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número 1 ⁄ volume 1 ⁄ fev 2020

Conselho Editorial
Dalton Lopes Martins
FACULDADE DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, UNB

Elias Duarte Jr.


A Revista Internet & Sociedade é uma DEPARTAMENTO DE INFORMÁTICA, UFPR

publicação semestral organizada pelo Gisele Craveiro


InternetLab, centro independente ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES, USP

de pesquisa em direito, políticas Giselle Beiguelmann


públicas e tecnologia localizado em FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO, USP

São Paulo (SP). Nosso objetivo é reunir Graciela Nathanson


insumos, evidências e argumentos FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, UFBA

que aprofundem o pensamento crítico José Roberto Xavier


em torno de diferentes aspectos FACULDADE NACIONAL DE DIREITO, UFRJ

sociais, econômicos, políticos e Jussara Marques de Almeida


regulatórios envolvendo mídias digitais DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO, UFMG

e tecnologias de comunicação e Maíra Rocha Machado


informação; e, assim, avançar debates ESCOLA DE DIREITO, FGV-SP

acadêmicos e abordar as múltiplas Marcelo Thompson


dimensões entre internet e sociedade. FACULDADE DE DIREITO, UNIVERSIDADE DE HONG KONG

Rogerio Christofoletti
DEPARTAMENTO DE JORNALISMO, UFSC

Virgílio Afonso da Silva


FACULDADE DE DIREITO, USP

Editores
Dennys Antonialli
Francisco Brito Cruz
Mariana Giorgetti Valente

Editores executivos
Beatriz Kira
Murilo Roncolato

Identidade visual,
Internet & Sociedade, n.1, v.1 projeto gráfico
– 2020, 1º semestre. e diagramação
Polar.ltda

Imagem da capa Revisão de texto


Alexandre Villares Sinuhe Cruz

Site
Mirror Lab

Este trabalho está licenciado sob a


Licença Atribuição-CompartilhaIgual 4.0
Internacional Creative Commons.
This work is licensed under a
Creative Commons Attribution-ShareAlike revista.internetlab.org.br
4.0 International License. contato@revista.internetlab.org.br
3

CARTA O lançamento da primeira edição da revista Internet & Sociedade é uma


DOS enorme realização, para nós e para o InternetLab, centro de pesquisa em
EDITORES direito e tecnologia. Desde que colocamos o nosso projeto na rua, mais
de cinco anos atrás, viemos sentindo falta de uma revista acadêmica
brasileira que agregasse produções do campo de estudos de internet e
sociedade – que internacionalmente costuma ser chamado de “Internet
studies”. Internet & Sociedade é, assim, um desejo já antigo, e um projeto
que levou mais de um ano de planejamento e o trabalho de muitas mãos.
O primeiro número carrega já o que procurávamos para a revista:
uma coleção de abordagens diversas, sofisticadas e de diferentes disci-
plinas, sobre a internet e suas múltiplas possíveis relações com a vida
social. São artigos sobre inteligência artificial, comunicação política, pri-
vacidade e proteção de dados, neutralidade da rede e violência online.
O conjunto é acompanhado de obras artísticas e literárias que se apro-
ximam dos temas por outros caminhos. Ainda, como contribuição dos
editores, trazemos neste número a tradução de um texto da professora e
pesquisadora norte-americana danah boyd, sobre construção de identi-
dades entre jovens e como o ambiente online propicia o que ela chama
de “colapso contextual”, que julgamos conter sementes importantes para
pensar internet neste momento no Brasil.
Esta coleção fala por si só, e, portanto, a mensagem desta carta é sim-
ples. Contribuir para e qualificar o debate a respeito da internet no Brasil
envolve criar espaços de disseminação e construção de diálogos para
quem está fazendo um bom trabalho. Pesquisa deve ser um empreendi-
mento coletivo, político e democrático. Boa leitura!
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SUMÁRIO

↘ p. 5 ↘ p. 91 ↘ p. 200 ↘ p. 278
Escrevendo a sua Como vencer uma “Li e aceito”: violações a Panorama mundial
própria existência eleição sem sair direitos fundamentais da regulação da
danah boyd de casa: a ascensão nos termos de uso das neutralidade da rede
do populismo plataformas digitais Ligia E. Setenareski,
↘ p. 38 digital no Brasil Ramon Mariano Leticia M. Peres,
Internet e participação Letícia Cesarino Carneiro Luis C. E. Bona e
cultural: o cenário Elias P. Duarte Jr.
brasileiro segundo ↘ p. 121 ↘ p. 230
a pesquisa TIC Responsabilidade civil Lei Geral De Proteção ↘ p. 311
Domicílios pelo uso de sistemas de De Dados e a tutela Virtualidade, violência
Luciana Piazzon inteligência artificial: dos dados pessoais de online e corpo:
Barbosa Lima e em busca de um crianças e adolescentes: uma compreensão
Winston Oyadomari novo paradigma a efetividade do fenomenológica
Enrico Roberto consentimento dos pais Nara Helena Lopes
↘ p. 64 ou responsáveis legais Pereira da Silva
Tércio Sampaio Ferraz ↘ p. 144 Barbara Fernanda
Júnior e Sigilo de O fenômeno das Ferreira Yandra, ↘ p. 331
dados: o direito à fake news: definição, Amanda Cristina “Formato governa
privacidade e os limites combate e contexto Alves Silva e Jéssica acesso”: A poética
à função fiscalizadora Marco Antônio Guedes Santos computacional de
do Estado: o que Sousa Alves e Dennis Tenen
permanece e o que Emanuella Ribeiro ↘ p. 250 Pedro Zylbersztajn
deve ser reconsiderado Halfeld Maciel A experiência de
Rafael Mafei Rabelo governo eletrônico do ↘ p. 340
Queiroz e Paula ↘ p. 172 Judiciário brasileiro: 2850 interpolações
Pedigone Ponce A democracia frustrada: estudo de caso dos de triângulos v3
fake news, política e Tribunais de Justiça Alexandre Villares
liberdade de expressão Vânia de Oliveira Alves
nas redes sociais
Lucas Borges
de Carvalho

Tradução Artigo Resenha Produção Artística


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TRADUÇÃO

Escrevendo a sua
própria existência
danah boyd

Tradução: Francisco Brito Cruz


Mariana G. Valente
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD

Escrevendo a sua
própria existência
danah boyd

Apresentação dos tradutores dissertação de mestrado, defendida em 2006.


Esta é a tradução do Capítulo 4 da tese que Ao examinar minuciosamente a forma pela
a professora e pesquisadora danah boyd qual adolescentes estadunidenses construíam
(sim, escreve-se no minúsculo) defendeu na perfis em um dos primeiros sites de rede so-
Universidade da Califórnia, Berkeley, em 2008, cial massificados, o MySpace, boyd ilustra com
chamada Taken Out of Context – American teen so- exemplos como a internet “derruba os limi-
ciality in networked publics. Por que traduzir um tes” que permitem a distinção de contextos em
texto “tão antigo”, dada a velocidade com que as práticas de formação e apresentação de identi-
aplicações e usos da internet se desenvolvem? dade, borrando os papéis sociais que as pessoas
Nos últimos anos, ganhou bastante tração no ocupam em diferentes contextos. O colapso
Brasil a discussão acerca dos “filtros-bolha”, ou contextual é o apagamento do conjunto de circuns-
o fenômeno de sermos cercados, na internet, tâncias que tendem a acompanhar uma comunicação
por informações que dizem respeito a interes- propagada, neste caso, por meio digital. E isso é a
ses e opiniões que já temos e manifestamos, fonte de muitos conflitos.
por causa de como aprendem os algoritmos O colapso contextual está presente em di-
de seleção de conteúdo com o nosso compor- versas discussões contemporâneas, como na
tamento. Há pesquisas que indicam que isso discussão sobre notícias falsas, por exemplo,
é real e produz radicalização, e há outras que à medida que compreender uma informação
apontam que, ao contrário, na internet, as pes- jornalística passa por saber situar contextos.
soas têm acesso a mais diversidade de conteú- Ele está também na intrincada discussão sobre
dos e opiniões do que teriam se não estivessem os limites da liberdade de expressão na inter-
online. De uma forma ou de outra, parece bas- net, pois entender a piada como engraçada ou
tante autoevidente que, pelas redes sociais, é ofensiva também depende da construção (ou
comum eu ficar sabendo das posições políticas desconstrução) de contextos. Ainda, o apaga-
do meu vizinho ou colega de natação, o que mento de contextos alimenta a instrumenta-
não necessariamente ocorreria nos nossos es- lização de fragmentos do discurso político em
paços de convívio social. favor da polarização.
Diante desse debate, pareceu-nos importante No capítulo que traduzimos, a autora ainda
retomar a discussão de danah boyd sobre um revela como esse fenômeno toca não só ques-
fenômeno pouco debatido: o colapso contex- tões envolvendo liberdade de expressão, mas
tual, inicialmente introduzido por ela em sua também privacidade e proteção de dados. Os
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adolescentes estudados começavam a perceber


como as configurações de privacidade, os mé-
todos de ocultação de identidade e pseudoni-
mato e práticas de controle de quais eram seus
públicos desejados auxiliavam na árdua tarefa
de que eles não fossem mal interpretados ou
observados por figuras de autoridade (ou que
representavam risco).
Parece-nos que compreender os potenciais
problemas que emergem de contextos nos
quais há colapso contextual é uma tarefa impe-
rativa para o campo de estudos sobre internet
e sociedade. Abordagens como essa enraízam a
compreensão de como as redes sociais e a in-
ternet interagem com a sociedade e a política,
fazendo frente a lugares comuns tecnocêntri-
cos, daqueles que endeusam a tecnologia àque-
les que a retratam como motor de uma tragédia
global incontrolável. Produzimos uma tradução
para o português1, em acesso aberto, na expec-
tativa de que os argumentos de boyd contri-
buam para o debate brasileiro no presente.
Agradecemos à danah boyd, por autorizar
a tradução deste capítulo; ao colega Márcio
Moretto Ribeiro, que foi quem nos provocou
com a lembrança da tese do colapso contex-
tual – e ao observar sua importância no pre-
sente contexto; e a Sinuhe Cruz, pela revisão
cuidadosa.

1 A tese de danah boyd foi retrabalhada e transformada


no livro “It’s Complicated”, que ganhou uma tradução para o
português (de Portugal) pela editora Relógio D’Água (2015).
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Escrevendo a sua própria ambientes online. O que é ainda mais desafia-


existência dor é que adolescentes precisam fazê-lo em
um ambiente cujo contexto não é claro e muda
constantemente.
A autodescrição do “About me” de Allie em
eu sou allie. eu não sou uma pessoa muito seu perfil do MySpace revela sua tentativa de
complexa. eu gosto de música. eu gosto se localizar textualmente. Além dessa descri-
de ler. adoro conhecer novas pessoas. ção, Allie oferece um autorretrato sorridente,
ainda estou tentando descobrir muitas uma lista eclética de interesses, uma variedade
coisas. sobre Deus. sobre a vida. sobre o de gostos culturais, informações demográfi-
meu futuro. sobre pessoas. não gosto de cas simples, postagens reflexivas no blog e uma
quem sou, mas estou trabalhando para música melancólica para enriquecer sua au-
ser alguém melhor. estou realmente torrepresentação digital. Sua lista de Amigos2
tentando seguir Jesus com tudo de mim. e os comentários que eles postam fornecem
às vezes eu preciso de ajuda”–Allie, uma uma visão de seu mundo social, impactando
menina branca de 17 anos de Indiana, sua identidade. Enquanto o perfil de Allie no
em seu “Sobre Mim” no MySpace1 MySpace é cheio de informações sobre quem
ela é, a própria criação desse perfil é uma es-
tranheza do ponto de vista social, no sentido de
Escrever uma declaração biográfica pode que a geração de Allie é a primeira a ter que se
ser desafiador. As maneiras de descrever a si articular publicamente, a ter que escrever-se
mesmo são incontáveis ​​e a escolha de qual ca- como ser, como uma pré-condição à participa-
minho é apropriado depende totalmente do ção social.
contexto. Mesmo com o contexto em mente, Por mais rico que seja o perfil dela, é difícil
retratar-se com sucesso não é simples, seja por situar Allie. Sua autodescrição revela alguma
escrito ou ao vivo. Em um esforço para causar angústia, mas ela está radiante na fotografia.
uma boa impressão, as pessoas tendem a olhar Sua autodescrição permaneceu a mesma por
em volta, ver como os outros estão agindo meses, o que dificultou que eu percebesse mu-
nesse contexto e escolher sua performance de danças. A partir dos cinco posts que ela fez no
acordo com isso. Dependendo de como são re- blog no período de dois anos, eu pude constatar
cebidas, as pessoas alteram seu comportamento que ela esteve lutando para entender sua re-
para aumentar a probabilidade de serem per- ligião, mas não tenho ideia de quão presentes
cebidas como pretendem. Essa é a essência do esses pensamentos estão em sua vida cotidiana,
que Erving Goffman (1959) chama de “geren- nem sei por que esse é o único tópico que ela
ciamento de impressões”, incluindo os proces- parece postar sobre. Eu posso ver quem ela lista
sos envolvidos na “apresentação do eu”. como “Amigos”, mas não tenho ideia do que ela
Ambientes mediados, como públicos em acha sobre essas pessoas ou sobre aqueles com
rede, formalizam e alteram os processos iden- quem ela convive e que não estão no MySpace.
titários de autoapresentação e gerenciamento O perfil dela é público, o que possibilita que
de impressões. Adolescentes precisam for- eu o veja, mas tenho uma vaga ideia apenas de
malmente tornar sua presença conhecida por quem ela pretende que o visualize. Por tudo o
meio da criação explícita de perfis, e os atos que é revelado, há muito mais que não o é.
iterativos de gerenciamento de impressões são Todos os dias, em ambientes não mediados,
complicados pelo limitado feedback social nos as pessoas buscam gerenciar as impressões que
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causam nas interações sociais de uma forma ambientes.


ritualística. Esse gerenciamento de impressões Este capítulo examina algumas das manei-
exige que elas negociem, expressem e ajustem ras pelas quais adolescentes negociam suas
os sinais que explicitamente emitem e aqueles autoapresentações e o gerenciamento de im-
que implicitamente elas deixam transparecer. pressões em sites de redes sociais por meio da
Em seu texto seminal, Goffman (1959) detalha construção e manutenção de perfis. Ao anali-
as maneiras pelas quais as pessoas levam em sar essas práticas, considero as maneiras pelas
consideração a situação social e o seu próprio quais os adolescentes alteram suas práticas em
papel nela no uso da linguagem corporal, da torno do gerenciamento de identidades e de
fala e de outras pessoas para transmitir uma impressões para dar conta dos recursos técni-
impressão. O que a descrição de Goffman não cos dos sites de redes sociais. Meu objetivo é
prevê é a maneira como as situações mediadas analisar como adolescentes incorporam sites de
podem alterar esse processo. redes sociais em suas práticas de identidade e
Muito do que as pessoas tomam por certo como eles trabalham com e contra a tecnologia
em situações não mediadas não pode ser le- para atender às suas necessidades.
vado em consideração em situações mediadas.
No online, não há corpos no sentido corpóreo, o
que oculta tanto as informações de identidade 1. Localizando Identidade
que tipicamente são gravadas no corpo quanto
as informações de presença que tornam uma
pessoa visível para outras pessoas. Para exis- Os processos de autoapresentação e geren-
tir em contextos mediados, as pessoas devem ciamento de impressões estão intrinsecamente
envolver-se em atos explícitos, escrevendo-se. ligados ao conceito de “identidade”, mas o
Em sites de redes sociais, isso significa criar um termo “identidade” é, na melhor das hipóteses,
perfil e consubstanciar-se nos campos disponí- escorregadio. Estudiosos vêm se debatendo há
veis como um ato de autoapresentação. tempos sobre o significado desse termo, bem
Embora a criação de uma identidade digital como suas raízes psicológicas, sociais, cultu-
tangível seja relativamente simples, negociar rais e filosóficas (Buckingham 2007; Gay et al.
a tecnologia para se envolver em atos de au- 2001). Inúmeras teorias já foram apresentadas
toapresentação e gerenciamento de impressões como sendo as abordagens definitivas de iden-
é complexo e diferente de como esses atos se tidade, e essa continua sendo uma área de de-
desenrolam em ambientes não mediados. Os bates ricos.
processos de sinalização social são complicados Buscando situar o conceito de identidade,
pela tecnologia, o que altera como adolescentes Buckingham (2007) mapeia cinco concepções
podem obter acesso aos fundamentos do ge- de identidade que podem ser especificamente
renciamento de impressões: contexto, retorno3 úteis para pensar sobre adolescentes e novas
explícito e reações implícitas. A natureza per- mídias. Primeiro, ele mira nas abordagens psi-
sistente, pesquisável, alterável e de rede desses cológicas ou comportamentais, para as quais
ambientes dificulta que adolescentes situem identidade é um processo de desenvolvimento.
sua performance e, portanto, corre-se o risco A adolescência é marcada pelas maneiras pelas
de que elas sejam tiradas de contexto. Ao criar quais a identidade é formada, ou é ao menos
e negociar autoapresentações em espaços me- posta em crise. Alguns dos principais estudio-
diados, os adolescentes lutam para desenvol- sos que seguem essa linha são G. Stanley Hall,
ver técnicas para dar conta e adaptar-se a esses Jean Piaget e Erik Erikson. Em segundo lugar,
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ele se volta para abordagens sociológicas nas metodológicas diversas, e endereçando dife-
quais a identidade é marcada pela relação de rentes aspectos de identidade (Balsamo, 1995;
um indivíduo com a sociedade ou a cultura. Castells, 2004; Clippinger, 2007; Donath, 1999;
Questões de “socialização” moldam esse dis- Reed, 2005). Uma parte dos primeiros traba-
curso, notavelmente visto em estudos de sub- lhos, como o “Manifesto Ciborgue”, de Donna
culturas e nas formas como desvio e delinquên- Haraway (1991a), focou em como uma existên-
cia são vistos como um desenvolvimento falho cia mediada como um ciborgue resultaria em
de identidade. Em terceiro lugar, Buckingham novas manifestações de identidade, o que de-
fornece uma noção de identidade social que safiaria sistemas de poder por complicar pre-
é melhor entendida como “identificação”, na missas corporificadas nas políticas de identi-
qual o sentido de si do indivíduo é marcado em dade. Mas, apesar de a hipótese de Haraway ter
relação ao grupo. Aqui, os estudos de Goffman levantado enormes discussões e análises, esse
sobre autoapresentação e gerenciamento de futuro utópico não chegou. Mesmo quando
impressões desempenham um papel central. tentam enganar, as pessoas reproduzem online
Em quarto lugar, ele trata do conceito de “po- as suas experiências corporificadas (Berman &
líticas de identidade”, que emerge das dispu- Bruckman, 2001).
tas em torno de como identidades são cons- Uma das estudiosas mais proeminentes que
truídas pelos detentores de poder. Esse campo examinam as questões envolvendo identidade
de estudos desestabiliza a noção de quem tem e tecnologia é Sherry Turkle. Seus textos se-
realmente o poder de construir e controlar a minais The Second Self (1984) e Life on the Screen
identidade de um indivíduo, e está fortemente (1995) examinam a identidade a partir de uma
ligado a discursos de classe, raça, gênero e perspectiva psicológica, concentrando-se prin-
queer. Em quinto lugar, ele apresenta como a cipalmente na juventude. Turkle usa a psica-
teoria social moderna aborda identidade como nálise para considerar as maneiras pelas quais
sendo o que Anthony Giddens (1991) chama de a tecnologia auxilia e complica o desenvolvi-
um “projeto autorreflexivo do eu”, ou aquilo a mento da identidade. Ela também afirma que a
que Michel Foucault (1990) poderia se referir fragmentação da identidade possibilitada pela
como “automonitoramento”. tecnologia leva a crise de identidade a novos pa-
Nos discursos técnico e jurídico, o termo tamares (Turkle, 1995, pp. 255-269). Ao mostrar
“identidade” é frequentemente utilizado para e examinar maneiras pelas quais jovens usam
fazer referência a uma pessoa ou um corpo a tecnologia para trabalhar com a identidade,
particular (Solove, 2006). Sistemas técnicos fre- Turkle enquadra tais práticas como atos de si-
quentemente usam “identidade” para se referir mulação de identidade. Sua análise assume que
ao identificador em uma base de dados ou ao a atividade online é separada das interações físi-
conjunto de características demográficas que cas. Além disso, seu trabalho se concentra em
identificam alguém de forma única. Discussões jovens e crianças que acabam de ser introdu-
jurídicas sobre “roubo de identidade” e priva- zidas na computação. Embora nossos interes-
cidade também vão por esse caminho, usando ses de pesquisa sejam semelhantes, discordo de
identidade para referir-se à coleção de infor- muitas das conclusões de Turkle. Mesmo que
mações que referencia com sucesso uma pessoa sua análise seja válida para aqueles que estão
específica. tentando criar mundos “virtuais” separados por
Há já uma extensa produção acadêmica na meio do engajamento online, a grande maioria
interseção de tecnologia (incluindo a Internet) dos adolescentes não é assim. Por esse motivo,
e identidade, vinda de perspectivas teóricas e acredito que a suposição de que adolescentes
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estão fragmentando suas identidades por meio 2. Escrevendo a


do engajamento online é imprecisa. Dito isto, identidade para estar
acredito que eles apresentam uma faceta de sua
identidade com base no contexto social envol- online
vido (boyd, 2002). Só não acredito que isso crie
as crises de identidade sugeridas por Turkle.
Como muitos estudiosos antes de mim, eu Analisando a cultura textual de uma comu-
tento juntar várias abordagens sobre identidade nidade online dos primórdios da Internet, Jenny
em minha própria abordagem. Embora me ba- Sundén (2003, p. 3) argumentou que um par-
seie em várias estruturas teóricas, a abordagem ticipante precisa se envolver de maneira ativa
de Goffman sobre a performance de si mesmo e consistente em “digitar a si mesmo em ser”4
e a negociação que envolve o gerenciamento de para existir e ser visível online. A pesquisa de
impressões estão no centro. As estruturas que Sundén se concentrou em um precursor de
eu propositalmente excluo são aquelas que pre- jogos de role-playing game online para múltiplos
sumem que a identidade é um conjunto de eta- jogadores, conhecidos como MUD (sigla para
pas pré-estabelecidas e delimitadas no tempo; Multi-User Domain ou Multi-User Dungeon). Nesse
não concordo com essa visão, embora ocasio- ambiente social de jogo, os participantes preci-
nalmente dialogue com estudiosos que a ado- savam produzir textualmente todos os aspectos
tam. Vejo perfis como “corpos digitais”, pois do mundo imaginado, desde as mesas e cadei-
identificam uma pessoa de forma única e são ras de uma sala até os acessórios de moda usa-
o fruto de uma produção de identidade autor- dos pelos personagens. Assim, eles digitavam
reflexiva. Para mim, os perfis localizam e são a existência de espaços e explicitamente digi-
a combinação de uma série de autodescrições tavam a existência de pessoas. Atributos como
controladas no contexto das conexões sociais. gênero eram atribuídos a uma pessoa por meio
Quando os adolescentes lutam com as formas do uso de um comando como “@gender”.
como são vistos e com como eles se distinguem Em ambientes não-mediados, é fácil que os
na relação com aqueles a seu redor, vejo um corpos – e os papéis que eles desempenham –
trabalho identitário que combina as maneiras sejam tomados como dados. Ao localizar uma
complexas pelas quais normas sociais, contexto pessoa no espaço e no tempo, um corpo sina-
e pessoas complicam atos de autoapresentação liza presença de seu próprio ser. Um corpo é
e gerenciamento de identidade. A meu ver, esse carregado com pistas sobre a identidade de
trabalho deles inaugura um conjunto inteira- uma pessoa; gênero, raça e idade são inscritos
mente novo de políticas de identidade, e eu in- no corpo de maneiras que muitas vezes são di-
dico as formas pelas quais o colapso de con- fíceis de ocultar. Por meio da moda e de ma-
textos pode aumentar desafios daqueles cujas neirismos, os corpos podem ser usados para
identidades são enquadradas por sistemas de transmitir uma ampla variedade de atitudes,
poder. emoções, afiliações e informações de identi-
dade. Os corpos, no sentido tradicional, não
existem online. Por padrão, a presença digital de
uma pessoa é pouco mais do que um endereço
IP. Enquanto os corpos no sentido material não
estão presentes online, Sundén argumenta que
o mundo digital não está livre das restrições
dos corpos de materialidade, pois “o virtual
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não equivale automaticamente a ‘descorpori- não mediados.


ficação’” (Sundén, 2003, p. 5). A forma como A continuidade entre sites de redes sociais e
as pessoas se representam e interagem online é outros ambientes afeta as práticas de adoles-
fundamentalmente influenciada por sua expe- centes em relação à criação de uma represen-
riência corporificada. tação digital. Os corpos digitais que emergem
Nos ambientes que Sundén estava pesqui- dos perfis estão firmemente amarrados ao in-
sando, era bastante comum que os participan- divíduo por trás do perfil, por nenhuma razão
tes não tivessem interações face a face entre si. senão porque servem como uma representa-
Do mesmo modo, as normas nos MUDs não ção digital direta dessa pessoa para interações
exigiam que os participantes modelassem suas mediadas. Embora alguns sugiram que o traba-
representações online para refletir com precisão lho identitário pela Internet tende a envolver
seus corpos offline. Assim, os corpos dos perso- a criação de personagens fictícios desconecta-
nagens digitados pelos participantes nos MUDs dos da realidade incorporada (Turkle 1995), essa
podem não ser “reais” no sentido comumente não foi uma prática comum que testemunhei.
entendido. Tais desvios não são considerados Alguns adolescentes optam por representar um
enganosos nos MUDs, pois esses ambientes eu idealizado ou apresentar uma faceta de sua
incentivam brincar com identidades e os par- identidade que eles normalmente não mos-
ticipantes não assumem que uma apresenta- tram em espaços públicos, mas poucos geram
ção textual seja uma representação sincera do autorrepresentações completamente desco-
corpo não-mediado de quem digita. nectadas de suas experiências cotidianas. Mais
Por outro lado, para os adolescentes ameri- frequentemente, eles estão simplesmente pro-
canos, os sites de redes sociais não são um es- curando se representar da maneira mais posi-
paço distinto que é construído online e deixado tiva possível.
como uma esfera de imaginação virtual. As O processo de digitar online o seu ser força
performances, conversas, interações e contexto os adolescentes a trabalhar com a identidade
dos sites de redes sociais estão intimamente li- de novas maneiras. Adolescentes precisam des-
gados a outros aspectos da vida dos participan- cobrir como se imaginam e como querem ser
tes. Adolescentes movem-se suavemente entre vistos e, em seguida, devem usar ferramentas
diferentes ambientes mediados e não-media- para expressar isso formalmente, por vezes sem
dos, e sua participação em sites de redes so- os mecanismos de retorno e avaliação5 e o con-
ciais geralmente está intrinsecamente ligada a texto que tornam o gerenciamento de impres-
encontros não mediados. Adolescentes parti- sões fluido. Eles precisam lutar contra serem
cipam desses espaços ao lado de pessoas com mal interpretados e terem sua representação
quem interagem em ambientes não mediados. controlada pelas pessoas em volta deles e pela
As performances que acontecem online não são própria tecnologia. Porém, a maneira como
atos isolados, desconectados das configurações eles gerenciam isso através da construção e
corporificadas, mas atos conscientes que de- manutenção de perfis ajuda a compreender as
pendem de um contexto que abrange ambien- interseções entre identidade e tecnologia e as
tes mediados e não mediados e envolve pessoas maneiras pelas quais os adolescentes aprendem
conhecidas em ambas as situações. Embora o a lidar com a identidade em ambientes total-
jogo de identidade seja comum nos MUDs, os mente novos.
perfis que adolescentes criam nos sites de redes
sociais geralmente estão bastante conectados à
identidade corporificada neles em ambientes
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3. A arte da criação e impressões, o que requer que os adolescentes


gerenciamento de perfis tenham em mente quem pode ver seus perfis
e como eles podem ser interpretados. Assim, o
desejo de serem vistos sob uma luz positiva ou
O simples ato de criar um perfil em uma rede precisa compele os adolescentes a elaborarem
social exige alguma autorreflexão, ao menos cuidadosamente seus perfis.
para decidir conscientemente o que preen-
cher ou ignorar nas questões e formulários.
Conforme documentado em relação a muitos 3.1. Técnicas para
gêneros de mídia social (Brake, 2008; Ellison autoapresentação
et al., 2006; Hodkinson & Lincoln, 2008; Reed,
2005), construir e atualizar um “corpo digital” Elaborar o perfil perfeito em um site de
de forma criativa exige que os participantes rede social é uma arte. Escolher fotos, selecio-
pensem em como desejam se representar. Criar nar músicas, criar layouts e determinar como
autorrepresentações digitais tornou-se um ato preencher os vários campos de texto leva tempo
corriqueiro para muitos adolescentes. Da esco- porque os adolescentes conscientemente levam
lha de um “nome de tela” para se representar em consideração as impressões que seus per-
em um aplicativo de mensagens instantâneas6 fis podem deixar. Dom, um garoto negro de
à atualização de um blog e manutenção de um 16 anos de Washington, disse-me que escolher
perfil de site de rede social, os adolescentes que cuidadosamente o conteúdo a ser colocado em
eu encontrei frequentemente enfrentam pres- seu perfil era importante para ele. Explicando o
são para ser espirituosos, divertidos, criativos porquê, ele disse: “Eu escolhi o que queria no meu
ou interessantes quando estão se dedicando à perfil porque achei que me representava bem”. Dom
escrita de sua existência online. queria que seu perfil causasse uma boa impres-
A pressão que adolescentes enfrentam na au- são naqueles que o viam. Para Dom, isso signi-
toapresentação digital não é totalmente dife- ficava criar um perfil centrado nos seus amigos
rente daquela que envolve moda e imagem em e na sua música. Dom e seu primo vasculha-
contextos não mediados. A maneira pela qual ram a web em busca de layouts até Dom en-
adolescentes individuais se adornam–online contrar um que ele gostasse. Ele então editou
ou offline–sinaliza informações valiosas sobre uma foto de si mesmo no Photoshop e usou-a
seu senso de si e sua identidade social (Crane, como pano de fundo. Ele adicionou fotos de
2000; Davis, 1992). Os adolescentes consomem seus amigos e fez upload das músicas que ele
a moda como uma forma direta de autoexpres- compôs para que as pessoas pudessem ouvi-
são (Piacentini & Mailer, 2004) e buscam sím- -las quando visitassem sua página. Através da
bolos da moda que lhes permitam simultanea- combinação de um layout descolado, fotos de si
mente se encaixar e se destacar entre seus pares e de seus amigos e do streaming de sua música,
(Milner, 2004). Usando texto, imagens e outras Dom conseguiu criar uma autorrepresentação
mídias, bem como design, adolescentes criam que, segundo ele, transmitia quem ele era e o
perfis que sinalizam informações sobre suas que era importante para ele.
identidades. As autorrepresentações mediadas Os sites de redes sociais – e o MySpace, em
que eles criam revelam tanto o que eles têm particular–são estruturados de maneira a assu-
em comum como a forma como eles se dis- mir que o observador não conhece a pessoa por
tinguem daqueles que os rodeiam (Liu, 2007). trás do perfil, mesmo que a maioria dos adoles-
Criar um perfil é um ato de gerenciamento de centes–incluindo Dom–esteja usando sites de
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redes sociais principalmente para interagir com e muitos adolescentes adaptam-no para for-
amigos e colegas (Lenhart & Madden, 2007b). mas variadas de autoexpressão. Alguns adoles-
Ao elaborarem seus perfis, esses adolescentes centes exibem vídeos que desejam comparti-
não estão tentando se explicar para estranhos, lhar com seus amigos. Outros–principalmente
e sim criando uma autorrepresentação digital meninas–usam esse espaço para exibir resul-
que será bem recebida por pessoas que eles já tados de questionários ou testes de personali-
conhecem. Isso direciona o que eles escolhem dade. Alguns adolescentes escrevem poemas ou
para colocar em seus perfis e motiva-os a adap- exibem uma lista de citações favoritas. Alguns
tar recursos do MySpace que foram projetados deixam em branco e outros, como Allie acima,
para ajudar estranhos a se encontrarem. levam o desafio a sério e tentam descrever
Conforme discutido em maior detalhe no um aspecto de sua identidade. Ao navegar no
Apêndice 2,7 adolescentes inserem seis tipos de MySpace, vi uma variedade de diferentes atos
conteúdo para criar um perfil no MySpace: fo- de autoexpressão. Um adolescente postou um
tografias, informações demográficas, listas de longo discurso, seguido por: “eu não tento agir
gostos e interesses, texto em campos abertos como um espertinho / apenas declaro os fatos que eu
para autodescrição, música e layouts de página. conheço / também sou muito sincero / lide com isso.”
Além disso, como a lista de Amigos e os co- Um garoto adolescente usou essa seção para es-
mentários desses Amigos são exibidos nos per- crever um poema de amor para sua namorada,
fis, o conteúdo que seus Amigos escolhem in- exclamando seu amor e prometendo que ele
serir ajuda a moldar o perfil de um adolescente. estaria com ela para sempre. Em outro lugar,
Seções como o “Sobre mim” do MySpace uma adolescente ofereceu uma lista de fatos
são estruturadas para indivíduos explicarem a sobre si mesma, incluindo “Eu amo patinhos!”
si mesmos, presumivelmente para estranhos. Passagens bíblicas e letras de músicas são co-
Essa seção de tipo aberto é exibida central- muns, assim como fotografias de si mesmo ou
mente nas páginas dos perfis, mas muitos ado- dos amigos do adolescente em questão. Embora
lescentes não sentem a necessidade de se des- esses vários movimentos possam não respon-
crever para aqueles que já sabem quem eles são. der diretamente à pergunta feita pela seção
Traviesa, uma adolescente hispânica de 15 anos “Sobre mim”, todos refletem informações sobre
de idade de Los Angeles, chega ao ponto de o adolescente que está sendo representado.
usar essa seção para deixar claro que seu perfil Outra seção aberta que adolescentes regular-
é destinado àquelas pessoas que ela já conhece. mente adaptam é a “Quem eu gostaria de co-
Ela a usa a seção “Sobre mim” para declarar: “Ei, nhecer”. Com base nos perfis do MySpace que
meu nome é Traviesa ... mas a maioria de vocês me eu vi, a maioria dos adolescentes tratou esta
conhece de qualquer maneira, apenas fale comigo e seção de maneira parecida à seção “Sobre mim”,
pare de ser idiota”. O perfil dela é publicamente preferindo deixá-la em branco, adicionando
visível e ela sabe que estranhos podem acabar multimídia ou questionários, ou mesmo usan-
tropeçando nele, mas ela acredita que apenas do-a como uma continuação da seção “Sobre
aqueles que a conhecem teriam algum motivo mim”. Muitos dos que realmente abordaram
para mergulhar mais fundo. Diante disso, ela o tópico definiram explicitamente a audiên-
não acha que precisa entrar em detalhes sobre cia pretendida: “Gostaria encontrar apenas amigos
quem ela é, embora alegremente ofereça uma aqui.” Alguns mencionaram que estariam aber-
lista de suas músicas favoritas. tos a encontrar pessoas interessantes ou pes-
Assim, a seção “Sobre mim” é o campo aberto soas que compartilhavam seus interesses, mas
mais proeminente em um perfil do MySpace isso não era comum. Mais frequentemente, os
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adolescentes indicaram que gostariam de co- ela entrou na sala segurando um fichário cheio
nhecer celebridades, bandas ou figuras públicas de papel. A frente, o verso e a lateral do fichá-
como o Dalai Lama e o papa. Embora esse ele- rio eram decorados com uma colagem de foto-
mento dos perfis tenha sido projetado para aju- grafias recortadas dela e de suas amigas artis-
dar pessoas a indicar quem elas gostariam de ticamente posicionadas. Perguntei a Gabriella
conhecer por meio do site, a escolha de listar sobre o fichário e ela me disse que gostava de
pessoas famosas é principalmente sobre marcar ter suas amigas com ela o tempo todo. As esco-
identidade pela participação em fandoms.8 lhas de Gabriella em matéria de roupas, acessó-
Em vez de se descrever, alguns adolescentes rios e maquiagem deixou claro que ela levava a
usam os campos das seções abertas para expres- moda a sério. Suas unhas foram pintadas como
sar os seus sentimentos sobre as pessoas que os dados em preto e branco e ela me disse que as
rodeiam. Em um perfil, uma adolescente deta- refazia regularmente. Gabriella levava seu per-
lhou o quanto ela amava suas amigas em sua fil online tão a sério quanto suas roupas. Ela
“Sobre mim”; em outro, um garoto escreveu me disse que procurava ativamente panos de
uma mensagem de “descanse em paz” para um fundo10 interessantes e que mudava seu perfil
amigo que morreu. Michael, um adolescente semanalmente. Naquele dia, o tema era jogo
branco de 17 anos de Seattle, me disse que seu de damas. Ao visitar o seu MySpace, encontrei
perfil se concentrava em duas coisas: futebol paralelos entre o perfil dela e o seu fichário–
americano e sua namorada. Quando nos co- ambos cobertos de fotografias de amigos.
nhecemos, a sua seção “Sobre mim” começava Enquanto os adolescentes se divertem com
com “Eu amo minha namorada AMY”. Da mesma a maioria dos campos nas seções de autodes-
forma, Amy, uma adolescente negra9 de 16 anos, crição e de interesses pessoais, suas respostas
encheu seu perfil com odes à Michael. Os dois aos campos de gosto (músicas, programas de
exibiram seu relacionamento por meio de pos- TV e filmes favoritos, por exemplo) tendem a
tagens em blogs, fotos e comentários. Como ser mais sérias e complexas. Ranquear os “fa-
muitos outros adolescentes, Amy e Michael vi- voritos” em matéria de produtos midiáticos
sivelmente performaram seu relacionamento não é simples para muitos adolescentes – gos-
usando seções de perfil destinadas à autodes- tos mudam com o tempo e muitas pessoas não
crição. Algumas semanas depois que conheci pensam em seu gosto na forma de listas abstra-
Michael e Amy, eles terminaram. Embora qual- tas. Gostos, como moda, estão enraizados em e
quer sinal de Michael tenha desaparecido do construídos por sistemas sociais. As pessoas se
perfil de Amy, Michael tornou visível essa alte- distinguem por seus gostos e gostos são uma
ração no status do relacionamento. Onde antes das maneiras pelas quais as distinções sociais
havia uma proclamação de amor, o perfil de são produzidas (Bourdieu, 1984). Quando soli-
Michael mostrava: “Eu odeio minha ex-namorada citados a expressar seus favoritos, muitas pes-
vadia idiota”. Oportunamente ou não, os adoles- soas–consciente ou inconscientemente–sele-
centes regularmente marcam quem são em re- cionam gostos que transmitirão a impressão
lação às pessoas ao seu redor, e suas autoapre- ideal (Donath, 2007). Em outras palavras, elas
sentações são enquadradas por suas relações tentam se posicionar em relação aos outros por
com e opiniões sobre os outros. meio de suas escolhas de gosto. Analisando
Usar fotografias de amigos como forma de perfis do MySpace, Liu (2007) descobriu que
decoração não é exclusivo da Internet. Quando estruturas sociais incitam performances de
entrevistei Gabriella, uma hondurenha de 15 gosto. Surpreendentemente, as pessoas tinham
anos de idade, em sua escola em Los Angeles, maior probabilidade de listar gostos diferentes
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de seus Amigos. No entanto, essa diferenciação a ter Amigas que também escolhem esse es-
performativa não implicava que as pessoas não tilo de foto. Os adolescentes que dedicam seus
compartilhassem mais gostos com os que as perfis a Jesus tendem a ter Amigos que tam-
rodeiam. Pelo contrário, é bem provável que o bém mostram publicamente sua fé. Ao navegar
ato de articulação pública motivasse as pessoas em perfis, não é possível dizer quem definiu as
a listar gostos que as diferenciassem daqueles normas, mas os nichos são visíveis. Embora o
que os rodeiam. tom geral de um perfil tenda a ser consistente
O texto de autodescrição, os artefatos de nos grupos sociais, o conteúdo em si raramente
mídia e os layouts de página são apenas um as- é replicado. Por exemplo, embora aspectos ge-
pecto de um perfil em sites de redes sociais. rais de layout do MySpace possam ser consisten-
Outro componente importante é a articulação tes em um grupo de Amigos, dois Amigos não
pública de conexões sociais por meio das Listas usariam exatamente o mesmo layout. Com es-
de Amigos. Como essas conexões são exibidas tilos de perfil e gostos, os adolescentes tendem
publicamente no perfil de um adolescente para a se diferenciar por meio de conteúdo especí-
todos verem, elas servem como mais do que fico mesmo quando o tom geral ou o gênero
apenas uma lista de colegas ou uma caderneta dos gostos se pareça com o de seus Amigos.
de endereços. Essas conexões–e os comentá- Em outras palavras, cada perfil é único, mas
rios deixados por esses Amigos–moldam as há efeitos de rede em termos de tom, gênero e
representações digitais dos adolescentes. Em estilo, sugerindo que os adolescentes estão po-
outras palavras, os sites de redes sociais for- sicionando suas identidades digitais em relação
malizam o ditado “diga-me com quem andas àqueles ao seu redor. Essa prática é semelhante
que direi quem tu és”. Ao mesmo tempo que à moda em ambientes não mediados, onde é
os adolescentes controlam certo conteúdo em comum adolescentes escolherem roupas que
seus perfis, eles não controlam as fotos ou os geralmente são do mesmo estilo que seus pares,
nomes que seus Amigos selecionam, embora mas onde usar exatamente as mesmas roupas
estes também sejam exibidos em seus perfis. que seus amigos é um tabu.
Eles podem excluir comentários deixados pelos
Amigos, mas, na maioria das vezes, não o fazem.
No Facebook, adolescentes também podem 3.2. Cultura e
postar e marcar outras pessoas em fotos, que moda do quarto
são automaticamente conectadas aos seus per-
fis sem a permissão daqueles que foram mar- A maneira como os adolescentes adornam
cados.11 Dessa forma, o que os adolescentes de- seus perfis online é paralela à maneira como
claram explicitamente em seus perfis é apenas decoram outros espaços e objetos materiais que
uma parte da sua autoapresentação online. Seus eles controlam–armários escolares, mochilas,
perfis são fortemente co-construídos por aque- quartos e seus corpos. O estilo de fotomonta-
les que os rodeiam. gem que Gabriella, 15 anos, de Los Angeles, usa
Efeitos de rede também desempenham um para seu fichário espelha quantos adolescen-
papel significativo na forma como adolescentes tes decoram seus armários e paredes do quarto.
constroem seus perfis. À medida que navegam Há muito tempo, adolescentes costuram obje-
nos perfis uns dos outros, eles percebem o que tos de mídia como uma forma de autoexpres-
é comum entre seus grupos de colegas e costu- são, colocando-os em espaços ou objetos que
mam criar seus perfis para reforçar essas nor- estão conectados com eles. Da mesma forma,
mas. As meninas que têm fotos “sexy” tendem roupas e acessórios têm sido uma maneira de
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adolescentes marcarem suas identidades em quartos e os perfis é a escala da audiência.


relação à dinâmica cultural e às pessoas. À me- Adolescentes podem mostrar seus quartos para
dida que adolescentes elaboram seus perfis, os amigos, mas raramente têm a oportunidade
eles combinam essas duas práticas, revelando de convidar todo o seu grupo para ver como
as maneiras pelas quais os perfis são ao mesmo eles os decoraram. Embora a escala potencial
tempo semelhantes e diferentes de seus equi- da interação online seja muito maior do que
valentes físicos. em um quarto, Livingstone (2008) descobriu
Para os adolescentes, especialmente as ado- que permanece uma expectativa de intimidade;
lescentes, os quartos e as paredes de pôsteres adolescentes escolhem deliberadamente o que
têm sido há tempos um espaço no qual a parti- compartilhar com base em sua compreensão
cipação cultural e a identidade se manifestam, da situação social e do contexto técnico. Assim,
e todas as formas de mídia têm desempenhado adolescentes abordam os ambientes da mídia
um papel central nesse processo (McRobbie social com uma visão de privacidade voltada
& Garber, 1976; Steele & Brown, 1995). A ideia principalmente para o controle da situação
de “cultura do quarto”, tal como inicialmente (Livingstone, 2006). Citando Giddens (1991,
apresentada por McRobbie & Garber (1976), fo- p. 94), Livingstone (2008, p. 471) lembra-nos
cava nas maneiras pelas quais as meninas ado- que “a intimidade é a outra face da privaci-
lescentes consumiam cultura, embora as crí- dade”. Pode parecer paradoxal, mas os adoles-
ticas tenham enfatizado que adolescentes se centes simultaneamente buscam ser acessíveis
envolvem ativamente na produção cultural na para algumas audiências e privados para ou-
cultura do quarto, especialmente quando mí- tras (Livingstone, 2008, p. 471). Dessa forma,
dias estão envolvidas (Kearney, 2006; Lincoln, eles trabalham a partir de um senso de inti-
2004; 2005). O que os adolescentes criam por midade e controle que é paralelo à cultura do
meio de suas escolhas de decoração e de lem- quarto. Muitos dos adolescentes que entrevistei
branças e recordações são tanto espaços sociais observaram que seus quartos não eram exata-
como autorrepresentações (Lincoln, 2004). mente espaços privativos, porque seus pais e
À medida que os adolescentes formam públi- irmãos entravam quando quisessem, mas, ao
cos em rede, eles levam consigo práticas da cul- mesmo tempo, sentiam que esses espaços não
tura do quarto, e os públicos em rede podem eram exatamente públicos, porque eles tinham
ser vistos como «quartos virtuais» (Hodkinson algum senso de controle e não era qualquer
& Lincoln, 2008). Autorrepresentações digitais pessoa que poderia ou deveria entrar sem mais
são equivalentes às paredes dos quartos, onde nem menos. Em sites de redes sociais, adoles-
adolescentes exibem suas identidades e os es- centes podem entender que estão visíveis para
paços sociais que são ali criados são ao mesmo uma ampla audiência, mas não veem sua par-
tempo iguais e diferentes dos quartos. Misturas ticipação nesses públicos em rede como sendo
de conteúdo de mídia são usadas nos dois am- universalmente pública.
bientes, mas a mídia que adolescentes usam nos A mídia social não substitui necessariamente
quartos é principalmente estática, enquanto o a cultura do quarto, mas às vezes é uma alter-
conteúdo exibido em seus perfis pode ser inte- nativa significativa, especialmente para adoles-
rativo, animado e com links. Pode ser mais ba- centes que não têm controle sobre seus am-
rato exibir mídias nos perfis do que nos quar- bientes físicos. Por exemplo, depois de uma
tos, mas o tempo para encontrar e combinar palestra que dei em Nova Jersey, uma adoles-
essas mídias pode ser muito maior. cente me disse que gostava de decorar seu per-
Sobretudo, a diferença entre as paredes dos fil no MySpace porque isso permitia que ela
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fosse criativa. Ela não teve permissão para alte- próximo capítulo,13 é importante observar que
rar seu quarto após sua mãe, que é decoradora a moda ainda funciona como um mecanismo
de interiores, tê-lo projetado, mas ela poderia chave de autoapresentação e desempenha um
fazer o que queria com seu perfil no MySpace. papel central no gerenciamento de impressões.
Ela aproveitava a oportunidade para a autoex- À medida que os adultos buscam controlar as
pressão criativa e mudava seu perfil constante- maneiras pelas quais os adolescentes podem se
mente. Embora este seja um caso extremo de engajar em atos de autoexpressão, os adolescen-
falta de controle, muitos adolescentes encon- tes buscam novos espaços, incluindo a Internet.
tram restrições no que podem ou não colocar Como os perfis são tanto uma representação de
nas paredes de seus quartos ou em outros es- um indivíduo como um espaço para interação
paços onde eles possivelmente já marcaram sua social, as práticas de autoexpressão assumem
identidade. Muitas das escolas que visitei não um lugar paralelo à cultura do quarto e à moda.
têm mais armários ou restringem as decora-
ções dos armários–“por razões de segurança contra
incêndios”. A moda é outro espaço onde ter con- 3.3. Variando
trole da autoexpressão é difícil. Vestimentas e graus de
mochilas continuam a constituir um campo de
batalha, especialmente no que diz respeito à es- participação
cola. Da mesma maneira, os pais ainda tentam
limitar o que seus filhos podem usar. Embora a criação de um perfil seja necessária
A moda desempenha um papel significativo para a participar do MySpace, a sua decoração
na marcação de identidade (Davis, 1992) e, como ativa não o é. Os adolescentes frequentemente
discutirei no próximo capítulo,12 status (Crane, sentem pressão social para inserir uma foto sua
2000; Piacentini & Mailer, 2004). Adolescentes e dedicam algum esforço na criação de seus
usam a moda para marcar-se em relação uns perfis, mas há menos pressão para atualizar
aos outros (Milner, 2004) e para identificar-se constantemente o estilo e o layout. Ao mesmo
com grupos sociais (Hebdige, 1979). Roupas e tempo, adolescentes geralmente não querem
acessórios tornam-se ferramentas para a au- deixar seus perfis ficarem obsoletos porque
toexpressão e os adolescentes vestem-se como pensam que isso passa uma má impressão. O
uma forma de trabalho identitário. No entanto, desejo de manter um perfil em dia geralmente
embora os adolescentes valorizem as oportuni- leva a atualizações. Nick, um adolescente negro
dades simbólicas da moda para autoexpressão e com raízes indígenas de 16 anos de Los Angeles,
identificação (Milner, 2004; Piacentini & Mailer, atualiza suas fotos e planos de fundo a cada
2004), os adultos preocupam-se com os mar- poucos meses pois, caso contrário, “fica muito
cadores visíveis da resistência dos adolescen- chato ... aí vou entrar no meu perfil e ver a mesma foto
tes às normas dos adultos e com o reforço das toda vez. Eu fico tipo ‘vou fazer alguma coisa nova’”.
hierarquias sociais. Códigos de vestimenta são Enquanto alguns adolescentes se sentem
relativamente comuns e muitas vezes aclama- motivados a atualizar seus perfis constante-
dos pelos pais como abordagens saudáveis ​​para mente, outros nunca os atualizam. Alguns,
conter a violência de gangues, a promoção de como Shean, um adolescente negro de 17 anos
relações de status e hierarquias problemáticas em Los Angeles, usam o MySpace a partir de
entre adolescentes e o consumismo. Embora uma perspectiva funcional, comunicativa. “Não
a moda e sua relação com status e grupos de sou muito fã de mudar a minha imagem de pano de
pares sejam discutidas em mais detalhes no fundo e tudo isso. ... Desde que eu mantenha contato
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com meus amigos ou qualquer coisa assim, eu real- satisfeita com minha tentativa fingida
mente não me importo com a aparência desde que de me definir digitalmente. Tenho uma
eu esteja, tipo, lá”. A atitude dele é bem comum, ideia melhor: vou interromper todas
embora os meninos expressem isso mais fre- as atividades que de qualquer maneira
quentemente do que as meninas. Nas minhas possam sugerir que estou me prostituindo
entrevistas, mais meninas sentiam pressão para para alguma imagem estereotipada, e
manter seus perfis atualizados e expressivos, vou parar de tentar porque nenhuma
ricos em fotos e novos conteúdos. Quando eu expressão é precisa o suficiente para
navegava nos perfis, também me parecia que as abranger todas as minhas complexidades
meninas os atualizavam com mais frequência. humanas. ... Que Deus proíba que outras
Nem todos os adolescentes sentem pressão pessoas pensem que eu estava fingindo ou
para criar o perfil perfeito ou atualizá-lo com degradando a soma da minha substância
frequência, e, mesmo entre aqueles que sen- a uma lista dos meus filmes favoritos
tem, nem todos cedem a ela. Da mesma forma e algumas fotos bem escolhidas.
como alguns adolescentes resistem às pressões
para se adaptar a outras práticas normativas
de sua cultura de pares,14 alguns adolescentes A tirada sarcástica de Cara sobre o processo
também evitam a construção e manutenção de de desenvolvimento e manutenção de perfil
perfis online. Grande parte de sua resistência chega ao cerne do porquê adolescentes se en-
surge de uma frustração generalizada de que a volvem nessas práticas. Muitos adolescentes
participação requer conformidade com atitudes querem criar uma representação digital que
mais amplas da sua cultura de pares, hierar- represente bem quem eles são e que seja bem
quias sociais e conjuntos de valores. Quando recebida por aqueles que os circundam. No en-
os adolescentes marginalizados optam pela tanto, fazê-lo por meio de um perfil de site de
exclusão e criticam essas práticas, isso geral- rede social exige que você se encaixe em um
mente é um movimento explícito de se dis- conjunto predeterminado de caixas e listas de
tanciar das hierarquias de status inatingíveis gostos. O resultado é grosseiro–e nem sempre
do pessoal mais “popular”. Suas críticas, ainda representativo–o que aumenta a incerteza so-
que sejam por vezes justificadas, questionam as cial pela qual os adolescentes passam ao lidar
práticas de trabalho identitário e de negociação com seus pares.
de status que ocorrem na construção de perfis. A criação de perfis força adolescentes a levar
Quando entrevistei adolescentes que evitavam em consideração como eles querem se repre-
essas práticas, nenhuma era tão articulada e sentar. Ao trabalhar nesse processo, adolescen-
descritiva quanto Cara, uma jovem de 20 anos tes calculam quem eles acham que verá seus
do Maine. Cheia de sarcasmo, Cara lamentava o perfis. Suas decisões sobre o que dizer estão
ritual de construção de perfis em seu blog: profundamente conectadas ao seu senso de au-
diência. Esse público é, em geral, composto por
Realmente eu estou fazendo de tudo para seus amigos, e o que os adolescentes dizem é
construir uma identidade ideal, e aí todo melhor compreendido dentro desse contexto.
mundo saberá o quão emo e especial eu Fora de contexto, parte do que aparece não é
sou. É a mesma razão pela qual tenho um exatamente o que parece.
LiveJournal e um MySpace, para que eu
possa encarar fotos de mim mesma e ficar
ajustando meu layout até que me sinta
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4. Autoapresentações em que você possa fazer com alguém cujo material ge-
contexto nético você herdou sem que você subverta as leis da
natureza.” Os desafios em negociar perfis com
pais e outros adultos são discutidos em mais
Perfis e outros atos de autoapresentação não detalhes em outro capítulo deste trabalho.16
são performados no vácuo. As decisões sobre Falar para um público imaginário não é uma
qual conteúdo exibir estão situadas em um novidade. Escritores, políticos e atores de TV
contexto orientado pelo espaço, situação social há muito tempo performam para um público
e por pessoas. Em ambientes mediados, a tec- imaginário, guiados por quem eles acham que
nologia ajuda a moldar o contexto, mas a tec- está assistindo e por quem eles desejam que es-
nologia sozinha não define o contexto. Para os teja. Essas pessoas aprendem a controlar suas
adolescentes que entrevistei, as outras pessoas autorrepresentações diante do público imagi-
foram o fator mais importante levado em conta nário como parte de sua profissão, mas esses
em suas decisões sobre como se apresentar. Eles atos estão sempre situados em contextos públi-
estavam preocupados com quem eles achavam cos. Para os adolescentes negociando públicos
que deveria, poderia ou conseguiria ver os seus em rede, navegar pelo público imaginário faz
perfis. O contexto no qual eles estavam ope- parte do dia-a-dia. Ao contrário de profissio-
rando era primariamente moldado por aque- nais que buscam endereçar o público em geral,
les que eles imaginavam ser seu público e por adolescentes não estão focados em situar seus
como eles se relacionavam com esse grupo. Da atos de maneira ampla. Embora seu público em
mesma forma, ao performar frente a esse pú- potencial possa ser global, o público imaginário
blico, os adolescentes estavam tentando definir é muito local, consistindo principalmente em
a situação social ao enraizá-la nesse contexto. pessoas que eles conhecem. No entanto, ado-
Adolescentes tipicamente direcionam seus lescentes também devem enfrentar muitas das
perfis para suas amigas e amigos. Em múlti- mesmas complexidades que oradores públicos
plas ocasiões, adolescentes citavam o slogan do enfrentam na elaboração de suas autorrepre-
site MySpace: “O MySpace é um lugar para ami- sentações, em parte devido à visibilidade po-
gos”. Essa audiência pretendida é mais visível tencial de seus atos.
quando adolescentes se preocupam em ser bem Em “No Sense of Place”, Joshua Meyrowitz
recebidos, uma dinâmica que é mapeada no (1985) mapeia maneiras pelas quais a mídia ele-
próximo capítulo.15 trônica–e particularmente a televisão–afeta si-
Quando pressionados para definir seu pú- tuações sociais, gerenciamento de impressões
blico, adolescentes frequentemente concentra- e autoapresentação. Ele se concentra nas ma-
ram-se em quem eles achavam que não deveria neiras pelas quais a mídia eletrônica derruba
estar visualizando seu perfil. Assim, de maneira as fronteiras dos espaços e os contextos sociais,
geral, eles enfatizaram que adultos não faziam borrando papéis sociais e juntando públicos
parte de sua audiência pretendida. Por exem- que não poderiam normalmente estar co-pre-
plo, quando perguntada se ela achava que seus sentes. Por causa da mídia eletrônica, infor-
professores estavam no MySpace, Traviesa, 15 mações e atos sociais perdem seu contexto, e
anos, de Los Angeles, respondeu dizendo: “Isso novas identidades, comportamentos, papéis e
é nojento!” Aria, uma estudante universitária de situações sociais precisam ser formados para
20 anos da Califórnia, levou esse sentimento dar conta da maneira como a estrutura social
um passo adiante, observando: “Eu realmente não é alterada. Isso, por sua vez, desfaz distinções
acredito que ‘usar redes sociais na internet’ seja algo entre público e privado, fronteiras entre grupos
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sociais e a própria essência da vida pública. perturbar os públicos que eles não desejam.
Escrevendo antes de a Internet ter ganhado a Esse movimento pode ser arriscado, especial-
atenção das massas, Meyrowitz estava adian- mente se o conteúdo do perfil for perturbador
tado em relação a seu tempo. O que ele de- para quem detém o poder sobre os adolescen-
monstra em relação à televisão e outras formas tes, porque a tecnologia colapsa facilmente os
iniciais de mídia eletrônica só se intensificou limites que os permite distinguir contexto por
desde a ascensão da Internet. As complexidades intermédio de grupo social. Os desafios que
que ele documenta sobre o que figuras públicas adolescentes enfrentam em relação ao equi-
enfrentam na administração de contextos so- líbrio de diferentes públicos espelham aque-
ciais agora fazem parte da vida cotidiana. les que Meyrowitz (1985) descreveu em rela-
Enquanto adolescentes aproveitam os re- ção às figuras públicas que enfrentam televisão
cursos de amizade em redes sociais para cons- e rádio. Negociar com múltiplos públicos cria
truir uma audiência imaginária para a qual di- colisões de contexto, e os adolescentes sentem
recionar suas autoapresentações (boyd, 2006b), mais pressão quando são forçados a lutar si-
quem observa pode nem sempre ser quem os multaneamente com diferentes públicos, como
adolescentes esperam ou desejam que seja. Ao seus pares e pais.
passo que alguns adolescentes temem a pre- Em um esforço para controlar o contexto de
sença de estranhos que tenham más intenções, sua autoapresentação, os adolescentes adotam
vários adolescentes aceitam que estranhos duas táticas diferentes. Primeiro, eles usam
quaisquer possam trombar com seus perfis, meios estruturais, como fornecer informações
assim como estranhos quaisquer passam por falsas para não aparecer nas buscas, ou usar
eles nas ruas, mas eles assumem que esses es- as configurações de privacidade para limitar
tranhos vão passar e seguir em frente. Assim, quem pode acessar seus perfis. Essa primeira
eles não levam em conta estranhos quaisquer abordagem é a da “segurança através da obscu-
na escolha de como apresentar a si mesmos. ridade”, e os adolescentes que eu entrevistei re-
Por exemplo, Kiki, uma adolescente negra de 16 conhecem que ela não é à prova de falhas, mas
anos de idade do Kansas, originalmente tornou acreditam que é uma boa primeira medida para
seu perfil privado porque, como ela explicou, dissuadir professores e responsáveis por pro-
“não quero ninguém no meu perfil”. Em outras pa- cessos seletivos de faculdades de encontrarem
lavras, ela não queria que estranhos passassem seus perfis. A intenção de pais de encontrar o
por lá. No entanto, uma vez familiarizada com perfil é uma história diferente, mas os adoles-
o site, ela decidiu que deveria mudar seu perfil centes acreditam que as configurações de pri-
para torná-lo público. Ela percebeu que nin- vacidade são geralmente efetivas contra eles e
guém iria visitar seu perfil e, portanto, parou contra o professor intrometido ou o burocrata
de se importar em bloquear o acesso a ele. De da escola.
qualquer modo, ela não quer aceitar solicita- Segundo, os adolescentes tentam definir a
ções de Amizade de estranhos, mas receber situação social por intermédio de atos explí-
essas solicitações não a incomoda; ela apenas citos e implícitos de controle de público. Eles
as ignora. usam listas de Amigos para deixar claro quem
Ao tentar equilibrar diferentes públicos em eles veem como sua audiência pretendida; isso
potencial e atrair aqueles que desejam, os ado- é reforçado por recursos de privacidade que
lescentes concentram-se em dissuadir visitan- bloqueiam todos os outros. Eles também exi-
tes indesejados e elaborar perfis que atraiam gem que pais e outros adultos fiquem de fora,
seus pares, mesmo que isso seja às custas de usando linguagem de “Não Entre”, o que é
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equivalente às brigas entre pais e adolescen- perfis. Os adolescentes não veem esses atos
tes pelo acesso ao quarto. Dessa forma, os ado- como enganosos, porque aqueles para quem
lescentes tentam controlar o acesso ao espaço eles direcionam seus perfis sabem seus nomes
para definir o contexto. No entanto, isso ge- reais, idades, localizações e cidades natais. Eles
ralmente é inefetivo, em parte porque a tec- podem ver suas respostas como engraçadas,
nologia faz o acesso parecer ser público. Em mas não estão tentando criar uma identidade
inúmeras comunidades, eu ouvi adolescen- alternativa. Eles estão simplesmente tentando
tes tentando dissuadir os pais de acessar seus estruturar sua presença de uma maneira que
perfis visíveis, declarando: “Mas é o meu es- permita que eles estejam visíveis para quem
paço”. Ao responderem “Mas é público”, os pais importa e invisíveis para quem não importa.
em geral não entendem o que os adolescentes Por exemplo, ao explicar sua prática de colo-
estão querendo dizer, já que seu senso de pri- car informações falsas no seu MySpace, Mickey,
vacidade tem a ver com contexto e controle, e um adolescente mexicano de 15 anos de Los
não com acesso potencial. Dito isso, essa briga Angeles, diz: “Não é que eu minto no [MySpace],
geralmente segue a mesma lógica das brigas mas eu não coloquei minhas informações reais. Como
entre pais e adolescentes mais velhos por es- se eu fosse colocar minhas informações reais em meu
paço, contexto e privacidade, que incluem ar- ‘Sobre mim’...”. Para Mickey, conteúdo falso não é
gumentos como “mas é meu quarto” e “mas é o mesmo que mentir, porque quem o conhece
minha casa”. pode ver que é ele.

5. Performando 5.1. Motivos


falsidades–enganação, para fornecer
brincadeira ou controle? informações
imprecisas

Alguns adolescentes procuram criar perfis Os adolescentes mentem sobre a idade por
completos, enquanto outros mantêm perfis que vários motivos. Alguns estão simplesmente
fornecem pouca informação. No entanto, entre tentando ser engraçados ou divertidos, assim
os dois grupos, incontáveis ​​adolescentes res- como aqueles que indicam salários altos.
pondem a solicitações sobre seu nome, idade, Outros procuram enganar estranhos que pos-
local, renda e outras informações demográficas sam estar interessados em se envolver com eles.
com respostas que não refletem com precisão Respondendo aos temores dos adultos em rela-
a sua identidade “verdadeira”. Às vezes, o que ção à segurança, muitos adolescentes acreditam
eles listam parece um pouco estranho; outras que obscurecer a idade e outras informações de
vezes, a informação parece absurdamente er- identificação vai minimizar possíveis ameaças.
rada. Por exemplo, alguns adolescentes dizem Outro grupo de adolescentes altera sua idade
que têm 100 anos ou ganham mais de 250.000 para contornar restrições técnicas e legais. Eles
dólares por ano. Em um nível, esse conteúdo mentem porque a idade corresponde a privi-
pode ser visto como fraudulento. Em outro, légio nas configurações online. Eles mentem
parece jogo de identidade. Nenhuma dessas porque essa é a única maneira pela qual eles
teorias explica por que adolescentes tendem podem obter acesso à tecnologia que dese-
a colocar informações “imprecisas” em seus jam. Eles mentem para contornar barreiras à
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entrada que eles desrespeitam. E, muitas vezes, O exemplo mais próximo que eu experimentei
eles mentem com o conhecimento de seus pais. de alguém levar a sério a idade do perfil foi um
Aproximadamente um quarto dos adolescen- adolescente que entrou no Facebook como es-
tes com quem falei tinha perfis que indicavam tudante do ensino médio na época em que so-
uma idade falsa. Alguns mentiram excessiva- mente estudantes universitários eram aceitos,
mente, indicando que tinham 101, 69 ou outra porque seu pai havia lhe dado um endereço
idade pós-aposentadoria. Penelope, uma adoles- .edu; ele disse que se marcou como mais velho
cente branca de 15 anos de Nebraska, explicou porque os estudantes universitários são mais
que escolheu listar sua idade como 100 porque velhos e ele não queria se destacar.
achava “engraçado”. Outros indicaram que ti- Entre outros grupos sociais ou em outros
nham mais de 18 ou 21 anos – a “maioridade” contextos, as falsas informações de idade sig-
socialmente construída. Eles me disseram que nificam coisas diferentes. Nos sites de namoro
listaram essas idades porque achavam que o online, os adultos costumam eliminar alguns
MySpace restringia as contas de menores de anos (e alguns quilos) para parecer desejáveis​​
idade. Uma adolescente disse que era melhor a possíveis pretendentes (Hancock et al., 2007).
ter mais de 18 anos, porque isso “manteria os Nesse contexto, os adultos estão engajados in-
molestadores de crianças longe”. (Ironicamente, tencionalmente em enganar outras pessoas. Às
muitos adultos se preocupam com o fato de os vezes, adolescentes mudam suas idades como
adolescentes que fingem ser mais velhos terem um ato intencional de enganar, mas em geral
maior probabilidade de ser vulneráveis ​​a pes- seu objetivo é enganar empresas cujos sites
soas com intenções maliciosas.) Uma outra têm restrições de idade ou desencorajar a aten-
adolescente me disse que listou sua idade no ção indesejada de estranhos. Da perspectiva
MySpace para corresponder ao seu documento deles, as pessoas que importam para eles (por
de identidade falso, caso alguém fosse verifi- exemplo, seus amigos) já sabem sua idade, e
car. Um terceiro grupo mentiu arbitrariamente, não precisam ser informados por um sistema.
indicando que eles eram entre três anos mais Para os adolescentes, é mais importante inserir
jovens e oito anos mais velhos do que eram. corretamente a data de aniversário do que o
Quando lhes perguntei sobre suas decisões, a ano de nascimento, para que, quando os siste-
maioria deu de ombros e respondeu com um mas lembrem seus amigos de seus aniversários,
“não sei”. Um garoto me disse que rolou a lista não ocorram situações embaraçosas. Quando se
de anos de nascimento e escolheu uma alea- trata de grupos de pares, as consequências so-
toriamente. Os adolescentes que eu entrevis- ciais de fornecer informações imprecisas sobre
tei não levavam a sério as idades indicadas no a data de nascimento são muito maiores do que
perfil, nem pensavam que elas sinalizavam algo as de informar um ano impreciso.
importante, mesmo aqueles que indicaram que Embora adolescentes tenham motivações di-
eram mais velhos. Alguns me disseram que ou- ferentes para fornecer informações imprecisas,
tros adolescentes da escola marcavam que eram isso se tornou uma prática comum. A maioria
mais velhos para parecer “bacanas”,17 mas isso dos adolescentes que se envolvem nessas prá-
nunca veio daqueles cujos perfis marcavam a ticas não está tentando enganar, mas aproveitar
faixa etária dos “bacanas” (entre 18 a 25 anos), a tecnologia para atender às suas necessidades.
e duvido que aqueles que arbitrariamente es-
colheram idades acima de 40 anos tenham ten-
tado parecer “bacanas” quando me disseram
que não sabiam por que escolheram essa idade.
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5.2. Limitações papel dos pais. Elas não foram um caso isolado–
legais e técnicas ouvi relatos semelhantes no país todo e, para
o grupo que entrevistei, o AIM foi a porta de
Em 1998, o Congresso dos EUA aprovou a entrada para enganar sobre a idade. A maioria
Lei de Privacidade de Proteção Online das entrou no início do ensino médio, geralmente
Crianças (Children’s Online Protection Privacy Act, com o conhecimento dos pais. Quando entra-
ou COPPA). Com o objetivo de proteger crian- ram no MySpace, eles já estavam acostumados
ças em relação à publicidade comercial, o a mentir sobre a idade e o faziam regularmente.
COPPA proíbe que websites coletem informa- Não entrevistei adolescentes que eram jovens
ções de crianças menores de 13 anos sem uma demais para estar no Facebook ou MySpace,
permissão verificável dos pais. Também inclui mas há inquestionavelmente jovens menores
disposições para quando os sites devem forne- de idade usando esses sites. Em um grupo focal
cer políticas e regras de privacidade para prote- de Boston, conduzido por membros do projeto
ger a segurança de crianças menores de 13 anos. “Nativos Digitais” do Berkman Center, Tom, de
Como a verificação da idade é um pesadelo do 12 anos, declarou que estava no Facebook, ape-
ponto de vista técnico e de privacidade, a maio- sar de não ser propriamente qualificado para
ria dos sites impede que todos aqueles que afir- isso, porque “não há como provar a idade. Você
mam ter menos de 13 anos criem uma conta, pode acessar qualquer site e dizer: ‘Nasci em
como forma de cumprir a lei. A abordagem 1981 e agora tenho 18 anos’.” Ele achava as limi-
mais comum adotada pelos sites é limitar a tações de idade ridículas e queria que elas não
lista de anos de nascimento no menu suspenso existissem, mas “mesmo que o limite de idade
para o ano corrente menos 13. O COPPA não não seja diminuído, ainda há pessoas como
impediu a maioria das crianças de criar contas, eu. Tecnicamente, ainda não tenho permissão
mas ensinou às crianças e seus pais uma lição para estar no Facebook. Mas eu posso dizer que
importante: mentir é o caminho para o acesso. agora tenho 14 anos.” Tom mente sobre sua
Muitos dos adolescentes que entrevistei idade porque pode e porque isso lhe dá acesso
aprenderam a mentir sobre suas idades no en- a um site que ele acredita que deveria ter o di-
sino médio, quando eram menores de 13 anos. reito de acessar.
Quando perguntei aos adolescentes como eles O COPPA foi pensado para proteger a privaci-
aprenderam a mudar seu ano de nascimento dade das crianças e impedir que elas fossem as-
para ter acesso, pais e irmãos mais velhos eram sediadas por publicidade comercial, mas ele foi
com mais frequência os culpados. Uma vez, sendo cada vez mais creditado como um me-
quando eu estava conversando com um par de canismo de segurança. Os adolescentes que en-
mãe/filha em um aeroporto, a adolescente me trevistei não sabiam das intenções por trás das
disse que, quando todas as suas amigas esta- restrições, e simplesmente as viam como uma
vam entrando no serviço de mensagens ins- ferramenta de controle. Assim, eles assumiram
tantâneas (AIM) da AOL, ela foi conversar com que qualquer site que pedisse sua idade limi-
sua mãe sobre ser muito jovem para criar uma taria suas atividades, dependendo do que elas
conta. Sua mãe se sentou com ela no compu- selecionassem. Como muitos sites, o MySpace
tador e mostrou-lhe como mudar seu ano de oferece recursos diferentes para os usuários
nascimento durante o processo de inscrição. com base nas idades. Sem saber das diferenças,
A mãe confirmou esse relato, observando que muitos adolescentes assumiram que as contas
achava que as limitações eram “idiotas” e que de menores eram provavelmente limitadas ou
as empresas de tecnologia não deveriam fazer o “deficientes”, levando-os a identificar-se como
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mais velhos. Ironicamente, as contas para me- porque acreditavam que o Facebook era mais
nores eram inicialmente mais avançadas que as seguro que o MySpace e que corriam menos
contas para adultos – por exemplo, menores de riscos.
idade tinham opções de privacidade, enquanto Por razões semelhantes, muitos adolescentes
usuários adultos não podiam tornar seus perfis mentem sobre sua localização. Enquanto ado-
privados. Havia também restrições, mas geral- lescentes em grandes centros urbanos como
mente elas protegiam a privacidade dos adoles- Los Angeles normalmente forneciam informa-
centes. Enquanto os adolescentes mentiam ser ções precisas sobre a cidade natal, os adoles-
mais velhos para evitar restrições, os adultos centes em cidades ou subúrbios menores geral-
começaram a mentir ser mais jovens para obter mente não. Alguns listaram apenas seus estados,
acesso a recursos adicionais. mas muitos outros escolheram apelidos para
suas cidades, como “Lugar nenhum”, “um
lugar em que você não está” e “Caipirolândia”.
5.3. Segurança Outros mentiam sobre seus estados ou países.
por imprecisão Quando comecei a analisar perfis de adolescen-
tes, essa prática parecia generalizada. Embora
Os adolescentes não fornecem informações seja impossível verificar os locais dos adoles-
imprecisas sobre a idade para contornar as li- centes que não entrevistei, parece imprová-
mitações técnicas. Em todo o país, os adul- vel que tantos adolescentes no Afeganistão e
tos regularmente incentivam os adolescentes no Zimbábue estejam conectados e ativos no
a mentir para evitar possíveis predadores se- MySpace. O que torna suas informações de lo-
xuais, e a maioria dos adolescentes com quem calização especialmente suspeitas é que esses
conversei acreditava que o fornecimento de usuários geralmente parecem brancos, listam
informações imprecisas era um passo impor- escolas secundárias dos EUA e têm amigos
tante para a segurança18. Agentes do sistema de que são principalmente de uma única cidade
justiça realizam assembleias escolares regular- pequena nos Estados Unidos. Embora alguns
mente, e nelas incentivam os jovens a não for- desses adolescentes possam realmente estar es-
necer informações de identificação a sites pú- tudando no exterior, é mais provável que eles
blicos. Em Michigan, Bianca e Sasha, de 16 anos, escolham esses países porque são a primeira e
contaram de uma assembleia escolar feita por a última opção no menu suspenso de países. O
policiais na qual os policiais tentaram assus- fornecimento de informações imprecisas sobre
tar os adolescentes para longe do Facebook e a localização é particularmente comum entre
do MySpace, contando histórias de terror de os adolescentes que se preocupam com segu-
casos terríveis. O que Bianca e Sasha tiraram rança, e os pais incentivam essa prática.
desse evento foi que os adolescentes que sofre- Em outros esforços para ocultar as informa-
ram com as histórias eram “burros”, e ser “in- ções de identificação, alguns adolescentes pu-
teligente” significava não publicar informações blicam nomes falsos ou colocam imagens ou
reais. Pais e professores replicam essa visão, fotos abstratas que não são identificáveis. Além
incentivando os adolescentes a mentir expli- de evitar predadores em potencial, os adoles-
citamente sobre quem são e de onde são, para centes que faziam isso frequentemente tenta-
evitar serem perseguidos. Os adolescentes que vam evitar os pais, professores e outros adul-
entrevistei apresentavam muito menos proba- tos que conheciam e que tinham poder sobre
bilidade de fornecer informações imprecisas no eles. Em outras palavras, eles estavam usando
Facebook do que no MySpace, provavelmente “segurança através da obscuridade” para obter
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privacidade. Suas fotos são todas de “classificação livre” e


Aaron, um adolescente branco de 15 anos de consistem principalmente em fotos dele brin-
um subúrbio no Texas, tem informações demo- cando com seus amigos. Seu conteúdo escrito
gráficas majoritariamente falsas em seu perfil. sugere que ele é apaixonado por música e es-
Seu MySpace lista um nome falso que faz re- portes, tem muito espírito escolar, é antidrogas,
ferência à cultura midiática e indica que ele antiálcool e realmente tem fé em sua igreja. A
tem mais de 80 anos e é do Azerbaijão. Seu única coisa que ele inclui que pode ofender al-
perfil é privado e sua foto principal é clara- guém é sua opinião sobre a guerra e um banner
mente editada no Photoshop. Quando pergun- para um candidato político que ele apoia. Vale
tei a ele sobre sua foto, ele disse: “Eu a transfor- observar que os comentários de seus Amigos
mei em negativo, pra que, se você me conhece, você são mais vivazes, incluindo linguajar e discur-
pudesse dizer ‘Ah, é, é ele’.” Não ter uma foto real sos chulos que podem ser interpretados como
reduz o risco de um estranho encontrá-lo. É ataques ao Aaron. Do ponto de vista de Aaron,
praticamente impossível dizer que esse perfil é isso é apenas a forma como seus amigos con-
de Aaron, a menos que ele tenha o adicionado versam. Isso é consistente com outros estu-
como amigo. No entanto, uma vez que adicio- dos que indicaram que a maioria dos perfis do
nado, é possível ver o seu Sobre Mim, onde ele MySpace contêm alguns palavrões e que pala-
afirma claramente que esse perfil pertence a vrões parecem ser comuns entre os jovens no
Aaron. Aaron não está tentando enganar seus MySpace (Thelwall, 2008).
amigos. Em vez disso, ele está tentando dimi- Pesquisadores apontam que os detratores da
nuir a probabilidade de seu perfil ser encon- privacidade costumam argumentar que as úni-
trado por seus pais, professores e qualquer es- cas pessoas que querem privacidade são aquelas
tranho que queira entrar em contato com ele. que têm algo a esconder (Solove, 2007). Aaron
Ele quer que o MySpace esteja disponível ape- está se escondendo, mas não é porque ele tem
nas para amigos da escola e da igreja, e ele não algo a esconder. À exceção de uma possível má
se preocupa com o fato de que eles interpretem interpretação dos comentários de seus Amigos,
mal sua idade ou local, embora ele tenha dito o perfil de Aaron revela um adolescente sau-
que algumas pessoas brincaram com ele sobre dável, comprometido e apaixonado por escola,
suas escolhas. Ele escolheu uma foto que aju- atividades, política e Deus. Ele escolhe ser pri-
dasse aqueles que desejam fazer amizade com vado para evitar contatos indesejados tanto da-
ele a confirmar que realmente é ele, ao mesmo queles que o conhecem e podem interpretar
tempo que fosse irreconhecível para quem está mal sua participação no MySpace quanto da-
simplesmente zapeando perfis. Ainda assim, queles que não o conhecem e que podem ter
ele expressou dúvidas sobre a foto, porque intenções maliciosas. Embora ele não pense
sabia que pais e professores também o reco- que está fazendo algo errado, ele não quer que
nheceriam e ele não queria isso. Logo depois sua mãe saiba sobre seu perfil. Ele está preo-
da nossa entrevista, ele mudou sua foto princi- cupado que isso a aflija, porque ela frequen-
pal para um personagem de desenho animado. temente lhe conta de relatos terríveis sobre o
Nada no perfil de Aaron é impróprio ou ver- MySpace que ela ouve nas notícias, e porque
gonhoso. Ele tem alguns vídeos engraçados do ela se mostra frequentemente preocupada com
YouTube e algumas imagens de desenhos ani- a possibilidade de Aaron ser sequestrado. Ele
mados que, embora protegidas por direitos au- não mentiu sobre sua conta porque ela não
torais, não sugerem nada além de um gosto por perguntou, mas prefere que ela não descubra
essa forma de arte e pela cultura ao seu redor. pesquisando.
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O fornecimento de informações imprecisas Amigos são realmente meus amigos, eles vão saber se
é um dos principais mecanismos pelos quais eu estou brincando ou não”. Os adolescentes não
os adolescentes tentam controlar o acesso aos estão interessados em fornecer informações de
seus perfis. Eles acreditam que informações identificação aos sistemas simplesmente para
imprecisas tornam muito mais difícil para serem honestos. Eles não veem isso como uma
quem detém poder sobre eles e para quem tem violação do comportamento ético, e sim acredi-
intenções maliciosas encontrá-los. Os adoles- tam que fornecer essas informações pode colo-
centes foram tão socializados em práticas de cá-los em risco mais tarde. Ao criar um perfil,
enganar online e internalizaram tanto os avisos os adolescentes não estão construindo um dos-
de segurança que acreditam que fornecer in- siê do censo–eles escolhem o conteúdo que os
formações imprecisas os deixa mais seguros e ajuda a definir a situação social e a se expressar
evita o contato indesejado. Da mesma forma, nesse contexto.
adolescentes têm pouco incentivo para forne-
cer informações demográficas precisas quando
a audiência principal é de amigos. Localizar-se 6. Controlando o acesso:
em “Caipirolândia, EUA” é visto como diver- público ou privado?
tido, não enganoso.
Na construção de seus perfis de site de rede
social, os adolescentes são forçados a enfrentar Em situações sociais não mediadas, as pes-
visões conflitantes de como perfis se relacio- soas tendem a saber quem está presente para
nam com identidade. Muitos adultos–e a pró- testemunhar um ato social. Esse não costuma
pria tecnologia–esperam que os adolescentes ser o caso em públicos em rede, onde audiên-
construam uma identidade digital vinculada a cias são invisíveis e o acesso é assíncrono. As
uma identidade corporificada por meio de in- limitações físicas ajudam a controlar os limites
formações demográficas articuladas e informa- de ambientes não mediados–as paredes defi-
ções de identificação. Honestidade envolve o nem o espaço e as expressões podem ser tes-
fornecimento desses dados e a construção do temunhadas apenas de forma auditiva ou vi-
próprio perfil em torno dessas informações. A sual. Online, os limites são porosos–a pesquisa
extensão lógica desse ponto de vista é que todas colapsa os contextos, a replicabilidade permite
as outras informações imprecisas são um jogo que traços de atos sociais sejam copiados para
de identidade ou um ato de enganar. Embora outros espaços e a permanência dos dados sig-
esse ponto de vista seja bastante comum entre nifica que os atos executados não são delimita-
adultos, adolescentes não compartilham dele. dos pela efemeridade. Em outras palavras, ten-
Adolescentes abordam perfis e sua identi- tar restringir os atos sociais a um único espaço
dade digital a partir de um ponto de vista dife- online é inútil, mesmo que essa seja a norma
rente. Como as redes sociais pré-existentes que em ambientes não mediados. Os adolescentes
interligam os ambientes online e offline definem centralizam sua compreensão do contexto em
o contexto social, os adolescentes não sentem a outras pessoas. Na falta de capacidade de con-
necessidade de fornecer informações demográ- seguir controlar o contexto e a audiência atra-
ficas ou de identificação. Na sua opinião, essas vés do confinamento de atos sociais a espaços
informações já estão disponíveis e já foram específicos, os adolescentes precisam definir
compreendidas por aqueles para quem são re- a situação por meio do controle da audiência
levantes. Dominic, um adolescente branco de em potencial. Dados imprecisos podem evitar a
16 anos de Seattle, explica: “Como todos os meus busca, mas não são uma ferramenta eficaz para
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controlar o acesso. Em vez disso, os adolescen- Como o Facebook é percebido como a alter-
tes aproveitam as configurações de privacidade nativa mais segura ao MySpace, poucos ado-
para limitar o acesso a pessoas específicas, re- lescentes se preocupam em observar as confi-
forçando a conexão entre audiência e contexto gurações de privacidade ali. Em uma reunião
em públicos em rede. privada depois de terminar meu trabalho de
O controle da visibilidade por meio das campo, eu estava conversando com uma ado-
configurações de privacidade varia de acordo lescente sobre as diferenças entre o MySpace
com o site. No MySpace, os perfis são “públi- e o Facebook, e ela me disse que o Facebook
cos” ou “privados”–os perfis que são “públicos” era muito mais privado, porque apenas pessoas
podem ser visualizados por qualquer pessoa, que você conhecia podiam ver seu perfil. Ao
enquanto apenas os Amigos de um indivíduo entrar no Facebook, entrei na rede da cidade
podem acessar perfis “privados”. O Facebook é em que ela estava, acessei seu perfil e mostrei
um pouco mais complexo, porque suas confi- a ela. Ela ficou chocada–ela não tinha perce-
gurações de privacidade envolvem redes de es- bido que ingressar em uma rede da cidade tor-
colas e bairros. Os adolescentes podem tornar nava seu perfil visível para as pessoas que di-
seus perfis visíveis apenas para seus Amigos ou ziam ser daquela cidade. Consegui repetir esse
podem ajustar as configurações para envolver truque em várias ocasiões com adolescentes e
todos em suas redes. O Facebook permite que adultos. Embora não haja dados sobre quan-
os adolescentes ajustem as configurações por tos adolescentes ingressam nas redes de cida-
módulo. Desde que meu trabalho de campo des ou quantos deles não percebem o quanto
terminou, o Facebook adicionou camadas adi- seus perfis estão visíveis, eu consegui acessar
cionais de privacidade, incluindo a capacidade muitos perfis de adolescentes por meio do in-
de criar grupos de pessoas e controlar elemen- gresso em redes de cidades de todo o país, e
tos por grupos. 19 senti que poucos deles, e os adolescentes em
Todos os adolescentes que eu entrevistei es- geral, entendiam isso. Adolescentes em todo o
tavam cientes das configurações de privacidade, país me disseram que achavam que o Facebook
mas nem todos sabiam como usá-las ou o que é mais seguro que o MySpace por causa de
as opções significavam. Nick, o adolescente de como ele lida com a privacidade. Quando per-
16 anos de Los Angeles, me disse que, quando guntado por que, Sasha, adolescente de 16 anos
a namorada de seu irmão criou o perfil dele, de Michigan, me disse que mais controles sig-
ela o definiu como privado e ele ainda precisa nificavam maior privacidade, enquanto Kaleb,
descobrir como mudar. Embora alguns ado- um adolescente negro de 15 anos, também
lescentes não saibam como, 66% dos entrevis- de Michigan, me disse que não sabia o por-
tados pela Pew em 2006 (Lenhart & Madden, quê, mas “tinha essa impressão”. Na verdade, os
2007b) relataram que de alguma forma limitam dois adolescentes tinham páginas no Facebook
o acesso ao seu perfil. Isso é particularmente mais visíveis do que uma página do MySpace
impressionante, já que os usuários frequente- somente para Amigos seria.
mente não entendem as opções de privacidade, Adolescentes que usam o MySpace são muito
muito menos ajustam as configurações padrão mais fluentes na linguagem das configurações
(Lederer et al., 2004). de privacidade e a maioria optou consciente-
Embora os adolescentes pareçam limitar o mente por tornar seus perfis públicos ou pri-
acesso, descobri que suas percepções de visi- vados. Os adolescentes que conheci que tinham
bilidade nem sempre correspondiam à reali- perfis públicos escolheram esse caminho in-
dade, principalmente com relação ao Facebook. tencionalmente. Alguns adolescentes deixaram
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seus perfis públicos para poder ser facilmente mim. Quero me sentir no controle da minha própria
encontrados. Sabrina, uma adolescente branca segurança pessoal. Não quero que o mundo inteiro
de 14 anos do Texas, explica que ter um perfil esteja ciente dos meus sentimentos ou de qual escola
público é a melhor maneira de ser encontrada frequento”. Ela está preocupada com o fato de
pelos amigos. Ela diz: “Eu procurei alguns dos que estranhos mal-intencionados possam usar
meus amigos pelo nome deles, mas se [o perfil deles] suas informações contra ela e acha que mantê-
é privado, não consigo descobrir se são eles.” Em Los -las bem guardadas é uma forma de proteção.
Angeles, Eduardo, um músico de ascendência Muitos adolescentes mantêm seus perfis pri-
hispânica de 17 anos, deixa seu perfil visível vados para impedir o acesso de pais, professo-
porque sua música está disponível lá. Ele es- res, irmãos, agentes de admissão de faculdade
pera que pessoas o ouçam e ele quer se conec- ou outros que possam usar seu conteúdo con-
tar com outros músicos e ser acessível a fãs em tra eles. Outros o fazem na tentativa de evi-
potencial. Alguns adolescentes evitam a pres- tar spammers, golpistas, publicidade comercial
são para se tornar privados porque pensam que e phishers.
isso implica que eles têm algo a esconder. Por Mesmo aqueles que querem ser encontrados
exemplo, Shean, o adolescente de 17 anos de por alguns não estão interessados em serem
Los Angeles, mantém seu perfil público por- encontrados por todos, e aqueles que pensam
que, como ele diz, “não acredito que exista algo que não têm nada a esconder não estão neces-
privado na minha página”. Ao mesmo tempo, ele sariamente desejando serem vistos por qual-
reconhece que alguns dos seus amigos se tor- quer pessoa. Muitos dos entrevistados que ado-
naram privados para evitar pessoas específicas taram o MySpace no início muitas vezes viam
e afastar spammers. o site como voltado para adolescentes e não
Os adolescentes que optavam por tornar seus viam necessidade de tornar seus perfis priva-
perfis privados também tinham motivos es- dos, porque ser público tornava mais fácil a co-
pecíficos para querer controlar quem poderia nexão com amigos e colegas de classe. Com o
acessar seu conteúdo. Alguns, como Penelope, tempo, quando os adultos começaram a parti-
a adolescente de 15 anos de Nebraska, queriam cipar e outros problemas surgiram, muitos des-
conhecer sua audiência. Penelope explicou que ses adolescentes tornaram seus perfis privados.
ela mantinha seu perfil privado “para que eu A postura deles–“público por padrão, privado
saiba quem está olhando para minha página a que quando necessário”–é uma abordagem sobre
horas”. Embora ela não esteja realmente ciente a privacidade que eu via frequentemente em
de quem está visualizando seu perfil, ela quer adolescentes. O crescimento de adultos e os
ter controle sobre quem pode. Outros, como perigos potenciais de atenção indesejada for-
Ann, uma adolescente branca de 15 anos de çaram os adolescentes a reverterem para uma
Seattle, tornam seus perfis privados como pre- postura mais privada, embora muitas vezes
caução de segurança. Ann explica: “Meu perfil é preferissem o fácil acesso que ser público per-
privado e para amigos apenas porque quero estar se- mitia. Ser “público” fazia sentido quando o pú-
gura e não quero que meus pais se preocupem”. Para blico potencial relativamente homogêneo não
Ann e para muitos outros adolescentes que en- criava conflitos na forma como as pessoas se
traram após escutar várias histórias de terror, apresentavam, mas, quando os adolescentes
a visibilidade não compensa os potenciais ris- começaram a enfrentar públicos indesejados,
cos. Laura, uma adolescente branca de 17 anos muitos optaram por controlar o acesso em vez
com raízes indígenas de Washington, explica: de limitar a autorrepresentação.
“O risco de ter um perfil aberto não vale a pena para Ao mesmo tempo que a maioria dos
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adolescentes que entrevistei não se arrependa que aqueles scripts faziam instalarem-nos em
de se mover para um modelo de apenas-pa- suas páginas. Esse malware causou um dano
ra-Amigos, isso complica o processo de adi- imenso ao MySpace, e a empresa passou muito
cionar amigos no MySpace. Com perfis públi- tempo tentando impedir o que esses golpis-
cos, os adolescentes poderiam justificar a não tas estavam fazendo. Em 2007, Tom Anderson,
aceitação de solicitações de amizade de pessoas fundador do MySpace, fez um post pedindo aos
que eles conheciam, mas não se sentiam pró- usuários que não adicionassem rastreadores aos
ximas. Quando eles tornaram seus perfis pri- seus perfis. A empresa publicou boletins sobre
vados, eles fecharam a visibilidade para todos, spammers, phishing e scripts falsos. No entanto,
exceto para seus Amigos. Por causa disso, aque- enquanto escrevo esse texto, a pesquisa por
les que mudaram de público para privado sen- combinações de “rastreador de perfis do mys-
tiram-se mais compelidos a incluir seu grupo pace” devolve milhões de resultados no Google
mais amplo de amigos entre seus Amigos. O para sites que oferecem códigos gratuitos que
Facebook alterou um pouco essa dinâmica, prometem rastrear os visualizadores de perfis.
permitindo que os adolescentes tornassem Alguns afirmam ser “oficiais” e outros afirmam
seus perfis visíveis para todos os colegas de ser “os mais avançados”, mas o fato de muitos
classe sem aceitá-los como Amigos. Ao mesmo deles afirmarem ser “reais” é mais um indi-
tempo, outras pressões frequentemente moti- cativo do problema que esse desejo produziu.
vavam os adolescentes a incluir todos os cole- Nenhum desses rastreadores funciona, mas os
gas de classe como Amigos. adolescentes continuam copiando e colando o
O desejo que os adolescentes têm de con- código desses sites em seus perfis em um es-
trolar o acesso também tem uma correspon- forço de saber quem os está visitando.
dência no desejo de saber quem está visuali- Na superfície, controlar e rastrear o acesso é
zando seu perfil. Adolescentes como Penelope, geralmente visto como algo relacionado à se-
15 anos, de Nebraska, limitam o acesso para gurança, mas, na prática, acaba servindo como
saber quem está visualizando seu perfil, mas um mecanismo para delimitar contexto. Os
os adolescentes também procuram outros me- adolescentes querem ter uma noção de quem
canismos para controlar seus visitantes. Esse está presente para saber o que é apropriado.
desejo de saber levou programadores a desen- Quando os adultos ingressaram no site, os ado-
volver “rastreadores” para o MySpace, permi- lescentes também queriam controlar o que
tindo aos usuários copiar e colar bits de código acontece quando suas autoperformances são
javascript em seus perfis para capturar os ende- usadas contra eles, seja por mal-entendidos
reços IP daqueles que visitavam suas páginas. ou discordâncias. Dois desses incidentes for-
Alguns desses scripts iniciais funcionaram, mas çaram Kira, uma adolescente branca e de ori-
o MySpace bloqueou-os rapidamente. Isso não gem latina de 17 anos de Seattle, a tornar seu
reduziu sua desejabilidade, e os usuários come- perfil privado e apenas para colegas. Primeiro,
çaram a vasculhar a web em busca de alternati- seu avô encontrou seu perfil público, onde ela
vas. Enquanto alguns programadores tentaram havia respondido a um quiz que perguntava:
produzir softwares legítimos para executar essa “Qual música do Sublime é você?” Suas respos-
tarefa, vários golpistas começaram a capitalizar tas resultaram na música “Smoke Two Joints”,
o desejo dos adolescentes de ter esse recurso. e seu perfil mostrava uma parte da letra: “Eu
Eles disfarçaram códigos de phishing e spam em fumo dois baseados de manhã, eu fumo dois
rastreadores, o que fez com que milhões de baseados de tarde.” Ela gostou da música e não
adolescentes (e adultos) que não entendem o pensou muito nisso até que seu avô fez toda a
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sua família “surtar”, por dizer que ela estava vi- pais. Como as autoapresentações dos adoles-
ciada em maconha. Depois disso, ela tornou seu centes são co-construídas por aqueles que os
perfil privado, mas deixou sua madrasta como rodeiam, controlar o acesso também é desejável
uma de suas Amigas. Seus avós mais tarde usa- para impedir que audiências mais amplas aces-
ram a conta de sua madrasta para acessar seu sem conteúdo que eles não controlam.
perfil e interpretaram mal uma foto de um Adolescentes contam com os recursos de pri-
grupo de meninas que ela postou com a le- vacidade para controlar a situação social online.
genda “Eu amo Colleen, Kylie e Brook”. Ela Esses recursos, embora benéficos, não estão li-
havia revelado a eles ser bissexual, e eles inter- vres de problemas. A escolha de quem adicio-
pretaram a informação como uma indicação de nar como Amigo pode gerar situações estra-
que ela estava saindo com múltiplas parceiras. nhas na sociabilidade. Assim, adolescentes são
Depois desse tumulto, ela eliminou todos os frequentemente forçados a adicionar pessoas de
adultos de sua lista de Amigos. Ao contar essa diferentes contextos sociais como Amigos, ou
história, Kira mostrou-se frustrada por não pessoas de quem não são tão próximos. Assim,
poder dizer nada online sem que os adultos in- sua possibilidade de restringir a audiência não
terpretassem errado. resolve necessariamente seu desejo de ter um
A interpretação incorreta é um desafio que contexto coerente no qual agir.
os adolescentes enfrentam. Clyde, um ado-
lescente branco e de origem hispânica de 16
anos de Michigan, mantém seu perfil privado 7. Gerenciamento de
porque teme que as pessoas possam interpre- identidade nos públicos
tar mal os comentários deixados pelos seus
Amigos e achar que ele é um “babaca”. Os co- em rede
mentários incluem “Vá se ferrar. Você é um merda.
Se liga, [e] são apenas comentários que ninguém en-
tenderia a não ser eu.” Ele sabe que seus Amigos À medida que os adolescentes escrevem as
estão brincando, mas ele acha que os outros suas existências, formuladas no contexto de
podem não entender. Outra questão para os seus pares, eles são forçados a enfrentar as ma-
adolescentes é que seus amigos e pais não ne- neiras pelas quais o gerenciamento de impres-
cessariamente compartilham das mesmas opi- sões em públicos em rede é diferente do que
niões sobre o que é apropriado. Em Seattle, ocorre em encontros cara-a-cara. Os recursos
James, um adolescente branco de 17 anos de técnicos para definir a situação e se apresentar
idade, com raízes indígenas, decidiu tornar são bem diferentes, e forçam os adolescentes a
seu perfil privado depois de ver um amigo se articular explicitamente sua identidade, ima-
envolver em problemas. Depois de uma festa, ginar o contexto em que estão operando e ne-
os Amigos de seu amigo postaram comentá- gociar as impressões que estão transmitindo
rios em sua página do MySpace dizendo coisas com poucas estruturas de retorno e avalia-
como: “Putz, cara, você estava tão zoado nessa festa. ção20. Muito do que eles enfrentam é uma ex-
Você estava tão bêbado. Você estava tão chapado.” A tensão do que Meyrowitz (1985) descreveu em
mãe do amigo viu os comentários e deixou-o sua discussão sobre como a mídia eletrônica
de castigo imediatamente. James não estava altera a negociação de situações. No entanto,
preocupado com o fato de seus pais se oporem Meyrowitz, escrevendo antes da emergência
ao seu perfil, mas tinha receio de seus Amigos da Internet, não deu conta do que aconteceria
postarem algo que levaria a conflitos com seus quando os processos que celebridades e pessoas
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públicas enfrentavam por detrás da tela se tor- um nível totalmente novo.


nassem parte da vida cotidiana. Mais do que qualquer coisa, o que diferencia
Diferentemente das pessoas públicas que o gerenciamento de impressões em ambientes
procuram se autodefinir para um público des- mediados e não mediados é a forma como os
conhecido usando mídia eletrônica, os adoles- atos de autoapresentação repetem-se ou não. É
centes estão construindo apresentações de si frequentemente impossível, para quem está se
para pessoas com quem eles interagem todos os apresentando, avaliar o sucesso das próprias
dias. O que acontece online influencia situações performances em transmitir sua noção de si à
não mediadas e o que ocorre na escola molda audiência. Não há sistemas de avaliação21 que
as situações sociais definidas nos públicos em permitam aos adolescentes se ajustar com base
rede. Para os adolescentes, os dois estão cons- na reação de uma audiência real, e, muitas
tantemente enredados e o contexto em que eles vezes, não há como saber de verdade quem é a
estão operando abrange tanto encontros me- audiência. A audiência pretendida de um ado-
diados como não mediados. E, além disso, em lescente pode não estar realmente consumindo
cada ambiente os adolescentes precisam lidar o conteúdo produzido, e a audiência verdadeira
com outras forças. Na escola, os adolescentes pode ser bem diferente da percebida ou ima-
são confrontados com adultos que tentam con- ginada. O retorno acaba por ocorrer em razão
trolar a situação social. Nos públicos em rede, dos vários ambientes nos quais os adolescen-
eles têm de enfrentar públicos invisíveis e des- tes operam com as mesmas pessoas, mas uma
conhecidos, muitos dos quais detêm poder alteração de perfil não é um ato efêmero, e os
sobre eles. Seus esforços para definir a situa- ajustes podem ocorrer muito depois do dano
ção e controlar o contexto são frequentemente ser causado.
frustrados por adultos que procuram controlar Mesmo que os adolescentes entendam o con-
o seu mundo social. texto em que estão operando, eles podem não
Em todos os ambientes, a identidade de ado- entender o contexto em que seus amigos estão
lescentes é normalmente definida em rela- operando. Em ambientes não mediados, as tes-
ção às pessoas ao seu redor. As categorias so- temunhas podem olhar ao redor e avaliar a au-
ciais que moldam as relações sociais na escola diência por si mesmas, mas online isso não é
(Eckert, 1989) ajudam a definir a identidade dos possível. Assim, quando os adolescentes contri-
adolescentes, tanto na maneira como eles mes- buem para a autoapresentação de seus amigos,
mos se identificam com essas categorias sociais eles podem colocá-los em posições desconfor-
quanto na maneira como os outros os definem. táveis quando suas noções sobre o contexto não
Isso se torna mais explícito no online. As rela- são compatíveis. A lista de Amigos dos adoles-
ções sociais são publicamente articuladas e os centes ajuda a transmitir o que os adolescentes
perfis dos adolescentes incluem não apenas o pretendem e imaginam ser sua audiência, mas
que eles mesmos declaram explicitamente, mas elas podem não ajudar a resolver os conflitos
também o que os outros afirmam sobre e para que os adolescentes enfrentam. Como partes
eles. Goffman (1959) fala de como a apresen- centrais dos perfis, essas listas permitem que
tação de si de uma pessoa compreende o que os adolescentes expressem informações sobre
ela fornece explicitamente e o que ela deixa suas identidades, mas também alimentam dire-
transparecer. Embora muito do que os adoles- tamente as maneiras pelas quais os adolescen-
centes incluam explicitamente em seus perfis tes negociam status e manobram no seu mundo
deixe transparecer sinais importantes, o que social.
seus Amigos dizem faz transparecer sinais em
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PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD

Notas finais 10 [N.T.] “Wallpapers”, ou as imagens que


são colocadas no fundo de um sistema opera-
cional, uma página, etc.

1 [N.T.]: O MySpace foi uma das primei- 11 [N.T.]: no momento da tradução deste
ras, e entre 2005 e 2008 a principal rede social texto, o Facebook permite que os usuários es-
global. Os usuários tinham um perfil, conecta- colham se querem ser marcados ou não em
vam-se com amigos, postavam fotos, músicas e fotos alheias, e, mesmo que autorizem, podem
vídeos, e faziam parte de grupos. eliminar as marcações feitas.

2 [N. T.]: A autora escreve “Amigos” com 12 [N. T.]: Sobre o tema, o capítulo seguinte
maiúscula no início referir-se às conexões na ao do texto aqui traduzido, na tese da autora,
rede social, diferenciando-as, assim, do uso ge- discute o papel da moda para os adolescentes
nérico da palavra “amigos”. A grafia escolhida nas suas relações com seus pares.
foi mantida por conta desta diferenciação.
13 [N.T.]: O capítulo discute a sociabili-
3 [N.T.]: No original, “feedback”. dade de adolescentes sobre a perspectiva cole-
tiva, descrevendo como dinâmicas de grupos
4 [N.T.] No original: “writing identity de pares interagem na produção das suas pre-
into being online”. O uso da palavra “being”, senças online.
ao longo do texto de boyd, parece indicar uma
formação dinâmica da identidade. Buscamos 14 N. T.: no original normative peer culture
refletir esse aspecto na tradução das diferentes practices.
expressões em que a palavra é usada.
15 [N.T.]: O capítulo citado pela autora é o
5 [N.T.]: No original, “feedback”. Capítulo 5 de seu trabalho, e aborda a sociabi-
lidade adolescente sob a perspectiva coletiva.
6 N. T.: A autora aqui se refere à aplica-
tivos de mensagens instantâneas populares na 16 [N.T.]: A autora se refere ao Capítulo 6,
época da publicação do texto. Estas aplicações que aborda os aspectos específicos da relação
para desktops–como o MSN e o ICQ–são re- entre pais e filhos adolescentes que interagem
presentadas pela sigla IM (Instant Messaging). com o uso de redes sociais.

7 [N.T.]: no Apêndice 2 do seu trabalho, 17 [N.T.] “Cool”, no original.


boyd elenca e detalha as principais funcionali-
dades do MySpace e do Facebook. 18 Embora essa abordagem em relação à
segurança seja comum e generalizada, não há
8 [N. T.]: fandom é um termo utilizado na dados que mostrem que a eliminação de in-
internet para referenciar comunidades de fãs.  formações de identificação realmente reduz os
riscos de abuso sexual, sequestro ou encontros
9 [N. T.]: no original, black-white. A expres- prejudiciais com estranhos (Wolak et al., 2008).
são se refere a pessoas que têm um dos pais
branco e o outro negro. 
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD

19 [N. T.]: Vale lembrar que as configu-


rações de privacidade do Facebook mudaram
drasticamente desde então, acompanhando o
desenvolvimento da plataforma, antes restrita
a estudantes universitários e atualmente pos-
suindo alcance global.

20 [N.T.]: No original, “feedback”.

21 [N.T.]: No original, “feedback loops”.

22 Transcritas tal como listadas no original.


38

ARTIGO

Internet e
participação cultural:
o cenário brasileiro
segundo a pesquisa
TIC Domicílios

Luciana Piazzon Winston Oyadomari


Barbosa Lima
Coordenadora da pesquisa TIC Cultura, Coordenador da pesquisa TIC Domicílios,
Cetic.br/ NIC.br. E-mail: luciana@nic.br. Cetic.br/ NIC.br. E-mail: winston@nic.br
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI

Internet e participação cultural:


o cenário brasileiro segundo a
pesquisa TIC Domicílios

Palavras-chave Resumo
Internet A partir dos resultados da pesquisa TIC
TIC Domicílios 2017, o artigo descreve os princi-
participação cultural pais índices de acesso e uso da Internet entre
desigualdades a população brasileira para abordar o tema da
participação cultural. Para isso, analisa dados
inéditos acerca da fruição e da produção de
conteúdos na rede. Os resultados apontam a
rapidez com que o acesso à Internet avançou
no país nos últimos dez anos sem, no entanto,
romper com a lógica de desigualdade que mar-
cou todo esse processo. Com relação às prá-
ticas culturais, mais especificamente, verifica-
-se uma tendência de aumento do consumo
de bens culturais on-line, frente a uma dimi-
nuição do download de arquivos – o que rea-
firma o papel central que as plataformas de
streaming têm adquirido no acesso a conteúdos
na Internet. Em relação à produção de conteú-
dos pelos usuários de Internet, a maioria dos
que postam conteúdos próprios na rede não
tem finalidade profissional ou artística, e uma
parcela muito pequena é remunerada por isso.
O artigo fundamenta-se na pesquisa Ao trazer evidências sobre o papel da Internet
TIC Domicílios 2017, realizada pelo como mediadora do acesso à cultura e à produ-
Centro Regional de Estudos para o ção cultural, bem como sobre a influência da
Desenvolvimento da Sociedade da infraestrutura de conexão e das variáveis socio-
Informação (Cetic.br), do Núcleo de demográficas sobre as atividades culturais on-
Informação e Coordenação do Ponto -line, o artigo visa subsidiar o desenvolvimento
BR (NIC.br). A apresentação dos dados de uma agenda de políticas públicas que consi-
e conclusões do estudo está baseada dere a universalização do acesso à rede e a am-
em texto de análise dos resultados pliação dos direitos culturais, tendo em vista a
anteriormente publicado pelo Comitê Gestor promoção da participação, da diversidade e da
da Internet no Brasil (2018). cidadania cultural.
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI

Internet and cultural participation:


the Brazilian scenario according to
the ICT Households survey

Keywords Abstract
Internet Based on the results of the ICT Households
ICT Survey 2017, the article describes the main in-
cultural participation dexes of Internet access and use among the
inequalities Brazilian population to address cultural parti-
cipation. For this purpose, it analyzes in-depth
unprecedent data about cultural enjoyment
and production of content in the network. The
results indicate the fast advance of Internet ac-
cess in Brazil in the last ten years. However, the
logic of inequality that marked the whole pro-
cess remained. In relation to cultural practices,
more specifically, it is possible to verify the
trend of directly streaming content rather than
downloading files, which reaffirms the central
role of streaming platforms in accessing con-
tent on the Internet. In relation to the produc-
tion of content by Internet users, the majo-
rity of those who posted self-created content
on the network had no professional or artis-
tic purpose, and a very small portion received
any sort of income from it. By bringing evi-
dence about the role of the Internet as a me-
diator of access to culture and cultural produc-
tion, as well as the influence of connectivity
infrastructure and sociodemographic variables
on online cultural activities, the article aims
to subsidize the development of an agenda of
public policies that consider universal access
to the network and the extension of cultural
rights, with a view to promoting participation,
diversity and cultural citizenship.
41
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI

1. Introdução camada propulsora de tais processos, permi-


tindo a interação e o compartilhamento de
conteúdos por parte dos usuários e criando
A Internet trouxe enormes transformações ambientes de conexão e infraestrutura para a
no fluxo de bens e serviços culturais e na cons- criatividade e a sociabilidade on-line. Contudo,
trução de valores e identidades, afetando a cul- as mídias sociais fizeram também com que a
tura em suas dimensões econômica, simbólica perspectiva da cultura participativa desse lugar
e cidadã (Ministério da Cultura, 2010). As tec- à cultura da conectividade, transformando a
nologias de informação e comunicação (TICs) comunicação em rede numa sociabilidade por
reconfiguraram os modos de criação, disse- plataformas (Van Djick, 2013). Dessa forma, a
minação, consumo e participação cultural. Ao estrutura difusa da rede deu lugar à concen-
mesmo tempo em que as condições para a pro- tração em grandes conglomerados, recaracteri-
dução, a circulação e a fruição de conteúdos on- zando o ambiente digital.
-line foram ampliadas, o ambiente digital incor- O histórico de construção da Internet é per-
porou e reproduziu desigualdades existentes na meado, portanto, por elementos e disputas em
sociedade de modo mais amplo, tanto em rela- torno de sua economia política, que incidem
ção ao acesso quanto aos usos das tecnologias. sobre as formas de comunicação e circulação
Criada inicialmente para a troca de dados e de bens culturais, educativos e informacionais
informações nos campos acadêmico e militar, – e, em última instância, sobre as práticas dos
a Internet se expandiu, sobretudo, com o sur- usuários.
gimento da Web, rede de alcance mundial que Ainda que os pilares do acesso à informa-
permitiu o compartilhamento de conteúdos em ção e da liberdade de expressão sejam basilares
diversos formatos, ‘lincados’ entre si por meio nesse desenvolvimento, há que se considerar,
de hipertexto. A ampla disponibilidade de con- por outro lado, as desigualdades existentes no
teúdos na Web, somada às ferramentas de busca acesso e na apropriação das tecnologias. Isso
dos navegadores, apontavam para a expansão porque os potenciais benefícios trazidos pelas
do acesso à informação, à cultura e ao conhe- TICs não se encontram igualmente disponíveis
cimento (UNESCO, 2005). para todos, seja por questões de infraestrutura
Em paralelo, as TICs ampliaram também as e acesso à própria rede (exclusão de primeira
possibilidades de produção e difusão de con- ordem), seja devido às habilidades implica-
teúdos. Seja de forma individual ou por meio das em seus usos (exclusão de segunda ordem)
de ferramentas colaborativas, propagou-se o (Dimaggio et al., 2004; Van Dijk, 2005; Van
ideal da inteligência coletiva no ciberespaço Deursen & Van Dijk, 2014). Assim, mesmo que
(Levy, 1997). Ainda, a disseminação das tecno- se reconheçam as contribuições da Internet na
logias digitais para captação de vídeo, imagem ampliação das possibilidades de produção, di-
e som e a estrutura difusa da rede permitiram fusão e fruição cultural, é preciso considerar os
o desenvolvimento da cultura participativa mecanismos de exclusão e de reprodução das
no ambiente da Internet ( Jenkins et al., 2009; desigualdades também nesse campo.
Schäfer, 2011), diluindo fronteiras entre emis- Embora tais fenômenos sejam amplamente
sores e receptores e apontando para a pulveri- discutidos, são incipientes os estudos empíri-
zação de intermediários frente aos tradicionais cos que buscam compreender as implicações
modelos das mídias de massa e das indústrias das tecnologias digitais nas práticas culturais
culturais (Adorno & Horkheimer, 1985). da população. As tradicionais pesquisas sobre
As redes sociais despontaram, enfim, como hábitos culturais e suas variáveis determinantes
42
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geralmente restringem-se à frequência a equi- acesso a espaços culturais legítimos e repre-


pamentos culturais (como museus, teatros, ci- sentativos da alta cultura e, posteriormente, te-
nemas, etc.) e à mídia tradicional (rádio e TV), nham abordado o tema pela lógica do consumo
e apenas mais recentemente passaram a con- vinculado a pagamento, adota-se aqui uma de-
templar o uso da Internet em atividades cultu- finição mais ampla, que transborda a visita a
rais (National Endowment for the Arts, 2015; instituições culturais e os gastos domésticos
European Union, 2016; Sistema de Información com produtos e eventos culturais (UNESCO,
Cultural de la Argentina, 2018; Consejo 2009).
Nacional de la Cultura y las Artes, 2018). Tal escolha se dá não só devido à presença do
A princípio, as TICs foram incorporadas nes- digital e ao enfoque nas práticas on-line, mas
sas pesquisas como aspectos descolados do res- também ao se levar em conta aspectos que
tante das práticas, sendo considerados apenas tangenciam práticas cotidianas, não necessa-
indicadores gerais sobre o uso de computador e riamente vinculadas ao campo delimitado das
da Internet, incluindo local de acesso, frequên- artes e da produção cultural. Para além dessa
cia de uso, entre outros (Ministère de la Culture dimensão sociológica mais restrita, o debate em
et de la Communication, 2008; Ministerio torno das políticas culturais há tempos advoga
de Educación y Cultura de Uruguay, 2009; pela ampliação da abrangência do conceito de
Consejo Nacional para la Cultura y las Artes cultura, reivindicando uma concepção antro-
de Mexico, 2010). Assim, media-se o acesso às pológica que incorpora a cultura ordinária, os
TICs como atividades em si, não sendo apro- valores e modos de vida de diferentes grupos
fundados os usos que se faziam delas e seu ca- sociais (Fabrizio, 1980; Canclini, 1987; Williams,
ráter transversal. Entretanto, as ferramentas 1989[1958]; Gil, 2013).
digitais permeiam diversas práticas e são cada Partindo desse debate, a abordagem do digital
vez mais utilizadas como meio para ler, assis- parece tensionar e complexificar ainda mais a
tir a vídeos, ouvir músicas e assim por diante. questão, implicando igualmente na construção
Acrescenta-se a tal complexidade o uso das tec- de estatísticas. Nesse aspecto, a disseminação
nologias para produção e compartilhamento de das TICs e a integração das práticas culturais
conteúdos – incluindo o registro e a divulga- ao universo da Internet trazem novos desafios
ção de atividades culturais presenciais –, o que para a medição da participação cultural:
torna cada vez mais difícil distinguir os am-
bientes on-line e off-line, sobretudo tendo em A revolução digital está trazendo uma
vista a expansão da conectividade. variedade de bens e serviços culturais novos
Considerando tal cenário e com base em para o mercado, permitindo uma maior
dados revelados pela pesquisa TIC Domicílios diversidade de consumo e comportamentos
(Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2018), o culturais, expondo grandes massas de
artigo reflete sobre as práticas culturais da po- pessoas em sua vida cotidiana a produtos
pulação brasileira na Internet. O papel das fer- culturais de modo muito penetrante,
ramentas tecnológicas é analisado da perspec- através da Internet e dos meios massivos
tiva da participação cultural, que abrange tanto [...]. Isso combina as funções de usuários
as atividades de fruição e consumo cultural e produtores – definidos pelo neologismo
quanto aquelas voltadas à criação e à produção híbrido prosumidores –, fundindo os bens
de conteúdos on-line. culturais e gêneros, contornando a aparente
Ainda que as pesquisas sobre participação contradição da participação cultural, que é
cultural, a princípio, considerassem apenas o tanto ativa como passiva, e tratando de que
43
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tudo isso faça sentido. Todas essas práticas da Sociedade da Informação (Cetic.br), de-
aumentam o volume e a velocidade da partamento do Núcleo de Informação e
troca, permitindo aos indivíduos interagir Coordenação do Ponto BR (NIC.br). A pesquisa
com expressões e produtos culturais – TIC Domicílios, fonte do artigo, tem como ob-
textos, imagens, vídeos, músicas, etc. –, que jetivo medir o uso dessas tecnologias nos do-
influenciam os sistemas de valores e tem micílios brasileiros e pela população com 10
impacto cultural profundo. A velocidade em anos ou mais. Com base em definições me-
que se desenvolvem esses novos fenômenos todológicas reconhecidas internacionalmente
– a participação nas redes sociais e a (União Internacional de Telecomunicações,
exposição a conteúdos culturais e digitais 2014), a pesquisa investiga o acesso individual
– está dilatando as categorias de uma à Internet e as atividades desenvolvidas na rede,
taxonomia que é muito difícil de classificar, gerando indicadores para o monitoramento de
que dirá medir, avaliar e comparar. políticas públicas do setor.
(UNESCO, 2009, p. 11, tradução própria)1 Em sua 13ª edição, realizada entre novem-
bro de 2017 e maio de 2018, foram conduzidas
entrevistas em mais de 23 mil domicílios em
Considerando esse cenário e sua complexi- todo o território nacional. É importante ressal-
dade, o presente trabalho representa um es- tar que se trata de uma pesquisa realizada pre-
forço inicial no sentido de compreender as sencialmente com amostra probabilística dis-
práticas dos usuários de Internet no Brasil, es- tribuída em 350 municípios, cujos resultados
pecificamente no que se refere à participação permitem leituras de qualidade para diversas
cultural. O artigo inicia com a apresentação da variáveis como área, região, classe, renda do-
pesquisa TIC Domicílios e de seu referencial miciliar, sexo, faixa etária, grau de instrução e
metodológico. A seguir, traz os principais re- condição de atividade. Por meio de indicadores
sultados do estudo no que tange ao acesso à que ilustram os tipos de conexão e dispositi-
Internet no país e aos usos da rede pela po- vos utilizados para acesso à rede, bem como as
pulação, em especial em relação às atividades atividades realizadas on-line por indivíduos de
culturais. Ao destacar as brechas digitais ainda diferentes localidades, idades e segmentos so-
existentes em termos de conexão e as desigual- cioeconômicos, a pesquisa permite uma refle-
dades na fruição e produção de conteúdos on- xão aprofundada sobre as brechas digitais que
-line, o artigo encerra, por fim, apontando para ainda persistem no país.
uma agenda de pesquisa e de políticas públicas Apesar de o objetivo da pesquisa não estar li-
que dialogue com o tema a partir das conclu- gado primordialmente à cultura, desde as suas
sões do estudo. primeiras edições foram coletados indicado-
res a respeito de atividades culturais básicas
como fazer downloads, assistir a vídeos e ouvir
2. Sobre a pesquisa TIC músicas pela Internet, na perspectiva de com-
Domicílios preender como a rede é utilizada pelos usuá-
rios brasileiros. A expansão dessas atividades
e sua crescente importância na vida cotidiana
Desde 2005, o Comitê Gestor da Internet da população apontou para a necessidade de se
no Brasil (CGI.br) desenvolve pesquisas sobre realizar uma mensuração específica e aprofun-
a adoção das TICs no país, por meio do Centro dada sobre o tema.
Regional de Estudos para o Desenvolvimento Dando início à agenda de pesquisa sobre uso
44
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das TICs na cultura, foi realizado um primeiro socioeconômicos quanto regionais: as maiores
estudo qualitativo a partir de grupos focais proporções de domicílios não conectados estão
com usuários de Internet de diferentes perfis nas regiões Norte e Nordeste, na área rural e
etários e socioeconômicos em todo o país, o entre as classes2 e rendas mais baixas. Também
Cultura e Tecnologias no Brasil (Comitê Gestor é possível identificar padrões no uso de dife-
da Internet no Brasil, 2017). Tomando como rentes tipos de conexão à Internet de acordo
base os aprendizados deste estudo, tornou-se com a classe e a região a que pertencem os do-
especialmente relevante a criação de um con- micílios, uma vez que nas classes DE e nas re-
junto de novos indicadores a respeito de como giões Norte e Nordeste a conexão à Internet se
os usuários consomem e produzem conteúdos dá, sobretudo, por redes móveis, na ausência de
na Internet. Após um ano de planejamento, de- computadores. Um indicador que reforça a re-
bates e reuniões com a participação de atores levância do aspecto socioeconômico no acesso
relevantes de governos, universidades e organi- à rede é o que identifica por que os domicílios
zações da sociedade civil, os indicadores foram desconectados não possuem o serviço: a prin-
definidos e priorizados, sendo coletados de cipal barreira ainda é o preço, mencionado por
forma inédita na edição de 2017 da pesquisa 59% dos que não fazem uso da rede.
TIC Domicílios. Em relação ao uso individual da Internet,
Assim, esta edição incluiu, pela primeira vez, os resultados apontam um cenário similar ao
um módulo específico sobre atividades cul- acesso domiciliar, tanto no que diz respeito ao
turais, composto pelas seguintes dimensões e crescimento quanto à desigualdade: ao longo
temas: i) fruição cultural na Internet: frequên- dos dez anos da pesquisa, dobrou a proporção
cia, pagamento e origem dos conteúdos; ii) pro- de usuários de Internet3 no Brasil, passando de
dução de conteúdos próprios na Internet: tipo 34%, em 2008, para 67%, em 2017 – o que re-
de conteúdo, finalidade e remuneração. A se- presenta 120,7 milhões de brasileiros com dez
guir, são apresentados os principais resultados anos ou mais. Mesmo nas classes C e DE, a pro-
desse estudo, articulando as desigualdades que porção dos usuários da rede aumentou expres-
ainda persistem no acesso e uso da Internet no sivamente no período, alcançando, em 2017,
Brasil ao enfoque da participação cultural. 74% e 42%, respectivamente [Gráfico 1]. A pro-
porção de usuários de Internet também per-
maneceu inferior nas áreas rurais e nas regiões
3. Acesso à Internet no Norte e Nordeste.
Brasil No entanto, há ainda aspectos individuais
bastante relevantes para compreender como
a população utiliza a tecnologia. Um exemplo
A pesquisa TIC Domicílios demonstra o cres- disso é a dimensão etária. A grande maioria das
cimento do número de domicílios com acesso crianças e adolescentes declarou-se usuária de
à Internet no país ao longo dos últimos dez Internet, chegando ao percentual de 88% entre
anos, alcançando 42 milhões de domicílios co- os jovens de 16 a 24 anos, ao passo que essa
nectados em 2017. Em relação ao início da série proporção foi de um quarto na população de
histórica da pesquisa, a proporção de domicí- 60 anos ou mais.
lios conectados mais do que triplicou (61% em Outro aspecto relevante que diz respeito ao
2017, em relação a 18% em 2008). uso individual é o dispositivo utilizado para
No entanto, a desigualdade é característica acessar a Internet. Em 2017, estimou-se que
marcante desse crescimento, tanto nos aspectos mais de 115 milhões de brasileiros acessaram
45
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100
96 95
88 89 87
84 85
80
76 74
71
67 68 67
60
54 54
44
42
40

25
20
9

Superior
A

DE
Masculino

Feminino

Médio
Urbana

C
Rural

De 10 a 15 anos

De 16 a 24 anos

De 25 a 34 anos

De 35 a 44 anos

De 45 a 59 anos

60 anos ou mais

Fundamental
Analfabeto / Educação Infantil
TOTAL Área Sexo Faixa etária Classe social Nível de escolaridade

[Gráfico 1] Usuários de Internet no Brasil O avanço no acesso à Internet exclusivamente


Percentual sobre o total da população por meio do telefone celular ocorreu principal-
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no mente entre os usuários de classes mais baixas:
Brasil, 2018).
em 2017, 53% dos usuários de classe C e 80%
dos de classes DE acessaram a rede apenas pelo
a rede por meio do telefone celular, o que re- celular. Já nas classes A e B, a maioria acessa a
presenta 96% dos usuários – proporção que era Internet por mais de um dispositivo.
de 76% em 2014. Em tendência inversa, vem É possível observar também que o uso exclu-
diminuindo proporcionalmente o uso do com- sivo do telefone celular para acessar a Internet
putador para acesso à rede, o que indica que a foi maior entre usuários das áreas rurais (72%)
ampliação desse acesso tem se dado, sobretudo, e das regiões Norte (62%) e Nordeste (58%). Já
por meio do telefone celular. nas áreas urbanas e nas demais regiões do país,
Ainda segundo os dados da TIC Domicílios a maioria dos usuários utilizou tanto o celular
2017, 49% dos usuários de Internet no Brasil quanto o computador para acessar a rede.
acessaram a rede exclusivamente pelo telefone No que se refere aos dispositivos, começa a se
celular – número que, pela primeira vez na destacar ainda o uso da televisão para o acesso
série histórica da pesquisa, chegou ao mesmo à Internet: em 2014, apenas 7% dos usuários de
patamar daqueles que acessaram a Internet Internet usaram a rede por meio desse dispo-
tanto pelo computador quanto pelo celular sitivo, ao passo que, em 2017, esse percentual
(47%). Isso significa que há mais usuários de chegou a 22% [Gráfico 2]. A televisão também
Internet utilizando a rede apenas pelo telefone foi um dispositivo utilizado em maior propor-
celular do que aqueles que combinam o celu- ção entre os usuários de Internet das classes A
lar e o computador, ou do que os que o fazem (46%) e B (35%), quando comparados àqueles
somente pelo computador. das classes C (19%) e DE (7%).
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100 93 96 quase todos os dias, ao passo que nas classes


89
DE foram 73%.
80
80

65
60
76 57
51
4. Atividades na Internet
40

22 O acesso à Internet é apenas um aspecto a


17
20 13 ser considerado em termos das desigualdades
7
existentes no contexto digital contemporâneo.
8 8 9
0 5 É certo que há um fosso que ainda separa os
2014 2015 2016 2017
usuários de Internet dos não usuários. No en-
tanto, entre os que estão conectados, há tam-
Telefone celular Computador Televisão Aparelho de videogame
bém enormes distinções em termos do uso e
das atividades que se desenvolvem na rede. Os
[Gráfico 2] Dispositivos utilizados dados da pesquisa TIC Domicílios indicam que
para acessar a Internet as diferentes formas de acesso em termos dos
Percentual sobre o total de dispositivos e tipos de conexão apresentam
usuários de Internet efeitos sobre as atividades on-line. Para além da
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no própria tecnologia, há fatores de natureza so-
Brasil, 2018).
cial, econômica e cultural que influenciam o
uso da Internet e seu potencial de aproveita-
mento. Aqueles que possuem um acesso mais
Esses resultados apontam para um cenário qualificado e uma maior gama de habilidades
em que os usuários com melhores condições fazem um uso mais proficiente da rede (Van
socioeconômicas têm à disposição uma maior Deursen et al, 2017). A expansão do acesso não
gama de dispositivos para acessar a Internet, ao significa, portanto, a extinção das diferenças
passo que, nas classes mais baixas, a conectivi- em termos da apropriação tecnológica.
dade é garantida em grande parte apenas por Desse modo, compreender quem acessa a
meio do telefone celular. Internet e como acessa é apenas um primeiro
Por fim, outra característica relevante em re- passo. A partir desse recorte, é necessário avan-
lação ao uso da Internet é a frequência de uso. çar no entendimento de como se utiliza a rede.
Em 2008, a proporção de indivíduos que aces- A investigação das atividades levadas a cabo
saram a Internet todos os dias ou quase todos pelos usuários de Internet é trazida assim para
os dias era de 53%, proporção que chegou a a abordagem de como a Internet se relaciona à
87% em 2017. Observa-se um padrão de uso participação cultural:
mais frequente especialmente entre os usuários
mais jovens e de classes mais altas. Enquanto Para uma proporção da população em
90% dos usuários de 16 a 24 anos utilizaram a constante aumento, uma quantidade
Internet todos os dias ou quase todos os dias, a consistente da participação cultural ocorre na
proporção era de 77% entre os indivíduos com própria Internet, não só através da Internet.
60 anos ou mais. Da mesma forma, quase a to- Essas novas condições exigem um marco
talidade dos usuários de Internet nas classes A revisado para medir a participação, não
(97%) e B (95%) acessou a rede todos os dias ou limitado a medir quantos indivíduos acessam
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100
primordiais no uso
90 das tecnologias.
80 77
Bastante associado
73 71 71 ao uso das redes so-
60
ciais, o compartilha-
mento de contéudo
40 37 na Internet – in-
cluindo textos, ima-
20
gens, vídeos ou mú-
sicas – tem ganhado
0
relevância nos últi-
Mandou Usou redes Compartilhou Assistiu Ouviu música Postou na mos anos, passando
mensagens sociais conteúdo a vídeos, pela Internet Internet textos,
na Internet, programas, imagens, vídeos de 60% dos usuários
como textos, filmes ou séries ou músicas
imagens, vídeos pela Internet que criou de Internet em 2013
ou músicas
para 73% em 2017.
Essa mesma tendên-
[Gráfico 3] Atividades realizadas na Internet cia de crescimento
Percentual sobre o total de usuários vem sendo apresentada no acesso a conteú-
de Internet dos multimídia. Em 2017, 71% dos usuários de
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no Internet brasileiros assistiam a vídeos, progra-
Brasil, 2018).
mas, filmes ou séries na Internet, mesmo per-
centual apresentado para a escuta de música
(em 2013, esses percentuais eram de 56% e 63%,
a Internet ou usam as redes sociais, mas capaz respectivamente).
de compreender como se usa a Internet e que Além de superarem atividades de busca de
atividades são realizadas no espaço virtual. informação5 e relacionadas à educação e à tra-
(UNESCO, 2009, p. 26, tradução própria)4 balho6, o uso da Internet para comunicação,
consumo e compartilhamento de conteúdo
apresenta proporções superiores à produção
Nesse aspecto, é preciso observar, em pri- de conteúdos próprios. Em 2017, o comparti-
meiro lugar, que as principais atividades na lhamento de conteúdos de terceiros (73%), por
Internet estão relacionadas à comunicação, exemplo, era realizado pelo dobro dos usuá-
fato que é comum em diversos contextos. No rios de Internet brasileiros, em relação à posta-
cenário brasileiro, especificamente, o uso da gem de conteúdos próprios (37%). Ainda assim,
rede para envio de mensagens instantâneas por esse último percentual pode ser considerado
Whatsapp, Skype ou chat do Facebook alcança bastante relevante se comparado a parâmetros
90% dos usuários de Internet (Gráfico 3), se- anteriores de criação e disseminação de con-
guido do uso de redes sociais (como Facebook, teúdos pelas mídias tradicionais e no âmbito
Instagram ou Snapchat), realizado por mais de da indústria cultural, sendo esta uma atividade
três quartos deles (77%). Ainda que tais práti- que tem ganhado projeção no ambiente digital,
cas sejam mais reportadas por usuários mais sobretudo dada a disseminação dos dispositivos
jovens e de classes mais altas, elas são frequen- móveis e o uso das redes sociais.
tes entre todos os segmentos considerados na Esses indicadores revelam, portanto, a
pesquisa, indicando serem estas atividades apropriação das tecnologias em atividades
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que marcam as transformações trazidas pela plataformas on-line, permeadas por seus algorit-
Internet no cenário da participação cultural: mos e mecanismos de moderação de conteúdos.

Mesmo que as maneiras de acesso e de


fruição tradicionais à cultura e à arte 5. Fruição cultural na
não tenham deixado de existir, o caráter Internet
multimídia da cultura digital redefine
fronteiras e permite a emergência de
novas práticas criativas e de apropriação O advento das TICs ampliou as possibili-
de conteúdos. Potencialmente, por sua dades de fruição cultural, tanto pela diversi-
própria natureza, a Internet permite ao ficação dos conteúdos disponíveis na Internet
usuário informar-se, escutar música, ler quanto pela possibilidade de acessá-los em ho-
livros ou jornais e revistas, ver filmes rários flexíveis e a partir do ambiente domés-
ou programas de televisão ou escutar tico. Ainda que o receio da padronização fosse
rádio. A fotografia se torna uma febre colocado em pauta com a expansão da rede no
dos possuidores de telefones celulares ou contexto da globalização, com ela vieram tam-
tablets. Em curso, temos uma mudança bém inúmeras possibilidades de acesso à infor-
radical de ordem simbólica e a emergência mação e à cultura:
de novas formas de conhecimento e
sociabilidade. (Botelho, 2018, p. 41) [...] as enciclopédias virtuais, a oportunidade
de alcançar jornais e revistas em povoações
aonde não chega papel, conhecer livros
Acompanhando o debate mais amplo pre- e espetáculos onde faltam livrarias, salas
sente no campo das políticas culturais, tais ele- de concerto ou cinemas. Ser internauta
mentos parecem integrar, no e pelo digital, as aumenta, para milhões de pessoas,
perspectivas da democratização cultural e da a possibilidade de serem leitores e
democracia cultural (Botelho, 2016), seja pela espectadores. (Canclini, 2008, p. 54)
ampliação do acesso à bens culturais, seja pela
possibilidade de expressão pessoal, identitária
e criativa. Dessa perspectiva, o estudo qualitativo
Ainda que se reconheçam as potencialidades Cultura e Tecnologias no Brasil (Comitê Gestor
das ferramentas digitais em termos da fruição da Internet no Brasil, 2017) revelou que o
e da produção cultural, há que se considerar, acesso a conteúdos on-line aparece como al-
no entanto, a permanência de barreiras simbó- ternativa tanto à baixa oferta cultural presen-
licas, culturais e educacionais. A lógica do en- cial em determinados locais quanto às mídias
tretenimento parece predominar no contexto tradicionais. Pesquisas quantitativas que abor-
da Internet e o peso das variáveis determinan- dam o tema da participação cultural também
tes das práticas culturais – como escolaridade, apontam que a proporção daqueles que reali-
renda e faixa etária – se mantém como indica- zam atividades culturais na Internet supera a
dor das desigualdades existentes. Além disso, frequência a atividades presenciais, como ir a
a amplitude das oportunidades de difusão e cinemas, shows de música, museus e biblio-
acesso à diversidade de expressões culturais na tecas (Sistema de Información Cultural de la
Internet encontra-se comprometida pela con- Argentina, 2018; Leiva, 2018).
centração da participação cultural em grandes Os resultados da TIC Domicílios reverberam
49
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tais conclusões ao indicarem que a Internet fatores socioeconômicos e de escolaridade. No


ampliou o acesso a bens culturais, sobretudo caso dos jogos on-line, por sua vez, destacam-se
nos campos da música e do audiovisual – em as diferenças por sexo e por faixa etária, sendo
2017, a proporção dos usuários de Internet bra- a atividade mais comum entre os homens e
sileiros que assistiu a vídeos ou ouviu músicas entre os mais jovens.
on-line foi de 71%, o que representa mais de Com relação às práticas audiovisuais, a pes-
85 milhões de pessoas. Considerando a popu- quisa permite ainda comparar o consumo de
lação como um todo (e não apenas os usuários vídeos e músicas on-line e o download desses
de Internet), significa dizer que metade dos in- mesmos tipos de conteúdo. Nesse aspecto, a
divíduos com dez anos ou mais residentes no série histórica dos indicadores revela uma mu-
país realizou tais atividades7. dança na forma de acesso a esses conteúdos na
Esses indicadores revelam que as práticas au-
diovisuais foram as mais impactadas pelo uso 100

das TIC e tiveram a maior frequência entre os


usuários de Internet brasileiros. Em menores 80
68
71
64
proporções, a leitura de jornais, revistas ou no- 58 71
tícias pela Internet foi citada por pouco mais 60
57 63
59 42
da metade dos usuários (55%), enquanto a prá-
51
tica de jogar on-line por cerca de um terço deles 40 48 46
23
(34%), e a de ver exposições ou museus pela
29
Internet por apenas um em cada dez usuários 20
23 24
de Internet brasileiros (11%). 14
As práticas on-line refletem, assim, alguns 0
2014 2015 2016 2017
dos padrões já estabelecidos nas práticas off-
-line, sendo os hábitos de leitura e de ir a ex-
Assistiu a vídeos, programas, Baixou ou fez download de músicas
posições e a museus também mais restritos filmes ou séries pela Internet
Baixou ou fez download de filmes
fora da Internet (Comitê Gestor da Internet Ouviu música pela Internet

no Brasil, 2017; Leiva, 2018). Tal cenário pode Baixou ou fez download de séries

estar relacionado ainda à oferta desses conteú-


dos na rede – no caso dos museus brasileiros, [Gráfico 4] Atividades realizadas na
por exemplo, a pesquisa TIC Cultura 2018, que Internet: streaming x download
trata do uso das tecnologias por equipamen- Percentual sobre o total de usuários
tos culturais, apontou que cerca de um quarto de Internet
deles possuía website próprio (26%) e apenas um Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no
Brasil, 2018).
em cada dez oferecia o recurso de visita vir-
tual (10%) e disponibilizava acervo digitalizado
(10%) no site da instituição (Comitê Gestor da
Internet no Brasil, 2019). Internet, com os serviços de streaming apresen-
As disparidades entre as diversas práticas tando tendência de crescimento, enquanto as
culturais refletem também as desigualdades atividades de download se mostram estáveis ou
no acesso a determinados conteúdos, de acordo em declínio [Gráfico 4].
com as variáveis analisadas. No caso das práti- Isso indica que, em vez de constituírem
cas menos frequentes nos campos da leitura e acervos próprios por meio da posse dos bens
dos museus, por exemplo, pesam ainda mais os culturais obtidos via download, os usuários de
50
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Internet cada vez mais têm obtido acesso a esses apareceram também no acesso a conteúdos
bens mediante a conexão direta a determinadas audiovisuais.
plataformas que disponibilizam conteúdo on- Os resultados para o hábito de assistir a ví-
-line. Se, por um lado, essa prática prescinde de deos, programas, filmes ou séries pela Internet
grandes espaços de armazenamento e memó- exemplificam esse padrão: enquanto, em 2017,
ria nos dispositivos, por outro demanda maior 83% dos indivíduos da classe A o faziam, o
qualidade na conexão. percentual ficava em 29% entre as classes DE
Para além das questões de infraestrutura, tal [Gráfico 5]. Em termos de escolaridade, a dife-
mudança revela uma alteração nos modelos rença na proporção entre os que possuíam en-
de distribuição de bens culturais na rede, tra- sino superior e os analfabetos ou com educação
zendo efeitos nas formas de circulação, legiti- infantil era de mais de dez vezes.
mação e curadoria de conteúdos. O paradigma Além disso, em se tratando da fruição de
do compartilhamento e troca entre pares (P2P), conteúdos on-line, somam-se às variáveis tradi-
inspirado em ideais da cultura livre (Lessig, cionalmente consideradas pelos estudos sobre
2004), dá lugar ao pagamento de assinatura por participação cultural as desigualdades referen-
serviço ou conteúdo, ou mesmo ao acesso gra- tes ao acesso à Internet. Refletindo o próprio
tuito associado ao direcionamento de anúncios uso da rede, as atividades foram menos reali-
e inserções publicitárias. A lógica do colecio- zadas à medida em que aumenta a idade dos
nismo pela posse dos objetos culturais dá lugar entrevistados e apresentaram proporções um
à circulação intangível dos conteúdos (Yúdice, pouco maiores entre homens do que entre mu-
2016). lheres. Já a diferença de patamares entre resi-
Nesse cenário, ganham maior protagonismo dentes nas áreas urbanas e rurais evidencia as
as grandes plataformas digitais – a exemplo de assimetrias em termos de infraestrutura e co-
YouTube e Netflix –, intensificando a concen- nexão, já apontadas anteriormente.
tração da oferta e do consumo cultural on-line. Para melhor compreender a dimensão da
Dado que estas se constituem como ferramen- fruição cultural no ambiente digital é impor-
tas comerciais que visam, em última instância, tante relacioná-la, portanto, aos aspectos que
atrair e manter a atenção de seus usuários, tal diferenciam os grupos de usuários de Internet
tendência traz inúmeras questões acerca dos em termos do acesso à rede, como a disponibi-
modelos de negócio, da diversidade de conteú- lidade de banda larga no domicílio ou o dispo-
dos disponíveis e do impacto dos algoritmos sitivo utilizado. Isso demonstra em que medida
utilizados nessas plataformas na mediação e de- aspectos de infraestrutura e conectividade in-
finição das práticas culturais pela Internet. terferem nas possibilidades de uso da Internet
A despeito dessas transformações, no en- pelos indivíduos.
tanto, todas as atividades na Internet foram, Em relação à conexão banda larga no domi-
em geral, mais realizadas quanto mais alta a cílio, é possível dizer que aqueles usuários que
classe e o grau de instrução dos indivíduos, em dispõem dessa tecnologia em casa têm acesso a
conformidade com o que aponta a literatura conteúdo cultural em proporção maior do que
clássica sobre hábitos culturais, considerando os que não dispõem: enquanto 70% dos usuá-
os processos de formação de gosto e acúmulo rios que têm banda larga no domicílio ouviram
de capital cultural (Bourdieu, 2007; Bourdieu música, a proporção é de 59% entre os que não
& Darbel, 2007). Como mencionado anterior- possuem. O mesmo padrão se repete quando é
mente, as assimetrias foram ainda maiores em avaliado o consumo de vídeos: a proporção é
práticas menos comuns e mais elitizadas, mas de 72% entre os que possuem banda larga em
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100

83
80 77 77 77
71
67 65
60
53 54 52 52
50
46

40 37
30 28 29

20
11
7

Superior
A

DE
Masculino

Feminino

Médio
Urbana

C
Rural

De 10 a 15 anos

De 16 a 24 anos

De 25 a 34 anos

De 35 a 44 anos

De 45 a 59 anos

60 anos ou mais

Fundamental
Analfabeto / Educação Infantil
TOTAL Área Sexo Faixa etária Classe social Nível de escolaridade

[Gráfico 5] Indivíduos que assistiram a vídeos, são acessados. Os indivíduos que possuem à
programas, filmes ou séries na Internet disposição mais de um dispositivo para acesso
Percentual sobre o total da população à rede têm frequências superiores tanto em
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no música quanto em filmes e séries, sendo que
Brasil, 2018).
para os últimos essa distância é ainda maior.
Assim, ainda que a Internet venha contri-
casa, frente a 57% entre os que não possuem. buindo para a ampliação do acesso à cultura
Os resultados mostram, assim, como a dispo- para além dos eventos e equipamentos cultu-
nibilidade de conexão banda larga afeta a pro- rais (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2017),
babilidade de o indivíduo realizar tarefas que os resultados da TIC Domicílios indicam que,
necessitam de melhor infraestrutura e ampla em termos da participação cultural on-line, as
conectividade. desigualdades no acesso à rede agregam-se às
Em relação aos dispositivos utilizados para desigualdades reveladas pelos estudos sobre
acessar a rede, a proporção geral dos indiví- práticas culturais mencionados anteriormente.
duos que realizam essas atividades não é afe- De modo a aprofundar a compreensão sobre
tada de maneira significativa. No entanto, a as principais atividades realizadas pelos usuá-
frequência com que o fazem é: indivíduos que rios de Internet brasileiros, de assistir a vídeos
utilizam apenas telefone celular para acessar e ouvir músicas, o novo módulo de cultura da
a rede consomem músicas e vídeos com fre- pesquisa explorou, em especial, a frequência, o
quência inferior a dos que utilizam tanto com- pagamento e a origem dos conteúdos acessados
putador quanto celular [Gráfico 6]. na Internet. O recorte buscou abarcar questões
Esse resultado aponta como a combinação de de interesse para o debate em torno da regula-
dispositivos interfere de maneira importante ção e da governança da Internet, tendo em vista
na frequência com que os conteúdos culturais a amplitude da participação cultural on-line, as
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100

21
o maior percentual
40 38 apresentado para a ca-
80
5 43
51 tegoria outros vídeos
66 70
60 23 79 77 revela práticas menos
7 13
11 institucionalizadas e
8 formatos menos tra-
40 21
22 28 dicionais, que dia-
7 19
51 10
20 14 4 5 logam com uma di-
32 12
24 21 22
9 12 versidade de temas e
13
0
8 9 6 atributos e merecem
aprofundamento.
Apenas celular

Apenas computador

Apenas celular

Apenas computador

Apenas celular

Apenas computador
Ambos

Ambos

Ambos
Com relação à fre-
quência, os resulta-
dos mostraram que
a maior parte dos in-
Ouviu música Assistiu a filmes Assistiu a séries divíduos que acessou
esses conteúdos on-
Todos os dias ou quase todos os dias
-line o fez com pe-
[Gráfico 6] Frequência da realização de Pelo menos uma vez por semana riodicidade diária ou
atividades na Internet, por dispositivos Menos do que uma vez por semana semanal. Enquanto
Percentual sobre o total de usuários de Internet Não sabe/ Não respondeu/ Não se aplica predomina o hábito
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no de ouvir música pela
Brasil, 2018).
Internet diariamente,
a frequência semanal
relações econômicas que a caracterizam e a di- ou diária é mais comum para filmes e séries.
versidade de conteúdos e expressões culturais Nesse sentido, quase metade da população bra-
na rede. sileira acima de dez anos ouviu músicas pela
Especificamente sobre os conteúdos audiovi- Internet todos os dias, quase todos os dias ou
suais, o estudo analisou os tipos de vídeos as- pelo menos uma vez por semana (45%), sendo
sistidos on-line nos três meses que antecederam tal proporção mais baixa para assistir a filmes
a pesquisa: enquanto 34% dos indivíduos afir- (27%) e assistir a séries on-line (21%). Em todos
maram ter visto filmes, 25% assistiram a séries os casos, no entanto, a maior frequência es-
e 18% a programas de TV pela Internet. O tipo teve associada à faixa etária, com a frequên-
de conteúdo audiovisual mais visto pela popu- cia diária tendo sido mais comum entre os
lação brasileira, contudo, foram os da catego- mais novos – que são também os que usam a
ria outros vídeos, que incluem vídeos diversos Internet em maior proporção e com maior fre-
em plataformas como o YouTube, Facebook e quência. No caso da música, por exemplo, mais
WhatsApp, mencionados por quase metade da da metade (55%) dos jovens de 16 a 24 anos
população (47%). possui o hábito de ouvir músicas diariamente
Embora as questões sobre frequência, paga- pela Internet. Esses dados revelam assim o peso
mento e origem dos conteúdos tenham sido da participação cultural on-line em termos de
aplicadas apenas para filmes e séries – dada sua periodicidade.
sua caracterização mais definida e melhor No que concerne ao pagamento para ouvir
compreendida por parte dos respondentes –, músicas, para assistir a filmes e séries na
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Internet e para baixar tais conteúdos, a pes- debate acerca da regulação da distribuição de
quisa demonstrou ser esta prática ainda pouco conteúdos on-line. Além disso, foi considerada
comum entre a população brasileira. Conforme ainda a dificuldade de capturar a complexidade
haviam indicado os resultados do estudo quali- dessa questão através de pesquisa quantitativa
tativo conduzido anteriormente (Comitê Gestor amostral8.
da Internet no Brasil, 2017), há uma tendência Examinando o tema a partir dessa aborda-
à maximização do acesso a conteúdos gratui- gem, portanto, os resultados indicam cenários
tos pela Internet, dada a ampla disponibilidade diferentes para os três tipos de conteúdo inves-
desses na rede. O pagamento, quando ocorre, tigados, refletindo, de alguma maneira, o cená-
em geral está associado ao apreço pela obra e rio da produção cultural no país. Assim, uma
pelo artista ou à amplitude do acervo disponí- proporção maior da população declarou ter ou-
vel frente ao custo, sobretudo no caso das pla- vido músicas brasileiras pela Internet (48%) do
taformas de streaming. que músicas estrangeiras (28%). Por outro lado,
Assim, o pagamento para fruição de conteú- foi maior a proporção daqueles que informa-
dos audiovisuais ocorre em maior proporção ram ter assistido a séries estrangeiras (21%) em
para acesso via streaming que via download: o pa- relação a séries brasileiras na Internet (13%),
gamento para assistir a filmes e séries on-line enquanto proporções semelhantes disseram ter
alcançava 10% dos indivíduos, em comparação assistido a filmes estrangeiros (24%) e a filmes
com apenas 3% e 2% dos que pagaram para bai- brasileiros (26%) na rede9.
xar tais conteúdos, respectivamente. Já o paga- Esse indicador revela ainda que a fruição de
mento para baixar e ouvir músicas on-line es- conteúdos nacionais e estrangeiros na Internet
teve no mesmo patamar, tendo sido realizado variou conforme a classe dos indivíduos. Os es-
por 5% da população considerada na pesquisa. trangeiros, em especial os filmes e séries, foram
Como esperado, o pagamento apareceu for- mais frequentemente consumidos quanto mais
temente associado a fatores socioeconômicos alta a classe, enquanto os conteúdos brasileiros
– para assistir a filmes, por exemplo, enquanto apresentaram percentuais mais próximos entre
na classe A o pagamento foi feito por 37% dos as diferentes classes, mesmo que não estives-
indivíduos, nas classes DE ele foi realizado por sem no mesmo patamar. No caso dos filmes,
apenas 3%. Nesse aspecto, cabe ressaltar que por exemplo, 57% dos indivíduos de classe A
o aumento da oferta e da disponibilidade de assistiram a filmes estrangeiros, frente a ape-
conteúdos gratuitos na Internet diminui bar- nas 8% das classes DE (no caso dos filmes bra-
reiras de preço e contribui para a ampliação do sileiros, a diferença é de 41% para classe A para
acesso à cultura, ainda que permaneçam as de- 15% para DE). Os resultados demonstram, mais
sigualdades e devam ser consideradas as ques- uma vez, diferenças entre os conteúdos a que
tões referentes à remuneração dos autores, re- diversos segmentos da população têm condi-
configuradas nesse contexto. ções de acessar na Internet – neste caso, for-
Quanto à origem dos conteúdos acessados temente influenciadas pela barreira do idioma.
pela Internet, a questão foi abordada a partir Em termos da diversidade de conteúdos ofer-
da diferenciação entre conteúdos nacionais e tados, ganham importância em tal contexto as
estrangeiros. Tais categorias certamente não iniciativas de incentivo à produção audiovisual
dão conta da diversidade de expressões cul- brasileira, seja por meio dos mecanismos de
turais e matrizes étnico-raciais e identitárias incentivo fiscal e das ações de fomento direto,
presentes na rede. O recorte foi estabelecido, como as realizadas pela Agência Nacional do
porém, tendo em vista sua importância para o Cinema (Ancine), seja por meio da regulação
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das plataformas de vídeo sob demanda. Nesse on-line por parte dos usuários expõe, no cená-
aspecto, o crescimento do consumo de conteú- rio brasileiro, parte do fenômeno dos chama-
dos audiovisuais por meio de grandes platafor- dos prosumer, pro-am ou produser (Leadbeater &
mas on-line tem gerado debates no mundo todo Miller, 2004; Bruns, 2007), borrando os limi-
acerca de sua regulamentação, dando origem a tes entre produtores e consumidores e indi-
iniciativas de estímulo a produções locais e es- cando a criação de uma cultura participativa na
tabelecimento de cotas para conteúdos nacio- Internet ( Jenkins, 2006).
nais, além de discussões referentes à cobrança Contudo, assim como no âmbito da frui-
de impostos. ção, também aqui se revelaram as desigual-
dades relativas tanto ao acesso à rede quanto
à participação cultural propriamente dita. De
6. Produção de conteúdos acordo com as variáveis consideradas na pes-
próprios na Internet quisa, a maior diferença correspondeu ao grau
de instrução: enquanto 41% dos indivíduos

100
Para além das ati-
vidades de fruição
80
cultural, a segunda
dimensão investi-
60
gada pela pesquisa
TIC Domicílios con- 41 39 38 41
40 36 35
templando a partici- 28
31
28
26 27
pação cultural foi a 19
20 15 15 17
produção e a publi-
6
cação de conteúdos 2
0
na Internet. Como já
Superior
A

DE

Médio
Urbana

C
Rural

De 10 a 15 anos

De 16 a 24 anos

De 25 a 34 anos

De 35 a 44 anos

De 45 a 59 anos

60 anos ou mais

Fundamental
Analfabeto / Educação Infantil

mencionado, os resul-
tados mostram que a
prática mais comum
entre usuários de
Internet brasileiros é
o compartilhamento,
mais do que a cria-
TOTAL Área Faixa etária Classe social Nível de escolaridade
ção e a postagem de
conteúdos próprios.
No entanto, considerando o total da população [Gráfico 7] Indivíduos que postaram
e levando-se em conta o aumento dos usuá- textos, imagens, vídeos ou músicas
rios de Internet nos últimos anos, houve uma que criaram na Internet
ampliação de 31,1 milhões de indivíduos pu- Percentual sobre o total da população
blicando conteúdos próprios na Internet, em Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no
Brasil, 2018).
2013, para 44,7 milhões em 2017, o que cor-
responde a cerca de um quarto dos indivíduos
acima de dez anos residentes no país (26%). com Ensino Superior postaram conteúdo pró-
Os dados sobre a produção de conteúdo prio na rede, o percentual ficou em apenas 2%
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entre os analfabetos e com Educação Infantil artístico que criou, especificamente, foi men-
[Gráfico 7]. No que se refere à classe, houve cionado por 7% dos entrevistados. Aqui, deve
menor variação nas proporções, embora essa ser assinalada a dificuldade em diferenciar prá-
ainda tenha sido uma atividade mais realizada ticas cotidianas da criação artística ou voltada
pelos indivíduos das classes A e B (com 38% e ao campo mais restrito da produção cultural,
36%, respectivamente) do que por aqueles das tanto por parte dos respondentes quanto dos
classes DE (17%). Seguindo os padrões de acesso pesquisadores: são de longa data os debates
e uso da Internet em geral, também a atividade em torno do conceito de cultura, suas dimen-
de postar conteúdos próprios na rede foi mais sões sociológica ou antropológica e seus pro-
realizada pelos mais jovens do que pelos mais cessos de distinção e hierarquização. A relação
velhos e por aqueles que residem em áreas ur- das práticas culturais com o universo das TICs,
banas em comparação com os residentes em no entanto, parece ter embaraçado ainda mais
áreas rurais. essas fronteiras, tornando cada vez mais tênue
Com o objetivo de aprofundar a compreen- a capacidade de distinguir tais processos de di-
são sobre essa prática, a pesquisa investigou ferenciação simbólica e social.
também os tipos de conteúdo criados e posta- De qualquer modo, de acordo com os resul-
dos na rede. O formato mais citado pelos entre- tados da TIC Domicílios, as motivações para a
vistados foi o de imagens, postadas na Internet publicação de conteúdos próprios pareceram
por um quarto deles (24%) nos três meses an- destinadas mais às redes de sociabilidade pri-
teriores à pesquisa. Isso converge tanto com vada dos indivíduos e à criação de vínculos a
o amplo uso das redes sociais, já mencionado, partir de interesses comuns do que à ampla cir-
como com a disseminação dos dispositivos mó- culação desses conteúdos e a obtenção de re-
veis (a atividade de tirar fotos, vale dizer, é a muneração a partir deles. Reforçando essa per-
segunda mais citada entre os indivíduos que cepção, apenas 2% dos indivíduos criaram e
utilizaram telefone celular10). Em contrapartida, postaram conteúdos próprios na Internet rece-
postar textos próprios na Internet, ação mais bendo em troca algum tipo de pagamento. Não
complexa por envolver a escrita, foi mencio- obstante, no contexto das redes sociais e da so-
nada por 13% dos entrevistados, enquanto 11% ciabilidade por plataformas (Van Djick, 2013),
postaram vídeos e 4% postaram músicas de sua há que se considerar que a geração de valor
autoria11. não corresponde unicamente à remuneração
Vale destacar que essas publicações, quando dos produtores:
ocorreram, tiveram caráter predominante-
mente pessoal, mais do que profissional: as [...] na atualidade, constatamos uma tensão
motivações mais citadas para a postagem de entre o desejo do comum com que operam
conteúdos próprios na Internet estiveram re- os usuários e a tendência das empresas
lacionadas, geralmente, a objetivos como di- em monetizar e proprietarizar qualquer
vulgar fatos ou situações cotidianas (17%), dar ação. O combustível da economia da
opiniões sobre temas de interesse (14%) ou se internet é a própria ação dos usuários, que
aproximar de pessoas com interesses comuns na maioria dos casos nem percebem que
(13%), enquanto foram menos frequentes as fi- fornecem esse valor. (Yúdice, 2016, p. 95)
nalidades profissionais ou que apontam para
ganhos monetários, como divulgar um traba-
lho (9%) ou vender produtos ou serviços (5%). Assim, os conteúdos gerados pelos usuários
O propósito de divulgar um conteúdo são um elemento chave para o funcionamento
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de tais plataformas e seus modelos de negó- são maiores para os que combinam diferentes
cio, baseados na economia da atenção e no uso tipos de dispositivos e têm acesso à conexão
dos dados. Cientes ou não disso, uma vez mais banda larga e Wi-Fi.
são estes fatores que interligam as práticas dos Além das questões de infraestrutura, o apro-
usuários à economia política da Internet e que veitamento da rede também se dá de maneira
devem ser pautados no debate crítico sobre a bastante desigual entre aqueles que estão co-
participação cultural no ambiente digital. nectados, seja por conta das habilidades para
uso das TIC, seja por sua apropriação ativa, crí-
tica e reflexiva. Em termos da participação cul-
7. Considerações finais tural, se adicionam ainda distinções clássicas
no que se refere às práticas culturais da popu-
lação. Os dados da pesquisa demonstram que
Buscando compreender o papel das tecno- as variáveis de escolaridade e classe seguem
logias de informação e comunicação (TICs) em sendo marcadores sociais relevantes na aná-
sua relação com o tema da participação cul- lise das atividades culturais on-line. A faixa etá-
tural, o artigo tratou das práticas culturais de ria dos indivíduos, já identificada nas ativida-
usuários de Internet brasileiros tendo por base des presenciais, tem seu peso ampliado, dado o
a pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor maior uso da rede pelos mais jovens. O único
da Internet no Brasil, 2018). Embora seja notá- aspecto que parece relativizado nesse universo
vel a expansão do acesso à rede no país e a am- é o da localização domiciliar, embora as bar-
pliação das possibilidades de fruição e produ- reiras existentes no próprio acesso à Internet
ção cultural no contexto digital, os resultados ainda limitem tal relativização.
revelam desigualdades bastante relevantes no De qualquer modo, observa-se a reprodução
aproveitamento desses potenciais. das desigualdades existentes na sociedade no
As evidências recolhidas pela pesquisa TIC universo digital, não só como reflexo dos hábi-
Domicílios permitem identificar o perfil da- tos culturais de maneira geral, como também
queles que mais se beneficiam da rede como pelas restrições de acesso à rede. Ainda que es-
mediadora das práticas culturais, bem como a teja circunscrito à realidade brasileira, as ten-
influência da infraestrutura de conexão e das dências apontadas pelo estudo encontram res-
variáveis sociodemográficas sobre as atividades paldo também em levantamentos já realizados
culturais realizadas na Internet. em outros países, sobretudo no contexto latino-
No que tange à barreira inicial de acesso, a -americano (Sistema de Información Cultural
ampliação do número de usuários de Internet de la Argentina, 2018; Consejo Nacional de la
se deu com a manutenção de desigualdades Cultura y las Artes, 2018). Assim, é esperado
geográficas e socioeconômicas, com maior al- que a análise do cenário brasileiro contribua
cance da rede em determinadas regiões do país, com a reflexão acerca das transformações gera-
áreas urbanas e dentre segmentos de maior das pela expansão da Internet nas práticas cul-
renda e escolaridade. As disparidades também turais de modo mais amplo.
têm marcado a expansão desse acesso em ter- Contudo, configurando-se a TIC Domicílios
mos dos dispositivos utilizados e formas de co- como um estudo sobre o acesso e uso da
nexão disponíveis aos usuários: ainda que a in- Internet e tendo-se inserido, a partir disso, a
clusão digital venha se dando sobretudo pelo abordagem de atividades que dialogam com o
uso exclusivo de telefone celular e por cone- tema da participação cultural, a pesquisa não
xões móveis, as oportunidades de uso da rede permite inferir sobre os efeitos das práticas
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culturais on-line sobre as práticas off-line, nem emissão descentralizada de mensagens e a cria-
sobre a interconexão entre ambas. Ainda assim, ção de outros repertórios, narrativas, imaginá-
é possível identificar que os grupos que mais rios e representações, dando lugar e visibili-
acessam a rede e realizam tais práticas na dade a práticas culturais autônomas de sujeitos
Internet são os mesmos que mais frequentam sociais não necessariamente inseridos na dinâ-
atividades culturais presenciais – incluindo os mica do mercado e da indústria cultural (Costa,
mais jovens, escolarizados e que se encontram 2017). Por outro lado, permitiu também a dis-
no topo da pirâmide socioeconômica (Leiva & seminação da desinformação, da discriminação
Meirelles, 2019). Outros estudos apontam ainda e dos discursos de ódio, trazendo novos desa-
que ambas as práticas se reforçam mutuamente fios para a regulação e moderação de conteú-
e que a Internet encoraja a frequência a insti- dos on-line.
tuições e eventos culturais, seja pelo estímulo Há que se acrescentar a essa difícil equa-
à formação do gosto, seja pela divulgação dos ção o fato de que a capacidade de dissemina-
mesmos (National Endowment for the Arts, ção desses conteúdos é também bastante de-
2015). sigual. Além da concentração da atenção em
A TIC Domicílios traz, portanto, elemen- determinadas plataformas, o alcance dos con-
tos para compreensão do papel da Internet na teúdos produzidos pelos usuários não é com-
promoção do direito à cultura, tanto no que parável ao dos grandes conglomerados atuantes
se refere ao acesso a bens culturais quanto à na produção e distribuição de conteúdos on-
produção de conteúdos on-line. A ampliação da -line. A estrutura difusa da rede e o princípio da
fruição cultural pela Internet, sobretudo nos neutralidade não garantem a descentralização e
campos do audiovisual e da música, coloca as a diversidade de conteúdos e expressões cultu-
atividades culturais multimídia dentre as mais rais no ambiente digital.
realizadas pelos usuários da rede no Brasil. Ao A Internet conforma-se, assim, como um
mesmo tempo em que apresenta maior di- terreno em disputa. O acesso desigual à cone-
versificação de conteúdos frente às mídias de xão e aos dispositivos não corresponde à igual
massa e à programação cultural local, a con- individualização do consumo e à difusão da
centração do consumo em grandes plataformas multiplicidade de vozes em condições de equi-
de streaming traz novas questões para o debate dade. Além disso, as práticas dos usuários inse-
em torno da diversidade cultural na Internet rem-se dentro de uma estrutura de conforma-
(Lima, 2018). Os acervos de conteúdos dispo- ção da rede em que predomina a lógica privada
nibilizados nessas plataformas e a incidência de grandes corporações. Quanto mais consu-
dos algoritmos na definição do que é acessado mimos, compartilhamos e postamos conteúdos,
pelos usuários aponta para novas formas de le- mais geramos dados para uso comercial e polí-
gitimação e curadoria na era digital, baseadas tico e, em última instância, para modulação de
na personalização da experiência a partir dos nossos próprios comportamentos.
dados de consumo prévio e de mecanismos de Em termos da participação cultural, esse de-
inteligência artificial. bate suscita novas perguntas acerca da forma
Com relação à produção e postagem de con- como as plataformas influenciam no reper-
teúdos próprios na rede, apesar de menos tório de conteúdos que são acessados pelos
comum do que o acesso e o compartilhamento seus usuários, seja por elementos econômicos
de conteúdos, os dados apontam ser essa uma – dadas as estratégias de monetização e a ló-
prática cada vez mais difundida entre os usuá- gica publicitária inerente ao modelo de con-
rios de Internet. Por um lado, isso permitiu a teúdo gratuito –, seja por elementos técnicos
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dos mecanismos de sugestão de conteúdo e dos


algoritmos baseados em machine learning. Para
essas perguntas, porém, se impõe a necessidade
de elaborar novos estudos de diferentes pers-
pectivas metodológicas que possibilitem enten-
der como essa influência se dá, ou em que me-
dida ela conforma a capacidade de escolha dos
usuários.
Assim, cabe ressaltar que a pesquisa quanti-
tativa oferece contribuições acerca da dimen-
são que comportamentos e tendências têm na
população, e como marcadores sociais se rela-
cionam a estes. Essa contribuição, por sua vez,
aponta para diversas outras questões importan-
tes que não são passíveis de serem atendidas
dentro desse mesmo paradigma.
De qualquer modo, a importância de se com-
preender o próprio funcionamento das tecno-
logias e, em particular, da Internet, torna-se
elemento fundamental para uma apropriação
consciente, cidadã e participativa por parte de
seus usuários, seja no acesso e na produção de
conteúdos, seja no desenvolvimento da própria
tecnologia. A contribuição das políticas públi-
cas nesse sentido, sobretudo no âmbito da edu-
cação e da cultura, inclui tanto a perspectiva da
formação de repertório para a fruição cultural
e a promoção da diversidade de conteúdos on-
-line quanto a expansão e melhoria do acesso à
banda larga no país.
Em conformidade com o Decálogo de
Princípios para a Governança e Uso da Internet
no Brasil (Comitê Gestor da Internet no Brasil,
2009), há que se caminhar na construção de
uma Internet que busque o acesso universal, o
respeito à privacidade, a promoção da diversi-
dade e a expansão da liberdade de expressão,
alinhando as demandas por inclusão digital à
participação e à cidadania cultural.
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Recebido em 10/07/2019
Aceito em 18/12/2019
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Notas finais período de referência é utilizado também nas


perguntas que caracterizam os usuários, como
as sobre dispositivos e frequência de acesso, e
para os usos que fazem da rede, a exemplo dos
1 No original: “The digital revolution is indicadores de atividades culturais que serão
pouring a variety of new cultural goods and descritos adiante.
services onto the market, enabling a wide new
range of consumption and cultural behaviours, 4 No original: “For an ever-growing
“exposing” large masses of people in their proportion of the population, a consistent
everyday life to cultural products in a very amount of cultural participation happens in
pervasive way, through the Internet and mass the Internet itself, not just via the Internet.
media (...). This combines the roles of user and Such new conditions call for a revised frame-
producer – defined by the hybrid neologism work for measuring participation, not limi-
prosumers – merging cultural goods and gen- ted to measuring how many people access the
res, bypassing the apparent contradiction of Internet or use social networks but able to un-
cultural participation, being both active and derstand how the Internet is used and which
passive, and attempting to make some sense of activities are carried out in the virtual space.”
it all. All these practices are increasing the vo- (Unesco, 2009, p. 26)
lume and speed of exchange, letting people in-
teract with cultural expressions and products 5 Disponível em https://cetic.br/tics/domici-
– texts, picture, video, music, etc. – influen- lios/2017/individuos/C6/. Acesso em 22 de novem-
cing value systems and having a deep cultu- bro de 2019.
ral impact. The speed with which these new
phenomena – participation in social networks 6 Disponível em https://cetic.br/tics/domici-
and exposure to digital and cultural content – lios/2017/individuos/C8/. Acesso em 22 de novem-
develop is swelling the ranks of a taxonomy bro de 2019.
which is very difficult to classify, let alone
measure, evaluate and compare.” (UNESCO, 7 Para apresentação dos indicadores do
2009, p. 11). módulo de atividades culturais, adotou-se
como base para o cálculo dos percentuais o
2 O conceito de classe é baseado no total da população (e não o total de usuários
Critério de Classificação Econômica Brasil de Internet), tendo em vista a reflexão mais
(CCEB), conforme definido pela Associação ampla sobre as práticas culturais da população
Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep). A e a possibilidade de comparação com outros
entidade utiliza para tal classificação a posse de estudos nessa área. Os indicadores existentes
alguns itens duráveis de consumo doméstico, anteriormente e apresentados de acordo com a
mais o grau de instrução do chefe do domicílio série histórica da pesquisa seguem calculados
declarado. pela base de usuários de Internet.

3 Conforme a definição adotada interna- 8 Mesmo com relação à origem nacional


cionalmente, baseada no manual da UIT (2014), e estrangeira, as entrevistas cognitivas realiza-
usuário de Internet é todo indivíduo que afirma das com respondentes da pesquisa para a for-
ter utilizado a Internet ao menos uma vez nos 3 mulação do questionário sugeriram que crian-
meses que antecedem a entrevista. Esse mesmo ças e pessoas de baixa escolaridade podem ter
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maior dificuldade em diferenciar conteúdos


nacionais de conteúdos estrangeiros, o que adi-
ciona uma limitação à interpretação desse indi-
cador, sobretudo para o caso de filmes e séries.

9 Nesse ponto, é importante destacar que


o indicador sobre a origem das músicas, filmes
e séries não buscou identificar a preferência
dos indivíduos nem a quantidade dos conteú-
dos acessados de cada tipo. Dado que os en-
trevistados poderiam declarar ter consumido
conteúdos de ambas as origens nos três meses
anteriores à pesquisa, essa não pode ser con-
siderada uma medida de participação de mer-
cado de conteúdos nacionais e estrangeiros no
país.

10 Disponível em https://cetic.br/tics/domici-
lios/2017/individuos/J4/. Acesso em 22 de novem-
bro de 2019.

11 No caso das músicas, ainda que elas


sejam o tipo de conteúdo de origem nacional
mais consumido pela população, também são,
por outro lado, o tipo menos criado e dissemi-
nado pelos usuários na Internet, o que indica
um acesso mais restrito à produção e revela o
peso da indústria frente às práticas amadoras.

Recebido em 10/07/2019
Aceito em 18/12/2019
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ARTIGO

Tércio Sampaio Ferraz


Júnior e Sigilo de dados:
o direito à privacidade
e os limites à função
fiscalizadora do Estado:
o que permanece e o que
deve ser reconsiderado

Rafael Mafei Rabelo Queiroz Paula Pedigoni Ponce


Rafael Mafei Rabelo Queiroz, livre-docente Paula Pedigoni Ponce, bacharela em Direito e
em Direito e professor do Departamento de doutoranda na Faculdade de Direito da USP.
Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade Email: paula.ponce@usp.br.
de Direito da USP. E-mail: rmqueiroz@usp.br.
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE

Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Sigilo de dados:


o direito à privacidade e os limites à função
fiscalizadora do Estado: o que permanece e o
que deve ser reconsiderado

Palavras-chave Resumo
privacidade Em 1992, Tércio Sampaio Ferraz Júnior es-
sigilo creveu um parecer que foi publicado, no ano
dados pessoais seguinte, sob o título de “Sigilo de dados: o
Tércio Sampaio Ferraz Jr direito à privacidade e os limites à função fis-
Supremo Tribunal Federal calizadora do Estado”. Em sucessivos julga-
mentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) in-
corporou parcialmente o argumento do texto,
erigindo com base nele sua doutrina de pro-
teção da privacidade relativa a dados em trân-
sito (telecomunicações) ou armazenados (sigilo
bancário). Passados quase 30 anos da publica-
ção do texto, e diante dos avanços tecnológi-
cos do período, este artigo procura avaliar o
que permanece e o que está superado no texto
original de Ferraz Júnior. Para tanto, serão
apresentados: (i) a estrutura e o argumento do
texto; (ii) uma reconstrução histórica do con-
texto em que o texto foi escrito, a partir de
declarações de Ferraz Júnior e reportagens jor-
nalísticas da época; (iii) a maneira como os ar-
gumentos de Ferraz Júnior foram incorporados
pelo STF; (iv) os pontos da leitura de 1993 que
ainda se mostram fundamentais, bem como
alguns que devem ser superados. O STF tem
ações em curso nos quais terá de revisitar o
tema, e a iminente vigência da Lei Geral de
Proteção de Dados seguramente levará o tribu-
nal a ter de renovar suas manifestações sobre
o direito à proteção de dados. A conclusão do
artigo é que há importantes considerações do
artigo que permanecem atuais, enquanto ou-
tros pontos merecem novas reflexões.
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PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE

Tércio Sampaio Ferraz Júnior


and Data secrecy: the right to
privacy and the limits of the State
control: what remains and what
ought to be reconsidered

Keywords Abstract
brazil In 1992, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a leading
privacy Brazilian legal philosopher, published the essay
secrecy “Sigilo de dados: o direito à privacidade e os
personal data limites à função fiscalizadora do Estado”. The
Tércio Sampaio Feraz Júnior essay orients the Brazilian Supreme Federal
Court (STF) caselaw on data secrecy and pri-
vacy, stating that the constitutional provision
on data secrecy only protects data in transit –
leaving stored data unguarded. Almost thirty
years after its first issue and, given the many
techno and sociological changes occurred in
the period, this essay aims at evaluating which
aspects of the essay stand and which do not. To
do so, the article should present: (i) the struc-
ture and argument of Ferraz Júnior’s text; (ii)
a historical reconstruction of the context in
which the text was written; (iii) how Ferraz
Júnior’s arguments were assimilated by the STF;
(iv) parts of the 1993 article that are still funda-
mental, as well as some that must be overcome.
The STF is currently analysing cases in which
it should revisit its caselaw on data secrecy
and privacy, and the imminent General Data
Protection Law deem it likely that the Court
changes its position. We conclude the essay by
stating that there are aspects of the 1993 article
still relevant nowadays, whilst some others are
in need of further reflexion.
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1. Introdução armazenados em celulares sem autorização ju-


dicial, assim como as disputas judiciais que se-
guramente ocorrerão a partir do início da vi-
A Constituição Federal de 1988 introdu- gência da lei brasileira de proteção de dados
ziu, no artigo 5º, inciso XII, a inviolabilidade pessoais (Lei 13.709/2018).
do sigilo de dados como direito fundamen- Dadas as grandes diferenças tecnológicas
tal. Trata-se de um dos modos de assegurar o existentes entre a época de publicação origi-
direito à privacidade, cujo conteúdo é preen- nal do artigo e o tempo presente, notadamente
chido por disposições encontradas em outros no que se refere ao fluxo, à acessibilidade, ao
locais da mesma Constituição (v.g., incisos X e conteúdo, às técnicas de coleta e às facilida-
XI do mesmo artigo), assim como na legislação des de armazenamento e tratamento de dados,
infraconstitucional. o presente artigo objetiva avaliar a atualidade
Em 1993, Tércio Sampaio Ferraz Júnior pu- e pertinência dos argumentos desenvolvidos
blicou um artigo intitulado “Sigilo de dados: no clássico texto de Ferraz Júnior. A motiva-
o direito à privacidade e os limites à função ção para esta análise vem da hipótese de que as
fiscalizadora do Estado” (doravante, “Sigilo de mudanças nesses pressupostos factuais podem
dados”). Tal artigo serviu de principal funda- ter impacto sobre a reflexão jurídica acerca do
mentação doutrinária para a interpretação do direito à privacidade, em especial na vertente
Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do con- da inviolabilidade de dados armazenados.
teúdo e dos limites do direito subjetivo à invio- O artigo será dividido em quatro seções. Na
labilidade da comunicação sigilosa e à proteção primeira, é explicitada, em detalhes, a estru-
de dados pessoais. Em síntese, o STF interpre- tura e o argumento do texto de Ferraz Júnior.
tou que a inviolabilidade do sigilo de dados re- Na segunda parte, detalha-se o contexto em
fere-se apenas aos dados em trânsito–o fluxo que o texto foi escrito. Para tanto, são recupe-
de dados do emissor ao receptor da mensagem– radas declarações do autor e material de mídia
durante os instantes da comunicação telefô- da época. Essa análise é útil para explicitar os
nica e telemática propriamente dita. Ela não tipos de conflitos específicos que Ferraz Júnior
se aplicaria aos dados estáticos, já armazenados, mirava àquela altura, o que ajuda a sustentar
ainda que eles tivessem sido objeto de comu- o argumento de que eles são muito diferentes
nicação anterior.1 Quase trinta anos após sua dos desafios jurídicos atuais quanto à matéria.
publicação, por sua reiterada acolhida pelo STF, Na terceira seção, descreve-se a forma como os
o texto de Ferraz Júnior é ainda uma impor- argumentos de Ferraz Júnior foram incorpora-
tante referência para o debate constitucional dos pela jurisprudência do STF. Argumenta-se
brasileiro sobre privacidade, em geral, e prote- que o tribunal fez uma incorporação apenas
ção de dados pessoais, especificamente. Por um parcial do artigo, implicando proteção insufi-
dever de consistência em relação a suas deci- ciente ao sigilo de dados armazenados. Por fim,
sões passadas, é esperado que o STF retome a a quarta seção identifica quais pontos do texto
doutrina explicitada naquele artigo para se de- de Ferraz Júnior são ainda relevantes para uma
sincumbir de desafios jurisdicionais análogos doutrina efetiva da proteção da privacidade no
que se desenham à frente. São exemplos os de- tocante ao sigilo de dados armazenados–e quais
bates sobre a constitucionalidade da criptogra- outros, em contrapartida, carecem de comple-
fia forte, celebrizada nos casos de bloqueios ao mentação, ou mesmo de superação.2
aplicativo WhatsApp, disputas sobre a validade
de provas obtidas por meio de acesso a dados
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2. O texto demarcação permite ao indivíduo se inserir na


vida social e pública de sua comunidade, mas
sem perder sua individualidade ou o controle
“Sigilo de dados” tem como objetivo com- daquilo que o representa.
preender o conteúdo da previsão constitucio- Ferraz Júnior fala em “direitos à privacidade”
nal acerca da inviolabilidade do sigilo de dados, (1993, p. 442), no plural, os quais incluem inti-
bem como os limites que esse conteúdo impõe midade e vida privada, bem como os direitos ao
ao exercício de fiscalizações estatais. O artigo nome, à imagem, à reputação – conforme posi-
parte de uma distinção entre, de um lado, o di- tivação pelo inciso X do artigo 5º. Todos esses,
reito fundamental à privacidade e, de outro, a por sua vez, são regidos pelo princípio da ex-
garantia da inviolabilidade do sigilo de dados: clusividade, conceito de Hannah Arendt traba-
embora correlatos, um e outro não se confun- lhado por Celso Lafer (1988), que tem como ob-
dem (Ferraz Júnior, 1993, p. 439). jetivo “assegurar ao indivíduo a sua identidade
O argumento de Ferraz Júnior constrói-se diante dos riscos proporcionados pela nivela-
em três etapas: (i) considerações sobre o direito dora pressão social e pela incontrastável im-
fundamental à privacidade; (ii) considerações positividade do poder político” (Ferraz Júnior,
sobre a inviolabilidade do sigilo de dados, des- 1993, p. 441). Contudo, o grau de exclusividade
tacando como ele se aproxima, e como se dis- é variável entre cada um desses direitos. Por
tancia, do direito à privacidade; por fim, (iii) exemplo: nome, imagem e honra possuem um
avaliação sobre os limites da função fiscaliza- sentido comunicacional, de modo que exigem
dora do Estado frente aos direitos analisados. alguma publicidade, ostentando, consequen-
temente, um grau menor de exclusividade.
Afinal, são feitos para serem conhecidos publi-
(i) Considerações sobre camente. Contudo, não podem se transformar
o direito fundamental em objeto de apropriação privada (i.e., servir
à privacidade. de objeto de trocas de mercado) sem o consen-
timento de seu titular (Ferraz Júnior, 1993, p.
Para Ferraz Júnior, o conteúdo do direito à 442). Daí porque seguem privados, ainda que
privacidade é “a faculdade de constranger os feitos para ganhar publicidade.
outros ao respeito e de resistir à violação do
que lhe é próprio, isto é, das situações vitais
que, por dizerem a ele só respeito, deseja man- (ii) Considerações
ter para si, ao abrigo de sua única e discricio- sobre a inviolabilidade
nária decisão”. O objeto desse direito, por sua do sigilo de dados e
vez, é “a integridade moral do indivíduo, aquilo sua comparação com
que faz de cada um o que é e, desta forma, lhe o direito à privacidade.
permite inserir-se na vida social e na vida pú-
blica.” (Ferraz Júnior, 1993, p. 443). Ferraz Júnior então passa a tratar do si-
Ferraz Júnior realiza tais considerações a par- gilo propriamente dito. O sigilo não é, para
tir do pano de fundo entre a distinção de pú- ele, “o bem protegido”, pois “não é o objeto
blico e privado, por ele atribuída a Lafer (1988). do direito fundamental. Diz respeito à facul-
Nessa chave de leitura, a privacidade repre- dade de agir (manter sigilo, resistir ao devassa-
sentaria a demarcação da individualidade de mento), conteúdo estrutural do direito [à pri-
um sujeito em face dos outros e do Estado. Tal vacidade]” (Ferraz Júnior, 1993, p. 443). Não se
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trata, contudo, de uma faculdade exclusiva do criminal, por exemplo), nas hipóteses em que
indivíduo e a serviço do direito à privacidade: o teor da comunicação não puder ser obtido
há sigilos que protegem interesses do Estado– de outra forma. Assim, conclui o autor que a
melhor dizendo: da comunidade, como são os ressalva do artigo 5º, inciso XII, que prevê a
casos de sigilos impostos em nome da segu- interceptação de comunicações por ordem ju-
rança nacional. O sigilo é, portanto, instrumen- dicial, seja aceita somente nas comunicações
tal, não representando um fim em si mesmo. telefônicas, nas quais não restam vestígios físi-
Não há um direito fundamental ao sigilo, e sim cos do conteúdo comunicado, por sua caracte-
circunstâncias nas quais o sigilo é instrumental rística de “instantaneidade” (Ferraz Júnior, 1993,
à proteção de um direito fundamental (à priva- p. 447).5 Houve aqui uma ponderação do cons-
cidade). Logo, e sempre segundo Ferraz Júnior, tituinte quanto à amplitude do sigilo, o qual
enquanto liberdades fundamentais–como é o sofreu restrição no próprio texto constitucio-
caso da privacidade–só encontram limites em nal para permitir, em hipóteses que acabaram
outras liberdades fundamentais, o sigilo e sua definidas em lei posterior,6 a perenização do
inviolabilidade são marcados pela instrumenta- conteúdo dessas comunicações instantâneas e
lidade (Ferraz Júnior, 1993, p. 445). não escritas. Por exemplo, diante de uma co-
De sua leitura do inciso XII do art. 5º, Ferraz municação por carta, é possível requerer uma
Júnior entende que o sigilo ali referido diz res- busca e apreensão para ter acesso à carta guar-
peito estritamente à comunicação de dados, e dada (Ferraz Júnior, 1993, p. 447).
não aos dados em si (1993, p. 446).3 A partir
das simetrias identificadas no texto constitu-
cional, o sigilo de dados seria próximo ao si- (iii) Limites da função
gilo de correspondência. Recorrendo a Pontes fiscalizadora do Estado.
de Miranda (2004, p. 273), o autor conceitua
a privacidade, em conjunto com a inviolabi- Por fim, Ferraz Júnior passa a enfrentar um
lidade de domicílio e correspondência, como problema prático: quais seriam os limites à
uma liberdade de “negação” (1993, p. 443). Ela função fiscalizadora do Estado em casos de re-
seria, portanto, uma imunidade4 contra o pre- querimento de acesso a movimentações bancá-
tendido poder de devassa ou intromissão inves- rias? Nessas situações, não estaríamos diante
tigativa em certas esferas das vidas privadas de da interceptação de um ato comunicativo entre
cidadãos. O sigilo, e sua manutenção, efetiva- banco e correntistas, e sim de acesso a dados
riam esse direito, mas sem se confundir com o armazenados nos bancos de dados da institui-
conteúdo daquilo que protegem. Assim, Ferraz ção financeira. Não sendo comunicação, pros-
Júnior conclui que o objeto da inviolabilidade segue o texto, sua proteção não poderia se dar
do sigilo não são os dados em si, e sim a li- pelo inciso XII do artigo 5º, que diz respeito
berdade de negar acesso ao conteúdo por ele apenas ao sigilo de comunicações. Contudo,
abarcado. isso não significa que restariam desprotegidos:
A interceptação de uma mensagem – isto a tutela jurídica de dados pessoais armazena-
é, a invasão do fluxo entre emissor e receptor, dos fundamentar-se-ia no inciso X do mesmo
visando a acessar o conteúdo comunicacional artigo 5º, por sua inegável pertinência à priva-
que é transmitido – representa violação à pro- cidade dos indivíduos (Ferraz Júnior, 1993, p.
teção conferida pelo sigilo. Por isso ela só deve 448). Incidiria, neste caso, o princípio da exclu-
ser admitida, ainda que com ordem judicial sividade, com fundamento no direito à privaci-
e para fins de interesse público (investigação dade, genericamente, e não do direito ao sigilo
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das comunicações, especificamente. naquela época já́ vigente, especialmente


No caso de dados armazenados, portanto, o o inciso XII, que garante a privacidade
intérprete deve se questionar, em face das cir- e o sigilo” (Ferraz Júnior, 2018, p. 20).
cunstâncias concretas, em que medida a de-
vassa pretendida sobre os dados é problemá-
tica para a integridade moral do indivíduo. Isso Ferraz Júnior foi Procurador-Geral da
variaria, por sua vez, conforme a sensibilidade Fazenda Nacional entre 1991 e 1993.8 Na época,
do dado. Dados que, embora individuais (i.e., o Governo Collor debatia medidas de combate
pertinentes a um indivíduo), foram feitos para a fraudes tributárias e normas de sigilo bancá-
ser públicos, como nome e número de docu- rio eram vistas como um entrave à fiscalização
mento, são menos sensíveis; já aqueles que são (Governo quer o fim do sigilo bancário, para ju-
em princípio feitos para permanecer reclusos ristas, o plano é inconstitucional, 1991). O cha-
do conhecimento público (trocas de cartas pri- mado “emendão” do Governo Collor, proposta
vadas, fotografias íntimas) têm maior sensibili- de emenda constitucional que reunia diversas
dade, dando maior premência ao princípio da reformas constitucionais, chegou a propor mu-
exclusividade. Nessa moldura, a intimidade re- danças nas regras de sigilo para fazer frente a
presentaria o mais exclusivo dos direitos re- essa percebida dificuldade (Projeto de Emenda
lacionados à privacidade, uma vez que repre- Constitucional n. 51, 1991; Governo acena com
senta “um âmbito de exclusivo que alguém choque se ajuste fracassar, 1991). Nesse con-
reserva para si, sem nenhuma repercussão so- texto, foi editada a Lei Complementar nº 70/91,
cial” (Ferraz Júnior, 1993, p. 442). que permitia à Receita Federal demandar de
instituições financeiras no geral, incluindo
empresas administradoras de cartão de cré-
3. O contexto dito, informações cadastrais sobre os usuários
(nome, afiliação endereço e número do CPF).
A operacionalização dessas demandas preci-
Em 2017, por ocasião dos 25 anos do seu sava ser delineada em regulamento específico.
clássico texto, Tércio Sampaio Ferraz Júnior Reportagem jornalística de fevereiro de 1992,
ministrou uma palestra7 em que relembrou o tratando justamente do regulamento dese-
contexto específico de sua produção. Disse ele: nhando pelo Ministério da Economia, Fazenda
e Planejamento apontava que a Receita Federal
“Esse trabalho surgiu de uma coisa muito poderia utilizar “cruzamentos para identificar
factual em 1991. Eu, naquela época, era números falsos de CPF e CGC, movimentação
procurador geral da Fazenda e enfrentava de caixa 2 e sinais de sonegação de impostos”
um problema de revelação do sigilo, (Nastari, 1992a).
de nomes e de dados identificadores O Ministério da Economia, Fazenda e
de pessoas que portassem cartões de Planejamento objetivava emitir duas porta-
crédito. A primeira vez que enfrentei rias regulamentares: uma destinada às insti-
essa questão, me lembro de ter feito tuições financeiras e outra às administradoras
uma reunião com grandes empresas de de cartão de crédito. Segundo declarações de
bandeiras de cartões de credito, porque Luís Fernando Wellisch, Secretário da Fazenda
elas se recusavam a abrir as suas listas de Nacional à época, as instituições financeiras
nomes. [...] Por conta disso eu fui levado não seriam obrigadas a fornecer dados de mo-
a examinar o art. 5º da Constituição, vimentação das contas dos clientes, pois elas
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estariam protegidas pelo sigilo bancário; mas dados seriam transmitidos entre um agente
tal restrição não valeria para empresas de car- contratualmente obrigado a manter sigilo (as
tão de crédito, por não serem “instituições fi- operadoras de cartão de crédito) para outro
nanceiras” no sentido estrito do termo (Folha agente legalmente obrigado a manter sigilo (a
de São Paulo, 1992). Administração Pública tributária). Neste hori-
As administradoras de cartão de crédito, por zonte estreito, a tese do texto foi levada ao STF,
sua vez, contestavam tal interpretação e defen- a partir de casos relativos à higidez do sigilo fi-
diam a inconstitucionalidade da medida. Por nanceiro de cidadãos em face da atividade fis-
meio da Associação Brasileira de Cartões de calizadora do Estado.
Crédito, prometiam recorrer ao Judiciário con-
tra eventual portaria que demandasse os extra-
tos de seus clientes (Folha de São Paulo, 1992). 4. A incorporação do
De fato, o art. 12 chegou a ser regulamentado texto pelo STF
pela Portaria n° 144, de 25 de fevereiro de 1992,
a qual estabelecia a possibilidade de requisição
de dados cadastrais de todas as instituições fi- Com o objetivo de compreender a repercus-
nanceiras, a não ser as administradoras de car- são, divulgação e “herança” do artigo de 1993,
tão de crédito (Portaria 144/1992, do Ministério buscou-se identificar e avaliar criticamente a
da Economia, Fazenda e Planejamento). forma como o STF o incorporou à sua juris-
O tema continuou a ser debatido entre as- prudência. Isto é, procurou-se mensurar qual
sociações do setor e o Secretário da Fazenda foi o efetivo papel do texto nas decisões esco-
Nacional, que temia contestação judicial das lhidas, em que medida a argumentação o uti-
medidas. Em maio de 1992 foi noticiado que, lizou como recurso e, por fim, se a tese asso-
no âmbito das negociações, Tércio Sampaio ciada a ele passou a integrar a ratio decidendi do
Ferraz Júnior, na figura de Procurador-Geral Tribunal.10
da Fazenda, enviou um parecer que fornecia
a base legal para a portaria. Com isso, havia a
expectativa de que a Procuradoria chegasse a 4.1. Casos em que
um acordo com as referidas empresas (Nastari, o argumento do
1992b). Ao que tudo indica, o acordo não se
concretizou e nenhuma outra portaria chegou texto foi invocado
a ser publicada sobre o tema.9
Como se vê, o texto era motivado por um A jurisprudência do STF acerca da prote-
problema bastante específico e circunstanciado: ção constitucional ao sigilo de dados, notada-
o direito de acesso, para um fim específico (fis- mente a tese que “para o STF, o sigilo garan-
calização tributária), a um tipo específico de tido pelo art. 5º, XII, da CF refere-se apenas
dado (movimentações de cartão de créditos), à comunicação de dados, e não aos dados em
que ficava em posse de um pequeno grupo de si mesmos” (Mendes & Branco, 2012, p. 421),
empresas atuantes em um setor acompanhado foi destacadamente construída em dois casos11:
de perto por reguladores estatais, as quais ti- o Mandado de Segurança nº 21.729/DF, e o
nham, com seus clientes (titulares dos car- Recurso Extraordinário 418.416/SC. Para com-
tões de crédito), relações contratuais estabele- preender de que modo o “Sigilo de dados” foi
cidas. Adicionalmente, vale destacar que, a se incorporado à jurisprudência da Corte, serão
permitir a política objetivada pelo governo, os apresentados brevemente os dois casos, com
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atenção ao peso de “Sigilo de dados” na posição PGR, da inviolabilidade do sigilo de comunica-


finalmente encampada do STF. ções, mas não dos dados armazenados, elabo-
(i) MS nº 21.729/DF: tratava-se de mandado rada com apoio no texto de Ferraz Júnior, sa-
de segurança impetrado pelo Banco do Brasil grou-se vencedora. Em dois votos vencedores,
contra ato do Procurador-Geral da República, dos Ministros Sepúlveda Pertence e Francisco
que demandava, por ofício, lista de nomes dos Rezek, o texto foi expressamente citado. A ratio
beneficiários de liberação de recursos públicos comum da maioria do Tribunal, entretanto, ex-
ao setor sucroalcooleiro, além de dados espe- traída dos votos dos Ministros Octavio Gallotti,
cíficos sobre existência de débitos e naturezas Sidney Sanches, Néri da Silveira, Moreira Alves
das operações que os originaram. A argumen- e Sepúlveda Pertence, fundamentou-se na apli-
tação do impetrante não chegava a mencionar cação do princípio da publicidade às operações
o artigo 5º, inciso XII, da Constituição, mas li- envolvendo recursos públicos. Tratava-se, afi-
mitava-se a insistir na necessidade de ordem nal, de um caso envolvendo financiamentos ru-
judicial para o acesso a tais informações, que rais concedidos pelo Banco do Brasil.
equivaleria a quebra de sigilo.12 Os votos vencidos, quais sejam, os Ministros
A autoridade coatora prestou informações, Marco Aurelio, Maurício Corrêa, Celso de
confirmando os fatos e alegando que havia Mello, Ilmar Galvão e Carlos Velosos, de forma
questionamentos quanto à autoridade do geral, argumentaram que o sigilo bancário
Ministério Público para requerer os dados em teria status constitucional em decorrência
questão. Alegaram suspeitar de violação tanto dos incisos X e XII do artigo 5º e que, por-
da Lei Complementar (LC) nº 75/1993, quanto tanto, sua quebra necessitaria de ordem judi-
do art. 129, inciso VI, da Constituição Federal. cial. Os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence
Em extenso parecer, o Vice Procurador Geral e Francisco Rezek14 foram os únicos a se con-
da República introduziu a discussão sobre o trapor a tal afirmação, recuperando o texto de
inciso XII, juntamente com trecho13 do artigo Ferraz Júnior e indicando que entendiam que
de Ferraz Júnior (Vice Procuradoria Geral da o sigilo de dados ali mencionado se referia tão
República, 1994). Foi a primeira aparição de somente ao sigilo da comunicação de dados e
“Sigilo de dados” nos autos do caso. O parecer que, consequentemente, não seria aplicável ao
da PGR argumentava que o sigilo bancário não sigilo bancário. É curioso notar que os votos
teria guarida constitucional, nem a partir de vencidos, embora não tenham invocado o texto
interpretação do artigo 5º, inciso X, nem a par- de Ferraz Júnior, poderiam ter igualmente se
tir do inciso XII. Nesse sentido, sem natureza valido dele para amparar seu argumento: afi-
constitucional, as exceções estabelecidas ao si- nal, “Sigilo de dados” é explícito em afirmar
gilo bancário seriam válidas enquanto motiva- que dados armazenados, embora não acober-
das pela salvaguarda de interesses constitucio- tados pelo sigilo do inc. XII do art. 5º, podem
nalmente protegidos – como seria o caso do art. ser protegidos pela regra geral da privacidade,
8º da LC 75, em sintonia com o art. 129, inciso quando fosse o caso.15 Mas não o fizeram.
VI da Constituição Federal. Segundo o parecer, (ii) RE nº 418.416-SC: tratava-se de Recurso
o inciso XII do art. 5º não protegia o sigilo ban- Extraordinário impetrado por Luciano Hang,
cário, porque blindaria, através do sigilo, ape- empresário proprietário da rede de lojas de de-
nas as comunicações de dados – e não os dados partamento Havan, contra decisão do TRF-4
em si, uma vez recebidos e armazenados. que confirmara sua condenação por crimes tri-
Por maioria de 6 a 5, o STF indeferiu o man- butários. O objetivo do RE era obter a anula-
dado de segurança. A tese encampada pela ção da condenação, que seria fundada em prova
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obtida por meio ilícito: argumentava-se que daquela–i.e., que estendesse o sigilo a dados
a decisão que autorizou a busca e apreensão armazenados – levaria a absurdos: dados de re-
também teria resultado em violação à proteção gistro (como uma anotação em papel) não se-
constitucional do sigilo de dados. Por mais que riam invioláveis em si, mas passariam a sê-lo
o mandado de busca e apreensão mencionasse se fossem armazenados em computadores. Para
a apreensão de equipamentos de informática, impedir a atuação fiscalizadora estatal, então,
a defesa argumentava que isso não implicava bastaria que o indivíduo movesse dados de ou-
possibilidade de decodificação dos registros ar- tros meios de armazenamento para o computa-
mazenados em computador apreendido (o que dor, garantindo-lhes o status de sigilosos.
efetivamente havia ocorrido).
A defesa de Hang destacava a decisão do
Plenário do STF na Ação Penal nº 307 (1994) 4.2. Incorporação
(Caso Collor). Na oportunidade, o tribunal seletiva
havia decidido que era ilícita a decodificação
dos registros de computador apreendidos na Como conclusão preliminar, temos que, a
sede de uma empresa. Contudo, havia uma di- despeito de o MS nº 21.729 por vezes ser indi-
ferença fundamental: no caso da AP no 307, ao cado como precedente, a tese sobre o sigilo de
contrário do que ocorrera no RE nº 418.416-SC, dados referir-se à comunicação de dados e não
tal apreensão fora feita sem mandado judicial. aos dados em si não compôs a ratio decidendi
A partir dos argumentos da defesa, sob pena do Tribunal naquela ocasião. Representou, en-
de contrariar decisão anterior do Plenário, a tretanto, um primeiro passo nesse sentido. O
Primeira Turma decidiu afetar o caso para jul- Ministro Sepúlveda Pertence, que já́ se mos-
gamento pelo Tribunal Pleno. trara convencido pela tese naquela oportuni-
Em 10 de maio de 2006, na sessão plenária dade, foi responsável por recuperá-la no RE nº
de julgamento, o Ministro Sepúlveda Pertence 418.416, na condição de relator. Nessa oportu-
(relator) destacou a existência de mandado ju- nidade, o tema foi abertamente discutido e re-
dicial específico no 2° caso. Quanto à alegação ferendado pelo Tribunal Pleno como um todo.
de violação ao sigilo de dados, afirmou que a Desse modo, foi a partir desse caso em que se
norma do inc. XII do art. 5º não se aplicava deu a efetiva incorporação da tese do texto à
àquela situação, pois não houve “quebra de si- jurisprudência do STF.
gilo de comunicações de dados (interceptação A incorporação de “Sigilo de dados” pelo
das comunicações), mas sim apreensão de base STF, contudo, foi seletiva.17 A obra só foi citada
física na qual se encontravam os dados, me- nos trechos em que se caracterizava a proteção
diante prévia e fundamentada decisão judi- constitucional do “sigilo de dados” presente no
cial” (RE n° 418.416-SC, 2006, pp. 1252-1253). artigo 5º, inciso XII–isto é, firmando o enten-
Quando retomou considerações que fizera no dimento de que esta proteção se volta à comu-
MS 21.729, Pertence invocou “Sigilo de dados” nicação de dados e não aos dados em si. Se essa
em tom elogioso: “trabalho preciso sobre o não chega a ser uma leitura equivocada do ar-
tema do d. Tércio Ferraz, do qual extraio essa tigo, pois a distinção entre dados em trânsito e
síntese magnífica, que não tenho dúvidas em dados armazenados de fato está nele, ela deixa
subscrever” (RE n° 418.416-SC, 2006, p. 1254). de fora, ao mesmo tempo, um ponto relevante
Os demais membros do Plenário acompa- do argumento completo do autor: para além
nharam o voto do Relator.16 O Ministro Cezar da distinção entre dados armazenados ou em
Peluso acrescentou que interpretação diversa trânsito comunicativo, Ferraz Júnior também
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afirmava que, embora a proteção constitucio- quem estivesse disposto a arcar com os cus-
nal do sigilo (inc. XII do art. 5º) não alcançasse tos econômicos e sociais de um litígio, a ge-
dados armazenados, o acesso a eles seria bali- ração atual de leis de proteção de dados busca
zado pela guarida constitucional da privacidade elevar o padrão coletivo dessa tutela. Esse ob-
(inc. X do mesmo artigo). Isto é, seria relevante jetivo é perseguido a partir de variadas estra-
avaliar em que medida o acesso aos dados ar- tégias. Doneda (2011, p. 98) destaca, entre ou-
mazenados no hard disk violaria a intimidade tras, o fortalecimento da posição do indivíduo
do indivíduo: mesmo que eles não pudessem frente às entidades que coletam e processam
ser chamados de “sigilosos”, nada impedia que seus dados, tornando seu controle mais efe-
fossem considerados, por exemplo, “íntimos”, e tivo; da decisão de consentimento individual,
contassem com proteção condizente a esse sta- limitando-a, por exemplo, no que diz respeito
tus. A despeito disso, considerações sobre inti- a dados pessoais sensíveis; criação de autorida-
midade e potencial violação ao art. 5º, inciso X des independentes responsáveis por garantir a
não integraram a análise do STF em qualquer observância das normas.
um desses casos. A recuperação de considera- Na LGPD, destacam-se princípios para o tra-
ções desse tipo mostra-se, hoje, mais necessária tamento dos dados pessoais, quais sejam (art.
do que nunca. A essa tarefa, dedica-se a seção 6º): (i) finalidade, ideia de que o tratamento
final do artigo. deve ser realizado apenas para propósitos le-
gítimos, específicos, explícitos e informados
ao titular; (ii) adequação, que determina que o
5. Privacidade e proteção tratamento seja compatível com as finalidades
de dados: desafios atuais informadas ao titular; (iii) necessidade, exigên-
cia de que o tratamento se limite ao mínimo
e caminhos da tutela necessário para a realização de suas finalida-
jurídica des. Com o objetivo de possibilitar ao titu-
lar o controle sobre seus dados pessoais e as
formas de tratamento destes, a lei estabelece
Em 1993, Ferraz Júnior já traçava paralelos ainda: (iv) livre acesso aos dados e às formas
entre a proteção do sigilo de dados e a inti- de tratamento; (v) direito dos titulares de ga-
midade do indivíduo. Em quase trinta anos, o rantir a qualidade de dados, atualizando-os ou
conceito de privacidade passou por importan- pedindo sua correção; e (vi) transparência com
tes alterações. A proteção de dados pessoais relação às práticas de tratamento utilizadas. A
se consolida como categoria decorrente dessa lei, pauta-se, ainda, pelos princípios da (vii) se-
evolução. gurança e (viii) prevenção, estimulando a ado-
Após desenvolvimentos germinais na disci- ção de medidas técnicas e administrativas para
plina legal do direito à proteção de dados pes- a proteção de dados pessoais. Por fim, a LGPD
soais,18 chegamos à atual geração legislativa (ix) veda qualquer tratamento para fins discri-
nesta matéria. Nela destacam-se o Regulamento minatórios ilícitos ou abusivos e (x) estabelece
Geral de Proteção de Dados Pessoais (RGPD)19 da que os agentes deverão adotar medidas aptas
União Europeia; e, localmente, a recém apro- a comprovar a observância e o cumprimento
vada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais das normas de proteção de dados pessoais, bem
(Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 ou LGPD). como a eficácia dessas medidas.
Se antes a proteção jurídica contra violações a Tais princípios buscam possibilitar o controle
dados pessoais estava disponível somente para do titular sobre seus dados pessoais e as formas
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de tratamento empregadas. Com a “ubiquidade a. O que


da tecnologia da informação” (Mendes, 2014, permanece?
pp. 78-79), usos de dados pessoais com poten-
cial danoso à intimidade e integridade moral do
indivíduo ganham espaço. Esses dados podem
ser obtidos por meio de práticas invasivas aos (i) A centralidade da
limites de uma privacidade classicamente con- dignidade humana
cebida (i.e., como um bloqueio), mas também como parâmetro
por uma garimpagem, cada vez mais barata e normativo que dá
acessível tecnologicamente, de rastros deixa- sentido ao direito
dos a partir do uso de redes sociais, páginas de à privacidade e
Internet e aplicativos para smartphones. Longe à proteção de
de olhares, há intensa mercância de dados pes- dados pessoais.
soais, às vezes mediante autorizações genéricas
e irrefletidas concedidas por seus titulares, que Em “Sigilo de dados”, como já apresentado,
servem para ranqueamentos, perfilhamentos, Ferraz Júnior é explícito em apontar a integri-
classificações de perfil, tendo, por isso, impacto dade moral do indivíduo como uma variável
direto sobre as vidas de indivíduos. A elas so- relevante para o equacionamento de conflitos
mam-se invasões, furtos de dados, práticas de jurídicos que tensionam o direito à privacidade
vigilância e monitoramento, bem como estraté- e à proteção de dados. Trata-se, no limite, de
gias publicitárias e comerciais abusivas. avaliação relacionada ao princípio da dignidade
Todas essas mudanças, amplamente reconhe- humana. A privacidade, com os instrumentos
cidas por filósofos e juristas do presente, e con- jurídicos à sua disposição–dentre os quais o si-
firmadas pela atual onda legislativa para a pro- gilo–serve para garantir aos cidadãos espaços
teção de dados pessoais, impõem a “Sigilo de de autonomia indispensáveis ao florescimento
dados” um desafio quanto a sua atualidade. Na humano individual. Sem esses espaços de au-
parte final deste artigo, apresenta-se o que nele tonomia, corre-se o risco de aniquilamento do
permanece atual, e o que se encontra carente indivíduo, que tenderá a sucumbir à pressão
de atualização, com vistas aos desafios jurídicos irresistível de um poder (“político”, na qualifi-
do presente. cação de Ferraz Júnior) nivelador e aniquilador
de personalidades e liberdades.
A ancoragem da discussão sobre sigilo de
dados e privacidade no princípio da dignidade
humana não era trivial àquela altura, razão pela
qual convém destacar este ponto do argumento
de Ferraz Júnior. A violação de sigilo privado é,
afinal, indolor e silenciosa; para a vasta maio-
ria dos cidadãos, ela é imperceptível, dado que
apenas uma fração pequena das pessoas devas-
sadas tende a experimentar problemas com as
autoridades. Por que haveria risco à dignidade
humana neste caso? Se a dignidade humana
tem a ver com o tratamento mínimo ao qual
fazemos jus por nosso status de humanidade,
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a investigação de dados–indolor e silenciosa– (ii) O reconhecimento


seria mesmo indigna? Não deveríamos guardar de que dados
esse rótulo para outras práticas notoriamente importam à privacidade
imorais, como a tortura investigativa, a prisão individual, e os limites
de familiares para forçar confissões, ou devas- que essa relação
sas domiciliares sem ordem judicial? Nessa impõe para a função
linha, não estaria a dignidade, ao contrário, a fiscalizadora do Estado.
recomendar justamente a devassa discreta de
dados, para nos poupar dos constrangimentos, Conforme apontado no item 4.2 (retro), o
incômodos e dores da vigilância e fiscalização STF fez uma incorporação parcial de “Sigilo
ostensiva, sensível e espalhafatosa aos olhos de de dados”. Se é verdade que o texto afirmava
todos? que apenas dados em trânsito eram protegi-
Ao relacionar dados pessoais à privacidade, dos pelo sigilo imposto pelo art. 5º, inc. XII,
e ao mesmo tempo reconhecer a importância da Constituição, é verdade também que Ferraz
desse valor para a dignidade humana, Ferraz Júnior afirmava que os dados armazenados
Júnior foi importante em desenhar a moldura caíam sob a proteção do inc. X do mesmo ar-
axiomática dentro da qual os debates sobre pro- tigo. Se não eram blindados por sigilo, conti-
teção e acesso a dados pessoais devem ser pen- nuavam, não obstante, protegidos pelo direito
sados. Ainda que indolor, silencioso e discreto, fundamental à privacidade, se fossem relevan-
o acesso a dados pessoais pode trazer graves tes à intimidade, vida privada, honra e ima-
implicações à privacidade, afetando, por conse- gem do cidadão. Diz o texto: “informações,
quência, a dignidade dos sujeitos. Nessa linha, em termos de privacy, constitutivas da integri-
“Sigilo de dados” reconhece que há uma dimen- dade moral da pessoa”; [...] “dados que a pes-
são das vidas privadas cujo simples acesso não soa guarda para si e que dão consistência à sua
autorizado por terceiros, por mais discreto de pessoalidade – dados de foro íntimo, expres-
seja, é incompatível com o próprio status hu- sões de autoestima, avaliações personalíssimas
mano. É intrinsecamente humano e, portanto, com respeito a outros, pudores, enfim dados
valoroso enquanto característica indissociável que, quando constantes de processos comuni-
da humanidade, guardar espaços de nossa in- cativos, exigem do receptor extrema lealdade
timidade em relação aos quais se decide, sem e alta confiança, e que, se devassados, desnu-
interferências ostensivas ou sorrateiras, quem dariam a personalidade, quebrariam a consis-
deles pode participar. Compartilhar segredos tência psíquica, destruindo a integridade moral
mais recônditos e intimidades mais reclusas do sujeito”; [dados que] “envolvam relações de
apenas com quem se escolhe é uma forma de convivência privada”; “dados que envolvam
expressar confiança, amizade e amor. Não re- avaliações (negativas) do comportamento que,
conhecer este espaço de exclusividade, elimi- publicadas, podem ferir o bom nome do su-
nando, em consequência, a possibilidade do jeito, isto é, o modo como ele supõe e deseja
exercício desses julgamentos afetivos, implica ser visto pelos outros”; dados que alguém for-
violação a algo inerentemente humano e valo- nece a alguém e não deseja ver explorados (co-
roso, mesmo quando tal devassa se dá de modo mercialmente, por exemplo) por terceiros”(-
discreto e imperceptível. Ferraz Júnior, 1993, pp. 448-449).
Todos esses dados, embora não acobertados
pelo sigilo do inc. XII (exceto quando estiverem
em fluxo comunicativo), seguem protegidos,
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segundo Ferraz Júnior, pela dimensão da (iii) A distinção entre


privacidade. as comunicações
Esta questão importa para um debate teórico que deixam vestígios
hoje existente: a crescente quantidade de in- físicos e aquelas que
formações íntimas armazenadas em servidores não deixam como
de e-mails e aplicações de troca de mensagens parâmetro permissivo
tem forçado à interpretação de que a distinção para a interceptação
entre dados em trânsito e dados armazenados, de comunicações.
para fins de proteção à privacidade, perderia
sentido (Quito, 2018; Sidi, 2016). Se é verdade Contra uma interpretação expansiva do inc.
que Ferraz Júnior guardava a característica da XII do art. 5º da Constituição, “Sigilo de dados”
inviolabilidade aos dados em trânsito, a inte- oferece uma interpretação consistente e fiel à
gralidade do argumento exposto em “Sigilo de letra e ao espírito constitucional que merece
dados” mostra que é possível dar proteção a ser defendida.
dados armazenados pelo reconhecimento de Ao insistir na inviolabilidade do fluxo de
sua pertinência à privacidade–e até mesmo à dados em trânsito (“comunicação”), Ferraz
intimidade–dos indivíduos. O dilema entre a Júnior distingue dois tipos de comunicação: há,
inviolabilidade dos dados em trânsito e a vul- de um lado, formas de comunicação marcadas
nerabilidade dos dados armazenados, na leitura por “instantaneidade”, como a comunicação
de Ferraz Júnior, é falso: mesmo reconhecendo telefônica, que “só é enquanto ocorre” (Ferraz
a distinção entre dados em fluxo de comuni- Júnior, 1993, p. 447); e há, de outro, aquelas que
cação e dados estáticos, esses últimos podem deixam vestígios físicos, sendo, portanto, sus-
estar abarcados com proteção máxima à inti- cetíveis de investigação sem necessitar da me-
midade de seu titular. dida extrema da interceptação. No caso dessas
Partindo dessa leitura, é forçoso reconhecer últimas,
que os limites que a intimidade e a privaci-
dade do indivíduo colocam à atividade fisca- é possível realizar investigações e obter
lizadora do Estado valem também para dados provas com base em vestígios que a
armazenados. Assim, quando o conteúdo des- comunicação deixa: a carta guardada, o
ses dados potencialmente contenha informa- testemunho de quem leu o nome do
ções relevantes à intimidade de um cidadão, endereçado e do remetente, ou de quem
elas devem merecer grau elevado de proteção viu a destruição do documento, o que
contra devassas investigativas, mediante rígida vale também para o telegrama, para o
avaliação de adequação, estrita necessidade e telex, para o telefax, para a recepção
proporcionalidade. da mensagem de um computador para
outro, etc. (Ferraz Júnior, 1993, p. 448).

Esta distinção ganhou grande relevância


contemporânea em razão da proliferação de
aplicativos de trocas de mensagem. Como se
valem de dados telemáticos para a transmissão
de suas comunicações, tais aplicativos têm so-
frido pressões para cooperar com autoridades
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com o fim de permitir interceptação de men- de modo seletivo, oferece balizas que seguem
sagens. Tal iniciativa baseia-se em uma leitura úteis à proteção da privacidade dos cidadãos
abrangente do inc. XII do art. 5º (bem como no em face da conveniência investigativa estatal.
parágrafo único do art. 1o da Lei 9.296/1996),
que, ao contrário da interpretação de Ferraz
Júnior, permitiria interceptação de qualquer es- b. O que está
pécie de comunicação – não apenas das comu- superado
nicações “instantâneas”, de que a comunicação
telefônica seria exemplar.
A interpretação de “Sigilo de dados”, por
outro lado, não admite essa leitura ampliativa: (i) “Privacidade”, no
uma vez que as mensagens deixam vestígios tocante a nossos
na ponta emissora e receptora da comunica- dados pessoais,
ção, investigações que se interessem pelo teor não pode mais ser
das mensagens trocadas devem recorrer a ou- conceituada apenas
tras técnicas de investigação – notadamente, a como um direito que se
apreensão de aparelhos e a perícia de seu con- defende passivamente,
teúdo. Em caso de mensagens trocadas e ar- por resistência
mazenadas em servidores (“na nuvem”), cabe a intromissões
também lembrar de sua proteção pela regra ou devassas.
geral da privacidade, independentemente de
não se tratar de comunicação em curso. Afinal, Conforme já exposto na parte 2 deste texto,
o teor dessas comunicações armazenadas como a concepção de privacidade adotada em “Sigilo
regra abrange elementos de intimidade, honra de dados” é de um direito de bloqueio ou resis-
e imagem, recomendando cautela exemplar no tência (Ferraz Júnior, 1993, p. 443), que daria a
acesso a seu conteúdo, e sendo vedadas, à pri- seu titular a faculdade de impedir intromissões
meira vista, devassas indiscriminadas quanto indevidas ou devassas nas esferas de exclusivi-
ao intervalo de tempo, os interlocutores e o as- dade de sua vida privada. Essa concepção, em-
sunto das mensagens. bora siga válida, não mais esgota a dimensão
Além disso, a distinção lança luz sobre outro que o direito à privacidade assume nos dias de
debate contemporâneo relacionado ao sigilo de hoje.
dados: a possibilidade de emprego de tecnolo- Como bem destaca Doneda, novas dinâmi-
gias de criptografia forte por parte de aplicati- cas associadas à informação, propulsionadas
vos de troca de mensagens instantâneas.20 O ar- pela tecnologia e a intensificação dos fluxos de
gumento de órgãos de persecução penal de que informação, afetam de forma inédita a relação
as empresas de tecnologia têm o dever de pos- entre dados pessoais e privacidade (2006, p. 6).
sibilitar a interceptação de mensagens trocadas Nesse cenário, o direito à privacidade não mais
não se sustenta a partir de consideração que o se estrutura em torno do isolamento do indiví-
grosso das mensagens trocadas por estas plata- duo. Ele deve, isto sim, oferecer meios adequa-
formas deixam vestígios (Queiroz, 2018, p. 21). dos para a proteção de uma esfera privada do
Em um contexto no qual a informatização indivíduo de maneira funcional em um con-
é regra, e a quantidade de dados armazenados texto de “vida em relação” (Doneda, 2006 p. 2).
em bancos de dados informáticos será cada vez Para fazer frente a esse desafio, a privacidade
maior, “Sigilo de dado”, desde que não seja lido não pode se reduzir a uma liberdade negativa
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– ou “liberdade de negação”, nas palavras de A massificação da produção, coleta, armaze-


Ferraz Júnior (1993, p. 443). Ao contrário, deve namento, tratamento e compartilhamento de
ampliar-se para incluir também a dimensão de dados pessoais desafia esta concepção indivi-
uma liberdade positiva21 (Bioni, 2019, pp. 96- dualista de privacidade: ela não mais se limita
97; Antonialli, 2010, pp. 13-14). Retomando os à garantia de não intrusão, mas deve se espraiar,
termos de Hohfeld (1913), clássicos para uma para que seja efetiva, por todo o feixe de rela-
analítica dos direitos subjetivos: ela deixa de ções do indivíduo. Embora se possa discutir a
ser apenas uma imunidade (de resistência ao natureza autônoma do direito de dados pessoais
poder ou à liberdade de terceiros) e transfor- com relação à privacidade, parece inquestioná-
ma-se agora também em um poder, com di- vel que essa nova matéria, embora dotada de
mensão ativa–de exigir, por exemplo, conheci- um campo prático de atuação cada vez mais au-
mento, controle e disposição de dados relativos tônomo, mantém-se ao menos em parte forte-
à individualidade, que estejam em poder de mente relacionada com a privacidade, mas em
terceiros e sejam capazes de afetar autonomia via de mão dupla: da mesma forma que recebe
e liberdades de indivíduos.22 da privacidade a preocupação com a preserva-
ção da esfera de autonomia e individualidade
dos cidadãos, a disciplina jurídica da proteção
(ii) A proteção de de dados pessoais informa a doutrina da priva-
dados pessoais não cidade sobre a natureza relacional e difusa des-
deve mais ser pensada ses objetos merecedores de proteção.
de modo individualista, Essa compreensão modificada da privaci-
na esteira da dade se impõe em face de novos modos de
concepção tradicional existência social, nas quais a conectividade in-
de privacidade, mas formática é uma realidade cada vez mais in-
sim relacional. contornável: locomover-se, entreter-se, fazer
pagamentos, acessar contas bancárias ou usu-
“Sigilo de dados” conceitua o direito à priva- fruir de serviços públicos e privados são práti-
cidade, ao menos em suas esferas maiores de cas cada vez mais dependentes de interação em
exclusividade (“intimidade”), a partir da pers- rede. Essa conectividade compulsória resulta
pectiva de um indivíduo por oposição à so- em dispersão atomizada de dados pessoais, in-
ciedade que o ameaça devassar, sobretudo por clusive dados sensíveis, por toda esfera de rela-
força do abuso inoponível e nivelador do poder ções (públicas e privadas) dos cidadãos. Warren
político. Como já exposto em maiores detalhes e Brandeis desenvolveram a doutrina clássica
pouco atrás, esta concepção é derivada do pen- do direito à privacidade como reação a amea-
samento de Hannah Arendt, na leitura que dela çadoras inovações tecnológicas de suas épocas:
faz Celso Lafer. Nos cânones do direito à priva- câmeras fotográficas de longo alcance e apare-
cidade, tal concepção de privacidade é aquela lhos gravadores de voz, capazes de expor os se-
notoriamente forjada por Warren e Brandeis, gredos mais recônditos dos cidadãos–especial-
em texto seminal do final do século XIX: um mente das elites políticas e econômicas cujas
direito de ser “deixado em paz”, derivado, por vidas privadas eram objeto de interesse da im-
extensão, do direito consuetudinário de pro- prensa e do público. Se os desafios tecnológi-
priedade privada, que garantia a seu titular ex- cos agora são outros, não há razão para manter-
clusividade de um bem em face de terceiros -se preso a um ideal de privacidade forjado em
(Warren & Brandeis, 1890). fins do século XIX.23 Pode-se, assim, avançar
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rumo a uma concepção relacional e positiva da porque estejam em dados armazenados, e não
privacidade. em trânsito. Essa particular leitura de “Sigilo
de dados”, que não é a única possível de ser
feita do texto e nem é necessariamente a me-
(iii) Distinção rígida lhor, deve ser descartada em favor de outra que
entre dados em equalize a proteção de dados armazenados e
trânsito e dados dados em trânsito pelo critério que substanti-
armazenados como vamente importa: o grau de exclusividade que
critério para maior se deve reconhecer às informações contidas
ou menor proteção nos dados e seu impacto sobre a privacidade de
contra intromissões. seu titular. O inc. X, art. 5º, da Constituição dá
conta desta fundamentação sem dificuldades.
Se é verdade, como dito há pouco, que a dis- Em julgamento recente, uma das turmas do
tinção entre dados estáticos e dados em fluxo STF parece ter iniciado interpretação nesse
não precisa acarretar desconsideração à sen- sentido.24
sibilidade de dados armazenados para fins de
proteção da privacidade, é também verdade
que, talvez pela recepção apenas parcial de (iv) Dados menos
“Sigilo de dados” pelo STF, essa clivagem, que exclusivos não
está de fato presente no texto, tem sido uti- necessariamente são
lizada para negligenciar a devida proteção a menos relevantes
dados armazenados. para a integridade
Isso é sem dúvida um problema e merece moral do indivíduo.
superação. Já não faz sentido distinguir entre
dados em trânsito e dados estáticos como cri- “Sigilo de dados” faz uma importante distin-
tério para maior ou menor proteção à priva- ção entre tipos diferentes de dados pessoais,
cidade: o barateamento do armazenamento de segundo a sua “exclusividade”. Alguns dados,
dados e a migração das comunicações humanas diz Ferraz Júnior, são mais exclusivos, porque
para serviços providos pela Internet, com op- não foram feitos para sair da esfera de segredos
ções de armazenamento de segurança em ser- de seu titular: “dados de foro íntimo, expres-
vidores (“backups na nuvem”), torna o conjunto sões de autoestima, avaliações personalíssimas
de dados armazenados sobre um indivíduo, por com respeito a outros, pudores, enfim dados
seu considerável volume e abrangência tempo- que, quando constantes de processos comuni-
ral, mais sensível à sua intimidade do que con- cativos, exigem do receptor extrema lealdade e
versas telefônicas interceptadas. A hierarquia alta confiança, e que, se devassados, desnuda-
protetiva que coloca dados em trânsito acima riam a personalidade, quebrariam a consistên-
de dados armazenados simplesmente é anacrô- cia psíquica, destruindo a integridade moral do
nica diante das mudanças na tecnologia e nas sujeito” (Ferraz Júnior, 1993, pp. 448-449).
práticas comunicativas desde 1993 até os dias Outros, prossegue o texto, são feitos para a
atuais (Sidi, 2016; Quito, 2018). atividade comunicativa e relacional inerente à
Se não é possível ignorar a distinção entre vida em sociedade:
os incisos X e XII do art. 5º da Constituição,
tampouco há razão para impor uma prote- pelo sentido inexoravelmente
ção menos efetiva à nossa intimidade apenas comunicacional da convivência, a vida
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privada compõe, porém, um conjunto título de tutela de privacidade e dignidade hu-


de situações que, usualmente, são mana: mesmo dados inerentemente comuni-
informadas sem constrangimento. São cativos, feitos para a interação humana, podem
dados que, embora privativos–como o ser coletados e tratados de modo prejudicial
nome, endereço, profissão, idade, estado àqueles valores.
civil, filiação, número de registro público
oficial, etc.–condicionam o próprio
intercâmbio humano em sociedade, pois (v) Em uma economia
constituem elementos de identificação que de dados, a atividade
tornam a comunicação, possível, corrente fiscalizadora estatal
e segura (Ferraz Júnior, 1993, p. 449). não é mais a única
grande ameaça
à privacidade.
Esses últimos dados, sempre segundo o autor,
“só são protegidos quando compõem relações Até mesmo pelo problema específico que
de convivência privativas: a proteção é para motivou sua redação – a questão do acesso
elas, não para eles” (op. cit.). A exclusividade a dados de operadoras de cartão de crédito,
desses dados é menor, e não faria sentido pro- bem exposta no início deste artigo – “Sigilo
tegê-los de modo mais intenso por seu papel de dados” tem o Estado como antípoda do di-
eminentemente comunicacional. reito à privacidade. Embora o texto não seja
Atualmente, contudo, é disseminada a com- comprometido a priori com a proposição de que
preensão de que esse tipo de dado pode servir apenas o Estado ameaça a privacidade de in-
como critério e base para práticas profícuas de divíduos, ele certamente apresenta-o como o
perfilização de cidadãos, embora não sejam ín- agente principal, quase que exclusivo, desses
timos e exclusivos. Vale dizer, o dado, mesmo riscos, pela clivagem que faz entre o privado
que não seja íntimo, pode ser relevante para (como âmbito onde se situa a privacidade) e
a integridade moral do indivíduo. Um nome público (como âmbito do poder político que a
é capaz de revelar, por exemplo, origem racial ameaça). Esse retrato não corresponde à rea-
ou étnica, ou a (presumível) orientação reli- lidade do presente. Conforme o retrato deta-
giosa da pessoa: basta que pensemos em nomes lhado e impactante feito no recente livro de
marcadamente orientais, árabes ou judaicos. O Shoshana Zuboff (2019), o “capitalismo de vi-
fato de a legislação reconhecer tais marcado- gilância” tem hoje uma força incomparável a
res como dados sensíveis25 revela como práti- de três décadas atrás. Nele, dados relativos a
cas de perfilização, ainda que possam se valer vidas privadas e intimidades são matéria prima
de dados menos exclusivos, podem cruzar a essencial para atividades econômicas diversas,
linha da individualidade do sujeito. O modo fundando, no limite, uma nova ordem econô-
de se vestir, embora seja igualmente pensado mica. Não apenas o “poder político”, mas tam-
para situações de interação com outros seres bém o poder econômico são ameaças à priva-
humanos, pode denunciar preferências políti- cidade e à dignidade que ela ajuda a proteger.
cas (uma camiseta com mensagens políticas) ou Embora grande parte da preocupação com a
religiosas (o uso de adornos). Tudo isso mos- atuação dessas empresas esteja em suas práti-
tra que o grau de “exclusividade” fixo e ine- cas comerciais, o que juridicamente se situa no
rente ao dado em si é um critério imperfeito direito antitruste ou no direito do consumidor,
para medir o grau de proteção que ele merece a não é menos verdade que muitos modelos de
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negócios na economia de dados representam 6. Considerações finais


riscos à privacidade e ao pleno exercício da au-
tonomia de indivíduos. Conforme bem mostra
O’Neill (2018), a forma de atuação de muitos Neste artigo, realizou-se uma leitura detida
negócios que usam dados pessoais como maté- de “Sigilo de dados”, texto seminal na doutrina
rias primas frequentemente vale-se de classifi- do direito à privacidade e proteção de dados no
cações e perfilhamentos imperfeitos, a partir de Brasil, para avaliar sua atualidade em face dos
algoritmos opacos e incompreensíveis em sua desafios atuais que o tema impõe.
operação. Esses dados pessoais, muitas vezes Após recuperar o argumento do texto e o
coletados em circunstâncias desconhecidas e contexto de sua produção, analisou-se o modo
inauditáveis, são tratados para gerar julgamen- de sua incorporação pelo STF. Conforme de-
tos, veredictos e ranqueamentos determinados monstrado, essa incorporação foi apenas par-
em aspectos centrais da vida humana (emprego, cial: se, por um lado, a distinção entre dados
moradia, crédito, justiça criminal, entre mui- armazenados e dados em trânsito foi efetiva-
tos outros), mas atuam por uma lógica miste- mente apropriada pelo Tribunal, não houve,
riosa, compreensível apenas por quem progra- por outro lado, guarida explícita ao argumento,
mou os algoritmos que tomam as decisões. A igualmente contido no texto, de que dados ar-
opacidade e falta de regulação os torna, na prá- mazenados importam ao direito à privacidade
tica, inapeláveis; tornam-se, de fato, oráculos e devem ser objeto de cauteloso sopesamento
do destino de massas de cidadãos. Tanto quanto antes de sua devassa, uma vez que o conteúdo
a devassa de nossos segredos mais exclusivos, desses últimos pode ser íntimo e, portanto,
essas práticas empresariais negam aos sujeitos protegido por um grau maior de exclusividade.
afetados o direito a algo que seu status humano Finalmente, avaliou-se os pontos do texto
exige: o direito de conhecer, compreender, cor- que se mostram ainda atuais, bem como aque-
rigir e apelar contra decisões que os massifi- les que exigem uma reflexão atualizadora, em
cam em dados, perfis e rótulos (“bom pagador”, face dos desafios presentes. Como pontos ainda
“trabalhador eficiente”, “criativo”, “saudável”), atuais, destacam-se: (i) a centralidade do princí-
marcando seu destino em aspectos essenciais pio da dignidade humana como parâmetro nor-
da existência humana (consumidor, profissio- mativo que dá sentido ao direito à privacidade
nal etc.). e à proteção de dados pessoais, orientando a
A geração atual de leis de proteção de dados aplicação desses direitos; (ii) o reconhecimento
pessoais quer fazer frente não apenas ao poder de que dados importam à privacidade indivi-
estatal, mas também ao poder privado das em- dual, impondo limites à atuação fiscalizadora
presas da economia da informação. Nesses do Estado–conforme imprimido no próprio tí-
casos, o Estado, ao menos pela via legislativa, tulo do texto seminal; e (iii) a distinção entre
atuou como regulador da economia dos orá- as comunicações que deixam vestígios físicos
culos de dados, agindo para disciplinar práti- e aquelas instantâneas como critério de inter-
cas abusivas e permitir aos cidadãos o exercício pretação da exceção constitucional ao sigilo de
do controle sobre seus dados e, nesse contexto, comunicações – isto é, para a identificação de
seus destinos. quais tipos de interceptação são permitidos. Já
como pontos que merecem reflexão atualiza-
dora, destacam-se os seguintes: (i) o direito à
privacidade não mais se estrutura como uma
liberdade de negação, por meio da proteção de
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dados pessoais, ela se reveste de um aspecto


positivo de controle dos próprios dados pes-
soais; (ii) a proteção de dados pessoais deve ser
pensada em uma perspectiva relacional, em
detrimento da natureza individualista asso-
ciada à concepção tradicional de privacidade;
(iii) a distinção rígida entre dados em trânsito e
dados armazenados não mais se sustenta como
critério de interpretação da inviolabilidade do
sigilo de dados veiculada por meio do artigo 5°,
inciso XII da Constituição Federal; e (iv) na so-
ciedade da informação, a atividade fiscalizadora
do Estado não é mais a grande ameaça à priva-
cidade–alinhando-se a agentes privados.
Nesse sentido, este trabalho se coloca como
esforço de superação de dificuldades para in-
terpretação e aplicação de conceitos e teorias
tradicionais do direito às questões jurídicas na
era digital (Kira, 2019). Demonstra, ainda, que
olhar para o passado, representado aqui por
texto seminal da década de 90, pode ser tarefa
produtiva para tal empreitada – quando devida
e cuidadosamente conduzida.
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PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE

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Notas finais momentos e da vírgula que os separa. Trata-se


de interpretação atualmente disputada, con-
forme explorado mais a frente no artigo.

1 Excluídas as decisões monocráticas, 4 A conceituação é de W. N. Hohfeld, para


temos: Mandado de Segurança n° 21.729-DF quem a imunidade, enquanto direito subjetivo,
(2001) , Agravo Regimental no Habeas Corpus é o oposto do poder (também enquanto direito
n° 124322/RS (2016), Recurso Ordinário subjetivo): “poder é o ‘controle’ afirmativo de
em Habeas Corpus n° 132062/RS (2016), uma pessoa, em uma determinada relação ju-
Habeas Corpus n° 91867/PA (2013) e Recurso rídica, em relação a outra pessoa; enquanto a
Extraordinário n° 418.416-SC (2006). imunidade é a liberdade, por parte de uma pes-
soa, do poder legal ou ‘controle’ de outra pes-
2 Em razão do objetivo amplo da presente soa, em uma relação jurídica (Hohfeld, 1913, p.
pesquisa, cada uma das seções contou com me- 55. Tradução nossa).
todologia própria e, em certo sentido, inde-
pendente das demais. Na primeira seção, em- 5 Deve-se destacar que a Lei nº 9.296/96
pregou-se o método de leitura estrutural para (Lei de Interceptações) prevê, em seu artigo 1º,
leitura e apresentação do caminho argumen- a possibilidade de interceptação do “fluxo de
tativo do texto (Macedo Júnior, 2009). Na se- comunicações em sistemas de informática e
gunda seção, guardadas as devidas proporções, telemática”. Ocorre que se trata de artigo de
pretende-se fazer uma espécie de “história do constitucionalidade disputada, inclusive alvo
discurso político” – na qual se busca com- de ações diretas de inconstitucionalidade no
preender a linguagem, o contexto, interlocu- STF (ADI nº 1.488-9/DF e ADI n° 4.112/DF).
tores e posição ocupada pelo autor quando da De um lado, argumenta-se que o dispositivo
autoria do texto (Pocock, Micely & Fernandez, constitucional possuiria dois blocos, separados
2003), a partir – principalmente, de declara- por uma vírgula e, portanto, a expressão “no
ções do autor e matérias jornalísticas da época. último caso” referir-se-ia a comunicações de
Na terceira seção, a descrição da incorpora- dados e telefônicas (narram a existência dessa
ção pelo STF das teses do autor se deu, prin- posição: Grinover, 1997, p. 25; Sidi, 2016, p. 221).
cipalmente, a partir das metodologias apresen- De outro, defende-se uma interpretação grama-
tadas em: Hübner Mendes (2010) e Vojvodic, tical do artigo 5º, inciso XII, no sentido de que
Machado, e Cardoso (2009). Por fim, a quarta e a expressão “no último caso” só seria referente
última seção partiu de reflexão autoral à luz de a comunicações telefônicas (nesse sentido, ver:
literatura recente sobre o tema. Avolio, 2010, p. 170; Greco Filho, 2015, pp. 15-
17). Mais recentemente, observa-se um esforço
3 Olhando para o texto constitucional, de recuperação do “Sigilo de dados” para au-
Ferraz Júnior identifica dois blocos em que o xílio na interpretação do dispositivo constitu-
termo comunicação seria um elemento de des- cional. De um lado, os teóricos Badaró (2010) e
taque: “da correspondência e das comunica- Prado (2006) argumentam que as premissas de
ções telegráficas” e “de dados e das comuni- Ferraz Júnior permanecem válidas (isto é, que a
cações telefônicas”. Essa interpretação decorre interceptação só seria possível quando caracte-
da existência da conjunção ‘e’ adotada nos dois rizada pela instantaneidade), mas a leitura ade-
quada do dispositivo constitucional frente à
realidade tecnológica é que este só possibilitaria
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a interceptação em casos que não for possível esse momento, considerando que a denúncia
a apreensão posterior desses dados. De outro, de Pedro Collor na Revista Veja foi realizada no
Queiroz (2018) observa que a inconstitucionali- mês de maio de 1992.
dade do art. 1º da Lei de Interceptações decorre
de uma interpretação literal e hermenêutica da 10 Tal análise foi realizada a partir da me-
norma constitucional, a última a partir da dis- todologia explorada em Hübner Mendes (2010)
tinção de Ferraz Júnior entre as comunicações e Vojvodic, Machado e Cardoso (2009).
que deixam vestígios e aquelas que não deixam.
Além disso, argumenta que se vive um con- 11 Foi realizada pesquisa na Plataforma de
texto de hipervulnerabilidade de informações jurisprudência do STF com os termos chave
pessoais sensíveis da internet, onde a proteção “sigilo de dados e XII”. Foram encontrados 14
da privacidade merece ser privilegiada. acórdãos, 427 decisões monocráticas, 44 infor-
mativos. Analisamos as ementas e indexações
6 Lei Geral de Interceptações–Lei nº dos referidos acórdãos. Destes, dez eram im-
9.296, de 24 de julho de 1996. pertinentes, tratando de assuntos diversos re-
lacionados ao inciso XII. Os outros quatro [HC-
7 Em maio de 2017, o Internetlab, centro AgR 124322/RS (2016), RHC 132062/RS (2016),
independente de pesquisa sobre direito e so- HC 91867/PA (2016) e RE 418416/SC (2006) em-
ciedade, organizou o I Congresso Internacional pregavam a tese de Sampaio Ferraz acerca da
Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era proteção do sigilo de dados se referir aos dados
Digital, que contou com a palestra “Sigilo de em trânsito e citavam, expressamente, o MS N°
dados, o direito à privacidade e o poder do 21.729/DF (2001). O mais antigo dos quatro, o
Estado: 25 anos depois” ministrada por Ferraz RE 418.416/SC (2006), foi referenciado nos ou-
Júnior. Ver: Ferraz Júnior, T. S. (2018). Sigilo de tros três julgados desse grupo.
dados, o direito à privacidade e os limites do
poder do Estado: 25 anos depois. In Abreu, J. 12 O mandado de segurança argumentava,
D. S., & Antonialli, D., Direitos Fundamentais e em resumo, que: (i) o pedido violava o sigilo
Processo Penal na Era Digital: Doutrina e Prática bancário concedido a suas operações, que só
em Debate. Vol. I. São Paulo: InternetLab, pp. poderia ser quebrado mediante ordem judicial,
18-41. de acordo com o art. 38 da Lei nº 4.595/1964;
(ii) a exceção de quebra de sigilo a respeito de
8 Informação consta na biografia dispo- documentos e informações preceituada no
nibilizada em seu site pessoal: http://www.tercio- art. 8º, §2º da Lei Complementar nº 75/1993
sampaioferrazjr.com.br/?q=biografia. Acesso em: 15 de (Estatuto do Ministério Público) só valeria para
junho de 2019. autoridades públicas, e o Banco do Brasil não
representaria uma no caso; e (iii) apesar de a
9 Essa foi a última notícia ou portaria privacidade, representada no art. 5º, inc. X, e
encontrada sobre o assunto. Foram consulta- sigilo bancário não serem absolutos, estes só
das as bases de dados do Acervo do Estado de poderiam ser quebrados mediante decisão
São Paulo e Acervo da Folha de São Paulo, bem judicial.
como os Diários Oficiais da Imprensa Nacional.
O arrefecimento da discussão pode ser expli- 13 A reconstrução dos dois casos se deu por
cado pelo período político tenso que seguiu a meio da leitura do acórdão. Entretanto, diante
da indicação no acórdão de que o parecer da
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Vice Procuradoria havia tratado do o sigilo de 18 Para uma reconstrução completa das
dados, o documento foi solicitado via Lei de gerações de proteção de dados pessoais, ver:
Acesso à Informação à Seção de Arquivo do STF Mendes, 2014, pp. 37-44; Doneda, 2006, pp.
para a consulta de seu conteúdo. 203-217; Bioni, 2019, pp. 117-121.

14 Como mencionado, os demais votos 19 Regulamento (UE) 2016/679 do


vencedores se limitaram a apontar o caráter Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de
público dos recursos em questão. abril de 2016, relativo à proteção das pessoas
singulares no que diz respeito ao tratamento de
15 “Assim, por exemplo, solicitar ao juiz dados pessoais e à livre circulação desses dados
que permita à autoridade acesso à movimen- e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento
tação bancária de alguém não significa pedir Geral sobre a Proteção de Dados).
para interceptar suas ordens ao banco (sigilo da
comunicação) mas acesso a dados armazenados 20 A denominação “criptografia forte” se
(sigilo da informação). A primeira solicitação– refere aos casos em que a tecnologia não ofe-
salvo se o meio for o telefone é inadmissível; rece mecanismos de acesso aos dados – mesmo
já a segunda é possível. Em que limites? 10. A em casos de respeito ao devido processo legal.
análise do inciso X do art. 5º da Constituição No caso dos aplicativos de troca de mensagens,
nos orienta a resposta: são aquelas informações, coloca-se como sinônimo para “criptografia de
em termos de privacy, constitutivas da integri- ponta a ponta”. Para descrição completa do de-
dade moral da pessoa.” (Ferraz Júnior, 1993, p. bate, ver: Abreu (2018).
448).
21 A distinção entre liberdade negativa
16 Com exceção do Ministro Marco e liberdade positiva vem de “Two Concepts
Aurélio, que opôs vício de procedimento nas of Liberty” conhecido ensaio de Isaiah Berlin
razões do Recurso Extraordinário, mas men- (1992). “Liberdade negativa” diz respeito à área
cionou concordar com a tese da proteção ao mínima de não intrusão que uma pessoa, para
sigilo de comunicação de dados. que possa ser considerada livre (e não coagida
ou escravizada), deve preservar (cit., p. 169); já
17 Essa leitura aproxima-se de diagnóstico a “Liberdade positiva” diz respeito à garantia
de José Rodrigo Rodriguez no sentido de que a da liberdade por ações positivas, por uma con-
invocação de autoridades é modelo preponde- duta ativa (e não por mera não interferência),
rante de raciocínio jurídico no Brasil. Pode-se que garanta ao sujeito que ele se mova por suas
destacar trecho nesse sentido: “As cortes brasi- próprias “razões e propósitos conscientes”, e
leiras citam, com muita frequência, doutrina- não por “causas que [o] afetem externamente”
dores e teóricos do direito (além de ‘jurispru- (cit., p. 178). Embora o conceito de liberdade
dências’) sem reconstruí-los em uma linha de positiva de Berlin construa-se em oposição à
argumentação racional, ou seja, sem explicar heteronomia (logo, de preservação de auto-
o porquê de cada autor (ou caso) ser relevante nomia, no sentido da capacidade de dar a si
para a solução final, de acordo com a sua re- mesmo suas próprias máximas de conduta, ao
construção sistemática das fontes do direito”. invés de tê-las impostas por terceiros), ele é
(Rodriguez, 2013, p. 81) de todo utilizável neste caso. A distinção entre
“ser livre de” (liberdade negativa) e “ser livre
para” (liberdade positiva) é inteiramente útil à
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distinção que ora fazemos para o direito à pri- 23 Para uma detalhada visão da evolução
vacidade, para o qual a dimensão positiva, no histórica do conceito de privacidade à luz das
tocante ao direito protetivo de dados pessoais, mudanças sociais e tecnológicas de cada pe-
é sumamente relevante. ríodo da história dos EUA, v. Igo, 2018.

22 É interessante apontar que Ferraz 24 Trata-se do HC n° 168052/SP, ver:


Júnior (2001) já voltou a analisar como o desen- Suspenso julgamento de HC que discute vali-
volvimento tecnológico coloca novas questões dade provas obtidas em conversas de Whatsapp
para a proteção da intimidade do indivíduo. sem autorização judicial (2019, 11 de junho).
Neste, lidava com cenários hipotéticos sobre o Notícias STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/
futuro de sociedades informatizadas: os cená- portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=413786. O
rios de “big brother” (Estado policial forte) e tema também é objeto de análise pelo STF no
“little sister” (Estado enfraquecido). Enquanto ARE n° 1042075, no qual foi declarado reper-
o primeiro seria marcado por uma redução da cussão geral.
esfera privada em razão do agigantamento do
Estado de vigilância, este guiado pelo combate 25 “Dado sensível” é uma categoria dis-
à criminalidade, o segundo derivaria do forta- seminada na atual legislação de proteção de
lecimento de redes de comunicações privadas dados pessoais. Na lei brasileira, é definido no
e bancos de dados inacessíveis ao Estado, por art. 5º, II, como “dado pessoal sobre origem ra-
exemplo, a partir de criptografia. Para o autor, cial ou étnica, convicção religiosa, opinião po-
trata-se de embate entre liberdade (na figura lítica, filiação a sindicato ou a organização de
da sua espontaneidade individual resguardada caráter religioso, filosófico ou político, dado
pelo sigilo) e interesse público (nas figuras da referente a saúde ou à vida sexual, dado gené-
transparência, direito à informação e repressão tico ou biométrico, quando vinculado a uma
ao abuso de poder) (2001, p. 134). Esses cená- pessoa natural”.
rios convidariam a uma nova reflexão sobre a
operação da liberdade. Em detrimento da liber-
dade individual, operada a partir da oposição
indivíduo/sociedade, estaríamos diante da li-
berdade em reciprocidade. A proteção de dados
não seria um direito no sentido de domínio
absoluto (propriedade do indivíduo sobre seus
dados), mas sim um direito à autodetermina-
ção informacional, objetivando possibilitar a
cada um sua liberdade de comunicação – isto
é, um exercício de sua liberdade em reciproci-
dade. Trata-se de nova roupagem para o direito
à liberdade que, antes individual, passa a ser
exercido em rede. Nessa argumentação, Ferraz
Júnior reitera sua interpretação sobre o sigilo
de dados–faria sentido, então, que a proteção
fosse referia à comunicação de dados–e não aos
dados em si (2001, p. 139). Recebido em 04/07/2019
Aceito em 18/12/2019
91

ARTIGO

Como vencer
uma eleição sem
sair de casa:
a ascensão do
populismo digital
no Brasil

Letícia Cesarino
Professora no Departamento de Antropologia
e no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:
leticia.cesarino@gmail.com
92
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO

Como vencer uma


eleição sem sair de casa:
a ascensão do populismo
digital no Brasil

Palavras-chave Resumo
antropologia digital Desde ao menos a eleição de Trump e o refe-
populismo rendo sobre o Brexit, o tema do populismo vol-
Ernesto Laclau tou à tona com grande força ao debate público
bolsonarismo e acadêmico. Este artigo busca avançar a dis-
pós-verdade cussão com base na experiência eleitoral brasi-
leira de 2018, onde, em contraste com os even-
tos de 2016, interveio de modo significativo o
aplicativo WhatsApp. Baseado em dez meses
de pesquisa online em redes sociais bolsona-
ristas, o presente estudo avança o conceito de
populismo digital para pensar as particularida-
des e efeitos da digitalização contemporânea
do mecanismo populista clássico descrito por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, articulando-o
com noções da cibernética, teorias de sistemas
e teoria antropológica.
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
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How to win an
election from home:
on the rise of digital
populism in Brazil

Keywords Abstract
digital anthropology At least since Trump’s election and the Brexit
populism referendum, populism has become a hot topic
Ernesto Laclau in public and academic debates. This arti-
Bolsonarism cle seeks to contribute to these debates based
post-truth on Brazil’s 2018 presidential elections, where
WhatsApp played an unprecedented role. Based
on ten months of online research on pro-Bol-
sonaro social media, this study advances the
notion of digital populism in order to tease out
the particularities and effects of the digitaliza-
tion of this classic mode of constructing po-
litical hegemony. To this end, it incorporates
insights from cybernetics, systems theory and
anthropological theory to Ernesto Laclau and
Chantal Mouffe’s theory of populism.
94
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO

1. Introdução abordagem cibernética para articular elemen-


tos quantitativos e qualitativos que vêm sendo
levantados por estudos recentes sobre mobili-
Nos últimos anos, o tema do populismo vol- zação política entre as mídias sociais e as ruas.
tou à tona com grande força ao debate público A presente análise se baseia em pesquisa on-
e acadêmico, em reação à perplexidade causada line iniciada em setembro de 2018, cobrindo
pelo resultado do referendo sobre o Brexit e grandes grupos públicos de WhatsApp e as
pela eleição de Donald Trump, ambos em 2016 malhas das redes bolsonaristas aos quais eles
(Mazzarella, 2019; Gerbaudo, 2018). Embora remetiam, em mídias sociais e outros canais
a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, tenha digitais da “nova direita” brasileira.1 A pri-
muitas ressonâncias com esses casos, é possí- meira seção introduz esse universo de pesquisa,
vel entrever na experiência brasileira elemen- assim como a posicionalidade da pesquisadora
tos novos, notadamente relativos à relevância e a metodologia utilizada. A segunda apresenta
eleitoral do aplicativo WhatsApp. Estudos de os pontos centrais da teoria do populismo de
base qualitativa sobre o que ocorreu na pai- Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que constitui
sagem digital da campanha eleitoral brasileira a base para a análise discursiva do conteúdo di-
são ainda incipientes (Nemer, 2019). Este artigo gital coletado. A terceira introduz elementos da
busca contribuir para preencher essa lacuna ao teoria antropológica e teorias de sistemas para
descrever, e propor uma explicação do tipo ci- construir um argumento pela especificidade do
bernética (Bateson, 1972; Cesarino, no prelo a; populismo em sua versão digital. Contra esse
Cesarino, no prelo b) para a eficácia da versão pano de fundo teórico, apresento, através de
bolsonarista daquilo que chamei de populismo uma análise da memética circulada durante a
digital (Cesarino, 2019a). campanha, cinco funções metalinguísticas bási-
Por explicação cibernética entendo um nível cas que cobrem praticamente todo o conteúdo
analítico que é qualitativo, porém difere funda- coletado: i. fronteira antagonística amigo-ini-
mentalmente da “explicação positiva” (Bateson, migo; ii. equivalência líder-povo; iii. mobiliza-
1972) – seja do tipo hermenêutica, seja do tipo ção permanente através de ameaça e crise; iv.
causal – preponderante em boa parte das ciên- espelhamento do inimigo e inversão de acusa-
cias sociais. Essa perspectiva pode ser pensada ções; e v. produção de um canal midiático ex-
como um tipo de funcionalismo (Luhmann, clusivo. A seção seguinte foca no eixo analítico
1995), porém focado menos em conteúdos e da des/ordem, pensada aqui num sentido sis-
agentes particulares do que em formas e pa- têmico-termodinâmico, ou seja, enquanto en-
drões metacomunicativos, recorrentes em um tropia informacional (Cesarino, no prelo b). A
mesmo campo de complexidade, que co-pro- última seção conclui notando como a operação
duzem esses conteúdos e agentes (Cesarino, no do mecanismo populista na campanha de 2018
prelo a; Cesarino, no prelo b). Assim, o pre- reverberou formas culturais até então aparta-
sente estudo atém-se ao plano sistêmico das das da política, como o futebol, e em que me-
mediações (no caso, digitais) que possivelmente dida isso poderia indicar uma redefinição pro-
contribuíram para a produção de subjetivida- funda do que seja a política na era digital.
des e escolhas políticas durante o período elei-
toral. As perdas decorrentes desta opção teó-
rico-metodológica (por exemplo, a falta de
uma abordagem sistemática de usuários offline)
são, a meu ver, compensadas pelo potencial da
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2. Iniciando uma de construção desse tipo. Havia, porém, uma


investigação ambiguidade quanto à sua espontaneidade.
Embora os agentes nessas redes digitais fos-
antropológica sem livres para compartilhar e mesmo produ-
zir o que desejassem, os conteúdos pareciam
orientados por algum tipo de direcionamento,
A pesquisa que fundamenta a presente dis- dada a insistente recorrência de certos padrões
cussão começou, de forma mais sistemática, em discursivos e estéticos. Foi tentando entender
setembro de 2018, após um “choque cultural” esses padrões que cheguei ao que descrevo aqui
sofrido pela autora em um grupo de WhatsApp como o populismo digital estruturante da cam-
de família, quando uma parenta revelou ter in- panha a favor do candidato do PSL nas redes
tenção de votar no candidato do PSL. Tal cho- sociais.
que, a princípio, parecia-se com aquilo que Populismo digital, neste sentido, refere-se
Susan Harding (1991) chamou, em seu estudo tanto a um aparato midiático (digital) quanto
sobre fundamentalistas evangélicos estadu- a um mecanismo discursivo (de mobilização)
nidenses, de “outro repugnante”: um tipo de e uma tática (política) de construção de hege-
relação de alteridade onde a diferença é dada monia (Cesarino, 2019a). É um mecanismo que
politicamente, e onde a empatia etnográfica pode ter feito diferença no resultado eleito-
torna-se um desafio. Havia, contudo, uma di- ral de 2018 ao lograr mobilizar eleitores que
ferença: aquela pessoa não era um outro repug- se informavam sobre os candidatos sobre-
nante, e o choque vinha justamente da sua as- tudo através de mídias sociais, notadamente
sociação com um candidato que, do meu ponto o WhatsApp.2 Em contraste com os casos pa-
de vista, destoava completamente do perfil da- radigmáticos de Trump e do Brexit, o estudo
quela eleitora: ela, uma pessoa pacifista, tole- da relevância desse aplicativo nas últimas elei-
rante, espiritualizada, boa; ele, homofóbico, ra- ções brasileiras pode contribuir para a com-
cista, autoritário, misógino, “repugnante”. Foi preensão de como o populismo digital logra
buscando as fontes daquela incomensurabili- eficácia mesmo sem apelo ao tipo de micro-
dade de perspectivas – pois não parecíamos direcionamento e análise de perfis que foram
estar falando da mesma pessoa – que encontrei a marca do escândalo da Cambridge Analytica
um fluxo massivo e constante de conteúdos di- (Cadwallard, 2017; Kalil et al., 2018; Santos et
gitais compartilhados via WhatsApp (a interlo- al., 2019; Nemer, 2019).
cutora em questão não possuía conta ativa em O presente estudo é também um experi-
nenhuma rede social). Esses conteúdos – tex- mento em antropologia digital, inspirado na
tos, vídeos, memes, áudios, links – produziam, abordagem de Daniel Miller e colaboradores
para aquela eleitora, uma realidade política que (Horst & Miller, 2012). A antropologia digital
eu, habitante de uma bolha digital bem dife- não é um subcampo disciplinar, mas uma aten-
rente, até então desconhecia. ção transversal à intervenção crescente do di-
No geral, a antropologia entende que todo gital como mediação cada vez mais presente
processo cultural e social é produzido na con- em relações que se desdobram também offline.
tingência da prática histórica, embora apenas Ela convida a refletir sobre processos de digita-
alguns deles logrem se estabilizar de modo lização que intervêm de modo crucial, porém
eficaz e gerar efeitos de verdade, assumindo nem sempre visibilizado, em fenômenos que
então ares de “dados” da realidade. Eu me en- são tidos como definidores da contempora-
contrava sem dúvida diante de um processo neidade, como neoliberalismo, pós-verdade e
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PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO

os chamados neopopulismos (Mirowski, 2019; os padrões discursivos estruturantes do pró-


Cesarino, no prelo a; Cesarino, no prelo b). prio conteúdo que possam ter contribuído para
Desde ao menos 2016, populismo tem se tor- sua aceitação e replicação por parte dos usuá-
nado uma buzzword na academia e na imprensa rios, particularmente aqueles que Nemer (2019)
internacional (Mazzarella, 2019). Mas, embora chamou de “brasileiros comuns”.
sua ressonância com a dinâmica das redes so- A partir dessa primeira camada, mais pró-
ciais já tenha sido notada em linhas gerais xima da interface entre o on e o offline, fui
(Gerbaudo, 2018), acredito que sua mecânica adentrando outras malhas das redes digitais
propriamente digital ainda careça de maior bolsonaristas: sobretudo no próprio WhatsApp,
aprofundamento. mas também em outras plataformas às quais
A pesquisa na qual se baseia a presente dis- o conteúdo circulado no aplicativo remetia,
cussão foi realizada quase inteiramente online, como sites alternativos de notícias, vídeos no
em parte da paisagem digital bolsonarista que YouTube, posts no Facebook ou Twitter. Na
se adensou durante a campanha eleitoral. Meu época da campanha, realizei observações em
primeiro nível de acesso – equivalente à úl- vários grupos públicos – no máximo quatro ou
tima de três etapas de viralização no WhatsApp cinco de cada vez, devido às limitações de me-
identificadas por Santos et al. (2019, p. 327) – mória do meu celular. Não foi possível arqui-
foi aos conteúdos que a interlocutora supra- var a totalidade do conteúdo recebido; todos os
citada recebia diariamente no seu smartphone. dias, eu selecionava e baixava aqueles itens que
A intensidade e volume de compartilhamentos me parecessem mais representativos de certos
identificados por análises quantitativas tam- padrões discursivos recorrentes. Foi a partir
bém se refletiram aqui: a cada dia, dezenas de deste universo que selecionei as imagens tra-
novos vídeos, áudios, memes, textinhos, tex- zidas abaixo.
tões e prints diversos (Tardáguila, Benevenuto Em consonância com a estrutura policêntrica
& Ortellado, 2018; Santos et al., 2019; Nemer, de rede do tipo “hidra” descrita por Santos et
2019). Boa parte desse conteúdo recaía na cate- al. (2019), os grupos públicos de WhatsApp do
goria de fake news, no sentido amplo do termo qual participei eram de dois tipos. Havia aque-
(Tandoc et al., 2018): notícias falsas, teorias da les organizados verticalmente, onde apenas os
conspiração, material ofensivo e calunioso con- administradores (cujos chips eram muitas vezes
tra certas pessoas ou grupos, avisos urgentes e estrangeiros, de países como Estados Unidos
alarmistas, enunciados distorcidos ou retirados e Portugal) podiam postar conteúdo. Convites
de contexto. Ou seja, são mensagens que difi- públicos para esses grupos podiam ser encon-
cilmente circulariam com tanta amplitude, ve- trados em planilhas em sites como zapbolso-
locidade e capilaridade em fóruns tradicionais naro.com. Esse tipo de grupo se situava numa
da esfera pública como a imprensa profissional, zona cinzenta entre campanha oficial e mili-
onde há maior publicidade e controle social e tância espontânea, e foi objeto de algumas re-
jurídico. No momento inicial, chamou atenção portagens jornalísticas e denúncias de dispa-
o quanto essa informante, assim como os con- ros de mensagens ilegais (Benites, 2018). Nessa
tatos da sua rede pessoal que lhe repassavam camada, os grupos eram pré-segmentados se-
esses conteúdos, se mostravam vulneráveis gundo critérios como gênero ou área geográ-
a eles. As razões para tal vulnerabilidade são fica: durante a campanha, participei de grupos
complexas e multiescalares, e precisam ser ex- de mulheres, e, de modo itinerante, de grupos
ploradas mais a fundo através de pesquisa qua- segmentados por estado ou cidade.
litativa offline. No que segue, destacarei apenas O segundo tipo eram grandes grupos (de até
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256 pessoas, número máximo permitido pelo de construir esse canal exclusivo. Essa estraté-
aplicativo) também disponíveis publicamente gia teve como efeito a produção de uma reali-
através de links, em geral no Facebook ou dade à parte cuja relação com o entorno (i.e.,
Twitter. Nestes, qualquer usuário podia postar, o resto da web) era mediada por uma série de
e embora a maior parte das interações consis- gatekeepers digitais: sobretudo influenciadores
tisse em compartilhamentos, havia ocasional- e coletivos, mas também mediadores não-hu-
mente diálogo entre os membros. Esses grupos, manos como algoritmos, bots ou criptografia
junto com o WhatsApp pessoal da minha inter- (Recuero, Zago & Soares, 2017).
locutora, formaram o conjunto da minha pai- Poder-se-ia objetar que toda bolha digital é
sagem etnográfica nesse aplicativo. Após o re- um mecanismo desse tipo, e isto é verdadeiro.
sultado da eleição, essas redes se reorganizaram Todavia, minha experiência de pesquisa con-
significativamente. Todos os grupos dos quais corre para a tese de Santos et al. (2019), tam-
eu participava no final da campanha eventual- bém apoiada por outras observações qualitati-
mente se desfizeram. Porém, novos foram cria- vas como as de Nemer (2018), de que, diferente
dos e permanecem bastante ativos. Como tam- de bolhas que são geradas através dos algorit-
bém observou Nemer (2019), os novos grupos mos e padrões de uso quotidianos das mídias
parecem abrigar aquelas franjas mais “radicais” sociais, há, no caso em tela, uma assimetria e
de seguidores do presidente. Isso não significa, direcionalidade que, no desenrolar da rede, se
contudo, que outros usuários não continuem combinam e se retroalimentam com os usos
recebendo parte do conteúdo que circula nos e ações espontâneos por parte das pessoas co-
grandes grupos através de contatos pessoais em muns. Essa direcionalidade pode ser observada
seu WhatsApp – com efeito, essa tem sido a ex- de modo mais claro no plano meta-comunica-
periência da minha interlocutora privilegiada tivo ou sistêmico: por um lado, na montagem
desde então. de um aparato midiático digital que corresse
O universo desta pesquisa se ancorou, por- em paralelo às formas tradicionais de produção
tanto, no WhatsApp como ponta capilar de uma e disseminação da informação e conhecimento
ecologia das mídias mais ampla que vem sendo autorizados (como o jornalismo profissional,
mapeada e analisada por diversos pesquisado- especialistas acadêmicos e outros formadores
res a partir de inserções teórico-metodológicas de opinião como artistas); e por outro, nos pa-
diferentes, e desde antes das eleições de 2018 drões discursivos recorrentes no conteúdo di-
(Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017; Ortellado & gital que circulava nesse aparato. Buscarei, no
Ribeiro, 2018; Santos et al., 2019; Nemer, 2019). que segue, evidenciar este último ponto, suge-
Como outros (Recuero, Zago & Soares, 2017; rindo que a estruturação do conteúdo da cam-
Gerbaudo, 2018), creio que seja vital apontar as panha tanto oficial quanto não-oficial do can-
mudanças que esse ecossistema vem introdu- didato vitorioso em 2018 derivou, em alguma
zindo na esfera pública, pois sua estrutura vai medida, de algum tipo de “ciência do popu-
de encontro ao sentido liberal, habermasiano lismo” (Cesarino, 2019a).
do termo, por ser pouco pública, pouco dialó-
gica, e isolar parte do público do contato com o
contraditório e a diferença. Tanto na memética 3. Teoria e prática do
da campanha quanto em declarações do então populismo
candidato (por exemplo, conclamando seus se-
guidores a desligar a tevê e se informar apenas
por meio de suas lives), era explícita a intenção Inicialmente, a coleta de conteúdo se deu
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de modo aleatório, e logo se impôs o desafio a dimensão do político como ontologicamente


de organizar toda aquela massa de informação antagônica, ou seja, consistindo numa demar-
digital em algum tipo de esquema classificató- cação entre dois campos: o do amigo e o do
rio. Essa tarefa, aparentemente difícil devido inimigo. Noções como a esfera pública haber-
ao grande volume do material, acabou se mos- masiana, baseada em pressupostos da democra-
trando relativamente simples: alguns poucos cia enquanto diálogo, racionalidade e busca de
padrões metacomunicativos foram emergindo convergência, não refletiriam para eles a reali-
rapidamente e de modo bastante intuitivo con- dade mais fundamental do político.
tra o pano de fundo da teoria do populismo de Para Mouffe (2000), a incapacidade da teo-
Laclau (2005) e Mouffe (2000). Praticamente ria política liberal de entender o populismo, e,
a totalidade do conteúdo circulado pelo portanto, a política, emana daquilo que ela cha-
WhatsApp trazia padrões estruturantes que po- mou do paradoxo democrático. Ela nota como
diam ser associados aos pontos centrais da teo- o Estado democrático de direito emergiu a par-
ria – uma extraordinária coincidência que de- tir da convergência tardia, no século XIX, entre
mandava, em si, uma explicação. duas correntes político-filosóficas separadas e
Laclau desenvolveu sua teoria com base no em certos sentidos contraditórias entre si: o li-
estudo histórico de populismos clássicos como beralismo, enfatizando o individualismo, a pro-
o peronismo na Argentina, portanto, muito an- priedade privada, o valor da liberdade e a rule
teriores ao advento da Internet e das mídias di- of law (instituições); e a democracia, baseada na
gitais. Hoje, porém, o populismo deixou de ser soberania popular (we the people), vontade geral
uma aberração terceiro-mundista para se tor- e no valor da igualdade. Laclau e Mouffe falam,
nar fenômeno saliente na política democrática, assim, de um continuum através do qual toda
tanto de esquerda como de direita, nos Estados política moderna se desdobra, que vai de um
Unidos e Europa (Gerbaudo, 2018; Brown, tipo ideal de populismo a um tipo ideal de ins-
2019). Com efeito, para Laclau (2005), o popu- titucionalismo – nenhum dos quais existe de
lismo não é definível por um tipo específico forma pura na realidade histórica. Assim, mo-
de conteúdo ideológico (esquerda ou direita) mentos de ascensão populista costumam ser
ou posição (avançada ou atrasada) numa escala acompanhados de fragilização institucional, e,
de desenvolvimento democrático. Longe de ser inversamente, momentos de preponderância
uma anomalia ou degenerescência fadada a de- tecnocrática, ou pós-política (Mouffe, 2000),
saparecer com o progresso da civilização, o po- abafam o caráter antagonístico-populista da
pulismo é constitutivo de qualquer dinâmica política.
política, podendo operar em contextos empí- Tipicamente, o mecanismo populista é colo-
ricos, ideológicos e históricos os mais diversos. cado em operação por uma liderança carismá-
Laclau e Mouffe oferecem uma síntese origi- tica que emerge em contextos de insatisfação
nal entre preocupações gramscianas com a pro- generalizada, alegando vir de fora do sistema
dução de hegemonia na história e o estrutu- e se colocando como paladino da ruptura e
ralismo de Ferdinand de Saussure e alguns de da mudança. A irrupção populista é como um
seus desdobramentos pós-estruturalistas. É este “terremoto” que reacomoda a estrutura polí-
último eixo que, como aprofundei em outro tica como efeito do acúmulo de demandas não
lugar (Cesarino, no prelo b), permite aproximar contempladas por parte de grupos sociais ini-
sua teoria do populismo do plano analítico da cialmente desconectados entre si. Como des-
cibernética. Os autores seguem, ainda, o teórico creve Laclau (2005), o que a liderança carismá-
político antiliberal Carl Schmitt ao considerar tico-populista bem sucedida faz é, justamente,
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articular essas demandas em uma “cadeia de “povo” é produzida pelo líder e seu aparato mi-
equivalência” longa e inclusiva o suficiente diático (Cesarino, 2006). O mesmo vale para as
para subsumir a heterogeneidade inicial numa identidades definíveis a partir do espectro po-
identidade política comum, que ele chama de lítico esquerda-direita, que, no caso brasileiro,
“povo” (que, no caso em tela, consistiu em uma vem sendo significativamente rearranjado no
maioria eleitoral). No processo de extensão da contexto antagonístico que levou à ruptura po-
cadeia para os múltiplos grupos e indivíduos pulista recente (Malini, Ciarelli & Medeiros,
que compõem a sociedade, particularidades e 2017; Solano, 2018).
diferenças entre eles são seletivamente excluí-
das em favor da mobilização de símbolos e pa-
lavras de ordem capazes de ligar todos ao líder.
Essa equivalência é construída através da
mobilização de significantes vazios ou flutuan-
tes,3 frequentemente envolvendo noções vagas
de nação, ordem, segurança e mudança. Daí o
caráter impreciso, redundante, simplificador,
emotivo, “vazio” – em uma palavra, performa-
tivo (Cesarino, 2006) – do discurso populista:
só assim é possível produzir equivalência entre
uma ampla gama de particularidades. As res-
sonâncias desse tipo de discurso político com
a linguagem da memética e outras dinâmicas
próprias das redes sociais já foram notadas – [Figura 1] Reorganização do espectro
por exemplo, a hashtag como significante vazio político, a partir da qual um candidato que
que articula “multidões” insatisfeitas online, e passou quase trinta anos no baixo clero
o “espírito transgressor” que faria das mídias do Congresso Nacional logra se colocar
digitais avenidas privilegiadas para “represen- como alguém vindo de fora do sistema
tar os não-representados” excluídos da grande (por Luiz Philipe Orleans e Bragança, eleito
mídia e do sistema político (Gerbaudo, 2018, deputado federal pelo PSL em 2018).
p. 748). Há, todavia, diversos outros pontos –
mais do que de afinidades, de co-constituição
estrutural (Cesarino, no prelo b) – entre a dinâ- Além do eixo paradigmático ligando líder e
mica das redes sociais e a mecânica populista. povo, a extensão discursiva5 das cadeias de equi-
Um deles diz respeito ao modo como, para valência opera através de um eixo sintagmático
Laclau e Mouffe, as identidades políticas, indi- que produz uma fronteira entre o que cha-
viduais ou coletivas, não preexistem às relações mei do sistema líder-povo (Cesarino, no prelo
que as constituem ou à sua nomeação enquanto b) e uma exterioridade constitutiva (Laclau,
tal4 – o que vai ao encontro de discussões sobre 2005) que opera como uma alteridade ameaça-
o modo como subjetividades são formadas atra- dora: nos termos de Schmitt, um inimigo. Para
vés de perfis em mídias sociais (Malini, 2016). Laclau, no populismo, o antagonismo amigo-i-
No caso do populismo, essa performatividade nimigo se sobrepõe a outra divisão, entre elite
torna-se explícita a ponto de ser possível tra- e povo, a partir da qual o líder alega representar
çar, com relativa precisão, as táticas discursivas os “de baixo” contra algum tipo de elite privile-
através das quais a identidade comum com o giada, auto-interessada, hipócrita e/ou corrupta.
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[Figura 2]
Co-produção
emergente da
identidade de
direita a partir da
oposição à identidade
de esquerda em
grupos públicos Embora o próprio Outro aspecto essencial ao populismo, e mi-
de WhatsApp Laclau não destaque nimizado pela teoria política liberal, diz res-
(pós-eleição). este ponto, é impor- peito ao papel central dos afetos e paixões no
tante que a figura do comportamento e formação das identidades
inimigo funcione também enquanto um pe- políticas. Há todo um complexo argumento
rigo permanente à integridade do grupo e/ou psicanalítico embasando este eixo da teoria de
da sua liderança. Essa virtualidade onipresente Laclau (2005), baseado em Freud e Lacan, que
funciona como uma pressão externa que per- não cabe recuperar aqui.6 Para nossos propó-
mite manter a coesão do sistema líder-povo, sitos, é suficiente notar que o líder populista
ainda que falte organicidade à sua base interna. constrói o povo principalmente através de ape-
Essa função é frequentemente desempenhada los emotivos, estéticos, morais, que podem ser
por rumores ou denúncias de risco à vida do tanto positivos (esperança, desejo de ordem, de
líder e/ou de seus aliados, por parte de algum justiça ou de mudança) quanto negativos (ódio
inimigo externo ou, às vezes, interno (infiltra- ao inimigo, ressentimento, revanchismo, de-
dos, traidores); ou por alegações de persegui- cepção). É aqui que o carisma pessoal do líder
ção, acompanhadas de narrativas conspirató- assume importância, normalmente acompa-
rias. A carta-testamento de Getúlio Vargas e a nhado de algum tipo de culto à personalidade.
referência de Jânio Quadros a “forças terríveis” No populismo digital, agências não-humanas,
são exemplos paradigmáticos desse elemento como “algoritmos emocionais”, passam a de-
na história brasileira. Na minha experiência de sempenhar parte importante dessa função mo-
pesquisa, conteúdos desse tipo, que desempe- bilizadora, ou de produção de equivalência,
nhavam uma função principalmente mobili- por meio de afetos (Malini, Ciarelli & Medeiros,
zadora, estiveram entre os mais circulados no 2017).
WhatsApp durante a campanha eleitoral. É por isso que julgamentos políticos den-
tro do mecanismo populista parecem simples
e reducionistas, pois baseados em emoções,
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[Figura 3] Fontes originais do carisma: anti-politicamente correto e espontaneidade.

julgamentos morais e estéticos e numa esco- mais conhecida mídia desse tipo seja a Voz do
lha binária entre amigo e inimigo. Mas é jus- Brasil, canal radiofônico obrigatório ligando di-
tamente essa simplicidade que permite o alar- retamente (e unidirecionalmente) líder e povo,
gamento inigualável da mobilização do tipo estabelecido durante o processo de rotinização
populista, pois ela não tem como condição de do populismo de Getúlio Vargas. Neste ponto,
possibilidade nenhum tipo de educação po- é possível perguntar em que medida o caráter
lítica no sentido específico: as pessoas fazem digital das mídias mobilizadas pelas lideran-
seus julgamentos através dos mesmos parâme- ças populistas contemporâneas introduz uma
tros utilizados em situações da vida quotidiana. ruptura com a tradição populista pregressa.
Daí também a crescente confusão de fronteiras, Algumas dessas possíveis inovações serão des-
a ser destacada na seção conclusiva, entre a po- tacadas a seguir, através de conceitos da ciber-
lítica e outras esferas sociais. nética e teorias de sistemas.
Finalmente, cabe notar que tanto a ruptura
populista quanto a sua posterior rotinização
enquanto governo têm como pré-condição a 4. Populismo digital e a
mobilização e o controle bem-sucedido de cer- perspectiva cibernética
tas mídias por parte do líder, através das quais
ele busca assegurar acesso direto, exclusivo e
contínuo aos seus seguidores. O líder popu- Além de evidenciar como o conteúdo da
lista constrói o povo através de mediações di- campanha Bolsonaro nas redes se estrutu-
versas, que, no passado, envolviam principal- rou com base em padrões discursivos descri-
mente mídias analógicas como jornais, rádio tos pela teoria do populismo, o presente es-
e televisão, bem como contágio através de mí- tudo busca aproximar a seguinte questão: o que
dias informais como rumores ou em situações ocorre com a mecânica e efeitos do populismo
de efervescência coletiva (multidões). Talvez a quando ele passa a operar cada vez mais por
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meio de mídias digitais? Proponho que pensar


a digitalização do populismo passa por combi-
nar a teoria de Laclau e Mouffe com elementos
da cibernética e teorias de sistemas. O próprio
Laclau foi bastante influenciado por Saussure e
pelo pós-estruturalismo de Derrida e Lacan, e
sua glosa da hegemonia gramsciana passa por
este prisma. Além disso, as próprias ciências [Figura 4] Duplo mecanismo de redução
e engenharias da computação e do digital têm da complexidade: eixo da equivalência
um ponto de origem histórico comum com as (“todo o Brasil”, verde-e-amarelo) e da
diversas teorias estruturalistas e de sistemas: a diferença (“contra o PT”, afetos de raiva).
cibernética dos anos 1940 (Cesarino, no prelo
b). Não por acaso, na análise do modus ope- usuários, que formam a base do atual modelo
randi do populismo digital, é possível identifi- de negócios das mídias sociais (Marres, 2018;
car mecanismos clássicos descritos por autores Mirowski, 2019). Durante a campanha, a eficá-
explicita ou implicitamente ligados a perspec- cia flutuante do “kit gay” foi especialmente re-
tivas de sistemas, como Gregory Bateson (1972), veladora desse aspecto: qualquer um podia cor-
Niklas Luhmann (1995) e Mary Douglas (2002). tar, colar, montar (gravar um vídeo, um áudio)
Entre as características do populismo que e compartilhar sua própria versão caseira desse
encontram ressonância com mecanismos des- signo do inimigo. Nas redes bolsonaristas, o kit
critos em abordagens de sistemas estão o seu gay circulou como puro significante (no sen-
caráter relacional, binário, reducionista, per- tido de Saussure), a ponto de perder qualquer
formativo, neguentrópico, eficaz e, a depender conexão com um referente concreto. Ninguém
da situação, autopoiético. Partindo da teoria de nunca viu o kit gay original, e, não obstante, en-
sistemas de Luhmann (1995), por exemplo, é quanto significante flutuante ele produziu efei-
possível entendê-lo como um mecanismo de tos reais sobre o eleitorado (Kalil et al., 2018).
redução da complexidade baseado em um có- Como nos sistemas com fechamento opera-
digo binário amigo-inimigo, que visa agregar cional de Luhmann (1995), o processo de re-
e estabilizar um sistema líder-povo isolado dução da complexidade é necessariamente
de um entorno potencialmente ameaçador seletivo. No eixo da equivalência, elementos
(Cesarino, no prelo b). A cadeia de equivalência particulares das múltiplas demandas são ex-
de Laclau é essencialmente um processo desse cluídos em favor de características mais am-
tipo, onde demandas e interesses heterogêneos plas e vagas que possam articulá-las entre si
são reduzidos a um denominador comum: um (Laclau, 2005) – processo análogo à formação
significante vazio negativo (i.e., que produz a de online crowds através de hashtags e outras di-
fronteira do grupo através da oposição a um nâmicas agregadoras das mídias sociais que ex-
inimigo externo) ou positivo (i.e., que produz pandem as conexões à custa da simplificação
a integração do grupo através da equivalência do conteúdo (Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017;
entre líder e povo). Gerbaudo, 2018).
No contexto contemporâneo, a eficácia dos Um ponto pouco desenvolvido por Laclau,
significantes vazios (Laclau, 2005) é ainda po- que é central ao populismo em sua versão digi-
tencializada pela maleabilidade extrema do tal, diz respeito à estrutura multiescalar e ani-
digital, bem como pela produtividade recur- nhada desse tipo de sistema (Luhmann, 1995).
siva dos conteúdos produzidos pelos próprios Como minhas observações e de outros (Kalil et
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[Figura 5] Diferentes
versões cut-and-
paste do significante
flutuante “kit gay”
circuladas em redes
bolsonaristas durante
a campanha eleitoral.

binário amigo-ini-
migo delimitador da
fronteira entre o sis-
tema e seu entorno.
Aquele que foi sele-
cionado pelo líder
como seu antagonista
participou do sistema,
al., 2018; Nemer, 2018; dos Santos et al., 2019) portanto, enquanto exterioridade constitutiva
sugerem, a campanha digital de Bolsonaro ope- (nos termos de Laclau) ou enquanto ambiente
rou através de uma estrutura segmentar análoga ou entorno (nos termos de Luhmann). Nas
à descrita pelo antropólogo britânico Edward eleições de 2018, essa posição estrutural se an-
Evans-Pritchard (2013): ao mesmo tempo que corou na figura imediata de um dos candida-
visava efeitos de microdirecionamento a per- tos – Fernando Haddad – mas também flutuou
fis de eleitores específicos, era capaz de man- amplamente enquanto Lula, PT, Jean Willys,
ter uma unidade virtual no “topo”. A imagem comunismo, militância, resistência, globalismo,
do candidato, ao mesmo tempo unitária e frag- velha política... numa série paradigmática (no
mentada – nos termos lévi-straussianos de sentido de Saussure) virtualmente inesgotável.
Kalil et al. (2018), caleidoscópica –, circulou
no WhatsApp através de uma topologia, estra-
tegicamente construída, de “redes policêntri-
cas segmentadas e integradas” do tipo “hidra”
(Santos et al., 2019). Esse padrão caleidoscópico
e segmentar, que se vale de affordances (Gibson,
1986) digitais próprias do WhatsApp e da eco-
logia de mídias mais ampla em que o aplicativo
se insere, introduz, a meu ver, uma inovação
importante com relação ao populismo analó-
gico (Cesarino, 2019b).
Já no eixo da diferença, elementos externos [Figura 6] Significante vazio do inimigo
ao sistema líder-povo (como fatos noticiados flutua a partir de uma divisão binária inicial:
pela imprensa, análises feitas por especialis- bandido, vagabundo versus cidadão de bem.
tas ou contestações levantadas pela oposição) Memética exorta o usuário a escolher um
só eram interiorizados enquanto informação lado e a definir o voto com base em imagens.
significativa mediante sua redução ao código
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Mas embora o adversário só penetre no sis- rítmico evidente no aparato mobilizador do po-
tema líder-povo mediante sua redução ao có- pulismo digital, notadamente o firehosing diário
digo binário amigo-inimigo, no período elei- de conteúdos compartilhados via WhatsApp.8
toral ele operou como uma exterioridade ativa, Além disso, o ritmo da mobilização era impri-
pois suas reações ao mecanismo populista ten- mido pelo próprio conteúdo. Eram bastante
deram a retroalimentá-lo, estabilizando um frequentes, por exemplo, áudios supostamente
padrão relacional similar ao que Bateson cha- gravados por alguém relevante, mas que se pas-
mou de cismogênese simétrica (Bateson, 1972; savam por alguém relevante (um procurador
Karczeski, 2018). Ou seja, as reações do inimigo da república, um funcionário de embaixada,
às ações da liderança populista, e vice-versa, um empregado de alguma empresa da grande
geraram uma escalada progressiva da divisão mídia) trazendo “fatos” exclusivos ou narrati-
entre os dois polos que foi instrumental para vas alarmistas. Textões ou vídeos alertavam as
promover o candidato do PSL de deputado ale- pessoas para algum tipo de ameaça ou com-
górico e inexpressivo a novo salvador da pátria plô em andamento, fosse por parte do Partido
(Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017). O aspecto dos Trabalhadores (PT), do Tribunal Superior
simétrico do antagonismo amigo-inimigo foi Eleitoral (TSE), ou mesmo de entidades “ter-
central neste processo, pois parte da eficácia do roristas” internacionais como o Hezbollah e as
mecanismo populista adveio da canibalização e Farc.
inversão (Laclau, 2005) de enunciados e ações Outro ponto de convergência com as teo-
do oponente. Esse aspecto foi estruturante de rias de sistemas diz respeito à questão da efi-
boa parte da memética da campanha Bolsonaro, cácia, ou da verdade, como efeito performativo
e era ocasionalmente explicitado enquanto a posteriori às relações. Muitos são os desdobra-
“jogar o feitiço contra o feiticeiro” ou “dançar mentos possíveis desse ponto, em especial no
conforme a sua música”. que tange à co-produção contemporânea entre
mídias digitais, neoliberalismo, pós-verdade e
neopopulismos (Mirowski, 2019; Cesarino, no
prelo b); porém, eles estão além do escopo da
presente análise. Aqui, basta notar que, como
nos sistemas, a eficácia é intrínseca à própria
definição do populismo: ou o líder é eficaz na
construção do “povo”, ou não é uma liderança
populista no sentido próprio do termo. Assim,
ainda que alguns dos padrões e táticas aqui
analisados possam ser encontrados nas campa-
nhas digitais de outros candidatos em 2018 e
mesmo antes, a eficácia – que, neste contexto,
[Figura 7] Espelhamento estético e inversão era eleitoral – esteve inequivocamente do lado
esquerda-direita. Canibalização da palavra de do candidato do PSL.
ordem feminista “lute como uma garota”. Finalmente, chegamos ao que vejo como o
principal elemento diferencial da eficácia do
A perspectiva de sistemas permite, ainda, populismo em sua modalidade digital: sua to-
lançar luz sobre outro ponto que se mos- pologia fractal. Se na sua versão analógica a
trou central no caso em tela: a temporalidade eficácia do populismo dependia pesadamente
da mobilização populista.7 Havia um aspecto do carisma pessoal do líder, em especial sua
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(1986) – pelo caráter propriamente digital das


mídias sociais: em especial, sua capacidade de,
por um lado, produzir equivalência entre in-
divíduos originalmente desconectados entre si,
e, por outro, produzir diferença e polarização
através de bolhas digitais (Gerbaudo, 2018). O
avanço da fractalização pela via digital se dá,
sugiro, na mesma escala em que opera o me-
canismo populista segundo Laclau: num plano
metacomunicativo e em larga medida subcons-
ciente, que Bateson (1972) chamaria de deute-
ro-aprendizado. Trata-se, portanto, de uma
nova realidade, que complica sobremaneira
dicotomias como individual-coletivo, liberda-
de-controle ou espontaneidade-manipulação
(Horst & Miller, 2012; Malini, 2016). Em con-
traste com o pleito presidencial anterior, uma
hipótese é que, em 2018, essa potência fracta-
lizadora tenha sido intensificada pela massifi-
cação dos smartphones e seus aplicativos sociais,
notadamente o WhatsApp.
Mas, no caso em tela, o impulso decisivo
para a explosão do processo de fractalização
foi contingente: o atentado a faca sofrido pelo
candidato ainda durante a campanha para o
primeiro turno. A partir deste momento, for-
mou-se o que chamei de “corpo digital do rei”
(Cesarino, 2019b), numa analogia com a tese
clássica de Ernst Kantorowicz (1998) sobre teo-
logia política medieval.9 No contexto republi-
cano, onde a fonte da soberania é secularizada
de Deus para o povo, o corpo físico debilitado
do candidato foi substituído por um corpus po-
liticum formado por seus eleitores, que passa-
[Figura 8] Mobilização permanente ram a fazer a campanha no seu lugar. Os “mar-
através de ameaças potenciais. queteiros do Jair” depois flutuaram enquanto
“fiscais do Jair”, “escudo do Jair”, “exército do
capacidade oratória (Cesarino, 2006), na versão Jair” e, depois da posse, a “base parlamentar do
digital o líder distribui o próprio mecanismo Jair” (Figura 20) – os próprios usuários incor-
populista para seus seguidores, que passam a poraram o mecanismo populista e passaram a
reproduzi-lo de modo espontâneo. Essa frac- (re)produzir seus padrões de linguagem digital.
talização, que potencializa de modo inédito a Em outras palavras, as mídias digitais bolsona-
capilaridade do mecanismo populista, é pro- ristas não são apenas um veículo de comuni-
piciada – no sentido da affordance de Gibson cação entre líder e povo enquanto emissário e
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receptor dados de antemão: elas são o sistema uma relação não-mediada com a liderança. Isso
líder-povo. Tanto líder quanto povo se co-cons- é observado na expectativa, demonstrada por
tituem recursivamente em e através desse apa- muitos usuários ativos nessas redes, de que se
rato digital: um tipo de mediação que produz o está apenas a um tweet, um post, um comparti-
efeito paradoxal de uma ausência de mediação lhamento do smartphone do líder ou de alguém
(Mazzarella, 2019); uma topologia assimétrica do seu entorno (como os filhos ou algum mi-
que se quer horizontal (Marres, 2018); um dire- nistro). O próprio presidente alimenta regular-
cionamento discursivo que prolifera enquanto mente essa expectativa, ao postar no Twitter ou
espontaneidade (Santos et al., 2019). Facebook que tomou uma decisão oficial de-
pois de ouvir pedidos de algum de seus apoia-
dores em suas redes.
Vai se disseminando, por este meio, uma ilu-
são de que intermediários como instituições
e especialistas são desnecessários, ou mesmo
prejudiciais, ao processo democrático (Cesarino,
2019b; Cesarino, no prelo b) – que passaria a
se resumir, como o presidente eleito colocou
em sua cerimônia de diplomação, a uma re-
lação “direta” entre líder e povo. O polo insti-
tucionalista do espectro democrático descrito
por Mouffe (2000) é assim esvaziado em favor
do polo populista, a ponto de a democracia ser
equacionada simplesmente à vontade do povo,
incorporada no líder e que deve ser implemen-
tada contra tudo e todos, inclusive contra o sis-
tema institucional de pesos e contrapesos.

[Figura 9] Fractalização do mecanismo


populista forma o “corpo digital do rei”.

[Figura 10] Binarismo antagonístico


Como se nota no print screen de um dos gru- projetado para a relação entre o polo
pos de WhatsApp trazido acima, a fractalização institucionalista (“três poderes”) e o polo
se apoia na (falsa) experiência, propiciada pelas da soberania popular (“povo unido”) nas
mídias sociais, de que o eleitor comum teria manifestações pró-governo de 26/05/2019.
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Por fim, cabe notar a conexão estreita entre para reinstituir a ordem em novas bases, se-
o que se convencionou chamar de pós-verdade guiu uma progressão bem nítida. Ela é evidente
e o populismo digital – algo que discuto mais inclusive na estética dos movimentos de rua:
detalhadamente em outro lugar (Cesarino, no começando com os protestos difusos reivindi-
prelo a; Cesarino, no prelo b; Waisbord, 2018). cando “demandas sociais” de 2013 (Malini, 2016,
Desde o início da campanha eleitoral, o meca- p. 28), que foram gradualmente ganhando uma
nismo populista bolsonarista buscou limitar o estrutura antagonística mais clara através dos
acesso do “povo” a uma esfera pública de caráter movimentos anticorrupção e pró-impeachment
mais aberto e pluralista, bem como a estruturas em 2015 e 2016 (Recuero, Zago & Soares, 2017;
tradicionais de produção de conhecimento au- Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017; Solano, 2018),
torizado. Foram muitos e variados os conteú- alcançando a sua forma final com a unificação
dos direcionados à deslegitimação da imprensa pela liderança populista em 2018 (Ortellado &
profissional e de especialistas. Numa das no- Ribeiro, 2018; Kalil et al., 2018).
táveis inversões de que falou Laclau (2005), as A “realidade” da crise que propicia a irrupção
mídias sociais, e em especial o WhatsApp, se bem sucedida do líder carismático está sujeita
tornaram o domínio da verdade e da liberdade às mesmas mediações em jogo na mecânica
de expressão, enquanto a esfera pública pas- populista. Certos tipos de conteúdo que costu-
sou a ser condenada como o lócus de fakes e mavam “vazar” nos grupos de WhatsApp pró-
manipulações. Nesse contexto, torna-se cada -Bolsonaro tanto antes quanto depois da elei-
vez mais difícil diferenciar mídia centralizada ção deixam entrever que a própria percepção
e oficial de mídia informal e descentralizada; de crise que ensejou a ruptura populista tam-
discernir verdades de rumores; fatos de conspi- bém vem sendo, em alguma medida, perfor-
rações. Acredito que esta seja uma das bases da mada digitalmente. Destacam-se, aqui, conteú-
eficácia da campanha de Bolsonaro, que ope- dos “caseiros” ou repassados de outras mídias
rou aquilo que Jean e John Comaroff (2004) tematizando o caos na segurança pública e um
chamaram de “dialética da produção e redução” esgarçamento radical da ordem moral: fotos
da desordem: bolhas digitais que, por um lado, de policiais, bandidos ou inocentes mortos, ví-
produziam entropia (desordem informacional) deos explícitos de violência e ofensas sendo co-
para, por outro, oferecer um discurso agrega- metidas (espancamentos, assaltos, vandalismo,
dor do tipo populista que prometesse imprimir tortura, estupros) e narrativas apócrifas sobre
ordem à desordem. crimes noticiados na imprensa ou nas pró-
prias mídias sociais, sobre justiça sendo feita
ou não.10 Outra linha que chama atenção diz
5. Des/ordem e populismo respeito a conteúdo pornográfico: fotos e ví-
deos de nudes ou sexo explícito, links para sites
de pornografia ou prostituição online, às vezes
O caso brasileiro é, em muitos sentidos, compartilhados por celulares registrados no es-
quase um exemplo de livro-texto da teoria de trangeiro. Um terceiro tipo relativamente fre-
Laclau e Mouffe. Nos últimos anos, o processo quente refere-se a fraudes: usuários oferecendo
de transformação de uma multidão insatisfeita a venda desde dinheiro e cartões de crédito fal-
heterogênea, que se formou espontaneamente sos até carteiras de motorista, diplomas escola-
em reação a uma sensação difusa de crise e de- res e outros documentos fraudados. É comum
sordem, no “povo” que formaria a base eleitoral que as próprias regras dos grupos tragam in-
da liderança que alegava vir de fora do sistema terdições a esse tipo de conteúdo – outro forte
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modo análogo aos pa-


radigm shifts descritos
por Thomas Kuhn
(2006), reorganizar
a experiência cogni-
tiva em novas bases
– bases estas que, ale-
gando vir de fora do
sistema, reivindicam
a capacidade de pu-
rificá-lo. No caso do
populismo, essa reor-
ganização passa por
uma série de inver-
sões (Laclau, 2005),
cuja proeminência se
Figura 11. Violência, pornografia, criptomoedas e fraudes liga ao fato de ruptu-
nos grupos de WhatsApp. ras populistas demar-
carem e buscarem
indicativo de que sua presença nos celulares de reverter ciclos de hegemonia histórica. Neste
muitos brasileiros seja comum. sentido, pode-se dizer que a campanha e o go-
É possível, portanto, que o WhatsApp e ou- verno Bolsonaro buscam uma reversão do ciclo
tros tipos de mídias digitais – como já vinham hegemônico aberto com a redemocratização e
fazendo programas televisivos punitivistas – a Constituição de 1988: daí a inversão radical
possam estar não apenas contribuindo para da narrativa sobre 64, idolatria de torturado-
conformar uma percepção de crise (de segu- res reconhecidos, desmonte da legislação am-
rança pública, corrupção, sexualidade e cos- biental, indígena, de direitos humanos e de
tumes), mas oferecendo uma gramática para a provisões de seguridade social instituídas pela
sua compreensão. Essa gramática parece acom- constituinte. A esse respeito, há ainda um eixo
panhar uma tendência mais geral, notada por analítico importante, mas que cabe apenas in-
inúmeros autores (Mouffe, 2000; Fraser, 2001; dicar aqui, tematizando a aliança, a partir dos
Comaroff & Comaroff, 2004; Wacquant, 2009), anos 1970, entre setores conservadores (nota-
de moralização dos julgamentos políticos. Isso damente evangélicos) e os campeões da agenda
coaduna com o modo como opera a mecânica neoliberal que vem se observando nos Estados
populista, que oferece a qualquer pessoa uma Unidos (Cooper, 2017; Brown, 2019), e agora no
gramática simples – em especial, um bina- Brasil, com o governo Bolsonaro.
rismo moral entre pessoas boas e más – atra- No caso em tela, diversas inversões foram
vés da qual se atribui responsabilidade pelo operadas através de noções também mobi-
caos social e, por consequência, se avalia as lizadas por outros populistas de direita pelo
possíveis soluções (no caso, a liderança moral- mundo, como “esquerda caviar” ou “socialista
mente pura, representante direta do “cidadão de iPhone”. Deste modo, a esquerda – agora
de bem”). alargada para abranger forças outrora de cen-
Nesse contexto de crise e desordem, o que tro-direita – passou a ser associada a uma
o mecanismo populista bem sucedido faz é, de elite corrupta, hipócrita e auto-interessada,
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enquanto a liderança emergente da versão bra- 2019b). Estas últimas foram, pelo contrário,
sileira da alt right americana passou a ser vista amplamente mobilizadas pelo mecanismo po-
como representando o povo, os de baixo (atra- pulista para operar como o inimigo, ameaça ou
vés de símbolos recorrentes na memética como elite corrupta: a “ditadura gayzista”, as “femi-
o relógio Casio e a caneta Bic). Essa mesma ca- nazis”, o MST “terrorista”, o movimento negro
deia de equivalência foi progressivamente se que se vitimiza e divide a sociedade. O que
estendendo, por exemplo, para o globalismo eram minorias oprimidas passaram a ser vis-
enquanto plano de dominação mundial e des- tas com fonte de opressão e de cerceamento
truição da soberania dos estados-nação por de liberdades, ou como segmentos indevida-
uma suposta “elite global” liderada por George mente privilegiados – através de significan-
Soros. tes vazios frequentes na memética como o da

Figura 12. Líder é como o “povo”: “bolsa” (-travesti, -prostituta, -presidiário) ou,
humilde e sem preconceitos. O inimigo quando a mira estava voltada para artistas, a
(a “esquerda”) é elite hipócrita. “Lei Rouanet”. Construiu-se, em oposição a essa
concepção do inimigo, uma cadeia de equiva-
lência articulada através de identidades vagas
Outra inversão bem-sucedida partiu do anti- como indivíduos, cristãos, trabalhadores ou
-politicamente correto, que já vinha ganhando “patriotas”, colocados como preteridos ou opri-
tração no mundo online (Gerbaudo, 2018) con- midos pela militância pelo direito à diferença.
trariando, e ao mesmo tempo espelhando, a O modo como o eleitorado feminino foi mo-
militância feminista, LGBTIQ e outras pautas bilizado pela campanha Bolsonaro na reta final
identitárias. A campanha Bolsonaro construiu do primeiro turno foi particularmente instru-
parte da sua base eleitoral mobilizando indi- tivo da maneira como o mecanismo populista
víduos e grupos subalternos que não se reco- operacionalizou a sobreposição, descrita por
nheciam através da gramática das políticas de Douglas (2002), entre classificações simbóli-
reconhecimento (Kalil et al., 2018; Cesarino, cas baseadas em noções de pureza e impureza
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Eduardo Bolsonaro no dia seguinte ao #EleNão


(“As mulheres de direita são muito mais bo-
nitas do que as de esquerda. Não mostram o
peito na rua e não defecam para protestar. Ou
seja, as mulheres de direita são muito mais hi-
giênicas que as da esquerda”) e em jingles de
campanha como o Proibidão do Bolsonaro, de
MC Reaça (“Dou pra CUT pão com mortadela /
E pras feministas, ração na tigela / As mina de
direita, são as top mais bela / Enquanto as de
esquerda tem mais pelo que cadela”).

Figura 14. Binarismo antagonístico (bandido/


cidadão de bem; preto-e-vermelho/verde-
e-amarelo; ameaça/segurança) e técnica
[Figura 13] Memes contra a de espelhamento e inversão produzem
militância da “esquerda lacradora” e nas usuárias afetos de repulsa visceral ao
o “politicamente correto”. feminismo e às mulheres da esquerda.

e demarcações de fronteiras entre grupos. A Além de representar o establishment sujo


construção de uma fronteira entre o dentro e o que a liderança populista promete purificar,
fora do sistema líder-povo se valeu largamente o inimigo externo opera como um perigo
de uma gramática de limpeza e sujeira, ordem (Douglas, 2002) que ameaça a integridade do
e desordem, beleza e feiura: desde noções mais grupo e ajuda, assim, a manter sua coesão in-
sutis, como o bandido que deve ser “varrido” da terna. As noções douglasianas de impureza e
coexistência com os homens de bem através do perigo também ajudam a entender por que, no
encarceramento ou da morte física, da corrup- populismo, a relação com a alteridade toma
ção que “contamina” a sociedade, até figuras a forma não de um diálogo racional com um
bastante explícitas como a feminista que é feia, adversário legítimo, mas, na linha de Mouffe
urina na rua e não tem noções básicas de hi- (2000), de uma relação afetiva e encorporada
giene. O investimento discursivo neste eixo foi de repulsa, nojo e animosidade contra um
grande, como ficou evidente na declaração de inimigo que deve ser eliminado. A mesma
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[Figura 15] Outros desdobramentos


do mecanismo douglasiano: sujeira/
limpeza; beleza/feiura; animalidade/
humanidade; partes baixas/partes altas.

gramática foi extensivamente utilizada para Outro ponto diz respeito à inversão que se in-
endereçar outros domínios, como na série de corpora na própria figura da liderança carismá-
memes abaixo: tico-populista – associada por Tania Luhrmann
(2016), em uma análise da eleição de Trump, à
questão também douglasiana do tabu. Embora
o carisma pessoal de Jair Bolsonaro destoe de
lideranças populistas históricas que depen-
diam pesadamente de seus dotes e personali-
dades individuais, como Perón ou mesmo Lula
(Cesarino, 2006), ele logrou projetar para a sua
base a imagem de um homem simples e ho-
nesto. O que a oposição via como despreparo e
truculência, longe de serem entendidos como
defeitos por seus eleitores, também passaram
a ser lidos nessa chave, como evidências de al-
guém do povo que é igual a eles. Em outras
palavras, o que eram vícios no contexto pré-
-populista (falta de formação acadêmica, ex-
Figura 16. Ordem / periência de gestão, conhecimento especiali-
desordem; limpeza / zado, trato e linguagem formal, participação
bagunça; linearidade em debates qualificados) tornaram-se virtudes,
/ confusão; segurança e vice-versa. Ou, na versão teológica dessa in-
/ perigo; verde e versão presenteada por seu apoiador, o pastor
amarelo / vermelho evangélico Silas Malafaia, no primeiro ato pú-
e preto; 17 / 13. blico de Bolsonaro após o resultado eleitoral
(um culto na Assembleia de Deus Vitória em
Cristo): “Deus não escolhe os capacitados; ca-
pacita os escolhidos”.
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Por fim, o carisma pessoal de Jair Bolsonaro parece ser central para compreender o apelo
também foi propagado por meio de uma versão e sucesso da nova direita não apenas no Brasil,
neoliberal de culto à personalidade, encapsu- mas globalmente. Isso aponta para uma ten-
lada na alcunha de “mito”. No mundo online, a dência emergente fundamental, e provavel-
imagem do candidato (e de Sergio Moro) figu- mente duradoura: a redefinição do que se en-
rava em vídeos e memes, ou em versões cartu- tende por política na era digital.
nísticas, misturada a de figuras heroicas como
super-heróis ou soldados. Durante a campanha,
Jair Bolsonaro tornou-se, num sentido muito 6. Considerações
concreto, uma marca, se transfigurando espe- conclusivas: redefinindo a
cialmente em camisetas vendidas em camelôs,
lojas e websites. política na era digital
Depois da eleição, essa tendência se desdo-
braria numa verdadeira indústria de empreen-
dedores digitais de toda sorte. Para muitos dos No campo da antropologia digital, uma pro-
militantes pró-Bolsonaro que tentam fazer di- blemática frequente diz respeito à confusão de
nheiro com canais do YouTube (que explodi- fronteiras que tem acompanhado a digitaliza-
ram nos grupos de WhatsApp após a eleição) ção crescente da vida em todas as suas face-
e múltiplas outras formas de monetização de tas, desde as mais públicas até as mais íntimas
cliques, palestras, livros e master classes, ati- (Horst & Miller, 2012). Com efeito, concluo su-
vismo político e empreendedorismo se mis- gerindo que, na campanha de 2018, houve uma
turam. Longe de ser incidental, esse aspecto diluição ainda mais acentuada das fronteiras
entre a esfera político-eleitoral e outros domí-
nios da vida, como o culto às celebridades, pa-
rentesco, religião, indústria do entretenimento
(música, filmes, séries), esportes (futebol, lutas,
clubes de tiro) e, em especial, a linguagem e as
dinâmicas identitárias e de sociabilidade pró-
prias das redes sociais. É frequente ouvir de
eleitores de Jair Bolsonaro que eles não se in-
teressavam por política até ele se candidatar à
presidência – mas isso porque sua estratégia
de campanha digital transformou radicalmente
o que se entendia por política até então. O ca-
risma digital e a simplicidade discursiva tanto
da memética quanto do discurso populista, que
foram a marca da sua campanha, fizeram com
que qualquer um se sentisse à vontade e en-
corajado a participar da política nesses novos
termos. O que era até então considerado a nor-
matividade político-eleitoral foi ou relegado ao
Figura 17. Do meme para o domínio do inimigo (a “velha política”) ou des-
offline: empreendedorismo digital contado como irrelevante ou obsoleto (debates
e a “marca” Bolsonaro. enfadonhos com outros candidatos, planos de
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governo longos e em jargão burocrático, opi-


niões incompreensíveis de especialistas).
As analogias com o futebol são especial-
mente reveladoras dessas confusões de fron-
teiras – no caso, entre eleitor e torcedor. A jul-
gar pela intensidade da mobilização e euforia
observadas nos grupos de WhatsApp, atuar
na campanha de Jair Bolsonaro foi para mui-
tos como participar enquanto torcedor de um
campeonato muito importante e competitivo
– e curiosamente, a Copa da FIFA havia ter-
minado dois meses antes da campanha come-
çar. Possivelmente, não há situação em que a
comunidade imaginada (Anderson, 1983) da
nação brasileira emerja de modo mais explí-
cito e intensivo do que durante a copa: como
na campanha, durante poucas semanas o país
inteiro é tomado por uma efervescência ex-
traordinária. Essa intensidade de mobilização é
mantida através da expectativa de vitória, bem
como do antagonismo com relação aos adver-
sários – que, na partida final, assume o caráter
binário também característico de um segundo
turno eleitoral.
Como no futebol, na campanha de 2018 pa-
recia impossível não estar em um dos dois
lados – embora existisse, tal posição neutra ou
ambígua tendia a ser mal vista (por exemplo,
o termo acusatório “isentão”, utilizado tanto à
esquerda como à direita). Como o torcedor, o
eleitor deseja não apenas estar do lado do ven-
cedor, como se sente parte integrante da vi-
tória. As ressonâncias com a ideia da torcida
como o décimo segundo jogador foram muitas,
e essa gramática continuou em operação após
a eleição.
Além disso, comum durante a campanha
foi uma desconfiança generalizada com rela-
ção ao árbitro do jogo, notadamente as suspei-
tas lançadas contra o próprio sistema eleitoral,
em especial a confiabilidade das urnas ele-
trônicas (Ortellado & Ribeiro, 2018). Também Figura 18. Analogias futebolísticas durante
como no futebol, o antagonismo contra tor- a campanha (acima, excertos do blog de
cedores do outro time ou contra o árbitro campanha de Ernesto Araújo “Metapolítica17”).
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crescente da polí-
tica tem levado o ci-
dadão comum a se
sentir cada vez mais
qualificado para dar
uma opinião autori-
zada sobre os fatos –
o que converge com
a ascensão de epis-
temologias “popula-
res” em contextos de
pós-verdade e crise
do sistema de peritos
Figura 19. Os “marqueteiros do Jair” durante a campanha (Cesarino, no prelo
eleitoral se transformam, após a posse, na “base parlamentar” do a; Cesarino, no prelo
presidente, representada por símbolos da seleção de futebol. b).11
Finalmente, vale
destacar que um dos
podia ocasionalmente se converter em violên- golpes de mestre da campanha Bolsonaro foi
cia verbal ou mesmo física. A atitude de violên- incorporar como seu símbolo maior a camisa
cia sublimada em jocosidade típica do ethos fu- canarinho, já apropriada para a direita pelo an-
tebolístico consolidou-se em alguns dos slogans tipetismo dos anos anteriores. Desde o início, a
populares da campanha do PSL, como “é bom campanha do PSL contrapôs o verde-e-amarelo
jair se acostumando” e “chora que dói menos”. ao vermelho do PT, do MST, do comunismo,
Após o resultado eleitoral, não foram poucas como se o que ele representasse não fosse parte
as menções na mídia a analogias entre as come- legítima da nação brasileira: “nossa bandeira
morações da vitória de Bolsonaro com uma vi- nunca será vermelha”. “Esquerdistas” eram re-
tória final da seleção (inclusive, devido à coin- petidamente exortados a deixar a nação, para
cidência das cores, alguns dos fakes que mais Cuba ou para a Venezuela. Isso ficou claro es-
circularam traziam fotos de agremiações de rua pecialmente no segundo turno, quando a cam-
durante a copa como se fossem manifestações panha Haddad substituiu o vermelho por uma
a favor do candidato). Proliferaram acusações simbologia verde, amarela e azul – o que foi
de que os perdedores estariam “torcendo con- alvo de intensa ridicularização no WhatsApp
tra” o novo governo, negando assim à oposição por parte dos eleitores de Bolsonaro, que já
seu papel legítimo em um regime democrá- se consideravam donos da simbologia nacio-
tico. Após a eleição, o ritmo de mobilização in- nal. Como vimos aqui, a simbologia das cores
tensa nas redes sociais, inclusive no WhatsApp, e outros elementos estéticos estão longe de ser
a princípio se arrefeceu (Santos et al., 2019; apenas cosméticos, visto que a mobilização do
Nemer, 2019). Porém, houve uma reorganiza- tipo populista opera em larga medida através
ção no sentido de manter redes de “informação” de significantes vazios, no plano subconsciente
sobre o novo governo, como ocorre ao longo dos afetos. Dentro de um quadro cismogênico
do ano com as mídias permanentes que infor- avançado como foi o caso da campanha de 2018,
mam e debatem os campeonatos e a situação a simples visão de uma blusa amarela ou ver-
dos clubes. Como no futebol, a digitalização melha era capaz de evocar raiva ou indignação,
115
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PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO

como camisas de times adversários antes ou da Cambridge Analytica, Steve Bannon, e pos-
depois de um clássico muito disputado. sivelmente também por técnicas de marketing
Diante da radicalidade da ruptura populista digital e táticas militares de guerra híbrida que
observada nas eleições brasileiras de 2018, é ecoam muitos dos padrões metacomunicativos
preciso concluir apontando duas recursivida- identificados acima (Kalil et al., 2018; Leiner &
des importantes implicadas na digitalização Dominici, 2019).
crescente da política. Em primeiro lugar, há, Em segundo lugar, como outros também têm
na campanha digital de Bolsonaro e em ou- notado, é preciso reconhecer a profundidade
tras como a de Trump, uma recursividade evi- dos efeitos da digitalização da política aponta-
dente entre teoria e prática do populismo. Em dos aqui. A arquitetura digital das mídias so-
outras palavras, a notável regularidade e con- ciais, conforme ela se configurou nos termos
sistência dos padrões discursivos do tipo po- dos modelos de negócios das grandes empre-
pulista observados no universo de conteúdo sas do setor (Marres, 2018; Santos et al, 2019),
digital analisado indicam, mais do que a capa- opera por meio de ciclos cibernéticos cada vez
cidade da teoria de “explicar” a empiria, que mais capilares que incidem de modo profundo
é a prática político-eleitoral que vem sendo sobre as subjetividades, afetos e visões de
moldada por algum tipo de “ciência do popu- mundo dos usuários (Mirowski, 2019; Marres,
lismo” (Cesarino, 2019a). Se ela passa especifi- 2018; Gerbaudo, 2018; Malini, 2016). Neste sen-
tido, o fato de o mecanismo populista conti-
nuar operando mesmo após a campanha pode
produzir efeitos duradouros sobre as sensibili-
dades políticas dos cidadãos, e por conseguinte,
sobre os próprios alicerces do estado democrá-
tico de direito tal qual o conhecemos – que,
como notou Mouffe (2000), depende de um de-
licado equilíbrio e sistema de pesos e contrape-
sos entre os polos opostos da institucionalidade
e da soberania popular.

Figura 20. Contraste entre o vermelho e o


verde-e-amarelo metaforiza o ataque à faca
sofrido por Bolsonaro como um ataque ao
Brasil por parte dos mesmos inimigos.

camente por Laclau, é impossível dizer – não


obstante fatos inusitados como a menção a
este autor no blog de campanha do chanceler
Ernesto Araújo.12 Pode ser que passe pela no-
tória conexão entre Eduardo Bolsonaro e o ex-
-estrategista da campanha Trump e ex-diretor
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Notas finais 6 Laclau articula a discussão de Lacan


sobre o “objeto a” à perspectiva de Gramsci
sobre hegemonia, a partir de uma perspectiva
multiescalar similar à da cibernética: acontece-
1 O termo é utilizado aqui para designar ria no plano da construção do self individual
identidades políticas emergentes que se auto- um processo análogo ao que se passa no plano
-declaram de “direita” – “liberal” ou “conser- da construção da identidade coletiva de povo.
vador” – no Brasil (Kalil et al., 2018; Solano,
2018). 7 Para Luhmann, a temporalidade não diz
respeito à res extensa, ou ao “tempo vazio e ho-
2 Em 2018, havia 120 milhões de usuá- mogêneo” de que falou Walter Benjamin, mas
rios de WhatsApp no Brasil (dos Santos et al., é imanente aos sistemas enquanto tais.
2018), num universo de cerca de 160 milhões
de adultos (segundo dados do IBGE). Durante 8 O firehosing é normalmente explicado
o primeiro turno, o Instituto Datafolha levan- por sua função diversionista. Aqui, tática po-
tou que 60% dos eleitores de Jair Bolsonaro se pulista e dinâmica algorítmica das redes sociais
informavam pelo aplicativo – a maior propor- voltam a convergir, ao promover click-baits ba-
ção entre os candidatos (Lemos et al., 2018). seadas em conteúdos alarmistas e sensaciona-
Outra pesquisa, do BigData/Avaaz, apontou que listas (Marres, 2018; Tandoc et al., 2018).
98,21% dos eleitores do candidato foram expos-
tos a uma ou mais mensagens com conteúdo 9 Os dois corpos do rei traça as origens
falso durante a eleição, e que 89,77% acredi- cristãs da duplicidade entre o corpo físico,
taram que fossem verdadeiras (Pasquini, 2018). mortal do indivíduo que ocupa a coroa (corpus
No Brasil, as operadoras trabalham com paco- naturale) e a coroa em si, o corpus politicum,
tes de dados grátis para WhatsApp, e as classes espiritual e transcendente, fonte última da so-
mais baixas costumam ter o celular como única berania baseada no direito divino.
forma de acesso à Internet (Spyer, 2017).
10 A etnografia de Spyer (2017) identifi-
3 O conceito é de Ferdinand de Saussure. cou esse padrão de uso do Facebook e especial-
Na prática histórica, os significantes vazios são mente do WhatsApp entre os moradores de um
mobilizados enquanto significantes flutuantes, povoado na Bahia, inclusive por parte do tráfico
ou seja, cujo significado vai variando e sendo e de policiais locais. Muitos autores (Comaroff
adaptado ao longo do processo de construção & Comaroff, 2004; Wacquant, 2009) notaram
de hegemonia. uma correlação estreita entre o crescimento do
punitivismo legal e da agenda neoliberal – jus-
4 Nomeação é um conceito central de tamente, os dois pilares do governo Bolsonaro,
Lacan no qual se apóia Laclau (2005). representados pelos “superministros” Moro e
Guedes.
5 A noção de discurso remete especial-
mente a Wittgenstein, e não se limita a pala- 11 Discuto em outro lugar (Cesarino, no
vras e símbolos, mas inclui gestos e ações – o prelo b) como o bolsonarismo tem avançado
que quer que produza significado na interação através dessas epistemologias emergentes,
social. também propiciadas pelas mediações digitais:
formas de veridição fundadas na experiência
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pessoal e no retorno do “ver para crer”; em cau-


salidades ocultas e narrativas conspiratórias; e
na fronteira antagonística amigo-inimigo.

12 O nome de Ernesto Laclau aparece em


um post de 27 de setembro de 2018 intitulado
“Linha de transmissão”, onde Araújo (2018) tece
uma curiosa cadeia de equivalência do inimigo
que vai de Fernando Haddad até o “inferno”,
passando por Lula, Maduro, Chávez e Laclau.

Recebido em 23/06/2019
Aceito em 18/12/2019
121

ARTIGO

Responsabilidade
civil pelo uso
de sistemas
de inteligência
artificial:
em busca de um
novo paradigma

Enrico Roberto
Pesquisador do InternetLab e do Lawgorithm.
Doutorando em direito pela Universidade de
São Paulo.
122
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO

Responsabilidade
civil pelo uso
de sistemas de
inteligência artificial:
em busca de um
novo paradigma

Palavras-chave Resumo
responsabilidade No presente artigo, buscamos endereçar o pro-
civil / inteligência blema de como o direito civil poderia respon-
artificial / der a casos de danos causados por sistemas de
aprendizado de inteligência artificial. Para tal, traçamos uma
máquina / risco definição de sistema de inteligência artificial
com foco em uma de suas técnicas de imple-
mentação, o aprendizado de máquina. Tais
sistemas são definidos, portanto, por sua ca-
pacidade de autoaprendizado e de tomar deci-
sões autônomas, sendo ainda desenvolvidos de
forma difusa, i.e., por autores diversos e po-
tencialmente anônimos, e em uma “black box”,
i.e., de forma que seu funcionamento interno
não possa ser satisfatoriamente esclarecido. A
partir do enfoque da “interação homem-má-
quina”, ou seja, da constatação de que sistemas
de inteligência artificial são utilizados e desen-
volvidos em complemento à ação humana, rea-
lizamos breve ensaio sobre a subsunção de re-
Artigo desenvolvido gras brasileiras de responsabilização subjetiva e
em programa de objetiva a tais sistemas, ressaltando os desafios
pós-graduação que sua aplicabilidade encontra em diferentes
mediante bolsa de situações. Por fim, realizamos exposição não
estudos oferecida exaustiva a respeito das iniciativas legislativas
pela CAPES no mundo sobre o tema.
123
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PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO

Civil liability for


the use of artificial
intelligence systems:
towards a new
paradigm

Keywords Abstract
civil liability / In this article, we seek to address the pro-
artificial intelligence blem of how civil law could respond to cases
/ machine learning / of damage caused by artificial intelligence sys-
risk tems. For this, we draw a definition of arti-
ficial intelligence systems focusing on one of
its implementation techniques, machine lear-
ning. Such systems are defined, therefore, by
their capacity for self-learning and autono-
mous decision-making. Besides that, we note
how their development takes place diffusely,
i.e., by diverse and potentially anonymous au-
thors, and in the scope of a black box, i.e., so
that their internal functioning can not be satis-
factorily clarified. From an approach which we
will call the “man-machine interaction”, that
is, from the observation that artificial intelli-
gence systems are used and developed in addi-
tion to human action, we conduct a brief essay
on the applicability of Brazilian rules on sub-
jective and objective liability to such systems,
stressing the challenges that are posed to such
applicability in different situations. Finally, we
make a non-exhaustive exposition of the legis-
lative initiatives on the subject taking place in
the world.
124
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PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO

1. Responsabilidade civil Assim, diante disso, nos deparamos com um


pelo uso de sistemas problema: como o direito civil poderia responder a
casos de danos causados por sistemas de inteligência
de inteligência artificial: artificial?
em busca de um novo Como apontado, as situações fáticas citadas
paradigma acima para contextualizar o debate não forne-
cem, ainda, material suficiente para a elabora-
ção de estudos de caso substanciais. Trata-se
No dia 19 de março de 2018, no Arizona, de questão ainda incipiente, sem informações
Estados Unidos, um carro autônomo da Uber suficientes para apresentar uma análise robusta
atropelou e feriu fatalmente uma mulher de empiricamente sustentada. Porém, com base
49 anos, Elaine Herzberg. Logo antes do aci- no que já sabemos, e sem a pretensão de apre-
dente, segundo vídeo gravado pelo próprio veí- sentar respostas ou soluções estanques nesse
culo, Elaine atravessou abruptamente a rua mal momento, é possível levantar questões que cir-
iluminada, fora da faixa de pedestres, e carre- cundam o problema e pensar nas possibilida-
gava na mão uma bicicleta com sacos de com- des hoje postas de resposta jurídica.
pras (Levin, 2018). O veículo, um Volvo mo- Para tanto, propomos, em primeiro lugar,
dificado para dirigir de maneira autônoma, uma revisão bibliográfica introdutória de estu-
parece não ter feito qualquer manobra ou de- dos sobre o funcionamento da inteligência arti-
sacelerado para evitar a colisão, e a motorista ficial, como forma de compreender exatamente
“reserva” que estava no carro – com o intuito com que tipo de mecanismo estamos lidando,
exatamente de intervir em casos de emergên- assim como construir o objeto de análise do
cia – não o fez. O caso, a primeira vez em que presente artigo. Neste ponto, definiremos “sis-
um carro autônomo levou um pedestre a óbito, tema de inteligência artificial” e “interação
é chocante e imediatamente levanta a questão: homem-máquina”, assim como apontaremos
quem é responsável por essa morte? duas características de seu desenvolvimento
Os exemplos de danos causados por sistemas com importante relevância jurídica: sua produ-
de inteligência artificial (conceito que definire- ção difusa e a opacidade de seu funcionamento
mos adiante) não se limitam a carros autôno- (a black box da inteligência artificial).
mos. Outro exemplo interessante ocorreu re- Em seguida, apresentamos um pequeno en-
centemente em Hong Kong, onde a empresa saio sobre como o direito brasileiro, partindo
Tyndaris Investments, proprietária da plataforma das normas hoje existentes quanto às respon-
de investimento autônomo K1, está sendo pro- sabilidades subjetiva e objetiva, poderia res-
cessada pela perda, por um investidor, de 20 ponder a esse tipo de problema real – identifi-
milhões de dólares. O valor foi perdido em camos possíveis respostas, limites e desafios a
vista de uma má decisão de investimento to- esse exercício de subsunção normativa.
mada por esse sistema autônomo (Beardsworth, Por fim, oferecemos um levantamento não
2019). exaustivo das iniciativas legais atualmente exis-
É fácil perceber como o uso crescente de tentes, que têm como objetivo regular as ati-
sistemas de inteligência artificial pode levar a vidades envolvendo sistemas de inteligência
danos a seus usuários ou outras pessoas. Por artificial. Trata-se de estudo que não possui a
mais que os exemplos concretos ainda sejam pretensão de esgotar o tema, mas tão somente
relativamente limitados, os problemas dessa introduzir o debate e apontar para possíveis
realidade vêm se impondo pouco a pouco. caminhos.
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Para o desenvolvimento das ideias do ar- dos quais se pode pensar em inteligência artifi-
tigo que se segue, em especial o mencionado cial. Especificamente, o termo pode referir-se a
exercício de subsunção normativa, utilizare- máquinas capazes de: (i) pensar como humanos;
mos como ponto de partida, para maior clareza (ii) agir como humanos; (iii) pensar racional-
e concretude nos raciocínios apresentados, o mente ou (iv) agir racionalmente. Na esteira da
primeiro caso apontado acima, o do atropela- possibilidade de “agir racionalmente”, elabora-
mento de Elaine Herzberg por um carro autô- ram a hoje frequentemente utilizada definição
nomo da Uber no Arizona. No entanto, dada a de agente racional: “aquele que age de forma a
mencionada insuficiência de tal material para alcançar o melhor resultado ou, quando há in-
estudos empíricos aprofundados e a proposta certeza, o melhor resultado esperado” (Russel
desse artigo de apresentar caminhos pretensa- & Norvig, 2016, p. 2, tradução livre).
mente aplicáveis a sistemas de inteligência ar- Trata-se, como se vê, de uma definição cen-
tificial no geral, conforme descrito na formu- trada na ideia de “resultado” e na possibilidade
lação de nosso problema acima, procuraremos de alcançá-lo de uma forma ou de outra. No en-
a todo momento “universalizar” as argumenta- tanto, como bem apontado por Scherer (2015, p.
ções trazidas no contexto desse caso específico. 361), a dificuldade de se definir concretamente
um sistema a partir de tais noções, em vista da
amplitude de significados possíveis para “resul-
2. Inteligência artificial: tado” ou “melhor resultado esperado”, tem por
introdução ao objeto corolário a dificuldade de fixação do termo em
uma tecnologia objetivamente delimitada – e,
por consequência, sua limitada aplicabilidade a
questões regulatórias. Em verdade, conforme
passamos a elucidar em seguida, buscamos nos
2.1. Sistemas focar para os fins deste artigo em um dos tipos
de inteligência específicos de inteligência artificial: os algorit-
mos de machine learning, ou aprendizado de má-
artificial quina. Trata-se de vertente da inteligência ar-
tificial que, principalmente com o aumento na
Embora uma definição precisa e abrangente quantidade de bases de dados disponíveis e na
de inteligência artificial possa desempenhar capacidade computacional dos microchips de si-
um papel essencial em muitas questões jurídi- lício, viu impressionante desenvolvimento nos
cas e éticas, não é particularmente necessária últimos anos (Alpaydin, 2016, p. 1).
ou desejável para os fins deste artigo. A des- Assim, no âmbito desta exposição, um “sis-
peito disso, importante notar, a título de es- tema de inteligência artificial” é definido como
clarecimento, que “inteligência artificial” é um um software que possui capacidades de autoaprendi-
termo que, desde sua concepção, nos anos 1950, zagem e pode, portanto, tomar decisões autônomas
pressupõe diferentes definições e abordagens, independentes. Como todo software, deve encon-
cada qual em seus diferentes contextos. Tais trar-se armazenado em algum hardware, impor-
definições e abordagens, muitas vezes focadas tância do qual variará entre os diferentes sis-
na capacidade de emular uma ou outra capaci- temas de inteligência artificial (por exemplo, a
dade humana, foram celebremente estrutura- importância do hardware para delimitar o que
das por Russel e Norvig (2016, p. 2), que identi- constitui um “carro autônomo” é maior do que
ficaram quatro pontos focais diferentes a partir para delimitar o que constitui um “assistente
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de voz”, tecnologia normalmente armazenada inteligência artificial não são integralmente


nos servidores da empresa que a disponibiliza). limitados por regras humanas predetermina-
Com efeito, para muitos autores, é exatamente das, eles podem encontrar soluções que as pes-
essa capacidade de “autoaprendizagem” o que soas não haviam considerado, ou que, mesmo
caracteriza determinado sistema como imbuído que pareçam a princípio menos intuitivas, são
de “inteligência artificial” (Čerka, Grigienėa & mais eficientes (e.g. do ponto de vista de gasto
Sirbikytėb, 2015, p. 4; Scherer, 2015, p. 365; energético) para atingir os objetivos para o qual
Calo, 2015, p. 538).1 Neste item, trataremos os sistemas em questão foram criados (Balkin,
brevemente, portanto, dos dois aspectos tra- 2015, p. 52). É precisamente esta capacidade de
zidos por essa definição: (i) capacidade de au- criar soluções inesperadas que torna a utiliza-
toaprendizagem e (ii) decisões autônomas ou ção de sistemas de inteligência artificial cada
independentes. vez mais atrativa numa variedade de áreas. Às
Como mencionado, as capacidades de au- soluções, ou ao “output” dos sistemas de inteli-
toaprendizagem são possibilitadas e delimita- gência artificial, por envolverem a escolha de
das por técnicas que se enquadram no conceito determinada solução em detrimento de outras,
de aprendizado de máquina. Trata-se, de ma- e como forma de ressaltar seu caráter indepen-
neira geral, de um processo que permite que dente de algoritmos pré-determinados, damos
um sistema aprenda novos fatos a partir de o nome de “decisão”.
dados sem algoritmos explícitos, bem como O fato central a se atentar aqui, assim, é que
adaptar tais fatos aprendidos a novas situações tais decisões não são diretamente decorrentes
(Alpaydin, 2016, p. 17). da programação original de seus desenvolvedo-
Algumas abordagens comuns à autoaprendi- res e são, portanto, até certo ponto, incontro-
zagem incluem os campos da aprendizagem em láveis, como bem apontado por Scherer (2015,
árvore de decisão, por regras de associação, redes p. 366):
bayesianas, aprendizagem de reforço, deep lear-
ning, entre outras (Čerka, Grigienėa & Sirbikytėb, Pode ser difícil para os seres humanos
2015, p. 4; Alpaydin, 2016, p. 20; Ertel, 2013, pp. manter o controle de máquinas que são
203-226). Embora estas sejam frequentemente programadas para agir com considerável
citadas como áreas específicas da inteligência autonomia. Há um grande número de
artificial, elas não passam de processos diferen- formas pelas quais uma perda do controle
tes para o que se apontou acima: em outras pa- pode ocorrer: um mau funcionamento,
lavras, a percepção de padrões em dados para tal como um arquivo corrompido ou
sua conformação em novos cenários, de forma a dano físico ao equipamento de input; uma
permitir conclusões não explicitamente busca- brecha de segurança; o tempo de resposta
das por seus programadores. As diferentes téc- superior dos computadores comparados
nicas mencionadas diferem em seus algoritmos aos seres humanos; ou programação
e, principalmente, na forma como os dados são defeituosa. Essa última possibilidade
fornecidos e como novos resultados surgem a levanta os desafios mais interessantes,
partir desses dados. A capacidade de autoapren- porque cria a possibilidade de que uma
dizagem, portanto, refere-se exatamente à possi- perda do controle pode ser consequência
bilidade que tais sistemas têm de realizar tais inferên- direta, mas involuntária, de uma escolha
cias não esperadas e não pré-programadas a partir de de design consciente. O controle, uma vez
um conjunto de dados. perdido, pode ser difícil de se recuperar
Precisamente porque os sistemas de se o sistema de IA for projetado com
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recursos que lhe permitam aprender e do sistema (Knight, 2018). Em determina-


se adaptar. Estas são as características das maneiras de aplicação do machine learning,
que fazem da IA uma potencial fonte de especialmente em deep learning, as informa-
risco público numa escala que excede em ções externas que são alimentadas ao sistema
muito as formas mais familiares de risco – os inputs – são direcionadas a uma rede de
público que são apenas o resultado do “neurônios artificiais” ou “nodos” que proces-
comportamento humano. (Tradução livre) sam os dados e, em seguida, distribuem os co-
mandos necessários – os outputs – para operar
o sistema no mundo físico ou virtual. No en-
Assim, por tais características, fala-se que tanto, na maior parte dos casos, ainda não é
as decisões tomadas por sistemas de inteli- possível, tecnicamente, refazer o caminho ló-
gência artificial são independentes ou autônomas. gico tomado pelos nodos do sistema para saber
Adiante, utilizaremos os termos “decisão au- o porquê de tal operação.
tônoma” e “decisão independente” de forma O funcionamento interno de sistemas de
intercambiável. inteligência artificial é tão intrincado que até
Por fim, é importante notar aqui que a ca- mesmo os engenheiros que os projetam não
pacidade de tomar decisões independentes e são tecnicamente capazes de apontar motivos
aprender com a própria experiência é justa- específicos que os levem a tomar determinada
mente o que torna a inteligência artificial atra- decisão (Knight, 2018). E, da mesma forma, não
tiva; não se trata meramente de característica há ainda nenhuma maneira óbvia de projetar
inafastável de uma tecnologia qualquer, mas tais sistemas para que passem a ser capazes de
também sua própria vantagem frente a outras fornecer tal explicação, por mais que pesquisas
formas de solução de problemas.2 nesse sentido tenham sido realizadas nos últi-
mos tempos (Snow, 2017).
Interessante notar que uma das soluções
2.2. Produção que vem sendo defendida pela academia (Bird,
difusa e black box Barocas, Crawford, Diaz, & Wallach, 2016), e que
é inclusive objeto do Projeto de Lei nº 2018/49
Além disso, há outras duas características da cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, con-
da inteligência artificial que têm importante siste em estabelecer diretrizes para a criação de
reflexo jurídico e que merecem menção aqui. mecanismos de transparência em tais sistemas
Muitas vezes, decisões independentes serão, (The New York City Council, 2018), exatamente
assim, (i) ininteligíveis ou opacas, decorrência di- para facilitar a percepção de elos causais e per-
reta da estrutura que baseia seu próprio fun- mitir accountability pela sua implementação e
cionamento, sujeito a uma inexplicabilidade a uso. Com efeito, a importância da utilização de
que comumente se dá o nome de “black box” da sistemas de inteligência artificial inteligíveis,
inteligência artificial; e (ii) criadas de forma di- inclusive para o direito, vem sendo defendida
fusa, sem possibilidade clara de se especificar a pela academia (Maranhão, 2019).
contribuição de um ou outro autor para o re- Fora isso, a “produção difusa” dos sistemas
sultado final do desenvolvimento do sistema. de inteligência artificial também apresenta
Explicamos. desafios. Trata-se de fenômeno que encon-
Muito se fala da black box da inteligência arti- tra suas bases no movimento do software livre,
ficial, essa “caixa preta”, cujo interior não pode que surgiu na década de 1980 como reação à
ser visualizado, onde ocorre o processamento lógica proprietária das grandes empresas de
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desenvolvimento de softwares. Os softwares li- 2.3. A interação


vres podem ser definidos, então, como “progra- homem-máquina
mas de computador cujo código-fonte é aberto
e permite que qualquer um o estude, o copie, o Sob a alcunha de “interação homem-má-
modifique e o redistribua” (Torres, 2013, p. 12). quina”, buscamos identificar a realidade de
Nessa esteira, o sucesso do software livre que todo sistema de inteligência artificial (ou,
como forma de assegurar o acesso público a com efeito, qualquer máquina) estará inevita-
códigos de programação abriu espaço para a velmente em contato com algum ser humano,
disponibilização, em bibliotecas abertas, de al- seja ele seu desenvolvedor, usuário ou a própria
goritmos ou protótipos de algoritmos, a partir coletividade. Essa realidade toma diferentes
dos quais programadores podem desenvolver nomes em diferentes locais: enquanto profis-
livremente seus próprios sistemas – e.g., siste- sionais de Tecnologia da Informação preocu-
mas de inteligência artificial. Em muitos casos, pam-se em desenvolver “Interfaces Homem-
dada a enorme quantidade de pessoas e empre- Máquina” (HMI – Human Machine Interfaces),
sas, frequentemente anônimas e espalhadas por a própria base técnica da realidade que bus-
dezenas de países, que participam na criação de camos descrever, outros falam de “ciborgues”
um sistema de inteligência artificial, torna-se (Haraway, 2006).
tarefa impossível saber quem que contribuiu Um exemplo contemporâneo dessa interação
com o que para determinado projeto.3 Se se se mostra em classificação criada pela Society
permite que tais contribuições sejam acessadas of Autonomous Engineers (SAE), sociedade de pa-
e utilizadas livremente, ainda por cima, como, dronização de standards baseada nos Estados
por exemplo, por meio de bibliotecas abertas, Unidos, e depois utilizada pela National Highway
como a sci-kit learn, disponibilizada no GitHub, Traffic Safety Administration (NHTSA), autoridade
ou a TensorFlow, do Google, os problemas de federal de trânsito deste país, para ordenar os
responsabilização se multiplicam, por mais que níveis de autonomia de carros autônomos. A
uma tal open robotics, tal como defendida por taxonomia proposta classifica o nível de auto-
Calo (2010), por exemplo, seja sob muitos vie- nomia de veículos em um número de 0 a 5,
ses desejável.4 sendo do nível 5 o carro capaz de trafegar sem
Temos construído com isso, portanto, nosso qualquer interferência humana e em qualquer
objeto. Ao falarmos de sistemas de inteligência condição climática, e do nível 0 o que apre-
artificial, estamos falando de sistemas opacos, senta somente capacidades automáticas básicas,
desenvolvidos de forma difusa, com a capaci- como a emissão de avisos sonoros em casos de
dade de autoaprendizado e de tomarem deci- risco (SAE International’s On-Road Automated
sões independentes. Tais características, no en- Vehicle Standards Committee, 2013).
tanto, por mais que representem, para nossas A existência dessa taxonomia, assim, revela o
finalidades, a própria delimitação do que cons- aspecto central da interação homem máquina:
titui um sistema de inteligência artificial, não o fato de que a inteligência artificial serve, em
expressam a realidade de sua inserção social grande parte, como complemento à ação de seu
e uso por seres humanos de maneira absoluta. usuário, e que somente em poucos casos po-
Para trazê-las à análise jurídica, faz-se necessá- deremos falar de decisões finais completa-
ria a apresentação de outro conceito: o da “in- mente independentes por parte da máquina.
teração homem-máquina”. Paralelamente, como é claro, em nenhum caso
poderemos falar de um sistema de inteligência
artificial criado de forma independente de seres
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humanos. Com isso, podemos concluir que, na 2017, p. 16), sistemas de inteligência artificial
maior parte do tempo, ao se falar de ações pre- também causam – e causaram – danos. O caso
tensamente autônomas, estará ocorrendo, em de Elaine Herzberg é paradigmático, mas, do
realidade, uma interação homem-máquina. ponto de vista da responsabilidade subjetiva, rela-
Essa observação é de suma importância jurí- tivamente simples. Seria necessário averiguar,
dica. Nesses casos, será sempre importante esta- na prática, se houve ação ou omissão voluntá-
belecer os limites e possibilidades de tal intera- ria, negligência ou imprudência nos termos do
ção: é claro que, em muitas situações, o humano Código Civil – por parte de algum ser huma-
responderá nos limites de sua esfera de controle e das no.5 Nesse caso, o motorista “reserva”, um dos
ações que tomou ou deixou de tomar. A automação polos humanos da interação homem-máquina,
de parte de suas ações não deve afastar o sim- poderia ser culpado: será que poderia ter inter-
ples fato de que o homem deve responder, sub- vindo antes do acidente, e só não o fez por ne-
jetivamente, nos limites de sua imputabilidade. gligência ou imperícia? O teste de subsunção
Assim, na terminologia utilizada por este artigo, nesse caso já é conhecido do direito há séculos,
fica claro que o humano responderá no limite por mais que os fatos sejam novos, e não cabe
de sua atuação no “polo humano” da interação aos nossos propósitos delimitá-lo aqui.
homem-máquina. Nesse ponto, relevante notar A responsabilidade subjetiva também poderia
que grande parte da legislação atualmente em recair sobre os próprios produtores ou outros
discussão no mundo para administrar os pro- envolvidos na cadeia de produção do veículo,
blemas resultantes da utilização de carros autô- naturalmente. Seria o caso de peças montadas
nomos procura, mesmo que inadvertidamente, com imperícia, falta de vistorias legal ou tec-
criar limites e deveres para o “polo humano” nicamente necessárias, etc. Pertinente notar
da interação, conforme veremos adiante. que a produtora do LiDAR (radar de reconhe-
Se de um dos lados da régua da “interação cimento de imagens do carro autônomo) ins-
homem-máquina” se encontra a atuação hu- talado no Volvo do caso do Arizona já alegou
mana, deve-se considerar, juridicamente, ana- sua falta de culpa pela tragédia (Felton, 2018).
lisá-la exatamente sob as regras da responsa- Nesse caso, a averiguação de responsabilidade
bilidade subjetiva, aquela efetivamente focada subjetiva dos produtores, dada a complexidade
no sujeito de direito. A ela contraporemos, nos do produto e da cadeia produtiva, seria eviden-
itens seguintes, a responsabilidade objetiva, temente bastante dificultosa (não é à toa que o
aquela cujo foco é o objeto, como tentativa de Código de Defesa do Consumidor estabelece a
abordagem do outro polo da interação: a do responsabilidade solidária entre os participan-
“objeto máquina”. tes da cadeia de produção). Nos casos de carros
autônomos e de outros sistemas de inteligência
artificial, as dificuldades multiplicam-se prin-
3. O polo humano cipalmente em vista da difusão de seus pro-
da interação: dutores e pela black box inerente a esse tipo de
tecnologia, conforme apontado acima.
responsabilidade A discussão sobre responsabilidade subje-
subjetiva? tiva de produtores de sistemas de inteligência
artificial tem, inclusive, interessante intersec-
ção com as polêmicas sobre viés algorítmico:
Mesmo sendo, em alguns casos, menos pro- a discussão sobre vieses inerentes às decisões
pensos a acidentes do que humanos (Smith, de algoritmos de machine learning, advindos
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principalmente da subjetividade na escolha 4. Responsabilidade por


dos dados utilizados para seu treinamento decisões autônomas
(Giannandrea, 2017). É o caso, por exemplo,
de softwares de reconhecimento facial que não independentes
reconhecem pessoas negras, em vista de não
haver representatividade desta população nos
dados utilizados para seu treinamento (Breland,
2017). Ou, em caso ainda mais preocupante, 4.1. Em busca
software utilizado para previsão de crimes nos de um novo
Estados Unidos, o COMPAS, que concluiu que
pessoas negras são mais propensas a cometê- paradigma
-los, resultado esse proveniente do fato de que
tal algoritmo foi alimentado com dados de pes- O caso que se apresenta do outro lado da
soas efetivamente presas – e sujeitas, com isso, régua da interação homem-máquina, nesse
aos vieses aos quais os policiais e outros ope- momento, merece atenção: e as decisões toma-
radores do sistema carcerário americano estão das de forma efetivamente independente? Conforme
submetidos (Giannandrea, 2017). Se, com a ex- apontado, carros autônomos e outros sistemas
periência da indústria, passar a ser previsível de inteligência artificial são “sistemas de au-
esse tipo de viés, havendo inclusive formas toaprendizagem”: imbuídos de algoritmos de
simples ou boas práticas para evitá-lo, e se há machine learning, aprendem a tomar decisões a
culpa por parte dos desenvolvedores ao cria- partir de padrões em conjuntos de dados. As
rem software propenso a danos em vista da não decisões que tomam podem ser, portanto, in-
observação de tais boas práticas, poderia caber dependentes, i.e., independem da vontade tanto
a discussão de sua responsabilização subjetiva do fabricante quanto do usuário do sistema.
caso tais danos efetivamente se consumassem. Essas decisões, por estarem fora da esfera de
Claro que, no limite, com a gradativa cons- atuação tanto dos fabricantes quanto do usuá-
cientização pública a respeito dos riscos impos- rio do sistema, em regra não lhes poderiam ser
tos por essas tecnologias, normas de conduta atribuídas.
mais claras para os polos humanos da interação, Temos, com isso, sistemas capazes de tomar
inclusive usuários do sistema, poderão ser ela- decisões a partir de experiências e dados, com
boradas. Avisos públicos que informem sobre pouca ou nenhuma interferência humana, cujo
a implementação de tais ferramentas, locais processo de tomada de decisão é invisível aos
exclusivos para seu uso (e.g. faixas exclusivas olhos humanos, e que muitas vezes serão pro-
para carros autônomos ou altitudes reserva- duzidos por tantas pessoas concomitantes que
das para drones de entrega), manuais de instru- apontar responsáveis se tornaria praticamente
ções mais claros e iniciativas similares deverão impossível. Exemplo valioso para ilustrar os li-
fazer parte do arcabouço de normas de conduta mites testados aqui é o do robô Gaak, projeto
a serem esperadas dos que interagem com a in- de pesquisa de uma universidade sueca reali-
teligência artificial. zado no ano de 2002 (Higgens, 2002). Nesse
projeto, diversos animais-robô foram treinados
para agir como “presas” e “caçadores”; as presas
procurando por pontos de luz que eram inter-
pretados como “comida” e os caçadores ten-
tando capturar as presas. O intuito era testar
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a hipótese evolutiva da sobrevivência do mais este viés.


forte, e liberar os robôs para desenvolverem
estratégias de sobrevivência por si próprios.
Ocorre que uma das presas, por razões desco- 4.2.
nhecidas, começou a circundar a grade do es- Responsabilidade
paço de testes, encontrou uma lacuna, escapou,
atravessou uma rodovia nas proximidades e objetiva
quase foi atropelada por um motorista que di-
rigia por lá. Trata-se de ilustrativo exemplo de Se a atuação humana é objeto do direito há
uma decisão autônoma. milênios, danos causados por objetos indepen-
Do ponto de vista da responsabilidade sub- dentemente de culpa por parte de seres huma-
jetiva, dificilmente se poderia falar em negli- nos é matéria relativamente mais recente, mas
gência ou em omissão nos termos do Código ainda assim realidade jurídica há muito co-
Civil por uma decisão autônoma tomada nes- nhecida (Bittar, 2005, p. 46). Com efeito, teoria
ses moldes. Em vista de não haver possibili- corrente da responsabilidade objetiva mostra
dade de atuação por parte dos desenvolvedores que esta passa a existir exatamente para fazer
ou usuários, ou mesmo de estabelecimento de frente a um risco social não facilmente endere-
uma relação causal entre suas ações e os danos, çado pela responsabilidade subjetiva (Marques,
em vista da produção difusa e opaca desse tipo Benjamin, & Miragem, 2013, p. 381).
de sistema, não se vislumbra a possibilidade de Assim, dada a existência do “risco da auto-
configuração da responsabilidade subjetiva. Da nomia” a que se aludiu acima, parecem tratar-
mesma forma, conforme veremos no item se- -se os danos causados por decisões autônomas
guinte, os institutos atualmente existentes de de caso claro de aplicação das normas de res-
responsabilidade objetiva apresentam algumas ponsabilização objetiva, como as do Código de
importantes lacunas. Defesa do Consumidor (CDC) (Brasil, 1990) ou a
Assim, de forma similar a bugs de software,6 do parágrafo único do Art. 926 do Código Civil
que até certo ponto são inevitáveis, decisões (Brasil, 2002), que passaremos a explorar per-
autônomas apresentam um risco inerente e functoriamente neste item.
que não pode ser completamente extinto: não
se pode afastar o fato de que sistemas de inte-
ligência artificial, dada sua relativa autonomia, 4.2.1. Código de Defesa
nunca venham a causar danos. Diversos auto- do Consumidor
res já vêm apontando a existência desse “risco
da autonomia”,7 o risco inerente à implemen- Por um lado, danos causados por sistemas
tação e uso de sistemas autônomos, propondo de inteligência artificial serão, muitas vezes,
diferentes maneiras de administrá-lo. As leis ocasionados por defeitos de fabricação ou de
atuais não foram pensadas para a implemen- programação, o que poderia ensejar, no Brasil,
tação desse tipo de tecnologia, e deve haver a responsabilidade objetiva do produtor do sistema
profunda discussão pela sociedade e pelas au- por defeito no produto, nos termos do CDC,
toridades reguladoras para entender em que caso as exigências dessa lei se apliquem ao caso
medida o direito deve responder a esses desa- concreto. No caso do Arizona, poderíamos ar-
fios. Entre outros, a verdadeira extensão e o de- gumentar, por exemplo, que o fato de o carro
senho legal dos limites da “interação homem- não ter brecado, ou não ter reconhecido com
-máquina” ganham relevante importância sob seus radares a presença da pedestre atropelada,
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constituiria um defeito? O Art. 12 do CDC esta- produto com defeito e este defeito ter
belece que “o produto é defeituoso quando não causado dano ao consumidor (...)?”
oferece a segurança que dele legitimamente se
espera”.
A dualidade de argumentos imediatamente Responde aos questionamentos, depois, afir-
se apresenta. Por um lado, contra a aplicação mando haver um “sistema misto” no Brasil,
do CDC pode-se dizer, numa perspectiva ma- onde todos os fundamentos se misturam.
croscópica, que o nível de segurança esperado Ressalta, no entanto, que o dever de segurança
de sistemas de inteligência artificial jamais será é “de todos os fornecedores que ajudam a in-
absoluto; sempre haverá a chance de aciden- troduzir (atividade de risco) o produto no mer-
tes, mesmo que em quantidade menor do que cado”, mas que “só haverá violação deste dever,
a esperada de condutores humanos. E, com nascendo a responsabilidade de reparar os
efeito, é difícil afirmar que uma decisão au- danos, quando existir um defeito no produto.
tônoma por parte de um sistema de inteligên- (...) No sistema do CDC, pode haver o dano e
cia artificial constitui um “erro”. Em realidade, o nexo causal entre o dano e produto (...), mas
tomar decisões autônomas com um certo grau de se não existir o defeito, não haverá obrigação
risco é um efeito esperado e desejado desse tipo de reparar.
de sistema, sendo a existência de danos poten- Se por um lado se pode dizer que houve a
ciais em tais decisões amplamente reconhecida criação de um risco com a introdução do sis-
e tecnicamente impossível de se afastar, con- tema no mercado, seria difícil afirmar, em di-
forme vimos acima. Por outro lado, pode-se versos casos, que uma decisão autônoma to-
dizer que o CDC, na verdade, faz referência à mada por uma máquina deve ser considerada
perspectiva microscópica: refere-se à expecta- um defeito, exatamente por se tratar de carac-
tiva de segurança de um produto individual- terística desejada e esperada desse tipo de tec-
mente considerado. E, é claro, espera-se que nologia. Essa argumentação é tão mais forte
carros autônomos não atropelem pedestres, ou, quanto mais autônoma e independente de in-
de forma geral, que sistemas de inteligência ar- terferência humana for a ação tomada pelo
tificial não causem danos. sistema.
A depender da maneira como se interpreta De qualquer maneira, se entendermos que
a finalidade dessas normas de responsabiliza- o CDC é aplicável ao caso,8 a discussão preci-
ção objetiva, pode-se decidir contra ou a favor saria se voltar, neste momento, à apuração da
da aplicação do CDC para tais casos. Nas pala- conduta da própria pedestre, para averiguar se,
vras de Marques, Benjamin e Miragem (2013, nos termos dessa lei, a culpa foi “exclusiva-
p. 381): mente do consumidor ou de terceiro”. Tratar-
se-ia de excludente de responsabilidade obje-
Mister perguntar inicialmente qual seria tiva sob o CDC, nos termos de seu Art. 12, §3º,
o fundamento dessa responsabilidade III. Percebe-se aqui que essa apuração de res-
[por defeito no produto]. Seria a culpa ponsabilidade não é a mesma que caberia caso
do fornecedor ao não agir com a o veículo fosse conduzido por um ser humano,
diligência necessária (...)? Seria o risco sujeito às regras de responsabilização subje-
criado pela atividade dos fornecedores tiva do Código Civil, conforme visto acima. Se
(...)? Ou teria esta responsabilidade fosse esse o caso, a inexistência de negligência
como base o resultado objetivo da ação ou imperícia por parte do motorista seria sufi-
do fornecedor, de ter introduzido um ciente para o afastamento da responsabilidade;
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no caso do CDC, somente a culpa exclusiva da Gaak mencionado acima, por exemplo. Caso se
pedestre (ou outro terceiro) afastaria a respon- concretize um mundo de open robotics e de pro-
sabilidade daquele que introduziu o sistema de dução robótica difusa, espera-se a criação de
inteligência artificial no mercado. riscos sociais que vão muito além daqueles en-
Com isso, a lei atual, quando aplicada aos dereçados pela proteção consumerista.
carros autônomos, parece tender a responsa- A black box e a produção difusa trazem ainda
bilizar a empresa – mesmo que tal aplicabi- outros desafios nesse contexto. O primeiro e
lidade seja em alguns aspectos questionável. mais patente é a questão da produção de prova.
A responsabilização da empresa por acidentes Para os produtores do sistema de inteligência
causados por carros autônomos, de fato, é um artificial, caso se encontrem sujeitos ao CDC
efeito que vem sendo largamente esperado e e, com isso, à inversão do ônus da prova, a
explorado: conforme diversos autores vêm no- black box pode levar involuntariamente a um
tando, a implementação em massa de tecno- aumento desmedido de sua responsabilidade,
logias autônomas provavelmente resultará, na já que eles próprios não poderiam provar que
prática, em um “deslocamento de responsabilidade” a ação tomada pelo sistema não se tratou de
dos motoristas, que passam a ser inexistentes um defeito ou vício, por mais que seja espe-
ou com esfera de atuação reduzida, aos pro- rado que algumas ações autônomas possam
dutores, que responderão, objetivamente, sob causar dano. E, além disso, de forma geral, a
regras normalmente voltadas à proteção con- limitação do grau de culpa subjetiva dos en-
sumerista. Nesse sentido, por exemplo, argu- volvidos em qualquer tal questão envolvendo
mentam Bodungen e Hoffmann (2016, p. 503); sistemas de inteligência artificial ficaria seria-
Smith (2017, p. 1777); Beiker e Calo (2010); mente prejudicada, o que potencializaria o des-
Boeglin (2015, p. 172); Horner e Kaulartz (2016, locamento da responsabilidade aos produtores
p. 22); e Jänich, Schräder e Reck (2015, p. 313). conforme apontado anteriormente. Os tribu-
Os efeitos socioeconômicos desse desloca- nais e o poder público, quando depararem-se
mento são desconhecidos. Por um lado, argu- com tais questões, deverão levar em considera-
menta-se, o aumento dos custos e riscos que ção tal impossibilidade técnica no sopesamento
devem ser assumidos pelas empresas para fazer de suas decisões.
frente a danos inevitáveis pode inibir a inova-
ção na área e evitar a entrada de concorrentes
menores no mercado. Por outro, seria inadmis- 4.3. Código Civil ou
sível que não houvesse responsáveis por tais aci- um novo tipo de
dentes, e parece justo que seja a empresa – em
consonância com o fato de ser decisão comer- responsabilidade
cial sua a implementação do sistema – a encar- objetiva
regada de indenizar civilmente os danos a que
deu causa. Nos casos não abrangidos pela responsabi-
Além do desafio imposto pela definição de lidade consumerista, poderíamos argumen-
“defeito” e sua aplicabilidade à inteligência arti- tar pela aplicabilidade do parágrafo único do
ficial, dado o fato de que sua autonomia é dese- Art. 927 do Código Civil, que estabelece que
jada, outro importante desafio se impõe à apli- “haverá obrigação de reparar o dano, inde-
cação do CDC nesses casos: especificamente, o pendentemente de culpa, (...) quando a ativi-
fato de que, em muitos casos, sequer se poderá dade normalmente desenvolvida pelo autor do
falar em relação de consumo – é o caso do robô dano implicar, por sua natureza, risco para os
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direitos de outrem.” De fato, parece que, na si só. Até mesmo a criação de um novo tipo
falta de leis específicas para a inteligência ar- de capacidade ou personalidade jurídica para
tificial, essa normativa encontraria aplicabili- os próprios sistemas de inteligência artificial
dade em diversas situações. vem sendo defendida, sob diferentes moldes
Mesmo em sua simplicidade normativa, (Teubner, 2018).
no entanto, não se afastam todos os desafios
– nesse caso, especificamente, pela delimita-
ção em diversos momentos de quem seria o 5. Legislação existente
autor da atividade desenvolvida. Como vimos,
o sistema não somente agirá de forma inde-
pendente, mas também, muitas vezes, será im- Sob a ótica da “interação homem-máquina”,
possível estabelecer quem especificamente agiu é possível captar o que muitas leis em discussão
de forma a resultar em determinado dano. Isso vêm fazendo, mesmo que inadvertidamente:
não só por conta da black box da inteligência estabelecendo limites e obrigações de atuação
artificial, mas também pela absoluta difusão de para empresas e motoristas de carros autôno-
seus desenvolvedores. mos, o “polo humano” da interação. De forma
A realidade é que será impossível apontar geral, deve-se ressaltar, o que se observa das
uma única pessoa que tenha dado causa a de- iniciativas regulatórias para a inteligência arti-
terminado dano, e que caberá ao legislador ou ficial ao redor do mundo é que vêm se focando
à jurisprudência delimitar o conceito de “ati- na questão dos carros autônomos, mesmo que
vidade normalmente desenvolvida” para o caso com algumas importantes exceções.
de implementação de sistemas de inteligência A legislação do estado da Califórnia, por
artificial. Portanto, postos tais desafios, pare- exemplo, é digna de nota: obriga a empresa
ce-nos que a responsabilidade da empresa sob produtora de um carro autônomo a garantir o
o CDC ou do “autor” sob o Art. 927 do Código respeito às regras de trânsito por seus veícu-
Civil parece ser solução meramente temporá- los, assim como regras de conduta para mo-
ria – não pode ser considerada remédio final toristas “reserva” e motoristas remotos, entre
para os riscos criados por decisões autônomas outras. Assim, mesmo que deixe aberta para
tomadas por sistemas de inteligência artificial a empresa a forma de cumprir com a regu-
no geral. lamentação, cria deveres de conduta para os
Para administrar essa nova categoria de humanos envolvidos na atividade. O Arizona,
risco social, alguns autores têm defendido, por por outro lado, exige mera licença veicular
exemplo, um novo tipo de responsabilidade objetiva, por parte das empresas, não estabelecendo ne-
baseada primordialmente na noção de “criação nhuma outra obrigação. É provavelmente por
de um perigo” ou de “implementação de um esse posicionamento, situado em um dos extre-
robô” (Spindler, 2015, p. 766). Inspiram-se e mos da (pretensa) régua “pró-inovação vs. se-
usam como analogia, por exemplo, a responsa- gurança pública”, que seu território vem sendo
bilidade civil pelo comportamento de animais, extensivamente utilizado para esse tipo de teste
a responsabilidade de mandantes pelos atos (Hawkins, 2018). Recomendações do órgão de
dos mandatários e até mesmo, em referência trânsito alemão, o Bundesministerium für Verkehr
ao direito romano antigo, a responsabilidade und digitale Infrastruktur (Redaktion beck-ak-
por atos de escravos (Wilzig, 1981, p. 442). A tuell, 2017), tomam linhas similares: estabe-
exploração minuciosa dessas propostas e seus lecem regras de atuação e de responsabiliza-
possíveis resultados demandaria uma tese por ção de motoristas reserva e das empresas que
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comercializam tais sistemas. abrangente o tema, considerando-se os dife-


Nesse contexto, vale mencionar também rentes níveis de risco envolvidos na implemen-
projeto de lei atualmente em discussão no con- tação de diferentes sistemas e a capacidade fi-
gresso alemão (Deutscher Bundestag, 2017)9. nanceira de seus desenvolvedores, assim como
Nele, busca-se a resolução de dilema ético fre- o nível de interferência humana nos compor-
quentemente apresentado quando se discutem tamentos ditos autônomos. Caberá à sociedade
carros autônomos: quando confrontado com a e aos tribunais determinar os limites das so-
decisão de matar uma pessoa ou outra, ou uma luções que a academia vem gradativamente
pessoa ou várias outras, como deve o robô pro- apresentando, assim como até que ponto elas
ceder? Assemelha-se a versão atualizada do cé- seriam de fato juridicamente necessárias ou so-
lebre problema ético do “dilema do bonde”. O cialmente relevantes.
projeto de lei alemão, baseando-se no fato de Nota-se que a atividade estatal em torno da
que toda vida é igual sob a lei, princípio tam- tecnologia, no que não se refere aos carros au-
bém existente no Brasil, responde com o se- tônomos, parece focar-se na criação de planos
guinte preceito: não se escolherá entre vidas nacionais para o seu desenvolvimento – não
ou quantidades de vidas, mas sim a favor da si- tanto centrados em sua regulação (por mais
tuação que causará “menos dano”. A forma de que muitos sejam conscientes de seus desafios,
averiguar qual situação causaria menos dano, como os apontados nesse artigo), mas sim em
no entanto, fica também a cargo da empresa. políticas públicas para sua maior adoção e es-
Fora essas, outra solução prática e com vários tímulo ao investimento na área (Lawgorithm,
precedentes históricos9 vem sendo proposta 2019). Duas importantes regras sendo discu-
pela academia e pelos poderes públicos: segu- tidas no âmbito da inteligência artificial, que
ros obrigatórios pelas empresas que comercia- mencionamos aqui a título de completude, em
lizam os carros autônomos. Considerando-se a especial em vista da menção aos problemas da
inevitabilidade em larga escala de danos e a di- black box e do enviesamento algorítmico feita
ficuldade de prevê-los ou de determinar indi- no decorrer deste artigo, são o mencionado
vidualmente sua causa, conforme vimos acima, Projeto de Lei nº 2018/49, da cidade de Nova
a imposição de um seguro obrigatório poderia, Iorque, que estabelece diretrizes para a criação
também, ao menos em parte, ter efeitos posi- de mecanismos de transparência em tais sis-
tivos. Com efeito, o seguro obrigatório é exata- temas, assim como o Algorithmic Accountability
mente o que se propõe na Automated and Electric Act, projeto de lei do Senado estado-unidense
Vehicles Bill (United Kindgom Parliament, 2017), que delegaria à Comissão Federal do Comércio
projeto de lei atualmente em discussão no par- desse país (FTC – Federal Trade Commission) a
lamento britânico, e nas alterações ao código criação de regras para avaliação de sistemas au-
de trânsito do estado da Califórnia, com vigor a tomatizados “altamente sensíveis”, obrigando
partir de 2 de abril de 2018 (State of California, empresas que fizessem uso deles a avaliar se
2018), que obrigam empresas a serem capazes os dados e algoritmos que alimentam estas
de indenizar até 5 milhões de dólares em danos ferramentas são enviesados ou discriminató-
que seus veículos causem. rios, bem como se representam um risco para
De qualquer maneira, regras universais para a privacidade ou a segurança dos seus usuários
a responsabilidade civil de sistemas de inte- (United States Senate, 2019).
ligência artificial no geral não parecem estar Finalmente, essencial mencionar a cres-
sendo discutidas. É questionável, inclusive, se cente importância das legislações de prote-
uma única lei seria capaz de regular de forma ção de dados nesse contexto, em especial a Lei
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Geral de Proteção de Dados brasileira (LGPD) causados por sistemas de inteligência artificial?” sob
(Brasil, 2018) e a Regulação Geral de Proteção os princípios de responsabilidade civil do di-
de Dados da União Europeia (RGPD) (European reito romano germânico e com foco na lei bra-
Union, Parliament & Council, 2016), na qual sileira. A partir de observações concernentes
aquela se inspirou. Por se tratar a inteligên- ao caso do mencionado atropelamento, expan-
cia artificial de uma (importante) técnica de dimos seus raciocínios para expor, também, as
processamento de dados, como apontamos ex- principais questões apresentadas pela discussão
tensivamente aqui, natural que tais normas sobre a responsabilidade de sistemas de inteli-
encontrem aplicabilidade a diversos aspectos gência artificial no geral.
dessa tecnologia. Assim, mesmo que a regu- Para tal, partiu-se de uma definição de sis-
lação da proteção de dados não pretenda re- tema de inteligência artificial focada em sua ca-
ferir-se exclusivamente à inteligência artifi- pacidade de autoaprendizado. Para nossos fins,
cial, seus princípios e direitos têm importante portanto, fala-se desse tipo de sistema quando
repercussão no desenvolvimento e uso desse este apresentar a possibilidade de realizar infe-
tipo de tecnologia. Especificamente, fazemos rências não esperadas e não pré-programadas
questão aqui de mencionar o (i) “direito à re- a partir de um conjunto de dados. Esta capaci-
visão humana” sobre decisões tomadas unica- dade é possibilitada tecnicamente pelas técni-
mente com base em tratamento automatizado cas de machine learning, ou aprendizado de má-
de dados, direito estabelecido pelo RGPD e ori- quina, e dela decorre a capacidade de encontrar
ginalmente também pela LGPD (limitado neste soluções – ou decisões – de forma não previ-
caso, no entanto, após um veto presidencial), e sível e não controlada pelos programadores ou
(ii) o “direito à explicação”, segundo o qual o usuários do sistema; decisões, portanto, inde-
titular de dados tem o direito de obter infor- pendentes ou autônomas.
mações a respeito da forma como determinada Fora isso, ressaltamos duas características
decisão automatizada foi tomada, por exemplo. importantes da inteligência artificial: o fato
As dificuldades e desafios da aplicação das re- de que sua criação se dá frequentemente de
gulações de proteção de dados à inteligência forma difusa, i.e., por diversos atores e em di-
artificial vêm sendo bem exploradas pela li- versos locais, de forma muitas vezes anônima e
teratura especializada, tal como nos trabalhos não reconstruível, e de que seu funcionamento
desenvolvidos por Goodman e Flaxman (2017), ocorre de maneira inexplicável e opaca, den-
Selbst e Powles (2017), e Edwards e Veale (2017). tro de uma black box inacessível não somente
aos usuários do sistema, mas também a seus
desenvolvedores.
6. Conclusão Finalmente, apontamos como o uso e desen-
volvimento dos sistemas de inteligência artifi-
cial não deve ser considerado, para fins jurídi-
O acidente fatal em que um carro autônomo cos, como um objeto em si mesmo, devendo
da Uber se envolveu foi, ao que tudo indica, o nosso foco pousar em realidade sobre a “in-
primeiro de muitos casos similares. O aumento teração homem-máquina”. Trata-se do fato de
do uso desse tipo de tecnologia forçará o direito que todo sistema é utilizado, de alguma forma,
a encontrar respostas satisfatórias às questões como complemento à ação humana, de ma-
de responsabilização que se levantarão. Nesse neira a se visualizar uma “régua” onde um
artigo, buscamos trabalhar o problema “como dos extremos é a mencionada decisão autô-
o direito civil poderia responder a casos de danos noma com mínima ou nenhuma interferência
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humana e a outra é o comportamento sob a es- estabelecimento de uma relação causal entre
fera de ação e controle humanos. suas ações e os danos, e em vista da produção
O “polo humano” dessa interação vem sendo difusa e opaca desse tipo de sistema, não se vis-
estudado pelo Direito há milênios, por mais lumbra a possibilidade de configuração da res-
que os fatos trazidos aqui sejam novos. Do ponsabilidade subjetiva.
ponto de vista da responsabilidade civil, pode- O que se observa, assim, é que o uso de sis-
ríamos exatamente pensar na responsabilidade temas de inteligência artificial pressupõe um
do sujeito que se encontra em tal polo, na res- certo “risco da autonomia” que não pode ser
ponsabilidade subjetiva. facilmente endereçado pela responsabilidade
Assim, nesse caso, deve-se averiguar, para o subjetiva. Seria o caso, então, de se pensar em
teste de subsunção do caso de um dano cau- uma responsabilidade objetiva, modalidade
sado com o uso de um sistema de inteligên- exatamente desenhada para fazer frente a de-
cia artificial, se houve negligência, imperícia terminados riscos impostos à coletividade?
ou dolo por parte do usuário do sistema – tal Do ponto de vista da responsabilidade obje-
como a motorista reserva que se encontrava no tiva, poderíamos a princípio nos indagar sobre
veículo no momento do aludido acidente. a aplicação do CDC. As discussões nesse caso
Fora isso, a depender da situação, e por mais são diversas: há diversos argumentos possí-
que a constatação prática disso seja bastante di- veis. Em especial, tratamos da dificuldade do
ficultosa, poder-se-ia falar também da respon- uso do conceito de “defeito” para as decisões
sabilização subjetiva dos produtores do veículo autônomas, já que são elementos desejados e
ou de partes dele, como seu próprio LiDAR esperados desse tipo de sistema. Fora isso, es-
(radar de reconhecimento de imagens do carro pecialmente num mundo de open robotics e de
autônomo). Essa averiguação é dificultada tam- produção difusa de sistemas, pressupostos bá-
bém pela black box da inteligência artificial, e sicos para aplicação do CDC não se aplicariam:
nos casos de sistemas de inteligência artificial não estaríamos falando de produtos colocados
produzidos de forma difusa, pela dificuldade no mercado de consumo. Paradigma dessa si-
acentuada em se estabelecerem elos causais in- tuação é o caso do robô Gaak, sistema desen-
dividualizados entre seus desenvolvedores e o volvido para fins acadêmicos que, por conta de
dano causado. uma decisão autônoma, poderia ter custado a
Por mais que a responsabilização subjetiva um motorista que passava pelas redondezas a
encontre alguns desafios nesse caso concreto, sua vida.
ela não parece insuficiente, a priori, para en- No caso da não-aplicabilidade do CDC, pode-
dereçar os danos causados dentro da esfera de ríamos aludir ainda ao parágrafo único do Art.
atuação humana. No entanto, quanto mais au- 927 do Código Civil. De fato, a amplitude dessa
tônoma for a ação danosa, i.e., quão mais perto norma, que estabelece a responsabilização
do “polo máquina” da interação homem-má- “quando a atividade normalmente desenvol-
quina ela estiver, mais se acentuam determina- vida pelo autor do dano implicar, por sua natu-
dos desafios. Especificamente, conforme vimos, reza, risco para os direitos de outrem”, permi-
dificilmente se poderia falar em negligência ou tiria sua aplicação a diversos casos envolvendo
em omissão nos termos do Código Civil por danos causados pela inteligência artificial, em
uma decisão completamente autônoma tomada especial quando se considera a existência de
por uma inteligência artificial. Em vista de não um “risco da autonomia”, conforme vimos. No
haver possibilidade de atuação por parte dos entanto, a dificuldade de se apontar atores es-
desenvolvedores ou usuários, ou mesmo de pecíficos para o dano ou de se delimitar qual
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atividade efetivamente dá origem ao risco di-


ficulta também a aplicabilidade dessa norma.
Para dar frente a esse risco, alguns autores vêm
defendendo, portanto, exatamente a criação de
um novo tipo de responsabilidade objetiva, ba-
seada, por exemplo, na “criação de um perigo”
ou de “implementação de um robô”.
Por fim, passamos rápida e não exaustiva-
mente por algumas das iniciativas estatais que
têm sido tomadas nesse contexto ao redor do
mundo. Em especial, muitas leis e projetos de
lei, tais como os de alguns estados dos Estados
Unidos e na Alemanha, tentam criar regras es-
pecíficas para o desenvolvimento e uso de car-
ros autônomos, criando com isso normas de
conduta que deverão, por consequência, faci-
litar a aplicabilidade prática das regras de res-
ponsabilidade objetiva. Fora isso, iniciativas
como seguros obrigatórios vêm também sendo
discutidas, além de, de forma geral, planos na-
cionais e outras leis focadas na transparência e
não discriminação por sistemas de inteligência
artificial.
Com o presente artigo, buscou-se cons-
truir um objeto delimitado, o do sistema de
inteligência artificial e suas decisões autôno-
mas, assim como uma maneira de abordá-lo
metodologicamente, o foco na “interação ho-
mem-máquina”, para guiar as discussões em
torno da responsabilidade civil por danos cau-
sados pela inteligência artificial. Como vimos,
o pouco material prático e teórico a respeito
do assunto, ainda de certa forma reservado a
um futuro de curto a médio prazo, não permite
conclusões fechadas e subsunções jurídicas cla-
ras. Mesmo assim, buscamos oferecer pontos
de partida para o debate no assunto, de forma
a guiar as atividades dos operadores do direito
nos desafios que pouco a pouco se impõem.
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO

Notas finais is not readily discernible. The AI program it-


self may have software components taken from
multiple such libraries, each of which is built
and developed discretely from the others. An
1 Vide Alpaydin (2016, p.17), por exem- individual who participates in the building of
plo: “Machine learning is not just a database or an open-source library often has no way of
programming problem; it is also a requirement knowing beforehand what other individuals
for artificial intelligence. A system that is in or entities might use the library in the future.
a changing environment should have the abi- Components taken from such libraries can
lity to learn; otherwise, we would hardly call then be incorporated into the programming of
it intelligent.” an AI system that is being developed by an en-
tity that did not participate in assembling the
2 Vide Scherer (2015, p. 366), por exem- underlying machine-learning library.”
plo: “The experiences of a learning AI system
could be viewed as a superseding cause — that 4 Vide, em especial, Calo (2010, p. 118):
is, “an intervening force or act that is dee- “The widespread availability of robotic plat-
med sufficient to prevent liability for an actor forms capable of running nonproprietary soft-
whose tortious conduct was a factual cause of ware is more likely to lead to a global robot
harm” — of any harm that such systems cause. software industry. Such an industry could take
This is because the behavior of a learning AI many forms. Anyone could write and share
system depends in part on its post-design ex- code, or only trusted partners of the platform
perience, and even the most careful designers, could be entrusted to do so. Consumers could
programmers, and manufacturers will not be buy task-specific software permanently or rent
able to control or predict what an AI system it for the day. Importantly, however, the pur-
will experience after it leaves their care. Thus, pose of at least some software would be to
a learning AI’s designers will not be able to fo- enable consumer innovation—that is, to allow
resee how it will act after it is sent out into the consumers to put their robots to new uses.”
world — but again, such unforeseeable beha-
vior was intended by the AI’s designers, even if 5 É exatamente o que se constatou, por
a specific unforeseen act was not.” exemplo, em um acidente ocorrido com um
carro autônomo da Tesla: conforme dados obti-
3 Os apontamentos de Scherer (2015, p. dos após o acidente, o motorista atuou durante
370) são valiosos: “The participants in an AI- apenas 25 segundos dos 37 minutos em que o
related venture may also be remarkably diffuse veículo exigiu sua intervenção (Dent, 2017).
by public risk standards. Participants in an AI-
related project need not be part of the same 6 Fora isso, importante notar que, por
organization — or, indeed, any organization at mais que seja corrente, a comparação entre
all. Already, there are a number of open-source danos causados por inteligência artificial e
machine- learning libraries; widely dispersed bugs de software não deve ser levada a suas úl-
individuals can make dozens of modifications timas consequências: conforme vimos, a exis-
to such libraries on a daily basis. Those mo- tência de um campo de atuação e de tomada
difications may even be made anonymously, de decisões imprevisíveis e criativas pela inte-
in the sense that the identity in the physical ligência artificial é economicamente vantajosa
world of individuals making the modifications
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PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO

e uma característica desejada por seus desen-


volvedores. O bug, por outro lado, é inevitável,
mas não é desejado.

7 Günther (2016) fala, por exemplo, de


um “Potencial de Perigo” (Gefahrenpotential),
conceito intimamente associado à fundamen-
tação da responsabilidade objetiva na doutrina
civilista alemã. Scherer (2015, p. 365), por sua
vez, fala dos “Riscos criados pela autonomia da
IA” (Risks created by the autonomy of AI). Já
Teubner (2017), fala diretamente do “Risco da
Autonomia” (Autonomierisiko).

8 Nesse artigo, estamos ignorando a que-


rela, há muito discutida pela doutrina e juris-
prudência, se o dano causado a terceiro (no
caso, a pedestre) deve ser indenizado sob o Art.
12 do CDC, que se refere exclusivamente ao
consumidor. Seria necessária a discussão sobre
se a pedestre poderia ser considerada consu-
midora por equiparação, nos termos do Art. 2,
parágrafo único, desta lei. Vide por exemplo
STJ, AREsp 263077, Rel. Min. Raúl Araújo, pu-
blicado em 07/11/2014.

9 Vide a própria existência do APP e do


DPVAT no Brasil, assim como a obrigatorie-
dade de seguros de aeronaves, estabelecida nos
Estados Unidos em 1938 (Hotchkiss, 1939, p.
796).

Recebido em 30/06/2019
Aceito em 18/12/2019
144

ARTIGO

O fenômeno
das fake news:
definição, combate
e contexto

Marco Antônio Emanuella Ribeiro


Sousa Alves Halfeld Maciel
Professor Adjunto de Teoria e Filosofia do Pesquisadora do Grupo SIGA - Sociedade da
Direito da Universidade Federal de Minas Informação e Governo Algorítmico (UFMG).
Gerais (UFMG). Membro Permanente do Extensionista da Clínica de Direitos Humanos
Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/ (UFMG). E-mail: emanuellarhm@gmail.com.
UFMG). E-mail: marcofilosofia@ufmg.br.
145
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PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL

O fenômeno
das fake news:
definição, combate
e contexto

Palavras-chave Resumo
desinformação O artigo apresenta um panorama sobre a ques-
fake News tão das fake news no Brasil e realiza uma análise
mídia comparada a fim de identificar práticas para-
redes sociais digmáticas de tentativa de combate ao fenô-
política meno da desinformação. Para tal, o trabalho
faz um compilado bibliográfico das principais
definições de fake news em voga na atualidade,
bem como analisa as vertentes dos projetos de
lei em trâmite no Congresso Nacional brasi-
leiro em 2019.
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The fake news


phenomenon:
definition, policies
and context

Keywords Abstract
misinformation The article presents a general panorama on the
fake news contemporary issue of misinformation and
media fake news. It focuses primarily on Brazil, but
social network also aims to make a comparative analysis on
politics public and private policies to fight fake news
and misinformation. In order to do that, the
article makes an attempt to gather the main
definitions of fake news, and review the pro-
jects to fight misinformation that are now pen-
ding in Brazil’s National Congress.
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PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL

1. Introdução lei que criminaliza a disseminação de fake news.


Por fim, no intuito de trazer o debate para
o contexto nacional, o artigo visa elucidar
Fake news foi eleita a palavra do ano de 2017 quais as principais discussões sobre fake news
pela editora inglesa Collins (BBC, 2017). A rele- no Brasil, com destaque para as iniciativas le-
vância da questão é perceptível e está na ordem gislativas. Para tal, analisaremos os projetos de
do dia do debate político em nível nacional e lei em trâmite no Congresso Nacional e pro-
internacional, sendo citada a todo momento curaremos destacar os principais desafios en-
pelos principais veículos de comunicação. O volvidos, as perspectivas das políticas públicas
termo tornou-se extremamente corriqueiro e aventadas e as parcerias privadas realizadas em
popular, empregado de forma generalizada e nível nacional.
também imprecisa, em geral pensada em asso-
ciação com a ruptura progressiva das democra-
cias liberais nesse início do século XXI. 2. O Fenômeno das
Este artigo nasce da tentativa de compreen- Fake News
der as principais nuances do fenômeno das
fake news. Em um primeiro momento, o artigo
parte da experiência contemporânea do mundo
conectado e procura diagnosticar algumas ca-
racterísticas do fenômeno denominado popu- 2.1. A era da
larmente como “era da pós-verdade”. Após si- “pós-verdade”
tuar o contexto, a fim de compreender melhor
os impactos das fake news no século XXI, o ar- Ao eleger a expressão “pós-verdade” (pos-
tigo parte para uma análise conceitual, compi- t-truth) como palavra do ano em 2017, o
lando algumas das principais tentativas de de- Dicionário Oxford a definiu como: “um adje-
finição da noção de fake news e explorando os tivo relacionado ou evidenciado por circunstâncias
limites e desafios na classificação de suas diver- em que fatos objetivos têm menos poder de influên-
sas manifestações. cia na formação da opinião pública do que apelos a
Consideramos esse esforço de esclarecimento emoções ou crenças pessoais” (Genesini, 2018, p.
conceitual e de precisão terminológica funda- 47). O termo, juntamente à expressão fake news,
mental para avançarmos na discussão sobre o ganhou fama a partir de 2016 após dois fenô-
tema das fake news. Sem esse estudo prévio, as menos de grande repercussão na política in-
tentativas de regulamentação e as políticas de- ternacional, quais sejam, o processo de saída
senvolvidas para o combate à desinformação do Reino Unido da União Europeia (Brexit) e a
carecem de uma base mais sólida de sustenta- eleição de Donald Trump como presidente dos
ção, correndo o risco de não atingirem os ob- Estados Unidos da América.
jetivos pretendidos ou de produzirem efeitos A ideia básica que permeia a menção aos ter-
indesejáveis e perversos. mos ‘fake news’ e ‘pós-verdade’ é a da existência
O artigo pretende ainda realizar uma análise de uma era de rápida velocidade de produção
comparada das ações públicas de combate às e circulação da informação. Em suma, as for-
fake news, com destaque para a nova legislação mas tradicionais de organização, seleção, clas-
em vigor na Alemanha, que segue a estraté- sificação e exclusão discursivas são colocadas
gia de uma regulamentação das plataformas, e em xeque em um ambiente no qual parece não
para a experiência da Malásia, que possui uma haver mais qualquer autoridade estabelecida,
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ou seja, no qual qualquer um pode dizer qual- O fenômeno da desinformação tem uma di-
quer coisa sobre qualquer assunto da maneira mensão claramente política, na medida em
que bem entender. A informação pode vir de que pode moldar o que tomamos por realidade.
qualquer fonte e sem nenhum critério, com Em contextos de guerra, a produção de men-
potencial de se espalhar, de manipular as emo- tiras para fins políticos é feita de modo ainda
ções e de realizar influência destrutiva e de- mais explícito. Um exemplo clássico disso são
terminante na população, capaz talvez de defi- as falsas estações de rádio alemãs, transmiti-
nir os rumos das democracias contemporâneas das no Reino Unido durante a Segunda Guerra
(Mans, 2018). Mundial, nas quais um interlocutor inglês se
Para enfrentar essa questão e entender de passava pelo alemão Der Chef e difundia co-
maneira mais adequada o contexto atual, pro- mentários contra o líder nazista Adolf Hitler
pomos partir de três premissas, que serão ex- (Itagiba, 2019). Outro exemplo famoso são
ploradas a seguir: i) a desinformação, as menti- as manipulações de imagens, no seio de um
ras e os boatos na política sempre existiram; ii) amplo projeto de revisionismo histórico, feitas
as Tecnologias da Informação e Comunicação na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(TICs) deram um novo contorno e uma nova (URSS). A série de fotografias abaixo, datada
escala ao fenômeno da desinformação, produ- originalmente de 1926, demonstra a progres-
zindo algo nunca antes visto na história da hu- são de alterações em imagens a fim de eliminar
manidade; e iii) não é possível reduzir todo o membros que perdiam a simpatia do líder Josef
contexto de crise democrática global apenas à Stalin (Macdonald, 2018).
existência do fenômeno da desinformação.

2.1.1. A desinformação,
a mentira e os boatos
sempre existiram

Mentiras e boataria com alta disseminação


social não são um fenômeno novo. A prensa
de Gutenberg permitiu a impressão em massa
de livros em meados do século XV, dando asas
ao sonho de um mundo cada vez mais esclare-
cido, com acesso ao conhecimento e às “ver-
dades” da ciência. Mas, ao mesmo tempo, a
inovação permitiu também que inúmeros pan- [Figura 1]
fletos espalhassem todo tipo de notícias falsas. Série fotográfica – Josef Stalin
Muito antes da Internet existir, as histórias de Foto: The David King Collection at Tate. Extraído de Macdonald, F. (30
de janeiro, 2018). A manipulação de imagens pelos soviéticos, muito antes da era
que “Elvis não morreu” ou de que o homem das ‘fake news’. BBC. https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-42810209
nunca pisou na Lua circulavam no coletivo
social, sendo tomadas por verdade para parte
da população (Mans, 2018). Em suma, não é Tratando dessa questão, Hannah Arendt pu-
de hoje que mentimos, produzimos desinfor- blicou, em 1967, o texto “Verdade e Política”, na
mações e abraçamos teorias conspiratórias das revista The New Yorker, no qual a filósofa des-
mais delirantes. nuda o fato de que a atividade política nunca
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teve a verdade como uma de suas virtudes World Population, 2019).


(Arendt, 1972). Ela ressalta a existência de uma A popularização dos smartphones acrescentou
tensão entre aquilo que move a política, en- um novo e importante capítulo nesta história,
tendida como uma forma de ação transforma- transformando a Internet em uma ferramenta
dora sobre o mundo, no sentido de produzir o portátil, ubíqua, que modifica radicalmente
real como desejamos, e o compromisso com a nossa relação com o mundo à nossa volta. O te-
verdade, com os fatos, como aquilo que sim- lefone celular acumula funções que antes per-
plesmente é de determinada forma, ainda que tenciam apenas aos jornais impressos, às cartas,
gostaríamos que fosse diferente. Em suma, a ao telefone fixo e às enciclopédias. De acordo
política, no seu afã transformador, tende a ins- com dados do relatório Global Digital, de 2019,
trumentalizar a verdade, trazendo a ciência produzido pela We Are Social e pela Hootsuite, o
para o palco político. O revisionismo histórico, índice de crescimento de pessoas conectadas à
com suas formas deliberadas de falsificação ou Internet por meio do celular é de 100 milhões
apagamento daquilo que é considerado incô- de pessoas ao ano (Global Digital Report, 2019).
modo ou indesejável, pode ser compreendido O crescimento exponencial das novas tec-
nesse sentido como uma ação política que, na nologias e do acesso a elas criou uma verda-
tentativa de produzir no mundo a transforma- deira revolução na maneira como a sociedade
ção pretendida, distorce fatos para que pos- se informa e se comunica, permitindo o envio
sam servir a determinados propósitos. Nesse de mensagens instantâneas e serviços de voz e
caso, como esclarece Arendt, o político afirma vídeo em nível global. Diferentemente dos tra-
de maneira abusiva e perversa a sua liberdade dicionais veículos de comunicação em massa,
de produzir o mundo que deseja, voltando-se quais sejam, os jornais impressos, o rádio e a
para o passado e não para o futuro. Em regi- televisão, que funcionavam de maneira centra-
mes totalitários, esse esforço político de rees- lizada, unidirecional e verticalizada, a chamada
crever fatos tende a assumir contornos dramá- “era da informação” é marcada por um modelo
ticos, dando forma a uma mentira organizada “todos para todos”, no qual qualquer pessoa
e generalizada que, ainda que seja incapaz de pode produzir e compartilhar conteúdo com
substituir a verdade e produzir uma nova, tem qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.
a força de destruir a verdade factual, talvez de Isso gera o fenômeno da “sobrecarga de infor-
maneira irrecuperável. mação” (information overload), pois os dados não
são mais filtrados pelos procedimentos tradi-
cionais e a quantidade de informação que um
2.1.2. A evolução das indivíduo recebe supera sua capacidade de pro-
TICs e a nova era da cessá-la. Nesse contexto, vivemos sob o impe-
desinformação rativo de estarmos sempre conectados e atua-
lizados, vivendo uma espécie de ansiedade
Desde a criação da Internet o mundo cami- coletiva gerada pela incapacidade humana de
nhou a passos rápidos em termos de interco- possuir ciência de todo o material disponibili-
nexão. O que começou como uma rede que li- zado online (Santos, 2019).
gava os computadores de poucas universidades Ressalte-se ainda que, diferentemente da
nos Estados Unidos da América tornou-se, em mídia tradicional, as novas plataformas nas
2019, apenas algumas décadas depois, uma rede quais as informações circulam na contempo-
que conecta mais de 56% da população mun- raneidade não estão ainda devidamente en-
dial (World Internet User Statistics and 2019 quadradas e submetidas a mecanismos de
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responsabilização. Por mais precários e insu- conhecido ou familiar. A proximidade e con-


ficientes que sejam os mecanismos de con- fiança pessoal com aquele que divulga a infor-
trole das mídias tradicionais, elas são respon- mação torna muito mais difícil o descrédito da
sabilizadas de diversas maneiras e possuem um notícia (Ribeiro & Ortellado, 2018)2;
compromisso com procedimentos editoriais, O uso de bots, que são sistemas autômatos
bem como Códigos de Ética1 e leis específi- que emulam comportamento humano e repli-
cas que garantem um mínimo de integridade cam ações básicas, como seguir determinadas
da informação, como, por exemplo, a Lei Nº pessoas, publicar mensagens em massa, dire-
13.188/2015, que dispõe sobre o direito à res- cionar mensagens e inserir hashtags ou links;
posta de pessoa ofendida por matéria divulgada O funcionamento de uma economia da in-
em veículo de comunicação social. A divulga- formação baseada na coleta em massa, no
ção de notícias na internet não possui o mesmo tratamento de dados e na criação de perfis
compromisso e carece de regulamentação, pos- individualizados, tornando possível o envio di-
suindo um conteúdo amplamente produzido recionado de informação para os mais variados
pelos próprios usuários, o que torna possível, fins, inclusive políticos.
inclusive, que qualquer pessoa crie uma página
jornalística de aparente credibilidade e publi-
que absolutamente qualquer coisa. 2.1.3. Fake news e
Certamente, a Internet e o crescimento das pós-verdade: a causa
mídias sociais não inventaram o fenômeno da do Armagedom?
desinformação, mas criaram um ambiente pro-
pício para que houvesse uma difusão em massa O termo ‘fake news’ tornou-se nos últimos
de notícias falsas, em velocidade nunca antes anos uma espécie de chavão, uma expressão
vista na história da humanidade. Elenca-se, usada de forma exagerada, muitas vezes como
abaixo, algumas das características que facili- uma explicação rápida e fácil para os proble-
tam a desinformação na era da Internet: mas da sociedade atual. Nesse sentido, consi-
Possibilidade de qualquer pessoa criar um deramos fundamental realizarmos algumas dis-
jornal independente e difundir informação nas tinções prévias. O presente artigo trabalha com
redes; a perspectiva de que as fake news não devem ser
Uso massificado de redes sociais como sobrevalorizadas e tomadas como a causa única
Facebook e WhatsApp como fonte primária de de experiências históricas complexas como o
informação (Papo Digital: O cuidado das mar- Brexit ou a eleição de Donald Trump. Defender
cas com interações polarizadas no digital, 2018); tal perspectiva seria desconsiderar todo o con-
Interconexão massiva permitindo que várias texto atual de capitalismo digital, ignorar uma
pessoas sejam atingidas por uma publicação; série de especificidades culturais e oferecer
Anonimidade e distanciamento do outro ga- uma visão reducionista que oculta as múltiplas
rantido pela rede; razões que tiveram papel relevante na confor-
A polarização da esfera pública, que gera um mação desses votos.
contexto ideal para a aceitação sem grandes Apesar de ser inegável a influência das fake
questionamentos de notícias que corroborem news na sociedade contemporânea, é preciso
narrativas favoráveis à posição política do re- ressaltar, antes de tudo, que as mesmas só pos-
ceptor (Ribeiro & Ortellado, 2018a, p. 79); suem esse potencial tão amplo de dissemina-
O fato de que, muitas vezes, a pessoa que ção em razão do contexto cultural e político
envia uma notícia possivelmente falsa é um propício que vivenciamos em grande parte do
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mundo, marcado por radicalizações políticas e de uma compreensão mais acurada do fenô-
por uma espécie de guerra ideológica que di- meno, de seus elementos, de seu funciona-
vide a sociedade em grupos antagônicos e ri- mento e de seus limites é que se tornará pos-
vais. Esse contexto está marcado por grandes sível elaborar qualquer medida de combate
incertezas e medos diversos, por crises econô- minimamente efetiva e certeira, sem efeitos
micas cíclicas e pela desconfiança nas institui- colaterais ainda mais perversos. Além disso, a
ções políticas e midiáticas. Um terreno fértil boa definição do termo é essencial para qual-
para que todo tipo de discurso de ódio, teo- quer produção legislativa adequada sobre o
rias da conspiração e campanhas difamatórias tema. Como se verá adiante, a tentativa de cri-
ganhe maior proporção. O fenômeno contem- minalizar diversas práticas associadas ao fenô-
porâneo das fake news só pode ser devidamente meno das fake news, sem grande compreensão
compreendido nesse contexto como produ- de suas nuances, tem fomentado projetos de
ção de “informação de combate”, voltada para lei que possuem efeitos extremamente amplos
corroborar narrativas pré-estabelecidas e for- e pouco efetivos, em grande medida por parti-
talecer uma determinada posição, pouco im- rem de definições mal lapidadas.
portando a qualidade do trabalho de investi- É preciso ter em mente que estamos lidando
gação ou de apuração dos fatos. Mais do que com um terreno extremamente sensível, em
notícias falsas, o que temos são “mídias hiper- permanente tensão com o respeito à liberdade
-partidárias” fazendo circular informações em de expressão. Qualquer vagueza nos tipos pe-
um mundo radicalmente polarizado (Ribeiro & nais ou indeterminação nos dispositivos le-
Ortellado, 2018a). gais pode abrir brechas perigosas para práticas
O objetivo do presente artigo não é o apro- de censura ou perseguição política. Excessos
fundamento dos múltiplos fatores que tiveram devem ser evitados, como, por exemplo, o en-
algum papel relevante na produção desse con- quadramento como fake news de conteúdo sa-
texto hiperpolarizado e inconstante do século tírico e humorístico. O claro estabelecimento
XXI. As breves observações feitas aqui tiveram dos limites, portanto, mostra-se essencial para
por objetivo apenas situar melhor o problema qualquer esforço legislativo nessa matéria.
das fake news e evitar uma visão reducionista,
que tende a fazer delas a causa por excelência
dos problemas atuais. 2.2.2. Formas de
classificação

2.2. O que O quadro abaixo apresenta quatro diferen-


são afinal as tes definições de fake news encontradas na lite-
ratura especializada, elencadas pelo professor
fake news? e jornalista português João Paulo Meneses em
seu artigo “Sobre a necessidade de conceptuali-
zar o fenómeno das fake news” (Meneses, 2018,
p. 49)3:
2.2.1. Entender
para combater

A discussão sobre a definição do termo ‘fake


news’ é de extrema relevância. Apenas a partir
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[Quadro 1] Definições de fake news4 incompetência ou irresponsabilidade


de jornalistas na forma como trabalham
“Fake news representa informações de várias vertentes informações fornecidas por suas
que são apresentadas como reais, mas são claramente fontes. (Meneses, 2018, p. 40)
falsas, fabricadas, ou exageradas ao ponto em que
não mais correspondem à realidade; além do mais,
a informação opera no interesse expresso de enga- A definição proposta diz respeito a documen-
nar ou confundir um alvo ou audiência imaginada.” tos deliberadamente falsos e publicados online
(Reilly, 2018, citado por Meneses, 2018, p. 49); com o objetivo de manipular os consumidores
da notícia. Com o uso desses termos, Meneses
A definição popular de fake news passou, recente- ampliou a definição para englobar não apenas
mente, por uma transformação. textos, mas também vídeos, memes e imagens
O termo fake news é agora comumente aplicada para compartilhadas. Meneses também restringiu o
histórias enganosas, espalhadas de forma maliciosa fenômeno à esfera da Internet e estabeleceu a
por fontes que se fingem legítimas. (Torres et al., necessidade do dolo, ou seja, de o produtor da
2018, citado por Meneses, 2018, p. 49); notícia ter consciência, mesmo que parcial, de
que se trata de notícia falsa e manipulada para
Fake news se apresentam como sites que deliberada- parecer real.
mente publicam farsas, propagandas e desinforma- A definição, contudo, não é perfeita. Há con-
ção que se pretende como notícias verídicas, usual- trovérsias na tentativa de conceituação que
mente utilizando redes sociais para dirigir tráfico dizem respeito, especialmente, ao fato de res-
online e ampliar seu efeito. tringir as fake news apenas ao conteúdo falso
(Tan e Ang, 2017, citado por Meneses, 2018, p. 49); produzido de forma intencional, excluindo ou-
tras notícias que promovem equívocos ou ma-
Fake news são coisas inventadas, magistralmente nipulam a verdade. O presente artigo considera
manipuladas para parecerem notícias jornalísticas que as fake news são “informações de combate”
críveis, que são facilmente espalhadas online para (Ribeiro & Ortellado, 2018a), cuja disseminação
amplas audiências propensas a acreditar nas ficções não possui como base, necessariamente, o dolo,
e espalhar a verdade. Falsas, normalmente sensacio- ou seja, o objetivo de manipulação do receptor
nalistas, informação disseminada com pretensão de com intuito de enganar, mas é mais precisa-
simular um noticiário. A publicação online de infor- mente concebida como uma informação disse-
mações falsas de forma intencional ou sabida. (Klein minada com objetivo de convencimento e de
e Wueller, 2017, citado por Meneses, 2018, p. 49). fortalecimento de uma posição no interior de
uma disputa narrativa em um contexto alta-
mente polarizado. Nesse sentido:
Com base em uma análise comparada dessas
e de outras definições, Meneses elaborou um O que nossa análise sugere, porém, é
conceito próprio do fenômeno, qual seja: que parte do interesse no consumo e
disseminação de notícias em uma sociedade
Fake News são notícias falsas nas quais polarizada é corroborar narrativas pré-
existe uma ação deliberada para enganar estabelecidas independentemente da
os consumidores. Não coincide com o qualidade do trabalho de investigação
conceito de false news, que por sua vez, ou apuração necessário para produzi-
não partem de ação deliberada, mas de las. (Ribeiro & Ortellado, 2018a, p. 80)
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
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Em suma, o fenômeno contemporâneo das 3. Ações públicas: análise


fake news envolve algo mais do que a mera fal- comparada, projetos de
sidade da notícia, presente também em formas
simples e ingênuas de erros factuais ou equí- lei e políticas
vocos involuntários. Por outro lado, as fake news
não envolvem necessariamente uma ação do-
losa, um ato consciente de deturpação da rea- O problema político da existência massifi-
lidade e de enganação. Trata-se de uma ação cada de fake news como estratégia de poluição e
engajada em uma guerra, uma informação que manipulação do debate público tem sido alvo
é consumida, produzida e compartilhada em de políticas públicas e tentativas de regulamen-
razão da função que desempenha no combate, tação ao redor do mundo. Em linhas gerais, os
corroborando determinada narrativa ou en- enfrentamentos legislativos adotam duas vias
fraquecendo a narrativa inimiga. É claro que básicas: a responsabilização das plataformas ou
muitas ações intencionalmente enganadoras a estratégia punitivista com a fixação de penas
também terão lugar nesse contexto. A produ- elevadas. A presente seção visa realizar uma
ção legislativa deve, certamente, distinguir esse análise pontual de duas iniciativas legislativas
tipo de conduta das demais, apesar da dificul- que ilustram essas duas vias. O modelo de re-
dade de se verificar com clareza a presença da gulamentação de plataformas é exemplificado
intenção de manipular. pela lei alemã, Net-zDG, enquanto o modelo
Nosso ponto, contudo, é que o fenômeno de criminalização das fake news tem por exem-
contemporâneo das fake news é mais amplo e, plo a lei que entrou em vigor na Malásia em
mais do que algo que envolve ações necessa- 2018. O breve relato de ambas as propostas per-
riamente insinceras e manipuladoras, pode mite um retrato comparativo para análise dos
ser compreendido de maneira mais adequada mais numerosos projetos de lei em tramitação
como algo que envolve desinformações produ- no Congresso Nacional que dizem respeito ao
zidas em contextos de embate e disputa ideo- combate às fake news.
lógica. Via de regra, as fake news encontram seu
motor não no desejo de negar a verdade, mas
sim na vontade de vencer a disputa a qualquer 3.1. Caso
preço, mesmo que para isso seja preciso fal- Alemanha
sear a realidade. As pessoas deixam de se per-
guntar se a notícia é verdadeira ou falsa. Estão O Network Enforcement Act (Net-zDG) foi apro-
ainda menos preocupadas se os fatos estão bem vado pelo Parlamento da Alemanha em junho
assentados ou se a fonte é confiável. A única de 2017 e entrou em vigor em janeiro de 2018.
coisa que importa é se a notícia favorece sua O objetivo da lei é regulamentar plataformas
posição em um contexto polarizado. Assim, online de distribuição de conteúdo com mais
produzimos e fazemos circular informações de dois milhões de usuários. O objetivo é regu-
de maneira entrincheirada, usando notícias e lamentar a forma como as plataformas devem
manchetes como armas no meio de um campo responder a conteúdos que violem o Código
de batalha. Criminal alemão, impondo a obrigação de
que o conteúdo seja excluído em um limite
de até 24 horas. Dependendo da complexidade
do caso, a lei abre margem para que a exclu-
são ocorra no limite máximo de uma semana.
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No caso de descumprimento, as plataformas 3.2. Caso Malásia


podem ser sujeitas a multas no valor de até 50
milhões de euros. Aprovada pelo parlamento em abril de 2018,
A legislação impõe uma obrigação de trans- a Malásia estabeleceu uma lei que criminalizou
parência aos provedores, que devem informar a publicação de notícias falsas no país. Em sua
aos usuários de forma imediata sobre quais- definição, o conceito de fake news é estabele-
quer decisões que interfiram no conteúdo pos- cido como “quaisquer notícias, informações, dados
tado por eles. Além disso, há a obrigação de e relatórios parcial ou totalmente falsos”, publicadas
que o conteúdo seja armazenado pelo prazo de tanto de forma digital quanto física, por órgãos
dez semanas, como forma de constituir provas. de imprensa, civis, nacionais ou estrangeiros.
As empresas devem, ainda, contratar agente Sua abrangência atinge qualquer notícia que
responsável por responder às autoridades e a afete um cidadão malaio, mesmo que publicada
processos civis sobre o tratamento de conteúdo no exterior. A lei impõe pena de multa em até
ilegal online. No caso de criação de medidas de 500 mil ringgits, o equivalente a 122 mil dóla-
detecção automática de conteúdo ilegal, o Net- res, bem como até seis anos de prisão (Ellis-
zDG impõe a obrigação de compartilhamento Petersen, 2018).
de boas práticas, a fim de criar uma cultura co- A criminalização de fake news na Malásia le-
letiva de combate ao conteúdo ilegal e de bene- vantou um intenso debate sobre a efetividade
ficiar as empresas de menor porte. do sistema penal como forma de solução do
O Net-zDG é considerado um marco inter- problema, fazendo surgir também diversas in-
nacional no esforço legislativo de enfrenta- quietações no que diz respeito ao respeito à li-
mento das fake news por meio da responsabili- berdade de expressão. Primeiro, é importante
zação direta das plataformas para realização de ressaltar que a aprovação da lei se deu poucas
controle de conteúdo. Apesar disso, a medida semanas antes das eleições nacionais para o go-
não é isenta de críticas. Como estabelecido no verno federal malaio. Diversas organizações da
relatório Monopólios Digitais, publicado pelo sociedade civil realizaram denúncias de que a
Intervozes: lei teria sido utilizada como um modo de jus-
tificar práticas de censura e de perseguição po-
O Relator Especial das Nações Unidas lítica. Isso porque o ex-primeiro-ministro do
para a Proteção da Liberdade de Expressão, país, Najib Razak, responsável pela proposição
David Kaye, também criticou duramente o da lei no parlamento, e cuja coalizão estava no
projeto de lei, em nota enviada ao governo poder no país há sessenta anos, foi acusado por
alemão em 2017. Ele lembrou que muitas diversos veículos de comunicação e por órgãos
informações só podem ser entendidas a partir de proteção de direitos humanos de usar a cri-
do contexto, de forma que seria altamente minalização de fake news como forma de con-
complexo para as plataformas avaliarem trolar os críticos que discutiam escândalos de
todos os casos. As ameaças de criminalização, corrupção e lavagem de dinheiro (Buchanan,
multas altas e prazos curtos também 2019).
pressionariam as plataformas a remover Os casos paradigmáticos recolhidos pelo re-
conteúdos potencialmente legítimos, levando latório Freedom On The Net, de 2018, demons-
a uma interferência inadequada na liberdade tram uma política de Estado que visava multar
de expressão e privacidade, atribuição que e perseguir criminalmente indivíduos e ativis-
deveria ser de tribunais ou instituições tas online que realizavam críticas à administra-
independentes. (Valente & Pita, 2018, p. 55) ção pública, ou que realizavam qualquer tipo de
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zombaria a figuras políticas importantes. Salah para aprovação. Não está claro, nesta fase,
Salem Saleh Sulaiman, primeiro cidadão ma- se o governo proporá emendas à legislação
laio processado criminalmente pela lei anti-fake ou novamente buscará sua revogação total.
news, foi condenado ao pagamento de multa de (Buchanan, 2018, p. 2, tradução nossa)
10 mil ringgits por postar vídeo no YouTube no
qual acusava a polícia de demorar cinquenta
minutos para responder a um chamado que de-
nunciava violência sofrida contra um professor
palestino na cidade de Kuala Lumpur, em 21 de 3.3. Caso Brasil
abril de 2018. A denúncia contra Sulaiman ale-
gava que ele teria postado, com más-intenções, O candidato de extrema direita do Partido
conteúdo falso online (Shahbaz, 2018). Social Liberal (PSL), Jair Messias Bolsonaro, foi
Importa destacar que a Malásia é um país eleito o 38º presidente do Brasil no dia 28 de
que constantemente recebe notas baixas em outubro de 2018, com 55,13% dos votos válidos.
indicadores globais relacionados à liberdade de O contexto eleitoral de 2018 no Brasil foi mar-
expressão do país, figurando na posição 145 de cado pelo partidarismo informacional e pela
180 países analisados em 2018 pelo World Press polarização dos eleitores em dois blocos opos-
Freedom Index.5 A conjuntura política da Malásia, tos. Os pesquisadores Márcio Moretto Ribeiro
um país de baixíssimo nível de alternância de e Pablo Ortellado analisaram 500 páginas de
poder, histórico conjuntural de perseguição Facebook com conteúdo político, selecionando
de opositores do governo e baixos índices de as mais curtidas por cidadãos brasileiros desde
liberdade de expressão, tornam a redação de o ano de 2014, e encontraram um padrão no
uma lei de criminalização de fake news com ter- qual há uma divisão de curtidas por perfis lo-
mos abertos e multas altas um instrumento po- calizados em duas bolhas opostas, sem inter-
tencial de censura por parte do governo cen- secção, denominadas pelos pesquisadores como
tral, conforme indicam as acusações em nível ‘clusters’ ou, em uma tradução livre, “grupos” ou
internacional. “aglomerações”. Nas palavras dos pesquisadores:
Embora o líder de oposição Mahathir
Mohamad tenha sido eleito, apoiando a pauta De um lado, todas as páginas dos partidos
de revogação da lei anti-fake news, ela ainda se e políticos de esquerda, amalgamadas com
encontra vigente no país. Nas palavras da pes- as do feminismo, do movimento negro e
quisadora internacional Kelly Buchanan: do movimento LGBT, além das páginas das
ONGs de direitos humanos; do outro lado,
A câmara baixa do Parlamento votou a as páginas dos partidos e dos políticos de
favor de uma lei de revogação em agosto direita, amalgamadas com as do liberalismo
de 2018. No entanto, a câmara alta, que econômico e do conservadorismo moral.
ainda é controlada por apoiadores do Quando o padrão de interação dos usuários
governo anterior, votou contra a lei em forma esses dois clusters (Figura 1), com
setembro de 2018. De acordo com a poucas conexões entre eles, podemos
Constituição da Malásia, a câmara baixa dizer que os usuários estão polarizados.
pode aprovar a lei novamente depois (Ribeiro & Ortellado, 2018a, p. 74)
de decorrido o período de um ano e, se
a câmara alta deixar de aprová-la, a lei
poderá ser apresentada posteriormente
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candidatos ao governo de estado e de cinco


candidatos à presidência. Sua atuação envolve
uma espécie de análise comportamental-psico-
lógica que permite identificar qual o tipo de
anúncio mais efetivo para conquistar o voto de
determinado eleitor.
No dia 18 de outubro de 2018, o jornal Folha
de São Paulo acusou empresários brasileiros de
Esse mapeamento do comportamento das comprarem pacotes de mensagem em massa,
redes brasileiras durante a disputa eleitoral que teriam sido disparados no WhatsApp
de 2018 reforça a tese de que as fake news são com informações falsas contra o Partido dos
um fenômeno intimamente relacionado com o Trabalhadores. O serviço, oferecido por empre-
contexto de radicalização e enfrentamento so- sas publicitárias, teria sido consolidado com
cial. A divisão cibernética dos perfis de usuá- o auxílio de eleitores já propensos a votar no
rio brasileiros serve como um retrato para o candidato, responsáveis pela criação de redes
contexto de hiperpolarização que marcou a de grupos para disparo de mensagens, bem
vitória do ex-deputado Jair Bolsonaro sobre o como pelo uso de bots que disseminavam no-
candidato Fernando Haddad, representante do tícias falsas em velocidade ímpar (Mello, 2018)
Partido dos Trabalhadores, reconhecido, em Quando questionado sobre o escândalo pelo
certa medida, como partido de esquerda. veículo de mídia O Antagonista, Jair Bolsonaro
De acordo com levantamento da BBC, o nú- respondeu:
mero de empresas que oferecem serviços de
análise de dados e uso de bots no Brasil vem Eu não tenho controle se tem empresário
crescendo (Mota, 2017). Uma delas é a empresa simpático a mim fazendo isso. Eu sei que
War Room, que utiliza um método denominado fere a legislação. Mas eu não tenho controle,
processamento de linguagem natural a fim de não tenho como saber e tomar providência.
ensinar a língua portuguesa a um sistema au- Pode ser gente até ligada à esquerda que
tomatizado e traçar padrões. A tecnologia é diz que está comigo para tentar complicar
usada para fins eleitorais como ferramenta de a minha vida me denunciando por abuso
monitoramento e criação de perfis de eleitores. de poder econômico. (Brasil, 2018)
Com base no perfil é traçada a melhor estraté-
gia para persuadir cada eleitor a votar em de-
terminado candidato de maneira personalizada. De acordo com levantamento realizado pelo
Nas eleições presidenciais brasileiras de 2018 a site Congresso em Foco, das 123 checagens de
empresa possuía dois clientes, que não foram fatos publicadas sobre os candidatos no período
divulgados. eleitoral, 104 eram direcionadas a Fernando
A empresa CA-Ponte, antiga Ponte Estratégica, Haddad e, nesse sentido, favoreciam o candi-
também atuou no Brasil. Ela é parceira da dato Jair Bolsonaro (Macedo, 2018).
Cambridge Analytica, empresa envolvida no es- No exemplo brasileiro é possível perceber, de
cândalo de uso de dados eleitorais do Facebook forma clara, como fake news foram propagadas
para influenciar a eleição nos Estados Unidos como informações de combate em um contexto
da América. De acordo com informações reve- hiperpolarizado, no qual cada lado tenta pau-
ladas pela própria empresa, a CA-Ponte esteve tar o debate público e fazer prevalecer sua pró-
envolvida na campanha brasileira de sessenta pria narrativa. Um exemplo contundente disso
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foi o polêmico caso do “kit gay”, uma notícia Outro aspecto a ser considerado no caso bra-
falsa6 que teve grande circulação nas redes so- sileiro de disseminação de fake news diz res-
ciais, acusando o candidato Fernando Haddad peito ao comprometimento da neutralidade da
de ter implantado nas escolas infantis, quando rede, que foi estabelecida pelo Marco Civil da
exercia o cargo de Ministro da Educação, um Internet7 como um dos princípios da Internet
material que mostrava crianças nuas e meni- e diz respeito à garantia de acesso não diferen-
nos se beijando. Esse caso ganhou proporções ciado a todas as informações que circulam na
ainda maiores na corrida eleitoral pelo fato de Internet. Tal princípio visa o tratamento igua-
o próprio candidato Jair Bolsonaro disseminar litário na estrutura da rede, sem diferença de
essa notícia falsa quando foi entrevistado pelo velocidade na transmissão e recepção ou servi-
Jornal Nacional, principal jornal televisivo bra- ços acessados por seus usuários. Apesar disso, a
sileiro, no dia 29 de outubro de 2018 (Coletta, prática do zero rating, ou seja, de oferecimento
2018). de planos de telefonia que isentam o con-
Nos termos de pesquisa da organização Avaaz, sumo de dados para acesso de aplicativos como
dos 85,2% dos eleitores de Bolsonaro que leram o WhatsApp e Facebook, tornou-se comum
ou receberam a notícia, 83,7% acreditaram nela. no Brasil entre empresas provedoras de con-
Por outro lado, dos 61% dos eleitores de Haddad teúdo e operadoras que garantem o acesso à
que viram a notícia, apenas 10,5% acreditaram Internet. A Nota Técnica nº 34/2017/CGAA4/
(Pasquini, 2018). Isso demonstra a força que o SGA1/SG/CADE, publicada no Diário Oficial da
“viés de confirmação” possui em contextos hi- União em 01/09/2017 e emitida pelo Conselho
perpolarizados, ou seja, a propensão que temos Administrativo de Defesa Econômica (2017), si-
de acreditar em notícias que reforçam a narra- nalizou a legalidade dessa prática, alegando que
tiva pela qual já possuímos afinidade. não gera “efeitos anticompetitivos”. É impor-
Se o problema das fake news tem claramente tante assinalar, contudo, que o uso contínuo
uma dimensão global, o caso brasileiro pa- de um plano de dados que limita o acesso da
rece ser ainda mais dramático, especialmente Internet às redes sociais e a sítios específicos
em relação à deturpação do justo debate polí- impede a realização de checagem de fatos e cria
tico. Em primeiro lugar, quanto ao impacto, de um ambiente de informação unicamente rea-
acordo com o estudo Papo Digital 2018, feito lizada no interior das redes sociais. Vê-se, por-
pela Hello, agência de pesquisa de mercado e tanto, a importância de se garantir planos mais
inteligência, sete em cada dez brasileiros usam acessíveis e democráticos à Internet, especial-
as redes sociais para se informar. Trata-se de mente em um país como o Brasil que possui
um dado que demonstra a relevância das redes serviços de rede extremamente caros e len-
sociais e da Internet como meio primário de tos (Núcleo de Informação e Coordenação do
informação no Brasil (Papo Digital: O cuidado Ponto BR, 2018).
das marcas com interações polarizadas no di- Soma-se a isso o fato de, no Brasil, de
gital, 2018). Além disso, de acordo com a pes- acordo com pesquisa TIC Domicílios 2017
quisa Global Advisor, realizada pelo Instituto realizada pelo Cetic.br (Centro Regional de
Ipsos entre 22 de junho e 3 de julho de 2018 Desenvolvimento de Sociedade e Informação),
com mais de 19.000 pessoas em 27 países, o a população brasileira que aufere renda mensal
Brasil teria a população que mais acredita em de até três salários mínimos não possui com-
fake news no mundo (63%), seguido da Arábia putador em casa e acessa a Internet primordial-
Saudita (58%) e da Coreia do Sul (57%) (Calliari, mente pelo telefone celular, contratando pla-
2018). nos de baixo custo e recebendo um conteúdo
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limitado de informações (Centro Regional de em parceria com a União Europeia entre os


Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade dias 16 e 17 de maio de 2019 a fim de debater
da Informação, 2017). Assim, fica ainda mais estratégias de combate à proliferação de notí-
difícil para a maior parte das pessoas sair de cias falsas no período eleitoral. O evento con-
suas bolhas digitais e ter acesso a fontes mais tou com a participação de dirigentes do Google,
confiáveis de informação. Facebook, WhatsApp, especialistas do FBI, da
Polícia Federal brasileira, da Organização dos
Estados Americanos (OEA), do Poder Judiciário
3.3.1. Políticas de e de membros engajados da sociedade civil.
combate às fake Embora seja positivo que o TSE esteja promo-
news no Brasil vendo o debate sobre o tema em uma perspec-
tiva multipartes, com envolvimento de mem-
Durante as eleições presidenciais de 2018, o bros do governo, do setor privado, da sociedade
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciou a civil, do setor técnico e da academia, é criticá-
criação de uma força-tarefa para o combate às vel o fato de não ter sido ainda produzido ne-
fake news no período eleitoral. Os membros in- nhum relatório oficial e de que nem tenhamos
tegrantes da parceria incluíam integrantes do notícia de qualquer política pública que es-
TSE, da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), teja sendo desenvolvida pelo órgão em caráter
da sociedade civil e do Exército. Denominado preventivo para o combate da desinformação
Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições, nas eleições municipais de 2020. O sigilo das
seu objetivo era debater o monitoramento pre- atas de reuniões do Conselho Consultivo sobre
ventivo de usuários na rede para evitar a difu- Internet e Eleições é bastante questionável, na
são de fake news, visando o desenvolvimento de medida em que o objetivo do órgão, qual seja,
pesquisas e a proposição de ações e de políticas desenvolvimento de pesquisas e de ações públi-
públicas. Em maio de 2019, o Jornal Estadão cas, não parece ter sido cumprido.
tentou obter cópias das atas de reunião do No que diz respeito às plataformas de redes
Conselho, invocando as prerrogativas da Lei de sociais, uma ação positiva conduzida pelo
Acesso à Informação, mas obteve a resposta de Facebook é a realização de parceria com agên-
que as mesmas foram caracterizadas como si- cias de checagem de fatos brasileiras, como
gilosas, sem acesso público até o ano de 2023. a Agência Lupa e a Aos Fatos, a fim de criar
Depois das eleições de 2018, o Conselho não se uma política integrada de combate às fake news.
reuniu mais (TSE decreta sigilo até 2023 de re- Dentre as ações articuladas para o ano de 2019
uniões que discutiram grampos por fake news, está a criação de um verificador de notícias in-
2019). tegrado à plataforma e a criação de uma classi-
Uma das medidas já implantadas pelo órgão ficação de confiança das notícias denominada
nas eleições de 2018 foi o lançamento do site “aba de qualidade”, a fim de ajudar adminis-
“Esclarecimento sobre informações falsas”, es- tradores de páginas a saberem se o conteúdo
pécie de plataforma que compila links de agên- que reproduzem foi identificado como “falso”,
cias de checagem de fatos sobre notícias de alta “misto” ou “com título falso”. A política envolve
circulação no período eleitoral. Outras medidas diminuir o alcance de conteúdos considerados
realizadas pelo TSE incluem a organização de falsos pelo aviso aos administradores de pági-
eventos e seminários a fim de compartilhar ex- nas que reproduzem esse tipo de notícia e pela
periência sobre o tema. Foi o caso do seminário diminuição da distribuição orgânica no Feed de
internacional Fake News e Eleições, realizado Notícias (Aos Fatos, 2018).
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A plataforma WhatsApp, por sua vez, tam- 3.3.2. Projetos de lei


bém tem tomado medidas para auxiliar no em trâmite no Brasil
combate às fake news no Brasil. Dentre elas,
está a redução do limite de mensagens encami- Em junho de 2019, ao pesquisar os termos
nhadas para apenas cinco contatos ou grupos, ‘fake news’ e ‘notícias falsas’ na busca por pro-
atualização realizada em 21 de janeiro de 2019 posições legislativas no site da Câmara dos
(Higa, 2019). A medida é extremamente posi- Deputados, foram encontrados 19 projetos de
tiva, na medida em que dificulta o gesto auto- lei focados na temática. Foi criada tabela com-
mático de compartilhamento de notícias que parativa a fim de realizar a análise de cinco
possibilita a disseminação rápida e frenética projetos paradigmáticos, na medida em que
de conteúdo falso. Além disso, cabe ressaltar possuem objetos diferentes.
que Chris Daniels, atual presidente da plata- Enquanto alguns dos projetos possuem foco
forma, realizou pronunciamento listando pos- específico na criminalização das fake news, com
síveis medidas a serem tomadas pelo aplicativo imposição de pena de detenção ou multas, há
a fim de coibir a disseminação de notícias fal- também propostas de inclusão do tema como
sas no Brasil, quais sejam, a remoção de contas parte da grade obrigatória no ensino funda-
praticantes de spam8 identificadas pelo uso de mental e médio, propostas que visam modi-
inteligência artificial; a sinalização de reenvio ficar a lei de direito de resposta e a previsão
de mensagens, a fim de que o leitor saiba que penal de retratação a fim de incluir o conteúdo
o conteúdo não foi escrito pela pessoa que rea- divulgado na Internet, e propostas que visam a
lizou o envio; parcerias com projetos de che- responsabilização dos provedores de conteúdo
cagem de fatos tais como o Projeto Comprova, que não removerem conteúdo classificado
que reúne 24 veículos jornalísticos brasileiros; como falso após notificação.
criação de grandes campanhas publicitárias a Na presente análise, com intuito de promo-
fim de conscientizar sobre identificação de fake ver uma visão geral dos PLs que tramitam no
news e a colaboração com autoridades (Época, legislativo brasileiro, foi esquematizado um
2018). quadro ilustrativo que expõe a definição dada
Outra iniciativa interessante foi desenvol- ao termo fake news, bem como a medida de
vida por meio de parceria entre pesquisado- combate às fake news imposta pelo projeto de
res da Universidade de São Paulo (USP) e da lei. A fim de garantir panorama amplo de aná-
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). lise, o recorte trabalhou com seis propostas di-
Trata-se de um detector de notícias falsas com ferentes em suas abordagens, quais sejam: i) de
base em inteligência artificial, no qual usuários modificação do Código Penal a fim de incluir
podem averiguar a probabilidade de uma notí- o meio digital nos crimes de calúnia e difama-
cia ser falsa dentro do próprio aplicativo. Com ção já existentes; ii) de regulamentação de pro-
o devido desenvolvimento, a iniciativa poderia vedores de aplicações de Internet; iii) de pro-
oferecer uma solução para os problemas im- posta de alfabetização digital quanto ao assunto
postos pelas práticas de zero rating, sem cau- das fake news na Lei de Diretrizes e Bases da
sar disrupções à privacidade da rede (Ciriaco, Educação Nacional; iv) de proposta de altera-
2018). ção do Código Eleitoral; v) de modificação do
Código Penal a fim de classificar fake news on-
line como um tipo de apologia de crime ou cri-
minoso; e vi) de alteração da Lei de Segurança
Nacional para tipificar a produção de fake news.
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Projeto de Lei Definição de fake news Medida Tomada

PL 2917/2019 Não define fake news. Trabalha Altera o Código Penal (Art. 143, sobre a retrata-
(Valdevan Noventa, PSC) com os conceitos pré-existentes ção em casos de calúnia e difamação) e a Lei de
de calúnia, difamação e de ofensas Direito de Resposta a fim de incluir a Internet
que ensejam o direito de resposta. e suas aplicações.

PL 2601/2019 Divulgação de informação que o Cria obrigação de indisponibilização de notícias


(Luís Miranda, DEM) autor sabe ou deveria saber inverí- falsas por provedores de aplicações de Internet,
dica e capaz de exercer influência e responsabilidade solidária pela notícia vei-
difusa em qualquer grupo social culada caso não a remova após notificação de
ou pessoa, incluindo o comparti- usuário.
lhamento em aplicativos de men-
sagem, redes sociais ou sítios na
Internet.

PL 559/2019 Não define fake news. Acrescenta parágrafo ao art. 26 da Lei de


(Paulo Pimenta, PT) Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para
dispor sobre a necessidade de inclusão, no
currículo escolar do ensino fundamental e do
ensino médio, de disciplina sobre a utilização
ética das redes sociais – contra a divulgação de
notícias falsas.

PL 9973/2018 Criar, divulgar, ou compartilhar, Altera o art. 323 do Código Eleitoral, a fim de
(Nelson Trad, PSD) no ano eleitoral, por qualquer tipificar a disseminação de fake news, bem como
meio de comunicação social, fatos aumentar as multas já previstas para divulga-
sabidamente inverídicos em rela- ção de conteúdo falso. Possibilita responsabili-
ção a pré-candidatos, candidatos zação do provedor de conteúdo em caso de des-
ou partidos, capazes de exercerem cumprimento de ordem judicial para remoção.
influência perante o eleitorado.

PL 9554/2018 Divulgar informação ou notícia que Modifica o art. 287-A do Código Penal para ti-
(Pompeo de Mattos, PDT) sabe ser falsa e que possa modificar pificar a divulgação de fake news e estabelecer as
ou desvirtuar a verdade com rela- seguintes penas: detenção, de um a três anos, e
ção à saúde, segurança pública, eco- multa, se o fato não constitui crime mais grave,
nomia ou processo eleitoral ou que e, para o caso de divulgação pela Internet, reclu-
afete interesse público relevante. são, de dois a quatro anos, e multa, se o fato não
constitui crime mais grave. Há previsão de au-
mento de pena de um a dois terços se o agente
divulga a informação ou notícia falsa visando
obtenção de vantagem para si ou para outrem.
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PL 9533/2018 Notícias falsas capazes de provocar Altera a Lei de Segurança Nacional para tipificar
(Francisco Floriano, DEM) atos de hostilidade e violência con- a produção e divulgação de fake news, impondo
tra o governo. pena de reclusão, de 1 a 4 anos, nos termos do
art. 22-A. Também altera o art. 23, que diz res-
peito a “incitar à subversão da ordem política ou
social; à animosidade entre as Forças Armadas
ou entre estas e as classes sociais ou as institui-
ções civis; à luta com violência entre as classes
sociais; à prática de qualquer dos crimes previs-
tos nesta Lei, impondo reclusão de 2 a 8 anos
para incitação ocorrida na Internet”.

Na análise dos PLs em trâmite nas casas le- aplicações da Internet. A proposta, apesar de
gislativas brasileiras, percebe-se a tendência bá- apresentar coerência na tentativa de evitar a
sica de responsabilização de provedores ou de anonimidade, que auxilia um ambiente propí-
criminalização de condutas relacionadas à difu- cio à disseminação de fake news, abre a possibi-
são de fake news. Alguns dos projetos realizam lidade de controle e de perfilação ainda maior,
ressalvas de que o conteúdo artístico ou hu- na medida em que envolve um cadastro único
morístico não deve ser enquadrado como fake a ser usado em todas as redes sociais, facili-
news. Ainda assim, não há especificação dos cri- tando o cruzamento de dados para fim de dire-
térios que permitiriam distinguir a sátira ou o cionamento de conteúdo e serviços.
humor daquilo que é inverídico e tem poten-
cial de causar danos.
Por exemplo, podemos imaginar o caso de 4. Insuficiências e
uma imagem manipulada que é disseminada desafios
como piada na Internet, mas que acaba sendo
tomada como verdade e prejudicando deter-
minadas pessoas públicas ou grupos políticos.
Quais seriam os limites do combate a esse tipo
de notícia, em uma situação na qual a mera 4.1. Censura
disseminação é criminalizada? Como um pro- estatal: minha
vedor deve remover esse conteúdo de forma
imediata mediante notificação, na medida em avó poderá ser
que as notificações podem i) ser realizadas por punida pelo
pessoas que não desejam ver o conteúdo dispo- compartilhamento
nibilizado ou ii) atingir casos em que a escolha
de remoção ataca diretamente a liberdade de de mensagens?
expressão?
Destaca-se, ainda, o PL 3389/2019, de auto- Embora inúmeros projetos de lei tenham
ria do deputado federal Fábio Faria (PSD/RN), sido propostos a fim de combater as fake news
que visa estabelecer legalmente a necessidade no Brasil, observa-se que a maioria absoluta
de Cadastro de Pessoa Física ou Jurídica (CPF/ visa apenas criminalizar o ato de disseminação
CNPJ) para que seja realizado cadastro em de notícias falsas, sem a instauração de uma
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política de prevenção consolidada e de longo violência contra o governo”.


prazo para um combate mais efetivo desse Em suma, entendemos que os projetos de
fenômeno. lei em trâmite no Congresso são insuficientes
O exemplo de criminalização ocorrido na para abordar o fenômeno das fake news na di-
Malásia assume especial relevância quando se mensão em que ele se apresenta. Padecem, em
pensa no punitivismo estatal como forma de linhas gerais, de grave imprecisão conceitual,
combate à desinformação. O risco de o insti- abrindo portas para arbitrariedades e persegui-
tuto ser utilizado de forma deturpada, atin- ções políticas. Podemos afirmar que, partindo
gindo críticos ao governo de forma arbitrária, de um diagnóstico insuficiente, os remédios
é latente, especialmente em países com insti- oferecidos apresentam efeitos colaterais extre-
tuições frágeis e mais facilmente manipuláveis mamente perigosos. Uma legislação extrema-
ao sabor dos interesses de grupos políticos. A mente punitivista produzida sem uma precisão
imprecisão conceitual e o estabelecimento de conceitual adequada e no calor dos aconteci-
tipos penais vagos e abertos abrem perigosas mentos tende a produzir mais males e a ser
brechas para decisões arbitrárias e seletivas, re- ainda pior do que a ausência de leis. Enfim,
presentando um risco à liberdade de expressão sem o devido cuidado, mesmo estando bem-
e à democracia. -intencionado, muitas vezes oferecemos drogas
Alguns dos PLs em trâmite estabelecem, que, ao invés de curar, matam ou deixam se-
ainda, multas de valores altíssimos para qual- quelas muito mais graves.
quer pessoa que crie, divulgue ou dissemine
fake news. Percebe-se, portanto, um valor pe-
cuniário de multa que não é correspondente 4.2.
à realidade da grande maioria da população Responsabilização
brasileira. Além disso, verifica-se uma amplia-
ção do sujeito ativo capaz de cometer o crime, de plataformas
na medida em que o mero compartilhamento
de uma notícia recebida pode levar ao come- O método de responsabilização de platafor-
timento de um crime. Sem distinção norma- mas, como ocorre na Alemanha com a aplica-
tiva clara quanto aos limites do sujeito ativo, ção da Net-zDG, tampouco é isento de críti-
corre-se o risco de uma pessoa desavisada, que cas. Primeiramente, os prazos para remoção de
acredita na notícia que está compartilhando, conteúdo são muito curtos, em regra 24 horas,
ser criminalizada pelo mero compartilhamento com hipótese de uma semana para casos de
com multas altíssimas ou até mesmo com pena alta complexidade. Entendemos a necessidade
de restrição de liberdade. dessa resposta rápida, haja vista a extrema ve-
Mais grave ainda é a possibilidade de con- locidade com que a informação se dissemina
denação pela Lei de Segurança Nacional – Lei nas redes. Apesar disso, a soma de prazos cur-
Nº 7.170/1983–pela mera disseminação de notí- tos e multas altas cria o risco de que decisões
cias falsas, de acordo com o estabelecido no PL precipitadas sejam tomadas e produzam prejuí-
9533/2018. Ressalte-se que o projeto de lei se- zos irreversíveis.
quer define o conceito de fake news ou notícias Outro ponto de extrema relevância é que a
falsas, o que abre enorme margem para a arbi- responsabilização de plataformas gera um con-
trariedade estatal e para a realização de perse- trole de conteúdo que é realizado geralmente
guições políticas, na medida em que o alvo são por entes privados, como Facebook e Google.
notícias que provoquem “atos de hostilidade e Uma análise mais profunda da concentração
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das plataformas digitais demonstra a existên- 5. O combate


cia de grandes conglomerados que constituem às fake news no
verdadeiros monopólios digitais (Taplin, 2017).
O Google é dono de algumas das principais Brasil–conclusões e
plataformas digitais, como o YouTube, o sis- recomendações
tema operacional Android, o Waze, o navega-
dor Chrome e o buscador Google. O Facebook,
por sua vez, é dono de um ecossistema de mí- Percebe-se uma dificuldade generalizada de
dias sociais composto pela rede Facebook tra- compreensão do fenômeno das fake news, o que
dicional, pelo WhatsApp, pelo Instagram e pelo gera diversos tipos de distorções nas medidas
aplicativo de troca de mensagens instantâneas de combate, bem como na redação de legisla-
Messenger. ção específica. É natural que tal ocorra, pois a
Considerando a análise feita da estrutura da desinformação contemporânea é um fenômeno
Internet, bem como do uso da Internet como inédito que impõe diversos desafios novos.
primeira via de informação, impor a respon- Nesse sentido, o trabalho visa apresentar al-
sabilização de plataformas equivale à obriga- gumas reflexões para a criação de futuras po-
ção compulsória de que os monopólios digi- líticas públicas ou projetos de lei que abordem
tais adquiram ainda mais poder, controlando o tema das fake news. Ressalte-se que, até onde
o conteúdo que domina e pauta o debate pú- se pode concluir, não existe uma “bala de prata”
blico. Destaca-se ainda que essas plataformas ou uma medida única que possa ser tomada a
não possuem sequer a expertise para realizar tal fim de resolver o problema de forma definitiva.
tarefa, ainda que quisessem fazê-lo de maneira Recomenda-se a combinação estratégica de po-
isenta e bem-intencionada. líticas de curto, médio e longo prazo, a fim de
Nesse mesmo sentido, o Relator Especial das cultivar uma sociedade cada vez mais engajada
Nações Unidas para a Proteção da Liberdade de e ciente dos problemas do mundo digital, bem
Expressão, David Kaye, em nota enviada ao go- como capacitada para enfrentar os desafios tra-
verno alemão no ano de 2017, considerou que zidos pela tecnologia.
a medida de responsabilização de plataformas
impõe responsabilidade exacerbada aos opera-
dores de plataforma (Valente & Pita, 2018, p. 5.1. Análise
55). De acordo com a nota, os critérios “vagos jurídica/
e ambíguos” que determinariam a exclusão de
conteúdo ilícito das plataformas poderia gerar regulatória
um atentado à liberdade de expressão, devendo
a atribuição do controle caber aos tribunais ou É necessário evitar a produção de legislação
a instituições independentes. no calor do momento, sem um estudo e uma
delimitação clara do fenômeno das fake news,
ou com conceitos que abram margens para
ampla interpretação. A criminalização e o pu-
nitivismo não parecem ser a forma mais efetiva
de abordar o problema das fake news, na medida
em que criam brechas para violação do direito
à liberdade de expressão, bem como criam a
possibilidade de censura estatal.
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A possibilidade de tratamento da dissemina- despertando a consciência de que a informa-


ção e do disparo de fake news em massa pode ção apenas pelas mídias sociais pode ser in-
ser uma boa opção para o combate de empre- completa ou deturpada. Ao mostrar ao público
sas publicitárias que ofereçam o serviço de uso infantil como o trabalho jornalístico funciona e
de bots como ferramenta eleitoral. Além disso, aspectos sobre a importância do procedimento
destaca-se que, no que diz respeito à dissemi- de editoração e checagem de fatos das matérias
nação de conteúdo ilegal, discursos de ódio ou publicadas, é criado um vínculo que demons-
incitação à violência, já há um arcabouço ju- tra a importância da regulamentação cons-
rídico específico e diversos tipos previstos no ciente da mídia e da responsabilidade sobre as
Código Penal brasileiro. notícias disseminadas. Reppert-Bismarck reco-
menda, ainda, que as mídias tradicionais ajam
de forma a admitir as tendências e vieses aos
5.2. Necessidade quais estão sujeitas, de modo a demonstrar
da alfabetização postura de transparência e compromisso com
o público, a fim de melhorar a relação com os
digital como consumidores.
política pública No Brasil, o projeto LupaEducação é um
exemplo de atuação engajada na promoção
A alfabetização digital é uma medida de de uma alfabetização digital efetiva. Iniciado
médio e longo prazo, mas de extrema impor- em 02 de abril de 2017 pela Agência Lupa9, a
tância para o combate à desinformação con- iniciativa visa capacitar cidadãos e profissio-
temporânea. Diz respeito ao ensino de formas nais em técnicas de checagem de fatos a fim
saudáveis de navegar na rede, bem como à edu- de construir uma ação multiplicadora para se-
cação sobre formas de identificação de fake news gurança de informação na rede. Em março de
e sobre a necessidade de realização de checa- 2019, a iniciativa já havia capacitado cerca de 4
gem de fatos a fim de apurar o teor das notícias mil pessoas, dentre elas, 100 alunos do ensino
recebidas por meio das redes sociais. médio de escolas do Rio de Janeiro (Piauí, 2017).
Uma abordagem de sucesso visa a alfabeti- O Comitê Gestor da Internet (CGI)10 tem
zação digital em escolas. O objetivo é ensinar tido papel importante na produção de mate-
as crianças a pensar de forma crítica sobre o riais educativos para o combate à desinforma-
conteúdo que recebem e a questionar o valor ção. Em 14 de agosto de 2018, foi lançado o
de uma notícia, por mais atraente e agradável Guia “Internet, Democracia e Eleições” (Nic.br,
que ela possa parecer. A sociedade civil tem as- 2018), publicação online e gratuita cujo objetivo
sumido um protagonismo nessas iniciativas foi servir de guia prático para gestores públicos
de alfabetização digital. A ONG Lie Detectors, e usuários na detecção de fake news no período
que atua em Bruxelas, na Bélgica, organiza con- eleitoral. O engajamento do CGI na elaboração
versas entre jornalistas e crianças da faixa etá- de uma pauta de combate à desinformação se
ria entre 10 e 11 anos, a fim de apresentar o dá também pela organização de eventos, como
problema das fake news, bem como ensiná-las o Seminário “Desafios da Internet no Debate
as principais maneiras de se prevenir (Kuper, Democrático e nas Eleições”, realizado em 04
2019). de abril de 2019, que promoveu um debate
Outro objetivo da fundadora da ONG, Juliane entre comunidade técnica, empresarial, gover-
von Reppert-Bismarck, é fazer com que a con- namental e acadêmica para pensar em soluções
fiança na mídia tradicional seja restaurada, e estratégias contra o problema das fake news.
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A atuação ativa do Comitê Gestor da Internet 6. Conclusão


e de iniciativas da sociedade civil como o
Projeto Lupa Educação não eximem a res-
ponsabilidade do Estado de pensar em medi- O principal objetivo do trabalho foi realizar
das de política pública a longo prazo para o um panorama geral que abordasse as princi-
combate à desinformação. Nesse sentido, re- pais características da “era da desinformação”.
conhecendo a importância e a permanência da Nesse sentido, empreendeu inicialmente uma
Internet na vida cotidiana, o trabalho defende discussão conceitual dos termos “pós-verdade”
que o Estado brasileiro tome medidas para in- e “fake news”, a fim de situar o contexto de dis-
corporar a educação digital como parte do cur- seminação de notícias falsas e o descrédito da
rículo base da educação, proposta que já está busca pela verdade no século XXI.
em trâmite pelo Projeto de Lei 559/2019, de au- Para localizar o debate brasileiro, na me-
toria do Deputado Federal Paulo Pimenta (PT/ dida em que os PLs em trâmite no Congresso
RS). Nesse sentido, vê-se como positiva a alte- Nacional dizem respeito à responsabilização de
ração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação plataformas ou à criminalização de fake news, o
Nacional visando a obrigatoriedade de discipli- trabalho procurou levar adiante uma aborda-
nas, no currículo nacional, voltadas para abor- gem comparada com as experiências de com-
dagem saudável da Internet, ensinando sobre bate à desinformação na Alemanha, pela análise
assuntos como fake news, bots, uso seguro das da lei alemã de responsabilização de platafor-
redes e dos dispositivos, entre outros de ex- mas pela disseminação de conteúdo ilegal (Net-
trema relevância no contexto do mundo globa- zDG), e na Malásia, com análise do período em
lizado e conectado. que o país criminalizou a disseminação de fake
Ressalte-se que o Plano Nacional de Educação, news.
Lei Nº 13.005/2014, e o Programa de Inovação Concluiu, primeiramente, pela necessidade
Educação Conectada, instituído pelo Decreto de uma análise crítica da responsabilização de
Nº 9.204/2017, possuem previsões normativas plataformas, na medida em que sua aplicação
de uso de equipamentos e recursos tecnológi- nos moldes da lei alemã pode causar, como
cos digitais para a utilização pedagógica, bem consequência: i) que medidas sejam tomadas
como o acesso a recursos educacionais digitais sob extrema pressão, de modo que é possível
de qualidade no Ensino Básico. A ideia de uma que um conteúdo legítimo seja removido pre-
educação digital brasileira não deve restringir- cipitadamente das redes, caracterizando uma
-se ao acesso à Internet e à tecnologia, mas sim censura apressada das plataformas; e ii) que o
a uma ampla noção de alfabetização digital, que Estado atribua a obrigação de controle do dis-
envolve tanto o domínio do uso da tecnolo- curso público a entes privados que hoje con-
gia quanto a consciência sobre os instrumen- formam grandes monopólios digitais.
tos e seus desafios. Nesse sentido a definição Também concluiu pela necessidade de crí-
dada pelo Glossário da Inclusão Digital elabo- tica ao punitivismo e às legislações redigidas
rado pelo Instituto de Referência em Internet no “calor do momento”, às pressas. A crimina-
e Sociedade: “Alfabetização Digital: Processo lização das fake news, como demonstrado pelo
cognitivo por meio do qual o indivíduo ad- exemplo da Malásia, abre amplas margens para
quire habilidades para o uso crítico das tecno- que os autores de discursos políticos que desa-
logias da informação e comunicação.” (Gomes, gradam grupos dominantes sofram persegui-
Duarte & Rocillo, 2019, p. 65) ções. A dificuldade em se determinar o que é
precisamente verdade ou de se estabelecer um
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conceito claro de fake news também agrava a


possibilidade de arbitrariedade na aplicação da
norma punitiva.
Nesse sentido, seria muito mais proveitoso
que medidas tomadas em um modelo de gover-
nança multipartes fossem feitas conjuntamente
para o combate à desinformação. Isso se dá pela
união dos setores interessados, quais sejam, so-
ciedade civil, Estados, setor econômico, acade-
mia e setor técnico. Assim, opta-se pelo estí-
mulo ao desenvolvimento conjunto de medidas
de curto, médio e longo prazo para o combate
às fake news em diferentes esferas, como a legis-
lação que responsabilize civilmente empresas
publicitárias que ofereçam serviços de disparo
direcionado de fake news, bem como os contra-
tantes do serviço; a educação digital em escolas
desde o ensino básico a fim de criar uma cul-
tura de pensamento crítico e alfabetizada no
mundo tecnológico; o incentivo à mídia tradi-
cional e aos jornalistas, bem como a capacita-
ção dos mesmos para o combate à desinforma-
ção e o incentivo a iniciativas de verificação de
fatos, feitas por diferentes órgãos.
Ressalte-se que não há uma única medida
a ser tomada, nem parece haver uma solução
mágica que resolva todos os problemas da con-
temporaneidade. Apesar disso, é necessário que
órgãos do Estado, bem como do setor privado
envolvido, ajam no combate das fake news de
forma imediata, pois não se trata de um pro-
blema simples que possa ser resolvido às vés-
peras das próximas eleições no Brasil. O que se
percebe, no entanto, é um panorama de muita
incompreensão e de quase inércia de políticas
públicas nesse sentido.
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170
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171
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PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL

Notas finais Youtube têm 48h para retirar do ar vídeos


com inverdades sobre livro de educação sexual.
Disponível em http://www.tse.jus.br/imprensa/
noticias-tse/2018/Outubro/facebook-e-youtu-
1 O Código de Ética dos jornalistas brasi- be-tem-48-horas-para-retirar-do-ar-videos-
leiros está em vigor desde 1987, depois de apro- -com-inverdades-sobre-livro-de-educacao-se-
vado no Congresso Nacional dos Jornalistas, xual
sendo que sua última atualização ocorreu em
04 de agosto de 2007. Pode ser encontrado no 7 Lei Nº 12.965/2014, criada com o in-
seguinte link: <https://fenaj.org.br/wp-content/ tuito de estabelecer princípios, garantias, direi-
uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jor- tos e deveres para o uso da internet no Brasil.
nalistas_brasileiros.pdf>. Acesso em 29 de jun.
de 2019. 8 O termo spam diz respeito ao envio de
e-mails e mensagens não solicitados, normal-
2 Pesquisa realizada pelo Monitor do mente em cadeia, para um grande número de
Debate Político no Meio Digital, da Universidade pessoas.
de São Paulo, que, em 2018 entrevistou 2.250
pessoas e demonstrou proeminência da circu- 9 A Agência Lupa é uma agência de checa-
lação de notícias falsas via grupos de família e gem de fatos brasileira fundada em 01/11/2015. É
via redes de intimidade no WhatsApp. parte da International Fact-Checking Network
(IFCN), rede que reúne mais de 150 platafor-
3 Traduções nossas. mas de checagem em todo o mundo.

4 Extraído de Meneses, J. P. (2018). Sobre a 10 O Comitê Gestor da Internet é um órgão


necessidade de conceptualizar o fenómeno das multissetorial criado pelo Decreto nº 4.829, de
fake news. Observatório (OBS*), Special Issue, 3 de setembro de 2003. O Comitê possui a fun-
vol. 12, nº 4, 37-53. ção, atribuída pelo art. 1º, I, do referido decreto,
de “estabelecer diretrizes estratégicas relacio-
5 Importante ressaltar que a posição da nadas ao uso e desenvolvimento da Internet no
Malásia no World Press Freedom Index de 2019 Brasil”.
foi nº 123 dos 180 países analisados. A mudança
de posição pode ser entendida como efeito das
mudanças legislativas e de poder vistas no final
do ano de 2018. (Reporters Without Borders,
2019).

6 A falsidade da notícia sobre o “kit


gay” foi confirmada por decisão do Tribunal
Superior Eleitoral brasileiro (TSE), publicada
em 15 de outubro de 2018, na qual o Ministro
Carlos Horbach barrou links que vinculavam
o livro “Aparelho Sexual e Cia.” a programas
do Ministério da Educação. Tribunal Superior Recebido em 30/06/2019
Eleitoral. (16 de outubro, 2018). Facebook e Aceito em 18/12/2019
172

ARTIGO

A democracia
frustrada: fake news,
política e liberdade
de expressão nas
redes sociais

Lucas Borges de Carvalho


Doutor em direito pela Universidade de Brasília
(UnB). Mestre em direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Procurador
Federal, Advocacia-Geral da União. E-mail:
lucasbcarvalho@gmail.com.
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PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO

A democracia frustrada:
fake news, política e
liberdade de expressão
nas redes sociais

Palavras-chave Resumo
democracia O artigo discute as razões que levaram, nos úl-
fake news timos anos, à deterioração do espaço público
liberdade de expressão formado pelas redes sociais, considerando, em
redes sociais particular, o problema da difusão generalizada
de notícias falsas – ou fake news, na consagrada
expressão de língua inglesa – e os seus impac-
tos sobre as democracias contemporâneas. O
argumento central é o de que a produção de
notícias está estruturada em um jogo de for-
ças que se estabelece entre, de um lado, in-
centivos econômicos e interesses políticos; e,
de outro, incentivos provenientes da reputa-
ção e da regulação estatal. Nas redes sociais, a
tênue estabilidade entre essas forças, que vi-
gorava no ambiente da mídia tradicional, deu
lugar a uma relação de desequilíbrio, que fa-
vorece a publicação de notícias falsas, impul-
sionada por fatores como a descentralização
dos meios de expressão, a redução de barrei-
ras de entrada no mercado, a personalização de
anúncios, o declínio de antigos e a ascensão de
novos intermediários.
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PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO

Frustrated democracy:
fake news, politics and
freedom of expression
in social media

Keywords Abstract
democracy The article discusses the reasons that led to
fake news the deterioration of the public space formed
freedom of expression by social media in recent years, considering,
social media in particular, the problem of the widespread
dissemination of fake news and its impacts on
contemporary democracies. The central argu-
ment is that news production stands on a ba-
lance of forces that is established between, on
the one hand, economic incentives and politi-
cal interests; and, on the other hand, reputa-
tion and state regulation incentives. On social
media, the tenuous stability between these for-
ces, which prevailed in the traditional media
environment, was replaced by an imbalance
relationship, which favors the production of
fake news, driven by factors such as decentra-
lization of means of expression, low barriers to
entry, advertising personalization, and the fall
of old intermediaries and the rise of new ones.
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PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO

1. Introdução tradicional e dos vícios de instituições políti-


cas consideradas ilegítimas, haveria uma alter-
nativa a ser seguida e, embora fosse impres-
A humilhação pela polícia tunisiana, que cindível agir também no espaço físico, as redes
constantemente exigia o pagamento de propina sociais eram parte fundamental e constitutiva
para não confiscar sua banca de frutas e verdu- desse processo.
ras, levou o vendedor Mohamed Bouazizi a um Alguns anos depois, no entanto, o cenário
gesto extremo: ateou fogo ao próprio corpo em se alterou e se deteriorou de forma significa-
frente a um prédio do governo local, na cidade tiva. As redes sociais se converteram em um
de Sidi Bouzid. O ato foi o estopim de uma espaço marcado pela polarização e pelo extre-
série de manifestações realizadas na Tunísia, mismo, no qual o livre fluxo de comunicação é
que levaram não só à queda do ditador Ben Ali constantemente corrompido por “ruídos” que,
em janeiro de 2011, como, também, ao surgi- muitas vezes, obstam qualquer forma efetiva de
mento de protestos espontâneos similares em diálogo e de entendimento. Entre esses, desta-
outros países, eventos que ficaram conhecidos ca-se a proliferação de notícias falsas, incenti-
como “Primavera Árabe”. vada pelo modelo de negócios predominante
Entre as características marcantes desses mo- na rede, segundo o qual quanto mais atenção
vimentos – que, com diferentes formatos e ob- – isto é, cliques e visualizações – uma página
jetivos, se disseminaram por todo o mundo, obtém, maiores são seus retornos financeiros,
a exemplo dos Indignados, na Espanha; do pouco importando a qualidade e a confiabili-
Occupy Wall Street, nos Estados Unidos (EUA); e dade dos conteúdos publicados. Como conse-
das manifestações de junho de 2013, no Brasil quência, o que era visto como uma fonte de
– está o uso das redes sociais como meio pre- renovação da democracia se tornou, também,
ponderante de comunicação e de articulação uma ameaça ao seu adequado funcionamento.
política. De fato, essas redes foram o principal Postos esses termos, a proposta deste traba-
instrumento utilizado para dar início e impul- lho é a de compreender as razões que levaram,
sionar o curso de cada um desses movimentos, nos últimos anos, à deterioração do espaço pú-
mediante, entre outros, a convocação de atos, a blico formado pelas redes sociais, considerando,
publicação de manifestos, a interação e a troca em particular, o problema da desinformação e
de experiência entre manifestantes e, princi- da difusão generalizada de notícias falsas – ou
palmente, a construção e a difusão de narrati- fake news, na consagrada expressão de língua
vas próprias, por meio de mensagens, fotos e inglesa – e os seus impactos sobre as democra-
transmissões em tempo real. cias contemporâneas.1
A Internet e as redes sociais se apresenta- Na primeira parte do artigo, demonstro que,
vam, naquele contexto, com um enorme po- em mercados competitivos, como os de jor-
tencial democrático, na medida em que permi- nais e emissoras de TV, imperativos econômi-
tiram empoderar cidadãos, sustentar vínculos cos e interesses políticos constituem os prin-
de solidariedade e viabilizar a afirmação de cipais incentivos para a publicação de notícias
um novo fórum de deliberação. Vale dizer, um falsas. Os casos tomados como exemplo per-
espaço público autônomo, aberto à participa- mitem sustentar, ainda, que esses incentivos
ção de todos e amplamente representativo dos se impõem, em especial, quando não contidos
interesses da maioria – “nós somos os 99%”, por outros igualmente relevantes, como aque-
como alardeavam os manifestantes do Occupy. les fornecidos pela necessidade de defesa da
Em suma, para além das amarras da mídia reputação do veículo de comunicação e pela
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PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO

regulação estatal. York Sun era barato e destinado a uma audiência


Na segunda parte, a análise se volta para as mais ampla, o que levou à ideia de vender es-
redes sociais. A partir de uma comparação com paço publicitário no jornal. A proposta se mos-
a mídia tradicional e considerando episódios trou bastante exitosa, de forma que, cerca de
ocorridos nas eleições presidenciais norte- um ano após a sua fundação, o jornal se tor-
-americanas de 2016, argumento que o fenô- nou o mais importante da cidade (Wu, 2016, p.
meno das fake news é produto de uma conjuga- 244).2
ção de fatores, tais como a descentralização dos No entanto, não demorou muito para que o
meios de expressão, a redução da dependên- modelo do Sun fosse copiado por outros jornais.
cia em face da mídia tradicional e a concentra- Entre esses, destaca-se o The Morning Herald, es-
ção de poder por novos intermediários, como pecializado na cobertura de mortes violentas,
Google e Facebook. Em conjunto, essas trans- podendo ser comparado aos conhecidos pro-
formações geraram um desequilíbrio, impul- gramas de jornalismo policial, tão comuns
sionando ações movidas por interesses políti- nas redes de TV brasileiras. Assim como nos
cos e incentivos econômicos, com a ampliação dias atuais, o sensacionalismo se mostrou efi-
exponencial da busca por atenção e o enfraque- caz para atrair a atenção da audiência, de modo
cimento da cadeia econômica de produção de que, quanto mais grosseiro, explícito e apela-
conteúdo jornalístico relevante e de qualidade. tivo se mostrava o conteúdo, maiores eram as
Por fim, após uma breve análise das fake news tiragens do jornal, o que foi suficiente para ga-
no Brasil, a última parte é dedicada à discus- rantir ao Herald o primeiro lugar nas vendas
são de estratégias e propostas para enfrentar o em menos de um ano (Wu, 2016, p. 244).
problema. Como era de se esperar, a reação do New York
Sun foi ainda mais radical, levando a publicação
a descartar os mais elementares princípios do
2. Um pouco de história: jornalismo, tais como a objetividade, o equilí-
mídia e notícias falsas brio e a verdade factual. Em um episódio fa-
moso, que ficou conhecido como “a grande
farsa da Lua”, o jornal publicou uma série de
A desinformação gerada pela difusão de no- reportagens, que continham detalhes sobre o
tícias falsas não surgiu com as redes sociais e ambiente lunar, incluindo montanhas, florestas,
nem é um elemento exclusivo de nossa época. mares e seres esquisitos, como uma criatura
Trata-se, em verdade, de um fenômeno tão an- “inocente e feliz”, “cientificamente denominada
tigo quanto o modelo de negócios que sustenta de homem-morcego”. A incrível descoberta,
boa parte das grandes empresas que atuam na supostamente divulgada no Edinburgh Journal of
Internet – como Google e Facebook – segundo Science, teria sido possível graças às pesquisas
o qual o serviço e o conteúdo são ofertados gra- do astrônomo John Herschel, efetuadas com o
tuitamente aos usuários em troca da revenda auxílio de um moderno telescópio instalado no
de sua atenção para anunciantes. Cabo da Boa Esperança.3
Segundo Tim Wu, o modelo dos “mercado- Os detalhes das observações, a chancela cien-
res da atenção” surgiu em meados do século tífica e a impossibilidade de contestação direta
XIX, sendo um de seus marcos a criação do da história contribuíram para a sua ampla acei-
jornal New York Sun. Ao contrário dos concor- tação por parte dos leitores. O sucesso gerado
rentes, até então vendidos por preços elevados pela reportagem ampliou as vendas do New
para membros da elite nova-iorquina, o New York Sun, conferindo ao jornal, mais uma vez, o
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primeiro lugar no concorrido mercado da ci- ou são freados por outros igualmente impor-
dade de Nova York (Wu, 2016, p. 306). tantes.4 É o caso da reputação que um perió-
Com base nesse exemplo histórico, é possível dico possui – ou pretende ter – perante anun-
extrair uma primeira e fundamental causa para ciantes e leitores. Nesse sentido, determinados
a difusão de notícias falsas, aplicável, com as anunciantes podem se recusar a ver suas mar-
devidas adequações, tanto aos jornais de Nova cas estampadas em um jornal sensacionalista,
York do século XIX quanto ao atual fenômeno que abusa de linguagem de baixo calão, ima-
das fake news. Trata-se dos incentivos gerados gens apelativas e reportagens sem credibilidade.
pela própria estrutura competitiva do mercado Da mesma forma, leitores interessados em in-
ou, mais precisamente, pelo fato de que a re- formação de qualidade tendem a optar por
muneração dos agentes econômicos é direta- publicações que privilegiem abordagens plu-
mente proporcional ao tamanho da audiência rais e equilibradas, baseadas em fatos e dados
ou da atenção coletada. Tais incentivos podem objetivos.
impulsionar esses agentes a uma corrida rumo Assim, a própria estrutura do mercado –
ao fundo do poço, uma espécie de luta pela so- aliado a outros fatores, como a regulação es-
brevivência ou, ainda, uma busca desenfreada tatal – pode ser eficaz em impor limites aos
pela ampliação de margens de lucro, no bojo imperativos econômicos que guiam as condu-
da qual são desprezados os princípios éticos do tas dos agentes. No caso dos jornais, esses li-
jornalismo e a qualidade dos conteúdos publi- mites foram instrumentos relevantes para via-
cados. Nas palavras de Tim Wu: bilizar, ao longo dos anos, a formação de uma
imprensa crítica, independente e com credibi-
Já vimos o modus operandi básico dos lidade perante leitores e anunciantes – embora
mercadores da atenção: obter atenção não imune a críticas.
com coisas aparentemente gratuitas e De qualquer modo, o fato é que, no mercado
revendê-la. Mas uma consequência desse de jornais e demais veículos de comunicação,
modelo é uma total dependência da há uma espécie de jogo de forças entre os in-
aquisição e manutenção da atenção. Isso centivos gerados, de um lado, pela importân-
significa que, sob a competição de mercado, cia de se manter uma reputação elevada e, de
o embate seguirá naturalmente rumo outro, pela necessidade de ultrapassar concor-
ao fundo do poço; a busca por atenção rentes e obter mais audiência. Por isso, a de-
vai quase invariavelmente tender para a pender do contexto e do momento histórico,
alternativa mais chocante, espalhafatosa um desses incentivos pode se impor sobre o
e ultrajante […]. A corrida em direção outro, gerando desequilíbrios e impulsionando
aos mais baixos padrões, apelando para o recurso a conteúdos de qualidade duvidosa e,
o que se poderia chamar de instintos em particular, a publicação de notícias falsas.
básicos do público, representa um Um episódio famoso da televisão brasileira
dilema fundamental e contínuo para ilustra bem o argumento. No dia 7 de setem-
o mercador da atenção — até onde ele bro de 2003, o programa “Domingo Legal”,
está disposto a ir para prender a atenção transmitido pela rede SBT e apresentado por
das pessoas? (Wu, 2016, pp. 281-286) Gugu Liberato, exibiu uma entrevista forjada
com integrantes da organização criminosa
PCC (Primeiro Comando da Capital). Na oca-
Esse dilema se torna mais claro ao se consi- sião, dois homens armados e encapuzados fi-
derar que os incentivos econômicos concorrem zeram, em rede nacional, ameaças a diversas
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PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO

personalidades, incluindo apresentadores de de notícias falsas, são os interesses políticos


TV, um padre e o então vice-prefeito da cidade propriamente ditos. Estes são incorporados, de
de São Paulo. Após as investigações efetuadas forma aberta ou velada, pelos veículos de co-
pela polícia, descobriu-se que havia um roteiro municação e manejados, com fins escusos ou
previamente escrito e que os participantes ha- não, para o fim de impor ou sustentar a legi-
viam recebido cerca de R$ 150,00 para partici- timidade de uma determinada versão da rea-
par da farsa. lidade social ou uma dada concepção política
Sem dúvida, a entrevista foi o mais baixo em detrimento de outra.5 Assim, um periódico
e repugnante recurso utilizado pelo pro- identificado com posições de esquerda ou de
grama na acirrada disputa por audiência com direita pode expressar essa orientação, entre
o “Domingão do Faustão”, exibido pela Rede outros, no modo pelo qual apresenta a cober-
Globo. As consequências, no entanto, foram tura de um evento ou nas críticas e no desta-
desastrosas. A exibição do programa chegou que conferidos às propostas de um candidato.
a ser suspensa por ordem judicial e os envol- O ponto a ser considerado é que, ao contrá-
vidos foram indiciados pelas autoridades po- rio de obras de arte ou artigos de opinião, a
liciais. Por sua vez, o SBT foi multado pelo publicação de notícias é associada a uma fun-
Ministério das Comunicações e condenado ção referencial, isto é, a uma representação dos
a pagar indenizações a pessoas ameaçadas na fatos tal como eles são, sem a emissão de juízos
entrevista. Por fim, o estrago na reputação do de valor. Por isso, quando uma notícia falsa é
apresentador Gugu Liberato e do programa foi publicada sob o manto da imparcialidade e da
decisivo para a decadência de ambos e para objetividade jornalísticas, o veículo de comu-
a acentuada queda de audiência nos anos se- nicação confere relevância e, ao mesmo tempo,
guintes (Especialistas divergem de decisão da legitima aquela versão da realidade, manipu-
Justiça sobre “Domingo Legal”, 2003; Entenda lando a opinião pública e, por consequência,
o caso Gugu e a suposta entrevista do PCC, corrompendo o processo de deliberação de-
2003; Ministério multa SBT por falsa reporta- mocrática. Como expõem Luis Felipe Miguel e
gem sobre o PCC, 2003; Mattos, 2007). Flávio Biroli (2011, p. 14):
Como se pode observar, mesmo em um pro-
grama de TV no qual o jornalismo é submetido [...] a mídia ocupa posição central neste
à lógica do espetáculo (Bucci, 2004), a repu- processo de identificação e afirmação do
tação e a regulação estatais exercem um peso que é relevante social e politicamente: é
considerável, impondo constrangimentos para mesmo a fiadora da relevância das temáticas,
a publicação de notícias falsas. Por isso, no am- tanto nas disputas eleitorais quanto no
biente da mídia tradicional – de forma diversa cotidiano das interações entre os atores
do que ocorre na Internet e nas redes sociais, que participam do campo e entre esses
conforme veremos – tais expedientes se apre- atores e os cidadãos comuns. Em outras
sentam como um último recurso, isto é, medi- palavras, a mídia confere um ‘certificado
das excepcionais, que, dificilmente, podem ser de importância legítima’ àquilo que
utilizadas de forma contínua, em larga escala e noticia e a quem faz parte do noticiário.
sem maiores consequências.
Mas não é só a reputação, o receio de sanções
legais e a disputa por audiência que movem os Os incentivos à publicação de notícias fal-
meios de comunicação. Outro fator relevante, sas surgem, justamente, da associação entre os
e que também pode impulsionar a publicação interesses políticos adotados pelos veículos de
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comunicação e a posição privilegiada que estes No entanto, ao contrário dos leitores do New
ocupam na esfera pública – e que lhes confere York Sun, desprovidos de meios para confirmar
a possibilidade de serem fiadores da relevân- se havia mesmo vida na Lua, a fraude eleitoral
cia e da veracidade de uma determinada ver- foi desmantelada, principalmente em razão do
são dos fatos. Interferir, de forma sorrateira, no desenvolvimento de um sistema de apuração
debate público ou em um processo eleitoral, independente pelo Jornal do Brasil. Diante da
pode não trazer retornos imediatos do ponto divergência entre os dados divulgados pelo jor-
de vista financeiro ou das taxas de audiência. nal e pela emissora de TV, a fraude se tornou
Além disso, envolve riscos nada desprezíveis insustentável e, ao final, Brizola foi eleito go-
no que concerne à reputação do veículo e às vernador (Carvalho, 2016, p. 86).
possíveis consequências legais. Não obstante, a Esse exemplo e os demais acima mencio-
médio e a longo prazo, a recompensa pode ser nados demonstram de que forma imperativos
significativa em caso de êxito – por exemplo, econômicos e interesses políticos constituem
mediante a aprovação de uma lei ou a eleição incentivos relevantes para a publicação de no-
de um candidato, com a consequente formação tícias falsas. Isso ocorre, em particular, em am-
de um ambiente político e econômico favorável bientes excessivamente polarizados do ponto
aos interesses da empresa. de vista político ou de forte competição pela
Em um episódio conhecido, e que ilustra bem audiência e pela busca de atenção, nos quais
de que forma os interesses políticos podem ser são frágeis os constrangimentos gerados por
determinantes para a publicação de notícias fal- incentivos contrários, como a reputação e a re-
sas, a Rede Globo de Televisão se associou a um gulação estatal. Com algumas nuances, a pro-
esquema fraudulento de contagem de votos na pagação de notícias falsas nas redes sociais está
eleição para governador do Rio de Janeiro em diretamente relacionada a esses fatores, con-
1982. A fraude, realizada em conjunto com a forme veremos a seguir.
Proconsult, empresa responsável pela apuração
dos votos, visava à derrota de Leonel Brizola,
candidato oposicionista, que havia retornado ao 3. Redes sociais,
país após a anistia em 1979. Conforme a descri- democracia e fake news
ção de Venício Lima (2005, p. 105):

Esse esquema consistia em iniciar Segundo Manuell Castells, os movimentos


as apurações pelo interior, onde era sociais que eclodiram por todo o mundo a par-
majoritário o partido do governo, criando tir de 2011, da Primavera Árabe aos protestos
a ilusão de uma iminente derrota do de junho de 2013 no Brasil, foram impulsiona-
político anistiado. [...] A Proconsult havia dos por dois fatores centrais. Primeiro, a crise
desenvolvido um programa capaz de de legitimidade do sistema político tradicional,
subtrair votos de Brizola e adicionar responsável pelo distanciamento entre as aspi-
votos para Moreira Franco [candidato rações populares por mais direitos e uma bu-
apoiado pelo regime militar]. Ao divulgar rocracia e agentes políticos cada vez mais au-
apenas os resultados da apuração oficial, a tocentrados e movidos por interesses espúrios.
RGTV, líder de audiência, seria vital para Segundo, o desenvolvimento de uma “capaci-
o sucesso da fraude, pois emprestaria dade de comunicação autônoma”, isto é, “a ha-
credibilidade aos falsos resultados que bilidade para se conectar com os seus partici-
iriam aos poucos sendo fabricados. pantes e a sociedade como um todo pela nova
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mídia social” (Castells, 2017, capítulo VI). pontuadas a fim de se delinear uma compreen-
Essa autonomia da comunicação somente são mais precisa sobre o tema. A primeira é
foi possível graças à natureza aberta e descen- que, na Internet e nas redes sociais, há uma
tralizada da Internet. Aberta porque, uma vez exponencial dissociação entre as escolhas efe-
conectado à rede, qualquer um pode se ma- tuadas pelos anunciantes e o conteúdo ao qual
nifestar, da forma e no momento que enten- se vinculam suas marcas e seus produtos. Isso
der convenientes. E descentralizada porque a ocorre porque a compra de anúncios passou
interação nas plataformas digitais é essencial- a se basear, fundamentalmente, nos minucio-
mente direta e horizontal, sem a necessidade sos dados de usuários coletados por empre-
ou a dependência de intermediários. Por isso sas como Google e Facebook. Muitas vezes, os
mesmo, as redes sociais viabilizaram a expres- anunciantes sequer sabem com qual conteúdo
são de vozes e interesses que não encontravam suas marcas estão sendo associadas ou onde
guarida nos meios tradicionais de representa- seus anúncios serão expostos. Não por outro
ção política, tais como a mídia e o sistema po- motivo, em março de 2017, diversas empresas
lítico institucional. suspenderam a verba publicitária destinada ao
Nos dias de hoje, no entanto, seria ingenui- YouTube, após a revelação de que estariam fi-
dade descrever a Internet e as mídias sociais nanciando conteúdo extremista na plataforma
apenas como um espaço de comunicação au- de vídeo (Solon, 2017).
tônoma. É certo que, em grande medida, tais Como consequência, na medida em que os
características continuam presentes. Porém, é anunciantes estão concentrados em personali-
preciso considerar que, ao lado da descentrali- zar e direcionar a publicidade para um deter-
zação dos meios de expressão e da diminuição minado público alvo – o que pode ser efetuado
da dependência em face de antigos interme- de forma cada vez mais automatizada e precisa
diários, operou-se uma paradoxal concentração – a análise quanto à reputação e ao tipo de con-
do controle das principais plataformas digitais teúdo ofertado perdeu relevância.
e uma correlata ampliação do poder de gran- De fato, se, no ambiente da mídia tradicional,
des corporações. Por consequência, estas assu- alcançar uma audiência específica dependia,
miram a condição de novos e influentes inter- essencialmente, da mediação de um veículo de
mediários – para os mais críticos, exercendo, comunicação ou da vinculação da marca a um
inclusive, o papel de monopolista – sobre boa determinado conteúdo, no ambiente digital, a
parte da comunicação efetuada por meio da mesma escolha pode ser efetuada de forma di-
Internet e das redes sociais. reta, com base em características detalhadas
A atual pandemia das fake news é consequên- dos usuários aos quais serão apresentados os
cia direta desse novo ambiente econômico e do anúncios, independentemente da plataforma,
modelo de negócios predominante na rede, de do veículo ou do conteúdo. Como explica
acordo com o qual quanto mais audiência uma Jonathan Taplin (2017, p. 161):
página obtém, maiores são suas receitas com
anúncios. Assim como nos exemplos analisa- Esta é a publicidade programática, [...] que
dos na primeira parte deste trabalho, esse mo- agora domina a publicidade na Internet. Em
delo gera incentivos para uma corrida rumo ao primeiro lugar, ela prejudica o conteúdo
fundo do poço, pautada por uma competição, de qualidade, porque o anunciante não
sem limites, por mais e mais atenção. está interessado no conteúdo do site. O
Mas há algumas diferenças importantes em seu único interesse é alcançar o usuário.
relação à mídia tradicional, que devem ser Portanto, não há diferenciação entre o
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NYTimes.com e um site pornográfico. do faturamento e do poder de intermediários


O New York Times investe milhões como Google e Facebook levou a uma diminui-
de dólares em seu conteúdo e espera ção dos investimentos destinados para a pro-
receber taxas de anúncios premium dução de conteúdo relevante e de qualidade.
com base no ‘ambiente’ de qualidade em Afinal, os novos intermediários são empresas
que esses anúncios serão apresentados. do ramo de tecnologia, de coleta de dados e de
Mas a publicidade programática destrói venda de anúncios – e não veículos de comu-
toda essa proposição de valor. nicação dedicados ao jornalismo e à produção
de notícias.
Embora não se possa ignorar os aspectos po-
Em termos econômicos, a perda de relevân- sitivos decorrentes da pulverização das fontes
cia dos incentivos relacionados à reputação e à de informação na Internet, o fato é que “a ca-
qualidade do conteúdo se revela na vertiginosa deia logística digital premia os distribuidores
queda das receitas de publicidade dos jornais. de conteúdo, não os produtores”, funcionando
Nos EUA, entre os anos de 2000 e 2014, essas “muito bem para os operadores de notícias fal-
receitas caíram cerca de 65%, de US$ 65,8 para sas e muito mal para os veículos de notícias ver-
US$ 23,6 bilhões. No Reino Unido, os dados são dadeiras”, conforme sustenta Ashley Highfield,
similares: entre 2007 e 2013, as receitas de pu- presidente da News Media Association (NMA). Em
blicidade dos jornais caíram em torno de 45%, entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Highfield
de £ 4,7 para £ 2,6 bilhões. No Brasil, levanta- lembra, ainda, que “os veículos noticiosos são,
mento do Ibope indica que a participação dos de longe, os maiores investidores em conteúdo
jornais no mercado publicitário apresenta forte original de informação, representando 58% do
tendência de declínio. Em 2008, a participação total no Reino Unido” (Associação pede inves-
desse segmento era de 27% no total dos inves- tigação de Google e Facebook por notícias fal-
timentos publicitários. Após sucessivas quedas, sas, 2017).
o percentual chegou à marca de 11% em 2016 Esse cenário negativo é reforçado por uma
(Taplin, 2017, p. 7; Prado, 2008; Lemos, 2017). segunda distorção gerada pelo modelo de ne-
Por sua vez, entre 2003 e 2016, o faturamento gócios predominante na Internet e que decorre
da Google passou de US$ 1,5 bilhão para USS da redução das barreiras de entrada no mer-
89 bilhões, alçando a companhia ao posto de cado. Com efeito, no ambiente da mídia tradi-
uma das mais valiosas do mundo. Com fatias cional, os elevados investimentos iniciais – tais
cada vez mais crescentes, a empresa responde como custos para a obtenção de outorgas, com-
por quase 41% do mercado de publicidade pra de equipamentos, contratação de pessoal
na Internet nos EUA, seguida pelo Facebook, especializado e acesso a anunciantes – cons-
com participação de 20% no mercado. O fa- tituíam obstáculos para o pluralismo e a ex-
turamento da rede social também segue em pressão de vozes na esfera pública. Em grande
alta, passando de cerca de US$ 1,9 bilhão em medida, tais obstáculos foram superados com a
2010 para cerca de US$ 27,6 bilhões em 2016 criação da Internet e das redes sociais e a con-
(Shaban, 2017; ‘Facebook’s annual revenue and sequente afirmação de um espaço autônomo de
net income from 2007 to 2016’, 2017; ‘Google’s comunicação.
revenue worldwide from 2002 to 2016’, 2017). Não obstante, essas mesmas barreiras de
Diante desses dados, pode-se afirmar que entrada funcionavam como incentivos para
o decréscimo nas receitas obtidas pelos jor- sustentar a reputação de um veículo de co-
nais com publicidade e a correlata ampliação municação, na medida em que o retorno dos
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investimentos somente poderia se concretizar mídia tradicional. A estratégia básica é a de


no decorrer de vários anos. Desse modo, em- produzir grande quantidade de conteúdo, a ser
bora pudesse trazer ganhos financeiros imedia- disponibilizado em páginas diversas e disse-
tos, dada a ampliação de tiragens ou das taxas minado nas redes sociais, sempre com baixos
de audiência, a publicação de notícias falsas custos de produção e manutenção, associados
poderia, também, gerar prejuízos irreparáveis a retornos financeiros expressivos e imediatos.
para um periódico ou uma emissora de TV – Muitas vezes, as reportagens publicadas são
não se demonstrando, nesse sentido, susten- anônimas – o que reduz os ônus relacionados à
tável no longo prazo – fato este que, se não reputação e dificulta a identificação do respon-
impedia o recurso ocasional a esse tipo de me- sável – voltadas exclusivamente para a obten-
dida, ao menos impunha constrangimentos à ção de atenção e receitas com anúncios. Aliado
sua utilização de forma reiterada ou como po- a isso, em caso de problemas legais ou de de-
lítica editorial. núncias, é possível, em curto espaço de tempo,
Na Internet e nas redes sociais, essas barrei- fechar uma página e abrir outra.
ras de entrada foram significativamente redu- Paul Horner, por exemplo, ficou famoso por
zidas, viabilizando a democratização dos meios ter inventado (e lucrado) com muitas das no-
de expressão, conforme referido, mas, também, tícias falsas que circularam durante as eleições
a fragilização dos incentivos associados à ma- presidenciais norte-americanas de 2016, in-
nutenção da reputação no longo prazo. Como cluindo o suposto apoio da comunidade Amish
explicam Allcott e Gentzkow (2017, pp. 218- a Donald Trump e a “denúncia” de que indiví-
219), ao diminuir a importância de se man- duos estariam sendo pagos para protestar con-
ter uma reputação de qualidade e, no mesmo tra o então candidato republicano à presidência
passo, ampliar a lucratividade de estratégias de da república. Ao Washington Post, Horner ad-
curto prazo, o ambiente das redes sociais in- mitiu manter cerca de dez páginas dedicadas
centiva a publicação de notícias falsas: à publicação de notícias falsas, o que permi-
tiria transitar de uma para outra em caso de
Produtores de notícias falsas são empresas bloqueio de anúncios, assegurando receitas em
com duas características distintivas. torno de dez mil dólares mensais somente com
Primeiro, eles não fazem nenhum a ferramenta Google AdSense. Outra estratégia
investimento em reportagens confiáveis, de é se valer de páginas com nomes similares ao
modo que seus incentivos fundamentais de veículos tradicionais, confundindo leitores
não estão relacionados com a expressão e conferindo legitimidade às falsas notícias pu-
da verdade. Em segundo lugar, eles blicadas (Dewey, 2016).
não se preocupam em construir uma Estratégias similares foram relatadas pelo
reputação de qualidade a longo prazo, empresário Jestin Coler. Apesar de eleitor do
mas, apenas, maximizar os lucros no Partido Democrata, Coler foi identificado como
curto prazo, mediante a atração de cliques responsável por sites como o NationalReport.net,
em um período de reduzida extensão. o USAToday.com.co e o WashingtonPost.com.co, de-
dicados à difusão de notícias falsas pró-Trump
nas eleições presidenciais de 2016. Com fa-
Compreende-se, assim, por que boa parte das turamento entre US$ 10 mil e US$ 30 mil e
páginas destinadas à publicação de notícias fal- chegando a contar com uma equipe de 25 re-
sas são negócios pequenos e simples, ao menos datores, suas páginas difundiram notícias fal-
se comparados com as maiores empresas da sas como a do assassinato do agente do FBI
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supostamente responsável pelo vazamento dos do assunto: o fato de que a internet


e-mails de Hillary Clinton (Sydell, 2016). tornou tão simples a esses jovens financiar
Outra peculiaridade da difusão de notícias seus caprichos materiais, auxiliando,
falsas na eleição nos EUA de 2016 foi o envol- ao mesmo tempo, com suas ações, a
vimento de pessoas comuns de outros países, produção de consequências tão graves.
sintoma não só da natureza transfronteiriça da
rede, mas, também, do interesse global desper-
tado pela acirrada disputa entre republicanos Diante desse cenário e dos demais casos rela-
e democratas. O site Ending the Fed, por exem- tados, pode-se afirmar que o modelo de negó-
plo, foi criado por Ovidiu Drobota, cidadão ro- cios predominante na rede tem impulsionado
meno de 24 anos. A distância física não foi em- uma crescente comoditização do conteúdo jor-
pecilho para a elevada repercussão gerada por nalístico, com efeitos nocivos sobre o processo
suas falsas histórias, como a do apoio do Papa democrático e sobre a qualidade da informa-
Francisco à candidatura de Donald Trump ou ção que circula na esfera pública. Isso implica
as supostas relações de Hillary Clinton com o a submissão, cada vez maior, da produção e da
grupo terrorista Estado Islâmico, as duas si- difusão de notícias à finalidade de se obter au-
tuadas entre as três mais populares nas redes diência e atenção de leitores. Em uma escala
sociais no período eleitoral (Townsend, 2016; sem precedentes, as notícias se convertem em
Silverman, 2016). uma mercadoria amorfa e sem padrão de qua-
Em outro episódio conhecido, descobriu-se lidade, vinculada apenas a resultados financei-
que ao menos cem páginas pró-Trump foram ros imediatos. Nesse contexto, a conduta dos
registradas por moradores da pequena cidade agentes é movida, fundamentalmente, por im-
de Veles, na Macedônia. Essas páginas ajuda- perativos econômicos, com poucos constrangi-
ram a difundir notícias comprovadamente fal- mentos gerados por incentivos contrários, os
sas como a de uma suposta e iminente denún- quais, no ambiente da mídia tradicional, exer-
cia criminal contra Hillary Clinton. Um jovem ciam função relevante.
entrevistado pela Wired contou ter arrecadado Além das questões de reputação, é impor-
cerca de US$ 16 mil entre agosto e novembro tante considerar que a regulação estatal exerce
de 2016, valor muito superior ao salário médio menos influência sobre os veículos que atuam
na Macedônia, de US$ 371. Conforme a análise na Internet do que no ambiente da mídia tra-
de Samanth Subramanian (2017): dicional. Por um lado, isso ocorre por questões
práticas, como a dificuldade de identificação de
O que Veles produziu, no entanto, foi algo responsáveis, a quantidade de páginas disponí-
ainda mais extremo: um empreendimento veis, a velocidade com que circulam as infor-
de pura e desprezível amoralidade, livre mações e a natureza difusa dos danos eventual-
não só de ideologia, mas de qualquer mente gerados. De outro lado, a Internet surgiu
preocupação ou propósito sobre o cerne como um espaço associado à liberdade, sem
da eleição. Estes macedônios no Facebook um controle central e sem a dependência de
pouco se importavam se Trump ganharia autorizações e fronteiras estatais. Diante das di-
ou perderia a Casa Branca. Eles queriam ficuldades em se traçar uma linha precisa entre
apenas dinheiro fácil para consumir a censura e a regulação legítima, nos países de-
produtos – como um carro, relógios, mocráticos, a regra geral tem sido a preserva-
celulares melhores, mais bebidas no bar. ção da liberdade de expressão, com reduzida
Este é o ponto mais abjeto e perturbador interferência estatal sobre as manifestações na
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Internet. Shane, 2017; Shane & Goel, 2017).6


Por tais razões, é improvável que uma falsa Se, no âmbito da mídia tradicional, a difu-
entrevista divulgada na Internet seja repreen- são e a legitimação de uma versão da realidade
dida da mesma forma e com a mesma inten- social ou de uma determinada concepção po-
sidade do que se efetuada por uma rede de TV, lítica dependiam, essencialmente, do auxílio e
como visto no caso do programa “Domingo da credibilidade fornecida por um periódico ou
Legal”. Não se trata aqui de sustentar a impos- uma emissora de TV, como visto no caso da
sibilidade de regulação da Internet. Esta não apuração das eleições de 1982 para o governo
só é possível, como é necessária. O argumento do Rio de Janeiro, na Internet e nas redes so-
é de outra ordem: os incentivos gerados pela ciais, a difusão e a garantia de credibilidade da
regulação estatal são menos intensos na esfera informação podem ser asseguradas, com cus-
digital do que no mercado dos veículos tra- tos reduzidos, por meio da criação de perfis
dicionais de mídia, fator que contribui para a falsos (com a aparência de serem legítimos) e
configuração de um ambiente favorável à pro- mediante o convencimento e a mobilização de
dução e à difusão de notícias falsas. indivíduos influentes, como jornalistas, artistas
Finalmente, a publicação de notícias falsas e políticos. Além disso, anúncios pagos podem
nas redes sociais também pode ser impulsio- ser exibidos, de forma direta e personalizada,
nada por interesses políticos propriamente para um grupo de pessoas particularmente sen-
ditos. Nessa hipótese, o que move o agente síveis a uma causa ou identificados como in-
não são os retornos financeiros, mas, sim, suas decisos em um processo eleitoral. Viabiliza-se,
concepções políticas e o engajamento em uma assim, a repetição massiva de uma notícia, que
causa ou o apoio a um determinado candidato, pode ganhar mais confiabilidade quando com-
sempre com o intuito de defender ou impor a partilhada por amigos e pessoas próximas, ge-
legitimidade de uma versão sobre a realidade rando um efeito em cascata, que dificulta ainda
social em detrimento de outra. mais a identificação e o desmentido de infor-
Ovidiu Drobota, por exemplo, o mencionado mações inverídicas (Weedon, Nuland & Stamos,
criador do site Ending the Fed, alegou que, ape- 2017).
sar dos lucros obtidos, os incentivos determi- Diante do exposto, pode-se concluir que, na
nantes para a sua atuação no processo eleitoral Internet e nas redes sociais, há um nítido de-
dos EUA decorreram de sua identificação com sequilíbrio no jogo de forças que se estabelece
o candidato republicano. Em suas palavras, “a entre, de um lado, os imperativos econômicos
presidência de Trump será boa para o mundo e os interesses políticos, e, de outro, os incen-
inteiro” (Townsend, 2016). Mais representativa tivos gerados pela reputação e pela regulação
foi a controversa interferência russa nas elei- estatal. Com isso, criou-se um ambiente que
ções. Embora negada pelo presidente Vladimir premia, em uma escala sem precedentes, pro-
Putin, investigações realizadas nos EUA e in- dutores de notícias falsas e sensacionalistas e
formações do Facebook comprovaram, com de- incentiva o uso de técnicas de manipulação da
talhes, de que modo anúncios pagos, robôs e opinião pública em detrimento da produção de
perfis falsos foram utilizados com a finalidade conteúdo original, de qualidade e relevante. Da
de difundir mensagens contrárias a Hillary mesma forma, e apesar da deterioração dos fó-
Clinton e promover a campanha de Trump, runs públicos de deliberação e do fenômeno
episódio classificado pelo New York Times como das fake news, são elevadas as recompensas des-
“uma intervenção estrangeira sem preceden- tinadas aos novos intermediários, gigantes do
tes na democracia americana” (Calabresi, 2017; Vale do Silício que controlam as principais
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plataformas digitais, a coleta massiva de dados Os portais nacionais também recorrem às es-
de usuários e a distribuição de anúncios na tratégias de publicar reportagens sem a iden-
rede. Nesse cenário, barrar a difusão de notí- tificação dos responsáveis pela elaboração dos
cias falsas se tornou um grande desafio, pois, textos, além de não divulgar dados para con-
em última análise, envolve discutir o próprio tato e se valer de nomes e logotipos semelhan-
modelo de negócios sobre o qual estão estrutu- tes aos de veículos de comunicação conhecidos,
radas as redes sociais e as principais empresas sempre com o fim de confundir leitores e con-
que atuam na Internet. ferir credibilidade à publicação. Por exemplo, o
logotipo da página “A Folha Brasil” possui apa-
rência similar ao do jornal Folha de S. Paulo.
4. Fake news no Brasil Em um levantamento efetuado pelo BuzzFeed
Brasil, o portal figura como responsável pela
publicação da notícia falsa sobre a operação
Em agosto de 2017, circulou na Internet a Lava Jato mais popular no Facebook, no pe-
informação de que uma das novelas da Rede ríodo compreendido entre janeiro e novembro
Globo exibiria o primeiro beijo gay infantil da de 2016. Aliás, assim como em levantamento
televisão brasileira. Apesar de nitidamente falsa, similar efetuado nos EUA, o desempenho das
a notícia, que teria sido anunciada pela apre- informações falsas no Facebook sobre a Lava
sentadora Fátima Bernardes, foi objeto de cerca Jato superou com folga o de reportagens verí-
de 400 mil compartilhamentos em poucos dias, dicas (Aragão, 2016; Silverman, 2017).
impulsionados por páginas como a News Atual A utilização de robôs também tem sido um
e a Sociedade Oculta, segundo dados do Monitor recurso usual nas redes sociais brasileiras.
do Debate Político no Meio Digital, projeto vin- Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas,
culado à Universidade de São Paulo.7 esse tipo de conta, que permite a automatiza-
Como se pode observar, as fake news não são ção e a coordenação de postagens, mediante
uma peculiaridade dos EUA. De fato, também a utilização de softwares que aparentam serem
no Brasil, diversos sites se dedicam a publicar usuários comuns, foi o responsável por cerca
notícias falsas, de olho na audiência e na re- de 20% das manifestações de usuários do
muneração obtida como contrapartida pela exi- Twitter favoráveis ao candidato Aécio Neves no
bição de anúncios. Por aqui, o modelo de ne- dia do debate transmitido pela Rede Globo no
gócios, as estratégias de comunicação e até o segundo turno da eleição presidencial de 2014.
faturamento possuem padrão similar aos das Percentual similar foi identificado entre mani-
páginas americanas. festantes pró-Dilma Rousseff no dia da realiza-
É o caso do site Pensa Brasil, criado por um ção do maior protesto a favor do Impeachment
morador da cidade de Poços de Caldas, no em março de 2015 e entre as manifestações
estado de Minas Gerais. Segundo estimati- favoráveis à greve geral realizada em abril de
vas divulgadas pela Folha de S. Paulo, o por- 2017 contra as reformas trabalhista e previden-
tal rende ao proprietário entre R$ 50.000,00 ciária propostas pelo governo Michel Temer
e R$ 75.000,00, na esteira da audiência gerada (Ruediger, 2017).
por notícias como a de que o cantor Gilberto O estudo demonstra que o recurso a formas
Gil teria proferido críticas ao então juiz Sérgio artificiais de manifestação nas redes sociais no
Moro ou a de que a ex-primeira-dama, Marisa Brasil é uma constante nos mais diversos es-
Letícia, teria sido fotografada na Itália após a pectros políticos. Seguindo um padrão simi-
sua morte (Victor, 2017). lar ao identificado na interferência russa nas
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eleições dos EUA de 2016, os robôs são utiliza- desse tipo de informação seria, portanto, o
dos com o fim de obter apoio a determinadas atendimento a interesses políticos, próprio de
causas, atacar opositores, espalhar boatos e no- “mídias hiper-partidárias” ou, ainda, da produ-
tícias falsas e, em última análise, manipular a ção de “informações de combate na forma de
opinião pública, criando um ambiente excessi- matérias noticiosas” (Ribeiro & Ortellado, 2018,
vamente polarizado, com consequências dano- pp. 73-77).
sas para a democracia: A força da polarização e dos interesses po-
líticos, no entanto, não afasta a importância
Uma das conclusões mais evidentes de uma análise mais ampla, que incorpore
nesse sentido é a concentração dessas também outros aspectos, como o papel exer-
ações em polos políticos localizados no cido pelos imperativos econômicos na pro-
extremo do espectro político, promovendo dução desse tipo de notícia. Afinal, em maior
artificialmente uma radicalização do ou menor grau, é necessário algum tipo de
debate e, consequentemente, minando suporte financeiro para sustentar as mídias
possíveis pontes de diálogo entre os hiper-partidárias.
diferentes campos políticos constituídos. Finalmente, nas eleições presidenciais de
Outro elemento flagrante é o ‘inchamento’ 2018, observou-se um padrão similar de disse-
de movimentos políticos que são, na minação de notícias falsas, com destaque para
realidade, de dimensão bastante inferior. a utilização do aplicativo WhatsApp como meio
Somados, esses riscos e outros de divulgação, estratégia questionável do ponto
representados pelos robôs, são mais do de vista da legislação eleitoral (Cruz, Massaro,
que o suficiente para jogar luz sobre & Borges, 2019). Por exemplo, estudo realizado
uma ameaça real à qualidade do debate pelo ITS Rio a partir do monitoramento de gru-
público no Brasil e, consequentemente, do pos de WhatsApp identificou fortes indícios de
processo político e social definidor dos ação coordenada e do uso de instrumentos de
próximos anos. (Ruediger, 2017, p. 8) automação para disseminar propaganda polí-
tica pelo aplicativo de mensagens (Machado &
Konopacki, 2018). Por sua vez, reportagens do
Nessa linha, Ribeiro e Ortellado (2018) sus- El País apontaram a divulgação de notícias fal-
tentam que a difusão de notícias falsas no sas como um dos focos de grupos de WhatsApp
Brasil é um produto da polarização política dos que reuniam apoiadores do então candidato
últimos anos, baseada na disputa que se esta- Jair Bolsonaro. Entre tais notícias, a de que o
beleceu entre as narrativas dos campos con- candidato do PT, Fernando Haddad, teria de-
servador (“antipetismo”) e progressista (“anti- fendido, em livro, a relação sexual entre pais
-antipetismo”). Para comprovar seu argumento, e filhos ou, ainda, a de que determinadas per-
os autores se amparam em uma análise de ma- sonalidades teriam confirmado apoio ao candi-
térias produzidas por sites de notícias e divul- dato do PSL (Benites, 2018; Oliveira & Blanco,
gadas no Facebook na semana em que o ex- 2018). Tal diagnóstico foi confirmado por es-
-presidente Lula foi julgado e condenado pelo tudo elaborado pela USP, UFMG e Agência Lupa,
Tribunal Regional Federal da 4ª Região (21 a de acordo com o qual entre as 50 imagens que
27/01/2018). A conclusão é a de que tais notí- mais circularam em grupos de WhatsApp du-
cias, em geral, não expressam “mentiras, es- rante o primeiro turno das eleições de 2018,
tritamente falando, mas [...] diversas gradações somente 4 eram verdadeiras (Marés & Becker,
de distorção”. O motor central da divulgação 2018).
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Embora não se possa atribuir uma relação [...] as pessoas que escrevem e compartilham
de causalidade direta entre a disseminação de ideias deveriam ser recompensadas por sua
notícias falsas pelo WhatsApp e o resultado da capacidade de esclarecer e informar, e não
eleição de 2018, é inegável o seu papel como apenas por conseguir atrair alguns poucos
mecanismo de mobilização social e de acirra- segundos de atenção. Acreditamos que
mento da polarização política, em particular existem milhões de pessoas inteligentes
mediante ataques dirigidos ao sistema polí- que querem aprofundar sua compreensão
tico e à mídia tradicional. O fato é que o an- do mundo e estão insatisfeitas com o que
tigo modelo de campanha, baseado, essencial- encontram nos meios tradicionais e em
mente, no rádio e na TV, tende a ceder lugar a suas redes sociais. Acreditamos que um
“novas dinâmicas de comunicação política que sistema melhor – um que serve às pessoas
se desenvolvem e se transformam a partir da – é possível. Na verdade, é imperativo.
emergência da internet e das novas mídias so-
ciais” (Cruz, Massaro, & Borges, 2019, p. 31), nas
quais a divulgação de notícias falsas se apre- Ainda não há indícios de que a proposta –
senta como um dos elementos centrais. para muitos, utópica – do Medium seja viável,
No Brasil, portanto, o fenômeno das fake news e mesmo a recente instituição do modelo de
apresenta características semelhantes às identi- assinaturas tem sido objeto de críticas e de ce-
ficadas nos EUA. A conjugação entre incentivos ticismo por parte de analistas (Streitfeld, 2017).
econômicos e interesses políticos impulsiona a Não obstante, a ideia de que é possível e ne-
publicação de notícias falsas e distorce o am- cessária a construção de um novo modelo, que
biente público das redes sociais. Nesse cenário, independa ou, ao menos, que diminua os im-
o desafio posto é o de implementar medidas pactos da busca por atenção na cadeia de pro-
que possam conter esses efeitos nocivos e, ao dução de conteúdo online, deve ser tomada
mesmo tempo, promover a produção e a dis- como um princípio orientador, isto é, um ideal
seminação de conteúdos jornalísticos de quali- que deve nortear a busca por soluções e alter-
dade, bem como a autonomia do espaço virtual nativas que visem conter a desinformação nas
de comunicação. redes sociais.8
Considerando esse princípio geral, bem
como a análise efetuada ao longo deste traba-
5. Em busca de soluções lho, podem ser apontadas quatro estratégias
centrais no combate às fake news: (i) reduzir
os incentivos econômicos que premiam, de
Um dos fundadores do Twitter, Evan forma desproporcional, a atenção em detri-
Williams é também o responsável pela criação mento da qualidade ou, ainda, páginas sen-
do Medium, uma espécie de rede social de blogs sacionalistas e intermediários em detrimento
e de publicações profissionais e amadoras. O de produtores de conteúdo relevante e origi-
mote central da plataforma é ambicioso: a de- nal; (ii) fortalecer os incentivos relacionados
finição de um novo modelo de publicações na à reputação; (iii) conter a ação dos incentivos
Internet, que remunere escritores e jornalis- políticos; e (iv) subsidiariamente, impor cons-
tas em razão da qualidade do conteúdo ofer- trangimentos legais sobre a publicação de no-
tado. Conforme a descrição do próprio Willians tícias falsas.
(2017): A primeira estratégia é central, na medida
em que atinge a principal motivação de muitas
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das páginas que se dedicam à produção e à di- Seguindo essa linha, o Facebook passou a im-
fusão de notícias falsas. Sem acesso a anúncios pedir que anúncios fossem associados a notícias
e a recursos financeiros, o modelo de negó- falsas após a checagem de sua veracidade por
cios desses portais se torna insustentável ou, ao organizações parceiras. Além disso, confirmada
menos, mais difícil de ser viabilizado. A imple- a falsidade, o alcance da publicação é reduzido
mentação da estratégia é relativamente simples, de forma significativa e, em caso de compar-
haja vista a concentração da distribuição da pu- tilhamento frequente desse tipo de notícia, a
blicidade online nos sistemas controlados por página responsável será proibida de anunciar
grandes empresas como Google e Facebook e o na rede social. O Google adotou medidas simi-
fato de que as notícias falsas mais populares são lares, que restringem a exposição de anúncios
produzidas por um grupo reduzido de páginas e que permitem a identificação de conteúdo
e, mais ainda, compartilhadas ativamente por comprovadamente falso nos resultados de seu
um número pequeno de usuários (Friedland buscador. Em outra frente, o Facebook anun-
et al., 2019). Mesmo quando se trata da difu- ciou o desenvolvimento de uma ferramenta de
são de notícias falsas pelo WhatsApp, parece incentivo à venda de assinaturas por veículos
haver uma forte conexão entre os diversos gru- de notícia. O modelo, cujo intuito é o de pro-
pos de mensagens, o que permite sustentar a mover as fontes de remuneração do jornalismo
hipótese de que há uma estrutura coordenada de qualidade, permitiria que, após a visualiza-
de disseminação de conteúdo, em um modelo ção de um número determinado de notícias no
mais próximo do “broadcast” do que da descen- aplicativo da rede social, o usuário seria redi-
tralização típica das novas mídias (Machado & recionado para a página de subscrição corres-
Konopacki, 2018). Conforme apontado em re- pondente, destinando-se as receitas geradas, in-
latório do Shorestein Center, da Universidade tegralmente, ao produtor do conteúdo9 (Hern,
de Harvard: 2016; Shuckla & Lyons, 2017; Summers, 2017).
Medidas como essas são essenciais para apri-
[...] a aparente concentração da morar o ambiente digital, corrigindo parte das
circulação de notícias falsas torna a sua distorções vigentes, em particular mediante a
identificação e as intervenções efetuadas diminuição dos incentivos econômicos para
pelas plataformas bem simples. Embora a publicação de notícias falsas. De qualquer
existam exemplos de sites de notícias modo, sem efetivas pressões externas, de usuá-
falsas que surgem do nada, na realidade, rios, governos, organizações sociais e anuncian-
é provável que a maioria dessas notícias tes, não é desprezível a chance dessas altera-
provenha de um número pequeno de ções se demonstrarem tímidas e limitadas, ou,
sites. Identificar as responsabilidades das mesmo, de se basearem em termos e políticas
plataformas e obter a sua atuação proativa não transparentes, com a ampliação da concen-
será essencial em qualquer estratégia de tração econômica e do poder de controle da
peso para enfrentar as notícias falsas. Se informação que circula na Internet e nas redes
as plataformas conseguissem atenuar a sociais  —  afinal, essas empresas são as grandes
disseminação de informações de apenas beneficiárias do atual modelo.10
alguns sites, o problema das fake news A segunda estratégia é a de fortalecer os in-
poderia ser reduzido, de forma brusca, centivos relacionados à reputação dos veículos
no curto prazo (Lazer et. al, 2017). de comunicação. Como visto, enquanto a repu-
tação no ambiente da mídia tradicional estava
associada ao nome e à confiabilidade da fonte
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de informação, na Internet e nas redes sociais, fake news. A sua divulgação massiva daria pu-
a credibilidade da fonte perdeu relevância, na blicidade e conhecimento aos usuários a res-
medida em que: (i) com reduzidos custos de peito da falta de credibilidade das informações
entrada e de manutenção, páginas que publi- divulgadas por essas páginas, possibilitando
cam notícias falsas podem se dedicar a obter a criação de contracorrentes de informação e
atenção e retornos financeiros imediatos, sem ampliando-se, exponencialmente, o ônus asso-
se preocupar com a sua reputação no longo ciado a uma reputação ameaçada, o que tam-
prazo; e (ii) a legitimidade de uma notícia ou bém exerceria influência sobre anunciantes.12
de uma versão sobre a realidade social pode Essas medidas podem ser reforçadas me-
ser assegurada por meio do convencimento di- diante o esclarecimento e o empoderamento
reto de usuários, seja mediante a publicação de de usuários, de modo a permitir que estes pos-
anúncios personalizados ou mediante a sua re- sam identificar notícias falsas e se posicionar
petição e disseminação massivas, efetuadas por criticamente sobre as informações que circu-
perfis falsos ou reais. lam na Internet. Afinal, usuários são parte re-
Nesse cenário, o fortalecimento dos incen- levante do processo de atribuição de credibi-
tivos relacionados à reputação demanda, entre lidade a uma notícia nas redes sociais: quanto
outras medidas, ampliar os ônus associados à mais pessoas compartilham, notadamente ami-
reputação de páginas dedicadas à publicação gos e pessoas próximas, maior aparenta ser a
de notícias falsas. Com esse intuito, é essen- confiabilidade dos fatos relatados. Nessa linha,
cial, por um lado, atribuir visibilidade à con- o Facebook anunciou que, ao lado de notícias
testação e à checagem dos fatos que demons- cuja veracidade foi contestada, serão apresen-
trem o caráter inverídico da informação, em tados artigos com conteúdo alternativo, ofere-
particular daquelas com maior repercussão nas cendo aos usuários “mais perspectivas e infor-
redes sociais. É preciso, nesse sentido, expor mações adicionais” (Facebook promises new
a verdade de forma mais ruidosa e alta, o que fake news measures, 2017).
pode ser efetuado pelas próprias redes sociais A proposta vai ao encontro do objetivo de
ou, ainda, pelos veículos tradicionais de mídia. empoderar os usuários, permitindo, em al-
De fato, no Brasil, a mídia tradicional ainda é guma medida, romper a bolha de informação
fonte relevante de informação para muitas pes- gerada nas redes sociais e reforçada por seus
soas e possui alto índice de confiança, o se- algoritmos. Não obstante, trata-se de uma ação
gundo maior entre 36 países pesquisados, com limitada, particularmente em vista do tama-
cerca de 60% dos entrevistados afirmando que, nho do problema e das inúmeras alternativas
de forma geral, confiam nos veículos de co- que poderiam ser testadas. Nesse sentido, Cass
municação. O nível de confiança é muito mais Sunstein sugere que o Facebook ofereça uma
elevado do que, por exemplo, o dos EUA (38%) espécie de “botão do acaso” (serendipity button),
e o da França (30%), países em que, notoria- por meio do qual os usuários seriam expostos
mente, o fenômeno das fake news exerceu forte a notícias e informações aleatórias:
influência em processos eleitorais recentes
(Newman, N., Fletcher, R., Kalogeropoulos, A., Experimentação é a palavra de ordem
Levy, D. A. L., & Nielsen, R. K, 2017).11 aqui. Uma ideia mais agressiva seria a
Por outro lado, é importante atribuir visibili- de que os usuários receberiam pontos
dade negativa às páginas que mais publicam no- de vista aleatórios ou opostos por
tícias falsas. Uma possibilidade seria a criação padrão, sujeito à opção de desabilitar
de um ranking dos portais que mais publicam a funcionalidade. Com esse sistema, o
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seu News Feed poderia conter todo tipo usuários, à semelhança do que vem ocorrendo
de surpresas. Claro, você continuaria em outras redes sociais, tais como a instituição
vendo publicações de seus amigos, mas de meios de encaminhamento de denúncias re-
você também teria acesso a outras coisas; lativas ao uso de spam ou de postagens de no-
seu News Feed seria um pouco como tícias falsas, inclusive mediante parcerias com
viver em uma cidade grande ou ler um agências de checagem de fatos.13
jornal. É verdade que alguns usuários Por fim, qual o papel da regulação estatal na
não gostariam disso e, por tal motivo, o contenção das fake news? Como regra geral, a
Facebook também não amaria o sistema – atuação do Estado, por meio de multas e ou-
mas as pessoas poderiam desativá-lo com tras penas, deve ser subsidiária e excepcional,
facilidade. (Sunstein, 2017, pp. 232-233) limitada às situações mais graves, nas quais
seja possível identificar a ocorrência de danos
e a violação a direitos individuais.14 No Brasil,
Essas medidas também são importantes o tema é sensível, dada a larga tradição au-
como forma de contenção dos incentivos as- toritária que ainda persiste no país e que se
sociados aos interesses políticos. Isso porque reflete nas inúmeras e constantes tentativas
a disseminação de notícias falsas se beneficia – por meio de projetos de lei e decisões judi-
diretamente da polarização no ambiente di- ciais – de impor a censura na rede. No âm-
gital e do fato de os usuários terem cada vez bito eleitoral, em particular, a legislação que
menos acesso a pessoas e a informações que rege a realização de campanhas na Internet é
reflitam pontos de vista diversos ou que con- muito restritiva, conferindo amplos poderes a
trariem as suas convicções. Assim, embora não juízes para bloquear o acesso a páginas e de-
se possa negar a relevância do aprimoramento terminar a retirada de publicações considera-
de técnicas que permitam identificar o uso de das ofensivas. O maior problema, como lembra
robôs, perfis falsos e publicações automatiza- Aline Osorio (2017, p. 348), “está na excessiva
das, as alternativas e a experimentação deve- proteção conferida pela legislação e pela juris-
riam ser mais profundas e envolver a discussão prudência eleitoral à honra e à reputação dos
e o aprimoramento da atual estrutura das redes políticos e candidatos”.
sociais, incluindo a difusão de notícias falsas Nesse contexto, há o risco de que o combate
pelo WhatsApp. às fake news seja utilizado como um rótulo abs-
Neste último caso, a necessária proteção à trato para incorporar velhas e conhecidas de-
privacidade de usuários não pode encobrir o mandas visando silenciar opositores e discur-
fato de que o aplicativo deixou de ser apenas sos críticos em face de autoridades e políticos.
um meio particular de troca de mensagens, A regra, portanto, deve ser a garantia da liber-
haja vista ter assumido o papel de veículo de dade de expressão, tomando por base o princí-
informação e de transmissão de notícias, com pio assegurado na jurisprudência do Supremo
amplas repercussões sobre a esfera pública, o Tribunal Federal, de acordo com o qual o exer-
que, certamente, demanda um tratamento di- cício desse direito abrange a crítica a qualquer
ferenciado. São relevantes, nesse sentido, a am- pessoa, ainda que contundente e em tom ás-
pliação da transparência acerca das políticas da pero, especialmente contra as autoridades e os
empresa, incluindo a divulgação de metadados agentes de Estado (ADPF nº 130, 2009).15
a respeito do uso da plataforma, além da adoção
de medidas que limitem as possibilidades de
disseminação de notícias falsas e empoderem
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6. Conclusão políticos e a consequente perda de relevância


da reputação, bem como a redução da inten-
sidade da regulação estatal. Tal desequilíbrio
Se não em todas, em muitas das análises foi gerado por uma conjugação de fatores, tais
sobre o fenômeno das fake news é possível en- como a descentralização dos meios de expres-
contrar um sentimento comum: a frustra- são, a redução de barreiras de entrada no mer-
ção. Vale dizer, um olhar pessimista e de in- cado, a personalização de anúncios, a perda da
cômodo frente à deterioração da democracia e importância de antigos e a ascensão de novos
do espaço público autônomo constituído pelas intermediários.
redes sociais. Em alguma medida, a utopia da De forma geral, enfrentar o problema das
Primavera Árabe – e dos diversos movimen- fake news envolve a adoção de estratégias que
tos sociais que sacudiram o mundo a partir de permitam restabelecer o equilíbrio entre esses
2011– se perdeu na dura realidade da desin- fatores. Diversas propostas vêm sendo imple-
formação e da disseminação de discursos in- mentadas e é provável que tragam algum tipo
tolerantes e de notícias falsas, cuja expressão de resultado em um futuro próximo. Não obs-
máxima foram as eleições presidenciais nos tante, a adoção de medidas incrementais não
Estados Unidos em 2016. deve afastar o foco central de qualquer aná-
A frustração, no entanto, não deve ser iden- lise comprometida com o potencial democrá-
tificada e nem constituir motivo para a resig- tico da Internet. Por isso, é necessário insistir
nação diante do status quo. Muito pelo contrá- na discussão mais ampla sobre as alternativas
rio, o momento atual revela oportunidades de ao modelo preponderante de negócios na rede,
aprimoramento e de adoção de novos rumos. que privilegia distribuidores em detrimento de
Certamente, a tarefa é árdua, na medida em produtores de conteúdo, incentiva a busca de-
que envolve a articulação, o conhecimento e senfreada por audiência e cria barreiras artifi-
a atuação de muitas pessoas e instituições. Por ciais que impedem o acesso de usuários a pon-
isso, é essencial avançarmos na compreensão tos de vista diversos e informações divergentes.
da realidade e dos fenômenos que vão mol- Afinal, não há nenhuma razão para acreditar-
dando e deformando a rede todos os dias. mos que a realidade não pode ser diferente do
Nessa perspectiva, a análise proposta neste que é agora.
trabalho fornece instrumentos analíticos para
uma compreensão mais adequada da prolife-
ração de notícias falsas na internet. Mediante
a comparação com o mercado da mídia tradi-
cional, foi possível demonstrar de que forma
o jornalismo está estruturado em um jogo de
forças que se estabelece entre, de um lado, in-
centivos gerados por imperativos econômicos e
interesses políticos; e, de outro, incentivos pro-
venientes da reputação e da regulação estatal.
Na Internet e nas redes sociais, a tênue es-
tabilidade entre essas forças, que vigorava no
ambiente da mídia tradicional, deu lugar a uma
relação de desequilíbrio, dada a ampliação ex-
ponencial da ação de incentivos econômicos e
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Notas finais o que Douglass North denomina de “institui-


ções”, isto é, “as regras do jogo em uma socie-
dade ou, em uma definição mais formal, as res-
trições concebidas pelo homem que moldam a
1 O uso da expressão fake news é objeto interação humana. Por consequência, estrutu-
de forte controvérsia, tendo sido criticada por ram incentivos no intercâmbio humano, sejam
ser imprecisa ou por ter sido apropriada por eles políticos, sociais ou econômicos” (North,
políticos com a finalidade de desacreditar crí- 2018, p. 13). Para uma discussão mais específica
ticas efetuadas pela imprensa. Por tais razões, sobre os desafios postos à regulação e à aplica-
Relatório da Comissão Europeia sugere a ado- ção da lei na Internet, cf. Carvalho (2018).
ção do termo “desinformação”, definindo-o
como o processo de difusão de “informações 5 Conforme Pierre Bourdieu, o campo
falsas, imprecisas ou enganosas, que são pro- político e o campo jornalístico se estruturam
duzidas, apresentadas e promovidas com fins em torno de um interesse comum: a imposição
econômicos ou para causar danos públicos de da visão legítima e dominante do mundo social
forma intencional” (Comissão Europeia, 2018, (Bordieu, 2005, p. 40).
p. 10). Embora a precisão conceitual seja re-
levante, não se pode ignorar que o termo em 6 Uma investigação divulgada em março
questão foi consagrado na literatura e perante de 2019 – por meio de documento que ficou
o público – tendo sido utilizado no próprio tí- conhecido como “Mueller Report” – constatou
tulo do Relatório da Comissão Europeia. Por que a Rússia se utilizou de dois mecanismos
isso, mesmo com as ressalvas aqui menciona- principais de influência na eleição presiden-
das, opto por mantê-lo, utilizando, ainda, as ex- cial de 2016. O primeiro se valeu da organi-
pressões “notícias falsas” e “desinformação”. zação russa “Internet Research Agency” (IRA)
com o fim de ampliar a desinformação e fo-
2 Em meados de 1833, o principal jornal mentar a polarização nas redes sociais. O se-
de Nova York era o The Morning Courier and New gundo mecanismo utilizado foi a obtenção e a
York Enquirer, vendido a seis centavos de dólar, divulgação de informações sigilosas, a exemplo
com uma tiragem de 2.600 exemplares. Criado dos e-mails de pessoas ligadas à campanha de
em setembro de 1833, o New York Sun era ven- Hillary Clinton. A investigação não identificou
dido a um centavo. No final de 1834, a tiragem qualquer atuação coordenada da campanha de
já havia alcançado 5.000 exemplares, deixando Donald Trump com as ações russas. Para um
para trás os principais concorrentes (Wu, 2016, resumo das principais conclusões do “Mueller
pp. 176-244). Report”, ver a carta enviada pelo Attorney
General, Willian Bar, ao Congresso americano
3 As reportagens estão dispo- (Bar, 2019).
níveis em: http://hoaxes.org/text/display/
the_great_moon_hoax_of_1835_text/. 7 Disponível em: https://pt-br.facebook.
com/monitordodebatepolitico/
4 Para fins deste trabalho, considero que
as ações e as escolhas dos agentes econômicos 8 Movido por ideais similares, Jimmy
são moldadas e limitadas por regras formais (a Wales criou o WikiTribune (https://www.wi-
exemplo de leis e decisões judiciais) e infor- kitribune.com/), portal de jornalismo baseado
mais (tais como normas sociais e culturais). É nos princípios colaborativos da Wikipedia,
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PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO

enciclopédia online também fundada por Wales. dos elementos que contribuíram para reduzir
Sem anúncios ou conteúdos exclusivos para as- o impacto das fake news nas eleições legislativas
sinantes, a página é de acesso livre, mantida de setembro de 2017 (Funke, 2017).
unicamente por doações de leitores e voluntá-
rios, que podem contribuir ativamente na cor- 12 A sugestão é inspirada na experiência
reção e aprimoramento das reportagens. da campanha “Quem Financia a Baixaria é con-
9 Como explicou Campbell Brown, repre- tra a Cidadania”. Criada nos anos 2000, a cam-
sentante do Facebook: “o jornalismo de quali- panha divulgava o “ranking da baixaria”, con-
dade custa caro para ser produzido e nós que- tendo a relação dos programas da TV brasileira
remos ter certeza de que ele pode prosperar no que mais desrespeitavam direitos humanos.
Facebook. Como parte do nosso teste para per- Com isso, buscava-se pressionar tanto as emis-
mitir que os editores possam implementar um soras quanto os anunciantes (Carvalho, 2016,
paywall no Instant Articles, haverá um redirecio- pp. 118-119).
namento para seus próprios sites para processar
assinaturas, mantendo 100% da receita gerada” 13 Tardáguila, Bevenuto e Ortellado (2018)
(Kafka, 2017). sugerem medidas como limitação do tamanho
de novos grupos e restrição de encaminhamen-
10 Lembre-se que, de início, a estratégia tos e transmissões pelo WhatsApp. Por sua vez,
do Facebook foi a de menosprezar o impacto da Cruz, Massaro e Borges (2019) sugeriram a cria-
circulação das fake news sobre as eleições pre- ção de um canal direto, no âmbito da Justiça
sidenciais nos EUA. Com o aumento da pres- Eleitoral, para recebimento de denúncias de
são e das informações disponibilizadas, essa ati- spam.
tude se converteu em uma postura mais ativa,
acompanhada do anúncio de diversas medidas 14 Como pondera Sérgio Branco, “não pa-
visando enfrentar o problema ( Jackson, 2016). rece, contudo, que a regulação jurídica será a
mais eficiente. Nem pela censura, nem pela
11 Não se trata aqui de afirmar a existên- indenização. Afinal, muitas das notícias falsas
cia de uma relação causal direta entre o baixo são juridicamente irrelevantes e não geram
índice de confiança na mídia e a difusão de qualquer consequência no mundo real. [...] Em
notícias falsas, até porque este é um fenômeno outros casos, entretanto, como alguns daque-
complexo, associado a diversos fatores. Não les aqui mencionados, de fato há danos reais,
obstante, o dado em questão é relevante, pois, e estes devem ser compensados e punidos”
entre outras consequências, a baixa confiança (Branco, 2017, p. 61). Em sentido similar, cf.
na mídia pode impulsionar leitores a procu- Ribeiro e Ortellado (2018, p. 80).
rar fontes não tradicionais de informação, con-
forme ponderam Allcott e Gentzkow (2017, 15 Na Recomendação nº 4, de 11 de junho
p. 224), tomando por base dados que atestam de 2018, o Conselho Nacional dos Direitos
uma queda mais acentuada de confiança na Humanos (CNDH) externou preocupação com
mídia dos EUA entre eleitores republicanos. o risco de “derrubada generalizada de conteú-
Vale registrar, ainda, que, na Alemanha, o ín- dos na internet”, restrição de “críticas legíti-
dice de confiança na mídia é elevado, em torno mas” e silenciamento de “vozes dissidentes”,
de 50%, o que vem sendo apontado como um em especial se aprovadas propostas legislati-
vas baseadas em critérios vagos e em sanções
desproporcionais, notadamente na área penal.
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Assim, o CNDH conclui que o combate às no-


tícias falsas deve ser efetuado com respeito
aos “padrões internacionais de direitos huma-
nos, à liberdade de expressão e informação”, de
modo a promover “a diversidade na internet
por meio do fortalecimento da comunicação
plural, diversa e qualificada, ao invés de legis-
lar com enfoque na lógica de criminalização
dos usuários que compartilham essas notícias”
(Recomendação nº 4, de 11 de junho de 2018).
Não obstante a Recomendação do CNDH, o
Congresso Nacional aprovou e, posteriormente,
derrubou veto presidencial à Lei nº 13.834, de
4 de junho de 2019. Com isso, sob o pretexto
de combate às notificas falsas, foi criado, com
pena de 2 a 8 anos, o delito de divulgação pro-
posital de informações caluniosas por qualquer
meio.

Recebido em 05/07/2019
Aceito em 18/12/2019
200

ARTIGO

“Li e aceito”:
violações a direitos
fundamentais nos
termos de uso das
plataformas digitais

Ramon Mariano Carneiro


Advogado e bacharel em direito pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
rmcarneiro@outlook.com
201
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO

“Li e aceito”:
violações a direitos
fundamentais nos
termos de uso das
plataformas digitais

Palavras-chave Resumo
termos de uso O objetivo deste trabalho é averiguar em que
direitos fundamentais medida os Termos de Uso, enquanto espé-
privacidade cie contratual específica, se adequam a pa-
liberdade de expressão râmetros mínimos de efetivação de Direitos
devido processo legal Fundamentais. A pesquisa desenvolveu-se a par-
tir da teoria da eficácia horizontal dos Direitos
Fundamentais (Drittwirkung). Buscou-se, em
primeiro lugar, verificar se Intermediários de
Internet – empresas que desenvolvem platafor-
mas online e aplicativos e proveem o acesso
à Internet – são capazes de impor limitações
a direitos fundamentais dos usuários. Em se-
guida, a pesquisa analisou a materialização da
relação jurídica entre plataformas e usuários
através dos Termos de Uso, analisando sua va-
lidade no ordenamento jurídico brasileiro e os
problemas relacionados à obtenção do consen-
timento do usuário. Por fim, os Termos de Uso
foram analisados enquanto espécie contratual
específica, ressaltando-se cláusulas comuns a
este tipo de contrato e como tais disposições se
opõem aos direitos de privacidade, liberdade
de expressão e devido processo legal. A pes-
quisa concluiu que os Termos de Uso e as polí-
ticas de privacidade das empresas não se mos-
tram compatíveis, em diversos aspectos, com
garantias mínimas dos Direitos Fundamentais
dos usuários.
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“I have read and agree”:


violations to fundamental
rights on terms of service

Keywords Abstract
terms of service This study aims to analyze the Terms of Service
fundamental rights of digital platforms as a unique contractual
privacy genre in order to verify if these documents
freedom of expression comply with minimum Fundamental Rights
due process standards. The research was developed relying
upon the third-party effect of Fundamental
Rights (Drittwirkung) and aimed to examine
at to what extent Internet Intermediaries can
cause limitations to users’ rights such as pri-
vacy, freedom of expression, and due process,
as well as if these rights are applicable in the
private relationship between users and online
platforms. This work also demonstrates how
Terms of Use embodies a legal relationship;
lists common clauses to this category of con-
tract and indicate its legal problems; and de-
monstrates how theses common clauses are
not compatible with freedom of expression,
privacy, and due process rights.
203
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1. Introdução devido processo. Em seguida, discute-se a apli-


cação destes direitos na relação privada entre
os usuários e os Intermediários de Internet,
A Internet mudou o mundo. É difícil imagi- a partir da teoria da eficácia horizontal dos
nar um campo social ou do pensamento cientí- Direitos Fundamentais.
fico que não tenha sido impactado com as ino- A seção 2 trata dos Termos de Uso como me-
vações trazidas pela World Wide Web. No plano canismo de materialização de uma relação jurí-
econômico, o desenvolvimento de tecnologias dica entre plataformas online e usuários. Busca
da informação culminou no surgimento de verificar a validade destes contratos em nosso
novos players globais, os gigantes da Internet, ordenamento jurídico, classificá-los dentro
que hoje ocupam os primeiros lugares nos da Teoria dos Contratos e analisar os proble-
rankings de empresas mais valiosas do mundo mas relacionados à manifestação do consenti-
(Brand Finance Global 500, 2019)1. Estes con- mento do usuário em face de disposições da
glomerados têm ganhado posições dominantes Constituição Federal, do Código de Defesa do
em mercados e impactado outros negócios, seja Consumidor, do Marco Civil da Internet e da
a Amazon no comércio eletrônico, o Google Lei Geral de Proteção de Dados.
nas buscas ou no audiovisual ou o Facebook A seção 3 apresenta a estrutura geralmente
na divulgação de conteúdos e nas rendas de apresentada pelos Termos de Uso, apontando
publicidade. À medida em que essas empresas cláusulas comuns e indicando conflitos que
passam a concentrar mais poder econômico e podem surgir entre estas cláusulas e os direi-
social (Valente & Pita, 2018)2 e se tornam capa- tos à privacidade, liberdade de expressão, de-
zes de regular comportamentos (Lessig, 2006), vido processo e direito à reparação de danos.
é preciso investigar como se dá a relação ju- A partir de um padrão de cláusulas comuns
rídica entre estas empresas e seus usuários e identificado por estudos anteriores, são apre-
verificar se existem abusos que comprometem sentadas disposições exemplificativas extraí-
liberdades básicas dos indivíduos, restringindo das de Termos de Uso de plataformas online
direitos como a privacidade, a liberdade de ex- de grande notoriedade. Foram usados como
pressão, o devido processo e o direito à repara- exemplos cláusulas dos Termos de Uso das se-
ção de danos. guintes companhias/serviços: Apple, Facebook,
O objetivo deste trabalho é identificar po- Google, LinkedIn, Microsoft, PayPal, Spotify,
tenciais violações a direitos e garantias funda- Twitter, Vimeo, Whatsapp e Youtube, todas
mentais de usuários de plataformas online e com pelo menos 100 milhões de usuários, com
em que medida estas violações são legitima- sites posicionados entre os 200 mais acessados
das nos Termos de Uso destas plataformas. Os de acordo com o ranking Alexa e mencionados
Termos de Uso são contratos assinados eletro- em uma ou mais versões do Internet Economy
nicamento pelo usuários que desejam criar um Outlook, publicação bienal da Organização para
perfil em plataformas online e estabelecem os a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
contornos jurídicos da relação entre a empresa (OCDE) sobre a economia da Internet3.
e o indivíduo. A investigação compõe-se da se-
guinte forma:
A seção 1 busca demonstrar que os
Intermediários de Internet são agentes capazes
de impor limitações a direitos fundamentais,
como a liberdade de expressão, privacidade e
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2. Eficácia dos horizontal, dos direitos fundamentais (a


direitos fundamentais Drittwirkung do Direito alemão). Desse
efeito vêm-se extraindo desdobramentos
nas relações entre práticos não negligenciáveis, que traçam
plataformas online e novas perspectivas para o enfrentamento de
usuários questões quotidianas. (Mendes, 2009, p. 310)

Os Direitos Fundamentais, compreendidos Com efeito, a eficácia dos Direitos


como aqueles Direitos Humanos reconhecidos Fundamentais nas relações privadas vem sendo
e positivados por uma ordem jurídica nacional, reconhecida e até mesmo positivada, como no
estão historicamente atrelados à relação indi- caso da Constituição da República Portuguesa
víduo-Estado. São direitos básicos, conquista- (2005), que preceitua em seu art. 18 que “os
dos através de lutas contra abusos e omissões preceitos constitucionais respeitantes aos direi-
do Estado (Bonavides, 2018). Contudo, a par- tos, liberdades e garantias são diretamente apli-
tir dos anos 1950 construiu-se uma teoria jurí- cáveis e vinculam as entidades públicas e pri-
dica na qual os efeitos de alguns destes Direitos vadas”. No Brasil, a aplicabilidade dos Direitos
Fundamentais deveria se expandir para além da Fundamentais nas relações privadas vai buscar
relação entre o indivíduo e o Poder Público, ir- sua justificativa na aplicabilidade imediata dos
radiando-se nas relações sociais como um todo. Direitos Fundamentais prevista no art. 5º, §3º,
O reconhecimento de que novas entidades da Constituição Federal de 1988, no princípio
poderiam pôr em risco as liberdades indivi- da máxima efetividade das normas constitucio-
duais impulsionou a ideia de que os Direitos nais e no fenômeno da constitucionalização do
Fundamentais devam ser entendidos não só Direito Privado.
como garantias do indivíduo em face do Estado, A intensidade da eficácia dos Direitos
mas sim como valores básicos que devem Fundamentais nas relações privadas deve ser
orientar as relações jurídicas e sociais, e que verificada em cada caso, levando-se em consi-
merecem ser promovidos em todos os aspectos deração se a relação jurídica privada sob análise
da vida civil, inclusive nas relações contratuais é uma relação desigual de poder, isto é, se uma
entre particulares. Conforme aponta Gilmar das partes da relação jurídica é detentora de
Mendes (2009), este entendimento ficou co- poder social enquanto a outra parte não goza
nhecido como “efeito externo”, “eficácia hori- dos mesmos poderes econômicos, sociais e po-
zontal dos direitos fundamentais” ou, simples- líticos, conforme lição de Ingo Sarlet:
mente, “eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas”: constata-se a existência de relativo
consenso a respeito da possibilidade
Tudo isso contribuiu para que se assentasse de se transportarem diretamente os
a doutrina de que também as pessoas princípios relativos à eficácia vinculante
privadas podem estar submetidas aos dos direitos fundamentais para a esfera
direitos fundamentais. A incidência das privada, já que se cuida induvidosamente
normas de direitos fundamentais no âmbito de relações desiguais de poder, similares
das relações privadas passou a ser conhecida, às que se estabelecem entre os particulares
sobretudo a partir dos anos cinquenta, e os Poderes públicos. Relativamente à
como o efeito externo, ou a eficácia intensidade, sustenta a doutrina majoritária
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que a vinculação dos particulares aos Internet são estruturas dotadas de grande poder
direitos fundamentais – em se tratando de sobre os indivíduos e se apresentam como ver-
detentores de poder social – será também dadeiras infraestruturas de serviços considera-
equivalente à que se verifica no caso dos dos essenciais. Os gigantes da Internet4, por sua
órgãos estatais. (Sarlet, 2012, p. 325) dimensão e oferta de serviços em grande es-
cala, tornaram-se indispensáveis ao cotidiano
do homem contemporâneo. O Google é uma
Daniel Sarmento também entende que ferramenta indispensável para busca de dados;
deve haver aplicação direta dos Direitos a Amazon tornou-se a empresa mais valiosa
Fundamentais nas relações jurídicas do mundo e exerce um papel fundamental no
assimétricas: setor de vendas a varejo; e o Facebook tornou-
-se imprescindível para o fluxo de informações
A desigualdade material justifica a e comunicação entre pessoas. À medida em
ampliação da proteção dos direitos que estas plataformas são mais utilizadas, elas
fundamentais na esfera privada, porque se tornam mais fundamentais para o acesso à
se parte da premissa de que a assimetria informação, podendo-se afirmar que parte da
do poder prejudica o exercício da vida econômica, social e cultural dos indiví-
autonomia privada das partes mais débeis. duos flui por meio dos serviços oferecidos por
O hipossuficiente, no mais das vezes vai estas empresas.
acabar curvando-se diante do arbítrio do Rahman (2018) identificou diferentes for-
mais poderoso, ainda que, do ponto de vista mas de poder exercidos pelos Intermediários
puramente formal, seu comportamento de Internet, especialmente pelas plataformas
possa parecer decorrente do exercício da sua online. Em primeiro lugar, as plataformas on-
autonomia privada. (Sarmento, 2004, p.262) line detêm a seu favor a quantidade de usuários
que dependem do seu serviço e o acessam dia-
riamente. Isto gera uma procura por parte de
Para Konrad Hesse (1998), a vinculação direta outras entidades que desejam ver seu conteúdo
dos particulares aos Direitos Fundamentais se veiculado por meio daquelas plataformas online
verifica nos casos em que se cuida de exercí- que possuem muitos usuários. Hoje, por exem-
cio de poder econômico e social e a liberdade plo, os grupos de jornalismo precisam veicular
fundamental individual se encontra particular- suas notícias por meio do Facebook para garan-
mente ameaçada. tir mais acessos, da mesma forma que editoras
Percebe-se que a doutrina jurídica é consis- e autores, se quiserem alcançar um maior nú-
tente ao reconhecer a aplicabilidade imediata mero de potenciais clientes, colocarão seus li-
dos Direitos Fundamentais naquelas relações vros à venda na Amazon. Além disto, é comum
privadas em que haja uma certa subordina- que plataformas online estipulem preços para
ção entre o indivíduo e o ente privado dotado aqueles interessados em ver seus conteúdos
de maior poder social. Resta saber se a rela- destacados ou impulsionados.
ção entre os Intermediários de Internet e seus Isto leva a uma outra forma de poder: o con-
usuários pode ou não ser classificada como pa- trole da transmissão de informações. Através
ritária, ou se entre eles existe uma desigual- de seus algoritmos, as plataformas online
dade capaz de justificar a aplicação dos Direitos podem privilegiar determinados conteúdos em
Fundamentais naquelas relações. detrimentos de outros, controlando, portanto,
Evidentemente, os Intermediários de o fluxo de informações recebidas pelo usuário.
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PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO

Através de pequenos ajustes nos seus códigos outro lado, preservar o princípio da autono-
e motores de busca, é possível, por exemplo, mia sem que isso signifique o poder de sujei-
que o Google apresente determinada informa- tar e ser sujeitado à arbitrariedade de entidades
ção no topo da sua lista de resultados para al- privadas. É evidente que na colisão entre di-
guns usuários e resultados diferentes para ou- reitos fundamentais de titulares diversos deve
tros utilizadores. ser buscada uma solução norteada pela ponde-
Em terceiro lugar, as plataformas online, em ração dos valores em pauta, almejando obter
especial as redes sociais, possuem mecanismos um equilíbrio e concordância prática, caracte-
de classificação e etiquetação dos seus usuá- rizada pelo não sacrifício completo de um dos
rios. Através das informações coletadas, como Direitos Fundamentais, bem como pela preser-
páginas visualizadas e conteúdos com o qual vação, na medida do possível, da essência de
o usuário interagiu e classificou, as redes so- cada um.
ciais “encaixam” seus usuários em determi- Em seguida, será feita uma análise de como
nados perfis e grupos sociais, com o fim de os Termos de Uso das plataformas online ma-
direcionar publicidade e apresentar conteúdo terializam uma relação jurídica contratual, na
relevante para aquele grupo ou indivíduo. A qual a autonomia privada e a aplicabilidade
geração destes rankings de usuários e produtos de outros Direitos Fundamentais estão em
afeta diretamente as escolhas feitas pelos usuá- conflito.
rios no que se refere a compras online e con-
sumo de conteúdo na Internet. Esta segmen-
tação dos usuários, segundo Lorenzetti (2004)5, 3. Dimensão contratual
tem despertado críticas. A etiquetação perfor- dos termos de
mada pelas plataformas online e a adoção de al-
goritmos acaba reproduzindo vieses de gênero, uso: autonomia e
classe social e etnia, reforçando estereótipos ar- consentimento
raigados na sociedade (Frazão, 2019).
Como se percebe, as plataformas online detêm
um alto grau de controle sobre o fluxo de in- As relações cibernéticas nunca foram livres
formações na Internet, o que lhes garante um de uma regulação offline. Em verdade, a Web foi,
poder social que dificilmente será alcançado em vários aspectos, produzida e monitorada
por um único indivíduo. Analisando a capaci- pelo poder estatal, que vem tentando regula-
dade que os Intermediários de Internet têm de mentar sua utilização através de uma robusta
afetar a vida cotidiana de seus usuários, é evi- legislação. Tampouco a Internet está livre dos
dente que na relação entre eles deve prevalecer poderes e interesses corporativos. Atualmente,
o entendimento de que se aplicam os Direitos as maiores comunidades e os serviços mais uti-
Fundamentais. É afirmar, portanto, que, nas lizados são de propriedade de empresas de tec-
relações entre usuários e Intermediários de nologia, comumente chamadas de “gigantes da
Internet, os Direitos Fundamentais devem ser Internet”, com capacidade de controle sobre
respeitados como meio de alcançar um equilí- as estruturas e algoritmos que formam a rede.
brio na relação jurídica firmada entre as partes. Além da regulação legal e por código ou algo-
É preciso dizer, no entanto, que o reconhe- ritmo (Lessig, 2006), os usuários de Internet se
cimento da eficácia dos Direitos Fundamentais submetem, por fim, a uma regulação contra-
nas relações privadas não busca anular o prin- tual. A grande maioria dos provedores de servi-
cípio da autonomia privada. Busca-se, por ços online, ao oferecerem seus serviços, exigem
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que o usuário final se vincule a um contrato online a um elevado grau de risco econômico
que regula a relação jurídica entre as partes. e jurídico, mormente quando estes serviços
Estes contratos são comumente denominados podem ser utilizados por uma quantidade in-
pelas expressões “termos de uso” (“terms of use”), determinada de usuários nas mais diversas ju-
“acordo do usuário” (“user agreement”), “condi- risdições. Trata-se, portanto, de mecanismo
ções de uso” (“conditions of use”), “avisos legais” jurídico que visa viabilizar a oferta dos servi-
(“legal notices”), “termos” (“terms”) ou “termos e ços a nível global, criando previsibilidade e se-
condições de uso” (“terms and conditions of use”). gurança jurídica, resguardando o provedor de
Qualquer pessoa que tente acessar serviços serviços online de uma série de limitações jurí-
oferecidos por plataformas online será defron- dicas existentes, como a responsabilidade pelo
tada com a necessidade de concordar com a fato ou vício do produto ou do serviço, a di-
seguinte afirmação: “Li e aceito os Termos de versidade de jurisdições competentes e de leis
Uso”. Os Termos de Uso ou Termos de Serviço aplicáveis para o julgamento de eventuais lití-
são contratos que governam a relação jurídica gios. Na prática, percebe-se que os Termos de
entre o usuário final e o provedor de serviços Uso oferecem muitas vantagens aos provedores
online. Estes contratos são geralmente acompa- de serviços online, que os utilizam para impor
nhados de outros documentos anexos, como cláusulas limitativas dos direitos dos usuários.
políticas de privacidade, política de cookies, pa- Ditos contratos devem ser classificados como
drões de comunidade, entre outros (Venturini relações de consumo. No direito brasileiro, a
et al., 2016). relação jurídica de consumo é estabelecida pela
Os Termos de Uso são documentos padro- composição de fornecedor e consumidor em
nizados, definidos unilateralmente pelo prove- lados opostos, e tendo como objeto o produto
dor de serviços e apresentados indiscriminada- ou serviço, conforme se depreende da análise
mente a todos os usuários. Considerando que dos arts. 2º e 3º do CDC6. A categoria de pro-
os usuários não têm a possibilidade de negociar, duto ou serviço é desenvolvida no art. 3º, pará-
mas apenas de aceitar ou não as cláusulas, esses grafos 1º e 2º, do CDC com ampla abrangência,
contratos se encaixam na categoria de contra- considerando todo bem ou atividade fornecida
tos de adesão, definidos pelo Código de Defesa no mercado de consumo, mediante remune-
do Consumidor no seu art. 54, caput; ração. Há que se dizer, porém, que a obten-
ção de lucro por parte da empresa de tecnolo-
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas gia nem sempre está associada ao pagamento
cláusulas tenham sido aprovadas pela de forma direta e monetária pelo usuário. No
autoridade competente ou estabelecidas caso das redes sociais por exemplo, os usuá-
unilateralmente pelo fornecedor rios não realizam pagamentos para a utiliza-
de produtos ou serviços, sem que o ção de suas contas. Isso não significa, contudo,
consumidor possa discutir ou modificar que as plataformas não possuam fins lucrativos.
substancialmente seu conteúdo.  Empresas provedoras de aplicações e de con-
teúdo recebem remuneração de outras formas,
comercializando dados e direcionando campa-
A adoção deste tipo de contrato busca via- nhas publicitárias realizadas para seus usuários,
bilizar a oferta de um produto a nível global, sem que estes possam escolher tê-las ou não.
eliminando custos com negociação e eventuais Neste sentido, o Superior Tribunal de
responsabilidades. A falta de um instrumento Justiça já decidiu que a remuneração de que
jurídico padronizado submeteria as plataformas trata o artigo 3º, § 2º, do CDC não precisa
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necessariamente ser econômica, bastando que vista o formato utilizado para a exposição
algum benefício seja adquirido por aquele que do hiperlink, isto é, indicado com letras
figura enquanto fornecedor, como é o caso das minúsculas, no canto inferior da página
remunerações indiretas auferidas pelas redes da internet (geralmente não visível
sociais.7 Conclui-se, portanto, que se tratam de quando se acessa o site) e com uma cor
relações de consumo, segundo a lei e jurispru- demasiadamente clara, a ponto de tornar-se
dência nacionais. imperceptível, tendo em vista a cor
Quanto à forma de obtenção do consenti- utilizada no plano de fundo da tela. Assim,
mento dos usuários, os Termos de Uso podem o consumidor que, ingenuamente, acesse
ser classificados em “click-wrap agreements” ou uma página na internet, poderá estar se
“browse-wrap agreements”. Nos “click-wrap agree- vinculando a termos e condições que sequer
ments” ou “contratos de clique”, os termos do tomou conhecimento de sua existência.
contrato ou os meios para acessá-lo são exibi- Por isso, esta prática comercial telemática
dos previamente para o utilizador, que tem a chama a atenção dos juristas, na busca
opção de aceitá-los mediante um clique num incessante da justiça e equilíbrio contratual,
botão virtual que indique sua concordância. Já ainda mais em se tratando de uma relação
nos “browse-wrap agreements”, as cláusulas con- de consumo. Portanto, os consumidores
tratuais são disponibilizadas por meio de um merecem um sistema de proteção
hiperlink no rodapé da página do site, com pouca diferenciado, ainda mais diante deste novo
visibilidade, e incluem cláusulas que vinculam contexto tecnológico. (Lima, 2009, p. 540)
o usuário sem sua aceitação expressa, que é
presumida pelo mero acesso ao site ou utiliza-
ção do serviço. Por outro lado, é possível afirmar que a dou-
A modalidade “browse-wrap agreement” não trina se inclina para a validade dos “click-wrap
tem sido considerada válida pela maioria dos agreements”, justamente porque nesta moda-
tribunais e doutrina do sistema Common Law, lidade o usuário manifesta sua vontade ex-
tampouco pelos tribunais da União Europeia pressamente, exteriorizando-a através de uma
(Lima, 2009). Também não seria sustentável de- conduta social típica, ou seja, um clique em
fender sua aplicação e validade de acordo com um determinado ícone representativo de sua
o direito brasileiro, uma vez que, nesta espé- anuência (Lima, 2009):
cie, não se concede oportunidade prévia ao
usuário de analisar a cláusulas dos Termos de A expressão “click-wrap” deriva do fato de
Uso a que se pretende sua vinculação, e “sem o que estes contratos online frequentemente
mútuo consenso, sem a alteridade, não há con- requerem um clique com o mouse em
trato” (Tartuce, 2014, p. 137). Admitir a validade um ícone na tela ou num botão que
dessa modalidade contratual feriria o direito sinaliza a aceitação da parte às condições
do consumidor à informação clara e precisa contratuais. Os contratos click-wrap
(art. 6º, inc. III do CDC8), a boa-fé objetiva e a são usados, dentre outras coisas, para (1)
própria autonomia privada. A propósito: estabelecer os termos para o download e
uso de programas na Internet; (2) definir
O “browse-wrap” demanda pouca ou os Termos de Uso de um site, isto é, as
nenhuma interação com o usuário, condições para que os usuários acessem
que, usualmente, nem chega a tomar um site ou a parte de um site, como um
conhecimento de sua existência, haja chat ou um serviço de mensagem; e (3)
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estabelecer os termos para venda bens e Termos de Uso dos serviços e produtos online
serviços online. (Buono & Friedman, 1999)9 utilizados e, menos ainda, que os termos sejam
plenamente compreendidos por usuários que
não são detentores de conhecimento jurídico.
Logo, o consentimento eletrônico nos con- Os principais obstáculos a um consentimento
tratos do tipo “click-wrap” é manifestado de informado e esclarecido sobre os Termos de
forma expressa no momento em que o adqui- Uso são os seguintes: o texto longo, a lingua-
rente clica no ícone referente à expressão de gem ininteligível e a dificuldade de encontrar
anuência, tais como “eu aceito”, “eu concordo”, e acessar os Termos de Uso.
“sim”, etc. A partir deste instante, em linha com Vários estudos apontam que a leitura é de-
o princípio do Direito Civil de que o contrato morada. Um estudo da Universidade Carnegie
se torna lei entre as partes (pacta sunt servanda), Mellon, nos Estados Unidos, de 2008, mostrou
o usuário-adquirente está obrigado às cláusulas que um usuário precisaria reservar oito horas
contratuais, com as quais concordou expres- diárias e 76 dias para ler somente as políticas
samente. Esta concordância expressa, contudo, de privacidade de uma média de 1.462 pági-
não significa a impossibilidade de se anular nas visitadas em um ano (McDonald & Cranor,
o contrato ou algumas de suas cláusulas. O 2008). Em 2007, um estudo monitorou mais
acordo poderá ser anulado nos casos de vício de 48.000 indivíduos que visitaram a página
no consentimento, ou seja, naquelas hipóteses de um serviço e os resultados mostraram que
nas quais a concordância com os Termos de os Termos de Uso foram acessados por menos
Uso tenha se dado por erro, dolo ou coação, de 0,2% dos visitantes e, entre os que visitaram,
ou estado de necessidade.10 Também será pos- o tempo médio gasto visualizando o contrato
sível declarar nulas cláusulas consideradas abu- foi de 30 segundos (Bakos, Marotta-Wurgler,
sivas, conforme o art. 51 do CDC, como, dentre & Trossen, 2014). Num ambiente virtual mar-
outras, cláusulas de isenção de responsabili- cado pela troca rápida de informações, a leitura
dade, arbitragem compulsória e aquelas que dos Termos de Uso se torna dispendiosa e en-
possibilitem a alteração unilateral do contrato fadonha, consumindo o tempo produtivo dos
pelo fornecedor sem garantir esta opção para usuários.
o usuário. Além disto, a linguagem utilizada pelos pro-
O artigo 5º, XII, da Lei Geral de Proteção de vedores de serviços online não é suficiente-
Dados define o consentimento como a “mani- mente clara para os usuários. Os Termos de
festação livre, informada e inequívoca pela qual Uso são escritos em linguagem jurídica densa,
o titular concorda com o tratamento de seus com utilização de termos técnicos de difícil
dados pessoais para uma finalidade específica”. compreensão por parte do usuário final. Os
No formato “click-wrap agreement”, pode-se termos utilizados são vagos, de modo a abran-
dizer que o consentimento é livre e inequívoco. ger o maior número possível de situações fá-
Contudo, não é possível afirmar, com certeza, ticas e isentar os provedores de serviços online
que o consentimento é informado. O clique do de eventuais responsabilidades. Um estudo rea-
usuário no botão representativo de sua anuên- lizado por Prichard e Hayden (2008), analisou
cia, embora possa ser compreendido como um o quão inteligíveis eram 100 Termos de Uso
engajamento na confirmação do seu consenti- do tipo “click-wrap” e concluiu que entre 61 e
mento, não implica a existência de um assen- 97% dos contratos eram difíceis ou muito di-
timento plenamente informado. Isto porque fíceis de serem entendidos e que apenas entre
não se espera usuário comum que leia todos os 1% e 11% dos contratos poderiam ser facilmente
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entendidos pelo usuário médio. com a leitura dos Termos de Uso e outros
O acesso aos Termos de Uso é, ainda, deli- contratos de adesão, o Código de Defesa do
beradamente dificultado, seja pela alocação Consumidor, no seu art 54, §3º, estabeleceu o
na página de Internet, seja pela formatação de princípio da legibilidade das cláusulas contra-
seu texto. Muito embora os contratos de cli- tuais, impondo que estes instrumentos devam
que permitam que o usuário acesse os Temos ser redigidos em letra do tipo Times New Roman
de Uso antes de aceitá-los, o meio para visuali- e tamanho da fonte 12. Além disto, as cláusulas
zar estes Termos nem sempre é claro. O hyper- que impliquem em restrição de direitos, como
link de acesso às cláusulas é geralmente indi- as que limitam a responsabilidade do fornece-
cado com letras minúsculas, no canto inferior dor e elegem determinado foro, devem estar
da página da Internet (geralmente não visível destacadas nos termos do §4º do mesmo dispo-
quando se acessa o site) e com uma cor dema- sitivo legal. Quanto às ambiguidades e contra-
siadamente clara ou escura, a ponto de tornar- dições, as informações devem ser prestadas de
-se imperceptível, tendo em vista a cor utili- forma clara, em atenção ao artigo art. 7º, inciso
zada no plano de fundo da tela. Outras técnicas VI e XI, do Marco Civil da Internet13 e do art.
utilizadas incluem a maior ênfase dada aos bo- 6º, III, do CDC, sendo vedada, portanto, a re-
tões de “EU ACEITO”, enquanto que os botões dação confusa que, muitas vezes, tem o fim de
relacionados à rejeição, cancelamento ou dis- ludibriar o usuário, que desiste de entender a
cordância são colocados de maneira discreta. cláusula e acaba aceitando o contrato. De qual-
Finalmente, as fontes e a diagramação utilizada quer forma, o ônus da clareza cabe ao provedor
nos textos dos contratos não favorecem a lei- de serviços online, sob pena de sofrer os prejuí-
tura confortável e fluida, nem há qualquer seg- zos da interpretação mais favorável ao consu-
mentação no texto que facilite a busca por uma midor14 ou mais favorável ao aderente em caso
informação específica. de dúvida15
O fato de os Termos de Uso serem longos,
complexos e de difícil acesso garante às empre-
sas a possibilidade de incluir cláusulas desfavo- 4. Cláusulas comuns aos
ráveis e até mesmo absurdas. Em uma brinca- termos de uso
deira no dia 1º de abril de 2010, a loja de jogos
online Gamestation.co.uk incluiu uma dispo-
sição nos seus Termos de Uso estabelecendo A redação das cláusulas dos Termos de Uso,
a transferência da alma do usuário para a em- na forma como comumente se apresentam,
presa. No total, 7.500 usuários não clicaram tem sido cada vez mais objeto de discussão,
na opção de “cancelar transferência de alma” uma vez que tais cláusulas têm implicações di-
disponibilizada pelo site11. Por outro lado, al- retas na efetivação dos Direitos Fundamentais
gumas empresas já deram prêmios para os pri- dos usuários de Internet. Os Termos de Uso
meiros usuários que lessem os Termos de Uso. definem, entre outras coisas, como o conteúdo
Em 2019, a empresa de seguros SquareMouth gerado por usuários será tratado, suspenso ou
lançou uma campanha secreta chamada It Pays bloqueado; se os dados do usuário poderão ser
to Read para disseminar a importância da lei- comercializados, monitorados e/ou entregues
tura dos Termos de Uso. A companhia pagou às autoridades; e como disputas judiciais serão
um prêmio de 10 mil dólares para a primeira resolvidas. Exercem, portanto, enorme influên-
cliente que leu todos os Termos de Uso.12 cia na implementação dos direitos dos usuá-
Para minimizar os problemas relacionados rios de Internet no que se refere à liberdade de
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expressão, à privacidade e intimidade e ao de- jurisdição específica em suas políticas. A es-


vido processo legal, respectivamente. colha típica é a da legislação do local onde se
Estudos anteriores apontam que os Termos encontra a sede da empresa. No caso de pla-
de Uso dos principais provedores de serviços taformas com operação global, diferentes ver-
online, apesar de variarem significativamente sões dos Termos de Uso costumam indicar le-
no seu conteúdo e extensão, apresentam mui- gislações específicas, de acordo com o local de
tas similaridades e seguem um determinado acesso do usuário.
padrão. Bradshaw, Millard, e Walden (2010), Por exemplo, os Termos de Serviço da rede
por exemplo, identificaram uma série de 20 LinkedIn estabelecem que na “hipótese de
tipos de cláusulas que são comuns a este tipo um litígio judicial, o LinkedIn e você concor-
de contrato. Loos e Luzak (2016) identificaram dam que serão competentes os tribunais da
cinco categorias de cláusulas potencialmente Califórnia, em conformidade com a legislação
inválidas em Termos de Uso. A partir destes da Califórnia ou os tribunais de Dublin, Irlanda,
padrões, já é possível, inclusive, categorizar e em conformidade com a legislação irlandesa.”16
classificar cláusulas injustas através de meca- A adoção deste tipo de cláusula é particular-
nismos de inteligência artificial (Lippi et al., mente preocupante porque, em teoria, limita
2019). Disposições contratuais com alto grau substancialmente a já reduzida capacidade do
de incidência incluem aquelas relativas a (1) usuário de entender os riscos do contrato. Não
jurisdição competente e legislação aplicável ao é razoável exigir que o usuário comum tenha
contrato; (2) uso dos produtos e serviços, suas conhecimento acerca das peculiaridades legis-
proibições e controle de conteúdo; (3) altera- lativas de cada local em que operam as sedes
ções contratuais; e (4) privacidade, monitora- das plataformas acessadas.
mento, tratamento, compartilhamento e di- Assim, a jurisprudência nacional refuta a
vulgação de dados pessoais e; (6) limitação de aplicação de normas internacionais nas re-
responsabilidade. lações que envolvam o consumidor nacional.
Klausner (2012), analisando a concepção do STJ
quanto à legislação aplicável nas relações inter-
4.1. Jurisdição nacionais de consumo, assevera que o tribunal
competente considera o CDC uma norma de ordem pública
internacional, de aplicação imperativa e com
e legislação eficácia extraterritorial a todo conflito de con-
aplicável ao sumo internacional. Preferível, no entanto, é o
contrato entendimento de que a legislação internacional
poderá ser aplicada ao contrato desde que seja
As partes envolvidas em um negócio jurídico mais benéfica ao consumidor.
podem acordar entre si a eleição de foro para Da mesma forma que na cláusula de eleição
solucionar eventuais controvérsias que surgi- da legislação aplicável, as plataformas incluem
rem em razão do contrato. A grande maioria cláusulas que indicam o foro competente
dos Termos de Uso costuma incluir cláusulas para dirimir eventuais conflitos com o usuá-
que definem sob qual legislação o contrato será rio. Estas cláusulas geralmente acompanham
regido. a cláusula de legislação aplicável e definem o
Venturini (2016), ao analisar uma série de 50 foro competente como o foro do local da sede
Termos de Uso de diferentes plataformas, con- da empresa.
cluiu que 86% dos serviços impõem alguma O serviço de streaming de música Spotify,
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por exemplo, reconhece a legislação brasileira sistema protetivo estabelecido pelo CDC ao dis-
como aplicável, mas restringe o foro compe- por, em seu art. 8º, sobre a nulidade das cláu-
tente para resolução de litígios aos tribunais sulas que, “em contrato de adesão, não ofere-
situados no estado de São Paulo. A rede so- çam como alternativa ao contratante a adoção
cial Tumblr, por sua vez, exige que o usuário do foro brasileiro para solução de controvérsias
que deseja utilizar seus serviços concorde que decorrentes de serviços prestados no Brasil”.
“quaisquer queixas ou litígios que possa ter Outro ponto relevante é a adoção de cláu-
contra o Tumblr terão de ser resolvidos exclu- sula de arbitragem. Não raramente, as platafor-
sivamente por um tribunal estadual ou federal mas online incluem cláusulas arbitrais em seus
no Condado de Nova Iorque, Nova Iorque17”. Termos de Uso. Com relação à adoção deste
Em se tratando de contratos de consumo, a tipo de cláusula em contratos de adesão, existe
jurisprudência pátria já se consolidou no sen- posicionamento consolidado na jurisprudên-
tido da abusividade latente das cláusulas que, cia brasileira. O Superior Tribunal de Justiça
seja pela eleição de um foro especial para o possui precedentes reconhecendo a eficácia da
contrato de consumo, seja por impor uma ar- cláusula de arbitragem neste tipo de contrato
bitragem privada ou de órgãos ligados aos for- apenas quando o “aderente venha a tomar a
necedores, acabam por dificultar (ou mesmo iniciativa de instituir a arbitragem, ou con-
inviabilizar) o acesso à justiça, afrontando di- corde, expressamente, com a sua instituição”20.
reitos fundamentais do consumidor. A eleição A Corte também entendeu que a cláusula arbi-
de foro diverso do domicílio do consumidor, tral não prevalece quando o consumidor pro-
ainda que não inviabilize ou impossibilite, di- cura a via judicial para a solução de litígios.21
ficulta sua defesa e ofende o art. 6º, VIII, do
CDC, que diz ser direito básico do consumidor
a facilitação de sua defesa em juízo (Grinover et 4.2. Controle de
al., 2019). Logo, tal cláusula ofende o “sistema” conteúdo, uso
de defesa do consumidor, sendo, portanto,
nula. Juntamente com as cláusulas que deter- dos produtos e
minam uma legislação estrangeira para reger o serviços e suas
contrato, estas provisões violam a garantia de proibições
uma proteção judicial efetiva, prevista no art.
5º, XXXV, da CF18. Esta é a posição do Superior As plataformas online, via de regra, incluem
Tribunal de Justiça, que considera inválidas as uma ou mais cláusulas definindo práticas acei-
cláusulas de eleição de foro em contrato que táveis no uso de seus produtos e serviços, bem
consumo quando a) no momento da celebra- como quais condutas são vedadas quando de
ção, a parte aderente não dispuser de intelec- sua utilização. Ações para combater as condutas
ção suficiente para compreender o sentido e as indesejadas incluem monitoramento, filtragem,
consequências da estipulação contratual; b) a bloqueio e a remoção de conteúdos postados
prevalência de tal estipulação resultar em in- e hospedados, a exclusivo critério da própria
viabilidade ou especial dificuldade de acesso ao plataforma. Os Termos de Uso do Instagram,
Judiciário; c) se tratar de contrato de obrigató- por exemplo, autorizam a empresa a “remover
ria adesão, assim entendido o que tenha por qualquer conteúdo ou informação comparti-
objeto produto ou serviço fornecido com ex- lhada no Serviço” se a empresa acreditar que
clusividade por determinada empresa.19 tal conteúdo viola os Termos de Uso, as políti-
O Marco Civil da Internet ratificou todo o cas ou quando o Instagram estiver autorizado
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ou obrigado por lei a assim proceder22. As ati- Os usuários e a sociedade civil denunciam
vidades e condutas comumente consideradas atos de violência e abuso contra a mulher,
impróprias incluem, entre outras, o envio de incluindo ameaças físicas, comentários
spam, o cometimento de fraudes, invasões em misóginos, publicação de fotografias
contas de outros usuários, a postagem ou hos- íntimas falsas ou sem consentimento
pedagem de conteúdo que seja ilegal, obsceno, e a publicação de informações pessoais
difamatório ou que promova discriminação, o confidenciais; ameaças de agressão contra
cometimento de crimes ou discurso de ódio. grupos politicamente marginalizados, raças
A Organização das Nações Unidas, por meio e classes minoritárias e grupos étnicos
do Parecer do Relator Especial sobre a promo- que sofrem perseguição violenta; bem
ção e proteção do direito à liberdade de opi- como abusos dirigidos contra refugiados,
nião e de expressão (2018), aponta que medidas imigrantes e requerentes de asilo político.
de censura não devem ser delegadas a agen- Ao mesmo tempo, as plataformas teriam
tes privados. Por outro lado, em consonância reprimido o ativismo em favor das
com a jurisprudência das cortes constitucio- pessoas LGBTI; protestos contra governos
nais ao redor do mundo, incluindo o STF, o pa- repressivos; denúncias de limpeza étnica
recer reconhece conteúdos que podem ser le- e críticas aos fenômenos e estruturas de
gitimamente proibidos: (i) pornografia infantil; poder de natureza racista.24 (Organização
(ii) discurso de ódio; (iii) difamação e (iv) apo- das Nações Unidas, 2018, p.12)
logia à violência (incluindo genocídio, discri-
minação e hostilidade contra grupos minoritá-
rios). A maior parte das plataformas se reserva Em razão desta peculiaridade, as platafor-
o direito de remover e proibir certos conteú- mas online têm reconhecido a importância de
dos, além de dispor de mecanismos que permi- se considerar o contexto na análise da remoção
tem aos usuários denunciarem conteúdos con- de conteúdos. Apesar disto, o cuidado com o
siderados violadores de direitos, da legislação contexto não impediu a remoção de conteúdos
local (p. ex., pornografia infantil, racismo) ou com conteúdo histórico, cultural e educacio-
que violem os Termos de Uso da plataforma. nal; relatos sobre conflitos; evidências de cri-
A polêmica em relação a estas cláusulas reside mes de guerra; discurso contrário a grupos ex-
na definição dos limites daquilo que se pode tremistas; e esforços para combater discursos
considerar como “aceitável”, “obsceno” e “dis- homofóbicos, xenofóbicos e racistas25.
criminatório”, dentre outras definições vagas e Esforços têm sido feitos na adoção de mode-
imprecisas. ração por algoritmos e ferramentas automáti-
A proibição do Twitter de um “comporta- cas, como a tecnologia PhotoDNA, que ajuda
mento que incite medo sobre um grupo pro- a detectar pornografia infantil. Ferramentas
tegido”23, por exemplo, não serve de base para como esta podem ajudar as empresas a identi-
uma moderação de conteúdo adequada. A falta ficar rapidamente imagens com conteúdo ile-
de clareza das políticas no que se refere a ódio gal em meio a infinidade de conteúdos envia-
e comportamento abusivo tem dado lugar a de- dos por usuários. Por outro lado, a aplicação
núncias de incoerência na aplicação destas po- irrestrita de algoritmos para remoção automá-
líticas, de maneira a prejudicar minorias, ao tica de conteúdo pode trazer riscos à liberdade
mesmo tempo que fortalece a situação de gru- de expressão, já que as tecnologias ainda têm
pos dominantes ou poderosos: certos limites para decifrar nuances e contex-
tos da comunicação humana. Se a automação
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for utilizada para facilitar a moderação de 4.3. Alterações


conteúdo, as empresas devem empregar uma contratuais
quantidade adequada de revisão realizada por
humanos. Além disto, os critérios e processo Como um típico contrato de adesão, as cláu-
de decisão dos algoritmos devem ser transpa- sulas dos Termos de Uso são definidas unila-
rentes e incluir mecanismos de melhoria de teralmente pela plataforma fornecedora dos
forma a minimizar o eventual risco à liberdade serviços. Isto não significa, porém, que as cláu-
de expressão. sulas definidas inicialmente possam ser altera-
Ainda com relação à remoção de conteúdo, das a critério exclusivo do fornecedor, prática
outra queixa comum é de que os usuários que vedada pelo Código de Defesa do Consumidor28.
têm seu conteúdo removido ou denunciado O usuário só se vincula às cláusulas que lhe
podem não receber uma notificação sobre a re- eram acessíveis até o instante da conclusão do
tirada do conteúdo do ar ou de outras ações contrato, ou seja, quando aceitou inicialmente
tomadas pelas plataformas. Organismos inter- os Termos de Uso, não sendo lícito às platafor-
nacionais já recomendaram que as platafor- mas, após esse momento, pretender inserir, por
mas online devem notificar o usuário que teve ato unilateral, qualquer outra estipulação. As
seu conteúdo removido ou sua conta deletada cláusulas às quais o consumidor não teve pré-
e viabilizar mecanismos de esclarecimento e vio acesso não terão eficácia se não foi respei-
contraditório para se alinharem com a imple- tada a garantia da cognoscibilidade (Cavalieri
mentação dos Direitos Humanos. Apesar disto, Filho, 2019).
apenas uma pequena porcentagem das plata- Para que a alteração posterior dos Termos
formas online adota estes mecanismos de re- de Uso seja eficaz, tornam-se necessários o co-
visão e de contraditório (Venturini et al., 2016). nhecimento e o consentimento expresso do
Os Intermediários de Internet, se considera- usuário no que se refere às alterações realiza-
dos como meras empresas privadas, estão legal- das pelo fornecedor. Neste sentido, a alteração
mente autorizados a estabelecer normas pró- dos Termos de Uso deve ser precedida de no-
prias do que pode ser considerado conteúdo tificação do usuário e da exigência de seu con-
aceitável no uso de seus serviços. No entanto, sentimento expresso para utilização da plata-
é preciso que se reconheça que as grandes em- forma. Não obstante, é comum que se incluam
presas de Internet são responsáveis pela pró- nos Termos de Uso cláusulas garantindo às pla-
pria infraestrutura de acesso à rede. As redes taformas o poder de alterar cláusulas contra-
sociais, especialmente, executam um papel tuais sem a anuência, participação ou notifica-
de esferas quase-públicas ou esferas públi- ção dos usuários. O YouTube, maior plataforma
cas virtuais (Lévy, 2011). Estas empresas têm, de vídeos do mundo, salienta em seus Termos
portanto, a responsabilidade de minimizar, de Serviço que a empresa “se reserva o direito
em suas políticas, os impactos negativos nos de alterar estes Termos de Serviço a qualquer
Direitos Fundamentais de seus usuários, sob tempo e sem aviso”29.
pena de violar o direto à liberdade de expres- Uma plataforma que apresenta uma me-
são, previsto nos arts. 5º, inciso IV26, e 22027 da lhor política de alteração dos contratos é a
Constituição Federal, devendo as restrições ao Wikipedia. O serviço disponibiliza as propos-
conteúdo serem estabelecidas de maneira clara tas de alterações para que os usuários façam
e de acordo com preceitos basilares de Direitos comentários durante um período determinado.
Humanos. Da mesma forma, a empresa se compromete
a notificar os usuários no caso de alterações
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nos Termos de Uso, mas considera o uso conti- mais diversos processos de tomada de decisão.
nuado dos serviços como anuência do usuário Aliando tecnologias de extração de informa-
às alterações30. ções sobre usuários de Internet, desanonimiza-
Embora sendo claro que a negociação in- ção e combinação de dados, é possível que em-
dividual com cada usuário para alteração dos presas tracem perfis psicológicos e prevejam,
Termos de Uso seja impraticável, algumas boas com alto grau de acerto, quais as preferências
práticas devem ser adotadas pelas plataformas políticas e até mesmo em quais candidatos um
para uma adequação a padrões mínimos neste usuário poderá ou irá votar, atingindo aspectos
quesito. Neste sentido, as Recomendações da intimidade do eleitor e do direito ao voto se-
sobre Termos de Uso e Direitos Humanos creto, garantia fundamental que dá suporte ao
apresentadas no 10º Fórum de Governança da sistema político democrático. É preciso, por-
Internet das Nações Unidas (2015) estabelecem tanto, que o tráfego eletrônico de dados seja
que os Termos de Uso das plataformas devem protegido para que não haja uma devassa na
respeitar o núcleo mínimo do direito de ser intimidade do indivíduo, fato que é constitu-
ouvido, devendo ser garantido ao usuário o di- cionalmente proibido, uma vez que todos têm
reito de ser notificado a respeito da retirada de direito à proteção de sua intimidade.
conteúdo, de alterações nos Termos de Uso e A privacidade tem status de Direito
outros procedimentos31. Fundamental, prevista no art. 5º, inciso X, da
Constituição Federal32. Especificamente no to-
cante à utilização da Internet, o Marco Civil da
4.4. Privacidade, Internet (Lei 12.965/14) estabelece que o uso
monitoramento, da Internet no Brasil tem como princípios a
proteção da privacidade e a proteção dos dados
tratamento, pessoais33 (art. 3º, inciso II e III). Em relação aos
compartilhamento dados pessoais, entrará em vigor, em 2020, a
e divulgação de Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18),
cujo objetivo, entre outros, é o de “proteger
dados pessoais os direitos fundamentais de liberdade e de
privacidade”.
O internauta, ao navegar, deixa um rastro Uma análise realizada por Kamarinou,
de informações economicamente rentável. Em Milard e Hon (2015) identificou a existência
virtude da rotina de funcionamento da Internet, de padrões nos Termos de Uso utilizados pelas
com o rastreamento de IPs, cookies e históricos plataformas online também no que se refere à
de navegação, o usuário gera um perfil de uso política de tratamento de dados pessoais dos
aproveitável que possui valor de mercado. Este usuários e privacidade. As cláusulas relacio-
rastro de informações gerado pelo usuário re- nadas à política de dados pessoais e privaci-
laciona-se com o chamado big data. Com uma dade são geralmente disponibilizadas em um
enorme parcela da população utilizando dia- documento apartado denominado “Política de
riamente as redes sociais, e consequentemente Privacidade”, e apresentam uma série de pro-
deixando rastros, e a disponibilidade cada vez visões em comum, quase sempre muito desfa-
maior de tecnologias para reter, agrupar e pro- voráveis aos usuários. Os pontos que merecem
cessar esses dados, aqueles que possuem acesso destaque são aqueles relacionados (i) ao com-
a esse manancial de dados prontamente passa- partilhamento de dados; (ii) ao monitoramento
ram a utilizar tais ferramentas para apoiar os de atividades e comunicações do usuário; e (iii)
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à divulgação de dados pessoais para autoridades. Quanto à possibilidade de compartilhamento


de dados para fins comerciais, existem muitas
variações.
4.4.1. A plataforma de pagamentos PayPal, por
Compartilhamento exemplo, deixa claro que poderá “compartilhar
de dados suas informações com terceiros para fins de
negócios do PayPal”. A propósito, uma lista pu-
No que se refere ao compartilhamento de blicada pela PayPal34 enumera mais de 350 em-
dados com terceiros para finalidades comer- presas com as quais a companhia pode compar-
ciais, técnicas ou de processamento, a maioria tilhar dados, incluindo também as finalidades
das plataformas permite o compartilhamento do compartilhamento. No documento, a em-
como opção padrão (default), cabendo ao usuá- presa deixa claro que poderá, entre outras coi-
rio procurar a opção para desativar o comparti- sas, compartilhar fotos do rosto do usuário
lhamento, quando existente. Este é o chamado com a Microsoft para prevenção de fraudes e
sistema opt-out. Isto confronta diametralmente para “fins de pesquisa e testes de adequação de
com a opção adotada pelo legislador brasileiro, novos produtos”.
que exige a adoção de um sistema opt-in, no
qual a opção oferecida por padrão deve ser
aquela que não permite o compartilhamento 4.4.2. Monitoramento
de dados, até que o próprio usuário modifique das atividades,
esta opção. Esta foi a opção adotada pela Lei comunicações e
Geral de Proteção de Dados. Segundo a norma, conteúdos privados
é necessária a obtenção de consentimento ex- do usuário
plícito pelo titular dos dados, ou seja, este deve
ser informado e dado livremente para que os A grande maioria das políticas de uso pos-
consumidores optem ativamente por se enga- sibilita o monitoramento das atividades dos
jar ou não em atividades que envolvam exposi- usuários em sites de terceiros e também esta-
ção de dados. A mesma opção foi adotada pelo belece o monitoramento por terceiros como
Marco Civil da Internet: padrão. O grande número de plataformas que
exigem que o usuário permita que suas ativi-
Conforme exposto quando da análise do dades em outros sites sejam monitoradas indica
artigo 7º, da Lei 12965/2014, o sistema que esta é uma prática comum. De acordo com
adotado pelo nosso ordenamento jurídico Venturini et al. (2016), 66% das plataformas in-
é denominado opt-in. Neste modelo, o serem cláusulas com este tipo de permissão.
usuário deverá consentir de forma expressa De maneira similar, 80% das plataformas per-
e inequívoca, quanto ao tratamento dos seus mitem que terceiros monitorem atividades do
dados pessoais. Por outro lado, o sistema usuário enquanto utilizam seus serviços. Em
opt-out (não adotado em nosso sistema) ambos os casos, as cláusulas são redigidas de
prevê que o usuário deve manifestar de maneira genérica e não deixam claro quem são
forma expressa o seu interesse em sair, isto as pessoas ou entidades capazes de monitorar
porque, o pressuposto é de concordância as atividades do usuário. Por fim, poucos são os
automática. (Lima & Junior, 2016) casos em que é permitido ao usuário a opção
de não ser monitorado.
A plataforma de vídeos Vimeo, por exemplo,
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alerta aos usuários sobre a obtenção de dados O escaneamento contínuo de e-mails e men-
do usuário dentro e fora da plataforma, pela sagens é particularmente preocupante, uma
própria empresa e por terceiros, para fins de vez que a comunicação por mensagens pela
propaganda direcionada. No entanto, não traz Internet se equipara à troca de correspondên-
informações sobre quais terceiros podem cole- cias, cujo sigilo é protegido no art. 5º, XII, da
tar dados e quais informações podem ser ob- Constituição Federal, que exige ordem judicial
tidas, limitando-se a afirmar que “Alguns ter- prévia para sua quebra. Pode-se afirmar, por-
ceiros podem coletar dados sobre você quando tanto, que este tipo de cláusula afronta o di-
você usa nossos serviços. Isto pode incluir reito à inviolabilidade das comunicações, ga-
dados que você envia (como informações de rantido no art. 5º, XII, da Constituição Federal,
pagamento) ou informações coletadas auto- sendo tais provisões nulas de pleno direito de
maticamente (no caso de terceiros provedo- acordo com o art. 8º, parágrafo único, inciso I,
res de análises e anunciantes)”35. Esta cláusula do Marco Civil da Internet37.
é especificamente preocupante por reconhe- Damásio de Jesus e José Antônio Milagre,
cer que terceiros processam dados de titulares em obra sobre o Marco Civil da Internet onde
que podem não ter tido acesso aos respecti- apontam nulidades recorrentes nos Termos de
vos Termos de Uso nem ter manifestado seu Uso, lecionam:
consentimento expresso, livre e informado,
violando frontalmente o disposto no art. 7º, I, Ao dar, mais uma vez, ênfase à importância
da Lei Geral de Proteção de Dados e o art. 7º, ao respeito ao direito à privacidade e à
VII, do Marco Civil da Internet, que dispõem liberdade de expressão nas comunicações,
que o tratamento de dados depende do con- o Marco Civil elenca em seu art. 8º que
sentimento expresso, livre e informado de seu são nulas de pleno direito cláusulas que
titular36. violem tais direitos, dispostas em contratos
Além do monitoramento das atividades, de prestadores de internet. Assim, no
grande parte dos Termos de Uso de platafor- Brasil, com o Marco Civil, tornam-se nulas
mas online abre a possibilidade de monitorar os cláusulas contratuais que impliquem ofensa
conteúdos e mensagens privadas dos usuários. ao sigilo das comunicações privadas e as
A título de exemplo, a política de privacidade cláusulas que, em contrato de adesão, não
do Google reconhece que a empresa coleta os ofereçam como alternativa ao contratante
conteúdos que o usuário cria, faz upload e re- a adoção do foro brasileiro para solução
cebe de outras pessoas, incluindo “e-mails en- de controvérsias decorrentes de serviços
viados e recebidos, fotos e vídeos salvos, docu- prestados no Brasil. ( Jesus & Milagre, 2014)
mentos e planilhas criados e comentários feitos
em vídeos do YouTube”.
A política de privacidade do Facebook, por E preciso observar, por outro lado, que algu-
sua vez, afirma que pode coletar informações mas companhias têm adotado a chamada crip-
sobre localização, contatos, reconhecimento fa- tografia de ponta-a-ponta, que não permite que
cial, dispositivos, ações e comunicações dos usuá- o conteúdo das mensagens e arquivos envia-
rios “a fim de analisar o contexto e o conteúdo dos seja analisado pela plataforma ou por ter-
incluído nesses itens”, reconhecendo, ainda, ceiros. O exemplo mais conhecido no Brasil é
que a rede social “processa automaticamente o o da plataforma de mensagens Whatsapp, que
conteúdo e as comunicações que você e outras destaca em sua política de privacidade que
pessoas fornecem”. as “mensagens estão criptografadas para que
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nós ou terceiros não as possam ler.” A adoção prevista nos Termos de Uso. No entanto, é
deste tipo de sistema de criptografia garante comum que a redação das cláusulas vá adiante
maior privacidade ao usuário, embora seja alvo e permita a divulgação de dados por simples
de críticas. No Brasil, desde 2015, o Whatsapp requisição de autoridade governamental ou
já enfrentou pelo menos 4 suspensões de sua policial. Algumas políticas de privacidade vão
operação por não entregar a autoridades ju- ainda mais longe e declaram que a empresa po-
diciais o conteúdo das conversas de usuários derá divulgar dados pessoais do usuário sem-
investigados. As suspensões do aplicativo por pre que isso for considerado do interesse da
magistrados foram alvo de uma Arguição de empresa. Neste sentido é a política de privaci-
Descumprimento de Preceito Fundamental dade da Apple, que estabelece a possibilidade
(ADPF 403), pendente de julgamento no STF. de divulgação de informações pessoais dos
usuários por “solicitação de autoridades públi-
cas”, “problemas de importância pública”, ou
4.4.3. Entrega de dados quando a empresa considerar a divulgação “ra-
para autoridades zoavelmente necessária para impor termos e
condições ou proteger operações ou usuários”38.
No que se refere à entrega de dados pessoais
dos usuários para autoridades, as políticas de
privacidade não proveem garantias suficientes 4.4.4. Limitação de
aos usuários. responsabilidade
O relatório A/HRC/17/27, da ONU, reco-
menda que os Intermediários de Internet não Talvez o maior ponto em comum dos Termos
implementem restrições ao direito à priva- de Serviço de diferentes plataformas seja no to-
cidade sem intervenção judicial prévia (Rue, cante à limitação de responsabilidade da plata-
2013) e o Guia dos Direitos Humanos para forma e a inexistência de garantias oferecidas
usuários de Internet deixa claro que o usuário pelos provedores de serviços online. Em linhas
de Internet “não pode ser objeto de medidas de gerais, as cláusulas de limitação de responsabi-
vigilância geral ou intercepção” e que os dados lidade buscam eximir o fornecedor de serviços
pessoais do usuário só serão acessados em “cir- online de toda e qualquer responsabilidade civil
cunstâncias excepcionais previstas na lei, por que possa decorrer do uso dos serviços ofere-
exemplo, numa investigação criminal.” cidos ou limitar eventuais indenizações a um
Na Constituição brasileira, o art. 5º, inciso valor pré-fixado. As cláusulas costumam ser es-
XII, não deixa dúvidas de que a ordem judi- critas de forma destacada, com caracteres em
cial prévia é imprescindível para a intercepta- caixa-alta ou em negrito.
ção de mensagens e conteúdo privado. Neste O conteúdo é geralmente extenso e prevê
mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça a maior gama possível de situações em que o
entende que é “ilícita a devassa de dados, bem provedor de serviços online possa ser responsa-
como de conversas de whatsapp sem prévia bilizado, sendo comum a utilização de vocábu-
autorização judicial” (STJ  –  6ª Turma  –  RHC los como “quaisquer” “todos” ou “nenhum”, de
51.531-RO,  Rel.  Min.  Nefi Cordeiro,  jul- forma a abarcar todos os danos eventualmente
gado em 19/4/2016 (Info 583). sofridos pelos usuários e terceiros. A título de
Como a maioria dos ordenamentos jurídi- exemplo, a cláusula de limitação de respon-
cos nacionais faz menção à interceptação por sabilidade do YouTube destaca que o usuário
ordem judicial, esta hipótese está quase sempre “concorda em defender, indenizar e isentar o
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YouTube, sua controladora, seus executivos, di- o prejuízo ou a violação (ou até USD$ 10,00
retores, funcionários e representantes de toda e se os Serviços forem gratuitos).40” Para Flávio
qualquer ação judicial, danos, obrigações, per- Tartuce (2016, p. 252), “além da cláusula de ex-
das, custos ou dívidas” e que clusão total da responsabilidade do fornecedor
ou prestador, não tem validade a cláusula que
EM NENHUMA CIRCUNSTÂNCIA O atenua o dever de reparar dos fornecedores ou
YOUTUBE, SEUS EXECUTIVOS, DIRETORES, prestadores em detrimento do consumidor”.
FUNCIONÁRIOS OU REPRESENTANTES Portanto, as cláusulas de isenção total de
SERÃO RESPONSABILIZADOS POR responsabilidade e as cláusulas de limitação
QUALQUER DANO DIRETO, INDIRETO, do quantum indenizatório simbólico incluídas
INCIDENTAL, ESPECIAL, PUNITIVO em Termos de Uso não encontram guarida em
OU IMPREVISTO RESULTANTE DE nosso ordenamento jurídico. Viola-se direta-
QUAISQUER ERROS, EQUÍVOCOS OU mente o direito assegurado à indenização pre-
IMPRECISÃO DE CONTEÚDO, DANOS visto nos arts. 5º, incisos V e X, da Constituição
PESSOAIS OU MATERIAIS , DE QUALQUER Federal41 e 927 do Código Civil42. Além disso,
NATUREZA, RESULTANTE DO SEU reconhecida a aplicação do CDC na relação ju-
ACESSO E DO USO DO NOSSO SERVIÇO, rídica entre provedores de serviço online e os
(...) QUAISQUER ERROS OU OMISSÕES EM usuários, é preciso reconhecer também a apli-
QUALQUER CONTEÚDO OU QUALQUER cação do princípio da reparação integral dos
PERDA OU DANO DE QUALQUER danos, inscrito no art. 6º, inc. II, do CDC e no
NATUREZA SOFRIDO EM CONSEQÜÊNCIA art. 25, que veda expressamente “a estipulação
DO USO DE QUALQUER CONTEÚDO (...) 39 contratual de cláusula que impossibilite, exo-
nere ou atenue a obrigação de indenizar”. Por
fim, o Marco Civil da Internet consagra no seu
O Código de Defesa do Consumidor admite, art. 2º, inc. VI, que o uso da Internet no Brasil
no art. 51, I, a limitação da responsabilidade tem como um de seus fundamentos a “respon-
indenizatória em situações justificáveis quando sabilização dos agentes de acordo com suas ati-
o consumidor for pessoa jurídica. Logo, deve vidades”, prevendo hipóteses de responsabili-
ser feita a diferenciação entre a limitação de zação civil dos provedores de serviços online
responsabilidade justificável e a isenção de res- nos seus artigos 19 e 2143.
ponsabilidade total, como no caso da cláusula
transcrita acima. Desta forma, quando o prove-
dor de serviços online traz uma previsão con- 5. Conclusão
tratual de irresponsabilidade total, esta cláusula
deverá ser considerada nula de pleno direito.
É também comum encontrar nos Termos de O objetivo deste trabalho foi documentar e
Uso cláusulas de limitação de responsabilidade analisar em que extensão os Termos de Uso de
que fixam um quantum indenizatório simbó- plataformas online, enquanto modalidade con-
lico ou quase simbólico que acabam por fulmi- tratual específica, oferecem proteção aos direi-
nar a responsabilidade de indenizar. Os Termos tos à privacidade, liberdade de expressão, de-
de Uso da Microsoft, por exemplo, admitem o vido processo e indenização de seus usuários.
pagamento de indenização por danos diretos Em primeiro lugar, restou demonstrado que
“até o valor equivalente ao valor pago por seus as empresas de tecnologia são grandes deten-
Serviços para o mês durante o qual ocorreu toras de poder social e econômico. Em razão
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disto, são capazes de causar limitações sig- Internet, ao invés de reforçar sua responsabi-
nificativas no que se refere ao exercício dos lidade em resguardar a privacidade, o acesso
Direitos Fundamentais dos usuários de Internet. à justiça e a liberdade de expressão dos usuá-
Por isto mesmo, de acordo com a teoria da efi- rios. Esta função minimizadora de riscos atri-
cácia horizontal dos Direitos Fundamentais buída aos Termos de Uso pelos Intermediários
(Drittwirkung), devem respeitar parâmetros mí- de Internet explica não só a falta de clareza nas
nimos de Direitos Fundamentais em suas rela- redações dos contratos, como também a ausên-
ções com os usuários. Os Termos de Uso, en- cia de informações suficientes, contrariando
quanto materialização jurídica desta relação, critérios mínimos de efetivação de direitos
deveriam conter cláusulas protetivas dos direi- fundamentais, especialmente à privacidade, li-
tos dos usuários. berdade de expressão, devido processo, infor-
Também se conclui que os Termos de Uso, mação e indenização.
enquanto espécie contratual específica, são
enquadrados como contratos de adesão e go-
vernam uma relação de consumo, conforme
doutrina e jurisprudência nacionais, mesmo
que não haja pagamento efetivo em dinheiro.
Embora o consentimento do usuário-consumi-
dor para vincular-se a estes contratos e utili-
zar os serviços oferecidos seja obtido através
de um clique em um botão indicativo de sua
anuência, demonstrou-se que, em regra, este
consentimento não é informado. A obtenção
de um consentimento esclarecido é dificultada
pelas redações longas, com linguagem técnica
e de difícil acesso pelos usuários, o que con-
traria disposições do Marco Civil da Internet,
do Código de Defesa do Consumidor e da Lei
Geral de Proteção de Dados.
Com relação à estrutura comumente adotada
pelos Termos de Uso, viu-se que existe um pa-
drão seguido pelas empresas na redação des-
tas políticas. A despeito da legislação contrária,
são muito comuns cláusulas de eleição de foro
e escolha de legislação, permissões para mo-
nitorar conteúdos e mensagens privadas, dis-
posições que limitam a liberdade de expressão
e provisões que excluem a responsabilidade
civil das empresas. A conclusão a que se chega,
portanto, é de que os Termos de Uso não ofe-
recem garantias suficientes para os usuários.
De forma contrária, estes contratos revelam-
-se instrumentos jurídicos que visam minimi-
zar a responsabilidade dos Intermediários de
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Notas finais 6 Art. 2° Consumidor é toda pessoa física


ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final.

1 Amazon, Apple, Facebook, Google e Parágrafo único. Equipara-se a consumidor


Microsoft estão entre as marcas mais valiosas a coletividade de pessoas, ainda que indeter-
do mundo em 2019, de acordo com o Relatório mináveis, que haja intervindo nas relações de
Brand Finance Global 500, apresentado no Fórum consumo.
Econômico Mundial. Estas mesmas empresas
lideram o Ranking Forbes de empresas mais Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou ju-
valiosas do mundo. Cf. Brand Finance Global rídica, pública ou privada, nacional ou estran-
500 2019. (2019, 22 de janeiro). Brand Finance. geira, bem como os entes despersonalizados,
Disponível em https://brandfinance.com/images/ que desenvolvem atividade de produção, mon-
upload/global_500_2019_free.pdf tagem, criação, construção, transformação, im-
portação, exportação, distribuição ou comercia-
2 Cf. Valente, J, & Pita, M. (2018). lização de produtos ou prestação de serviços.
Monopólios digitais: concentração e diversidade
na Internet. Intervozes–Coletivo Brasil de § 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel,
Comunicação Social. Disponível em https://inter- material ou imaterial.
vozes.org.br/publicacoes/monopolios-digitais-concentra-
cao-e-diversidade-na-internet/ § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no
mercado de consumo, mediante remuneração,
3 A última versão do Internet Economy inclusive as de natureza bancária, financeira,
Outlook está disponível em https://www.oecd. de crédito e securitária, salvo as decorrentes
org/sti/ieconomy/oecd-digital-economy-outlook- das relações de caráter trabalhista
-2017-9789264276284-en.htm . Acesso em 07 de ou-
tubro de 2019 7 CIVIL E CONSUMIDOR.
INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO.
4 Amazon, Apple, Facebook e Google. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO
São também chamadas de Big Four, GAFA e SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR
Big Tech. Este grupo pode, a depender do con- DE PESQUISA. FILTRAGEM PRÉVIA DAS
texto, incluir outras grandes empresas, como a BUSCAS. DESNECESSIDADE. RESTRIÇÃO
Microsoft (Simon, 2011). DOS RESULTADOS. NÃO-CABIMENTO.
CONTEÚDO PÚBLICO. DIREITO À
5 LORENZETTI, Ricardo L. Comércio ele- INFORMAÇÃO. 1. A exploração comercial da
trônico, p. 90: A criação de perfis mediante o Internet sujeita as relações de consumo daí ad-
cruzamento de dados pessoais, a atribuição de vindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço
identificadores únicos para toda a administra- prestado pelo provedor de serviço de Internet
ção pública, a “etiquetação” e a categorização ser gratuito não desvirtua a relação de con-
dos sujeitos, a possibilidade de controle social sumo, pois o termo “mediante remuneração”,
mediante a designação de um número único contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser inter-
de identificação pessoal dos cidadãos para usos pretado de forma ampla, de modo a incluir o
universais, puseram em alerta os diversos or- ganho indireto do fornecedor´ (...) (STJ – REsp:
denamentos jurídicos. 1316921 RJ 2011/0307909-6, Relator: Ministra
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https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_ www.foxnews.com/tech/7500-online-shoppers-unkno-
registro=201103079096&dt_publicacao=29/06/2012 . wingly-sold-their-souls
Acesso em 03 de julho de 2019
12 Campanha It Pays to read. Disponível em
8 Art. 6º São direitos básicos do consumi- https://www.squaremouth.com/campaign/pays-to-read/.
dor: III–a informação adequada e clara sobre os Acesso em 07 de outubro de 2019
diferentes produtos e serviços, com especifica-
ção correta de quantidade, características, com- 13 Art. 7º: O acesso à internet é essencial
posição, qualidade, tributos incidentes e preço, ao exercício da cidadania, e ao usuário são asse-
bem como sobre os riscos que apresentem; gurados os seguintes direitos: VI–informações
claras e completas constantes dos contratos de
9 No original, em inglês: The term “click- prestação de serviços, com detalhamento sobre
-wrap” is derived from the fact that such on- o regime de proteção aos registros de conexão e
line agreements often require clicking with a aos registros de acesso a aplicações de internet,
mouse on an on-screen icon or button to sig- bem como sobre práticas de gerenciamento da
nal a party’s acceptance of the contract. Among rede que possam afetar sua qualidade; (...) XI–
other things, click-wrap agreements are used publicidade e clareza de eventuais políticas de
to: (1) establish the terms for the download and uso dos provedores de conexão à internet e de
use of software over the Internet; (2) set forth aplicações de internet;
a Web site’s Terms of Service, i.e., the rules by
which users may access the Web site or a por- 14 Art. 47, CDC: As cláusulas contratuais
tion of the Web site such as a chat or message serão interpretadas de maneira mais favorável
service; and (3) establish the terms for the sale ao consumidor.
of goods and services online.
15 Art. 423, CC: Quando houver no con-
10 Em um caso que foi objeto de ação na trato de adesão cláusulas ambíguas ou contra-
justiça catarinense, uma servidora pública des- ditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais
cobriu um perfil falso em seu nome na rede favorável ao aderente.
social Orkut. Na época, para denunciar o per-
fil falso, foi obrigada a criar uma conta no site, 16 Contrato do Usuário LinkedIn.
aceitando os Termos de Uso. Neste caso, por Disponível em https://www.linkedin.com/legal/user-
exemplo, o consentimento com os Termos de -agreement?_l=pt_BR#complaints . Acesso em 04 de
Uso surgiu de uma situação de necessidade e o julho de 2019.
consentimento estava viciado. Em razão disto,
o contrato poderia ser anulado (Apelação Cível 17 Termos de Serviço do Tumblr.
n. 2011.029199-7, do TJ-SC). Disponível em https://www.tumblr.com/policy/pt/
terms-of-service. Acesso em 21 de novembro de
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18 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, publicación de imágenes íntimas falsas o sin
sem distinção de qualquer natureza, garantin- consentimiento y la publicación de informa-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen- ción personal confidencial; las amenazas de
tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à agresión contra los grupos políticamente mar-
liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie- ginados, las razas y las castas minoritarias y los
dade, nos termos seguintes: XXXV–a lei não grupos étnicos que sufren persecución vio-
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão lenta; y los abusos dirigidos contra los refu-
ou ameaça a direito; giados, los migrantes y los solicitantes de asilo.
Al mismo tiempo, las plataformas habrían re-
19 STJ, Conflito de Competência nº 15797- primido el activismo en favor de las personas
0-SC, 2ª Seção, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, lesbianas, gais, bisexuales, transgénero y ase-
v.u., DJU de 12.8.96 e in Ementário do STJ, xuadas; la contestación contra los Gobiernos
Brasília jurídica, vol. 16, nº 250, p. 128. No represivos; la denuncia de la depuración étnica;
mesmo sentido: STJ, REsp nº 56711-4-SP, 4ª y las críticas de los fenómenos y las estructuras
Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. de de poder de naturaleza racista.”
7.2.95, DJU de 20.3.95, p. 6.128
25 Cf. Relatório A/HRC/38/35, da ONU.
20 REsp 1189050/SP, Rel. Ministro LUIS Disponível em https://daccess-ods.un.org/access.nsf/
FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado GetFile?Open&DS=A/HRC/38/35&Lang=S&Type=DOC
em 01/03/2016, DJe 14/03/2016
26 Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
21 REsp 1628819/MG, Rel. Ministra NANCY sem distinção de qualquer natureza, garantin-
ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen-
27/02/2018, DJe 15/03/2018 tes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
22 Termos de Uso do Instagram. priedade, nos termos seguintes: IV–é livre a
Disponível em : https://www.facebook.com/help/ins- manifestação do pensamento, sendo vedado o
tagram/478745558852511/?helpref=hc_fnav . Acesso anonimato;
em 05 de julho de 2019.
27 Art. 220. A manifestação do pensa-
23 Política contra propagação de ódio do mento, a criação, a expressão e a informação,
Twitter. Disponível em https://help.twitter.com/pt/ sob qualquer forma, processo ou veículo não
rules-and-policies/hateful-conduct-policy. Acesso em sofrerão qualquer restrição, observado o dis-
05 de julho de 2019 posto nesta Constituição.

24 Organização das Nações Unidas. 28 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre
Parecer do Relator Especial sobre a promoção outras, as cláusulas contratuais relativas ao for-
e proteção do direito à liberdade de expressão. necimento de produtos e serviços que: XIII–
Disponível em: https://daccess-ods.un.org/access.nsf/ autorizem o fornecedor a modificar unilateral-
GetFile?Open&DS=A/HRC/38/35&Lang=S&Type=DOC. mente o conteúdo ou a qualidade do contrato,
No original, em espanhol: “Los usuarios y la após sua celebração;
sociedad civil informan de actos de violen-
cia y abuso contra la mujer, incluidas las ame-
nazas físicas, los comentarios misóginos, la
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29 Termos de Serviço do Youtube. 36 Art. 7o O acesso à internet é essencial ao


Disponível em https://www.youtube.com/static?- exercício da cidadania, e ao usuário são assegu-
gl=BR&template=terms&hl=pt . Acesso em 05 de rados os seguintes direitos: I–inviolabilidade da
julho de 2019 intimidade e da vida privada, sua proteção e in-
denização pelo dano material ou moral decor-
30 Termos de Uso da Wikimedia Commons. rente de sua violação; VII–não fornecimento a
Disponível em https://foundation.wikimedia.org/wiki/ terceiros de seus dados pessoais, inclusive re-
Terms_of_Use/pt-br#16._Modifica%C3%A7%C3%B5es_a_ gistros de conexão, e de acesso a aplicações de
estes_termos_de_uso. Acesso em 07 de outubro de internet, salvo mediante consentimento livre,
2019 expresso e informado ou nas hipóteses previs-
tas em lei;
31 Recommendations on Terms of Service
& Human Rights, do Fórum de Governança 37 Art.8º (...) Parágrafo único. São nulas de
da Internet das nações Unidas, Disponível em pleno direito as cláusulas contratuais que vio-
https://www.intgovforum.org/cms/documents/igf-mee- lem o disposto no caput, tais como aquelas que:
ting/igf-2016/830-dcpr-2015-output-document-1/file . I–impliquem ofensa à inviolabilidade e ao si-
Acesso em 07 de outubro de 2019 gilo das comunicações privadas, pela internet;

32 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, 38 Política de Privacidade – Apple.


sem distinção de qualquer natureza, garantin- Disponível em https://www.apple.com/br/legal/pri-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen- vacy/br/ . Acesso em 05 de julho de 2019.
tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie- 39 Termos de Uso do YouTube. Disponível
dade, nos termos seguintes: X–são invioláveis a em https://www.youtube.com/static?gl=BR&templa-
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem te=terms&hl=pt . Acesso em 05 de novembro de
das pessoas, assegurado o direito a indenização 2018.
pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação; 40 Contrato de Serviço da Microsoft.
Disponível em https://www.microsoft.com/pt-br/ser-
33 Art. 3: A disciplina do uso da internet vicesagreement/ . Acesso em 06 de outubro de
no Brasil tem os seguintes princípios: II–prote- 2018.
ção da privacidade; III–proteção dos dados pes-
soais, na forma da lei; 41 Art. 5º (...): V–é assegurado o direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da in-
34 List of Third Parties (other than PayPal denização por dano material, moral ou à ima-
Customers) with Whom Personal Information gem;  X–são invioláveis a intimidade, a vida
May be Shared. Disponível em https://www.paypal. privada, a honra e a imagem das pessoas, asse-
com/ie/webapps/mpp/ua/third-parties-list-prev Acesso gurado o direito a indenização pelo dano mate-
em 05 de julho de 2019 rial ou moral decorrente de sua violação;

35 Política de Privacidade no Vimeo. 42 Art. 927, CC: Aquele que, por ato ilícito,
Disponível em https://vimeo.com/privacy . Acesso causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
em 05 de julho de 2019.
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43 Art. 19. Com o intuito de assegu-


rar a liberdade de expressão e impedir a cen-
sura, o provedor de aplicações de internet so-
mente poderá ser responsabilizado civilmente
por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros se, após ordem judicial especí-
fica, não tomar as providências para, no âm-
bito e nos limites técnicos do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indispo-
nível o conteúdo apontado como infringente,
ressalvadas as disposições legais em contrário.

Art. 21. O provedor de aplicações de internet


que disponibilize conteúdo gerado por tercei-
ros será responsabilizado subsidiariamente pela
violação da intimidade decorrente da divulga-
ção, sem autorização de seus participantes, de
imagens, de vídeos ou de outros materiais con-
tendo cenas de nudez ou de atos sexuais de ca-
ráter privado quando, após o recebimento de
notificação pelo participante ou seu represen-
tante legal, deixar de promover, de forma dili-
gente, no âmbito e nos limites técnicos do seu
serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Recebido em 10/07/2019
Aceito em 18/12/2019
230

ARTIGO

Lei Geral De Proteção


De Dados e a tutela
dos dados pessoais de
crianças e adolescentes:
a efetividade do
consentimento dos pais
ou responsáveis legais

Barbara Fernanda Amanda Cristina Jéssica Guedes


Ferreira Yandra Alves Silva Santos
Advogada na organização Bot Advogada na organização Bot Advogada na organização Bot
Jurídico. Email: Jurídico. Email: Jurídico. Email:
barbara@botjuridico.com.br amanda@botjuridico.com.br jessica@botjuridico.com.br
231
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS

Lei Geral de Proteção de Dados e a tutela dos


dados pessoais de crianças e adolescentes:
a efetividade do consentimento dos pais ou
responsáveis legais

Palavras-chave Resumo
Lei Geral de Proteção de Dados A presente pesquisa tem por fim analisar, em
dados pessoais aspectos conceituais e teóricos, a efetividade
crianças da regra prevista na Lei Geral de Proteção de
adolescentes Dados brasileira, que dispõe sobre a necessi-
consentimento parental dade do consentimento específico dos pais ou
responsáveis legais quanto ao tratamento dos
dados pessoais de crianças. Em termos gerais,
pretende-se verificar se o consentimento, con-
forme previsto na lei, é capaz de assegurar a
proteção do público jovem, incluindo aqui os
adolescentes. Para tanto, foi necessário investi-
gar o problema de pesquisa a partir de perspec-
tivas relacionadas (i) à exclusão dos dados pes-
soais de adolescentes do controle parental, (ii) à
real efetividade do consentimento dos pais em
ambientes virtuais e (iii) aos aspectos educati-
vos que transcendem o consentimento parental.
Ademais, como se trata de regulamentação re-
cente, optamos por percorrer o tema pelo mé-
todo da pesquisa bibliográfica, tendo em vista
ainda os modelos de proteção de dados insti-
tuídos na Europa e nos Estados Unidos, bem
como a experiência teórica e prática brasileira
em outras áreas. Assim, tendo em perspectiva
os pontos suscitados e os métodos utilizados,
concluímos pela parcial efetividade do dispo-
sitivo em tela, uma vez que (i) não engloba os
adolescentes em seu âmbito de proteção, des-
considerando a sua incapacidade civil e seu de-
senvolvimento psicológico e (ii) não é eficaz na
previsão de formas aptas a promover um con-
sentimento verídico e inequívoco dos pais ou
responsáveis. Entretanto, destacamos de forma
positiva a intenção legislativa em unir o con-
sentimento dos pais a práticas educativas.
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General Data Protection Law and the protection


of children’s and adolescents’ personal data: the
effectiveness of the consent by the parents or
holders of parental responsibility

Keywords Abstract
Brazilian General Data Protection Law This research aims to verify, in conceptual and
personal data theoretical aspects, the effectiveness of the spe-
children cific consent by the parents or the holder of
adolescents parental responsibility on the children’s and
parental consent adolescents’ personal data processing, provi-
ded in the Brazilian General Data Protection
Law. In general terms, it is intended to analyze
whether consent, as provided by law, is able to
ensure the protection of the young public. In
order to do so, it was necessary to investigate
the research problem from perspectives related
to (i) the exclusion of the adolescents’ perso-
nal data from parental control, (ii) the real ef-
fectiveness of parental consent in virtual envi-
ronments, and (iii) the educational aspects that
transcend parental consent. Moreover, because
it is a subject recently regulated, we have cho-
sen to explore the topics by the method of bi-
bliographic research, also considering the data
protection models established in Europe, and
in the United States, as well as Brazilian theo-
retical and practical experience in other areas.
Thus, taking into account the points raised and
the methods used, we have concluded that the
legal provision under analysis is only partially
effective, since (i) it does not include adoles-
cents in their scope of application, disregarding
their civil incapacity and their psychological
development, and (ii) that it is not effective in
predicting ways to promote true and unequi-
vocal consent of parents or the holder of pa-
rental responsibility. Notwithstanding, we un-
derstand as a positive aspect of the norm that
it aims to combine the control of parents to
educational practices.
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1. Introdução pressupõe que esses jovens teriam capacidade


para dispor de seus dados pessoais, diferente-
mente do consolidado entendimento jurídico
Indubitavelmente, a crescente expansão tec- brasileiro sobre a incapacidade civil.
nológica vem construindo um cenário propício Outro ponto de destaque é o disposto no §5º
a diversas formas de comunicação, pesquisa e, deste mesmo artigo, o qual entende que os pro-
consequentemente, benefícios sociais. Porém, vedores de Internet estariam qualificados a ofe-
ao passo que promove diversas inovações, tam- recer meios eficientes para assegurar que quem
bém revela novos problemas jurídicos e sociais, consentiu foi o pai do menor e não o próprio
tal como o atual desafio da proteção de dados menor. A previsão, no entanto, não oferece
pessoais, coletados cada vez mais a partir de qualquer diretriz aos provedores de Internet, e
ambientes virtuais. desconsidera a complexidade de tal exigência
A medida em que o uso da tecnologia vem em um ambiente digital.
ganhando espaço no cotidiano de crianças e Por outro lado, notamos de forma elogiosa a
adultos, torna-se habitual a prática de consen- iniciativa legislativa de aliar o consentimento
tir com a disponibilização de dados pessoais dos pais a práticas educativas e de conscienti-
como uma forma de possibilitar a utilização zação da criança, respeitando a condição desta,
de plataformas virtuais, tais como aplicativos, e possivelmente promovendo de forma mais
redes sociais e plataformas com as mais varia- efetiva a sua proteção. Destaca-se, inclusive, a
das finalidades. Tal realidade cria um cenário preocupação do normativo em assegurar que a
em que a necessidade de proteção aos dados do informação sobre a coleta dos dados seja pas-
indivíduo passa a ser questionada. sada de forma inteligível para as próprias crian-
Assim, tendo em perspectiva o crescimento ças, além dos responsáveis.
de novos problemas e demandas jurídicas den- Dessa forma, partindo dos pontos ora susci-
tro desta nova conjuntura relacionados à pro- tados, buscamos compreender em que medida
teção de dados, os legisladores brasileiros edi- o consentimento dos pais, conforme previsto
taram recentemente a Lei Geral de Proteção de na LGPD, cumpre a finalidade geral do art. 14,
Dados (LGPD), Lei nº. 13.709/2018, a qual traz caput, que pretende proteger os dados pessoais
inovações substanciais em nosso ordenamento de crianças e adolescentes de acordo com o
jurídico, haja vista a singularidade e inovação melhor interesse destes.
da matéria. Por se tratar de tema recente e, consequen-
Entre os diversos aspectos regulados pela temente, faltar dados concretos no cenário
norma, destacamos a edição de um dispositivo brasileiro aptos a comprovar a efetividade da
específico destinado à proteção de dados pes- norma, optamos por utilizar o método da pes-
soais de crianças e adolescentes, a saber, o art. quisa bibliográfica em detrimento de um mé-
14 da LGPD. Neste dispositivo, o legislador se todo teórico-empírico. Assim, para viabilizar a
preocupou em assegurar uma proteção mínima construção da pesquisa em um sentido mais
aos dados das crianças. prático, recorreremos ao modelo de proteção
Contudo, apesar da nobre intenção legisla- de dados instituído na Europa e nos Estados
tiva, percebemos pela simples leitura da lei al- Unidos, bem como à experiência prática brasi-
gumas áreas de fragilidade. Por exemplo: o le- leira em outras áreas.
gislador, ao excluir o público adolescente do §1º Em um primeiro momento, observa-se com
do art. 14 da LGPD, que trata sobre o consen- clareza que a implementação da legislação em
timento dos pais sobre os dados de seus filhos, questão vai de encontro a diversas dificuldades.
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No que tange à proteção da criança, analisa- dados pessoais.


mos de forma mais detida a questão do con- Apesar da nova previsão normativa, o Código
sentimento dado pelos pais e responsáveis e da Civil (CC), Lei nº. 10.406/2002, define que os
conscientização sobre a finalidade dos dados menores de idade não possuem capacidade de
que estão sendo fornecidos em rede. fato3 para praticar diretamente os atos da vida
civil. Assim, são absolutamente incapazes os
menores de 16 (dezesseis) anos e relativamente
2. A prescindibilidade do incapazes os maiores de 16 (dezesseis) e meno-
consentimento dos pais res de 18 (dezoito) anos, de acordo com os arts.
3º e 4º, inciso I, desta lei4.
ou responsáveis legais Essa divisão do Direito Civil entre incapaci-
para o tratamento de dade absoluta e relativa resulta em alguns efei-
dados dos adolescentes tos práticos. Dentre eles, temos a necessidade
de representação dos pais ou responsáveis no
caso da incapacidade completa e a assistência
Dentre as diversas alterações jurídicas previs- destes quando se tratar de incapacidade parcial.
tas na Lei nº 13.709/2018–Lei Geral de Proteção Isto é, no primeiro caso, o responsável substitui
de Dados (LGPD), a qual se destina a salvaguar- o menor, tomando decisões por ele, mas sem-
dar o tratamento de nossos dados pessoais–ava- pre respeitando o seu melhor interesse. No se-
liamos neste tópico a garantia concedida pela gundo caso, o responsável tem o papel apenas
supracitada norma aos dados dos adolescentes. de verificar a regularidade e a validade da deci-
A respeito do tema, salienta-se, desde já, a são tomada pelo menor.
insuficiência legislativa no tocante à defesa dos Nessa linha, cabe destacar ainda que o
dados pessoais dos menores de idade. A LGPD, Código prevê, em seu art. 5º, parágrafo único,
em seu art. 14, §1º, determina a necessidade do inciso I, que a incapacidade civil poderá cessar
consentimento específico dos pais ou respon- por um consentimento geral dos pais apenas
sáveis legais para o tratamento dos dados de na última hipótese, da incapacidade relativa5.
crianças, silenciando-se quanto aos dados dos Segundo Flávio Tartuce (2017, p. 73), o legisla-
adolescentes1. dor entendeu que, ao se tratar de incapacidade
Para compreendermos a definição legal des- absoluta, “a pessoa ainda não atingiu o discer-
sas duas categorias–crianças e adolescentes – nimento para distinguir o que pode ou não
faz-se necessário recorrer à Lei nº. 8.609/1990, pode fazer na ordem privada”. Assim, não seria
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), possível exercer a sua capacidade mesmo com
pois a LGPD não apresenta conceituação e nem o consentimento genérico dos pais, exigindo-
versa sobre a capacidade civil de nenhuma das -se destes um acompanhamento específico de
categorias. O ECA traz em seu art. 2º a defi- todas as ações praticadas por aqueles que estão
nição de criança como aquela que possui até sob a sua responsabilidade.
12 (doze) anos de idade incompletos, e adoles- No mesmo sentido, Caio Mário Pereira da
cente entre 12 (doze) a 18 (dezoito) anos2. Dessa Silva (2017, p. 230) justifica que “a inexperiên-
maneira, ao utilizar apenas o termo “criança”, cia, o incompleto desenvolvimento das facul-
o consentimento parental previsto na LGPD é dades intelectuais, a facilidade de se deixar
indispensável somente quando se tratar de me- influenciar por outrem, a falta de autodeter-
nores de 12 (doze) anos, de forma que os de- minação e auto­orientação impõem ao menor a
mais teriam capacidade para dispor sobre seus completa abolição da capacidade de ação”.
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Dessa forma, ao admitir que os menores de mudanças legislativas já estão em curso e mui-
16 (dezesseis) e maiores de 12 (doze) anos te- tos países ainda não se posicionaram quanto à
nham capacidade para consentir sobre os seus implementação definitiva do critério etário de-
dados na esfera civil, a LGPD vai de encontro finido na lei geral7.
com o disposto no nosso Código Civil, o qual Dentro do cenário europeu, alguns estudio-
afasta a capacidade absoluta daqueles que se sos do assunto entendem que a GDPR, ao fixar
encontram nessa faixa etária. Diferindo-se do a idade limite de 16 (dezesseis) anos, ignorou
caso da capacidade relativa, em que é possível a o nível de maturidade entre crianças e adoles-
prática dos atos civis pelos menores, desde que centes. Desconsiderando, inclusive, que para
possam sofrer um controle de validade pelos esta última categoria a Internet representa um
seus pais. eficiente meio de engajamento social e a limi-
Por outro lado, deve-se ressaltar o entendi- tação poderia comprometer a participação dos
mento consolidado no Enunciado nº 138 do jovens.
Conselho da Justiça Federal [CJF] (2016, p. 2), Nesse sentido, Krivokapić e Adamović (2016,
aprovado na III Jornada de Direito Civil, de pp. 210-211) destacam:
acordo com o qual “a vontade dos absoluta-
mente incapazes, na hipótese do inc. I do art. Na falta de uma análise adequada sobre o
3º é juridicamente relevante na concretização limite de idade, não há como compreender
de situações existenciais a eles concernentes, até que ponto o limite adotado atinge
desde que demonstrem discernimento bastante o equilíbrio entre os riscos e os danos
para tanto”. relacionados com a proteção de dados,
Entretanto, o fornecimento de dados pes- por um lado, e os direitos das crianças
soais não costuma se relacionar com situações (UNCRC) [United Nations Convention
existenciais, o que não justifica a flexibilização on the Rights of the Child–Convenção
da incapacidade absoluta para permitir aos me- sobre os Direitos da Criança], por outro.
nores de 16 (dezesseis) anos praticarem sozi-
nhos atos civis válidos. (...)
Apresentados tais aspectos teóricos, recorre-
mos agora a uma análise comparada da legisla- A respectiva provisão da GDPR pode ser o
ção. Nessa linha, nota-se que a União Europeia resultado da indiscriminação entre crianças
prevê em sua Lei Geral de Proteção de Dados, menores e adolescentes mais jovens.
General Data Protection Regulation (GDPR), Pesquisa recente indica que uma linha
Regulation (EU) 2016/679, artigo 8.º, item 1, o divisória pode ser traçada entre as crianças
consentimento dos pais ou responsáveis até a de acordo com a maturidade escolar, e é
faixa etária limite de 16 (dezesseis) anos. Porém, essa diferenciação que os legisladores do
autoriza os Estados-Membros a fixarem limite GDPR parecem ter ignorado completamente.
inferior, restrito a 13 (treze) anos de idade6.
Atualmente, a maioria dos países europeus Enquanto que as crianças mais novas
adota a idade limite de 16 (dezesseis) anos, con- possam realmente não entender as
forme prevista na Regulation (EU) 2016/679, implicações de suas atividades on-line
GDPR. Contudo, já se prevê alteração signi- e os riscos de proteção de dados, os
ficativa na adoção desse critério, haja vista a adolescentes podem estar muito mais
possibilidade de adaptação da norma de acordo conscientes deles (mais até do que seus pais)
com a ordem jurídica interna. Proposições de ou podem, inclusive, estar utilizando os
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serviços de Internet para se conectar com ressalvadas as restrições legais;


sua comunidade através de redes sociais
em situações em que eles se deparam II–opinião e expressão;
com problemas e procuram a solução. A
Internet para os adolescentes é uma fonte III–crença e culto religioso;
valiosa de notícias e possibilidades de
envolvimento, bem como uma ferramenta IV–brincar, praticar esportes e divertir-se;
eficiente para o envolvimento na sociedade
civil e em questões ambientais, enquanto V–participar da vida familiar e
o GDPR poderia comprometer seriamente comunitária, sem discriminação;
todos esses benefícios indispensáveis8.
VI–participar da vida política,
na forma da lei;
Assim, tendo em vista tal concepção, parece
ser acertada a escolha do legislador brasileiro VII–buscar refúgio, auxílio e orientação.
ao exigir o consentimento dos responsáveis
apenas no caso de crianças, concedendo ampla
autonomia aos adolescentes para dispor de seus Contudo, tendo consciência dos direitos des-
dados pessoais. Deixamos de interpretar o si- tacados, não entendemos que o consentimento
lêncio do legislador de maneira negativa, para dos pais poderia prejudicar o engajamento do
entendê-lo como uma consciente preocupação público juvenil no âmbito digital, desde que se
com a efetiva participação social e política dos dê em limites razoáveis, como veremos no úl-
jovens. timo tópico deste trabalho. Ou seja, o consen-
A Convenção sobre os Direitos da Criança– timento específico dos pais sobre a coleta dos
criança aqui entendida como todos os meno- dados pessoais dos jovens não impede a efe-
res de 18 (dezoito) anos9–garante a liberdade tiva participação acompanhada destes na rede.
de expressão desta categoria. Isto é, “de pro- A finalidade do consentimento parental não é
curar, receber e divulgar informações e ideias restringir o acesso dos jovens à rede, mas pro-
de todo tipo, independentemente de fronteiras, tegê-los dela.
de forma oral, escrita ou impressa, por meio Ademais, é garantido pela nossa Constituição
das artes ou por qualquer outro meio esco- de 1988, art. 227, o dever da família de zelar
lhido pela criança”, de acordo com o art. 13 do pela liberdade e pela convivência comunitá-
texto normativo, promulgado pelo Decreto nº ria do adolescente, fiscalizando o exercício dos
99.710/1990. seus direitos ao passo que os assegura10.
O art. 16 do ECA, Lei nº. 8.609/1990, tam- Sobre a relevância do papel da família, é im-
bém protege a liberdade do público infantoju- portante evidenciar também que:
venil, promovendo a sua participação integral
na comunidade: Na adolescência o córtex pré-frontal ainda
não refreia emoções e impulsos primários.
Art. 16. O direito à liberdade Também nesta fase de formação o cérebro
compreende os seguintes aspectos: adolescente reduz as sensações de prazer
e satisfação que os estímulos da infância
I–ir, vir e estar nos logradouros proporcionam, o que impulsiona a busca
públicos e espaços comunitários, de novos estímulos. Atitudes impensadas,
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variações de humor, tempestade hormonal, 3. A efetiva proteção


onipotência juvenil são características parental sobre os dados
comuns a esta fase de formação fisiológica
do adolescente, justificando tratamento
das crianças e dos
diferenciado por meio da lei especial adolescentes nos termos
que o acompanha durante esta etapa da Lei Geral de Proteção
de vida. (Amin et al., 2018, p. 63)
de Dados

Vejamos que, em razão de tal impulsividade e


estímulos, muitos adolescentes não estão preo- Conforme apontado no tópico anterior, as
cupados com a sua privacidade no ambiente disposições da LGPD indicam a intenção le-
virtual. Segundo a pesquisa realizada pelo gislativa de trazer maior segurança à criança
Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto enquanto usuária da Internet, expressando a
BR [NIC.br] (2017), apenas 61% dos adolescentes necessidade de que seja garantido aos pais ou
entre 13 (treze) e 14 (catorze) anos possuem ha- responsáveis legais os meios de exercer o con-
bilidades operacionais para mudar configura- trole sobre os dados que estão sendo coleta-
ções de privacidade em redes sociais, enquanto dos da criança, bem como a finalidade de sua
que 92% afirmam possuir habilidades sociais coleta.
para saber o que compartilhar e excluir conta- No entanto, apesar da motivação da norma
tos da sua lista de amigos. ser plausível–e necessária -, abstendo-nos por
É sabido que, em muitas situações, os jo- ora da discussão quanto à falta de proteção dos
vens possuem mais habilidade tecnológica que dados de adolescentes, sua aplicação no âmbito
seus pais; porém, muitas vezes faltam a esses prático encontra certas barreiras. Isto porque
a prudência, o discernimento e a experiência assegurar que o consentimento para a utiliza-
de vida de seus pais. Tendo em vista suas pró- ção de plataformas virtuais por crianças está
prias características emocionais, os adolescen- sendo dado, de fato, por seus responsáveis le-
tes compõem um grupo de perfil mais ime- gais é uma dificuldade já existente e que, até o
diatista, que se preocupa mais em saber o quê momento, não foi superada.
compartilhar do que com a privacidade do que A título de exemplo, pode ser mencionado
se compartilha. o fato de que desde a popularização do uso da
Por tais razões, assim como fez no caso das Internet tenta-se restringir o acesso a conteú-
crianças, a LGPD deveria ter concedido aos dos impróprios por menores de idade. A per-
adolescentes um tratamento especial, possibi- gunta “Você tem mais de dezoito anos?” formu-
litando o controle familiar de atos civis prati- lada pelos distribuidores de conteúdo adulto,
cados pelo menor no âmbito da Internet, haja no entanto, é historicamente falha. É notório
vista as características próprias da idade e seu que tal medida não cumpre sua finalidade e
desenvolvimento incompleto, ainda em fase de está longe de cumpri-la.
amadurecimento. Na mesma linha, encontra-se o §1º do art.
14 da LGPD, que dispõe que a coleta de dados
de crianças “deverá ser realizada mediante
consentimento específico e em destaque dado
por pelo menos um dos pais ou pelo respon-
sável legal”. Sendo que a legislação demonstra
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ainda uma preocupação com a veracidade do via e-mail, desde que sejam requeridas outras
consentimento dado, o §5º do mesmo dispo- etapas que permitam confirmar que o consen-
sitivo prevê que o controlador deverá realizar timento foi dado pelo responsável, tal como a
todos os esforços necessários para verificar que confirmação posterior via carta ou ligação13.
o consentimento foi, de fato, dado pelo respon- As opções concedidas pelo COPPA, apesar de
sável da criança11. não frustrarem todas as possibilidades de um
Os dispositivos supracitados vêm em con- consentimento falso dado pela própria criança,
sonância com o regulamento de proteção de apontam um caminho que permite ao operador
dados da União Europeia (GDPR), que traz ao criar e aprimorar soluções que superem esta
longo do seu texto, em especial no artigo 8º, as barreira.
mesmas previsões relacionadas à proteção de Ademais, o órgão de proteção ao consumidor
dados das crianças na Internet12. No entanto, o de tal país, Federal Trade Comission, é o responsá-
regulamento europeu, da mesma forma que a vel por fiscalizar o cumprimento do normativo,
LGPD, não dispõe de forma específica sobre os sendo possível que os pais e responsáveis legais
meios que deverão ser empregados para garan- denunciem plataformas que estejam coletando
tir a obtenção do consentimento nos termos dados de menores sem o devido consentimento.
legais. Retornando ao cenário brasileiro, ante a au-
Ainda no âmbito das regulamentações, os sência de previsão semelhante no nosso orde-
Estados Unidos, apesar de não possuírem uma namento, a expectativa é de que uma regula-
legislação unificada sobre direitos e garantias de ção pormenorizada, no que tange a este ponto,
privacidade de dados na rede, editou, em 2000, possa vir em algum ato normativo a ser edi-
o Children’s Online Privacy Protection Act (COPPA tado pela Autoridade Nacional de Proteção de
1998), que dispõe especificamente sobre a pro- Dados (ANPD). Enquanto sua existência não se
teção dos dados de crianças na Internet, sendo coaduna, a LGPD deixa aos operadores a aber-
obrigatória sua observância também para apli- tura para que encontrem soluções inovadoras
cativos e jogos. e adequadas.
No entanto, diferentemente da regulação Superando-se o tópico quanto à veracidade
brasileira e da europeia, o COPPA 1998 traz em do consentimento dos pais, a efetiva proteção
sua redação (§312.5, “b”) formas de obtenção do dos dados das crianças encontra outra dificul-
consentimento parental para o cumprimento dade: ainda que os responsáveis de fato conce-
do dispositivo, sendo elas: (i) o preenchimento dam o consentimento, muitas vezes eles não
de um formulário de consentimento pelos pais, possuem o entendimento pleno daquilo que
enviado ao operador por e-mail; (ii) a solicita- está sendo por eles autorizado.
ção de uma transação monetária, que notifique Em um primeiro momento, pode-se pensar
o titular do cartão de crédito/débito (ou outro que a solução óbvia seria a edição de termos de
meio) da transação; (iii) ter um número de tele- uso e privacidade, onde deveria ser indicado
fone para o qual o responsável possa ligar gra- ao usuário – ou ao responsável que está con-
tuitamente e conceder o consentimento; (iv) sentindo com o uso – exatamente quais dados
consentimento do responsável via videoconfe- estão sendo coletados, de qual forma serão pro-
rência; (v) verificar a identidade do responsável cessados e, ainda, de que modo seria possível
comparando os dados com formulários gover- solicitar a exclusão destes dados.
namentais, devendo os dados serem excluí- No entanto, conforme é sabido, o contexto
dos do banco de dados do operador logo após da sociedade tecnológica atual trouxe uma rea-
a checagem; ou (vi) permitir o consentimento lidade onde os pais – por terem menos tempo
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em contato profundo com a tecnologia como é apresentavam os termos de uso em português,


conhecida hoje – tendem a ter uma menor ex- sendo que os demais apresentavam o conteúdo
pertise no uso dessas tecnologias do que os pró- apenas em inglês. Considerando que são apli-
prios filhos, que já nascem nesse contexto. Por cações populares entre o público brasileiro, de-
esta razão, tornou-se padrão a prática de ler e tecta-se de forma clara a barreira linguística re-
aceitar termos de uso de diversas plataformas, forçada por estas aplicações.
sem realmente ter-se lido os referidos termos. Por fim, constatou-se também que apenas
Assim, da mesma forma que os pais consentem cinco aplicações dentre a amostragem anali-
com a coleta de seus próprios dados sem que sada trazem termos de uso específicos para o
entendam a real finalidade e uso desses dados público infantil, os demais utilizam termos ge-
coletados, passam a consentir também com a rais válidos para qualquer aplicação da empresa.
coleta dos dados dos seus filhos. Ou seja, o consentimento dado pelo usuário
Em atenção a essa realidade, a LGPD trouxe, tem uma natureza geral e ampla, não identifi-
no §6º do seu art. 14, a previsão de que seja cando de forma clara os dados que estão sendo
dado o conhecimento de forma simples, clara coletados apenas para a utilização da determi-
e acessível quanto aos dados que estão sendo nada aplicação.
coletados, de forma que os pais/responsáveis Tal pesquisa indica, portanto, uma des-
consigam compreender e, ainda, a própria preocupação por parte dos serviços de aplica-
criança possa compreender o que está sendo ção quanto à concessão de informação clara e
consentido14. completa aos usuários sobre os dados que estão
Apesar do normativo brasileiro ainda não sendo coletados. Não se preocupa, tampouco,
estar em vigor, a pesquisa sobre o uso da com qualquer conscientização da criança e dos
Internet por crianças e adolescentes no Brasil, responsáveis, impedindo, assim, uma efetiva
“TIC Kids Online Brasil 2017”, produzida pelo Nic. proteção da criança no ambiente virtual.
br (2017), analisou aplicativos com destina- Entretanto, com a entrada em vigor da LGPD,
ção infantil permitindo vislumbrar como, de torna-se imperativo que estas aplicações, e
fato, está sendo informado ao usuário sobre os todas as demais, se adequem ao que a legislação
dados coletados. A pesquisa analisou 20 (vinte) prevê. Em caso de descumprimento, e ausente
aplicativos de público infantil mais buscados o funcionamento da ANPD, pode-se pensar,
para download no Brasil, e encontrou alguns inclusive, na atuação dos órgãos de defesa do
problemas, dentre os quais destacamos alguns consumidor, ou no Ministério Público, como
a seguir. agentes de repressão de condutas destoantes da
Em primeiro lugar, apenas cinco dos aplica- legislação, tal como ocorre nos Estados Unidos
tivos analisados apresentam seus termos de uso com o COPPA.
no momento em que se abre o aplicativo pela Nota-se, portanto, que apesar de uma pre-
primeira vez. Nos outros casos, os termos de visão legislativa mais específica prevista na
uso e privacidade somente podem ser visuali- LGPD, os dados das crianças ainda não encon-
zados se o usuário voluntariamente procurá- tram uma efetiva proteção. Este cenário pode
-lo nas configurações do aplicativo. Em alguns ser alterado com a entrada em vigor da lei, o
casos, ainda, os termos somente conseguem ser funcionamento da ANPD, e até mesmo com a
visualizados pelo usuário acessando o respec- eventual judicialização de abusos e ilegalidades
tivo website da aplicação. cometidas pelos operadores.
Outro problema notado foi o fato de que, Por outro lado, no âmbito puramente prático,
dentre os vinte aplicativos, somente seis outras soluções podem ser pensadas. Como
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exemplo, cita-se a UmanID, uma aplicação que desenvolvimento tecnológico, é importante re-
permite aos usuários solicitar das empresas in- fletir acerca do quão limitada pode ser a es-
formações sobre os dados por elas coletados, fera de proteção das crianças e adolescentes.
permitindo de forma específica que os pais/res- Todavia, o controle parental deve se guiar por
ponsáveis solicitem da empresa as informações limites razoáveis a fim de possibilitar uma cria-
que foram coletadas sobre seus filhos. A apli- ção também para o uso da Internet e das tec-
cação vem no sentido de permitir que sejam nologias, ao invés de “proibir” ou restringir
tomadas as medidas cabíveis para exclusão do excessivamente a “vida virtual” das crianças e
conteúdo coletado, e até mesmo responsabili- adolescentes.
zação das empresas em caso de armazenamento Como destacado por Alessandra Borelli (2018,
ilegal dos dados. p. 142):
Assim, apesar de ainda não ser possível vis-
lumbrar uma proteção eficaz aos dados das Em termos legais, crianças são sujeitos
crianças, o contexto de constante evolução tec- de direito, como quaisquer pessoas. Aliás,
nológica, em conjunto com a evolução nor- considerando sua condição peculiar de
mativa, permite olhar com positividade para ser em desenvolvimento, fazem jus a
o futuro das crianças em rede. Ressalte-se, no um tratamento diferenciado, não sendo
entanto, a necessidade de que seja reforçada a exagero afirmar que dispõem de mais
conscientização dos responsáveis e das próprias direitos que os próprios adultos.
crianças quanto à concessão de dados pessoais
e perigos que dela decorrem, o que será me-
lhor explorado a seguir. Aqui deve ser marcada a grande diferença
existente entre crianças e adolescentes. As
crianças possuem maior dependência dos pais
4. A importância da ou responsáveis pela sua tenra idade. Precisam
conscientização da dos pais para praticamente todas as atividades
cotidianas. Na infância, a criança passa pela
criança e do adolescente socialização primária (Berger & Berger, 1975),
sobre a proteção de período no qual molda traços característicos
dados pessoais para além de sua personalidade e guarda informações e
aprendizados até o fim da vida.
do controle parental Por sua vez, os adolescentes já estão em um
momento diferente de socialização e desenvol-
vimento social. Na adolescência, além da con-
Como demonstrado nos tópicos anteriores, o tinuidade da formação da personalidade, o ado-
âmbito de proteção das crianças e dos adoles- lescente quer mostrar e deixar marcada suas
centes é diferente dos adultos. As crianças e principais características pessoais nos ambien-
adolescentes, por serem indivíduos em cons- tes em que convive. A adolescência marca a
trução, estão em situação de vulnerabilidade transição entre a infância e o começo da vida
que torna necessária uma esfera de proteção adulta, e, portanto, também requer um maior
mais expandida. Esfera esta que, nessa fase da nível de autonomia.
vida, muitas vezes é definida pelos pais, res- É necessário que os pais e responsáveis este-
ponsáveis e familiares. jam atentos à forma que exercem seu controle
Em uma sociedade de expansão do na infância e na adolescência. A forma como se
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faz esse controle em uma fase pode não ser efi- não foi feito com o fim precípuo de proteger a
caz na outra. Da mesma forma, também deve menina, mas como forma de controlar as an-
existir um limite para o controle parental, sob siedades da mãe. Veja, a intenção inicial da mãe
pena de se prejudicar o crescimento cogniti- era boa, consistia em um meio de poder encon-
vo-psicológico das crianças e dos adolescentes. trar a filha caso ela se perdesse. Entretanto, no
O segundo episódio da quarta temporada do meio do caminho, o controle parental se tor-
famoso seriado Black Mirror trata exatamente nou tão absurdo a ponto de impedir que a me-
sobre o excesso do controle dos pais. O episó- nina tivesse qualquer experiência considerada
dio, intitulado Arkangel (Brooker & Foster, 2017), normal, como sentir medo de um cachorro
mostra a relação nociva construída entre mãe grande.
e filha durante a infância e a adolescência. O Em outras palavras, a função dos pais é ga-
abuso do controle parental retratado na série rantir o melhor interesse da criança e do ado-
inicia-se quando a menina, ainda pequena, se lescente, o que se reflete nos deveres de pro-
perde no parque e é encontrada nos trilhos do teção e cuidado. Porém, não devem tolher a
trem. Para evitar que isso aconteça novamente, liberdade de acesso e participação digital dos
a mãe participa de um programa chamado filhos a fim de curar suas próprias ansiedades
Arkangel, que consiste na instalação de um chip e preocupações. Devem existir limites para o
no cérebro da garota. A partir disso, é possível controle parental para proteção da infância, da
que a mãe veja as mesmas coisas que a filha, adolescência e da privacidade dos filhos.
saiba o seu nível de estresse, suas condições de A função dos pais sempre foi complexa, mas,
saúde e ainda realize o seu rastreamento. Tudo agora, talvez seja mais porque estamos numa
isso gerenciado por um tablet, o qual funciona situação desconhecida. Lidamos com uma ge-
como uma unidade parental. ração que cresce imersa na tecnologia. Os pais
Usando o dispositivo tecnológico, a mãe são de geração diferente, eles não viveram, e
consegue impedir ações que causam medo na nem seus predecessores, os impactos da tec-
criança, como visualizar um cachorro raivoso nologia durante a sua infância e adolescên-
ou imagens envolvendo sangue. Inclusive, per- cia. Então, como lidar com uma geração de
cebendo essa última questão, ainda com sete hiperconectados?
anos, a menina tenta desenhar imagens vio- Os nascidos de 2010 em diante, a chamada
lentas e tudo isso fica como um borrão, o que a geração alfa, nascem totalmente imersos em
leva a se autolesionar na tentativa de “enxergar um cenário tecnológico. Sendo que em tal ano
seu próprio sangue”. Nesta situação, a mãe de- ocorre a popularização dos smartphones, tablets e
cide desconectar a unidade parental e passa o do Facebook. A criança já nasce envolvida com
resto da infância sem a intercepção do Arkangel. tecnologia, aprende a mexer nos dispositivos
Entretanto, com quinze anos, a mãe desco- dos pais para colocar seus desenhos e jogos fa-
bre que a filha mentiu sobre dormir na casa de voritos. Os nascidos antes de 2010, pertencen-
uma amiga, não obtendo, no entanto, nenhuma tes à geração Z, apesar de não terem nascido
informação sobre seu real paradeiro. Assim, re- inseridos na tecnologia, passaram a conviver
solve ligar a unidade parental para saber qual a com ela de forma crescente durante a sua vida.
sua localização, mas, além disso, acaba vendo a Em pesquisa realizada pelo Instituto Play
filha tendo relações sexuais e utilizando subs- (2016) e encomendada pelo Canal Gloob, canal
tâncias ilícitas. infantil por assinatura da rede Globosat, de-
Existe um problema claro no controle pro- monstrou-se como as crianças dessa geração
posto pelo Arkangel: abusividade. O controle informam-se quanto às novidades. O resultado
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mostrou que 61% se informa pelo YouTube, que as crianças e adolescentes fazem da rede,
51% por propaganda nos sites, 42% em sites aspectos importantes e fundamentais para se
das marcas/lojas/Google e 42% pelo Facebook. pensar acerca da educação digital. O maior
A pesquisa sobre o uso da Internet por crian- uso é com atividades de comunicação, sendo
ças e adolescentes no Brasil–TIC Kids Online que 79% dessa prática corresponde ao envio de
Brasil – que considerou crianças e adolescen- mensagens instantâneas e 73% ao uso de redes
tes de 9 a 17 anos, revelou que 85% eram usuá- sociais. Nas atividades de educação e busca de
rios da Internet e que 93% deles utilizavam o informações na rede, destacam-se a pesquisa
telefone celular para acessar a Internet. Assim, para fazer trabalhos/deveres escolares, utilizada
24,7 milhões de crianças e adolescentes estão por 76% das crianças e adolescentes, e a leitura
conectados à rede no Brasil. Dados preocupan- ou visualização de notícias online, por 51% deles.
tes apontam que 39% das crianças e adolescen- Nas atividades de multimídia e entretenimento,
tes já viram alguém sendo discriminado ou so- 71% assistiram a vídeos, programas, filmes ou
frendo preconceito na esfera digital, além de séries e ouviram música online, sendo que, em
22% terem declarado que já foram tratados de termos proporcionais, as crianças e adolescen-
forma ofensiva ou de maneira que não gosta- tes são o grupo que mais consomem esse tipo
ram/chatearam na Internet. de conteúdo cotidianamente, o que reforça a
Interessante também pontuar que, com re- questão do cuidado com os dados, especial-
lação às variáveis socioeconômicas, segundo a mente dados sensíveis, desse grupo vulnerá-
pesquisa TIC Kids Online Brasil, 98% dos adoles- vel e, ao mesmo tempo, explicita ainda mais
centes e crianças da classe AB e 93% da classe a necessidade de respeito aos preceitos estipu-
C eram usuários da Internet. Entretanto, na lados pela LGPD no seu art. 14 que trata sobre
classe DE, sete em cada dez crianças e adoles- a tutela de direitos desse grupo no ambiente
centes faziam o uso constante da rede. A maior virtual.
parte das crianças e adolescentes que se man- A mesma pesquisa aponta que 70% dos pais
tém conectados estão nas áreas urbanas (90%) ou responsáveis achavam que as crianças e ado-
sendo que, na área rural, o uso de redes por lescentes usavam a Internet de forma segura.
eles chega a 63%. Por região do país, as crian- Entretanto, 50% dessas crianças e adolescen-
ças e adolescentes que mais usam a rede são as tes relataram que seus pais ou responsáveis
do Sudeste e Centro Oeste, com aderência de sabem mais ou menos da sua atividade na rede.
93%, seguidas de 92% do Sul, 77% do Nordeste Inclusive, entre os de 11 a 17 anos, 76% rela-
e 68% do Norte. taram que sabem usar mais as redes que seus
Ainda é preciso ressaltar a faixa etária pais.
das crianças e dos adolescentes usuários da Claro que é um assunto delicado e complexo,
Internet. Os dados da pesquisa supracitada mas, tendo em vista a sociedade hiperconec-
apontam que corresponde a 74% das crianças tada em que vivemos, tem que estar na mesa
de 9 a 10 anos, 82% das crianças de 11 a 12 anos, de debate. As crianças e os adolescentes são o
87% dos adolescentes de 13 a 14 anos e 93% dos futuro do país e devem ser tratados conforme
adolescentes de 15 a 17 anos. Com relação à fre- os preceitos que queremos replicar no futuro.
quência, 88% das crianças e adolescentes aces- A esfera virtual apresenta muitas possibilidades,
sam a Internet todos ou quase todos os dias, e para um lado e para o outro. Os dados acima
71% deles declararam que usam a rede mais de elencados fomentam a necessidade de refletir
uma vez por dia. sobre o assunto. Os pais devem defender seus
A pesquisa se preocupou em elencar os usos filhos na esfera online, mas sem esquecer que
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eles crescem no meio tecnológico. e inequívoco, uma vez que quase ninguém lê
Neste sentido, a proibição, muitas vezes, não esses documentos.
é fonte estimuladora de comportamento, pelo As empresas devem se atentar para esse fato
contrário, consiste em meio unilateral de im- e ter o dobro de cuidado ao disponibilizarem
posição de vontade, o que pode gerar revolta, serviços e/ou produtos para menores. Como le-
especialmente nos adolescentes. Uma das solu- ciona Alessandra Borelli (2018, p. 156), “aquele
ções possíveis que se apresenta é a educação di- que cria, aprimora e recria produtos e serviços
gital. Para tanto, é necessário que os pais apren- destinados a eles [crianças e adolescentes], sem
dam, eduquem a si mesmos e aos seus filhos dúvida, possui responsabilidade que deve ser
para permitir um melhor contato entre a vida traduzida no compromisso de, do início ao fim,
real e a vida virtual, priorizando o enfoque com pensar no melhor interesse da criança”.
o cuidado na disposição dos dados. Pensando, mais uma vez, em métodos alter-
A LGPD se preocupou com essa questão, nativos de solucionar os problemas apontados,
ainda que apenas para o grupo das crianças. O pode-se citar o uso do legal design, uma forma
§6º do art. 14 estabelece: das empresas aprimorarem o seu contato com
o público esclarecendo sua política de privaci-
§ 6º As informações sobre o tratamento dade. A técnica consiste na utilização do design
de dados referidas neste artigo deverão para apresentar as questões jurídicas de forma
ser fornecidas de maneira simples, clara direcionada ao seu destinatário. Em outras pa-
e acessível, consideradas as características lavras, o método permite que as empresas colo-
físico-motoras, perceptivas, sensoriais, quem os termos jurídicos em linguagem mais
intelectuais e mentais do usuário, com acessível e inteligível aos diretamente atingidos
uso de recursos audiovisuais quando por aquela norma. Assim, por meio das ferra-
adequado, de forma a proporcionar mentas que o legal design incorpora no viés jurí-
a informação necessária aos pais ou dico, será possível estabelecer novas estratégias
ao responsável legal e adequada ao e meios que façam as crianças e adolescentes–e
entendimento da criança. (Grifo nosso) seus pais–entenderem exatamente o que está
envolvido em um simples click.

A intenção da lei parece ser dúplice: fomen-


tar a educação digital e propiciar meios que 5. Considerações finais
permitam que as crianças e adolescentes pos-
sam entender o valor dos seus dados pessoais.
Com relação aos meios que propiciem o me- Diante do exposto, percebe-se que os §§ 1º e
lhor entendimento das crianças e adolescentes 5º do art. 14 da Lei Geral de Proteção de Dados,
sobre os seus dados, além da função dos pais, os quais dispõem sobre o consentimento dos
as empresas também têm papel essencial nessa pais quanto à coleta dos dados de seus filhos,
mudança de comportamento. Já está velha a não cumpre integralmente o objetivo especí-
máxima de que “se o serviço é grátis, o produto fico da norma, expresso no caput do supraci-
é você”. No mundo virtual, o gratuito muitas tado artigo, isto é, de promover a proteção dos
vezes é pago com dados (Borelli, 2018), colhidos dados pessoais de crianças e adolescentes no
após a concordância com termos de uso e po- seu melhor interesse.
lítica de privacidade. Não se pode dizer que o Em primeiro lugar, a lei equivoca-se ao não
consentimento nestes casos é livre, informado englobar os adolescentes em seu âmbito de
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aplicação, especialmente os menores de 16 (de- parental tanto na infância quanto na adolescên-


zesseis) anos, considerando, dessa forma, que cia, entendemos que, no contexto atual, o uso
estes teriam plena capacidade para consentir da Internet e a socialização da criança nesse
sobre o tratamento de seus dados pessoais. Fato meio cria a necessidade de que os responsáveis
controverso, tendo em vista a sua incapacidade saibam estabelecer limites razoáveis. Deve-se
civil absoluta, nos termos do Código Civil, dis- atentar, portanto, que, para as novas gerações,
cernimento ainda em formação e seu desenvol- uma efetiva participação no ambiente virtual
vimento psicológico, marcado pela frequente caracteriza a expressão de direitos fundamen-
impulsividade a estímulos. tais, tais como a liberdade de expressão e de
Além disso, a legislação não é eficaz em pre- manifestação do pensamento. Dessa forma, im-
ver formas aptas a promover e confirmar a ve- põe-se que os adultos saibam balancear a efe-
racidade do consentimento dos pais ou res- tiva participação da criança e do adolescente
ponsáveis legais, ao contrário do COPPA, ato nesse meio, com sua proteção contra abusos.
normativo norte-americano, que traz previsão Nessa perspectiva, notamos de forma elo-
expressa nesse sentido. Tem-se, ainda, além da giosa a iniciativa legislativa de aliar o consenti-
barreira do consentimento verídico dos res- mento dos pais a práticas educativas e de cons-
ponsáveis legais, a barreira do consentimento, cientização da criança, respeitando a condição
de fato, livre e inequívoco, uma vez que não é desta, e possivelmente promovendo de forma
garantido aos usuários uma apresentação clara mais efetiva a sua proteção. No entanto, ape-
e inteligível das autorizações que estão sendo sar de enxergarmos barreiras para sua aplica-
concedidas. ção no âmbito prático, é possível vislumbrar
Assim, para assegurar a efetividade do con- a possibilidade de avanço em sua implantação
sentimento específico dos pais ou responsá- quando aliados os fatores da evolução tecnoló-
veis sobre o tratamento de dados, será neces- gica, implementação e fiscalização normativa
sário primeiro superar as referidas barreiras. em conjunto com a efetiva conscientização so-
Entende-se que isto pode ser realizado com a cial a respeito de dados pessoais.
união da previsão normativa com a atuação da Por fim, vale destacar que somente será pos-
Autoridade Nacional de Proteção de Dados e sível vislumbrar de forma mais clara as dificul-
dos órgãos de proteção ao consumidor, e, ainda, dades reais de efetividade da norma após sua
com a própria sociedade disponibilizando ino- entrada em vigor e possível regulamentação
vações tecnológicas que permitam um maior pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
controle dos dados coletados em rede. Até lá, no entanto, a relevância e sensibilidade
Nota-se, ainda, o papel fundamental da cons- do tema incentiva a discussão de forma apro-
cientização das diversas partes da sociedade fundada pela comunidade acadêmica, a fim de
quanto ao controle dos próprios dados dispo- promover, desde já, uma conscientização cole-
nibilizados na Internet. No tema em questão, tiva sobre o tema.
destacamos a necessidade de que os pais e res-
ponsáveis legais, bem como as próprias crian-
ças e adolescentes, sejam educados a respeito
do valor dos seus dados, dos perigos de sua dis-
ponibilização indiscriminada e sobre a identi-
ficação de abusos cometidos por produtores de
conteúdos.
Além disso, apesar de defendermos o controle
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Notas finais Art. 4º São incapazes, relativamente a certos


atos ou à maneira de os exercer: I–os maiores
de dezesseis e menores de dezoito anos;

1 Art. 14. O tratamento de dados pessoais 5 Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito
de crianças e de adolescentes deverá ser rea- anos completos, quando a pessoa fica habi-
lizado em seu melhor interesse, nos termos litada à prática de todos os atos da vida civil.
deste artigo e da legislação pertinente. Parágrafo único. Cessará, para os menores, a in-
capacidade: I–pela concessão dos pais, ou de
§ 1º O tratamento de dados pessoais de crian- um deles na falta do outro, mediante instru-
ças deverá ser realizado com o consentimento mento público, independentemente de homo-
específico e em destaque dado por pelo menos logação judicial, ou por sentença do juiz, ou-
um dos pais ou pelo responsável legal. (Grifo vido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos
nosso) completos;

2 Art. 2º Considera-se criança, para os 6 Tradução livre. Texto original: Art. 8


efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de GDPR. Conditions applicable to child’s consent
idade incompletos, e adolescente aquela entre in relation to information society services. 1)
doze e dezoito anos de idade. Where point (a) of Article 6(1) applies, in rela-
tion to the offer of information society services
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, directly to a child, the processing of the per-
aplica-se excepcionalmente este Estatuto às sonal data of a child shall be lawful where the
pessoas entre dezoito e vinte e um anos de child is at least 16 years old. 2Where the child
idade. (Grifos nossos) is below the age of 16 years, such processing
shall be lawful only if and to the extent that
3 De acordo com Caio Mário Pereira da consent is given or authorised by the holder of
Silva “aquele que se acha em pleno exercício parental responsibility over the child. Member
de seus direitos é capaz, ou tem a capacidade States may provide by law for a lower age for
de fato, de exercício ou de ação; aquele a quem those purposes provided that such lower age is
falta a aptidão para agir não tem a capacidade not below 13 years.
de fato. Regra é, então, que toda pessoa tem
a capacidade de direito, mas nem toda pessoa 7 De acordo com dados coletados em
tem a de fato. Toda pessoa tem a faculdade de junho de 2018 e publicados em janeiro de 2019,
adquirir direitos, mas nem toda pessoa tem o dos 28 países membros da União Europeia, 7
poder de usá-los pessoalmente e transmiti­los a adotam o limite de 13 anos, 5 o de 14 anos, 1
outrem por ato de vontade”. (Pereira, 2017, p. o de 15 anos e 15 o de 16 anos, com a possi-
223). bilidade de alterações legislativas (Milkaite &
Lievens, 2019).
4 Art. 3º São absolutamente incapazes de
exercer pessoalmente os atos da vida civil os 8 Tradução livre. Texto original: “In the
menores de 16 (dezesseis) anos. lack of an adequate age threshold analysis,
there is no way to understand how well does
the adopted threshold strike the balance bet-
ween data protection related risks and harms
248
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS

on one hand, and children’s rights (UNCRC) 11 Art. 14. O tratamento de dados pessoais
on the other. (...) The respective GDPR provi- de crianças e de adolescentes deverá ser rea-
sion might be the result of indiscriminating lizado em seu melhor interesse, nos termos
between younger children and younger teena- deste artigo e da legislação pertinente. § 5º O
gers. A recent research indicates that a divi- controlador deve realizar todos os esforços ra-
ding line might be drawn between the chil- zoáveis para verificar que o consentimento a
dren according to their school maturity,16 and que se refere o § 1º deste artigo foi dado pelo
it is this differentiation that GDPR legisla- responsável pela criança, consideradas as tec-
tors appear to have ignored completely. While nologias disponíveis.
it might be that younger children really do
not understand the implications of their on- 12 Segundo a GDPR, o controlador dos
line activities and data protection risks, tee- dados não deve medir esforços para garan-
nagers might be much more aware of those tir que o consentimento requerido foi efeti-
(even more than their parents) or might even vamente dado ou autorizado pelo responsá-
be using the internet services to connect with vel legal da criança, levando em consideração
their community through social networks in a tecnologia disponível. Ademais, prevê pro-
situations when they encounter problems and teção específica em relação aos dados pessoais
seek out the solution. Internet for teenagers is das crianças, haja vista o menor nível de cons-
a valuable source of news and possibilities for ciência destas quanto aos riscos, consequências
engagement, as well as an efficient tool for en- e salvaguardas em causa dos seus direitos em
gagement in civil society and environmental relação ao tratamento de dados pessoais.
issues, while GDPR could seriously jeopardize
all those indispensable benefits.” Tradução livre. Texto original: Art. 8 GDPR.
Conditions applicable to child’s consent in re-
9 Artigo 1 da Convenção sobre os Direitos lation to information society services (2) The
da Criança: “para efeitos da presente Convenção controller shall make reasonable efforts to ve-
considera-se como criança todo ser humano rify in such cases that consent is given or au-
com menos de dezoito anos de idade, a não thorised by the holder of parental responsibi-
ser que, em conformidade com a lei aplicável à lity over the child, taking into consideration
criança, a maioridade seja alcançada antes”. available technology. Recital 35. Special protec-
tion of children’s personal data. Children merit
10 Art. 227. É dever da família, da socie- specific protection with regard to their per-
dade e do Estado assegurar à criança, ao ado- sonal data, as they may be less aware of the
lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, risks, consequences and safeguards concerned
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à edu- and their rights in relation to the processing of
cação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, personal data. Such specific protection should,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convi- in particular, apply to the use of personal data
vência familiar e comunitária, além de colocá- of children for the purposes of marketing or
-los a salvo de toda forma de negligência, dis- creating personality or user profiles and the
criminação, exploração, violência, crueldade e collection of personal data with regard to chil-
opressão. dren when using services offered directly to a
child.
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13 Tradução livre. Texto original: §312.5 14 Art. 14. O tratamento de dados pessoais
Parental consent. (b) Methods for verifiable de crianças e de adolescentes deverá ser rea-
parental consent. (1) An operator must make lizado em seu melhor interesse, nos termos
reasonable efforts to obtain verifiable parental deste artigo e da legislação pertinente. § 6º As
consent, taking into consideration available te- informações sobre o tratamento de dados re-
chnology. Any method to obtain verifiable pa- feridas neste artigo deverão ser fornecidas de
rental consent must be reasonably calculated, maneira simples, clara e acessível, considera-
in light of available technology, to ensure that das as características físico-motoras, percepti-
the person providing consent is the child’s pa- vas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuá-
rent. (2) Existing methods to obtain verifiable rio, com uso de recursos audiovisuais quando
parental consent that satisfy the requirements adequado, de forma a proporcionar a informa-
of this paragraph include: (i) Providing a con- ção necessária aos pais ou ao responsável legal
sent form to be signed by the parent and re- e adequada ao entendimento da criança.
turned to the operator by postal mail, facsi-
mile, or electronic scan; (ii) Requiring a parent,
in connection with a monetary transaction, to
use a credit card, debit card, or other online
payment system that provides notification of
each discrete transaction to the primary ac-
count holder; (iii) Having a parent call a toll-
-free telephone number staffed by trained per-
sonnel; (iv) Having a parent connect to trained
personnel via video-conference; (v) Verifying
a parent’s identity by checking a form of go-
vernment-issued identification against data-
bases of such information, where the parent’s
identification is deleted by the operator from
its records promptly after such verification is
complete; or (vi) Provided that, an operator
that does not “disclose” (as defined by §312.2)
children’s personal information, may use an
email coupled with additional steps to pro-
vide assurances that the person providing the
consent is the parent. Such additional steps in-
clude: Sending a confirmatory email to the pa-
rent following receipt of consent, or obtaining
a postal address or telephone number from the
parent and confirming the parent’s consent by
letter or telephone call. An operator that uses
this method must provide notice that the pa-
rent can revoke any consent given in response
to the earlier email.
Recebido em 30/06/2019
Aceito em 18/12/2019
250

ARTIGO

A experiência de
governo eletrônico
do Judiciário
brasileiro: estudo de
caso dos Tribunais
de Justiça

Vânia de Oliveira Alves


Mestra em Projetos Educacionais de Ciências
(EEL/USP). Mentora de jovens cientistas no
Programa Decola Beta Estudantes 2019. E-mail:
vaniaalves@usp.br.
251
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES

A experiência de governo
eletrônico do Judiciário
brasileiro: estudo de caso dos
Tribunais de Justiça

Palavras-chave Resumo
governo eletrônico A jurisprudência é uma das principais mani-
e-gov festações do Direito e impacta diretamente
jurisprudência a vida social, especialmente em searas como
transparência a justiça constitucional e a defesa de direitos
Tribunal de Justiça sociais e difusos. A adoção das Tecnologias da
Comunicação e Informação pelos governos e
o advento da Lei da Transparência motivaram
órgãos do Poder Judiciário a divulgar grande
conjunto de dados, inclusive jurisprudenciais,
de forma espontânea. No entanto, para que esta
gama de informações venha a subsidiar uma
maior participação popular, é necessário que
o cidadão tenha facilidade em acessá-las e em
compreendê-las. Por isso, foi realizada uma
pesquisa qualitativa, de cunho exploratório e
descritivo, para analisar a usabilidade de por-
tais dos vinte e sete Tribunais de Justiça bra-
sileiros, com foco na ferramenta de busca por
jurisprudência, e também a apreensibilidade
da linguagem jurídica presente nas interfaces
de busca e nos resultados fornecidos. Foi ve-
rificada a ausência de padronização das inter-
faces dos diferentes portais e a adoção parcial
das recomendações de usabilidade. Quanto à
apreensibilidade, a presença de termos jurídi-
cos na interface de coleta de dados continua
oferecendo barreiras ao cidadão leigo, embora
parte dos portais avaliados demonstre preo-
cupação com a melhoria desse aspecto. Como
conclusão, nota-se a tendência de aperfeiçoa-
mento das práticas de governo eletrônico dos
Tribunais de Justiça, rumo a um cenário de in-
teração mais efetiva com a sociedade.
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PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES

The experience of
e-government in the
Brazilian Judiciary
Power: a case study
of Courts of Justice

Keywords Abstract
electronic government Jurisprudence is one of the main manifesta-
e-gov tions of Law and has a direct impact on social
jurisprudence life, especially in fields such as constitutional
transparency justice and the defense of social and diffuse
Court of Justice rights. Not only the adoption of Information
and Communication Technologies by Brazilian
governments but also the enactment of the
Brazilian Transparency Act motivated Judiciary
government entities to publish spontaneously
a large set of data, including jurisprudence. But
the desired popular engagement from these ac-
tions will only be effective when the citizens
could access and understand easily this infor-
mation. Therefore, a qualitative, exploratory
and descriptive study was carried out in portals
from twenty-seven Brazilian Courts of Justice.
They were analyzed in relation to usability, fo-
cusing on search tools for jurisprudence, and
to apprehensibility of legal language in these
search interfaces and in their results. It was ve-
rified absence of standardization among inter-
faces of different portals and partial adoption
of usability guidelines. Regarding apprehensi-
bility, legal terms present on these interfaces
still offer barriers to citizens, although some
of these portals concern over the improvement
of this aspect. Finally, there is a tendency to
improve e-government practices of the Courts
of Justice, towards a scenario of more effective
interaction between these entities and society.
253
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1. Introdução a pela população brasileira. Na zona urbana,


por exemplo, 70% dos domicílios têm acesso
à Internet, contra 44% dos domicílios na zona
O atual estágio de (oni)presença das varia- rural. No que se refere às desigualdades de
das Tecnologias de Informação e Comunicação renda, 99% dos domicílios da classe A dispõem
(TICs) na sociedade é considerado, por muitos de acesso à Internet, índice que cai para 94% e
pesquisadores, responsável pela configuração 76% nas classes B e C, respectivamente, e atinge
de um novo patamar de desenvolvimento, a apenas 40% dos domicílios das classes D e E.
era das conexões (Lemos, 2018). Nela, as TICs (Comitê Gestor da Internet, 2019). Tais dados
têm exercido forte influência não apenas sobre reforçam o apontamento de Warschauer (2002)
a forma como as relações sociais são estabele- e de Przeybilovicz, Cunha, & Meirelles (2018),
cidas, mas também sobre a reinterpretação de para quem a exclusão pode inclusive ser in-
conceitos associados a essas relações–tais como tensificada por meio das TICs, dada a proba-
participação, transparência e democracia (Aires, bilidade de que elas provenham acesso à in-
Palmeiro, & Pereda, 2019; Alcântara, & Lima, formação apenas aos indivíduos com formação
2019; Bezerra et al., 2019). educacional mais elevada e com maior dispo-
Em decorrência desse panorama, que perma- nibilidade de recursos.
nece em transformação, os governos brasileiros Em segundo lugar, o processo histórico bra-
precisaram adaptar suas práticas. Desde o anos sileiro implicou no desenho de uma estrutura
2000, com a publicação de diretrizes que ex- estatal com caráter eminentemente autoritário
plicitaram papéis, ações e normas aplicáveis às (Schwartzman, 2015, pp. 240-46). Esse aspecto
diferentes esferas (Federal, Estadual/ Distrital e foi transportado também para o ambiente vir-
Municipal) e Poderes (Executivo, Legislativo e tual, sendo identificável, por exemplo, no de-
Judiciário) (Padrões web em governo eletrônico senho das interfaces web disponibilizadas à po-
e-PWG: cartilha de codificação, 2010; Padrões pulação (Coan, 2019; Freire, Sierra, & Araújo,
web em governo eletrônico e-PWG: cartilha de 2018; Lobo, 2016).
usabilidade, 2010), a principal estratégia ado- Em meio a esse contexto, o acesso à justiça
tada pelos entes federativos foi a criação de pá- tem despontado como um dos principais di-
ginas institucionais (sites) na Internet, de acesso reitos fundamentais, já que, a partir dele, o
público, com o intuito de divulgar o rol de ser- cidadão consegue requerer do Estado os de-
viços oferecidos e também informações sobre mais direitos de que é portador (Bezerra et al.,
projetos e programas em andamento (Araújo, 2019). A crescente judicialização da sociedade
Reinhard, & Cunha, 2018; Santos, Bernardes, elevou, no entanto, não apenas o número de
Rover, & Mezzaroba, 2013). casos a serem julgados, mas também a neces-
Ainda que esse primeiro objetivo–a pre- sidade de que tais processos e seus respectivos
sença online–tenha sido alcançado, é preciso encaminhamentos sejam devidamente com-
fazer algumas ressalvas. A primeira delas re- preendidos–em primeiro lugar, pelas partes
fere-se à expressão “acesso público”, cujo sig- envolvidas, com interesse direto na solução da
nificado deve ser interpretado no contexto da controvérsia, mas também por toda a socie-
exclusão digital que ainda assola o país. Dados dade, que deseja gozar de segurança jurídica e
mais recentes da pesquisa TIC Domicílios, or- da certeza de julgamentos em consonância com
ganizada pelo Comitê Gestor da Internet no os princípios constitucionais (Neves, Alves, &
Brasil (CGI-BR), indicam a persistência de um Luxinger, 2018). Para propiciar tal controle so-
provimento assimétrico do acesso à web para cial, o Judiciário brasileiro tem investido nas
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TICs, particularmente no que se refere à dis- 2. Quadro referencial


ponibilização das ementas e do inteiro teor de
processos judiciais em curso e dos já encerra-
dos–material que, no jargão jurídico, recebe a
alcunha de jurisprudência (Araújo, Reinhard, 2.1. Governo
& Cunha, 2018). Tal movimento, viabilizado eletrônico e a
pela Lei 12.527/2011, conhecida também como
Lei de Acesso à Informação ou ainda Lei da Lei de Acesso
Transparência, foi impulsionado no âmbito do à Informação
Judiciário com alguns anos de antecedência, a
partir da promulgação da Lei 11.419/2006, re- O Governo Eletrônico, ou e-GOV, é um
ferente à informatização do processo judicial. conceito que abarca múltiplas interpreta-
No que se refere à presença online de ór- ções. Em uma perspectiva mais restrita, tra-
gãos do Poder Judiciário, é preciso mencionar ta-se do governo que faz uso das Tecnologias
outra barreira importante, a da linguagem. O da Informação e Comunicação (TICs) para ofe-
discurso e a redação de cunho jurídico envol- recer à população estruturas modernizadas de
vem uma gama de particularidades capazes informação e atendimento, dentro da estru-
de gerar ruídos na comunicação, não só entre tura intitulada government-to-citizen (Hassan &
os próprios operadores do Direito, mas entre Twinomurinzi, 2018). Nesta acepção, o e-GOV
eles e seus clientes, e ainda mais na interface é o meio pelo qual o ente público disponibi-
com o cidadão não iniciado nos ritos jurídicos liza serviços e produtos ao cidadão, que sim-
(Coelho et al., 2019; Maia, Silva, & Silva, 2018; plesmente os adquire, e aumenta a sua efi-
Stocker, Freitas, & Langoski, 2019). ciência administrativa. Já numa perspectiva
Diante disso, o presente estudo analisa os mais ampla, os termos “governo eletrônico” e
sites corporativos dos vinte e sete Tribunais de “e-GOV” são, por vezes, substituídos pela ex-
Justiça (TJs) brasileiros com foco na ferramenta pressão “governança eletrônica”, referindo-se
de consulta à jurisprudência. O objetivo é ava- à adoção das TICs para ampliar a participação
liar a usabilidade da busca jurisprudencial em cidadã e a transparência, favorecendo o debate
cada um desses portais, com base em norma- público e estimulando a prática democrática
tivas recomendadas pela literatura para pági- (Oliveira et al., 2019; Przeybilovicz, Cunha, &
nas governamentais, e a apreensibilidade, com Meirelles, 2018). A governança eletrônica asso-
base em diretrizes para a adequação da lingua- cia o uso intensivo das TICs ao “redesenho da
gem jurídica ao público leigo. Espera-se, com geopolítica informacional no quadro da globa-
este trabalho, fornecer subsídios para que os lização, aos redimensionamentos organizacio-
Tribunais de Justiça alinhem seus sites a parâ- nais e simbólicos do aparelho de Estado-Nação
metros de usabilidade e apreensibilidade que e às novas agendas sociais no plano local, na-
garantam ao cidadão não apenas o acesso, mas cional e transnacional” ( Jardim, 2007).
a efetiva compreensão das informações juris- A transição brasileira para esta concepção
prudenciais disponibilizadas. Para tanto, o ar- ampliada de Governo Eletrônico, no entanto,
tigo é composto por um quadro referencial, se- não foi um processo trivial. Apesar das expe-
guido pela metodologia, análise e discussão dos riências de participação popular que sucederam
resultados e as considerações finais. a redemocratização, vários entraves, como os li-
gados aos legados colonial e ditatorial, forjaram
uma identidade governamental conservadora e
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resistente à interação com a sociedade, reque- aplicação de técnicas que priorizam a experiên-
rendo, para além de soluções tecnológicas para cia do usuário, ou seja, que facilitam o uso dos
a produção, o uso e a difusão de informação sites e asseguram que qualquer pessoa, durante
governamental, o desenvolvimento de um pro- a interação, consiga utilizá-los da forma espe-
jeto político (Pinho, 2008; Jardim, 2007). Além rada e, idealmente, sem obstáculos (Longaray,
dessas características, ainda não totalmente su- Silva, Munhoz, Machado & Tondolo, 2018). Isto
peradas, a Carta Magna de 1988 estabelece o significa que os “sistemas devem ser fáceis de
princípio constitucional da Legalidade para as usar e de aprender, flexíveis”, facilitando a in-
ações da Administração Pública, o que implica teração entre pessoas e máquinas e o sucesso
em dizer que o poder público deve agir estri- na realização dos comandos desejados (Benyon,
tamente de acordo com o que a lei o autoriza a 2011, pp. 49-53).
fazer (França, 2014). Assim, diante do impasse É um critério a ser considerado desde a con-
de que a implementação de novas formas de re- cepção das interfaces web, com design centrado
lacionamento entre governo e cidadãos deman- no ser humano, e vem recebendo contribuições
dava o devido subsídio legal, foi instituída a Lei incrementais na literatura especializada (Bevan,
12.527/11, mais conhecida como Lei de Acesso à 1995; Furtado, 2016; Jacob, 2015; Nielsen &
Informação ou Lei da Transparência. Em seus Loranger, 2007; Petrie & Kheir, 2007). Para esse
quarenta e sete artigos, a Lei da Transparência conjunto de autores, a avaliação da usabilidade
não só define condições de acesso e de divul- é fundamental e não se limita à interface física
gação de dados por parte dos órgãos públicos e dos sistemas, mas estende-se aos seus requi-
as responsabilidades em caso de negativa de in- sitos de funcionamento e ao componente hu-
formações, como também introduz o conceito mano presente na interação. Para além desta
de publicidade como regra–enquanto o sigilo, base conceitual, comum a todas as plataformas,
resguardado em casos específicos, passa a ser diretrizes de usabilidade diferenciadas podem e
uma exceção. devem ser desenvolvidas de acordo com o seu
Nesse contexto, as TICs destacam-se como o contexto de uso. No âmbito da educação, por
principal canal para que os governos disponi- exemplo, Cunha (2019) estudou a relevância
bilizem informações sem a necessidade de pro- da usabilidade em um sistema integrado de bi-
vocação, em uma postura chamada de “trans- bliotecas universitárias, enquanto Silva (2019) o
parência ativa” (Santos & Rocha, 2019; Silva & fez para o contexto de cursos técnicos à distân-
Vakovski, 2015). cia. Em relação à aplicativos e serviços online,
Oliveira, Seabra e Mattedi (2019), Cilumbriello
et al (2019) e Macedo, Veloso e Costa (2019) ava-
2.2. A usabilidade liam, respectivamente, a usabilidade de um app
de portais de segurança colaborativa para smartphones,
de um software para design de interiores e de
jurídicos um serviço de “e-faturas” voltado a pessoas em
idade avançada.
O fortalecimento da transparência e do con- É necessário, portanto, dispor de modelos
trole social no âmbito do Poder Judiciário de- especialmente desenvolvidos e validados para
pende fortemente da usabilidade dos portais indicar o grau de usabilidade de sites gover-
de cada um dos entes governamentais que o namentais. Nesse sentido, o próprio Governo
integram. Federal publicou o Modelo de Acessibilidade
O termo usabilidade refere-se ao estudo e à do Governo Eletrônico (ou eMAG) (Brasil, 2014),
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que compila diretrizes disponíveis na literatura acordo com o nível médio de escolaridade da
internacional a fim de aprimorar a usabilidade população e em estratégias de simplificação
de interfaces web governamentais. Dentre os e de apreensibilidade de textos, como o Plain
pontos a serem observados, estão: Language (Webb & Geyer, 2019).
a) Contexto e navegação: o usuário deve na- No caso de portais vinculados ao Poder
vegar com facilidade entre links e menus, dis- Judiciário, a importância do aspecto textual
por de um mapa do site, além de conseguir na usabilidade é ainda mais evidente, dadas as
identificar com clareza a função e a identidade peculiaridades da linguagem jurídica. Os ope-
de cada página ( já que as páginas internas de radores do Direito têm como principal ferra-
um site podem ter sido encontradas a partir de menta de trabalho a palavra, especialmente em
mecanismos de externos de busca, indepen- sua forma escrita; por meio dela, dão defini-
dente de visita à página inicial–home); ções, descrevem processos, compartilham e le-
b) Carga de informação: os elementos da in- gitimam “a doutrina, a jurisprudência e a le-
terface (links, ícones, cores, fundos, menus) gislação” (Carneiro & Murrer, 2018; Souza et
devem ser planejados com o intuito de facilitar al., 2017). A interdependência entre palavra e
a apreensão das informações; Direito é marcada por uma espécie de dialeto,
c) Autonomia: o usuário deve ter autonomia a Linguagem Jurídica, de difícil compreensão
ao escolher o navegador web de sua preferên- fora da esfera judiciária. A alcunha “juridi-
cia, e ao optar por abrir (ou não) novas abas e quês”, originada no âmbito popular e tornada
janelas; representativa dessa barreira de comunicação,
d) Erros: o usuário deve ser esclarecido abrange esse vasto conjunto de termos e hábi-
prontamente sobre falhas e indisponibilidades tos adotados por profissionais do Direito, mas
no sistema e ter facilidade ao corrigir erros que passíveis de adaptações em nome da clareza e
ele mesmo tenha cometido. da objetividade, tais como (Carneiro & Murrer,
e) Desenho: as informações devem ser legí- 2018):
veis e com estética agradável, facilitando a de- a) Adoção de títulos e subtítulos que infor-
codificação dos dados durante a interação; mem sobre, ou resumam, o texto subsequente;
f ) Consistência e Familiaridade: o site deve b) Retirada de informações não essenciais;
ser familiar, intuitivo e fazer uso de convenções. c) Apresentação de informações importantes
g) Redação: textos devem ser diagramados e logo no início;
redigidos levando em conta a audiência do por- d) Incorporação de gráficos, planilhas ou
tal, frases e conceitos familiares ao usuário, cla- imagens na apresentação de temas complexos;
reza e objetividade. e) Criação de sumários e/ou introduções em
Além dos itens anteriores, que enfocam ma- documentos grandes e/ou com muitos itens.
joritariamente o aspecto gráfico das interfaces, f ) Explicação de uma única ideia por
pesquisadores como Lehnhart, Rampelloto, sentença;
Vieira e Löbler (2015) e Martins e Filgueiras g) Elaboração de sentenças com até trinta e
(2007) reforçam a importância de estabelecer cinco palavras, em média;
parâmetros de usabilidade específicos para o h) Uso de verbos, e não de substantivos, para
aspecto textual, ou seja, para a redação, con- exprimir ação (p. ex. “para documentar” x “para
siderando o grande volume de informações a documentação”);
apresentado na forma escrita nos portais go- i) Uso de sentenças positivas;
vernamentais. Nesse sentido, sugerem um j) Adoção de sintaxe simples;
processo de readequação das informações, de k) Uso da linguagem cotidiana em detrimento
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de jargões, arcaísmos e latinismos. 2.3.


Em relação ao último item, “jargões” são Jurisprudência:
expressões em desuso, não necessariamente
técnicas, que podem ser substituídas por si- conceito,
nônimos de uso difundido, sem prejuízos em relevância e a
relação à carga de significados, a exemplo da organização da
troca de “exordial ministerial” e “nosocômio”
por “denúncia” e “hospital”, respectivamente. Justiça no Brasil
“Arcaísmos” (ou preciosismos) referem-se a pa-
lavras de sentido obscuro e sem relevância para Como já foi dito, a compreensão do amplo
o relato, acrescidas intencionalmente para tor- conjunto das decisões judiciais pelo cidadão
ná-lo mais rebuscado. Por sua vez, certos “la- leigo pode ser dificultada pela necessidade de
tinismos”, ou seja, termos em latim, também inúmeros esclarecimentos, seja em relação ao
são substituíveis por palavras de uso cotidiano, fluxo de um processo judicial, ao conceito de
como a equivalência entre “modus operandi” e “jurisprudência” (e de termos e expressões ine-
“procedimento” (Carneiro & Murrer, 2018). rentes à sua pesquisa), ou ainda à própria orga-
Fröhlich (2015) reporta casos bem-sucedidos nização do Poder Judiciário brasileiro.
de adoção dessas estratégias e recomenda aos Em relação ao fluxo do processo judicial,
operadores do Direito uma mudança de hábito quando partes em desacordo decidem apresen-
na redação jurídica, endossada por magistra- tar uma questão contraditória à justiça, cabe
dos, que leve em conta também a superação de aos juízes de primeiro grau o julgamento na
entraves de ordem linguístico-gramatical (or- primeira instância. Dada a sentença, se uma das
tografia, regência, concordância, pontuação) e partes discorda, ela pode recorrer à segunda
de coerência (repetição, progressão, não-con- instância. A causa, então, será julgada nova-
tradição, relação), com o objetivo de aproximar mente, mas agora por um colegiado que decide
a sociedade da prestação jurisdicional. se mantém ou não a decisão anterior. À decisão
Não se trata, evidentemente, de eliminar por colegiada em segunda instância é dada o nome
completo os termos técnicos necessários à prá- de “acórdão”. Há ainda outra modalidade de
tica jurídica ou à discussão de temas científicos decisão (ou sentença), denominada “monocrá-
e filosóficos, mas de alcançar o equilíbrio entre tica”, que é proferida por um único magistrado
simplicidade e precisão, facilitando a comuni- e característica do julgamento em primeira ins-
cação com a sociedade. O Direito, tomado no tância (apesar de permitida, em casos específi-
âmbito sociológico, é fato social que emerge cos, nas instâncias superiores). As decisões mo-
e retroalimenta as inter-relações sociais. Por nocráticas, embora também ofereçam subsídio
consequência, os impactos de sua linguagem à decisão, não são consideradas “jurisprudên-
estendem-se a toda a população. cia” na acepção mais estrita do termo, por não
se tratarem de decisões colegiadas (Tucci, 2018).
Quanto à jurisprudência, o seu sentido eti-
mológico remete a Jus ( justo) e Prudente (pru-
dência), ou seja, “justa prudência”. Refere-se ao
conjunto de decisões dadas em um mesmo sen-
tido, por um tribunal de justiça, no exercício
da aplicação da lei e em um determinado mo-
mento histórico. A chamada “jurisprudência
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unificada” contém, portanto, a visão de um romano do non liquet, em que a ausência de pre-
determinado tribunal em relação a casos que visão legal permitia ao juiz eximir-se da obri-
contemplam questões parecidas levadas a jul- gação de julgar. Por isso, mesmo que o juiz não
gamento. Caso um tribunal já possua sólido en- atue como legislador positivo (o que extrapo-
tendimento sobre determinado tema, ele pode laria a competência do Poder Judiciário), existe
produzir um documento intitulado “súmula”, uma relativa discricionariedade no papel de-
que uniformiza a jurisprudência já publicada cisório nos casos concretos sem previsão legal
por aquele órgão sobre o assunto. explícita, que atende a anseios e demandas da
É preciso destacar, no entanto, que a juris- sociedade e que indica aos legisladores a ne-
prudência não tem função coercitiva, isto é, não cessidade de preencher as lacunas identificadas.
obriga um tribunal a decidir nesta ou naquela Essa concomitância das funções pragmática,
direção. Ainda assim, na prática, decisões reite- adaptativa e criativa da jurisprudência gera re-
radas fornecem um importante norte para a in- flexos em toda a vida social, notadamente em
terpretação e a aplicação do Direito (Lenzi, s.d.). searas como a justiça constitucional e a prote-
Apenas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ção de direitos sociais e interesses difusos, daí
competência para redigir súmulas de cunho a grande importância do acesso à jurisprudên-
vinculante, ou seja, que obrigam os demais tri- cia como ferramenta de controle social junto
bunais a tomarem decisões em um mesmo sen- ao Poder Judiciário. O rico material informa-
tido. Isso acontece quando o STF já emitiu inú- tivo proporcionado pela jurisprudência dos
meras decisões sobre casos semelhantes. diferentes tribunais deve, portanto, ser ofere-
Notadamente após o advento da Constituição cido à população de forma clara, transparente
de 1988, a jurisprudência brasileira passou a e acessível, ressalvados os casos que transitam
exercer três funções complementares: a prag- em segredo de justiça. Nesse sentido, é comum
mática, que norteia a aplicação da lei em um que os tribunais disponibilizem em seus por-
caso concreto; a adaptadora, que harmoniza o tais, por meio da ferramenta de busca juris-
texto legal com as demandas e ideais contem- prudencial, o inteiro teor (isto é, o documento
porâneos; e a criativa, que preenche lacunas, integral do processo) e também a ementa (uma
ou seja, questões não claramente previstas na espécie de cabeçalho, que resume o conteúdo
legislação em vigor (Breves comentários à ju- do documento em questão).
risprudência brasileira: conceito, evolução his- Outra dificuldade envolvida no acesso à ju-
tórica, aplicação e efeitos, 2002). risprudência pelo público leigo está associada
Assim, dentro da função pragmática, a ju- ao desconhecimento da própria composição
risprudência fornece a fundamentação para do sistema judiciário–e, por consequência, de
que juízes formem o seu livre convencimento onde e como efetuar as pesquisas jurispruden-
motivado e possam emitir suas decisões. Na ciais. Entre as diferentes instâncias de tribunais
função adaptativa, a jurisprudência orienta a colegiados, no topo, está o Supremo Tribunal
decisão a ser tomada e como a lei deve ser in- Federal (STF), dedicado a questões ligadas di-
terpretada diante de um caso concreto, unifor- retamente à Constituição, casos de extradi-
mizando julgamentos de situações semelhan- ção solicitados por Estado estrangeiro e tam-
tes. Em sua função criadora, a jurisprudência bém de habeas corpus de cidadãos brasileiros.
torna-se fonte do Direito, já que ao juiz é ve- Para questões não vinculadas diretamente à
dado o direito de deixar de julgar o que lhe for Constituição, a última instância é o Superior
submetido, mesmo diante de eventuais lacunas Tribunal de Justiça (STJ). Na hierarquia, abaixo
na lei. Esta função contrapõe-se ao princípio deles, estão os Tribunais Regionais Federais
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(TRFs), em número de cinco, e os Tribunais de eMAG e adaptadas ao formato de checklist por


Justiça (TJs), em número de vinte e sete, se- Melo (2018), e de apreensibilidade do texto ju-
diados nas capitais de cada Estado brasileiro e rídico. Dado o espaço disponível, optou-se
do Distrito Federal. O Tribunal de Justiça é um por apresentar a descrição sumária (subitem
órgão colegiado constituído por juízes de se- 2.2) e detalhar sua aplicação prática ao longo
gunda instância, chamados de “desembargado- da apresentação e discussão dos resultados. O
res”. Em paralelo a esta estrutura, há também checklist foi aplicado e utilizado para a análise
outros tribunais superiores e regionais dedica- dos resultados, a fim de evidenciar o atendi-
dos a causas específicas, como as trabalhistas, mento (ou não) dos critérios de usabilidade e
eleitorais e militares. de apreensibilidade do texto jurídico nos por-
Apresentados os aspectos relevantes para tais selecionados.
a interpretação das particularidades dos por- A visita aos portais ocorreu em triplicata, nos
tais de busca jurisprudencial, é apresentada a dias 19, 25 e 29 de junho de 2019, sendo que
seguir a metodologia adotada neste trabalho. em cada um desses dias foram acessados os
Antes, porém, registra-se a ressalva em relação portais de todos os tribunais selecionados. A
ao uso de sites como referência para a redação motivação para a triplicata se deu em função
deste item, justamente em decorrência da ca- da necessidade de averiguar eventuais instabi-
rência de artigos que abordem tais conceitos lidades e/ou indisponibilidades de acesso à fer-
e definições de forma compreensível pelo pú- ramenta de pesquisa jurisprudencial dos sites
blico acadêmico não vinculado à área jurídica. nesse intervalo.
Optou-se pela consulta aos portais a partir
de um computador (desktop), equipamento
3. Metodologia que continua sendo utilizado por 39% dos do-
micílios brasileiros para o acesso à Internet,
proporção que se manteve estável nos últi-
A pesquisa possui abordagem qualitativa, de mos cinco anos. É importante destacar, no en-
caráter exploratório, pois investiga a usabili- tanto, o crescimento do acesso à Internet em
dade de portais governamentais jurídicos, tor- aparelhos como tablets e smartphones, que já
nando-a um problema explícito e fornecendo respondem por 28% do total de acessos, pro-
sugestões de aperfeiçoamento, e também des- porção que quadruplicou no mesmo período
critiva, porque a análise dos portais permitiu a (Comitê Gestor da Internet, 2019).
identificação e a descrição de elementos rele- Para a busca de jurisprudência, foram inse-
vantes para o estudo. Foi realizado um estudo ridas as seguintes palavras-chave, consecutiva-
de casos múltiplos (Yin, 2001), em que foram mente e em cada um dos portais: “facebook”
selecionados portais de governo eletrônico dos (com inicial minúscula), “Facebook” (com ini-
vinte e sete Tribunais de Justiça (TJs) brasilei- cial maiúscula) e também “facebok” (grafada
ros, com foco no procedimento que cada um intencionalmente com uma letra a menos, para
deles disponibiliza para a consulta de jurispru- avaliar se os sites ofereceriam ao usuário men-
dência no modo acesso público–ou seja, sem sagens de erro e/ou sugestões de correção).
necessidade de cadastro e/ou requisição prévia
de dados.
Como procedimento metodológico, foi rea-
lizado inicialmente o levantamento de diretri-
zes de usabilidade, recomendadas pela Cartilha
260

4. Resultado e Análise mais adequada de preencher os campos de


da ferramenta de busca pesquisa. Já o TJGO e o TJMT oferecem link de
ajuda com orientações sobre o preenchimento
de jurisprudência dos adequado de cada campo. No caso do TJMT, no
Tribunais de Justiça entanto, após longo tempo carregando, essa pá-
gina de ajuda reportou o erro 504 (gateway time-
-out) nas três tentativas de acesso.
O TJDFT foi o único portal a disponibili-
Diretriz 1 – zar um chat online para o suporte ao usuário
Contexto e na busca de jurisprudência, ativo das 12h às
18h30 nos dias úteis. Nos demais tribunais,
navegação foram oferecidos apenas o contato via formu-
lário e telefones (dos tribunais e das respectivas
A maioria dos portais permitiu a visibilidade ouvidorias), na maioria das vezes (à exceção do
do status do sistema, ou seja, a localização de TJSP) sem informação detalhada sobre o fun-
quaisquer das páginas acessadas em relação à cionamento nos fins de semana e feriados, e,
página inicial [Figura 1]. Os tribunais TJMT, TJPI no caso dos formulários, qual o prazo para que
e TJMS não permitiram a visualização do status o tribunal dê resposta à solicitação do usuá-
em nenhuma das páginas. Nas páginas de busca rio. O TJMS disponibilizou, lado a lado, os links
jurisprudencial, essa funcionalidade esteve pre- “Telefones Úteis”, “Ouvidoria” e “Fale Conosco”,
sente no TJPE e também no TJAC, TJCE, TJMS, que podem causar confusão em relação à qual
TJRN e TJSP, que fazem uso da ferramenta de ferramenta de contato é a mais adequada, de-
consulta processual e-SAJ, e no TJDFT. pendendo da demanda do usuário.
Todos os portais
oferecem a caixa de
pesquisa de informa-
ções, em todas as pá-
ginas internas e em
posição convencional
(no topo, à direita).
Em todos os portais,
foi oferecido tam-
bém o acesso à base
de dados jurispru-
[Figura 1] No destaque em vermelho, a indicação de localização de denciais, com a opção
página interna do portal do TJDFT em relação à página inicial de busca simples ou
avançada, ambas com
resultados satisfató-
Poucos portais disponibilizam documentos rios. Os formulários tinham interface amigá-
ou tutoriais de apoio à consulta jurispruden- vel ao usuário, exceto pela presença de ter-
cial. O TJCE oferece link informativo sobre o mos técnicos jurídicos que serão descritos na
uso adequado dos operadores lógicos booleanos Diretriz 7–Redação. A exceção foi o formulário
“E”, “OU”, “NÃO”, mas não quanto ao teor dos de busca jurisprudencial disponibilizado pelo
documentos disponibilizados ou sobre a forma TJMA, em que a consulta de acórdãos só era
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possível mediante o número do processo ou a endereço dos portais e pode, inclusive, inferir
data de julgamento – ambas as informações in- qual o link do TJ de outros Estados da federação.
disponíveis ao cidadão comum. Assim, o acesso No entanto, o acesso às ferramentas de busca
às ementas e ao inteiro teor dos acórdãos do jurisprudencial a partir da página inicial varia
TJMA não pôde ser avaliado neste artigo. muito de portal a portal, algumas delas exi-
O endereço (URL) das páginas iniciais dos gindo a navegação em páginas intermediárias,
portais é padronizado por meio da associa- resultando em um acesso não intuitivo, com
ção da sigla do Tribunal de Justiça (TJ) à sigla URLs complexas, e que obrigam o usuário a
do Estado ou do Distrito Federal e Territórios abrir novas abas ou janelas. Todos os endereços
(DFT) e ao domínio <jus.br>. Com isso, o dos portais acessados nesta pesquisa são forne-
usuário não encontra dificuldade ao digitar o cidos na [Tabela 1] .

[Tabela 1] Endereços dos portais dos Tribunais de Justiça acessados nesta pesquisa

Estado URL–Inicial URL–Busca Jurisprudencial

Acre http://www.tjac.jus.br/ https://esaj.tjac.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do

Alagoas http://www.tjal.jus.br/ http://www.jurisprudencia.tjal.jus.br/

Amapá http://www.tjap.jus.br/ http://tucujuris.tjap.jus.br/tucujuris/pages/consultar-


-jurisprudencia/consultar-jurisprudencia.HTML

Amazonas http://www.tjam.jus.br/ https://consultasaj.tjam.jus.br/esaj/portal.


do?servico=789900

Bahia http://www.tjba.jus.br/ https://www.tjba.jus.br/jurisprudencia/

Ceará http://www.tjce.jus.br/ https://esaj.tjce.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do

Distrito Federal e http://www.tjdft.jus.br/ https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-


Territórios web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscain-
dexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao

Espírito Santo http://www.tjes.jus.br/ http://aplicativos.tjes.jus.br/sistemaspublicos/consulta_


jurisprudencia/cons_jurisp.cfm

Goiás http://www.tjgo.jus.br/ https://www.tjgo.jus.br/jurisprudencia/juris.php

Maranhão http://www.tjma.jus.br/ http://jurisconsult.tjma.jus.br/#/home

Mato Grosso http://www.tjmt.jus.br/ http://jurisprudencia.tjmt.jus.br/consulta


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Mato Grosso do Sul http://www.tjms.jus.br/ https://esaj.tjms.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do

Minas Gerais http://www.tjmg.jus.br/ https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/formEspe-


lhoAcordao.do

Pará http://www.tjpa.jus.br/ http://gsa-index.tjpa.jus.br/consultas/search?q=&clien-


t=consultas&proxystylesheet=consultas&site=jurispru-
dencia&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&aba=JP

Paraíba http://www.tjpb.jus.br/ http://juris.tjpb.jus.br/search?site=jurisp_digitalizada&-


client=tjpb_index&output=xml_no_dtd&proxystyle-
sheet=tjpb_index&proxycustom=%3CHOME/%3E

Paraná http://www.tjpr.jus.br/ https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/

Pernambuco http://www.tjpe.jus.br/ http://www.tjpe.jus.br/consultajurisprudenciaweb/


xHTML/consulta/consulta.xHTML

Piauí http://www.tjpi.jus.br/ http://www.tjpi.jus.br/e-tjpi/home/jurisprudencia

Rio de Janeiro http://www.tjrj.jus.br/ http://www4.tjrj.jus.br/ejuris/ConsultarJurisprudencia.


aspx

Rio Grande do Norte http://www.tjrn.jus.br/ http://esaj.tjrn.jus.br/cjosg/

Rio Grande do Sul http://www.tjrs.jus.br/ http://www.tjrs.jus.br/


busca/?tb=jurisnova#main_res_juris

Rondônia http://www.tjro.jus.br/ http://webapp.tjro.jus.br/juris/consulta/detalhesJuris.


jsf ?ementa=[TERMOPESQUISADO]&fe=null

Roraima http://www.tjrr.jus.br/ http://jurisprudencia.tjrr.jus.br/juris/

Santa http://www.tjsc.jus.br/ http://busca.tjsc.jus.br/


Catarina jurisprudencia/#formulario_ancora

São http://www.tjsp.jus.br/ https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1


Paulo

Sergipe http://www.tjse.jus.br/ http://www.tjse.jus.br/Dgorg/paginas/jurisprudencia/


consultarJurisprudencia.tjse#

Tocantins http://www.tjto.jus.br/ http://jurisprudencia.tjto.jus.br/


263

Nos portais do TJDFT, TJES, TJGO, o con- booleanos na busca por jurisprudência. Houve,
teúdo mais importante–páginas serviços e se- também, grande presença de links com siglas
ções mais utilizadas–estava disposto antes da familiares ao ambiente jurídico, mas de co-
dobra, ou seja, sem a necessidade de rolagem nhecimento improvável por parte do cidadão
vertical e/ou horizontal. Nos demais portais, leigo, aspecto que será melhor apresentado na
ainda que o uso fosse lógico e intuitivo ao cida- Diretriz 7–Redação.
dão, foi necessária a rolagem para a localização A rolagem horizontal não foi verificada nos
de informações relevantes e da própria busca portais acessados, mas a necessidade de rola-
jurisprudencial. No caso do TJMA e TJMT, en- gem vertical foi comum a todos os sites. Isso
tretanto, o acesso a acórdãos foi disponibilizado pode ser relacionado ao excesso de informa-
sem qualquer destaque, no fim da página. ções na página inicial de alguns dos portais
analisados. TJPA, TJMA, TJMS e TJTO exibiram
inúmeros menus, cada um deles com muitos
Diretriz 2 – Carga links, favorecendo a confusão no usuário. No
de informação caso do TJPA, a opção de busca jurisprudencial
“Acórdãos e Jurisprudência” foi, inclusive, inse-
Os portais, em geral, favoreceram o uso in- rida em um bloco intitulado “Outros sites”, no
tuitivo e não exigiram memorização para o canto inferior direito da página inicial, como
acesso à jurisprudência, com destaque para se fosse uma funcionalidade externa e não ine-
TJDFT, TJES, TJGO, TJMG, TJSP e TJMT, que ofe- rente às atribuições do Tribunal [Figura 2].
receram layouts com
atributos de forma-
tação de texto–como
fontes e cores–mais
adaptados ao tama-
nho da página.
Em todas as pági-
nas acessadas, os links
estavam claramente
definidos e identifi-
cados, com textos ob-
jetivos e que facilita-
vam a compreensão
do conteúdo. Foram
evitados os links com
descrições genéricas,
como “Clique aqui”
ou “Veja mais”, cujos
textos não agregam informação sobre o que o [Figura 2] Menu com excesso e
usuário vai encontrar ao acessá-los. Exceções informações no portal do TJPA.
foram o TJMA, que fez uso da expressão “Mais
notícias” em link no menu lateral direito, e o Em relação a passos desnecessários para a
TJSE, que redigiu “Clique aqui” em link para obtenção da informação desejada, o TJCE soli-
orientar o usuário quanto ao uso de operadores citou ao usuário o teste CAPTCHA (acrônimo
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de Completely Automated Public Turing Test to Tell


Computers and Humans Apart) para visualizar
até dez processos. Caso o cidadão desejasse vi-
sualizar mais resultados, era necessário refa-
zer o teste. TJSE e TJTO também solicitaram o
CAPTCHA, mas uma única vez. Já o TJMG abriu
nova janela para informar que o resultado da
busca seria exibido em uma terceira janela,
sem dar ao usuário opção de escolha. Assim, [Figura 4] Layout de busca jurisprudencial
para ter acesso aos resultados, era preciso ne- amigável ao cidadão, no portal do TJTO.
cessariamente clicar na opção “Sim” [Figura 3].

[Figura 3] Solicitação de ação considerada [Figura 5] Opção de personalização da


desnecessária no portal do TJMG. página disponibilizada pelo TJRS.

Quanto aos filtros disponibilizados, o nú- página” em destaque no canto superior direito
mero de opções foi elevado em grande parte [Figura 5] Por meio dela, foi aberto um menu
das ferramentas de busca jurisprudencial ava- de acesso rápido que facilita o processo de pes-
liadas. O layout mais amigável ao cidadão foi quisas jurisprudenciais no portal.
o apresentado pelo TJTO [Figura 4], que não Além do TJRS, o único portal a possibilitar
exigiu conhecimento de vocabulário jurídico, certa personalização foi o TJDFT, por meio da
à exceção do termo “ementa” (que também é opção de copiar um link com o endereço da
utilizado em outros contextos e, portanto, pode página de resultados, evitando o trabalho de
ter seu significado inferido pelo usuário). refazer a pesquisa em caso de necessidade de
acessar novamente os mesmos dados. O TJDFT
também foi o único a possibilitar a opção de fil-
Diretriz 3 trar processos que tramitam em modo público
– Autonomia ou em segredo de justiça. Nos casos de sigilo, o
tribunal permitiu acesso à ementa, sem exigir
Os portais avaliados mostraram-se eficien- cadastro do usuário. TJPR e TJMG, por sua vez,
tes, porém pouco flexíveis e/ou passíveis de ofereceram possibilidade de customização em
personalização no que se refere à apresentação relação ao aumento (zoom in) ou à diminuição
de resultados. Destaque deve ser dado ao TJRS, (zoom out) do tamanho do texto na tela.
que exibiu ao usuário a opção “Personalize esta Em todos os casos, foi possível interromper
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ou cancelar o processamento ou transação restritos e em níveis de dificuldade variados.


com simplicidade, retornando ao menu ini- Predominou a listagem das ementas em for-
cial ou fechando a aba. A função de retrocesso mato HTML e a disponibilização do inteiro teor
do navegador (seta para a esquerda) permane- de cada processo em formato PDF, por meio
ceu ativa e também foi permitido, em todos os de um ícone exibido ao lado da ementa. Como
casos, que o usuário salvasse como “favorito” destaque positivo, o tribunal que disponibili-
as páginas de seu interesse. Não foi solicitada zou mais opções de formatos para o download
a instalação de plugins para o melhor funciona- da íntegra dos acórdãos foi o TJSC (HTML, RTF,
mento das páginas e também não foram veri- PDF e opção sem formatação, para cópia). O
ficadas expressões como “compatível com” ou TJES disponibilizou o inteiro teor dos acórdãos
“melhor visto na resolução”, que retiram a au- por meio de um link com o rótulo do número
tonomia do usuário na escolha do navegador, do processo, sem qualquer indicação de que
com exceção do TJSP: aquele número se tratava de um hiperlink e di-
ficultando ao usuário o acesso ao documento.
A Secretaria de Tecnologia da Informação Os tribunais não permitiram salvar os re-
(STI) comunica que o navegador Google sultados da pesquisa de jurisprudência em um
Chrome não deverá ser utilizado para formato que facilitasse o tratamento posterior
consultas de processos e peticionamento dos dados, como o .csv ou o .xls, com exceção
eletrônico no Portal e-SAJ, tendo em do TJPE, que disponibilizou a opção de expor-
vista que a empresa desenvolvedora do tar a busca como “Planilha do Excel”, por meio
referido navegador não oferece mais de interface amigável e de fácil entendimento.
suporte à tecnologia Java da Oracle Assim, a obtenção das informações teve faci-
utilizada para assinatura de documentos. lidade limitada, pois coube ao usuário coletar–
Sugere-se a utilização dos navegadores uma a uma, com exceção do TJPE–as ementas
Internet Explorer e Mozila Firefox, ou o inteiro teor da jurisprudência pesquisada,
que mantêm total aderência à referida para então organizá-la e padronizá-la de acordo
tecnologia. (Consulta de processos, 2019) com a sua necessidade.

O controle do cidadão sobre aspectos da na- Diretriz 4 – Erros


vegação foi bastante limitado. No que se refere
à forma de exibição dos resultados da busca ju- Idealmente, quanto menos ações o site de-
risprudencial (na mesma aba da pesquisa, em mandar, menor a chance de erros e o tempo
nova aba ou em nova janela), os portais tiveram necessário para a busca, e maior a satisfação do
performances variadas, mas, na maioria dos usuário do portal.
casos, como no TJBA, TJCE e TJGO, os resul- Quando digitados os termos “facebook” ou
tados foram exibidos na mesma aba, exigindo “Facebook”, as ferramentas de busca jurispru-
rolagem vertical. No entanto, para a leitura do dencial de todos os portais analisados foram
inteiro teor de um acórdão selecionado, uma capazes de reconhecer a inicial maiúscula e a
nova janela era aberta. minúscula como equivalentes. Já quando foi
Já em relação a como salvar essas informa- inserido o termo “facebok”, com a falta pro-
ções da busca jurisprudencial, todos os portais posital de uma letra, nenhum dos portais for-
permitiram a cópia de trechos ou o download neceu mensagens ao usuário referentes a um
da íntegra dos documentos, mas em formatos possível erro de digitação, apenas alegaram que
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“não foram encontrados resultados para esta Diretriz 5


busca”. Na página inicial do TJAC, nem mesmo – Desenho
a mensagem de “resultado não encontrado” foi
oferecida. Cabe ao usuário, portanto, o papel de A maior parte dos portais–com destaque
observar a grafia correta dos termos de busca, para TJCE, TJDFT, TJGO, TJMG, TJMT e TJRJ–
sob risco de não encontrar a informação de- apresentou estética minimalista, propiciando
sejada e de perder o que já foi digitado. No leitura agradável aliando fundos neutros, fon-
entanto, em todos os portais, a ferramenta de tes consistentes e padronizadas, textos alinha-
busca continuou visível na página de resulta- dos à esquerda e espaços em branco separando
dos, permitindo ao usuário refazer sua tenta- unidades de informação em blocos, de modo
tiva de pesquisa. a agrupar e hierarquizar conteúdos com cla-
O único caso de indisponibilidade e/ou de reza. TJPB, TJPE, TJRN, TJRO e TJPR apresen-
situações que interromperam o funciona- taram portais com pouco contraste e/ou texto
mento normal ocorreu no portal do TJPE. Nas desproporcional ao tamanho da página. O TJPR,
duas primeiras visitas feitas ao site, o portal por exemplo, utilizou fonte na cor branca em
permaneceu no ar, porém com layout visivel- fundo cinza, no menu lateral à esquerda. Já o
mente simplificado e a mensagem “Prezado (a) TJMA e TJPI disponibilizaram inúmeros menus
Usuário (a), nosso portal encontra-se em manu- ao longo da página, cada um deles com extensa
tenção”. Abaixo da frase, eram disponibilizados listagem de links, em cores com pouco con-
apenas parte dos links–e não constava a busca traste em relação ao fundo e com letras peque-
de jurisprudência. Para verificar se a busca de nas, desproporcionais à dimensão da página.
jurisprudência estava realmente indisponível, Não foi verificada padronização nas páginas
ou se apenas o seu link não constava na página dos vinte e sete Tribunais de Justiça (TJs) brasi-
inicial provisória do TJPE, foi utilizado um me- leiros. No entanto, muitos deles ofereciam des-
canismo de busca externo (Google) para a busca taque às notícias recentes (TJCE, TJGO e TJMA)
pela expressão “tribunal+justiça+pernambu- e outros a funcionalidades do site, como botões
co+jurisprudência”. Dessa forma, o link da ju- de acesso rápido, a exemplo do TJDFT, TJMG,
risprudência pôde ser acessado normalmente. TJSP e TJRJ [Figura 6].
Portanto, a busca exigiu do usuário o conheci- Em relação à interface de busca de jurispru-
mento prévio em estratégias de busca externos dência, houve certa uniformidade apenas entre
aos disponíveis no próprio portal do tribunal. aqueles que utilizam o padrão e-SAJ (TJAC,
Na última visita da triplicata, porém, o site do TJCE, TJMS, TJRN e TJSP).
TJPE estava funcionando normalmente, e com Os portais evitaram o uso da caixa com op-
o link para a pesquisa jurisprudencial em des- ções (scroll) e dos menus de cortina (pulldown),
taque à esquerda da página inicial. com exceção do TJPI [Figura 7]. No menu em
Nos formulários de busca por jurisprudência, destaque na página inicial, além de os itens es-
não foi disponibilizada ao usuário a opção de es- tarem na posição vertical, dificultando a leitura,
colher o formato de saída dos resultados, ou men- foi necessário que o usuário fizesse a rolagem
sagens informando o formato conferido automa- na vertical.
ticamente. Não foram verificadas restrições em A estratégia de animação foi utilizada em
relação ao limite de caracteres a serem inseridos poucos portais, com a finalidade de chamar a
na busca, e páginas com “conteúdo não encon- atenção do usuário para situações excepcionais.
trado” (erro 404). A exceção foi o link de ajuda do O TJMA, por exemplo, inseriu um link que per-
TJMT, que reportou “gateway time-out” (erro 504). corria o topo da tela, da direita para a esquerda,
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recentes, na tela ini-


cial. O TJRO não fez
uso de animações,
mas de vídeos que
carregavam automati-
camente ao acessar a
página inicial, infor-
mando sobre eventos
que se aproximavam.

[Figura 6] Layout do TJRJ alia destaque de Diretriz 6 –


notícias ao acesso rápido a funcionalidades. Consistência e
Familiaridade

A maior parte dos portais fez bom uso das


convenções, como a inserção do logo dos tribu-
nais (no canto superior esquerdo) funcionando
como ferramenta de retorno à página inicial.
TJBA, TJES e TJGO foram exceções a essa con-
venção (para retornar à home, era preciso utili-
zar a seta de retorno do navegador).
Outra convenção respeitada foi a barra de
pesquisa simplificada, presente no topo à di-
reita de todas as páginas do portal (e não ape-
nas na página inicial), facilmente identifi-
cável e conduzindo o usuário a formulários
que funcionavam adequadamente. A exceção,
nesse caso, foi o TJBA, com a opção de busca
à esquerda [Figura 8], que pode confundir o
usuário.
Assim como a caixa de busca, o formulário
[Figura 7] Menu do TJPI, na vertical destinado ao contato com o Tribunal encontra-
e com necessidade de rolagem. va-se, em geral, visível no topo da página, à di-
reita. Em todos os portais, o link remetia a um
avisando sobre a indisponibilidade momen- formulário solicitando dados do requerente e o
tânea dos telefones. Por meio dele, o usuário motivo do contato.
tinha acesso a outra opção de contato (e-mail). Em nenhum dos sites foi necessária a con-
Já o TJPB aplicou animação nas notícias mais versão de datas e/ou unidades de medida para
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[Figura 8] Barra de pesquisa, à esquerda, posicionada


em dissonância com a convenção.

Diretriz 7
– Redação
Em geral, os sites consultados não oferece-
ram a opção de substituição ou de explicação
de termos técnicos da área jurídica no mo-
mento da busca por jurisprudência. Exceções
foram o TJMT, que disponibilizou a opção de
baixar relatório sintético sobre acórdãos pré-
-selecionados, e o TJTO e o TJBA, que oferece-
ram sumários para cada acórdão selecionado.
[Figura 9] Acesso à jurisprudência A retirada de informações desnecessárias ao
facilitado para o cidadão. usuário leigo, o destaque dado à essência do
documento, com a apresentação das informa-
formatos não convencionais. Na busca de ju- ções importantes em destaque, e a adoção de
risprudência, a opção avançada oferecia, na interfaces gráficas diferenciadas favorecem a
maior parte dos portais, a possibilidade de pes- apreensibilidade dos textos, como pode ser ob-
quisa por Data de Julgamento ou por Data de servado no print da consulta jurisprudencial
Publicação, sempre no formato DD/MM/AAAA feita ao TJBA [Figura 10].
(dia, mês e ano). Outros critérios importantes para a apreen-
Uma parcela dos portais organizou e agru- sibilidade, como a adoção de sintaxe simplifi-
pou informações e serviços direcionados e/ cada, em linguagem cotidiana, e com sentenças
ou mais procurados por diferentes públicos, positivas e curtas, puderam ser observados na
como: “Cidadão”, “Servidor”, “Magistrado”, página inicial do relatório fornecido pelo TJTO
“Advogado”, “Administração”, “Institucional”, para um acórdão pré-selecionado [Figura 11].
“Operadores do Direito”, “Imprensa” (casos do Nas páginas iniciais dos portais, foram ve-
TJMA, TJPE e TJRR, TJPI, TJRN, TJMG). No en- rificados excessivo uso de siglas jurídicas nos
tanto, nos sites que disponibilizaram essa di- rótulos de links. O TJCE, por exemplo, utili-
visão, nem sempre o acesso à jurisprudência zou SIC (Serviço de Informação ao Cidadão) e
foi considerado de possível interesse para o ci- NUPEMEC (Núcleo Permanente de Métodos
dadão não vinculado à área jurídica. Apenas Consensuais para a Solução de Conflitos) em
o TJSC e o TJSE [Figura 9] inseriram a opção links antes da dobra. Já o TJGO, TJRR e TJMG
“Jurisprudência” para todos os públicos. as utilizaram em botões de acesso rápido, tam-
bém antes da dobra. Todas elas são de difícil
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outros termos, como “magistrado prolator”,


“classe”, “origem”, “tipo de publicação” e “colé-
gios recursais” [Figura 12] requeriam conheci-
mento prévio do vocabulário jurídico por parte
do usuário.
O uso de caixa alta foi evitado pela maioria
dos portais acessados, com exceção do TJMG.
Mesmo assim, esse uso foi equilibrado por
meio dos espaços em branco para dividir a in-
formação em blocos, não comprometendo a
qualidade de acesso do usuário.
[Figura 10] Sumário de um processo do De modo geral, mesmo que o texto das pá-
TJBA, que aprimora a apreensibilidade da ginas dos portais atendesse à norma padrão da
jurisprudência disponibilizada no portal. língua portuguesa, sem arcaísmos ou redun-
dâncias, e respeitasse as diretrizes previamente

[Figura 11] Aprimoramento na


apreensibilidade implementado pelo TJTO.

apreensão por pessoas não vinculadas à área


jurídica. O portal do TJMT, apesar de também
fazer uso de siglas nos rótulos de links, acres-
centou ao lado a descrição de seus respectivos
significados: SIC (Serviço de Informação ao
Cidadão), DJE (Diário de Justiça Eletrônico) e
PJe (Processo Judicial Eletrônico).
Cabe destacar, no que se refere à simplici-
dade e à clareza dos rótulos de menu, que o ci-
dadão deveria saber, de antemão, o significado [Figura 12] Layout da interface de
do termo “jurisprudência”, presente em todos busca jurisprudencial do TJAC.
os links de busca, seja de forma isolada ou asso-
ciada ao termo “acórdãos”. Assim, a própria pá-
gina de interface, antes mesmo da execução da apresentadas, o cidadão leigo continuou a en-
pesquisa, já oferecia empecilho ligado à lingua- contrar dificuldades para buscar decisões asso-
gem. Acessado o link de busca jurisprudencial, ciadas a palavras-chave de sua livre escolha.
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Apesar disso, alguns tribunais buscam supe- Pesquisa de opinião da consulta de juris­
rar esses entraves de usabilidade e de apreensi- prudencial [sic] do site do PJMT [sic]:
bilidade da busca jurisprudencial. O TJMT, por A consulta jurisprudencial é essencial para
exemplo, disponibilizou formulário de pes- auxiliar a composição de decisões, sentenças
quisa de satisfação [Tabela 2], na própria página e votos. Para subsidiar o aperfeiçoamento do
de pesquisa de jurisprudência, apresentando-o serviço de consultas existente no site deste
da seguinte forma (Tribunal de Justiça do Mato Tribunal, precisamos saber a sua experiência
Grosso, 2019): quanto ao uso de nossos serviços.

[Tabela 2] Perguntas do questionário de satisfação elaborado pelo TJMT

Pergunta Descrição Formato da resposta Obrigatória

1. Nas consultas realizadas, os resultados Avalie os resulta- Múltipla escolha Sim


foram satisfatórios? dos obtidos em suas (Sim/ Não)
consultas

2. Utilizou a “Pesquisa Avançada”? Avalie as opções de Múltipla escolha Sim


pesquisa avançada (Sim/ Não)

3. Os filtros disponíveis na “Pesquisa - Dissertativa Sim


Avançada” atendem as [sic] suas
necessidades?

4. A opção disponível para cópia do Avalie a opção de Múltipla escolha Sim


conteúdo não formatado atende suas cópia do conteúdo (Sim/ Não/ Nunca utilizei)
necessidades? sem formatação.

5. Qual sua avaliação quanto a facilidade Avalie a facilidade Múltipla escolha Sim
de uso da pesquisa? de uso. (Ótimo/ Bom/ Regular/ Ruim)

6. Qual sua avaliação geral da Consulta Avalie o nível de Múltipla escolha Sim
de Jurisprudência do PJMT [sic]? satisfação. (Ótimo/ Bom/ Regular/ Ruim)

7. Que outros Tribunais oferecem uma - Múltipla escolha (Tribunal do Não


consulta jurisprudencial melhor que a Rio Grande do Sul/ Tribunal
nossa? de Minas Gerais/ TRT 21/
Justiça Federal/ Tribunal do
Distrito Federal/ Outro: [essa
opção habilita um campo
específico]
271

8. Deixe sua opinião Deixe sua opinião Dissertativa Não


sobre a nova con-
sulta de Consulta de
Jurisprudência.

9. Nome e telefone Deixe seu nome e Dissertativa Sim


telefone para que
possamos entrar em
contato em caso de
dúvidas.

Iniciativa semelhante teve o TJRS e o TJSC, 5. Considerações finais


que disponibilizaram pesquisas de satisfação
mais sintéticas, ao lado da busca por jurispru-
dência. No caso do TJSC, foi produzido também Esta pesquisa permitiu identificar elemen-
um vídeo explicativo e uma lista de respostas tos que podem servir para o aprimoramento
a dúvidas frequentes para facilitar este tipo de da usabilidade e da apreensibilidade da busca
busca [Figura 13]. por jurisprudência, não apenas nos Tribunais
de Justiça, mas nos demais órgãos e instân-
cias do Judiciário brasileiro, com base em di-
retrizes validadas pela literatura especializada,
apresentadas nos capítulos introdutórios, e na
análise das interfaces atualmente disponibiliza-
das pelos portais dos
vinte e sete Tribunais
de Justiça do país.
Todos os portais
apresentaram recur-
sos tecnológicos su-
ficientes para a na-
vegação e a busca
avançada, oferecendo
usabilidade adequada
a partir de palavras-
-chave de livre esco-
lha por parte do usuá-
rio e de inúmeros
filtros complementa-
res. O uso eficiente
dessas possibilidades
[Figura 13] Pesquisa de satisfação e opções de de refinamento da
ajuda disponibilizadas pelo TJSC. pesquisa, no entanto,
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esbarra no critério de apreensibilidade, dada a entendimento do posicionamento dos tribu-


dificuldade do cidadão comum ante os termos nais brasileiros em temas de relevância para a
jurídicos–como acórdãos, súmulas e o próprio sociedade.
conceito de jurisprudência–que não são acom- De forma otimista, é preciso reconhecer que
panhados por descrições simplificadas, ou que a publicidade se tornou, de fato, a regra nos tri-
não passaram por um adequado processo de bunais avaliados, ainda que melhorias possam
revisão por parte dos desenvolvedores das in- e devam ser implementadas, especialmente na
terfaces web e dos servidores atuantes no tribu- dimensão da apreensibilidade da linguagem
nal, para possíveis substituições por palavras jurídica.
e expressões de uso difundido, resguardado o Iniciativas como a confecção de sumários ou
cuidado para que tais alterações não acarretem relatórios para os processos disponibilizados
prejuízo na carga de significados. na busca jurisprudencial, como previamente
A disponibilização da jurisprudência pelos apresentado neste levantamento, demonstram
Tribunais de Justiça (TJS) permanece enqua- que é plausível e viável a simplificação jurídica,
drada no âmbito da estrutura government-to-ci- com foco na clareza e na objetividade. Materiais
tizen, em que dados e informações são trans- informativos, como vídeos, cartilhas e páginas
mitidos unilateralmente pelos entes públicos interativas, podem também ser desenvolvidos
e são recebidos, de forma passiva, pelos cida- com o intuito de aumentar a familiaridade com
dãos usuários da plataforma. Entretanto, é pos- expressões provenientes do universo jurídico–
sível perceber que não houve uma acomodação com foco não apenas no cidadão leigo, mas
nesse estágio de implantação das Tecnologias também em estudantes e em entidades repre-
de Informação e Informação (TICs) por parte sentativas de profissionais do Direito, para que
dos órgãos avaliados; pelo contrário, há ten- possam aprimorar a redação jurídica e abando-
tativas espalhadas pelas diferentes regiões do nar mitos, particularmente o de que rebusca-
país com o objetivo de elevar a apreensibili- mentos e preciosismos expressem maior com-
dade desse conjunto de elementos jurídicos petência ou prestígio profissional.
pela população leiga e, mais ainda, um movi- O esforço conjunto para o incremento da
mento dedicado a entender quais as demandas apreensibilidade justifica-se ante a necessi-
e sugestões vindas da sociedade, por meio de dade de que a prestação jurisdicional, em todas
formulários e de pesquisas de satisfação, pro- as instâncias, permita ao cidadão não só com-
movendo maior participação e controle social. preender decisões que interferem em sua vida
É recomendável, no entanto, o investimento cotidiana, especialmente no âmbito dos direi-
em estratégias de aprimoramento da usabili- tos sociais e difusos, mas também apresen-
dade das plataformas de busca jurisprudencial, tar sugestões, avaliações e acompanhamentos
a partir das experiências aqui relatadas, asso- de políticas e de serviços públicos, ressalvado
ciado à superação de entraves à navegação–no- sempre o importante papel do profissional
tadamente o excesso de informação nas páginas de Direito como interlocutor técnico nesse
iniciais de alguns dos portais visitados. Assim processo.
como a Lei da Transparência, que forneceu Sugere-se, em pesquisas futuras, a avaliação
subsídio legal e motivação para a adesão das dos portais dos Tribunais de Justiça em outros
TICs pelos órgãos governamentais, é possível contextos, como o das necessidades específicas
que iniciativas de regulamentação dedicadas a das pessoas com deficiência e o da transfor-
aprimorar a usabilidade possam agilizar o al- mação do acesso à Internet no Brasil (dado o
cance deste objetivo, facilitando ao cidadão o crescimento do uso de smartphones e tablets em
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proporção superior ao uso de computadores),


ambos casos que requerem o desenho de estra-
tégias diferenciadas de usabilidade.
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org/10.1093/slr/hmz008 Recebido em 30/06/2019
Aceito em 18/12/2019
278

ARTIGO

Panorama mundial
da regulação da
neutralidade da rede

Ligia E. Leticia M. Luis C. E. Elias P.


Setenareski Peres Bona Duarte Jr.
Departamento de Informática, Universidade Federal do Paraná.
E-Mail: {ligia, lmperes, bona, elias}@inf.ufpr.br.
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.

Panorama mundial
da regulação da
neutralidade da rede

Palavras-chave Resumo
Internet Governos ao redor do planeta têm estabele-
neutralidade da rede cido regulamentações sobre a Neutralidade da
regulações da neutralidade da rede Rede, princípio segundo o qual o tráfego na
Internet não pode ser discriminado por ori-
gem, destino ou conteúdo. A Neutralidade da
Rede se traduz na transparência das políticas
de gerenciamento de tráfego, com impacto di-
reto na liberdade de escolha dos usuários, na
concorrência e na inovação. O debate sobre a
Neutralidade da Rede no Estados Unidos ini-
cia-se nos anos 2000 e continua intenso por lá,
numa clara demonstração do jogo de forças en-
volvido. No Brasil, a Neutralidade da Rede foi
regulamentada como um dos princípios pre-
vistos no Marco Civil da Internet. Neste artigo
são descritos os principais esforços de regula-
mentação da Neutralidade da Rede no mundo,
destacando seus principais aspectos.
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A worldwide overview
of network neutrality
regulations

Keywords Abstract
Internet Governments worldwide have established re-
net neutrality gulations on Network Neutrality, a principle
net neutrality regulations according to which Internet traffic cannot be
discriminated by source, destination or con-
tent. Net Neutrality implies that providers
must adopt transparent traffic management
policies, and has a direct impact on user free-
dom of choice, competition and innovation.
The debate around Net Neutrality started in
the United States in the early 2000s and is still
intense there, in a clear demonstration of the
strong forces involved. In Brazil, Net Neutrality
was regulated as one of the principles establi-
shed in the Marco Civil da Internet. This arti-
cle describes the main efforts to regulate the
Net Neutrality in the world, highlighting their
main aspects.
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Introdução pela presidência do país, por algum órgão go-


vernamental federal representativo, como um
ministério, por exemplo, ou, ainda, esta regu-
O debate da Neutralidade da Rede perma- lação pode ter sido estabelecida diretamente
nece controverso e em ebulição em vários paí- pelo ente regulador governamental, respon-
ses. A Neutralidade da Rede implica que os sável pela regulação das telecomunicações no
provedores de serviços de acesso à Internet, de- país, ou, no caso da União Europeia, responsá-
nominados ISPs (Internet Service Providers) não vel por um coletivo de países, como é o caso do
podem bloquear, estrangular, ou criar pistas rá- Body of Europeans Regulators for Electronic
pidas (priorização) para os pacotes que trafe- Communications (BEREC). Incluímos, ainda,
gam em suas redes (Setenareski, 2017). E, ainda, países que não chegaram a uma regulação pro-
de acordo com o princípio da Neutralidade da priamente dita, mas fomentaram discussões re-
Rede, um ISP só pode cobrar do usuário final lacionadas no âmbito governamental.
uma única vez pelo acesso à sua rede, e não O panorama mundial da regulação inclui a
pode cobrar dos provedores de conteúdo pelos União Europeia, que engloba 28 países e, ainda
conteúdos que trafegam na sua rede. Neste con- na Europa, a Noruega e a Rússia, países que não
texto, o usuário da Internet deve ter seu direito são membros da União Europeia. Da América,
de livre escolha de conteúdo respeitado. É no- estão o Canadá, o Chile, a Colômbia, o Peru,
tório que um dos pontos nevrálgicos do debate o Brasil, a Argentina, o México e os Estados
da Neutralidade da Rede refere-se justamente Unidos. Da Ásia, estão o Japão, Singapura,
à Internet ser regulada ou não. Neste sentido, é a Coréia e a Índia. Da Oceania estão a Nova
importante salientar que, em um ambiente sem Zelândia e a Austrália e, finalmente, da África,
regulação, os ISPs têm autonomia para decidir foi incluído um único país, a África do Sul.
como devem efetuar o gerenciamento do trá- Não foram identificadas regulações para os de-
fego de suas redes. Em um mundo sem regras mais países.
de Neutralidade da Rede, os ISPs podem deter- A seleção ocorreu de forma natural durante
minar quais aplicativos e conteúdos podem se a pesquisa, conforme foi possível encontrar as
tornar bem-sucedidos, distorcendo a concor- informações necessárias nas bases de dados bi-
rência nos mercados de aplicações e conteú- bliográficas, nos sites das agências reguladoras,
dos (Van Schewick & Farber, 2009). A adoção nos sites de outros órgãos dos governos dos paí-
de regulação visa evitar que decisões toma- ses e, ainda, nos sites de notícias. Embora este
das por ISPs no gerenciamento de suas redes, estudo não pretenda esgotar o tema, buscou-
como, por exemplo, de discriminação, diferen- -se aprofundar a pesquisa quanto aos princi-
ciação ou degradação de tráfego, possam acar- pais fatos relacionados ocorridos em determi-
retar algum tipo de prejuízo aos usuários finais nados países. Um deles são os Estados Unidos,
e à inovação e ser nocivas para a manutenção considerando que foi onde se deu início o de-
da Internet como ela foi concebida. bate e onde se criou o termo Neutralidade da
O objetivo deste trabalho é fornecer, de Rede, embora não tenha sido o primeiro país
forma descritiva, um panorama mundial sobre a obter a sua regulação. O outro é a União
a regulação da Neutralidade da Rede. Adotou-se Europeia, considerando que é o organismo
como termo genérico a palavra regulação para responsável pela representação política e eco-
qualquer estabelecimento de regras, princípios nômica de 28 países independentes, chamados
ou leis nos países em prol da Neutralidade da de Estados-membros, e considerando também
Rede. A regulação pode ter sido estabelecida que a União Europeia busca a uniformização
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na regulação da Neutralidade da Rede com o para a Neutralidade da Rede (MIAC, 2006). O


estabelecimento de regras únicas para todos os Grupo de Trabalho concluiu, em seu primeiro
seus Estados-membros. E, ainda, o outro país é relatório, de 20 de setembro de 2007, que a
o Brasil, por ser este o país dos autores. Neutralidade da Rede, com o desenvolvimento
A ordem adotada para a apresentação do pa- de redes baseadas em IP, era, de fato, a equidade
norama da regulação é cronológica. Nesta apre- (fairness) no uso das redes (a neutralidade das
sentação, destaca-se em cada país a maneira camadas responsáveis pelo tráfego de dados), e
encontrada para normatizar a Neutralidade da a equidade de custos, adotando um modelo de
Rede, os principais pontos ou eventos que le- partilha de custos entre todos os envolvidos na
varam à regulação e o que de fato foi estabele- rede. Após isto, usando a Neutralidade da Rede
cido para que os usuários tenham acesso a uma como um pressuposto básico, o grupo selecio-
Internet neutra. nou e organizou tópicos para pesquisar medi-
É importante salientar que não foi encon- das competitivas. Esta pesquisa contou com a
trada padronização no debate que levou à re- participação dos principais agentes de todas as
gulação da Neutralidade da Rede. Cada país áreas envolvidas (Ministry of Internal Affairs
mostrou ter peculiaridades próprias ao longo and Communications, 2007).
do processo de instituição da regulação, o que Em 07 de março de 2008, o grupo publicou
trouxe algumas dificuldades na obtenção da então o relatório onde consta o “Roteiro de
interpretação adequada aos textos que contêm Investigação para a Manutenção da Neutralidade
estas particularidades. Entretanto, ainda que da Rede”, que contém as seguintes recomen-
pesem algumas dificuldades relativas à correta dações, que visam reforçar os pressupostos
tradução, a maior dificuldade deveu-se ao en- estabelecidos em 2007 (Ministry of Internal
tendimento adequado das características jurí- Affairs and Communications , 2008): (i) equi-
dico processuais de alguns países. dade dos custos de rede. Influenciam este mo-
Para atingir o objetivo proposto, este traba- delo aspectos como o congestionamento de
lho é subdividido nas seguintes seções: Japão; rede; desenvolvimento de tecnologias de dis-
Noruega; Canadá; Chile; Colômbia; Singapura; tribuição de conteúdo usando P2P; e certifica-
Coréia; Peru; Nova Zelândia; Rússia; Brasil; ção de QoS para os ISPs; (ii) obtenção de uma
México; Argentina; EUA; Índia; União Europeia; compreensão mais detalhada sobre o tráfego da
Austrália; e África do Sul. A conclusão segue na Internet. Influenciam esta compreensão aspec-
última seção. tos como reforço na capacidade de resolução
de litígios, incluindo a Resolução Alternativa
de Litígios (ADR, do inglês Altemative Dispute
Japão Resolution); (iii) equidade no uso da rede, in-
cluindo prevenção de abuso de posição domi-
Em 19 de setembro de 2006, o Japão, por nante no mercado; e formulação de regras para
meio do MIAC (Ministry of Internal Affairs interconexão de Redes de Nova Geração (Next
and Communications), lança o “Programa de Generation Networks (NGNs)) da Nippon Telegraph
Promoção da Nova Concorrência 2010” (New and Telephone Corporation (NTT); (iv) revisão da
Competition Promotion Program 2010). Este pro- regulação dominante. Mudança para um arca-
grama teve como base a disseminação das redes bouço de regulamentos que possam lidar com
e a criação de um Grupo de Trabalho sobre a questões como a consolidação do mercado, fa-
Neutralidade da Rede. O Grupo de Trabalho foi zendo uso dos resultados da avaliação da con-
criado para elaborar o arcabouço (framework) corrência quando o domínio do mercado foi
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reconhecido; reconhecimento de alavancagem capacidade e qualidade pré-definidas; (ii) en-


nos mercados vizinhos e posições dominantes viar e receber conteúdos da sua escolha; utili-
de mercado; e o fortalecimento do monitora- zar serviços e executar aplicativos de sua esco-
mento do mercado; (v) outras medidas, como a lha; conectar hardware e usar software de sua
promoção da diversificação das redes de acesso, escolha que não danifiquem a rede; e (iii) um
incluindo suporte de construção de redes por serviço livre de discriminação no que diz res-
organismos regionais, e promoção da BWA peito ao tipo de aplicação, serviço, conteúdo,
(Broadband Wireless Access); a revisão do sistema ou com base no endereço do remetente ou do
legal para abarcar novos modelos de negócio destinatário. (NETWORK..., 2009). Em 2013, a
(incluindo uma investigação da legislação de Nkom reitera que o modelo norueguês para a
fusão) e a investigação de medidas para prote- Neutralidade da Rede pode ser descrito como
ger os usuários. uma abordagem de corregulação, de modo que
Concretamente, o MIAC trabalhou junto o regulador é capaz de definir objetivos cla-
com provedores de telecomunicações para es- ros para as orientações que serão desenvolvidas,
tabelecer as diretrizes para a Neutralidade da enquanto, ao mesmo tempo, os vários interve-
Rede, baseadas em três princípios: (i) Os ISPs nientes da indústria podem equilibrar os pon-
devem lidar com aumentos de demanda de trá- tos de vista de cada um. A Nkom considera que
fego ampliando sua infraestrutura; (ii) Apenas há três principais tipos de players nesta indús-
em situações excepcionais é permitido aos ISPs tria: (i) os prestadores de serviços de Internet,
alterar as velocidades do tráfego; e (iii) com as (ii) os provedores de conteúdo e aplicativos, e
devidas justificativas que devem consistir de (iii) os consumidores, representados pelas orga-
critérios objetivos (The Free Internet Project, nizações de consumidores.
2019). Para a Nkom, desde 2009 as orientações têm
Em síntese, é possível afirmar que o modelo funcionado como deveriam na Noruega, e ne-
de regulação adotado pelo MIAC pode ser clas- nhuma atualização é necessária (Norwegian
sificado como de auto-regulação pela indústria, Communications Authority, 2013). Em 18 de no-
sendo a Internet considerada um serviço uni- vembro de 2014, Frode Sørensen, Conselheiro
versal de telecomunicações que deve ser pro- Sênior da Nkom, publica na página da Nkom
vido de forma justa e estável. um texto no qual explica as diretrizes norue-
guesas para a Neutralidade da Rede. Ressalta
que estas diretrizes claramente evidenciam que
Noruega os usuários da Internet têm os direitos explici-
tados acima e que a prática da taxa zero consti-
A Noruega, que não faz parte da União tui uma violação. Frode Sørensen enfatiza que,
Europeia como Estado-membro, lançou, à primeira vista, pode parecer que todo o trá-
em 24 de fevereiro de 2009, suas diretri- fego é tratado igualmente neste modelo de ta-
zes para a Neutralidade da Rede por meio de rifação, mas o fato é que, após o usuário ter
seu órgão regulador, a NPT (Norwegian Post usado a sua cota ou franquia, o tráfego que está
and Telecommunications Authority–atual- isento será permitido a continuar, enquanto
mente renomeada como Nkom, Norwegian todos os outros tráfegos serão estrangulados
Communications Authority). Os princípios ou bloqueados. Conclui que este é, claramente,
ou diretrizes estabelecidos foram os seguintes um caso de discriminação entre os diferentes
para os usuários da Internet, especificando que tipos de tráfego. E finaliza ressaltando que a
têm direito a: (i) um serviço de Internet com Internet é importante para a economia, para a
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diversidade cultural, para a vida social e para a de consumidores. Para os serviços “de atacado”
democracia e, portanto, a Nkom trabalha para (wholesale), providos de um ISP para outros
preservar a Internet como uma plataforma ditos secundários, haverá uma análise comple-
aberta (Sørensen, 2014). mentar. Quando um ISP empregar práticas de
gerenciamento de tráfego da Internet mais res-
tritivas para os seus serviços “de atacado” do
Canadá que para os seus serviços “de varejo”, será ne-
cessária a aprovação da Comissão para implan-
Em 21 de outubro de 2009, o Canadá, por tar essas práticas. Práticas de gerenciamento de
meio da CRTC (Canadian Radio Television and tráfego da Internet, aplicadas aos serviços “de
Telecommunications Commission), expõe as suas atacado”, devem respeitar o arcabouço das prá-
determinações em relação ao uso de práticas ticas de gerenciamento de tráfego da Internet,
de gerenciamento do tráfego da Internet pelos e não devem ter um impacto significativo e
ISPs. A Comissão estabelece uma abordagem desproporcionado para o tráfego de ISPs secun-
baseada em princípios que equilibram apro- dários (CRTC, 2009).
priadamente a liberdade dos canadenses de uti-
lizar a Internet para várias finalidades com os
interesses legítimos dos ISPs de gerenciar o trá- Chile
fego gerado em suas redes.
A CRTC baseou suas determinações em Em 18 de agosto de 2010, o governo do Chile
quatro considerações, conforme segue: (i) promulgou a Lei 20.453. Nela, o governo chi-
Transparência. A utilização de quaisquer prá- leno consagra expressamente o princípio da
ticas de gerenciamento de tráfego de Internet Neutralidade da Rede para os consumidores e
pelos ISPs deve ser transparente; (ii) Inovação. usuários da Internet. Esta Lei estabelece as se-
O investimento na rede é uma ferramenta fun- guintes regras para as concessionárias de servi-
damental para lidar com o congestionamento, ço público de telecomunicações (que prestam
por exemplo, e deve continuar sendo a prin- serviço aos provedores de acesso à Internet),
cipal solução utilizada pelos ISPs; no entanto, e também para os provedores de acesso à
o investimento por si só não elimina a neces- Internet, que prestam serviços comerciais de
sidade de certas práticas de gerenciamento de conectividade para os usuários: (i) Não podem
tráfego na Internet; (iii) Clareza. Os ISPs devem arbitrariamente bloquear, interferir, discrimi-
assegurar que quaisquer práticas de gerencia- nar, impedir ou restringir o direito de qualquer
mento de tráfego de Internet que empregarem usuário da Internet em usar, enviar, receber ou
não sejam injustamente discriminatórias e nem oferecer qualquer conteúdo, aplicação ou ser-
indevidamente preferenciais; (iv) Neutralidade viço legal através da Internet, e qualquer outra
concorrencial, que é classificada pela CRTC em atividade ou uso legal através da rede; (ii) Não
serviços de “varejo” e de “atacado”, descritos a podem limitar o direito de um usuário de in-
seguir. Para os serviços “de varejo” (retail), pro- serir ou usar qualquer classe de equipamentos
vidos a usuários finais, os ISPs podem conti- ou dispositivos na rede, desde que sejam legais
nuar a empregar práticas de gerenciamento de e que não danifiquem ou prejudiquem a qua-
tráfego da Internet sem a aprovação prévia da lidade ou serviço da rede; (iii) Deverão forne-
Comissão. A CRTC destaca que irá rever essas cer, às expensas dos usuários que os solicitem,
práticas, avaliando-as com base em preocupa- serviços de controle parental para conteúdos
ções decorrentes principalmente de queixas que violem a lei, a moral ou os bons costumes,
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sempre e quando o usuário seja informado com de Telecomunicaciones de Chile, 2011). Em 27


antecedência e de maneira clara e precisa a res- de maio de 2014 a SUBTEL, também com base
peito do alcance de tais serviços; (iv) Deverão na Lei da Neutralidade, oficiou, sob a pena de
publicar em seu site toda a informação relativa multa (Subsecretaría de Telecomunicaciones de
às características do acesso à Internet oferecido, Chile, 2014), os ISPs para acabarem com as pro-
sua velocidade e qualidade de conexão, dife- moções das chamadas Redes Sociais Gratuitas
renciando entre as conexões nacionais e inter- (taxa zero, no sentido que podem ser acessadas
nacionais, bem como a natureza e garantias do gratuitamente mesmo quando outros serviços
serviço (Chile, 2010). são pagos).
Em 16 de novembro de 2011, a SUBTEL
(Subsecretaría de Telecomunicaciones de Chile),
a agência reguladora chilena, publica o resul- Colômbia
tado da fiscalização que realizou em cada ISP
no país para verificar o cumprimento desta lei. Em 16 de junho de 2011, o governo da
O resultado mostrou que existem ISPs que não Colômbia aprova a Lei 1.450, referente ao Plano
facilitam o acesso dos consumidores à infor- Nacional de Desenvolvimento para os anos de
mação necessária, de forma transparente, des- 2010 a 2014. A Lei prevê, em seu Art. 56, as se-
tacada e clara. Para corrigir esta deficiência, a guintes regras para a Neutralidade da Internet,
SUBTEL padronizou as informações mínimas a serem seguidas pelos ISPs: (i) não podem blo-
exigidas pela Lei da Neutralidade que devem quear, interferir, discriminar ou restringir o di-
ser fornecidas pelos ISPs, sob pena de multa em reito de qualquer usuário da Internet de usar,
caso de descumprimento: (i) o nome e preço enviar, receber ou oferecer qualquer conteúdo,
do plano; (ii) a velocidade publicitada em cada aplicação ou serviço legal através da Internet.
plano deverá conter uma velocidade máxima e Os ISPs não podem distinguir arbitrariamente
uma velocidade mínima e, ainda, a velocidade conteúdos, aplicações ou serviços, com base na
de download e upload, indicando inclusive se origem ou propriedade destes. Os ISPs podem
há diferenças de acesso nacional e internacio- fazer ofertas para as necessidades de segmentos
nal; (iii) para tecnologias sem fio ou redes mó- específicos de mercado ou de seus usuários, de
veis, a oferta dos serviços deve expressar clara- acordo com seus perfis de uso e de consumo,
mente que as faixas de velocidade estão sujeitas que não sejam interpretadas como discrimi-
à variabilidade e comportamento probabilístico nação; (ii) não podem limitar o direito de um
de acesso à Internet sem fio e, por isso, deve usuário usar qualquer tipo de dispositivos na
conter as seguintes informações: mapas de co- rede, desde que sejam legais e que não danifi-
bertura por tipo de tecnologia, propagação do quem ou prejudiquem a qualidade da rede ou
sinal, velocidades médias esperadas e toda a in- do serviço; (iii) oferecerão aos usuários serviços
formação que permita um conhecimento pro- de controle parental para conteúdos que aten-
fundo dos usuários, quando optarem por tais tem contra a lei, prestando aos usuários infor-
serviços; (iv) a chamada taxa de agregação deve mações antecipadas, de maneira clara e precisa
especificar explicitamente a taxa de revenda de a respeito do alcance de tais serviços; (iv) pu-
serviços de Internet. Esta taxa corresponde ao blicarão em um site toda a informação relativa
quociente entre a soma das velocidades con- às características do acesso à Internet oferecido,
tratadas por todos os usuários e a capacidade sua velocidade e qualidade do serviço, diferen-
real contratada em Mbps no enlace, conforme ciando entre as conexões nacionais e interna-
o caso; e (v) limites de download (Subsecretaría cionais, assim como a natureza e garantias do
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serviço; (v) implementarão mecanismos para aos padrões mínimos de QoS. Desde que cum-
preservar a privacidade dos usuários contra pram os quatro requisitos estabelecidos acima,
vírus e a segurança da rede; além disso, (vi) os ISPs em Singapura podem estabelecer nicho
bloquearão o acesso a determinados conteúdos, ou oferecer serviços diferenciados de Internet
aplicativos ou serviços, somente a pedido ex- (Info-communications Media Development
presso do usuário (Colômbia, 2011a). Authority, 2010). Isso significa que os ISPs em
A Resolução 3.502, de 16 de dezembro de Singapura podem oferecer serviços ou con-
2011, estabelece as condições regulatórias da teúdos especializados ou personalizados de
Neutralidade da Internet, relativas aos seguin- Internet e podem executar práticas razoáveis
tes princípios, em cumprimento ao estabele- de gerenciamento de rede, mas são proibidos
cido no artigo 56 da Lei 1.450 de 2011: (i) livre de impor práticas discriminatórias que tornem
escolha; (ii) sem discriminação; (iii) transparên- qualquer conteúdo de Internet legítimo ina-
cia; e (iv) informação. Além disso, a Resolução cessível ou inutilizável (Info-communications
3.502 também estabelece os aspectos técnicos Media Development Authority, 2011).
da Neutralidade da Internet, tais como: (i) in-
dicadores de qualidade do serviço de acesso à
Internet; (ii) bloqueio de conteúdos; (iii) segu- Coréia
rança da rede, e (iv) práticas de gerenciamento
de tráfego. E, ainda, a mesma Resolução 3.502 A agência de regulação da Coréia do Sul, a
traz a lista das práticas de gerenciamento de KCC (Korea Communications Commission) traz,
tráfego consideradas como razoáveis (Colômbia, em seu relatório anual de 2011, um qua-
2011b). dro contendo os Princípios Básicos para a
Administração da Neutralidade da Rede e do
Tráfego da Internet neste país. Os princípios
Singapura são os seguintes: (i) Direitos do usuário: os
usuários da Internet têm direito à informação
Em 11 de novembro de 2010, a autoridade sobre seu tráfego na Internet, sendo permitido
das telecomunicações de Singapura, subor- livremente utilizar conteúdos legítimos, apli-
dinada ao Ministério de Comunicações e cações e dispositivos, a menos que eles cau-
Informação, a IDA (Infocomm Development sem perigo (hazard) para os serviços ou redes;
Authority), atualmente chamada de IMDA (The (ii) Administração transparente do tráfego da
Info-communications Media Development Internet. Os ISPs devem divulgar a finalidade,
Authority), lançou uma consulta pública sobre o escopo, as condições, os procedimentos e os
a Neutralidade da Rede. E, no mesmo dia em métodos para administrar o tráfego da rede e
que a Colômbia aprova a sua lei, em 16 de devem também notificar os usuários dos de-
junho de 2011, a partir do resultado desta con- talhes ou efeitos das ações tomadas como ne-
sulta, a IDA publica a decisão sobre o que con- cessárias para administrar o tráfego da rede.
sidera ser a sua abordagem política em relação (iii) Proibição de bloqueio: quaisquer conteú-
à Neutralidade da Rede, conforme segue em re- dos, aplicações ou dispositivos legítimos, não
sumo. Os provedores de rede: não poderão efe- devem ser bloqueados, a menos que eles cau-
tuar qualquer bloqueio de conteúdo legítimo sem perigo para os serviços ou para as redes.
da Internet; deverão cumprir as regras de con- (iv) Proibição de discriminação “não razoável”
corrência e interconexão; deverão dar transpa- dos conteúdos, aplicações e serviços legítimos.
rência às suas informações; e deverão atender (v) Gestão “razoável” do tráfego: o tráfego pode
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ser gerenciado, se necessário, para garantir a os tipos de medidas permitidas e os tipos de


segurança e a proteção da rede, para eliminar a medidas autorizadas às operadoras, as medidas
sobrecarga temporária ou o congestionamento a serem adotadas em situação de emergência
da rede, ou conforme os estatutos pertinentes e, ainda, as medidas a serem implementadas
(Korea Communications Commission, 2012). por mandado judicial pelas operadoras. Além
disso, estes capítulos trazem também a descri-
ção das medidas que são autorizadas e as con-
Peru siderações para a implementação destas medi-
das; (iv) Título IV–Medidas proibidas relativas
Em 20 de julho de 2012, o governo do Peru, à Neutralidade da Rede. Este título lista todas
por meio do Congresso Nacional, aprova a Lei as medidas que são proibidas às operadoras; (v)
nº 29.904, relativa à promoção da banda larga Título V–Regime de infrações e sanções. Este
e à construção do backbone nacional de fibra título remete ao anexo que contém a lista das
óptica. O Art. 6 desta Lei trata da liberdade infrações e suas sanções correspondentes e traz
de uso de aplicações ou protocolos de banda as disposições complementares finais e transi-
larga, e diz expressamente que os provedores tórias (Peru, 2016).
de acesso à Internet respeitarão a Neutralidade
da Rede e, portanto, não podem de maneira ar-
bitrária bloquear, interferir, discriminar, nem Nova Zelândia
restringir o direito de qualquer usuário de uti-
lizar uma aplicação ou protocolo, independen- Em junho de 2011, a Comissão de Comércio,
temente de sua origem, destino, natureza ou ente regulador das telecomunicações da Nova
propriedade. Esta Lei determina ainda que a Zelândia, o ComCom (Commerce Commission of
OSIPTEL (Organismo Supervisor de Inversión New Zealand), inicia um estudo para identificar
Privada en Telecomunicaciones), o órgão re- quaisquer fatores que possam afetar os servi-
gulador das telecomunicações, deverá deter- ços de banda larga de alta velocidade na Nova
minar as condutas que não serão conside- Zelândia (Commerce Commission of New
radas arbitrárias relativas à Neutralidade da Zealand, 2012). Em 19 de dezembro de 2011, o
Rede (Peru, 2012). Assim, em 15 de dezembro ComCom publica o primeiro resultado do es-
de 2016, a OSIPTEL lança a Resolução nº 165- tudo, com quatro questões técnicas que iden-
2016, que traz o regulamento da Neutralidade tificou como relevantes para serviços de banda
da Rede. Este regulamento trata de forma deta- larga de alta velocidade: (i) os custos de insta-
lhada cada aspecto que envolve a Neutralidade lações e o fornecimento de equipamento aos
da Rede no Peru, e subdivide-se da seguinte clientes; (ii) diferenciação de trânsito nacio-
forma: (i) Título I–Disposições gerais. Traz os nal e internacional; (iii) aspectos referentes a
seguintes princípios que permitem garantir o peering e interconexões, além de Neutralidade
pleno respeito da Neutralidade da Rede: livre da Rede; e (iv) barreiras que limitam o uso de
uso; precaução; equidade; e transparência; (ii) dados (data caps) (Commerce Commission of
Título II–Medidas relativas à Neutralidade da New Zealand, 2011). Em 29 de junho de 2012,
Rede. Trata das medidas gerais a serem toma- o ComCom publica o relatório final do estudo,
das pelas operadoras de telecomunicações e no qual ressalta que a Neutralidade da Rede
pelo OSIPTEL; (iii) Título III–Medidas permi- não deve ser um problema se os ISPs forem
tidas relativas à Neutralidade da Rede. Este tí- transparentes sobre as limitações ou as restri-
tulo é subdividido em 3 capítulos que contém: ções impostas em seus serviços de banda larga.
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Ressalta também que o mercado dos ISPs é su- foi encontrada, levando a crer que o assunto
ficientemente competitivo, e que os consumi- permanece em discussão neste país.
dores são capazes de mudar de ISPs de forma
relativamente fácil se as restrições forem um
problema. E ressalta ainda que a Comissão é da Rússia
opinião de que a prática de taxa zero de deter-
minados conteúdos é benéfica para os usuários Em 11 de fevereiro de 2014, o governo da
finais. A Comissão espera que as pressões com- Federação Russa aprovou o plano de ação
petitivas do mercado levem a barreiras mais para o desenvolvimento da concorrência no
elevadas de dados e na quantidade de con- setor das telecomunicações, elaborado pelo
teúdo que é armazenado em cache; consequen- Ministério das Comunicações com a participa-
temente, a prática e a importância do tráfego ção do FAS, o Serviço Federal Antimonopólio
de taxa zero ficam suscetíveis de serem reduzi- (Federal Antimonopoly Service). Segundo o FAS,
das (Commerce Commission of New Zealand, neste plano de ação foram incluídas medidas
2012). destinadas a apoiar a Neutralidade da Rede
Em 18 de junho de 2015, o site Internet NZ (Federal Antimonopoly Service, 2014). Ao exe-
lança um documento de Discussão Pública cutar o plano de ação, o FAS elaborou um re-
(O’Neill, 2015; Network neutrality in New latório sobre a aplicação dos princípios da
Zealand: public discussion document 2015), Neutralidade da Rede em redes de telecomu-
para buscar a opinião dos neozelandeses e ini- nicações, propondo formalizar as disposições
ciar um diálogo nacional, aberto e colaborativo que determinam a política de Neutralidade,
sobre o que a Neutralidade da Rede significa nos seguintes atos normativos legais: a lei fe-
na Nova Zelândia (Network neutrality in New deral sobre as comunicações, as regras para a
Zealand: public discussion document 2015). conexão de redes de telecomunicações, além
Em 08 de setembro de 2015, o Ministério dos de regras para os serviços de comunicações.
Negócios, Inovação e Emprego (Ministry of As consultas públicas sobre estes atos norma-
Business, Innovation & Employment) divulga um tivos legais para formalizar os princípios da
documento de discussão contínua e pública Neutralidade da Rede começaram em 12 de no-
para revisão da Lei das Telecomunicações de vembro de 2014 e em 27 de janeiro de 2015. O
2001. Este documento também buscou anga- FAS participou de uma audiência pública com
riar pontos de vista sobre uma série de opções representantes do setor das telecomunicações
para a regulação das comunicações após o ano e da Tecnologia da Informação e Comunicação.
de 2020, encorajando as partes interessadas, as Como resultado desta audiência pública, os es-
empresas e os consumidores a participar. Para pecialistas chegaram à conclusão que as nor-
isto, levanta várias questões, sendo que várias mas gerais da Lei Antimonopólio abrangem os
referem-se de forma direta à Neutralidade da principais princípios da Neutralidade da Rede,
Rede (Nova Zelância, 2015). Todas as contribui- e foi tomada a decisão de estabelecer um Grupo
ções recebidas estão disponíveis na página do de Trabalho do FAS para a aplicação dos prin-
Ministério (Nova Zelância, 2001). cípios da Neutralidade da Rede na Federação
Embora tenham sido encontradas várias con- Russa, com o envolvimento dos reguladores
siderações sobre a Neutralidade da Rede na e do mercado (Federal Antimonopoly Service,
Nova Zelândia, e algumas questões inerentes 2015a).
tenham sido postas em consulta pública, até o Em 20 de abril de 2015, este Grupo de
final desta pesquisa nenhum tipo de regulação Trabalho teve sua primeira reunião, e como
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nenhum fato de violação dos princípios do FAS as menções aos documentos acima ci-
da Neutralidade da Rede foi revelado, tam- tados, elaborados pelo Grupo de Trabalho em
bém concluiu que o cumprimento das nor- defesa e adoção dos princípios da Neutralidade
mas gerais da Lei Antimonopólio apoia os da Rede, nenhum destes documentos foi loca-
princípios da Neutralidade da Rede (Federal lizado no site. Ou seja, não foi encontrado qual-
Antimonopoly Service, 2015c). A segunda re- quer tipo de documento que contenha a regu-
união do Grupo de Trabalho ocorreu em 30 lação propriamente dita, que liste os princípios
de Novembro de 2015, e nela os participantes ou regras a serem adotados pelos ISPs.
acordaram em empregar uma regulação sobre
a Neutralidade da Rede, cuja finalidade é apoiar
o desenvolvimento da Internet como uma pla- Brasil
taforma aberta para inovações, diminuindo
barreiras de acesso para usuários finais, ope- No Brasil, embora a regulação da Neutralidade
radores e fornecedores de conteúdo e serviços da Rede comece a se concretizar somente em
(Federal Antimonopoly Service, 2015b). Em 16 2014, desde 2007 ocorriam discussões em torno
de Dezembro de 2015, houve a terceira reu- da necessidade de regulamentar a Internet
nião do Grupo. Esta reunião ocorreu para dis- (Lemos, 2007). Entretanto, o governo brasi-
cutir os objetivos, conceitos e princípios fun- leiro decidiu por um marco civil em vez de um
damentais da Neutralidade da Rede, descritos marco criminal e, a partir de 2009, são toma-
em um projeto sobre a Neutralidade da Rede das as primeiras providências para a constru-
a ser refinado na próxima reunião (Federal ção deste marco civil. Em 05 de junho de 2009,
Antimonopoly Service, 2015d). o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil),
Em 23 de fevereiro de 2016, o Grupo de ente responsável pela governança da Internet
Trabalho elaborou um documento que cha- no Brasil, aprova e lança uma Resolução com
mou de “Documento Fundamental sobre a os 10 Princípios para a Governança e Uso da
Neutralidade da Rede”. Este documento teve Internet no Brasil (Comitê Gestor da Internet
como finalidade assegurar o acesso não dis- no Brasil, 2009b), na qual a Neutralidade da
criminatório e as condições de desempenho Rede aparece como o sexto princípio (Comitê
para os provedores de serviços e de conteúdo. Gestor da Internet no Brasil, 2009a). Em 29
Além disso, o documento teve como finalidade de outubro de 2009, a Secretaria de Assuntos
criar condições para o desenvolvimento das Legislativos do Ministério da Justiça, em parce-
telecomunicações, da concorrência e de uma ria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro,
cooperação entre os participantes do mercado, da Fundação Getúlio Vargas, lança o projeto
considerando que estas condições certamente para a construção colaborativa do Marco Civil,
irão facilitar os investimentos e as inovações. tomando como base os 10 princípios estabele-
Todos os membros do Grupo de Trabalho, re- cidos pelo CGI.br.
presentantes do Ministério das Comunicações, O processo para esta construção colabora-
especialistas do governo, especialistas inde- tiva ocorreu em duas fases. Na primeira fase,
pendentes e representantes da indústria de co- foram debatidas ideias sobre os tópicos pro-
municações e da comunidade da tecnologia de postos para a regulação a partir de um texto-
informação e comunicação concordaram em -base produzido pelo Ministério da Justiça. Na
observar os princípios da Neutralidade da Rede segunda fase, a discussão teve como parâmetro
(Federal Antimonopoly Service, 2016). a minuta do Anteprojeto de Lei do Marco Civil.
Ainda que tenham sido encontradas no site Cada artigo, parágrafo, inciso ou alínea deste
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Anteprojeto de Lei também esteve aberto para de conexão à Internet, paga ou gratuita, bem
participação da sociedade, em forma de con- como na transmissão, comutação ou rotea-
sulta pública. Também ocorreram foros de dis- mento, é vedado ao ISP bloquear, monitorar,
cussão (Brasil, 2016a). Estas duas fases resulta- filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de
ram na elaboração do Projeto de Lei 2.126, de dados (Brasil, 2014).
2011, que estabeleceu os princípios, as garantias, Assim, em atendimento ao exposto na Lei
os direitos e os deveres para o uso da Internet do Marco Civil, para poder fornecer as infor-
no Brasil e que, em 24 de agosto de 2011, foi mações devidas à Presidente da República, o
encaminhado ao Congresso Nacional (Brasil, CGI.br realizou uma consulta pública entre
2011b). Em 25 de março de 2014, a Câmara dos 19 dezembro de 2014 e 20 de fevereiro de
Deputados aprova este Projeto de Lei, encami- 2015 para recolher os subsídios da sociedade
nhando-o em 26 de março de 2014 ao Senado (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2015). O
Federal e, em 23 de abril de 2014, ele é trans- Ministério da Justiça também promoveu sua
formado na Lei Ordinária 12.965 (Brasil, 2011a). consulta pública, entre 28 de janeiro e 30 de
A Neutralidade da Rede está exposta no abril de 2015 e, por meio dela, recebeu mais de
Artigo 9º da Lei Ordinária 12.965/2014, deter- 60 mil visitas e cerca de 1.200 comentários da
minando que o responsável pela transmissão, população (Brasil, 2016a). E, da mesma forma, a
comutação ou roteamento tem o dever de tra- Anatel realizou a sua consulta pública entre os
tar de forma isonômica quaisquer pacotes de dias 31 de março e 19 de maio de 2015 (Agência
dados, sem distinção por conteúdo, origem e Nacional de Telecomunicações, 2015). Em 10
destino, serviço, terminal ou aplicação. Salienta de novembro de 2015, o CGI.br encaminha
que: (i) a discriminação ou degradação do trá- ao Ministério da Justiça e à Casa Civil o docu-
fego será regulamentada nos termos das atri- mento elaborado a partir das contribuições re-
buições privativas do Presidente da República, cebidas em sua consulta pública e das contri-
para a fiel execução desta Lei. Para isto, serão buições vindas a partir de discussões ocorridas
ouvidos o CGI.br e a Anatel (Agência Nacional no âmbito de um grupo de trabalho especifica-
de Telecomunicações). A discriminação ou de- mente constituído para tratar da regulamenta-
gradação do tráfego somente poderá decorrer ção (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2015).
de requisitos técnicos indispensáveis à presta- Como resultado das contribuições recebi-
ção adequada dos serviços e aplicações. A prio- das, o Ministério da Justiça elabora a minuta
rização somente é permitida para os serviços do Decreto Presidencial para regulamentar o
de emergência; (ii) Na hipótese de discrimina- Marco Civil e, em 27 de janeiro de 2016, a apre-
ção ou degradação do tráfego prevista, o ISP senta à sociedade em nova Consulta Pública
deve abster-se de causar dano aos usuários. para colher contribuições de redação ou de con-
Deve agir com proporcionalidade, com trans- teúdo até o dia 29 de fevereiro (Brasil, 2016b).
parência e com isonomia. Deve informar pre- Em 05 de maio de 2016, a então presidente
viamente, de modo transparente, claro e sufi- Dilma Rousseff recebe do Ministério da Justiça
cientemente descritivo aos seus usuários, quais a minuta do Decreto que vai regulamentar o
as práticas adotadas para o gerenciamento e a Marco Civil da Internet. Por fim, em 11 de maio
mitigação de tráfego, inclusive as relacionadas de 2016, a presidente assina o Decreto nº 8.771,
à segurança da rede. Deve oferecer serviços em que regulamenta a Lei 12.965, de 23 de abril de
condições comerciais não discriminatórias e, 2014. Este Decreto trata das hipóteses admiti-
ainda, deve abster-se de praticar condutas an- das de discriminação de pacotes de dados na
ticoncorrenciais. Além disso, (iii) na provisão Internet e de degradação de tráfego. O Decreto
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também indica os procedimentos para a guarda da Neutralidade da Rede. O Projeto Internet.


e a proteção de dados por provedores de co- org refere-se ao serviço Freebasics, considerado
nexão e de aplicações. E, ainda, este Decreto como taxa zero. De acordo com o Ministério
também aponta as medidas de transparência na Público Federal, o Projeto Internet.org, ou
requisição de dados cadastrais pela administra- Freebasics, é um aplicativo que permite o acesso
ção pública e estabelece os parâmetros para a limitado a determinadas aplicações e conteú-
fiscalização e a apuração de infrações. De ma- dos previamente aprovados pelo Facebook, vio-
neira específica, o texto do Decreto 8.771/2016 lando os princípios norteadores da Internet no
deixa claro que ele não se aplica: (i) aos servi- Brasil, o princípio da Neutralidade da Rede
ços de telecomunicações que não se destinem e a Internet livre, preconizados no Marco
ao provimento de conexão de Internet; e (ii) Civil brasileiro (Brasil, 2015). Entretanto, esse
aos serviços especializados, desde que: (a) não caso também foi analisado pelo Conselho
configurem substituto à Internet em seu cará- Administrativo de Defesa Econõmica (CADE) e
ter público e irrestrito; e (b) sejam destinados pela Anatel e as conclusões são diferentes da
a grupos específicos de usuários com controle Nota Técnica do MPF.
estrito de admissão (Brasil, 2016c). Neste mesmo contexto, em 15 de março de
Do mesmo modo, o Decreto 8.771/2016 deixa 2017, o plenário do Senado Federal aprovou
claro que reitera o exposto no art. 9º da Lei nº o projeto PLS 174/2016, do senador Ricardo
12.965, de 2014, e elucida que ficam vedadas as Ferraço, que proíbe as operadoras de Internet
condutas unilaterais ou os acordos entre o res- de estabelecerem franquias de dados em seus
ponsável pela transmissão, pela comutação ou contratos de banda larga fixa. Este projeto al-
pelo roteamento e os provedores de aplicação tera a Lei nº 12.965/2014, do Marco Civil da
que: (i) comprometam o caráter público e ir- Internet, para vedar, expressamente, os planos
restrito do acesso à Internet e os fundamentos, de franquias de dados para esse tipo de servi-
os princípios e os objetivos do uso da Internet ço (Brasil, 2017b). O PLS 174/2016 não altera
no País; (ii) priorizem pacotes de dados em as regras dos planos de Internet móvel e, em
razão de arranjos comerciais; ou (iii) privile- 21 de março de 2017, foi remetido à Câmara
giem aplicações ofertadas pelo próprio respon- dos Deputados para análise (Brasil, 2017a), onde
sável pela transmissão, pela comutação ou pelo recebeu o número PL 7182/2017 e, em 5 de
roteamento ou por empresas integrantes de junho de 2019, recebeu parecer favorável do
seu grupo econômico. Além disso, o Decreto relator na Comissão de Ciência e Tecnologia,
8.771/2016 ressalta que as ofertas comerciais e Comunicação e Informática (CCTCI) para sua
os modelos de cobrança de acesso à Internet aprovação.
devem preservar uma Internet única, de na-
tureza aberta, plural e diversa, compreendida
como um meio para a promoção do desenvol- México
vimento humano, econômico, social e cultu-
ral, contribuindo para a construção de uma so- Em 14 de julho de 2014, o governo mexicano
ciedade inclusiva e não discriminatória (Brasil, altera sua Lei Federal de Telecomunicações e
2016c). Radiodifusão (México, 2014), incluindo dois
Quanto à taxa zero, em 11 de novembro de itens específicos para a Neutralidade da Rede.
2015, foi divulgada a Nota Técnica nº 02/2015, O primeiro item especifica que os ISPs, que
do Ministério Público Federal, que analisou o prestam serviços de acesso à Internet, deverão
Projeto Internet.org, do Facebook, e o princípio sujeitar-se às orientações gerais emitidas pelo
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Instituto Federal de Telecomunicações, como Internet, em cumprimento ao estabelecido no


segue: (a) A liberdade de escolha deve ser as- item anterior.
segurada, os usuários dos serviços de acesso
à Internet terão acesso a qualquer conteúdo,
aplicação ou serviço ofertado, dentro do qua- Argentina
dro legal aplicável, sem limitar, degradar, dis-
criminar ou restringir o acesso aos mesmos; A regulação da Neutralidade da Rede na
(b) Os ISPs, autorizados a comercializar o servi- Argentina ocorreu em forma de Lei. Em 16 de
ço de fornecimento de acesso à Internet, terão dezembro de 2014, o Senado e a Câmara dos
que se abster de obstruir, interferir, inspecionar, Deputados, reunidos no Congresso Nacional,
filtrar ou discriminar conteúdos, aplicações ou sancionam a chamada Lei Argentina Digital e,
serviços; (c) A privacidade deve ser assegu- em 18 de dezembro de 2014, a promulgam. Esta
rada. Os ISPs deverão preservar a privacidade Lei (Lei nº 27.078) tem por objeto o desenvolvi-
dos usuários e a segurança da rede; (d) A trans- mento no setor de TIC, incluindo as telecomu-
parência e a informação devem ser assegura- nicações, garantindo a completa Neutralidade
das. Os ISPs deverão publicar na sua página da da Rede. Especificamente, seu Art.56 garante
Internet informações relativas às característi- a cada usuário o direito de acessar, utilizar,
cas do serviço ofertado. Isto inclui as políticas enviar, receber ou enviar qualquer conteúdo,
de gerenciamento de tráfego autorizadas pelo aplicação, serviço ou protocolo por meio da
Instituto, a velocidade, a qualidade, a natureza Internet, sem nenhum tipo de bloqueio, restri-
e a garantia do serviço; (e) Finalmente, trata do ção, discriminação, diferenciação, interferên-
gerenciamento de tráfego, descrita a seguir. Os cia, estrangulamento ou degradação. O Art. 57
ISPs poderão tomar as medidas ou ações ne- trata das proibições. Os prestadores de serviços
cessárias para o gerenciamento do tráfego con- de TIC não poderão: (i) bloquear, interferir, dis-
forme as políticas autorizadas pelo Instituto, a criminar, estrangular, degradar ou restringir a
fim de garantir a qualidade ou a velocidade do utilização, o envio, o recebimento, ou o acesso,
serviço contratado pelo usuário, desde que isto a qualquer conteúdo, aplicação, serviço ou pro-
não constitua uma prática contrária à competi- tocolo, salvo por ordem judicial ou solicitação
ção saudável e à livre concorrência; (f ) A quali- expressa do usuário; (ii) estabelecer preço para
dade deve ser assegurada, os ISPs deverão man- o acesso à Internet em virtude dos conteúdos,
ter os padrões mínimos de qualidade previstos serviços, protocolos ou aplicações a serem uti-
nas diretrizes correspondentes; (g) O desenvol- lizados ou ofertados nos respectivos contra-
vimento sustentável da infraestrutura deve ser tos; e (iii) limitar arbitrariamente o direito do
garantido. Nas diretrizes correspondentes, o usuário de utilizar qualquer hardware ou soft-
Instituto deverá promover o crescimento sus- ware para acessar a Internet, sempre que os
tentável da infraestrutura de telecomunicações. mesmos não causarem dano ou prejuízo à rede
O segundo item sobre a Neutralidade da (Argentina, 2014).
Rede tratado na Lei Federal determina que
os ISPs deverão fornecer o serviço de acesso
à Internet respeitando a capacidade, a velo- Estados Unidos
cidade e a qualidade contratada pelo usuário,
independentemente do conteúdo, da origem, Nos Estados Unidos, as regras para garantir
do destino, ou da aplicação, bem como deve- uma Internet aberta foram adotadas pela FCC
rão fornecer os serviços prestados através da (Federal Communications Commission) em 26 de
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fevereiro de 2015. Entretanto, desde 2002, a segura, onde o tráfego indesejado, tais como
FCC vinha tomando várias medidas para que spam, é restringido (Federal Communications
isto ocorresse. Em 2002, a FCC classificou o Commission, 2009).
serviço doméstico de Internet de alta veloci- Em 21 de dezembro de 2010, a FCC adota três
dade como “serviço de informação” (Federal regras básicas para preservar a Internet como
Communications Commission, 2002). O fato uma plataforma aberta para a inovação, o inves-
gerou polêmica porque este serviço era consi- timento, a criação de emprego, o crescimento
derado como um serviço básico, e os ISPs eram econômico, a concorrência, e a livre expressão:
considerados provedores deste tipo de serviço, (i) a transparência (transparency); (ii) nenhum
como os provedores de telefonia. Assim, a par- bloqueio (no blocking), e (iii) nenhuma discri-
tir do momento em que a FCC fez a classifi- minação não razoável (no unreasonable discrimi-
cação do serviço de acesso à Internet como nation) (Federal Communications Commission,
“serviço de informação”, e não de “telecomuni- 2010).
cações”, deu-se início ao debate sobre as ques- Em 14 de janeiro de 2014, as três regras ado-
tões que envolvem o trânsito na Internet e a sua tadas pela FCC em 2010 são julgadas pela Corte
regulação, debate este que foi denominado por de Apelação do Distrito de Columbia (The United
Tim Wu, também em 2002, como Neutralidade States Court of Appeals for the District of Columbia).
da Rede (Wu, 2002). Em 5 de agosto de 2005, Como resultado do julgamento, esta Corte de
a FCC divulga que a Suprema Corte concordou Apelação afirma a autoridade da FCC para regu-
com a sua posição adotada em 2002 (Federal lar o serviço de acesso à Internet de banda larga,
Communications Commission, 2005). sanciona a regra da transparência, mas anula as
Em 16 de julho de 2007, a FCC finaliza sua regras de não bloqueio e de discriminação não
consulta pública sobre a Neutralidade da Rede, razoável, por considerar que não são práticas
obtendo um total de 27.000 comentários a ilícitas quando classificadas em “serviços de in-
favor e contra, provenientes de empresas, con- formação” versus “serviços de telecomunicações”
sumidores e representantes do governo, sendo (Federal Communications Commission, 2014b).
que a maioria dos participantes eram usuários Em 08 de maio de 2014, 122 investidores em
comuns da Internet que enviaram seus comen- tecnologia, como por exemplo, fundos de pen-
tários por e-mail (Anderson, 2007). Em 12 de são e instituições financeiras, enviam uma
Fevereiro de 2008, o Congresso Americano carta à FCC, encorajando a Comissão a conside-
aprova a Lei HR 5.353, denominada Preservação rar todas as ferramentas jurisdicionais disponí-
da Liberdade na Internet (Internet Freedom veis, no sentido de garantir uma Internet livre
Preservation), a fim de direcionar a FCC a con- e aberta que recompense, sem prejuízo, o in-
duzir um processo para avaliar a concorrência, vestimento e o empreendedorismo. Esta carta é
a defesa do consumidor e as questões relacio- uma crítica às regras da FCC. Segundo estes in-
nadas à liberdade de escolha do consumidor vestidores, as regras não contemplam todos os
para serviços de acesso à Internet de banda pontos necessários para garantir a Neutralidade
larga (United States of America, 2008). Em 22 da Rede porque não impedem, por exemplo,
de outubro de 2009, a FCC lança à consulta pú- que os ISPs trafeguem o conteúdo na Internet
blica uma proposta de regulamentação sobre as por meio das chamadas “pistas rápidas e len-
práticas da indústria de banda larga, em espe- tas” (priorização paga). Os investidores deixam
cial sobre as regras para permitir aos provedo- claro à FCC nesta carta que precisam de re-
res de banda larga administrar razoavelmente gras simples, fortes e exequíveis contra a dis-
suas redes e ajudar a garantir uma Internet criminação e as taxas de acesso, e não apenas
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contra o bloqueio. (Letter to FCC chairman de não haver bloqueio. O não estrangulamento
Tom Wheeler, 2014). Em 15 de maio de 2014, proíbe a degradação do tráfego da Internet com
a FCC lança nova consulta pública com o ob- base na origem, destino ou conteúdo. Também
jetivo de encontrar a melhor abordagem para proíbe especificamente a conduta que prioriza
proteger e promover a Internet aberta, rece- conteúdos específicos, por exemplo, que com-
bendo comentários até 15 de julho e respon- petem com serviços do próprio provedor de
dendo-os até 10 de setembro de 2014 (Federal banda larga;
Communications Commission, 2014a). (iii) Não Priorização Paga: a priorização paga
Finalmente, nas regras adotadas em 26 de ocorre quando um ISP aceita pagamento (mo-
fevereiro de 2015 (Federal Communications netário ou não) para gerenciar sua rede de uma
Commission, 2015b), a FCC volta a classificar o forma que beneficia determinado conteúdo,
acesso de banda larga à Internet como um “ser- aplicação, serviço ou dispositivo. A priorização
viço de telecomunicações”, o que lhe garante o paga refere-se à gestão da rede de um ISP para
fundamento jurídico necessário para preservar favorecer, direta ou indiretamente, algum trá-
e proteger a Internet aberta. As regras adotadas fego sobre outros tipos de tráfego, incluindo
visam proteger e manter o acesso aberto e livre uso de técnicas como a engenharia de tráfego,
para os conteúdos lícitos online, sem que os a priorização, a reserva de recursos ou outras
ISPs estejam autorizados a bloquear, prejudicar formas de gerenciamento de tráfego prefe-
ou estabelecer pistas rápidas e lentas para os rencial, em troca de benefício monetário ou
conteúdos lícitos. De acordo com a FCC, estas não, recebido de um terceiro, ou, para benefi-
novas regras foram projetadas para proteger a ciar uma entidade afiliada; (iv) Transparência:
liberdade de expressão e inovação na Internet, assegurar a transparência para que os consu-
bem como promover o investimento em redes midores sejam plenamente informados sobre
de banda larga do país. Também para a FCC, o acesso à Internet que estão pagando e para
estas novas regras foram fundamentadas na que os provedores de borda tenham a informa-
base legal mais forte possível, e aplicam-se aos ção de que necessitam para compreender se os
serviços de banda larga fixa e móvel (Federal seus serviços irão funcionar como anunciado.
Communications Commission, 2015a). (v) Interconexão: o Serviço de Acesso à Internet
Dentre as 400 páginas deste documento de de banda larga – BIAS (Broadband Internet Access
regulação, denominado FCC 15-24–Report and Service) envolve a troca de tráfego entre um ISP
Order on Remand, Declaratory Ruling, and Order, de e as redes de conexão. Segundo esta regra, os
26 de fevereiro de 2015, destacam-se pela sua clientes devem ser capazes de alcançar “todos
inerência à Neutralidade da Rede as seguintes ou substancialmente todos os destinos de
regras que visam proteger os consumidores de Internet”, incluindo, necessariamente, a pro-
táticas que ameaçam a Internet aberta, descri- messa de fazer os acordos de interconexão ne-
tas a seguir: (i) Não bloqueio: os consumidores cessários para permitir esse acesso (Federal
de Internet de banda larga devem obter o que Communications Commission, 2015b).
pagaram, ou seja, ter acesso a todos os destinos Quanto à taxa zero, a FCC salienta que tal
(legais) na Internet; (ii) Não estrangulamento: prática tem o potencial de distorcer a concor-
a proibição de estrangulamento é necessária rência, permitindo que os prestadores de ser-
tanto para satisfazer as expectativas razoáveis viços escolham entre conteúdo e aplicativos, ao
de um cliente de banda larga de ter acesso a mesmo tempo em que novas ofertas de ser-
toda a Internet legítima, quanto para evitar al- viços, dependendo de como elas sejam estru-
guma artimanha concebida para evitar a regra turadas, podem beneficiar os consumidores
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e a concorrência. Por conseguinte, a FCC de- Communications Commission, 2016). E, ainda,


cide analisar e avaliar tais práticas sob o pa- em 15 de abril de 2016, a Câmara dos Deputados
drão da interferência, da desvantagem, da não dos Estados Unidos aprovou, com apoio bipar-
razoabilidade, com base nos fatos de cada caso tidário, a Lei HR 2.666, proposta pelo congres-
individualmente e, após, isso, tomar as me- sista Adam Kinzinger. Esta Lei refere-se à não
didas necessárias (Federal Communications regulação de taxa de acesso à Internet de banda
Commission, 2015b). larga, e a sua aprovação contém uma forte
De acordo com Klint Finley, após a adoção mensagem para a Casa Branca e para o presi-
das regras da Internet aberta, que, teorica- dente da FCC, Tom Wheeler, que as taxas de
mente, inauguraram a era da Neutralidade da banda larga devem ser mantidas livres de re-
Rede, a batalha com as forças que se opõem gulação governamental para os ISPs (Kinzinger,
a ela está longe de terminar, visto que exis- 2016; Brodkin, 2016; Kinzinger, 2016a).
tem ameaças vindas de várias direções (Finley, Em 14 de junho de 2016, a Corte de Apelação
2016). Desde a adoção das suas regras, a FCC do Distrito de Columbia afirmou que a FCC
vem sofrendo pressão dos opositores. Na exerceu sua apropriada autoridade quando re-
moção de rejeição, de 08 de maio de 2015, classificou o acesso à Internet de banda larga
junto ao tribunal de Apelações do Distrito de como um serviço de telecomunicações sob o
Columbia, a FCC cita petições que foram mo- Título II da Lei das Comunicações (Karr, 2016).
vidas por algumas organizações contra as suas Em 3 de janeiro de 2017, o projeto de Lei da
regras da Neutralidade da Rede, logo após chamada Lei da Restauração da Liberdade na
serem instituídas, conforme segue. Em 23 Internet, do senador Mike Lee, que visava proi-
de março de 2015, foram apresentadas peti- bir a FCC de reclassificar o serviço de acesso à
ções pela Alamo Broadband e a The United States Internet como um serviço de telecomunicações
Telecom Association (USTelecom). Em 14 de abril e de impor regulamentos sobre os prestadores
de 2015, a Alamo Broadband novamente apre- desse serviço, teve seu prazo expirado e não foi
senta outro pedido de revisão das regras e, em promulgado (S. 2602 (114th), 2017). Também em
23 de abril de 2015, uma petição foi feita por 3 de janeiro de 2017, a Lei HR 2.666, que visava
um grupo que incluiu a Full Service Network, a a não regulação de taxa de acesso à Internet,
TruConnect Mobile, a Sage Telecommunications LLC também teve seu prazo expirado e não foi pro-
e a Telescape Communications (United States of mulgada (H.R. 2666 (114th), 2017).
America, 2015). Em 3 de fevereiro de 2017, o comissário
Em 25 de fevereiro de 2016, o senador dos Michael O’Rielly (Federal Communications
Estados Unidos, Mike Lee, propôs um projeto Commission, 2017d) declara que a FCC con-
de lei para proibir a FCC de reclassificar o servi- clui os inquéritos efetuados sobre a taxa zero
ço de acesso à Internet de banda larga como um sem penalizar os ISPs que faziam parte do in-
serviço de telecomunicações e de impor regras quérito. Também em 3 de fevereiro de 2017,
sobre os prestadores de tal serviço, a chamada o atual presidente da FCC, Ajit Pai (Federal
Lei da Restauração da Liberdade na Internet Communications Commission, 2017a), declara
(Restoring Internet Freedom Act) (Lee, 2016). Em sobre a prática da taxa zero que ela aumentou
11 de abril de 2016, o presidente da FCC, Tom a concorrência no mercado sem fio. Disse tam-
Wheeler, diz em discurso, em um evento da bém que a FCC não irá se concentrar em negar
Associação Comercial de Redes, a INCOMPAS, esta prática aos consumidores; em vez disso,
que a política de taxa zero está sendo revista irá se concentrar em expandir a implantação
e que não há uma data final definida (Federal de banda larga e incentivar ofertas de serviços
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inovadores. Commission para a fiscalização das práticas dos


E, ainda, em 3 de fevereiro de 2017, Ajit Pai ISPs (Federal Communications Commission,
(Federal Communications Commission, 2017b) 2017; Fung, 2017). Em 12 de fevereiro de 2018,
faz uma declaração crítica sobre as regras ado- a FCC envia ao Senado a decisão de revogar sua
tadas para a Internet Aberta em 26 de fevereiro regulação de 2015 e, em 11 de junho de 2018, a
de 2015, aprovadas pela presidência da FCC revogação se torna oficial. (Collins, 2018). Em 6
anterior a ele. Regras que chamou de “regula- de março de 2019, entra em tramitação o pro-
mentos da meia-noite” que, segundo ele, deve- jeto de lei proposto por Michael Doyle Jr.: o
riam ser revogadas. projeto de lei H.R. 1644: Save the Internet Act,
Assim, em 27 de abril de 2017, a FCC lança que tem por objetivo restaurar a regulação de
uma consulta pública para a sua nova pro- 2015. Este projeto foi aprovado em votação na
posta de regulamentação (Notice of Proposed Câmara em 10 de abril de 2019 e aguarda vota-
Rulemaking (NPRM)). Esta proposta, que visa a ção no Senado (H.R. 1644 (116th), 2019).
alteração das normas aprovadas pela FCC em
2015, é justificada com a alegação que arris-
cam a inovação, servindo, em última instân- Índia
cia, para ameaçar a Internet aberta que preten-
diam preservar. Dentre as mudanças propostas Em 27 de março de 2015, o órgão regulador
estão: (i) restabelecer a classificação de ser- do governo da Índia, a TRAI (Telecom Regulatory
viço de informação para o serviço de acesso Authority of India) publicou um documento de
à Internet de banda larga e regressar ao qua- consulta pública sobre o arcabouço regulamen-
dro regulamentar estabelecido numa base bi- tar dos serviços e aplicações acessíveis através
partidária durante a administração do ex-pre- da Internet e de operadores de redes que ofe-
sidente Bill Clinton; (ii) retornar autoridade à recem serviços de acesso à Internet, como, por
Comissão Federal de Comércio (Federal Trade exemplo, Skype, WhatsApp, Instagram, sites de
Commission) para policiar as práticas dos ISPs comércio eletrônico (como Amazon), jogos e
(Federal Communications Commission, 2017c). filmes online (como Netflix). Este documento,
Diante disso, organizações como a Save the de consulta pública, consiste em vinte per-
Internet (Save the Internet, 2017) e a Public guntas relacionadas direta ou indiretamente
Knowledge (Public Knowledge, 2017), disponi- à Neutralidade da Rede (Telecom Regulatory
bilizaram petições para serem assinadas por Authority of India , 2015a).
usuários finais em seus sites contra esta nova Em 16 de abril de 2015, a BBC News relata
proposta da FCC e em defesa da Neutralidade que o resultado da consulta pública na Índia
da Rede. Em 14 de dezembro de 2017, os mostrou que houve apoio à Neutralidade da
Estados Unidos revogaram a sua regulação de Rede, com mais de 800.000 indianos enviando
2015. A FCC decide nesta data, por 3 votos a e-mails à TRAI exigindo uma Internet livre e
2, reclassificar o serviço de acesso à Internet justa (Roy, 2015). Em 9 de dezembro de 2015,
de banda larga como um “serviço de informa- a TRAI lança um documento para nova con-
ções” e classificar o serviço de acesso à Internet sulta pública sobre a diferenciação de preços
de banda larga móvel como um “private mobile dos serviços de dados, convidando as partes
service”, que pode ser traduzido como “servi- interessadas a se pronunciarem. Esta consulta
ço móvel privado”. Além disso, nesta mesma pública questionou se os prestadores de ser-
revogação das regras de 2015, a FCC tam- viços deveriam ser autorizados a ter preços
bém restaurou a jurisdição da Federal Trade diferenciados para o acesso a sites, aplicativos
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ou plataformas e outras questões relacionadas União Europeia


(Telecom Regulatory Authority of India, 2015b).
Em 27 de dezembro de 2015, o debate sobre a Em 30 de junho de 2015, o Parlamento
Neutralidade da Rede se mantém intenso em Europeu, o Conselho Europeu e a Comissão
todo o país após o ISP indiano Airtel ter deci- Europeia chegam a um acordo sobre as regras
dido cobrar separadamente pelas ligações tele- necessárias para garantir uma Internet aberta
fônicas baseadas na Internet. Houve protestos (European Commision, 2015). Antes disso,
e os ativistas e especialistas da Internet conse- entre 2009 e 2014, a União Europeia vinha bus-
guiram impedir que fosse implantado na Índia cando regular a Neutralidade da Rede por meio
este serviço, chamado de Airtel Zero, junta- de seus representantes: a Comissão Europeia, o
mente com o projeto Internet.org, do Facebook Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e o
(NET..., 2015). Em 07 de janeiro de 2016, en- BEREC, a associação dos órgãos reguladores da
cerrou o prazo para as manifestações da con- União Europeia. Estas regulações envolveram
sulta pública (Telecom Regulatory Authority of questões como o lançamento, pela Comissão
India, 2015). E, em 8 de fevereiro de 2016, a Europeia, em 20 de novembro de 2009, das
TRAI, após ter recebido e divulgado em seu site ditas 12 reformas das telecomunicações, vi-
as opiniões recebidas sobre as questões colo- sando assegurar direitos mais fortes para o con-
cadas na consulta pública, emite um regula- sumidor, uma Internet aberta, um único mer-
mento proibindo as práticas de taxa zero, ou cado europeu das telecomunicações e conexões
as tarifas discriminatórias para os serviços de de Internet de alta velocidade para todos os ci-
dados, e impõe penalidades aos ISPs em caso dadãos (European Commision, 2009). Em 25 de
de descumprimento do regulamento (Telecom novembro de 2009, o Parlamento cria poderes
Regulatory Authority of India, 2016). de salvaguarda para as autoridades reguladoras
Em 28 de novembro de 2017 (Telecom nacionais a fim de evitar a degradação dos servi-
Regulatory Authority of India, 2017) a TRAI es- ços e a obstrução ou o retardamento do tráfego
tabelece recomendações para a Neutralidade da nas redes públicas (European Parliament, 2009).
Rede, que foram endossadas pelo Departamento Destaca-se que, também em 25 de novembro
de Telecomunicações do governo indiano em de 2009, o Parlamento Europeu e o Conselho
julho de 2018. As recomendações incluem os Europeu criaram o BEREC (Body of European
princípios para o tratamento não discrimina- Regulators for Electronic Communications)
tório de conteúdo; o gerenciamento razoável de (Regulation (EC) No 1211/2009 of the European
tráfego, que prevê a possibilidade de prioriza- Parliament and of the Council, 2009). Em 30 de
ção apenas em casos excepcionais justificados, junho de 2010, a Comissão Europeia lança con-
tais como os serviços especializados, com men- sulta pública sobre as questões fundamentais da
ção explícita à IoT (Internet of Things, Internet Neutralidade da Rede (European Commission,
das Coisas); a transparência das políticas ado- 2010). Em 11 de novembro de 2010, a Comissão
tadas pelos ISPs; além do monitoramento e fis- e o Parlamento Europeu organizam uma reu-
calização. Para os ISPs que violarem estas reco- nião de cúpula para dar oportunidade às par-
mendações estão previstas punições, tais como tes interessadas no debate da Neutralidade da
o cancelamento de sua licença. Rede de mostrar os seus pontos de vista em um
fórum aberto e público (Kroes, 2010).
Em 19 de abril de 2011, a Comissão Europeia,
a partir do resultado da consulta pública e
da reunião de cúpula, elenca os principais
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pontos discutidos para a Internet aberta e a igual, sem priorização paga de tráfego no ser-
Neutralidade da Rede na Europa e os envia viço de acesso à Internet. Ao mesmo tempo,
ao Parlamento e demais órgãos represen- a igualdade de tratamento permite o geren-
tativos a fim de verificar eventual necessi- ciamento de tráfego razoável no dia-a-dia, de
dade de orientações suplementares (European acordo com requisitos técnicos justificados, e
Commission, 2011). Em 17 de novembro de que deve ser independente da origem ou do
2011, o Parlamento Europeu observa que, nesta destino do tráfego; (iv) Será permitida a pres-
fase, não há necessidade de intervenção regu- tação de serviços especializados ou inovado-
lamentar adicional em nível europeu sobre a res, desde que eles não prejudiquem o acesso
Neutralidade da Rede e solicita transparência à Internet aberta. Tais serviços incluem o IPTV,
no gerenciamento do tráfego efetuada pelos a videoconferência, ou os serviços de saúde
ISPs, incluindo uma melhor informação para de alta definição, como a telecirurgia; (v) Taxa
os usuários finais (European Parliament, 2011). zero: também chamada na União Europeia de
Em 3 de dezembro de 2012, o BEREC publica conectividade patrocinada, a taxa zero é consi-
as orientações sobre a avaliação da razoabili- derada pela Comissão, pelo Parlamento e pelo
dade das práticas de gerenciamento de tráfego Conselho Europeu como uma prática comer-
efetuada pelos ISPs e as restrições relacionadas cial utilizada por alguns provedores de acesso à
(Body of European Regulators for Electronic Internet, nomeadamente os operadores móveis,
Communications, 2012). Em 5 de setembro para não contar o volume de dados de aplica-
de 2013, a Open Forum Europe, uma organiza- tivos particulares na quota mensal limitada do
ção sem fins lucrativos, realiza uma pesquisa usuário (European Commission, 2015).
junto aos Estados- membros para obter uma Em 26 de outubro de 2015, Tim Berners-
posição oficial de cada um sobre a regulamen- Lee ressalta que esta proposta é fraca e confusa
tação da Neutralidade da Rede, independente- porque permite aos ISPs: (i) criar “pistas rápi-
mente se a favor ou contra ela (Olmos & Castro, das”, cobrando das empresas para fornecerem
2013). E, em 14 de julho de 2014, a Comissão conteúdos priorizados na forma de serviços es-
Europeia apresenta a situação da Neutralidade pecializados; (ii) isentar algumas aplicações da
da Rede na Europa, país a país, a respeito do quota de dados dos usuários da Internet, nova-
estado de implementação do seu quadro regu- mente chamada de taxa zero; (iii) definir clas-
latório (European Commission, 2014). ses de serviços, acelerando ou desacelerando o
Finalmente, em 30 de junho de 2015, a tráfego destas classes; e (iv) retardar o tráfego
Comissão, o Parlamento e o Conselho Europeu a qualquer hora, argumentando, por exem-
chegam a um acordo sobre os elementos-chave plo, que o congestionamento estava prestes a
para um mercado único de telecomunicações acontecer, portanto, estava impedindo este imi-
para os 28 Estados-membros. Dentre as regras nente congestionamento. Para Tim Berners-
propostas, destacam-se pela sua inerência à Lee, se essas regras propostas forem adotadas
Neutralidade da Rede as seguintes: (i) Não ha- como estão, irão ameaçar a inovação, a liber-
verá nenhum bloqueio ou estrangulamento de dade de expressão e a privacidade, além de
conteúdo online, aplicações e serviços; (ii) Cada comprometer a capacidade de liderança da
europeu poderá ter acesso à Internet aberta e Europa na economia digital. Mais de trinta
todos os provedores de conteúdo e de serviços empresas, como BitTorrent, Netflix e Reddit,
devem ser capazes de fornecer os seus serviços bem como organizações como Bits of Freedom
através de uma Internet aberta de alta quali- e Electronic Frontier Foundation, assinaram
dade; (iii) Todo o tráfego será tratado de forma uma carta aberta ao Parlamento Europeu para
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aprovar as alterações necessárias para impedir entre as existentes.


que os ISPs possam ter este comportamento Com esta nova regulação a ser seguida pelas
nocivo à Neutralidade da Rede (World Wide NRAs, o BEREC visa assegurar o cumprimento
Web Foundation, 2015). Em 27 de outubro de das regras destinadas a salvaguardar o trata-
2015, o Parlamento Europeu levou à votação as mento igual e não discriminatório do tráfego
alterações propostas e votou contra elas, dei- na prestação de serviços de acesso à Internet e
xando a responsabilidade para as autoridades os direitos dos usuários finais. Dentre as ques-
reguladoras dos Estados-membros. O BEREC é tões tratadas pelo BEREC, destacam-se três pela
quem deverá emitir as diretrizes, após consulta sua relevância ao debate da Neutralidade da
pública (Baraniuk, 2015) e (The Fight for net Rede: (i) taxa zero; (ii) gerenciamento de trá-
neutrality in europe is not over, 2015). fego; e (iii) transparência (Body of European
Em 30 de agosto de 2016 o BEREC (Body Regulators for Electronic Communications,
of European Regulators for Electronic 2016a).
Communications, 2016b) lança as diretrizes Quanto à taxa zero, as NRAs devem ter em
da Neutralidade da Rede para as autoridades conta o objetivo do regulamento de salvaguar-
reguladoras nacionais (National Regulatory dar o tratamento igualitário e não discrimina-
Authorities–NRAs) dos países que fazem parte tório do tráfego e garantir o funcionamento
da União Europeia. Estas diretrizes fornecem contínuo do ecossistema da Internet como
as orientações necessárias para as autoridades, motor da inovação, bem como a intervenção
as NRAs, terem em conta quando da aplicação contra acordos ou práticas comerciais que, de-
das regras e da avaliação de casos específicos. vido à sua dimensão, conduzem a situações em
Para chegar a estas diretrizes, o BEREC lançou que a escolha dos usuários finais é material-
uma consulta pública de seis semanas, que se mente reduzida na prática, ou que resulta em
encerrou em 18 de Julho de 2016. O número minar a essência dos direitos dos usuários fi-
de contribuições recebidas antes da data-limite nais. A avaliação deve ter em conta também as
foi de 481.547, resultando em uma participação posições de mercado, dos provedores de ser-
sem precedentes para uma consulta do BEREC. viços de acesso à Internet e dos provedores de
As contribuições foram provenientes de diver- conteúdos, aplicações e serviços.
sas categorias: da sociedade civil, instituições Quanto ao gerenciamento de tráfego, as
públicas e peritos independentes, ISPs, forne- NRAs devem assegurar que os serviços de
cedores de conteúdos e aplicações e outras par- acesso à Internet não sofram discriminação,
tes interessadas da indústria. O BEREC proces- restrição ou interferência; independentemente
sou as contribuições recebidas e realizou uma do remetente e do destinatário, do conteúdo
avaliação exaustiva das contribuições, atuali- acessado ou distribuído, aplicações ou serviços
zando cerca de um quarto dos parágrafos das utilizados ou fornecidos, ou dos equipamentos
diretrizes para a sua versão final. utilizados. As medidas razoáveis de gerencia-
De acordo com a Save the Internet (EU wants mento de tráfego aplicadas pelos ISPs devem
to thank everyone who participated in this ser transparentes, não discriminatórias e não
outstanding effort to protect net neutrality in devem basear-se em considerações comerciais.
Europe and keep the Internet free and open! Quanto à transparência, as NRAs devem pro-
Internet wins, thank you!, 2016), as orientações curar assegurar que os ISPs deem transparên-
finais do BEREC, que foram publicadas em 30 cia às informações sobre o serviço de acesso
de agosto de 2016, oferecem algumas das pro- à Internet que oferecem. Estas informações
teções de Neutralidade de Rede mais fortes devem ser claras e compreensíveis: devem ser
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facilmente acessíveis e identificáveis pelo que Comunicação). O relatório inclui recomenda-


são. As informações não devem criar uma per- ções para a Neutralidade da Rede, tais como:
cepção incorreta do serviço prestado ao usuário transparência, não bloqueio de conteúdo legal
final e devem permitir comparações com o e a não discriminação não-razoável de tráfego,
serviço prestado por diferentes ISPs. As NRAs com as devidas exceções para serviços de emer-
devem assegurar que os ISPs incluam no con- gência e o bloqueio de conteúdo ilegal.
trato e publiquem as informações sobre os pa-
râmetros técnicos adotados.
Conclusão
Austrália
Neste trabalho, apresentamos um le-
Na página do órgão regulador das teleco- vantamento sobre regulações que tratam
municações da Austrália, a ACMA (Australian a Neutralidade da Rede em 16 países mais a
Communications and Media Authority), União Europeia, que engloba outros 28 países.
foram encontradas regulações sobre aplica- É possível observar que os Estados Unidos dão
ções específicas tais como VOIP e Internet o início à regulação e também permeiam todo
das Coisas (Australian Communications and o tempo em que perdura o debate e a regulação
Media Authority, 2019) que trazem considera- no mundo. Poucos são os países que estabelece-
ções sobre a Neutralidade da Rede. Entretanto, ram sua regulação em forma de lei, o Brasil é
nenhum tipo de regulação exclusiva foi en- um deles, por meio do Marco Civil da Internet.
contrada. Em 18 de novembro de 2015, Ziggy À luz do que foi apresentado, verifica-se que
Switkowski, presidente da NBN, a Rede há uma preocupação de países dos 5 continen-
Nacional de Banda Larga da Austrália–National tes com a garantia de uma Internet aberta e
Broadband Network–diz que é inevitável um de livre trânsito, assim como com a manuten-
debate nacional sobre a Neutralidade da Rede ção da concorrência e da inovação. Ao mesmo
na Austrália como resultado da largura de tempo, percebe-se o jogo de interesses que nor-
banda crescente usada por serviços como os de teia o comportamento dos agentes envolvidos
streaming de vídeo (Sadauskas, 2015). no debate. Um exemplo é o dos Estados Unidos,
país em que, mesmo após o estabelecimento de
regras rígidas em prol da Neutralidade da Rede,
África do Sul uma mudança de governo provocou questiona-
mentos e a reversão do que estava estabelecido,
Na África do Sul, o órgão regulador das te- numa clara demonstração de disputa de forças
lecomunicações é a ICASA (Independent no mercado das telecomunicações.
Communications Authority of South Africa, Mesmo levando em conta toda a preocupação
2017) subordinada ao DTPS (Department of mundial sobre o tema, traduzida pelos governos
Telecommunications and Postal Services). em regras, leis ou diretrizes, restam enormes
Estes órgãos têm promovido discussões sobre lacunas para que a Internet possa ser conside-
a Neutralidade da Rede. Em março de 2015 rada realmente neutra. Em particular, destaca-
(Department of Telecommunications and -se que há enormes desafios técnicos para a de-
Postal Services, 2015) o DTPS publicou um re- tecção de violações da Neutralidade da Rede,
latório delineando uma política integrada para que permitam certificar que uma determi-
o setor de TICs (Tecnologias de Informação e nada rede é efetivamente neutra. É importante
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salientar que, para que a Neutralidade da Rede


seja efetivamente assegurada, além da regula-
ção, é necessária uma fiscalização efetiva, ba-
seada em ferramentas de monitoramento do
tráfego dos ISPs. Somente assim é possível ga-
rantir os benefícios da Neutralidade: uma rede
sem discriminação, com livre concorrência e
aberta à inovação.
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junho de 2019, disponivel em http://dx.doi.
org/10.1145/1461928.1461942
Recebido em 29/06/2019
Aceito em 18/12/2019
311

ARTIGO

Virtualidade,
violência online
e corpo: uma
compreensão
fenomenológica

Nara Helena Lopes


Pereira da Silva
Psicóloga Clínica, Doutora pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) e
pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (IPUSP). E-mail:
psicologa.orienta@gmail.com.
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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA

Virtualidade, violência
online e corpo:
uma compreensão
fenomenológica

Palavras-chave Resumo
fenomenologia Este trabalho pretende discorrer sobre a vio-
virtual lência online, tendo como exemplos o cyber-
internet bullying, os discursos de ódio, o contágio e a
corporeidade indução à violência em crianças e jovens e
violência online os trollings. Tem-se como objetivo uma lei-
tura fundamentada em estudos fenomenoló-
gicos, através da compreensão de aspectos do
fenômeno. Nesse sentido, para apreender a
violência online, é importante dar um passo
anterior e evidenciar primeiramente o fenô-
meno da virtualidade/online. O que é o virtual
e quais implicações essa mediação promove no
mundo da vida? Propõem-se questionamentos
sobre como ocorrem as relações com si pró-
prio e com os outros diante do alargamento das
formas de interação influenciadas pelas tecno-
logias digitais. A pergunta central passa a ser,
portanto, quem é o ser humano que vivencia
o universo online? Busca-se apreender aspectos
essenciais dessa experiência, voltando-se para
a defesa do espaço do sentir, Aisthesis, e dessa
forma, para uma compreensão da corporeidade
em sentido fenomenológico, sugerindo a ne-
A autora é pesquisadora cessidade de reflexões atuais sobre ética e esté-
de pós-doutorado com tica. O corpo está presente no espaço virtual e
financiamento FAPESP apresenta-se como uma corporeidade híbrida.
processo no. 2018/ 11351-2 Amplia-se, dessa forma, o tema da violência
e desenvolve o projeto online para debates que pontuem caminhos no
“Psicoterapia mediada pelas entrelaçamento entre vida online e offline, de
TICs - um estudo longitudinal”. maneira integrada, conectada e ética.
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PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA

Virtuality, online
violence and body:
a phenomenological
understanding

Keywords Abstract
phenomenology This paper aims to discuss online violence, ta-
virtual king as examples cyberbullying, hate speech,
Internet contamination and induction of violence in
corporeity children and youth, and trollings. The objec-
online violence tive is a reading based on phenomenological
studies, by understanding aspects of the phe-
nomenon. In this sense, in order to seize on-
line violence is important to take a previous
step and first highlight the phenomenon of on-
line/virtuality. What is virtual and what does
this mediation promote in the world of life?
Questions are proposed about how the rela-
tionship with oneself and others occurs, given
the widening forms of interaction influenced
by digital technologies. The central question
then becomes who is the human being who ex-
periences the online universe? It seeks to grasp
essential aspects of this experience, turning to
the defense of the space of feeling, Aisthesis,
and thus to an understanding of corporeality
in a phenomenological sense, suggesting the
need for current reflections on ethics and aes-
thetics. The body is present in the virtual space
and presents itself as a hybrid corporeality. In
this way, the theme of online violence is ex-
panded to debates that punctuate paths in the
interweaving of online and offline life, in an
integrated, connected, and ethical way.
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1. Tecnologias digitais e de Internet tem sido maior do que o cresci-


comunicação mento mundial da população. Segundo dados
do relatório Digital divulgado pelos serviços
online Hootsuite e We Are Social (2019), entre
As tecnologias digitais de informação e co- janeiro de 2018 e janeiro de 2019, a popula-
municação trouxeram um marco importante ção mundial teve um aumento de 84 milhões
com o desenvolvimento da Internet ao per- (aproximadamente 1,1 %) de pessoas, ao passo
mitirem a entrada num universo de criação que o número de usuários de Internet aumen-
virtual, basicamente concebido para ser um tou em 288 milhões de pessoas (mais de 9% em
espaço relacional de informação e de com- um ano). Mais de 4.388 bilhões de pessoas (56%
partilhamento de conhecimento. Assiste-se, da população mundial) estão conectadas; 3.480
atualmente, a uma influência significativa nos bilhões (45% da população) utilizam mídias so-
comportamentos e hábitos das pessoas, confi- ciais, sendo que 3.260 bilhões de pessoas (42%
gurando novas formas de interação, na medida da população) as acessam através de telefones
em que cada vez mais as tecnologias são desen- móveis. No mesmo período, o Brasil passou da
volvidas com o intuito de estarem imersas nos terceira (3ª) posição para a segunda (2ª) no que
diversos âmbitos da vida, sem a distinção entre se refere ao tempo de uso diário da Internet,
vivências online e offline. totalizando, em média, 9h30min, sendo que a
Os primeiros esboços da Internet surgiram média dos internautas do mundo é de aproxi-
no período da Guerra Fria, em 1960, e visa- madamente 6h43min.
vam prevenir a perda de informações sigilo- As faixas etárias vivenciam de modo diferen-
sas do governo dos EUA. Na década seguinte, ciado essas transformações. Os adolescentes
as universidades passaram a estudar esse novo e as crianças são quem as vivem plenamente,
sistema para contribuir com tecnologias para com uma tendência ao crescimento no Brasil
defesa dos dados. Em meados da década de nos últimos anos. Segundo a pesquisa TIC
1990, o cientista Tim Berners-Lee, do Conseil Kids Online Brasil, realizada todo ano desde
Européen pour La Recherche Nucléaire, criou 2012 pelo Centro Regional de Estudos para o
a WWW, World Wild Web, com a finalidade de Desenvolvimento da Sociedade da Informação
interligar as universidades para que as pesqui- – Cetic.br (2018):
sas acadêmicas fossem trocadas em um am-
biente de mútua contribuição das partes envol- Em 2017, 85% das crianças e adolescentes
vidas. Dessa forma, em sua concepção inicial, a de 9 a 17 anos eram usuários de Internet, o
Internet surge com fins de proteger, informar que corresponde a 24,7 milhões de usuários
e compartilhar conhecimentos. Com o avanço no Brasil. Para acessarem a rede, 93% dessas
das tecnologias, novos tipos de comunicação e crianças e adolescentes utilizaram o telefone
de relacionamentos em rede emergiram, tra- celular, sendo que o uso exclusivo desse
zendo a possibilidade de seus próprios usuários dispositivo para acessar a Internet chegou a
gerarem conteúdos de maneira independente, 44% em 2017. Esse percentual indica que 11
transformando esse ambiente, que inicial- milhões de crianças e adolescentes brasileiros
mente foi vislumbrado como um portal de in- usaram a Internet apenas pelo telefone
formações, para se tornar um meio de livre di- celular, sendo que mais de 10 milhões
vulgação de conteúdos e compartilhamentos pertenciam às classes C e DE. (Centro
(Barwinski, 2009). Regional de Estudos para o Desenvolvimento
Nos últimos anos, o aumento dos usuários da Sociedade da Informação, 2018, p. 122)
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Televisão, Internet, videogame e celulares pessoas presentes, sem a possibilidade de regis-


constituem o habitat cotidiano das crianças tro, tendo como marca principal a lembrança
e adolescentes. Os meios online são utilizados da presença da pessoa. A espontaneidade é um
para comunicação por meio de e-mail, men- forte componente emocional, com a interação
sagens de texto, chat, fóruns, blogs e, também, entre voz, gestos físicos, palavras para expressar
para informação e conhecimento, compartilha- opiniões, atenção visual e conexão às emoções.
mento em redes sociais, uso de aplicativos para Já a escrita tem como característica a reflexão
fotos, vídeo, para diversão através de jogos on- e a elaboração, com a ausência do interlocutor
line, rádio e televisão digitais, para consumo e compensada pelo possível impacto que o texto
compras online e para relacionamentos afetivos. provoca no leitor. As novas tecnologias aliadas
Trata-se de uma geração interativa, pois nasceu, à Internet rompem com as fronteiras entre co-
cresceu e conviveu com múltiplos dispositivos municação oral e escrita, gerando uma nova
ao seu redor. É uma geração autônoma e auto- forma de se comunicar através da fala escrita,
didata; as crianças descobrem por elas mesmas com a prevalência de textos rápidos e curtos.
o funcionamento das mídias digitais, adqui- Distancia-se da comunicação escrita, pois seu
rindo habilidades que os adultos não possuem. caráter de resposta instantânea resulta no ato
A organização e a comunicação da informação de escrever pouco refletido, com a expectativa
ocorrem de uma maneira nova, em virtude da de uma resposta rápida. Por outro lado, dife-
quantidade, da diversidade e da velocidade do rencia-se, também, da comunicação oral, por
compartilhamento, com uma mudança impor- não haver uma preocupação e sensibilidade
tante: é uma geração que supera a linearidade com o sentimento do outro, em virtude da não
do discurso e que se sente confortável com uma presença do interlocutor. Por fim, as mensa-
nova configuração do conhecimento, através de gens online são, ainda, referidas a circunstâncias
uma cultura mosaico, de navegação hipervin- específicas. Porém, diferentemente das comu-
culada, com múltiplas tarefas por vez, em que nicações orais informais, estas se tornam pere-
estuda e navega simultaneamente, escuta mú- nes nos arquivos das redes (Sorj, Cruz, Santos,
sica e está online em videogames e, simultanea- Ribeiro, & Ortellado, 2017).
mente, comunicando-se com centenas de con-
tatos nas redes sociais (Aguaded, 2011).
A transformação da comunicação face-a-face 2. Violência online
com o domínio da comunicação online implica
diretamente em novas formas de se relacionar,
seja entre as pessoas, seja com o mundo, além Estudiosos vêm se dedicando para compreen-
de promover uma outra concepção do conhe- der a violência que ocorre dentro do universo
cimento, em que a transmissão entre gerações online. São exemplos o cyberbullying, os discursos
deixa de ser o principal canal de informação e de ódio e o contágio e indução à autoagressão
formação. A interconexão online e offline da vida em crianças e jovens. A insensibilidade na co-
modifica as modalidades de ser e de viver. A municação é ampliada através das redes sociais,
Internet provoca transformações na forma de implicando em comunicações que intencional-
se comunicar, descaracterizando uma cultura mente visam difamar ou denegrir a imagem do
milenar na qual havia uma distinção clara entre outro, provocando impactos intensos através
a oralidade e a escrita. A comunicação oral in- de um comportamento violento que fomenta a
formal fora dos espaços da Internet se carac- violência no mundo físico, em que os autores
teriza por ser contextualizada e direcionada às ficam ocultos através de uma tela, como, por
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exemplo, nos casos de cyber revenge, em geral influenciam as decisões de suicídio, de encora-
caracterizados pela divulgação de fotos íntimas jamento à práticas de atos de violência, idola-
de ex-relacionamentos (Carvalho, 2016). tria ou pactos de violência e de suicídio (Pereira,
O Cyberbullying é derivado do bullying, que 2017; Luxton et al., 2012; Mishara, 2007).
pode ser traduzido como intimidar ou ame- A sociabilidade de crianças e jovens passa
drontar. Apresenta-se em distintas configura- pelo contato direto com as mídias digitais, não
ções e pode ser reconhecido como atos de vio- havendo mais distinções entre o mundo online
lência psicológica e sistemática contra crianças e offline, as interações mediadas pela Internet
e adolescentes que ocorrem por meio das redes através do celular ocorrem a qualquer mo-
de sociabilidade digital, a qualquer momento mento do dia (Aguaded, 2011). As comunica-
e sem um espaço circunscrito e demarcado fi- ções eletrônicas aumentam o risco do contágio
sicamente. Além disso, pode ser disseminado de suicídio e de comportamentos de autoagres-
globalmente e o tempo de permanência das são entre pessoas jovens (Robertson, 2012).
postagens ofensivas é indeterminado. A tec- No que se refere aos riscos de exposição a
nologia online incentiva a comunicação da vio- conteúdos inadequados ou sensíveis, como os
lência por meio de e-mails ameaçadores, men- relacionados a autodano e riscos de contato e
sagens negativas em sites de relacionamento e de conduta, com temáticas relacionadas à into-
torpedos com fotos e textos constrangedores lerância ou a discursos de ódio:
para a vítima, em um campo ilimitado de ata-
ques e medo, visto que a agressão pode ocorrer cerca de dois em cada dez usuários de
a qualquer momento e disseminar-se massiva- Internet entre 11 e 17 anos (19%) declararam
mente. Tanto as vítimas quanto os praticantes ter tido contato com formas para ficar
de cyberbullying vivenciam experiências negati- muito magros(as), 15% com formas de
vas em sua saúde, podendo ocorrer inclusive machucar a si mesmo, 13% com formas
evasão escolar, isolamento social, depressão, de cometer suicídio e 10% com assuntos
ideação suicida e suicídio. O risco de suicídio relacionados a experiência ou uso de
aumenta entre as vítimas em virtude da insta- drogas (...) 39% dos usuários de Internet
bilidade, isolamento e falta de esperança, o que entre 9 e 17 anos tendo declarado ter visto
caracteriza o Cyberbullicídio. Entre os aspectos alguém ser discriminado ou sofrer algum
pouco abordados, destaca-se a importância de tipo de preconceito na rede. O principal
problematizar como a cultura cyber estabelece motivo citado para a discriminação
as novas sociabilidades (Ferreira & Deslandes, testemunhada por esse público foi a cor
2018; Luxton et al., 2012). ou raça (26%), seguido por aparência física
No que se refere ao suicídio, uma revisão (16%), gostar de pessoas do mesmo sexo
bibliográfica sobre a temática nas redes sociais (14%) e religião (11%). (Centro Regional
virtuais aponta a existência de dois tipos de co- de Estudos para o Desenvolvimento da
municação online: uma comunicação preven- Sociedade da Informação, 2018, pp.140-142).
tiva, com a difusão de grupos de apoio online,
tele psiquiatria e uma comunicação pró-sui-
cida, em que a Internet oferece fácil acesso aos O acesso a formas de discriminação, auto-
conteúdos sobre métodos de violência, além de dano, preconceitos na Internet atinge dire-
informações detalhadas de métodos, com des- tamente essa faixa etária. Isso significa que o
crições de formas letais e venda ilegal de subs- uso do celular influencia as atividades reali-
tâncias, grupos de pessoas que se identificam e zadas, impactando na formação de habilidades
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múltiplas e na mediação dos riscos derivados autonomia quanto à possibilidade de


desse uso. Segundo o estudo, a intensidade sair do jogo. (Moretto, 2017, p. 160)
no uso aumenta as chances de crianças e ado-
lescentes estarem expostas a riscos, como pu-
blicidade infantil, cyberbullying e conteúdo de A consciência e a autonomia responsável no
natureza intolerante, sendo importante o de- uso das novas tecnologias distanciam-se do que
senvolvimento de políticas e ações relativas ao ocorre no uso cotidiano. Tem-se a ilusão de
direito à privacidade e à proteção dos dados na que o ambiente virtual não é um mundo real,
rede (Sorj et al, 2017). o que promove a produção e a reprodução da
A indução à violência entre crianças e jovens violência com grande intensidade, sem frontei-
surge também com a propagação de memes ou ras, como o reflexo da vida online e offline mis-
em jogos de desafio, com induções a compor- turadas, influenciando comportamentos, atitu-
tamentos de automutilação e suicídio. Como des, valores e práticas. O aumento dos usuários
exemplo, a baleia azul foi uma aparente brin- da Internet, aliado à sensação de anonimato e
cadeira que sugestionava o suicídio e a autoa- liberdade de expressão, possibilita debates ideo-
gressão nesta faixa etária, tendo como proposta lógicos e sociais, expande os discursos de ódio,
a execução de tarefas e desafios em que os joga- o racismo, preconceito, legitimando comunica-
dores deveriam cumprir, gradativamente, atos ções violentas. Tais formas de comunicação on-
de violência, como automutilação, até tirar a line influenciam, em especial, a vulnerabilidade
própria vida. A suposta decisão de pôr fim à de pessoas deprimidas (Aderet, 2009).
própria vida, sugestionada pelas influências das A prática do trolling online é um exemplo de
novas tecnologias, expressa a submissão a uma indivíduos em idades diferentes que acredi-
autoridade externa anônima, de modo que a tam estarem no anonimato do ambiente online
indução ao suicídio encobre um ato de assassi- e se sentem seguros para fazer provocações a
nato. De modo semelhante, o auto isolamento, outras pessoas por meio de blogs, fórum, chats,
proporcionado pela rejeição do grupo, é con- redes sociais, entrando em grupos de diferen-
siderado um problema individual, quando, na tes ideologias, origens e crenças. Sua forma de
verdade, é efetivamente um problema social. A comunicação é através da provocação, do des-
morte se apresenta no jogo como um meio que crédito e do insulto em busca de provocar e,
passa a emprestar um sentido a uma vida que em contrapartida, ter a atenção proveniente da
está debilitada, como forma de experimentar reação do outro. As novas tecnologias digitais
desesperadamente a vida negada, impotente, propulsionam novos procedimentos e mode-
que manifesta a morte em vida. A totalidade los de ação, com regras não definidas. Diante
social se faz presente de modo bruto sobre o desse cenário, surge a necessidade de desen-
particular fragilizado. Segundo Moretto (2017), volver competências, de modo a promover um
as crianças passam a ser: uso consciente e crítico das tecnologias, e isso
requer mudanças de hábitos, de comportamen-
conduzidas por uma ordem anônima tos e de pensamentos. O que se faz e como se
que parafraseia a ordenação social faz na vida face-a-face é diferente do ambiente
homicida. Nesse caso, a necessidade de online, emergindo também vários problemas
viver algo que intensifique e agregue com a segurança, a privacidade, os direitos, os
sentido à existência fragilizada é assédios e a criminalidade (Freitas & Meirinhos,
permeada pela ameaça que impede 2017).
qualquer tomada de consciência e
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3. Fundamentação Husserl é como é possível ao ser humano co-


fenomenológica nhecer as coisas, o mundo e a si mesmo? O
método fenomenológico surge como um ques-
tionamento filosófico acerca do conhecimento,
Este estudo se configura como um recorte percorrendo de forma profunda as questões,
teórico, reflexivo, sob a perspectiva fenomeno- em busca das origens, a fim de compreender
lógica, que busca colocar em evidência a vio- o sentido, visando entender como se dão, de
lência online ao se atentar e apresentar facetas fato, indagando-as a fundo e analiticamente
dessa experiência por meio de um trabalho de (Husserl, 2008).
escavação, visando analisar e refletir sobre al- A perspectiva fenomenológica aplicada às
gumas de suas estruturas essenciais. ciências humanas convida o pesquisador a cla-
O objetivo, portanto, é buscar uma com- rificar o que existe de mais fundamental no fe-
preensão fundamentada em estudos fenome- nômeno que se investiga, deslocando a atenção
nológicos, através da evidenciação de aspectos dos fatos contingentes para “o sentido origi-
do fenômeno. Nesse sentido, para apreender nário indissociável de uma vivência intencio-
o fenômeno da violência online, é importante nal” (Tourinho, 2012, p. 853). Tal abordagem
dar um passo anterior e evidenciar primeira- consolida, com isso, uma espécie de conversão
mente o fenômeno da virtualidade/online. Que filosófica. A diferença entre a atitude natural e
fenômeno é esse que se manifesta em diversas a atitude fenomenológica se dá quando “ao se
perspectivas e vem redesenhando os relacio- lançar sobre os fatos por meio de uma obser-
namentos? Em quais dimensões do humano o vação sistematizada, no exercício da indução, o
virtual/online repercute e modifica a vida? Em positivista desconhece o quadro de essências
específico, pretende-se apresentar brevemente acerca dos fatos que investiga” (Tourinho, 2012,
a fundamentação fenomenológica de inspi- p. 136). A fenomenologia pressupõe a existên-
ração em Husserl e, na sequência, apresentar cia de algo que se mostra e que é tido como fe-
contribuições de alguns estudiosos que anali- nômeno pelo próprio fato de mostrar-se, atra-
sam o fenômeno do virtual, a fim de fornecer vés da consciência intencional. Trata-se de uma
subsídios para refletir sobre a violência online, busca exploratória de um dado, de uma busca
pontuando o lugar da corporeidade humana pelas estruturas fundantes que se desvelam na
no virtual e a importância de reflexões atuais interação entre consciência e apreensão do fe-
sobre a ética e a estética. nômeno, que envolve a esfera do sujeito que
tem a intenção de conhecer e, também, do
objeto ao qual é conhecido (Ales-Bello, 2006;
3.1. A Solymos, 1997)
fenomenologia A fenomenologia consiste na descrição e aná-
lise compreensiva dos fenômenos, visando re-
de Husserl fletir sobre aquilo que se desvela na experiência
imediata por meio da suspensão de concepções
A fenomenologia desenvolvida por E. Husserl pré-definidas em busca das estruturas essen-
refere-se a um modo de compreensão filosó- ciais da vivência. Trata-se do desvelamento do
fica, cuja proposta é apreender os fenômenos subjetivo empírico para o eidético, por meio
do mundo, voltando-se às essencialidades, por das reduções fenomenológicas, buscando evi-
meio de uma busca intuitiva e livre de um denciar o caráter constitutivo de estruturas in-
saber pré-constituído. A pergunta central de variantes do fenômeno analisado, como um
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processo de escavação, no qual, gradualmente, tendências, instintos) e que referem à dimen-


o fenômeno é desvelado ultrapassando as dife- são espiritual (capacidade volitiva e intelectual
renças externas, escavando em busca dos ele- do ser humano). Nas dimensões da corporei-
mentos últimos e comuns (Ales-Bello, 2004). dade, da psique e do espírito é possível encon-
Para Husserl (2002a), cada concepção in- trar respostas referentes à atitude de cada um,
dividual pode ser transformada em ideia (es- mas que se abrem também para uma dimensão
sência/sentido) que constitui um novo objeto. intersubjetiva. Esta é constituída por vivências
Este novo é dado sempre por uma determinada compartilhadas reciprocamente e delineadas
visão que consiste na “consciência de alguma especialmente pela capacidade de captar a al-
coisa” e que não se dá de forma individual, mas teridade, afirmando não somente a responsa-
sim por meio da relação com outras concep- bilidade do ser humano sobre si mesmo, mas
ções e, também, com o mundo externo que também como responsabilidade diante dos ou-
por si mesmo expressa um sentido. Este modo tros. É um tipo de relação interpessoal marcada
de compreender a realidade compartilha a ne- pelo posicionamento da pessoa a partir do uso
cessidade de uma mudança de perspectiva que da razão e da liberdade, em que se dá a entrada
possibilite passar de uma atitude acrítica de na dimensão ética (Husserl, 2002b; Ales-Bello,
aceitação passiva para uma conscientização vi- 2006; Silva & Cardoso, 2013).
gilante. O método fenomenológico, em seu nú- Busca-se apreender o fenômeno como ele se
cleo profundo e no âmbito de uma postura fi- manifesta, apreender a forma geral da essência
losófica, está voltado para captar a relação entre que prescreve uma regra a priori. A pesquisa
singularidade e totalidade e para perguntar-se fenomenológica é um movimento intelectual
sobre o sentido da realidade que se deseja com- e ético do ser humano, na medida em que se
preender. Primeiramente, tende a destacar o propõe a uma abertura e disponibilidade para
aspecto essencial, isto é, seu sentido, por meio procurar e investigar, e uma disponibilidade
de uma intuição voltada para o sujeito no par- também para aceitar aquilo que se apresenta
ticular, um momento intuitivo. Isso se dá atra- (Ales-Bello, 2004).
vés da suspensão, porém não da eliminação, de O convite fenomenológico para a reflexi-
bagagens pessoais de opiniões, crenças e qual- vidade, com rigor e discernimento, em busca
quer conhecimento consolidado, a fim de esta- das estruturas invariantes, ocorre por meio de
belecer seu valor a partir de um ponto de vista variações imaginárias, pela vivência da intui-
crítico e de uma atitude de abertura, com dis- ção em busca do que de originário e essencial
ponibilidade para indagar e escutar, em busca naquilo que se toma como objeto de investi-
dos fatos como se apresentam em sua consti- gação. Busca-se uma atitude reflexiva e analí-
tuição e em sua linguagem verdadeira (Ales- tica acerca do sentido último daquilo que se
Bello, 2004). investiga. Nesse sentido, este artigo tem como
A partir da tomada de consciência, por meio objetivo buscar uma compreensão fundamen-
da análise dos atos, chega-se às dimensões tada em estudos fenomenológicos que tratem
constitutivas do ser humano. Os atos se dis- de aspectos do fenômeno que se busca eviden-
tinguem qualitativamente e estão agrupados ciar. Ao suspender a violência, abre-se uma
em diferentes esferas. Husserl identifica e ana- região fundamental para compreensão feno-
lisa os atos perceptivos, apontando para a exis- menológica. A atenção volta-se, portanto, ao
tência de uma esfera corpórea, compreendida fenômeno do virtual/online. O que é o virtual
como um corpo vivo, corpo este que é ani- e quais implicações essa mediação promove no
mado por uma dimensão psíquica (impulsos, mundo da vida? Quais elementos constituem,
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propriamente, o virtual? Novas formas de co- A técnica reduz o agir gestual do homem no
municação, interação, relacionamento, com- mundo. Ela traz consigo uma redução ao mí-
partilhamento e vinculação vêm se estabele- nimo absoluto da experiência do corpo, a le-
cendo por meio da Internet. Trata-se de um veza do pressionar do dedo nas teclas e uma
convite que busca clarificar os elementos fun- intelectualização extrema da relação com o
damentais sobre as coisas para as quais se re- mundo. Porém, mais importante do que a eli-
flete, deslocando a atenção dos fatos contingen- são do corpo, a anulação dos esforços media-
tes para o sentido originário e indissociável de dores e a intelectualização nas relações com o
uma intencionalidade (Tourinho, 2012). mundo, destaca-se o elemento voluntarista, a
vontade como elemento determinante da ação
humana, ou seja, “a multiplicação de situações
4. Sobre o fenômeno de decisão e livre arbítrio absolutos, a possibi-
virtual lidade de construção e apagamento de mundos
inteiros com o esforço mínimo da ligeira pres-
são sobre o botão” (Santos, 2007, p. 192).
Numa leitura fenomenológica, quais os com- Na vida online, o excesso de possível de vi-
plexos motivacionais que movem o humano vências subjetivas estão potencializadas ao má-
ao desenvolvimento tecnológico? Quais as in- ximo. É possível realizar qualquer esfera do
fluências no mundo da vida? Quais implicações desejo, qualquer princípio volitivo humano,
a técnica promove? As reflexões que seguem independentemente de seus fins, quer seja para
sobre o fenômeno virtual partem das leituras, o bem ou para o mal. A ação humana é com-
a saber: “O virtual e as virtudes” (Santos, 2007), preendida no âmbito de uma reflexão sobre um
“Wirklichkeiten in Denen Wir Leben Aufsätze poder-fazer que não conhece limites, circuns-
Und Eine Rede” (Blumenberg, 1996) e “Crises crita por uma infinitude de exigências, o que
das Ciências Europeias e a Fenomenologia nos coloca diante de uma vida marcada pela fi-
transcendental: uma introdução à Filosofia nitude de uma existência e a infinitude de uma
Fenomenológica” (Husserl, 1936/2012). As exigência (Husserl, 1936/2012; Santos, 2007).
novas tecnologias, mais do que um objeto con- As máquinas de última geração buscam a sa-
creto, material, físico, carregam em si a pecu- tisfação dessa exigência infinita, ao promete-
liaridade de manifestar à consciência outras rem a materialização de um conceito de todos
apreensões do humano e, em contrapartida, os conceitos. Há um vertiginoso aumento das
outras formas de relacionamento e de expres- possibilidades, baseadas na combinatória e na
sividade cultural. programabilidade ilimitada. A configuração das
Entende-se por “virtual” ou “realidade vir- máquinas informatizadas ultrapassa o conceito
tual”, numa análise fenomenológica, o nome de máquina da Revolução Industrial, pois sua
dado ao mundo que foi produzido pelas “novas” produção não se restringe somente à produ-
tecnologias da informação, como tendência ção em série de um mesmo produto, não são
para se opor ao “real”, dando-lhe um estatuto programadas apenas para produzir um compo-
de simulacro ou de não ser. Entretanto, as ima- nente ou uma forma, mas elas foram feitas para
gens virtuais são reais e, portanto, em sua es- criar muitas outras realidades. O que as distin-
sencialidade, “o que caracteriza o virtual não é gue das demais máquinas é o fato de serem po-
um déficit do real, mas um excesso de possível (grifo livalentes, elas são programadas para produzir
do autor), com que a subjetividade, literal- todas as formas possíveis (Santos, 2007). Diante
mente, debate” (Santos, 2007, p. 192). desta polivalência é necessário se atentar às
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influências no cotidiano, marcado pelo excesso máquinas é sempre possível destruir uma obra
de possibilidades que se apresentam num for- imperfeita e tentar fazer de uma forma melhor,
mato real-virtual, ressignificando as neces- as novas tecnologias trazem como último hori-
sidades da vida e trazendo novas escolhas e zonte a reversibilidade absoluta. O que as tec-
exigências demasiadas e superlativas a serem nologias da Internet mostram é a possibilidade
atingidas na singularidade de uma vida finita. de materialização do pensamento, a exteriori-
A criação das tecnologias não se limita ape- zação das experiências de pensamento, o injetar
nas ao uso e à oferta de novas possibilidades no mundo virtual dessa substância própria da
ao homem diante das necessidades, há também subjetividade (Santos, 2007). Segundo o autor:
uma inquietude humana e um fascínio diante
da criação e a esperança de vencer a finitude Esse potencial de abstração é intensificado
pelos seus próprios meios, o que exige contra- no espaço virtual (grifo do autor) e das
partidas no modo de viver e de se relacionar. O imagens de síntese, pela promessa de
que move os avanços técnicos e tecnológicos uma reversibilidade sem limites que,
pode ser sintetizado numa vontade de intensi- possibilitando sem esforço o apagar
ficação infinita da finitude, fundamentados a do passado, permite um constante
partir de uma inquietude humana, com a ra- regresso a posição de partida, realizando
dicalização do sentimento de contingência do uma infinidade de mundos possíveis
mundo, e numa esperança, por meio de um anteriormente incompossíveis, tornando
alargamento infinito dos limites da finitude impossível essa linha que os atos humanos
através do aperfeiçoamento ilimitado do po- desenham no tempo, chamado de história.
der-fazer. A técnica é o meio através do qual A possibilidade de realizar todos os possíveis
é possível saltar da vida finita para o infinito, mata a história. (...) aquilo que nos mostram
salto que é útil e necessário. Ainda assim, a téc- as tecnologias da Internet e do virtual não
nica apresenta o risco da automatização e auto- é a sublimação da matéria pelo espírito,
nomização dos processos de pensamento e co- mas ao contrário, é a materialização
nhecimento e, dessa forma, pode distanciar o do pensamento, a exteriorização das
homem do sentido das próprias coisas (grifo do experiências de pensamento, o injetar no
autor), repercutindo numa crise das ciências mundo virtual dessa indecisão e irresolução
(Blumenberg, 1996). que constitui a substância própria da
Um outro elemento característico do espaço subjetividade. (Santos, 2007, p. 212)
virtual criado pelas novas tecnologias é a re-
versibilidade sem limites, com a qual se torna
possível apagar o passado sem esforços e, dessa A materialização no mundo virtual solicita
forma, estar diante de um constante regresso à uma mudança de perspectiva do saber psicoló-
posição de partida. Isso permite a realização de gico, visto que o pensamento e a própria sub-
uma infinidade de mundos possíveis, o que re- jetividade passam a pertencer a um universo
percute, também, no modo de compreensão da real/virtual, permeado por uma infinidade de
história, essa linha desenhada pelos atos huma- possibilidades atemporais e a-espaciais. Novas
nos no tempo. A possibilidade de realizar todos tecnologias repercutem em novas experiências
os possíveis mata a história. Os atos humanos de historicidade, de pensamento e de subjeti-
são irreversíveis: assim como no xadrez, na vidade, diante do alargamento da finitude de uma
política nunca pode se repetir um lance, uma existência e da infinitude de uma exigência (Santos,
decisão humana é irreversível. Na esfera das 2007, p. 231). Nesse aspecto, é importante
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considerar a defesa do espaço do sentir en- completamente, podendo ser natural, própria
quanto uma política de sobrevivência e reduto de todos os seres humanos, ou artificial, pro-
da ética. São necessárias reflexões acerca dos duto de um excesso de forças de uns sobre ou-
sentidos dessas transformações numa esfera tros. Pode ser compreendida como algo ligado
ética e estética, questionamentos sobre como ao ímpeto, à produção de danos psicológicos,
ficam as relações e condutas diante da virtua- com atos contrários à liberdade e à vontade do
lidade, como ficam as relações com si próprio outro (Paviani, 2016). Trata-se de uma temática
e com os outros, quais outras formas de en- anterior ao desenvolvimento das novas tecno-
contro surgem na experiência, com um alar- logias. Entretanto, alguns fatores derivados es-
gamento dos modos de se relacionar, de se co- pecificamente do acesso online merecem des-
municar e de se vincular. Como fica, também, taque e conscientização dos usuários: um dos
o contato a partir destas transformações no aspectos diz respeito à temporalidade da in-
âmbito da relação sensível com uma realidade formação, a alta velocidade da propagação, do
virtual-real, que vem promovendo um novo compartilhamento e da difusão entre grupos e
modo de se posicionar diante das experiências pessoas. Uma mensagem é capaz de descons-
da vida, um convite para um reposicionamento truir uma identidade e modificar todo um per-
sensível com o mundo (Santos, 2007). curso da vida em questão de segundos.
Em síntese, o virtual mediado pelas TICs, No que se refere aos aspectos de saúde men-
para além da redução do agir corporal e da di- tal, a violência online, como por exemplo, o
minuição dos esforços físicos, é marcado pelo cyberbullying, o cyberbullicídio, as automutilações
excesso do possível, a prevalência da vontade digitais, exige uma conduta cautelosa na co-
com as múltiplas situações de livre arbítrio, municação, na informação e no cuidado psico-
uma vida marcada por uma existência finita lógico e social, sendo legitimada como impor-
e com exigências infinitas, em que as máqui- tante causa de sofrimento psíquico. Entretanto,
nas respondem a essa solicitação em seus as- tem uma violência mais sutil, que aparece,
pectos de materialização e exteriorização das ainda, camuflada e calada, provavelmente pro-
experiências de pensamento, de polivalência e motora de sintomas e sofrimentos que não
reversibilidade absolutas, o que implica a con- explicitam diretamente as influências que os
figuração de uma multiplicidade de formas de novos modos de relacionamento online vêm
interação com o mundo e com as pessoas. configurando, tornando-se hábitos, atitudes e
comportamentos naturalizados, ainda que pro-
porcionem um importante desgaste emocional.
5. Sobre a violência no Além disso, a quebra entre os limites do pú-
virtual blico e do privado provoca transformações nos
atos mediados pela Internet. Assim como fora
das redes, no que se refere aos atos de violência
A violência, propriamente, sempre esteve online, há o envolvimento de um agressor e de
presente na vida humana. É um conceito com- um agredido, porém, não há apenas um grupo
plexo que implica em vários elementos e po- específico de espectadores, mas uma infinidade
sições teóricas e diversas tentativas de solu- de pessoas que, camufladas pelas telas físicas,
cioná-la e eliminá-la. As formas de violência acabam por incentivar, motivar e estimular tais
também são numerosas, refletem-se na so- atos, não conscientes de suas próprias respon-
ciedade como um todo e surgem sempre sabilidades, em virtude da falsa impressão de
de modo novo, não sendo possível evitá-las anonimato e distanciamento do problema.
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Há uma sutileza que é apreendida na obser- locais coletivos, como nas refeições, nas horas
vação das relações cotidianas, por meio de um de lazer, em momentos de deslocamento e nas
olhar crítico-reflexivo voltado as tecnologias escolas. A Internet se tornou uma nova ferra-
e a como elas vêm influenciando a vida atual. menta de auxílio diante da expressão de senti-
Ainda decorrente dos limites entre o pessoal e mentos infantis, como birras, choros, queixas
coletivo, as redes sociais e aplicativos de trocas de tédio, pedidos de atenção aos adultos. Como
de mensagens instantâneas, por meio dos ce- essas experiências remodelam a vida? Quais
lulares, estão presentes em qualquer momento implicações trazem para as famílias e para o
do dia. É comum uma cena em que uma pes- desenvolvimento das crianças? A Internet passa
soa está envolvida por experiências e atos posi- a preencher um espaço nos relacionamentos
tivos, de alegria, satisfação, etc., e, inesperada- familiares, de modo a evitar pequenas situa-
mente, é intermediada por uma mensagem no ções de conflito, impossibilitando o desenvol-
celular, onde uma outra pessoa, não presente vimento de estratégias para lidar com os pró-
na experiência inicial, comunica-se através de prios sentimentos, como as frustrações, a raiva
atos negativos, como por exemplo, insatisfação, e o tédio. Seria uma violência velada, ao alterar
destrutividade, descontentamento, cobrança, o percurso de ação ativa e reativa diante dos
crítica negativa, de modo a sobrepor a vivên- eventos da vida?
cia positiva inicial. Que sentido esse ato sutil Nota-se no discurso comum que as novas
proveniente dos recursos das novas tecnolo- tecnologias e o acesso online vêm promovendo
gias provoca no estado afetivo das pessoas? Que uma falta de comprometimento e desestímulo
sentido essa experiência traz para a vida? Como ao envolvimento com o outro, o desinteresse
esses atos invadem, interferem e ocupam o co- e não abertura para o confronto com aquilo
tidiano das pessoas? No geral, essa comunica- que é diferente. Porém, a presença do outro
ção não é legitimada como uma fonte de sofri- afeta, promove e favorece o reposicionamento
mento real no dia-a-dia e, muitas vezes, vive-se diante de crenças e valores. A intersubjetivi-
uma imersão em vivências online que mobili- dade é um importante acesso a valores ainda
zam sofrimento, mas que se tornam naturaliza- não vividos, novas perspectivas de vida e de
das, promovendo uma angústia implícita, sem futuro, favorecendo o autoconhecimento e o
a identificação de suas origens. Por outro lado, amadurecimento. O compartilhamento de va-
um aparente exercício de livre-arbítrio ao ex- lores afins é importante, pois favorece o des-
pressar sem censura ou senso crítico os afetos pertar de aspectos adormecidos; por outro lado,
e opiniões invade a privacidade do outro modi- a troca entre diferenças, embora provoque um
ficando instantaneamente seu estado de ânimo, estranhamento inicial, favorece a autodefinição
o que afeta, também, as pessoas ao redor e a de quem sou eu e quem não sou eu, tornando
singularidade do momento inicial positivo. conscientes defeitos e aspectos não valorados
Seria essa uma violência velada? Com que fre- ou evitados anteriormente, sendo uma impor-
quência isso ocorre no cotidiano das pessoas? tante forma de auto avaliação e constituição de
Como essas comunicações afetam a vida e os identidade (Stein, 2000).
estados emocionais? E neste novo contexto de interação humana,
As crianças também vivem a naturalização qual é o espaço para o confronto? Quais as pos-
da Internet nas relações pessoais. Desde muito sibilidades de interação entre as diferenças e a
cedo, expostas às redes de compartilhamento, legitimação do espaço das singularidades e das
com vídeos, jogos online, esses dispositivos mó- diversidades? Na Internet, a quantidade de in-
veis estão presentes nos ambientes sociais e formações veiculadas é ilimitada, de forma que,
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ao se buscar uma informação, é comum a lista- pode e deve ter suas próprias opiniões, e, como
gem de assuntos que confirmam as crenças in- consequência, a ausência de debate acaba por
dividuais, ou, ainda, de modo passivo, as redes interferir na capacidade de reflexão crítica. O
sociais online, no geral, mostram postagens e compartilhar das diferenças é uma ferramenta
publicações que confirmam os valores e cren- fundamental para o desenvolvimento pessoal e
ças. A individualidade é, ainda, mais reforçada, para o senso crítico. A vida online vem provo-
na medida em que se pode cancelar, deletar ou cando mudanças nas maneiras de perceber o
bloquear pessoas e temáticas que desagradam mundo que afetam também a vida offline. O eco
ou não são afins. É importante também pon- dentro das bolhas individuais seduz ao confir-
tuar que essa sintonia de valores, muitas vezes, mar as próprias visões de mundo, porém pode
não é ocasional, mas sim provocada por meio provocar importantes prejuízos nos relacio-
de algoritmos que são programados para bus- namentos interpessoais, como as dificuldades
car a satisfação do usuário, de modo a aumen- de relacionamento, de socialização e interação
tar o interesse e o tempo de uso, beneficiando, com o outro, pouca capacidade crítica, baixa
também, campanhas publicitárias e interesses tolerância às diversidades, às frustrações e ao
comerciais. E assim, uma nova modalidade de confronto com a realidade. O desenvolvimento
relacionamentos com o outro e com o mundo implica a desconstrução de valores e constru-
se configura, de modo a tornar fácil o distan- ção de novas identidades. Portanto, são neces-
ciamento daquilo que desagrada, favorecendo a sários momentos de confronto, frustração, es-
interação apenas com crenças, valores, ideias e tranhamento, introspecção e reavaliação. De
pessoas concordantes, criando grandes bolhas que forma o virtual/online influencia a saúde
de relacionamento. As novas tecnologias foram mental? As redes sociais se configuram de
construídas e programadas para organizar as quais maneiras nos relacionamentos pessoais?
buscas individuais a partir da relevância e in- O que é realmente relevante para a vida e para
teresse pessoal. Os dados inseridos nos aplica- o bem-estar de si e dos próximos, propiciado
tivos alimentam uma base de informações que pelas novas tecnologias?
são capazes de definir os gostos, preferências, Uma violência advinda do público e da pu-
a visão de mundo e crenças, definindo e deli- blicidade interfere, também, nas necessidades
neando as identidades. Através de uma coleta privadas, na medida em que não se consegue
detalhada de tudo que é postado, registrado, ter consciente o que é, de fato, uma necessi-
buscado e pesquisado é feito um mapeamento dade real. A criação e a manipulação de dese-
da própria personalidade a partir das pegadas jos fazem com que a publicidade proporcione
digitais, reafirmando as próprias opiniões, por aos objetos um poder que na verdade não pos-
seleções pessoais e por direcionamento publi- suem. As ofertas excessivas de produtos criam
citário, resultando em relacionamentos que re- o desejo de todas as coisas, comprar todas as
produzem ecos das próprias vozes (Sorj et al, coisas, falar sobre todas as coisas, sem espaço
2017). para a criatividade, com uma falsa sensação de
Ouvir somente ecos das próprias crenças re- liberdade que, em realidade, promove o apri-
percute na forma de se relacionar. O relacio- sionamento ao consumismo. Trata-se, pois, da
namento com iguais provoca baixa tolerância asfixia da ética, da reflexão responsável e dos
a divergências, distanciamento de novas visões valores (Romano, 2014).
de mundo, influenciando na convivência com O cotidiano dos relacionamentos online pa-
as diversidades, o reconhecimento do outro, rece trazer problemáticas no que se refere a
que é tão humano quanto si próprio e que como os atos afetam ao outro, à sociedade e
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à humanidade, de forma ampliada. Nas expe- que se vive uma ausência do outro enquanto
riências acima expostas, o elemento comum corpo concreto?
parece apontar para um declínio da capacidade O corpo, com suas sensibilidades percepti-
de se relacionar com o outro e também con- vas, está presente no virtual/online. O corpo é
sigo. Porém, para além de olhar o fenômeno da real, as imagens compartilhadas, paisagens, ob-
virtualidade e suas manifestações de violência jetos, implicam um corpo representado e um
velada, é importante retornar um pouco mais corpo afetado. A subjetividade está presente
na tentativa de evidenciar quem é o sujeito que nesse universo, na medida em que o virtual
faz a experiência, e não somente como ele é solicita intensamente as sensações, a visão, as
afetado por ela. informações sonoras, a audição, a infinidade
de modos de vida possíveis, vídeos, músicas,
dimensões culturais, expressividade. Há inves-
6. Sobre a corporeidade timentos tecnológicos a fim de minimizar as
no virtual/online perdas táteis, olfativas e gustativas na vida on-
line. As mensagens de áudio e texto, as novas
configurações de relacionamentos afetivos,
Algumas reflexões parecem necessárias para amizades, expressões de intimidades, assim
pensar a relação pessoal com as novas tecno- como os discursos de ódio, o contágio e indu-
logias e os sentidos de vida: como as tecnolo- ção de comportamentos, as insatisfações sem
gias preenchem as horas livres? Quais vivên- discernimentos, as ações indiferentes às conse-
cias estão constituindo a vida de cada pessoa? quências, há toda uma esfera de vivências on-
O que é definido ativamente como relevante line que repercute sobre um corpo e uma sub-
para cada momento da vida, para os relaciona- jetividade. As formas de vivenciar as relações,
mentos, para os modos singulares de conhecer as apreensões acerca dos relacionamentos afe-
e se informar? A ausência do tédio e das situa- tivos passam pelas experiências dos aplicativos,
ções de confronto com as diversidades, neces- as amizades são mediadas pelas redes sociais,
sárias para o desenvolvimento da autopercep- o conceito de infância passa por dispositivos
ção e da percepção alheia, a ausência do esforço online. A Internet e seus modos de vida exer-
físico para alcançar qualquer forma de desejo cem um fascínio, um encantamento, uma atra-
e realização provocam alterações no modo de ção física, requisitando e seduzindo os sentidos
se relacionar com o mundo e com o próprio perceptivos envolvidos. É o corpo, em sua es-
corpo. Sedentarismo, falta de estimulação física, pecificidade física, finito, a condição necessária,
motora e psíquica/sensorial nas diferentes fai- da ordem do sensível, do espaço do sentir, da
xas etárias, aplicativos de localização e desloca- relação comigo, com o outro e com o mundo.
mento nas cidades e espaços físicos: o que sig- Entre os elementos estruturais da constitui-
nificam essas transformações para a orientação ção humana, a corporeidade evidenciada pela
pessoal, espacial e temporal da vida? O corpo, fenomenologia de Husserl diferencia o corpo
condicionado e limitado pelas leis da gravidade, material, mecânico, biológico, fragmentável
passa a vivenciar outras noções de orientação (Korper, palavra de origem alemã) de um corpo
e novas maneiras de apreensão da objetividade especificamente dotado de vida (Leib, palavra de
da natureza, em especial quando se vivenciam origem alemã), um corpo que porta em si uma
as experiências de realidade virtual. Será que, expressividade única, ainda que, estrutural-
cotidianamente, diferentes formas de violência mente, possua semelhanças universais em sua
se desvelam e atingem os corpos na medida em constituição material. Este corpo possui um
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aspecto vital, que é a psique, os impulsos, as Para se abordar o tema, é preciso suspender
pulsões e as reações. E, para além de um corpo a violência virtual e apreender o fenômeno
vivo, psíquico, o ser humano tem como dife- que se manifesta no cotidiano online/offline. A
rença dos demais seres vivos a possibilidade de pergunta, então, deixa de ser referida à violên-
criação, de reflexão e de desejo, contidos no cia online e passa a ser voltada à compreensão
que, fenomenologicamente, é chamado de es- sobre quem é o ser humano que se relaciona
pírito (Husserl, 2002a; Husserl, 2002b; Stein, no universo online? A atenção deve se voltar,
2000; Silva & Cardoso, 2013). Husserl, em portanto, para quem é o sujeito que vive as ex-
Ideias II, discorre sobre a constituição e afirma periências intersubjetivas no virtual/online. Por
que “o limite entre Leib e o resto do mundo se quais facetas da amizade, da confiança, dos re-
dá segundo essa propriedade: a consciência dos lacionamentos, das violências, se é afetado?
limites do meu corpo é dada pelos limites do Como apreender as relações com o mundo, as
tato” (Husserl, 2002b, p. 59). relações interpessoais, com o próprio corpo e
É por meio desta corporeidade vivente que com o limite da corporeidade de si e do outro?
se torna possível compreender as relações in- Ao olhar atentamente para o mundo da vida e
tersubjetivas, sendo o Leib um imprescindível ao colocá-lo em suspensão, ao apreender e cap-
meio de relação através de um jogo sutil de per- tar o sujeito que vive a experiência do virtual/
cepção e a-percepção que permite apreender a online, desvelam-se novos elementos essenciais
psique e o espírito de cada pessoa. Este corpo da corporeidade no entrelaçamento da vida on-
revela a peculiaridade de cada ser humano, a line e offline.
unicidade, a dignidade, a inviolabilidade e a Diodato (2019), a partir de uma leitura feno-
liberdade. Tal concepção supera as conceitua- menológica husserliana sobre o mundo da vida
ções mecanicistas de corpo, que valorizam uma (Lebenswelt, palavra de origem alemã), refere
psique dissociada de uma experiência de vida que na vida atual o mundo se tornou midiá-
integral. O encontro com o outro revela, por- tico, um meio habitado pelas novas tecnologias
tanto, o Leib como o único dado objetivável da digitais, que o torna comunicativo como um
alteridade pessoal (Manganaro, 2007). todo. Discute a novidade ontológica do virtual
Seriam as experiências online as responsá- a partir da definição de corpo-ambiente vir-
veis por essas novas formas de violência? As tual, que se caracteriza como um ente de tipo
violências clássicas não são criações originá- novo, imersivo e interativo, ontologicamente
rias da tecnologia, desde muito tempo se vive híbrido, sendo, ao mesmo tempo, interno e ex-
sob a ameaça, os suicídios, as automutilações, terno. Com a expressão corpo-ambiente virtual,
o bullying, roubos, piratarias etc. Na perspectiva busca-se compreender, em sentido mais amplo,
fenomenológica, é a intersubjetividade corpó- uma imagem digital interativa através da feno-
rea que legitima as experiências, o corpo físico menologia de um algoritmo em formato biná-
é o limite concreto entre o eu e o outro, o li- rio que interage com um usuário-expectador,
mite da ética, da finitude da vida, da implica- através de periféricos de um computador. O
ção com a própria vida, com o outro e com o corpo-ambiente virtual é estruturalmente re-
mundo. São nas situações face a face que se lacional e essencialmente interativo e escapa à
instauram conflitos que exigem posicionamen- dicotomia interno externo, na medida em que
tos, consequências, responsabilidades. Portanto, não é uma imagem da consciência nem é ex-
as tecnologias e o universo online são apenas terno a ela, sendo, portanto, interno-externo.
meios que possibilitam um novo arcabouço de Os corpos virtuais não são representações da
experiências. realidade, mas são realidades construídas de
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modo essencialmente diferente daquelas ori- estética enquanto interação sensível com o
ginárias da participação do corpo vivo com o mundo, portanto, uma interação entre coisas
mundo, em virtude da percepção-visível que que estão no sujeito e coisas que estão fora
atravessa o corpo e se torna gesto, movimen- dele. Aisthesis (palavra de origem grega) signi-
tando o corpo mediado por instrumentos de fica sentir, compreender pelos sentidos, com
reprodução analógica, portanto, imagem. Eles referência aos sentidos do tato, da visão, da au-
não são nem simples imagens, nem simples dição, olfato e paladar, relacionado ao que sen-
corpos, mas corpos-imagem, os quais se dis- sibiliza, o que afeta os sentidos. Portanto, esté-
tanciam das distinções ontológicas entre objeto tica é compreendida em relação à pessoa que é
e evento, já que como objetos, têm uma rela- sensibilizada por algo que a afetou e que gerou
tiva estabilidade e permanecem no tempo, mas algum tipo de sentimento.
como evento, existem somente no acontecer
da interatividade. É sim concreto, enquanto
perceptível e sujeito-objeto das ações, mas pe- 7. Considerações finais
culiarmente sutil, exatamente porque é inte-
rativo. É um corpo híbrido também enquanto
artificial-natural, visto que é um produto da A inserção das novas tecnologias de informa-
técnica, mas possui como natureza própria a ção e comunicação na vida das pessoas já é uma
mudança, como um sistema vivente, atual. O realidade com alcance mundial. A Internet tem
corpo virtual é um ente que existe somente se configurado cada vez mais como uma fer-
enquanto encontro e, portanto, como intera- ramenta que implica não apenas no acesso a
tividade constitutiva. Isso induz a conceber a fontes de conhecimento, mas também a novos
relação como em si constitutiva de entidade modos de vida e de expressão de subjetividades.
e, portanto, distinta das propriedades relacio- O fenômeno do virtual recoloca o agir humano,
nais. Em tais ambientes informatizados, de- ao oferecer o excesso de possíveis guiado pelo
senvolvidos por uma mente coletiva, o usuá- elemento voluntarista, pela prevalência da von-
rio interage por meio de seu avatar, seu alter tade, junto ao livre arbítrio, perante uma exis-
ego virtual, que permite agir nesse ambiente, tência finita. A polivalência e a reversibilidade
produzindo transformações e, outras vezes, en- promovidas pelas máquinas altera o percurso
quanto expectador e, também, autor das situa- da natureza, saindo de uma lógica linear e re-
ções. Uma estética da rede implica uma revisão direcionando as formas de apreender o outro
da noção da relação korper-Leib (palavras de ori- e o mundo, distancia-se de uma compreensão
gem alemã), isto é, das dimensões estratégicas linear dos eventos da história, configurando-
da relação homem-mundo em que se está ab- -se numa vida desenhada por uma pluralidade
sorvido (Diodato, 2019). mosaica.
Na perspectiva do corpo, é um outro corpo Dentre as múltiplas formas de relaciona-
que desvela, enquanto corpo híbrido, que su- mento, a violência passa a se expressar tam-
pera dicotomia ao se tornar simultaneamente bém através desses contornos com o universo
interno-externo, objeto-evento, artificial-na- virtual/online, em que o conhecimento pode
tural. E no contexto das relações, como pen- acessar igualmente a destrutividade, as sub-
sar o alargamento dos sentidos do mundo da jetividades podem se expressar livremente,
vida, qual ética e qual estética são necessárias independente da moral implicada. Embora
compor nessas novas perspectivas? Ética, com- uma visão naturalista possa apontar o distan-
preendida como a relação entre as pessoas, e ciamento do corpo no mundo virtual/online,
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a corporeidade está ativamente vivendo e se e singularidades, a confusão entre necessida-


constituindo através de imagens e significações des reais ou induzidas por uma lógica de pu-
que extrapolam as noções de espaço e tempo, blicidade e mercado, a manipulação externa de
da influência cultural transmitida através das desejos com a perda da liberdade e da criativi-
gerações, em direção a uma subjetividade que dade diante do aprisionamento ao consumismo.
se coloca no limite de si mesmo e da liberdade. Porém, mais do que compreender como as tec-
A corporeidade que se faz presente no am- nologias afetam o ser humano, é importante
biente virtual transcende os limites, tornando- evidenciar também quem é o sujeito que ex-
-se uma corporeidade híbrida em seus aspectos periencia essa realidade, como o humano se
interno-externo, artificial-natural, objeto-e- constitui, posiciona-se e se define a partir desta
vento, tendo como essencial os aspectos rela- interação.
cional, imersivo e interativo, o que promove A fenomenologia contribui para reflexões
um alargamento dos horizontes de compreen- referentes à cultura atual, na medida em que
são do corpo, dos relacionamentos entre pes- propõe o olhar distanciado da realidade em-
soas e da interação com o mundo. pírica ao problematizar a naturalização dos fe-
A violência, enquanto conceito, é complexa nômenos da vida. Nesse sentido, o olhar in-
e implica em várias perspectivas de compreen- terdisciplinar surge como uma oportunidade
são, assim como suas formas de expressão, que de refletir sobre o sentido das coisas, condu-
se refletem na sociedade e surgem sempre zindo para reflexões e para a necessidade de
de modo novo, sendo impossível evitá-la. De reposicionamentos diante das novas tecnolo-
modo essencial, produz danos ao outro, com gias, em especial para sinalizar a importância
atos que ferem à liberdade e à vontade alheia. de reflexões que se refiram à ética e à estética
Trata-se de uma vivência que antecede as tec- que a vida solicita diante dessas novas confi-
nologias digitais e se manifestam também no gurações, ampliando o tema da violência online
universo online, com algumas especificidades, para debates que pontuem caminhos no entre-
quanto à temporalidade e à velocidade de difu- laçamento entre vida online e offline, de maneira
são, aumentando seu poder de destrutividade. integrada, conectada e cotidiana.
Dessa forma, o que está presente na vida, ante- Este trabalho não pretende concluir a temá-
rior às tecnologias, passa a ser inserido no uni- tica do fenômeno da violência online, mas ape-
verso online, moldando-se aos aspectos essen- nas colocar perguntas e provocações que per-
ciais do virtual. Entretanto, tem uma violência mitam diálogos a fim de evidenciar qual ética
velada decorrente da maneira como o ser hu- e qual estética é passível de promover um bem
mano se coloca mediante as tecnologias digi- viver consciente, livre e responsável como re-
tais, apreendida nas relações online cotidianas, sultante das infinitas aberturas que as novas
que vem provocando sintomas e sofrimentos tecnologias vêm proporcionando à evolução da
não explicitados diretamente e tornam-se há- vida e das pessoas. Trata-se de um convite para
bitos naturalizados, mesmo diante de um im- reflexões e conscientizações sobre as influên-
portante desgaste emocional. São exemplos a cias explícitas ou implícitas em mais de metade
ruptura dos limites entre espaço privado e pú- da população mundial que atinge, em especial,
blico da comunicação, as repercussões sobre a população brasileira, que está cada vez mais
o desenvolvimento psicológico e no enfrenta- conectada, sendo o segundo país com maior
mento da vida, a redução dos confrontos e au- tempo de uso diário da Internet.
toavaliações decorrentes da abertura a horizon-
tes diversos e de legitimação das diversidades
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Recebido em 30/06/2019
Aceito em 18/12/2019
331

RESENHA

“Formato
governa acesso”:
A poética
computacional
de Dennis Tenen

Tenen, D. (2017). Resenha por


Plain Text:
Pedro Zylbersztajn
The Poetics of
Computation Pesquisador independente. E-mail:
[Versão Kindle] pedrozylber@gmail.com.
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“Poética computacional”, de acordo com flutuante, telas de cristal líquido, o código que
Dennis Tenen (2017), é “uma estratégia de in- regula a performance de tais componentes – e
terpretação capaz de alcançar além do conteúdo a como as interações entre esse conjunto de
da superfície para revelar plataformas e infraes- elementos co-produz o texto pelo que é, o que
truturas.” (Tenen, 2017, Introduction, Thesis ele chama de um laminado textual, uma com-
and Archive, para. 8). Em seu livro Plain Text: binação de lógica e física “que mantém a ins-
The Poetics of Computation [Texto Simples: A poética crição em suspenso.” (Tenen, 2017, Chapter
da computação, em tradução livre], publicado em 3, Composite Media, para. 2) É apenas através
2017 pela Stanford University Press, o autor en- dessa prática que a crítica textual terá o poder
cara um tema ainda pouco mapeado, mas ex- de afirmar a abordagem humanista necessária
tremamente pertinente para a teoria literária para que a literatura mantenha seu potencial
contemporânea: a ontologia e a fenomenolo- sob o que Kittler chama de “condições de alta
gia de textos digitais. Professor de Literatura tecnologia.” (Tenen, 2017, Introduction, Theory,
Comparada na Universidade de Columbia e ex- par. 15) Para impedir a literatura de se tornar
-engenheiro de software da Microsoft, Tenen é, tecnologicamente determinada, de acordo com
como poucos, capaz de enfrentar esse desafio e o autor, pesquisadores e leitores devem esten-
trazer uma perspectiva informada que contem- der seus olhares ao substrato material e às in-
ple uma relação dialética entre os sistemas de fraestruturas que cercam qualquer texto digi-
conhecimento e credos de ambas as disciplinas. tal e informam o modo como eles são lidos, e
Posicionando seus argumentos em oposi- com isso serem capazes de identificar e respon-
ção a muito do que a teoria da mídia dos anos der à forma com que estruturas de poder são
1990 e 2000 produziu sobre textualidade digi- incorporadas neles de “maneiras não-óbvias.”
tal, seja o que o autor chama de qualidades su- (Tenen, 2017, Conclusion, Global Perspectives,
postamente imateriais e cintilantes dos estudos par. 4)
de software de Wendy Hui Kyong Chun ou de O livro é metodologicamente interessante
abordagem pessimista “antihumanista” (Tenen, pois formula uma histórica crítica epistemo-
2017, Introduction, Theory, para. 15) no traba- lógica da relação entre literatura e computação.
lho de Friedrich Kittler, o livro se alinha a uma A maior parte dos seus cinco capítulos são ao
visão de digitalidade materialista e orientada a menos parcialmente dedicados a prover rela-
objetos que vem ganhando tração com a pu- tos historiográficos de diferentes linhagens de
blicação de trabalhos como On the Existence of pensamento que influenciaram o ponto sobre
Digital Objects [Sobre a existência de objetos digi- o qual atualmente se encontra a textualidade
tais, em tradução livre], de Yuk Hui (2016), e digital, seja através de estudos de caso e ane-
Digital Materiality [Materialidade digital, em tra- dotas ou da justaposição de ideias e filosofias
dução livre], de Paul M. Leonardi (2010). Deste contemporâneas entre si. Os capítulos, res-
modo, Tenen argumenta que é primordial para pectivamente nomeados “Metaphor Machines”
o estabelecimento de qualquer forma relevante [“Máquinas de metáfora”, em tradução livre],
de interpretação de textos digitais que o para- “Laying Bare the Device: The Modernist Roots of
digma da ‘leitura atenta’ (close reading, no ori- Computation” [“Desnudando o dispositivo: as
ginal) seja aplicado não somente à superfície raízes modernistas da computação”, em tradu-
do texto mas também ao hardware e aos com- ção livre], “Form, Formula, Format” [“Forma, fór-
ponentes materiais propriamente ditos que mula, formato”, em tradução livre], “Recondite
permitem que tal texto seja definido – silício, Surfaces” [“Superfícies recônditas”, em tradução
tunelamento quântico, transistores de portão livre] e “Literature Down to a Pixel” [“Literatura
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reduzida a um pixel”, em tradução livre], são das nossas teorias de criação de significado,
sequenciados de maneira a sintetizar o fluxo “formato governa acesso” (Tenen, 2017, Chapter
de experiências em um objeto digital, com o 3, Digital Formalisms, par. 5). Nos é apresen-
argumento “progredindo da ação do interrup- tada a visão de código como um “signo pro-
tor numérico do teclado, através do cobre e do gramático”, seguindo Baudrillard (Tenen, 2017,
silício, até o cristal líquido e o portão flutuante Chapter 1, par. 1), que opera como um agente
e em direção ao leitor e à comunidade.” (Tenen, ativo nesse processo semiótico, como um me-
2017, Introduction, Plan of the Present Work, diador entre formatos de dados distintos que
par. 1). exerce poder e afeta a leitura –  que “deter-
Entre os diversos méritos do livro, é espe- mina uma platéia, privilegiando certas vozes e
cialmente significativa a aproximação de mão modos de ler.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital
dupla que o autor promove entre os campos da Formalisms, para. ). Infelizmente, enquanto
ciência da computação e dos estudos literários. a camada de formatação e o signo programá-
Não apenas ele está preocupado com os efeitos tico são descritos com a devida importância
que a tecnologia computacional transmite às nesse capítulo, a ênfase do livro em materia-
formas contemporâneas de textos digitais, mas lidade física previne um engajamento mais
também em elucidar a importância do pensa- aprofundado com o papel desempenhado pelo
mento literário no desenvolvimento histórico software e pela programação nas técnicas de es-
dessas mesmas tecnologias. Baseando-se for- crita e leitura de texto digitais. Afinal, como
temente no Formalismo Russo, e em particu- Tenen mesmo aponta, o código “é um exercí-
lar no trabalho de Viktor Shklovsky, mas tam- cio de poder, e não sua representação” (Tenen,
bém em vastas fontes da teoria literária, teoria 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, par. 6); é
da mídia e da crítica textual, Tenen consegue o que molda a palavra escrita visível de acordo
demonstrar a importância de metáforas e seu com suas próprias formulações, relacionando
emprego e análise literária no desenvolvimento “matéria e conteúdo.” (Tenen, 2017, Chapter 3,
tanto de interfaces propriamente ditas quanto Digital Formalisms, par. 6). Nesse sentido, Plain
no discurso crítico acerca da engenharia de Text pode ser lido em paralelo, ainda que nem
software e hardware. Através de um relato quase sempre em uníssono, com livros como Software
literário da mutualidade de influências entre Takes Command, de Lev Manovich (2013), ou
o pensamento de Ludwig Wittgenstein e Alan Philosophy of Software, de David Berry (2011),
Turin, o autor expõe magistralmente como que não focam especificamente na ontologia
a lógica da computação veio a ser essencial- dos textos ao que se relacionam com o mundo
mente dialógica. E a discussão contida no ter- digital, mas proveem uma compreensão dos
ceiro capítulo é particularmente rica em seu modos de produção, usos e práticas contem-
estabelecimento de uma teoria híbrida do for- porâneas de software, ou mesmo Programmed
mato que engloba homólogos tanto na ciên- Visions, de Wendy Chun (2011), que mesmo
cia da computação quanto na crítica textual. tendo sido mencionado por Tenen como pro-
Para afirmar o que ele nomeia a ‘camada de pondo uma visão oposta a dele, é um marco di-
formatação’, somos levados em uma incursão visório na sua elaboração de código como um
de debates formalistas e idealistas envolvendo instrumento indelevelmente associado com au-
Platão, Hegel, Shklovsky e outros, que eluci- toridade e controle social, o que evidentemente
dam os conceitos de forma, fórmula e formato tem suas implicação em formas de leitura.
do autor, sintetizados no argumento preciso de É uma tendência desse título, e talvez tam-
que apesar de não figurar no primeiro plano bém de seu autor, entender o livro impresso
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como uma forma levemente essencializada, em preto e branco dela, uniforme em todas
que textos e leituras são imutáveis, únicos, e as cópias da edição. Ao fazer isso, é
em alguma medida não afetados por suas pró- claro, subvertem a intenção de Sterne de
prias qualidades e transformações materiais. encarnar um emblema da intenção não
Nesse sentido, esse relato, que é no demais ex- específica, da diferença, do significado
tremamente humanista (para usar os próprios indeterminado, da própria instabilidade
termos do autor), dá pouca importância no seu do texto de cópia em cópia. (McKenzie,
argumento principal a algumas agências fun- 1999, pp. 35-36, tradução do autor)
damentalmente humanas: aquelas do trabalho
e das assemblagens humano-materiais que cir-
cundam a produção de livros impressos, como Apesar de qualquer disputa iminente, Plain
maneira de informar como – e se – eles se di- Text: The Poetics of Computation é decididamente
ferenciam de livros digitais. O papel do leitor um marco no desenvolvimento do pensamento
também é minimizado, e conceitos de intenção crítico na interseção entre teoria literária e es-
autoral e de um único texto original tomam tudos de software. É um trabalho ambicioso que
o primeiro plano. Nessa perspectiva, o livro prospera em avançar muitos dos aspectos fun-
produz uma certa tensão com exemplos mais damentais desse campo em expansão e na de-
estabelecidos da Bibliografia e da História dos finição de um léxico de conceitos úteis que
textos, representadas por exemplo por Roger certamente moldarão discussões futuras nesse
Chartier e Donald McKenzie, e esse diálogo po- tópico e em campos adjacentes. Não apenas
deria ser levado mais adiante na medida que isso, é um passo em direção à compreensão dos
esse título se torna um locus de discussão in- locais de inscrição no mundo digital e com isso,
telectual. Aqui, me lembro especificamente um trabalho de grande importância política
de uma passagem no livro Bibliography and the que se esforça em engajar leitores e críticos
Sociology of Texts, de McKenzie (1999), em que a contornar futuros textuais tecnologicamente
ele menciona a famosa página marmorizada no determinados. Citando uma última sessão do
Tristram Shandy, de Laurence Sterne, para dis- livro, “o código não é normalmente feito para
cutir simultaneamente o privilégio dado pelo ser decodificado por aqueles sobre os quais
escritor ao olhar do leitor sobre a indetermina- ele age. Recipientes de controle codificado são
ção do texto e a variação que uma edição pode poupados da fricção da significação, permane-
trazer ao texto a medida que o objeto livro se cendo em um estado de assemiose, e, portanto,
transforma: de ignorância.” (Tenen, 2017, Chapter 1, par. 2)
Essa passagem parece resguardar o motivo por
Cada página marmorizada à mão é trás da publicação desse volume: forçar em sua
necessariamente diferente, porém totalidade a fricção da significação sobre nossos
integral ao texto. Como um sortimento modos de ler (aparentemente) novos.
de formas coloridas completamente não
representacionais, uma página marmorizada,
distintamente de uma página letrada,
pode inclusive ser dita não ter significado
algum. A maior parte das edições modernas,
se tentam incluí-la e não se contentam
apenas com uma nota sobre sua presença
original, imprimirão uma imagem em
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“Format Governs Access”: floating gates, liquid cristal displays, the code
Dennis Tenen’s Poetics of that regulate their performance – and to how
the interactions between this assemblage of
Computation elements co-produce the text for what it is, in
what he calls a textual laminate, the combine
of logic and physics “that hold inscription in
“Computational poetics”, according to Dennis suspense.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Composite
Tenen, is “a strategy of interpretation capable Media, para. 2). It is only through this that tex-
of reaching past the surface content to reveal tual criticism will have the power to assert the
platforms and infrastructures.” (Tenen, 2017, humanist approach necessary for literature to
Introduction, Thesis and Archive, para. 8). In maintain its potential under what Kittler calls
his book Plain Text: The Poetics of Computation, “conditions of high technology.” (Tenen, 2017,
published in 2017 by the Stanford University Introduction, Theory, para. 15). To preclude li-
Press, the author faces a largely unaccounted terature from being technologically determi-
for but extremely pertinent theme in contem- ned, according to the author, scholars and rea-
porary literary theory: the ontology and phe- ders should extend their gaze onto the material
nomenology of digital texts. Both a professor of substrate and the infrastructures that surround
Comparative Literature at Columbia University any digital text and inform the way they are
and a former software engineer at Microsoft, read, and so be able to identify and respond
Tenen is able like few others to tackle this chal- to the way in which power structures are em-
lenge and bring forth an informed perspective bodied in them in “nonobvious ways.” (Tenen,
that contemplates a dialectical relationship 2017, Conclusion, Global Perspectives, para. 4).
between the knowledge and belief systems of The book is methodologically interesting,
both disciplines. as it formulates a critical epistemological his-
Positioning its arguments in opposition to tory of the relationship between literature
much of what 1990s to 2000s media theory and computation. Most of its five chapters are
have said about digital textuality, be it what the at least partially dedicated to providing his-
author calls the supposedly immaterial, shim- toriographical accounts of different lineages
mering qualities of Wendy Hui Kyong Chun’s of thought that have impacted the point in
software studies or the pessimistic ‘antihu- which digital textuality currently stands, either
manistic’ (Tenen, 2017, Introduction, Theory, through case studies and anecdotes, or through
para. 15) approach of Friedrich Kittler, the book the juxtaposition of contemporaneous philo-
aligns itself with an object-oriented, materia- sophies and ideas. The chapters, respectively
list take on digitality, which has been getting called “Metaphor Machines”, “Laying Bare the
traction with publication of works such as Yuk Device: The Modernist Roots of Computation”,
Hui’s On the Existence of Digital Objects (2016), “Form, Formula, Format”, “Recondite Surfaces”,
and Paul M. Leonardi’s Digital Materiality (2010). and “Literature Down to a Pixel,” are sequen-
Thus, Tenen argues that it is paramount for the ced in a way that synthesizes the flow of ex-
establishment of any kind of relevant interpre- perience in a digital object, with the argument
tation of digital texts that the ‘close reading’ “progress[ing] from the action of the numeri-
paradigm be applied not only to the surface cal keyboard switch, through the copper and
text but also to the actual material compo- silicon, to liquid crystal and the floating gate,
nents and hardware that allow for such text and on toward the reader and the community.”
to be rendered – silicon, quantum tunneling, (Tenen, 2017, Introduction, Plan of the Present
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Work, para. 1). certain voices and modes of reading.” (Tenen,


Among the many merits of the book, a spe- 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, para. )
cially significant one is the two-way appro- Unfortunately, while the formatting layer and
ximation the author promotes between the the programmatic sign are granted their im-
fields of computer science and literary stu- portance in this chapter, the book’s emphasis
dies. Not only is he concerned with the ef- on physical materiality prevents a deeper en-
fects that computational technology impart on gagement with the role of software and coding
contemporary forms of digital texts, but also in the techniques of writing and reading di-
with bringing forward the importance of li- gital texts. After all, as Tenen himself points
terary thought in the historical development out, code “is a exercise of power, not its re-
of these technologies. Drawing heavily from presentation” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital
Russian formalism and the work of Viktor Formalisms, para. 6); it is what shapes the vi-
Shklovsky in particular, but also from vast sible written word according to its own for-
sources in literary theory, media theory and mulations, relating “matter to content.” (Tenen,
textual criticism, Tenen is able to demons- 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, para. 6)
trate the importance of metaphors and their In that sense, Plain Text could be read in pa-
literary employment and analysis in the deve- rallel, even if it is not always in unison, with
lopment of both the actual interfaces and the books such as Lev Manovich’s Software Takes
critical discourse surrounding hardware and Command (2013), and David Berry’s Philosophy
software engineering. Through an almost lite- of Software (2011), that do not specifically focus
rary account of the cross-pollination of thin- on the ontology of texts as they relate to the
king between Ludwig Wittgenstein and Alan digital realm, but provide very interesting in-
Turing, the author beautifully exposes how the sight into the modes of production and con-
logic of computation came to be essentially temporary uses and practices of software, or
dialogical. And the discussion contained in the even Wendy Chun’s Programmed Visions (2011),
third chapter is particularly rich in its esta- which, despite being brought up by Tenen as
blishment of a hybrid format theory that en- an opposing view to his own, is a landmark in
compasses both its computer science and tex- its elaboration of code as an instrument that is
tual criticism counterparts. To assert what he indelibly linked to social control and authority,
calls the ‘formatting layer’, we are taken on a which evidently has its concerns for its impli-
foray of formalist and idealist debates involving cation in readership.
Plato, Hegel, Shklovsky, and others, that elu- It is a tendency of this title, and perhaps of
cidate his concepts of form, formula and for- the author, to understand the printed book as a
mat, summed up in the precise argument that slightly essentialized form, in which texts and
despite not usually figuring in the forefront of readings are immutable, unique, and to some
our theories of meaning-making, “format go- extent unaffected by their own material qua-
verns access.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital lities and transformations. In this sense, this
Formalisms, para. 5). We are presented with a otherwise very humanistic account (to use the
view of code as a “programmatic sign”, after author’s own terms) gives little importance in
Baudrillard (Tenen, 2017, Chapter 1, para. 1), its main argument to some very human agen-
that operates as an active agent in this semiotic cies: that of the labour and human-material
process, a mediator between distinct data for- assemblages surrounding the production of
mats that exercises power and affects reader- printed books, as a way to inform how they
ship – it “determines its audience, privileging differ – if they do – from digital ones. The role
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PÁGINAS 331 A 339 A POÉTICA COMPUTACIONAL DE DENNIS TENEN ZYLBERSZTAJN

of the reader is also downplayed, and autho- useful concepts that will most certainly shape
rial intent and the idea of a single original text future discussions in this topic and its adja-
take the foreground. From this perspective, the cent fields. Not only that, it is a step forward
book produces some tension with the more in understanding the sites of inscription in
established textual history and bibliography the digital world and with that, a very politi-
represented, for instance, by Roger Chartier cally important work which strives to engage
and Donald McKenzie, and this dialog could readers and critics in circumventing techno-
be taken further as the book itself becomes a logically determined futures for textuality. To
locus of intellectual discussion. Here, I am spe- quote one last section from the book “code is
cifically reminded of a passage in McKenzie’s not usually meant to be decoded by those it
Bibliography and the Sociology of Texts, in which acts upon. Recipients of codified control are
he brings up Laurence Sterne’s famous marb- spared the friction of signification, remaining
led page in Tristram Shandy in order to discuss instead in the state of asemiosis and therefore
simultaneously the writers’s privileging of the nescience.” (Tenen, 2017, Chapter 1, para. 2).
reader’s gaze over the indeterminacy of the text This seems to bear the motive behind the pu-
and the variance an edition can bring to the blication of this volume: to force back the full
text as the book object changes: friction of signification upon our (apparently)
new modes of reading.
Each hand-marbled page is necessarily
different and yet integral with the text. As
an assortment of coloured shapes which
are completely non-representational, a
marbled page as distinct from a lettered
one might even be said to have no meaning
at all. Most modern editions, if they do
attempt to include them, and do not settle
merely for a note of their original presence,
will print a black-and- white image of
them which is uniform in every copy of
the edition. By doing that, of course, they
subvert Sterne’s intention to embody an
emblem of non-specific intention, of
difference, of undetermined meaning,
of the very instability of text from copy
to copy. (McKenzie, 1999, pp. 35-36)

Despite any imminent disputes, Plain Text:


The Poetics of Computation is a definite mark in
the development of critical thought at the in-
tersection of literary theory and software stu-
dies. It is an ambitious work that thrives in
advancing many fundamental aspects of this
budding field, and in defining a lexicon of
339
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PÁGINAS 331 A 339 A POÉTICA COMPUTACIONAL DE DENNIS TENEN ZYLBERSZTAJN

References

Berry, D. (2011). The Philosophy of Software.


Basingstoke: Palgrave Macmillan.
Chun, W.H.K. (2011). Programmed Visions.
Cambridge, MA: The MIT Press.
Hui, Y. (2016). On the Existence of Digital
Objects. Minneapolis, MN: University of
Minnesota Press.
Leonardi, P.M. (2010). Digital materiality? How
artifacts without matter, matter. First
Monday, vol.15.
McKenzie, D. (1999). Bibliography and the
Sociology of Texts. Cambridge: Cambridge
University Press.
Manovich, L. (2013). Software Takes Command.
New York, NY: Bloomsbury Academic.
Tenen, D. (2017). Plain Text: The Poetics of
Computation. [Kindle Fire version]
Retrieved from Amazon.com
340

PRODUÇÃO ARTÍSTICA

2850 interpolações
de triângulos v3

Alexandre Villares
Arquiteto pela FAU-USP e mestre pela
FEC-Unicamp. Pesquisa práticas artísticas que
se valem de meios computacionais e o ensino
de programação em um contexto visual. E-mail:
abav@lugaralgum.com
341
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 2850 INTERPOLAÇÕES ALEXANDRE
PÁGINAS 340 A 344 DE TRIÂNGULOS V3 VILLARES

2850 interpolações
de triângulos v3

Tópicos abordados Uma obra de artes visuais no domínio das


arte algorítmica novas mídias, pode também ser descrita como
processing uma obra algorítmica. Executada no con-
python texto da exploração gráfica da combinató-
software Livre ria de elementos por meio da programação.
Reflete também preocupações do autor com
o compartilhamento do conhecimento, licen-
ciamento de artefatos culturais, uso de ferra-
mentas livres, acesso ao código fonte e des-
Lista de imagens mistificação dos procedimentos algorítmicos.

↘ p. 310
2850 interpolações de
triângulos v3
Alexandre Villares
[obra algorítmica], 2019

↘ p. 311
2850 interpolações de
triângulos v3 (detalhe)
Alexandre Villares
[obra algorítmica], 2019
342
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 2850 TRIANGLE ALEXANDRE
PÁGINAS 340 A 344 INTERPOLATIONS V3 VILLARES

2850 Triangle
Interpolations v3

Tópicos abordados A visual arts work in the domain of new


algorithmic art media, it can also be described as an algorith-
processing mic work. It was executed in the context of
python exploring graphically combinatorics of ele-
open source ments using code. It also reflects the author's
concerns about knowledge sharing, licensing
of cultural artifacts, use of free tools, access to
source code and demystification of algorith-
mic procedures.
Lista de imagens

↘ p. 310
2850 Triangle
Interpolations v3
Alexandre Villares
[algorithmic work], 2019

↘ p. 311
2850 Triangle
Interpolations v3 (detalhe)
Alexandre Villares
[algorithmic work], 2019
343
PRODUÇÃO 2850 INTERPOLAÇÕES ALEXANDRE
ARTÍSTICA DE TRIÂNGULOS V3 VILLARES
344
N. 1 ⁄ V. 2 ⁄PRODUÇÃO
FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL
2850
PELO
INTERPOLAÇÕES
USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO ALEXANDRE
ROBERTO & TEREZA
PÁGINAS
ARTÍSTICA
8 A 31 ARTIFICIAL: EMDE
BUSCA
TRIÂNGULOS
DE UM NOVO
V3 PARADIGMA SOBRENOMENOFF
VILLARES

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