorso você retorna à dieta rigorosa. No fim do segundo
mês, porém, a balança é menos generosa: dois quilos a menos.
Não é o ideal, mas está bom, pensa você, afinal já foram seis
quilos! Nesse ritmo!
No terceiro mês, sua disposição para jejuar começa a dar sinais
de cansaço. Não só em dia de festa acontecem as recaídas, nem
há necessidade de comidas especiais. Você começa a se sujar
[sic] por pouco: empadinha de padaria, salgadinho roubado

Livro Macos na gaveta.indb 188 17/8/2009 14:22:09


189

Mônica Carvalho
do pacote do filho, pedaço de pudim esquecido na geladeira.
Impiedosa, a balança trava e você se queixa: “Passo fome e
não adianta nada”.
Algumas semanas depois, você observa consternado que a me-
nor extravagância alimentar é punida imediatamente com ganho
de peso; o sacrifício de dias consecutivos é malbaratado por um
deslize [sic] mínimo no fim de semana. Com a auto-estima em
baixa, você desanima: “Não aguento mais fazer regime”. Num
piscar de olhos, engorda tudo o que perdeu e ainda ganha mais
alguns quilos, de castigo [sic]!
Por que razão é tão difícil manter o peso ideal, se todos alme-
jam ficar esguios e sabem que a obesidade aumenta o risco
de hipertensão, diabetes, osteoartrite, ataques cardíacos e
derrames cerebrais?27

É por isso que, segundo Bourdieu, o intelectual-jornalista guarda


de seu papel de intelectual apenas “os sinais exteriores, a parte exte-
rior, visível, o que é manifesto, as manifestações, as exibições públicas”.
Para este autor, isso não teria importância se o intelectual-jornalista
não abandonasse o que descreve como “o essencial” do intelectual,
ou seja, a disposição crítica baseada numa certa “independência em
relação às demandas e seduções temporais”. Nesse sentido, pode-se
dizer que o maior problema que se identifica no intelectual-jornalista
é a ratificação de uma “ordem estabelecida”.28
E que ordem ratifica Varella em seu discurso como intelectual-
jornalista?
Ele sempre fala a partir de um ponto de vista radicalmente evo-
lucionista. O “radical” refere-se à presença do argumento evolucionista
em todos os seus textos que fizeram parte da pesquisa de tese. Ele
é o representante de uma concepção darwiniana sobre a saúde, em
particular, sobre a obesidade enquanto doença ou epidemia de origem
ancestral. Além disso, de modo geral, nas colunas selecionadas para
este trabalho, ele é conclusivo em afirmar, sempre no último parágrafo,
de modo a encerrar com “sua defesa” do evolucionismo, ao dizer que
a “natureza” não se adaptou aos tempos atuais de excessos, que, por
sermos “animais forjados em épocas de escassez”, não podemos ter
geladeira cheia, churrascaria rodízio etc.

Descendente de hominídeos obrigados a consumir energia para


obter alimentos e fugir de predadores nas florestas, o cérebro
humano, desenhado em época de penúria, não estava preparado
para resistir às tentações da mesa e ao conforto dos sofás.29

Livro Macos na gaveta.indb 189 17/8/2009 14:22:09


190 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

A fome que sentimos resulta de um equilíbrio ajustado entre


esses circuitos antagônicos, construídos e selecionados por
nossos antepassados remotos com a finalidade de resistir à
falta permanente de alimentos, numa época em que as refeições
eram alternadas com longos períodos de jejum forçado. O que
representou sabedoria do cérebro para enfrentar a penúria deu
origem ao flagelo da obesidade em tempos de fartura.30

A natureza é sábia, todos dizem, mas não foi capaz de prever


que chegaríamos ao estado de fartura atual, acessível a mi-
lhões de seres humanos. Animais com cérebros forjados em
tempos de penúria não podem ter geladeira cheia, churrasca-
ria rodízio e disque-pizza à disposição. 31

Portanto, em um ambiente irresistível, mas ameaçador, é ne-


cessária uma disposição e uma enorme força de vontade para não
sucumbir às possibilidades de escolha e aos excessos que povoam
este ambiente, força e disposição estas que apenas os mais obstinados
são capazes de ter.

Num mundo sedentário, com alimentos deliciosos ao alcance


da mão, considerarmos a obesidade um problema de caráter
é pura ignorância. Perder peso é empenhar-se numa batalha
contra a biologia da espécie humana. Só os obstinados são
capazes de vencê-la.32

A radicalidade darwinista de Varella não fica restrita ao tema da


obesidade, até porque seu discurso não se restringe à área de saúde.
De fato, é a partir da saúde que o médico estabelece julgamentos sobre
outras áreas. Mas ele o faz segundo o mesmo ponto de vista evolucio-
nista que caracteriza seus argumentos, o que conduz à naturalização
e à medicalização de questões sociais, em particular da pobreza.
Isso fica muito evidente em sua coluna de 23 de agosto de 2003,
intitulada “De volta à natalidade”, na qual defende a implantação de
uma política de controle da natalidade entre os pobres, por considerá-
la o problema mais grave do Brasil. O médico sabe o que significa esse
tipo de defesa e diz no primeiro parágrafo: “Tenho consciência plena
de que essa afirmação é considerada politicamente incorreta [sic] e
que me traz problemas com certas alas da intelectualidade todas as
vezes que a faço. Mesmo assim, vou insistir nela”. Porém, a seguir,
tenta justificar-se:

Livro Macos na gaveta.indb 190 17/8/2009 14:22:09


191

Mônica Carvalho
Nove meses de gravações de uma série sobre gravidez, rea-
lizadas para a TV em cinco cidades brasileiras, fortaleceram
em mim a convicção de que, se não tomarmos providências
imediatas, a violência urbana nas próximas décadas nos fará
sentir saudades da paz que ainda desfrutamos em lugares como
São Paulo e Rio de Janeiro. (grifos nossos)

Parece-nos óbvio que Varella fala de um lugar ao qual apenas


os bem-sucedidos moradores do Rio de Janeiro e de São Paulo têm
acesso. Ao mesmo tempo, atribui à “exagerada” reprodução dos
pobres a ameaça à “paz” que ainda existe no lugar em que ele e sua
família habitam. Embora comece o texto com uma justificativa que
antecipa sua concepção eugenista da realidade social brasileira, nos
parágrafos seguintes, Varella desenvolve sua ideia com a defesa do
acesso dos mais pobres aos métodos contraceptivos, de forma a
conduzir à noção de controle da natalidade como um direito do pobre.
No entanto, conclui:

A falta de recursos para programas abrangentes de planeja-


mento familiar é desculpa irresponsável! Sai muito mais caro
abrir escolas, hospitais, postos de saúde, servir merenda, dar
remédios e arranjar espaço físico para esse mundo de crianças.
E, mais tarde, construir uma cadeia atrás da outra para enjaular
os malcomportados.

Em nenhum instante, neste artigo, o médico-jornalista considera


o problema da desigualdade social e da péssima distribuição de renda
no Brasil, nem discute questões históricas ou político-econômicas no
Brasil e no mundo, pois ignora uma série de aspectos sociais legítimos,
que fazem parte dos debates acerca da questão da pobreza no país. Ao
contrário, prefere utilizar argumentos spencerianos, em seu esforço
por justificar uma racionalidade liberal que “prega” a irreversibilida-
de dos graves problemas sociais brasileiros e, assim, legitimar uma
dinâmica socioeconômica excludente.
O exemplo anterior, tal como todo o discurso de Varella acerca
da obesidade, esclarece de que modo se estabelece sua radicalidade
evolucionista em seus textos. Esta radicalidade vincula-se à persistên-
cia desse tipo de argumento em suas colunas, mas também à aplicação
de um modelo biomédico para a ordem social. Nesse contexto, vê-se
que o médico explica certas “patologias do social” a determinantes
genéticos, cujas soluções, a priori, estariam na limitação da reprodu-
ção dos que são “portadores” de tais patologias. Assim, como já se

Livro Macos na gaveta.indb 191 17/8/2009 14:22:09


192 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

observou, cai-se numa naturalização de aspectos do social e de sua


consequente medicalização. Isto significa que, no caso da pobreza,
esta passa a ser vista como um problema de saúde e não como um
problema social.
A medicalização da pobreza pode ser vista como uma forma
de lidar com o mal-estar, o incômodo e, por vezes, o risco de uma
“explosão” decorrente das próprias tensões a que este estado de coi-
sas pode levar no Brasil. No entanto, não se pode negar que também
tende a manter as coisas do jeito que estão, por fundamentar-se em
“razões científicas”. Assim, na medida em que a pobreza deixa de ser
efetivamente uma questão social, parece deixar também de ser uma
questão política e histórica. Sua condição de acontecimento fatal a
retira do universo da tomada de decisões governamentais ou a res-
tringe a decisões políticas sanitárias. Dito isto, parece não ser mero
acaso que, em 2005, Dráuzio Varella tenha sido convidado para ocu-
par o cargo de Ministro da Saúde do primeiro governo do presidente
Luís Inácio Lula da Silva. Contudo, segundo nota oficial do governo,
ele recusou o convite para manter suas atividades como médico – e,
talvez, supomos – como “jornalista”.
No entanto, este fato também ilustra de que forma o campo
jornalístico é capaz de exercer força sobre outros campos. Varella é
produto de consumo certo nesse campo, portanto, valorizado enquan-
to tal, pois é bem recebido entre os consumidores. Através do médico,
a mídia vende-se, mas também vende racionalidades neoliberais que
compartilham com ele de alguma forma.33 Logo, por sua competência
médica publicamente reconhecida, tornam-no porta-voz de suas cren-
ças. Dessa forma, ele não apenas consegue subir sua própria cotação,
mas faz subir a dos veículos em que aparece. Talvez também fosse
esta a intenção do governo ao convidá-lo para o cargo, pois ele nunca
foi e, provavelmente, nunca será ligado ao Partido dos Trabalhadores
(PT), ao qual pertence o presidente. Mas, na última década, o médico
conseguiu consolidar um enorme espaço de visibilidade e circulação
de seu pensamento, que o torna elegível ao maior cargo na área de
saúde, num governo que, em princípio, por ser historicamente de
esquerda, deveria opor-se ao que o médico costuma defender.34
Neste fato, porém, o paradoxo parece pertencer apenas ao
Estado. Enquanto médico-jornalista, Varella coloca-se de maneira
muito coerente com a racionalidade darwiniana que fundamenta seus
textos, e que, atualmente, leva-o a constituir-se num dos maiores e
mediaticamente mais visíveis representantes do darwinismo social no
Brasil. Seja ao falar de obesidade, da gota ou de fertilidade, ele torna
os incômodos problemas sociais brasileiros meras excrescências da

Livro Macos na gaveta.indb 192 17/8/2009 14:22:10


193

Mônica Carvalho
dimensão biológica da vida humana. Desse modo, o médico dá sua
contribuição a modelos políticos que propõem “administrar” questões
de governo, a partir do desinvestimento crescente do Estado para,
entre outras coisas, diminuir gastos públicos. Desse modo, ao menos
em princípio, sua recusa ao Ministério da Saúde pareceu bastante
coerente.
Certamente, Varella não é o único intelectual-jornalista no Brasil
a desempenhar este papel. No entanto, deve-se destacá-lo em função
de sua capacidade de atrair para si manifestações de apoio explícito
a seus pensamentos. O espaço para a moralização dos hábitos, das
práticas sociais quotidianas e dos problemas do país abre-se cada
vez mais à participação coletiva por meio de seu discurso. Sobretudo
na internet, apenas em pesquisa rápida no sistema de busca Google,
“Dráuzio Varella” aparece cerca de 220.000 vezes, e em grande parte
das referências, vê-se que é objeto de admiração. Suas frases, por vezes
classificadas como uma das melhores frases ou “a frase do ano”, são
reproduzidas em diversos blogues.
Neste sentido, deve-se destacar de Varella sua adesão e ratifi-
cação da atual ordem neoliberal e de sua colaboração na construção
de um Estado no Brasil com tais característica. Suas possibilidades,
inclusive, parecem expandir-se concretamente, já que, com sua didáti-
ca particular para divulgação de certa racionalidade médico-científica,
ele ganha cada vez mais adesões de parte do vulgo e de representantes
do poder político.

Notas
1 CARVALHO, M. Obesidade e pobreza na imprensa: epidemiologia de uma questão
social. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura)–Escola de Comunicação, Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
2 OMS. Obésité: prévention et prise en charge de l’épidemie mondiale: rapport d’une
consultation de l’OMS. Genève, 2003.
3 MCDERMOTT, R. Ethics, epidemiology and the thrifty gene: biological determinism
as a health hazard. Social Science and Medicine, [S.l.], v. 47, no 9, p. 1.189, 1998.
4 SPENCER, H. The Man versus the State with Six Essays on Government, Society and
Freedom. The Online Library Of Liberty, 2004. p. 51. Disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br>.
5 ROSE, N. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999. p. 112–115.
6 Ibid., p.115.
7 Ibid., p.115–116.
8 CARVALHO, M. Obesidade e pobreza na imprensa: epidemiologia de uma questão
social. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – Escola de Comunicação,

Livro Macos na gaveta.indb 193 17/8/2009 14:22:10


194

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 196–199.


a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

9 GARCIA, R. W. D. Alimentação e saúde nas representações e prática alimentares


do comensal urbano. In CANESQUI, A. M.; GARCIA, R. W. D. (Ed.). Antropologia e
nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 211–25.
10 FAUSTO NETO, Antonio. Comunicação e mídia impressa: estudos sobre a AIDS. São
Paulo: Hacker, 1999. p. 23.
11 BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. p. 67.
12 BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. p.76.
13 Ibid., p.81.
14 BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. p. 111.
15 BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. p. 89–90.
16 Essas e outras informações podem ser lidas no site pessoal de Dráuzio Varella
<http://drauziovarella.ig.com.br/>.
17 BIANCARELLI, Aureliano. Quem come mais vive menos, diz pesquisa. Folha de
São Paulo, São Paulo, 15 mar. 1998. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
folha/arquivos>.
18 BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. p. 83.
19 “FOLHA muda para ficar mais prática. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 maio 2000.
Caderno 1, p. 14. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>.
Acesso em: 1 ago. 2006.
20 BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. p. 111.
21 VARELLA, D. Olha o aviãozinho, meu filho. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E16, 7
set. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso
em: 17 jan. 2006.
22 VARELLA, D. Obesidade inexorável. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E10, 22 mar.
2003. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso em:
17 jan. 2006.
23 VARELLA, D. Gota: a doença dos reis. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A1, E12, 12
jun. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso
em: 17 jan. 2006.
24 VARELLA, D. Obesidade, preguiça e câncer de mama. Folha de São Paulo, São Pau-
lo, p. E12, A1, 10 jul. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.
25 VARELLA, D. Obesidade paulistana. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E15, 16 out.
2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso em:
17 jan. 2006.
26 FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974–1975). São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 8–15, 44.
27 VARELLA, D. Raízes biológicas da obesidade. Folha de São Paulo, São Paulo, p.
E9, 27 jul. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos/>.
Acesso em: 17 jan. 2006.
28 LE MAGAZINE de l’homme modern. In: LEXIQUE bourdieusien: parcours erratique
de morceaux choisis. 12 dez. 2002. p. 33. Disponível em: <http://www.homme-mod-
erne.org/societe/socio/bourdieu/lexique/lexique.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2005.
29 VARELLA, D. Obesidade, preguiça e câncer de mama. Folha de São Paulo, São Pau-
lo, p. E12, A1, 10 jul. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.
30 VARELLA, D. Controle do apetite. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E12, 29 maio
2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso em:

Livro Macos na gaveta.indb 194 17/8/2009 14:22:10


195

17 jan. 2006.

Mônica Carvalho
31 VARELLA, D. Raízes biológicas da obesidade. Folha de São Paulo, São Paulo, p.
E9, 27 jul. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos/>.
Acesso em: 17 jan. 2006.
32 VARELLA, D. Obesidade paulistana. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E15, 16 out.
2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso em:
17 jan. 2006.
33 CARVALHO, M. Obesidade e pobreza na imprensa: epidemiologia de uma questão
social. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – Escola de Comunicação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
34 O “historicamente” aqui posto refere-se a um percurso do PT e do próprio presi-
dente ligados aos movimentos sindicalistas e socialistas do período da ditadura
militar (1964–1985). Contudo, a manutenção da posição de esquerda de Lula, ainda
hoje, é aspecto muito discutível, em função da implantação de políticas que deram
continuidade às propostas neoliberais do governo anterior.

Referências

BIANCARELLI, Aureliano. Quem come mais vive menos, diz pesquisa.


Folha de São Paulo, São Paulo, 15 mar. 1998. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/folha/arquivos>.

BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.

CARVALHO, M. Obesidade e pobreza na imprensa: epidemiologia de


uma questão social. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura)–
Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2007.

FAUSTO NETO, Antonio. Comunicação e mídia impressa: estudos sobre


a AIDS. São Paulo: Hacker, 1999.

FOLHA muda para ficar mais prática. Folha de São Paulo, São Paulo,
07 maio 2000. Caderno 1, p. 14. Disponível em: <http://www1.folha.uol.
com.br/folha/arquivos>. Acesso em: 01 ago. 2006.

FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975).


São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 8-15, 44.

GARCIA, R. W. D. Alimentação e saúde nas representações e prática


alimentares do comensal urbano. In CANESQUI, A. M.; GARCIA, R. W.
D. (Ed.). Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2005.

LE MAGAZINE de l’homme modern. In: LEXIQUE bourdieusien: par-


cours erratique de morceaux choisis. 12 dez. 2002. Disponível em:
<http://www.homme-moderne.org/societe/socio/bourdieu/lexique/

Livro Macos na gaveta.indb 195 17/8/2009 14:22:10


196 a partir do estudo de caso de um intelectual-jornalista
Campo jornalístico, campo da saúde e racionalidades políticas

lexique.pdf>. Acesso em: 20 ago. 05.

MCDERMOTT, R. Ethics, epidemiology and the thrifty gene: biological


determinism as a health hazard. Social Science and Medicine, [S.l.], v.
47, n. 9, p. 1189, 1998.

OMS. Obésité: prévention et prise em charge de l’épidemie


modiale: rapport d’une consultation de l’OMS. Genève,
2003.
ROSE, N. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.

SPENCER, H. The Man versus the State with Six Essays on Government,
Society and Freedom. The Online Library Of Liberty, 2004. Disponível
em: <http://www.dominiopublico.gov.br>.

VARELLA, D. Controle do apetite. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E12,


29 maio 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.
. Gota: a doença dos reis. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A1,
E12, 12 jun. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.

. Obesidade, preguiça e câncer de mama. Folha de São Paulo,


São Paulo, p. E12, A1, 10 jul. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/folha/arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.

. Obesidade inexorável. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E10,


22 mar. 2003. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.

. Obesidade paulistana. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E15,


16 out. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.

. Olha o aviãozinho, meu filho. Folha de São Paulo, São Paulo,


p. E16, 07 set. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
folha/arquivos>. Acesso em: 17 jan. 2006.

. Raízes biológicas da obesidade. Folha de São Paulo, São Paulo,


p. E9, 27 jul. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/
arquivos/>. Acesso em: 17 jan. 2006.

Livro Macos na gaveta.indb 196 17/8/2009 14:22:10


NAS TEIAS DA LEI: LIMITES E INTERDITOS NO
ACESSO À INFORMAÇÃO*

Beatriz Kushnir

Posso não concordar com nenhuma das palavras que


você disser, mas defenderei até a morte o direito de
você dizê-las.
(Voltaire, pseudônimo de François-Marie Arouet,
Paris, 21/11/1694 – 30/5/1778)

O silêncio, que indicaria quase uma calmaria e que circunda as al-


terações no acesso aos documentos referentes à história do tempo presente,
é um tema que permeia as minhas preocupações há mais de uma década. A
permanência dessa aflição exacerba-se pelo cerceamento que instrumentos
jurídicos recentes, a partir de 1997, impuseram à liberdade de conhecer e
consultar documentos oficiais. Soma-se a isso também a ausência de um
clamor que altere este impedimento, sendo talvez esse ponto o mais afliti-
vo. É por estes dois motes que, desde 1998, persigo o tópico, sendo esta a
terceira reflexão a respeito do assunto.
Vários foram e são os fóruns de discussão acerca da intercessão pes-
quisa/arquivos. Poder-se-ia mapeá-los desde o início dos anos 1980, quando
o Arquivo Nacional, dirigido à época por Celina Vargas do Amaral Peixoto,
principiou as discussões que levariam ao texto da Lei de Arquivos, promul-
gada em 1991. Discussões acerca do estrangulamento desta Lei, 14 anos após
a sua promulgação, bem como o debate que unificasse o acesso aos acervos
dos DOPS – Departamentos de Ordem Política e Social – e das DSIs – Divisão
de Segurança e Informação1 – ainda estão ausentes, infelizmente. Por isso,
numa coletânea em que a mídia é o cerne e em razão de a censura vir sendo
uma temática recorrente nas minhas investigações,2 optei por não analisar
a relação na imprensa como objeto – temática que me é cara.
Escolhi, mais uma vez, trazer à tona a questão dos limites de acesso
aos documentos nos arquivos públicos. Isso porque as fronteiras da legali-
dade que os textos das leis delimitam precisam ser um ponto de inflexão.
As balizas entre possibilitar o acesso e impor o interdito são os eixos deste
exercício. Neste sentido, estamos num território tênue, na intercessão entre

Livro Macos na gaveta.indb 197 17/8/2009 14:22:10


198
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

poder ou não conhecer os dados do que se passou. Esta interdição


calca-se num projeto de presente e de futuro pela via do controle da
informação. Este domar e impor imagens ao passado não é novo, e,
no caso, encontra eco nas reflexões de uma década atrás. Assim, para
Renato Janine Ribeiro,

O desejo de perpetuar-se, mas, mais que isso, o de constituir a


própria identidade pelos tempos adiante, responde ao anseio
de forjar uma glória. Lembre-se Aquiles: já os gregos pensavam
na opção entre uma vida longa e pouco notável ou uma vida
breve, porém seguida de glória imorredoura.3 O que os arquivos
pessoais podem atestar, o que o desejo de guardar os próprios
documentos pode indicar, será esse anseio de ser, a posteriori,
reconhecido por uma identidade digna de nota.4

Trazendo a discussão sobre fontes documentais em litígio,


desenham-se os limites delicados que parecem separar o que é pú-
blico para o corpo social e o que fere a dimensão privada da história
de cada cidadão. Há mais de dez anos, tornou-se tema de minhas
pesquisas avaliar a organização e a disponibilidade das informações
nos acervos dos DOPS da Guanabara (DOPS/GB) e do órgão congênere
de São Paulo (DEOPS).5 Vistos marcadamente como um dos símbolos
do arbítrio, os DOPS e as demais instituições do aparato repressivo do
pós-1964 foram desativados burocraticamente entre 1983 − quando
da posse dos governadores eleitos em pleito direto − e 1988 − ano da
promulgação da nova Constituição Federal.
Ao se dar fim, pela caneta, a esses instrumentos de controle,
esquecia-se que a República brasileira conviveu com a sua existência
nos poucos períodos democráticos de sua história. Sua exclusão
criou, à época, uma imagem de que o cidadão passava a gozar plena-
mente das liberdades de expressão e organização política – pilares
da democracia.
A cultura política autoritária que está na gênese de nossa socie-
dade propiciou, mesmo nos períodos democráticos, que essas agên-
cias tivessem voz e força. Nesse sentido, fazem-se necessárias duas
ressalvas. A primeira, que o termo polícia política é compreendido e
empregado aqui para identificar uma forma de atuação policial direcio-
nada à repressão das ações políticas oposicionistas ao poder vigente.
Utilizando ou não a força armada, sua principal função é a de manter e
assegurar a ordem pública. Uma segunda ressalva centra-se no caráter
comprobatório que os documentos desses acervos possuem. Assim,
permitir o acesso a eles significa, por um lado, garantir a liberdade

Livro Macos na gaveta.indb 198 17/8/2009 14:22:10


199

Beatriz Kushnir
das pesquisas acadêmicas e, por outro, a possibilidade de legalizar
situações jurídicas a partir das informações ali contidas.
Os acervos documentais em depósito nos arquivos públicos
incorporam essa dupla função. Tal premissa é fundamental e aceitá-
la auxilia e justifica a proposta de disponibilizar amplamente, e sem
restrições, as informações arquivadas, sem diferenciar o acesso entre
pesquisadores e advogados dos “fichados”. Eis aí um ponto relevante
de uma agenda de debates que ainda está longe de ser equacionada.
Nos idos de 1996, o estado de atonia em que mergulhara, pela diversi-
dade de possibilidades e impossibilidades, a consulta aos documentos
da polícia política motivou-me a procurar a origem da legislação regula-
dora dessa matéria. Compreender as regras que gerem tanto a guarda
dos documentos como sua utilização tornou-se condição prévia para o
prosseguimento de pesquisas com foco na história do tempo presente.
Somente assim seria possível avaliar a documentação acessível de cada
um dos arquivos dos DOPS/DEOPS. Além disso, o estado dos acervos
das polícias políticas, fora do eixo Rio-São Paulo, permanecia, ainda
em fins da década de 1990, um tema pouco conhecido.
Para se compreender a dimensão desse fato, basta lembrar que o
Jornal do Brasil, de 12 de abril de 1998, noticiou que, até então, apenas
três acervos – os dos DOPS dos estados do Paraná, de Pernambuco
e de Goiás – haviam sido recolhidos em seus respectivos arquivos
públicos estaduais. Em matéria intitulada “Fichas do extinto DOPS
desafiam Minas”, denunciava-se também que, nesse último estado, o
acervo fora incinerado pelos antigos agentes da Polícia Federal – em-
bora papeletas com fotos e dados pessoais estivessem sendo enviadas
às redações de jornais em Belo Horizonte.6
Na teia do “que se pode conhecer”, a questão, naquele momento,
circunscrevia-se às discussões à respeito das alterações na Lei de Ar-
quivos, a 8.159, de 1991. Isto porque, no início de 1997, se estabeleceu
o decreto no 2.134, que regulamenta o art. 23 da referida lei. Discutida
desde fins da década de 1970 pelo Arquivo Nacional e tendo na figura
tanto de José Honório Rodrigues,7 na época não mais o seu diretor,
como na de Celina Vargas do Amaral Peixoto, diretora da instituição
entre 1980 e 1990, a Lei de Arquivos foi proposta à Câmara Federal em
1984 e aprovada sete anos mais tarde. A Lei 8.159/91 dispõe sobre a
política nacional de arquivos públicos e privados em um texto curto,
de seis capítulos, que versam sobre: as disposições gerais, os Arquivos
Públicos, os Arquivos Privados, a Organização e Administração de Ins-
tituições Arquivísticas Públicas, o Acesso e o Sigilo dos Documentos
Públicos e as disposições finais.

Livro Macos na gaveta.indb 199 17/8/2009 14:22:10


200
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

No tocante ao sigilo, assegurou o direito de acesso pleno aos


documentos públicos, regulado por decreto que fixaria as categorias
destes e que obedecem a uma classificação dos documentos. Assim,
no artigo 23 da lei se determina que:

§ 1o Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança


da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao
resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da
honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos.
§ 2o O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança
da sociedade e do Estado será restrito por um prazo máximo
de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo
esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período.
(Grifos nossos)
§ 3o O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à
imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100
(cem) anos, a contar da sua data de produção. (Grifos nossos)

Este ponto foi reformulado seis anos depois, a partir do decreto


no 2.134/97. Foi elaborado a partir da Comissão Especial de Acesso à
Informação de Arquivos,8 criada pela Portaria no 11 do CONARQ (Con-
selho Nacional de Arquivo), de 27 de fevereiro de 1996, da qual

participaram representantes dos Ministérios da Justiça, das


Relações Exteriores, da Aeronáutica, do Exército e da Marinha,
além de especialistas em documentação e informação e repre-
sentantes da sociedade civil. [...]
[Tendo] como objetivo regulamentar o Capítulo V – Do Acesso
e do Sigilo dos Documentos Públicos – da Lei no 8.159, de 8 de
janeiro de 1991. A Comissão teve a preocupação de analisar
exaustivamente a legislação nacional e internacional sobre o
assunto, em especial o Regulamento baixado pelo Decreto no
79.099, de 6 de janeiro de 1977 (Regulamento para Salvaguarda
de Assuntos Sigilosos – RSAS), a Constituição de 1988 e a Lei
no 8.159/91.
No curso dos trabalhos verificou-se que de todos os artigos
constantes do Capítulo V, apenas o artigo 23, que “dispõe sobre
as categorias dos documentos públicos sigilosos” e o acesso
a eles justificava uma regulamentação. Concluído o trabalho,
a Comissão encaminhou o anteprojeto de decreto à reunião
plenária do CONARQ que o aprovou e o enviou ao Ministério da
Justiça para os trâmites necessários à sanção presidencial.9

Livro Macos na gaveta.indb 200 17/8/2009 14:22:10


201

Beatriz Kushnir
Assim, a partir de aprovação ministerial e presidencial, o Decre-
to 2.134/97, em seu capítulo I (Das Disposições Gerais), fixou que

Art. 1o Este Decreto regula a classificação, a reprodução e o


acesso aos documentos públicos de natureza sigilosa, apresen-
tados em qualquer suporte, que digam respeito à segurança da
sociedade e do Estado e à intimidade do indivíduo.

E no Capítulo “Do Acesso”,

Art. 3o É assegurado o direito de acesso pleno aos documentos


públicos, observado o disposto neste Decreto e no art. 22 da
Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991.
Art. 4o Qualquer documento classificado como sigiloso, na forma
do art. 15 deste Decreto, recolhido a instituição arquivística pública,
que em algum momento tenha sido objeto de consulta pública, não
poderá sofrer restrição de acesso. (Grifos nossos)
Art. 5o Os órgãos públicos e as instituições de caráter público,
custodiadores de documentos sigilosos, deverão constituir
Comissões Permanentes de Acesso, para o cumprimento deste
Decreto, podendo ser criadas subcomissões.
Art. 6o As Comissões Permanentes de Acesso deverão anali-
sar, periodicamente, os documentos sigilosos sob custódia,
submetendo-os à autoridade responsável pela classificação,
a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, sua
desclassificação.
Art. 10. O acesso aos documentos sigilosos, originários de
outros órgãos ou instituições, inclusive privadas, custodiados
para fins de instrução de procedimento, processo administra-
tivo ou judicial, somente poderá ser autorizado pelo agente do
respectivo órgão ou instituição de origem.
Art. 12. A eventual negativa de autorização de acesso deverá ser
justificada por escrito. (Grifos nossos)

É a partir desse decreto que os documentos públicos, no Brasil,


passam a receber classificação para definir seus acessos, a qual é
estabelecida em quatro categorias:
•฀ Ultra-secretos (“os que requeiram excepcionais medidas
de segurança e cujo teor só deva ser do conhecimento de
agentes públicos ligados ao seu estudo e manuseio”. Classifi-
cados, a partir da produção do documento, em, no máximo,
30 anos);

Livro Macos na gaveta.indb 201 17/8/2009 14:22:10


202
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

•฀ Secretos (“os que requeiram rigorosas medidas de segurança


e cujo teor ou característica possam ser do conhecimento de
agentes públicos que, embora sem ligação íntima com seu
estudo ou manuseio, sejam autorizados a deles tomarem
conhecimento em razão de sua responsabilidade funcional”.
Classificados, a partir da produção do documento, em, no
máximo, vinte anos);
•฀ Confidenciais (“aqueles cujo conhecimento e divulgação
possam ser prejudiciais ao interesse do País”. Classificados,
a partir da produção do documento, em, no máximo, dez
anos);
•฀ Reservados (“aqueles que não devam, imediatamente, ser do
conhecimento do público em geral”. Classificados, a partir
da produção do documento, em, no máximo, cinco anos).
Para cada uma dessas classes, as restrições dar-se-iam respei-
tando os perfis de proibição. Para o caso mais extremo, dos ultras-
secretos, tem-se:

Art. 16 São documentos passíveis de classificação como ultra-


secretos aqueles referentes à soberania e integridade territorial
nacionais, planos de guerra e relações internacionais do País,
cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e
do Estado.
Parágrafo único. A classificação de documento na categoria
ultrassecreta somente poderá ser feita pelos chefes dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário federais.
Art. 17 São documentos passíveis de classificação como se-
cretos aqueles referentes a planos ou detalhes de operações
militares, a informações que indiquem instalações estratégicas
e aos assuntos diplomáticos que requeiram rigorosas medidas
de segurança, cuja divulgação ponha em risco a segurança da
sociedade e do Estado.

Cinco anos depois, no apagar das luzes do segundo mandato


presidencial de Fernando Henrique Cardoso, em 27 de dezembro de
2002, publica-se o decreto 4.553. Este dispõe sobre a salvaguarda de
dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse
da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração
Pública Federal. A instituição dessa norma foi apreendida como o co-
roamento de uma série de pressões militares para dificultar o acesso
público a documentos sigilosos.10 Desde a instituição da Lei de Arquivos,

Livro Macos na gaveta.indb 202 17/8/2009 14:22:10


203

Beatriz Kushnir
sentiam-se as pressões e resistências, dos setores militares, que agiam
sem cumprir uma legislação específica sobre o tema.
Em 1991, instituída a Lei 8.159, a Secretaria de Assuntos Estra-
tégicos (SAE), sucessora do Serviço Nacional de Informações (SNI)
e uma das antecessoras da atual Agência Brasileira de Inteligência
(ABIN), elaborou um projeto para uma nova redação da Lei de Ar-
quivos. Controlada por militares, a SAE desejava que os prazos para
manutenção de sigilo da documentação contassem a partir da sua
classificação, definindo a categoria de sigilo, e não da sua produção,
como o decreto no 2.134/1997 instituiu.
Nessa perspectiva, o prazo para liberar um documento datado
de 1970, por exemplo, mas que recebeu classificação, com um carim-
bo, em 1995, começaria a contar, a partir desse ano, e não daquele.
Malograda esta tentativa, a SAE perdia para o texto das Leis de 1991
e 1997. Questão tensa que voltou à tona no segundo ano do primeiro
mandato de Fernando Henrique Cardoso, ao se elaborar decreto no
4.553/2002. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, de 24 de abril de 2003,
este decreto não foi produzido pela Casa Civil, mas originou-se do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, comandado
à época pelo general Alberto Cardoso. Na mesma matéria, afirma-se
que há divergências sobre os motivos que levaram Fernando Henrique
Cardoso a editá-lo e alterar as normas que estiveram em vigor durante
o seu governo, e também sobre o porquê de o presidente Lula manter
o decreto de dezembro.
A matéria expõe, entretanto, que, desde sua posse, o presidente
vinha recebendo pressões para não revogar o decreto assinado por
seu antecessor. Acreditando que o novo governo não ratificaria as dis-
posições do decreto 4.553/2002, houve pouca mobilização no âmbito
acadêmico. A Lei de Arquivos é clara ao estabelecer o prazo máximo
para o acesso restrito aos documentos sigilosos, qual seja, 30 anos
renováveis por mais 30.11 Assim, juristas compreendem que o decreto
que regulamenta a referida lei deve obedecer aos parâmetros e limites
por ela impostos, bem como respeitar o prazo máximo estabelecido
pela Lei 8.159/1991, sob pena de “incidir no vício da ilegalidade”, fato
que ocorre quando o decreto 4.553/2002 amplia os limites de todas
as classificações (reservado, confidencial, secreto e ultrassecreto),
criando o prazo de 50 anos prorrogáveis até a eternidade – portanto,
acima do que a lei prevê. Em seu art. 7o, inciso I, o decreto estipula que:
“os prazos de duração da classificação a que se refere este Decreto
vigoram a partir da data de produção do dado ou informação e são
os seguintes: ultrassecreto: máximo de cinqüenta anos”.

Livro Macos na gaveta.indb 203 17/8/2009 14:22:10


204
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

Para o ordenamento jurídico brasileiro, vigora o princípio da lega-


lidade, previsto no art. 5o, inciso II da Constituição Federal de 1988, onde
se assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer
senão em virtude de lei”. Dessa forma, as normas do Direito compreen-
dem que qualquer obrigação imposta ao cidadão deve ser instituída por
meio de lei, e não por força de um decreto – que é um ato do Executivo.
O decreto no 4.553/2002 fere a Lei no 8.159/91 ao dispor no

Art. 7o
§1o: o prazo de duração da classificação ultra-secreto poderá
ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da
segurança da sociedade e do Estado. (Grifo meu).

Igualmente foi rechaçado como inconstitucional ao macular o


inciso XXXIII do art. 5o da Constituição, onde se estabelece que

todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de


seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que
serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado.

Para legalizá-lo, o governo Lula impõe a Medida Provisória no


228, de 9 de dezembro de 2004, que regulamenta a parte final do dis-
posto no inciso da Constituição de 1988. Por esta Medida Provisória,
a legalidade jurídica passa a ser:

Art. 2o Exclusivamente nas hipóteses em que o sigilo dos


documentos públicos de interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, seja ou permaneça imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado, o seu acesso será ressalvado, nos
termos do disposto na parte final do inciso XXXIII do art. 5o
da Constituição.
[...]
Art. 4o O Poder Executivo instituirá, no âmbito da Casa Civil
da Presidência da República, Comissão de Averiguação e Aná-
lise de Informações Sigilosas, com a finalidade de decidir pela
aplicação da ressalva prevista na parte final do inciso XXXIII
do art. 5o da Constituição.
Parágrafo único. Os Poderes Legislativo e Judiciário, o Minis-
tério Público da União e o Tribunal de Contas da União estabe-
lecerão normas próprias para a proteção das informações por

Livro Macos na gaveta.indb 204 17/8/2009 14:22:11


205

Beatriz Kushnir
eles produzidas, cujo sigilo seja imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado, bem assim a possibilidade de seu
acesso quando cessar a necessidade de manutenção desse
sigilo, nos termos da parte final do inciso XXXIII do art. 5o da
Constituição.
Art. 5o O acesso aos documentos públicos classificados no
mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e
prorrogação previstos no § 2o do art. 23 da Lei no 8.159, de 8
de janeiro de 1991.
§ 1o Vencido o prazo ou sua prorrogação de que trata o ca-
put, os documentos classificados no mais alto grau de sigilo
tornar-se-ão de acesso público, podendo, todavia, a autoridade
competente para dispor sobre a matéria provocar, de modo
justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e
Análise de Informações Sigilosas para que avalie, antes de ser
autorizado qualquer acesso ao documento, se ele, uma vez aces-
sado, não afrontará a segurança da sociedade e do Estado, na
forma da ressalva prevista na parte final do inciso XXXIII do art.
5o da Constituição. (Grifos nossos)

Cinco meses após esta Medida Provisória, em 5 de maio de


2005, foi sancionada a Lei 11.111, que ratificou os termos da Medida
Provisória. Ou seja, 14 anos depois, estava-se retrocedendo aos avan-
ços da Lei de Arquivos de 1991.
Certamente, a compreensão da legislação que regula tanto a
guarda dos documentos públicos como também a sua disponibilização
é de fundamental importância para o historiador e o cientista social,
que têm no arquivo um dos seus principais instrumentos de trabalho.
Torna-se, portanto, crucial o domínio desse aparato legal para que
descubramos suas brechas. As regras estabelecidas na Lei 11.111/2005
foram consideradas nos meios jurídicos como inconstitucionais, pois
legalizaram a prática da confidencialidade por parte do governo. Pas-
sível de duração indeterminada, o segredo foi convertido em direito
do Estado, contrapondo-se ostensivamente ao direito do cidadão às
informações. A manutenção do sigilo instituiu, dessa forma, sua tutela
exclusiva aos representantes do poder.
Dois anos após a sua instituição, o Conselho Federal da Or-
dem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou no Supremo Tribunal
Federal (STF)

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3987), com pedido


de liminar, para suspender dispositivos da Lei 8.159/91 e a

Livro Macos na gaveta.indb 205 17/8/2009 14:22:11


206
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

íntegra da Lei federal 11.111/05. No mérito, a OAB pede que


seja declarada a inconstitucionalidade de todos esses disposi-
tivos, que dispõem sobre o sigilo de documentos. [...] Informa
a OAB que essa lei originou-se da Medida Provisória no 228, de
2004. Só que, na data de sua edição, já vigorava a nova redação
do artigo 62, da CF [Constituição Federal], que veda a edição
de MPs sobre matérias relativas à cidadania (Emenda Consti-
tucional 32). Alegando ainda o vício formal na elaboração da
lei, segundo a OAB, a lei deve ser julgada inconstitucional na
íntegra, porque a MP da qual se originou não teria observado
o requisito constitucional de urgência para sua edição, como
exige o artigo 62 da CF.12

Embora ainda confusas em seus movimentos, as peças desse


tabuleiro de xadrez tiveram suas posições claramente definidas. De
um lado, os cidadãos que carregam a pecha de fichados, com as difi-
culdades que esse estigma lhes impõe; de outro, os que desejam em-
pregar as prerrogativas constitucionais de acesso à informação, mas
que se vêem tolhidos pelos argumentos de preservação da intimidade
individual. É nessa seara, mais da dúvida do que das conclusões, que
uma polêmica de quase uma década atrás retorna à pauta atual dos
pesquisadores.
Os momentos de imposição de sigilo e os instantes de quebra
dessa “normalidade imposta” permitem refletir acerca da trajetória
brasileira vis-à-vis seus períodos de arbítrio político. As origens de
uma sociedade baseada no autoritarismo e na exclusão dimensionam
o peso e o papel de uma cultura censora e repressiva no esforço de
delimitar o legal e o ilegal. No Estado brasileiro republicano, essa foi
uma tarefa, um ato de fundação, que pode ser constatada nos trabalhos
acerca da força e da ação da polícia no início da República, e se explicita
como forma de impor um determinado modelo de cidadão ideal. Essas
questões, assim como as da construção de uma identidade nacional e
do perfil do seu cidadão, foram tratadas exaustivamente em diversos
trabalhos elaborados desde meados dos anos de 1980.

Todo mundo deve ser poupado da tentação de ver

Esta frase do ex-ministro da Justiça do governo do general Er-


nesto Geisel (1974–1979), de Armando Falcão,13 parece que, no Brasil,
torna-se atemporal. A prática específica de vigiar e reprimir politi-
camente, implementada em certos períodos pelo Estado brasileiro,
teve início há, pelo menos, 80 anos, com os primeiros decretos de

Livro Macos na gaveta.indb 206 17/8/2009 14:22:11


207

Beatriz Kushnir
estruturação de uma polícia política, que abrigava departamentos de
investigação e repressão à vadiagem e aos “estrangeiros perigosos”
− muitas vezes anarquistas ou organizadores do embrionário movi-
mento sindical.14 Precursoras dos DOPS, desde o início da República
as Quartas Delegacias de Polícia foram responsáveis por esse gênero
de segurança pública. Era atribuição da polícia em geral e, em parti-
cular, dos DOPS, como um dos seus braços políticos, manter a ordem
pública. Assim, a essa instituição compete

[...] coletar, fichar, anotar e arquivar os informes obtidos pelos


órgãos de busca [...] ou constantes da correspondência sigilosa,
realizar a coleta complementar, preparar pedidos de busca;
elaborar informações; preparar a difusão de informes e infor-
mações; instruir pedidos de passaporte e de “vistos” de saída
do território nacional; fornecer certidões negativas de antece-
dentes políticos e sociais; realizar as atividades administrativas
correntes.15

No papel de acumulador e gerenciador de informações, fazendo-


as circular e abastecendo de dados os órgãos de inteligência, os DOPS
estaduais viveram, de 1968 a 1979, ou seja, do AI-5 à Anistia, seu apo-
geu, seguido de crise e início do processo de extinção. Geralmente,
a atuação dos DOPS está associada aos períodos de ditadura na Re-
pública brasileira. No entanto, conforme mencionamos inicialmente,
esses departamentos, assim como outras instituições de informação
política do Estado, não são recentes e nunca foram efetivamente extin-
tos, tendo sobrevivido ao longo do tempo, quer o governo fosse mais
ou menos democrático, ou mais ou menos ditatorial. A preocupação
com a informação sempre foi uma “questão de segurança nacional”. O
que demarca as diferenças de atuação nesses períodos é, entre outros
aspectos, as formas de obtenção dos dados, ou seja, as origens das
informações sobre as condutas individuais e as nuanças no respeito,
ou não, aos direitos civis.
Não por acaso, o jornal carioca O Globo, em 4/8/1996, anun-
ciou o envio ao presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo chefe
da Casa Militar, general Alberto Cardoso, do projeto de lei para a
criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Segundo esse
militar, a ABIN teria a seu dispor todos os instrumentos do Poder
Judiciário para manter bem informado o presidente. Desfrutaria, por-
tanto, de liberdade para “[...] plantar escuta telefônica, quebra de sigilo
de correspondência e a infiltração de agentes em movimentos sociais,
como o Movimento dos Sem-Terra”.16

Livro Macos na gaveta.indb 207 17/8/2009 14:22:11


208
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

Além disso, o órgão centralizaria um sistema de inteligência


espalhado pelos ministérios e organismos federais, estaduais e mu-
nicipais. Ainda segundo o general Cardoso, muito embora dirigida
por um militar, a ABIN seria um órgão com características civis, não
querendo ser herdeiro ou descendente do Serviço Nacional de Infor-
mações (SNI).
Dez anos após a regulamentação desta agência, seus funcioná-
rios utilizam, em causa própria, a referida Lei no 11.111/2005. Durante
a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios (CPMI), em
junho de 2005, dois servidores da ABIN ali prestaram depoimento, e,
ao serem questionados sobre os relatórios investigativos que produ-
ziram, um deles se valeu da mencionada lei. Alegou o caráter sigiloso
desses documentos para não responder aos questionamentos feitos
pelos parlamentares.
Mais recentemente, quando da Comissão Parlamentar de In-
quérito (CPI) dos cartões corporativos, a Lei 11.111/05 foi novamente
acionada. Dessa vez, foi o próprio governo que recorreu a ela, decla-
rando questões de segurança nacional para não revelar a natureza
de inúmeros gastos feitos com esses cartões. Vozes em contrário a
este ato sustentam que a Constituição Federal não permite quaisquer
despesas sem observância dos princípios da publicidade e da trans-
parência. Tudo deve ser mostrado ao público.
Neste sentido, a classificação de documentos e a sua colocação
no patamar de sigilosos não pode ser feita aleatoriamente, mediante
aposição de carimbo “confidencial” ou “reservado” neste ou naquele
documento. É função, segundo determinação jurídica, precedida de
análise criteriosa, da Comissão de Averiguação e Análise de Informa-
ções Sigilosas17 no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.
No caso, o governo, e não o Estado, alega não ser prudente
expor-se. Mas no outro extremo da discussão está a premissa da pri-
vacidade individual. Os governos, investidos na premissa de Estado,
acham legítimo instituir instrumentos de vigilância e informação.
Quando os documentos por eles produzidos adquirem o caráter de
corpus de pesquisa, novas regras, contudo, são implementadas para
restringir o seu acesso. A ambiguidade dessa situação está registrada
até mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos, particu-
larmente nos artigos 12 e 19.
Se o primeiro artigo instrui que:

[...] todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de


expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas
suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consi-

Livro Macos na gaveta.indb 208 17/8/2009 14:22:11


209

Beatriz Kushnir
deração de fronteiras, as informações e idéias por qualquer
meio de expressão.

O segundo indica que:

Ninguém sofrerá intromissões em sua vida privada, na sua famí-


lia, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques
à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques
toda pessoa tem o direito à proteção da lei.

Como se vê, trata-se de uma questão polêmica, em que limites


delicados e ambíguos parecem separar o que deve ser permitido e
o que deve ser considerado ilegal; o que é público para a sociedade
e o que fere a dimensão privada da história de cada cidadão. Esse é o
aspecto central da discussão quando se tem um acervo policial e/ou
de Estado como fonte de pesquisa. Assim, os pesquisadores encon-
tram-se em uma encruzilhada: por um lado, dependem da informação
produzida pelo Estado, que – sob a égide da segurança da nação – se
crê no direito de “conhecer” os atos dos seus cidadãos; por outro,
percebem-se limitados em suas pesquisas pelas pessoas-alvo dessa
vigilância, que desejam preservar sua vida pessoal, sua intimidade
e sua honra.
Eis algumas reflexões iniciais acerca das fontes comuns aos
historiadores que se debruçam sobre a história do tempo presente,
sendo, por isso mesmo, crucial analisar as políticas de formação dos
acervos arquivísticos em geral. A dificuldade está em que, muitas ve-
zes, desconhecemos exatamente como lidar com a classificação dos
documentos − secreto, confidencial etc. −, como também não temos
a noção exata daquilo que pode ser mencionado sem ferir a susceti-
bilidade das pessoas envolvidas. Além disso, não sabemos quanto do
conjunto original se manteve intacto após a doação às instituições de
guarda, ocorrida com a extinção legal das agências repressivas.
O arquivo não é apenas um lugar de reunião de documentos
ou o locus de trabalho do arquivista. O historiador/pesquisador pre-
cisa conhecer suas regras de formação para intervir nesse processo,
reconhecendo-lhe definitivamente a importância no desenvolvimento
do seu ofício. No caso dos arquivos do DOPS, há que se ressaltar uma
peculiaridade: durante a sua vigência, funcionaram como acervo inter-
no de um órgão de segurança; após a sua extinção, assumiu o caráter
de arquivo público. Esse perfil concede ao conjunto uma característica
própria. Se, num primeiro momento, ele é um instrumento restrito de
um órgão público, “vivo” e constantemente realimentado, numa segunda

Livro Macos na gaveta.indb 209 17/8/2009 14:22:11


210
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

fase, ele é deslocado para a seara pública e as informações ali contidas


passam das mãos de poucos para um acesso, em princípio, irrestrito.
A norma diferenciada de acesso aos acervos do DOPS do Rio de
Janeiro demonstra uma realidade inusitada: muitos ex-militantes de
esquerda dos anos de 1960 defendem a restrição à abertura de seus pron-
tuários ao público, pois eles expõem publicamente seu passado e suas
ações políticas. Um exemplo disso está na tese de Elizabeth Ferreira,18
que entrevistou 13 ex-presas políticas e, após um processo de negocia-
ção, optou pela não utilização de seus nomes verdadeiros.19 Justificando
esse sigilo como forma de defesa de sua privacidade, alguns “fichados”
explicam que o acervo reunido pelo DOPS é fruto das incursões policiais
nas suas residências e contém documentos extremamente íntimos, além
de cartas e objetos de uso pessoal. Assim, a composição dos prontuários
desses arquivos faz com que alguns militantes sejam contrários a sua
abertura ao público de maneira indiscriminada. Os que reivindicam o
silêncio talvez acreditem que os relatos ali contidos são a “verdade” de
suas histórias de vida, depois de terem caído nas teias da polícia.
Cabe, ainda, lembrar que os trâmites legais, franqueadores do
acesso do público ao material reunido pelos DOPS, foram viabilizados
pela Constituição de 1988 e pelo estabelecimento do habeas-data,
instrumento que, em última instância, legalizou o direito civil dos
“fichados” e de seus familiares. Ao consultar a documentação, antes
tida como secreta e/ou sigilosa, as famílias puderam reconhecer ju-
ridicamente seus direitos civis.20 Na verdade, foi essa situação legal
que determinou a transformação dos acervos dos DOPS em material
de arquivo público.

Os arquivos não falam, respondem

Ao refletir acerca da formação do acervo em arquivo, Henry


Rousso21 sublinhou as características do trabalho de cientistas
sociais europeus na abertura dos arquivos da antiga URSS.22 A pro-
blemática era semelhante à brasileira: transformar o acervo em um
instrumento de pesquisa, manter sua organização original e estabe-
lecer critérios para a sua consulta pública. Igualmente, preocupava-
se com a seara dos direitos civis, a manutenção da privacidade dos
indivíduos fichados e, principalmente, o que realmente se poderia
esperar daquele tipo de fonte.
Nesse contexto, Rousso ponderou sobre as funções e os limites
dos arquivos para a tessitura da história. Sendo ele um estudioso preo-
cupado com a história do tempo presente, suas análises mostram que,
mais do que as fontes escritas, o tema em questão amplia o conceito

Livro Macos na gaveta.indb 210 17/8/2009 14:22:11


211

Beatriz Kushnir
de “vestígios do passado”, ao incluir a história oral na metodologia de
trabalho. O cerne da preocupação é o questionamento da “verdade
histórica”. Ou seja, em que situação o historiador se sente mais seguro:
no registro escrito ou no depoimento a posteriori?
Com a instituição do habeas-data, em meados da década de 1980,
em meio ao processo de recolhimento da documentação de policia po-
lítica, essa norma jurídica buscava resolver a situação civil de muitos
familiares de desaparecidos políticos, assim como de indivíduos que
sofreram a repressão do Estado ditatorial brasileiro pós-1964. Essa
medida e a necessidade de consulta do material do DOPS apressaram
a liberação do acervo, inicialmente para um público restrito, fato que,
de algum modo, resultou na liberação desses documentos e permitiu
que fossem consultados de forma mais ampla.
Se essa via legal possibilitou aos pesquisadores o acesso à
documentação, permaneceu a dúvida de como ordenar a consulta ao
material como pesquisa histórica. Durante esse debate foi promul-
gada, em 1991, a Lei de Arquivos. No início da década de 1990, com
a transferência do acervo do DEOPS de São Paulo para o Arquivo do
Estado, foi editado o decreto no 34.216, de 19 de novembro de 1991, que
instituiu uma comissão especial encarregada de receber a “papelada”
do extinto órgão. No início de 1997, institui-se o decreto 2.134, que,
como já exposto, alterava a classificação e as formas de arquivamento
de papéis sigilosos.
Para Vianna, Lissovsky e Sá, da esfera do jurídico à da consti-
tuição de um acervo, o arquivo é, basicamente, um locus privilegiado
de construção de memória. Para os autores, existem dois processos
que transformam um “amontoado de papéis” em “arquivo”. O primeiro
é realizado pelo arquivador e o segundo pela instituição de guarda
que recebe, organiza e torna disponível o acesso. O arquivador é um
colecionador. Sua função é instituir uma memória, sempre de maneira
positiva. Organiza e coleciona os papéis pensando a posteriori. Assim,
o arquivador

[...] constitui a sua coleção de documentos segundo critérios


que lhe são precisos − precaução, vigilância, pragmatismo
político ou administrativo (economia, eficiência etc.), orgulho,
fantasia e, até mesmo, senso histórico. De qualquer forma, o
arquivador constitui sua coleção como parte de si, segundo um
movimento que é, em primeiro lugar, um exercício de controle
sobre os eventos e que pode ainda estar erigindo sua eternidade
enquanto indivíduo, cujo único critério de aferição, e sólida
garantia, é exatamente a memória.23

Livro Macos na gaveta.indb 211 17/8/2009 14:22:11


212
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

O arquivador, o acumulador de informações, no caso dos DOPS,


era o chefe da seção de arquivo – o seu organizador, enquanto se trata-
va de um arquivo vivo da polícia. Para os autores acima mencionados
existem quatro modelos de arquivos:

•฀ Caótico: aquele que chega aos centros de documentação de


maneira desordenada e exige que os profissionais da área
encontrem uma lógica que permita a sua consulta;
•฀ Centrífugo: em que os documentos, geralmente de caráter
administrativo, giram em torno da atuação do titular, no seu
sentido amplo. Permitem, assim, perceber tanto as atividades
do titular nas instituições da qual fez parte como percorrer
a trajetória desses órgãos;
•฀ Centrípeto: neste tipo, os documentos, geralmente de caráter
político, estão voltados para as questões do Estado, possi-
bilitando esboçar um quadro do momento histórico, visto a
partir da ótica privilegiada de seu organizador;
•฀ Monumental: no qual os documentos são acumulados seguin-
do a lógica de conferir ao seu titular um papel histórico, o
qual, certamente, ele teve, mas cuja pintura se acha carre-
gada nas tintas.

No caso dos DOPS, os acervos caracterizam-se por uma tipolo-


gia mista, centrífuga e centrípeta. Se, por um lado, têm como objetivo
identificar o “fichado” no mundo social, por outro, trata-se de um
arquivo que explicita o universo do outro a partir da lógica interna
de seu titular. Ou seja, da perspectiva da polícia. O acervo permite
tanto reconstituir uma trajetória do “fichado”, a partir da perspectiva
do agente policial, como a do “fichador”.
Quando esses acervos passam ao domínio público, certas nuan-
ças explicitam-se. O material chega desorganizado aos arquivos esta-
duais. Certamente houve uma “limpeza” realizada por ex-agentes do
órgão, o que nos leva a crer que a sua lógica interna tenha sido muitas
vezes deliberadamente manipulada. Uma característica, contudo, lhes
é marcante: contêm informações sobre determinadas pessoas, mas
não são arquivos privados. Por pertencerem a um órgão público, sua
documentação é de domínio da sociedade, sendo esta situação um
nó difícil de desatar. Uma outra forma de apreender o conteúdo dos
arquivos do DOPS é verificar as premissas que ditaram sua acumula-
ção. As informações ali contidas foram recolhidas sob a orientação
do olhar da polícia.

Livro Macos na gaveta.indb 212 17/8/2009 14:22:11


213

Beatriz Kushnir
Há, portanto, que se levar em conta a distância entre as ativi-
dades políticas outrora realizadas e o conteúdo das fichas policiais
elaboradas, compreendendo-se que foi a lógica da desconfiança de um
Estado autoritário que produziu o acervo. Por outro lado, foi a lógica
da democracia da informação que os transformou em arquivos públi-
cos, abertos à consulta. Essa abertura é uma forma positiva de falar
de um “silêncio”, como também de permitir ao pesquisador rediscutir
a constituição de uma memória.

Documentos como salvo-condutos

A disputa em torno da construção da memória esteve presente,


por exemplo, na adaptação do romance autobiográfico de Fernando
Gabeira, O que é isso, companheiro?, para o cinema. Instaurou-se,
nesse caso, uma polêmica acerca da apropriação e da ficcionalização
de fatos históricos, expondo nos jornais e na TV uma ferida que ainda
sangra. Em resposta a essa manipulação do passado, Daniel Aarão
Reis Filho questionou a perspectiva que tenta impor aos anos de
1960 uma “memória da conciliação”. Para ele, “seria como recordar
esquecendo, esquecendo a dor”.24 A volta ao passado, para alguns, é
um ato de abrandamento e de eliminação das arestas e das diferenças,
é um redesenhar que deve respeitar uma lógica da harmonia e que
dispensa tensões e atritos.
Na análise de Étienne François, na época diretor do então Centro
Marc Bloch-Berlim, há que se redimensionar o fascínio que os arquivos
das polícias políticas despertaram na comunidade acadêmica, quando
a esse fascínio se contrapõem as dificuldades do seu manuseio. Cen-
trando seu foco na especificidade do que foi a República Democrática
Alemã (RDA), François expõe-nos as exigências que a documentação
da Stasi − a polícia política da Alemanha Oriental − demandou dos
pesquisadores que se aventuraram a trabalhar ali. O deslumbramento
de poder consultar um material secreto em um momento de liberdade
política gerou, segundo o autor, a sensação de que todo o segredo do
passado seria finalmente liberto. Todavia

[...] muito rapidamente [...] renuncia-se a essas pretensões


e começa-se a perceber que tudo não é assim tão simples,
que os novos arquivos não falam por si só, que, como todos
os outros arquivos, eles devem ser submetidos a uma crítica
exigente das fontes, que seu manuseio só pode ser feito se
forem respeitadas as preocupações éticas e metodológicas
elementares, e que mesmo bem utilizados, e interrogados a

Livro Macos na gaveta.indb 213 17/8/2009 14:22:11


214
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

partir de questões pertinentes, não dispensam o historiador de


seu trabalho habitual de reconstituição e de interpretação − e
não têm resposta para tudo.25

A apreciação de François dimensiona o potencial desses ar-


quivos de polícia política. Ao perceber a onipotência com que alguns
os encaram e a decepção que tamanha expectativa pode gerar, o
autor reafirma que tais arquivos são apenas mais uma fonte para as
pesquisas. Um acervo rico e que não pode ser negligenciado, mas –
sublinha o autor – as informações ali contidas necessitam do eterno
cotejar com outras para melhor se compreender aquele período da
história. Sem dúvida, o mais importante é que, com a liberação des-
ses documentos, houve um “[...] chamado ao trabalho, à exigência
metodológica e ética, à modéstia, à humildade, ao requestionamento
das certezas adquiridas”.26
Os arquivos – em especial os que contêm informações de cará-
ter pessoal, como os dos serviços de segurança – lembra Ana Maria
Camargo,27 possibilitam duas constatações: a de que lá se encontram
também informações improcedentes, inexatas e enganadoras; e a de
que lá se tem inscrita a história de um órgão de Estado. Os documentos,
fruto da repressão política de um Estado autoritário, não devem ser
tomados como a verdade da vida dos indivíduos neles registrados,
mas sim como a expressão da lógica da desconfiança que permeava
um órgão com características ditatoriais. O passado, conforme lembra
Henry Rousso,28 citando David Lowenthal,29 é uma “terra estrangeira”,
que exige, no presente, o passaporte do documento conservado para
nele ingressar. Nesse sentido,

[...] acessíveis ou fechados, os arquivos são sintomas de uma fal-


ta, e a tarefa do historiador consiste tanto em tentar suprimi-la
de maneira inteligível, a fim de reduzir o máximo possível a es-
tranheza do passado.30 Lacunas nesses “vestígios do remoto” são
das mais variadas e expõem silêncios que aguçam teoricamente
as análises. Mas, segundo Rousso e Lowenthal, compreendendo
o passado como uma “terra estrangeira”, percebe-se que este
exige, no presente, o passaporte do documento conservado
para nele ingressar.31

Livro Macos na gaveta.indb 214 17/8/2009 14:22:11


215

Beatriz Kushnir
Notas
* Uma versão anterior deste texto foi publicada em: KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco
da fechadura: o acesso à informação e às fontes. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci
(Org.). Minorias silenciadas: história da censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.
A alteração do quadro legislativo e o convite do Arquivo Público Mineiro fizeram-
me atualizá-lo e publicá-lo em: KUSHNIR, Beatriz. Decifrando as astúcias do mal.
Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 42, no 1, 2006. Retomei a
questão em 2008 para participar da 60a Reunião da SBPC, realizada na Unicamp
de 13 a 18/7, na mesa-redonda “Comunicação, Censura e Meios de Comunicação”
organizada pela Prof. Dra. Maria Cristina C. Costa (ECA/USP), e que também teve a
participação de Olga Futema (Cinemateca Brasileira).
1 A Divisão de Segurança e Informação era a versão civil dos órgãos de informação
dos ministérios militares e existia em todos os outros de cunho livre. Foi instituída
pelo Decreto no 64.416, de 28 de abril de 1969, que também reorganizou o Ministério
da Justiça. Tratava-se de uma assessoria de assistência direta de cada ministério,
vinculado, portanto, ao gabinete do ministro. O primeiro material encontrado e
transferido para o Arquivo Nacional (RJ) de uma DSI foi o do Ministério da Justiça.
Mas, como todas as DSIs e os demais órgãos de informação faziam circular seus doc-
umentos, há uma gama de material do interior da “Comunidade de Informações”.
2 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de
1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
3 Cf. VERNANT, Jean-Pierre. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso, São Paulo,
v. 9, 1978. O original francês encontra-se em “Entre mythe et politique”, 1996.
4 RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
21, no 1, 1998.
5 Isto porque, em 1996, dava início ao doutoramento, que se desenvolveu junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Meu objeto de reflexão centrou-se nos mecanismos da censura e nos
pactos da grande imprensa com os órgãos de repressão. Mapeei, entre outros as-
pectos, os colaboradores, no interior das empresas de comunicação, que optaram
pelo expediente de autocensura.
6 Fichas do extinto DOPS desafiam Minas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, 12 abr. 1998.
7 José Honório Rodrigues (20/9/1913 – 6/4/1987), carioca, historiador, cujas pesquisas
e publicações versaram sobre os mais variados temas e épocas da história brasile-
ira. Graduou-se em Direito na Universidade do Brasil, em 1937, e publicou três anos
depois Civilização Holandesa no Brasil, em coautoria com Joaquim Ribeiro – livro
que receberia o Prêmio de Erudição da Academia Brasileira de Letras. Entre 1943-
1944, patrocinado pela Fundação Rockefeller, residiu e pesquisou nos Estados Uni-
dos, frequentando a Universidade de Columbia. Ao retornar ao Brasil, ingressou nos
quadros do Instituto Nacional do Livro. Entre 1946-1958, foi diretor da Sessão de
Publicações e Obras Raras da Biblioteca Nacional. Em 1958, foi nomeado diretor
do Arquivo Nacional, permanecendo no cargo até 1964. Paralelamente a essas fun-
ções, exerceu ainda, entre 1948-1951, o cargo de diretor da Seção de Pesquisas do
Instituto Rio Branco. Ao longo da sua carreira, foi professor em diversas instituições
de ensino superior e programas de pós-graduação no Rio de Janeiro e membro da
Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
8 O CONARQ é um órgão colegiado, vinculado ao Arquivo Nacional e instituído pela
Lei de Arquivos. Sua finalidade é definir a política nacional de arquivos públicos
e privados, como órgão central de um Sistema Nacional de Arquivos, bem como
exercer orientação normativa visando à gestão documental e à proteção especial
aos documentos de arquivo. Uma reflexão crítica sobre a atuação do CONARQ, ver:
SILVA, Sergio Conde de Albite. A preservação da informação arquivística governa-
mental nas políticas públicas brasileiras. Tese (Doutorado) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2008.

Livro Macos na gaveta.indb 215 17/8/2009 14:22:11


216

9
Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

Extraído de: <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.


htm?infoid=16& sid=47&tpl=printerview>. Acessado em: 22 jul. 2008.
10 Lula mantém sigilo de documentos decretado por Fernando Henrique. Folha de
São Paulo, São Paulo, 24 abr. 2003.
11 Reitere-se o texto da lei: “esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual
período”.
12 OAB contesta lei que regulamenta sigilo de documentos. 20/11/2007. Publicado
no site: <http://www.direitodoestado.com/noticias/noticias_detail.asp?cod=4999>.
Acessado em 21 jul. 2008.
13 A censura de Sarney. Veja, Rio de Janeito, p. 60–62, 12 fev. 1986.
14 Decreto no 3.610, de 14/4/1900; regula o Serviço Policial do Distrito Federal e o
vincula exclusivamente às ordens do chefe de Polícia, de acordo com as instruções
do Ministério da Justiça (Coleção de Leis do Brasil, ano 1900, p. 440).
15 GUANABARA. Decreto “e”, no 3.002, de 15/8/1969. Relatório da Divisão de Informa-
ções, de 1972. Fundo DGIE, Série: Pasta Temática, Sub-série: Administrativa, no 104
(PEREIRA, Márcia Guerra; REZNIK, Luís. De polícia federal a departamento estadual
– o DOPS: evolução administrativa. In: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO. DOPS: a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de
Justiça, 1993. p. 26, nota 20).
16 Agência de informações do Governo vai acompanhar os movimentos sociais. O
Globo, Rio de Janeiro, p. 12, 4 ago. 1996.
17 As Comissões Permanentes de Acesso tiveram sua competência regulada nos arti-
gos 6o, 7o e 9o do decreto no 2.134/97. Já a Comissão de Averiguação e Análise de
Informações Sigilosas, pelo decreto no 5.301, de 9 de dezembro de 2004, que regu-
lamentou o disposto na Medida Provisória no 228, de mesma data, e que dispõe
sobre a ressalva prevista na parte final do disposto no inciso XXXIII do art. 5o da
Constituição e dá outras providências.
18 FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: FGV,
1996.
19 Cerca de dois mil prontuários anteriores a 1964 encontram-se on-line no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro. Em um prontuário que compreenda o período
de 1930 a 1970, as informações contidas nos últimos sete anos foram retiradas
pelos funcionários do Arquivo e só há a possibilidade de se conhecer o período de
1930 a 1963. Essa medida foi tomada, segundo as regras que regem a instituição,
para preservar a privacidade exposta nos registros mais recentes.
20 COSTA, Célia Maria Leite; FRAIZ, Priscila Moraes Varella. Acesso à informação nos
arquivos brasileiros. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, no 3, p. 67–69, 1989.
21 ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, no 17, 1996.
22 Uma reunião desses estudos encontra-se em: WERTH, Nicolas (Dir.). Pour une
nouvelle historiographie de l’URSS. Les Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps
Présent, Paris, no 35, dez.1996.
23 VIANNA, Aurélio; LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. A vontade de
guardar: lógica da acumulação em arquivos privados. Arquivos e Administração,
Rio de Janeiro, v. 10–14, no 2, p. 67, 1986.
24 REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da memória da
esquerda nos anos 60. In: ______. et al. Versões e ficções: o seqüestro da História.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997. p. 35.
25 FRANÇOIS, Étienne. Os ‘tesouros’ da Stasi ou a miragem dos arquivos. In: BOUTIER,
J. Boutier; JULIA, D. (Org.). Passados recompostos: campos e canteiros da história.
Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ: FGV, 1998. p. 157.

Livro Macos na gaveta.indb 216 17/8/2009 14:22:12


217
26 FRANÇOIS, Étienne. Os ‘tesouros’ da Stasi ou a miragem dos arquivos. In: BOUTIER,

Beatriz Kushnir
J. Boutier; JULIA, D. (Org.). Passados recompostos: campos e canteiros da história.
Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ: FGV, 1998. p. 161.
27 CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Informação, documento e arquivo: o acesso
em questão. Boletim da Associação dos Arquivistas Brasileiros, São Paulo, no 11,
1993.
28 ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; FERREIRA,
Marieta de M. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
29 LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, no
17, nov. 1998.
30 ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era”, in: AMADO, Janaína; FERREIRA,
Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV,
1996. pp. 93-102.
31 Enquanto revia esse texto para a publicação foi divulgada a notícia de que durante
o Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a Informações Públicas, realizado
em Brasília nos dias 1º e 2 de abril de 2009, a Casa Civil da Presidência da República
anunciou que a Presidência da República encaminhará, para discussão e aprova-
ção no Congresso Nacional, um Projeto de Lei que “regula o acesso a informações
previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art.
216 da Constituição...”.

Referências

CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Informação, documento e arquivo:


o acesso em questão. Boletim da Associação dos Arquivistas Brasileiros,
São Paulo, no 11, 1993.
COSTA, Célia Maria Leite; FRAIZ, Priscila Moraes Varella. Acesso à
informação nos arquivos brasileiros. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 3, p. 67-69, 1989.
FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de
Janeiro: FGV, 1996.
FRANÇOIS, Étienne. Os ‘tesouros’ da Stasi ou a miragem dos arquivos.
In: BOUTIER, J. Boutier; JULIA, D. (Org.). Passados recompostos: cam-
pos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ: FGV, 1998.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à
Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
. Decifrando as astúcias do mal. Revista do Arquivo Público
Mineiro, Belo Horizonte, v. 42, no 1, 2006.
. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e as fontes.
In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Minorias silenciadas: história
da censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História,
São Paulo, no 17, nov. 1998.

Livro Macos na gaveta.indb 217 17/8/2009 14:22:12


218

PEREIRA, Márcia Guerra; REZNIK, Luís. De polícia federal a depar-


Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação

tamento estadual – o DOPS: evolução administrativa. In: ARQUIVO


PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. DOPS: a lógica da descon-
fiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Justiça, 1993.

REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da


memória da esquerda nos anos 60. In: . et al. Versões e ficções:
o seqüestro da História. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997.

RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... Estudos Históricos, Rio


de Janeiro, v. 21, no 1, 1998.

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína;
FERREIRA, Marieta de M. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: FGV, 1996a.

. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos, Rio


de Janeiro, n. 17, 1996b.

SILVA, Sergio Conde de Albite. A preservação da informação arquivística


governamental nas políticas públicas brasileiras. Tese (Doutorado)–
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.

VERNANT, Jean-Pierre. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso,


São Paulo, v. 9, 1978.

VIANNA, Aurélio; LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de.


A vontade de guardar: lógica da acumulação em arquivos privados.
Arquivos e Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, no 2, p. 67, 1986.

WERTH, Nicolas (Dir.). Pour une nouvelle historiographie de l’URSS.


Les Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps Présent, Paris, no 35,
dez.1996.

Livro Macos na gaveta.indb 218 17/8/2009 14:22:12


AGENTES PRIVADOS NA ESFERA PÚBLICA: A MÍDIA COMO ATOR
POLÍTICO/IDEOLÓGICO E EMPRESARIAL

Francisco Fonseca

Introdução e problematização

Tendo em vista os complexos e controvertidos papéis desempenhados


pela mídia – isto é, os diversos meios de comunicação de modalidades dis-
tintas – nas sociedades contemporâneas, sociedades estas que podem ser
definidas como “midiáticas”,1 este texto pretende: refletir sobre as principais
características da mídia; analisar algumas implicações de sua atuação e re-
fletir sobre a maneira como o próprio pensamento liberal – ao qual a mídia
invoca como legatária – retrata, direta e indiretamente, a relação entre as
esferas privada e pública, aspecto crucial para compreendermos a atuação
dos agentes privados da mídia.
Como ponto de partida, é fundamental enfatizar que a mídia promove a
intermediação entre classes e grupos sociais, mediando os conflitos os mais
diversos. Tal mediação significa filtrar fatos, eventos e processos sociais e
veiculá-los segundo interesses privados específicos (de seus “representa-
dos”, leitores, fornecedores, anunciantes, entre outros) que podem ser, de
forma direta e/ou indireta, vinculados a determinadas classes sociais. Nesse
processo, vetos e proposições fazem parte da rotina da mídia, embora, na
maioria das vezes, de forma subliminar e sofisticada. Esse modus operandi
remete ao caráter empresarial dos meios de comunicação (privados), que
são empresas capitalistas voltadas à obtenção do lucro.
Mas, paralelamente a sua ação empresarial, a mídia atua política e
ideologicamente,2 papel esse que se destaca em momentos cruciais, caso
da Constituinte, em 1987/1988, e da reversão do modelo nacional-desenvol-
vimentista na década de 1990, com a formação da agenda neoliberal, apenas
para citar dois exemplos substantivos.
Por fim, deve-se compreender a mídia como “aparelho privado de
hegemonia”,3 pois seus órgãos representam instituições eficazes na incul-
cação de ideias, valores e comportamentos fundamentais à reprodução das
sociedades capitalistas. Os aparelhos privados de hegemonia podem ser
assim sintetizados:

Livro Macos na gaveta.indb 219 17/8/2009 14:22:12


220
Agentes privados na esfera pública: a mídia como ator político/ideológico e empresarial

[...] são organismos sociais “privados”, o que significa que a


adesão aos mesmos é voluntária e não coercitiva, tornando-os
assim relativamente autônomos em face do Estado em sentido
estrito [no contexto, portanto, de sua configuração ampliada,
isto é, sociedade política + sociedade civil, possível nas con-
formações sociais do tipo “ocidente”]; mas deve-se observar
que Gramsci põe o adjetivo “privado” entre aspas, querendo
com isso significar que – apesar desse seu caráter voluntário
ou “contratual” – eles têm uma indiscutível dimensão pública,
na medida em que são parte integrante das relações de poder
em dada sociedade.4

Por tudo isso, considera-se que a mídia é a instituição que,


nas sociedades complexas, é capaz de simultaneamente publicizar,
universalizar e sintetizar valores ideológicos – particulares, portanto
– em nome do “todo”, do “bem comum”, da “coletividade”, que remete
à clássica definição de ideologia.

Implicações da atuação da mídia

O papel mercantil da mídia – provindo de sua característica


empresarial –, se, por um lado, é semelhante ao de seus congêneres
empresariais, torna-se, por outro lado, distinto de outros setores eco-
nômicos, pois, além de modelar a opinião, sua mercadoria – a notícia
– está sujeita a aspectos muito mais complexos do que as existentes
nos produtos comuns, tangíveis ou não. A necessidade de altos in-
vestimentos em capital fixo, por exemplo, sobretudo em virtude das
novas tecnologias informacionais, faz com que uma eventual perda
de leitores e anunciantes cause prejuízos a essa atividade “de risco”
que é a produção de informação. O poder da mídia implica, portanto,
um instável equilíbrio entre formar opinião, receber as influências de
seus consumidores (leitores, ouvintes, telespectadores, internautas,
dentre outros) e de toda a gama de fornecedores e anunciantes, além
do próprio Estado, auferir lucro e atuar como aparelho privado de
hegemonia.
Mas se a notícia, per se e enquanto “processo produtivo”, é con-
siderada similar a qualquer outra mercadoria – tais como os produtos
agrícolas, industriais e serviços –, tornando-se irrelevante o fato de
ser “imaterial”, seus impactos são infinitamente mais complexos do
que outras mercadorias. Afinal, sua utilização pode, potencialmente,
causar danos a grupos sociais e mesmo às sociedades, na medida
em que possui (a notícia) o poder de: produzir e distorcer imagens e

Livro Macos na gaveta.indb 220 17/8/2009 14:22:12


221

Francisco Fonseca
versões a respeito de acontecimentos, questões e pessoas, propagar
boatos e imagens, influenciar comportamentos, dentre inúmeras
outras possibilidades, paralelamente ao seu papel de “informar”.
Observe-se que não tratamos aqui o processo de informar como algo
neutro, pois ele próprio está submetido ao “processo produtivo da
notícia”, o que implica uma imbricada relação entre: os que narram
os “fatos”, os que os testemunham (as fontes), os que os redigem
e editam, sem contar a própria percepção dos que “consomem” as
notícias. Mas, para além da impossibilidade intrínseca de “neutrali-
dade objetiva”, dado que os que testemunham, narram e editam, por
exemplo, possuem valores, (pré)conceitos e vinculações de classe, o
fato marcante é que os interesses políticos, econômicos e sociais dos
proprietários privados dos meios de comunicação – e de suas bases
de representação – são determinantes da maneira de ser e de agir dos
meios de comunicação.5
Não se pode, portanto, negligenciar os impactos de um poder
desmedido e em larga medida sem controles (controles democráticos,
ressalte-se) sobre a formação e a informação da opinião, poder este
cada vez mais concentrado em escala internacional por meio dos
grandes conglomerados oligopolistas, como é o caso da mídia. Em
consequência, a questão que se coloca refere-se a quem controla –
efetiva e democraticamente – o poder da mídia e quais instituições
lhe servem de contrapeso.
Ainda quanto ao caráter mercantil da notícia, essa mercadoria
é – como aludimos – de um tipo especial e, como tal, necessita ser
tratada de forma igualmente especial, tendo em vista as inúmeras
consequências que pode acarretar, consequências essas que assumem
cada vez mais dimensões planetárias, reitere-se. Como ilustração da
repercussão social que as notícias podem ter – de forma estrita, ou
como boato, versões, insinuações, entre outras modalidades –, basta
citarmos as elevações e quedas das bolsas de valores e das moedas
em função de especulações muitas vezes iniciadas e/ou estimuladas
pela mídia6. Mais ainda, a exposição da vida privada de personagens
públicos vem, frequente e crescentemente, ocasionando danos morais
à sua imagem, levando até à interrupção de carreiras e ao estigma
social. A notícia cada vez mais se confunde com o entretenimento e
com o espetáculo, pois, além do mais, as próprias empresas midiáticas
se organizam de tal forma que notícia e entretenimento são negócios
empresarialmente fundidos. Além disso, o chamado tratamento jorna-
lístico das notícias é perversamente substituído pelo seu potencial de
audiência (em qualquer modalidade de comunicação), o que implica
seu crescente enquadramento à luz de seu potencial espetacular; logo,

Livro Macos na gaveta.indb 221 17/8/2009 14:22:12


222
Agentes privados na esfera pública: a mídia como ator político/ideológico e empresarial

comercializável.7 Consequentemente, há uma combinação, muitas


vezes propositada, entre fato e versão, real e imaginário, aconteci-
mento e ficção, em prejuízo de algo e/ou de alguém (indivíduos ou
coletividades). Essa “confusão” entre mídia e espetáculo e interesses
privados e interesses públicos é, sob todos os aspectos, perniciosa à
democratização das sociedades.
Assim, se essas, dentre outras, consequências do poder da mídia
são perceptíveis e, mais ainda, se todos os outros tipos de mercado-
ria, seus processos produtivos e seus proprietários são, por variadas
formas, passíveis de controle por mecanismos governamentais e da
sociedade, por que a mercadoria notícia não deveria submeter-se a
mecanismos semelhantes? Reitere-se que a produção e o comércio
de mercadorias e serviços (tangíveis e intangíveis) são controlados
por órgãos distintos, em todas as sociedades.8
Mas é importante ressaltar, por outro lado, ser inegável, em se
tratando da informação, a tentação de se estabelecer controles auto-
ritários, censórios, o que, aliás, é comum na história brasileira; daí a
preocupação com a liberdade de expressão necessariamente dever
nortear qualquer mecanismo de controle que venha a se constituir,
tanto em nível nacional como internacional, repelindo-se, portanto,
qualquer tentativa de censura. Contudo, entre censura e controle so-
cial democrático há uma enorme diferença, que, se não explicitada,
possibilita o permanente veto dos meios de comunicação a qualquer
forma democrática de controle. Mais ainda, pode permitir, como vem
permitindo, a existência de um efetivo poder sem controles e mes-
mo de um “pensamento único”, tornando os meios de comunicação
verdadeiras máquinas de produção do consenso, pois podem (seus
órgãos), no limite, “suprimir” vozes discordantes. Como ilustração,
ressalte-se que as proposições neoliberais (que prefiro denominar
de ultraliberais, dada a radicalidade tanto das propostas como da
forma de operar desta corrente), tais como a privatização, a diminui-
ção do papel do Estado, a flexibilização do mercado de trabalho, o
individualismo, dentre outras, constituíram, a partir dos anos 1980,
o chamado “pensamento único”, na medida em que se tornaram
programa de reforma de inúmeros Estados nacionais assim como de
agências internacionais, sendo aceitas (tais proposições) pela maioria
esmagadora da mídia em escala internacional. Aos discordantes das
chamadas “reformas orientadas para o mercado” coube a pecha de
“neolíticos”9 por estarem dissonantes com os ventos do neoliberalis-
mo. Trata-se, portanto, de hegemonia, bloqueadora, contudo, de outras
formas de pensar e, como tal, antidemocrática, pois a unicidade de
pensamento contraria a tradição – que se requer liberal – afirmadora

Livro Macos na gaveta.indb 222 17/8/2009 14:22:12


223

Francisco Fonseca
do pluralismo, do dissenso e do direito das minorias se manifestarem,
como veremos adiante.
Mas não se pode negligenciar que, no século XX, possuir um meio
de comunicação, sobretudo com abrangência razoável, requer imensos
recursos econômicos, tornando-se proibitivo à maioria absoluta dos
grupos sociais, o que implica que “liberdade de opinião” sujeita-se ao
poder dos conglomerados capitalistas. Assim, é paradoxal observar que
justamente as empresas de comunicação sejam as menos controladas
(em termos democráticos, reitere-se) em relação aos outros tipos de
empresa produtoras de outros tipos de mercadoria. Afinal, obter a hege-
monia sempre foi o objetivo dos grupos detentores das diversas formas
de poder nas sociedades em que o Estado tornou-se “ampliado”.10 Mais
ainda, uma das mais fortes críticas desferidas aos regimes socialistas
dizia respeito justamente à impossibilidade do dissenso, em razão do
controle estatal dos meios de comunicação. Ou, em outras palavras,
do “pensamento único”, na esteira do partido único e do monopólio
produtivo do Estado, supressor das iniciativas particulares, entre as
quais a liberdade de imprensa. Ora, a situação não seria semelhante
em países capitalistas, como o Brasil, dentre inúmeros outros, em que
há verdadeiros monopólios e oligopólios da comunicação – formais e
informais –, sem que o Estado e a sociedade possuam instrumentos
eficazes para contê-los, que não o jogo do mercado e a Justiça?11
Afinal, num mercado tão pouco competitivo como o brasileiro,
particularmente nos meios de comunicação, o mercado certamente
não é o motor de democratização do acesso à informação: aliás, difi-
cilmente possui per se essa função. Quanto ao Poder Judiciário, dado
inexistir, na prática, uma lei de imprensa no Brasil, cabe à Justiça
julgar os crimes específicos da imprensa por meio das leis gerais
dos crimes contra a honra, o que faz com que, por exemplo, o direito
de resposta, crucial à democracia e à própria honra dos atingidos,
seja praticamente nulo no Brasil. Não bastasse isso, a lei e o aparato
judiciário são condições necessárias, mas jamais suficientes para a
democratização dos meios de comunicação.
Pode-se concluir, dessa forma, que a grande mídia, concebida
como ator político/ideológico, deve ser compreendida “[...] fundamental-
mente como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção
na vida social.”12 Afinal, a mídia representa, por meio de seus órgãos,
uma das instituições mais eficazes quanto à inculcação de ideias em
relação tanto a grupos estrategicamente reprodutores de opinião –
constituídos pelos estratos médios e superiores da hierarquia social
brasileira, isto é, leitores, no Brasil, de jornais e revistas – quanto à
massa dos indivíduos, fundamentalmente informada pela televisão

Livro Macos na gaveta.indb 223 17/8/2009 14:22:12


224
Agentes privados na esfera pública: a mídia como ator político/ideológico e empresarial

e pelo rádio. Em ambas as situações, os meios de comunicação são


polos de poder inquestionáveis, mesmo considerando-se que leitores,
telespectadores e ouvintes não sejam autômatos.
Assim, se a esfera pública tornou-se cada vez mais global – a ponto
de podermos falar de uma agenda planetária, que envolve temas como
capital financeiro, cadeia produtiva, miséria/migração, meio ambiente,
direitos humanos, armas nucleares, drogas, dentre inúmeras outras
questões – e se, além disso, a mídia procura, a partir de interesses pri-
vados, traduzir e intermediar relações sociais na esfera pública, qual é
o controle democrático que os cidadãos comuns, agora em dimensão
internacional, possuem sobre ela? Se a questão já era complexa em es-
cala nacional, torna-se ainda mais problemática quando pensamos que o
“mundo está menor” na medida em que certas fronteiras estão sendo di-
luídas. Portanto, a compressão espaço/temporal13 implica o alargamento
da esfera pública, pois cada vez menos exclusivamente nacional, devido
à crescente “internacionalização” das economias e sociedades. Nesse
sentido, o poder da mídia se amplia em razão da própria ampliação da
“esfera pública”, cada vez mais tornada internacional.

A relação público/privado na teoria política liberal e a mídia

Vejamos como o próprio pensamento liberal – ao qual a mídia


direta ou indiretamente se diz filiada – reflete sobre a relação entre
atores privados e esfera pública.
Do ponto de vista histórico, a distinção público/privado encon-
trou um verdadeiro divisor de águas com as revoluções burguesas,
notadamente a Revolução Francesa, na medida em que inaugurou um
novo conceito de liberdade, pois identificado ao mundo privado – por
meio, inicialmente, do mercado – e politologicamente definido como
pertencente ao caráter negativo de liberdade. O liberalismo (clássico)
do século XIX o afirmou enfaticamente, encontrando nas figuras de
Benjamin Constant, Stuart Mill e Alexis de Tocqueville, entre outros
(embora possamos encontrar discordâncias entre eles), expressões
máximas de seu desenvolvimento.14 A liberdade negativa implica, ainda
hoje, a existência de um espaço privado, garantido fundamentalmente
por um Estado de Direito, em que cada indivíduo – universalmente
concebido como igual a seus semelhantes perante a lei – pode fazer
tudo o que queira sem ser impedido a tanto, assim como deixar de
fazê-lo sem ser obrigado a agir de uma forma que não deseje. A con-
dição essencial que valida ambas as situações refere-se justamente à
linha limítrofe que separa o público do privado, isto é, a existência de
direitos definidos aprioristicamente – porém, de forma não estática, na

Livro Macos na gaveta.indb 224 17/8/2009 14:22:12


225

Francisco Fonseca
medida em que mutáveis historicamente –, no sentido de configurar
o que é público, portanto, pertencente aos interesses “comuns” de
todos, e o que diz respeito apenas às individualidades. Como assevera
Bobbio, em busca de uma compreensão da política moderna, cotejada
à antiga, à guisa de Benjamin Constant:

O tema fundamental da filosofia política moderna é o tema dos


limites, umas vezes mais restritos, outras vezes mais amplos
conforme os autores e as escolas, do Estado como organização
da esfera política, seja em relação à sociedade religiosa, seja em
relação à sociedade civil (entendida como sociedade burguesa
ou dos privados).15

Benjamin Constant, no século XIX, em sua famosa obra Da Liber-


dade dos Antigos comparada à dos Modernos, mostra-nos o sentido pri-
vatista da liberdade para o homem (moderno) pós-revolução burguesa,
privatismo esse que, se extremado, poderia degenerar a esfera pública.
Apesar dessa ressalva, Constant não só diagnosticou o significado da
liberdade moderna como o defendeu, pois, para ele, ao cidadão caberia
rogar “[...] à autoridade de permanecer em seus limites. Que ela se limite
a ser justa; nós nos encarregamos de ser felizes”.16
Dessa forma, se a separação entre as esferas pública e privada,
por um lado, e o privatismo, por outro, marcam o mundo moderno, re-
sultando na separação entre os poderes, impedindo com isso a tirania
do poder do Estado, autores como Stuart Mill e Alexis de Tocqueville,
por seu turno, temeram por um outro tipo de tirania. Tirania esta que
não mais proviria do Estado e sim da própria sociedade, na medida em
que o poder da maioria, sobretudo da opinião majoritária, igualmente
resultaria em tirania, a tirania da maioria, com efeitos semelhantes à
historicamente temida tirania estatal, tão cara ao pensamento republi-
cano e ao pensamento liberal, e mais ainda ao pensamento ultraliberal
do século XX e dos dias de hoje.
Nesse sentido, Stuart Mill, em seu clássico Sobre a Liberdade, ao
relatar a sanha persecutória, de caráter moralista, a comportamentos
pouco usuais, caso da poligamia dos mórmons na Inglaterra do século
XIX, temia pelos seus efeitos, pois, para ele,

[...] a opinião de semelhante maioria, imposta como lei à mi-


noria, em questões de conduta estritamente individual, tanto
pode ser certa como errada. Nesses casos, a opinião pública, na
melhor hipótese, significa a opinião de algumas pessoas sobre
o que é bom ou mau para outras pessoas.17

Livro Macos na gaveta.indb 225 17/8/2009 14:22:12


226
Agentes privados na esfera pública: a mídia como ator político/ideológico e empresarial

A imprensa, por seu turno, por vezes contribuiria para tal


caráter persecutório, o que seria temerário ao pluralismo, pois
haveria uma “[...] linguagem de manifesta perseguição usada pela
imprensa deste país quando chamada a noticiar o notável fenômeno
do mormonismo.”18

A mídia no mundo contemporâneo

Tendo em vista essas preocupações, fundadas em temas que a


teoria e a filosofia políticas tornaram primordiais, torna-se possível
compreender um pouco mais sobre o paradoxo da mídia que, como
enfatizamos, apesar de portadora de opiniões e interesses particula-
res (em sentido amplo), atua na esfera pública por excelência, ao se
autorrequerer in(formar) a opinião pública, em prol, portanto, dos
interesses públicos. A simultaneidade público/privado revela, em
verdade, um manancial de tensões que constitui enorme contradição,
mesmo se a olharmos pela ótica da teoria liberal, a qual a mídia diz,
ou imagina, filiar-se, reitere-se.
Afinal, nas sociedades capitalistas o papel da mídia como inter-
mediadora, tanto dos interesses privados como (especialmente) dos
interesses públicos, complexifica-se, em virtude, antes de tudo, do
próprio caráter majoritariamente privado – discutido anteriormente –
da propriedade das diversas modalidades da indústria midiática, tais
como: periódicos, rádios, tvs (aberta e a cabo), agências noticiosas,
produção cinematográfica, entre outras. Não bastasse o caráter pri-
vado dessas modalidades de informação, há um crescente movimento
que busca concentrá-las em poucas mãos – aliás, um fenômeno típico
do capitalismo contemporâneo e presente em todos os setores eco-
nômicos – por meio de fusões e incorporações, fazendo que uma elite
seleta – economicamente falando – de empresários privados domine
o que o público, em nível não mais apenas local (ressalte-se), deva
saber sobre os acontecimentos cotidianos.
Nesse sentido, a internet, como uma nova tecnologia informacio-
nal, é considerada por muitos como uma exceção, pois, supostamente,
não pertencente a ninguém. Ocorre, contudo, que tudo o que permite o
acesso à “rede mundial de computadores” depende de poderosíssimos
empresários privados, caso das indústrias de software e hardware e
mesmo de provedores. Mais ainda, crescentemente a internet vai-se
tornando um grande balcão de negócios virtuais, mas obtém lucros
bastante concretos, pois é dominada por redes empresariais com
enormes recursos financeiros, tecnológicos e políticos.

Livro Macos na gaveta.indb 226 17/8/2009 14:22:12


227

Francisco Fonseca
Quanto às agências noticiosas, estas distribuem “as notícias”
internacionais por todo o planeta, estabelecendo não apenas a
hierarquia dos acontecimentos noticiáveis como, principalmente,
a visão sobre os mesmos. O fato de haver mais de uma agência
noticiosa não parece suficiente para contrariar esta assertiva, pois,
fundamentalmente, atuam de forma semelhante; estão estabelecidas
nos países capitalistas centrais e obedecem à lógica privada de seus
proprietários.19 O aspecto principal, contudo, refere-se à ausência
de controles democráticos pelas sociedades (em escala internacio-
nal, portanto) acerca da mercadoria notícia comercializada por tais
agências, entre outras modalidades de informação. A inexistência
de mecanismos fiscalizatórios é, aliás, um fator característico do
mundo empresarial midiático.20
Por seu turno, a mídia, enquanto ator político, ideológico e eco-
nômico detentor de poder (majoritariamente privado, reitere-se, pois,
fundamental), é uma realidade detectada desde o século XX, a ponto de
ser considerada um verdadeiro “quarto poder”. A referência implícita aos
outros três poderes estatais – que representam a moderna formatação
do Estado Constitucional de Direito, inspirado na tradição republicana
de dividir para controlar o poder do Estado – é, por si só, a demons-
tração da capacidade de influência adquirida por este meio. Afinal, se
a mídia ocupa o papel de fiscalizar e controlar os poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, contribuindo para sua publicização – uma das
características fundamentais do Estado moderno, notadamente em seu
veio republicano, ressalte-se –, ela própria constitui agente de poder
que deve, portanto, ser fiscalizado e controlado.
É nesse sentido que podemos compreender a famosa sentença
de outro liberal clássico, Madison (no contexto dos escritos de Os
Federalistas) acerca da natureza humana, e que certamente pode (e
deve) estender-se à mídia:

Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governo.


Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam
os controles internos e externos do governo. Ao constituir-se
um governo [...], a grande dificuldade está em que se deve, pri-
meiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois,
obrigá-lo a controlar-se a si mesmo. [...] Essa política de jogar
com interesses opostos e rivais [...] pode ser identificada ao
longo de todo o sistema das relações humanas, tanto públicas
como privadas.21

Livro Macos na gaveta.indb 227 17/8/2009 14:22:13


228
Agentes privados na esfera pública: a mídia como ator político/ideológico e empresarial

Logo, à mídia caberiam controles democráticos concretos –


em perspectiva nacional e internacional –, assim como uma reflexão
profunda sobre seu papel e poder nas sociedades que se pretendem
democráticas. Caso contrário, as sociedades serão permanentemen-
te reféns de poderes especiais, em que democracia e transparência
tornam-se palavras vazias. Se tal assertiva era válida em momentos
em que a mídia tinha poderes muito menores dos que os que detem
no mundo contemporâneo, tais preocupações tornam-se ainda mais
pertinentes e graves nos dias de hoje.

Considerações finais

Procuramos analisar como a mídia ocupa papel central nas


sociedades capitalistas, assumindo funções públicas extremamente
importantes, sem, contudo, ter um “mandato” para tanto e, sobre-
tudo, por ser um ator político, ideológico e empresarial: privado,
portanto.
O caráter empresarial da atuação dos órgãos da mídia e seu
papel como “aparelho privado de hegemonia” – permanentemente
voltado a influenciar as esferas de poder e particularmente modelá-las
à luz dos interesses de segmentos específicos, aos quais organiza e
representa – definem largamente o papel da mídia da segunda metade
do século XIX aos dias de hoje.
O tema dos controles sociais democráticos – passíveis de serem
observados na própria teoria política liberal à qual a mídia singela-
mente diz ou se imagina vincular – torna-se crucial, notadamente
quando a “esfera pública” se amplia em escala internacional: fenômeno
do tempo presente que a história contemporânea e a ciência política
tentam captar.
Por fim, cabe notar que tanto jornalistas como acadêmicos
das mais variadas cepas e disciplinas têm um papel fundamental a
desempenhar quanto às questões em foco. Afinal, o fazer jornalístico
– mesmo considerando-se a extrema hierarquização das redações –
pode abrir brechas no cotidiano do “processo produtivo das notícias”,
assim como à Academia cabe o papel de diagnosticar e propor ações
de descompressão do poder sem limites do chamado “quarto poder”,
dado o potencial deletério que pode assumir e vem assumindo. Este
texto pretendeu contribuir com a reflexão para tanto, pois se tem
como pressuposto que a democracia é um processo permanente de
construção. No Brasil, essa perspectiva torna-se ainda mais crucial,
dada nossa longa história de autoritarismo e de confusão entre os
âmbitos público e privado.

Livro Macos na gaveta.indb 228 17/8/2009 14:22:13


229

Francisco Fonseca
Notas
1 CASTELLS, Manoel. A política informacional e a crise da democracia. In: ______. O
poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
2 Analisei o papel político/ideológico da mídia – notadamente os periódicos diários
O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Folha de São Paulo entre 1985
e 1992 – no livro FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado: a grande imprensa e a
formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2005.
3 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 5. V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
4 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros
ensaios. São Paulo: Cortez, 1994. p. 54–55. Preferimos a definição do principal
exegeta de Gramsci no Brasil, dada a capacidade de síntese deste em contraste
com as notas esparsas do próprio pensador italiano nos Cadernos do Cárcere,
assim efetuadas, como se sabe, em razão das condições em que foram escritas.
Observe-se, por outro lado, que esta perspectiva gramsciana distancia-se dos
“aparelhos ideológicos de Estado”, formulados por Louis Althusser, devido justa-
mente à ausência de autonomia desses aparelhos em relação ao aparelho estatal.
Cf. ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d’État. Paris: Éditions So-
ciales, 1976.
5 Como, além do mais, esses interesses são potencializados pela ausência de con-
troles sociais democráticos sobre a “mercadoria notícia”, há um verdadeiro abis-
mo entre impossibilidade de neutralidade e determinação de classe do processo
produtivo da notícia..
6 Note-se que, para diversos autores, o mundo estaria passando por uma verdadeira
compressão do espaço e do tempo, que se configuraria como uma das caracterís-
ticas da contemporaneidade. Em outras palavras, as informações são cada vez
mais transmitidas em tempo real – on line –, encurtando brutalmente o tempo de
sua “geração” assim como (especialmente) de sua propagação (transmissão) em
escala planetária. Dessa forma, nesse mundo encurtado por satélites, fibras óticas,
tvs a cabo, agências noticiosas, jornais e revistas (em inglês, língua cada vez mais
falada, e mesmo traduzida para as línguas nativas) impressos simultaneamente
em diversos países, a mídia vem crescentemente extrapolando mais ainda sua in-
fluência. É claro que não falamos de qualquer mídia, isto é, das que se encontram
na periferia do sistema. A grande mídia, aquela que influencia suas congêneres
nacionais e em consequência a população mundial, encontra-se na sede do capi-
talismo internacional. Mais ainda, se a esfera pública emergiu e se desenvolveu
em perspectiva eminentemente nacional, a partir da explosão informacional vem
tornando-se cada vez mais planetária, isto é, uma dada informação, acerca por
exemplo do mercado financeiro, pode contribuir para desestruturar inúmeras eco-
nomias. Exemplos disso são vistos frequentemente quando (reitere-se) a simples
publicação de uma declaração de uma alta autoridade monetária do G-7 ou do
FED norte-americano é capaz de derrubar bolsas e moedas no mundo inteiro, com
consequências trágicas para as populações locais.
7 É em razão da “sociedade midiática do espetáculo” que a figura dos “paparazzi” é
emblemática, tanto da “invasão da privacidade” como do advento de indivíduos
formados para serem ávidos pelo espetáculo, o que inclui necessariamente o âm-
bito político-institucional.
8 No Brasil, órgãos como os Procons, a Secretaria de Direito Econômico (SDE), as
Agências de Regulação (setoriais, como por exemplo a Anatel e a Aneel), entre
outros órgãos, além de entidades privadas sem fins lucrativos, como o Instituto
de Defesa do Consumidor (IDEC), apenas para citar alguns, cumprem o papel de
fiscalizar, controlar e eventualmente punir empresas que abusam de seu poder ou
não dão garantias aos consumidores. A mídia, contudo, está fora do alcance des-
sas entidades.

Livro Macos na gaveta.indb 229 17/8/2009 14:22:13


230
9 Neologismo inventado pelo economista neoliberal Roberto Campos para estigma-
Agentes privados na esfera pública: a mídia como ator político/ideológico e empresarial

tizar os oponentes das “reformas orientadas para o mercado”, e reiterado exausti-


vamente pela mídia.
10 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 5. V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
11 Apesar da existência do multipartidarismo, de diversos proprietários de meios de
comunicação e do Estado não ser onisciente nem onipresente, não haveria no Bra-
sil algo semelhante ao que ocorreu no mundo soviético, isto é, um “pensamento
único”?
12 CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino: imprensa e ideo-
logia: o Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa Omega, 1980. p. 19.
13 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
14 Estes autores representam a tradição que melhor expressou os dilemas – de um
ponto de vista liberal – acerca do que conteria ambas as esferas. Já no século
XX, autores ultraliberais, como Friedrich Von Hayek, entre outros, superam este
dilema ao associar liberdade a privatismo. Em outras palavras, a esfera privada e,
nesta, o mercado, seriam sinônimos de liberdade.
15 BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília, DF: UNB, 1986. p. 960.
16 CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Porto
Alegre: L&PM, 1982. p. 24.
17 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. p. 149.
18 Ibid., p. 161. Não se pode esquecer a clássica negação da existência de uma es-
fera pública – dado o caráter de classes das sociedades capitalistas – reivindicada
pela tradição marxista, tendo em vista a alegada vinculação inescapável de cada
indivíduo aos seus interesses de classe. Ocorre, contudo, que as modernas socie-
dades de massa homogeneizaram a própria cultura, submetida ao mesmo processo
– produtivo e de consumo – das mercadorias de uso palpáveis. Contemporanea-
mente, apesar de uma vasta literatura, de veio pós-moderno, afirmar o crescente
processo de desmassificação mercantil como um todo, e em particular da cultura,
por meio da segmentação estética e produtiva, a estrutura social em que vivemos
permanece articulada ainda em termos massificados. Em outras palavras, não é
casual que filmes hollywoodianos, pop stars globais e best sellers mundiais contabi-
lizem seus lucros em valores impensáveis à atividade cultural até poucas décadas
atrás e, mais ainda, vendam cópias de seus produtos aos milhões em lugares os
mais distantes no planeta. Seria estranho não conceber esse fenômeno como de
“massa”. Afinal, os números da indústria cultural cada vez mais se superam. Apenas
o faturamento anual de cada um dos quatro grandes best sellers estadunidenses os-
cila entre 30 e 60 milhões de dólares. A difusão “cultural” tornou-se um dos grandes
negócios, da segunda metade do século XX aos dias de hoje. Mais ainda, ao lado
do turismo, o setor cultural – cada vez mais associado ao entretenimento – é o que
mais emprega pessoas em diversos países, movimentando valores astronômicos.
19 É interessante observar que os jornais brasileiros, por exemplo, normalmente repro-
duzem fotos, matérias e artigos internacionais, seja das agências noticiosas, seja dos
grandes jornais estadunidense e europeus, equalizando a cobertura dos “aconteci-
mentos internacionais”. O mundo global torna-se, assim, cada vez mais parecido.
20 A legislação sobre o controle da mídia pelos Estados nacionais varia conforme o
país, pois há os que proíbem monopólios formais ou informais e os que, como
o Brasil, são absolutamente permissíveis quanto ao controle privado da informação.
Seja como for, o ponto central diz respeito à ausência de controles democráticos, seja
dos organismos inter ou transnacionais, seja das populações mundiais “abasteci-
das” pelas indústrias noticiosas. Trata-se, portanto, de um poder sem controle.
21 MADISON, J. Os Federalistas, p. 273 apud WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos
da política. v. 1. São Paulo: Ática, 1990.

Livro Macos na gaveta.indb 230 17/8/2009 14:22:13


231

Francisco Fonseca
Referências

ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d’État. Paris:


Éditions Sociales, 1976.

BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília, DF: UNB,


1986.

CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino:


imprensa e ideologia: o Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa
Omega, 1980.

CASTELLS, Manoel. A política informacional e a crise da democracia.


In: . O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada à dos mo-


dernos. Porto Alegre: L&PM, 1982.

COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes


e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994.

FONSECA, Francisco. O consenso forjado: a grande imprensa e a for-


mação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2005.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 5. v. Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira, 2000.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política. v. 1. São Paulo:


Ática, 1990.

Livro Macos na gaveta.indb 231 17/8/2009 14:22:13


Livro Macos na gaveta.indb 232 17/8/2009 14:22:13
O JORNALISMO E SEU PAPEL NAS SOCIEDADES DISCIPLINARES

Mayra Rodrigues Gomes

O jornalismo tem sido considerado como quarto poder e tal estatuto


é pensado por diversos vieses. Dois deles são prevalentes: por um lado, leva-
se em conta a vigilância exercida sobre o poder público, através da cobrança
de seus deveres, assim como de transparência em suas ações; por outro, é
enfatizado o potencial de influência que se manifesta tanto na capacidade
de mobilização quanto na de direcionamento da opinião dos leitores.
Hoje, tais atributos estão associados não só ao jornalismo, mas às
redes comunicacionais como um todo. Esse quarto poder se exerce tanto
na televisão, cinema ou rádio quanto na worldwideweb, independentemente
do fato de que a forma seja a do meio jornalístico ou não. Assim, muito do
que dissermos a seguir, embora com foco no jornalismo, aplica-se também
a outros meios e formatos.
A proposta iluminista, que paira sobre a era donde brota essa no-
ção de quarto poder, com seus investimentos na livre opinião como eixo de
esclarecimento e de manutenção das democracias, ignorou as mediações
e seus poderes de injunção. Ignorou as resistências à política educativa
calcada no olhar das autoridades tanto quanto a dimensão intermediária
entre esfera pública e esfera privada em que se instalou o jornalismo. É este
fato que levou Foucault, em relação a estratégias de supervisão e controle
baseadas no olhar abrangente do panóptico, à afirmação de que “No fundo,
foi o jornalismo – invenção fundamental do século XIX – que manifestou o
caráter utópico de toda esta política do olhar”.1
Contudo, posto nestes termos e sem referência ao conjunto da obra
de Foucault, ou ao contexto sociotemporal, dá-se a entender que o jornalismo
trabalhou na contracorrente da supervisão e controle e, ao mesmo tempo,
subversivamente, quanto à livre manifestação da opinião por seu potencial
para moldá-la. Esta tendência interpretativa, que pretendemos examinar a
seguir, não deixa de reverberar em equívocos quanto à natureza do jorna-
lismo e algumas de suas práticas, que se estendem à atualidade.
Comecemos, então, por recuperar algo que se difunde a partir do
século mencionado. Trata-se da progressiva prevalência dos dispositivos
disciplinares que levou Foucault a apontar o surgimento de um tipo especial
de instalação e manutenção do poder, compondo um tipo de sociedade que

Livro Macos na gaveta.indb 233 17/8/2009 14:22:13


234
O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares

ele chamou de disciplinar. Com isso, compreende-se um modo de


organização social baseado na norma e na educação, ou melhor, na
adequação e funcionalidade em relação às normas vigentes.

A disciplina é uma técnica de exercício de poder que foi, não


inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios
fundamentais durante o século XVIII. Historicamente as disci-
plinas existiam há muito tempo, na Idade Média e mesmo na
antiguidade. Os mosteiros são um exemplo de região, domínio
no interior do qual reinava o sistema disciplinar. A escravidão
e as grandes empresas escravistas existentes nas colônias
espanholas, inglesas, francesas, holandesas etc., eram mode-
los de mecanismos disciplinares. Pode-se recuar até a Legião
Romana e, lá, também encontrar um exemplo de disciplina. Os
mecanismos disciplinares são, portanto, antigos, mas existiam
em estado isolado, fragmentado, até os séculos XVII e XVIII,
quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova
técnica de gestão dos homens.2

Ora, essa majoração das disciplinas corresponde a outras


estratégias educativo-administrativas que se instalam por essa época.
Em primeiro lugar, como mais relevante, surge uma tomada do espa-
ço físico, com a intenção de “des-aglomeração”, para efeitos de uma
divisão que propicia a atenção e o exame.

Nas escolas do século XVII, os alunos também estavam aglo-


merados e o professor chamava um deles por alguns minutos,
ensinava-lhe algo, mandava-o de volta, chamava outros etc.
um ensino coletivo dado simultaneamente a todos os alunos
implica uma distribuição espacial. A disciplina é, antes de
tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a
inserção dos corpos em um espaço individualizado, classifi-
catório, combinatório.3

É por uma tomada do espaço que grandes mudanças se operam


nos séculos XVII e XVIII. A primeira concerne a uma mudança na prática
da medicina com o surgimento dos hospitais em um tipo de regime
que até hoje será prevalente. Esta mudança se deve principalmente a
uma atenção, apropriação e reconfiguração do espaço físico, pensado
como ideal para as casas de saúde, pensado como ideal justamente por,
permitindo o registro das minúcias, prestar-se a uma inédita supervisão
e, ao mesmo tempo, atuação sobre os agrupamentos.

Livro Macos na gaveta.indb 234 17/8/2009 14:22:13


235

Mayra Rodrigues Gomes


Pela disciplinarização do espaço médico, pelo fato de poder
isolar cada indivíduo, colocá-lo em um leito, prescrever-lhe um
regime etc., pretende-se chegar a uma medicina individualizan-
te. Efetivamente, é o indivíduo que será observado, seguido,
conhecido e curado. O indivíduo emerge como objeto do sa-
ber e da prática médicos. Mas, ao mesmo tempo, pelo mesmo
sistema do espaço hospitalar disciplinado se pode observar
grande quantidade de indivíduos. [...] O indivíduo e a população
são dados simultaneamente como objetos de saber e alvos da
intervenção da medicina, graças à tecnologia hospitalar.4

Da mesma forma, os grandes projetos urbanísticos do século


XVIII empreendem uma tomada do espaço que vem em resposta à
concentração das populações urbanas e aos problemas que ela suscita:
a facilidade de disseminação de doenças e epidemias, a facilidade da
mobilização em levantes políticos, a dificuldade, ou impossibilidade,
da cobrança de taxas sobre um comércio plural e espontâneo.
As estratégias de quadriculamento nessa tomada do espaço
consistem em alargamento das avenidas, cortadas por ruas paralelas
compondo realmente um quadriculado. Paralelamente, procede-se à
retirada de matadouros e cemitérios dos centros da cidade, à escolha
de lugares para hospitais e instituições públicas, levando em conta,
ao mesmo tempo, acesso e isolamento.
Tais procedimentos revelam uma confluência das operações
em torno do exame, da supervisão e da imposição de normas. Se
observarmos a afirmação de que, a partir do século XIX,

[...] em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes,


de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só
se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena
luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que
finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.5

estaremos próximos da compreensão da dinâmica dessa tomada


espacial. Pois, com um quadriculamento do espaço, com a instalação
de “lugares” específicos, que implicam o isolamento e a classificação
do que contém, trata-se sempre de trazer à visibilidade para que o
controle dos gestos, ou modos de ser, possa realizar-se.
Por causa desses topoi devemos considerar, então, dois tipos de
espaço. Em primeiro lugar, e mais notoriamente, revela-se um espaço
físico, material, sobre o qual incide a intervenção do diagrama hospi-
talar no urbanístico, por exemplo. Em segundo lugar, delineia-se um

Livro Macos na gaveta.indb 235 17/8/2009 14:22:13


236
O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares

espaço que não é físico porque a estas divisões materiais, o quarto,


a quadra, o bairro etc., correspondem divisões organizacionais, as
relações entre componentes de cada lugar institucional, as ocupações
com suas regras, um quadriculado abstrato do campo social que é,
afinal, o dos sentidos instalados pelas visibilidades.
Nesse caso, ao refletirmos sobre o jornalismo, sob a égide dos
conceitos aqui enunciados, temos de considerá-lo, enquanto elemento
desse quadriculado, primeiramente como espaço físico, sustentado
pela empresa e pelo veículo (impresso, televisivo, radiofônico...) que
se constituem como tal pela sua localização e pelas materialidades
que implicam, inclusa aí toda a parafernália tecnológica. Tal espaço é
orientado por vetores mercadológicos, assim como o será toda produ-
ção dele advinda. Mas, num outro momento, ele, o jornalismo, é espaço
das relações, espaço em que se mostram os conteúdos específicos,
um diagrama das significações possíveis, um enquadramento das
diversidades da vida, seus casos e ocorrências, num campo comum.
Um espaço supõe o outro e ambos supõem o espaço maior de
sua inserção que é a combinatória de todos os campos desenhados
pelo quadriculamento e que compreendemos como campo social. No
caso do jornalismo, podemos nos referir ao campo por ele desenhado
como espaço público, paralelamente à noção de esfera pública, na
esteira de vários trabalhos já desenvolvidos nessa direção.
Usamos o termo combinatória, em vez de somatória, porque
se trata sempre de um rebatimento de um segmento a outro, cujas
relações, sempre móveis, compõem o conjunto. Dessa forma, o espaço
físico refunda o não físico e ambos se sustentam. Exemplo simples
desse rebatimento determinante é encontrado na diferença entre um
jornalismo desenvolvido por empresas de difusão e um jornalismo que
é de iniciativa do Estado: certamente o espaço das relações, o espaço
das articulações administrativas, das hierarquias e suas funções, as-
sim como dos conteúdos distribuídos, acompanhará essa diferença.
Se ao quadriculamento do espaço físico corresponde uma divisão
do espaço cultural, ou do que podemos compreender, em sentido mais
amplo, como noosfera, este feito só é realizável no apagamento da imen-
sa diversidade que rege o mundo. No caso de ocorrências, trata-se do
reducionismo a tópicos, ou eixos temáticos, que enquadram as visões
de mundo de forma a se prestarem ao exercício da disciplinaridade.
Há eixos condutores, assentados de forma mais abrangente,
como trabalho e família, que funcionam como lugares virtuais, embora
se materializem em espaços físicos: os edifícios em que suas ativida-
des se exercem, os corpos das pessoas que os exercem. Sobre tais
eixos conceituais, distintos de tantos outros, recai um olhar vigilante,

Livro Macos na gaveta.indb 236 17/8/2009 14:22:13


237

Mayra Rodrigues Gomes


tanto das instituições quanto da sociedade, que recorre a dispositivos
disciplinares, confirmando um sentido e uma funcionalidade.
Por outro lado, os comandos e as normas, essência dos disposi-
tivos disciplinares, distribuídos e insuflados nesses espaços, operam
uma constante repetição. As diversidades que surgem são rasuradas
no aplainamento operado pela repetição, rebatimentos num mesmo
tópico ou tema que cristaliza significados. Estão, ainda, submetidas a
uma outra face da própria repetição, que consiste no fracionamento
do espaço; afinal, repetir remete a uma operação de produção de
alteridade em virtude da impossibilidade de produção do mesmo. E
a cada espaço delineado corresponde uma operação de supervisão, a
partir de regras correlatas.
Assim, antes de tudo, é necessário que os lugares, ainda que
virtuais, como no caso de família e trabalho, estejam delineados,
enquanto quadrículos (temas ou tópicos), com precisão. Vale dizer,
com as funções, os papéis e o valor de seus ocupantes, previamente
dimensionados para que a atenção da disciplina se aplique.
Sempre nessa trilha de deduções, podemos pensar que aquilo
que se coloca como ideário, em um espaço não físico, está longe de ser
um sonho a realizar-se. Ao contrário, deve ser lido como componente
das estratégias disciplinares que são partícipes do próprio espaço. Tal
entendimento, em relação ao jornalismo, nos leva a considerar as bandei-
ras pelas quais ele se bate como táticas de solidificação de campos.
Por isso, num primeiro momento, de suas bandeiras, a saber,
vigilância e denúncia, o jornalismo emerge como reforço ao pacto
social, na dimensão da língua comum e na dimensão da atenção
às instâncias públicas. Nesse caso, seu poder é de confirmação do
poder constituído.
A tarefa narrativa do jornalismo gira em torno desses vetores,
confirmação e vigilância, a denúncia como operação consequente, orga-
nizando discursivamente o campo social. O pacto precisa ser reiterado,
ou seja, repetido permanentemente para que se sustente. A própria
periodicidade que o caracteriza deve ser lida, como repetição que é,
enquanto a serviço da reiteração, da recolocação do pacto social.
Por outro lado, a pauta jornalística, ao incidir sobre campos
sempre reiterados, mostra um desenho, correlato à divisão do espaço,
ou quadriculamento, que examinamos. Esses campos compõem um
quadriculado, cada qual como vetor disciplinar porque cada qual é
mostrado segundo um modo considerado ideal, portanto, em que as
normas se inscrevem.
Ao fazê-lo, sob o ponto de vista aqui explorado, o jornalismo
é instrumento de disciplinaridade em dupla via: porque, ao instalar

Livro Macos na gaveta.indb 237 17/8/2009 14:22:13


238
O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares

campos reincidentes, instala os temas a serem privilegiados, em outras


palavras, os temas a que seu público deve dar atenção; porque cada
tema é o ponto em que estarão dimensionadas as coordenadas da boa
conduta, ainda que as linhas editoriais do veículo, ou suas posições
ideológicas, possam apontar para modos de ser divergentes.
Desenvolvemos uma pesquisa, que se estendeu por três anos,
de 2002 a 2004, a respeito do jornalismo televisivo. Foi publicada sob
o título Jornalismo e filosofia da comunicação. Os achados dessa pes-
quisa, hoje em dia, ainda se sustentam, apesar das voltas que o mundo
dá. Buscávamos detectar os espaços virtuais gerados pelo jornalismo.
Procuramos isolar tópicos, dando atenção aos agrupamentos coloca-
dos pelo próprio jornalismo, dando relevância à repetição, de modo
a reconstituirmos os campos a partir da reincidência que subsumem
as variações possíveis ao instalar linhas de constância.
Os tópicos obtidos não foram previamente colocados. Sinaliza-
mos cada matéria sob uma rubrica, procurando condensá-la ao máximo
porque a dispersão na variedade nos impediria de ver o desenho genéri-
co e enfocar o tema central; porque, na verdade, cada matéria atravessa
diversos campos de forma a estender sua disciplinaridade primordial.
Descrevemos, agora, nossos passos na extração dessa tematização.
Sob o tópico Atos de governo abrigamos o subtópico Correções
do sistema, no qual enquadramos as matérias referentes aos atos de
ajuste do sistema político vigente; este é o caso de reformas como as
previdenciárias e as tributárias. Paralelamente, colocamos os atos que
dizem respeito à manutenção da ordem pelo reforço à observância
dos parâmetros já instituídos como corretos. Depois disso, nos per-
guntamos quem eram os actantes, o que nos levou à instituição, em
vários tópicos ou quadrículos, dos subtópicos governamental e civil.
Ao nos perguntarmos pela origem espacial, tivemos de recorrer a uma
divisão sumária entre nacional e internacional, com o apagamento, no-
vamente, da diversidade interna a esses espaços. Por isso organizamos
os tópicos e subtópicos em nacional e internacional, mesmo porque
estes são vetores importantes para a consideração do desenho dos
campos, uma vez que trabalham na dinâmica das oposições, no caso
nós/eles, mecanismo instaurador de campos. Mas, foi o número de
incidências de um único actante em certas instâncias que nos levou
a eleger a rubrica Atos de Governo como um tópico à parte.
Em imediata contiguidade a este tópico situamos o da Auto-
referencialidade. A rigor, este perpassa quase todas as matérias sem
que lhes seja central. Por isso, porque nós o consideramos somente
enquanto motivo central, ele vai aparecer em menor proporção. A
anotação que agora fazemos se torna então necessária para que

Livro Macos na gaveta.indb 238 17/8/2009 14:22:13


239

Mayra Rodrigues Gomes


possamos perceber uma outra dimensão. A autorreferencialidade se
encontra de modo enviesado quando matérias, por exemplo, enunciam
“Nossos repórteres na Copa...”, quando em 2003, nas matérias sobre a
Guerra do Iraque, remete-se a reportagens de um ou outro membro da
equipe do jornal (e todos os veículos recorreram a este expediente).
As situações em que ela se delineia são muitas, merecendo uma par-
ticular atenção. Lembrando os conceitos que nos orientam, devemos
pensar essa constância da autorreferencialidade como um processo
em que a enunciação é tomada como enunciado. Ao fazê-lo, institui
veículo e jornalismo como um quadrículo a trabalhar em consonância
aos outros tantos na organização do quadriculado. Mas, ela deixa de
ser rebatimento dos planos para colocar-se como um plano autônomo
enquanto quadrículo específico. Desloca-se de sua posição de media-
dor colocando-se, e às mídias em geral, como circunscrição específica
dentro do quadro social.
O papel de vigilância do Estado sobre si mesmo, na manutenção
da ordem, dos direitos sociais, do respeito aos direitos humanos, se
desdobra nesse outro, visitado pelo jornalismo, que diz respeito ao
exercício da cidadania, com os direitos e restrições aí implicados.
Para ele, a vigilância sempre apresenta duas faces: o olhar incidente
sobre o Estado em exercício, a infração ao pacto como fruto de má
administração ou de má fé dos representantes, assim como o olhar
sobre os cidadãos tanto em seus possíveis deslizes quanto em suas
possíveis reivindicações. Existe algo com maior poder que a vigilância
para trazer à visibilidade, e consequentemente administrar as partes,
do que o desenho desse quadriculado?
O vetor da vigilância é certamente responsável pelo desenho
de quadrículos como o dos Atos pelos Direitos Humanos e o da Crimi-
nalidade/Violência, mas também enraíza o das Estatísticas/Bem estar/
Reportagens educativas, porque estas nos dão a medida das ações
adequadas; também se insinua nos Modos de Vida, porque estes nos
ensinam sobre a diversidade e permitem apontar a norma e a trans-
gressão nesses modos. Certamente que as Opiniões sobre Projetos e
Efeitos trabalham com o pressuposto da vigilância, mas o insuspeitado
Notícias/Eventos também tem aí sua razão de ser: o olhar incidente
sobre todo o espaço, mesmo quando nele se delineiam curiosidades,
como as de um fait divers, da vida de personagens midiáticos etc.
Sob o prisma desse vetor que nos orienta – a vigilância – não pode
faltar a abordagem de acidentes e catástrofes que, por desestabilizarem
a organização visada, pedem reconhecimento e ações correspondentes.
A vigilância é, senão a principal, uma das bandeiras do jornalismo, a
partir da qual toda denúncia se delineia e se encontra acolhida. Ora,

Livro Macos na gaveta.indb 239 17/8/2009 14:22:14


240
O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares

ela só pode ser exercida sobre uma organização de base que visa res-
guardar a ordem estabelecida como tal, em tal época ou lugar.
Assim sendo, a vigilância é instrumento de disciplinaridade,
trabalhando esse eterno casamento entre disciplina e controle: a
disciplina visa o controle do campo sobre o qual incide, de forma
a administrá-lo a contento, e não há controle sem que dispositivos
disciplinares sejam estrategicamente colocados e ativados.
Ocorre, então, que o exercício da vigilância no jornalismo o qua-
lifica como dispositivo disciplinar, rebatendo em seu espaço, digamos,
novamente, que este seja o espaço público, as normas pelas quais se
organiza o espaço social com suas instituições. Assim sendo, antes de
ser um papel ativo na defesa do cidadão, a vigilância é uma operação
ativa de disciplinaridade, de consolidação das coordenadas vigentes.
Sob a rubrica Esporte, um critério especial foi adotado: foram con-
sideradas nacionais as ações de esportistas brasileiros mesmo quando
realizadas fora do país. Esta classificação era necessária já que nosso
objetivo é demonstrar a relevância dada ao evento, não pelo evento em
si, mas pelo seu papel enquanto lugar de representação do Brasil.
Sob Estatísticas/Bem-Estar/Reportagens Educativas arrolamos
todas as matérias, em geral de iniciativa do próprio veículo, que cor-
respondem a um projeto amplo de informação a serviço da comunidade
visando esclarecimento sobre suas condições de vida, seus recursos,
seus possíveis direitos etc.
Por Modos de Vida compreendemos notícias que falam sobre
o cotidiano de pessoas notórias ou da vida, como ela é em outros
países; as notícias vinculam-se a um projeto cultural, ao mostrar ou-
tras experiências de mundo, mas também servem de chamariz pelo
exotismo que muitas vezes é explorado.
Em Notícias/Eventos: Cultura, Ciência, Personagens de Destaque,
encaixamos o que chega aos noticiários esporadicamente, como os
espetáculos teatrais, como as pesquisas científicas, que encontram
alguma ressonância com situações vividas no momento, como as
ocorrências ligadas a personagens midiáticos.
Por Opinião sobre Projetos e Efeitos compreendemos a matéria
exclusivamente voltada à entrevista ou ao repasse de discursos que
manifestam pontos de vista sobre uma situação. Relembramos, entre-
tanto, que opinativas, de um modo ou outro, são todas as matérias.
Por Política entendemos os embates efetuados pelos representantes
da população em postos públicos.
A eleição e a nomeação dos tópicos em sua individualidade se
devem, então, além da diferença dos fatos tratados, ao número de ocor-
rências que os apontava como uma situação em sua especificidade.

Livro Macos na gaveta.indb 240 17/8/2009 14:22:14


241

Mayra Rodrigues Gomes


No conjunto de busca pelos quadrículos e absorção da varie-
dade, as matérias veiculadas podem ser arroladas sob os tópicos:
Acidentes/Catástrofes, Atos do Governo, Atos/Manifestações pelos
Direitos Humanos, Autorreferencialidade, Criminalidade/Violência,
Economia, Esportes, Estatísticas/Bem-Estar/Reportagens Educativas,
Modos de Vida, Notícias: Eventos de Cultura, Ciência e Personalidades
em Destaque, Opiniões sobre Projetos e Efeitos, Política.
Esse é o desenho do mundo a ser visto e atendido com envolvi-
mento. E, a título de demonstração da operação disciplinar facilitada
pelo isolamento de campo, exploraremos aqui, como exercício con-
ceitual, o quadrículo Atos do Governo.
As matérias por ele subsumidas recebem alguns tratamentos
padrões que convergem para duas operações principais. Por um lado,
diz-se que o governo se posicionou, agindo sobre tal ou tal situação.
Por exemplo, no caso de rodovias em degeneração, ele orquestrou
o recapeamento, a recuperação das ribanceiras, o alargamento das
faixas etc. Ora, ainda que se possa dizer que ele o fez bem ou mal, o
fato é que o próprio enunciado, por implicação, coloca diretrizes. Ele
indica o que cabe ao governo realizar, o que é de sua alçada assim
como de seu dever; enfim, ele instaura a disciplina das ações. Muitas
vezes, essa introdução à eficácia alude até ao modo de ser da ação
eficiente. Impossível mais adestramento que isso.
Por outro lado, diz-se que o governo deveria intervir, ou não
interveio quando deveria, sobre alguma situação de conflito ou ne-
cessidade social. Esta colocação, independentemente dos casos em
que ela se atualize, sempre relacionada à cobrança feita pela mídia,
enquanto quarto poder, é epítome da disciplinaridade. Pois, ao mesmo
tempo, coloca a ação justa e adequada, fato que remete à norma, e
reclama seu exercício, fato que reforça a norma. Por qualquer ângulo
que olhemos as abordagens midiáticas dos atos de governo, veremos
a operação embutida dos dispositivos disciplinares.
Recuperamos estes dados para mostrar que, quando falamos
de pauta, como se a escolha fosse no fluxo do momento, estamos com-
prometidos, como já nos alertou Pierre Bourdieu, com duas lógicas
que comandam o jornalismo. Por um lado, a lógica do furo que gera
a procura da notícia mais “quente”, por outro, a do julgamento dos
pares, na qual os próprios jornalistas funcionam como avaliadores das
figuras proeminentes em seu meio, além de induzirem a um movimen-
to nivelador, pois, se um veículo divulga uma notícia, nenhum outro
quer ficar na retaguarda e deixar que ela escape. A rigor, a pauta está
comprometida com mecanismos internos ao campo do jornalismo,
mecanismos que o sustentam e dão a direção de seus procedimentos.

Livro Macos na gaveta.indb 241 17/8/2009 14:22:14


242
O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares

E, a rigor, a pauta está comprometida com o quadrículo instalado e as


regras do jogo que lhe são imputadas.
Sobretudo, o desenho dado pelo quadriculado dessa arena
simbólica imprime uma direção ao que deve ser priorizado, não só pelo
leitor, mas também pelos próprios jornalistas. O quadriculado, com a
reincidência temática que faz o contorno de um quadrículo, que por
sua vez se orienta por modos de abordagem que remetem a regras,
fecha com as perspectivas e compõe os elementos constituintes da
própria arena. Nesses termos, tal quadriculado opera disciplinarmen-
te, em relação a emissor e receptor, assim como o faz por propiciar
lugares conceituais em que efeitos de sentido, a regular as condutas
desejáveis, serão sedimentados.
Mas, ainda retomando a expansão do jornalismo no século
XIX e buscando os traços de sua natureza intrinsecamente discipli-
nar, encontramos a priorização de assuntos que, em nossos tempos,
temos rubricado como sensacionalistas. Trata-se do fato de que, ante
o nascimento da população (as grandes concentrações urbanas,
para Foucault) e à instalação das Nações (enquanto Estados) há uma
política de contenção para que um e outro se submetam à ordem,
para que a primeira se veja refletida na segunda e, assim, aquiesça à
administração imposta.

Evidentemente por uma moral rigorosa: daí esta formidável


ofensiva de moralização que incidiu sobre a população do
século XIX [...] foi absolutamente necessário constituir o povo
como um sujeito moral, portanto separando-o da delinqüência,
portanto separando-o nitidamente do grupo dos delinqüentes,
mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas
também para os pobres, mostrando-os carregados de todos
os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. Donde o nas-
cimento da literatura policial e da importância nos jornais, das
páginas policiais, das horríveis narrativas de crimes.6

Ora, somos despistados da verdadeira natureza dessas “hor-


ríveis narrativas de crimes”, no que diz respeito a sua função social,
quando as reduzimos ao vetor do furo, que procura atrair público e
remete, portanto, ao vetor mercadológico. Quando explicamos esta
priorização em termos de sensacionalismo/chamariz. Quando a
reduzimos a um subproduto da sociedade de espetáculo e da espe-
tacularização que ela gera, perdemos o ponto seminal de inserção
do jornalismo.

Livro Macos na gaveta.indb 242 17/8/2009 14:22:14


243

Mayra Rodrigues Gomes


Ao tomarmos o recente caso do assassinato da menina Isabella
Nardoni, fato que tomou todas as manchetes de jornais, vemos a pre-
sença de todos esses elementos tão referenciados. Todos os veículos
se concentraram na tragédia, explorando os detalhes da família e suas
conexões. A opinião pública se dividiu. De um lado, a precipitada acu-
sação dos pais, pela qual a influência da mídia foi responsabilizada. De
outro, a cautela para que não fossem construídos quadros nefastos,
como aquele com o qual se dinamitou os educadores da Escola Base.
A televisão foi exímia em mostrar a população reunida em saída
de delegacia, ou na rua em frente à residência dos pais da madrasta,
Anna Carolina Trotta Jatobá, sempre a clamar por justiça ou a vociferar
impropérios aos suspeitos do crime. Esse é o quadro do espetáculo,
incentivado e explorado pelas mídias.
Mas, este é também o quadro que disfarça a presença dos
dispositivos disciplinares. Em primeiro lugar, o povo sai às ruas
porque este é um crime que mexe com um dos eixos sagrados da
estrutura social: a família. A família, enquanto ideia fonte, ou tema
de base, é lugar de construção imaginária, depositária de anseios,
esperanças, idealizações.
Como tal, ela deve permanecer impoluta, provendo e resguardan-
do seus membros. A reação do povo, tanto quanto dos espectadores
de jornais televisivos, se constrói como resposta à afronta direcionada
a um dos principais focos de disciplinariedade. “De modelo, a família
vai tornar-se instrumento, e instrumento privilegiado, para o governo
da população e não modelo quimérico para o bom governo”.7
Além disso, ao pensarmos a exposição da criminalidade, deve-
mos lembrar que esta exposição não para na narrativa pura e simples.
Na realidade, a própria construção narrativa é prenhe de indicações,
organizadas em torno das figuras do vilão e do herói, que pontificam
sobre o bem e o mal. E não faltam aí os ditames sobre os modos de
agir da polícia, dos investigadores, da coleta de testemunhos e provas,
das apurações da medicina legal etc. Em todos esses casos, todo o
tempo, a norma é apontada e invocada.
Sob a ótica de uma natureza que remonta ao século XIX e,
subsequentemente, se estende e se reproduz, tais notícias, um tanto
espalhafatosas, sobre o crime ou sobre a bizarrice, têm uma função
de adestramento. Elas prescrevem sobre o certo e o errado, sobre
falta e punição, configurando a conformação dos modos de ser, veia
mestra dos dispositivos disciplinares.

Livro Macos na gaveta.indb 243 17/8/2009 14:22:14


244
O jornalismo e seu papel nas sociedades disciplinares

Notas
1 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 244.
2 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 105.
3 Ibid., p. 106.
4 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 111.
5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 166.
6 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 133.
7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 289.

Referências

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001.


. Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

Livro Macos na gaveta.indb 244 17/8/2009 14:22:14


O EFEITO MEDIÁTICO ALCANÇADO PELOS TERRORISTAS E
APROPRIADO PELO GOVERNO AMERICANO*

Elson Lima

Ninguém questiona que os ataques ocorridos em 11 de setembro de


2001, sobre a América, constituem atos de terrorismo, ou seja, o emprego da
violência contra alvos civis inocentes como forma de apresentação de uma
agenda política e/ou militar.1 Sem querer nos estender sobre a plasticidade
de definições que o fenômeno suscita, vamos apenas propor alguns caminhos
por onde o terrorismo tem enveredado ultimamente. As abordagens mais
convencionais dedicadas ao tema2 procuram, em linhas gerais: explicar o
terrorismo como um fenômeno que opera, hoje, dentro do rearranjo de poder
em proeminência com o término da Guerra Fria e o fim da bipolaridade que
marcou as relações internacionais ao longo da segunda metade do século
XX; supervalorizar o caráter culturalista, propondo uma reflexão sobre ele
por meio da aproximação de elementos como fundamentalismo religioso,
terrorismo e islamismo, num esquema determinista que desemboca no
suposto choque de civilizações,3 não sem interesse, oferecido após a derru-
bada do Muro de Berlim e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS); e ater-se a uma questão que perpassa toda discussão
inicial do terrorismo, ou seja, a que toca a sua conceituação, de modo que
o esforço teórico acaba predominando. Nesse quadro, inúmeros trabalhos4
colaboram com a formulação de uma tipologia do terrorismo. As reflexões
consideram inúmeras variáveis para sua construção teórica, principalmente
recusando generalizações quanto à existência de uma fórmula geral que
facilite a compreensão do mesmo.
A nova agenda apresentada pelos terroristas procurou mostrar aos
Estados Unidos e aos seus aliados que eles não poderão ficar imunes às
consequências que suas políticas externas vêm promovendo. Principalmente
porque elas não levam em conta o direito de autogoverno de outros Estados,
apoiando frequentemente regimes ditatoriais como salvaguarda de interesses
econômicos, ao mesmo tempo que, de forma arrogante, se autoproclamam
promotores da democracia e da liberdade para o mundo. Legítima ou não a
forma de apresentação da crítica, a derrubada das torres gêmeas colocou
a Al Qaeda e Osama bin Laden em um lugar de destaque ao dissolver o mito

Livro Macos na gaveta.indb 245 17/8/2009 14:22:14


246
O efeito mediático alcançado pelos terroristas e apropriado pelo governo americano

de intocáveis, que gozava até então os norte-americanos, no que re-


mete à violação do seu território.
Explicar o ocorrido e fornecer respostas imediatas à sociedade
americana: quem são os atores; por que a escolha dos alvos; quais
os objetivos políticos; por que o emprego de tais meios; como clas-
sificar a ação etc., enfim, questionamentos dessa ordem assolaram a
imprensa e, de um modo geral, os meios de comunicação do mundo
inteiro, durante e imediatamente após a queda das torres do World
Trade Center. Essas perguntas não encontravam respostas seguras
naquela ocasião. E não encontravam porque a força das imagens do 11
de Setembro desautorizava qualquer explicação que não elas próprias
nos primeiros instantes.
Por “espetáculo” ou “espetacular”, não entendemos a forma
vulgar com que essa categoria é empregada no cotidiano. Significando
por vezes um evento de natureza meramente impressionante e em
alguns casos, artística. Ou também uma situação de escândalo cuja
cobertura dos media fornece um sentido pejorativo. Empregaremos
“espetáculo” aqui, sobretudo, como a forma de funcionamento da
sociedade (moderna) que forneceu subsídios à concretização dos
ataques de 11 de Setembro. O espetáculo é, portanto, o capital em tal
grau de acumulação que se torna imagem.5 Deriva disso a incerteza
de um mundo no qual as imagens se colocam como explicação (pa-
nacéia) da vida, principalmente por essa ser falsificação decorrente
da mercadoria. Um exercício de poder social que violenta os atores
humanos tanto quanto a disciplina da linha de produção.6
Após lerem com perspicácia o referido aforismo que encerra
o primeiro capítulo da principal obra de Guy Debord (“o espetáculo
é o capital em um grau tal de acumulação que se torna imagem”),
os terroristas possivelmente reformularam e levaram a lógica do
espetáculo até sua conclusão funérea. A megalomania perfilada nas
torres do World Trade Center sintetizava perfeitamente essa etapa de
acumulação do capital. Para derrotá-la, isto é, derrotar sua instrumen-
talidade social ou seu poder sobre a imaginação do consumo, nada
seria mais eficiente talvez do que destruí-la literalmente diante das
câmeras, causando com isso o maior efeito possível.
Talvez por isso o efeito causado inviabilizasse a formulação
de perguntas mais adequadas à situação. No lugar de “Por que nos
odeiam tanto?”, indagação constantemente feita pelos americanos, os
terroristas, ao se valerem da ata espetacular que o fenômeno encerrou
– aliás, o raciocínio dos terroristas encontrava-se perfeitamente ajus-
tado ao sistema de media globalizado –, provocaram uma verdadeira
névoa na possibilidade de compreensão do que estava ocorrendo.

Livro Macos na gaveta.indb 246 17/8/2009 14:22:14


247

Elson Lima
Somente aos poucos a perplexidade foi-se dissipando e as respostas
puderam apresentar-se para perguntas mais pertinentes, como “No
que estamos sendo atacados?”.
No domínio da imagem, a nova face do terrorismo foi capaz de
demonstrar a vulnerabilidade do Estado, ao perceber neste âmbito
uma parte indispensável do aparelho de autorreprodução de for-
mas de contestação violenta. A eficiência da ação terrorista resulta
da capacidade de contestar a hegemonia americana, atacando-a
subversivamente no próprio aparelho de produção dessa mesma
hegemonia. No 11 de Setembro os terroristas tiveram o mérito de
enxergar e explorar a ausência de controle vertical, que caracteriza
as sociedades democráticas, chamando desse modo a atenção para
um aspecto da contingência do poder americano, o que levou os Es-
tados Unidos a verem que na sua própria força estavam contidos os
germes de sua fraqueza (aqui, encontram-se os elementos para uma
fundamentação teórica do terrorismo enquanto guerra assimétrica,
isto é, na disposição e utilização de recursos não convencionais em
ações terroristas).
Ao se fazer uma retrospectiva do dia em que a ação decorreu,
serão encontradas muitas chaves para nossa abordagem. Do momento
em que a primeira torre é atingida por um dos aviões, pela manhã,
até o início da noite, quando o presidente americano George W. Bush
declarou que os responsáveis iriam “sofrer as consequências” de tais
atos, a rotina dos americanos mudou significativamente. Instalações
governamentais e diplomáticas são evacuadas, a agenda política dos
governantes é suspensa, o Serviço de Imigração decreta alerta máximo
nas fronteiras dos Estados Unidos com o Canadá e o México. Declara-
se estado de emergência na cidade de Washington e o presidente
americano embarca no seu avião (Air Force One), rumo a local não
divulgado. Ao mesmo tempo, atividades esportivas são suspensas e
na internet ocorre um verdadeiro congestionamento de usuários. En-
quanto isso, o medo já se espalhava numa colônia árabe dos Estados
Unidos, receosa de represálias, devido aos atentados.
A duração da “miopia” (uma visão de curto alcance) ajuda a
entender talvez a demora de os americanos responderem o porquê de
estarem sendo atacados, determinando a potencialidade do espetáculo
cuja força se definiu pelo tempo de repercussão da insegurança gene-
ralizada, até que o governo pudesse reunir condições para assumir
uma postura a fim de contornar a crise.
Mas, para isso, o poder institucional precisava apresentar o
gerenciamento de crises, tanto mais como a única alternativa por meio
da qual a restrição dos direitos civis fazia-se necessária, quanto menos

Livro Macos na gaveta.indb 247 17/8/2009 14:22:14


248
O efeito mediático alcançado pelos terroristas e apropriado pelo governo americano

a opinião pública americana se fizesse consciente das contradições da


política externa de seu país nas condições do espetáculo.
A seleção dos alvos pelos terroristas, a data escolhida, as armas
utilizadas – afora os próprios aviões, ao que se sabe, apenas de esti-
letes estavam munidos os terroristas – o simbolismo das ações etc.;
tudo isso só foi possível porque há um modelo específico de sociedade
cujo funcionamento os responsáveis pela ação terrorista conseguiram
compreender previamente.
Habitualmente inclinados a embrulhar o interesse próprio na sua
suposta superioridade moral,7 os americanos, através de sua opinião
pública, não conseguiam aprender com a singularidade daquelas cir-
cunstâncias. Há muito mais loucura ética no planejamento e na execu-
ção estratégicos de operações de bombardeio em larga escala – feitos
amplamente pelo seu país, os Estados Unidos – do que, por exemplo,
no indivíduo que se explode no processo de atacar o inimigo,8 como
aconteceu com os atentados de setembro de 2001.
Uma pequena amostra do impacto causado, em termos de
incerteza, pode ser vista no título das manchetes de alguns jornais
americanos após os ataques: o The New York Times (“Kidnapped
airplanes destroy World Trade Center and reach the Pentagon”),9
o Chicago Tribune (“USA under attack”)10 e o The Miami Herald
(“Attacked”).11 Essa recusa em classificar as ações como terroristas
expressa certamente uma situação de cautela quanto à natureza do
inimigo. Tal característica pode ser observada ao verificarmos que as
manchetes deixam em suspense este fato e só em um segundo mo-
mento classificam claramente a situação – The New York Times (“US
attacked”);12 New York Post (“Act of war”);13 Daily News (“It’s war”).14
E em decorrência da dimensão e da ousadia dos ataques, os media
insistiram na ocorrência de um “estado de guerra”.
O “mundo-imagem” parecia sofrer uma crise. Era como se o
mundo das aparências estivesse sofrendo em certa medida uma
reconfiguração das funções anteriormente delegadas a seus atores.
Aqueles que se colocavam até então como os principais produtores
de imagens para o mundo deixavam, momentaneamente, de decifrar
o sentido das mensagens contidas nelas. A violência que suas máqui-
nas captaram dos ataques não fazia exigências nem sequer fornecia
explicações. Sendo assim, temos de dar razão a T. J. Clark, ao perceber
a eficácia do terror expresso em seu caráter inovador.
Suficiente ou não para desestabilizar o Estado e a sociedade
atacada a longo prazo, o fato é que a inovação contida no 11 de Se-
tembro reside na sua capacidade de trazer para o interior da suposta
potência hegemônica (EUA) uma guerra até então existente para além

Livro Macos na gaveta.indb 248 17/8/2009 14:22:14


249

Elson Lima
de suas fronteiras. Formulada segundo os preceitos da nova guerra,15
o terrorismo da Al Qaeda naquela ocasião acompanhou as vicissitudes
do espetáculo e flagrou uma deficiência existente e apontada por Guy
Debord há quase três décadas. O espetáculo já não diz: o que aparece
é bom, o que é bom aparece. Diz apenas: é assim.16 E exatamente por
assim ser permitiu ao terrorismo desmascarar sua incapacidade em
atender ilusões camufladas em necessidades, utilizando-se dos media
globalizados para potencializar o efeito da violência simbólica.
Claramente houve uma distância muito grande entre a cobertu-
ra dos jornais americanos nos momentos iniciais dos atentados – na
ênfase por uma retaliação imediata exemplificada pelo articulista do
New York Post, Steve Dunleavy, ao deixar escapar que “o governo deve
simplesmente matar os bastardos responsáveis pelo crime [com]
um tiro entre os olhos ou envenenamento”17 – e os pronunciamentos
governamentais – “não faremos distinção entre os terroristas que
cometeram estes atos e aqueles que os protegeram”.18 Quer dizer, se
por um lado os media, mesmo sob efeito da incerteza provocada pelas
ações violentas, mostravam-se incisivos em suas críticas e dispostos
a pressionarem inclusive as autoridades políticas, do outro lado o go-
verno, sem um plano de ação imediato, acenava com frases retóricas
e vazias de sentido pragmático.
Mal havia começado a se contabilizar o número de vítimas, os
media americanos já exigiam medidas governamentais de gerencia-
mento de crises em moldes conservadores. As exigências realizadas
pelos jornais e pelas emissoras de televisão lembravam um pouco os
apelos que no passado – como, por exemplo, o surgimento dos regi-
mes fascistas, na Itália e na Alemanha, da primeira metade do século
XX – geraram catástrofes ao deixar que a política fosse conduzida por
supostos interesses do “País” ou da “Nação”, abstratamente à frente
daquilo que deveria ser feito em nome dos indivíduos, dos cidadãos
para quem os media americanos faltavam com o compromisso ao
apoiar deliberadamente as ações governamentais.
Dizia um representante daqueles jornais, já deixando entrever
o apoio a soluções autoritárias dadas pelo governo, que “os ataques
poderão convencer os americanos de que todo o possível deve ser feito
para proteger a nação. Caberá a Bush decidir”.19 Em vez de uma crítica
às alternativas de que o governo dispunha naquele momento sob pena
de elas gerarem distúrbios no estado de direito dos cidadãos e/ou
para a ordem internacional, ao dependerem exclusivamente de seus
media – o que verdadeiramente aconteceu –, os americanos viram-se
preocupados simplesmente em responder aos ataques fazendo de sua

Livro Macos na gaveta.indb 249 17/8/2009 14:22:14


250
O efeito mediático alcançado pelos terroristas e apropriado pelo governo americano

condição de vítima um salvo-conduto para qualquer tipo de estratégia


de retaliação empregada pelo governo.
Para uma análise do discurso20 dos media americanos, tomemos
a organização do texto jornalístico e alguns recursos gramaticais (dois
pontos, travessão, aspas etc.) que possibilitam ao leitor identificar
uma mudança de interlocutor. Na cobertura da imprensa americana,
caso houvesse a supressão de tais recursos gramaticais, não seria
possível discernir a origem do conteúdo das matérias assinadas por
seus representantes, isto é, dificilmente alguém conseguiria separar o
que era fala de jornalista do que era fala oriunda do governo, tamanha
era a semelhança decorrente da linearidade e/ou ausência de dialética
ao tratar dos assuntos relacionados à política do país. Era como se
a imprensa se tornasse uma extensão do próprio governo. Os media
dos Estados Unidos comportavam-se, nesse sentido, simplesmente
como uma espécie de arauto do Estado moderno.
Um projeto elaborado pelos jornalistas Bill Kovach e Tom Ro-
senstiel, ligado à Universidade de Columbia, trazia em seu estudo uma
estimativa reveladora: menos de 10% da cobertura que a imprensa
americana fazia do governo continha divergências; daí críticos de
media, como Michael Massing, declararem que a imprensa de seu país
conservava “uma confiança de estilo soviético nas fontes oficiais e
semi-oficiais”.21 Mais do que confiança, há o interesse. O equívoco de
Massing reside no fato de que no caso soviético, as informações que
os media transmitiam do governo eram o resultado do que se pode
chamar de poder espetacular concentrado.22 Um poder exercido ver-
ticalmente, cuja redação de um jornal, por exemplo, acaba sendo um
mero aparelho do Estado soviético, no sentido althusseriano. Diferen-
temente dos Estados Unidos, onde o funcionamento dos media operam
por meio do convencimento, da formulação de consenso e menos do
controle estatal propriamente dito, o que significa uma margem muito
grande de liberdade se comparado ao que havia na União Soviética ou
na atual China. Voltando à formulação de Massing, que os jornalistas
se acomodam aos interesses que movem os seus respectivos jornais,
é uma realidade – inclusive sob pena de garantir seus empregos e o
status quo adquiridos através deles –, mas comparar a imprensa exis-
tente na América à que existia na União Soviética é incorrer em um
erro que só pode ser entendido enquanto formulação retórica.
O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld,
não economizava retórica quando o objetivo maior consistia em en-
cobrir, entre um silogismo e outro, as falsificações inerentes ao efeito
mediático de domesticação da opinião pública. “As organizações
terroristas não têm alvos de grande valor. Não têm exército, marinha

Livro Macos na gaveta.indb 250 17/8/2009 14:22:14


251

Elson Lima
nem força aérea que alguém possa combater. Não têm cidades com
bens valiosos que temam perder. Alguns países que estão escondendo
terroristas têm, sim, alvos valiosos. Têm cidades e exércitos”.23 Portan-
to, fechando o silogismo (com um mero exercício lógico e sem grande
esforço teórico) pode-se deduzir que esses mesmos países tornar-se-
iam alvos potenciais de ações militares dos Estados Unidos.
O efeito mediático, ao ser apropriado pelo governo, fazia de
conta que os americanos viviam realmente em um contexto “pós-
ideológico”. 24 Como se isso realmente fosse possível, não houve
espaço, por exemplo, para a defesa ou a cogitação de reações não
militares aos ataques. Pelo contrário, a imprensa fazia-se pródiga em
solicitações e exigências de bombardeios aos responsáveis pelo 11 de
Setembro. Ainda que os mesmos sequer tivessem sido identificados.25
As ideias de intelectuais como Noam Chomsky, embora trouxessem
grande oposição, não encontravam expressão junto ao grande público
naquele contexto. Não tinham espaço nos jornais dos media ameri-
canos. Nesse sentido, encontram-se publicações feitas pelo jornal O
Globo que não encontraram lugar nos media americanos, a exemplo
de um texto assinado por um jornalista dos Estados Unidos, que vai de
encontro à postura que a imprensa teve naquele contexto de apoio
deliberado ao governo norte-americano.
A instrumentalização dos media pelo terrorismo foi feita reunin-
do horror e poder encerrados na natureza espetacular da violência
observada. Mas a cobertura mediática mudou o sentido dessa ins-
trumentalização. Se ainda nas mãos dos terroristas ela trazia como
significado a possibilidade de chamar a atenção da opinião pública
para as implicações da política externa dos Estados Unidos – ou seja,
por meio de media interligados globalmente, os terroristas empre-
garam um tipo de ação (violência física, simbólica etc.) –, ao lançar
mão desse recurso mediático os terroristas, entretanto, forneceram
subsídios para um revide governamental que incorporasse a política
do espetáculo nos discursos oficiais. E mais, ao redirecioná-la para o
gerenciamento de crises subsequentes, a política do espetáculo não
só escamoteava as condições históricas que levaram à ocorrência do
11 de Setembro, mas fazia com que os interesses26 por trás da solução
conservadora de limitação dos direitos civis, por exemplo, aparentasse
ser a única alternativa viável e, portanto, necessária aos americanos
naquele momento.
É disso que estamos falando quando o vice-presidente, Dick
Cheney, faz apelos aos consumidores dizendo: “Eu espero que os
americanos ponham o dedo na cara dos terroristas e digam que têm
grande confiança no país, grande confiança na nossa economia e que

Livro Macos na gaveta.indb 251 17/8/2009 14:22:14


252
O efeito mediático alcançado pelos terroristas e apropriado pelo governo americano

não vão deixar o que aconteceu afetar suas atividades econômicas.”27


Aqui as implicações são gerais. Envolvem o emissor do pedido, o
seu lugar de fala e o veículo em questão. Cheney é uma figura que há
tempos se mantinha nas fileiras do poder, detinha grande influência
na administração de George W. Bush e já esteve na chefia inclusive de
empresas dos ramos de petróleo e da construção civil (Halliburton
Co.) com atuação em países do mundo inteiro, inclusive no Oriente
Médio. O veículo em questão trata-se da rede de TV NBC, cujo dono
ainda é o da multinacional General Eletric. Deve-se dar a isso especial
atenção, pois a linha que separa o que é (ou o que deveria ser) público
daquilo que é privado acabou sendo uma sutileza que pouquíssimos
americanos conseguiram perceber, no momento em que autoridades
como o vice-presidente dirigiam-se em cadeia de televisão para de-
fender supostos interesses americanos.
Tomando a noção de que a verdade histórica dificilmente afasta-
se dos vencedores, a recente história política tem mostrado que os
casos subsequentes ao “11 de Setembro” – os “Atentados em Madri”
(2004); os “Atentados em Londres” (2005); a situação do Iraque, entre
outros casos – elevaram-se à condição demonstrativa da incapacidade
de as crises, provocadas pelo terrorismo, serem gerenciadas (mais
que isso, resolvidas) toda vez que o efeito mediático se colocar como
recurso indispensável às políticas governamentais. Entretanto, nada
impede, momentaneamente, que o efeito mediático seja direcionado
para a construção consensual desejada em certo contexto. Mas, quan-
do se trata do terrorismo, a força política que suas ações desencadeiam
gera insegurança na população e incerteza nas atribuições estatais. O
apelo mediático refletiu-se na natureza das crises instauradas. Com um
teor de permanência, uma vez que o terrorismo não pode ser vencido
por meio de uma batalha convencional, elas estão suscetíveis de ser
reinauguradas ou restabelecidas, carregando sempre consigo a con-
tingência de como a opinião pública vai reagir ao efeito mediático.
A estética da violência radicada nas ações terroristas de 11 de
setembro de 2001, portanto, é a forma mais radical de manifestação
de contestação política na sociedade do espetáculo. O efeito espeta-
cular de destruição fascinou na medida em que a supressão violenta
do normativo (subversão da lógica da guerra convencional; mudança
na agenda política internacional; transformação na própria ordem
internacional etc.) fez do efeito mediático, aos olhos do Estado-nação,
tanto um expediente necessário no combate ao terrorismo quanto
uma contingência indesejável toda vez que ele se encontrava nas
mãos dos terroristas. Estritamente neste sentido, o efeito mediático
também é aquilo que, ao comentar o trabalho de um colega sobre o

Livro Macos na gaveta.indb 252 17/8/2009 14:22:15


253

Elson Lima
11 de Setembro, V. Safatle chamou de “paixão pelo real”, uma paixão
estético-política pela ruptura, niilismo ativo apaixonado pela trans-
gressão, pela radicalidade da violência como signo do aparecimento
de uma nova ordem cujo programa positivo nunca foi exaustivamente
tematizado.28 Sem legitimidade no Ocidente e tão caro às democracias
liberais, as imagens de destruição trouxeram consigo essa arquitetura
de violenta reivindicação.
Enquanto instrumento político e com um propósito bem de-
finido, o significado do efeito mediático para os terroristas e para o
governo americano, respectivamente, caminhou para duas direções
distintas, ainda que paralelamente: representou insegurança gene-
ralizada de um lado e confiança recuperada de outro. Além disso,
o efeito mediático veste um outro significado também. Mais geral e
sem se submeter definitivamente a um partido ou a uma instituição,
ele comportou-se como pura dialética – ao contrário do “espetáculo”
– fazendo da compreensão histórica o endosso para quem procura
dele se apropriar.

Notas
* O presente texto constitui uma adaptação de trabalho monográfico produzido em
2007 sob a orientação do professor e doutor Francisco Carlos Teixeira da Silva. A
pesquisa, na ocasião, contou com o financiamento da Fundação Carlos Chagas de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
1 Cf. ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e
datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.
2 Cf. BENEGAS, J. M. Diccionario espasa: terrorismo. Madrid: Espasa Calpe, 2004.
3 HUNTINGTON, S. P. Choque de civilizações?. Política Externa, São Paulo, v. 2, no 4,
mar. 1994.
4 Cf. BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jürgen Habermas e
Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
5 DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentário sobre a sociedade do espe-
táculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
6 CLARK, T. J. O Estado do Espetáculo. Folha de São Paulo, São Paulo. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u69295.shtml>. Acesso:
19 mar. 2007.
7 Palavras de um jornalista britânico, Rupert Cornwell, comentando o cinismo com
que os americanos reúnem interesse e moral. Cf. HERTSGAARD, M. A sombra da
águia: por que os Estados Unidos fascinam e enfurecem o mundo. Rio de Janeiro:
Record, 2003.
8 ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e
datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.
9 Traduzindo livremente (assim como as seguintes): “Aviões sequestrados destroem
World Trade Center e alcançam o Pentágono”.
10 “EUA sob ataque”.

Livro Macos na gaveta.indb 253 17/8/2009 14:22:15


254
11 “Atacados”.
O efeito mediático alcançado pelos terroristas e apropriado pelo governo americano

12 “EUA atacados”.
13 “Ato de guerra”.
14 “É guerra”.
15 Cf. COSTA, D. Guerra assimétrica. In: TEIXEIRA DA SILVA, F. C. (Coord.). Enciclopé-
dia de guerras e revoluções do século XX. Rio de Janeiro: Campus, Elsevier, 2004.
16 Cf. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentário sobre a sociedade do espe-
táculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
17 O Globo, Rio de Janeiro, 13 set. 2001. Especial, p. 18.
18 Ibid., p. 02.
19 Ibid., p. 22
20 Cf. CARDOSO, C. F. S.; VAINFAS, R. (Org.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
21 HERTSGAARD, M. A sombra da águia: por que os Estados Unidos fascinam e enfure-
cem o mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003.
22 Cf. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentário sobre a sociedade do espe-
táculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
23 O Globo, Rio de Janeiro, 18 set. 2001. Especial, p. 11.
24 Cf. HERTSGAARD, M. A sombra da águia: por que os Estados Unidos fascinam e
enfurecem o mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003.
25 O Globo, Rio de Janeiro, 17 set. 2001. Especial, p. 8.
26 Cf. HERTSGAARD, op cit.
27 O Globo, Rio de Janeiro, 17 set. 2001. Especial, p. 7.
28 Cf. ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e
datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.

Referências

BENEGAS, J. M. Diccionario espasa: terrorismo. Madrid: Espasa Calpe,


2004.

BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jürgen


Habermas e Jacques Derrida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004.

CARDOSO, C. F. S.; VAINFAS, R. (Org.). Domínios da história: ensaios


de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CLARK, T. J. O Estado do Espetáculo. Folha de São Paulo, São Paulo.


Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ul-
t90u69295.shtml>. Acesso: 19 mar. 2007.

COSTA, D. Guerra assimétrica. In: TEIXEIRA DA SILVA, F. C. (Coord.).


Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX. Rio de Janeiro:
Campus, Elsevier, 2004.

Livro Macos na gaveta.indb 254 17/8/2009 14:22:15


255

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentário sobre a sociedade

Elson Lima
do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

HERTSGAARD, M. A sombra da águia: por que os Estados Unidos fas-


cinam e enfurecem o mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003.

HUNTINGTON, S. P. Choque de civilizações?. Política Externa, São


Paulo, v. 2, n. 4, mar. 1994.

ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de


setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.

Livro Macos na gaveta.indb 255 17/8/2009 14:22:15


Livro Macos na gaveta.indb 256 17/8/2009 14:22:15
PEQUENAS BIOGRAFIAS DOS AUTORES

ALDRIN MOURA DE FIGUEIREDO (aldrinfigueiredo@uol.com.br) é graduado


em História e especialista em Antropologia Social pela UFPA, mestre e dou-
tor em História pela UNICAMP. É autor, entre outros, do livro A fundação da
cidade de Belém: pintura e História na arte da Amazônia (Museu de Arte de
Belém). Atualmente é professor do Departamento de História e do Programa
de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da UFPA.

ÁUREO BUSETTO (aureohis@assis.unesp.br) é graduado em Ciências Sociais


e mestre em História pela UNESP e doutor em História Social pela USP. É
autor do livro A democracia cristã no Brasil: princípios e práticas (UNESP).
Atualmente é professor assistente do Departamento de História e do Pro-
grama de Pós-Graduação em História da UNESP/Assis. Integrante do Núcleo
de Pesquisas Interdisiciplinares de Mídia e Linguagem da UNESP/Assis (cre-
denciado junto ao CNPq), com atuação na linha de pesquisa Mídia e Política
na História do Brasil Contemporâneo.

BEATRIZ KUSHNIR (bkushnir@uol.com.br) é graduada em História e mestre


em História Social pela UFF; doutora em História Social do Trabalho pela
UNICAMP; pós-doutora (Júnior) junto ao Cemi/UNICAMP e pós-doutora
(Sênior) junto ao Departamento de História/UFF. Autora de, entre outros,
Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição (Imago) e Cães de guarda:
jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo). Desde 2005
é diretora-geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Professora
convidada do Departamento de História da UNICAMP desde 2002 e profes-
sora visitante do Departamento de História da UFF desde 2007. Pesquisadora
associada ao Núcleo de História e Linguagens Políticas/Departamento de
História/UNICAMP e ao Núcleo de Estudos Contemporâneos/UFF, ambos
credenciados junto ao CNPq.

ELSON LIMA (elsonlimax@yahoo.com.br) é mestrando em história pelo


Programa de Pós-Graduação em História Comparada – IFCS/UFRJ; pesquisa-
dor junto ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente (IFCS); desenvolve
pesquisa no campo da história do tempo presente, com ênfase em mídia,
terrorismo, narcotráfico e conflitos na nova ordem mundial. Também é as-
sistente da Gerência de Documentação Escrita e Especial do Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro – AGCRJ.

Livro Macos na gaveta.indb 257 17/8/2009 14:22:15


FLÁVIA BIROLI (fbiroli@terra.com.br) é graduada em Jornalismo pela
UNESP e mestre e doutora em História pela UNICAMP. É professora
adjunta do Instituto de Ciência Política da UnB desde 2005. Sua pro-
dução tem como foco central as relações entre os meios de comunica-
ção e a política, com destaque para análises sobre as relações entre
imprensa e democracia no Brasil e, mais recentemente, sobre mídia,
gênero e política.

FRANCISCO FONSECA (frankiko@uol.com.br) é graduado em Ciên-


cias Sociais pela PUC/SP, mestre em Ciência Política pela UNICAMP e
doutor em História Social pela USP. Atualmente é professor de Ciência
Política da FGV/SP, atuando também no Programa de Pós-Graduação
em Administração Pública e Governo. É autor do livro O Consenso
Forjado: a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no
Brasil (Hucitec, 2005).

GIORDANO BRUNO REIS DOS SANTOS (gbrsantos@gmail.com)


é graduando em História pela UFF e bolsista de iniciação científica
do CNPq atuando no projeto “Ditadura, Intelectuais e Sociedade: o
Bem-Amado de Dias Gomes”, desenvolvido e orientado pela profa Dra
Denise Rollemberg Cruz.

JOÃO AMADO (amadojoao@hotmail.com) é graduado e mestre


em História pela UERJ. Suas pesquisas se concentram nas áreas de
história da imprensa e do golpe de 1964. Professor de História do Es-
tado do Rio de Janeiro, atualmente integra o Comitê Estratégico do Plano
de Desenvolvimento da escola da Secretaria Estadual de Educação
do Rio de Janeiro.

MARINA MARIA DE LIRA ROCHA (mmlrocha@hotmail.com) é gra-


duanda em História pela UFF e bolsista de iniciação científica do CNPq
atuando no projeto “A luta pela memória. A ficcionalização da memória
da luta armada na Argentina”, desenvolvido e orientado pelo prof. Dr.
Norberto Osvaldo Ferreras.

MAYRA RODRIGUES GOMES (mayragomes@usp.br) é graduada em


Filosofia e mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela USP.
Tem pós-doutorado pela PUC/SP e é Livre Docente pela USP, na qual
atualmente é professora associada ao Departamento de Jornalismo
e Editoração. É autora, entre outros, dos livros Jornalismo e ciências
da linguagem (Hacker Editores/Edusp) e Poder no jornalismo (Hacker
Editores/Edusp).

Livro Macos na gaveta.indb 258 17/8/2009 14:22:15


MÔNICA CARVALHO (monica.marino@gmail.com) é graduada em
Jornalismo e Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e é mestre e doutora em Comunicação e Cultura por esta mesma uni-
versidade. É investigadora do Instituto de Bioética da Universidade
Católica Portuguesa
.
NORBERTO OSVALDO FERRERAS (nferreras@yahoo.com) é graduado
em História pela Universidad Nacional de Mar Del Plata, mestre em
História pela UFF e doutor em História pela UNICAMP. É autor do livro
O cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-1920) (Eduff).
Atualmente é professor titular do Departamento de História da UFF.

REGMA MARIA DOS SANTOS é graduada em História pela UFU,


mestre em História e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/
SP. Atualmente é professora adjunta do Departamento de História da
UFG (Campus Catalão) e colaboradora do Programa de Mestrado em
Teoria Literária da UFU. Autora do livro Memórias de um plumitivo:
impressões cotidianas, memória e história nas crônicas de Lycídio Paes
(Asppectus) e organizadora do livro Brevidades – crônicas de Lycidio
Paes (Educ/Oficina do Livro).

ROBERTO ELÍSIO DOS SANTOS (roberto.elisio@uscs.edu.br) é jorna-


lista, com pós-doutorado em Comunicação pela ECA–USP, professor
da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), pesquisador
do Núcleo de Estudos de Comunicação e Inovação do Programa de
Mestrado da USCS, vice-coordenador do Observatório de Histórias em
Quadrinhos da ECA–USP e autor dos livros Para reler os quadrinhos
Disney (Paulinas, 2002), As Teorias da Comunicação: da fala à internet
(Paulinas, 2004), História em quadrinhos infantil: leitura para crianças
e adultos (Marca de Fantasia, 2006) e organizador de O Tico-Tico 100
anos: centenário da primeira revista de quadrinhos do Brasil (Opera
Graphica, 2005).

SANDRA ALVES HORTA (shortaster@gmail.com) é graduada em


História pela Universidade Federal Fluminense, mestre em História
Social pela mesma universidade. Organizadora do livro Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro. Terras e fatos, de Aureliano Restier
Gonçalves (Prefeitura do Rio/Secretaria das Culturas/Arquivo da
Cidade, 2001). Atualmente é gerente de pesquisa do Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro.

Livro Macos na gaveta.indb 259 17/8/2009 14:22:15


Livro Macos na gaveta.indb 260 17/8/2009 14:22:15
Coleção Biblioteca EdUFF

O cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-1920)


Norberto Osvaldo Ferreras

Em busca da boa sociedade


Selene Herculano

História do anarquismo no Brasil - V. 1


Rafael Borges Deminicis e Daniel Aarão Reis Filho (orgs.)

O poder de domar do fraco: construção de autoridade e poder


tutelar na política de povoamento do solo nacional
Jair de Souza Ramos

Cruéis paisagens
Ângela Maria Dias de Brito Gomes

Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória


Marialva Carlos Barbosa

Literalmente falando: sentido literal e metáfora na metalinguagem


Solange Coelho Vereza

Rotas atlânticas da diáspora africana: da baía do Benim


ao Rio de Janeiro
Mariza de Carvalho Soares (organizadora)

Terras lusas. A questão agrária em Portugal


Márcia Maria Menendes Motta (organizadora)

Experimentação animal: razões e emoções para uma ética


Rita Leal Paixão e Fermin Roland Schramm

De pedra e bronze: um estudo sobre monumentos – o monumento a


Benjamin Constant
Valéria Salgado

Livro Macos na gaveta.indb 261 17/8/2009 14:22:15


Discurso e publicidade: dos processos de identificação e alteridade
pela propaganda brasileira
Rosane da Conceição Pereira

Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografia


Ana Maria Mauad

Os debates sobre a transição: idéias e intelectuais na controvérsia


sobre a origem do capitalismo
Daniel de Pinho Barreiros

Relações entre linguagem de jornal: fotografia e narrativa verbal


Regina Souza Gomes

Experiência do limite: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath entre


escritos e vividos
Anélia Montechiari Pietrani

O veludo, o vidro e o plástico: desigualdade e diversidade


na metrópole
Luis Antonio dos Santos Baptista

Livro Macos na gaveta.indb 262 17/8/2009 14:22:15


Livro Macos na gaveta.indb 263 17/8/2009 14:22:15
PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL

Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)


após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa.

Este livro foi composto na fonte ITC Cheltenhan, corpo 10.


impreso na Flama Ramos Acabamento e Manuseio Gráfico Ltda.,
em papel reciclato 75g (miolo) e cartão supremo 250g (capa)
produzidos em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em agosto de 2009.
Tiragem: 400 exemplares

Livro Macos na gaveta.indb 264 17/8/2009 14:22:16

Você também pode gostar