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CARTA AO LEITOR
LUCAS SILVA/PICTURE ALLIANCE/GETTY IMAGES

REGISTRO O drama em Manaus,


em 2020, e a primeira capa de VEJA
sobre o tema: marcos

A VITÓRIA
DA CIÊNCIA
HÁ EXATOS quatro anos, o mundo acordou sobressalta-
do com a notícia de novos e sucessivos casos de pessoas in-
fectadas por um patógeno respiratório na cidade de
Wuhan, na China. Ao alerta global deu-se o espanto emol-
durado pelo pavor. A edição de VEJA com data de capa de
5 de fevereiro de 2020 estampava a chamada incômoda,

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mas necessária: “O vírus do medo”. O primeiro diagnósti-


co no Brasil seria registrado na Quarta-Feira de Cinzas de
um Carnaval estranho. De lá para cá, em todo o planeta,
ocorreram 7 milhões de mortes — das quais, 710 000 no
Brasil. As cenas dramáticas das covas em Manaus, em
maio daquele ano, viraram marco de um tempo de dor e
descaso, alimentado pela irresponsabilidade do governo
do presidente Jair Bolsonaro, que se referia à pandemia co-
mo uma “gripezinha”. Não foi, evidentemente.
A tragédia, aliás, só não foi maior porque houve rápi-
da reação da ciência, com a orientação de quarentena e
isolamento, nos primeiros tempos, e depois graças ao de-
senvolvimento de vacinas — sem as quais a emergência
não seria suspendida pela Organização Mundial da Saú-
de, a OMS, em maio de 2023. A humanidade — forçada a
viver de modo diferente, com o trabalho remoto, o uso de
máscaras e cuidados como a limpeza por meio de álcool
em gel, além de outras reviravoltas do cotidiano — trans-
formou-se, compreendendo na marra a relevância do que
ensinam séculos de pesquisa sobre o funcionamento do
metabolismo humano. Mitos, teorias conspiratórias, clo-
roquinas e outras crendices estúpidas foram derrotados
pelo conhecimento.
Lamentavelmente, vale ressaltar, o mal ainda não aca-
bou. Na segunda semana de janeiro foram anotadas 196
mortes no Brasil (a título de exemplo, em um único dia de
2021, o 9 de abril, foram registrados 4 249 mortos). Con-

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tudo, parece não haver dúvida: a civilização venceu, ain-


da que tenha agora de aprender a conviver com o corona-
vírus de forma definitiva. É o momento no qual estamos
— de muitas certezas, alguns pontos de atenção e a con-
vicção de que o bom senso e a razão devem ser regras
inegociáveis. Conseguimos apagar o incêndio, mas ainda
existem centelhas e fagulhas espalhadas por aí. Prova-
velmente, a nossa relação com a Covid-19 será parecida
com a convivência com outras doenças respiratórias, co-
mo mostra a reportagem do editor Diogo Sponchiato, a
partir da pág. 58. Uma enfermidade potencialmente gra-
ve para alguns grupos e que será controlada com vacinas
atualizadas de tempos em tempos. Vigilância e imuniza-
ção — eis as palavras-chave. Assim como alguns hábitos
e costumes adquiridos durante os piores momentos da
pandemia, elas vieram para ficar. ƒ

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JHSF
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perspectivas e plantas deste material são meramente ilustrativas e poderão sofrer moditicações a critério da JHSF e/ou por exigência do Poder Público. O memorial de incorporação ou do loteamento e o instrumento de compra e
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ENTREVISTA EDUARDO LEITE

MAURÍCIO TONETTO/SECOM GOV RS

“SOFRI
PRECONCEITO”
Em fato inédito no cenário nacional, o governador
do Rio Grande do Sul, que mira a Presidência,
anuncia a união estável com o companheiro,
sabendo que isso pode frear sua trajetória
MONICA WEINBERG E RICARDO FERRAZ

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RECÉM-FORMADO na faculdade de direito, Eduardo


Leite logo engatou na política como vereador da cidade gaú-
cha de Pelotas, de onde seria alçado a prefeito e, mais tarde,
a governador do Rio Grande do Sul, cadeira que ocupa pela
segunda vez. Aos 38 anos, ele se firma como a jovem face do
velho PSDB, que presidiu em 2023 e que tenta resgatar do
que define como “a pior crise na história do partido”. Ulti-
mamente, Leite vem ganhando os holofotes por um fato de
cunho pessoal, inédito no país: primeiro em tão alto escalão
a se assumir publicamente homossexual, há dois meses ele
anunciou a união estável com o médico Thalis Bolzan, 31
anos, sacudindo as fileiras conservadoras. Nesta entrevista,
em que trata dos desafios que se põem aos tucanos nas pró-
ximas eleições, o governador reconhece que expor sua
orientação sexual pode ser um freio à sua trajetória, mas diz:
“A liberdade não tem preço.”

Por que o senhor e seu marido decidiram selar a união


estável? Estamos há três anos juntos, felizes, e resolvemos
assinar uma declaração que nos protege do ponto de vista
patrimonial. Não foi nada muito planejado nem teve festa,
como algumas pessoas chegaram a dizer, ao ver fotos nos-
sas em Trancoso, na Bahia. Mas, sim, pretendemos cele-
brar mais para a frente. Quando começamos a namorar, eu
logo disse ao Thalis que queria trazer nossa história à luz.
Naquele tempo, o pai dele ainda não sabia que ele era gay,
então pedi que tratasse do assunto em casa e aí contaria às

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pessoas. Para mim, era essencial. Não queria viver essa his-
tória pela metade, em silêncio, como havia feito até então,
em outros relacionamentos.

Pretendem adotar filhos? Queremos, mas não agora. Isso


exige uma disponibilidade que tanto eu quanto ele não te-
mos no momento.

Como o Palácio Piratini se adaptou a essa inédita situa-


ção no cenário político brasileiro? Era 2021, e o pessoal
do cerimonial me procurou para saber como eu gostaria
que apresentassem oficialmente o Thalis. E eu falei: “Fa-
çam do mesmo jeito que com as primeiras-damas”. Quan-
do ele me acompanha, seu nome é sempre citado e um lu-
gar fica reservado para ele a meu lado. Tem gente que o
chama de primeiro-cavalheiro, mas eu não. Ao tomar pos-

“Quando comecei a namorar o Thalis,


decidi me assumir publicamente gay.
Para mim, era essencial. Não queria
viver essa história pela metade,
em silêncio, como fiz outras vezes”
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se, fiz um agradecimento enfático a meu marido, como


qualquer homem hétero faria à esposa.

O senhor já sofreu preconceito na vida pública por ter


aberto sua orientação sexual? Sem dúvida. Na verda-
de, sofri ataques até antes. As pessoas especulavam e co-
mentavam. Quando enfim me entendi como gay, não
quis expor ao mundo, mas tomei uma decisão: não iria
assumir um personagem, tentando convencer os outros
de que era heterossexual, aparecendo com mulheres ou
fingindo ser casado.

Quando começou a sentir atração por homens? Na ado-


lescência, me peguei pensando sobre isso, mas não fui
fundo no sentimento. Talvez por todo o contexto: fui
criado em um ambiente mais conservador, estudei em es-
cola católica, e você cria uma barreira sem se dar conta.
Tive bons relacionamentos com mulheres, verdadeiros, e
cheguei a ficar quatro anos com uma amiga de faculdade,
por quem realmente me apaixonei. Só aos 25 anos o inte-
resse por homens se fez claro para mim e me permiti vi-
vê-lo. Àquela altura, já era vereador.

Foi conflituoso? Você se pergunta como as pessoas vão


reagir. Tinha um namorado em São Paulo, vivia viajando e,
um dia, minha mãe quis saber por quê. Resolvi revelar ali
que estava envolvido com um homem. “Por que então es-

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colheu a vida pública?”, ela me perguntou. Como toda mãe,


tinha medo de que eu sofresse.

Por que demorou uma década para se assumir publica-


mente gay ? Só me senti seguro depois que já me conhe-
ciam por meu trabalho. Na época de prefeito, tive um na-
morado, com quem fiquei por sete anos, e saía da cidade
para encontrá-lo. O preconceito pesa, mas não me impe-
diu de ser reeleito governador do Rio Grande do Sul, es-
tado tido como conservador.

Que tipo de ataques já sofreu? Aos 27 anos, quando de-


cidi me candidatar à prefeitura, um assessor de meu ga-
binete avisou que os adversários diziam ter uma foto mi-
nha com um homem. Respondi que, mesmo que fosse
verdade, não iria ceder à chantagem. A tal fotografia
nunca apareceu, mas, nos debates, recebia mensagens
anônimas, ameaçando: “Vou divulgá-la.” É curioso que
as agressões vêm de onde você menos espera e se fiam
em argumentações inacreditáveis.

Poderia dar um exemplo? Já ouvi até que eu não seria gay


de verdade e que me apresentava assim apenas para ganhar
destaque na imprensa.

Recentemente, o ex-deputado Jean Wyllys o acusou de


sofrer de “homofobia internalizada”, depois que o senhor

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decidiu manter as escolas cívico-militares em seu esta-


do. Isso o feriu? Foi um ataque claramente homofóbico.
Recorri à Justiça, que o obrigou a retirar o post absurdo. O
problema não é discordar da medida, mas associar minha
decisão a um suposto fetiche por homens de farda. É um
desserviço à causa que diz defender. Compreendo que par-
tidos à esquerda se sintam mais conectados à luta, mas al-
guns chegam ao ponto de achar que alguém como eu, que
não milita nestas fileiras, não é merecedor dessa bandeira.
Um completo equívoco.

O avanço do conservadorismo no eleitorado brasileiro


não seria um freio para suas ambições, como a de dispu-
tar a Presidência? Qual a opção? Não dá para deixar de
ser gay e não vou cortar uma parte de mim para atingir
qualquer objetivo. A única alternativa possível é estabele-
cer uma conexão com as pessoas pelos valores que elas de-
fendem e com os quais eu compartilho — o respeito à famí-
lia entre eles. Mas, claro, sei que minha posição pode ser
um obstáculo a uma aspiração futura.

O senhor vê o Brasil como um país ainda preconceituoso?


Sem um olhar histórico, a sensação é de atraso, mas é preciso
observar a evolução, e ela está certamente acontecendo. A
humanidade é egressa da selva. Uma parcela saiu de lá há
mais tempo, outra há menos, e alguns insistem em permane-
cer por ali. Estamos em meio a um processo civilizatório.

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No rol da pauta progressista, qual sua posição sobre


descriminalização da maconha, em discussão no STF? O
debate é mais do que necessário. A proibição pura e sim-
ples tem colhido efeito negativo: a droga se faz presente na
sociedade para financiar o crime organizado. Agora, é pre-
ciso pensar o que legalizar, para quem e de que forma. Ideal
seria que a matéria passasse pelo Congresso.

E o que pensa sobre a descriminalização do aborto, ou-


tro tópico candente sob apreciação do Supremo? Neste
ponto, me alinho ao ministro Luís Roberto Barroso. Não
sou pessoalmente favorável ao aborto, mas não acredito
que deixar de tratar a mulher como uma criminosa vá in-
centivar a interrupção da gravidez, como se argumenta.
Esses assuntos, porém, mexem com convicções muito pro-
fundas das pessoas e nenhuma autoridade tem o direito de

“Do ponto de vista institucional, o


diálogo avançou em relação à hostilidade
de antes. Mas Lula também fomenta a
divisão, o que é um desserviço. O país
precisa curar suas feridas”
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determinar o que deve ser feito baseada nos próprios prin-


cípios. Por isso, defendo um plebiscito.

Como salvar o PSDB em uma arena tão polarizada co-


mo a atual? A polarização sempre existiu, mas nunca
com feições tão nocivas. Um polo fica o tempo todo que-
rendo aniquilar o outro, num ciclo de destruição que o
próprio Lula estimula. O centro do espectro, onde está o
PSDB, precisa trabalhar para se converter em um tercei-
ro núcleo de gravidade. Não é fácil. Reconheço que o
partido vive a pior crise de sua história.

O racha em São Paulo em relação às eleições municipais


pode afundar ainda mais o partido? Foi um erro não ter-
mos lançado um nome à Presidência em 2022, e espero não
repetirmos o mesmo equívoco. Ganhando ou perdendo,
precisamos de um palanque para ventilar ideias e apresen-
tar nosso projeto. Certas lideranças desejam simplesmente
aderir ao prefeito Ricardo Nunes (MDB), chapa cujo vice
será indicado por Jair Bolsonaro. Sou contra e já penso em
quadros possíveis para a prefeitura, como Andrea Matara-
zzo, liderança histórica do PSDB, hoje no PSD.

O senhor teme uma revoada no ninho paulista? Diante des-


sas divergências, pode ser que aconteça. Aí vamos buscar ou-
tros nomes e tentar unir forças. Tenho convicção de que há
chances de o partido recuperar o protagonismo do passado.

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Restaram mágoas de seu embate com o ex-governador


de São Paulo João Doria, com quem disputou interna-
mente a vaga de candidato à Presidência? Não tenho ne-
nhuma mágoa do João. Naquele momento, entendi que
precisava me apresentar para o páreo, já que ele acumula-
va alta rejeição e eu representava o novo.

Não faz muito tempo, tucanos paulistas ligados a Do-


ria procuraram o presidente do partido, Marconi Peril-
lo, dizendo que o senhor promoveu perseguições con-
tra eles em sua gestão à frente da sigla. Procede? De
jeito nenhum.

Qual avaliação o senhor faz do governo Lula? Do ponto de


vista institucional, o diálogo avançou. O que havia antes era
hostilidade a todos que pensavam de forma diferente de Bol-
sonaro. Vejo mais respeito agora, embora Lula também fo-
mente a divisão. Considero um erro e um desserviço ao país,
porque a gente precisa curar as feridas, e não cutucá-las.

E a agenda do governo, vai na direção certa? Acho a


agenda velha. Ela recicla programas antigos, especial-
mente na área econômica, em pontos centrais como pri-
vatização, tamanho do Estado e legislação trabalhista. Eu
defendo uma economia mais liberal, com reformas que
garantam o equilíbrio fiscal sem abrir mão de um Estado
indutor de inclusão social.

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O senhor acha que escândalos como o da Abin, que teria


mantido uma estrutura paralela para municiar de infor-
mações o clã Bolsonaro, abalam decisivamente a força
política que representa? É preciso sempre lembrar que o
bolsonarismo é muito maior do que a família Bolsonaro.
Ele despontou como uma resposta a um acúmulo de frus-
trações da população. Desse caldo é que emergiu um forte
sentimento antipolítica, que resiste na sociedade. É interes-
sante observar como tanto Bolsonaro como Lula reagem
sempre da mesma maneira quando confrontados: ambos
se vitimizam e insistem na tecla da perseguição. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

SEM RAZÃO PARA SORRIR

A SALA do Museu do Louvre onde repousa solitária numa


das paredes a Mona Lisa, tela em que o renascentista
Leonardo da Vinci (1452-1519) cravou com suas
revolucionárias pinceladas a figura de semblante
enigmático que acompanha o visitante com o olhar, integra
certamente o rol de atrações superlotadas em Paris — e
não são poucas. Pois no domingo 28 o mais famoso de
DAVID CANTINIAUX/AFP

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todos os quadros chamou a atenção não por sua aura


misteriosa enfatizada pelo sfumato, técnica de imprimir
uma névoa à imagem que Da Vinci deixou à humanidade,
mas pela insensatez da qual foi alvo: duas ativistas que
se infiltraram na multidão lançaram sopa de
abóbora em direção à obra, tingindo de um insólito
laranja o vidro que a protege. “O que é mais
importante: o direito à arte ou o direito a uma alimentação
saudável e sustentável?”, bradou uma das insurgentes, do
grupo ambientalista Resposta Alimentar, ferindo o bom
senso. Preservar tão bela expressão humana, afinal, não
colide em nada com a mais do que necessária proteção do
planeta — e nenhuma causa justifica tal comportamento.
Atacar obras de arte para atrair os holofotes globais às
questões ambientais, uma espécie de ecovandalismo, virou
um mau hábito de vários desses movimentos, como o
britânico Just Stop Oil, que outro dia atingiu, também com
sopa (de tomate), Os Girassóis de Van Gogh. Xícara de
café, torta e até ácido já haviam sido arremessados, por
motivos variados, contra a própria Mona Lisa, que em 1911
foi surrupiada e achada na Itália. Felizmente, a
sobrevivente pintura não sofreu danos agora, com o caldo
de teor ideológico que a acertou, e sua protagonista segue
com o sorriso firme e desconcertante. ƒ

Amanda Péchy

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CONVERSA COLIN HAY

“O BRASILEIRO É
MUITO MUSICAL”
Aos 70 anos, o músico australiano que é o único
remanescente original da banda Men At Work explica
sua ligação com o país, onde fará novos shows, e fala
do processo por plágio no hit Down Under

PRAIANO
Hay: “Mudei a
música para
provar que a
flauta não era
tão importante”
AL PEREIRA/GETTY IMAGES

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O Men At Work já fez vários shows no Brasil e até gra-


vou um álbum ao vivo no país, em 1998. Agora, volta pa-
ra mais três shows em fevereiro, no Rio, Curitiba e São
Paulo. Qual é a razão do sucesso da banda entre os bra-
sileiros? Suspeito que existam algumas semelhanças cultu-
rais entre Brasil e Austrália. Há grandes populações no lito-
ral, que amam o oceano e a vida ao ar livre. O brasileiro é
muito musical. E, claro, eu tenho um grande amor por fute-
bol. Cresci na Escócia, assistindo ao Pelé jogar. Essa tam-
bém é uma conexão muito forte para mim.

De alguma forma a música brasileira influenciou o som


do Men At Work? Passei a me interessar mais por música
brasileira depois que comecei a namorar minha esposa, a
cantora peruana Cecilia Noël, em 2002, que hoje faz parte
do Men At Work. Ela me mostrou muitas coisas que me in-
fluenciaram, especialmente a bossa nova e a música dos anos
1950 e 1960. Há ainda uma influência grande da música da
América Latina. A backing vocal da banda é da Guatemala e
o baixista, o baterista e o guitarrista são todos cubanos.

O senhor faz parte ainda da All-Starr Band, a banda de


Ringo Starr, cujo repertório mescla hits dos Beatles com
covers de outras bandas, como o próprio Men At Work.
Como foi excursionar com um ex-beatle e ouvi-lo tocar
suas músicas? É fantástico, surreal e jamais vou me acos-
tumar. É um privilégio estar no mesmo palco que ele e olhar

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para trás e vê-lo na bateria tocando a minha música. Estou


sempre aprendendo coisas novas. É como se eu ainda tives-
se começando a minha carreira, aos 14 anos.

O Men At Work está na estrada há quase quarenta anos.


Como repetir tanto as mesmas músicas sem enjoar?
São grandes músicas, e por isso mesmo eu as toco sempre. Te-
nho sorte também porque não saio frequentemente em turnê
com Men At Work. Por isso, só quero tocar essas músicas.

Sua nova versão para o maior hit do grupo, Down Under,


sem a inconfundível linha de flauta, foi o modo que en-
controu para lidar com a morte de Greg Ham, seu colega
de banda, que entrou em depressão após condenação por
plágio? Mudei a música para provar que, quando fomos
processados, a linha de flauta não era tão importante para o
reconhecimento geral da música. Mas isso já passou, agora
tocamos Down Under ao vivo do jeito que foi composta. ƒ

Felipe Branco Cruz

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DATAS

COMOÇÃO Melanie Safka: meia hora e sete canções


debaixo de chuva e da lama

ÍCONE DE WOODSTOCK
Apenas duas cantoras subiram sozinhas ao palco de Woods-
tock, o mítico festival de 1969 e que ainda hoje ecoa: Joan Baez
e Melanie Safka, que se apresentava apenas com o primeiro
nome. Ela entrou no palco em torno de 1 da manhã. Saiu meia
hora depois, em meio a chuva e lama. Entoou sete baladas, en-
tre elas Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan. De voz pequena,
um tantinho chorosa, comoveu meio mundo e virou uma das
marcas daqueles dias. Depois de Woodstock ela faria sucesso
com (Lay Down) Candles in the Rain, criada como lembrança
daquela jornada: “Velas na chuva, para estar lá e lembrar”. Me-
lanie morreu em 23 de janeiro, aos 76 anos.
DAVID REDFERN/GETTY IMAGES

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PARTO SIGILOSO
Os médicos e enfermeiros do Hospital Albert Sabin, em
Atibaia, no interior de São Paulo, foram obrigados a ficar
em silêncio na sexta 26. Qualquer vazamento de informa-
ção resultaria em demissão sumária. As visitas foram ve-
tadas, sem exceção, a não ser a do próprio pai do recém-
nascido, o médico Felipe Zecchini. Foi assim o parto do
primeiro filho de Suzane von Richthofen, de 40 anos,
condenada a 39 pela morte dos próprios pais, em 2002.
Ela está cumprindo a pena em regime aberto. O menino
recebeu o nome do genitor.

NASCIMENTO
Suzane von
Richthofen,
aos 40 anos:
primeiro filho
JEFFERSON COPPOLA

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EVENING STANDARD/HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

OS ESCÂNDALOS DE UM ARTISTA
O artista americano Carl Andre produziu escarcéu em
duas oportunidades — com sua obra e na vida pessoal. Na
virada dos anos 1950 para os 1960 ele foi um dos líderes
fundadores da chamada “arte minimalista”, feita de mate-
riais simples, apresentados de modo grosseiro, como tijo-
los, madeira e ferro. A simplicidade das formas e o modo
quase banal como as peças foram expostas chocaram a

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CHOQUE O americano Carl Andre:


um dos fundadores do minimalismo,
acusado de matar a mulher

nata da intelectualidade, mesmo em No-


va York e Paris. Em 1985 ele foi acusado
— mas depois absolvido — pela morte da
companheira, a artista de origem cubana
Ana Mendieta. Testemunhas afirmaram
ter ouvido gritos antes de Mendieta cair
da janela do 34º andar do apartamento
onde vivia o marido, em Manhattan. Ao
atendente do 911, número telefônico pa-
ra emergências nos EUA, Andre confir-
mou que houve uma discussão e que
Mendieta caiu lá de cima muito exalta-
da. À polícia, contudo, disse que ela ha-
via ido dormir sozinha e que ele só nota-
ra mais tarde a ausência da mulher e a
janela aberta. Os dois se conheceram numa galeria quan-
do ele participou de um painel chamado “How has wo-
men’s art practices affected male artist social attitudes?”
(“Como a arte feminina afeta as atitudes sociais dos artis-
tas homens?”). O suposto assassinato foi tema de um bem-
sucedido podcast, Death of an Artist, lançado no ano pas-
sado. Andre morreu em 24 de janeiro, aos 88 anos, de
causas não reveladas. Vivia num asilo. ƒ

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FERNANDO SCHÜLER

A PONTE DO RIO
DAS ANTAS
A PONTE RUIU em setembro do ano passado. Foi aquela
enxurrada no Rio das Antas, e a velha ponte de ferro se foi. A
economia de Nova Roma do Sul (RS) dependia daquilo; os
governos estadual e federal puseram a nova ponte no orça-
mento e a solução era esperar que as coisas acontecessem. Só
que não. “Quanto é que sai uma nova ponte? Por que a gente
mesmo não faz?”, foi a pergunta que surgiu. A partir daí, mo-
bilização que é clássica na colônia italiana, como na colônia
alemã, que conheci tão bem, no sul do Brasil. A rifa, o galeto,
a contribuição das empresas. No fim das contas, fizeram a
ponte. Era para ser feita em 140 dias. Levou 138. Custo de 6
milhões de reais, ponte simples que resolve o problema da
comunidade. “Ainda sobrou 1 milhão”, diz o presidente da
associação que comandou o processo. “A comunidade agora
vai se reunir para ver o que fazer com o dinheiro.”
Quando li sobre isso me lembrei de Tocqueville. De seus
relatos sobre o que chamou de “autogoverno em pequena es-
cala”, em sua viagem aos Estados Unidos, no início dos anos
1830. “Os americanos”, diz ele, “associam-se para tudo e

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aprendem isso desde crianças”. Associam-se para “fundar es-


colas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”.
Não apenas como uma forma de resolver problemas, mas co-
mo um modo ativo de exercício da democracia. Em vez de es-
perar pelo governo para abrir uma rua ou um centro comuni-
tário, aqueles colonos faziam como fizeram os colonos de No-
va Roma. Não um movimento contra o governo, como não foi
agora, no Rio Grande, mas um exercício de confiança. Toc-
queville provocou ao contar como milhares de americanos
haviam se organizado para combater o alcoolismo. “Fosse na
França”, disse, “teriam ido exigir que o governo vigiasse as ta-
bernas”. Esperar pelo Estado seria uma espécie de “mania
francesa”. No Brasil, somos ambivalentes. No geral, parece-
mos um caso agudo de mania francesa. Mas há coisas novas
acontecendo no país. E vale a pena prestar atenção.
A colônia italiana e alemã têm uma longa tradição de as-
sociativismo e cooperativismo. É um traço de “identidade”,
como anda na moda dizer hoje em dia. O que surpreendeu,
nesse episódio, foi a escala. Uma coisa é criar uma orquestra,
ou um museu de arte. Já vi tudo isso muito de perto. Mas
uma ponte? Nova Roma tem coisa de 4 000 habitantes. É
evidente que há uma enorme capacidade de cooperação ali.
“Capital social”, se quisermos uma palavra elegante. Rutger
Bregman escreveu um livro instigante, Humanidade: Uma
História Otimista do Homem, argumentando que foi exata-
mente a capacidade de cooperar, de sintonizar as pessoas em
torno de fins comuns, que definiu muito do sucesso evolutivo

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SOLUÇÃO A obra no RS, feita pela associação de


moradores: “autogoverno”

do bicho homem. Nosso “lado abelha”, na expressão de Jona-


than Haidt. O exato ponto de encontro entre o altruísmo e o
autointeresse esclarecido de cada um. Da velha senhora, que
manda um Pix com um pedacinho de sua poupança para pa-
gar uma ponte que em tese caberia ao governo fazer. Que de-
pois desfila em um velho Aero Willys, festa de inauguração.
E disso tudo extrai uma secreta felicidade.
Muita gente aproveitou o episódio para criticar o governo.
O governador Eduardo Leite explicou que o estado tem um
projeto de ponte mais sofisticado, e por isso mais caro. E que
por óbvio leva mais tempo para fazer. Ele tem razão. O proble-
REPRODUÇÃO

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“O que vale: o
encontro do altruísmo
com o interesse
esclarecido”
ma não é deste ou daquele governo, mas da estrutura da má-
quina pública no Brasil. Vivemos um tipo de paradoxo. Nosso
Estado é eficiente para executar um programa de distribuição
de renda como o Bolsa Família, ou programa de bolsas em lar-
ga escala, como o ProUni. Mas é claramente ineficiente quan-
do a máquina do Estado entra em cena para prestar serviços
ou executar alguma coisa. No ranking da The Global Eco-
nomy, ocupamos o constrangedor 130º lugar em eficácia go-
vernamental. O Uruguai está na 41ª posição. Não é por outra
razão que quem tem maior renda, no Brasil, há muito apren-
deu a contratar escola e plano de saúde no setor privado. E a
depender o mínimo possível dos serviços do governo.
A notícia interessante é que o país foi desenvolvendo um
contraveneno ao Estado burocrático. Em 1995 fizemos a Lei
das Concessões. Foi o que permitiu um parque como o das
Cataratas do Iguaçu, patrimônio natural da humanidade,
ser gerenciado pelo setor privado, com eficiência, e ainda
gerar dinheiro para o governo. O modelo custou para engre-

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nar, mas hoje ninguém pensa seriamente que o governo de-


ve administrar um parque como o Ibirapuera, em São Pau-
lo, ou nossos aeroportos. No final dos anos 90 criamos as
organizações sociais, na reforma do Estado conduzida por
Bresser Pereira, permitindo que associações e fundações
privadas gerenciem hospitais, orquestras ou centros de pes-
quisa em parceria com o governo. E é assim que temos uma
Osesp, por exemplo, e quase todos os melhores hospitais pú-
blicos do país. Por fim, em 2004, fizemos a lei das PPPs, que
permitiu reduzir de vinte para perto de onze meses o tempo
de construção das escolas infantis em Belo Horizonte e fa-
zer a gestão de uma instituição de ponta como o Hospital do
Subúrbio, em Salvador. Vai aí a grande tendência da admi-
nistração pública atual: governo focado nas funções estraté-
gicas; setor privado fazendo a execução e a gestão. Seja uma
empresa ultraespecializada, seja uma associação comunitá-
ria, no interior do Rio Grande do Sul.
É possível pensar isto como um pêndulo. Fizemos uma
Constituição estatizante, nos anos 80, mas gradativamente
fomos movendo o pêndulo na direção da sociedade. Ainda
estamos longe de ser uma “terra de doadores”, como Tocque-
ville descreveu a América do início do século XIX. Na última
edição do World Giving Index, uma das maiores pesquisas
globais sobre doações e filantropia, ocupamos a 89ª posição,
entre 142 países. Andamos pelo meio do caminho. Durante a
pandemia, nosso senso de comunidade cresceu. Acompanhei
de perto a doação de mais de 170 milhões de reais para a fá-

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brica de vacinas do Instituto Butantan. A questão é como


transformar isso em um padrão. Nos Estados Unidos, é raro
encontrar um museu ou universidade que não tenha seu fun-
do de endowment e uma campanha ativa de doações. Os
maiores fundos são das universidades, com Harvard à frente,
com seu fundo de mais de 50 bilhões de dólares. Não passa
pela cabeça daquelas pessoas imaginar que o governo deva
sustentar ou se intrometer na gestão de suas instituições. Por
aqui, nossas grandes universidades funcionam como imensas
repartições públicas, totalmente dependentes do governo. Daí
nossa ambivalência. De um lado, vamos avançando; de outro,
fincamos pé no atraso. Em especial na educação. Daí a im-
portância desse pequeno-grande passo dado pela comunida-
de de Nova Roma, no sul do Brasil. O exemplo desses “colo-
nos”. Dessa gente que trabalha duro e foi à luta, em vez de es-
perar que alguém lá de cima desse conta de um problema que
eles próprios poderiam resolver. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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SOBEDESCE

SOBE
RESERVAS
INTERNACIONAIS
No primeiro ano do governo Lula,
o estoque de segurança do país
fechou em 355 bilhões de dólares,
nível mais alto registrado
desde março de 2022.

JAMES WEBB
O supertelescópio da Nasa captou
imagens com resolução inédita de
dezenove galáxias relativamente
próximas à Via Láctea.

NOSSO LAR 2
A sequência do blockbuster
espírita teve a sexta melhor estreia
de um longa nacional desde 2002,
ultrapassando até a bilheteria
de sucessos de Hollywood.

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DESCE
ANDRÉ JANONES
Devido a indícios da prática de
“rachadinha” no gabinete do
deputado do Avante-MG, a PF
pediu ao STF a quebra do
sigilo bancário do parlamentar.

MACHU PICCHU
Manifestantes bloquearam o acesso
ao icônico sítio arqueológico peruano
em protesto contra a empresa que
comercializa ingressos ao local.

ROGER WATERS
Por declarações
consideradas antissemitas no
contexto do atual conflito na
Faixa de Gaza, a gravadora
alemã BMG encerrou contrato
com o ex-líder do Pink Floyd.

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VEJA ESSA

“O vinho é uma dádiva de


Deus e uma verdadeira fonte
de alegria.”
PAPA FRANCISCO, em conversa com
produtores italianos

VATICAN MEDIA/GETTY IMAGES

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“Gustavo Petro é um comunista assassino


que está afundando a Colômbia.”
JAVIER MILEI, presidente da Argentina

“Os que nos atacam não têm ideia do


que é comunismo e do que é socialismo.
Socialismo é o modo de produzir por
meio do qual o Estado é dono dos
meios de produção. Não é o que
buscamos para nós.”
PETRO, na réplica

“Me sinto mais perspicaz agora


do que há vinte anos.”
DONALD TRUMP, candidato a candidato à
presidência dos Estados Unidos, ao retrucar os
comentários sobre a sua idade. Ele tem 77 anos

“Ele jamais vai me dizer em palavras o


que realmente pensa sobre o que cometi.”
CAT POWER, cantora americana, que gravou um disco
com as canções de um lendário show de Bob Dylan,
o Live 1966, The Royal Albert Hall Concert. Ela fará uma
apresentação em São Paulo, no mês de maio

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“Vou sentir falta, mas dormirei melhor.”


PEP GUARDIOLA, treinador do Manchester City, ao comentar
o anúncio da aposentadoria de Jürgen Klopp, técnico do Liverpool

“Oi para todo mundo,


nem sei mais o que dizer.”
JANNIK SINNER, tenista italiano de 22 anos, ao vencer o
russo Daniil Medvedev e conquistar o Aberto da Austrália,
sua primeira taça em torneio do Grand Slam

“Não dá para “Devo tudo a ele.”


rebolar como antes, CAETANO VELOSO,
mas a minha voz 80 anos, ao celebrar o
ainda resiste.” aniversário de 89 anos do
SIDNEY MAGAL, 73 anos irmão Rodrigo

“Nunca disse que gostaria de ser chamado


de Doutor Renato. É mentira. Meu nome é
Renato e adoro ser chamado de Didi.
Sempre vou amar o Didi Mocó Sonrisépio
Colesterol Novalgino Mufumbo.”
RENATO ARAGÃO, ao negar ter exigido ser chamado pelo
nome de batismo e não pelo apelido de seu celebrado
personagem de Os Trapalhões

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“Me questionava
horrores e vivia
culpada. Suava
ao pensar em
comer um doce.”
PAOLLA OLIVEIRA, atriz,
ao admitir rigor exagerado
no passado. Hoje ela diz
nem querer saber “se vai
me engordar ou não”

INSTAGRAM @PAOLLAOLIVEIRAREAL

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RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Nicholas Shores e Ramiro Brites

Aterrissagem suave tes de sua obra e agora busca


Com quem conversa, Ro- um desembarque sem so-
berto Campos Neto descre- bressaltos em dezembro.
ve-se hoje como um piloto
em procedimento de pouso. Últimas entregas
Ele faz cinco anos no coman- Neste último semestre de
do do Banco Central neste trabalho pesado — a segun-
mês, julga que já apresentou da parte do ano será de
todos os projetos importan- transição —, Campos Neto
RAPHAEL RIBEIRO/BCB

NOVO TIME Campos Neto: primeira


foto com a atual composição do Copom

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quer “acelerar” as entregas nomia Financeira do BC. A


do Pix automático, do Drex, medida permitiria reestru-
e do Open Finance. turar a instituição, atuali-
zando salários e reabrindo
Cheque especial o processo de contratações.
O cenário, no entanto, é de-
safiador. Esses principais Pregando no deserto
projetos do BC já estão atra- Autor da PEC, o senador
sados por falta de dinheiro e Vanderlan Cardoso procu-
a ala petista radical do go- rou o líder do governo, Ja-
verno segue jogando con- ques Wagner, para neutrali-
tra, mesmo sabendo que as- zar o boicote petista. O texto
sumirá a instituição no pró- poderia ser aprovado em
ximo ano. abril, mas já não tem data pa-
ra ser analisado no Senado.
Quero ajudar “A proposta é técnica. Para
Se Lula ouvir o conselho de aperfeiçoar a instituição. Não
Campos Neto, indicará o no- tem componente político”,
vo chefe do BC — de prefe- diz o senador goiano.
rência, alguém do atual Co-
pom — em julho, dando tem- “Não há bala de prata”
po para uma transição calma Alvo de múltiplas investiga-
e sem ruídos políticos. ções no STF, Jair Bolsonaro
está tranquilo. Diz que, por
Bancada do atraso mais que a PF procure, “não
O PT decidiu boicotar, no há bala de prata” contra ele.
Congresso, a PEC da Auto- A conferir.

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Facadinhas gue provocando divergên-


Para Bolsonaro, as opera- cias entre PGR e PF. “Nem
ções da PF têm o objetivo nome de delação tem. É ter-
de desgastá-lo. Diz um mo de declaração. E sem
aliado do capitão: “O ne- provas para corroborar”,
gócio é fazer sangrar. Um diz um interlocutor do caso.
monte de facadinhas. Não
tem nada pra matar”. Mistério
Presidente do STF e alvo
Dono de casa frequente do bolsonaris-
No fim do ano, um aliado de mo, Luís Roberto Barroso
Bolsonaro esteve com Mauro ainda não confirmou se foi
Cid. O delator, segundo essa mesmo espionado pela
fonte, engordou, anda depri- Abin paralela.
mido, endividado e recluso.
Preciso saber
Há quem não esqueça O presidente do Congresso,
Já Anderson Torres, que Rodrigo Pacheco, também
também pegou um tempo está no escuro. Se foi moni-
de cana, foi visto recente- torado pelos arapongas bol-
mente num badalado cen- sonaristas, não sabe.
tro comercial do Lago Sul
em Brasília. Reconhecido, Escola de espionagem
baixou a cabeça. A Abin abriu recentemente
um curso para ensinar a
Acordo da discórdia arapongas disciplinas co-
A delação de Mauro Cid se- mo Inteligência e Demo-

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cracia e Ética na Atividade


de Inteligência.

Ghostbusters
Uma investigação do BN-
DES enviada ao TCU cobra
5 milhões de reais de Fer-
nando Pimentel, Luciano
Coutinho e mais três ex-ser-

DIOGO ZACARIAS/MINISTÉRIO DA FAZENDA


vidores do banco. A suspeita
é de contratação de assesso-
res fantasmas. O tribunal co-
meçou a notificar as defesas.
NA MIRA Pimentel: ele
Nas mãos do TCU pode ter de devolver bolada
Presidente do Conselho de milionária ao BNDES
Administração do BNDES
durante o governo de Dilma acusações, dizem que traba-
Rousseff, Pimentel empre- lharam e que as contrata-
gou aliados no gabinete de ções foram regulares.
Coutinho, então presidente
do banco. “Os contratados Pode gelar o espumante
não prestaram serviços ao José Dirceu, diz um amigo,
BNDES, embora tenham está confiante de que o STF
recebido remunerações e vai anular suas condena-
benefícios”, diz o banco. ções na Lava-Jato e decla-
Os envolvidos negam as rar Sergio Moro suspeito.

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Todos querem a vaga PSB para decidir se será vice


Moro, aliás, conseguiu algo de Tabata. “Eu sempre faço
raro. Uniu petistas, bolso- cirurgia para ficar bem para
naristas e o Centrão no lob- as eleições. Deu errado três
by por sua cassação no TSE vezes”, diz o apresentador.
— o julgamento no TRE
nem importa. Foi um erro
O PT já começou a bombar-
História interditada dear o nome de Marta Su-
Destruída no 8 de Janeiro, a plicy como vice de Guilher-
galeria de presidentes até me Boulos. As pesquisas
hoje está fechada por tapu- mostram que ela não agrega
mes no Planalto. A reforma votos.
custou 9 500 reais.
A nova política acabou
Procura-se Dos 616 pré-candidatos a
A Justiça do Distrito Fede- prefeituras das 99 maiores
ral está atrás de Michelle cidades do país, 413 já são
Bolsonaro para notificá-la detentores de mandatos
numa ação de violação da eletivos, os políticos tradi-
honra movida pela filha da cionais. O levantamento é
atriz Leila Diniz. da Novo Selo Comunicação.

Agora vai? Labirintos da mente


Em recuperação de procedi- A Editora Agir lança o livro
mentos cardíacos, Datena Pense Menos, Viva Mais, do
espera uma definição do best-seller americano Nick

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GABRIEL MONTEIRO/RIOTUR

ALA-LA-Ô Sapucaí: governo do RJ


investiu alto na festa em ano eleitoral

Trenton. A obra fala da im- reais. Em ano eleitoral, mais


portância do autoconheci- do que um reconhecimento
mento e do autocuidado pa- à importância da festa, o
ra a saúde emocional. aporte histórico foi pensa-
do, diz um aliado de Cláu-
As águas vão rolar dio Castro, para recuperar a
O Carnaval do Rio de Ja- popularidade do governo,
neiro, na próxima semana, em baixa hoje por denún-
custará ao governo do Rio cias de corrupção na má-
mais de 62,5 milhões de quina fluminense. ƒ

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BRASIL PODER

ACIMA DO BEM
E DO MAL
Sem regras claras para balizar suas operações, sem
fiscalização adequada do Congresso e ainda permeado de
resquícios autoritários, o serviço de inteligência continua à
mercê dos governantes de plantão, bisbilhotando aliados e
adversários e produzindo escândalos
LARYSSA BORGES E MARCELA MATTOS

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MONTAGEM COM FOTOS ISTOCK/GETTY IMAGES; MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL E ISAC NÓBREGA/PR

N
o início de 2022, Brasília foi tomada por rumores
sobre a iminência de um escândalo que envolveria
uma ministra do governo, políticos e autoridades do
primeiro escalão da República. Os detalhes, segun-
do os mesmos rumores, seriam capazes de incen-
diar a campanha eleitoral que se avizinhava. Na época, o pre-
sidente Jair Bolsonaro recebeu do então diretor-geral da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Rama-
gem, informações sobre o caso. Em seu relato, Ramagem
confirmou que havia muita “fofoca”, mas também que parte
das informações que circulavam tinha fundamento. O pro-

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blema estava nos detalhes, que, se fossem tornados públicos,


certamente provocariam turbulências na vida pessoal de al-
guns e enormes desgastes políticos na vida de outros — ou,
dependendo do personagem, as duas coisas. A confusão, in-
clusive, respingaria no próprio governo. O diretor da Abin ti-
nha em mãos uma relação de pessoas que poderiam ser atin-
gidas. “Meu nome não está aí, não, né?”, perguntou Bolsona-
ro. Ramagem riu e respondeu que não.
Meses depois dessa conversa, no segundo semestre do ano
e já na pré-campanha eleitoral, VEJA revelou que a então mi-
nistra-chefe da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, havia si-
do alvo de espionagem clandestina. A revista teve acesso a um
dossiê que circulou no Palácio do Planalto e acabou enviado
para alguns gabinetes do Congresso. O conteúdo do material
deixava claro que a privacidade da ministra havia sido crimi-
nosamente invadida. Ela teve seus passos monitorados de se-
tembro a dezembro de 2021. E não apenas ela. O então sena-
dor Alexandre Silveira (PSD-MG), hoje ministro de Minas e
Energia, também foi vigiado no mesmo período. Os autores do
documento informavam que a ex-ministra e o atual ministro
estiveram no mesmo lugar em várias ocasiões, em Brasília e
em outros estados, em agendas oficiais e extraoficiais. Consta-
taram isso a partir da análise dos celulares de ambos, utilizan-
do ferramentas de geolocalização. O mesmo cruzamento foi
feito em relação a outros personagens da República.
Dois anos depois da reunião no Palácio do Planalto, o
hoje deputado federal Alexandre Ramagem foi alvo de

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REPRODUÇÃO

FAMÍLIA NA MIRA Carlos (à dir): PF afirma que o filho do


presidente seria usuário do esquema de espionagem

uma operação de busca por suspeitas de ter usado a Abin


com objetivos políticos. Na segunda-feira 29, foi a vez de o
vereador Carlos Bolsonaro ter seus endereços revistados e
telefones e computadores apreendidos pela Polícia Fede-
ral. O filho 02 do ex-presidente é apontado como destina-
tário de informações colhidas clandestinamente pela Abin.
A PF acusa a agência de espionar políticos, magistrados,
advogados e jornalistas durante o governo passado, usan-
do um programa de monitoramento por geolocalização. A
ferramenta permite saber onde uma pessoa está ou esteve,
o dia e a hora exata, quem está ou esteve com ela — tudo
em tempo real, sem nenhum tipo de controle ou fiscaliza-

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MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO

COINCIDÊNCIA
Ramagem e o dossiê
apócrifo: o ex-diretor da
Abin é suspeito de
monitorar adversários

ção, apenas digitando


o número do celular do
investigado. O sistema
teria sido utilizado
mais de 60 000 vezes.
Fora as coincidên-
cias, não há nenhuma evidência de que os arapongas que ras-
trearam os celulares de Flávia Arruda, do ministro Alexandre
Silveira e de outras pessoas da lista citada por Ramagem na
reunião com o presidente pertenciam formalmente ao sistema
federal de inteligência. O histórico da Abin, porém, recomen-
da que não se descarte essa hipótese de imediato. Nas últimas

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décadas, a agência foi cenário de inúmeros escândalos, quase


sempre tendo interesses políticos como pano de fundo. Nas
duas primeiras passagens de Lula pelo Palácio do Planalto,
por exemplo, a Abin teve cinco chefes diferentes. Dois deles
foram demitidos depois que seus comandados foram pilhados
em ações clandestinas e ilegais. No caso mais grave, os es-
piões montaram um grupo para investigar o dono de um ban-
co tido como adversário do governo. Para isso, lançaram mão
de toda sorte de métodos ilegais. Instalaram escutas clandes-
tinas, interceptaram ligações telefônicas, bisbilhotaram a vida
de magistrados, políticos e jornalistas. Revelado, o caso por
pouco não se transformou numa crise institucional — mas
ninguém foi efetivamente punido. O diretor da agência foi
afastado do cargo, mas não sofreu nenhuma outra sanção. O
delegado responsável pela operação se elegeu deputado fede-
ral. Depois, casou-se com a neta de um banqueiro e deixou o
país. Nenhum governo escapou ileso (veja o quadro).
O inquérito que investiga a atuação da Abin no governo
Bolsonaro é sigiloso e, portanto, não se conhecem os detalhes.
Pelo que se sabe até agora, a Polícia Federal identificou que o
programa de geolocalização First Mile foi usado ostensiva-
mente em 2020, especialmente durante as eleições municipais.
Foram milhares de consultas nesse período, quando a agência
era comandada por Alexandre Ramagem. A suspeita é que
existia uma espécie de “Abin paralela”, uma organização infor-
mal que teria a participação de dirigentes do órgão, policiais e
espiões voltados a bisbilhotar a vida de alvos predeterminados

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TON MOLINA/NURPHOTO/GETTY IMAGES

TUDO IGUAL O presidente Lula e a sede


da Abin, em Brasília: problemas no passado,
no presente e, se nada mudar,
provavelmente também no futuro

e investigar clandestinamente eventuais adversários do gover-


no. Sem autorização legal, a ferramenta de fabricação israelen-
se, adquirida no fim de 2018, durante o governo do presidente
Michel Temer, permite rastrear milhares de números de telefo-
nes simultaneamente. O ministro Alexandre de Moraes, res-
ponsável pela investigação que tramita no Supremo Tribunal
Federal, teria sido um dos alvos do grupo.
No papel, a Abin tem a função de produzir conhecimentos
destinados a assessorar o presidente da República em assuntos
relativos à segurança do Estado e da sociedade. Não há, porém,
um detalhamento sobre o que isso exatamente significa, nem
tampouco uma delimitação de até onde a agência e seus espiões

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ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL


estão autorizados a operar. Na ditadura militar, esse trabalho de
coleta de dados era realizado pelo Serviço Nacional de Infor-
mações (SNI). Não havia limites. Em nome da segurança do Es-
tado e da sociedade, os espiões podiam praticamente tudo —
grampeavam, perseguiam, ameaçavam, prendiam e matavam
os adversários do regime. A Abin, que foi criada em 1999 pelo
então presidente Fernando Henrique Cardoso, não chega nem
perto disso, é óbvio, mas herdou certos vícios do velho aparato
estatal que não podem e não devem ser tolerados numa demo-
cracia. Servir a interesses políticos, por exemplo. Não importa
se o alvo é de direita ou de esquerda e se a motivação é legítima
ou não. Há limites que não podem ser ultrapassados.

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FONTE DE
PROBLEMAS
Desde que foi criada, em 1999, a Abin,
atendendo ou não a interesses do presidente
de turno, esteve envolvida em casos de
espionagem que produziram grandes
escândalos políticos

FERNANDO COLLOR

Em 1990, o presidente extinguiu o SNI, o serviço


de informação que funcionava como uma espécie
de polícia secreta de Estado, espionando a tudo
e a todos, especialmente o que era considerado
ameaça ao regime militar

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O problema é que esses limites não são claros. Fernan-


do Henrique foi alvo de sua própria criação. Num dos
momentos mais definidores de seu governo, durante o
processo de privatização do sistema de telefonia, foram
divulgadas gravações de diálogos entre ministros e as-
sessores que davam a entender que havia direcionamento
para favorecer algumas empresas. O escândalo provocou
a demissão do ministro das Comunicações, do presidente
do BNDES e de dirigentes do Banco do Brasil. Comenta-

FERNANDO HENRIQUE

Responsável pela criação da Abin, acabou sendo


um dos primeiros alvos da agência. Seus ministros
e assessores tiveram os telefones grampeados
durante o processo de privatização. Um de seus
filhos foi investigado clandestinamente

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va-se à época que, se a íntegra do material fosse divulga-


da, a reputação do próprio presidente poderia ser grave-
mente atingida. Mais tarde, descobriu-se que as grava-
ções que provocaram a hecatombe estavam em poder da
Abin. Pela versão oficial, como se tratava de um assunto
de interesse do presidente, a agência estava monitorando
o processo de privatização e achou as fitas debaixo de um
viaduto em Brasília — por acaso. Parece brincadeira, mas
foi essa a justificativa da Abin.

LULA

Em 2008, a Abin grampeou ilegalmente


diversas autoridades, incluindo ministros do
STF. A agência também mobilizou um enorme
contingente de espiões para investigar
clandestinamente as conexões de um banqueiro
que era tido como desafeto do governo petista

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A largueza do que pode ser considerado informação de in-


teresse do presidente da República, combinada com a ampli-
tude do que pode ser definido como ameaça à segurança do
Estado, abre um leque imenso de opções para o que pode e o
que não pode ser investigado pela Abin. Imagine, por exem-
plo, que o presidente da República seja informado de que está
em andamento uma conspiração para destituí-lo do cargo. É
um caso que ameaça a segurança do Estado? Sim. Em tese,
portanto, ele poderia acionar a Abin para colher mais infor-

DILMA ROUSSEFF

Disfarçados de portuários, agentes da Abin foram


presos em Recife por suposta espionagem contra o
então governador de Pernambuco, Eduardo Campos,
considerado à época como o provável adversário
da mandatária nas eleições presidenciais

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mações ou a própria Abin poderia fazer isso por conta própria


para alertar o mandatário. Ainda hipoteticamente, imagine
que entre os conspiradores houvesse um ministro importante.
O presidente poderia pedir à Abin para bisbilhotar a vida do
ministro? Em tese, sim, desde que usasse apenas métodos le-
gais. Bolsonaro acreditava que as urnas eletrônicas poderiam
ser fraudadas e que o ministro Alexandre de Moraes atuava
para impedir sua reeleição. “O presidente da República pode,
sim, pedir para a Abin checar a informação sobre uma suspei-

MICHEL TEMER

O presidente foi acusado de tentar atrapalhar as


investigações da Lava-Jato. Na época, a Abin foi a
campo bisbilhotar a vida do ministro do STF que
relatou o caso e foi responsável por homologar
uma delação que comprometia o mandatário

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ta”, diz Jorge Zaverucha, doutor em ciência política pela Uni-


versidade de Chicago e autor de artigos sobre serviços de inte-
ligência. “O problema é a linha tênue que separa uma apura-
ção de um fato de interesse do Estado e outro de interesse ex-
clusivamente pessoal. É nesse vácuo que opera a espionagem
política, problema que só uma legislação mais clara e uma fis-
calização rigorosa podem evitar”, completou.
Afeito a teorias conspiratórias, Jair Bolsonaro editou, em
2020, um decreto que estabelecia que órgãos como o Minis-

JAIR BOLSONARO

A agência é acusada pela Polícia Federal de


espionar políticos, servidores públicos, magistrados,
jornalistas e adversários do presidente, usando um
programa de computador que rastreia a localização
dos alvos através do telefone celular
FOTOS ORLANDO BRITO; AFP; ROBERTO STUCKERT FILHO/PR; CRISTIANO MARIZ; MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL

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tério da Justiça, a Casa Civil, as Forças Armadas e a Diretoria


de Inteligência da Polícia Federal eram obrigados, sempre
que solicitados e sem a necessária autorização do Poder Judi-
ciário, a encaminhar informações — ainda que confidenciais
ou que envolvessem apurações em curso — à Abin. Na práti-
ca, a medida dava margem para que o mandatário soubesse
de antemão de investigações sigilosas e para que arapongas
manuseassem procedimentos aos quais jamais poderiam ter
acesso. Coube ao Supremo Tribunal Federal traçar balizas
mínimas contra o compartilhamento de dados e deixar ex-
plícito que é ilegal que a Abin receba esse tipo de informação,
mesmo a pretexto de haver interesse na segurança do Estado.
O decreto foi revogado em setembro pelo presidente Lula,
que, ao assumir, e também por não confiar nos militares, de-
cidiu transferir a Abin do Gabinete de Segurança Institucio-
nal (GSI) para a Casa Civil, uma pasta política, comandada
por um ministro petista, mudança que não resolveu os pro-
blemas do órgão e ainda alimentou vários rumores.
A falta de regras objetivas é agravada pela absoluta ausên-
cia de fiscalização do trabalho da agência. A polícia investiga
a denúncia de espionagem política desde o final do ano pas-
sado, quando agentes recolheram documentos na sede da
Abin e prenderam dois servidores que supostamente usaram
o First Mile. Uma suspeita como essa, em qualquer país civi-
lizado, mobilizaria o Congresso. Aqui, não. A Comissão de
Controle de Atividades de Inteligência (CCAI), colegiado for-
mado por deputados e senadores, é absolutamente inoperan-

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MATEUS BONOMI/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES


ADVERSÁRIO Moraes: o ministro seria um dos alvos
do monitoramento ilegal

te. Nos Estados Unidos, o Comitê de Inteligência do Senado é


acionado diante de qualquer rumor de ilegalidade em algum
dos vários órgãos de inteligência do país. Mesmo assim, isso
não impediu a realização de operações clandestinas e casos
de tortura envolvendo espiões americanos. Por aqui, uma das
últimas reuniões da CCAI foi em outubro, ocasião em que
Luiz Fernando Corrêa, o atual número 1 da Abin, prestou de-
poimento. Depois disso, os parlamentares solicitaram à agên-
cia, à Polícia Federal, ao STF e à Controladoria-Geral da
União documentos e informações sobre a compra e o uso do
tal programa de georreferenciamento. Não receberam res-
posta — nem cobraram. Os arapongas, cedo ou tarde, volta-
rão a produzir novos escândalos. ƒ

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BRASIL POLÍTICA

TEMPERATURA
MÁXIMA
Com a agenda cheia de projetos importantes, a
retomada do Congresso será marcada pela reação
bolsonarista a investigações e por desgastes com o
governo LAÍSA DALL’AGNOL E MARCELA MATTOS

OFENSIVA Parlamentares de oposição: grupo aperta Lira e


Pacheco para dar andamento a pautas contra a PF e o STF

BRUNO SPADA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

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O PRESIDENTE da Câmara, Arhur Lira (PP-AL), teve um


final de janeiro movimentado. Encurtou as férias, voltou a
Brasília e tentou convocar, sem sucesso, uma reunião de líde-
res antes do fim do recesso. Mesmo assim, fechou-se em en-
contros individuais com representantes de partidos para dis-
cutir uma série de problemas. A relação vai do cerco da Polí-
cia Federal a deputados ao tratamento a ser dado a iniciativas
do governo que criaram atritos com parlamentares, incluindo
o próprio Lira. Já o chefe do Congresso, senador Rodrigo Pa-
checo (PSD-MG), entrou em campo na segunda 29, para pe-
dir ao STF a lista de parlamentares que foram espionados pe-
la “Abin paralela” que teria atuado na gestão Jair Bolsonaro
— isso a pedido de congressistas governistas. Dois dias de-
pois, reuniu-se com deputados e senadores, agora da oposição
bolsonarista, que cobraram atitudes em relação ao que consi-
deram perseguição política da PF e do STF.
O movimento intenso dos dois caciques mostra que o re-
torno das atividades do Parlamento estará bem longe de ser
algo tranquilo. A maior pressão, ao menos na volta dos traba-
lhos, deverá vir do lado bolsonarista. Deputados e senadores
têm tentado articular uma reação do Legislativo após as ope-
rações envolvendo os deputados Carlos Jordy (PL-RJ), líder
da oposição na Câmara, por suspeita de envolvimento nos
atos que levaram ao 8 de Janeiro, e Alexandre Ramagem (PL-
-RJ), apontado como peça-chave do esquema de espionagem
ilegal da Abin. Uma das respostas que o grupo pretende dar é
forçar a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constitui-

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TON MOLINA/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

DEMANDA Pacheco: está na mesa


dele projeto para impor mandatos no STF

ção (PEC) para determinar que ações judiciais e investigações


contra congressistas só sejam efetuadas mediante aprovação
das Mesas da Câmara e do Senado. “Estamos dialogando
com o Lira e ele vai conversar com o Pacheco para ver o que
realmente é possível de ser votado nas duas Casas juntas”, diz
o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).
A iniciativa ganhou fôlego após outra operação, desta vez
contra o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), por
suspeita de envolvimento no caso Abin. Segundo interlocuto-
res, Lira tem expressado “desconforto” com esse avanço so-
bre os políticos. Enquanto isso, Pacheco recebeu uma pauta
da oposição que inclui emendas constitucionais para acabar

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com o foro privilegiado e impor mandatos aos ministros do


Supremo. O grupo ameaça travar votações se os projetos não
tramitarem. O presidente do Congresso ouviu tudo e não se
comprometeu — disse que “vai averiguar” as demandas.
O frenesi movido pelas investidas policiais, embora tenha
feito mais barulho público, não é o único grande abacaxi a ser
descascado pelo Congresso na volta do recesso, na próxima
segunda, 5. Um dos grandes problemas é, como sempre, a re-
lação tumultuada com o governo Lula. Há várias bombas a
serem desarmadas. A principal delas é o veto ao Orçamento
que tirou 5,6 bilhões de reais das emendas de comissões. A
crítica é a de que o corte atingiu ministérios chefiados pelo
Centrão, como Turismo e Esporte, e poupou pastas sob o co-
mando da esquerda, como Saúde e Justiça. “Esse veto foi para
equilibrar o orçamento público, vamos discutir, vamos nego-
ciar”, declarou o ministro das Relações Institucionais, Ale-
xandre Padilha, que, em tese, é o responsável pela articulação
política entre governo e Congresso.
O porém, no entanto, é que Padilha é parte do problema.
Ele é famoso entre os deputados do Centrão por “sorrir de-
mais e entregar de menos”. Lideranças partidárias não escon-
dem a intenção de sacar o petista da cadeira. Um dos focos de
irritação é o trabalho da ministra da Saúde, Nísia Trindade,
apadrinhada pelo próprio Padilha (que foi titular da pasta du-
rante quatro anos na gestão Dilma). Ela não estaria liberando
as emendas no ritmo que os deputados gostariam em um ano
eleitoral — uma “dificuldade desnecessária”, como resumiu

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MATEUS BONOMI/AGIF/AFP
DESGASTE Lula e Lira: veto do presidente
a emendas irritou chefe da Câmara

um parlamentar a VEJA. O entrevero com Padilha, inclusive,


teria feito com que Lira cortasse o contato com ele: a ponte
com o Planalto tem sido o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e
o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), além
do próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O comandante da Câmara e seus aliados veem uma espé-
cie de boicote à liberação de verbas também no Ministério das
Cidades (comandado pelo emedebista Jader Filho), apontam
que Lula mantém as portas do Planalto e do Alvorada fecha-
das aos parlamentares e, ainda, que o governo não cumpre
acordos. Em outras palavras, cobram mais acesso ao presi-
dente, a cargos e a verbas — o que, na prática, recicla os pro-
blemas de 2023. No ano passado, Lira conseguiu, depois de
ameaçar paralisar os trabalhos, emplacar aliados em três mi-
nistérios, além de levar o comando da Caixa. Agora, seu gru-
po está de olho no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inova-
ção, que pode ficar vago caso Luciana Santos confirme a can-

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didatura à prefeitura de Olinda, e também em funções de se-


gundo escalão, como a Funasa.
Ainda durante o recesso, Lira emitiu sinais de que o gover-
no não começou o ano com o pé direito com o Legislativo. Em
um primeiro gesto de insatisfação, ele desistiu de comparecer
à cerimônia que marcou um ano do 8 de Janeiro. Para justifi-
car a ausência, ligou para o presidente na véspera, disse consi-
derar o ato um erro e que serviria para aumentar a polariza-
ção política, o que não ajudaria em nada a sua atuação junto a
deputados dos mais diversos partidos. A interlocutores Lira
também reclamou da organização do evento, encabeçada pe-
la primeira-dama Janja, que deliberadamente excluiu o depu-
tado do vídeo institucional transmitido na cerimônia. O caso
poderia parecer menor, mas serviu para incendiar uma já am-
pla e complexa lista de reclamações.
Dentro desse campo minado de relações entre governo e
Congresso, o ministro Haddad tem ido cada vez mais a
campo para ajudar a avançar as demandas do governo no
Congresso. Mas ele também terá um grande problema pela
frente. O destino da MP 1.202/2023, editada a pedido de
Haddad em dezembro, é um dos grandes nós a serem desa-
tados. Em linhas gerais, ela promove a reoneração da folha
de pagamento de dezessete setores produtivos e representa
na prática a revogação de uma decisão do Legislativo. Hou-
ve pressão sobre Pacheco para que ele devolvesse a MP, o
que não fez. Em evento promovido por VEJA em parceria
com o grupo Lide em Zurique (Suíça), em janeiro, o presi-

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TEMPORADA QUENTE
Seis questões críticas no retorno
do Congresso Nacional

P R E S S Ã O B O L S O N A R I S TA

As ações da PF contra os deputados


Carlos Jordy (PL-RJ) e Alexandre Ramagem
(PL-RJ) e o vereador Carlos Bolsonaro
(Republicanos-RJ) incendiaram a oposição,
que anuncia pressão sobre Lira e Pacheco
para que o Legislativo imponha limites à
atuação da polícia e do STF

ESPIONAGEM DE
C O N G R E S S I S TA S

Deputados pressionam para que


o Congresso tenha acesso à lista de
parlamentares que teriam sido espionados
pela “Abin paralela”, que pode ter
atuado no governo Bolsonaro, e pedem
investigação sobre Ramagem, ex-chefe
da agência e hoje deputado

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MP DA REONERAÇÃO

A Medida Provisória 1.202/23, que prevê a


reoneração da folha de pagamento de vários
setores, é um dos grandes imbróglios na volta
do Legislativo. Em evento de VEJA em janeiro,
Pacheco disse que o governo vai reeditar a MP
para retirar a iniciativa proposta por Haddad

E M E N D A S PA R L A M E N TA R E S

Na sanção do Orçamento, Lula retirou 5,6 bilhões


de reais das verbas destinadas a emendas de
comissão e irritou parlamentares, incluindo Lira.
A principal crítica é que o ato atingiu ministérios
chefiados pelo Centrão e poupou pastas sob o
comando de siglas de esquerda

A G E N D A A P E R TA D A

Com eleições municipais em outubro, o


Congresso terá o ano encurtado, o que dificulta
a tramitação de pautas importantes como a
regulamentação e a segunda fase da reforma
tributária, o PAC Verde, o PL das Fake News e a
reforma administrativa (prioridade de Lira)

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C A D E I R A S E M D I S P U TA

O ano do Legislativo será marcado pelas


articulações de bastidores para as sucessões
de Lira e de Pacheco, que estão no último ano
de mandato e não poderão se reeleger. Há
interessados no cargo costurando apoios entre
colegas desde meados do ano passado

dente do Congresso disse haver um acordo para que o go-


verno reedite a medida.
Outra das prioridades de Haddad é aprovar a regulamen-
tação da reforma tributária, assim como a sua segunda fase,
que prevê aliviar a tributação no Imposto de Renda para os
mais pobres e elevar a cobrança dos mais ricos, uma promes-
sa de Lula. A aplicação efetiva da reforma promulgada em de-
zembro depende da aprovação de projetos de lei que sequer
chegaram ao Parlamento: a estimativa é a de que 71 dispositi-
vos precisem de regulamentação.
Fora da economia, há outros grandes projetos na mira
dos chefes do Congresso. Lira ainda sonha em aprovar algu-
ma reforma administrativa, dentro da perspectiva de levar o
governo a cortar gastos. Mexer com o funcionalismo en-
frenta resistência do governo — se não houver um mínimo
de consenso, a pauta não deve sair do lugar. O presidente da
Câmara também quer tocar uma série de projetos de transi-

9 | 12
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BRENNO CARVALHO/AGÊNCIA O GLOBO

NA MIRA Alexandre Padilha: ministro da articulação política


de Lula é criticado por “sorrir demais e entregar de menos”

ção energética e mercado de carbono e tentar levar a vota-


ção o chamado PL das Fake News — o tema, apesar de tam-
bém ser prioridade do governo, divide a casa. Já Pacheco
pretende fazer andar a revisão do Código Civil e mudanças
na legislação eleitoral, incluindo o polêmico fim da reelei-
ção, além de pautas populares, como a discussão sobre o fim
da “saidinha” temporária de presos.
Toda essa agenda pesada chega ao debate em um período
atípico para o Congresso. Primeiro, porque é ano eleitoral, e, a
partir de julho, fica difícil ter quórum para votar qualquer coi-

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sa em Brasília. Além disso, será o último ano de mandato de


Lira e Pacheco. Embora não possam reeleger-se, eles têm in-
teresse em passar a cadeira para algum aliado. E isso exige
não só mergulhar nas articulações de bastidores, que já estão
acontecendo desde o ano passado, como conduzir as duas Ca-
sas “na ponta dos dedos” para não criar algum ruído que pos-
sa prejudicar um apoio eleitoral no futuro. Lira pleiteia uma
conversa com Lula. A disputa será em fevereiro de 2025, mas
o deputado quer, desde já, o apoio do governo e do PT para o
nome que será indicado por ele.
Antes dessa negociação, dizem aliados de Lira, nada vai
avançar. Publicamente, o chefe da Câmara tem evitado tratar
do assunto e, nos bastidores, sugeriu que os três principais no-
mes — Marcos Pereira (Republicanos-SP), Elmar Nascimento
(União-BA) e Antonio Brito (PSD-BA) — desapareçam dos
holofotes para não passarem um ano sob fogo cruzado. Lira
tem dito que ainda busca um perfil ideal para o posto e que
não vai adotar o “coleguismo” como critério. Ter um aliado
no comando da Câmara é tratado como prioridade de Lira,
que quer manter a influência quando voltar para a planície.
Ele vislumbra disputar uma cadeira ao Senado em 2026, o
que lhe exige manter o protagonismo até lá. Pessoas de sua
estrita confiança não descartam que Lira assuma algum mi-
nistério, o que ele, claro, não admite publicamente. No Sena-
do, o candidato de Pacheco deve ser Davi Alcolumbre (União-
-AP), que tem boa relação com Lula, o que diminui a possibili-
dade de a sucessão prejudicar a relação com o governo. Mas a

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BRENNO CARVALHO/AGÊNCIA O GLOBO

ARTICULADOR Haddad: habilidoso


no Congresso, enfrenta resistência à MP

ala bolsonarista, que tem muito peso na Casa, deve ir para o


embate eleitoral interno.
A conjunção de vários fatores vai exigir dos líderes muito
tato para ir costurando os acordos possíveis. Embora boa par-
te da tensão que cerca o Legislativo tenha a ver com fatores de
ordem policial, judicial e eleitoral, é bom ter em vista que há
uma extensa agenda de projetos prioritários, cujo maior inte-
ressado é o país. Como bem ensina Paulinho da Viola, nesse
contexto, é preciso que se “faça como um velho marinheiro,
que durante o nevoeiro leva o barco devagar”. Devagar, com
firmeza e na direção certa. ƒ

12 | 12
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BRASIL JUSTIÇA

CARROS, JOIAS
E DINHEIRO
A íntegra da investigação que revelou um
esquema de corrupção que resvala em um dos
mais importantes ministros do governo Lula, sua
esposa, sua filha e um cunhado HUGO MARQUES

ROBERTA ALINE/THENEWS2/AGÊNCIA O GLOBO

DE CARONA Wellington Dias: o então candidato a governador


e a “cortesia” que ele recebeu da quadrilha

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NO FIM DO ANO passado, uma reportagem de VEJA reve-


lou que a conselheira do Tribunal de Contas do Piauí, Rejane
Dias, esposa do ministro do Desenvolvimento Social, o petista
Wellington Dias, havia sido denunciada por corrupção passiva
numa ação que tramita em sigilo no Superior Tribunal de Justi-
ça (STJ). O caso envolve locadoras de carros, contratos super-
faturados e pagamento de propina. Segundo o Ministério Pú-
blico, entre 2015 e 2018, Rejane exercia o cargo de secretária
de Educação do Piauí, o marido era o governador do estado e,
nesse período, ela teria recebido vantagens financeiras de uma
empresa que prestava serviços de transporte para alunos ca-
rentes. Essa acusação, por si só, já seria motivo de constrangi-
mento para o ministro encarregado de cuidar do principal pro-
grama social do governo e gerir um orçamento de 280 bilhões
de reais. VEJA agora teve acesso à íntegra do processo. Os de-
talhes da investigação que ainda é mantida em segredo são
ainda mais constrangedores. Além da esposa, a Polícia Federal
colheu evidências de que a filha do ministro, o cunhado do mi-
nistro e o próprio ministro estão envolvidos na trama.
Em 979 páginas, a PF e o Ministério Público descrevem o
que seria uma parceria criminosa entre o governo do Piauí e
as empresas prestadoras de serviço. O enredo é típico. Gover-
nantes beneficiam amigos, correligionários e financiadores de
campanha com contratos públicos. Os lucros, depois, são re-
partidos. A parte dos políticos retorna em forma de pagamen-
to de propina ou através de contribuições clandestinas para
campanhas eleitorais. No caso do Piauí, os agentes identifica-

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BENEFICIADA
Rejane: hoje
conselheira do TCE,
a primeira-dama
ganhou mimos e
carros de luxo
da organização
INSTAGRAM @REJANE.DIAS

criminosa,
segundo a PF

3|8
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ram as duas modalidades de distribuição de dividendos. A


montagem do esquema, segundo os investigadores, começou
em 2008, quando o governador nomeou o professor Luiz Car-
los Magno para ocupar a superintendência institucional da
Secretaria de Educação. O cargo tinha entre as atribuições in-
teragir com as prefeituras para estruturar da melhor forma
possível o transporte de estudantes das escolas públicas.
O professor, então um ativo militante do PT, se revelaria um
verdadeiro mestre na nova atividade.
Com a expertise adquirida no governo, em 2009, no fim
do mandato de Wellington Dias, Luiz Carlos pediu demissão,
abriu mão do salário de 2 500 reais e ingressou como sócio
em várias empresas de locação de veículos, usando “laranjas”
para ocultar sua participação nos negócios. A vida de empre-
sário começou a dar bons resultados, mas o grande salto ain-
da estava por vir. Em 2014, Dias exercia o mandato de sena-
dor e se preparava para voltar ao governo do Piauí. A esposa
dele era deputada estadual (PT) e concorria a uma cadeira no
Congresso Nacional. Ambos foram bem-sucedidos. Ambos,
não por coincidência, usaram em suas campanhas os serviços
de uma das empresas do ex-professor. Ambos, segundo a po-
lícia, lançaram mão de uma mesma artimanha. Na prestação
de contas à Justiça Eleitoral, Wellington Dias informou que
gastou 115 000 reais em aluguel de veículos para o seu comi-
tê. Rejane gastou um pouco menos, 82 000. Tudo aparente-
mente normal, acompanhado das respectivas notas fiscais —
mas só aparentemente, como se descobriria depois.

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MOURA ALVES/MTUR

ROTEIRO Palácio Karnak: saque no banco e,


na sequência, visita à sede do governo do Piauí

Em 2015, Wellington Dias reassumiu o governo do Piauí.


A esposa, deputada federal eleita, se licenciou do Congresso
para assumir a Secretaria de Educação do estado. Foi nesse
período que, segundo a PF, o esquema começou a operar a to-
do vapor. Na Secretaria de Educação, concorrências manipu-
ladas garantiam o sucesso das empresas do ex-professor, que,

5|8
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nos anos seguintes, faturaram 200 milhões de reais. Os valo-


res dos contratos e a boa vida dos novos ricos chamaram a
atenção das autoridades. Uma fiscalização da Controladoria-
Geral da União detectou indícios de superfaturamento. A Po-
lícia Federal foi então acionada, começou a investigar e aca-
bou puxando o fio da tramoia que resultou na denúncia de
mais de quarenta pessoas por organização criminosa, corrup-
ção ativa, passiva e lavagem de dinheiro. Ficou demonstrado
que os empresários combinavam preços, contavam com a co-
nivência de funcionários da Secretaria de Educação para frau-
dar as licitações e partilhavam os lucros. Calcula-se que os
desvios totalizaram 120 milhões de reais.
A parte final e mais constrangedora do enredo foi revelada
quando a Polícia Federal realizou buscas nos endereços dos
envolvidos. Nas empresas do ex-professor, foram apreendidos
livros, pen drives e computadores. Os investigados também
tiveram os sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático le-
vantados. O cruzamento das informações revelou que a par-
ceria entre os criminosos e a família do governador já era efe-
tiva desde a campanha de 2014. Na época, Wellington Dias
usava uma caminhonete Hilux. O carro teria sido alugado,
conforme os documentos apresentados na prestação de con-
tas da campanha do governador. Numa das planilhas apreen-
didas na locadora, porém, o veículo constava como uma “cor-
tesia” da empresa. Ou seja, a campanha não teria desembolsa-
do um mísero centavo pelo aluguel. Na mesma planilha, ain-
da havia mais três veículos registrados como “cortesia”: um

6|8
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REPRODUÇÃO
GÊNIO Luiz Carlos: o professor é apontado como
responsável pelo desvio de 120 milhões de reais

para Rejane Dias, outro para a então candidata a vice-gover-


nadora e um terceiro para uma das filhas do casal. Não era
uma simples “cortesia”.
Ao analisar os documentos, a polícia concluiu que o di-
nheiro usado para supostamente pagar a locação dos veícu-
los — ao menos no caso de Rejane Dias — tinha como fina-
lidade “desviar recursos públicos em favor das empresas in-
vestigadas e da própria acusada”. As mensagens encontra-
das nos computadores da locadora revelaram que a então
ex-primeira-dama recebeu mimos como perfumes, joias e
alguns “empréstimos” em dinheiro. Depois da posse do
marido, quando o esquema já operava, ela usava dois car-
rões de luxo, ambos presenteados pela empresa: uma Trail-
blazer e um Corolla, que custaram 331 000 reais. A locado-

7|8
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ra ainda disponibilizou para o cunhado do governador ou-


tros dois carros e enviou 100 000 reais para a conta dele —
dinheiro que, para a PF, tinha Rejane Dias como a verda-
deira destinatária. A conselheira do TCE foi denunciada no
fim do ano passado por organização criminosa, corrupção
e lavagem de dinheiro. Convocada a prestar depoimento,
disse que as acusações eram infundadas e a investigação
completamente ilegal.
O nome do ministro Wellington Dias é citado mais de
uma dezena de vezes no relatório da Polícia Federal. Além
das “cortesias” e das nomeações suspeitas, os investigado-
res identificaram uma curiosa coincidência envolvendo o
então governador. Pelos dados de geolocalização colhidos
nos celulares de um dos criminosos, descobriu-se que ele
percorria um mesmo roteiro nas datas de pagamento dos
contratos. Ia ao banco, sacava o dinheiro, seguia para a em-
presa e, de lá, para a sede do governo piauiense. “Há regis-
tros do histórico de localização de Paula Rodrigues no Pa-
lácio Karnak, sede do governo do estado e onde trabalha
Wellington Dias, governador e esposo da deputada e ex-
secretária de Educação Rejane Dias”, diz o relatório da PF.
Paula Rodrigues era a gerente financeira da quadrilha. O
ministro não está entre os investigados. Procurado, ele não
quis se pronunciar. Na terça-feira 30, a Transparência In-
ternacional divulgou o ranking sobre a percepção de cor-
rupção em 180 países. O Brasil aparece na vexatória posi-
ção de número 104. ƒ

8|8
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CRISTOVAM BUARQUE

PILARES PARA
A EDUCAÇÃO
O conhecimento precisa ser
tratado como petróleo

HÁ SETENTA ANOS os governos adotam medidas visando


melhorar a educação, mas ela continua com baixíssima quali-
dade e imensa desigualdade, porque as leis e os programas têm
objetivos modestos e com execução local. Para se transformar
em país com educação de qualidade assegurada a todas as
suas crianças, o Brasil precisa de sete pilares para o salto.
Primeiro, uma mudança cultural que veja educação de
base para todos como parte da infraestrutura do progresso:
o conhecimento tratado como petróleo, a escola como aero-
porto. O país só adota o compromisso de educar com quali-
dade quando sente que isto é necessário para o desenvolvi-
mento nacional. Não se pode tratar a educação como mero
serviço social.
Segundo, um movimento político capaz de criar vontade
coletiva que assuma a educação de base como propósito de to-
dos os brasileiros para todos os brasileiros. Tivemos este sen-
timento para a independência, a abolição, a industrialização e
a democracia, mas nunca vontade comum para estarmos entre

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os melhores do mundo em educação, ainda menos para asse-


gurá-la com a mesma qualidade a todas as crianças, indepen-
dentemente da renda e do endereço.
Com base nessa vontade coletiva, o terceiro pilar seria a
montagem da estrutura administrativa necessária para fazer
funcionar um ministério para a educação de base e uma agên-
cia para a proteção de crianças e adolescentes, na Presidência
da República. Porque, sendo questão nacional, a responsabili-
dade com a educação não pode depender dos recursos de cada
família e prefeitura.
O quarto pilar consiste na estratégia de adoção federal da
rede de ensino público nos municípios que não têm condições
de oferecer escola com máxima qualidade a suas crianças. Em
toda cidade, professores com carreira federal, edificações com
padrão nacional, horário integral em todas as escolas. Em pou-
cos anos, essa estratégia de adoção implantaria um Sistema
Único Nacional Público, não necessariamente estatal, de edu-
cação de base em todo o país.

“O fundamental seria um
movimento capaz de criar
vontade coletiva, como
na independência”
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O quinto seria equipar as escolas para substituir as tradicio-


nais e arcaicas “aulas teatrais” por modernas “aulas cinema-
tográficas”, com o uso de ferramentas e métodos digitais de
teleinformática e com bancos de dados dinâmicos, dispondo
para isto de professores preparados e métodos de ensino que
respeitem o gosto e a vocação do aluno.
O sexto pilar seria a transformação do ensino médio em
ensino conclusivo, capaz de formar cada jovem para o mun-
do contemporâneo, dando-lhe o mapa para facilitar sua bus-
ca da felicidade pessoal e as ferramentas para participar da
construção do país, com itinerários que combinem ensino
teórico e profissionalizante.
O sétimo é criar um ambiente educativo nas famílias e na
população, em museus, teatros, cinemas, com envolvimento
da mídia, além da execução de um programa para a erradica-
ção do analfabetismo que ainda vitimiza adultos.
O vetor central deste salto é a vontade nacional encarnada
por líderes políticos que tragam para a educação os propósitos
que antes foram simbolizados no desenvolvimento (“50 anos
em 5”), na democracia (“Anistia Ampla”, “Constituição Demo-
crática” e “Diretas Já”), agora no educacionismo ( “Educação
Já”), para o Brasil caminhar em direção ao progresso com uma
modernização eficiente, justa e sustentável: civilizada, enfim. ƒ

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BRASIL ELEIÇÕES

O PRIMEIRO
DESAFIANTE
Ronaldo Caiado se lança como candidato à
Presidência em 2026, mas falta combinar
isso com muita gente, a começar pelo partido
dele VICTORIA BECHARA E BRUNO CANIATO

ESTRATÉGIA Caiado: escritórios fora de Goiás


para ajudar a nacionalizar seu nome

HEGON CORRÊA/AGÊNCIA CORA CORALINA

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MÉDICO, produtor rural e membro de uma família in-


fluente em Goiás, Ronaldo Caiado iniciou sua carreira po-
lítica mirando alto. Em 1989, aos 40 anos, pulou do tram-
polim da então poderosa União Democrática Ruralista
(UDR) para a disputa da Presidência da República pelo
PSD, na primeira eleição do país após a ditadura. Enfren-
tou nomes de peso como Lula, Leonel Brizola, Mario Co-
vas e Ulysses Guimarães. Terminou em décimo lugar, com
0,68% dos votos, mas não desistiu da política. Um ano de-
pois, chegou à Câmara dos Deputados, onde ficou por cin-
co mandatos, e foi eleito senador em 2014. Nesse período,
manteve a defesa de pautas conservadoras e de interesse
do agronegócio, consolidando-se como opositor da esquer-
da e do PT — figurou como um dos articuladores do im-
peachment de Dilma Rousseff. Foi eleito governador de
Goiás no primeiro turno em 2018 e 2022, mas segue de
olho no Palácio do Planalto. A três anos do fim do seu
mandato, já anunciou que deseja tentar novamente a Presi-
dência, saindo na frente de outros nomes da direita que es-
tão de olho na possibilidade de liderar a oposição a Lula
em 2026.
Falta, claro, combinar com muita gente, a começar pelo
próprio partido dele, que vive em meio a rachas internos e
divergências ideológicas. Em tese, a legenda tem força pa-
ra bancar um robusto projeto de oposição no próximo plei-
to presidencial. O União Brasil tem hoje 59 deputados e se-
te senadores e deve receber uma fatia grande do fundo

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eleitoral, atrás apenas do PL e do PT. Ocorre que o União é


um caso clássico de equilíbrio com um pé em cada canoa.
Ao mesmo tempo que abriga antipetistas declarados, tem
três ministros do governo Lula. Principal articulador des-
sas indicações, o senador Davi Alcolumbre certamente se-

POPULARIDADE EM ALTA
Governador de Goiás é o mais
bem avaliado do país

VOCÊ APROVA OU DESAPROVA


100 A GESTÃO DE CAIADO? (EM %)

80 APROVAM
59,9
60

40 33,5 DESAPROVAM

20
6,7 NÃO SABEM/NÃO RESPONDERAM

ABR OUT MAI OUT AGO


2019 2019 2020 2020 2021

3 | 10
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rá um problema para as pretensões de Caiado, pois é alia-


do de Lula e conta com apoio do governo para ser recon-
duzido à presidência do Senado em 2025.
Ciente das dificuldades, Caiado já vem trabalhando
internamente para tentar pavimentar os alicerces de uma
possível candidatura. Nesse sentido, conquistou uma vi-
tória no processo que vai culminar na troca de comando
do União. Uma convenção nacional marcada para o dia
29 de fevereiro vai decidir quem assume a presidência do
partido no lugar de Luciano Bivar, que teve seu reinado
encurtado após desentendimentos com outros caciques.

81,4

13,6
4,9
JUN AGO SET JUN DEZ
2022 2022 2022 2023 2023

Fonte: Paraná Pesquisas

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O governador de Goiás foi um dos articuladores da troca


no comando, ao lado dos deputados Mendonça Filho e
Elmar Nascimento, do senador Davi Alcolumbre e do ex-
-prefeito de Salvador e secretário-geral da legenda, ACM
Neto. “A partir da convenção nacional, nós teremos uma
outra realidade dentro do partido. As posições partidá-
rias não irão partir mais apenas de uma ou de outra pes-
soa”, acredita Caiado.
Além de combinar a candidatura com o próprio parti-
do, Caiado, obviamente, precisa combinar essa pretensão
com o eleitorado. Dentro do seu estado, isso não é proble-
ma: a aprovação dele é de 81%, segundo o Paraná Pesqui-
sas, o melhor índice entre os governadores do país. São
considerados pontos fortes de sua gestão o crescimento
econômico, impulsionado pelo agronegócio, os bons indi-
cadores de segurança e os resultados positivos de políticas
sociais implementadas por lá — Goiás é o segundo estado
que mais reduziu o índice de pobreza em 2022, segundo
dados do IBGE. Para ganhar votos no restante do país,
condição fundamental, considerando que o eleitorado
goiano tem um peso de apenas 3% nas urnas, Caiado des-
de já trabalha no esforço de nacionalizar seu nome. Ele
pretende abrir escritórios em São Paulo e Brasília nos pró-
ximos dois meses. Além disso, assumiu no último mês a
presidência do Consórcio Brasil Central, que inclui os go-
vernadores do Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul, Rondônia e Tocantins. Caiado tam-

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JORGE ARAÚJO/FOLHAPRESS

HISTÓRIA Em 1989 (na foto, ao lado


de Lula): ele terminou em décimo lugar

bém vai adotar a estratégia de entrar em debates nacio-


nais, sobretudo na área de segurança. “O Brasil precisa sa-
ber de que maneira vai enfrentar o narcotráfico. Ou vai se
acomodar, como hoje se faz, ou nós teremos medidas ca-
pazes de poder libertar o país dessas facções”, afirmou ele
a VEJA (confira entrevista ao lado).
Esse movimento de subir prematuramente num palan-
que presidencial, já exibindo as principais bandeiras de
uma futura campanha, ocorre no momento em que ou-
tros potenciais candidatos da faixa política de centro-

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“ENFRENTAR LULA DE NOVO SERÁ ESPECIAL”


Ronaldo Caiado diz que tinha perfil conservador já na eleição de 1989 e proje-
ta a reedição de duelo com o petista quase quarenta anos depois.

O que o credencia a representar a direita em 2026? Tenho uma


história de defesa da iniciativa privada, do direito à propriedade, posições
muito claras desde que entrei na política. Não estou remodelando meu perfil,
estou preservando o que sempre fui.

Acha que conseguirá atrair o eleitor bolsonarista? O apoio de


Bolsonaro é muito importante. Ele conseguiu atender a esse sentimento con-
servador do país. Mas, até que eu tenha condições de pleitear isso, preciso
me apresentar ao Brasil, debater as mudanças substantivas que nós fize-
mos em Goiás, como foi a minha postura no Congresso em temas delicados.

Uma das suas pautas centrais é a segurança pública. O que


acha da atuação de Lula nessa área? O Brasil precisa saber de que
maneira vai enfrentar o narcotráfico. Vai se acomodar, como hoje se faz, ou
teremos medidas capazes de libertar o Brasil das facções? Até agora foram
apenas medidas paliativas. Só existe Estado democrático de direito em um
país onde você tem segurança plena.

O que acha de enfrentar Lula depois de quase quarenta


anos? Um momento especial para mim. Será a hora de apresentar a ou-
tra maneira de enxergar o Brasil, sinalizar novos rumos, sair da estagnação
que o país viveu nesse tempo em que foi governado dentro desse senti-
mento de esquerda.

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direita evitam a todo custo esse tipo de exposição, com


medo de queimar a largada. No meio político, é consenso
o fato de que o governador paulista Tarcísio de Freitas,
do Republicanos, é o nome natural para ocupar essa po-
sição, pelo peso econômico do estado e o perfil afinado
com o eleitorado conservador. Ele nega a pretensão, di-
zendo que seu projeto é a reeleição em São Paulo (uma
opção certamente mais segura, em termos eleitorais),
mas os aliados esperam que seja apenas uma questão de
tempo para Tarcísio se lançar na corrida ao Palácio do
Planato em 2026. A mesma postura cautelosa é adotada
no momento por outros governadores com potencial de
liderar a oposição, casos do mineiro Romeu Zema, do
Novo, e do paranaense Ratinho Jr., do PSD.
Independentemente de quem irá conseguir se viabili-
zar para bater de frente com Lula em 2026, será quase im-
possível que esse nome venha a abrir mão do apoio de Jair
Bolsonaro. Até agora, a popularidade do capitão entre os
eleitores mais fiéis ficou intacta, mesmo em meio à suces-
são de escândalos que respingam no nome dele, sendo o
mais recente a suspeita da criação de um esquema clan-
destino de arapongagem na Abin nos tempos do seu go-
verno. A despeito dessa e de outras investigações tendo
como alvo Bolsonaro, ele continua com o prestígio em al-
ta junto a grande parte do eleitorado mais conservador,
como mostram algumas pesquisas recentes que circula-
ram na cúpula do PL. Resta saber quanto esse ativo resis-

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MÔNICA ANDRADE/GOVERNO DO ESTADO DE SP

CAUTELA Zema e Tarcísio: governadores evitam falar


sobre a sucessão presidencial

tirá aos próximos anos. Embora aliados ainda sonhem


com uma reviravolta jurídica que devolva a ele os direitos
políticos até a próxima eleição presidencial, o cenário es-
perado é o de Bolsonaro atuando como cabo eleitoral de
um candidato de direita. Quem desejar contar com esse
apoio em 2026 terá a difícil missão de equilibrar a balan-
ça, fazendo gestos a esse eleitorado sem se deixar conta-
minar pela rejeição ao ex-presidente, tão alta quanto a
parcela de fiéis que ainda cultua o “mito”.

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No caso de Caiado, dentro da pretensão dele de liderar


uma frente ampla de partidos que incluiria PP, Republica-
nos e até o PL de Bolsonaro, o alinhamento com o ex-pre-
sidente tende a ser mais natural. O capitão e o governador
falam a mesma língua. Nessa relação, ocorreram algumas
rusgas apenas no período da pandemia. Caiado fez críticas
à forma como Bolsonaro conduziu a crise sanitária, foi
contra suas decisões e chegou a romper com o ex-presiden-
te, anunciando que não falaria com ele. “Não tem mais diá-
logo com este homem. As coisas têm que ter um ponto fi-
nal”, declarou à época. O rompimento não durou muito.
Ainda em 2020, os dois trocaram afagos e selaram nova-
mente a aliança, a ponto de Caiado declarar apoio a Bolso-
naro no segundo turno das eleições de 2022. “O grande
desafio dos governadores será buscar o apoio de Bolsona-
ro, e o Caiado tem isso a favor. É o candidato com mais
identificação”, avalia Murilo Hidalgo, CEO do Paraná Pes-
quisas. Apesar desse trunfo e de outros ativos importantes,
o governador sabe que o caminho até as próximas eleições
será bastante longo e incerto — mas resolveu tentar ga-
nhar alguma vantagem ao se antecipar aos concorrentes
na missão de desafiar o PT desde já. Precisará agora mos-
trar que tem fôlego para manter a dianteira oposicionista
na maratona de 2026. ƒ

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MURILLO DE ARAGÃO

A REPÚBLICA
ORÇAMENTARISTA
No Brasil, o dinheiro público é central
nas disputas institucionais

EM UM CONTEXTO mais amplo da América Latina, a


dinâmica política brasileira ecoa uma longa disputa en-
tre federalistas e centralistas. Os federalistas desejam
que o dinheiro seja controlado pelos estados e municí-
pios, enquanto os centralistas pregam o controle finan-
ceiro do governo central.
No entanto, o Brasil inovou ao criar um sistema em
que o centro do poder está no controle do Orçamento.
Uma espécie de caixa eletrônico da República onde so-
mente os poderosos têm as senhas. Decisões são nubla-
das pela opacidade. Programas e projetos, em parte ex-
pressiva, são apenas rótulos para compor uma narrativa
de poder.
A expressão “República Orçamentarista” introduz
um olhar irônico sobre a complexa realidade política e
econômica do Brasil, destacando um ambiente em que a
gestão do Orçamento público assume um papel central
nas disputas institucionais. Essa expressão foi cunhada

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por uma figura influente nos altos escalões da República


que se mostra um bem-humorado observador da cena
política nacional.
Na República Orçamentarista, o cenário político é do-
minado pela luta por recursos. O governo busca inces-
santemente formas de aumentar a arrecadação para
combater o déficit, enquanto o Congresso empenha-se
em assegurar mais verbas para suas emendas e projetos.
O Judiciário, independente, também se fecha para man-
ter suas franquias intocáveis.
A batalha é contínua, assemelhando-se a uma briga
de rua pela apropriação de fatias do Orçamento, em de-
trimento de um planejamento estratégico abrangente e
visionário para o país. O resultado é que a prioridade é o
interesse específico, refletido na expressão “farinha pou-
ca, meu pirão primeiro”.

“Há uma batalha por


fatias do Orçamento
em detrimento
de um planejamento
estratégico”
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Para sustentar o status quo, há uma guerra de narrativas,


na qual setores públicos e privados frequentemente manipu-
lam informações. Alegações sobre isenções fiscais bilioná-
rias frequentemente ocultam a realidade da carga tributária
pesada e injusta. Parte da máquina pública vive em mundo
paralelo de ganhos regulares e cobranças erráticas. Quem
pode tenta não depender do Estado.
Isso leva à constatação de que no “orçamentarismo” não
se observa uma discussão genuína sobre a diminuição das
despesas governamentais, tampouco um foco nas melhorias
de eficiência e na qualidade dos serviços públicos.
A transição para a República Orçamentarista marcou a
substituição de um modelo em que o Executivo detinha domí-
nio absoluto, em que o hiperpresidencialismo subjugava os de-
mais poderes e a federação aos interesses do governo central.
Hoje, observamos uma descentralização maior do po-
der, o que, em princípio, representa um avanço. No entan-
to, a lógica do caixa eletrônico sem limites não funcionará
se a economia não crescer de forma sustentável, com cla-
reza de propósitos, com uma visão pragmática e desprovi-
da de preconceitos ideológicos.
Não podemos abrir mão da construção de um futuro estru-
turado por causa do imediatismo e da lógica do “meu pirão pri-
meiro”. Porém, a curto prazo, os avanços no controle dos gastos
públicos dependerão de crises que ainda não estão no horizon-
te. Continuaremos, alegremente, a correr da cozinha para a sala
sem pensar seriamente no futuro. ƒ

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BRASIL RIO DE JANEIRO

BOM DE GINGADO
Vice-presidente do PT, Quaquá e a prefeitura local
conseguem amealhar para a União de Maricá mais
verbas oficiais do que as das escolas de samba do
Grupo Especial LUCAS MATHIAS E SOFIA CERQUEIRA

ZIRIGUIDUM Quaquá (de gravata) e sua escola: projeção e


mostra de prestígio do município (e de si mesmo) no Carnaval

FACEBOOK @GRESUNIAODEMARICA

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O BALNEÁRIO de Maricá, a 60 quilômetros do Rio de Janei-


ro, experimenta há dez anos um boom econômico alimentado
pela expansão das explorações do pré-sal, um manancial de ro-
yalties que no ano passado rendeu 4 bilhões de reais e colocou
o município de menos de 200 000 habitantes, que já viveu da
agricultura e da pesca, na posição de maior PIB do estado. Tra-
dicional reduto do PT, que a comanda há dezesseis anos, a pre-
feitura, com o cofre cheio, resolveu investir pesado na folia: in-
jetou nada menos que 8 milhões de reais na União de Maricá,
escola que tem como presidente de honra o deputado federal
petista Washington Quaquá e que estreia neste ano no Grupo
de Acesso da Marquês de Sapucaí. O valor é quatro vezes maior
do que a subvenção paga pela prefeitura do Rio às escolas do
Grupo Especial (2,15 milhões de reais para cada uma) e oito ve-
zes o valor recebido pelas colegas da segunda divisão.
A oposição acusa o governo e seus aliados de usarem os feste-
jos de Momo como plataforma política. “A escola é na verdade
do Quaquá e ele está usando dinheiro público para se autopro-
mover”, dispara o vereador Ricardo Netuno (Republicanos). No
outro lado do ringue, o deputado, que é vice-presidente do PT e
— surpresa! — pré-candidato à prefeitura, argumenta que o re-
torno supera o investimento. “Ter o nome da cidade no maior es-
petáculo da Terra traz uma visibilidade imensa. Se a escola subir
para o Grupo Especial, como apostamos, vou investir mais ain-
da”, não esconde Quaquá, que já foi prefeito por dois mandatos.
A empresa do deputado e de sua mulher, Gabriela Lopes,
está à frente de um concorrido espaço no Sambódromo, o Ca-

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WAGNER MEIER/GETTY IMAGES

marote Favela, alugado


por cerca de 900 000
reais. O local, com três ní-
veis e frisa com bar, ven-
de ingressos a preços en-
tre 1 400 e 3 000 reais,
mas os holofotes estarão
nos convidados. “A pro-
posta é ser um local de
encontro político. Essa NA AVENIDA Eduardo Paes:
sempre foi minha inten- afago oportuno depois de uma
ção: unir o Carnaval com gafe monumental
o poder”, admite Quaquá.
São esperados o presidente Lula, a presidente do PT, Gleisi Hof-
fmann, o ministro do Turismo, Celso Sabino, e o prefeito do
Rio, Eduardo Paes, que tem seu próprio camarote, mas deve
bater ponto lá. Paes, que no passado causou uma saia justa na-
cional ao chamar Maricá de “um lugar de m...” em telefonema
com Lula grampeado pela Operação Lava-Jato, também con-
firmou que sairá no chão, à frente do primeiro carro da escola,
ao lado de Quaquá e do prefeito, Fabiano Horta.
A escola de Maricá desfilou pela primeira vez em 2016 e te-
ve ascensão meteórica no mundo do samba. Após a compra do
CNPJ de outra agremiação — prática tolerada no meio —, ela es-
treou na Série Bronze, a quarta divisão do Carnaval carioca, e
avançou rapidamente até chegar ao Grupo de Acesso, que desfi-
la na Sapucaí e serve de porta de entrada para o sonhado Grupo

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Especial (sobem as duas mais bem colocadas). A direção pro-


mete uma apresentação luxuosa. “A disparidade de recursos é
escandalosa. Pelo que se fala nos bastidores, será um desfile
com porte de escola de elite”, ressalta a pesquisadora de Carna-
val Rachel Valença. De fato, os milhões de reais repassados pela
prefeitura de Maricá, em cota única, equivalem ao gasto médio
das agremiações tradicionais. “Não podemos reclamar. A escola
virá com muito veludo, paetê e tecidos exclusivos, coisas que não
são comuns no Grupo de Acesso”, observa o carnavalesco An-
dré Rodrigues, que também assina o desfile da Portela.
Rodrigues não é o único reforço de peso da estreante na
Sapucaí, que entra na avenida na madrugada de sábado 10: a
escola contratou ainda um diretor de harmonia da Mangueira,
um coreógrafo do Salgueiro e um casal de mestre-sala e por-
ta-bandeira premiados no Grupo Especial. “Não sou contra o
Carnaval ou a liberação de recursos para isso, desde que tudo
esteja funcionando bem na cidade. Mas a rede municipal de
saúde é precária, o saneamento básico é deficiente e a violên-
cia vem aumentando”, critica o deputado estadual Filippe Pou-
bel (PL). Outra denúncia da oposição é o uso de ônibus do mu-
nicípio para levar a população ao ensaio técnico na Sapucaí.
“Cedemos, sim, por entender que isso é de interesse social e
não afetou em nada o transporte local. Vejo com pena quem
não enxerga quanto o investimento no Carnaval sustenta fa-
mílias e gera efeitos sociais concretos”, rebate o prefeito. Resta
ver se a gastança renderá à União de Maricá os resultados es-
perados — carnavalescos ou de outra natureza. ƒ

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BRASIL SEGURANÇA

TRANCA FECHADA
Na esteira da morte brutal de um policial militar,
revisão do benefício da “saidinha” de presos ganha
força com o apoio de parlamentares e governadores
VALMAR HUPSEL FILHO

HISTÓRICO Detentos no Pará: regra em vigor


foi criada em 1984

FACEBOOK @GRESUNIAODEMARICA

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NA MADRUGADA do dia 5 janeiro, o policial militar


Roger Dias da Cunha, de 29 anos, participava de uma per-
seguição a dois suspeitos de roubo em um bairro de Belo
Horizonte quando levou dois tiros fatais na cabeça, dispa-
rados à queima-roupa. O suspeito é um homem que já es-
tava preso, mas gozava do direito à saída temporária con-
cedida no feriado do Natal e não havia retornado à prisão,
como previsto. Sua ficha possui ao menos dezoito regis-
tros de passagem por delegacias por roubo, falsidade ideo-
lógica, receptação, tráfico de drogas e ameaças, segundo
a PM-MG. O crime indignou parte da população, virou
um dos temas mais comentados nas redes sociais e provo-
cou a reação da classe política. O brutal assassinato rea-
cendeu o debate sobre as chamadas “saidinhas” e deu for-
ça aos projetos no Congresso que propõem o recrudesci-
mento da lei e a extinção desse direito.
A maior repercussão partiu de representantes da direita
bolsonarista, interessados no voto conservador, mas também
arrastou para o debate pesos pesados da política nacional.
Logo após o crime, o presidente do Congresso, Rodrigo Pa-
checo, que é de Minas Gerais, afirmou que se comprometeria
a dar andamento ao projeto que propõe a extinção das saídas
temporárias. O movimento atraiu governadores de estados
importantes, como Tarcísio de Freitas (São Paulo), Romeu
Zema (Minas Gerais) e Ronaldo Caiado (Goiás), que prome-
tem uma articulação conjunta para pressionar os parlamen-
tares a aprovar a matéria logo no retorno do recesso.

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REPRODUÇÃO

REVOLTA Enterro do sargento Roger Dias da Cunha:


dois tiros fatais na cabeça

Embora debates sobre esse tipo de tema possam ser des-


virtuados em razão da brutalidade do evento e do apelo po-
pulista da pauta, a chance de haver alguma mudança na lei é
real. No Congresso, dois projetos tramitam simultaneamen-
te. O mais avançado é o PL 2253/22, do deputado Pedro
Paulo (MDB-RJ), que já passou na Câmara e está pronto pa-
ra ser votado na Comissão de Segurança Pública do Senado,
com parecer favorável do relator, Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Na Câmara, o PL do deputado Bibo Nunes (PL-RS) foi apro-
vado na Comissão de Segurança Pública em novembro e

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aguarda análise na Comissão de Constituição e Justiça.


“Não dá para o criminoso ter mais de um mês de descanso
enquanto o cidadão de bem só tem trinta dias de férias”, diz
Nunes. Ele se refere, acertadamente, ao dispositivo na lei que
prevê até cinco “saidinhas” de sete dias por ano.
O benefício, apesar de toda a (justa) polêmica, atinge
pouca gente. Ele só alcança presos que já estão em regime
semiaberto — que saem para trabalhar e estudar e voltam à
noite —, que têm bom comportamento e um sexto da pena
cumprida (veja o quadro ao lado). Dados do Departamento
Penitenciário Nacional apontam que historicamente é baixa
a quantidade de presos que não retornam. De janeiro a ju-
nho de 2023, o índice ficou em 6,3% Quem defende a manu-
tenção do benefício argumenta que ele é importante para a
reintegração gradativa de presos ao convívio familiar e à so-
ciedade e que casos como o que vitimou o policial mineiro
são exceções. “Sempre que acontece algum crime envolven-
do preso que não retornou da ‘saidinha’, o Parlamento res-
ponde com leis mais duras”, diz o sociólogo Luis Flávio Sa-
pori, professor da PUC Minas e membro do Fórum Brasilei-
ro de Segurança Pública. “É a legislação do pânico, mas a
contribuição das saídas temporárias para o processo de re-
inserção social de presos é inegável.”
A questão é que, de fato, alguma mudança precisa ser
introduzida. As “exceções”, muitas vezes, significam vi-
das perdidas e reforço para o crime organizado. Mesmo
entre os partidários da manutenção do benefício, há quem

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FORA DA CELA
“Saidinha” só alcança quem já deixa o presídio
todo dia para trabalhar ou estudar

O QUE É
BENEFÍCIO PREVISTO NA LEI DE
EXECUÇÕES PENAIS PARA AUXILIAR
NA RESSOCIALIZAÇÃO DE PRESOS

QUEM TEM DIREITO


Detentos em regime semiaberto que satisfaçam
requisitos como cumprimento de um sexto da
pena, bom comportamento e não ter sido
condenado por crime hediondo

PERÍODOS DE SAÍDA
Cinco possibilidades por ano, em
datas como Dia das Mães e Natal,
por até sete dias

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COMO SÃO MONITORADOS


O preso deve indicar o endereço onde irá
dormir todos os dias. Não pode ir a bares,
casas noturnas nem se ausentar da cidade.
O juiz pode determinar o uso de
tornozeleira eletrônica

120 000 PRESOS


DEIXARAM AS PRISÕES ENTRE
JANEIRO E JUNHO DE 2023

6,3%
DELES NÃO VOLTARAM NA DATA PREVISTA
Fonte: Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais)

6|7
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considere necessário algum ajuste na Lei de Execução Pe-


nal, assinada em 1984 pelo presidente João Figueiredo. A
Secretaria Nacional de Políticas Penais sugere que a deci-
são pela concessão seja colegiada e que integrantes de or-
ganizações criminosas sejam excluídos do rol de presos
que têm direito a saídas temporárias — finalmente, um
sopro de sabedoria. A ideia é evitar o que ocorreu no Rio,
quando dois homens apontados como líderes do Coman-
do Vermelho não retornaram após receberem o benefício
pela primeira vez, no último Natal.
O debate avança em meio à crescente sensação de inse-
gurança no país. Pesquisa da Quaest de novembro apon-
tou que oito em cada dez brasileiros avaliam que o quadro
piorou nos últimos doze meses, início do terceiro mandato
de Lula. Na quarta 31, ao formalizar a troca de Flávio Di-
no por Ricardo Lewandowski no Ministério da Justiça, o
presidente disse que o crime organizado se tornou uma
indústria maior que a General Motors, a Volkswagen e a
Petrobras e prometeu que iria “jogar muito pesado”. Den-
tro desse clima, a movimentação política faz algum senti-
do — na mesma sondagem, 93% concordaram que a solu-
ção para a violência é “punir com leis mais rígidas”. O te-
ma, no entanto, merece um debate aprofundado e despro-
vido de pretensões eleitoreiras, de forma a se chegar a
uma solução equilibrada. A necessária reinserção huma-
nizada de presos precisa ser feita de forma criteriosa e se-
gura para o restante da sociedade. ƒ

7|7
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RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ

Com reportagem de Diego Gimenes


e Felipe Erlich
JONATHAN LINS/DPA/GETTY IMAGES

DESTRUIÇÃO Maceió: ameaça de CPI


provoca reações de empresários locais

Segura o carteiro lo de Renan para desistir


A Federação das Indústrias da publicação — e atende-
do Estado de Alagoas está ram ao pedido.
insatisfeita com a atuação
do senador Renan Calhei- Sem tremores
ros (MDB-AL) em torno da Por outro lado, apesar da
instalação de uma CPI da preocupação de credores,
Braskem. A federação pre- quem acompanha o proces-
parava uma carta pública so de perto diz que nem o
crítica ao senador. Os in- descalabro em Maceió,
dustriais ouviram um ape- tampouco a possibilidade

1|3
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de instalação de CPI devem Futuros de Commodities


impactar o processo de re- nos Estados Unidos, firma-
cuperação judicial da No- do em novembro, para pôr
vonor, antiga Odebrecht. fim a um processo por frau-
Os principais credores da des bancárias que tramitava
construtora têm ações da no órgão regulador.
Braskem detidas pela No-
vonor como garantia. Porto seguro
Empresários insatisfeitos
Polo de atração com o imbróglio sobre a de-
Em meio a negociações com soneração da folha acharam
a montadora de carros elé- um interlocutor no governo:
tricos BYD e a Volkswagen, é em Geraldo Alckmin que
a produtora de lítio Sigma apostam as fichas por uma
despertou o interesse de ou- decisão ponderada.
tros três concorrentes — to-
dos chineses. O lítio é usado Sem vazão
na produção de baterias. Uma das possíveis candi-
datas a acabar com a estia-
Estrada aberta gem de aberturas de capital
A corretora de criptomoe- na B3, a operadora de sa-
das Binance recebeu entra- neamento Iguá avalia que o
das de 4,6 bilhões de dólares cenário ainda é desfavorá-
após o pagamento de um vel. Deve esperar por mais
acordo de 2,7 bilhões de dó- queda dos juros e um mer-
lares com a Comissão de cado mais receptivo para
Negociação de Contratos tocar os planos.

2|3
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Tá ruim, mas tá bom Segundo tempo


O movimento do Congres- Fora isso, o Tribunal de Jus-
so para se antecipar ao go- tiça do Rio já criou uma es-
verno e formar grupos de pécie de jurisprudência em
trabalho para regulamen- relação à entrada de segun-
tar a reforma tributária foi dos processos de recupera-
visto por membros da Fa- ção judicial, baseando-se no
zenda como uma forma de pedido da Oi. Caso recente:
pressão por parte do setor o da OSX, de Eike Batista.
privado por maior celeri-
dade — mas não necessa- De olho nos reais
riamente mal recebido. A Chegando ao Brasil, a em-
leitura: quanto mais contri- presa CanAm Enterprises
buições técnicas, melhor. aposta na emissão de vistos
de brasileiros dispostos a in-
Encantos do Rio vestir nos Estados Unidos.
Empresas têm preferido A companhia americana
os tribunais do Rio de Ja- atua na intermediação de
neiro para entrar com visto de residência específi-
seus pedidos de recupera- co para investidores estran-
ção judicial — na Cidade geiros que apliquem no mí-
Maravilhosa, a tendência nimo 800 000 dólares em
dos juízes seria atuar mais negócios ou criem empresas
a favor das empresas do nos Estados Unidos. ƒ
que em São Paulo, com
OFERECIMENTO
muitas decisões favorá-
veis aos credores.

3|3
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ECONOMIA INTERVENCIONISMO

O QUE É ISSO,
COMPANHEIRO?
Tentativa de indicar Guido Mantega à presidência da Vale
foi mais uma ofensiva do governo para ampliar sua
presença em ex-estatais — um péssimo sinal para
investidores do Brasil e do exterior
PEDRO GIL

AMIZADE Lula e Mantega: o PT se moveu no bastidor para


tentar levar o ex-ministro ao topo da Vale, mas teve de recuar

GUSTAVO MIRANDA/AGÊNCIA O GLOBO

1 | 11
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Q
uem tem um amigo tem tudo, já diziam os can-
tores Emicida e Zeca Pagodinho, citando um di-
to popular na música de mesmo nome. A crença
é válida para o ex-ministro da Fazenda Guido
Mantega. E o amigo que ele tem é a pessoa mais
influente do país: o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. Nas últimas semanas, Mantega viu esse amigo,
ou “companheiro” — como é comum dizer entre os mem-
bros do partido de ambos, o PT —, empreendendo um es-
forço de bastidor para tentar encaixá-lo na cúpula da Vale,
a segunda maior empresa brasileira. No centro da meta es-
tava o cargo de presidente executivo, um dos mais cobiça-
dos e bem remunerados do meio corporativo. Se não na
presidência, estaria em jogo obter ao menos um lugar no
conselho gestor da Vale.
A ofensiva do Planalto não foi solitária. A presidente do
PT, Gleisi Hoffmann, foi o rosto da operação. Ela veio a pú-
blico, na quinta-feira 25, em defesa da indicação de Mantega
para o comando da empresa. Nas redes sociais, afirmou que
ele é um dos “pouquíssimos brasileiros” qualificados para
compor o conselho da empresa, grupo do qual fazem parte
os representantes dos acionistas. Por outro lado, a empresa
recebeu a comunicação de uma multa de 47 bilhões de reais
por danos causados com a ruptura da barragem de Mariana
— tragédia pela qual a Vale tem mesmo de responder.
Ao contrário do que sugeriu Gleisi, o currículo de
Mantega não indica predicados necessários para assumir

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uma cadeira no topo de uma das maiores mineradoras do


mundo, que compete em um mercado acirrado e específi-
co. “A indicação do Mantega, que nem bom ministro foi,
não tem critério técnico, só afetivo”, diz a economista
Elena Landau, ex-conselheira da Vale. “O governo não se
conforma que a empresa se tornou privada.” A pressão
por Mantega pegou mal na diretoria e no conselho da
empresa e repercutiu no mercado. O PT se viu obrigado a
ensaiar um recuo na ofensiva. “O compliance da Vale
criou mecanismos que impedem a contratação de um

INGERÊNCIAS EM SÉRIE
Em um ano, o governo sinalizou retrocessos em
marcos legais, empresas privadas e estatais

MARCO DO SANEAMENTO
O governo queria permitir a contratação de
estatais sem licitação, gerando concorrência
desleal com similares privadas

STATUS
O Congresso derrubou o decreto

3 | 11
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ANDRÉ COELHO/EFE

ESTAÇÃO DE TRATAMENTO Cedae:


a privatização deu ótimos resultados

ELETROBRAS
O governo quer ampliar o poder
de voto no conselho de administração da
companhia, recentemente privatizada

STATUS
Corre ação no STF, que deu até o fim de
março para que empresa e União cheguem
a um acordo

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presidente que não tenha condições técnicas importan-


tes, e ele não tem”, diz Pedro Galdi, analista de investi-
mentos da corretora Mirae Asset.
Apesar da derrota momentânea, o governo deve seguir
em seu impulso intervencionista. O episódio da Vale foi
mais um de uma série de iniciativas para aumentar a in-
fluência política em setores estratégicos. No de energia elé-
trica, houve a tentativa de ampliar os votos do governo no
conselho de administração da Eletrobras, outra empresa
que, como a Vale, é uma ex-estatal. Na área do saneamen-
to, houve gestões para alterar o marco regulatório, que fo-
ram barradas pelo Congresso. Em óleo e gás, foram feitas

LEI DAS ESTATAIS


Liminar concedida pelo então ministro do STF
Ricardo Lewandowski alterou critérios para cargos
de liderança, facilitando indicações políticas

STATUS
O assunto será retomado em julgamento
no plenário do Supremo Tribunal Federal

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mudanças no estatuto da Petrobras após uma alteração na


Lei das Estatais que será julgada no plenário do Supremo
Tribunal Federal.
A bem da verdade, a Vale, privatizada em 1997, sem-
pre esteve na mira do PT. Em 2009, começaram as pres-
sões pela demissão do então presidente, Roger Agnelli,
que resistiu no cargo até 2011. À época, Lula criticava a
empresa por investimentos fora do Brasil e pela aquisição
de bens de capital, como navios, de fornecedores estran-
geiros. E era justamente Guido Mantega que liderava as
pressões junto aos acionistas de referência, classificadas
internamente como “insuportáveis”. Um alto executivo

PETROBRAS
O estatuto da empresa foi alterado,
acompanhando a mudança na Lei das Estatais
e reduzindo restrições a indicações políticas

STATUS
O novo estatuto está valendo após o Tribunal
de Contas da União ter derrubado liminar que
limitava a alteração

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da companhia diz reservadamente: “O governo quer


reescrever o passado e o recado é claro: interferir na ati-
vidade econômica”.
Hoje, o cenário não é igual ao de 2009, e por isso o go-
verno, até aqui, não foi bem-sucedido. Naquela época, a
parcela de ações da Vale sob influência da União era de
26,5%, que somava fatias do BNDESPar e da holding Li-
tel Participações, formada pelos fundos de pensão Previ,
Petros e Funcef, todos de funcionários de estatais. Hoje,
apenas a Previ, dos servidores do Banco do Brasil, tem
representação no conselho, por seus 8,6% do capital da
Vale. “Criamos vacinas para intervenções políticas muito

VALE
A gestão Lula se moveu para tentar emplacar o
ex-ministro da Fazenda Guido Mantega como
presidente da empresa

STATUS
Após reação negativa, o Planalto negou a tentativa
de indicação, mas estaria à procura de outro nome
com menos resistência no mercado
Fontes: Supremo Tribunal Federal, Petrobras, Tribunal
de Contas da União

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grosseiras, como a pulverização do controle da Vale”, diz


Sérgio Lazzarini, professor do Insper e especialista em
privatizações. “Infelizmente, não fomos vacinados em
outras frentes.”
O primeiro ataque intervencionista feito pelo governo
Lula 3 foi por meio de um decreto para tentar esvaziar o
Marco do Saneamento, aprovado em 2020. Isso mesmo
depois de o setor privado ter mostrado resultado em uma
área carente, como ocorreu com a privatização da opera-
dora Cedae, no Rio de Janeiro. As principais mudanças in-
troduzidas — e derrubadas na Câmara — previam que em-
presas públicas estaduais de água e esgoto pudessem pres-
tar serviços por meio de contratos sem licitação e ainda
incluir na sua comprovação de capacidade econômico-fi-
nanceira operações que hoje estão sob contestação.
Em seguida, foi a vez da Eletrobras. No ano passado, a
União ingressou com ação no STF para que tenha voto
proporcional às ações que detém da empresa. O governo
argumenta que a lei diminuiu de maneira irregular o peso
dos votos a que teria direito. Com a privatização, a União
permaneceu detentora de 42% das ações; no entanto, a
proporção de votos do governo foi limitada a 10%. A ação
ainda está no STF.
Outra frente aberta para flexibilizar indicações políti-
cas foi a retirada de trechos da Lei das Estatais, que per-
deu fôlego após decisão do então ministro do STF Ricar-
do Lewandowski, hoje ministro da Justiça. Como um de

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OBJETO DE COBIÇA
Privatizada em 1997, a Vale tem atuação
destacada no mundo empresarial

2ª maior empresa do Brasil


em valor de mercado, atrás da Petrobras

5 maior mineradora do mundo


ª

297 bilhões de reais


em valor de mercado

Presença em 8 países

226 bilhões de reais


de faturamento em 2022

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96 bilhões de reais
de lucro em 2022

321 milhões de toneladas


de minério de ferro produzidas em 2023

1 empresa
ª
com maior peso no índice Ibovespa
Fontes: B3, Vale, consultor Einar Rivero e Mining.com

seus últimos atos no tribunal, ele concedeu liminar reti-


rando a quarentena de três anos para que políticos pos-
sam assumir cargos de direção em empresas públicas. A
Petrobras já alterou seu estatuto para receber indicações.
Essas pressões ocorrem em meio a outras urgências,
principalmente fiscais. O governo anunciou que teve défi-
cit de 230 bilhões de reais em 2023, o equivalente a 2,1%
do PIB. O resultado nominal não é bom, já que a meta era
um déficit de 1% do PIB. Mas o acréscimo foi resultado da
decisão de pagar precatórios (dívidas da União com trânsi-
to em julgado) e do acordo feito com governadores para

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DADO GALDIERI/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

INCONFORMISMO Vale: privatizada,


a ex-estatal volta e meia sofre pressões

compensar perdas do ICMS sobre combustíveis.


Apesar da louvável iniciativa de zerar pendências ante-
riores, o resultado deixa dúvidas quanto ao alcance da meta
de equilíbrio das contas neste ano. Só isso já seria uma tare-
fa e tanto. Mas o governo cria problemas adicionais para si
mesmo e para o país com seu pendor intervencionista e
afrontoso ao setor privado. O histórico de ingerências do
passado deixou um rastro de corrupção, distorções de mer-
cado e ineficiência. Sua volta gera um ambiente de incerteza
para os investidores, brasileiros e estrangeiros. Seria melhor
passar sem isso — palavra de amigo. ƒ

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MAÍLSON DA NÓBREGA

A PRODUTIVIDADE
E O PT
O partido continua aferrado a
teses econômicas equivocadas

A PRODUTIVIDADE é a fonte básica do crescimento


econômico, o que já era destacado em 1776 por Adam
Smith no livro A Riqueza das Nações. Ele citou uma fá-
brica de alfinetes onde os trabalhadores se especializa-
vam em tarefas específicas. A eficiência aumentava. A di-
visão do trabalho elevava a produtividade, fomentando o
progresso.
A produtividade é, pois, essencial para a expansão do
PIB, do emprego e da renda. Para o economista america-
no Paul Krugman, “a produtividade não é tudo na econo-
mia, mas no longo prazo é quase tudo”. Sua elevação de-
pende de muitos fatores, tais como a qualidade da educa-
ção, o uso dos recursos em seus melhores fins (a chamada
“boa alocação”), o avanço tecnológico (fonte básica das
inovações) e a adequada operação da logística. Do lado
oposto, a inflação, a corrupção e os gastos públicos exces-
sivos, que podem levar à insustentabilidade fiscal, geram
ineficiências. Conspiram contra a produtividade.

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A produtividade raramente frequenta os documentos


do PT. A economia seria impulsionada pelos gastos públi-
cos. “Gasto é vida”, assinalou a ex-presidente Dilma Rous-
seff. Seu desprezo pela responsabilidade fiscal legou um
desastre econômico que ainda hoje ecoa, mas suas conse-
quências — inflação, recessão e desemprego — não servi-
ram de lição. O PT continua aferrado a essa ideia. Pior,
acredita que o Banco Central deve obediência ao governo,
cabendo-lhe reduzir a Selic para fazer o PIB crescer.
A fé no gasto público é o que move o Novo PAC. O pro-
grama prevê investimentos de 1,7 trilhão de reais nos pró-
ximos anos. Seus objetivos são promover o crescimento
econômico e assegurar a vitória nas eleições de 2024 e
2026. Não à toa, o presidente Lula planeja inaugurar
obras do PAC Brasil afora. Confia que o eleitorado reagirá
bem a ações do governo em seus respectivos municípios.

“A produtividade não
frequenta os documentos
do PT. A economia seria
impulsionada pelos
gastos públicos”
2|3
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Há que reconhecer, tais investimentos podem elevar a


produtividade, particularmente os que objetivam melho-
rar o sistema de transporte. Mas sua força não é tão gran-
de se considerarmos que representarão, em média, pouco
mais de 0,3% do PIB ao ano no atual governo. Ademais,
de acordo com o novo arcabouço fiscal, será necessário
promover corte de gastos, mesmo que insuficiente para
resolver a insustentável situação fiscal.
Isso foi, todavia, o bastante para despertar a ira do PT.
Afinal, reduzir gastos é atacar a “fonte” do crescimento.
Em resolução de 8 de dezembro passado, o Diretório Na-
cional do partido voltou-se contra o “austericídio” fiscal
do ministro Fernando Haddad.
Ao lado do partido peronista argentino, o PT é a única
agremiação relevante de esquerda que não modernizou
seu discurso econômico. Os demais, como é o caso dos
europeus, aderiram ao binômio democracia-economia de
mercado, sob forte regulação do Estado. Pelo que se tem
visto de declarações como essa e do próprio Lula, o parti-
do está longe de abandonar ideias econômicas arcaicas
que podem, se adotadas, inibir o crescimento do país. ƒ

3|3
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ECONOMIA AVIAÇÃO

ZONA DE
TURBULÊNCIA
O pedido de recuperação judicial da Gol traz
holofotes de volta para um setor que ainda
tenta se recompor depois dos prejuízos
deixados pela pandemia JULIANA ELIAS

NO CHÃO Aviões: os contratos de aluguel desses equipamentos


estão entre os principais custos das companhias aéreas

RENATO S. CERQUEIRA/ATO PRESS/AGÊNCIA O GLOBO

1|7
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NÃO CHEGOU a ser uma surpresa, mas o pedido de re-


cuperação judicial feito pela segunda maior companhia
aérea do Brasil, a Gol, em 25 de janeiro, balançou o setor.
A empresa protocolou naquela quinta-feira, na Justiça
dos Estados Unidos, seu formulário para ser incluída no
chamado Capítulo 11, o dispositivo legal similar à recu-
peração judicial no Brasil. “Não há previsão de diminui-
ção das operações da Gol, o processo do Capítulo 11 é
para proteger a companhia (...), ele dá o tempo e as con-
dições para que a negociação seja feita”, disse o presiden-
te da Gol, Celso Ferrer, após o anúncio. O pedido foi acei-
to no dia seguinte.
O caminho da Gol pela renegociação já estava no ra-
dar dos especialistas. No terceiro trimestre de 2023, sua
dívida chegava a 20 bilhões de reais e, com 1 bilhão de
reais em caixa, a companhia já não teria condição de
honrar contas de curto prazo. “Chega um ponto em que
ou a empresa paga os custos de operação, e continua
voando, ou paga as dívidas”, diz Ygor Araújo, analista da
corretora Genial.
A Gol não está sozinha. Ela é parte de um setor que se
desbalanceou por completo, no Brasil e no mundo, com os
choques da pandemia, em 2020, e que até hoje tenta tapar
os prejuízos. As principais empresas brasileiras do ramo
chegam a 2024 tendo passado por crises financeiras, falta
de peças e aeronaves, combustível caro e preços das pas-
sagens testando recordes.

2|7
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EM REESTRUTURAÇÃO
As principais companhias aéreas do
Brasil pediram recuperação judicial ou
renegociaram dívidas nos últimos anos

BRASIL
DEZEMBRO DE 2018
Recuperação judicial no Brasil
DÍVIDA

2,7 bilhões de reais

JULHO DE 2020
Recuperação judicial nos EUA
DÍVIDA

53,2 bilhões de reais *

3|7
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AGOSTO DE 2020
Renegociação com credores
DÍVIDA

18,9 bilhões de reais

JANEIRO DE 2024
Recuperação judicial nos EUA
DÍVIDA

20,2 bilhões de reais


* Valor das dívidas de todas as empresas do grupo Latam

Fonte: Balanços das empresas (dívida informada no


trimestre anterior à entrada dos pedidos de reestruturação)

4|7
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RENATO S. CERQUEIRA/ATO PRESS/AGÊNCIA O GLOBO

AEROPORTO Passageiros: para eles


a crise chega com o aumento dos preços

Em 2020, a Latam e a Azul iniciaram reestruturações


de dívida. “A Latam saiu mais forte desse processo e entra
em 2024 otimista, prevendo ampliar de 7% a 9% a sua
operação doméstica neste ano”, afirmou a empresa em no-
ta. Procurada, a Azul não comentou. Juntas, as três em-
presas respondem por 99% das viagens dentro do país.
Houve ainda o caso da Avianca, que entrou em recupera-
ção em 2018 e encerrou as atividades no Brasil dois anos
depois. E da ITA, inaugurada em maio e fechada em de-
zembro de 2021. “O número de passageiros foi a quase ze-
ro em 2020”, diz André Castellini, sócio da consultoria

5|7
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SÉRGIO FRANCÊS/MINISTÉRIO DE PORTOS E AEROPORTOS

SAÍDAS Costa Filho, ministro dos Portos


e Aeroportos: reuniões com o setor

Bain & Company. “As companhias ficaram sem receita,


mas seguiram tendo que pagar leasing, fornecedores, fun-
cionários. A dívida acumulada acabou enorme.”
O leasing, ou arrendamento, é o contrato de aluguel dos
aviões e um dos principais custos das aéreas. Muitas dessas
cobranças foram renegociadas para pagar depois. Outras
tantas foram roladas com novos empréstimos — todos mais
caros, conforme os juros subiam. É esse “meteoro” de contas
que começou a vencer todo de uma vez e a sugar as receitas.
A crise tomou tal proporção que virou assunto de go-
verno. Desde o ano passado, há tentativas de desenhar

6|7
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programas que baixem os preços das passagens. Nas últi-


mas semanas, frente aos problemas na Gol, as reuniões
entre o setor e o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio
Costa Filho, se intensificaram. Uma proposta na mesa é a
criação de um fundo de crédito para as aéreas de até 6 bi-
lhões de reais. Também se buscam maneiras de suavizar
os preços do querosene de aviação, um monopólio da Pe-
trobras. “Ninguém está pedindo dinheiro de graça, tudo
que o setor receber será pago de volta”, afirma Jurema
Monteiro, presidente da Associação Brasileira das Empre-
sas Aéreas.
Uma eventual quebra de uma das empresas seria um
problema maior. Com menos concorrência, as passagens
poderiam ficar ainda mais caras. É urgente sair da zona
de turbulência. ƒ

7|7
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INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO

GUERRA TOTAL Tanque israelense na Faixa de Gaza:


a crise humanitária ecoa por todos os cantos

ALTA PRESSÃO
O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, diz que
não vai parar a guerra, mas movimentações de
aliados podem forçá-lo a mudar de opinião,
sob risco de perder apoio
ERNESTO NEVES

JACK GUEZ/AFP

1|5
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P
restes a completar quatro meses desde o atentado
terrorista em que o grupo palestino Hamas matou
1 200 pessoas, sequestrou mais de 200 e defla-
grou uma fulminante reação, com bombardeios e
incursões militares diárias na Faixa de Gaza, Is-
rael, ao que tudo indica, se vê diante de um atoleiro.
Pressionado de todos os lados para suspender a mor-
tandade (27 000 até agora) e a devastação do território on-
de 2 milhões de palestinos vivem à deriva, o primeiro-mi-
nistro Benjamin Netanyahu insiste em seguir em frente,
sem parar, enquanto não aniquilar totalmente o Hamas.
Mas ele está encurralado, como mostram as movimenta-
ções dos últimos dias. “O consenso sobre a guerra está se
desgastando rapidamente”, afirma Reuven Hazan, cientis-
ta político da Universidade Hebraica, de Jerusalém.
Sob o pano de fundo das sondagens para a criação de
um Estado palestino, o diretor da CIA, William Burns, re-
uniu-se com os chefes da espionagem de Israel e Egito e
com Tamim bin Hamad al Thani, emir do Catar e media-
dor do conflito, em avançada negociação por uma trégua
de ao menos seis semanas para a troca de reféns por pri-
sioneiros palestinos e a entrada de caminhões de manti-
mentos. No cenário internacional, onde ecoam críticas à
crise humanitária em Gaza, a Corte Internacional de Jus-
tiça da ONU, deliberando sobre a denúncia de um suposto
genocídio de palestinos levantada pela África do Sul, não
ordenou um cessar-fogo, como o governo de Israel temia,

2|5
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ABIR SULTAN/EPA/EFE

SEM SAÍDA Netanyahu: postura inflexível sofre críticas


externas e internas

mas exigiu que ele tome todas as medidas para prevenir


atos genocidas e autorize a entrada de alimentos e remé-
dios (puxão de orelha de um tribunal geralmente depre-
ciado, mas que, nas circunstâncias, reverberou mundo
afora). Também foi alvo de acusações de infração de leis
internacionais a operação em que militares israelenses,
disfarçados de médicos e pacientes, invadiram um hospi-
tal na Cisjordânia e mataram três terroristas.

3|5
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Até internamente, onde a promessa de vitória total so-


bre o Hamas tinha amplo apoio, o prolongamento da
guerra causa desgastes. Mais de 300 000 cidadãos tive-
ram que deixar suas casas, sobretudo perto da fronteira
com o Líbano, alvo diário de morteiros do grupo xiita
Hezbollah, e, hospedados em hotéis, se dizem irritados
com a falta de respostas do governo. Os familiares dos
reféns, por sua vez, realizam manifestações diárias em
Tel Aviv e Jerusalém contra o que veem como incapaci-
dade de negociar do primeiro-ministro. Até o gabinete de
guerra montado por Netanyahu exibe sinais de tensão: os
dois integrantes da oposição que aceitaram participar,
generais Benny Gantz e Gadi Eisenkot (que perdeu um fi-
lho e um sobrinho nesta guerra), rejeitam a posição de
que só a pressão militar levará ao resgate dos prisioneiros
e apoiam uma saída negociada. “Netanyahu estende o
conflito como estratégia para manter seu governo, mas
enfrenta pressão crescente”, diz Mairav Zonszein, analis-
ta do International Crisis Group.
Além do aperto direto para que o governo mude o ru-
mo da guerra, vozes de todos os lados alertam para o ris-
co de o conflito se espalhar, insuflado por provocações
dos diversos grupos armados plantados no Líbano, na Sí-
ria, no Iraque e no Iêmen. Na segunda-feira 29, a Resis-
tência Islâmica no Iraque reivindicou o ataque com drone
contra uma base americana na Jordânia, colada à frontei-
ra síria, que matou três soldados, as primeiras baixas

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americanas, e feriu outros 34 (aparentemente, o artefato


foi confundido com outro que retornava à base e por isso
não houve interceptação). A explosão se soma a outros
160 atentados contra postos dos Estados Unidos no
Oriente Médio, todos impetrados por facções sustentadas
pelo Irã, e dificulta ainda mais a posição do presidente
Joe Biden, enfraquecido pelo impopular apoio a Israel em
pleno ano eleitoral.
O cessar-fogo que a Casa Branca costura prevê a devo-
lução de cerca de 130 reféns (uma centena foi libertada
em outra interrupção, de sete dias, em novembro) em tro-
ca de prisioneiros palestinos em Israel, em três fases. Na
primeira, sairiam idosos, mulheres e feridos. Na segunda,
os homens, entre eles o brasileiro Michel Nisenbaum, de
59 anos. Por fim, seriam entregues os soldados e os cor-
pos em poder do Hamas. Os ultrarradicais ministros das
Finanças, Bezalel Smotrich, e da Segurança Nacional, Ita-
mar Ben-Gvir, não aceitam outra trégua e manifestaram a
intenção de colonizar Gaza com assentamentos judeus e
expulsar milhares de palestinos para países vizinhos. Há
respingos de água fria, mas ninguém arrisca palpite sobre
como e quando — e se — a fervura vai baixar. ƒ

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INTERNACIONAL MONARQUIA

O PERDULÁRIO
Demitido, ex-funcionário de confiança de Albert,
de Mônaco, abre o livro-caixa do palácio e traz
a público as altíssimas (e secretas) despesas
do príncipe e família CAIO SAAD

NA SURDINA Albert: providências para esconder dos


súditos os gastos com a mulher, as irmãs, os filhos e a ex

VALERY HACHE/AFP

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POR MAIS de duas décadas, Claude Palmero, 67 anos,


controlou tudo que entrava e saía do caixa da Casa de Gri-
maldi, governante do rico e exclusivo principado de Mô-
naco, incrustado no sul da França. Desse camarote privi-
legiado, Palmero acompanhou de perto a ascensão ao tro-
no do filho do príncipe Rainier III e da ex-atriz americana
Grace Kelly, Albert II, playboy tão convicto que conseguiu
adiar até os 53 anos o inevitável casamento que garante a
sucessão — em 2011, subiu ao altar com a ex-campeã de
natação sul-africana Charlene Wittstock, com quem tem
um casal de gêmeos. Para surpresa geral, o todo-podero-
so administrador foi demitido no ano passado, enrolado
em acusações de corrupção. Caiu, mas caiu esperneando:
além de processar o ex-chefe em 1 milhão de euros, entre-
gou ao jornal Le Monde cinco cadernos de capa preta re-
pletos de detalhes dos gastos e intrigas do palácio, dos
quais Sua Alteza Serena (o título oficial de Albert) sai pin-
tado com as cores de gastador inveterado preocupado em
esconder do público suas altíssimas despesas. “Anotei a
grande maioria dos assuntos discutidos durante os meus
encontros com o príncipe”, diz Palmero.
Os cadernos mostram que, usando os recursos de fun-
dos em paraísos fiscais e de uma conta secreta sob as ini-
ciais AG (Albert Grimaldi), o príncipe — dono de uma for-
tuna de 1 bilhão de dólares — comprou um discreto apar-
tamento parisiense para seu uso pessoal após o casamen-
to e autorizou pagamentos de até 600 000 euros por ano

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SEBASTIEN NOGIER/EPA/EFE

DESCONTROLE Charlene, com os gêmeos:


abusando do cheque especial

para “atividades paralelas” — como pagar a polícia por


“informações úteis” e “recuperar fotos comprometedo-
ras”. Também presenteou os dois filhos fora do casamen-
to que reconheceu formalmente. Jazmin, atriz incipiente
de 31 anos, fruto de um rápido encontro com uma garço-
nete americana, recebeu depósitos trimestrais de 80 000
euros por alguns anos e um pied-à-terre de 3 milhões de
dólares em Nova York, onde mora. Alexandre, 21, fruto
de um romance com uma aeromoça franco-togolesa, ga-

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nhou igualmente mimos do pai — não só ele como a mãe,


Nicole Coste, agora designer de moda, que levou 350 000
euros para abrir uma loja em Londres.
A maior receptora dos euros secretos é, de longe, a melan-
cólica Charlene, que teria tentado fugir horas antes do casa-
mento e já passou por clínicas de repouso. Ela dispõe de um
estipêndio anual de 1,5 milhão de euros, mais do que as ir-
mãs do príncipe, Stéphanie (800 000) e Caroline (900 000),
mas vira e mexe precisa de depósitos adicionais, seja para pa-
gar a decoração do escritório (1 milhão de euros), seja para os
300 euros por dia cobrados por seu chef particular. Só eco-
nomiza mesmo em babás — quase todas filipinas em situa-
ção ilegal no país. “Essas práticas são perigosas”, adverte Pal-
mero em um caderno. A advogada Canu-Bernard afirmou,
em nota a VEJA, que seu cliente “nunca fez nada sem o co-
nhecimento daqueles que o empregavam”.
No campo das intrigas palacianas, Palermo revela, en-
tre outras coisas, que Rainier chegou a consultar advoga-
dos sobre a possibilidade de passar o trono para a filha
Caroline, que ela e a cunhada batem boca com frequência
e que Charlene não suporta nem ouvir falar da ex-aero-
moça Nicole, com quem Albert se dá bem até hoje. Porta
afora do palácio, Albert, em comunicado, afirmou que os
ataques de Palmero “mostram seu verdadeiro caráter e o
desrespeito que tem pela família e o principado”. Porta
adentro, pode-se imaginar que Suas Altezas Serenas não
estão fazendo jus ao título. ƒ

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VILMA GRYZINSKI

A SÍNDROME DO
APOCALIPSE
Clima, guerras e inteligência artificial
aumentam inseguranças

O MUNDO era para ter acabado em 21 de dezembro de


2012. Alguém ainda se lembra da profecia feita pelo calen-
dário maia? Pois os termos hoje usados para descrever ca-
tástrofes supostamente iminentes estão na boca não da tur-
ma alternativa que sinceramente acredita em profecias de
povos nativos, mas de autoridades como o secretário-geral
da ONU, o português António Guterres, cada vez mais
possuído pelos arroubos verbais. A humanidade “abriu as
portas do inferno” e assiste ao “colapso climático em tem-
po real” — essa foi uma das declarações que ele fez recen-
temente. Acusar a “humanidade” de fazer alguma besteira,
pela qual será punida das formas mais extremas, é com-
portamento recorrente. Tem até um nome, para os casos
mais exagerados: o apocalipsismo, espécie de ideologia do
fim do mundo. A ideia de que caminhamos para um fim
iminente e catastrófico bebe na fonte das três grandes reli-
giões monoteístas. Judaísmo, cristianismo e islamismo têm
suas próprias versões do final dos tempos (e os maias tam-

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bém, a cada 2,8 milhões de dias). É uma ideia anticientífi-


ca, baseada no temor da ruptura do “equilíbrio natural”:
desde o momento em que provamos do fruto proibido do
conhecimento, condenamos a nós mesmos à extinção, seja
pelo uso de combustíveis que impulsionaram a exuberân-
cia econômica sem paralelos de que nos beneficiamos hoje
(o PIB mundial passou dos 100 trilhões de dólares em
2022), seja por termos quebrado o átomo. Em 1945, foi
criado o Boletim dos Cientistas Atômicos e, em seguida, o
Relógio do Fim do Mundo. Na época, ele estava a 7 minu-
tos da meia-noite. Hoje parou em 90 segundos.
A metáfora do relógio prestes a chegar ao momento do
apocalipse tem um grande apelo popular, alimentado por
filmes e livros de ficção científica que anteciparam tudo
— pragas, invasão de alienígenas, corpos celestiais des-
truidores, explosões solares, ataques cibernéticos, confli-

“A turma das trombetas


não está sozinha —
até os relógios quebrados
estão certos duas
vezes por dia”
2|3
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tos no Oriente Médio, computadores mais inteligentes do


que nós e, inevitavelmente, a guerra nuclear, Na esteira da
pandemia, uma pesquisa mostrou que 39% dos america-
nos acreditam “vivermos o fim dos tempos”. Entre os
evangélicos, a proporção é de 63%. Felizmente, a maioria
das vertentes evangélicas tem uma cultura de esforço e
superação, não de conformismo. Pois é esse o maior peri-
go do apocalipsismo: criar medo, disseminar o derrotismo
e alimentar uma postura de que tudo está perdido. O “eco-
fatalismo” é um neologismo que descreve o desânimo dos
jovens acostumados a ouvir Greta Thunberg prognosti-
cando, literalmente, o pior dos mundos.
A perspectiva de que a Rússia saia fortalecida depois de
desfechar uma guerra criminosa contra a Ucrânia levou nas
últimas semanas autoridades militares europeias a fazer
graves avisos de que Vladimir Putin tem planos vilanescos
e a Europa inexoravelmente marcha para uma guerra (fo-
ram desmentidos por governos apavorados em tirar dos
seus espaços seguros a geração formada na universidade do
TikTok). A morte de três soldados americanos na Jordânia,
atingidos por um drone com as digitais do Irã, voltou a agi-
tar as três palavras malditas — Terceira Guerra Mundial —,
com um alto componente politiqueiro. Interessa à oposição
a Joe Biden pintar um mundo prestes a explodir por sua ina-
bilidade. Mas até os relógios quebrados estão certos duas
vezes por dia e a turma das trombetas do apocalipse não es-
tá sozinha nos seus temores. ƒ

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GENTE
VALMIR MORATELLI

DE UMA
QUADRA A OUTRA
INSTAGRAM @CLAUDIALEITTE

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INSTAGRAM @CLAUDIALEITTE
Desde 2017 vivendo em Orlando, CLAUDIA LEITTE, 43 anos, fez
por lá um show de cronometrados 7 minutos no intervalo de um
jogo da NBA (acima), a liga profissional de basquete americano. E
dá-lhe Carnaval: trajando vestido verde e amarelo repleto de pe-
nas, ela se orgulhou de ter conseguido colocar a plateia pouco
afeita ao gingado para requebrar. “Pus todo mundo para sambar
e funcionou”, conta a cantora, que se apresentou em português e
ainda empunhou no meio da quadra o estandarte do Galo da Ma-
drugada, tradicional bloco de Recife, e uma bandeira de seu esta-
do, a Bahia. Pois suas ambições na arena esportiva não terminam
por aí. Ela já planeja novos lances para depois da maratona de
trios elétricos, na qual embarca nesses dias. “Quem sabe o próxi-
mo passo não é o Super Bowl?”, diz, mirando a competição de
maior audiência da TV nos Estados Unidos, que já contou com no-
mes como Beyoncé e Rihanna. Sonhar não custa.

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EM RITMO
DE FESTA
Habituado aos suntuosos
rega-bofes que marcaram
época no período em que co-
mandava o Palácio Guanaba-
ra, SÉRGIO CABRAL cele-
brou seus 61 anos em festejo
mais modesto, na cobertura
da Lagoa onde hoje mora, na
Zona Sul carioca, ao lado de
amigos e filhos. Embalado
por drinques e espumante, o
INSTAGRAM @SERGIOCABRAL_FILHO

convescote foi coroado por


um bolo de dois andares que
atendia a dupla comemora-
ção: além do aniversário, a
ideia era lembrar que doze meses já se passaram desde que ele dei-
xou a prisão, depois de seis anos. “Foi uma noite de muito amor”, re-
sumiu o ex-governador, que, segundo gente de seu círculo próximo,
anda encantado com a cabeleireira Lilian Damiani (na foto), com
quem engatou um relacionamento em dezembro passado. Cabral
não revela o pedido que fez ao apagar as velinhas, mas deixa uma
pista no ar: ele aguarda ansiosamente uma decisão da Justiça sobre
a retirada da tornozeleira eletrônica.

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TRISTAN FEWINGS/GETTY IMAGES

NÃO DEU MATCH


A vasta experiência de SHARON STONE, 65 anos, nos aplicati-
vos de paquera expôs a atriz, sempre lembrada pela performance
em Instinto Selvagem, a experiências como nunca antes. Em suas
andanças virtuais, ela esbarrou com um ex-presidiário e depois
com um viciado em heroína, segundo contou em entrevista ao bri-
tânico The Times. O encontro com este último teve como palco um
luxuoso hotel de Los Angeles, mas encerrou-se em minutos, as-
sim que ela descobriu o enrosco em que estava se metendo. Ex-
plorando esses sites desde 2019, quando rompeu com o último
namorado, o magnata italiano Angelo Boffa, Sharon teve ainda seu
perfil temporariamente suspenso por acreditarem se tratar de
identidade falsa. Nada disso, porém, subtrai seu entusiasmo. “Es-
te é o ano em que quero me apaixonar 100%”, garante, resoluta.

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DO GABINETE AO PALCO
Há um ano no comando da pasta da Cultura, MARGARETH ME-
NEZES, 61 anos, deu uma afastada dos palcos para embalar na ro-
tina da Esplanada, em Brasília. Mais à vontade agora, porém, ela
decidiu voltar à cena e apresentou-se ao lado de Daniela Mercury
no Festival de Verão de Salvador. Não será a única vez em que tro-
cará o sóbrio tailleur pelas cores vibrantes e os holofotes. “Em
2023, só fiz cinco shows e no verão, zero. Abri mão de minha agen-
da por causa da política, mas agora resolvi dar um trato na carreira
artística, da qual eu vivo”, diz. Neste Carnaval, ela retoma o projeto
Trio da Cultura, em que canta com Chico César em homenagem a
Gilberto Gil, que, aliás, lhe serve de inspiração. Ministro da Cultura
noutros tempos, ele nunca abandonou o percurso musical.
FRED PONTES

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TAL MÃE,
TAL FILHA
A recente passagem da pequena
STORMI, 5 anos, ao lado da
mãe, KYLIE JENNER, 26, do clã
Kardashian, pela badalada Se-
mana de Moda de Paris foi am-
plamente comentada e clicada.
As duas apareceram com look
semelhante, de óculos escuros e
joias carregando no dourado.
Não foi a primeira vez em que a
menininha chamou a atenção pe-
la produção adulta e sorriu bem à
vontade para os fotógrafos, so-
bressaindo pela destreza. “Stor-
mi adora passar um batom ver-
melho de vez em quando. Con-
feccionei para ela todas as mini-
versões das peças da minha co-
leção. Gosto que esteja envolvida
em tudo o que faço”, afirma a em-
JACOPO RAULE/GETTY IMAGES

presária Kylie, alheia ao festival


de críticas nas redes que a acu-
sam de “adultização infantil”. ƒ

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GERAL SAÚDE

ELE AINDA ESTÁ


ENTRE NÓS
Quatro anos depois da eclosão, o vírus da Covid-19
deixou de ser um terror pandêmico. Mas segue
cobrando respostas e cuidados
DIOGO SPONCHIATO

INIMIGO DEBELADO SARS-CoV-2 destruído: vacinação


instrui o corpo a neutralizar o patógeno

ALLVISIONN/ISTOCK/GETTY IMAGES

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N
o princípio, era o desconhecido. Em questão de
semanas, no início de 2020, desatou-se uma cor-
rente de pânico, doença e morte que, da China,
ramificou-se pelos quatro cantos do planeta den-
tro do corpo de milhares de viajantes. Célere, a
nova peste teve a identidade revelada com os instrumentos
da genética, mas seus tentáculos já haviam se espalhado.
Em menos de um mês, de uma pneumonia obscura em
uma cidade chinesa irrompeu a emergência de saúde glo-
bal decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O leitor não só assistiu a esse filme: foi personagem e teste-
munha da história, a maior pandemia desde a Gripe Espa-
nhola (1918-1920). E então o vírus enclausurou a humani-
dade, para depois ser domado pela ciência. Eis a Covid-19,
capítulo vivo de uma saga antes só vista em livros de ter-
ror sobre o passado e ficções sombrias em torno do futuro.
Quatro anos depois do alerta máximo da OMS, os dias de
trevas, com hospitais lotados e boletins epidemiológicos
alarmantes, já se foram, felizmente. Não é o caso, contudo,
de virar a página de modo definitivo. O SARS-CoV-2 ain-
da pede atenção — e tem muito a ensinar.
Os números ajudam a entender aonde chegamos. Se, em
2021, o pior ano da pandemia no Brasil, o governo chegou
a registrar 21 000 mortes por Covid em uma semana, ago-
ra a situação é muito mais tranquila. No período de 21 a 27
de janeiro deste ano, o Ministério da Saúde elencou 38 456
notificações de novos casos da doença e confirmou 196

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óbitos decorrentes dela. Sim, as cifras despencaram, mas


— eis o ponto — ainda tem gente morrendo devido à infec-
ção pelo coronavírus e suas complicações. O saldo, desde
o início da crise no país, é de mais de 38 milhões de episó-
dios e ao menos 709 mil vítimas fatais. Não resta dúvida
que, fora o distanciamento social e as medidas de suporte
médico nos primeiros meses pandêmicos, o divisor de
águas no combate à transmissão e à mortalidade foi a vaci-
na — a taxa de letalidade, hoje, não chega a 2%.
Graças ao conhecimento científico sobre o vírus e à
imunização — que incluiu fórmulas inovadoras à base de
RNA mensageiro, trunfo celebrado com o Prêmio Nobel

CAPÍTULOS HISTÓRICOS
Linha do tempo resume alguns marcos
na luta contra a Covid-19

DEZEMBRO DE 2019
Casos de uma pneumonia grave
por um agente infeccioso desconhecido
surgiram em Wuhan, na China. No fim do
mês, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) foi oficialmente notificada.

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JANEIRO DE 2020
O código genético do patógeno
por trás da doença foi decifrado.
Havia um novo coronavírus se
espalhando pela Ásia. A OMS
declarou emergência de saúde
global no dia 31.

FEVEREIRO DE 2020
O vírus foi batizado de SARS-CoV-2,
e a doença, de Covid-19. O micróbio
se disseminou mundo afora. No dia
26, o primeiro caso confirmado no
Brasil foi anunciado.

MARÇO DE 2020
Episódios chegaram a 100 000
pelo mundo e a OMS passou a
falar em pandemia. Cenas de
horror, com hospitais lotados e
caixões nas ruas, passaram a ser
vistas na Itália e nos EUA.

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DEZEMBRO DE 2020
Após quebras sucessivas
do recorde de casos globais e
uma corrida contra o relógio,
as vacinas começaram a ser
aprovadas e aplicadas. O Reino
Unido foi pioneiro.

JANEIRO DE 2021
Mesmo com desacordos no
Ministério da Saúde, a vacina foi
aprovada no Brasil e começou a ser
aplicada em São Paulo. Ao longo dos
meses, o número de imunizantes
e o público-alvo foram ampliados.

MAIO DE 2021
A resposta catastrófica do
governo federal desde o início da
pandemia resultou em CPI. Naquele
mês, houve um triste recorde: quase
2 milhões de novos casos e mais
de 80 000 mortes.

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DEZEMBRO DE 2021
Depois da liberação da vacina da
Pfizer para maiores de 12 anos em
junho, finalmente crianças entre
5 e 11 anos foram contempladas
com a autorização da Anvisa.

MAIO DE 2022
Após alta de casos pelo mundo
devido a novas variantes, o governo
brasileiro decretou o fim do estado
de emergência nacional, mesmo com
números distantes do pleno controle.

MAIO DE 2023
A OMS encerrou o estado de
emergência global, após baixa
significativa graças à vacinação.
Até esse mês, haviam sido
765 milhões de infectados e quase
7 milhões de óbitos pelo mundo.

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—, agora é possível conviver com o patógeno sem másca-


ra e tensão nas ruas. “Estamos numa situação significati-
vamente mais controlada, resultado de uma combinação
de estratégias como programas de vacinação em larga
escala, desenvolvimento de tratamentos e uma maior
compreensão e adaptação da nossa imunidade ao vírus”,
diz o infectologista Leonardo Weissmann, do Instituto
Emílio Ribas, em São Paulo.
Sim, podemos respirar mais aliviados, desde que não ne-
gligenciemos os cuidados ou sabotemos as ações compro-
vadamente eficazes ao cerco viral, sobretudo a imunização.
A vacina contra Covid-19, cuja formulação da Pfizer está
aprovada para um público amplo, de crianças a idosos, já
faz parte do calendário oficial do Programa Nacional de
Imunizações (PNI), sendo especialmente crítica a indivídu-
os com algum fator de risco para agravamento do quadro
— pessoas acima dos 60 anos, com alguma doença crônica
ou com o sistema imunológico debilitado, por exemplo. “A
variante dominante do vírus em circulação passou por vá-
rias mutações e hoje tem uma agressividade menor, mas,
justamente por sofrer essas alterações e aparecerem novas
linhagens, o patógeno pode escapar da imunidade natural
adquirida pela infecção ou induzida pela vacina”, diz o in-
fectologista Stefan Cunha Ujvari, do Hospital Alemão
Oswaldo Cruz, na capital paulista. “Isso faz permanecer
um estado de guerra contínua com o SARS-CoV-2, tendo
de atualizar a vacina de tempos em tempos.”

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VICTOR MORIYAMA/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

VACINA PERIÓDICA No calendário oficial: imunizantes


contra a Covid deverão ser atualizados e aplicados anualmente

Talvez o cenário que melhor espelhe a atual conjuntu-


ra diante da Covid seja o da própria gripe. Mas não “gri-
pezinha”, por favor. A ofensiva alusão feita pelo ex-presi-
dente Jair Bolsonaro no auge da crise menosprezou não
apenas a pandemia e suas vítimas como a própria infec-
ção provocada pelo vírus influenza, que, sobretudo em
grupos mais vulneráveis e não vacinados, é potencialmen-
te fatal. Todo ano a OMS elenca as cepas predominantes
do patógeno da gripe para desenvolver imunizantes atua-
lizados a ser aplicados na temporada. Raciocínio seme-
lhante deve se aplicar à Covid-19, que, por ser uma molés-

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CRIS CANTÓN/MOMENT/GETTY IMAGES

VIGILÂNCIA Teste rápido: exame ajuda a amplificar


medidas de resguardo, mas falta notificação

tia viral respiratória, tende a escalar picos nos meses mais


frios. Não por acaso existem empresas tentando conceber
uma vacina única, com uma picada.
Enquanto essa solução não chega, a recomendação é
tomar as duas formulações separadamente, de acordo
com o calendário do ministério, e, no caso da Covid-19, fi-
car atento aos reforços. Isso porque os estudos de acom-
panhamento mostram que a imunidade despertada pelo
imunizante cai com o passar do tempo.
Vacina no braço anualmente é o jeito de blindar a si, a fa-
mília e a sociedade. Com a cobertura atingindo as metas —

9 | 12
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e isso se aplica a qualquer infecção —, há menos espaço para


o micróbio atacar, difundir-se e transformar-se. “A principal
preocupação permanece em torno da capacidade de o vírus
sofrer mutações que resultem em variantes mais hábeis para
escapar da imunidade”, diz Weissmann, que também é con-
sultor da Sociedade Brasileira de Infectologia. É uma ques-
tão de saúde pública — e também de acesso. “A desigualda-
de no fornecimento de vacinas e tratamentos médicos em
diferentes regiões do mundo ainda é um desafio”. Ora, se
pandemia é uma epidemia globalizada, dificilmente nos li-
vraremos dessa sombra sem uma abordagem equitativa em
nível planetário — missão complicada, mas crucial.
No dia 5 de maio de 2023, a OMS anunciou o fim do es-
tado de emergência sanitária instaurado em 31 de janeiro de
2020. Os especialistas correram para esclarecer que não
significava o encerramento da pandemia. O conceito, mais
fluido e com caráter menos oficial no meio das autoridades,
é alvo de debates entre os cientistas, mas lega a certeza de
que não podemos nos desmobilizar diante do vírus. “O rela-
xamento das medidas de prevenção e a hesitação em relação
à vacinação representam os grandes riscos, podendo com-
prometer o trabalho feito até aqui”, afirma Weissmann. “É
preocupante ver mensagens contrárias às vacinas sendo
propagadas pelas redes sociais”, diz Cunha.
O trabalho dos pesquisadores para conhecer melhor as
nuances do patógeno e criar vacinas e medicamentos ain-
da mais efetivos continua.

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Um dos campos de estudo mais efervescentes — e fasci-


nante, afeito a olhar para o futuro — é o que investiga a rela-
ção do SARS-CoV-2 com o nosso sistema imune. Uma aná-
lise realizada por pesquisadores sul-coreanos publicada na
revista Science indica que, cada vez que nos vacinamos ou
temos contato espontâneo com o vírus, nossas células de de-
fesa realmente se tornam mais preparadas para combatê-lo
— o que evitaria complicações caso se contraia a doença. Is-
so se dá especialmente pela atuação dos linfócitos T, as célu-
las imunológicas que, ao lado dos anticorpos, participam da
reação à infecção, buscando neutralizá-la. Outra questão
discutida pelos experts é a das consequências ainda vigentes
do isolamento social que se fez necessário nos meses mais
caóticos para limitar ao máximo a Covid-19 quando não
existiam vacinas disponíveis. Especula-se que, principal-
mente entre crianças, a falta de estímulo imunológico no
contato com o mundo as tenha tornado mais suscetíveis a
viroses respiratórias — o que reforça a necessidade de se
imunizar contra gripe e pneumonia, por exemplo.
Quatro longos anos depois, o mundo mudou. Em ma-
téria de Covid-19, para melhor. Os aprendizados ficam,
enquanto algumas perguntas permanecem em aberto,
aguardando uma resposta conclusiva da ciência. A socie-
dade que vivenciou esses intensos capítulos em tempo re-
al — boa parcela dela travando contato com o vírus —
tem o dever de fazer sua parte para que a história não se
repita como tragédia. ƒ

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O MAPA DA COVID LONGA


Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com base
nos dados de 1 230 pacientes, calcula que seis em cada dez
pessoas infectadas pelo coronavírus desenvolvem manifesta-
ções da Covid longa. Também conhecida como síndrome pós-
Covid, ela inclui uma porção de sintomas que se mantêm por ao
menos três meses após a fase aguda.
É como se a balbúrdia desencadeada pelo micróbio deixasse
sequelas. Os principais sintomas, numa lista que chega a cinquenta,
são fadiga, perda de memória, alterações no olfato e paladar, nevo-
eiro mental e queda de cabelo. Segundo a Fiocruz, eles tendem a
ser mais comuns e acentuados em pessoas que não se vacinaram.
Dezenas de grupos de cientistas se debruçam sobre o que
está por trás dessa extensão da doença que abala a qualidade de
vida. Um time da Unicamp descobriu, por exemplo, que, não bas-
tasse atacar diversos tecidos do corpo (não apenas as vias respi-
ratórias), o vírus pode prejudicar a mitocôndria das células, a usi-
na de energia dessas unidades do organismo. Enquanto isso,
estudiosos da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos,
observaram que fragmentos do patógeno podem desencadear
uma resposta inflamatória no intestino que comprometeria a libe-
ração de serotonina ali. Isso teria repercussões sistêmicas, inclu-
sive pela conexão do aparelho digestivo com o cérebro, e explica-
ria por que surgem sintomas como ansiedade e cansaço crônico.

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GERAL RELIGIÃO

PIX DA FÉ
Método de pagamento mais usado pelos
brasileiros facilita e impulsiona as arrecadações
nas igrejas tradicionais, mas provoca
estranhamento entre os fiéis VALÉRIA FRANÇA

FIM DA SACOLINHA Adesivos com QR codes nos


bancos: modelo é prático, mas produz incômodo

GABRIEL DE PAIVA/AGÊNCIA O GLOBO

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OFERECER contribuições às divindades esperando, em


troca, benefícios na vida terrena e espiritual é um rito reli-
gioso que data muito antes da Era Cristã. Ainda no Antigo
Egito, todos os cidadãos doavam algo para os deuses, de
acordo com suas posses: os mais ricos, ouro, e os mais po-
bres, animais ou alimentos. O processo foi documentado
em pinturas que sobreviveram à ação do tempo. Na Bí-
blia, o dízimo, ou a décima parte dos proventos de cada
família, é mencionada ainda no Gênesis, o livro das ori-
gens. Segundo as escrituras, Jacó promete uma contribui-
ção para manter Deus a seu lado e preservar sua saúde e a
de sua família. Apesar de muitos costumes terem sumido
ao longo dos séculos, o repasse dos fiéis ganhou inédito
impulso no Brasil.
As principais igrejas, de quase todos os credos (angli-
canos, protestantes, católicos e evangélicos) abraçaram o
recurso do Pix — o onipresente meio de pagamento que,
apenas em 2023, movimentou mais de 17,2 trilhões de
reais, em crescimento de 58% em relação ao ano anterior.
Por óbvio, não há estatística em torno do dízimo eletrôni-
co, segredo guardado a sete chaves, mas o uso da nova
tecnologia é evidente e palpável. Quem vai à missa com
frequência já se acostumou a ver QR codes em adesivos
colados nos bancos e nas paredes, projetados em telões ou
exibidos em transmissões feitas pelo YouTube.
A adoção do Pix faz sentido. Além de ser prático e rá-
pido, o método reduz as chances de alguém afirmar que

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não tem dinheiro em espécie para fazer sua contribuição


no momento da passagem da tradicional sacolinha. Em
outras palavras, é mais assertivo. A velha desculpa não
funciona mais.
Durante a pandemia, líderes religiosos reclamaram
que as contribuições caíram até 40%, com o fechamento
compulsório das igrejas. O Pix, portanto, se transformou
em uma ferramenta eficaz de retomada de proventos —
como, aliás, aconteceu em outros setores da sociedade.
Funciona bem, as críticas são raras, mas ao dar as mãos
para a religião é natural que brotasse algum desconforto.
“A doação por meio de Pix acaba nos distanciando um
pouco do fiel”, diz o padre católico e psicólogo Welington
Cardoso Brandão, de 57 anos, mestre em teologia moral e
autor dos livros Pastoral do Dízimo e Terapia a Serviço do
Dízimo. Antes do método de pagamento digital, a mesa da
contribuição, na porta das igrejas, funcionava como um
consultório espiritual. Ali, os fiéis se reuniam para revelar
problemas pessoais e pedir orientação. O momento de
troca, é verdade, tem se perdido. “E o mais relevante são
as pessoas”, resume Brandão, hoje vigário do dízimo de
90 paróquias da região central da cidade de São Paulo.
O estranhamento com o código é generalizado. “Quan-
do eu me ajoelho para rezar, dou de cara com o adesivo do
Pix”, diz a advogada Tereza Franceschi. “Isso me irrita.”
Ela frequenta a elegante Catedral Anglicana de São Paulo,
que mantém uma rede ativa e variada de contribuições,

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CM DIXON/HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

RITO MILENAR Oferendas no Antigo


Egito: em busca de favores divinos

abastecida por empresários e consumida pelos paroquia-


nos. São almoços, festas e bingos, além de um restauran-
te, arrendado, onde as famílias confraternizam depois da
missa. Muitos já colaboram com essas iniciativas e acham
os insistentes pedidos para doação via Pix exagerados.
Saber cobrar de forma pouco intrusiva, de fato, não é
tarefa fácil e requer prática. Em seus livros, o padre Bran-
dão ensina técnicas para a reunião e formação das equipes

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do dízimo. “Muitos não sabiam para que servia a contri-


buição, por isso organizei uma formação”, diz. Hoje, essas
equipes atuam tirando dúvidas dos fiéis sobre a contribui-
ção feita e como as doações serão usadas pela paróquia.
Afinal, além do cuidado na hora de pedir, a transpa-
rência sobre o destino do dinheiro é fundamental. No cris-
tianismo, o dízimo deixou de ser apenas uma ferramenta
de barganha para tentar obter benesses divinas e tornou-
se uma forma de participar ativamente da comunidade. O
valor arrecadado entre os fiéis é geralmente destinado a
obras sociais e ao sustento da própria paróquia, que inclui
o salário do padre e contas de água e luz. “O Pix permite
até que o fiel escolha qual projeto deseja ajudar”, diz a
pastora protestante Romi Bencke, do Conselho Nacional
de Igrejas Cristãs do Brasil. O fundamental, segundo os
especialistas, é que a doação seja feita de boa vontade. A
Bíblia deixa claro: “Cada um contribua segundo propôs
seu coração, não com tristeza, nem por constrangimento,
porque Deus ama quem dá com alegria”. ƒ

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GERAL CIDADES

QUE PREÇOS, PÁ!


A maciça chegada de imigrantes fez explodir
a procura por imóveis em Portugal, elevando
as cifras. E Lisboa passou a ocupar o pódio de
aluguel mais caro da Europa PAULA FREITAS

CONTROLE Lisboa: o governo precisou tomar medidas


para frear o afluxo de forasteiros

SEAN PAVONE/ALAMY/FOTOARENA

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COM A POPULAÇÃO caminhando sobre a inexorável tri-


lha do envelhecimento, as engrenagens da economia pro-
duzindo novas vagas e escassez local de mão de obra quali-
ficada, Portugal pôs-se a flexibilizar regras para incentivar
o afluxo de imigrantes. E eles vieram aos montes: atual-
mente são quase 800 000 residindo oficialmente no país,
segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Sem
precedentes, o número é encabeçado por brasileiros e in-
gleses, que começaram a maciçamente aportar na paisa-
ARQUIVO PESSOAL

LONGE DO CENTRO
Ao se mudar para Portugal, o carioca Ricardo
Gomes, 43 anos, logo viu que Lisboa não caberia em
seu bolso. Hoje, mora com a mulher, Elaine, e a filha
Eva nas cercanias. “Foi dureza achar casa”, diz ele

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gem na última década, atraídos pelo bom padrão dos servi-


ços a preços mais razoáveis do que no restante da Europa,
tudo sob um clima ameno e propício a uma vida rica em
cultura e adoçadas iguarias. Pois essa equação, que encan-
tou tantos forasteiros, já não é mais a mesma. Afinal, os re-
cém-chegados precisavam de um teto para morar, e a pro-
cura disparou num ritmo nem de longe acompanhado pelo
vagaroso avanço de novos imóveis, desencadeando uma
espiral de alta de preços como nunca se viu.
E eis que, em meio a cidades europeias sabidamente mui-
to caras, como Paris e Amsterdã, a capital Lisboa bateu pela
primeira vez um recorde nas cifras do aluguel: em nenhum
outro canto do Velho Continente elas estão tão salgadas —
em média, 2 500 euros mensais, o equivalente a 13 000
reais, 50% mais do que cinco anos atrás, de acordo com le-
vantamento da multinacional HousingAnywhere (veja no
quadro ao lado). Enquanto isso, as cifras dobraram para a
compra, a ponto de os lisboetas empunharem um troféu que
ninguém quer: o de vice-campeões em apartamentos e ca-
sas exorbitantes, perdendo apenas para a Cidade Luz e su-
perando Milão. Na clientela de todas as nacionalidades,
aliás, os brasileiros formam o mais expressivo contingente
dos interessados em arrematar imóveis, seguidos de chine-
ses que miram investir. “A intensa chegada de imigrantes foi
um fator decisivo para essa inacreditável inflação no setor
imobiliário português”, diz Vitor de Piere, especialista em
relações internacionais e em turismo.

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Diante dos valores ascendentes, muita gente tem caçado


oportunidades nas cercanias dos maiores centros urbanos
ou em cidades menores e mais distantes. E dá-lhe boca a bo-
ca, já que nem sempre as grandes imobiliárias conseguem
garimpar um bom custo-benefício nesse mercado em que a
quantidade de espaços disponíveis atingiu o pior nível em
quinze anos. Quando decidiu se mudar para Portugal, ambi-
cionando maior segurança, o especialista em marketing ca-
rioca Ricardo Gomes, 43 anos, iniciou seu périplo em busca

2 500
TERRINHA 2 300

CARA
Em nenhuma
outra cidade da
Europa o preço
médio do aluguel
é tão exorbitante
(em euros)

Fonte:
HousingAnywhere LISBOA AM STERD Ã
(Portugal) (Holanda)

4|7
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de um lar e logo concluiu: Lisboa não cabia em seu bolso.


Foi parar então em Almada, a 12 quilômetros do burburi-
nho da capital, onde está com a esposa, Elaine, 45, e a filha
Eva, 21. Como outros que vêm de fora, ele sentiu que isso
atrapalhava. “O fato de um amigo, antigo vizinho, ter nos in-
dicado para um aluguel ajudou muito”, conta.
Para tentar lidar com o enrosco, o governo pôs fim ao
Golden Visa, que concedia direito de residência e cidadania a
quem investisse no país, e extinguiu o programa de incentivo

1 950
1 800 1 755

U TR ECH T PARIS M UNIQUE


(Holanda) (França) (Alemanha)

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fiscal para estrangeiros. Em paralelo, passou a tesoura nos


aluguéis para turistas, impulsionados por plataformas como
o Airbnb, vetando a emissão de novas licenças e taxando as
já concedidas. A ideia é que sobrem mais metros quadrados
para residentes. Os preços, porém, continuam escalando —
em janeiro, o governo deu sinal verde para um reajuste de
6,9%, o maior em três décadas. “Esse cenário é resultado dos
estímulos ao turismo e à atração de imigrantes, políticas de
grande sucesso que, infelizmente, não vieram aliadas à cons-
trução de moradias”, explica o economista Igor Lucena, da
Associação Portuguesa de Ciência Política. Ainda nos tem-
pos da campanha, o ex-primeiro-ministro António Costa,
que renunciou há três meses por enredar-se em um caso de
corrupção, prometeu erguer quase 30 000 novos domicílios,
mas entregou apenas 7 000 — pepino que recairá sobre o co-
lo do sucessor, cujo nome será escolhido em março.
Paliativos recentes, como auxílio do governo àqueles que
ganham salários mais baixos e alívio nos impostos, não são
capazes de frear as variadas consequências dos inflados
preços imobiliários no cotidiano. Os efeitos se fazem sentir
por todos os estratos sociais, a começar pelas camadas mais
pobres — a população de rua gira agora em torno de 10 000
pessoas. Já na classe média se delineia uma visível mudança
de cunho demográfico, com filhos estendendo cada vez
mais sua estada na casa dos pais: a chamada geração cangu-
ru chegou a 70% dos jovens em 2022, segundo a OCDE, o
grupo dos países mais ricos. Um ano atrás, eram 56%.

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Um outro desdobramento do encarecimento de moradia é


visto no tamanho das famílias. “As pessoas estão pensando
duas vezes antes de ter filhos”, relata o deputado Vasco Bara-
ta, porta-voz da organização Casa para Viver, que briga por
normas que amenizem o peso do aluguel no orçamento. Não
é raro ver por lá situações como a do auxiliar administrativo
português Tomás Figueira, 25 anos, que se mudou de um
apartamento no Porto para um imóvel que exigia profundas
melhorias. “Minha sorte é que entendo disso. Trabalho justa-
mente em uma empresa especializada em reforma”, diz ele,
que observa os amigos enveredando pela mesma toada para
não drenar o salário. Mas que terrinha cara, ora pois. ƒ

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GERAL COMPORTAMENTO

SENTIDOS
PARA O FIM
Uma das experiências mais duras da vida, o luto pode
ser vivenciado e apaziguado de maneiras diversas,
como mostra um livro que reúne personalidades se
abrindo sobre o tema LIGIA MORAES
D-KEINE/E+/GETTY IMAGES

ADEUS Diálogo e apoio: recursos para lidar


com a dor em qualquer situação

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UNIVERSAL e particular. Poucos momentos e sentimentos


na vida humana guardam esse aspecto onipresente e, ao
mesmo tempo, tão individual quanto o luto. Se a morte acom-
panha nossa espécie desde o primeiro respiro na face da Ter-
ra, a tristeza de perder alguém vem em seu encalço, marcan-
do corações e culturas por meio de choros, rituais, cantos,
orações e comoções públicas e privadas. Assunto árduo por
natureza, do qual com frequência nos esquivamos, ele prota-
goniza a coletânea de textos Lutos, organizada pelas psicólo-
gas Márcia Noleto e Mariana Magalhães, que, ao reunir rela-
tos de personalidades que vivenciaram em primeira pessoa
ou muito de perto a experiência, propõe uma delicada refle-
xão sobre os tipos de luto e os meios para confortá-los.
As autoras não têm a pretensão ou a ilusão de entregar
uma “fórmula mágica” para aliviar a dor da perda. Em vez
disso, apresentam, em histórias e depoimentos emocionan-
tes, dezoito formas diferentes de luto: a morte de um amor,
de um filho, de um pai, de um bichinho de estimação... Ou
o luto por uma gestação que não vingou, por uma pessoa
que desapareceu, por um país que encarou uma tragédia
coletiva — caso do Brasil durante a pandemia de Covid-19.
Cada capítulo traz uma figura de destaque na sociedade
com esse marco em sua biografia. Somos convidados a
acompanhar Gilberto Gil, que perdeu um jovem filho em
um acidente; Lucinha Araújo, mãe do compositor Cazuza;
Monica Benicio, a viúva de Marielle Franco; Margareth
Dalcolmo, médica emblemática na luta contra o coronaví-

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rus, entre outros nomes. Em


muitas passagens, o mergu-
lho nos sentimentos de quem
escreve é tão íntimo que o lei-
tor é tomado por uma sensa-
ção de estar nadando nas pá-
ginas de um diário pessoal.
Quando não arranca lágri-
mas, a leitura certamente
aguça a empatia e conduz a
profundas meditações.
Organizadoras da obra,
Márcia e Mariana foram uni- LUTOS, de Márcia Noleto
das pelo luto da maternidade, e Mariana Magalhães
mas de modos diferentes. A (Summus Editorial;
primeira sofreu com a perda 200 páginas; 78,40 reais e
da filha de 20 anos num aci- 47 reais em e-book)
dente de helicóptero. A segun-
da, com o fato de nunca ter conseguido concretizar o so-
nho de gerar um filho. A parceria e a confidência que en-
contraram uma no colo da outra deram origem à centelha
para o livro, encorpado com seus convidados. “A esperan-
ça não vem de uma fala ou de um conselho, ela vem da ex-
periência compartilhada”, diz Márcia. É assim que o leitor
poderá encontrar e processar uma dor, ainda que antiga,
na dor do outro. “Conversar com pessoas que viveram a
mesma situação pela qual passei foi um modo potente de

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me reerguer”, diz Mariana. “No luto, você não precisa de


ninguém para te motivar. Precisa de alguém que te dê cari-
nho, que te escute.”
Em um dos relatos, Daniel Carvalho, coordenador do
projeto Luto do Homem, voltado para o acolhimento de
masculinidades enlutadas, conta como foi perder a filha,
Joana, seis dias após o nascimento — e como a morte de
uma pessoa que tem passagem tão efêmera pelo planeta cos-
tuma ser negligenciada. Para Magalhães, o luto neonatal e o
gestacional estão entre os mais menosprezados. “Enquanto
você não é mãe, enquanto não há uma criança que viva, que
tenha um nome e que cresça, é como se não houvesse a pre-
sença de uma pessoa. Portanto, esse luto não é reconhecido,
ele é invisibilizado”, descreve.
O afã de compartilhar experiências para ajudar a si e aos
outros foi o que moveu Márcia Noleto a criar, em 2015, o
Instituto Mães Semnome. O projeto carrega simbolismo
desde a sua designação: “Quando você perde os pais, fica ór-
fão; quando perde o marido, fica viúva; quando perde um fi-
lho… Não há nome no dicionário que explique essa perda”.
Assim como Márcia e Daniel, outro enlutado que decidiu lu-
tar pela causa, fomentando discussão, suporte e acolhimen-
to é Tom Almeida. O ativista por trás do projeto inFINITO
perdeu a mãe, o pai e o primo e, buscando dar sentido à sua
dor, lançou um movimento para vencer o tabu de falar de
morte e finitude. “Temos a cultura de colocar esses temas
debaixo do tapete”, afirma.

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ARQUIVO PESSOAL

“Eram muitas coisas. A perda do


futuro. Aquilo que deixava de ser
possível para ele. Todas as grandes
interrogações, todos os grandes
enigmas, o futuro interrompido para
uma pessoa de 19 anos.”
Gilberto Gil, em texto sobre a morte do filho, Pedro, em 1990

Almeida adotou como missão ressignificar o fim da vida


a partir da ampliação do repertório e da musculatura emo-
cional dos enlutados. Um processo que, com suas particula-
ridades e contextos diversos, não raro exige desvencilhar-se
de receios, constrangimentos e mesmo superstições. Como?
Por meio do diálogo. “A morte não é só um momento de dor
e sofrimento, ela também é um momento de conexão e de

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ANA BRANCO/AGÊNCIA O GLOBO

“Eu chamaria o luto da Covid-19


de luto pressentido, porque, por
mais que houvesse esforços,
que você fosse bem atendido,
existia uma chance de morrer.”
Margareth Dalcolmo, médica referência no
combate à pandemia

intimidade”, diz Almeida. “É um momento de se deixar ser


vulnerável para falar sobre o que realmente importa.”
Espírito semelhante guia o livro recém-lançado pela
Summus Editorial. Lutos não é uma enciclopédia, nem um
manual de autoajuda, muito menos uma cartilha para atra-
vessar episódios difíceis. “Desejamos que ele seja um instru-
mento para que cada um encontre o próprio antídoto, dentro

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GABRIEL DE PAIVA/AGÊNCIA O GLOBO

“Ressignifiquei a dor transformando-a


em instrumento de motivação.
Passei a girar pelo Brasil e
pelo mundo pedindo justiça para
Marielle e Anderson, e foi
o que me manteve viva.”
Monica Benicio, viúva de Marielle Franco

do seu tempo”, escrevem as autoras. “A dor não é soberana,


ela não nos engole por completo. Ela nos mastiga ao longo
dos anos, mas a digestão é da nossa responsabilidade”. Se a
morte é a única certeza que todos temos na vida, encará-la
será sempre tarefa de foro íntimo e intransferível. Contudo,
ouvir quem passou pela dura experiência da perda ou com-
partilhá-la parece ter, sim, um efeito terapêutico. ƒ

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GERAL CIÊNCIA

UMA NOVA
ESPERANÇA
Experiência bem-sucedida de fecundação in
vitro, técnica comum em humanos, é a aposta
de cientistas para salvar rara subespécie de
rinoceronte da extinção ANDRÉ SOLLITTO
TONY KARUMBA/AFP

SOLITÁRIAS As fêmeas Najin e Fatu, em reserva no Quênia:


últimos indivíduos entre os “brancos-do-norte”

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OS GUARDAS armados responsáveis por escoltar e prote-


ger dia e noite o rinoceronte Sudão, dentro de um santuário
ecológico na região central do Quênia, tratavam o imenso
animal como um “gigante gentil”. Último macho de sua es-
pécie, o rinoceronte-branco-do-norte era uma das princi-
pais atrações da reserva. Participou de campanhas publici-
tárias e tornou-se símbolo da luta contra a bestial prática de
caça ilegal que dizimou seus pares. O chifre da subespécie a
que ele pertence, estimada em 25 000 indivíduos, espalha-
dos pelo sul do Sudão, Uganda, República Democrática do
Congo e República Centro-Africana, era alvo de cobiça. O
resultado: a redução do grupo a apenas três remanescentes.
Eram Sudão, o magnífico, e as fêmeas Najin e sua filha, Fa-
tu. Com a morte natural do macho, em 2018, de causas natu-
rais, a extinção dos rinocerontes-brancos-do-norte era tida co-
mo iminente. Agora, contudo, em movimento extraordinário,
o anúncio da primeira fecundação in vitro em um rinoceronte
-branco-do-sul, espécie menos ameaçada, oferece uma nova
esperança de impedir o desaparecimento desses animais.
Um grupo de pesquisadores, liderados pelo BioRescue,
consórcio internacional de cientistas e conservacionistas,
conseguiu, com sucesso, transplantar um embrião de rino-
ceronte fecundado em laboratório no útero de uma fêmea
adulta. A prática é muito usada em humanos e em animais
domesticados, como vacas e cavalos. No caso dos rinoce-
rontes, porém, os resultados eram desconhecidos. Desde
2019, a BioRescue produziu 29 embriões de rinocerontes

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AMI VITALE

SÍMBOLO O macho Sudão, que morreu em 2018: símbolo


da luta pela preservação dos imensos bichos

-brancos-do-norte a partir de óvulos de Fatu e do esperma


preservado de Sudão e outros três machos, coletados ao lon-
go de mais de quinze anos. Os embriões estão armazenados
em Berlim, na Alemanha, e Cremona, na Itália.
Dada a raridade do grupo do norte, todo o estudo foi feito
com a turma do sul. Foram coletados óvulos de uma fêmea
que está em um zoológico na Bélgica e sêmen de um macho
alocado na Áustria. Dois embriões foram, então, transferidos
para uma outra fêmea, que vive no Quênia. Para ter certeza
de que ela estava no período fértil, outro rinoceronte macho,
castrado, foi apresentado a ela. Sensível a feromônios, o bicho
foi capaz de apontar o momento ideal do procedimento. A
implantação funcionou. Mas a gravidez, de dezesseis meses,

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OS ÚLTIMOS
REMANESCENTES
As duas fêmeas de
rinoceronte-branco-do-norte,
Najin e Fatu, vivem em
uma reserva no Quênia,
protegidas 24 horas
por dia por guardas
armados

não chegou ao fim. Tanto Curra quanto o rinoceronte macho


morreram vitimados por uma bactéria, sem nenhuma rela-
ção com o processo. A autópsia, no entanto, revelou um feto
absolutamente viável de 70 dias no útero da mãe.
O resultado foi recebido com entusiasmo, apesar do tro-
peço. Há uma nova esperança. O próximo passo, a cami-
nho do desfecho feliz, é implantar embriões dos rinoceron-
tes-brancos-do-norte, colhidos no passado, em espécimes
do sul. Tanto Najin quanto Fatu são consideradas velhas
demais para engravidar. Se bebês viáveis nascerem, serão
os primeiros da espécie a vir ao mundo desde 2000. Na se-
quência, outras fertilizações serão feitas, em longo e minu-
cioso processo. O trabalho é longo. Não há certeza de que a

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espécie vá imediatamente escapar do fim, mas receberá


uma nova chance de sobrevivência. “Será um modelo de re-
cuperação de ecossistemas”, diz Thomas Hildebrandt, líder
do grupo de estudos da BioRescue e do departamento de
manejo reprodutivo do Instituto Leibniz, na Alemanha, em
comunicado. Outra espécie, os rinocerontes de Sumatra,
hoje reduzidos a quarenta indivíduos, também podem ser
beneficiados pela técnica.
As tentativas para salvar os rinocerontes-brancos-do-
norte representam os esforços mais nobres de resgate e
preservação usando tecnologia e conhecimentos científi-
cos de ponta. Do outro lado desse espectro estão empresas
de biotecnologia que buscam recuperar espécies completa-
mente extintas, como os mamutes, de tempos ancestrais.
Essas iniciativas levantaram um ruidoso e necessário de-
bate ético sobre a viabilidade de reinserir animais extintos
em ecossistemas existentes, sem saber qual seria o impac-
to, hoje. É a ciência em movimento, na busca por enxergar
o passado da fauna, mas dedicada, sobretudo, a proteger
as espécies e subespécies que ainda estão entre nós, belas e
fascinantes como são Najin e Fatu. ƒ

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GERAL HISTÓRIA

RELÍQUIAS
CORRIQUEIRAS
Populares na Europa e nos Estados Unidos, caçadores
de tesouros amadores são responsáveis por
descobertas fundamentais, que vão parar no acervo de
reputados museus ANDRÉ SOLLITTO
DAN KITWOOD/GETTY IMAGES

RELÍQUIAS Conta de um rosário britânico, datado de 1450:


localizada por dois amigos num campo encharcado

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NO VASTO acervo do British Museum, em Londres, um


dos mais reputados museus do mundo, há um pouco de
tudo. Lá está a Pedra de Roseta, a chave que permitiu a
decodificação dos hieróglifos egípcios, em 1822. Há es-
culturas gregas, retiradas do Parthenon, um busto de
Ramsés II, faraó do Egito, uma serpente asteca e a estátua
Hoa Hakananai’a, uma das famosas peças esculpidas na
pedra encontradas na Ilha de Páscoa, também conhecidas
como moais. Mas há peças menos conhecidas, que reve-
lam capítulos interessantes da história do cotidiano. E o
mais curioso: não foram encontradas por arqueólogos ou
profissionais, mas por caçadores de tesouros amadores,
que usam detectores de metal e gastam horas vasculhan-
do as margens do Rio Tâmisa e outras localidades em
busca de vestígios da vida em outros tempos.
Dados recém-divulgados pela instituição britânica in-
dicam 53 490 achados submetidos ao escrutínio dos espe-
cialistas apenas em 2022. Do total, 1 378 atendem aos pré-
-requisitos do que o governo local considera um tesouro
— um recorde absoluto. Peças de metal pré-históricas,
moedas de ouro ou prata com mais de 300 anos de idade
ou objetos raros, pouco vistos no Reino Unido, são alguns
dos critérios. A nova leva de preciosidades inclui uma pe-
quena conta, provavelmente parte de um rosário medie-
val datado de 1450, esculpida com uma face feminina e
uma caveira, moedas centenárias e um raríssimo prende-
dor de vestido, de origem irlandesa, totalmente feito de

2|6
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PORTABLE ANTIQUITIES SCHEME/BRITISH MUSEUM

ANÁLISE Avaliação de peças do British Museum:


1,7 milhão de registros

ouro, com mais de 3 000 anos de idade. A conta foi en-


contrada absolutamente por acaso, em lance de alguma
sorte. Em depoimento ao jornal The Guardian, Jonathan
Needham e o amigo, Malcolm Baggaley, relatam que vas-
culharam um campo encharcado na região de Staffordshi-
re, na Inglaterra, sem sucesso. Foram, então, limpar as bo-
tas em um gramado próximo. E foi aí que o detector de
metais apitou, revelando o tesouro.

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MUSEU NACIONAL

POR ACASO O Meteorito do Bendegó:


obra de um pastor na Bahia, em 1784

A prática é comum na Europa e nos Estados Unidos.


Com um detector de metal, item fundamental, nas mãos,
esses amadores buscam tesouros por hobby. Em inglês há
uma expressão para a prática: mudlarking, ou seja, pro-
curar itens valiosos no meio da lama. Embora não sejam
profissionais, também estão sujeitos a regras. Na Ingla-
terra, é preciso tirar uma licença, válida por cinco anos,
emitida pela Port of London Authority, organização que

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THE TRUSTEES OF THE BRITISH MUSEUM

PRÊMIO Moedas centenárias: minúcia na


definição do que tem valor

supervisiona a navegação e as atividades no Rio Tâmisa e


em suas margens. Qualquer descoberta precisa ser repor-
tada a uma divisão do British Museum responsável por
analisar os achados com zelo inigualável. Se forem consi-
derados dignos de nota, podem ser comprados pelo Esta-
do, e o valor é dividido entre o caçador e o dono do terre-
no em que ele foi encontrado, em iguais partes. O British
Museum tem mais de 1,7 milhão de registros de itens va-

5|6
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liosos catalogados a partir de descobertas quase banais.


Há leis semelhantes em outros países, como os Estados
Unidos. Por lá, o proprietário da terra é dono de qual-
quer item que encontrar.
No Brasil, a situação é um pouco diferente. Há casos
notáveis, como o do Meteorito do Bendegó. Com mais de
cinco toneladas, é o maior já encontrado em solo brasi-
leiro. Sua descoberta aconteceu em 1784, no sertão da
Bahia, pelo menino Domingos da Motta Botelho en-
quanto pastoreava o gado. A primeira tentativa de retirá-
-lo fracassou, pois a carroça não aguentou o peso. Ele só
foi levado ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde es-
tá hoje, em 1888, a pedido do imperador dom Pedro II.
Mas a descoberta feita por acaso é muito mais comum
do que se imagina. “Na minha área de atuação, a paleon-
tologia, posso afirmar que a maior parte das descobertas
é feita por pessoas que não são paleontólogos”, afirma
Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional. Constru-
ções de rodovias, conta ele, costumam revelar vestígios
de outrora. Depois, é claro, profissionais são chamados
para avaliar o material. Para além do acaso, no entanto,
amadores não têm autorização para sair caçando tesou-
ros por aí. A legislação, aqui, é mais restrita. Por isso, é
provável que muitas preciosidades ainda continuem es-
condidas — à espera de um Indiana Jones comezinho,
alguém que nunca imaginou poder pôr as mãos em
exemplares afeitos a museus. ƒ

6|6
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GERAL TECNOLOGIA

O MUNDO
EM CASA
Jobs e a
máquina:
“Quero deixar
uma marca

BERNARD GOTFRYD PHOTOGRAPH COLLECTION/LIBRARY OF CONGRESS


no universo”

A GÊNESE DE UMA IDEIA


Os quarenta anos do lançamento do Macintosh da Apple
iluminam o nascimento de um conceito: a possibilidade de os
computadores serem acessíveis a todos FÁBIO ALTMAN

1|5
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“QUEM DIABOS é Steve Jobs?” A pergunta do diretor


de cinema Ridley Scott, que algum tempinho antes, em
1982, tinha lançado Blade Runner — O Caçador de An-
droides, deixou boquiabertos os diretores da Apple que o
procuraram para dirigir o comercial para a televisão de
um novo produto. Scott inicialmente achou que traba-
lharia para uma campanha da gravadora dos Beatles.
Aceitou a proposta, e da indagação inicial ouviu a res-
posta irônica e assertiva: “Será alguém um dia”. O anún-
cio de um minuto de duração — com orçamento de
370 000 dólares na época, o equivalente a atuais 1 mi-
lhão de dólares — foi ao ar pela primeira vez no interva-
lo do Super Bowl de 22 de janeiro de 1984, em Tampa,
na Flórida, há exatos quarenta anos. Às favas quem ga-
nhou a final do futebol americano (foi o Los Angeles
Raiders contra o Washington Redskins). As bandas que
fizeram o show do intervalo sumiram — eram grupos de
música marcial de universidades locais. Aquelas ima-
gens de Scott é que fizeram história, como panfleto inau-
gural de uma revolução.
O filmete celebrava a chegada às lojas do Macintosh,
o primeiro Mac, batizado com o nome de um tipo de ma-
çã. Baseado no romance de George Orwell, 1984 — an-
tes de a expressão “Big Brother” ser idiotizada em pro-
gramas de TV — mostrava o mundo cinzento de traba-
lhadores robotizados, forçados a acompanhar as ima-
gens de um imenso telão. A cena é interrompida pela

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REPRODUÇÃO

ESPANTO O anúncio no Super Bowl de 1984: quando o “Big


Brother” não tinha sido idiotizado por programas de televisão

chegada de uma atleta que lança um martelo na direção


do autoritário rosto, interrompendo a transmissão. Não
se vê computador algum, mas a metáfora e o conceito pa-
reciam evidentes: enquanto as outras empresas faziam
mais do mesmo, a Apple pretendia explodir o lugar-co-
mum. Dias antes, o próprio Jobs dera a deixa em uma pa-
lestra: “A IBM quer tudo e está mirando em seu último

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obstáculo para o controle do setor: a Apple. A Big Blue


dominará toda a indústria de computadores? Toda a era
da informação? George Orwell estava certo sobre
1984?”. Dois anos antes a revista Time dera o prêmio de
“pessoa do ano” para o computador pessoal — o da
IBM, movido por softwares da Microsoft de um quase
imberbe Bill Gates. E então veio o Macintosh.
Foi pioneiro no uso de uma interface gráfica amigável
e um adeus definitivo às letrinhas verdes em fundo cin-
za. O mouse passou a ser usado de modo maciço, embo-
ra parecesse então uma caixa feiosa de sabe-se lá o quê,
um queijo, talvez. O mundo começava a mudar, a cami-
nho de uma nova revolução industrial. Oferecido por
2 495 dólares (algo em torno de 7 300 dólares, agora) foi
um estrondoso sucesso na largada, com mais de 50 000
unidades vendidas em somente três meses. O entusias-
mo logo arrefeceu. No fim de 1984, a média mensal caí-
ra para 10 000 unidades. O problema: o Mac era uma
máquina ruim. A tecnologia que tornou possíveis as
imagens na tela exigia muita energia, tornando o com-
putador lento na execução de tarefas. A memória era de
ridículos 128k. Era melhor ter um PC. Mas e daí? O ras-
tilho de pólvora aceso pela equipe de Jobs não tinha
mais como ser apagado — e ele nos trouxe aos dias de
hoje, dos smartphones, tudo na palma da mão, fácil a
ponto de alimentar o vício que nos paralisa, como se
atrelados a um grande irmão.

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LISA, DE 1983
Vinha com interface gráfica, sem as
letrinhas sem graça na tela. O mouse,
feioso que só ele, mal podia ser
usado, por ausência
de programas.

SSPL/GETTY IMAGES

APPLE II, DE 1977

SSPL/GETTY IMAGES
Foi um dos primeiros a permitir a
expansão de memória. Vinha com
interface para fitas cassetes de áudio e
controlador de vídeo.

Um modo de enxergar o tamanho


do salto é ver o que a Apple tinha feito
logo antes: os trambolhudos Lisa e o Apple II (veja acima).
Um outro modo de acompanhar a evolução: saber o que vi-
ria a seguir, e basta, para isso, olhar para o lado, quatro dé-
cadas depois. O Macintosh não era espetacular do ponto
de vista técnico e tampouco representou ganhos extraordi-
nários para a Apple. É fundamental porque mostrou ser
possível ter computadores dentro de casa. Ninguém, até
aquele momento, tivera a habilidade de transpor a comple-
xidade de um laboratório para a sala de estar. Jobs, que
morreu em 2011, aos 56 anos, avisara, com arrogância e
certeza: “Quero deixar uma marca no universo”. ƒ

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GERAL MODA

SINAL VERMELHO
A cor das paixões toma conta dos desfiles, dos bailes de
gala e das premiações, imprimindo classe, empoderamento
e sensualidade por onde passa SIMONE BLANES

LADIES IN RED Margot Robbie, Kendall


Jenner e Julianne Moore (da esq. para a
dir.): o tom virou sinônimo de elegância

FOTOS PRESLEY ANN/GETTY IMAGES; INSTAGRAM @KENDALLJENNER; TRAE PATTON//CBS/GETTY IMAGES

1|5
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NADA DE FICAR corado de vergonha — porque o fluxo


sanguíneo sobe à cabeça — se não souber do poder in-
comparável do vermelho. É a cor do Cupido e do coisa-
-ruim, do amor e do ódio. Na China é sinônimo de sorte, e
as noivas vão de púrpura. Em algumas regiões da África
representa o luto. Em um dos bairros de Amsterdã, de
noite infindável, é como o sexo. O encarnado desperta a
atenção humana, seja no comando “pare!” de um semáfo-
ro (e não por acaso), seja na apreciação de obras de arte.
No Renascimento, os matizes rubros começaram a ser
usados para destacar figuras centrais como o manto de Cris-
to e as vestes da Virgem Maria, por exemplo. Em 1888, o gê-
nio holandês Vincent van Gogh (1853-1890) disse em carta
ao irmão Theo que empregara a tonalidade na pintura O Ca-
fé à Noite na Place Lamartine para expressar “as terríveis
paixões humanas”. Vinte anos depois, o francês Henri Ma-
tisse (1869-1954), enamorado pelo carmim, decidiu experi-
mentar “um certo vermelho que afeta a pressão arterial” em
obras-primas como Le Dessert: Harmonie en Rouge. Com-
partilhando desse entusiasmo, a brasileira Tarsila do Ama-
ral (1886-1973) pintou seu Autorretrato vestida, claro, de
vermelho. A arte assina embaixo: quem quer estar no centro
das atenções ou mobilizar emoções deve trajar vermelho. E,
não à toa, o universo da moda se rende, de maneira contí-
nua, à cor que é puro sangue. E lá vem ela de novo.
Nas passarelas e premiações, rouba a cena com brio.
Se 2023 foi pintado de rosa pelo fenômeno Barbie, o cli-

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ATEMPORAL O longo de Julia Roberts em Uma Linda Mulher


(acima) e o Red Valentino de Gisele Bündchen: “A última cura
para a tristeza”, disse o estilista

ma esquentou nesta temporada. Até a protagonista do fil-


me, Margot Robbie, que só desfilava por aí em cinquenta
tons de pink, se curvou ao vermelho. Foi assim que atraiu
todos os holofotes da última edição do Critics Choice
Awards, numa peça fulgurante da grife Balmain. Rivali-
dade à altura no evento só a da cantora Dua Lipa, num
FOTOS LANDMARK MEDIA/ALAMY/FOTOARENA; VICTOR VIRGILE/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

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Prada rubro. Katherine Heigl e Suki Waterhouse, grávida


de Robert Pattinson, engrossaram o coro. Na cerimônia
do Globo de Ouro, não foi diferente, e o tapete ficou ain-
da mais vermelho. Destaque absoluto para Julianne Moo-
re, num elegante modelito Bottega Veneta, seguida por
Selena Gomez, Heidi Klum e Florence Pugh. “Nessa cor
não tem como passar despercebida”, diz a consultora de
moda Manu Carvalho. “Ela traduz hoje um sentimento
de empoderamento.”
Nas redes sociais, é claro, se espraiou com velocidade.
Personalidades influentes nos domínios fashion, como
Kendall Jenner, Hailey Bieber e Jennifer Lopez, só saíram
à gala em vermelho. E, para consolidar e refinar a tendên-
cia, a coloração impera nos desfiles internacionais em fi-
gurinos de grifes do quilate de Dior, Giambattista Valli,
Alaïa, Jean Paul Gaultier e, não podia deixar de ser, Va-
lentino. O estilista italiano é considerado o grande res-
ponsável por eternizar o vestido vermelho na moda con-
temporânea ao criar, em 1959, o Red Valentino, tom bri-
lhante inspirado na energia dramática da ópera Carmen,
de Georges Bizet. Foi nessa vibração que o italiano vestiu
ícones como Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994),
Elizabeth Taylor (1932-2011), Sophia Loren e Gisele Bün-
dchen. “É a última cura para a tristeza”, declarou.
Insígnia de poder e elegância também no cinema, os
modelitos escarlates são veículos de projeção e transfor-
mação. Foi exatamente essa a briga da figurinista Marilyn

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Vance para abrilhantar a personagem de Julia Roberts


em Uma Linda Mulher, sucesso incontornável de 1990,
dentro de um longo... vermelho. “O estúdio queria um
vestido preto, mas eu sabia que precisávamos de um ver-
melho”, disse. “Filmamos com várias cores e consegui
convencer todos.” Ela não só acertou em cheio como fez
o vestido entrar para a história como um dos mais em-
blemáticos e copiados, em extraordinário salto das telas
para a dureza cinzenta do cotidiano.
Agora em 2024, o vermelho é celebrado com entu-
siasmo, e alguma pegada de provocação. Afinal, mesmo
fazendo parte do jogo racional da indústria da moda, é
aquele tom que apela para o emocional. Como bem des-
creveu a reputada jornalista de moda americana Char-
lotte Sinclair em um artigo: “Estamos conectados ao
vermelho. É a encarnação da ênfase, o alerta, o bloqueio
na estrada, o alarme, o perigo, o entusiasmo, a paixão, o
incitamento, a excitação. É a cor de reis e rainhas, guer-
ra e império, teatro e poder. É o diabo e o sangue de
Cristo (...) O impulso animal e o coração que bate, a
poeira vermelha e o núcleo de magma do planeta. É a
cor da vida e da ação”. Nesse palco iluminado, quem
quer dar as caras e mostrar a que veio só tem realmente
uma escolha na paleta. “Em caso de dúvida, vá de ver-
melho”, avisou o designer americano William Ralph
Blass (1922-2002). Como a dúvida faz parte da volúvel
alma humana, fica o conselho. ƒ

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GERAL GASTRONOMIA

EM PRATOS LIMPOS
Depois da explosão durante a pandemia, o
modelo das ghost kitchens, as cozinhas
afeitas ao delivery, perde espaço para os
restaurantes tradicionais ANDRÉ SOLLITTO

MENOS PEDIDOS Espaço compartilhado em São Paulo:


formato foi eficiente durante o susto sanitário, mas perdeu fôlego

EDILSON DANTAS/AGÊNCIA O GLOBO

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NUNCA, como no período mais fechado da pandemia, lou-


vou-se tanto uma das máximas do general e estrategista chi-
nês Sun Tzu (544 a.C.-496 a.C.), idolatrado por empreende-
dores na adaptação do universo militar para o cotidiano dos
negócios: “No meio do caos há sempre uma oportunidade”.
E na dramática barafunda da emergência sanitária, entre
tantas outras adaptações, a civilização deu um jeito de os
restaurantes chegarem em casa, dada a impossibilidade de
ir até eles. Foi um salto do sistema de delivery, que já existia,
mas parecia destinado a viver isolado em algum escaninho
de urgências. E então, com o susto da Covid-19, brotaram as
ghost kitchens ou dark kitchens, as cozinhas projetadas para
facilitar a produção de refeições afeitas à entrega.
O tal do novo normal, que de tão citado rapidamente vi-
rou coisa velha, incluía esse modelo de alimentação. Dele,
por óbvio, nunca mais escaparíamos. Só que não. O que
tendia ao lucro, sem cessar, freou de modo abrupto. O que
se mostrava viável hoje é nebuloso. E viva o velho normal.
O melhor exemplo da ascensão e queda do molde dos for-
nos e fogões preparados para o envio em domicílio é a
CloudKitchens, startup de Travis Kalanick, fundador da
Uber. Criada em 2016, ela foi comprada pelo empreendedor
em 2018, mas só ganhou tração a partir de 2020, com a
eclosão do vírus. No ano seguinte, a companhia captou 850
milhões de dólares em uma rodada de investimentos que
contou com a Microsoft. Foi depois avaliada em 15 bilhões
de dólares e inspirou outras empresas de modelo semelhan-

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MAIRA ERLICH/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

O VELHO NORMAL As casas voltam a encher: além do


convívio, a experiência é muito mais satisfatória

te. Agora, a situação é outra. No fim de 2023, a startup de-


mitiu parte da equipe e fechou alguns dos espaços — e os
que ainda existem funcionam a meia-boca.
O problema é mais vasto. A tradicional rede de fast food
americana Wendy’s, que chegou a ter unidades no Brasil,
lançou um ambicioso plano em 2021: inaugurar 700 ghost
kitchens na América do Norte e no Reino Unido. No ano
passado, decidiu interromper toda a operação. Há casos ain-
da mais dramáticos, como o da Butler Hospitality, que ope-
rava cozinhas para hotéis e encerrou as atividades de forma
silenciosa, deixando clientes e fornecedores na mão.

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No Brasil, a situação é um pouco diferente, mas não esca-


pa da decadência prematura. Em meados de dezembro, o
Tribunal de Justiça invalidou a lei municipal de São Paulo
que regulamentava as ghost kitchens. De acordo com a deci-
são, todo o processo de aprovação foi feito sem estudos téc-
nicos e urbanísticos de impacto. Em 180 dias, a Câmara dos
Vereadores rediscutirá o tema. Essas cozinhas, que no início
de 2023 representavam um terço do total de opções em apli-
cativos de delivery, foram recebidas com reclamações por
vizinhos em decorrência do barulho, da sujeira e da movi-
mentação de entregadores.
Além do desenho operacional inadequado — não há al-
moço grátis —, há outra explicação, mais prosaica, para a
perda de tração. Sem as restrições sanitárias, as pessoas pre-
ferem retomar o convívio social e sair para comer fora, sim-
ples e gostoso assim. É melhor a comida quentinha do que
fria. O recuo, depois de tão breve vida, é constatação de que
nem todas as soluções que fazem sentido na confusão resis-
tem ao mundo como ele era. Vale lembrar uma frase do chef
francês Marie-Antoine Carême (1783-1833): “Quando não
tivermos mais boa culinária no mundo, não teremos litera-
tura, nem inteligência elevada e afiada, nem reuniões ami-
gáveis, nem harmonia social”. Não mesmo. ƒ

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LUCILIA DINIZ

CRÔNICA DE
FOGO E GELO
Davos, a crise climática e motivos para ter esperança

A CADA JANEIRO, os olhos do mundo se voltam para o


vilarejo suíço de Davos, onde se reúnem nomes de peso no
Fórum Econômico Mundial. A crise climática, assunto tão
duro, ocupou lugar relevante nos painéis. Um deles, em es-
pecial, falava sobre suas implicações para a saúde e para a
alimentação. Ninguém bem informado poderia minimizar
os efeitos do aquecimento global nesses campos. Mas, para
minha surpresa, foi justamente nesse painel que pude perce-
ber o “copo meio cheio”. O que me fez pensar que um novo
olhar sempre é possível.
A cada ano, falamos em quantas frações de grau a tem-
peratura do planeta subiu. Se em termos acadêmicos faz
sentido se pautar pela escala Celsius, para muitos leigos a
informação de 1 grau ou 2 acima da média soa como a
oportunidade de curtir mais dias ensolarados de praia.
Acho oportuno que o termômetro não seja mais o único
instrumento para fazer soar o alerta. Que tal então se pas-
sarmos a falar mais de vidas afetadas, como propôs um
dos participantes da mesa?

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Todos nós somos afetados pelo aquecimento global, não


só quem tem a casa atingida por um evento climático extre-
mo. A insegurança alimentar é uma realidade, e mesmo os
que não sofrem com ela sentem seu impacto no carrinho do
supermercado. Nos países mediterrâneos, a seca atinge as
oliveiras. Em consequência, no mundo todo os preços do
azeite dispararam, já que uma única província na Espanha,
Jaén, em Andaluzia, é responsável por 20% da produção
mundial. Deste lado do oceano, um produto fundamental
para nós enfrenta problema semelhante: o café. Pouca chuva
e temperaturas extremas pressionam as lavouras e os preços.
Se azeite e café parecem secundários, pense no arroz.
Soube em Davos que o grão, principal fonte alimentar para
metade da população global, exige muita água para seu
cultivo tradicional, alagado, ainda o mais comum entre os
grandes produtores asiáticos. O método é eficaz porque

“Há um caminho
sendo traçado,
porque sem dinheiro
nenhuma inovação
ganha escala”
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“afoga” as ervas daninhas. Só que a decomposição delas li-


bera uma enorme quantidade de metano, o que torna essa
importante cultura uma das maiores emissoras desse gás
na atmosfera.
Mas, na mesma sala onde ouvi esses problemas, fui lem-
brada de como o engenho humano é capaz de correr em so-
corro da saúde global. Cruzamentos buscam criar espécies
mais resistentes, o que está acontecendo com o café. Quanto
ao arroz, novas tecnologias prometem utilizar 40% menos
água em seu cultivo, resultando em 90% menos emissões de
metano. Velhas técnicas também são recuperadas — o culti-
vo de azeitona na agricultura de sequeiro depende de menos
recursos hídricos (com o bônus de que as oliveiras são óti-
mas para sequestrar CO2). Essas ideias vêm não só das gi-
gantescas empresas agropecuárias representadas em Davos,
mas também de outras como a nossa Embrapa.
Sem dinheiro, porém, nenhuma inovação ganha escala.
De novo, senti que há um caminho sendo traçado quanto a
isso. Na Suíça, muito se falou da necessidade de investir uma
extraordinária quantidade de capital em medidas científicas
mais amplas para a saúde de um mundo em mutação. De re-
pente, em meio à paisagem alpina, me peguei repetindo os
versos de Sampa, de Caetano Veloso, o hino informal da mi-
nha cidade, que nos lembra de que a força da grana que des-
trói coisas belas é a mesma que as ergue. ƒ

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PRIMEIRA PESSOA

INSTAGRAM @CECILIAMYOUNG

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AMO SER COMPARADA


À MINHA MÃE
Filha da autora Fernanda Young, a jornalista Cecilia
Madonna Young, 23, lida com o luto em seu primeiro livro

ASSUMO, SIM, o apelido de nepo baby sem ressalvas.


Acho uma bobagem ver gente como eu que credita suas con-
quistas totalmente ao “mérito próprio”. Faz o favor, aceita
que foi sua família. Desde o começo, sem saber se me torna-
ria algo, quis deixar isso bem claro: sou filha dos roteiristas
Alexandre Machado e Fernanda Young (criadores de Os
Normais). O orgulho que tenho da minha família e escrever
meu livro, Tudo o que Posso Te Contar, me ajudaram a lidar
com o luto. Mas entrar em contato com o tema ainda é hor-
rível — e acho que sempre será. Quando estava redigindo os
diários que compõem a coletânea, definitivamente não tra-
tava o luto de modo saudável. Sentia a obrigação de ser uma
“continuação” da minha mãe, de não deixar os fãs dela sem
nada. Quando ela morreu, em agosto de 2019, eu e minha

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família recebemos tantas mensagens nas redes sociais que


minha compaixão pelas pessoas superava a que eu tinha por
mim mesma. Queria ajudar esses estranhos em vez de me
ajudar. Ao mesmo tempo, escrever o livro me forçou a focar
em mim e a viver o que considero o luto que deveria ter vivi-
do desde o começo — mesmo que não saiba até hoje qual o
jeito “correto” de senti-lo.
Ainda assim, amo ser comparada à minha mãe. Recente-
mente, visitei minha avó, que estava recebendo alguns ami-
gos, e todos me falaram: “Você está a cara da Fernanda
quando tinha sua idade!”. Carregá-la é um alívio. Até mes-
mo quando leio seus livros, sinto catarse ao me identificar
com certas partes. Eu era — e sou — parecida com ela. Se
sou como sou hoje, devo muito à música alta que meu pai to-
ca, aos filmes que eles nos forçaram a assistir e às visitas ao
set do programa Irritando Fernanda Young quando era
criança, que me maravilhavam com as câmeras, luzes e ce-
lebridades. Lembro até hoje de conhecer a Ivete Sangalo lá.
O amor à cultura pop foi minha primeira herança. Não só
nisso: meus pais foram essenciais à medida que fui com-
preendendo meus problemas. Lembro de ter 13 anos e estar
a caminho da escola quando percebi que, talvez, a dor que
sentia no peito não fosse normal, mas sintoma de ansiedade.
Três anos depois, já fazia terapia, mas tive meus primeiros
pensamentos suicidas e fui logo conversar com minha mãe,
que sempre foi transparente sobre sua própria saúde mental.
Tive muita sorte de ter alguém tão compreensiva.

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A questão mais difícil de reconhecer foi o transtorno ali-


mentar. Se você abrir o Instagram, vai encontrar 10 000 pes-
soas promovendo jejuns de doze horas. Esse tipo de conteúdo
me fez acreditar que eu estava no caminho certo, apesar das
dores de barriga e exercícios exaustivos que não me traziam
nenhum prazer. O choque de realidade veio após desenvol-
ver uma obsessão pela dupla Carpenters e descobrir que a
Karen Carpenter havia morrido de anorexia. Notei que, entre
mim e ela, não existiam muitas diferenças de rotina. O que
me ajuda é que nunca consegui esconder meus sentimentos
e, se não falo sobre eles, escancaro no meu rosto. Talvez mi-
nha falta de filtro seja até ruim. Me perguntaram outro dia se
não tenho medo de estar romantizando doenças mentais, e
levei um susto. Nunca pensei por esse lado. A meu ver, o im-
portante é falar. Com o livro, queria justamente que me co-
nhecessem, sem maiores pretensões, mas fico feliz com quem
se identifica. A primeira leitora que conversou comigo após o
lançamento foi uma amiga. Segundo ela, se tivesse lido meus
relatos quando tinha 15 anos, teria buscado tratar seu trans-
torno de modo diferente. Me debulhei em lágrimas depois
disso. Mesmo que o livro ajude apenas duas pessoas, já é o
bastante para mim. Agora, o desafio é pular para a ficção,
nas páginas e telas. Quero provocar tanto riso quanto choro,
como fazem as melhores coisas da vida. ƒ

Depoimento dado a Thiago Gelli

4|4
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CULTURA LIVROS

CRIADOR E
CRIATURAS
Hugo de Saint-
Cher: pioneiro da
criação medieval
que hoje está na
base até do

MONTAGEM COM IMAGENS DE FINE ART IMAGES/GETTY IMAGES E CORTESIA DA FRICK ART REFERENCE LIBRARY
Google e afins

O MAPA DO
CONHECIMENTO
Num mergulho fascinante pela história e cultura, o ensaísta
inglês Dennis Duncan atesta como a invenção dos índices de
livros mudou a civilização — e está na base até da era digital
AMANDA CAPUANO

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V
ocê acorda pela manhã e checa a previsão do tempo.
Ao sair para o trabalho, traça a rota até o escritório
no GPS e busca uma música para embalar o tempo
no trânsito. No almoço, a internet entrega o cardápio
dos restaurantes próximos, e uma pesquisa rápida in-
dica por onde andam os atores do filme exibido na TV. Ao fim
do dia, uma parte significativa das 24 horas foram usadas bus-
cando algo, um hábito comum atualmente, mas que tem ori-
gem bem antes da criação da internet. “Nossa capacidade de
pesquisar coisas remonta a 800 anos, com uma tecnologia in-
ventada por monges: os índices”, atesta o estudioso inglês Den-
nis Duncan, autor de Índice, Uma História do, livro que disse-
ca de forma fascinante a evolução da ferramenta desde seu
surgimento, com os manuscritos medievais, até a era digital.
Para entender como o índice se tornou um instrumento vital
para o conhecimento humano, é preciso voltar alguns séculos
no tempo: de modo genérico, a ferramenta é uma lista localiza-
da no começo ou fim dos livros que indica onde encontrar capí-
tulos, palavras e temas no manuscrito, agilizando o processo de
leitura. Seu surgimento remonta ao século XIII, época em que
pregadores e estudiosos buscavam alternativas para achar de
maneira rápida certas passagens dos livros sagrados. Surgiram,
então, os primeiros protótipos de índices, organizados por fra-
ses, palavras-chave ou temas. Nesse cenário, Hugo de Saint-
Cher (1200-1263) e Robert Grosseteste (1175-1253) se impõem
como “pais” da inovação: o primeiro, cardeal francês, promo-
veu uma inédita reorganização da Bíblia, desmembrando os ca-

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pítulos em sete parágrafos e or-


ganizando uma lista alfabética
de todas as palavras que apare-
ciam nas Escrituras. Contem-
porâneo inglês de Saint-Cher,
Grosseteste foi além e inventou
uma tábula que organizava
uma vasta gama de conheci- ÍNDICE, UMA HISTÓRIA
mentos, indo dos escritos reli- DO, de Dennis Duncan
giosos de Santo Agostinho (tradução de Flávia Costa
(354-430) aos tratados filosófi- Neves Machado; Fósforo;
cos de Aristóteles (384 a.C-322 328 páginas; 99,90 reais e
a.C). “Oitocentos anos antes de 69,90 reais em e-book)
o Google existir, esse cara
criou uma ferramenta em que você podia procurar tudo”, diz
Duncan. Dividida em 440 tópicos temáticos, começando por
Deus, a obra de Grosseteste deu origem ao que hoje chamamos
de índice remissivo de assuntos, espécie de guia de leitura en-
contrado com frequência ao final de obras de não ficção.
Criado com o objetivo de facilitar o acesso ao conhecimento,
o índice teve seu poder ampliado depois do surgimento da im-
pressão, possibilitada pela prensa de Gutenberg (1396-1468) em
1439 — o primeiro exemplar saído de seu prelo foi A Doutrina
Cristã, de Santo Agostinho, um texto de 29 páginas com um ín-
dice de sete. Junto com a popularização da ferramenta, ampliou-
se também o temor de que ela mudasse completamente a cultu-
ra da leitura, e para pior. “A preocupação era de que as pessoas

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não leriam mais livros do início ao fim, e que as obras se torna-


riam um banco de dados”, diz o autor. No livro Se um Viajante
numa Noite de Inverno (1979), o italiano Italo Calvino (1923-
1985) eleva a ideia ao extremo ao pintar o embate entre um ho-
mem que lê romances de modo tradicional e uma mulher que
“lê” as obras lançando-as no computador e recebendo de volta
uma lista de termos que resumem a história. O medo da tecnolo-
gia não se revela hoje de todo irreal: muitos livros de não ficção,
de fato, são usados agora como catálogos de dados, e o consumo
fugaz de trechos de obras na internet é comum. Apesar disso, a
leitura de verdade resiste — assim como o índice, que evoluiu ao
ponto de fazer parte da rotina diária de milhares de pessoas.
Maior exemplo desse alcance, o Google tem um índice que
agrega centenas de bilhões de páginas da web e segue a mes-
ma lógica de um livro: quando uma página é criada, surgem
centenas de entradas para as palavras presentes nela. Com is-
so, o algoritmo processa essas informações em velocidade
inalcançável pelo cérebro humano. “A primeira coisa que pre-
cisamos entender é que, quando fazemos uma pesquisa no
Google, não estamos realmente pesquisando na internet. Esta-
mos pesquisando o índice do Google na internet”, disse certa
vez Matt Cutts, engenheiro da empresa.
Outra ferramenta atual que potencializa, e muito, o poder do
índice é o comando “ctrl+f”. Atalho presente em diversos siste-
mas, a combinação de teclas permite procurar qualquer palavra
ou frase automaticamente numa obra. É quase como ter uma
chave de catalogação como a de Hugo de Saint-Cher para a Bí-

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BETTMANN/GETTY IMAGGES
ACERVO LOS ANGELES COUNTY MUSEUM OF ART

GIANNI GIANSANTI/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

SABEDORIA E TEMOR Santo Agostinho (à esq.),


Carroll (no alto) e Calvino: índice facilitou a vida,
mas foi acusado de prejudicar a leitura

blia, mas para qualquer documento on-line — e com uma con-


sulta muito mais ágil. Basta saber o que se quer encontrar.
Mesmo com o avanço na obsessão por catalogar dados e
informações, o trabalho de indexar livros muitas vezes ainda
é feito por mãos humanas ou com a supervisão delas. Ao lon-
go da história, escritores famosos se empenharam na função
nada glamourosa, entre eles Virginia Woolf (1882-1941) e
Vladimir Nabokov (1899-1977). Já Lewis Carroll (1832-1898)
foi um dos poucos a explorar a vertigem dos índices na fic-
ção: em Algumas Aventuras de Silvia e Bruno, o instrumento
serve de paródia de ações rotineiras, com entradas como
“Cama, razão para nunca ir” e “Felicidade excessiva, como
moderar”. De fato, é uma invenção de que não se pode esca-
par — e um mapa valioso do conhecimento. ƒ

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CULTURA STREAMING

CASAMENTO
EXPLOSIVO
Na série Sr. e Sra. Smith, o ator Donald Glover dá
um banho de modernidade na trama sobre um
casal de espiões que foi sucesso com Angelina
Jolie e Brad Pitt — e mostra que quer ser grande

QUÍMICA Glover e Maya Erskine, os novos protagonistas:


enredo sobre relações amorosas camuflado de espionagem

DAVID LEE/PRIME VIDEO

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QUANDO um amigo obteve os direitos sobre a trama do fil-


me Sr. e Sra. Smith, protagonizado por Angelina Jolie e Brad
Pitt em 2005, Donald Glover foi assistir ao longa de ação pe-
la primeira vez após mais de quinze anos de sua estreia nos
cinemas. Mente brilhante por trás de sucessos provocativos
como as séries Atlanta e Enxame, Glover gostou do que viu,
mas atribuiu a arrecadação de 487,3 milhões de dólares do
filme — concebido com um orçamento quatro vezes menor
— à química entre as duas beldades de Hollywood que for-
mavam uma família fora das telas. Para o artista negro, não
havia uma história consistente no enredo sobre dois agentes
secretos que se casam sem saber da verdadeira profissão um
do outro — já explorado, além de tudo, num filme dos anos
1940. Por isso, ele só embarcou em Sr. e Sra. Smith, série
que acaba de chegar ao Amazon Prime Video, ao constatar
que tinha algo a acrescentar à receita.
Glover procurou se aprofundar nas camadas do casa-
mento no centro da trama, iluminando o que é de fato inte-
ressante ali: entender como esses dois seres vão de desco-
nhecidos a amantes problemáticos de uma forma cativante,
driblando dilemas comuns das relações modernas, como a
confiança — ou a falta dela. O ator-roteirista redobrou, ain-
da, a aposta em cenas à la James Bond. Nos três primeiros
episódios, as explosões, os tiros e as lutas temperam a tensa
relação entre os agentes que aceitam trabalhar para uma
corporação secreta que os obriga a assumir a identidade de
um casal, a fim de despistar suspeitas.

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Ao refazer pela terceira vez uma história tão conhecida,


Glover busca frescor em um elemento comportamental bem
ao gosto atual: o matrimônio inter-racial. Ele próprio é
obviamente representativo nesse caso, ao emprestar sua fa-
ce ao marido John — enquanto a americana de ascendência
japonesa Maya Erskine (uma bela surpresa em cena) faz as
vezes de Jane, a esposa dura na queda.
Para Glover, enfim, Sr. e Sra. Smith não é só mais uma
produção no currículo — ou, claro, um jeito de faturar com a
nostalgia pelo filme de Pitt e Jolie. A série cumpre a função
de ampliar seus horizontes em Hollywood. Prestígio e se-
guidores ele já tem, graças ao sucesso de Atlanta. Falta sair
do nicho cult rumo à popularidade de fato. Não à toa, ele já
confessou que seu maior objetivo é fazer barulho. “Espero
que algumas pessoas pensem que é melhor que o original, e
outras achem pior”, declarou. Para o bem ou para o mal,
ninguém fica indiferente a um casamento explosivo. ƒ

Kelly Miyashiro

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CULTURA PERFIL

TRAVESSIA FAMILIAR
Como Augusto Nascimento, filho adotivo de Milton
Nascimento, se tornou guardião da carreira do cantor
— e agora se firma como empresário de outros
artistas famosos FELIPE BRANCO CRUZ
DARYAN DORNELLES

EMOÇÃO Junto com Milton Nascimento: “Augustinho, como filho


e empresário, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida”

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EM DEZEMBRO do ano passado, Augusto Kesrouani Nas-


cimento ajudou a realizar um sonho de infância do pai: co-
nhecer o ídolo Paul McCartney. Filho, empresário e único
herdeiro do cantor Milton Nascimento, ele foi responsável por
organizar o tão desejado encontro. Durante a passagem da
turnê do ex-beatle pelo país, Milton, ídolo de milhões de bra-
sileiros, se viu na posição de fã e presenteou-o com o álbum
Milton (1970) — que traz a canção Para Lennon e McCartney
no repertório. Ao se despedir, Paul surpreendeu com um co-
mentário que parafraseava a letra de um sucesso de Milton,
Canção da América: “Um amigo me ensinou que irmãos se
despedem encostando coração com coração”, disse. Admirar
os Beatles foi uma das inúmeras lições que Augusto, 30 anos,
aprendeu com o pai. Hoje, ele tem uma tatuagem no braço
com a cena do quarteto atravessando a faixa de pedestres de
Abbey Road — porém, com um “quinto beatle” compondo a
imagem. É a silhueta do paizão Milton, claro, que também
aparece no disco Encontros e Despedidas (1985).
O encontro com McCartney foi cheio de simbolismo, mas
nem de longe o desejo mais importante que Augusto reali-
zou para o pai. Milton, que nunca escondeu o sonho da pa-
ternidade, conta que o dia mais feliz da vida ocorreu em
2017, quando saiu a certidão de adoção e Augusto se tornou
oficialmente um Nascimento (documento, aliás, que o can-
tor tem emoldurado ao lado de sua cama). “Augustinho, co-
mo filho e empresário, foi a melhor coisa que aconteceu na
minha vida”, disse Milton a VEJA.

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MPL/DIVULGAÇÃO RODRIGO VILLARINHO

NA PISTA Com McCartney em BH (à esq.) e com Samuel Rosa


no estúdio: esforço para rejuvenescer a obra de seus ídolos

Augusto viu Milton pela primeira vez aos 13 anos, em


Juiz de Fora (MG). Na ocasião, o artista visitava um casal de
amigos e o menino era colega dos filhos desse casal. Na épo-
ca, ele vivia com a mãe, a paulista Sandra, de 58, e não tinha
contato com o pai biológico. Milton logo se afeiçoou pelo
garoto. “A primeira vez que tive algum esboço de uma figu-
ra paterna foi quando Milton me disse: ‘Se você fosse meu
filho e não falasse comigo, eu me mataria’”, lembra. A partir
dali, os dois se tornaram próximos. A relação se estreitou
ainda mais em 2014, quando Milton ficou internado entre a
vida e a morte em razão da diabetes e da depressão, e pediu
que Augusto ficasse a seu lado. “Na época, eu ainda estava

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na faculdade. Lembro de pegar o carro e ir ao Rio para ficar


ao lado dele. Ele olhou para mim e disse: ‘Você veio’.” Hoje,
Augusto vive com o pai no mesmo Rio, mas mantém conta-
to próximo com a mãe, que mora em Cuiabá, e também com
os avós, que vivem em Campo Grande. “Meu pai sabe mais
dos meus avós que eu. Eles se falam sempre por telefone.”
Como a adoção se deu quando Augusto já era maior de
idade, em 2017, o processo independeu de autorização da
mãe. Pela lei, a adoção nesses casos pode ser pedida à Jus-
tiça quando há concordância das duas partes e mediante
requisitos como terem relação de pai e filho, viverem na
mesma casa e não haver vínculo sexual. Na prática, Au-
gusto manteve o nome da mãe em seus documentos, mas
trocou o pai biológico por Milton — expediente que lhe
garante o direito à herança do cantor. No início do proces-
so, porém, o afeto entre ambos rendeu comentários mal-
dosos nas redes sociais, de que eles seriam na verdade na-
morados. Augusto vê os boatos com indignação. “Dia des-
ses, um cara comentou numa foto minha e do meu pai na
praia: ‘Filho? Sei…’. Respondi: ‘Filho, sim. E espera o pro-
cesso que vou mover contra você’”, desabafa.
No campo profissional, Augusto é advogado especializa-
do em direitos autorais e assumiu há alguns anos a adminis-
tração do repertório do pai. Ele percebeu que Milton, hoje
aos 81, tinha sido bastante explorado na carreira e precisava
de uma pessoa que dissesse “não” por ele. “Agora, sempre
que alguém pede algo, meu pai diz: ‘Isso é com o Augusti-

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nho’, e avaliamos. Meu pai sempre esteve focado em cantar,


e não em cuidar das finanças”, conta. Sócio na empresa Nas-
cimento Música, Augusto expandiu sua atuação para além
dos direitos autorais, tornando-se também empresário mu-
sical. “Uma profissão que jamais pensei em assumir”, diz ele.
Desde então, produziu a bem-sucedida turnê de despe-
dida de Milton, em 2022, mérito que faz questão de divi-
dir com o amigo e braço direito, Raphael Avelar, o Pulga.
Entre outras coisas, Augusto ajudou a rejuvenescer a ima-
gem do pai entre as novas gerações nas redes sociais, va-
lorizando também seu antigo grupo, o Clube da Esquina.
“Decidi mostrar como ele é: um vovozinho fofo que adora
viajar, ver novelas, falar ao telefone e ouvir Beatles”, diz.
Deu certo: o público de Milton nunca foi tão jovem e os
streamings nunca estiveram tão altos.
Agora, ele encara novos projetos, ao empresariar artis-
tas como Samuel Rosa, Maria Gadú e Simone — seguindo
a mesma linha de proximidade que tem com o pai. Na se-
mana passada, levou Simone, que considera sua segunda
mãe, para treinar jiu-jítsu. “Fico muito feliz vendo o Au-
gustinho divulgar a obra do Bituca e trabalhando comigo
para mostrar nossa música para as novas gerações”, elogia
Simone, referindo-se a Milton pelo apelido. Com Samuel
Rosa, a relação é de amizade respeitosa. “Até hoje não me
acostumei quando Samuel me liga no celular”, diz ele, en-
quanto prepara o novo show solo do ex-Skank. Com as
bênçãos do pai, Augustinho voa longe. ƒ

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CULTURA CINEMA

RESILIÊNCIA Fantasia Barrino (centro) no papel de Celie:


a redenção de uma garota oprimida

SONHO DE
LIBERDADE
Em uma nova adaptação musical, A Cor Púrpura
ganha cores vibrantes e confere um olhar
sintonizado com o mundo atual ao clássico da
literatura vertido ao cinema por Steven Spielberg
em 1985 RAQUEL CARNEIRO
WARNER BROS.

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A INDICAÇÃO

ATRIZ COADJUVANTE
DANIELLE BROOKS

A VIDA DE CELIE é do tipo que assusta. Paupérrima e


sem autonomia, a jovem negra vive sob a sombra do racis-
mo nos Estados Unidos do começo do século XX, é trata-
da como lixo pelo pai e, depois, pelo marido. Para as mu-
lheres, a liberdade após décadas do fim da escravidão era
relativa — afinal, elas continuavam serviçais, fosse na
própria casa ou como domésticas. Seu único refúgio é a ir-
mã mais nova, Nettie, um fio de alegria que, a certa altu-
ra, também lhe é tirado. À primeira vista, a sofrida Celie
não possui os atributos ou a trajetória de apelo que atrai
multidões ao cinema. Mas, desafiando as probabilidades,
foi o que ela fez: a garota é personagem central do filme A

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Cor Púrpura (The Color Purple; Estados Unidos; 2023),


que chega aos cinemas na quinta-feira 8. A produção, ago-
ra um musical, reforça a popularidade frutífera do livro
da americana Alice Walker, lançado em 1982 e premiado
com um Pulitzer — obra que ganhou uma adaptação no
cinema em 1985, dirigida por Steven Spielberg, além de
um premiado espetáculo na Broadway.
Levar a trama novamente à tela era uma missão capcio-
sa que o cineasta ganense Blitz Bazawule assumiu, seguro
de que poderia contribuir com um novo olhar — e foi o que
ele fez. “Existe uma ideia comum de que pessoas lidando
com traumas são dóceis e esperam um salvador. Mas não
acredito nisso”, disse o diretor a VEJA. “Gente como a Celie
está em busca de uma saída, elas não são passivas.”
A sacada veio quando Bazawule, que ganhou projeção
como um dos diretores de Black Is King, álbum visual de
Beyoncé, voltou ao texto original. O livro epistolar come-
ça com Celie escrevendo cartas para Deus — logo, havia
nela não só esperança como imaginação e criatividade. A
versão de Spielberg se mantém como uma adaptação bela
e acachapante, mas carrega críticas que trafegam por
campos sutis da representatividade: para além do olhar de
piedade no retrato de Celie, vivida então por Whoopi
Goldberg, o diretor amenizou as cenas de romance lésbi-
co entre a protagonista e Shug Avery (Margaret Avery),
uma cantora livre e desinibida. Bazawule entende as es-
colhas de Spielberg, agora produtor do musical: “Era um

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filme dos anos 1980 adaptado para aquela época. Talvez


daqui a quarenta anos uma diretora negra e gay faça outra
versão ainda mais pessoal que a minha”.
Quem assume com brilho o lugar que foi de Whoopi é
a atriz e cantora Fantasia Barrino — que já havia desem-
penhado o mesmo papel na Broadway. Ela divide o pro-
tagonismo com Taraji P. Henson, na pele da exuberante
Shug, e com Danielle Brooks — que concorre ao Oscar de
atriz coadjuvante ao dar vida a Sofia, amiga desbocada
de Celie (no filme anterior, a personagem foi vivida por
Oprah Winfrey, agora também produtora do musical).
Por quase quatro décadas, elas passam por altos e baixos
até alcançar a redenção. O trio espelha características da
escritora do livro: hoje aos 79, Alice Walker é uma inte-
lectual respeitada, assumidamente bissexual e que saiu
da miséria para enfrentar uma sociedade que a repelia.
Walker já citou Harriet Tubman, ex-escrava que se tor-
nou abolicionista, como exemplo: “É crucial que as mu-
lheres negras se apeguem à tradição dela. Você se liberta
e retorna para libertar outras”. O sonho de liberdade, en-
fim, se revela possível. ƒ

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WALCYR CARRASCO

O DRAMA
DAS GAFES
Das piadas aos papéis de gênero,
hoje ficou fácil dar vexame

OUTRO DIA estava em um grupo de amigos. Uma lésbica


contava, dramática, seu rompimento com outra mulher, mos-
trando até a foto de seu grande amor. Realmente bonita, à bei-
ra de uma piscina. Um rapaz comentou “nossa, é linda, até pa-
rece mulher”. Foi o caos. Ele já tentou explicar mil vezes que
só queria elogiar, se expressou mal etc. etc. Ela foi embora e
nem apareceu no encontro seguinte do grupo. Foi uma gafe
tenebrosa — e preconceituosa. Não existe como sair dessa,
embora ele jure que não queria dizer o que disse.
Há gafes de todos os tipos — como a da atriz que postou
uma foto abraçada, segundo disse, com uma autora. Era
uma arquiteta parecida com a outra. A gafe viralizou, todo
mundo falava no assunto. A atriz, em vez de sofrer, agiu
com humor, e no final o episódio ficou por isso mesmo. Eu
mesmo já cometi gafes pavorosas. A pior delas foi há anos
na Hungria. Fui assistir a uma ópera. No meu camarote,
duas chinesas, uma mais velha e outra, jovem. Acenamos
com a cabeça. No intervalo, fui conduzido por um funcio-

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nário do teatro até o saguão. Transformado em um restau-


rante temporário, estava forrado de mesas, todas com pra-
tinhos. Sentaram-me a uma delas, com três pratinhos onde
eram oferecidas deliciosas porções de salmão. Comi uma,
enquanto o restante do público degustava as suas. Mas
ninguém vinha sentar-se à minha mesa, comer os outros
pratinhos. O cérebro é uma máquina perigosa. Arruma ar-
gumentos quando a gente quer fazer alguma coisa que não
deve. Concluí que aquele salmão não tinha dono. E mandei
ver nos pratinhos restantes. Nesse momento, as duas chi-
nesas sentaram-se à minha mesa. Observaram os prati-
nhos vazios. Eu queria entrar embaixo da mesinha. Fica-
mos em um silêncio ensurdecedor. Não é todo dia que a
gente ataca o salmão alheio. Mas não acabou aí. No dia se-
guinte, no café da manhã, quando eu atacava queijos, pães
e geleias, as chinesas entraram no salão. Estavam no mes-

“Chamar uma mulher trans


pelo masculino é praticamente
crime. De fato, é ofensivo.
É difícil viver com tantos
certos e errados”
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mo hotel. Nos olhamos. Mais uma vez, o constrangimento.


Então sorri, e elas sorriram de volta. A única forma de se
livrar de uma gafe, penso eu, é sorrir.
Vivemos em um tempo propício para gafes. Chamar
uma mulher trans pelo masculino é praticamente um cri-
me. De fato, é ofensivo. Mas muita gente ainda está se
acostumando com os gêneros, os papéis sexuais. É preci-
so dar um desconto para quem tem boa vontade, mas co-
mete as gafes. Tornou-se muito difícil viver em um uni-
verso com tantos certos e errados.
Eu tento acertar, mas nem sempre consigo, digo o que
não devia dizer. Mesmo piadas podem ser gafes horríveis
— como brincar com o peso de alguém. E vamos falar a
verdade: ninguém se encontra com alguém para ser escu-
lhambado. O limite entre a gafe e a piada pode ser quase
invisível. Mas usar a roupa errada, fazer um comentário
inadequado, acho que faz parte da vida de todo mundo.
Eu mesmo cumprimentei várias vezes um grande escri-
tor. Sentia que ele não reagia a meus elogios. Mas julgava
que era timidez, então elogiava com mais veemência. Até
que um amigo, vendo a cena, me explicou que aquele era
o primo do escritor. Tinha o mesmo sobrenome, mas não
a fama. Calei-me desde então.
Sei que cometerei muitas outras gafes ao longo da vida.
Posso lutar contra essa minha tendência, mas é inevitável.
Só espero não ofender ninguém. Porque se a gafe, ao con-
trário, for comigo, vou ser o primeiro a me divertir. ƒ

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CULTURA VEJA RECOMENDA

AÇÃO E HUMOR
Dua Lipa e Henry
Cavill em Argylle:
PETER MOUNTAIN/UNIVERSAL PICTURES

espiões da ficção
que se revelam
muito reais

CINEMA
ARGYLLE — O SUPERESPIÃO
(Estados Unidos/Reino Unido, 2024. Em cartaz)
Alto e marombado, o espião Argylle (Henry Cavill) invade um
salão no litoral grego para dançar com a femme fatale Lagran-
ge (a cantora pop Dua Lipa), que então exibe suas intenções ma-
léficas e parte em fuga. Esse típico pastiche de 007, porém, logo
revela sua origem: a imaginação da escritora Elly Conway
(Bryce Dallas Howard), autora da saga best-seller protagoniza-
da pelo agente. Pacata, ela passa os dias à frente do computador
e ao lado de seu gato de estimação, sem saber que suas histórias
são reais e premonitórias. Quando criminosos de carne e osso
passam a persegui-la por tal razão, ela deve aceitar a natureza
peculiar de sua ficção para sobreviver. Cheio de energia e hu-
mor, o longa diverte com sua inversão da típica trama de espio-
nagem e a impressionante coreografia das cenas de luta.

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TELEVISÃO
BABY BANDITO (disponível na Netflix)
Universitário e filho de um presidiário, Kevin (Nicolás Con-
treras) sonha em trabalhar na Europa para sustentar a mãe e
a avó. Quando o jovem depara com o plano de uma quadri-
lha para roubar uma carga milionária no aeroporto de San-
tiago, ele decide enveredar pelo crime: monta seu próprio
grupo para executar a ideia, entrando em conflito com os
mafiosos. Baseada na história real do caso tido como o “rou-
bo do século” no Chile — e com ares da espanhola La Casa
de Papel —, a minissérie narra como o criminoso apelidado
de Baby Bandito saqueou 8 milhões de dólares e as conse-
quências do crime em sua vida e na de todos à sua volta.
PEDRO ROJAS/NETFLIX

CASO REAL Os criminosos da série Baby Bandito:


“roubo do século” no Chile

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DISCO
WALL OF EYES,
de The Smile (disponível nas plataformas de streaming)
Formado em 2020, em plena pandemia, por dois
ex-integrantes do Radiohead, Thom Yorke (vocal,
guitarra e baixo) e Jonny Greenwood (guitarra e
baixo), juntamente com Tom Skinner (baterista), o
The Smile chega ao seu segundo álbum com can-
ções minimalistas que seguem a fórmula de suces-
so do Radiohead — porém, com um pouco mais de
experimentação. A faixa-título tem batida que
lembra bossa nova. Já Read the Room busca refe-
rências no pós-punk, enquanto Bending Hectic
traz elementos de jazz. ƒ

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CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 é assim que aCaba
Colleen Hoover [2 | 124#] GALERA RECORD

2 a biblioteCa Da meia-noite
Matt Haig [1 | 72#] BERTRAND BRASIL

3 os sete maRiDos De eVelYn Hugo


Taylor Jenkins Reid [0 | 107#] PARALELA

4 imPeRfeitos
Christina Lauren [0 | 16#] FARO EDITORIAL

5 tuDo é Rio
Carla Madeira [3 | 70#] RECORD

6 a ReVolução Dos biCHos


George Orwell [8 | 241#] VÁRIAS EDITORAS

7 é assim que Começa


Colleen Hoover [5 | 62] GALERA RECORD

8 toDas as suas imPeRfeições


Colleen Hoover [0 | 82#] GALERA RECORD

9 VeRitY
Colleen Hoover [4 | 87#] GALERA RECORD

10 onDe estão as floRes?


Ilko Minev [6 | 29#] BUZZ

4|8
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NÃO FICÇÃO
1 nação DoPamina
Anna Lembke [1 | 28#] VESTÍGIO

2 quaRto De DesPeJo — DiáRio De uma faVelaDa


Carolina Maria de Jesus [4 | 61#] ÁTICA

3 Pequeno manual antiRRaCista


Djamila Ribeiro [8 | 130#] COMPANHIA DAS LETRAS

4 o PRínCiPe
Nicolau Maquiavel [7 | 31#] VÁRIAS EDITORAS

5 saPiens: uma bReVe HistóRia Da HumaniDaDe


Yuval Noah Harari [5 | 355#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

6 boX biblioteCa estoiCa: gRanDes mestRes


Vários autores [2 | 26#] CAMELOT EDITORA

7 em busCa De mim
Viola Davis [6 | 65#] BEST SELLER

8 o Rei Dos DiViDenDos


Luiz Barsi Filho [0 | 15#] SEXTANTE

9 selton mello: eu me lembRo


Selton Mello [0 | 2#] JAMBO

10 a ViDa não é útil


Ailton Krenak [9 | 6#] COMPANHIA DAS LETRAS

5|8
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AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Júnior Rostirola [1 | 6#] VÉLOS

2 Hábitos atômiCos
James Clear [6 | 34#] ALTA BOOKS

3 o Homem mais RiCo Da babilônia


George S. Clason [4 | 153#] HARPERCOLLINS BRASIL

4 mais esPeRto que o Diabo


Napoleon Hill [0 | 236#] CITADEL

5 os segReDos Da mente milionáRia


T. Harv Eker [3 | 447#] SEXTANTE

6 Como fazeR amigos & influenCiaR Pessoas


Dale Carnegie [5 | 115#] SEXTANTE

7 a PsiCologia finanCeiRa
Morgan Housel [8 | 22#] HARPERCOLLINS BRASIL

8 essenCialismo
Greg Mckeown [9 | 29#] SEXTANTE/GMT

9 naDa PoDe me feRiR


David Goggins [0 | 5#] SEXTANTE

10 as 48 leis Do PoDeR
Robert Greene [10 | 11#] ROCCO

6|8
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INFANTOJUVENIL
1 o Pequeno PRínCiPe
Antoine de Saint-Exupéry [1 | 403#] VÁRIAS EDITORAS

2 o laDRão De Raios
Rick Riordan [0 | 41#] INTRÍNSECA

3 malala — a menina que queRia iR PaRa a esCola


Adriana Carranca [2 | 33#] COMPANHIA DAS LETRINHAS

4 melHoR Do que nos filmes


Lynn Painter [4 | 6#] INTRÍNSECA

5 a DRoga Da obeDiênCia
Pedro Bandeira [5 | 7#] MODERNA

6 eXtRaoRDináRio
R.J. Palacio [9 | 125#] INTRÍNSECA

7 HaRRY PotteR e a PeDRa filosofal


J.K. Rowling [7 | 412#] ROCCO

8 o menino Do DeDo VeRDe


Maurice Druon [0 | 1] JOSÉ OLYMPIO

9 DiáRio De PilaR na amazônia


Flávia Lins e Silva [8 | 3] PEQUENA ZAHAR

10 o beiJo Da neVe
Babi A. Sette [0 | 1] VERUS

7|8
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[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo,
Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau:
Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha:
Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas: Disal, Leitura, Livraria da Vila, Loyola, Senhor
Livreiro, Vozes, Campo Grande: Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim, Campos dos
Goytacazes: Leitura, Canoas: Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru: Leitura,
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JOSÉ CASADO

EM SILÊNCIO
BRASÍLIA “guarda silêncio” sobre uma tragédia ambiental
amazônica: a contaminação do Rio Tapajós pelo mercúrio
usado no garimpo ilegal de ouro no sudoeste do Pará. A ad-
vertência é da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
tribunal autônomo dos países associados à Organização dos
Estados Americanos (OEA).
O envenenamento por mercúrio já representa ameaça existen-
cial à tribo dos mundurucus, alerta a Corte Interamericana em
documento enviado ao governo e ao Supremo Tribunal Federal.
São 12 000 indígenas espalhados por três dezenas de aldeias às
margens do Tapajós, distantes quase 2 000 quilômetros de Belém.
O tribunal exemplifica com estudos clínicos e laboratoriais
conduzidos pelo neurocirurgião Erik Leonardo Jennings Si-
mões. É um pesquisador reconhecido, típico médico da flores-
ta baseado em Santarém (PA), onde sua família aportou por
volta de 1867, em fuga da guerra civil nos Estados Unidos. Ele
constatou que 99,09% dos mundurucus apresentam taxas de
contaminação sanguínea muito superiores ao nível máximo
admitido pela Organização Mundial da Saúde. A média en-
contrada foi de 67,2 microgramas de mercúrio por litro de san-
gue, quase sete vezes acima do padrão de tolerância da OMS.

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Mais de 72% dos indígenas examinados já são portadores


de sintoma físico sistêmico. Desses, 87,5% são de origem neu-
rológica. Equipe da Corte Interamericana enviada à região, em
outubro do ano passado, recebeu informações sobre recorde
de pedidos de cadeiras de roda no posto de saúde local, a
maioria “para crianças nascidas com má-formação cerebral”.
O Tapajós serpenteia pelo Mato Grosso e o sudoeste do
Pará antes de desaguar no Rio Amazonas, na altura de San-
tarém, a 700 quilômetros de Belém. As aldeias mundurucus,
dizem geólogos, estão assentadas em terras com ocorrência
de ouro até 1 quilômetro de profundidade, produto de erup-
ções de antigos vulcões, hoje inativos.
Como o preço do metal no mercado mundial dobrou na
última década, o garimpo ilegal multiplicou-se em toda a
Amazônia, com uso excessivo de mercúrio para separar o mi-
nério de sedimentos. A exploração ainda é caracterizada co-
mo artesanal na legislação, datada dos anos 60, porém, é con-
duzida por empresas irregulares, com capital suficiente para
adquirir aviões (2 milhões de reais), equipamentos pesados
como retroescavadeiras (600 000 reais) e ainda bancar os
custos operacionais na lavra.
Em 2019, foram apresentadas na Câmara dos Deputados
estimativas de lucro em torno de 1 bilhão de dólares (5 bilhões
de reais) por ano na produção e comércio ilegal de ouro na
Amazônia. Esse valor parece subestimado, devido à clandesti-
nidade dos negócios. Num exemplo do ano seguinte, a coope-
rativa de garimpeiros do Tapajós movimentou 543,5 milhões

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“Governo emudece
com as tragédias
do garimpo ilegal
na Amazônia”
de reais na compra de ouro. Repassou uma parte a outra em-
presa, Penna e Mello (Pemex), para exportação com base em
“escriturações fraudulentas”. No espaço de quinze meses, até
2021, a Pemex movimentou 693,3 milhões de reais somente na
exportação de 2,3 toneladas de ouro “de origem suspeita”, co-
mo anotou em processo o juiz Gilson Vieira Filho, de Belém.
A leniência interessada do governo Jair Bolsonaro resul-
tou no avanço das atividades ilícitas de garimpeiros, madei-
reiros e grileiros nas terras dos mundurucus, no Pará, e dos
ianomâmis, em Roraima.
Um ano atrás, Lula foi a Roraima ver a tragédia humanitá-
ria provocada pela invasão no pedaço da Amazônia ocupado
pelos ianomâmis, que tem o tamanho de Pernambuco. Discur-
sou anunciando medidas paliativas, mas promissoras em saú-
de e segurança. O governo, no entanto, embaraçou-se numa
teia burocrática, entre “gabinetes interministeriais”, “comitês
de crise” e “salas de situação” com dezoito órgãos federais e
233 planos “emergenciais” e “estruturantes”.

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O governo segue patinando, enquanto a mineração ilegal


avança, contaminando os rios da região, que abastecem de água
a capital Boa Vista. A devastação na comunidade ianomâmi
continua, retratada na desnutrição em quase 80% dos registros
sanitários e nos casos de malária entre sete de cada dez indíge-
nas — foram 45 mortes no ano passado, mais da metade crian-
ças. Há, também, aumento de conflitos tribais pelo não reconhe-
cimento de filhos de mulheres ianomâmis com garimpeiros.
A Corte Interamericana deu prazo de três meses para o
governo brasileiro apresentar um plano “com medidas con-
cretas” para resguardar indígenas ameaçados na Amazônia.
Lula precisa correr, se não quiser se arriscar a ser protago-
nista de um fiasco político em Belém, na Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, em
novembro do ano que vem. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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