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ISSN 2675-2689 (Impresso)

ISSN 2675-3189 (Online)


BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ANO 3, Nº 09

JUNHO DE 2020

Elas no Front com Fernanda Artigo por Eduardo Gallardo: Artigo por Lívia Vaz:
Morais: Videoconferência, El juez de garantía y el O Direito e a Síndrome
imediação, olfato e debido proceso en el do Sangue Azul P.11
direitos humanos P.07 estado democrático de
derecho P.9
Mútiplos Olhares com
Rafson Ximenes P.37
Pesquisa: Daniel Fonseca (Coordenador-Chefe)
e Camila Hernandes (Coordenadora Adjunta)
Direito e Tecnologia: Thiago Vieira (Coordena-
dor-Chefe)
Diálogos: Renato Schindler (Coordenador-Chefe)
Diretoria Executiva Cursos: Thiago Vieira (Coordenador-Chefe),
Gustavo Brito e Brenno Cavalcanti Araújo
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Brandão (Coordenadores Adjuntos)
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Convênio e Relações Institucionais: Fernanda
Diretor Secretário: Lucas Carapiá
Ravazzano (Coordenadora-Chefe)
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Machado, Reinaldo Santana e Liz Rocha
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Conselho Consultivo do II Seminário Regional do IBADPP: Sanzio
Rômulo Moreira, Elmir Duclerc, Marina Cerqueira Peixoto e Nathiele Pereira Ribeiro
Coordenadores (as) de Departameto Grupo de Estudo Feminismos e Processo
Biblioteca: Débora Pereira (Coordenadora-Chefe) Penal: Charlene da Silva Borges
Publicações: Carolina Peixoto (Coordenadora- (Coordenadora-Chefe) e Lorena Machado
Chefe), Gabriela Andrade, Fernanda Nunes Nascimento (Coordenadora-Adjunta)
Morais da Silva, Brenno Cavalcanti Araújo Observatório Raça, Gênero e Classe: Ana
Brandão, Jonata Wiliam Sousa da Silva e Luiza Teixeira Nazário, Charlene Borges e Saulo
Amanda Wolak (Coordenadores Adjuntos) Mattos

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fessor e/ou possuir artigo científico publicado na área das ciências criminais. Participe: http://www.
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O Instituto Baiano de Direito Processual Penal é uma associação civil sem fins econômicos que tem
entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias funda-
mentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate científico sobre o
Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, seminários, etc., que tenham o
fenômeno criminal como tema básico.

BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL, ANO 3 - N.º 9,


JUNHO/2020, ISSN: 2675-2689 (IMPRESSO)/ ISSN 2675-3189 (ONLINE)

EXPEDIENTE
Conselho editorial Colaborações
Ana Cláudia Pinho, Elmir Duclerc Túlio Carapiá (ilustração do selo Trincheira
e Vinícius Romão Democrática)
Comitê editorial
Avenida Tancredo Neves, n. 620, Caminho
Lucas Carapiá, Carolina Peixoto,
das Árvores, CEP 41.820-020, Condominio
Gabriela Andrade, Fernanda
Mundo Plaza, Torre Empresarial, 5º andar,
Nunes Morais da Silva, Brenno
sala 510, Salvador - Bahia
Cavalcanti Araújo Brandão Jonata
Periodicidade: Bimestral
Wiliam Sousa da Silva e Amanda
Impressão: Impactgraf
Wolak
Edição
Luara Lemos CONTATO
Projeto Gráfico e Diagramação
Bianca Vatiele Ribeiro http://www.ibadpp.com.br/
Créditos
publicacoes@ibadpp.com.br
Alguns dos recursos gráficos utili-
zados pertencem ao Freepik.com @ibadpp

O IBADPP agradece a todos que colaboraram para esta edição do boletim, em especial aos
chargistas André Dahmer e Gilmar, que, gentilmente, cederam suas artes para esta publi-
cação.
Editorial
O autoritarismo não fica em quarentena
No contexto da atual pandemia que, como con- quentemente marcados por um tom religioso, mes-
dição de sobrevivência, impõe quarentena no mun- siânico.
do todo, apesar e para além de qualquer governo, se Vivemos um retorno aos nacionalismos para
potencializa a necessidade de refletir. Refletir e fazer lidar com problemas que há muito já alcançaram es-
refletir, como etapa necessária ao melhor agir, sobre cala global. Yuval Harari (2018), por exemplo, diante
posturas e propósitos. Sobre a vida. A crueldade não da combinação da tecnologia da informação com a
entra em quarentena, mas, ao contrário, tem se agu- biotecnologia, alerta que já há ambiente propício à
dizado nesses tempos, ora de modo escamoteado, criação de ditaduras baseadas em tecnologias digi-
ora por canalhices escancaradas. Posturas de nega- tais de vigilância, que seguem a todos o tempo todo.
ção da realidade trágica e de normalização do absur- Seria uma espécie de evolução digital do panóptico
do, que se tornaram cotidianas, muitas vezes buscam pensado por Bentham e difundido por Foucault. As
esconder propósitos eugênicos e anseios abjetos do questões do clima, dos refugiados, das doenças, dos
mercado, em detrimento da vida. Pior ainda é que o preconceitos, dentre outras, não se limitam a fron-
ciclo de incertezas e angústias se amplia com a crise teiras nacionais. É certo que os nacionalismos não
do coronavírus, dando azo a soluções e personagens são ferramenta adequada para lidar com muitos dos
salvacionistas que sustentam bandeiras de proteção principais problemas contemporâneos que, por seu
coletiva e nacionalismos desvirtuados. Esse “filme” já turno, possuem dimensões globais. Mas os discursos
foi exibido, inclusive no cinema quando, sob direção nacionalistas são populistas e populares, e persistem.
de Ingmar Bergman, o “ovo da serpente”, que sai da Qual o real propósito?
boca de Brutus pelas mãos de Shakespeare, se torna Em uma fala convertida em texto escrito, de-
o símbolo de um alerta que deveria ter sido capaz de nominado “educação após Auschwitz”1, Theodor
tatuar a alma de todos/as nós. Adorno aponta para os riscos de um “nacionalismo
Nesses tempos em que estamos metidos, aliás, ressurgente”. Tão perigoso, justamente porque em
de enorme transição, quase nenhum dos paradig- “época de comunicações internacionais e de blocos
mas conhecidos resolve os nossos principais pro- supranacionais, já não é mais tão convicto, obrigan-
blemas. As crises são de todas as ordens, embora a do-se ao exagero desmesurado para convencer a si
econômica – a que ocorreu faz pouco e a que se avi- e aos outros de que ainda tem substância.” O que a
zinha – seja grande reveladora das desigualdades e pandemia do coronavírus tem revelado é, em grande
maior fertilizante para o terreno onde crescem po- proporção, discursos autoritários que flertam com
pulismos. Num falso paradoxo, a concepção de Es- a eugenia, na medida em que admitem a morte de
tado-Nação – só para citar um exemplo – , que já se pessoas idosas e com problemas de saúde diversos
revelava insuficiente diante dos processos de globa- como mero “efeito colateral”. Nesse mesmo sentido,
lização, voltou com toda a força, mesmo no momen- aliás, buscando prevenir a ascensão política de no-
to em que a dimensão global dos problemas é mais vas personalidades autoritárias, Adorno avisava que
evidente do que nunca. Alguns, de acordo com suas “amanhã” a barbárie poderia ser direcionada a outro
distintas personalidades e referências, recorrem grupo, “a exemplo dos idosos, que escaparam por
a antigas soluções, mesmo que muitas delas sejam pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou sim-
historicamente catastróficas e desumanas. Muitos plesmente alguns grupos divergentes”.
agem pela pretensa proteção do grupo, pela sen- A democracia, como um processo de constru-
sação de segurança do conhecido frente à angústia ção perene, precisa desenvolver mecanismos para
criada pela incerteza do que virá. Assim, como numa evitar a escalada autoritária. O pensamento demo-
armadilha provocada pela falta de esclarecimento, crático deve viabilizar o rompimento com as estra-
incrementam-se caminhos hegemônicos e de viés tégias de dominação absolutista. Isso é facilitado
autoritário. Outros tantos, por sua vez, aproveitam quando as instituições democráticas e de controle,
o momento geral de fragilidade para, confirmando
sua personalidade autoritária, conduzir coletivos 1
Disponível em https://rizomas.net/arquivos/Adorno-
em prol de interesses individuais escondidos sob Educacao-apos-Auschwitz.pdf. Acesso em 20 de abril de
discursos ufanistas, excessivamente abstratos e fre- 2020.
governamentais ou não, são autônomas, plurais, re- João Pedro, George Floyd, Eric Garner, e de tantos
presentativas e mantêm preservado o seu respectivo outros, mortos em nome de uma política genocida
dever-poder. É preciso esclarecimento. Como um re- racista, sexista e classista, que tem sempre o siste-
corte possível, considerando os tempos de isolamen- ma penal como ferramenta. Como se verá adiante nos
to social, vale como exemplo a cidadania insurgente textos que seguem, cuida-se de desvelar objetivos vis
que, na pesquisa de Holston (2013), ocorre também por detrás de conceitos jurídicos indeterminados,
“no domínio do oikos, na zona da vida doméstica”, se como ordem pública, conforme denunciam Luciana
desenvolve “com a luta pelo direito a uma vida co- Fernandes, Daniel Fonseca e Tainan Bulhões; trata-se
tidiana na cidade merecedora da dignidade de cida- de defender o direito à presença física do custodiado
dão”. Há esperança. Se o autoritarismo não fica em nas audiências, rechaçando a videoconferência como
quarentena, as forças de resistência, por essência regra, mesmo num contexto pós pandemia, como
empática e altruísta, humanista, ficam. Mas precisam destaca Fernanda Morais; de se opor veementemente
resistir e dar um jeito de estar na Ágora, mesmo es- à odiosa e absurda prisão de pessoas idosas em con-
tando em casa. A mensagem, todavia, diante de tan- têineres como suposta forma de proteção em face
tos mortos pela pandemia e de tantos descalabros, do coronavírus, de acordo com o alerta feito por Ra-
não é de otimismo. É de perda, de dor, de tristeza... fson Ximenes; de vigiar e construir limites para que o
de sentimentos que, por outro lado, reforçam o com- acordo de não persecução não seja banalizado, como
promisso que temos com a transformação da realida- apontam Thaize de Carvalho e Murillo Menezes; de
de cruel na qual estamos metidos. garantir voz ao réu e repensar as bases epistemológi-
Sabe-se ser complexo, quiçá utópico, como cas do processo, segundo a imprescindível crítica de
alertou Adorno, difundir esclarecimento suficiente à Saulo Mattos; de estabelecer nos direitos individuais
construção de um estado de consciência hábil, pron- limites à epistemologia da prova no processo penal,
tamente, a sufocar os comportamentos fascistas que segundo o defendido por Marcella Nardelli, Luiz Borri
sempre estão entre nós, já que “a barbárie se encontra e Rafael Soares; de buscar alternativas mais eficazes
no próprio princípio civilizatório” (ADORNO2). Nesse no controle da violência de gênero, consoante lem-
sentido, aliás, lembramos um conhecido aforismo brado por Isabela de Santana; de zelar pela imparcia-
de Bertold Brecht, que diz que “a cadela do fascismo lidade do juízo, nos termos da exposição de Eduardo
está sempre no cio”. Mas as “efervescências utópicas” Gallardo; de revalorizar a vítima, como destacado por
– como lembra Rômulo Moreira citando Ernst Bloch Jose María Gomez; de clamar pelo respeito às garan-
aqui mesmo neste boletim – nos devem guiar a me- tias no Júri, como fizeram Fabiano Pimentel e Catha-
lhores dias. O caminho, pois, tem que continuar a ser rina Fernandez; de romper com as tradições jurídicas
trilhado e construído. Ainda que de maneira desigual, hegemônicas e de preconceito, como reclamado por
alternando-se entre os processos de maturidade e Lívia Sant’Anna Vaz; de ratificar a imprescindibilidade
possibilidade de cada indivíduo ou instituição, mas da fundamentação jurídica como única forma de legi-
sempre catalisado por estratégias que envolvam es- timação e controle das decisões judiciais, consoante
clarecimento e ativismo tendentes a solidificar o res- apontado por Matheus Vilela; de pensar e construir
peito ao ser, ao ser humano. Não é clichê. É meta! Lu- um processo penal a partir da margem, como bri-
tar contra a intolerância e os preconceitos racial, de lhantemente pontuado por Manuela Abath.
gênero e de classe deve ser cotidiano. No campo das Significa, como ponto de partida e de manu-
ciências criminais, é urgente guerrear face ao (des) tenção da resistência democrática, que os propósitos
aparelhamento do Estado pelas forças neoliberais; e práticas nos devem dirigir cotidianamente para ra-
contra prisões instrumentalizadas a serviço da lógica dicalizar o imperativo kantiano de pensar o ser hu-
de exclusão dos já excluídos; contra o genocídio e a mano como fim, nunca como meio. O propósito é a
política de extermínio que historicamente tem sido vida, digna. Força a todas e todos.
levada adiante através do sistema penal; defender um
processo penal, ainda que criticamente conhecida a REFERÊNCIAS
sua inerente condição de legitimador da punição, que ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. Disponível
em https://rizomas.net/arquivos/Adorno-Educacao-
seja, o mais eficazmente possível, uma barreira quase apos-Auschwitz.pdf. Acesso em 20 de abril de 2020.
impermeável a esse mesmo poder de punir. HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo:
Na prática, trata-se de não se deixar esquecer Companhia das Letras, 2018.
HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da
e cobrar o fim de assassinatos como os de Ágatha,
democracia e da modernidade no Brasil. Trad. Cláudio
Carina. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pg.
2
Texto já citado. 401.
SUMÁRIO

05 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO: E AGORA, MUNDO?

07 EL AS NO FRONT COM FERNANDA MORAIS: VIDEOCONFERÊNCIA , IMEDIAÇÃO,


OLFATO E DIREITOS HUMANOS

9 ARTIGOS

9 EL JUEZ DE GARANTÍA Y EL DEBIDO PROCESO EM EL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DERECHO

11 O DIREITO E A SÍNDROME DO SANGUE AZUL

13 JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ENTRE MORTAS E FERIDAS, O QUE PODERÁ


NOS SALVAR?

14 POR UM PROCESSO PENAL A PARTIR DA MARGEM

17 FABRICANDO O FORAGIDO: CRITÉRIOS PARA RECONHECIMENTO DA FUGA NO PROCESSO PENAL

19 LA REVALORIZACIÓN DE LA VÍCTIMA EN EL PROCESO PENAL Y LOS DISCURSOS REFORMISTAS

21 UM DESAFORO NO DESAFORAMENTO

23 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL INSTITUIDO PELO NOVO ART. 28-A DO CPP E O RISCO
DA SUA EFICÁCIA INVERTIDA

25 QUANDO FALARÃO?

27 JUDICIÁRIO, GENOCÍDIO E PRISÕES PREVENTIVAS: REFLEXÕES A PARTIR DE UM ESTUDO DE


CASO DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19

29 A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES COMO MECANISMO DE CONTROLE DO JUÍZO FÁTICO E DO


CONTRADITÓRIO NO PROCESSO PENAL

31 O DIABO MORA NOS DETALHES

34 LIMITES EPISTÊMICOS NO PROCESSO PENAL: A PROIBIÇÃO DE DEPOIMENTO DOS PROFISSIONAIS


DA SAÚDE

37 MÚLTIPLOS OLHARES COM RAFSON XIMENES

40 A TODA PROVA: JUÍZO POR JURADOS E O DIREITO A UMA COGNIÇÃO ADEQUADA

43 WALKIE-TALKIE

45 IBADPP REALIZA
Adoção dos feminismos negros e da teoria crítica racial
na construção e difusão plural do conhecimento

Realização e apoio exclusivamente a projetos,


eventos e ações que promovam a equidade

Criação do Observatório Raça, Gênero e Classe

O IBADPP ASSUME COMO MISSÃO


CONTÍNUA A BUSCA POR EQUIDADE
DE RAÇA, GÊNERO E CLASSE
Coluna
PONTO E
CONTRAPONTO
Rômulo Moreira
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito
Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

E agora, mundo?
E agora, José?
A festa acabou,
as relações socioeconômicas, dando-se como se
a luz apagou, fora um pedido de socorro do perverso e indife-
o povo sumiu, rente Estado Liberal ao Estado Social, uma sú-
a noite esfriou,
(...) plica dos moços do Mont Pélerin Society às ideias
o dia não veio, keynesianas. Deram um tempo – por assim dizer
o bonde não veio,
o riso não veio,
– nos velhos manuais de Hayek, Popper, Fried-
não veio a utopia man e tantos outros.
e tudo acabou Aliás, foi exatamente assim que se deu,
e tudo fugiu
e tudo mofou, como já vimos outrora, especialmente nas crises
e agora, José? de 1929 (e o New Deal, do democrata Roosevelt),
(...)
você marcha, José!
em 1947, no pós-guerra (com o Plano Marshall,
José, para onde do democrata Truman), na bolha imobiliária de
Carlos Drummond de Andrade 2008 (e o Troubled Asset Relief Program, apro-
vado por um Congresso controlado pelo Partido
Quando escrevo esse texto o mundo não Democrata), para se referir apenas às catástro-
sabe quando vai acabar a pandemia e, no Brasil, se- fes mais conhecidas e mais citadas na literatura
gundo a comunidade científica, nem sequer ainda contemporânea3.
se atingirá o pico da doença. O nosso país regis- Hoje, como se vê mais uma vez (e tal qual o
trava quase 60.000 casos e ultrapassava a barreira rei só visto pela criança de Andersen, surgida de
de 4.000 mortes pelo coronavírus. Havia sido 346 súbito dentre os súditos enquanto o tolo do rei
novos óbitos apenas em 24h. Já eram cerca de três desfilava sem roupas):
milhões de casos no mundo, e os Estados Unidos “O MERCADO ESTÁ NU!” (ANDERSEN, 1837).
lideravam com mais de 53.000 óbitos1. Nada obstante, o meu receio é que o mer-
Vejo – não com entusiasmo, mas com um cado, ainda que saiba que a criança tem sempre
triste olhar de confirmação - como agora os razão e olhos só dela, continue exibindo-se de-
homens (neoliberais) do mercado agitam-se e 2
"Sem ajuda governamental a indústria não sobrevive. A
imploram ajuda ao Estado, esquecendo-se de
depender de quanto tempo durar a crise, com demanda
se socorrerem da “mão invisível” da qual falara inexistente, as empresas chegarão em situação de insol-
Adam Smith2. vência absoluta. E aí vai precisar uma ajuda mais contun-
Dessa vez – como, aliás, se dera em outras dente. As empresas precisam ter acesso a crédito. E ele
crises – o liberalismo econômico fracassou na terá de vir de fundos públicos", disse o presidente de uma
sua missão de (livremente) regular o mercado e grande empresa aérea. Disponível em https://economia.
uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/22/setor-aereo-
1
Disponível em: https://brasil.elpais.com/ -nao-sobrevive-sem-ajuda-do-governo-diz-presidente-
brasil/2020-04-25/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o- -da-latam.htm?f bclid=IwAR22At3khdy--bdgXHf7au2J0Y-
coronavirus-e-a-crise-no-governo-bolsonaro-com-a- 4thhfswEeHBGp4YySUburrjNCBKg4Q9wY. Acesso em 26
saida-de-moro.html. Acesso em 26 de abril de 2020. de abril de 2020.

5
Coluna: Ponto e Contraponto

savergonhadamente como aquele mesmo rei da mos a ser “apenas mais um tijolo na parede”6, tam-
história, e mais indiferente do que nunca. Afinal, pouco aguardemos os últimos instantes para lem-
urge que continue o desfile, ainda que à custa da brarmos do nosso Rosebud, aquele velho trenó que
miséria e de milhões de vidas humanas. Kane recordou momentos antes de morrer, e que
(Lembrei aqui de Freud, quando perdeu lhe proporcionara, talvez, a sua única fase verda-
Sophie, contaminada pela “peste espanhola”, deiramente feliz em toda a vida (ORSON, 1941).
mesma dor pela qual passa hoje tantos pais e Esta crise mostra-nos como “no mundo
tantas mães; sem superar a perda de sua quin- muita coisa ainda está inconclusa.” E, exatamen-
ta filha, que estava grávida, ele escreveu ao seu te por isso, é preciso “velejar em sonhos, so-
amigo e colega Ludwig Binswanger: nhos diurnos, muitas vezes do tipo totalmente
sem base na realidade.” Essa capacidade própria
Sabemos que a dor aguda que sentimos após
uma perda seguirá seu curso, mas também
de nós, seres humanos, homens e mulheres, é
permanecerá inconsolável e nunca encon- que nos faz termos – e só a nós – a extraordiná-
traremos um substituto. Não importa o que ria capacidade de “fabular desejos e entrar em
aconteça, não importa o que façamos, a dor efervescência utópica, movendo-se os sonhos.”
estará sempre lá. E é assim que deve ser. É a (BLOCH, 2005, p. 194).
única maneira de perpetuar um amor que não
E, afinal, a casa (para quem a tem), presos
queremos abandonar)4.
como estamos nela, não deixa de ser um exílio
Não podemos esquecer os fatos históri- (como uma categoria metafísica) e, “se há algo de
cos para, aprendendo com eles, não repetirmos bom no exílio, é o fato de ensinar a humildade, li-
os erros do passado, afinal “fazer história signi- ção suprema dessa virtude” (BRODSKY, 2016, p. 21).
fica construir pontes entre o passado e o pre-
sente, observando ambas as margens e agindo
5
Neste romance, que trata muito bem as questões da culpa
e da vergonha (adaptado para o cinema por Stephen Dal-
nas duas.” (SCHLINK, 2009, p. 198)5.
dry, em 2008), Michael Berg, um jovem advogado, muito
(E também recordei do livro de Camus, tão interessado no direito durante a época do Terceiro Reich,
atual!, quando Dr. Rieux, o médico que protago- chega a uma conclusão a que também cheguei, há anos:
niza a história, e que lutava contra a peste, após “Era uma felicidade para mim ver como os artigos do có-
mais uma exaustiva reunião com “um prefeito digo penal foram produzidos como guardiões solenes da
desorientado”, ao chegar na casa de sua velha boa ordem, transformando-as em leis que se esforçavam
por ser belas e, com sua beleza, dar provas de sua verda-
mãe, pergunta-lhe: “Está com medo, mamãe? Na
de. Durante muito tempo acreditei que há um progresso na
minha idade, já não se teme muita coisa”, res- história do direito, apesar de terríveis retrocessos e passos
pondeu-lhe) (CAMUS, 2018, p. 118). para trás, um desenvolvimento em direção à maior beleza e
De toda maneira, esperemos que esta tra- à verdade, à racionalidade e à humanidade. Desde que me
gédia represente, como diria Canotilho (ainda que ficou claro o fato de tal crença ser uma quimera, trabalho
em outro contexto, obviamente), uma viragem com uma outra imagem do percurso da história do direito.
Nessa imagem, o percurso ainda se orienta para uma meta,
histórica para a humanidade, e que não continue-
mas a meta de que se aproxima, após diversos abalos, deso-
3
Este “Programa de Alívio de Ativo Problemático” previa a rientações e fanatismos, é o seu próprio ponto de partida,
liberação de 700 bilhões de dólares em ajuda para os ban- de onde, assim que o alcança, precisa partir novamente.”
cos. No seu anúncio, em 24 de setembro de 2008, disse o E pergunta, então, lembrando-se de Homero: “Ulisses não
republicano George W. Bush: “Eu acredito muito na livre retorna para ficar, e sim para partir novamente. A Odisséia
iniciativa, por isso o meu instinto natural é se opor a in- é a história de um movimento ao mesmo tempo em direção
tervenção do governo. Eu acredito que as empresas que a uma meta e sem meta nenhuma, bem-sucedido e em vão.
tomam más decisões devem sair do mercado. Em circuns- Em que a história do direito é diferente disso?” Em nada!
tâncias normais, eu teria seguido esse curso. Mas estas
6
WATERS, Roger, “Another Brick In The Wall, Pt. 2”.
não são circunstâncias normais. O mercado não está fun-
cionando corretamente. Houve uma perda generalizada
REFERÊNCIAS
de confiança, e grandes setores do sistema financeiro da ANDERSEN, Hans Christian, A roupa nova do Rei, 1837.
América estão em risco.” (não parece hoje?). BLOCH, Ernst. O Princípio da Esperança. Rio de Janeiro:
4
Disponível em: https://www.clarin.com/cultura/tra- Editora Contraponto, 2005.
gedia-freud-pandemia-cambio-teoria_0_GmhBP71Bq. BRODSKY, Joseph. Sobre o Exílio. Belo Horizonte: Editora
html?utm_term=Autofeed&utm_medium=Social&utm_ Âyiné, 2016.
source=Facebook&f bclid=IwAR3ys9swhO8wQtW1dwEA1_ ORSON, Welles, Citizen Kane (1941).
MZwkckpHzqzu5yJANpzpO7347XOXe7WFLeW7c#Echo- SCHLINK, Bernhard. O Leitor (Der Vorleser, no original).
box=1587490682. Acesso em 26 de abril de 2020 (tradução Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.
livre). WATERS, Roger, Another Brick In The Wall, Pt. 2.

6
Coluna

ELAS
A

NO FRONT
Videoconferência, imediação, ofalto e direitos humanos
Por Fernanda Nunes Morais da Silva

– Primeiro, os cheiros – disse-me, en- sido vetada a utilização do meio para audiências
chendo os pulmões.
de custódia.
Fechou os olhos e aspirou odores que, para
mim, eram inexistentes. Silvestre inalava Ocorre que em 05 de março de 2020 foi pu-
a casa, acendendo memórias dentro do blicada a Resolução nº 03 do Conselho Nacional
peito. Ficou de pé, no centro do comparti- de Política Criminal e Penitenciária, que propõe o
mento, inflando o peito. emprego da videoconferência nas audiências cri-
– É como um fruto. Entramos com o nariz. minais em todos os foros e ramos do Poder Judi-
Mia Couto ciário e recomenda a regulamentação e o incenti-
vo do uso desse sistema (artigos 1º e 2º).
Na verdade, já conhecemos a videoconfe- Defensores da medida apelam para a su-
rência. Desde 2004, a partir do Decreto nº 5.015 posta economia que ela traria a reboque, mas a
(Convenção das Nações Unidas contra o Crime verdade é que a aplicação indistinta e ilimitada
Organizado Transnacional), é possível a utiliza- da videoconferência implica um prejuízo demo-
ção desse recurso tecnológico no processo penal. crático, porque sacrifica a imediatidade e preju-
Desde então, a despeito dessa única hipó- dica diretamente a cognição. Na lição de Décio
tese prevista na lei, Tribunais de Justiça passa- Alonso Gomes (2016, p. 40-45):
ram a regulamentar o uso da videoconferência
Numa perspectiva processual, pode-
em atos normativos internos, o que foi julgado
-se definir, em termos gerais, a imedia-
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal ção como o mecanismo, instrumento ou
em 2007. princípio em virtude do qual se procura
Em 2008, por sua vez, foram sancionadas assegurar que o juiz, ou tribunal esteja
as Leis nº 11.690 e 11.900, que introduziram os em permanente contato – relação de pro-
artigos 217 e 185, §2º e seguintes no Código de ximidade intelectiva – com as alegações
das partes e os aportamentos e gestões
Processo Penal (CPP) e possibilitaram a utiliza-
probatórios, a fim de que possa conhecer
ção da videoconferência para inquirição de tes- em toda sua significação o material da
temunhas e interrogatórios. Como já debatido, a causa, desde seu princípio, aqueles que
redação do citado art. 185, §2º, do CPP não foi fe- devem proceder aos debates para forma-
liz: fez uso excessivo de cláusulas abertas, e dei- ção do convencimento judicial e aquele
xou ao alvedrio jurisdicional a elaboração desses que, ao final, deverá pronunciar a sen-
tença que resolva a causa apreciando as
conceitos, o que deu espaço para decisionismos
pretensões externadas.
e arbitrariedades (LOPES JR., 2017, p. 450).
Não bastasse, ano passado assistimos à De saída, seria possível pensar que a vide-
tentativa de sua consolidação como regra para oconferência não ofereceria qualquer prejuízo à
realização de oitivas através do Pacote Anticri- imediação, já que a tecnologia apenas reduz dis-
me, muito embora a respectiva disposição não tâncias. Entretanto, há muito a própria doutrina
tenha vingado. O texto final não promoveu alte- abandonou a ideia de que a jurisdição seria uma
rações na sistemática já adotada pela lei, tendo atividade de mera subsunção, automática, neu-

7
Coluna: Elas no front

tra. É preciso reconhecer que a cognição também Curioso é que a perda do olfato seja jus-
possui um viés psicológico, pois existem signos tamente um dos sintomas causados pelo CO-
(silêncios, olhares, gestos) que não podem ser des- VID-19, porque essa inaptidão para sentir chei-
prezados e que influenciam o ânimo do julgador. ros, embora involuntária e temporária, faz
Mas não é só. Há também uma perda hu- lembrar do incômodo que o cheiro do réu causa
manística, pois é direito do réu estar efetiva- a muitos atores do processo penal. O uso de aro-
mente diante daquele que irá julgá-lo, em res- matizadores nas salas de audiência e nos salões
peito à dignidade que nem mesmo a maior pena do júri não é nenhum conto de carochinha.
poderá subtrair-lhe. “Juiz precisa sentir cheiro Só que esse cheiro é pedagógico, porque
de réu”, diz o Prof. Antonio Vieira. expõe as vísceras insalubres e sub-humanas do
Mesmo assim, no dia 17 de março de 2020, cárcere, e descortina a condição horrenda a que
após a declaração pública de situação de pande- homens e mulheres são submetidos quando lhes
mia em relação ao novo coronavírus pela Orga- é imposta a privação da liberdade. Precisamos
nização Mundial da Saúde, o Conselho Nacional defendê-lo. Tal qual Silvestre Vitalício ingressou
de Justiça publicou a Recomendação nº 62/2020, em sua antiga casa em Antes de Nascer o Mun-
aconselhando a utilização da videoconferência do, ingressemos nos fóruns de justiça também
para realização de audiências que envolvam réus com o nariz.
presos, como medida apta a prevenir a dissemi- Há quem diga que há uma nova ordem
nação do vírus no sistema carcerário. mundial sendo gestada, há quem só anseie por
Fato é que estamos diante de um verda- voltar a levar a vida de outrora. Sob o ponto de
deiro retrocesso em matéria de direitos huma- vista do processo penal, o passado já não era
nos e não há pessimismo algum em dizer que a animador, e não há palavra otimista a ser trazi-
videoconferência tende a consolidar-se mesmo da neste arremate. O que há é uma convocação:
quando forem afrouxadas as medidas de isola- mais do que nunca, é preciso reforçar a trinchei-
mento e distanciamento social. ra democrática.
Entretanto, como recentemente des-
tacou Eliane Brum, se o futuro pós-pandemia REFERÊNCIAS
já está em disputa, somos forçados a, mesmo
BRUM, Eliane. O futuro pós-coronavírus já está em dis-
confusos, elaborar e adotar estratégias para
puta. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/
preservar o exercício de direitos conquistados 2020-04-08/o-futuro-pos-coronavirus-ja-esta-em-dis-
a custo de muita luta e muito sangue. Precisa- puta.html. Acesso em 07 abr 2020.
mos tornarmo-nos vigilantes ativos. Ainda que CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 62
os tempos sejam extremos, é preciso demarcar o de 17 de março de 2020. Disponível em: https://www.cnj.
espaço constitucional e convencional de dispu- jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%-
C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em 17 mar. 2020.
ta desses direitos, especialmente no âmbito do
CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENI-
processo penal, já que a superlotação carcerária TENCIÁRIA. Resolução nº 3, de 05 de março de 2020. Dis-
favorece a transmissão do coronavírus. ponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/reso-
Levantemos, portanto, a nossa guarda: o lucao-n-3-de-5-de-marco-de-2020-246767725. Acesso em
contato humano e a imediação são vitais para a 01 abr 2020.
própria natureza instrumental e legitimadora do COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2016.
processo penal, tomado sob a perspectiva demo-
GOMES, Décio Alonso. Prova e imediação no processo pe-
crática e constitucional. Há que se defender o di- nal. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.
reito que o custodiado tem de ser percebido por LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14 ed. São Paulo:
quem irá julgá-lo, que deverá não somente vê-lo Saraiva, 2017.
e ouvi-lo, mas também senti-lo através do cheiro.

FERNANDA NUNES MORAIS DA SILVA


Membra associada do IBADPP. Defensora Pública do Estado da Bahia. Bacharela
em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Especialista em
Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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EL JUEZ DE GARANTÍA Y EL DEBIDO PROCESO EN


EL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DERECHO
Por Eduardo Gallardo Frías

Sin duda una de las cuestiones más com- en la audiencia de juicio, con estricta sujeción
plejas y difíciles de explicar, incluso para quie- a los principios de la oralidad, concentración,
nes se desempeñan en el sistema de justicia inmediación, contradicción y publicidad. Lo di-
penal, es la importancia de la figura del Juez de cho no quiere decir que la etapa de investiga-
Garantía como un componente esencial para la ción no sea relevante, pues en dicha etapa se
legitimidad democrática y republicana del pro- adoptan decisiones importantísimas como -en-
ceso penal. Ello explica, quizá, el carácter al- tre otras- las medidas afectatorias de derechos
tamente controversial que en las comunidades fundamentales (vgr. interceptación de comuni-
legales genera este actor procesal que, de algu- caciones telefónicas, medidas cautelares, etc.)
na manera, viene a revolucionar y cambiar los Además, la información reunida en la referida
paradigmas del proceso penal. etapa es relevante para que el Ministerio Públi-
Veamos bien. Usualmente se dice –lo co adopte decisiones estratégicas y prepare su
que es correcto- que uno de los principios fun- acusación y, por cierto, se trata de una etapa
damentales del sistema acusatorio consiste en también importantísima para el pleno ejercicio
la separación estricta entre quien detenta la del derecho de defensa.
persecución penal (órgano acusador) y quien Lo dicho de por sí debería llevarnos a
ejerce la jurisdicción (juzgador). Sin embargo, a entender cuan indispensable resulta el juez de
la concreción de dicho principio subyacen una garantía para el debido proceso, en dos senti-
serie de exigencias sin las cuales la separación dos. Primero, si estaremos de acuerdo en que
estricta entre acusador y juzgador no pasa de el juzgador en el juicio debe decidir únicamente
ser una expresión meramente discursiva en el en base a las pruebas producidas por las par-
plano tanto político como normativo. Y con ello tes en dicho juicio, resulta elemental concluir
se verifica el riesgo de caer en la tentación de que ese juzgador no puede conocer los autos y
considerar como sistemas “mixtos” o “acusato- la información verificada en la etapa previa de
rios” modelos que en lo medular operan y fun- investigación. Es decir, debe tratarse de un juez
cionan bajo la lógica del proceso penal inquisi- epistémicamente “ignorante” que sólo comen-
tivo que es lo que a mi juicio, lamentablemente, zará a conocer el caso sometido a su decisión
hoy sucede en el proceso penal de Brasil. una vez que se inicie la actividad probatoria
En efecto, la concreción del principio de las partes. En segundo lugar, resulta tam-
acusatorio exige comprender una cuestión mu- bién una obviedad que el juez que interviene en
chas veces ignorada, a saber: la diferenciación la fase de investigación no debe tener ningún
estructural y epistémica entre la fase de inves- compromiso con el resultado y desenlace del
tigación y la fase de juzgamiento (en modelos juicio, pues su papel debe limitarse a controlar
como el Chileno el proceso en rigor contem- la legalidad de la actividad de las agencias de
pla tres fases: la investigativa, la intermedia en persecución penal (Ministerio Público y poli-
la cual se controla la legalidad de las pruebas y cías) y velar por el pleno respecto a los dere-
la del juicio oral propiamente, interviniendo el chos y garantías constitucionales de los sospe-
juez de garantía en las dos primeras). Esta di- chosos.
ferenciación significa, primero, que la etapa de Lo expresado a nuestro entender conlle-
investigación tiene una naturaleza meramente va una exigencia fundamental para comprender
preparatoria y preliminar, aunque muy relevan- la imperiosa necesidad de introducir el juez de
te. Cuando decimos que la etapa de investiga- garantía en Brasil: la separación estricta entre
ción tiene un carácter preparatorio lo que que- el juez de la etapa de la investigación y el juez
remos enfatizar es la idea irrenunciable de que de la etapa de juicio oral es también condición
la decisión de absolución o condena en el juicio sine qua non del debido proceso. La existencia
oral no se verifica en base a la información reu- de la prevención de la competencia (juiz pre-
nida en la etapa de investigación, sino más bien vento) hace que el principio constitucional del
en base a las pruebas producidas por las parte juicio “acusatorio” no pase de ser una cruel iro-

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nía, pues bajo el modelo vigente el juzgador que previa. Excusándome por tan absurda metáfo-
decide acerca de la inocencia o culpabilidad ra, eso es como creer en Papa Noel.
del acusado lo hace conociendo los “autos” y Nuestras afirmaciones llevan a sostener
toda la información reunida en la etapa preli- una cuestión que nos parece de la mayor im-
minar. Peor aún, ese juez incluso adoptó deci- portancia por sus consecuencias: el “proceso”
siones jurisdiccionales en la etapa previa como en rigor no comienza con el juicio. El “proceso”
la dictación de medidas cautelares, con lo cual se inicia con las primeras actuaciones de cual-
es epistémicamente imposible sostener que el quier naturaleza en contra de un ciudadano
acusado será luego juzgado en base a las prue- sospechoso. Desde el primer momento. Ello
bas rendidas por las partes. En ese esquema el permite dimensionar la función garantista de
“juicio” no pasa de ser un mero ejercicio sínico la jurisdicción, pues desde la mismísima au-
de corroboración de las hipótesis investigativas diencia de custodia o aún antes cuando no se
desarrolladas en base a la información obteni- produce una prisión en flagrante, el poder
da en la etapa anterior. Ciertamente, hay que punitivo estará sometido al control de la juris-
decir con claridad que allí no estaremos frente dicción cautelar detentada por un juez impar-
a un juzgador “imparcial” y, desde luego, tam- cial, a saber, el juez de garantía. Control, que
poco se respeta el principio de inocencia. Pero se ejercerá de diversas maneras (en el caso
desde otra óptica, sin separación entre juez de chileno las más de las veces en audiencias ora-
la etapa de investigación y juez del juicio, difí- les y contradictorias).
cilmente la jurisdicción puede cumplir su mi- Esperamos haber en estas breves líneas
sión cautelar en la fase previa, pues se gene- logrado explicar la enorme trascendencia que
ran distorsiones enormes que comprometen al la figura del juez de garantía tiene en el proceso
juez que interviene en la etapa de la investiga- penal a la luz de las exigencias de un Estado de
ción con sus resultados, ya que será el mismo Democrático de derecho.
quien deberá “juzgar” al acusado. En resumen,
en el contexto descrito no hay debido proce- EDUARDO
so en ninguna etapa del procedimiento penal: GALLARDO FRÍAS
ni en la investigativa ni en la de juzgamiento.
Con el esquema del “juiz prevento”, creer en la Abogado, master en dere-
imparcialidad del juzgador sólo se sostiene bajo cho (LLM), juez de garantía
el dogma inquisitivo de que el juez profesional de Santiago-Chile y ha sido
reúne condiciones de superioridad moral inex- docente con la Universidad
pugnables, al punto que estaría capacitado para Alberto Hurtado en capacitaciones a actores del
“sacar de su cabeza” toda la información que el sistema de justicia penal en Chile, México y Ar-
mismo conoció y ayudó a generar en la etapa gentina.

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Artigos

O DIREITO E A SÍNDROME DO SANGUE AZUL


Por Lívia Sant’Anna Vaz

Umuntu Ngumuntu Ngabantu 1 Desse modo, a relação que a sociedade es-


(Uma pessoa é uma pessoa através de
tabelece com a/o Outra/o será sempre medida
outras pessoas)
pela sua “diferença repulsiva” em relação ao “eu”
Em julgamento concluído no dia 8 de maio do sujeito hegemônico.
de 2020, por maioria de votos (7x4), o Supre- No caso concreto, julgado pelo STF, o “Ou-
mo Tribunal Federal (STF) declarou a incons- tro” é o homem homossexual. Mas, no Direito, a
titucionalidade de dispositivos normativos da “Outridade” se estabelece onde quer que este-
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC nº jam as relações de poder impostas aos grupos
34/2014) e do Ministério da Saúde (Portaria nº vulnerabilizados por processos de opressão: a
158/2016), que consideravam homens homosse- população LGBTQI+, as mulheres, as pessoas
xuais temporariamente inaptos – pelo período negras, indígenas, pobres; em contraposição à
de doze meses, contados a partir da última rela- figura central do “sujeito universal”, protótipo da
ção sexual – para doação de sangue. norma e da normalidade.
O voto do relator, ministro Edson Fachin, Esse “sujeito universal” é homem, branco e
concluiu pela inconstitucionalidade dos dispo- heterossexual. Dito em poucas palavras: o sujei-
sitivos impugnados, considerando, em síntese, to universal tem “sangue azul”. Há controvérsias
que estes ofendem a dignidade da pessoa huma- a respeito do surgimento da expressão “sangue
na – por impedirem os indivíduos por eles abran- azul”. Se relacionada ao racismo – em virtude
gidos de serem como são –, além de violarem o das veias azuladas sob a pele clara das pessoas
direito fundamental à igualdade, ao negar aos brancas, como sinal de pureza e superioridade
destinatários da norma igual tratamento quando racial –; ou ao classismo – em associação às ori-
em comparação com os demais cidadãos. gens de um indivíduo, privilegiado desde o seu
A decisão – cuja justa conclusão não se nascimento, por pertencer a uma família nobre.
questiona – sobreleva a alteridade como em- O fato é que, independentemente de sua
basamento ético do fazer decisório, afirmando origem, a expressão indica privilégio. O “sujeito
como seu pressuposto o exercício de “compre- universal” é símbolo de “privilégios acumulados”,
ensão sobre o lugar do Outro no Direito”. que o colocam na posição de superioridade, con-
Essa “ética da alteridade” – conclamada ferindo-lhe poder de determinar, até mesmo, a
pelo STF em tão importante julgamento – nos medida da universalidade dos direitos. A(O) Ou-
chama à reflexão. Afinal, quem é o Outro? E qual tra(o), por sua vez, permanece como objeto. Não
é o lugar do Outro no Direito? lhe é atribuída a prerrogativa de definir suas rea-
Alteridade – do latim alteritas – designa a lidades, de estabelecer suas identidades, de nar-
natureza ou condição do outro; daquele que, a rar suas próprias histórias (hooks, 1989, p. 42).
partir de uma relação de contraste, é tido como Assim, a consagrada “universalidade” dos di-
distinto, diverso, destoante do padrão de nor- reitos não é neutra e não contempla todas as pes-
malidade. soas, mantendo no centro determinados sujeitos
Grada Kilomba – referindo-se à dominação de direitos. Ela parte de um lugar, de uma pers-
colonial – explica como o sujeito (colonizador/ pectiva única e violenta, que se constrói a partir
branco) projeta na/o Outra/o (colonizada/o/ da negação, do apagamento e da “outrificação” dos
negra/o) características que se recusa a reco- grupos de indivíduos tidos como diferentes.
nhecer em si próprio, o que configura um me- Na realidade brasileira, o Direito, talvez,
canismo de defesa do ego. Cria-se, desse modo, seja uma das áreas do conhecimento mais co-
a/o Outra/o como antagonista do “eu”: somen- loniais e epistemicidas, ao impor padrões epis-
te o lado bom do ego é vivenciado pelo sujeito temológicos2 brancocêntricos e androcêntricos,
como parte do “eu”, sendo o resto projetado so- 2
Como bem nos recorda Patricia Hill Collins, “as escolhas
bre a/o Outra/o como algo externo (KILOMBA,
epistemológicas referentes a em quem se deve confiar, em
2019, p. 34-37). que acreditar e por que algo é verdadeiro não são questões
acadêmicas inocentes” (COLLINS, 2019, p. 403). Aqui, a
1
Máxima dos povos Xhosa e Zulu. escolha por uma epistemologia.

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que não servem à emancipação de todas as pes- Que passe, então, a ser considerado multicolo-
soas, mas sim à manutenção de um status quo se- rido – como as cores de um arco-íris –, desig-
letivamente excludente, conforme a “Outridade” nando a “pluriversalidade” do ser e dos “sujei-
atribuída às “categorias de pessoas desviantes”. tos de direitos”.
O alerta de Chimamanda Adichie sobre o
perigo da história única (ADICHIE, 2019) também REFERÊNCIAS
se aplica à construção da Justiça. A imposição
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história
de uma história ou epistemologia única afeta a
única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
compreensão das(o)s juristas acerca da própria COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. São
noção de Justiça, construída de forma racializa- Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
da, machista, classista, misógina e LGBTfóbica. hooks, bell. Talking Back: thinking feminist – thinking
Já é chegada a hora da ciência jurídica black. Boston: South End Press, 1989.
desprender-se da narrativa hegemônica exclu- KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - Episódios de
racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro:
sivista do norte global, abrindo-se para episte-
Cobogó, 2019.
mologias contra hegemônicas, num processo de NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: ele-
desconstrução decolonial, orientado para o re- mentos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista
conhecimento de todas as pessoas como sujei- da ABPN, v. 3, nº 6, nov. 2011 – fev. 2012, p 147-150.
tos de direitos, igualmente dignas em sua “plu- RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o estudo da Fi-
riversalidade” (RAMOSE, 2011, p. 11). Não como losofia Africana. Ensaios Filosóficos, Rio de Janeiro, v. IV,
out. 2011. Disponível em http://www.ensaiosfilosoficos.
a(o) Outra(o) do “universal”, mas como parte do
com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf. Acesso em 25
todo que é a humanidade, e que também nos de maio de 2020.
constitui, sob a égide da “ética ubuntu”3. Esta, ao
apregoar a máxima “eu sou porque nós somos”,
volta-se para uma existência comunitária antir- LÍVIA MARIA SANTANA
racista e policêntrica (NOGUERA, 2012, p. 147), E SANT’ANNA VAZ
que leva em consideração o ontem, o hoje e o
porvir, numa conjunção solidária entre todas as Mulher negra. Promotora
pessoas. de justiça do Ministério
O sangue – que, nos termos do voto do re- Público do Estado da
lator da ADI nº 5543, é a “metáfora perfeita do Bahia; mestra em Direito
que nos faz inerentemente humanos”; “prova Público pela Universidade Federal da Bahia;
pulsante do pertencimento a uma mesma es- doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela
pécie” – tem uma só cor: a vermelha; apesar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
“síndrome do sangue azul do sujeito universal”. Colunista da Carta Capital Justiça. Indicada
ao Most Influential People of African Descent
3
Na perspectiva da ética ubuntu, toda realidade está – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda
integrada, sendo que a comunidade possui três dimensões Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador);
complementares: os ancestrais, os que estão vivos e os que Conselho Nacional do Ministério Público 2019
ainda não nasceram (NOGUERA, 2012, p. 148).
(pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Artigos

JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:


ENTRE MORTAS E FERIDAS, O QUE PODERÁ NOS SALVAR?
Por Isabela Oliveira de Santana

Em 03 de abril de 2020, foi sancionada a As práticas restaurativas permitem aos su-


Lei n° 13.984, que altera a Lei Maria da Penha, jeitos envolvidos na relação a participação e re-
para incluir no rol das medidas protetivas de ur- flexão dos atos praticados e sofridos, sendo em-
gência, a possibilidade de o agressor ter acom- pregadas tanto para os agressores quanto para
panhamento psicossocial individual e/ou em as vítimas, vislumbrando-se a possibilidade de
grupo de apoio; e de comparecer em programas quebra do ciclo de violência a partir de um pro-
de recuperação e reeducação. cesso de reeducação, que permita a reinserção da
A violência de gênero é uma das manifes- cidadania e da dignidade humana para as partes.
tações de violência social mais antiga que existe Por fim, lembremos que para além de pu-
e a perpetuação do machismo como base da so- nir, a pena representa a sanção do Estado, que,
ciedade é um dos grandes motivos para que esta tem o objetivo de reprimir o ato criminoso pra-
realidade se perdure. Assim, a Lei 11.340/2006 – ticado e prevenir a insurgência de novos delitos,
Lei Maria da Penha, busca garantir às mulheres visando retirar o indivíduo da sociedade para re-
o direito à vida sem violência, dispondo de um educa-lo (NUCCI, 2011, p. 401).
capítulo que prevê medidas protetivas de urgên- E, assim sendo, que possamos cogitar per-
cia, para assegurar a integridade física, moral, correr outros caminhos, já que os tradicionais
psicológica e patrimonial da vítima, uma vez que têm nos levado ao mesmo destino.
todos os dias, assustadoramente, acompanha-
mos notícias de violências contra as mulheres. REFERÊNCIAS
Pontua-se como medida urgente a desmis-
COSTA, Marli M. M.; PORTO, Rosane T. C. A Justiça Restau-
tificação do Direito Penal (e, com ele, o modelo
rativa e a Possibilidade de Consenso entre os Atores So-
tradicional de justiça criminal), mostrando suas ciais: uma abordagem a partir da comunicação não violenta
reais funções e significados e sua incompatibili- e da ação comunicativa. In: COSTA, Marli M. M. Direito, Ci-
dade com a emancipação do direito da mulher (e dadania e Políticas Públicas II: direito do cidadão e dever
do homem) (CASTRO, 2007). do Estado. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2007.
Nosso modelo tradicional de justiça crimi- Lei nº 11.340/06. Disponível em < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>.
nal reforça o sofrimento da vítima, que vai desde
Acesso em 01/05/2020.
o atendimento na Delegacia até os procedimen- Lei n° 13.984. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/
tos massacrantes do processo penal, fazendo-a ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13984.htm>. Aces-
reviver a situação violenta a cada momento, sem so em: 01/05/2020.
que seja considerada a sua perspectiva, o con- NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 7.
texto histórico e os diversos ângulos presentes. Ed., rev., atual. E ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011. ISBN 978-85-203-3876-6.
Em sentido diametralmente oposto, a jus-
PORTO, Rosane T. C. A Justiça Restaurativa: uma nova pro-
tiça restaurativa vem ganhando um notável es- posta de política pública de cidadania ao adolescente infra-
paço, por promover resultados positivos, per- tor à vítima e à comunidade. In: COSTA, Marli M. M. Direi-
mitindo e viabilizando a participação das partes to. Cidadania e Políticas Públicas. Porto Alegre: Imprensa
e garantindo mais celeridade e confiabilidade à Livre, 2006.
tutela jurisdicional.
Ao analisar a mencionada alteração na Lei ISABELA
Maria da Penha, constata-se um avanço nesse OLIVEIRA DE
sentido, já que há o notável interesse em que o SANTANA
agressor reflita sobre o ato praticado contra a
vítima e os seus efeitos a partir do acompanha- Bacharel em
mento psicossocial, ao qual poderá ser submeti- Direito pela Uni-
do. E, quando se fala em reeducação, há que se versidade Cató-
observar o fato de que, muitos dos agressores lica do Salvador (UCSAL). Membra do Grupo de
têm em comum o histórico de violência familiar Pesquisa "Feminismos e Processo Penal", vinculado
e, por isso, tendem a naturalizar atos agressivos. ao Instituto Baiano de Processo Penal - IBADPP.

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POR UM PROCESSO PENAL A PARTIR DA MARGEM


Por Manuela Abath Valença

Há algum tempo venho refletindo sobre so, criou o Protocolo II, com regras específicas
a necessidade de incluir as polícias, seus sabe- para lidar com os casos em que são reportadas
res e suas práticas no centro dos debates so- torturas ou maus-tratos. Além disso, a Consti-
bre o processo penal brasileiro. Sem pensar a tuição Federal atribuiu ao Ministério Público o
formação das polícias brasileiras e as relações dever de realizar controle externo da atividade
que historicamente se constituíram entre elas policial.
e a justiça e o direito, não é possível entender Embora o escopo pareça ter sido explí-
como o inquérito é peça fundamental na for- cito por parte do CNJ e não restem dúvidas
mação da convicção judicial (LOPES Jr.; GLO- sobre as atribuições do Ministério Público, as
ECKNER, 2014), como testemunhos policiais pesquisas empíricas realizadas nas audiências
são centrais na condenação em crimes como conduzem a conclusões de que pouca ou ne-
tráfico de drogas (JESUS, 2018), como o reco- nhuma providência efetiva costuma ser toma-
nhecimento fotográfico que ocorre cotidiana- da quando os custodiados relatam ter passado
mente nas delegacias brasileiras apesar de sua por violência institucional, sobretudo promo-
inequívoca tendência a produzir erros (VIEIRA vida pelas polícias (CONECTAS, 2017). Por quê?
et al, 2019) é considerado um meio de prova Quando comecei a frequentar audiências
seguro ou como buscas pessoais ocorrem sem de custódia no ano de 2015 como pesquisado-
qualquer critério e com contornos fortemente ra, havia uma advertência comum feita pelos
racializadores (WANDERLEY, 2017), para citar profissionais que ali atuavam sobre a cadeira
apenas alguns exemplos críticos de nossa re- em que sentavam os presos. “Cuidado, você
alidade. pode pegar uma doença”, “não sente aí não”.
É preciso superar o senso comum (por Há muitos sentidos a serem extraídos dessas
vezes, um senso comum teórico de juristas) se- falas, mas um deles parece inequívoco: elas
gundo o qual “a polícia prende e a justiça solta” demarcam uma distância entre eles e os cus-
e pensar em que medida o direito em geral e o todiados.
processual penal em especial e a justiça se re- Esse detalhe de minhas interações com
lacionaram com as polícias, chancelando suas juízes, promotores e defensores públicos que
práticas e albergando seus sistemas de produ- atuam nas audiências numa capital de um dos
ção de verdade. estados brasileiros, longe de ser supérfluo, é
Para provocar essa reflexão, proponho uma representação importante sobre as dis-
um olhar sobre o cotidiano das audiências de putas de sentido que ocorrem nas audiências
custódia. de custódia. Quando um custodiado alega ter
Como se sabe, elas possuem um papel sofrido violência institucional, é um “bandido”
relevante a cumprir, já que é o primeiro mo- que se volta contra “policiais”. O conflito não é
mento em que alguém que foi preso em fla- apenas entre narrativas, mas entre sujeitos e
grante ou por ordem judicial1 é posto à frente toda a carga simbólica que carregam. É sobre
dos membros da magistratura e do Ministério merecer ser vítima ou não (FLAUZINA; FREI-
Público, além de ser assistido por uma defesa TAS, 2017).
técnica. Na resolução n. 213/2015, o Conselho As disposições expostas na Resolução
Nacional de Justiça explicitou que o magistra- 213/2015 não são capazes, por si, de transpor
do, ao ouvir o custodiado, deve perguntar so- as regras informais que se acumulam no sis-
bre “a ocorrência de tortura e maus tratos e tema punitivo e que entendem que a tortura,
adotando as providências cabíveis”. Além dis- os maus tratos e a intimidação podem ocorrer
quando a finalidade for a garantia da seguran-
1
No âmbito da justiça estadual, somente os presos em
ça pública. Essa percepção não é partilhada
flagrante têm sido encaminhados às audiências de custódia,
o que é, inclusive, objeto da Reclamação 29303, ajuizada apenas pelas polícias, mas por toda a cadeia
pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em julgamento do sistema de justiça criminal e juvenil e a falta
hoje no STF. de encaminhamentos sistemáticos de casos de

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tortura nas audiências de custódia é um exce- apenas alguns institutos processuais penais que
lente exemplo disso. poderiam constituir instrumentos de contenção
Sabemos que as polícias, como organiza- à violência institucional.
ções públicas destinadas ao controle social em Enfim, o campo processual penal críti-
um Estado Democrático de Direito, exercem co precisa olhar para a experiência que vem
um mandato e suas atuações devem estar, o das ruas, especialmente para as que subme-
tanto quanto possível, discriminadas em leis tem historicamente uma parte da população
ou outros atos normativos. Quando não pre- a uma “justiça policial” expeditiva e pensar
viamente, é preciso que haja instrumentos de suas regras e princípios de modo a superar
controle posterior dessas atividades, espaços essas e outras formas de violência institu-
de accountability (MUNIZ; PROENÇA, 2007). cional, engajando a responsabilidade de to-
Porém, desde a formação das forças po- dos os atores envolvidos (FLAUZINA; PIRES,
liciais no Brasil até hoje, existe um traço per- 2020). Superar essas práticas é, antes de tudo,
sistente na sua forma de atuar: uma liberdade ajustar nossos olhares à nossa realidade, um
que é tanto maior quanto mais próximo o cor- convite que E. R. Zaffaroni (1988) vem fazendo
po controlado for violável ou torturável. Esta desde a década de 1980 ao propor um realismo
característica está, no Brasil, intrinsicamente marginal ou uma criminologia que não parta
ligada à experiência da escravidão e do racis- do Centro para a Periferia do mundo, mas que
mo. Em outras palavras, face a uma parte de se construa a partir da margem. Em sentido
nossa sociedade, a polícia é soberana e atua análogo, por que não um processo penal a par-
frequentemente sem constrangimentos legais tir da margem?
ou de outras organizações, o que inclui o Po-
der Judiciário e o Ministério Público. REFERÊNCIAS
Existe uma partilha de saberes e estrutu-
CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Tortura blindada. 2017.
ras de discurso que autorizam a luta contra a
FLAUZINA, Ana Luiza P.; FREITAS, Felipe da Silva. Do pa-
“desordem”2 a qualquer custo, o que, no plano radoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a nega-
processual, implica uma série de atos de vali- ção do sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira de
dação sobre ações abusivas das polícias. Ciências Criminais v. 135, p. 15-32, 2017.
Isto é, pouco se vê “relaxamentos do fla- FLAUZINA, Ana L. P; PIRES, Thula. Roteiros previsíveis: ra-
grante” quando há narrativa de tortura na con- cismo e justiçamentos no Brasil. Boletim Trincheira De-
mocrática. Boletim Revista do IBADPP, Ano 3, n. 8, abr, p.
dução da prisão ou quando os flagrantes são
8-10, 2020.
fruto de buscas pessoais sem fundamento legal JESUS, Maria Gorete Marques de. A verdade jurídica nos
(abusando da abertura amplitude semântica da processos de tráfico de drogas. Belo Horizonte: Editora
expressão “fundada suspeita” contida no artigo D’Plácido, 2018.
244 do CPP) ou “reconhecimento da ilicitude de MUNIZ,,J.; PROENÇA JÚNIOR. Da accountability seletiva à
provas” quando baseadas em entradas domicilia- plena responsabilidade policial. CARUSO, H.; MUNIZ, J. O.;
BLANCO, A. C. C. (Orgs.). Polícia, estado e sociedade: sa-
res sem mandado judicial ou ainda a “exigência
beres e práticas latino-americanos. Rio de Janeiro: Publit,
de standards de provas objetivos” para condena- 2007. p. 21-73.
ção (VIEIRA; MATIDA, 2019), que, no mínimo, re- LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Inves-
futasse a possibilidade de condenação fundada tigação Preliminar no Processo Penal. 6 ed. São Paulo:
exclusivamente em testemunhos policiais, além Saraiva, 2014.
de se insistir em uma equívoca compreensão Matida, Janaina R.;VIEIRA, Antonio. Para além do BARD:
uma crítica à crescente adoção do standard de prova 'para
que afasta a “disciplina das nulidades do contro-
além de toda a dúvida razoável' no processo penal brasi-
le dos atos da investigação policial”, para citar leiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 156, p.
221-248, 2019.
2
A garantia da ordem pública, comum nos discursos NOVAES, Bruna P. de. Embranquecer a cidade negra: ges-
autoritários da década de 1930 é, em verdade, a tônica tão do trabalho de rua em Salvador no início do século XX.
do controle policial ao longo de todo o século XIX e Dissertação de Mestrado. PPGD-UnB. 2017.
início do século XX, estando muito ligado, no Brasil, ao OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno:
controle da circulação de corpos negros nas cidades com uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
a crise do escravismo e no pós-abolição e das atividades SILVA, Fernanda Lima da. Dançar em praça de guerra:
reivindicatórias operárias do início do século XX. Neste precariedade e liberdade na cidade negra (Recife, 1870-
sentido, ver: SILVA, 2019; NOVAES, 2017. 1888). Dissertação de mestrado. PPGD-UnB. 2019.

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Artigos

VIEIRA, Antonio; MATIDA, Janaína; MASSENA, Caio; MAR- MANUELA ABATH


TELLI, Marcella. A toda prova. Boletim Trincheira Demo- VALENÇA
crática. Boletim Revista do IBADPP, Ano 2, n. 4, ago, p.33-
35, 2019.
WANDERLEY, Gisela A. A busca pessoal no direito brasi-
Doutora em Direito pelo
leiro: medida processual probatória ou medida de polícia Programa de Pós-Gradu-
preventiva? Revista Brasileira de Direito Processual Pe- ação em Direito da UnB.
nal, v.3, n.3, 2017, p. 1117-1154, set./dez., 2017. Mestra pelo Programa de
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Criminologia: Aproximación Pós-Graduação em Direito da UFPE. Professo-
desde un margen. Bogotá: Editorial Themis, 1988.
ra Adjunta da Graduação e do Programa de Pós-
-Graduação em Direito da UFPE e da graduação
da UNICAP. Pesquisadora do Grupo Asa Bran-
ca de Criminologia. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4639632022380361

Respiro

Charge por: André Dahmer @andrédahmer

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Artigos

FABRICANDO O FORAGIDO: CRITÉRIOS PARA


RECONHECIMENTO DA FUGA NO PROCESSO PENAL
Por Daniel Fonseca Fernandes e Tainan Bulhões Santana

A decretação e manutenção de prisões “foragido” como uma espécie de licença para


preventivas sob o argumento de que o réu/in- aplicar prisões processuais desproporcionais e
vestigado se encontra foragido ou em local não desnecessárias. A própria jurisprudência majo-
sabido têm grande repercussão no processo pe- ritária do STJ é reveladora desta forma de pen-
nal brasileiro. A condição de foragido aparece, sar. Diversos julgados mais recentes mobilizam
em muitos casos, como justificativa da prisão, esta categoria para, de alguma forma, restringir
sob o pretexto de “assegurar a aplicação da lei direitos fundamentais do investigado/acusado,
penal” e garantir a “ordem pública”, fundamentos como a impossibilidade de avaliar o excesso de
do artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP). prazo na ordem de prisão1 e a manutenção em
Apesar de ser uma categoria mobilizada unidade prisional distante da família2.
com frequência nas decisões judiciais, há pou- Diante deste cenário, é necessário pensar
ca reflexão, tanto na literatura acadêmica como possibilidades de resistência a prisões arbitrá-
nos Tribunais, a respeito dos requisitos, limites rias, no campo do processo penal. A teoria com-
e consequências do reconhecimento desta cir- prometida com a garantia da liberdade pode ser
cunstância. instrumento importante de disputa da própria
Dialogando com Becker (1973), para quem os narrativa construída nos movimentos de con-
grupos sociais criam o desvio, ao definir as regras tenção do poder punitivo pelo Judiciário, qua-
que estabelecem os comportamentos desviantes, lificando as categorias jurídicas e propondo cir-
é importante observar como operam os rótulos cunstâncias que devem ser observadas.
utilizados no sistema de justiça penal e seus efeitos Buscando mais a fundo a jurisprudência do
concretos para imposição de prisões processuais. STJ, dos últimos anos, é possível identificar mo-
Cabe à teoria crítica no campo jurídico-penal pro- mentos em que a Corte oferece contornos mais
blematizar a construção destas regras e seus sig- precisos para se compreender quando há efetivo
nificados, estabelecendo a proteção contra o po- quadro de fuga e quais suas repercussões para
der punitivo estatal como horizonte. as prisões processuais. Dois entendimentos se
As reflexões aqui propostas se orientam pela destacam neste sentido.
seguinte questão: quais os limites e consequên- O primeiro, consiste em considerar que a
cias da condição de foragido para a decretação e mera falta de localização do investigado/acusa-
manutenção da prisão preventiva? Na tentativa do não é o bastante para afirmar que o réu está
de propor critérios que caracterizem o estado de foragido3. Em precedentes importantes, a Corte
fuga, dialogaremos com julgados do Superior Tri- afirma que não é suficiente para decretação da
bunal de Justiça (STJ) que tratam sobre o tema. prisão o fato de o réu encontrar-se em local não
O olhar crítico adotado neste trabalho se sabido ou ter sido citado por edital. Não pode
propõe a realizar esta discussão por meio do haver “presunção de evasão” apenas com base
direito, considerando que a legitimidade do nestas circunstâncias concretas.
processo penal reside nas possibilidades (ainda Algumas destas decisões distinguem, ainda
que estruturalmente limitadas) de filtragem e que de forma pouco densa, os conceitos de “eva-
contenção do poder punitivo (ZAFFARONI et al., são” e “não localização”4, demarcando a fronteira
2011), impondo requisitos necessários para que legítima entre o não-comparecimento ou impos-
seja possível falar em punições legais. As cate-
gorias jurídicas, portanto, não podem servir de 1
HC 543.832/SP – STJ – Sexta Turma – Rel. Min. Antonio
“cheque em branco” para decretação e manu- Saldanha Palheiro – julg.: 10.03.2020.
tenção de prisões desmedidas, mas devem aten-
2
RHC 122.262/PI – STJ – Sexta Turma – Rel. Min. Antonio
Saldanha Palheiro – julg.: 10.03.2020.
der a funções básicas de racionalização da ação 3
RHC 103.016/MG – STJ – Sexta Turma – Rel. Min. Rogério
estatal, limitação do alcance do poder punitivo e Schietti – julg.: 26.03.2019; HC 428.254/RN – STJ – Sexta
preservação da liberdade dos sujeitos. Turma – Rel. Min. Sebastião Reis Jr. – julg.: 27.08.2019; HC
Também estamos cientes de que a ju- 549.253/MG – STJ – Sexta Turma – Rel. Min. Laurita Vaz –
risprudência majoritária faz uso da categoria julg.: 06.02.2020.

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Artigos

sibilidade de comunicação e a prática de ato deli- dições pessoais favoráveis (como possuir família,
berado de ocultação do investigado/acusado. trabalho ou moradia na comarca do processo) de-
Suponha-se que um sujeito tenha sido ou- vem ser consideradas como indícios de não-fuga;
vido na Delegacia, sob a suspeita de ter pratica- (7) a demora em cumprir os atos de comunicação
do determinado crime, e que após este evento processual ou mandados de prisão não pode ser
não tenha havido qualquer medida contra ele imputada ao investigado/acusado como indício
nem comunicação de qualquer ato oficial. Após de fuga; (8) ainda que esteja caracterizado o estado
um ano, este indivíduo vai morar em outro es- de fuga não pode haver aplicação automática da
tado, em razão de uma oportunidade de traba- prisão preventiva para “assegurar a aplicação da
lho. Tempos depois, ao não ser encontrado para lei penal” ou “garantia da ordem pública”; (9) o es-
eventual cumprimento de mandado de prisão ou tado de fuga não pode significar um fundamento
citação, poderá ser considerado foragido? “eterno” para manutenção da prisão, especial-
O segundo entendimento estabelece que mente quando há ligação do investigado/acusa-
mesmo quando for reconhecido o quadro de fuga do comprovada com a comarca do processo; (10)
não é possível conceber a prisão preventiva como o investigado/acusado não tem o dever de se en-
consequência automática. Há uma série de requi- tregar, ainda que saiba – oficial ou oficiosamente
sitos decorrentes da Constituição Federal e das – que há um mandado de prisão expedido contra
garantias processuais, que vão desde a presunção si; (11) o investigado/acusado tem o direito legíti-
de inocência à proporcionalidade destas medi- mo de resistir à coação ilegal, buscando impedir
das. Portanto, mesmo quando estiver caracteri- restrição indevida a sua liberdade.
zado o quadro de fuga, esta circunstância não é A limitação do alcance do poder punitivo
suficiente para manutenção da prisão5. como meta do processo exige aprofundamento
É possível articular estes entendimentos e delimitação das categorias jurídicas. É nes-
com uma análise crítica no campo da dogmáti- te sentido que as premissas aqui estabelecidas
ca processual penal, buscando definir contornos buscam alargar espaços para construção de cri-
mais precisos e limitados para a categoria “fora- térios que definam, de maneira racional e palpá-
gido” no processo. vel, o estado de fuga, limitando suas repercus-
Para além das possibilidades estabelecidas sões para decisões de privação da liberdade.
nestas decisões – com o grau de liberdade que o
formato deste texto permite –, propomos uma sé- REFERÊNCIAS
rie de premissas que deverão orientar a interpreta-
BECKER, Howard S. Outsiders. Studies in the sociology of
ção acerca do quadro de fuga no processo penal e deviance. New York: The Free Press, 1973.
sua repercussão nas decisões de prisão, buscando ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro:
dar destaque a pontos relevantes para pesquisas primeiro volume. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
futuras: (1) é necessário que tenha havido efetivo
deslocamento por parte do investigado/acusado; DANIEL FONSECA
(2) este deslocamento deve ter como finalidade FERNANDES
evitar o prosseguimento ou cumprimento de ato
de investigação/processo; (3) é preciso que tenha Mestre em Direito UFBA.
sido fixada obrigação de comparecimento ou de Professor de Direito Penal
comunicação de endereço para que o não com- e Processo Penal na UNI-
parecimento ou mudança tenha relevância para JORGE. Membro do Grupo
o processo; (4) a citação por edital não gera pre- Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e
sunção de fuga; (5) a apresentação espontânea ou Prisões. Membro do IBADPP. Advogado.
entrega de bens por parte do investigado/acusado
deve ser tida como indício de não-fuga; (6) as con- TAINAN BULHÕES
SANTANA
4
HC 446.010/SP – STJ – Quinta Turma – Rel. p/ acórdão
Min. Ribeiro Dantas – jul.: 16.08.2018 Pós-graduando em Ciên-
5
HC 516.199/RJ – STJ – Sexta Turma – Rel. Min. Rogério
cias Criminais pela UCSAL.
Schietti – julg.: 17.12.2019; HC 520.216/DF – STJ – Quinta
Turma – Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca – julg.: Bacharel em Direito pela
19.09.2019; HC 38.625/PI – STJ – Sexta Turma – Rel. Min. UFBA. Bacharel em Huma-
Nilson Naves – julg.: 19.05.2005. nidades pela UFBA. Advogado.

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Artigos

LA REVALORIZACIÓN DE LA VÍCTIMA EN EL
PROCESO PENAL Y LOS DISCURSOS REFORMISTAS
Por Dr. Jose Maria Gomez Ferreyra

Sólo a través del reconocimiento del inte- deriva del pro homine – entendiéndose como la
rés del ofendido por el delito, respecto al objeto prohibición de aquellas decisiones de rechazo
penal del proceso, será posible realizar el dere- que, por su rigor, formalismo excesivo o por cual-
cho a la tutela jurisdiccional efectiva, aspecto quier otra razón, resultan desfavorables para la
axial del sistema penal acusatorio, reflejado en efectividad del derecho a la tutela judicial efectiva
la idea de protección de las víctimas y su parti- o desproporcionadas entre los fines que se pre-
cipación en el debido proceso. tenden preservar y los intereses que se sacrifican.
Según la Carta Iberoamericana de Dere- Es momento que la participación y las ne-
chos de las Víctimas, aprobada por la Cumbre cesidades de las víctimas sean consideradas de
Judicial Iberoamericana1, se entenderá por víc- manera integral por los sistemas judiciales garan-
tima “toda persona física que haya sido indi- tizando un verdadero equilibro entre las partes
ciariamente afectada en sus derechos por una desde una orientación que permita diferenciar
conducta delictiva, particularmente aquellas los intereses de la sociedad representados por el
que hayan sufrido violencia ocasionada por una Ministerio Público; respecto de los intereses indi-
acción u omisión que constituya infracción pe- viduales de las víctimas de hechos ilícitos.
nal o hecho ilícito, sea física o psíquica, como el La necesidad de regular una participación
sufrimiento moral y el perjuicio económico”. proactiva de la víctima en el proceso penal, res-
El art. 8.1 de la Convención Americana so- ponde a un auténtico control de la gestión pública,
bre Derechos Humanos (CADH) establece en lo que nos lleva a proclamar que es hora de avan-
forma genérica: “Toda persona tiene derecho a zar hacia la figura del querellante, restituyéndole
ser oída con las debidas garantías... en la sustan- el conflicto a la víctima que no precisamente im-
ciación de cualquier acusación penal formulada plica menoscabar derechos del imputado.
contra ella o para la determinación de sus dere- La participación de la víctima en la investi-
chos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal gación de los delitos de acción pública constituye
o de cualquier otro carácter”. En la misma línea una forma de satisfacer el anhelo de dar mayor
discurre el art. 14.1 inc. 2º del Pacto Internacio- intervención a la ciudadanía en la persecución
nal de Derechos Civiles y Políticos: “Toda perso- penal y de contribuir a la eficacia de los órganos
na tendrá derecho a ser oída públicamente y con del Estado en la lucha contra la delincuencia.
las debidas garantías…”. La irrupción de la víctima como parte den-
Asiste a la víctima el derecho a que su caso tro del proceso penal provoca una necesaria
se resuelva dentro de un plazo razonable; de ahí interacción con el Ministerio Público en tanto
se deriva el derecho a que el proceso avance ha- ambos sostienen una pretensión común de con-
cia la dilucidación del caso y como contraparti- dena del imputado.
da, se genera una obligación para el Estado de Cuando opera conjunción de intereses, la
resolver en tiempo y forma la situación del im- actividad se facilita trasuntando por una adhe-
putado y con ello darle certidumbre a la persona sión absoluta. Sin embargo, pueden asomar pun-
ofendida por el delito. tos de tensión cuando las posiciones difieren en
La principal garantía que se puede relacio- cuanto al hecho y/o su encuadre legal o cuando
nar con la víctima es la del debido proceso que la Fiscalía resuelve no iniciar la investigación,
importa la protección o tutela que el Estado brin- archivar la misma o solicitar el sobreseimiento,
da para que el ciudadano pueda acceder al pro- mientras que, en las antípodas, la víctima recla-
ceso realizable en forma regular. La víctima ha- ma la prosecución del procedimiento.
brá de controlar que no se adopten resoluciones Al existir dos o más sujetos que ejercen la
arbitrarias o manifiestamente irrazonables. Este función de acusadores (Fiscal y querellante/s), y
control debe realizarse a través de los criterios tienen como objeto el dictado de una sentencia
que proporciona el principio pro actione - que de condena contra el acusado, respecto de un
mismo hecho que se adecua a determinado tipo
1
Aprobada durante la XVI edición, Argentina, abril de 2012 penal, habrá identidad de pretensiones punitivas

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Artigos

que provocan la intervención de todos ellos a tra- que sugerimos apunta a conferir nuevas formas
vés de un litisconsorcio activo necesario. de participación, flexibilizando las reglas clási-
Teniendo presente que todo litisconsorcio cas de ejercicio de la acción penal. En tal sentido
responde a un conjunto de reglas de administra- destacamos como aspectos esenciales que redi-
ción o gestión de la comunidad de intereses, las mensionan la intervención de la víctima y debe-
tensiones que se puedan generar en la interac- rían ensamblarse en el tratamiento normativo:
ción de sus integrantes habrán de resolverse, ora • la participación proactiva en los proce-
a través de soluciones rígidas donde el Ministerio sos abreviado y simplificado;
Público ostente la dirección del conjunto de inte- • el reconocimiento de la calidad de que-
reses; ora desde sistemas flexibles o combinados rellante para movilizar la acción privada
donde se arbitrarán soluciones ya en el ámbito frente a determinados hechos punibles;
del Ministerio Público o del Poder Judicial. • la conversión de la acción pública en
Es conveniente diseñar sistemas complejos acción privada ante dispositivos de ar-
que habiliten al Ministerio Público la facultad de chivo provisional, principio de oportu-
asumir la dirección o de convenirla según los ca- nidad o solicitud de sobreseimiento.
sos y los planes de persecución penal. Pero lo más
importante es el reconocimiento de la existencia Con énfasis en el control de la gestión públi-
de un litisconsorcio, es decir, de una comunidad ca, es menester incorporar al ofendido en el pro-
de intereses que deben ser gestionados en con- ceso penal reconociéndole el estatuto del quere-
junto. No hay nada más perjudicial para la efica- llante, que le permita requerir y lograr la elevación
cia del proceso penal que las pequeñas o grandes a juicio con autonomía probatoria, de acusación y
guerras entre fiscales y querellantes, producto de alegaciones, incardinando el derecho fundamental
la incomunicación, la falta de vocación de trabajar al recurso que reconoce expresamente la Conven-
en común, la incomprensión de las necesidades ción Americana sobre Derechos Humanos.
de cada uno de los acusadores o simplemente la Es hora de superar la concepción del re-
poca predisposición burocrática a ver los casos conocimiento simbólico; es momento que la re-
más allá del trámite (BINDER, 2014, p.545). valorización de los derechos de la víctima cobre
Deviene imperioso reconocer al quere- virtualidad en los discursos reformistas como
llante la facultad de actuar de modo autónomo aquellos que se vienen desarrollando en Brasil, po-
ante la pretensión desincriminante de la Fiscalía tenciando la humanización del proceso. En defini-
entronizada en archivo provisional, principio de tiva, es tiempo de proponer bases que apuntando
oportunidad o sobreseimiento. a un amplio espectro de persecución desafíen al
En los delitos de acción pública, la vícti- sistema procesal penal desde la consagración del
ma o su representante legal, podrán provocar la derecho fundamental de acceso a la justicia.
persecución penal o intervenir en la ya iniciada
por la Fiscalía. REFERÊNCIAS
Si pretendemos favorecer su satisfacción,
BINDER, Alberto. Derecho Procesal Penal Tomo II, 1ª ed.
será necesario renunciar definitivamente a la
Buenos Aires, Ad-Hoc, 2014.
concepción dicotómica que las conquistas de la
víctima se obtienen en desmedro de los derechos
del imputado. El querellante debe gozar de igual DR. JOSE MARIA
derecho a la jurisdicción que el imputado y por GOMEZ FERREYRA
tanto le asistirá la prerrogativa de obtener una
respuesta a la pretensión planteada, vale decir Ministro de Tribunal de
derecho a obtener una sentencia o resolución Apelaciones en la Republica
motivada y a la utilización de los recursos. Si la Oriental del Uruguay. Espe-
esencia de la consagración de garantías mínimas cialista en Fundamentos de
en el proceso penal se nuclea en “toda persona” Derecho Procesal Penal (Universidade Católica del
(artículo 8 de la CADH), el derecho al recurso Uruguay). Profesor de Derecho Procesal Penal en
efectivo será indiscutiblemente bilateral, ampa- Centro de Estudos Judiciales del Uruguay. Docente
rando tanto al imputado como a la víctima. de Derecho Penal en Universidade de La Republica
Lejos de reproducir un modelo diagnóstico Oriental del Uruguay. Maestrando en Derecho Pro-
de intervención coadyuvante simple, la solución cesal Penal en Universidade Católica del Uruguay.

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Artigos

UM DESAFORO NO DESAFORAMENTO
Por Fabiano Pimentel e Catharina Fernandez

Em decisão exarada pela 2ª Turma do Su- Não é crível que, após julgamento pelo
premo Tribunal Federal, relatada pelo Ministro Conselho de Sentença, todo o procedimen-
Gilmar Mendes, nos autos do Habeas Corpus n. to seja anulado por decisão superveniente dos
134.900 do Rio Grande do Sul, a Corte Suprema Tribunais Superiores, o que poderia, inclusive,
fixou o entendimento pela possibilidade de ser constranger o Réu a ver-se novamente julgado,
realizado o julgamento pelo Tribunal do Júri na por um único motivo: a desídia estatal.
pendência de Recurso Especial e Extraordinário, Em que pese o vasto rol de implicações
sob fundamento de que o art. 421 do Código de oriundas da decisão proferida no HC n. 134.900,
Processo Penal, ao referir-se à necessidade de salta aos olhos o esvaziamento completo do ins-
preclusão da decisão de pronúncia, deve ser in- tituto do desaforamento, que, segundo a lógica
terpretado levando em consideração apenas os instaurada, estaria obstado. Segundo o parágra-
recursos ordinários. fo 4º do artigo 427 do CPP:
O decisum encontra escora na demora de
[...]na pendência de recurso contra a de-
processamento dos procedimentos afetos ao cisão de pronúncia ou quando efetivado o
Tribunal do Júri, ponto levantado pelo Relator julgamento, não se admitirá o pedido de
quando da discussão do feito, segundo o qual desaforamento, salvo, nesta última hipó-
paira sob o julgamento popular demora natural, tese, quanto a fato ocorrido durante ou
independente da interposição de recursos, que após a realização de julgamento anulado
ocasiona, como consequência, a prescrição dos
crimes que deveriam ser levados ao plenário, no O desaforamento, portanto, apenas se
judicium causae. mostra cabível quando do trânsito em julgado
Deste modo, factível a ponderação de que, da decisão de pronúncia, fazendo referência
para a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a expressa à inexistência de recurso pendente,
demora no julgamento de crimes de competên- sem, contudo, restringir tal interpretação ape-
cia do Tribunal do Júri viabiliza a flexibilização nas às instancias ordinárias. Eis, então, a celeu-
do vocábulo “preclusão”, restringindo a condi- ma jurídica que baseia toda a discussão: uma vez
cionante do art. 421 do Código de Processo Pe- marcado o júri antes do trânsito em julgado da
nal apenas à abrangência dos recursos ordiná- decisão de pronúncia, como autoriza a jurispru-
rios, de mais ágil processamento, com vistas a dência do STF, estaria inviabilizado o manejo do
impedir a dilação prazal das prisões provisórias, desaforamento?
bem como a prescrição de crimes dolosos con- Em verdade, ao dirigir o pedido de desa-
tra a vida. foramento ao Tribunal competente, o conhe-
Em verdade, há de se ver a incorporação cimento e provimento do pleito está restrito
da lógica processual civil de forma atentatória ao cumprimento dos requisitos autorizadores.
à dinâmica processual penal e as suas garantias Na prática, uma vez verificada a existência de
inerentes, pois se insere, no contexto criminal, Recursos Especial e Extraordinário pendentes
a ideia de inexistência de efeito suspensivo aos contra a decisão de pronúncia, o requerimen-
Recursos Especial e Extraordinário, os quais, to nem sequer é analisado, pois não consegue
uma vez providos, poderiam retroagir para anu- transpassar o primeiro plano da análise, para
lar os atos já praticados. que seja o requerimento conhecido pelo Tribu-
Em seio procedimental em que se deve- nal competente.
ria prezar pela defesa plena, não só ampla, mas Não se pode afirmar, por consectário lógi-
plena, e o respeito inescusável à dignidade da co, que o posicionamento dos Tribunais Pátrios
pessoa humana, evitando que se imponha aos está equivocado, vez que lastreado na letra fria
jurisdicionados maior constrangimento do que do texto legal (art. 427 do CPP), portanto, na
aquele inerente ao processo criminal, o raciocí- existência de recurso pendente contra a deci-
nio quanto ao efeito suspensivo parece, no míni- são de pronúncia, não se pode admitir o pedido
mo, reducionista. de desaforamento, para o qual se deve aguar-

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Artigos

dar o trânsito em julgado da decisão (BADARÓ, REFERÊNCIAS


2019, p. 702).
STF. HABEAS CORPUS 134.900 RIO GRANDE DO SUL Re-
No seio da discussão ora proposta, permitir
lator: Ministro Gilmar Mendes. portal.stf.jus.br, 11 outubro
a designação da Sessão Plenária do Júri na pen- 2016. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/
dência de Recursos Especial e Extraordinário pe- downloadPeca.asp?id=312081558&ext=.pdf>. Acesso em: 13
rante os Tribunais Superiores, significa alterar a novembro 2019.
forma prescrita na lei, insculpida no parágrafo 4º BADARÓ, G. H. Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Revista
do artigo 427 do Código de Processo Penal, que é dos Tribunais, 2019, p. 702.
expresso no sentido de ser necessário aguardar
o escoamento de todos os recursos pendentes FABIANO PIMENTEL
sobre a decisão que encerra a primeira fase do
procedimento. Em síntese, a decisão proferida Doutor e Mestre em Direi-
pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, nos to Público pela UFBA. Pro-
autos do já mencionado Habeas Corpus n. 134.900 fessor Adjunto de Direito
do Rio Grande do Sul, sentencia de morte o insti- Processual Penal da UFBA
tuto do desaforamento. e da UNEB. Membro da
Com a flexibilização da formalidade proce- Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Advo-
dimental, verifica-se, automaticamente, a viola- gado Criminalista.
ção de direitos e garantias fundamentais daque-
les submetidos ao julgamento popular. O Réu, CATHARINA FERNANDEZ
para além de ver-se submetido ao julgamento
pelo Conselho de Sentença antes de ter sido Bacharela Interdisciplinar
confirmada a decisão de pronúncia, em patente em Humanidades com Ên-
constrangimento ilegal, pois pode vir a ser im- fase em Estudos Jurídicos
pronunciado por um dos Tribunais superiores, pela UFBA. Bacharela em
tem, ainda, obstaculizado o pedido de desafora- Direito também pela UFBA.
mento, o qual só poderá ser realizado, e assim o Pós-Graduanda em Direito Penal e Criminolo-
é na prática forense, após transitada em julgado gia pela PUCRS. Advogada Criminalista.
a pronúncia, perfazendo-se em patente negativa
de prestação jurisdicional, um verdadeiro “desa-
foro” no procedimento de desaforamento.

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O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL INSTITUIDO PELO


NOVO ART. 28-A DO CPP E O RISCO DA SUA EFICÁCIA INVERTIDA
Por Thaize de Carvalho Correia

Em 24 de dezembro de 2019, foi publicada por si só, dor e sofrimento ao cidadão, por esta
a Lei 13.964 que incluiu o artigo 28-A no Código razão, países democráticos adotam uma política
de Processo Penal (CPP) que institui o acordo de criminal minimalista, deixando para o sistema
não persecução penal (ANP). O dispositivo de- criminal casos de alto relevo, evitando ao má-
termina que não sendo caso de arquivamento ximo a instauração do processo, pois veículo de
e tendo o investigado confessado formal e cir- angústia e restrições.
cunstancialmente a prática de infração penal, Adotar uma postura minimalista implica
cometida sem violência ou grave ameaça e com subscrever um sistema garantista de processo
pena mínima inferior a 04 anos, o Ministério Pú- penal que evite, ao máximo, a sua utilização, sem
blico poderá propor o acordo. se esquecer que, na maior parte do tempo, a má-
O artigo elenca os requisitos para a fixação quina estatal implementa um projeto de crimi-
da pena, ainda que sem processo, estabelecen- nalização1 de condutas que estigmatizam2 uma
do os parâmetros de admissibilidade, exigindo a parcela da população3.
confissão do investigado, a reparação do dano Essa realidade preconceituosa e seletiva
ou restituição da coisa; a renúncia voluntaria a do sistema foi demonstrada pela criminologia
bens e direitos como instrumentos, produto ou crítica ao constatar que o desvio não é uma qua-
proveito do crime; a prestação de serviço à co- lidade do ato ou da pessoa que o pratica, mas
munidade ou a entidades públicas por período a consequência de um rótulo aplicado (CARVA-
correspondente à pena mínima cominada di- LHO, 2013).
minuída de um a dois terços; o pagamento de Apesar das denúncias, o que se vê é a
prestação pecuniária a entidade pública ou de utilização desses argumentos criminológi-
interesse social. cos para manter um sistema penal máximo ao
Na audiência, o juiz homologará o ANP após invés de minorar os seus efeitos deletérios,
verificar a voluntariedade do aceite, bem como a implementando medidas alternativas, apre-
sua legalidade. Caso o magistrado considere ina- sentando, para tanto, novas formas de velhas
dequadas ou abusivas as condições, devolverá intervenções.
os autos para que seja reformulada a proposta, Assim, substitutos não seriam institutos
com concordância do investigado e seu defen- estranhos, pois reduziriam o espectro de inter-
sor. Homologado o acordo, o seu cumprimento venção estatal para evitar a submissão a proces-
se dará perante o juízo da execução penal e o sos penais que constrangem e humilham pela
descumprimento ensejará a rescisão do acordo sua própria natureza aflitiva.
com posterior oferecimento de denúncia. 1
Alessandro Baratta, Nilo Batista e Vera Malaguti esclarecem
Delimitada as nuances legais do acordo de os processos estatais de criminalização de condutas já que
não persecução penal, destaca-se a inserção le- a criminalidade não existe ontologicamente. Demonstram
gislativa por meio de um feixe de medidas deno- que a forma seletiva de eleição de comportamentos
minado de “pacote anticrime” com forte divul- controláveis se dá a partir de interesses de certos grupos
gação midiática e defesa escancarada por parte que pretendem, por meio da força e da ideia de técnica e
uma suposta e improvável neutralidade científica, assujeitar
de membros do Poder Executivo, a exemplo do
corpos e almas.
ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, ex-juiz fe- 2
A ideia de estigma é trabalhada por Alessandro Baratta
deral. como a incidência do sistema penal que elege determinadas
Pelo disciplinamento da medida, nota-se pessoas e ao observar a conduta por aquele grupo
que o acordo pretende substituir o processo pe- indesejada rotula-a como crime.
nal, ou seja, em caso de estar presente a justa
3
Vera Malaguti esclarece que as questões criminais do
Brasil no século XXI implicam na continuidade do genocídio
causa para o processo penal, deve o Ministério
colonizador, que se seguiu na escravidão e se eternizou
Público ofertar o negócio. no capitalismo, chamando a atenção para a necessidade
Isso porque a deflagração do processo já de contenção da barbárie por meio de uma criminologia
é um fardo para o cidadão, sendo certo que a própria que busque o fim da prisão, alertando que no dia a
sua existência, muitas vezes prolongada, impõe, dia tudo pode sempre piorar.

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Porém, esses institutos são incorporados propondo o referido negócio, mas sim arquivar a
como instrumentos de alargamento do contro- investigação.
le punitivo, sem alterar a amplitude e qualidade A recepção de institutos antipersecução
de intervenção, podendo citar como exemplos só pode ser incorporada a partir de um projeto
a transação penal e as medidas cautelares pes- de processo penal acusatório e não seu pseudo,
soais, que apesar do esforço legislativo tem sido devendo se entender o que este sistema impõe,
utilizados em sentido invertido, pois a transação sendo urgente a assunção das bases democráti-
penal vem substituindo o arquivamento dos ter- cas impostas pela Constituição Federal de 1988
mos circunstanciados e as cautelares pessoais e pelas convenções internacionais que o Brasil
restritivas de direito em substituição à liberda- subscreveu, como se passa a ponderar.
de provisória plena e não à prisão preventiva4, Assim, o novo art. 28-A do CPP merece
como planejado. preocupação pela sua imersão em uma cul-
Ao alocar o acordo de não persecução tura punitivista e o risco de desvirtuamento
penal no paradigma minimalista se espera que evidente diante das resistências denunciadas
esse instituto seja utilizado como substitutivo ao e presentes em todos as esferas de atuação do
processo, porém o que se receia é que em típico sistema de justiça criminal, não sendo possível
caso de arquivamento, o Ministério Público ofe- concretizar as linhas democráticas sem sua ne-
reça o negócio, desvirtuando a intenção reduto- cessária refundação global e profunda, deven-
ra do legislador. do manter a atenção vigilante na possibilidade
Diante das manipulações e permanências de troca de sinais do avanço esperado pela mu-
punitivistas é preciso ter cuidado para que per- dança.
maneça na mesma zona desviante o ANP, de-
vendo se ter o máximo de cuidado para que o REFERÊNCIAS
sentimento retributivo-utilitarista não absorva
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do
a intenção minimalista da margem de onde se
Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal;
fala, transformando a ideia de contrair o sistema tradução Juarez Cirino dos Santos – 3 ed. – Rio de Janeiro:
penal em mais um instituto ampliativo. Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
A possibilidade de não persecução penal BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasi-
pode ser um avanço se ambientada em vigas de- leiro, Rio de Janeiro: Revan, 11ªed., 2007.
mocráticas, pois pode dinamizar e diminuir as CARVALHO, Salo de. Criminologia Crítica: dimensões, sig-
nificados e perspectivas atuais, Revista Brasileira de Ciên-
mazelas do tradicional e longo processo penal, já
cias Criminais, São Paulo, n. 104, out./dez. 2013.
que mais abreviado. Porém este acordo só pode CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação, Rio
ser celebrado quando houver elementos para de Janeiro: Renavan, 2015.
a denúncia, pois em casos de arquivamento de MALAGUTI, Vera; Introdução Crítica à Criminologia Bra-
inquérito policial a primeira providência do Mi- sileira, Rio de Janeiro: Renavan, 2011.
nistério Público não pode ser notificar o cidadão OLMO. Rosa del. A América Latina e sua Criminologia, Rio
de Janeiro: Renavan, 2004.
4
Pesquisa do IBADPP demonstra a resistência dos
magistrados em conceder a liberdade plena aos conduzidos THAIZE DE
em razão de prisão em flagrante, tendo em vista que, do CARVALHO CORREIA
total das 590 decisões analisadas, o maior resultado obtido
pelo grupo de pesquisadores foi o de liberdade com fixação
de cautelares, totalizando o número de 286 decisões. (Os
Mestre e doutoranda em Di-
demais casos implicaram em relaxamento (14); decretação reito Público pela UFBA, pro-
de prisão temporária (01); conversão em prisão preventiva fessora de processo penal da
(285) e concessão de liberdade plena (04). Pesquisa UNEB e UFBA. Coordenadora
disponível em http://www.ibadpp.com.br/wp-content/ da especialização em Ciências Criminais da UCSAL,
uploads/2018/03/REL ATO%CC%81RIO-Pesquisa-
Advogada.
Audie%CC%82ncias-de-Custo%CC%81dia-IBADPP-1-1.pdf
acesso em 05 out 2019.

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QUANDO FALARÃO?
Por Saulo Murilo de Oliveira Mattos

Há formas de existir que estão nos lama- quisar o direito penal e processual. A essa altura,
çais da vida, à margem de si por determinações diz-se que o “réu”, ou os possíveis seres enquadrá-
alheias, para fora da cama macia, suave e com veis nesse predicado - do que se extrai que ser réu
cheiro de bebê que descansa o corpo aristocráti- é um presente que se “futuriza” constantemente
co aburguesado da cult classe média. Sensações para aquelas categorias sociorraciais - continua
infernais que insistem em habitar por inteiro sendo tratado como objeto, pois sua potência dis-
corpos destinados às prisões. Essa é a regra de cursiva não costuma ser captada em nenhum mo-
exclusão que não é contada pela História ditada mento das clássicas pesquisas.
por um bocadinho de gente do Bem. Entre tantas Os discursos garantistas, constituciona-
formas de não-viver, o campo de concentração listas, e até de pretensões mais avançadinhas,
prisional convida a uma percepção ligeiramente embora plenos de boas intenções, não escutam
hipotética. Algo sobre a interdição do ser, rela- tampouco oportunizam as falas dos que fre-
cionável às tradicionais formas de se pesquisar quentam a outra margem; aliás, dos que estão
nas dogmáticas penal e processual penal. à margem de tudo. A Academia, de portas fe-
Foucault (2014, p. 11-12), em sua aula inau- chadas, consegue prosseguir com seus olhos
gural no Collège de France (1970), observou que a azuis, angariando os louros por defender teori-
sociedade se estabelece a partir de um jogo in- camente um tratamento jurídico formalmente
tenso de interdições que se cruzam, se reforçam igualitário para o bicho exótico chamado réu.
e se complementam: “por mais que o discurso Se o processo penal em concreto é um
seja aparentemente bem pouca coisa, as inter- fenômeno antropológico, tanto ele quanto as
dições que o atingem revelam logo, rapidamen- formas de pensar as letras formais da academia
te, sua ligação com o desejo e o poder”. O ser processual estão mergulhados em uma versão
contemporâneo, ao menos no lado ocidental do antropológica puramente classificatória, cujo
mundo, é explosivamente discursivo. Interditá- sujeito pesquisador, com o artificialismo concei-
-lo na fala é arrancá-lo de si para que se torne tual de seu campo de saber, insiste em definir o
poeira suspensa. que é o sujeito pesquisado (objeto), embora ain-
As formas de não existir submetidas ao da insista em dizer que há horizontalidade nas
cárcere, antes de chegarem ao ápice da mudez relações de pesquisa. Esse formato não con-
social representado pela privação de liberdade segue alcançar outras perspectivas, que digam
(provisória ou definitiva), experimentam, des- respeito a quem vive nesses lamaçais da vida.
de a infância de seu não-existir, como a palavra Essa figura abstrata cognominada de “o dé-
só lhe é “dada simbolicamente, no teatro social, bil” do processo penal pouco diz sobre a realida-
e retorna ao ruído”, ao estilo do que aconte- de social brasileira que integra o processo penal,
cia com as palavras dos loucos antes do fim do a gente preta a ser encarcerada de um lado sob o
século XVIII, usada pela medicina apenas para comando chicoteante dos que decalcam livremen-
identificar a necessidade de excluir quem não te regras jurídicas no papeis de carbono que são as
fosse de mente sã (FOUCAULT, 2014, p. 10). As peles pretas, que ainda sangrarão muito por conta
palavras, quanto aos loucos, eram “o lugar onde das ilusórias promessas neoliberais. Há um apar-
exercia a separação; mas não eram nunca reco- theid processual penal, do campo de produção do
lhidas, nem escutadas” (FOUCAULT, 2014, p. 11). saber às práticas rotineiras de encarceramento.
É pela interdição da fala que também se A viragem de compreensão do como fa-
identifica a inumanidade desses que expiam a ex- zer a Antropologia muito se deve à constância
travagante necessidade de punir de nossa socie- de vivência etnográfica de Eduardo Viveiros de
dade, que ostenta, como símbolo perverso e pró- Castro, que captou e divulgou o perspectivis-
prio, algo de cruz, algo de suástica, a punição de mo ameríndio. É preciso, ao menos, folhear com
categorias sociais, identificadas pela raça. A suges- certa curiosidade suas obras-pesquisa para sa-
tão hipotética que nos visita é que a relação entre a bê-lo como fundamental ao entendimento sobre
antiga medicina e a loucura é um modelo útil para a nossa localização expropriatória no mundo –
compreender a lógica das clássicas formas de pes- destaque para a obra “A Inconstância da Alma

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Selvagem. Viveiros de Castro, no texto o Nativo lida, ser deliberadamente escanteada devido ao
Relativo”, aponta para a necessidade de supe- seu potencial empiricamente denunciante: a dor
rar essa suposta superioridade do antropólogo irracional que só o Poder Punitivo sabe provo-
em relação ao nativo, e afirma: “há equivalência car. Observe-se bem, os presos querem entregar
de direito entre os discursos do antropólogo e suas cartas, estão para além da “Carta ao Pai”, de
do nativo, bem como a condição mutuamente Franz Kafka, que, embora estivesse fisicamente
constituinte desses discursos, que só acedem livre, não conseguiu entregar a famosa carta a
como tais à existência ao entrarem em relação seu pai. Por outro lado, a pesquisa documenta
de conhecimento” (2002, p. 125). aquilo que Denise Carrascosa (2015, p. 15) pon-
O processo penal enquanto fenômeno an- tua sobre a “literatura marginal”, o preso, o qua-
tropológico tem se servido de conceitos - quase se-morto, só consegue achar espaço de afirma-
autointituláveis de próprios – que estão separa- ção nesse campo da literatura-testemunho, fora
dos de uma antropologia mais condizente com o disso todas as possibilidades lhes são retiradas.
social. Sinteticamente, o processo penal, mesmo É o destino da literatura marginal, é o que lhe
com o rebuscamento de teorias processuais hu- pode sobrar do céu despedaçado cujo sol sem-
manizantes, tem se valido de um Antropologia pre foi uma experiência rara e inusitada.
ultrapassada, que, por contradição àquelas teo- Os destinatários são os mesmos – os repre-
rias humanitárias universais, continua sendo útil sentantes estatais do Sistema de Justiça Criminal.
ao punir irracional. Acadêmicos conseguem, mesmo com alguma per-
No Direito Processual Penal, temas como da de informação, fazer chegar suas cartas-tese a
sistema acusatório, reformas parciais na Améri- esse sistema. Os presos e presas não, porque o
ca Latina e direito probatório revezam-se entre destino cruel e substancial de suas cartas é, como
climas febris de alta produção teórica e oscila- regra, o silêncio sistêmico e abismal que anteci-
ções mais mornas, como se um certo enjoo in- pa mortes. Entre os olhos dos donos do sistema e
telectual tomasse conta do ambiente pensante. as letras garrafais das epístolas dos encarcerados,
Sob quais perspectivas essas discussões acon- há o biombo da Interdição, que exclui automatica-
tecem? Quem tem protagonizado essas dis- mente o pensamento que vem de lá. Para eles, os
cussões? Quais homens e mulheres giram esse fundadores oficiais do sistema punitivo, no preso
debate? Quais a raça e categoria social dos in- há muito do primitivo selvagem. Neoliberais dirão:
terrogantes desse pensamento teórico? “há muita liberdade para todos e todas”. Como res-
Saindo dessa especulação indagativa, que posta, não se precisará de cartas, apenas um bilhe-
beira certo fatalismo, confesse-se que há exceções te recomendatório: ‘Liberais do século XVIII tam-
e esperanças no campo das pesquisas, muitas de- bém legitimaram a escravidão. Visite as primeiras
las vinculadas à pesquisa empírica “nas ciências páginas do livro “Contra-História do Liberalismo”
criminais”, com a ressalva desde já que pesquisa (Domenico Losurdo). Saudações.’
empírica não é colagem de quaisquer dados em
textos pré-formulados ao jeito enciclopédico. REFERÊNCIAS
Muitíssimo por sua força intelectual e de
CARRASCOSA, Denise. Técnicas e políticas de si nas mar-
argúcia social, mencione-se a pesquisa “Cartas
gens, seus monstros e heróis, seus corpos e declarações
do Cárcere”, que resultou no livro “Vozes do Cár- de amor: literatura e prisão no Brasil pós-carandiru. Curi-
ceres: ecos da resistência política”, coordenado tiba: Appris, 2015.
pelos professores Thula Pires e Felipe Freitas, que FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.: aula inaugural
analisaram mais de 8.000 cartas emitidas pelo no Collége de França. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
preferenciais do sistemas carcerário e endere-
çadas à Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais SAULO MURILO
(ONSP) do DEPEN em 2016. A análise documental DE OLIVEIRA MATTOS
consegue captar essa voz, esse enunciado dis-
cursivo maior, que há séculos diz: - “chega de Promotor de justiça, mestre
castigar injustamente” -, mas é sempre interdi- pela UFBA, professor de
tado pela vontade de não ouvi-la, característica cursos de pós-graduação
marcante de seus destinatários. em Ciências Criminais da
Mesmo essa gigantesca pesquisa corre o UCSAL e do CEJAS.
risco de interdição - de não ser lida - ou, quando

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JUDICIÁRIO, GENOCÍDIO E PRISÕES PREVENTIVAS: REFLEXÕES A


PARTIR DE UM ESTUDO DE CASO DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19
Por Luciana Fernandes

Quero propor uma reflexão sobre prisões mida e a ausência de garantias e direitos da
preventivas nos tempos de pandemia do coro- pessoa acusada (COUTINHO, 2017).
navírus. Mas, desde logo, pontuo que não tenho A falácia do sistema (plenamente) acusató-
a intenção de tratar da relação do judiciário com rio em vigência, porém, é o que tem combinado
a questão e com o genocídio contra a população com a retórica do Estado, mesmo porque, como
encarcerada como disjunção ou exceção, resul- ensina Ana Flauzina, “a armadura democrática
tante das incertezas atuais em matéria de polí- no Brasil tem sido o veículo condutor das ações
tica de saúde coletiva ou mero reflexo do aflo- genocidas em curso” (FLAUZINA, 2019, p. 66).
ramento dos discursos totalitários, nos últimos Assim tem funcionado a superfície legalista e de
anos, no Brasil e no mundo. Embora sejam estas “neutralidade”, que vem servindo como escudo
circunstâncias a serem consideradas, quero dar para a atuação judiciária. Blindando-se no con-
destaque, especialmente, a condições estrutu- teúdo ideológico por detrás de expressões como
rais da magistratura brasileira quando integra o “ordem pública” - que é a mais utilizada do art.
poder punitivo. Faço isso partindo de um estudo 312, do CPP - decisões têm refundado o instituto
de caso, que será a análise de trecho de uma de- das prisões preventivas, permitindo, dentre ou-
cisão judicial, e uma hipótese analítica, que é de tros efeitos, a antecipação da punição. A estra-
ser tal uma entidade constituída e constituinte tégia, genocida e antidemocrática, tem servido
das supremacias e interesses hegemônicos. para manter a aparência de funcionalidade do
Há tempos o tema das prisões cautelares é sistema e garantir os submersos interesses po-
assunto de denúncias por parte de organismos líticos da magistratura em atender as demandas
que fiscalizam o sistema prisional de forma re- sociais por punição (LOPES JR, 2018, p. 597).
gional (MEPCT/RJ, 2016), nacional (IDDD, 2019) A daninha amplitude dos termos da lei
e global (IPCR, 2019). Por ser um acautelamento usurpa o sentido democrático de existência do
anterior ao julgamento definitivo, e sendo (ain- processo penal, que deveria representar um sis-
da!) constitucional a presunção de inocência, tema de garantias limitadoras ao poder de punir.
não deve servir para punir alguém. Isto seria, em No caso examinado, o significado inconcluso da
termos objetivos, uma contradição em si: como expressão “ordem pública” dá margem ao seu
poderia alguém cumprir uma pena antes mesmo preenchimento de forma autoritária por parte
de concluído o processo, que é o único meio, em da classe, que tem se utilizado desse vocabulá-
um sistema democrático-acusatório, para rom- rio para se furtar à avaliação do “fato” em si e
per com o estado nato de não-culpabilidade de analisar a condição de “periculosidade” do/a su-
todas/os nós? posto/a “autor/a,” atualizando o método inqui-
Por isso, na teoria, a prisão preventi- sitorial em pleno 2020.
va serve como garantia da instrução criminal Em um país organizado pela supremacia
(LOPES JR, 2018, p. 583). É medida excepcio- branca e pelo escravismo que historiciza a sele-
nal, apenas admitida nos casos em que todos tividade do sistema penal, a condição de “perigo”
os requisitos da lei estão satisfeitos, incluin- reside historicamente, em corpos negros, pobres
do o caso de nenhuma das demais cautelares e periféricos, relegáveis ao verdadeiro “lixo de-
nessa área servirem para salvaguardar a fase finitivo” que são os presídios (DAVIS, 2018). Um
instrutória (arts. 282, §6º e 310-316 do CPP). contexto em si alarmante, que há tempos opera
Costumo dizer para minhas/meus alunas/os facilitando a naturalização da atuação tecnocrá-
de processo penal que, para permitir a anteci- tica da magistratura, e que se torna ainda mais
pação de pena, faria sentido dispensar a ação brutal em tempos de pandemia.
penal como um todo - já que perderia a sua Presídios são lugares de aglomeração de
finalidade mais essencial. Seria mais honesto, pessoas de diferentes localidades, idades, con-
nesse caso, declarar de vez um sistema abso- dições físico-psicológicas em um contexto de
lutamente inquisitório, porque é neste em que precariedades e constante circulação – por par-
habita a possibilidade da culpabilidade presu- te de agentes e de internos/as, dado o volume

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de apreensões e solturas. Superlotação, insalu- A fundamentação, que foi baseada justa-


bridade e falta de acesso à água, alimentação e mente na “ordem pública” do art. 312, do CPP, é
serviços de higiene básica e de saúde, este refe- indicadora de como os arranjos legais e consti-
rido como o mais precário dos “oferecidos” pela tucionais, que deveriam pautar a garantia de di-
SEAP, têm facilitado a transmissão de doenças reitos, têm servido para chancelar ações de ex-
gravíssimas (MEPCT/RJ, 2018). Como disse um termínio sistemático. E escancara como decisões,
interno, são, no Rio de Janeiro, lugares de con- no campo do encarceramento, podem assumir a
dições “subdesumanas” (MEPCT/RJ, 2019, p. 87), forma de sentenças de morte disfarçadas.
potencialmente fatais no contexto de plena di- A atuação real de juízes/juízas, que des-
fusão do coronavírus. prezam e subvertem o sentido da medida de
A imanência das condições dos presídios foi isolamento, revela faces brutais de como dis-
motivo de determinações expressas pela soltura cursos totalitários de desprezo pela vida há
de grandes quantidades de pessoas presas pela tempos integram a lógica de atuação da magis-
CIDH da ONU (2020), levando a edição, no Brasil, tratura no campo criminal. E que agora estão às
da Recomendação 26 do CNJ; normativas da pró- luzes, fazendo-nos refletir sobre como concilia-
pria SEAP e de Projeto de Lei (PL 978/2020). Na mos, por tanto tempo, democracia com sistema
prática, porém, os impactos têm sido pequenos, prisional em nosso país.
sobretudo porque colocam em questão a cultura
genocida, por parte da magistratura brasileira, no REFERÊNCIAS
trato das prisões preventivas.
CIDH. Advice of the Subcommittee on Prevention of Tor-
Tomo como estudo de caso o trecho de
ture to States Parties and National Preventive Mecha-
uma decisão publicada na primeira quinzena nisms relating to the Coronavirus Pandemic (adopted on
de abril de 2020, em uma comarca do interior 25th March 2020). 2020.
do Rio de Janeiro. Metodologicamente, não in- COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade In-
dico maiores detalhes da comarca, vara, crime quisitória e Processo Penal no Brasil. Vol. 3. Florianópolis:
ou pessoa acusada para fins de garantia do ano- Empório do Direito, 2017.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Boitem-
nimato e segurança das/os sujeitas/os envolvi-
po Editorial, 2018.
das/os. E opto por trazer as considerações fei- FLAUZINA, Ana Luiza. Democracia genocida. In: Brasil em
tas na decisão em abstrato sobre o período de transe: bolsonarismo, nova direita e desdemocratização
pandemia, porque potencialmente generalizá- / MACHADO, Rosana Pinheiro; FREITO, Adriano de (Org.).
veis para o indeferimento de outros pedidos de Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2019.
soltura julgados: LOPES JR, Aury. Direito processual penal. Editora Saraiva,
2018.
[...]a manutenção da prisão preventiva se MEPCT/RJ. Sistema em colapso: atenção à saúde e polí-
mostra, no presente momento, até me- tica prisional no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
lhor, porque acautelado ele será mantido ALERJ, 2018.
no necessário isolamento social. Tam- MEPCT/RJ; Justiça Global. Quando a liberdade é exceção:
bém deve ser ressaltado que, acautelado, a situação das pessoas presas sem condenação no Rio de
certamente o ora requerente terá me- Janeiro. Rio de Janeiro: 2016.
lhores condições de obter atendimento PRI. Coronavirus: Healthcare and human rights of people
médico, em caso de necessidade; diante in prison. 2020.
das condições atuais do sistema de saú- ICPR. PRE-TRIAL DETENTION AND ITS OVER-USE. 2020.
de estadual, especialmente diante do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa. O fim da
quadro atual de pandemia liberdade: a urgência de recuperar o sentido e a efetivida-
de das audiências de custódia. 2019.
O caráter opinativo parece inverter as con-
siderações feitas sobre aprisionamento em con- LUCIANA COSTA
textos de controle da COVID-19 pelas três esferas FERNANDES
de poder apontadas - incluindo o próprio órgão
de controle do judiciário, o CNJ - chegando a ser Doutoranda do PPGD da
referido como benéfico ao “isolamento social”. Na Puc/Rio e professora subs-
contramão da constatação de órgãos de fiscaliza- tituta no Departamento de
ção, aponta que nesses locais há, inclusive, mais Ciências Jurídicas da UFRRJ.
assistência à saúde, como se a reclusão pudesse
ser estratégica individual e coletivamente.

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A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES COMO MECANISMO DE CONTROLE


DO JUÍZO FÁTICO E DO CONTRADITÓRIO NO PROCESSO PENAL
Por Matheus Dantas Vilela

A sentença penal condenatória trata-se Elio Fazzalari, o contraditório não se resume


do expediente que autorizará a forma de inter- mais à bilateralidade de audiência (adiatur et al-
venção estatal mais severa sobre o indivíduo, tera pars), passando a ser compreendido como
necessitando ser cautelosamente justificada a “influência e não surpresa” (FAZZALARI, 2016).
partir observância de todas as regras do devido O princípio do contraditório consagra o pro-
processo legal e correta avaliação do quadro fá- cesso penal como o espaço procedimentaliza-
tico-probatório. Logo, considerando que o pro- do que garante a efetiva participação das partes
cesso penal é uma atividade cognitiva que visa na construção das decisões judiciais ao vincular
uma reconstrução aproximada de um suposto a fundamentação ao debate em contraditório
fato pretérito narrado e delimitado pela exor- (BARROS; MARQUES, 2017, p. 348).
dial acusatória, constata-se que a motivação da Nessa perspectiva, os princípios da fun-
sentença penal corresponde ao principal funda- damentação das decisões judiciais e do con-
mento de legitimidade da atividade jurisdicional, traditório estão umbilicalmente interligados,
tendo em vista é por meio dela que será expos- traduzindo uma relação de codependência. No
to o raciocínio que concluirá sobre a suficiência aspecto da “influência”, o contraditório garante
probatória para o afastamento do estado de ino- a efetiva participação das partes na construção
cência e imposição da pena, garantindo-se um das decisões judiciais ao impor ao juiz, sob pena
maior controle sobre os atos de poder. de nulidade por fundamentação deficiente, o
O dever de fundamentação das decisões dever de enfrentar todos os argumentos trazi-
judiciais é um princípio constitucional explíci- dos ao processo pelas partes. Já no que se refere
to que se encontra positivado no art. 93, IX, da à “não surpresa”, veda que o juiz vá além do que
CRFB/1988, possuindo uma dupla função: extra- foi pedido ou que decida a respeito de qualquer
processual e endoprocessual. Na dimensão ex- questão que não foi levantada no debate em
traprocessual, a motivação das decisões judiciais contraditório, impedindo as decisões de terceira
é “consubstanciada na possibilidade de subme- via. (BARROS; MARQUES, 2017, p. 349-350)
ter à crítica de toda a comunidade”, isto é, “ao A efetividade dos princípios do contradi-
controle externo difuso” (SOUSA, 2017, p. 71). No tório e da fundamentação das decisões judiciais
aspecto endoprocessual, a fundamentação per- reivindica contornos legais mais apurados, sen-
mite o controle da racionalidade das decisões do o contraditório uma das pedras de toque da
judiciais pelas partes, viabilizando a fiscalização definição do sistema acusatório (LOPES Jr, 2017,
das justificativas da deliberação e sua eventual p. 162-163). A relação de contrariedade entre o
impugnação (AQUINO, 2016, p. 141). sistema constitucional acusatório e o inquisitó-
Mas para que a decisão judicial alcance a rio do CPP evidencia a crise existencial do pro-
racionalidade e legitimidade exigida pelo mode- cesso penal brasileiro (SANTIAGO NETO, 2017),
lo constitucional de processo penal, não basta e demanda mais que alguns dispositivos para a
que o julgador simplesmente apresente as ra- real eficácia dos princípios do contraditório e da
zões de sua deliberação a partir de uma ativi- fundamentação das decisões judiciais, mas sim
dade solitária e individual. Em um Estado De- um novo código, haja vista sua contaminação in-
mocrático de Direito a validade de todos os atos quisitorial sistêmica.
estatais estão condicionados e possuem como Entretanto, importante avanço democráti-
pilar a participação daqueles que serão afetados co foi a inserção do art. 315, § 2º, IV, no CPP pela
por seus efeitos (SILVA, 2015, p. 169). Assim, a Lei nº 13.964/19, dispositivo idêntico ao art. 489,
decisão judicial considerada fundamentada à luz § 1º, IV, do CPC, consagrando de forma concreta o
da lógica democrática deve representar o refle- contraditório enquanto “influência” no processo
xo dos argumentos e da prova produzida pelas penal brasileiro ao estabelecer que não se consi-
partes em contraditório. dera fundamentada a decisão que não enfrentar
A partir da contribuição da teoria do pro- todos os argumentos deduzidos no processo ca-
cesso como procedimento em contraditório, de pazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada

29
Artigos

adversarial chileno e o modelo constitucional de processo


pelo julgador, e fixar expressamente a nulidade
brasileiro. In: POSTIGO, Leonel González (dir.). Desafiando
desta como consequência (art. 564, V, CPP). a inquisição: ideias e propostas para a reforma processual
Nesse sentido, além da questão da legiti- penal no Brasil. Chile: CEJA, 2017.
midade democrática, o princípio da fundamen- FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Cam-
tação em conjunto com o contraditório permi- pinas: Bookseller, 2006.
te a individualização da decisão ao destacar a LOPES Jr., Aury. Fundamentos do processo penal: introdu-
ção crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 162-163.
importância do caso concreto e afastar que a
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O modelo consti-
atividade jurisdicional seja uma manifestação tucional de processo e o eixo estrutural da processualidade
da consciência, senso de justiça ou convicção democrática. Revista Brasileira de Direito Processual Pe-
pessoal do julgador (SOUSA, 2017, p. 130-131), nal, Porto Alegre, vol. 2, n. 1, p. 43 - 55, 2016.
trazendo contornos do âmbito de incidência SANTIAGO NETO, José de Assis. A crise existencial do pro-
do juízo fático da sentença penal aos elementos cesso penal: entre a acusatoriedade constitucional e a in-
quisitoriedade da vida real. In: COUTINHO, Jacinto Nelson
cognitivos produzidos sob o crivo da estrutura
de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco
dialética processual e amplificando o controle Aurélio Nunes da (org.). Mentalidade inquisitória e pro-
intersubjetivo por se edificar “em cima de uma cesso penal: o sistema acusatório e a reforma do CPP no
realidade objetivada” (MARQUES, 2016, p.51). Brasil e na américa latina. Florianópolis: Empório do Di-
Portanto, a fundamentação das decisões reito, 2017.
judiciais, especialmente da sentença penal, sig- SILVA, Fernando Laércio Alves da. Processo constitucional:
o processo como locus devido para o exercício da democra-
nifica o principal fundamento de legitimidade
cia. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio
da atividade jurisdicional, tanto na perspectiva de Janeiro, v. 16, n. 16, p. 157-188, jul./dez. 2015.
da racionalidade exigida quanto na democráti- SOUSA, Lorena Ribeiro de Carvalho. O dever de fundamen-
ca, na medida em que é por meio dela que será tação das decisões no código de processo civil de 2015: um
desenvolvido o raciocínio que concluirá sobre estudo crítico das decisões do Superior Tribunal de Justiça
a suficiência probatória para o afastamento do a partir do modelo constitucional de processo. 2017. Dis-
sertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade
estado de inocência e imposição da pena, con-
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
sistindo no mecanismo que possibilitará o con-
trole intersubjetivo do juízo fático, bem como da
eficácia do contraditório. MATHEUS
DANTAS VILELA
REFERÊNCIAS
Advogado. Pós-graduando
AQUINO, Yuri Alvarenga Maringues de. O sistema do livre
em Advocacia Criminal pela
convencimento motivado no processo penal em face do
ordenamento constitucional. 2016. Dissertação (Mestrado
Escola Superior de Advoca-
em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo cia da OAB/MG. Bacharel
Horizonte, 2016. em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
BARROS, Flaviane de Magalhães. MARQUES, Leonardo Au- de Minas Gerais.
gusto Marinho. A atuação do juiz no contraditório dinâmico:
uma análise comparativa entre o sistema processual penal

30
Artigos

O DIABO MORA NOS DETALHES


Por Murillo Bahia Menezes

A ampliação da justiça negocial no pro- débil cumprir penas leves em comparação


cesso penal brasileiro parece despontar como àquelas que resultariam de um processo.
algo cada vez mais desejado e uma tendência Relevante destacar ainda que tendem a
inexorável. Nesta linha, a Lei n. 13.964/19 intro- zero as chances de um condenado primário,
duziu um novo instituto ao rol de procedimen- com bons antecedentes, que confessa um crime
tos negociais: o acordo de não persecução penal com reprimenda mínima inferior a quatro anos,
(ANPP). Ele tem sido, de um modo geral, festeja- cometido sem violência ou grave ameaça, não
do pela comunidade jurídica e, apesar de críticas ter a sua pena de prisão substituída por penas
pontuais, é visto como um avanço. restritivas de direitos6. Por isso, podemos afir-
É oferecido ao investigado a opção de se mar que o ANPP é inócuo enquanto medida de
submeter, antecipadamente, a penas restriti- desencarceramento.
vas de direitos1, suportando, ainda, os efeitos Assim, é preciso desmitificar algumas das
genéricos da condenação2. Chamar de “condi- supostas vantagens do instituto e encarar a re-
ções” o que o Código Penal define e classifica alidade. Trata-se, efetivamente, de um “negócio
como “pena”3 revela mais um sintoma do que feito para punir” os suspeitos de sempre através
uma contradição. A realidade é descortinada de uma persecução penal extrajudicial “ultrasu-
quando a legislação estabelece que as ditas maríssima” (MATTOS, 2020).
“condições” devem ter a sua “execução” ini- O fato, admitimos, é que, uma vez presen-
ciada perante o juízo de execução penal (ato tes os requisitos que autorizam a realização de
falho?4). um ANPP (caput e parágrafo 2º do art. 28-A), o
Vale salientar que a expressão “desde que investigado que confessar a infração penal terá a
proporcional e compatível com a infração penal”, oportunidade de evitar o processo e suas conse-
contida no inciso V do art. 28-A, só reforça o ca- quências, assumindo, em contrapartida, a obri-
ráter penal e revela mais uma intenção de quem gação de cumprir penas mais brandas. Mesmo
propôs a norma: dar ao Ministério Público o po- que o suspeito confesso tenha que renunciar a
der de criar penas através de cláusulas de um garantias irrenunciáveis, é difícil tecer críticas
negócio jurídico processual5. contundentes contra o ANPP.
Não adianta dourar a pílula. O legisla- Na prática, o acordo seduz também o indi-
dor criou um procedimento para aplicação de ciado que não praticou o crime. Se não confes-
sanções penais, no qual, respeitados deter- sar a infração penal perante o órgão acusador,
minados requisitos e mediante uma confissão ele será denunciado e, apesar de inocente, corre
circunstanciada, “oportuniza-se” à parte mais o risco de ser condenado. Em um mundo ideal,
inocentes não são condenados. Mas talvez nun-
1
Art. 28-A, III e IV, do CPP.
ca estivemos tão longe desta utopia, sendo co-
2
Art. 91 do CP e art. 28-A, I e II, do CPP.
3
Art. 32, II, c/c art. 42, I e IV, do CP. muns condenações apesar de existirem dúvidas
4
Professores de Direito preferem se referir a “equívoco razoáveis quanto à configuração de crimes.
do legislador” para, na sequência, corrigir o “erro” O certo é que o investigado inocente que
prescrevendo qual seria, no seu entender, a melhor solução não aceita o ANPP, confiando na persecução pe-
ou redação. Para Rogério Sanches (CUNHA, 2020, p. 132), nal, pode correr um risco real de ser condena-
as medidas do 28-A não seriam sanções penais porque
do a uma pena mais gravosa do que alguém que
o Ministério Público não pode executá-las em caso de
descumprimento. Ocorre que, salvo melhor juízo, a falta praticou o crime e aceitou a negociação. Ou seja:
de previsão legal para executar a medida descumprida não ao culpado, a segurança do acordo e a certeza
modifica a sua natureza. Sanção penal é a consequência de uma pena mais branda; ao inocente, as con-
jurídica do descumprimento da norma penal e suas tingências do processo e a incerteza da absolvi-
espécies estão previstas nos incisos do art. 32 do Código ção/condenação.
Penal, sendo as restritivas de direitos discriminadas no art.
42 do mesmo diploma. 6
Repisa-se: uma ação penal, presentes as mesmas
5
Parece-nos inconstitucional a proposições negociais que circunstâncias do caput e do parágrafo segundo do art.
se enquadrem em qualquer das espécies de penas referidas 28-A, resultaria inevitavelmente na substituição da pena
no art. 5º, XLVI, da CRFB. privativa de liberdade por restritiva de direitos.

31
Artigos

A exigência de confissão nega ao inocen- ridade de armas –, o ANPP se desenrola nas


te o acesso ao acordo de não persecução penal. dependências do Ministério Público. Perante
Esta discriminação não ocorre em outros dois o acusador, o investigado, se quiser negociar,
institutos negociais (suspensão condicional do deverá confessar formalmente o delito impu-
processo e transação penal). Isto demonstra que tado. O membro do parquet é quem decide se
é possível uma negociação sem a exigência da uma confissão é ou não circunstanciada. Se as-
confissão, respeitando um princípio de equida- sim não entender, sob o argumento de evitar
de de tratamento. uma autoacusação falsa, o promotor deveria, em
Ressalte-se que o ANPP nasce no âmbito tese, reavaliar o caso e arquivar a investigação,
da instituição que figura como um dos nego- pois este argumento só pode levar à conclusão
ciadores. O texto aprovado não é exatamente o da inocência.
mesmo da Resolução n. 181/17 do CNMP, mas é Se houver inadmissão da confissão com
difícil enxergar equilíbrio de forças quando um base no argumento de que, embora verdadeira,
dos negociadores foi quem propôs as premissas ela não foi devidamente circunstanciada, duas
do jogo. O ponto de partida da negociação já é situações podem ocorrer: a) o acordo deixa de
desvantajoso para uma das partes (por acaso, a ser celebrado e uma denúncia é oferecida – nes-
mais vulnerável), pois é feita, antecipadamente, te caso, a acusação contará com a certeza de
uma exigência inegociável: a sua confissão. que o denunciado cometeu o crime, informação
O argumento de ausência de prejuízo sur- que não será difícil chegar ao conhecimento do
ge cínico, afirmando que, no caso de descumpri- magistrado mesmo proibindo-se que ela conste
mento, a confissão não poderá ser utilizada. De nos autos, ou; b) o acusador poderá oferecer a
fato, mesmo sabendo que o processo foi instau- “oportunidade”7 ao investigado de ir confessan-
rado porque o acusado deixou de cumprir um do até que a “verdade real”, com todos os seus
ANPP, cujo pressuposto é uma confissão, o juiz detalhes pertinentes, seja alcançada e o acordo
não poderá escrever isso na sentença. firmado.
Ora, mas se não há prejuízo, tampouco há No cenário posto, o papel do Poder Judici-
qualquer utilidade ou razoabilidade para a Lei ário será quase que meramente homologatório,
exigir uma confissão como condição necessária mantendo, porém, a prerrogativa de fiscalizar o
à celebração de um ANPP. Ou haveria? cumprimento da pena (ou das ditas “condições”)
É preciso lembrar que não se trata de uma e tendo a chance de diminuir de ações a serem
confissão simples, mas circunstanciada, sendo julgadas. A situação mais cômoda será a do ór-
insuficiente que o investigado afirme simples- gão acusador, a quem incumbirá conduzir uma
mente que praticou a infração penal. Ele deve espécie de persecução-penal-extrajudicial-ne-
detalhar as circunstâncias em que o fato ocor- gocial, com cláusulas pré-definidas em seu fa-
reu, munindo o órgão acusador de informações vor e com a possibilidade de chegar a resultados
verificáveis. A razão declarada é nobre: proteger bastante semelhantes ao de uma condenação
o inocente contra autoacusação falsa. O mesmo (ainda que mais branda). A defesa, a princípio,
inocente que tem como única alternativa as in- terá a chance de auferir resultados mais rápi-
certezas do processo em função da ANPP lhe ser dos ou diminuir o tempo e volume de trabalho.
negada... Já o protagonista da história, o investigado, terá
É conveniente à acusação uma confissão sempre a oportunidade de obter uma vitória (de
formal e circunstanciada. Mesmo que não possa Pirro), na qual todos ganham, mas somente ele,
ser utilizada em eventual ação penal, as informa- apesar de ganhar, também perde.
ções nela contidas servem à coleta de material Uma defesa combativa – alguns dirão utó-
probatório robusto capaz de tornar praticamen- pica – pode se negar a seguir um Direito Penal
te dispensável uma confissão em juízo. Ademais, de terceira velocidade num caminho sem volta
quando o crime envolver coautores, ainda que (uma lógica negocial sem efetiva paridade de
apenas um investigado aceite o ANPP, a sua con- armas). A sua alternativa é resistir à importa-
fissão detalhada fará as vezes de uma espécie de ção de soluções estrangeiras que pretendem
delação premiada. “desafogar” o Judiciário às custas de direitos
Diferentemente da transação penal e da e garantias individuais, criando estratégias
suspensão condicional do processo – que ocor-
rem em território imparcial, preservando a pa- 7
Alerta de ironia.

32
Artigos

para invalidar excessos e preservar os efetivos não seja reincidente, não se dedique a atividades
avanços do instituto. criminosas e que tenha confessado a prática da
A essência do ANPP é evitar o início de per- infração. Fatos enquadrados nestas circunstân-
secuções penais em relação a crimes de médio cias não podem, portanto, sofrer consequências
potencial ofensivo, desde que determinados re- jurídicas mais gravosas do que aquelas previstas
quisitos estejam presentes e que sejam cumpri- no art. 28-A.
das condições negociadas entre o investigado e O corolário é que os aspectos materiais
a acusação pública. Para preservar a essência do da norma devem retroagir para atingir não só
instituto sem a interferência de vícios, é preciso processos em curso, mas também processos jul-
que a exigência de confissão seja declarada in- gados. Garante-se, desta maneira, a eficácia do
constitucional. Ela fere a isonomia ao discrimi- comando constitucional do art. 5º, XL, pois os
nar injustificadamente o inocente, negando-lhe acusados confessos já condenados não cumpri-
acesso ao ANPP e submetendo-lhe ao risco e às rão reprimendas mais gravosas do que aqueles
incertezas do processo. Não se trata, portanto, investigados que, hoje, firmarem o ANPP.
de impedir que o culpado tenha uma chance É natural receber com entusiasmo qual-
de evitar a persecução, mas de não excluir esta quer novidade que busque diminuir a carga pu-
possibilidade ao inocente. Esta é uma trincheira nitiva do Estado, sobretudo quando se esperava
que precisa ser aberta. o pior (“pacote Moro”). Mas é preciso estar aten-
Deve-se lutar ainda pela invalidade dos in- to, pois o diabo também mora nos detalhes.
cisos III e IV, do art. 28-A, pois violam o princípio
da necessidade, segundo o qual não pode haver REFERÊNCIAS
pena sem um devido processo legal (art. 5º, LIV,
CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei n.
da CRFB). Afinal, as “condições” previstas nos re-
13.964/19: Comentários às alterações do CP, CPP e LEP.
feridos incisos descrevem, efetivamente, o que Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
o Código Penal classifica como penas restritivas MATTOS, Saulo Murilo de Oliveira. Acordo de Não Perse-
de direitos. Também é inconstitucional inter- cução Penal: Uma Novidade Cansada. In Boletim Revista do
pretar a cláusula aberta do inciso V do art. 28-A Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Ano 3, n. 7,
de modo a possibilitar a proposição de cláusulas fev/2020.
que versem sobre quaisquer espécies de penas,
pois a Constituição exige, para tanto, lei em sen- MURILLO BAHIA
tido formal (art. 5º, XLVI). MENEZES
Devemos considerar, ainda, que o ANPP é
fruto de decisão político-criminal que visa punir Membro associado do IBA-
de forma mais branda crimes com pena mínima DPP. Especialista em Ciên-
inferior a quatro anos, praticado sem violência cias Criminais (UNIFACS) e
ou grave ameaça, fora do contexto de violência Defensor Público Estadual
doméstica ou de gênero, desde que o agente (DPE/BA).

33
Artigos

LIMITES EPISTÊMICOS NO PROCESSO PENAL:


A PROIBIÇÃO DE DEPOIMENTO DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE
Por Luiz Antonio Borri e Rafael Junior Soares

O papel do operador do direito no processo travenção a omissão, pelo médico, de crime de


é semelhante ao de um historiador, ou seja, bus- ação penal pública, quando o conhecimento do
ca-se colher a maior quantidade de informações fato tenha origem no exercício da medicina ou
sobre um determinado fato, com o escopo de ob- outra profissão sanitária, excepcionando-se exa-
ter uma reconstrução mais aproximada possível tamente a hipótese na qual o cliente fica exposto
dos fatos, no entanto, as funções de historiador e a procedimento criminal.
do operador jurídico distanciam-se porque as ta- Ao esclarecer sobre as profissões que se-
refas deste sofrem limitações na verificação dos riam abarcadas pelo disposto no CPP, a doutrina
fatos, como acontece, por exemplo, quando se afirma:
está diante de prova ilícita (BADARÓ, 2016, p. 381).
pode-se, até intuitivamente, eleger algu-
Nesse contexto, Gustavo Badaró ressalta a mas profissões imediatamente ligadas à
viabilidade de interferência de outros fatores no manifestação de certas inviolabilidades
funcionamento epistêmico do processo, os quais pessoais. Incluem-se aí os profissionais
alocam em segundo plano a busca da verdade, que antes mencionamos (advogado, mé-
exemplificando com a vedação de obtenção de dico, psicólogo, psiquiatra, odontólogo e
outros), em razão de manterem contato
provas mediante tortura (2018, p. 50). Noutras pa-
permanente e necessário com manifes-
lavras, nem tudo é lícito na persecução penal para tação pessoais da intimidade e da priva-
a demonstração dos fatos, de modo que, se num cidade de seus pacientes e clientes. (PA-
dado caso concreto o esclarecimento dos fatos CELLI; FISCHER, 2016, p. 469-470).
depender da vulneração do sigilo da correspon-
dência do investigado ou acusado, sabe-se que Tratando de exemplo que se amolda a fato
o ordenamento impõe limites ao conhecimento corriqueiro no âmbito do exercício da medicina, a
destes fatos. doutrina afirma que "um dos casos mais comuns
Uma dessas proibições está expressa no art. em nossa atividade é a constatação de prática cri-
207 do CPP, o qual regulamenta hipóteses de ve- minosa de aborto, e, pelo visto, não se pode de-
dação de depoimento quando o depoente exerce nunciar a paciente, pois ela está sujeita a procedi-
função, ministério, ofício ou profissão que deve mento processual." (FRANÇA, 2017, p. 166).
preservar o sigilo das informações recebidas. Dessa forma, tamanha a relevância do si-
No presente ensaio, busca-se problemati- gilo imposto ao médico quanto às informações
zar os limites legais do sigilo profissional da saúde recebidas de seus pacientes que, em julgado do
(médico ou enfermeiro). Em relação ao médico, o TJSP, determinou-se o trancamento de processo
art. 73 do Código de Ética Médica1 disciplina que crime instaurado contra o profissional da saúde,
é proscrita a revelação de fato de que tenha co- invocando como fundamentação o sigilo profis-
nhecimento em razão do exercício da profissão. sional (TJSP, 2010).
Da mesma forma, o Código de Ética de Enferma-
gem (Resolução COFEN-311/2007) possui regra
2
RESPONSABILIDADES E DEVERES
Art. 82 - Manter segredo sobre fato sigiloso de que tenha
específica sobre o sigilo, em seu art. 822.
conhecimento em razão de sua atividade profissional,
O tema ganha relevo quando se observa que exceto casos previstos em lei, ordem judicial, ou com o
a Lei de Contravenções possui dispositivo muito consentimento escrito da pessoa envolvida ou de seu
semelhante (art. 66), caracterizando como con- representante legal.
(...)
1
SIGILO PROFISSIONAL § 3º - O profissional de enfermagem, intimado como
É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha testemunha, deverá comparecer perante a autoridade e, se
conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, for o caso, declarar seu impedimento de revelar o segredo.
salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por § 4º - O segredo profissional referente ao menor de idade
escrito, do paciente. deverá ser mantido, mesmo quando a revelação seja
Parágrafo único. (...) c) na investigação de suspeita de solicitada por pais ou responsáveis, desde que o menor
crime, o médico estará impedido de revelar segredo que tenha capacidade de discernimento, exceto nos casos em
possa expor o paciente a processo penal. que possa acarretar danos ou riscos ao mesmo.

34
Artigos

Noutro caso, enfrentado no âmbito do direito material que impõe à profissão,


ofício ou função o sigilo e, ao ser produ-
TRF-4, um médico foi convocado a depor como
zida em juízo, descumpre-se a proibição
testemunha porque, em audiência pública, re- imposta pela norma de direito processu-
latou a existência de pacientes pagando por al. Logo, não pode ser valorada, devendo
medicamentos que deveriam ser gratuitos. No ser desentranhada. (2017, p. 465)
entanto, o profissional da saúde recusou-se a
citar os nomes dos pacientes, sem a preceden- Com efeito, Guilherme de Souza Nucci faz
te autorização deles, como também dos fun- distinção entre sigilo das informações do pacien-
cionários envolvidos na prática ilícita. Nessa te e fatos relacionados à materialidade delitiva,
oportunidade, foi advertido pela autoridade asseverando claramente “se houver um exame
legal, pois deveria prestar os esclarecimentos médico em mulher que acabou de abortar, não
pertinentes sob pena de incorrer em falso tes- pode o profissional da medicina ocultar das auto-
temunho. ridades a ocorrência do referido aborto. É a ma-
Destarte, como não forneceu as informa- terialidade do delito. Deve enviar a ficha clínica
ções solicitadas, foi detido e conduzido à De- ou prontuário a juízo (ou para instruir inquérito).”
legacia de Polícia, onde pagou fiança e foi li- (NUCCI, 2019).
berado, sendo posteriormente denunciado pela Para o autor, a situação acima seria equi-
prática do crime de falso testemunho. Por es- parada à conduta do advogado que guarda
sas razões, invocou o sigilo ético, a proibição de drogas ilícitas do cliente no seu escritório, no
prestar depoimento e a possibilidade de incor- entanto, fazendo-se contraponto à percep-
rer no crime de violação de segredo profissio- ção de Guilherme Nucci, constata-se que o
nal para postular o trancamento do processo exemplo do advogado, em verdade, apresenta
criminal. hipótese de coautoria delitiva, notadamente
O TRF-4, por maioria de votos, concedeu porque o defensor incorreria no art. 33 da Lei
a ordem de habeas corpus reconhecendo a ati- 11.343/2006, situação que autoriza, inclusive,
picidade da conduta em relação ao sigilo médi- a quebra da inviolabilidade do escritório ou lo-
co e informações sobre pacientes, admitindo- cal de trabalho, assim como, dos instrumentos
-se que as regras de proibição de depoimento de trabalho, correspondência escrita, telefô-
de determinadas pessoas “se destinam a dupla nica e telemática do defensor (art. 7º, inc. II,
proteção - na espécie, médico e paciente -, e §§6º e 7º, da Lei 8.906/94).
não se trata de mera faculdade ou direito, mas De toda sorte, Nucci aponta contradição
de imposição legal proibitiva, de modo a res- normativa, pois se o médico deve permanecer
guardar o sigilo médico” (TRF-4, 2018). em silêncio em seu depoimento, igualmente,
Em caso concreto sobre o tema do sigilo não poderia enviar declarações por meio do
profissional e os limites probatórios no sistema prontuário, nos termos do que determina o art.
processual penal, mais especificamente quanto ao 4º da Resolução CFM nº 1.605/20003, sendo re-
depoimento de advogado que havia sido destitu- levante a contradição apontada pelo autor por-
ído da causa, o STF, por meio da 2ª Turma, con- que constitui um mecanismo hábil a burlar o
cedeu habeas corpus de ofício, para reconhecer a sigilo profissional4.
ilicitude do depoimento prestado pelo causídico Portanto, em face dos argumentos apre-
e seu desentranhamento dos autos, aproximando sentados é possível estabelecer duas conclusões:
inclusive as restrições do profissional da advocacia a) os profissionais da saúde não podem prestar
àquelas incidentes sobre o médico “o sigilo profis- depoimento sobre fatos em relação aos quais
sional do advogado, externo ou interno, tal qual o tomaram conhecimento no atendimento de pa-
do médico, é ponto central das normas deontoló-
gicas e legais que regulam a profissão.” (STF, 2020). 3
No âmbito do TJPR entendeu-se que o envio de prontuário
Por sua vez, analisando as consequências médico ao Juízo tornaria legítimo o depoimento da
processuais de um depoimento de profissional profissional da saúde: “em relação ao pleito defensivo de
proibido de depor, nos termos do art. 207 do reconhecimento da ilicitude dos depoimentos prestados
pelas profissionais de saúde, em virtude de descumprimento
CPP, Aury Lopes Junior aponta que:
do dever ético de sigilo, denota-se que as informações
por elas fornecidas constam nos prontuários médicos
se trata de uma prova ilícita, com uma confeccionados, de modo que não apresentam qualquer
dupla ilegalidade: viola-se a norma de impedimento ao terem sido angariadas.” (TJPR, 2017).

35
Artigos

CESCA, Brenno Gimenes; ORZARI, Octavio Augusto da Sil-


cientes, sem a prévia autorização destes, notada-
va. Prova penal e segredo profissional. Revista Da Faculda-
mente quando tais fatos os exponham a processo de De Direito, Universidade De São Paulo, 111, p. 555-586,
criminal; b) caso prestado o depoimento, consi- jan/dez.2016.
derando que a manifestação constitui crime de FRANÇA, Genival de. Direito Médico. 14ª. ed. Rio de Janeiro:
revelação de segredo profissional (art. 154, CP) Forense, 2017.
e afronta ao art. 5º, inc. X da CF, a consequên- GOMES FILHO, Antonio Magalhães; TORON, Alberto Za-
charias; BADARÓ, Gustavo. Código de Processo Penal Co-
cia será a ilicitude probatória (GOMES FILHO,
mentado. São Paulo: RT, 2018.
2018, p. 451). LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14ª. ed. São
Paulo: Saraiva, 2017.
4
Brenno Gimenes Cesca e Octávio Augusto da Silva Orzari
NUCCI, Guilherme de Souza. Limites do sigilo entre médi-
acentuam haver omissão legislativa, pois o CPP não se
co e paciente para fins penais. Conteudo Juridico, Brasilia-
preocupou em resguardar o sigilo ao disciplinar outros
-DF: 05/05/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.
meios de prova e de obtenção de prova, por isso assinalam
br/2019-mai-05/guilherme-nucci-limites-sigilo-medico-
que: “de nada adiantaria a tutela regulamentada na prova
-fins-penais. Acesso em 04 out. 2019.
testemunhal, se não se entender seja ela extensível à busca
PACELLI, Eugenio de Oliveira; FISCHER, Douglas. Comen-
e apreensão.” De todo modo, admitem a busca e apreensão
tários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência.
quando a fonte de prova resguardada por sigilo seja o
8ª. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
próprio corpo do delito, instrumento, produto ou proveito
do crime (2016, p. 580).
LUIZ ANTONIO BORRI

REFERÊNCIAS Mestrando em Ciências Ju-


BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 4ª.ed. São Paulo: RT, rídicas pela Unicesumar.
2016. Professor de Direito Penal
BADARÓ, Gustavo H. Editorial dossiê “Prova penal: funda- da Unicesumar. ORCID:
mentos epistemológicos e jurídicos”. Revista Brasileira de 0 0 0 0 - 0 0 0 1 -7 6 4 9 -1 2 7 0.
Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 43-80,
luiz@advocaciabittar.adv.br
jan./abr. 2018. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo – 967 – STF
- Rcl 37235/RR. rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em RAFAEL JUNIOR
18.2.2020. SOARES
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. HC
0405570-53.2010.8.26.0000; Relator (a): Otávio de Almei- Mestrando em Direito Penal
da Toledo; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Crimi-
pela PUC/SP. Professor de
nal; Foro de Assis - 1ª. Vara Criminal; Data do Julgamento:
23/11/2010. Direito Penal da PUC/PR.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. HC ORCID: 0000-0002-0035-
0030850-26.2017.8.16.0000 – Rel. JUIZ SUBST. 2º G. BEN- 0217. rafael@advocaciabittar.
JAMIM ACACIO DE MOURA E COSTA – 1ª Câmara Criminal adv.br
– j. 09.11.17.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. HC
5057718-22.2017.4.04.0000, SÉTIMA TURMA, Relatora SA-
LISE MONTEIRO SANCHOTENE, j. 12/06/2018.

Respiro

Charge por: André Dahmer @andrédahmer

36
ENTREVISTA

Múltiplos Olhares de rua, por exemplo. Na área penal, estamos


presentes em todas as unidades prisionais.
No âmbito do processo penal, destaco duas di-
ficuldades principais. Uma é a permanência de
uma mentalidade inquisitória entre os atores,
que se agrava bastante quando o réu é conside-
rado como o “outro”, ou o “inimigo”. Em regra,
essas categorias se aplicam a pobres, negros,
homossexuais, etc.. É impressionante o quan-
to a prisão de alguém que pertence a uma des-
sas categorias é tratada com naturalidade. Para
elas, a dúvida costuma ensejar a prisão e não a
liberdade.
Outra dificuldade é estrutural, mas que deriva
da primeira. Há muito menos defensores do que
membros do Ministério Público ou juízes, decor-
rência da diferença do tratamento orçamentá-
rio. Infelizmente, muita gente ainda considera
normal que comarcas não possuam defensores
Rafson Ximenes e que a defesa penal seja feita por alguém esco-
Defensor Público Geral da Bahia, Coordenador lhido pelo juiz, apenas para aquele ato especí-
dos livros Redesenhando a Execução Penal e fico. Basta fazer o raciocínio inverso para veri-
Redesenhando a Execução Penal 2. ficar o absurdo da situação. Ninguém aceitaria
que a acusação fosse atribuída aleatoriamente
Desde a EC 45/2004 e, posteriormente, a a pessoas sem vínculo com o Ministério Públi-
LC 132/2009, incumbe à Defensoria Pública co. Apenas a defesa é tratada como algo menor,
do Brasil a promoção de Direitos Humanos. descartável.
De que maneira a Defensoria Pública
do Estado da Bahia tem cumprido essa De que forma a Lei 13.964/2019 pode im-
missão constitucional e quais as maiores pactar o trabalho da Defensoria Pública?
dificuldades no âmbito do processo penal
que se têm encontrado? RAFSON XIMENES A lei 13.694/2019 é um
exemplo de como o Direito Penal é discutido
RAFSON XIMENES A EC/45, a LC 132/2009, na esfera pública sem o devido cuidado. Ela é
mas também outras leis como a 11.448/2007 um monstro de duas cabeças, uma garantista
(legitimidade para ações coletivas), a 11.449/07 e outra punitivista. Mas, como toda lei penal
(obrigatoriedade de comunicação de flagran- no Brasil, não teve qualquer preocupação em
te em 24 horas) e a EC 80/2014 fazem parte de mensurar nem mesmo suas consequências fi-
um longo caminho percorrido nesta luta ainda nanceiras. Ela aumenta penas e modifica de
incompleta pela garantia de justiça à população forma dramática a sua execução, dificultando
com dificuldades financeiras ou vítima de outra a progressão de regime, a saída temporária e o
espécie de opressão. livramento condicional. Isso significa que mais
A Defensoria promove os Direitos Humanos gente ficará presa por mais tempo. Quanto
desde que garante assistência jurídica técnica custará isso? Ninguém sabe, nem se preocu-
de qualidade, desvinculada da ideia de caridade. pou em saber.
A principal oferta é o rompimento da lógica do Há um dispositivo interessante e revelador, o
favor, do serviço que é prestado por “bondade”. É novo artigo 112 §2º, que exige motivação para as
obrigação profissional, inclusive com dedicação decisões de concessão de progressão de regime,
exclusiva. Na Bahia, a atuação é distribuída por livramento, indulto e comutação. Mas, veja, para
temas e, em Salvador, possuímos uma especiali- este dispositivo inconstitucional, a motivação
zada em Direitos Humanos, que se divide em nú- não é exigida em todas as decisões sobre essas
cleos. É notória a atuação em favor das mulheres questões, mas apenas para as decisões favorá-
vítimas de violência e da população em situação veis ao apenado.

37
Entrevista: Múltiplos Olhares

No CPP, a lei traz diversos avanços. No entanto, e conter o aumento da violência contra
a maior parte deles foi suspensa pelo Ministro as mulheres? Quais são os projetos já
Fux, sob o contraditório argumento de ausên- desenvolvidos na área, não só no contexto
cia de estudo de impacto orçamentário, como a da pandemia?
implantação do juiz de garantias ou a ilegalidade
da prisão quando não há audiência de custódia. RAFSON XIMENES A Defensoria Pública da Bahia
Tenho bastante resistência ao acordo de não possui um Núcleo de Defesa da Mulher. O NU-
persecução penal. A criminologia mostra que o DEM faz um trabalho espetacular de combate
instituto cria uma “negociação” totalmente de- ao machismo que, assim como o racismo, estru-
sequilibrada, ainda mais quando exige a confis- tura a nossa sociedade. Nos últimos anos, esse
são. núcleo foi bastante ampliado. Em 2015, eram 3
Em suma, a cabeça punitivista está devorando a defensoras. Hoje, são 6. Recentemente, criamos
garantista e o trabalho da Defensoria tende a au- unidades de defesa da mulher no interior do Es-
mentar bastante, especialmente em virtude do tado, em comarcas como Vitória da Conquista e
esperado aumento da população carcerária. Por Itabuna. Além disso, há uma grande equipe psi-
mais que se tente romantizar e idealizar uma ou cossocial para o acolhimento das mulheres.
outra operação policial, sabe-se que, para cada Acreditamos que as denúncias de violência du-
rico atingido por um incremento no Estado re- rante a pandemia estão bastante subnotificadas.
pressor, haverá milhares de pobres. São eles o Estabelecemos meios específicos de comunica-
verdadeiro alvo. ção para as mulheres vítimas de violência, que
podem, inclusive pela internet, obter apoio psi-
Quais são as ações que a DPE/BA tem cossocial. Solicitamos ainda à Polícia Civil a via-
adotado para conter a propagação do CO- bilização de registro de boletim de ocorrência
VID-19 no sistema penitenciário da Bahia? por meio digital e ao Poder Judiciário a prorro-
gação da vigência de todas as medidas proteti-
RAFSON XIMENES A Defensoria Pública tem vas. O NUDEM atua, ainda, em parceria com a
presença constante em todos os estabele- rede em todo o Estado, contribuindo e dialo-
cimentos penais do Estado. Em meio a essa gando permanentemente. É bom lembrar, ainda,
pandemia, a preocupação com a liberdade e a que estamos atentos a outras faces de opressão
saúde das pessoas presas é redobrada. Foram à mulher, como por exemplo a falta de assistên-
ajuizados pedidos liberatórios a todos aqueles cia às gestantes.
que se enquadram na situação de risco. Oficia-
mos o Ministério da Justiça e Segurança Públi- Sabemos que a arte da música de Gilberto
ca, inclusive propondo o indulto humanitário. Gil já inspirou um texto de sua autoria,
Solicitamos aos juízes de execuções penais a relacionando, inclusive, com o trabalho
antecipação das saídas temporárias. Os defen- da defensoria. O que Gil ensina e inspira
sores estão reanalisando todos os processos. a nós que trabalhamos no funcionamento
Em algumas comarcas, conseguimos a conver- da justiça criminal em um período de
são em prisão domiciliar de todos os presos em pandemia e de necessidade de manter
regime aberto ou semiaberto. viva a nossa sensibilidade humana?
Sabemos que, no sistema prisional, a atuação da
Defensoria Pública é ainda mais importante, pois RAFSON XIMENES Gilberto Gil é uma daquelas
a prisão leva à perda de renda, ao esquecimen- pessoas que exalam paz e sabedoria. Recente-
to, ao abandono e, principalmente, à tentativa de mente, tive o prazer de conhecê-lo pessoal-
desumanização. Basta lembrar a cruel proposta mente e, em poucos minutos, estava hipnotiza-
de colocar pessoas idosas em contêineres. Os do. A arte tem o grande valor de revelar pontos
nossos esforços contra a barbárie precisam ser de vistas que costumam ser ignorados, além de
potencializados. nos levar a epifanias. Nesse sentido, asseme-
lha-se muito ao trabalho da Defensoria Pública.
Com o isolamento social, houve um “Domingo no Parque”, por exemplo, revela
aumento de 54% nas denúncias de como qualquer trabalhador, pacífico e brin-
violência doméstica do Estado da Bahia. De calhão, como José, pode, de repente, cometer
que forma a DPE tem atuado para prevenir um homicídio. Os versos e, principalmente,

38
Entrevista: Múltiplos Olhares

a sequência de acordes, após a visão da ama-


bro do Ministério Público. É a defesa que, junta-
da Juliana com João, explicam melhor do que
mente com acusados, costuma ser demonizada.
qualquer livro o estado emocional, a raiva, que
O mais interessante é que, na história, sem per-
ceber, todos veem os fatos pela perspectiva dos
podem atingir e motivar qualquer um de nós ao
réus. Então, nem o mais punitivista se queixa da
ato violento. Qualquer mente pode girar como
aquela roda gigante. cena. Quem defende luta por um processo sem
anjos ou demônios, logo tem a premissa de que
todos devem ter a mesma distância e respeito
"Olha a faca! (olha a faca!) do julgador.
Olha o sangue na mão (ê , José) Mas, voltando a Gil, já escrevi também sob
Juliana no chão (ê , José) a inspiração de “Abri a porta”, ao falar sobre
elevadores privativos na justiça. Percebi que
Outro corpo caído (ê , José)
a Defensoria Pública e os defensores pos-
Seu amigo João (ê , José) suem dois desafios institucionais dificílimos.
Amanhã não tem feira (ê , José) Por um lado, é preciso vencer os preconcei-
Não tem mais construção (ê , João) tos contra o público atendido, que são trans-
postos para a instituição. É o sentimento de
Não tem mais brincadeira (ê , José) “quem a defensoria pensa que é?” para in-
Não tem mais confusão (ê , João)" comodar e questionar políticas públicas, ar-
ranjos estabelecidos ou jurisprudências. Na
Domingo no Parque -
verdade, esse sentimento significa “quem as
Gilberto Gil pessoas pobres pensam que são?”. Incomo-
da bastante quando pessoas pobres podem
lutar por direitos. Mas, outro desafio é não
cometer os erros que os outros cometeram.
A Defensoria Pública não quer ou
não deve querer as entradas
privativas dos outros. Deve
pleitear que as entradas se-
jam comuns. A Defensoria
deseja apenas que “usufruir
do bom, do mel e do melhor
seja comum”.

Abri a porta ,
Apareci ,
A mais bonita ,
Sorriu pra mim ...
Naquele instante me convenci
Que o bom da vida vai prosseguir
Vai prosseguir, vai dar pra lá do
A literatura e o cinema também são pródigos
nesse papel. O julgamento que acontece no céu azul
“Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, é Onde eu não sei , lá onde a lei
exemplar na demonstração dos pontos de vista. seja o amor
A defesa (Maria) fica perto do julgador (Jesus) e
E usufruir do bom, do mel e do
mantém com ele óbvia cumplicidade. A acusa-
ção (diabo) fica distante. É uma clara inversão melhor seja comum
do que acontece na realidade e das qualidades Pra qualquer um, seja quem for
que o senso comum atribui a cada personagem
no julgamento. Normalmente, há proximidade Abri a Porta - Gilberto Gil
e, às vezes, até cumplicidade entre juiz e mem-

39
Coluna
1.60

MARCELLA MASCARENHAS NARDELLI

JUÍZO POR JURADOS E O DIREITO A UMA COGNIÇÃO ADEQUADA1

No âmbito do juízo por jurados, onde não acervo de informações a ser disponibilizado
são conhecidos os fundamentos pelos quais aos jurados, consubstanciando-se como
se determinou a condenação ou a absolvição uma medida de controle preventivo sobre os
do acusado, ganham especial destaque as fundamentos do juízo.
medidas tendentes a proporcionar formas Essa classe de limitações que se justifica
alternativas de controle sobre a atuação dos com o intuito de inadmitir no processo
cidadãos leigos. Diante da impossibilidade de as provas consideradas suspeitas, por seu
se desvendar as razões que conduziram ao potencial de levar a raciocínios equivocados,
veredicto, a lógica e a prudência recomendam é bastante comum em meio à lógica do
uma fiscalização criteriosa de todo o conjunto direito anglo-americano. Fundadas no escopo
de informações que é levado ao conhecimento de controlar a correção dos raciocínios
dos jurados durante a sessão de julgamento, já inferenciais de seus principais destinatários (no
que é a partir desses elementos que a decisão caso, julgadores leigos, mais suscetíveis a seus
será alcançada. Se não se pode controlar efeitos prejudiciais), as exclusionary rules são
o produto da decisão, deve-se controlar a consideradas símbolos marcantes dessa cultura
qualidade de suas premissas, daquilo que lhe peculiar.
servirá como fundamento. Ademais, em face da estrutura adversarial
É a ideia de racionalidade ex ante que caracteriza o sistema processual da common
(TARUFFO, 2011, p. 421) que norteia a dinâmica law, tais limitações também são consideradas
do procedimento do júri na common law, relevantes para o propósito de controlar a
no sentido de zelar pela confiabilidade do atuação das partes em juízo e evitar abusos
como a manipulação dos fatos na tentativa de
1
Para uma visão mais aprofundada sobre o tema, ver: NAR- distorcer a verdade, a partir da utilização de
DELLI, Marcella Mascarenhas. A Prova no Tribunal do Júri. elementos com baixo valor probatório e alto
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

40
Coluna: A Toda Prova

potencial persuasivo. Nesse sentido, um dos para o veredicto – só o é a própria consciência


principais postulados do direito probatório do jurado. A noção de que os valores morais e o
anglo-americano, responsável por orientar senso próprio de justiça de cada cidadão seriam
várias de suas regras de exclusão, é o que preza fatores legítimos para nortear o convencimento
pela melhor prova (best evidence rule), segundo dos jurados leva a que se considere plenamente
o qual as partes devem apresentar ao tribunal legítimo o manejo da prova segundo esses
o melhor ou mais confiável elemento de prova pretextos.
possível sobre determinada questão fática Não se verifica qualquer zelo quanto ao
controvertida (MALAN, 2009, p. 35). conjunto probatório que é apresentado ao
Parecem importantes, nesse sentido, conselho de sentença em plenário, tanto no que
algumas proibições que recaem sobre provas se refere à suficiência, quanto à qualidade dos
com baixo teor informativo que se apresentam elementos de prova. São inúmeros os exemplos
principalmente com o propósito de apelar para de provas material e formalmente controversas
a subjetividade dos jurados, seja buscando uma que permanecem no processo (CASTRO; FREIRIA,
simpatia, comoção, ou até mesmo visando 2018, p. 351-352) – inclusive a título de elementos
chocá-los com imagens repugnantes. Também informativos produzidos na etapa investigativa –
merecem destaque aquelas provas que, apesar e acabam sendo levadas ao conhecimento dos
de relevantes, apresentam informações pouco jurados pela via dos debates, através da leitura
confiáveis – a exemplo do testemunho por de peças. Essa possibilidade de livre exploração
hearsay, cujo conteúdo dificilmente poderá ser do conteúdo de provas produzidas em etapas
testado à luz da dialética processual. O mesmo anteriores no contexto dos debates orais leva
se pode dizer das “provas pseudocientíficas” – e ainda a que, em alguns casos, quase nenhuma
aí se inserem as cartas psicografadas – que não prova seja produzida diante do júri.
podem ser consideradas provas e não devem É inadmissível que o Judiciário consinta
ser admitidas e produzidas, esteja a decisão a com o oferecimento ao jurado de um acervo
cargo de juízes ou jurados (DIAS; HERDY, 2020; probatório insipiente no qual conste elemento
COUTINHO, 2020). O fato de os jurados não inquisitorial controverso, para que o próprio
terem de explicitar as razões para o veredicto cidadão leigo possa – no momento de seu
justifica ainda mais a preocupação com o julgamento íntimo, livre e não motivado – fazer
controle da qualidade epistêmica do conjunto uma análise de sua idoneidade, podendo acabar
probatório. por considera-lo para a decisão (CASTRO;
Apesar de possuírem o propósito de excluir FREIRIA, 2018, p. 346).
elementos de prova relevantes, essa classe das Frise-se que, além do fundamento
chamadas exclusionary rules é considerada epistêmico das referidas regras de exclusão,
pelos operadores da common law como normas há que se considerar o caráter de garantia que
de conteúdo epistêmico. Isso se deve a seu as mesmas podem ostentar, à luz da presunção
fundamento de aprimorar a capacidade do júri de inocência. O desequilíbrio estrutural da
de desenvolver raciocínios válidos sobre as relação processual penal coloca o réu em
hipóteses fáticas, impedindo que cedam aos situação de desvantagem, de modo que um
apelos irracionais e subjetivos que podem estar maior rigor na limitação de determinados
implícitos no conteúdo de algum elemento elementos de prova seja recomendável para
probatório. A exclusão da prova seria justificável conter eventuais excessos da acusação. Daí ser
caso seu valor probante seja suficientemente possível compreender que, nesse caso, algumas
suplantado pelo potencial de gerar preconceito, limitações probatórias adquirem um caráter de
confusão ou engano do júri, de modo a prejudicar garantia, o que reafirma a legitimidade de sua
a precisão da reconstrução histórica dos fatos imposição no contexto do júri.
(MALAN, 2009, p. 39). É claro que a situação é outra quando se
O procedimento de júri brasileiro, tem em mente o direito de defesa, em face do
inspirado que foi no modelo francês, adota lógica princípio constitucional que lhe atribui status
bastante distinta da anglo-americana: atribui-se de plenitude no âmbito do Tribunal do Júri –
ampla margem de liberdade decisória a partir que costuma ser associado à prerrogativa do
da ideia de íntima convicção, segundo a qual apoio em argumentos metajurídicos – o que
nem mesmo a prova dos autos parece ser baliza faria sentido frente à possibilidade de absolvição

41
Coluna: A Toda Prova

por clemência com base no quesito genérico. mais profunda para se constatar que resta, de
Dentro desse propósito em particular, até se fato, muito improvável que o júri encontre
poderia cogitar da utilização de elementos sozinho a racionalidade que não lhe fora
probatórios que apelem para a emoção dos proporcionada oportunamente. Além de injusto
jurados. Isso porque a ideia de julgamento pelos com o acusado, trata-se de desrespeito com os
pares pressupõe a prerrogativa à chamada jurados – os quais merecem ser levados a sério
jury nullification, que consiste justamente (NARDELLI, 2020).
no reconhecimento da independência dos
jurados, no sentido de negarem a aplicação
REFERÊNCIAS
da lei se a consideram capaz de produzir, no
CASTRO, Antônio Carlos de Almeida, KAKAY; FREIRIA, Mar-
caso, uma injustiça concreta. Deste modo, os
celo Turbay. A impossibilidade de utilização, no plenário
cidadãos estariam autorizados a absolver o do Tribunal do Júri, de prova acusatória (formalmente ou
acusado embora o tenham reconhecido como materialmente) controversa produzida em inquérito po-
o autor do fato, hipótese em que agiriam não licial. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra. Temas
como meramente juízes do fato, mas como atuais da Investigação Preliminar no Processso Penal. Belo
representantes da consciência da comunidade. Horizonte: D’Plácido, 2018.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Provas pseu-
Entretanto, a consciência da comunidade
docientíficas": livre apreciação e livre conhecimento da
não é, por si só, fundamento legítimo para prova. In: Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em:
se condenar o acusado ante a ausência de https://www.conjur.com.br/2020-mai-01/limite-penal-
prova idônea que desconstitua a presunção -provas-pseudocientificas-livre-apreciacao-livre-conhe-
constitucional de inocência. O sistema deve cimento. Acesso em: 07 de maio de 2020.
buscar formas de controle capazes de assegurar DIAS, Juliana Mello; HERDY, Rachel. Por falar em ciência:
cartas psicografadas não são meio de prova. In: Revis-
essa garantia de fundo epistêmico: o direito
ta Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.
do acusado de ter um julgamento fundado em conjur.com.br/2020-abr-17/limite-penal-falar-ciencia-
uma cognição adequada. Daí a relevância do -cartas-psicografadas-nao-sao-meio-prova. Acesso em: 07
estabelecimento de uma racionalidade prévia, de maio de 2020.
cuidando da fiabilidade da base informativa que MALAN, Diogo Rudge. O direito ao confronto no Processo
servirá para a formação do veredicto, tal como Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no Tribunal do
se verifica no contexto anglo-americano.
Júri. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
É preciso aceitar que os cidadãos são, por ______. É preciso levar os jurados brasileiros a sé-
opção constitucional, os juízes do fato nos crimes rio. In: Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em:
dolosos contra a vida, e buscar implementar, https://www.conjur.com.br/2020-abr-17/limite-penal-
a partir daí, as medidas necessárias para que -falar-ciencia-cartas-psicografadas-nao-sao-meio-prova.
exerçam a função com qualidade. Da forma como Acesso em: 07 de maio de 2020.
TARUFFO, Michelle. La prueba de los hechos. Trad. Jordi
hoje se coloca a dinâmica de funcionamento do
Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2011.
juízo em plenário, não é necessária uma análise

Marcella Mascarenhas Nardelli é Doutora em Direito Processual pela


UERJ, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de
Direito de Campos. Professora Adjunta de Direito Processual Penal e
Coordenadora do Curso de Direito Diurno da Universidade Federal de
Juiz de Fora.

42
O QUE REVERBEROU NAS REDES

43
Walkie-Talkie

44
IBADPP realiza

LIVE BADPP
C A S T

PROCESSO
PENAL EM ÁUDIO

SEGUNDAS TODAS AS
E QUINTAS SEGUNDAS

45
http://www.ibadpp.com.br/
publicacoes@ibadpp.com.br
@ibadpp

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