Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Conselho Editorial
Dalton Lopes Martins
FACULDADE DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, UNB
Rogerio Christofoletti
DEPARTAMENTO DE JORNALISMO, UFSC
Editores
Dennys Antonialli
Francisco Brito Cruz
Mariana Giorgetti Valente
Editores executivos
Beatriz Kira
Murilo Roncolato
Identidade visual,
Internet & Sociedade, n.1, v.1 projeto gráfico
– 2020, 1º semestre. e diagramação
Polar.ltda
Site
Mirror Lab
SUMÁRIO
↘ p. 5 ↘ p. 91 ↘ p. 200 ↘ p. 278
Escrevendo a sua Como vencer uma “Li e aceito”: violações a Panorama mundial
própria existência eleição sem sair direitos fundamentais da regulação da
danah boyd de casa: a ascensão nos termos de uso das neutralidade da rede
do populismo plataformas digitais Ligia E. Setenareski,
↘ p. 38 digital no Brasil Ramon Mariano Leticia M. Peres,
Internet e participação Letícia Cesarino Carneiro Luis C. E. Bona e
cultural: o cenário Elias P. Duarte Jr.
brasileiro segundo ↘ p. 121 ↘ p. 230
a pesquisa TIC Responsabilidade civil Lei Geral De Proteção ↘ p. 311
Domicílios pelo uso de sistemas de De Dados e a tutela Virtualidade, violência
Luciana Piazzon inteligência artificial: dos dados pessoais de online e corpo:
Barbosa Lima e em busca de um crianças e adolescentes: uma compreensão
Winston Oyadomari novo paradigma a efetividade do fenomenológica
Enrico Roberto consentimento dos pais Nara Helena Lopes
↘ p. 64 ou responsáveis legais Pereira da Silva
Tércio Sampaio Ferraz ↘ p. 144 Barbara Fernanda
Júnior e Sigilo de O fenômeno das Ferreira Yandra, ↘ p. 331
dados: o direito à fake news: definição, Amanda Cristina “Formato governa
privacidade e os limites combate e contexto Alves Silva e Jéssica acesso”: A poética
à função fiscalizadora Marco Antônio Guedes Santos computacional de
do Estado: o que Sousa Alves e Dennis Tenen
permanece e o que Emanuella Ribeiro ↘ p. 250 Pedro Zylbersztajn
deve ser reconsiderado Halfeld Maciel A experiência de
Rafael Mafei Rabelo governo eletrônico do ↘ p. 340
Queiroz e Paula ↘ p. 172 Judiciário brasileiro: 2850 interpolações
Pedigone Ponce A democracia frustrada: estudo de caso dos de triângulos v3
fake news, política e Tribunais de Justiça Alexandre Villares
liberdade de expressão Vânia de Oliveira Alves
nas redes sociais
Lucas Borges
de Carvalho
TRADUÇÃO
Escrevendo a sua
própria existência
danah boyd
Escrevendo a sua
própria existência
danah boyd
ele se volta para abordagens sociológicas nas metodológicas diversas, e endereçando dife-
quais a identidade é marcada pela relação de rentes aspectos de identidade (Balsamo, 1995;
um indivíduo com a sociedade ou a cultura. Castells, 2004; Clippinger, 2007; Donath, 1999;
Questões de “socialização” moldam esse dis- Reed, 2005). Uma parte dos primeiros traba-
curso, notavelmente visto em estudos de sub- lhos, como o “Manifesto Ciborgue”, de Donna
culturas e nas formas como desvio e delinquên- Haraway (1991a), focou em como uma existên-
cia são vistos como um desenvolvimento falho cia mediada como um ciborgue resultaria em
de identidade. Em terceiro lugar, Buckingham novas manifestações de identidade, o que de-
fornece uma noção de identidade social que safiaria sistemas de poder por complicar pre-
é melhor entendida como “identificação”, na missas corporificadas nas políticas de identi-
qual o sentido de si do indivíduo é marcado em dade. Mas, apesar de a hipótese de Haraway ter
relação ao grupo. Aqui, os estudos de Goffman levantado enormes discussões e análises, esse
sobre autoapresentação e gerenciamento de futuro utópico não chegou. Mesmo quando
impressões desempenham um papel central. tentam enganar, as pessoas reproduzem online
Em quarto lugar, ele trata do conceito de “po- as suas experiências corporificadas (Berman &
líticas de identidade”, que emerge das dispu- Bruckman, 2001).
tas em torno de como identidades são cons- Uma das estudiosas mais proeminentes que
truídas pelos detentores de poder. Esse campo examinam as questões envolvendo identidade
de estudos desestabiliza a noção de quem tem e tecnologia é Sherry Turkle. Seus textos se-
realmente o poder de construir e controlar a minais The Second Self (1984) e Life on the Screen
identidade de um indivíduo, e está fortemente (1995) examinam a identidade a partir de uma
ligado a discursos de classe, raça, gênero e perspectiva psicológica, concentrando-se prin-
queer. Em quinto lugar, ele apresenta como a cipalmente na juventude. Turkle usa a psica-
teoria social moderna aborda identidade como nálise para considerar as maneiras pelas quais
sendo o que Anthony Giddens (1991) chama de a tecnologia auxilia e complica o desenvolvi-
um “projeto autorreflexivo do eu”, ou aquilo a mento da identidade. Ela também afirma que a
que Michel Foucault (1990) poderia se referir fragmentação da identidade possibilitada pela
como “automonitoramento”. tecnologia leva a crise de identidade a novos pa-
Nos discursos técnico e jurídico, o termo tamares (Turkle, 1995, pp. 255-269). Ao mostrar
“identidade” é frequentemente utilizado para e examinar maneiras pelas quais jovens usam
fazer referência a uma pessoa ou um corpo a tecnologia para trabalhar com a identidade,
particular (Solove, 2006). Sistemas técnicos fre- Turkle enquadra tais práticas como atos de si-
quentemente usam “identidade” para se referir mulação de identidade. Sua análise assume que
ao identificador em uma base de dados ou ao a atividade online é separada das interações físi-
conjunto de características demográficas que cas. Além disso, seu trabalho se concentra em
identificam alguém de forma única. Discussões jovens e crianças que acabam de ser introdu-
jurídicas sobre “roubo de identidade” e priva- zidas na computação. Embora nossos interes-
cidade também vão por esse caminho, usando ses de pesquisa sejam semelhantes, discordo de
identidade para referir-se à coleção de infor- muitas das conclusões de Turkle. Mesmo que
mações que referencia com sucesso uma pessoa sua análise seja válida para aqueles que estão
específica. tentando criar mundos “virtuais” separados por
Há já uma extensa produção acadêmica na meio do engajamento online, a grande maioria
interseção de tecnologia (incluindo a Internet) dos adolescentes não é assim. Por esse motivo,
e identidade, vinda de perspectivas teóricas e acredito que a suposição de que adolescentes
11
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
redes sociais principalmente para interagir com e muitos adolescentes adaptam-no para for-
amigos e colegas (Lenhart & Madden, 2007b). mas variadas de autoexpressão. Alguns adoles-
Ao elaborarem seus perfis, esses adolescentes centes exibem vídeos que desejam comparti-
não estão tentando se explicar para estranhos, lhar com seus amigos. Outros–principalmente
e sim criando uma autorrepresentação digital meninas–usam esse espaço para exibir resul-
que será bem recebida por pessoas que eles já tados de questionários ou testes de personali-
conhecem. Isso direciona o que eles escolhem dade. Alguns adolescentes escrevem poemas ou
para colocar em seus perfis e motiva-os a adap- exibem uma lista de citações favoritas. Alguns
tar recursos do MySpace que foram projetados deixam em branco e outros, como Allie acima,
para ajudar estranhos a se encontrarem. levam o desafio a sério e tentam descrever
Conforme discutido em maior detalhe no um aspecto de sua identidade. Ao navegar no
Apêndice 2,7 adolescentes inserem seis tipos de MySpace, vi uma variedade de diferentes atos
conteúdo para criar um perfil no MySpace: fo- de autoexpressão. Um adolescente postou um
tografias, informações demográficas, listas de longo discurso, seguido por: “eu não tento agir
gostos e interesses, texto em campos abertos como um espertinho / apenas declaro os fatos que eu
para autodescrição, música e layouts de página. conheço / também sou muito sincero / lide com isso.”
Além disso, como a lista de Amigos e os co- Um garoto adolescente usou essa seção para es-
mentários desses Amigos são exibidos nos per- crever um poema de amor para sua namorada,
fis, o conteúdo que seus Amigos escolhem in- exclamando seu amor e prometendo que ele
serir ajuda a moldar o perfil de um adolescente. estaria com ela para sempre. Em outro lugar,
Seções como o “Sobre mim” do MySpace uma adolescente ofereceu uma lista de fatos
são estruturadas para indivíduos explicarem a sobre si mesma, incluindo “Eu amo patinhos!”
si mesmos, presumivelmente para estranhos. Passagens bíblicas e letras de músicas são co-
Essa seção de tipo aberto é exibida central- muns, assim como fotografias de si mesmo ou
mente nas páginas dos perfis, mas muitos ado- dos amigos do adolescente em questão. Embora
lescentes não sentem a necessidade de se des- esses vários movimentos possam não respon-
crever para aqueles que já sabem quem eles são. der diretamente à pergunta feita pela seção
Traviesa, uma adolescente hispânica de 15 anos “Sobre mim”, todos refletem informações sobre
de idade de Los Angeles, chega ao ponto de o adolescente que está sendo representado.
usar essa seção para deixar claro que seu perfil Outra seção aberta que adolescentes regular-
é destinado àquelas pessoas que ela já conhece. mente adaptam é a “Quem eu gostaria de co-
Ela a usa a seção “Sobre mim” para declarar: “Ei, nhecer”. Com base nos perfis do MySpace que
meu nome é Traviesa ... mas a maioria de vocês me eu vi, a maioria dos adolescentes tratou esta
conhece de qualquer maneira, apenas fale comigo e seção de maneira parecida à seção “Sobre mim”,
pare de ser idiota”. O perfil dela é publicamente preferindo deixá-la em branco, adicionando
visível e ela sabe que estranhos podem acabar multimídia ou questionários, ou mesmo usan-
tropeçando nele, mas ela acredita que apenas do-a como uma continuação da seção “Sobre
aqueles que a conhecem teriam algum motivo mim”. Muitos dos que realmente abordaram
para mergulhar mais fundo. Diante disso, ela o tópico definiram explicitamente a audiên-
não acha que precisa entrar em detalhes sobre cia pretendida: “Gostaria encontrar apenas amigos
quem ela é, embora alegremente ofereça uma aqui.” Alguns mencionaram que estariam aber-
lista de suas músicas favoritas. tos a encontrar pessoas interessantes ou pes-
Assim, a seção “Sobre mim” é o campo aberto soas que compartilhavam seus interesses, mas
mais proeminente em um perfil do MySpace isso não era comum. Mais frequentemente, os
15
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
adolescentes indicaram que gostariam de co- ela entrou na sala segurando um fichário cheio
nhecer celebridades, bandas ou figuras públicas de papel. A frente, o verso e a lateral do fichá-
como o Dalai Lama e o papa. Embora esse ele- rio eram decorados com uma colagem de foto-
mento dos perfis tenha sido projetado para aju- grafias recortadas dela e de suas amigas artis-
dar pessoas a indicar quem elas gostariam de ticamente posicionadas. Perguntei a Gabriella
conhecer por meio do site, a escolha de listar sobre o fichário e ela me disse que gostava de
pessoas famosas é principalmente sobre marcar ter suas amigas com ela o tempo todo. As esco-
identidade pela participação em fandoms.8 lhas de Gabriella em matéria de roupas, acessó-
Em vez de se descrever, alguns adolescentes rios e maquiagem deixou claro que ela levava a
usam os campos das seções abertas para expres- moda a sério. Suas unhas foram pintadas como
sar os seus sentimentos sobre as pessoas que os dados em preto e branco e ela me disse que as
rodeiam. Em um perfil, uma adolescente deta- refazia regularmente. Gabriella levava seu per-
lhou o quanto ela amava suas amigas em sua fil online tão a sério quanto suas roupas. Ela
“Sobre mim”; em outro, um garoto escreveu me disse que procurava ativamente panos de
uma mensagem de “descanse em paz” para um fundo10 interessantes e que mudava seu perfil
amigo que morreu. Michael, um adolescente semanalmente. Naquele dia, o tema era jogo
branco de 17 anos de Seattle, me disse que seu de damas. Ao visitar o seu MySpace, encontrei
perfil se concentrava em duas coisas: futebol paralelos entre o perfil dela e o seu fichário–
americano e sua namorada. Quando nos co- ambos cobertos de fotografias de amigos.
nhecemos, a sua seção “Sobre mim” começava Enquanto os adolescentes se divertem com
com “Eu amo minha namorada AMY”. Da mesma a maioria dos campos nas seções de autodes-
forma, Amy, uma adolescente negra9 de 16 anos, crição e de interesses pessoais, suas respostas
encheu seu perfil com odes à Michael. Os dois aos campos de gosto (músicas, programas de
exibiram seu relacionamento por meio de pos- TV e filmes favoritos, por exemplo) tendem a
tagens em blogs, fotos e comentários. Como ser mais sérias e complexas. Ranquear os “fa-
muitos outros adolescentes, Amy e Michael vi- voritos” em matéria de produtos midiáticos
sivelmente performaram seu relacionamento não é simples para muitos adolescentes – gos-
usando seções de perfil destinadas à autodes- tos mudam com o tempo e muitas pessoas não
crição. Algumas semanas depois que conheci pensam em seu gosto na forma de listas abstra-
Michael e Amy, eles terminaram. Embora qual- tas. Gostos, como moda, estão enraizados em e
quer sinal de Michael tenha desaparecido do construídos por sistemas sociais. As pessoas se
perfil de Amy, Michael tornou visível essa alte- distinguem por seus gostos e gostos são uma
ração no status do relacionamento. Onde antes das maneiras pelas quais as distinções sociais
havia uma proclamação de amor, o perfil de são produzidas (Bourdieu, 1984). Quando soli-
Michael mostrava: “Eu odeio minha ex-namorada citados a expressar seus favoritos, muitas pes-
vadia idiota”. Oportunamente ou não, os adoles- soas–consciente ou inconscientemente–sele-
centes regularmente marcam quem são em re- cionam gostos que transmitirão a impressão
lação às pessoas ao seu redor, e suas autoapre- ideal (Donath, 2007). Em outras palavras, elas
sentações são enquadradas por suas relações tentam se posicionar em relação aos outros por
com e opiniões sobre os outros. meio de suas escolhas de gosto. Analisando
Usar fotografias de amigos como forma de perfis do MySpace, Liu (2007) descobriu que
decoração não é exclusivo da Internet. Quando estruturas sociais incitam performances de
entrevistei Gabriella, uma hondurenha de 15 gosto. Surpreendentemente, as pessoas tinham
anos de idade, em sua escola em Los Angeles, maior probabilidade de listar gostos diferentes
16
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
de seus Amigos. No entanto, essa diferenciação a ter Amigas que também escolhem esse es-
performativa não implicava que as pessoas não tilo de foto. Os adolescentes que dedicam seus
compartilhassem mais gostos com os que as perfis a Jesus tendem a ter Amigos que tam-
rodeiam. Pelo contrário, é bem provável que o bém mostram publicamente sua fé. Ao navegar
ato de articulação pública motivasse as pessoas em perfis, não é possível dizer quem definiu as
a listar gostos que as diferenciassem daqueles normas, mas os nichos são visíveis. Embora o
que os rodeiam. tom geral de um perfil tenda a ser consistente
O texto de autodescrição, os artefatos de nos grupos sociais, o conteúdo em si raramente
mídia e os layouts de página são apenas um as- é replicado. Por exemplo, embora aspectos ge-
pecto de um perfil em sites de redes sociais. rais de layout do MySpace possam ser consisten-
Outro componente importante é a articulação tes em um grupo de Amigos, dois Amigos não
pública de conexões sociais por meio das Listas usariam exatamente o mesmo layout. Com es-
de Amigos. Como essas conexões são exibidas tilos de perfil e gostos, os adolescentes tendem
publicamente no perfil de um adolescente para a se diferenciar por meio de conteúdo especí-
todos verem, elas servem como mais do que fico mesmo quando o tom geral ou o gênero
apenas uma lista de colegas ou uma caderneta dos gostos se pareça com o de seus Amigos.
de endereços. Essas conexões–e os comentá- Em outras palavras, cada perfil é único, mas
rios deixados por esses Amigos–moldam as há efeitos de rede em termos de tom, gênero e
representações digitais dos adolescentes. Em estilo, sugerindo que os adolescentes estão po-
outras palavras, os sites de redes sociais for- sicionando suas identidades digitais em relação
malizam o ditado “diga-me com quem andas àqueles ao seu redor. Essa prática é semelhante
que direi quem tu és”. Ao mesmo tempo que à moda em ambientes não mediados, onde é
os adolescentes controlam certo conteúdo em comum adolescentes escolherem roupas que
seus perfis, eles não controlam as fotos ou os geralmente são do mesmo estilo que seus pares,
nomes que seus Amigos selecionam, embora mas onde usar exatamente as mesmas roupas
estes também sejam exibidos em seus perfis. que seus amigos é um tabu.
Eles podem excluir comentários deixados pelos
Amigos, mas, na maioria das vezes, não o fazem.
No Facebook, adolescentes também podem 3.2. Cultura e
postar e marcar outras pessoas em fotos, que moda do quarto
são automaticamente conectadas aos seus per-
fis sem a permissão daqueles que foram mar- A maneira como os adolescentes adornam
cados.11 Dessa forma, o que os adolescentes de- seus perfis online é paralela à maneira como
claram explicitamente em seus perfis é apenas decoram outros espaços e objetos materiais que
uma parte da sua autoapresentação online. Seus eles controlam–armários escolares, mochilas,
perfis são fortemente co-construídos por aque- quartos e seus corpos. O estilo de fotomonta-
les que os rodeiam. gem que Gabriella, 15 anos, de Los Angeles, usa
Efeitos de rede também desempenham um para seu fichário espelha quantos adolescen-
papel significativo na forma como adolescentes tes decoram seus armários e paredes do quarto.
constroem seus perfis. À medida que navegam Há muito tempo, adolescentes costuram obje-
nos perfis uns dos outros, eles percebem o que tos de mídia como uma forma de autoexpres-
é comum entre seus grupos de colegas e costu- são, colocando-os em espaços ou objetos que
mam criar seus perfis para reforçar essas nor- estão conectados com eles. Da mesma forma,
mas. As meninas que têm fotos “sexy” tendem roupas e acessórios têm sido uma maneira de
17
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
fosse criativa. Ela não teve permissão para alte- próximo capítulo,13 é importante observar que
rar seu quarto após sua mãe, que é decoradora a moda ainda funciona como um mecanismo
de interiores, tê-lo projetado, mas ela poderia chave de autoapresentação e desempenha um
fazer o que queria com seu perfil no MySpace. papel central no gerenciamento de impressões.
Ela aproveitava a oportunidade para a autoex- À medida que os adultos buscam controlar as
pressão criativa e mudava seu perfil constante- maneiras pelas quais os adolescentes podem se
mente. Embora este seja um caso extremo de engajar em atos de autoexpressão, os adolescen-
falta de controle, muitos adolescentes encon- tes buscam novos espaços, incluindo a Internet.
tram restrições no que podem ou não colocar Como os perfis são tanto uma representação de
nas paredes de seus quartos ou em outros es- um indivíduo como um espaço para interação
paços onde eles possivelmente já marcaram sua social, as práticas de autoexpressão assumem
identidade. Muitas das escolas que visitei não um lugar paralelo à cultura do quarto e à moda.
têm mais armários ou restringem as decora-
ções dos armários–“por razões de segurança contra
incêndios”. A moda é outro espaço onde ter con- 3.3. Variando
trole da autoexpressão é difícil. Vestimentas e graus de
mochilas continuam a constituir um campo de
batalha, especialmente no que diz respeito à es- participação
cola. Da mesma maneira, os pais ainda tentam
limitar o que seus filhos podem usar. Embora a criação de um perfil seja necessária
A moda desempenha um papel significativo para a participar do MySpace, a sua decoração
na marcação de identidade (Davis, 1992) e, como ativa não o é. Os adolescentes frequentemente
discutirei no próximo capítulo,12 status (Crane, sentem pressão social para inserir uma foto sua
2000; Piacentini & Mailer, 2004). Adolescentes e dedicam algum esforço na criação de seus
usam a moda para marcar-se em relação uns perfis, mas há menos pressão para atualizar
aos outros (Milner, 2004) e para identificar-se constantemente o estilo e o layout. Ao mesmo
com grupos sociais (Hebdige, 1979). Roupas e tempo, adolescentes geralmente não querem
acessórios tornam-se ferramentas para a au- deixar seus perfis ficarem obsoletos porque
toexpressão e os adolescentes vestem-se como pensam que isso passa uma má impressão. O
uma forma de trabalho identitário. No entanto, desejo de manter um perfil em dia geralmente
embora os adolescentes valorizem as oportuni- leva a atualizações. Nick, um adolescente negro
dades simbólicas da moda para autoexpressão e com raízes indígenas de 16 anos de Los Angeles,
identificação (Milner, 2004; Piacentini & Mailer, atualiza suas fotos e planos de fundo a cada
2004), os adultos preocupam-se com os mar- poucos meses pois, caso contrário, “fica muito
cadores visíveis da resistência dos adolescen- chato ... aí vou entrar no meu perfil e ver a mesma foto
tes às normas dos adultos e com o reforço das toda vez. Eu fico tipo ‘vou fazer alguma coisa nova’”.
hierarquias sociais. Códigos de vestimenta são Enquanto alguns adolescentes se sentem
relativamente comuns e muitas vezes aclama- motivados a atualizar seus perfis constante-
dos pelos pais como abordagens saudáveis para mente, outros nunca os atualizam. Alguns,
conter a violência de gangues, a promoção de como Shean, um adolescente negro de 17 anos
relações de status e hierarquias problemáticas em Los Angeles, usam o MySpace a partir de
entre adolescentes e o consumismo. Embora uma perspectiva funcional, comunicativa. “Não
a moda e sua relação com status e grupos de sou muito fã de mudar a minha imagem de pano de
pares sejam discutidas em mais detalhes no fundo e tudo isso. ... Desde que eu mantenha contato
19
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
com meus amigos ou qualquer coisa assim, eu real- satisfeita com minha tentativa fingida
mente não me importo com a aparência desde que de me definir digitalmente. Tenho uma
eu esteja, tipo, lá”. A atitude dele é bem comum, ideia melhor: vou interromper todas
embora os meninos expressem isso mais fre- as atividades que de qualquer maneira
quentemente do que as meninas. Nas minhas possam sugerir que estou me prostituindo
entrevistas, mais meninas sentiam pressão para para alguma imagem estereotipada, e
manter seus perfis atualizados e expressivos, vou parar de tentar porque nenhuma
ricos em fotos e novos conteúdos. Quando eu expressão é precisa o suficiente para
navegava nos perfis, também me parecia que as abranger todas as minhas complexidades
meninas os atualizavam com mais frequência. humanas. ... Que Deus proíba que outras
Nem todos os adolescentes sentem pressão pessoas pensem que eu estava fingindo ou
para criar o perfil perfeito ou atualizá-lo com degradando a soma da minha substância
frequência, e, mesmo entre aqueles que sen- a uma lista dos meus filmes favoritos
tem, nem todos cedem a ela. Da mesma forma e algumas fotos bem escolhidas.
como alguns adolescentes resistem às pressões
para se adaptar a outras práticas normativas
de sua cultura de pares,14 alguns adolescentes A tirada sarcástica de Cara sobre o processo
também evitam a construção e manutenção de de desenvolvimento e manutenção de perfil
perfis online. Grande parte de sua resistência chega ao cerne do porquê adolescentes se en-
surge de uma frustração generalizada de que a volvem nessas práticas. Muitos adolescentes
participação requer conformidade com atitudes querem criar uma representação digital que
mais amplas da sua cultura de pares, hierar- represente bem quem eles são e que seja bem
quias sociais e conjuntos de valores. Quando recebida por aqueles que os circundam. No en-
os adolescentes marginalizados optam pela tanto, fazê-lo por meio de um perfil de site de
exclusão e criticam essas práticas, isso geral- rede social exige que você se encaixe em um
mente é um movimento explícito de se dis- conjunto predeterminado de caixas e listas de
tanciar das hierarquias de status inatingíveis gostos. O resultado é grosseiro–e nem sempre
do pessoal mais “popular”. Suas críticas, ainda representativo–o que aumenta a incerteza so-
que sejam por vezes justificadas, questionam as cial pela qual os adolescentes passam ao lidar
práticas de trabalho identitário e de negociação com seus pares.
de status que ocorrem na construção de perfis. A criação de perfis força adolescentes a levar
Quando entrevistei adolescentes que evitavam em consideração como eles querem se repre-
essas práticas, nenhuma era tão articulada e sentar. Ao trabalhar nesse processo, adolescen-
descritiva quanto Cara, uma jovem de 20 anos tes calculam quem eles acham que verá seus
do Maine. Cheia de sarcasmo, Cara lamentava o perfis. Suas decisões sobre o que dizer estão
ritual de construção de perfis em seu blog: profundamente conectadas ao seu senso de au-
diência. Esse público é, em geral, composto por
Realmente eu estou fazendo de tudo para seus amigos, e o que os adolescentes dizem é
construir uma identidade ideal, e aí todo melhor compreendido dentro desse contexto.
mundo saberá o quão emo e especial eu Fora de contexto, parte do que aparece não é
sou. É a mesma razão pela qual tenho um exatamente o que parece.
LiveJournal e um MySpace, para que eu
possa encarar fotos de mim mesma e ficar
ajustando meu layout até que me sinta
20
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
4. Autoapresentações em que você possa fazer com alguém cujo material ge-
contexto nético você herdou sem que você subverta as leis da
natureza.” Os desafios em negociar perfis com
pais e outros adultos são discutidos em mais
Perfis e outros atos de autoapresentação não detalhes em outro capítulo deste trabalho.16
são performados no vácuo. As decisões sobre Falar para um público imaginário não é uma
qual conteúdo exibir estão situadas em um novidade. Escritores, políticos e atores de TV
contexto orientado pelo espaço, situação social há muito tempo performam para um público
e por pessoas. Em ambientes mediados, a tec- imaginário, guiados por quem eles acham que
nologia ajuda a moldar o contexto, mas a tec- está assistindo e por quem eles desejam que es-
nologia sozinha não define o contexto. Para os teja. Essas pessoas aprendem a controlar suas
adolescentes que entrevistei, as outras pessoas autorrepresentações diante do público imagi-
foram o fator mais importante levado em conta nário como parte de sua profissão, mas esses
em suas decisões sobre como se apresentar. Eles atos estão sempre situados em contextos públi-
estavam preocupados com quem eles achavam cos. Para os adolescentes negociando públicos
que deveria, poderia ou conseguiria ver os seus em rede, navegar pelo público imaginário faz
perfis. O contexto no qual eles estavam ope- parte do dia-a-dia. Ao contrário de profissio-
rando era primariamente moldado por aque- nais que buscam endereçar o público em geral,
les que eles imaginavam ser seu público e por adolescentes não estão focados em situar seus
como eles se relacionavam com esse grupo. Da atos de maneira ampla. Embora seu público em
mesma forma, ao performar frente a esse pú- potencial possa ser global, o público imaginário
blico, os adolescentes estavam tentando definir é muito local, consistindo principalmente em
a situação social ao enraizá-la nesse contexto. pessoas que eles conhecem. No entanto, ado-
Adolescentes tipicamente direcionam seus lescentes também devem enfrentar muitas das
perfis para suas amigas e amigos. Em múlti- mesmas complexidades que oradores públicos
plas ocasiões, adolescentes citavam o slogan do enfrentam na elaboração de suas autorrepre-
site MySpace: “O MySpace é um lugar para ami- sentações, em parte devido à visibilidade po-
gos”. Essa audiência pretendida é mais visível tencial de seus atos.
quando adolescentes se preocupam em ser bem Em “No Sense of Place”, Joshua Meyrowitz
recebidos, uma dinâmica que é mapeada no (1985) mapeia maneiras pelas quais a mídia ele-
próximo capítulo.15 trônica–e particularmente a televisão–afeta si-
Quando pressionados para definir seu pú- tuações sociais, gerenciamento de impressões
blico, adolescentes frequentemente concentra- e autoapresentação. Ele se concentra nas ma-
ram-se em quem eles achavam que não deveria neiras pelas quais a mídia eletrônica derruba
estar visualizando seu perfil. Assim, de maneira as fronteiras dos espaços e os contextos sociais,
geral, eles enfatizaram que adultos não faziam borrando papéis sociais e juntando públicos
parte de sua audiência pretendida. Por exem- que não poderiam normalmente estar co-pre-
plo, quando perguntada se ela achava que seus sentes. Por causa da mídia eletrônica, infor-
professores estavam no MySpace, Traviesa, 15 mações e atos sociais perdem seu contexto, e
anos, de Los Angeles, respondeu dizendo: “Isso novas identidades, comportamentos, papéis e
é nojento!” Aria, uma estudante universitária de situações sociais precisam ser formados para
20 anos da Califórnia, levou esse sentimento dar conta da maneira como a estrutura social
um passo adiante, observando: “Eu realmente não é alterada. Isso, por sua vez, desfaz distinções
acredito que ‘usar redes sociais na internet’ seja algo entre público e privado, fronteiras entre grupos
21
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
sociais e a própria essência da vida pública. perturbar os públicos que eles não desejam.
Escrevendo antes de a Internet ter ganhado a Esse movimento pode ser arriscado, especial-
atenção das massas, Meyrowitz estava adian- mente se o conteúdo do perfil for perturbador
tado em relação a seu tempo. O que ele de- para quem detém o poder sobre os adolescen-
monstra em relação à televisão e outras formas tes, porque a tecnologia colapsa facilmente os
iniciais de mídia eletrônica só se intensificou limites que os permite distinguir contexto por
desde a ascensão da Internet. As complexidades intermédio de grupo social. Os desafios que
que ele documenta sobre o que figuras públicas adolescentes enfrentam em relação ao equi-
enfrentam na administração de contextos so- líbrio de diferentes públicos espelham aque-
ciais agora fazem parte da vida cotidiana. les que Meyrowitz (1985) descreveu em rela-
Enquanto adolescentes aproveitam os re- ção às figuras públicas que enfrentam televisão
cursos de amizade em redes sociais para cons- e rádio. Negociar com múltiplos públicos cria
truir uma audiência imaginária para a qual di- colisões de contexto, e os adolescentes sentem
recionar suas autoapresentações (boyd, 2006b), mais pressão quando são forçados a lutar si-
quem observa pode nem sempre ser quem os multaneamente com diferentes públicos, como
adolescentes esperam ou desejam que seja. Ao seus pares e pais.
passo que alguns adolescentes temem a pre- Em um esforço para controlar o contexto de
sença de estranhos que tenham más intenções, sua autoapresentação, os adolescentes adotam
vários adolescentes aceitam que estranhos duas táticas diferentes. Primeiro, eles usam
quaisquer possam trombar com seus perfis, meios estruturais, como fornecer informações
assim como estranhos quaisquer passam por falsas para não aparecer nas buscas, ou usar
eles nas ruas, mas eles assumem que esses es- as configurações de privacidade para limitar
tranhos vão passar e seguir em frente. Assim, quem pode acessar seus perfis. Essa primeira
eles não levam em conta estranhos quaisquer abordagem é a da “segurança através da obscu-
na escolha de como apresentar a si mesmos. ridade”, e os adolescentes que eu entrevistei re-
Por exemplo, Kiki, uma adolescente negra de 16 conhecem que ela não é à prova de falhas, mas
anos de idade do Kansas, originalmente tornou acreditam que é uma boa primeira medida para
seu perfil privado porque, como ela explicou, dissuadir professores e responsáveis por pro-
“não quero ninguém no meu perfil”. Em outras pa- cessos seletivos de faculdades de encontrarem
lavras, ela não queria que estranhos passassem seus perfis. A intenção de pais de encontrar o
por lá. No entanto, uma vez familiarizada com perfil é uma história diferente, mas os adoles-
o site, ela decidiu que deveria mudar seu perfil centes acreditam que as configurações de pri-
para torná-lo público. Ela percebeu que nin- vacidade são geralmente efetivas contra eles e
guém iria visitar seu perfil e, portanto, parou contra o professor intrometido ou o burocrata
de se importar em bloquear o acesso a ele. De da escola.
qualquer modo, ela não quer aceitar solicita- Segundo, os adolescentes tentam definir a
ções de Amizade de estranhos, mas receber situação social por intermédio de atos explí-
essas solicitações não a incomoda; ela apenas citos e implícitos de controle de público. Eles
as ignora. usam listas de Amigos para deixar claro quem
Ao tentar equilibrar diferentes públicos em eles veem como sua audiência pretendida; isso
potencial e atrair aqueles que desejam, os ado- é reforçado por recursos de privacidade que
lescentes concentram-se em dissuadir visitan- bloqueiam todos os outros. Eles também exi-
tes indesejados e elaborar perfis que atraiam gem que pais e outros adultos fiquem de fora,
seus pares, mesmo que isso seja às custas de usando linguagem de “Não Entre”, o que é
22
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
equivalente às brigas entre pais e adolescen- perfis. Os adolescentes não veem esses atos
tes pelo acesso ao quarto. Dessa forma, os ado- como enganosos, porque aqueles para quem
lescentes tentam controlar o acesso ao espaço eles direcionam seus perfis sabem seus nomes
para definir o contexto. No entanto, isso ge- reais, idades, localizações e cidades natais. Eles
ralmente é inefetivo, em parte porque a tec- podem ver suas respostas como engraçadas,
nologia faz o acesso parecer ser público. Em mas não estão tentando criar uma identidade
inúmeras comunidades, eu ouvi adolescen- alternativa. Eles estão simplesmente tentando
tes tentando dissuadir os pais de acessar seus estruturar sua presença de uma maneira que
perfis visíveis, declarando: “Mas é o meu es- permita que eles estejam visíveis para quem
paço”. Ao responderem “Mas é público”, os pais importa e invisíveis para quem não importa.
em geral não entendem o que os adolescentes Por exemplo, ao explicar sua prática de colo-
estão querendo dizer, já que seu senso de pri- car informações falsas no seu MySpace, Mickey,
vacidade tem a ver com contexto e controle, e um adolescente mexicano de 15 anos de Los
não com acesso potencial. Dito isso, essa briga Angeles, diz: “Não é que eu minto no [MySpace],
geralmente segue a mesma lógica das brigas mas eu não coloquei minhas informações reais. Como
entre pais e adolescentes mais velhos por es- se eu fosse colocar minhas informações reais em meu
paço, contexto e privacidade, que incluem ar- ‘Sobre mim’...”. Para Mickey, conteúdo falso não é
gumentos como “mas é meu quarto” e “mas é o mesmo que mentir, porque quem o conhece
minha casa”. pode ver que é ele.
Alguns adolescentes procuram criar perfis Os adolescentes mentem sobre a idade por
completos, enquanto outros mantêm perfis que vários motivos. Alguns estão simplesmente
fornecem pouca informação. No entanto, entre tentando ser engraçados ou divertidos, assim
os dois grupos, incontáveis adolescentes res- como aqueles que indicam salários altos.
pondem a solicitações sobre seu nome, idade, Outros procuram enganar estranhos que pos-
local, renda e outras informações demográficas sam estar interessados em se envolver com eles.
com respostas que não refletem com precisão Respondendo aos temores dos adultos em rela-
a sua identidade “verdadeira”. Às vezes, o que ção à segurança, muitos adolescentes acreditam
eles listam parece um pouco estranho; outras que obscurecer a idade e outras informações de
vezes, a informação parece absurdamente er- identificação vai minimizar possíveis ameaças.
rada. Por exemplo, alguns adolescentes dizem Outro grupo de adolescentes altera sua idade
que têm 100 anos ou ganham mais de 250.000 para contornar restrições técnicas e legais. Eles
dólares por ano. Em um nível, esse conteúdo mentem porque a idade corresponde a privi-
pode ser visto como fraudulento. Em outro, légio nas configurações online. Eles mentem
parece jogo de identidade. Nenhuma dessas porque essa é a única maneira pela qual eles
teorias explica por que adolescentes tendem podem obter acesso à tecnologia que dese-
a colocar informações “imprecisas” em seus jam. Eles mentem para contornar barreiras à
23
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
entrada que eles desrespeitam. E, muitas vezes, O exemplo mais próximo que eu experimentei
eles mentem com o conhecimento de seus pais. de alguém levar a sério a idade do perfil foi um
Aproximadamente um quarto dos adolescen- adolescente que entrou no Facebook como es-
tes com quem falei tinha perfis que indicavam tudante do ensino médio na época em que so-
uma idade falsa. Alguns mentiram excessiva- mente estudantes universitários eram aceitos,
mente, indicando que tinham 101, 69 ou outra porque seu pai havia lhe dado um endereço
idade pós-aposentadoria. Penelope, uma adoles- .edu; ele disse que se marcou como mais velho
cente branca de 15 anos de Nebraska, explicou porque os estudantes universitários são mais
que escolheu listar sua idade como 100 porque velhos e ele não queria se destacar.
achava “engraçado”. Outros indicaram que ti- Entre outros grupos sociais ou em outros
nham mais de 18 ou 21 anos – a “maioridade” contextos, as falsas informações de idade sig-
socialmente construída. Eles me disseram que nificam coisas diferentes. Nos sites de namoro
listaram essas idades porque achavam que o online, os adultos costumam eliminar alguns
MySpace restringia as contas de menores de anos (e alguns quilos) para parecer desejáveis
idade. Uma adolescente disse que era melhor a possíveis pretendentes (Hancock et al., 2007).
ter mais de 18 anos, porque isso “manteria os Nesse contexto, os adultos estão engajados in-
molestadores de crianças longe”. (Ironicamente, tencionalmente em enganar outras pessoas. Às
muitos adultos se preocupam com o fato de os vezes, adolescentes mudam suas idades como
adolescentes que fingem ser mais velhos terem um ato intencional de enganar, mas em geral
maior probabilidade de ser vulneráveis a pes- seu objetivo é enganar empresas cujos sites
soas com intenções maliciosas.) Uma outra têm restrições de idade ou desencorajar a aten-
adolescente me disse que listou sua idade no ção indesejada de estranhos. Da perspectiva
MySpace para corresponder ao seu documento deles, as pessoas que importam para eles (por
de identidade falso, caso alguém fosse verifi- exemplo, seus amigos) já sabem sua idade, e
car. Um terceiro grupo mentiu arbitrariamente, não precisam ser informados por um sistema.
indicando que eles eram entre três anos mais Para os adolescentes, é mais importante inserir
jovens e oito anos mais velhos do que eram. corretamente a data de aniversário do que o
Quando lhes perguntei sobre suas decisões, a ano de nascimento, para que, quando os siste-
maioria deu de ombros e respondeu com um mas lembrem seus amigos de seus aniversários,
“não sei”. Um garoto me disse que rolou a lista não ocorram situações embaraçosas. Quando se
de anos de nascimento e escolheu uma alea- trata de grupos de pares, as consequências so-
toriamente. Os adolescentes que eu entrevis- ciais de fornecer informações imprecisas sobre
tei não levavam a sério as idades indicadas no a data de nascimento são muito maiores do que
perfil, nem pensavam que elas sinalizavam algo as de informar um ano impreciso.
importante, mesmo aqueles que indicaram que Embora adolescentes tenham motivações di-
eram mais velhos. Alguns me disseram que ou- ferentes para fornecer informações imprecisas,
tros adolescentes da escola marcavam que eram isso se tornou uma prática comum. A maioria
mais velhos para parecer “bacanas”,17 mas isso dos adolescentes que se envolvem nessas prá-
nunca veio daqueles cujos perfis marcavam a ticas não está tentando enganar, mas aproveitar
faixa etária dos “bacanas” (entre 18 a 25 anos), a tecnologia para atender às suas necessidades.
e duvido que aqueles que arbitrariamente es-
colheram idades acima de 40 anos tenham ten-
tado parecer “bacanas” quando me disseram
que não sabiam por que escolheram essa idade.
24
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
5.2. Limitações papel dos pais. Elas não foram um caso isolado–
legais e técnicas ouvi relatos semelhantes no país todo e, para
o grupo que entrevistei, o AIM foi a porta de
Em 1998, o Congresso dos EUA aprovou a entrada para enganar sobre a idade. A maioria
Lei de Privacidade de Proteção Online das entrou no início do ensino médio, geralmente
Crianças (Children’s Online Protection Privacy Act, com o conhecimento dos pais. Quando entra-
ou COPPA). Com o objetivo de proteger crian- ram no MySpace, eles já estavam acostumados
ças em relação à publicidade comercial, o a mentir sobre a idade e o faziam regularmente.
COPPA proíbe que websites coletem informa- Não entrevistei adolescentes que eram jovens
ções de crianças menores de 13 anos sem uma demais para estar no Facebook ou MySpace,
permissão verificável dos pais. Também inclui mas há inquestionavelmente jovens menores
disposições para quando os sites devem forne- de idade usando esses sites. Em um grupo focal
cer políticas e regras de privacidade para prote- de Boston, conduzido por membros do projeto
ger a segurança de crianças menores de 13 anos. “Nativos Digitais” do Berkman Center, Tom, de
Como a verificação da idade é um pesadelo do 12 anos, declarou que estava no Facebook, ape-
ponto de vista técnico e de privacidade, a maio- sar de não ser propriamente qualificado para
ria dos sites impede que todos aqueles que afir- isso, porque “não há como provar a idade. Você
mam ter menos de 13 anos criem uma conta, pode acessar qualquer site e dizer: ‘Nasci em
como forma de cumprir a lei. A abordagem 1981 e agora tenho 18 anos’.” Ele achava as limi-
mais comum adotada pelos sites é limitar a tações de idade ridículas e queria que elas não
lista de anos de nascimento no menu suspenso existissem, mas “mesmo que o limite de idade
para o ano corrente menos 13. O COPPA não não seja diminuído, ainda há pessoas como
impediu a maioria das crianças de criar contas, eu. Tecnicamente, ainda não tenho permissão
mas ensinou às crianças e seus pais uma lição para estar no Facebook. Mas eu posso dizer que
importante: mentir é o caminho para o acesso. agora tenho 14 anos.” Tom mente sobre sua
Muitos dos adolescentes que entrevistei idade porque pode e porque isso lhe dá acesso
aprenderam a mentir sobre suas idades no en- a um site que ele acredita que deveria ter o di-
sino médio, quando eram menores de 13 anos. reito de acessar.
Quando perguntei aos adolescentes como eles O COPPA foi pensado para proteger a privaci-
aprenderam a mudar seu ano de nascimento dade das crianças e impedir que elas fossem as-
para ter acesso, pais e irmãos mais velhos eram sediadas por publicidade comercial, mas ele foi
com mais frequência os culpados. Uma vez, sendo cada vez mais creditado como um me-
quando eu estava conversando com um par de canismo de segurança. Os adolescentes que en-
mãe/filha em um aeroporto, a adolescente me trevistei não sabiam das intenções por trás das
disse que, quando todas as suas amigas esta- restrições, e simplesmente as viam como uma
vam entrando no serviço de mensagens ins- ferramenta de controle. Assim, eles assumiram
tantâneas (AIM) da AOL, ela foi conversar com que qualquer site que pedisse sua idade limi-
sua mãe sobre ser muito jovem para criar uma taria suas atividades, dependendo do que elas
conta. Sua mãe se sentou com ela no compu- selecionassem. Como muitos sites, o MySpace
tador e mostrou-lhe como mudar seu ano de oferece recursos diferentes para os usuários
nascimento durante o processo de inscrição. com base nas idades. Sem saber das diferenças,
A mãe confirmou esse relato, observando que muitos adolescentes assumiram que as contas
achava que as limitações eram “idiotas” e que de menores eram provavelmente limitadas ou
as empresas de tecnologia não deveriam fazer o “deficientes”, levando-os a identificar-se como
25
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
mais velhos. Ironicamente, as contas para me- porque acreditavam que o Facebook era mais
nores eram inicialmente mais avançadas que as seguro que o MySpace e que corriam menos
contas para adultos – por exemplo, menores de riscos.
idade tinham opções de privacidade, enquanto Por razões semelhantes, muitos adolescentes
usuários adultos não podiam tornar seus perfis mentem sobre sua localização. Enquanto ado-
privados. Havia também restrições, mas geral- lescentes em grandes centros urbanos como
mente elas protegiam a privacidade dos adoles- Los Angeles normalmente forneciam informa-
centes. Enquanto os adolescentes mentiam ser ções precisas sobre a cidade natal, os adoles-
mais velhos para evitar restrições, os adultos centes em cidades ou subúrbios menores geral-
começaram a mentir ser mais jovens para obter mente não. Alguns listaram apenas seus estados,
acesso a recursos adicionais. mas muitos outros escolheram apelidos para
suas cidades, como “Lugar nenhum”, “um
lugar em que você não está” e “Caipirolândia”.
5.3. Segurança Outros mentiam sobre seus estados ou países.
por imprecisão Quando comecei a analisar perfis de adolescen-
tes, essa prática parecia generalizada. Embora
Os adolescentes não fornecem informações seja impossível verificar os locais dos adoles-
imprecisas sobre a idade para contornar as li- centes que não entrevistei, parece imprová-
mitações técnicas. Em todo o país, os adul- vel que tantos adolescentes no Afeganistão e
tos regularmente incentivam os adolescentes no Zimbábue estejam conectados e ativos no
a mentir para evitar possíveis predadores se- MySpace. O que torna suas informações de lo-
xuais, e a maioria dos adolescentes com quem calização especialmente suspeitas é que esses
conversei acreditava que o fornecimento de usuários geralmente parecem brancos, listam
informações imprecisas era um passo impor- escolas secundárias dos EUA e têm amigos
tante para a segurança18. Agentes do sistema de que são principalmente de uma única cidade
justiça realizam assembleias escolares regular- pequena nos Estados Unidos. Embora alguns
mente, e nelas incentivam os jovens a não for- desses adolescentes possam realmente estar es-
necer informações de identificação a sites pú- tudando no exterior, é mais provável que eles
blicos. Em Michigan, Bianca e Sasha, de 16 anos, escolham esses países porque são a primeira e
contaram de uma assembleia escolar feita por a última opção no menu suspenso de países. O
policiais na qual os policiais tentaram assus- fornecimento de informações imprecisas sobre
tar os adolescentes para longe do Facebook e a localização é particularmente comum entre
do MySpace, contando histórias de terror de os adolescentes que se preocupam com segu-
casos terríveis. O que Bianca e Sasha tiraram rança, e os pais incentivam essa prática.
desse evento foi que os adolescentes que sofre- Em outros esforços para ocultar as informa-
ram com as histórias eram “burros”, e ser “in- ções de identificação, alguns adolescentes pu-
teligente” significava não publicar informações blicam nomes falsos ou colocam imagens ou
reais. Pais e professores replicam essa visão, fotos abstratas que não são identificáveis. Além
incentivando os adolescentes a mentir expli- de evitar predadores em potencial, os adoles-
citamente sobre quem são e de onde são, para centes que faziam isso frequentemente tenta-
evitar serem perseguidos. Os adolescentes que vam evitar os pais, professores e outros adul-
entrevistei apresentavam muito menos proba- tos que conheciam e que tinham poder sobre
bilidade de fornecer informações imprecisas no eles. Em outras palavras, eles estavam usando
Facebook do que no MySpace, provavelmente “segurança através da obscuridade” para obter
26
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
O fornecimento de informações imprecisas Amigos são realmente meus amigos, eles vão saber se
é um dos principais mecanismos pelos quais eu estou brincando ou não”. Os adolescentes não
os adolescentes tentam controlar o acesso aos estão interessados em fornecer informações de
seus perfis. Eles acreditam que informações identificação aos sistemas simplesmente para
imprecisas tornam muito mais difícil para serem honestos. Eles não veem isso como uma
quem detém poder sobre eles e para quem tem violação do comportamento ético, e sim acredi-
intenções maliciosas encontrá-los. Os adoles- tam que fornecer essas informações pode colo-
centes foram tão socializados em práticas de cá-los em risco mais tarde. Ao criar um perfil,
enganar online e internalizaram tanto os avisos os adolescentes não estão construindo um dos-
de segurança que acreditam que fornecer in- siê do censo–eles escolhem o conteúdo que os
formações imprecisas os deixa mais seguros e ajuda a definir a situação social e a se expressar
evita o contato indesejado. Da mesma forma, nesse contexto.
adolescentes têm pouco incentivo para forne-
cer informações demográficas precisas quando
a audiência principal é de amigos. Localizar-se 6. Controlando o acesso:
em “Caipirolândia, EUA” é visto como diver- público ou privado?
tido, não enganoso.
Na construção de seus perfis de site de rede
social, os adolescentes são forçados a enfrentar Em situações sociais não mediadas, as pes-
visões conflitantes de como perfis se relacio- soas tendem a saber quem está presente para
nam com identidade. Muitos adultos–e a pró- testemunhar um ato social. Esse não costuma
pria tecnologia–esperam que os adolescentes ser o caso em públicos em rede, onde audiên-
construam uma identidade digital vinculada a cias são invisíveis e o acesso é assíncrono. As
uma identidade corporificada por meio de in- limitações físicas ajudam a controlar os limites
formações demográficas articuladas e informa- de ambientes não mediados–as paredes defi-
ções de identificação. Honestidade envolve o nem o espaço e as expressões podem ser tes-
fornecimento desses dados e a construção do temunhadas apenas de forma auditiva ou vi-
próprio perfil em torno dessas informações. A sual. Online, os limites são porosos–a pesquisa
extensão lógica desse ponto de vista é que todas colapsa os contextos, a replicabilidade permite
as outras informações imprecisas são um jogo que traços de atos sociais sejam copiados para
de identidade ou um ato de enganar. Embora outros espaços e a permanência dos dados sig-
esse ponto de vista seja bastante comum entre nifica que os atos executados não são delimita-
adultos, adolescentes não compartilham dele. dos pela efemeridade. Em outras palavras, ten-
Adolescentes abordam perfis e sua identi- tar restringir os atos sociais a um único espaço
dade digital a partir de um ponto de vista dife- online é inútil, mesmo que essa seja a norma
rente. Como as redes sociais pré-existentes que em ambientes não mediados. Os adolescentes
interligam os ambientes online e offline definem centralizam sua compreensão do contexto em
o contexto social, os adolescentes não sentem a outras pessoas. Na falta de capacidade de con-
necessidade de fornecer informações demográ- seguir controlar o contexto e a audiência atra-
ficas ou de identificação. Na sua opinião, essas vés do confinamento de atos sociais a espaços
informações já estão disponíveis e já foram específicos, os adolescentes precisam definir
compreendidas por aqueles para quem são re- a situação por meio do controle da audiência
levantes. Dominic, um adolescente branco de em potencial. Dados imprecisos podem evitar a
16 anos de Seattle, explica: “Como todos os meus busca, mas não são uma ferramenta eficaz para
28
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
controlar o acesso. Em vez disso, os adolescen- Como o Facebook é percebido como a alter-
tes aproveitam as configurações de privacidade nativa mais segura ao MySpace, poucos ado-
para limitar o acesso a pessoas específicas, re- lescentes se preocupam em observar as confi-
forçando a conexão entre audiência e contexto gurações de privacidade ali. Em uma reunião
em públicos em rede. privada depois de terminar meu trabalho de
O controle da visibilidade por meio das campo, eu estava conversando com uma ado-
configurações de privacidade varia de acordo lescente sobre as diferenças entre o MySpace
com o site. No MySpace, os perfis são “públi- e o Facebook, e ela me disse que o Facebook
cos” ou “privados”–os perfis que são “públicos” era muito mais privado, porque apenas pessoas
podem ser visualizados por qualquer pessoa, que você conhecia podiam ver seu perfil. Ao
enquanto apenas os Amigos de um indivíduo entrar no Facebook, entrei na rede da cidade
podem acessar perfis “privados”. O Facebook é em que ela estava, acessei seu perfil e mostrei
um pouco mais complexo, porque suas confi- a ela. Ela ficou chocada–ela não tinha perce-
gurações de privacidade envolvem redes de es- bido que ingressar em uma rede da cidade tor-
colas e bairros. Os adolescentes podem tornar nava seu perfil visível para as pessoas que di-
seus perfis visíveis apenas para seus Amigos ou ziam ser daquela cidade. Consegui repetir esse
podem ajustar as configurações para envolver truque em várias ocasiões com adolescentes e
todos em suas redes. O Facebook permite que adultos. Embora não haja dados sobre quan-
os adolescentes ajustem as configurações por tos adolescentes ingressam nas redes de cida-
módulo. Desde que meu trabalho de campo des ou quantos deles não percebem o quanto
terminou, o Facebook adicionou camadas adi- seus perfis estão visíveis, eu consegui acessar
cionais de privacidade, incluindo a capacidade muitos perfis de adolescentes por meio do in-
de criar grupos de pessoas e controlar elemen- gresso em redes de cidades de todo o país, e
tos por grupos. 19 senti que poucos deles, e os adolescentes em
Todos os adolescentes que eu entrevistei es- geral, entendiam isso. Adolescentes em todo o
tavam cientes das configurações de privacidade, país me disseram que achavam que o Facebook
mas nem todos sabiam como usá-las ou o que é mais seguro que o MySpace por causa de
as opções significavam. Nick, o adolescente de como ele lida com a privacidade. Quando per-
16 anos de Los Angeles, me disse que, quando guntado por que, Sasha, adolescente de 16 anos
a namorada de seu irmão criou o perfil dele, de Michigan, me disse que mais controles sig-
ela o definiu como privado e ele ainda precisa nificavam maior privacidade, enquanto Kaleb,
descobrir como mudar. Embora alguns ado- um adolescente negro de 15 anos, também
lescentes não saibam como, 66% dos entrevis- de Michigan, me disse que não sabia o por-
tados pela Pew em 2006 (Lenhart & Madden, quê, mas “tinha essa impressão”. Na verdade, os
2007b) relataram que de alguma forma limitam dois adolescentes tinham páginas no Facebook
o acesso ao seu perfil. Isso é particularmente mais visíveis do que uma página do MySpace
impressionante, já que os usuários frequente- somente para Amigos seria.
mente não entendem as opções de privacidade, Adolescentes que usam o MySpace são muito
muito menos ajustam as configurações padrão mais fluentes na linguagem das configurações
(Lederer et al., 2004). de privacidade e a maioria optou consciente-
Embora os adolescentes pareçam limitar o mente por tornar seus perfis públicos ou pri-
acesso, descobri que suas percepções de visi- vados. Os adolescentes que conheci que tinham
bilidade nem sempre correspondiam à reali- perfis públicos escolheram esse caminho in-
dade, principalmente com relação ao Facebook. tencionalmente. Alguns adolescentes deixaram
29
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
seus perfis públicos para poder ser facilmente mim. Quero me sentir no controle da minha própria
encontrados. Sabrina, uma adolescente branca segurança pessoal. Não quero que o mundo inteiro
de 14 anos do Texas, explica que ter um perfil esteja ciente dos meus sentimentos ou de qual escola
público é a melhor maneira de ser encontrada frequento”. Ela está preocupada com o fato de
pelos amigos. Ela diz: “Eu procurei alguns dos que estranhos mal-intencionados possam usar
meus amigos pelo nome deles, mas se [o perfil deles] suas informações contra ela e acha que mantê-
é privado, não consigo descobrir se são eles.” Em Los -las bem guardadas é uma forma de proteção.
Angeles, Eduardo, um músico de ascendência Muitos adolescentes mantêm seus perfis pri-
hispânica de 17 anos, deixa seu perfil visível vados para impedir o acesso de pais, professo-
porque sua música está disponível lá. Ele es- res, irmãos, agentes de admissão de faculdade
pera que pessoas o ouçam e ele quer se conec- ou outros que possam usar seu conteúdo con-
tar com outros músicos e ser acessível a fãs em tra eles. Outros o fazem na tentativa de evi-
potencial. Alguns adolescentes evitam a pres- tar spammers, golpistas, publicidade comercial
são para se tornar privados porque pensam que e phishers.
isso implica que eles têm algo a esconder. Por Mesmo aqueles que querem ser encontrados
exemplo, Shean, o adolescente de 17 anos de por alguns não estão interessados em serem
Los Angeles, mantém seu perfil público por- encontrados por todos, e aqueles que pensam
que, como ele diz, “não acredito que exista algo que não têm nada a esconder não estão neces-
privado na minha página”. Ao mesmo tempo, ele sariamente desejando serem vistos por qual-
reconhece que alguns dos seus amigos se tor- quer pessoa. Muitos dos entrevistados que ado-
naram privados para evitar pessoas específicas taram o MySpace no início muitas vezes viam
e afastar spammers. o site como voltado para adolescentes e não
Os adolescentes que optavam por tornar seus viam necessidade de tornar seus perfis priva-
perfis privados também tinham motivos es- dos, porque ser público tornava mais fácil a co-
pecíficos para querer controlar quem poderia nexão com amigos e colegas de classe. Com o
acessar seu conteúdo. Alguns, como Penelope, tempo, quando os adultos começaram a parti-
a adolescente de 15 anos de Nebraska, queriam cipar e outros problemas surgiram, muitos des-
conhecer sua audiência. Penelope explicou que ses adolescentes tornaram seus perfis privados.
ela mantinha seu perfil privado “para que eu A postura deles–“público por padrão, privado
saiba quem está olhando para minha página a que quando necessário”–é uma abordagem sobre
horas”. Embora ela não esteja realmente ciente a privacidade que eu via frequentemente em
de quem está visualizando seu perfil, ela quer adolescentes. O crescimento de adultos e os
ter controle sobre quem pode. Outros, como perigos potenciais de atenção indesejada for-
Ann, uma adolescente branca de 15 anos de çaram os adolescentes a reverterem para uma
Seattle, tornam seus perfis privados como pre- postura mais privada, embora muitas vezes
caução de segurança. Ann explica: “Meu perfil é preferissem o fácil acesso que ser público per-
privado e para amigos apenas porque quero estar se- mitia. Ser “público” fazia sentido quando o pú-
gura e não quero que meus pais se preocupem”. Para blico potencial relativamente homogêneo não
Ann e para muitos outros adolescentes que en- criava conflitos na forma como as pessoas se
traram após escutar várias histórias de terror, apresentavam, mas, quando os adolescentes
a visibilidade não compensa os potenciais ris- começaram a enfrentar públicos indesejados,
cos. Laura, uma adolescente branca de 17 anos muitos optaram por controlar o acesso em vez
com raízes indígenas de Washington, explica: de limitar a autorrepresentação.
“O risco de ter um perfil aberto não vale a pena para Ao mesmo tempo que a maioria dos
30
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
adolescentes que entrevistei não se arrependa que aqueles scripts faziam instalarem-nos em
de se mover para um modelo de apenas-pa- suas páginas. Esse malware causou um dano
ra-Amigos, isso complica o processo de adi- imenso ao MySpace, e a empresa passou muito
cionar amigos no MySpace. Com perfis públi- tempo tentando impedir o que esses golpis-
cos, os adolescentes poderiam justificar a não tas estavam fazendo. Em 2007, Tom Anderson,
aceitação de solicitações de amizade de pessoas fundador do MySpace, fez um post pedindo aos
que eles conheciam, mas não se sentiam pró- usuários que não adicionassem rastreadores aos
ximas. Quando eles tornaram seus perfis pri- seus perfis. A empresa publicou boletins sobre
vados, eles fecharam a visibilidade para todos, spammers, phishing e scripts falsos. No entanto,
exceto para seus Amigos. Por causa disso, aque- enquanto escrevo esse texto, a pesquisa por
les que mudaram de público para privado sen- combinações de “rastreador de perfis do mys-
tiram-se mais compelidos a incluir seu grupo pace” devolve milhões de resultados no Google
mais amplo de amigos entre seus Amigos. O para sites que oferecem códigos gratuitos que
Facebook alterou um pouco essa dinâmica, prometem rastrear os visualizadores de perfis.
permitindo que os adolescentes tornassem Alguns afirmam ser “oficiais” e outros afirmam
seus perfis visíveis para todos os colegas de ser “os mais avançados”, mas o fato de muitos
classe sem aceitá-los como Amigos. Ao mesmo deles afirmarem ser “reais” é mais um indi-
tempo, outras pressões frequentemente moti- cativo do problema que esse desejo produziu.
vavam os adolescentes a incluir todos os cole- Nenhum desses rastreadores funciona, mas os
gas de classe como Amigos. adolescentes continuam copiando e colando o
O desejo que os adolescentes têm de con- código desses sites em seus perfis em um es-
trolar o acesso também tem uma correspon- forço de saber quem os está visitando.
dência no desejo de saber quem está visuali- Na superfície, controlar e rastrear o acesso é
zando seu perfil. Adolescentes como Penelope, geralmente visto como algo relacionado à se-
15 anos, de Nebraska, limitam o acesso para gurança, mas, na prática, acaba servindo como
saber quem está visualizando seu perfil, mas um mecanismo para delimitar contexto. Os
os adolescentes também procuram outros me- adolescentes querem ter uma noção de quem
canismos para controlar seus visitantes. Esse está presente para saber o que é apropriado.
desejo de saber levou programadores a desen- Quando os adultos ingressaram no site, os ado-
volver “rastreadores” para o MySpace, permi- lescentes também queriam controlar o que
tindo aos usuários copiar e colar bits de código acontece quando suas autoperformances são
javascript em seus perfis para capturar os ende- usadas contra eles, seja por mal-entendidos
reços IP daqueles que visitavam suas páginas. ou discordâncias. Dois desses incidentes for-
Alguns desses scripts iniciais funcionaram, mas çaram Kira, uma adolescente branca e de ori-
o MySpace bloqueou-os rapidamente. Isso não gem latina de 17 anos de Seattle, a tornar seu
reduziu sua desejabilidade, e os usuários come- perfil privado e apenas para colegas. Primeiro,
çaram a vasculhar a web em busca de alternati- seu avô encontrou seu perfil público, onde ela
vas. Enquanto alguns programadores tentaram havia respondido a um quiz que perguntava:
produzir softwares legítimos para executar essa “Qual música do Sublime é você?” Suas respos-
tarefa, vários golpistas começaram a capitalizar tas resultaram na música “Smoke Two Joints”,
o desejo dos adolescentes de ter esse recurso. e seu perfil mostrava uma parte da letra: “Eu
Eles disfarçaram códigos de phishing e spam em fumo dois baseados de manhã, eu fumo dois
rastreadores, o que fez com que milhões de baseados de tarde.” Ela gostou da música e não
adolescentes (e adultos) que não entendem o pensou muito nisso até que seu avô fez toda a
31
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
sua família “surtar”, por dizer que ela estava vi- pais. Como as autoapresentações dos adoles-
ciada em maconha. Depois disso, ela tornou seu centes são co-construídas por aqueles que os
perfil privado, mas deixou sua madrasta como rodeiam, controlar o acesso também é desejável
uma de suas Amigas. Seus avós mais tarde usa- para impedir que audiências mais amplas aces-
ram a conta de sua madrasta para acessar seu sem conteúdo que eles não controlam.
perfil e interpretaram mal uma foto de um Adolescentes contam com os recursos de pri-
grupo de meninas que ela postou com a le- vacidade para controlar a situação social online.
genda “Eu amo Colleen, Kylie e Brook”. Ela Esses recursos, embora benéficos, não estão li-
havia revelado a eles ser bissexual, e eles inter- vres de problemas. A escolha de quem adicio-
pretaram a informação como uma indicação de nar como Amigo pode gerar situações estra-
que ela estava saindo com múltiplas parceiras. nhas na sociabilidade. Assim, adolescentes são
Depois desse tumulto, ela eliminou todos os frequentemente forçados a adicionar pessoas de
adultos de sua lista de Amigos. Ao contar essa diferentes contextos sociais como Amigos, ou
história, Kira mostrou-se frustrada por não pessoas de quem não são tão próximos. Assim,
poder dizer nada online sem que os adultos in- sua possibilidade de restringir a audiência não
terpretassem errado. resolve necessariamente seu desejo de ter um
A interpretação incorreta é um desafio que contexto coerente no qual agir.
os adolescentes enfrentam. Clyde, um ado-
lescente branco e de origem hispânica de 16
anos de Michigan, mantém seu perfil privado 7. Gerenciamento de
porque teme que as pessoas possam interpre- identidade nos públicos
tar mal os comentários deixados pelos seus
Amigos e achar que ele é um “babaca”. Os co- em rede
mentários incluem “Vá se ferrar. Você é um merda.
Se liga, [e] são apenas comentários que ninguém en-
tenderia a não ser eu.” Ele sabe que seus Amigos À medida que os adolescentes escrevem as
estão brincando, mas ele acha que os outros suas existências, formuladas no contexto de
podem não entender. Outra questão para os seus pares, eles são forçados a enfrentar as ma-
adolescentes é que seus amigos e pais não ne- neiras pelas quais o gerenciamento de impres-
cessariamente compartilham das mesmas opi- sões em públicos em rede é diferente do que
niões sobre o que é apropriado. Em Seattle, ocorre em encontros cara-a-cara. Os recursos
James, um adolescente branco de 17 anos de técnicos para definir a situação e se apresentar
idade, com raízes indígenas, decidiu tornar são bem diferentes, e forçam os adolescentes a
seu perfil privado depois de ver um amigo se articular explicitamente sua identidade, ima-
envolver em problemas. Depois de uma festa, ginar o contexto em que estão operando e ne-
os Amigos de seu amigo postaram comentá- gociar as impressões que estão transmitindo
rios em sua página do MySpace dizendo coisas com poucas estruturas de retorno e avalia-
como: “Putz, cara, você estava tão zoado nessa festa. ção20. Muito do que eles enfrentam é uma ex-
Você estava tão bêbado. Você estava tão chapado.” A tensão do que Meyrowitz (1985) descreveu em
mãe do amigo viu os comentários e deixou-o sua discussão sobre como a mídia eletrônica
de castigo imediatamente. James não estava altera a negociação de situações. No entanto,
preocupado com o fato de seus pais se oporem Meyrowitz, escrevendo antes da emergência
ao seu perfil, mas tinha receio de seus Amigos da Internet, não deu conta do que aconteceria
postarem algo que levaria a conflitos com seus quando os processos que celebridades e pessoas
32
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
Hancock, Jeffrey T., Catalina Toma, and Nicole Liu, Hugo. 2007. “Social Network Profiles as
Ellison. 2007. “The Truth about Lying Taste Performances.” Journal of Computer-
in Online Dating Profiles.” Pp. 449–452 Mediated Communication 13(1): article 13.
in Proceedings of the SIGCHI conference on Retrieved December 3, 2008 (http://jcmc.
Human Factors in Computing Systems. New indiana.edu/vol13/issue1/liu.html).
York: ACM Livingstone, Sonia. 2006. “Children’s Privacy
Haraway, Donna Jeanne. 1991a. “A Cyborg Online: Experimenting with Boundaries
Manifesto: Science, Technology, Within and Beyond the Family.” Pp.
and Socialist-Feminism in the Late 128–144 in Computers, Phones, and
Twentieth Century.” Pp. 149–181 the Internet: Domesticating Information
in Simians, Cyborgs, and Women: The Technology, Human Technology Interaction,
Reinvention of Nature, edited by Donna edited by Robert Kraut, Malcolm Brynin,
Jeanne Haraway. New York: Routledge. and Sara Kiesler. Oxford, UK: Stanford
Hebdige, Dick. 1979. Subculture: The Meaning of University Press.
Style. London, UK: Routledge. Livingstone, Sonia M. 2008. “Taking Risky
Hodkinson, Paul & Sian Lincoln. 2008. Opportunities in Youthful Content
“Online Journals as Virtual Bedrooms?: Creation: Teenagers’ Use of Social
Young People, Identity and Personal Networking Sites for Intimacy, Privacy
Space.” Young 16(1): 27–46. and Self-Expression.” New Media &
Kearney, Mary Celeste. 2006. Girls Make Media. Society 10(3): 459–477.
New York: Routledge. McRobbie, Angela and Jenny Garber. 1976.
Lederer, Scott, Jason I. Hong, Anind K. Dey, “Girls and Subcultures.” Pp. 209–222 in
& James A. Landay. 2004. “Personal Resistance through Rituals: Youth Subcultures
Privacy through Understanding and Action: in Post-War Britain, edited by Stuart
Five Pitfalls for Designers.” Personal and Hall and Tony Jefferson. New York:
Ubiquitous Computing 8: 440–454 Routledge.
Lenhart, Amanda & Mary Madden. 2007b. Meyrowitz, Joshua. 1985. No Sense of Place:
Teens, Privacy, and Online Social Networks. The Impact of Electronic Media on Social
Pew Internet and American Life Project. Behavior. New York: Oxford University
Retrieved December 3, 2008 (http://www. Press.
pewinternet.org/PPF/r/211/report_display.asp). Milner, Murray, Jr. 2004. Freaks, Geeks, and
Lincoln, Sian. 2004. “Teenage Girls’ ‘Bedroom Cool Kids: American Teenagers, Schools, and
Culture’: Codes Versus Zones.” Pp. the Culture of Consumption. New York:
94-106 in After Subculture: Critical Studies Routledge.
in Contemporary Youth Culture, edited by Piacentini, Maria & Greig Mailer. 2004.
Andy Bennett and Keith Kahn-Harris. “Symbolic Consumption in Teenagers’
New York: Palgrave Macmillan. Clothing Choice.” Journal of Consumer
Lincoln, Sian. 2005. “Feeling the Noise: Teenagers, Behavior 3(3): 251–264.
Bedrooms and Music.” Leisure Studies Reed, Adam. 2005. “‘My Blog Is Me’: Texts and
24(4): 399–414. Persons in UK Online Journal Culture
(and Anthropology).” Ethnos 70(2):
220–242.
35
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ESCREVENDO A SUA DANAH
PÁGINAS 5 A 37 PRÓPRIA EXISTÊNCIA BOYD
1 [N.T.]: O MySpace foi uma das primei- 11 [N.T.]: no momento da tradução deste
ras, e entre 2005 e 2008 a principal rede social texto, o Facebook permite que os usuários es-
global. Os usuários tinham um perfil, conecta- colham se querem ser marcados ou não em
vam-se com amigos, postavam fotos, músicas e fotos alheias, e, mesmo que autorizem, podem
vídeos, e faziam parte de grupos. eliminar as marcações feitas.
2 [N. T.]: A autora escreve “Amigos” com 12 [N. T.]: Sobre o tema, o capítulo seguinte
maiúscula no início referir-se às conexões na ao do texto aqui traduzido, na tese da autora,
rede social, diferenciando-as, assim, do uso ge- discute o papel da moda para os adolescentes
nérico da palavra “amigos”. A grafia escolhida nas suas relações com seus pares.
foi mantida por conta desta diferenciação.
13 [N.T.]: O capítulo discute a sociabili-
3 [N.T.]: No original, “feedback”. dade de adolescentes sobre a perspectiva cole-
tiva, descrevendo como dinâmicas de grupos
4 [N.T.] No original: “writing identity de pares interagem na produção das suas pre-
into being online”. O uso da palavra “being”, senças online.
ao longo do texto de boyd, parece indicar uma
formação dinâmica da identidade. Buscamos 14 N. T.: no original normative peer culture
refletir esse aspecto na tradução das diferentes practices.
expressões em que a palavra é usada.
15 [N.T.]: O capítulo citado pela autora é o
5 [N.T.]: No original, “feedback”. Capítulo 5 de seu trabalho, e aborda a sociabi-
lidade adolescente sob a perspectiva coletiva.
6 N. T.: A autora aqui se refere à aplica-
tivos de mensagens instantâneas populares na 16 [N.T.]: A autora se refere ao Capítulo 6,
época da publicação do texto. Estas aplicações que aborda os aspectos específicos da relação
para desktops–como o MSN e o ICQ–são re- entre pais e filhos adolescentes que interagem
presentadas pela sigla IM (Instant Messaging). com o uso de redes sociais.
ARTIGO
Internet e
participação cultural:
o cenário brasileiro
segundo a pesquisa
TIC Domicílios
Palavras-chave Resumo
Internet A partir dos resultados da pesquisa TIC
TIC Domicílios 2017, o artigo descreve os princi-
participação cultural pais índices de acesso e uso da Internet entre
desigualdades a população brasileira para abordar o tema da
participação cultural. Para isso, analisa dados
inéditos acerca da fruição e da produção de
conteúdos na rede. Os resultados apontam a
rapidez com que o acesso à Internet avançou
no país nos últimos dez anos sem, no entanto,
romper com a lógica de desigualdade que mar-
cou todo esse processo. Com relação às prá-
ticas culturais, mais especificamente, verifica-
-se uma tendência de aumento do consumo
de bens culturais on-line, frente a uma dimi-
nuição do download de arquivos – o que rea-
firma o papel central que as plataformas de
streaming têm adquirido no acesso a conteúdos
na Internet. Em relação à produção de conteú-
dos pelos usuários de Internet, a maioria dos
que postam conteúdos próprios na rede não
tem finalidade profissional ou artística, e uma
parcela muito pequena é remunerada por isso.
O artigo fundamenta-se na pesquisa Ao trazer evidências sobre o papel da Internet
TIC Domicílios 2017, realizada pelo como mediadora do acesso à cultura e à produ-
Centro Regional de Estudos para o ção cultural, bem como sobre a influência da
Desenvolvimento da Sociedade da infraestrutura de conexão e das variáveis socio-
Informação (Cetic.br), do Núcleo de demográficas sobre as atividades culturais on-
Informação e Coordenação do Ponto -line, o artigo visa subsidiar o desenvolvimento
BR (NIC.br). A apresentação dos dados de uma agenda de políticas públicas que consi-
e conclusões do estudo está baseada dere a universalização do acesso à rede e a am-
em texto de análise dos resultados pliação dos direitos culturais, tendo em vista a
anteriormente publicado pelo Comitê Gestor promoção da participação, da diversidade e da
da Internet no Brasil (2018). cidadania cultural.
40
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
Keywords Abstract
Internet Based on the results of the ICT Households
ICT Survey 2017, the article describes the main in-
cultural participation dexes of Internet access and use among the
inequalities Brazilian population to address cultural parti-
cipation. For this purpose, it analyzes in-depth
unprecedent data about cultural enjoyment
and production of content in the network. The
results indicate the fast advance of Internet ac-
cess in Brazil in the last ten years. However, the
logic of inequality that marked the whole pro-
cess remained. In relation to cultural practices,
more specifically, it is possible to verify the
trend of directly streaming content rather than
downloading files, which reaffirms the central
role of streaming platforms in accessing con-
tent on the Internet. In relation to the produc-
tion of content by Internet users, the majo-
rity of those who posted self-created content
on the network had no professional or artis-
tic purpose, and a very small portion received
any sort of income from it. By bringing evi-
dence about the role of the Internet as a me-
diator of access to culture and cultural produc-
tion, as well as the influence of connectivity
infrastructure and sociodemographic variables
on online cultural activities, the article aims
to subsidize the development of an agenda of
public policies that consider universal access
to the network and the extension of cultural
rights, with a view to promoting participation,
diversity and cultural citizenship.
41
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
tudo isso faça sentido. Todas essas práticas da Sociedade da Informação (Cetic.br), de-
aumentam o volume e a velocidade da partamento do Núcleo de Informação e
troca, permitindo aos indivíduos interagir Coordenação do Ponto BR (NIC.br). A pesquisa
com expressões e produtos culturais – TIC Domicílios, fonte do artigo, tem como ob-
textos, imagens, vídeos, músicas, etc. –, que jetivo medir o uso dessas tecnologias nos do-
influenciam os sistemas de valores e tem micílios brasileiros e pela população com 10
impacto cultural profundo. A velocidade em anos ou mais. Com base em definições me-
que se desenvolvem esses novos fenômenos todológicas reconhecidas internacionalmente
– a participação nas redes sociais e a (União Internacional de Telecomunicações,
exposição a conteúdos culturais e digitais 2014), a pesquisa investiga o acesso individual
– está dilatando as categorias de uma à Internet e as atividades desenvolvidas na rede,
taxonomia que é muito difícil de classificar, gerando indicadores para o monitoramento de
que dirá medir, avaliar e comparar. políticas públicas do setor.
(UNESCO, 2009, p. 11, tradução própria)1 Em sua 13ª edição, realizada entre novem-
bro de 2017 e maio de 2018, foram conduzidas
entrevistas em mais de 23 mil domicílios em
Considerando esse cenário e sua complexi- todo o território nacional. É importante ressal-
dade, o presente trabalho representa um es- tar que se trata de uma pesquisa realizada pre-
forço inicial no sentido de compreender as sencialmente com amostra probabilística dis-
práticas dos usuários de Internet no Brasil, es- tribuída em 350 municípios, cujos resultados
pecificamente no que se refere à participação permitem leituras de qualidade para diversas
cultural. O artigo inicia com a apresentação da variáveis como área, região, classe, renda do-
pesquisa TIC Domicílios e de seu referencial miciliar, sexo, faixa etária, grau de instrução e
metodológico. A seguir, traz os principais re- condição de atividade. Por meio de indicadores
sultados do estudo no que tange ao acesso à que ilustram os tipos de conexão e dispositi-
Internet no país e aos usos da rede pela po- vos utilizados para acesso à rede, bem como as
pulação, em especial em relação às atividades atividades realizadas on-line por indivíduos de
culturais. Ao destacar as brechas digitais ainda diferentes localidades, idades e segmentos so-
existentes em termos de conexão e as desigual- cioeconômicos, a pesquisa permite uma refle-
dades na fruição e produção de conteúdos on- xão aprofundada sobre as brechas digitais que
-line, o artigo encerra, por fim, apontando para ainda persistem no país.
uma agenda de pesquisa e de políticas públicas Apesar de o objetivo da pesquisa não estar li-
que dialogue com o tema a partir das conclu- gado primordialmente à cultura, desde as suas
sões do estudo. primeiras edições foram coletados indicado-
res a respeito de atividades culturais básicas
como fazer downloads, assistir a vídeos e ouvir
2. Sobre a pesquisa TIC músicas pela Internet, na perspectiva de com-
Domicílios preender como a rede é utilizada pelos usuá-
rios brasileiros. A expansão dessas atividades
e sua crescente importância na vida cotidiana
Desde 2005, o Comitê Gestor da Internet da população apontou para a necessidade de se
no Brasil (CGI.br) desenvolve pesquisas sobre realizar uma mensuração específica e aprofun-
a adoção das TICs no país, por meio do Centro dada sobre o tema.
Regional de Estudos para o Desenvolvimento Dando início à agenda de pesquisa sobre uso
44
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
das TICs na cultura, foi realizado um primeiro socioeconômicos quanto regionais: as maiores
estudo qualitativo a partir de grupos focais proporções de domicílios não conectados estão
com usuários de Internet de diferentes perfis nas regiões Norte e Nordeste, na área rural e
etários e socioeconômicos em todo o país, o entre as classes2 e rendas mais baixas. Também
Cultura e Tecnologias no Brasil (Comitê Gestor é possível identificar padrões no uso de dife-
da Internet no Brasil, 2017). Tomando como rentes tipos de conexão à Internet de acordo
base os aprendizados deste estudo, tornou-se com a classe e a região a que pertencem os do-
especialmente relevante a criação de um con- micílios, uma vez que nas classes DE e nas re-
junto de novos indicadores a respeito de como giões Norte e Nordeste a conexão à Internet se
os usuários consomem e produzem conteúdos dá, sobretudo, por redes móveis, na ausência de
na Internet. Após um ano de planejamento, de- computadores. Um indicador que reforça a re-
bates e reuniões com a participação de atores levância do aspecto socioeconômico no acesso
relevantes de governos, universidades e organi- à rede é o que identifica por que os domicílios
zações da sociedade civil, os indicadores foram desconectados não possuem o serviço: a prin-
definidos e priorizados, sendo coletados de cipal barreira ainda é o preço, mencionado por
forma inédita na edição de 2017 da pesquisa 59% dos que não fazem uso da rede.
TIC Domicílios. Em relação ao uso individual da Internet,
Assim, esta edição incluiu, pela primeira vez, os resultados apontam um cenário similar ao
um módulo específico sobre atividades cul- acesso domiciliar, tanto no que diz respeito ao
turais, composto pelas seguintes dimensões e crescimento quanto à desigualdade: ao longo
temas: i) fruição cultural na Internet: frequên- dos dez anos da pesquisa, dobrou a proporção
cia, pagamento e origem dos conteúdos; ii) pro- de usuários de Internet3 no Brasil, passando de
dução de conteúdos próprios na Internet: tipo 34%, em 2008, para 67%, em 2017 – o que re-
de conteúdo, finalidade e remuneração. A se- presenta 120,7 milhões de brasileiros com dez
guir, são apresentados os principais resultados anos ou mais. Mesmo nas classes C e DE, a pro-
desse estudo, articulando as desigualdades que porção dos usuários da rede aumentou expres-
ainda persistem no acesso e uso da Internet no sivamente no período, alcançando, em 2017,
Brasil ao enfoque da participação cultural. 74% e 42%, respectivamente [Gráfico 1]. A pro-
porção de usuários de Internet também per-
maneceu inferior nas áreas rurais e nas regiões
3. Acesso à Internet no Norte e Nordeste.
Brasil No entanto, há ainda aspectos individuais
bastante relevantes para compreender como
a população utiliza a tecnologia. Um exemplo
A pesquisa TIC Domicílios demonstra o cres- disso é a dimensão etária. A grande maioria das
cimento do número de domicílios com acesso crianças e adolescentes declarou-se usuária de
à Internet no país ao longo dos últimos dez Internet, chegando ao percentual de 88% entre
anos, alcançando 42 milhões de domicílios co- os jovens de 16 a 24 anos, ao passo que essa
nectados em 2017. Em relação ao início da série proporção foi de um quarto na população de
histórica da pesquisa, a proporção de domicí- 60 anos ou mais.
lios conectados mais do que triplicou (61% em Outro aspecto relevante que diz respeito ao
2017, em relação a 18% em 2008). uso individual é o dispositivo utilizado para
No entanto, a desigualdade é característica acessar a Internet. Em 2017, estimou-se que
marcante desse crescimento, tanto nos aspectos mais de 115 milhões de brasileiros acessaram
45
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
100
96 95
88 89 87
84 85
80
76 74
71
67 68 67
60
54 54
44
42
40
25
20
9
Superior
A
DE
Masculino
Feminino
Médio
Urbana
C
Rural
De 10 a 15 anos
De 16 a 24 anos
De 25 a 34 anos
De 35 a 44 anos
De 45 a 59 anos
60 anos ou mais
Fundamental
Analfabeto / Educação Infantil
TOTAL Área Sexo Faixa etária Classe social Nível de escolaridade
65
60
76 57
51
4. Atividades na Internet
40
100
primordiais no uso
90 das tecnologias.
80 77
Bastante associado
73 71 71 ao uso das redes so-
60
ciais, o compartilha-
mento de contéudo
40 37 na Internet – in-
cluindo textos, ima-
20
gens, vídeos ou mú-
sicas – tem ganhado
0
relevância nos últi-
Mandou Usou redes Compartilhou Assistiu Ouviu música Postou na mos anos, passando
mensagens sociais conteúdo a vídeos, pela Internet Internet textos,
na Internet, programas, imagens, vídeos de 60% dos usuários
como textos, filmes ou séries ou músicas
imagens, vídeos pela Internet que criou de Internet em 2013
ou músicas
para 73% em 2017.
Essa mesma tendên-
[Gráfico 3] Atividades realizadas na Internet cia de crescimento
Percentual sobre o total de usuários vem sendo apresentada no acesso a conteú-
de Internet dos multimídia. Em 2017, 71% dos usuários de
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no Internet brasileiros assistiam a vídeos, progra-
Brasil, 2018).
mas, filmes ou séries na Internet, mesmo per-
centual apresentado para a escuta de música
(em 2013, esses percentuais eram de 56% e 63%,
a Internet ou usam as redes sociais, mas capaz respectivamente).
de compreender como se usa a Internet e que Além de superarem atividades de busca de
atividades são realizadas no espaço virtual. informação5 e relacionadas à educação e à tra-
(UNESCO, 2009, p. 26, tradução própria)4 balho6, o uso da Internet para comunicação,
consumo e compartilhamento de conteúdo
apresenta proporções superiores à produção
Nesse aspecto, é preciso observar, em pri- de conteúdos próprios. Em 2017, o comparti-
meiro lugar, que as principais atividades na lhamento de conteúdos de terceiros (73%), por
Internet estão relacionadas à comunicação, exemplo, era realizado pelo dobro dos usuá-
fato que é comum em diversos contextos. No rios de Internet brasileiros, em relação à posta-
cenário brasileiro, especificamente, o uso da gem de conteúdos próprios (37%). Ainda assim,
rede para envio de mensagens instantâneas por esse último percentual pode ser considerado
Whatsapp, Skype ou chat do Facebook alcança bastante relevante se comparado a parâmetros
90% dos usuários de Internet (Gráfico 3), se- anteriores de criação e disseminação de con-
guido do uso de redes sociais (como Facebook, teúdos pelas mídias tradicionais e no âmbito
Instagram ou Snapchat), realizado por mais de da indústria cultural, sendo esta uma atividade
três quartos deles (77%). Ainda que tais práti- que tem ganhado projeção no ambiente digital,
cas sejam mais reportadas por usuários mais sobretudo dada a disseminação dos dispositivos
jovens e de classes mais altas, elas são frequen- móveis e o uso das redes sociais.
tes entre todos os segmentos considerados na Esses indicadores revelam, portanto, a
pesquisa, indicando serem estas atividades apropriação das tecnologias em atividades
48
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
que marcam as transformações trazidas pela plataformas on-line, permeadas por seus algorit-
Internet no cenário da participação cultural: mos e mecanismos de moderação de conteúdos.
no Brasil, 2017; Leiva, 2018). Tal cenário pode Baixou ou fez download de séries
Internet cada vez mais têm obtido acesso a esses apareceram também no acesso a conteúdos
bens mediante a conexão direta a determinadas audiovisuais.
plataformas que disponibilizam conteúdo on- Os resultados para o hábito de assistir a ví-
-line. Se, por um lado, essa prática prescinde de deos, programas, filmes ou séries pela Internet
grandes espaços de armazenamento e memó- exemplificam esse padrão: enquanto, em 2017,
ria nos dispositivos, por outro demanda maior 83% dos indivíduos da classe A o faziam, o
qualidade na conexão. percentual ficava em 29% entre as classes DE
Para além das questões de infraestrutura, tal [Gráfico 5]. Em termos de escolaridade, a dife-
mudança revela uma alteração nos modelos rença na proporção entre os que possuíam en-
de distribuição de bens culturais na rede, tra- sino superior e os analfabetos ou com educação
zendo efeitos nas formas de circulação, legiti- infantil era de mais de dez vezes.
mação e curadoria de conteúdos. O paradigma Além disso, em se tratando da fruição de
do compartilhamento e troca entre pares (P2P), conteúdos on-line, somam-se às variáveis tradi-
inspirado em ideais da cultura livre (Lessig, cionalmente consideradas pelos estudos sobre
2004), dá lugar ao pagamento de assinatura por participação cultural as desigualdades referen-
serviço ou conteúdo, ou mesmo ao acesso gra- tes ao acesso à Internet. Refletindo o próprio
tuito associado ao direcionamento de anúncios uso da rede, as atividades foram menos reali-
e inserções publicitárias. A lógica do colecio- zadas à medida em que aumenta a idade dos
nismo pela posse dos objetos culturais dá lugar entrevistados e apresentaram proporções um
à circulação intangível dos conteúdos (Yúdice, pouco maiores entre homens do que entre mu-
2016). lheres. Já a diferença de patamares entre resi-
Nesse cenário, ganham maior protagonismo dentes nas áreas urbanas e rurais evidencia as
as grandes plataformas digitais – a exemplo de assimetrias em termos de infraestrutura e co-
YouTube e Netflix –, intensificando a concen- nexão, já apontadas anteriormente.
tração da oferta e do consumo cultural on-line. Para melhor compreender a dimensão da
Dado que estas se constituem como ferramen- fruição cultural no ambiente digital é impor-
tas comerciais que visam, em última instância, tante relacioná-la, portanto, aos aspectos que
atrair e manter a atenção de seus usuários, tal diferenciam os grupos de usuários de Internet
tendência traz inúmeras questões acerca dos em termos do acesso à rede, como a disponibi-
modelos de negócio, da diversidade de conteú- lidade de banda larga no domicílio ou o dispo-
dos disponíveis e do impacto dos algoritmos sitivo utilizado. Isso demonstra em que medida
utilizados nessas plataformas na mediação e de- aspectos de infraestrutura e conectividade in-
finição das práticas culturais pela Internet. terferem nas possibilidades de uso da Internet
A despeito dessas transformações, no en- pelos indivíduos.
tanto, todas as atividades na Internet foram, Em relação à conexão banda larga no domi-
em geral, mais realizadas quanto mais alta a cílio, é possível dizer que aqueles usuários que
classe e o grau de instrução dos indivíduos, em dispõem dessa tecnologia em casa têm acesso a
conformidade com o que aponta a literatura conteúdo cultural em proporção maior do que
clássica sobre hábitos culturais, considerando os que não dispõem: enquanto 70% dos usuá-
os processos de formação de gosto e acúmulo rios que têm banda larga no domicílio ouviram
de capital cultural (Bourdieu, 2007; Bourdieu música, a proporção é de 59% entre os que não
& Darbel, 2007). Como mencionado anterior- possuem. O mesmo padrão se repete quando é
mente, as assimetrias foram ainda maiores em avaliado o consumo de vídeos: a proporção é
práticas menos comuns e mais elitizadas, mas de 72% entre os que possuem banda larga em
51
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
100
83
80 77 77 77
71
67 65
60
53 54 52 52
50
46
40 37
30 28 29
20
11
7
Superior
A
DE
Masculino
Feminino
Médio
Urbana
C
Rural
De 10 a 15 anos
De 16 a 24 anos
De 25 a 34 anos
De 35 a 44 anos
De 45 a 59 anos
60 anos ou mais
Fundamental
Analfabeto / Educação Infantil
TOTAL Área Sexo Faixa etária Classe social Nível de escolaridade
[Gráfico 5] Indivíduos que assistiram a vídeos, são acessados. Os indivíduos que possuem à
programas, filmes ou séries na Internet disposição mais de um dispositivo para acesso
Percentual sobre o total da população à rede têm frequências superiores tanto em
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no música quanto em filmes e séries, sendo que
Brasil, 2018).
para os últimos essa distância é ainda maior.
Assim, ainda que a Internet venha contri-
casa, frente a 57% entre os que não possuem. buindo para a ampliação do acesso à cultura
Os resultados mostram, assim, como a dispo- para além dos eventos e equipamentos cultu-
nibilidade de conexão banda larga afeta a pro- rais (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2017),
babilidade de o indivíduo realizar tarefas que os resultados da TIC Domicílios indicam que,
necessitam de melhor infraestrutura e ampla em termos da participação cultural on-line, as
conectividade. desigualdades no acesso à rede agregam-se às
Em relação aos dispositivos utilizados para desigualdades reveladas pelos estudos sobre
acessar a rede, a proporção geral dos indiví- práticas culturais mencionados anteriormente.
duos que realizam essas atividades não é afe- De modo a aprofundar a compreensão sobre
tada de maneira significativa. No entanto, a as principais atividades realizadas pelos usuá-
frequência com que o fazem é: indivíduos que rios de Internet brasileiros, de assistir a vídeos
utilizam apenas telefone celular para acessar e ouvir músicas, o novo módulo de cultura da
a rede consomem músicas e vídeos com fre- pesquisa explorou, em especial, a frequência, o
quência inferior a dos que utilizam tanto com- pagamento e a origem dos conteúdos acessados
putador quanto celular [Gráfico 6]. na Internet. O recorte buscou abarcar questões
Esse resultado aponta como a combinação de de interesse para o debate em torno da regula-
dispositivos interfere de maneira importante ção e da governança da Internet, tendo em vista
na frequência com que os conteúdos culturais a amplitude da participação cultural on-line, as
52
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
100
21
o maior percentual
40 38 apresentado para a ca-
80
5 43
51 tegoria outros vídeos
66 70
60 23 79 77 revela práticas menos
7 13
11 institucionalizadas e
8 formatos menos tra-
40 21
22 28 dicionais, que dia-
7 19
51 10
20 14 4 5 logam com uma di-
32 12
24 21 22
9 12 versidade de temas e
13
0
8 9 6 atributos e merecem
aprofundamento.
Apenas celular
Apenas computador
Apenas celular
Apenas computador
Apenas celular
Apenas computador
Ambos
Ambos
Ambos
Com relação à fre-
quência, os resulta-
dos mostraram que
a maior parte dos in-
Ouviu música Assistiu a filmes Assistiu a séries divíduos que acessou
esses conteúdos on-
Todos os dias ou quase todos os dias
-line o fez com pe-
[Gráfico 6] Frequência da realização de Pelo menos uma vez por semana riodicidade diária ou
atividades na Internet, por dispositivos Menos do que uma vez por semana semanal. Enquanto
Percentual sobre o total de usuários de Internet Não sabe/ Não respondeu/ Não se aplica predomina o hábito
Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no de ouvir música pela
Brasil, 2018).
Internet diariamente,
a frequência semanal
relações econômicas que a caracterizam e a di- ou diária é mais comum para filmes e séries.
versidade de conteúdos e expressões culturais Nesse sentido, quase metade da população bra-
na rede. sileira acima de dez anos ouviu músicas pela
Especificamente sobre os conteúdos audiovi- Internet todos os dias, quase todos os dias ou
suais, o estudo analisou os tipos de vídeos as- pelo menos uma vez por semana (45%), sendo
sistidos on-line nos três meses que antecederam tal proporção mais baixa para assistir a filmes
a pesquisa: enquanto 34% dos indivíduos afir- (27%) e assistir a séries on-line (21%). Em todos
maram ter visto filmes, 25% assistiram a séries os casos, no entanto, a maior frequência es-
e 18% a programas de TV pela Internet. O tipo teve associada à faixa etária, com a frequên-
de conteúdo audiovisual mais visto pela popu- cia diária tendo sido mais comum entre os
lação brasileira, contudo, foram os da catego- mais novos – que são também os que usam a
ria outros vídeos, que incluem vídeos diversos Internet em maior proporção e com maior fre-
em plataformas como o YouTube, Facebook e quência. No caso da música, por exemplo, mais
WhatsApp, mencionados por quase metade da da metade (55%) dos jovens de 16 a 24 anos
população (47%). possui o hábito de ouvir músicas diariamente
Embora as questões sobre frequência, paga- pela Internet. Esses dados revelam assim o peso
mento e origem dos conteúdos tenham sido da participação cultural on-line em termos de
aplicadas apenas para filmes e séries – dada sua periodicidade.
sua caracterização mais definida e melhor No que concerne ao pagamento para ouvir
compreendida por parte dos respondentes –, músicas, para assistir a filmes e séries na
53
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
Internet e para baixar tais conteúdos, a pes- debate acerca da regulação da distribuição de
quisa demonstrou ser esta prática ainda pouco conteúdos on-line. Além disso, foi considerada
comum entre a população brasileira. Conforme ainda a dificuldade de capturar a complexidade
haviam indicado os resultados do estudo quali- dessa questão através de pesquisa quantitativa
tativo conduzido anteriormente (Comitê Gestor amostral8.
da Internet no Brasil, 2017), há uma tendência Examinando o tema a partir dessa aborda-
à maximização do acesso a conteúdos gratui- gem, portanto, os resultados indicam cenários
tos pela Internet, dada a ampla disponibilidade diferentes para os três tipos de conteúdo inves-
desses na rede. O pagamento, quando ocorre, tigados, refletindo, de alguma maneira, o cená-
em geral está associado ao apreço pela obra e rio da produção cultural no país. Assim, uma
pelo artista ou à amplitude do acervo disponí- proporção maior da população declarou ter ou-
vel frente ao custo, sobretudo no caso das pla- vido músicas brasileiras pela Internet (48%) do
taformas de streaming. que músicas estrangeiras (28%). Por outro lado,
Assim, o pagamento para fruição de conteú- foi maior a proporção daqueles que informa-
dos audiovisuais ocorre em maior proporção ram ter assistido a séries estrangeiras (21%) em
para acesso via streaming que via download: o pa- relação a séries brasileiras na Internet (13%),
gamento para assistir a filmes e séries on-line enquanto proporções semelhantes disseram ter
alcançava 10% dos indivíduos, em comparação assistido a filmes estrangeiros (24%) e a filmes
com apenas 3% e 2% dos que pagaram para bai- brasileiros (26%) na rede9.
xar tais conteúdos, respectivamente. Já o paga- Esse indicador revela ainda que a fruição de
mento para baixar e ouvir músicas on-line es- conteúdos nacionais e estrangeiros na Internet
teve no mesmo patamar, tendo sido realizado variou conforme a classe dos indivíduos. Os es-
por 5% da população considerada na pesquisa. trangeiros, em especial os filmes e séries, foram
Como esperado, o pagamento apareceu for- mais frequentemente consumidos quanto mais
temente associado a fatores socioeconômicos alta a classe, enquanto os conteúdos brasileiros
– para assistir a filmes, por exemplo, enquanto apresentaram percentuais mais próximos entre
na classe A o pagamento foi feito por 37% dos as diferentes classes, mesmo que não estives-
indivíduos, nas classes DE ele foi realizado por sem no mesmo patamar. No caso dos filmes,
apenas 3%. Nesse aspecto, cabe ressaltar que por exemplo, 57% dos indivíduos de classe A
o aumento da oferta e da disponibilidade de assistiram a filmes estrangeiros, frente a ape-
conteúdos gratuitos na Internet diminui bar- nas 8% das classes DE (no caso dos filmes bra-
reiras de preço e contribui para a ampliação do sileiros, a diferença é de 41% para classe A para
acesso à cultura, ainda que permaneçam as de- 15% para DE). Os resultados demonstram, mais
sigualdades e devam ser consideradas as ques- uma vez, diferenças entre os conteúdos a que
tões referentes à remuneração dos autores, re- diversos segmentos da população têm condi-
configuradas nesse contexto. ções de acessar na Internet – neste caso, for-
Quanto à origem dos conteúdos acessados temente influenciadas pela barreira do idioma.
pela Internet, a questão foi abordada a partir Em termos da diversidade de conteúdos ofer-
da diferenciação entre conteúdos nacionais e tados, ganham importância em tal contexto as
estrangeiros. Tais categorias certamente não iniciativas de incentivo à produção audiovisual
dão conta da diversidade de expressões cul- brasileira, seja por meio dos mecanismos de
turais e matrizes étnico-raciais e identitárias incentivo fiscal e das ações de fomento direto,
presentes na rede. O recorte foi estabelecido, como as realizadas pela Agência Nacional do
porém, tendo em vista sua importância para o Cinema (Ancine), seja por meio da regulação
54
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
das plataformas de vídeo sob demanda. Nesse on-line por parte dos usuários expõe, no cená-
aspecto, o crescimento do consumo de conteú- rio brasileiro, parte do fenômeno dos chama-
dos audiovisuais por meio de grandes platafor- dos prosumer, pro-am ou produser (Leadbeater &
mas on-line tem gerado debates no mundo todo Miller, 2004; Bruns, 2007), borrando os limi-
acerca de sua regulamentação, dando origem a tes entre produtores e consumidores e indi-
iniciativas de estímulo a produções locais e es- cando a criação de uma cultura participativa na
tabelecimento de cotas para conteúdos nacio- Internet ( Jenkins, 2006).
nais, além de discussões referentes à cobrança Contudo, assim como no âmbito da frui-
de impostos. ção, também aqui se revelaram as desigual-
dades relativas tanto ao acesso à rede quanto
à participação cultural propriamente dita. De
6. Produção de conteúdos acordo com as variáveis consideradas na pes-
próprios na Internet quisa, a maior diferença correspondeu ao grau
de instrução: enquanto 41% dos indivíduos
100
Para além das ati-
vidades de fruição
80
cultural, a segunda
dimensão investi-
60
gada pela pesquisa
TIC Domicílios con- 41 39 38 41
40 36 35
templando a partici- 28
31
28
26 27
pação cultural foi a 19
20 15 15 17
produção e a publi-
6
cação de conteúdos 2
0
na Internet. Como já
Superior
A
DE
Médio
Urbana
C
Rural
De 10 a 15 anos
De 16 a 24 anos
De 25 a 34 anos
De 35 a 44 anos
De 45 a 59 anos
60 anos ou mais
Fundamental
Analfabeto / Educação Infantil
mencionado, os resul-
tados mostram que a
prática mais comum
entre usuários de
Internet brasileiros é
o compartilhamento,
mais do que a cria-
TOTAL Área Faixa etária Classe social Nível de escolaridade
ção e a postagem de
conteúdos próprios.
No entanto, considerando o total da população [Gráfico 7] Indivíduos que postaram
e levando-se em conta o aumento dos usuá- textos, imagens, vídeos ou músicas
rios de Internet nos últimos anos, houve uma que criaram na Internet
ampliação de 31,1 milhões de indivíduos pu- Percentual sobre o total da população
blicando conteúdos próprios na Internet, em Fonte: Pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor da Internet no
Brasil, 2018).
2013, para 44,7 milhões em 2017, o que cor-
responde a cerca de um quarto dos indivíduos
acima de dez anos residentes no país (26%). com Ensino Superior postaram conteúdo pró-
Os dados sobre a produção de conteúdo prio na rede, o percentual ficou em apenas 2%
55
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
entre os analfabetos e com Educação Infantil artístico que criou, especificamente, foi men-
[Gráfico 7]. No que se refere à classe, houve cionado por 7% dos entrevistados. Aqui, deve
menor variação nas proporções, embora essa ser assinalada a dificuldade em diferenciar prá-
ainda tenha sido uma atividade mais realizada ticas cotidianas da criação artística ou voltada
pelos indivíduos das classes A e B (com 38% e ao campo mais restrito da produção cultural,
36%, respectivamente) do que por aqueles das tanto por parte dos respondentes quanto dos
classes DE (17%). Seguindo os padrões de acesso pesquisadores: são de longa data os debates
e uso da Internet em geral, também a atividade em torno do conceito de cultura, suas dimen-
de postar conteúdos próprios na rede foi mais sões sociológica ou antropológica e seus pro-
realizada pelos mais jovens do que pelos mais cessos de distinção e hierarquização. A relação
velhos e por aqueles que residem em áreas ur- das práticas culturais com o universo das TICs,
banas em comparação com os residentes em no entanto, parece ter embaraçado ainda mais
áreas rurais. essas fronteiras, tornando cada vez mais tênue
Com o objetivo de aprofundar a compreen- a capacidade de distinguir tais processos de di-
são sobre essa prática, a pesquisa investigou ferenciação simbólica e social.
também os tipos de conteúdo criados e posta- De qualquer modo, de acordo com os resul-
dos na rede. O formato mais citado pelos entre- tados da TIC Domicílios, as motivações para a
vistados foi o de imagens, postadas na Internet publicação de conteúdos próprios pareceram
por um quarto deles (24%) nos três meses an- destinadas mais às redes de sociabilidade pri-
teriores à pesquisa. Isso converge tanto com vada dos indivíduos e à criação de vínculos a
o amplo uso das redes sociais, já mencionado, partir de interesses comuns do que à ampla cir-
como com a disseminação dos dispositivos mó- culação desses conteúdos e a obtenção de re-
veis (a atividade de tirar fotos, vale dizer, é a muneração a partir deles. Reforçando essa per-
segunda mais citada entre os indivíduos que cepção, apenas 2% dos indivíduos criaram e
utilizaram telefone celular10). Em contrapartida, postaram conteúdos próprios na Internet rece-
postar textos próprios na Internet, ação mais bendo em troca algum tipo de pagamento. Não
complexa por envolver a escrita, foi mencio- obstante, no contexto das redes sociais e da so-
nada por 13% dos entrevistados, enquanto 11% ciabilidade por plataformas (Van Djick, 2013),
postaram vídeos e 4% postaram músicas de sua há que se considerar que a geração de valor
autoria11. não corresponde unicamente à remuneração
Vale destacar que essas publicações, quando dos produtores:
ocorreram, tiveram caráter predominante-
mente pessoal, mais do que profissional: as [...] na atualidade, constatamos uma tensão
motivações mais citadas para a postagem de entre o desejo do comum com que operam
conteúdos próprios na Internet estiveram re- os usuários e a tendência das empresas
lacionadas, geralmente, a objetivos como di- em monetizar e proprietarizar qualquer
vulgar fatos ou situações cotidianas (17%), dar ação. O combustível da economia da
opiniões sobre temas de interesse (14%) ou se internet é a própria ação dos usuários, que
aproximar de pessoas com interesses comuns na maioria dos casos nem percebem que
(13%), enquanto foram menos frequentes as fi- fornecem esse valor. (Yúdice, 2016, p. 95)
nalidades profissionais ou que apontam para
ganhos monetários, como divulgar um traba-
lho (9%) ou vender produtos ou serviços (5%). Assim, os conteúdos gerados pelos usuários
O propósito de divulgar um conteúdo são um elemento chave para o funcionamento
56
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
de tais plataformas e seus modelos de negó- são maiores para os que combinam diferentes
cio, baseados na economia da atenção e no uso tipos de dispositivos e têm acesso à conexão
dos dados. Cientes ou não disso, uma vez mais banda larga e Wi-Fi.
são estes fatores que interligam as práticas dos Além das questões de infraestrutura, o apro-
usuários à economia política da Internet e que veitamento da rede também se dá de maneira
devem ser pautados no debate crítico sobre a bastante desigual entre aqueles que estão co-
participação cultural no ambiente digital. nectados, seja por conta das habilidades para
uso das TIC, seja por sua apropriação ativa, crí-
tica e reflexiva. Em termos da participação cul-
7. Considerações finais tural, se adicionam ainda distinções clássicas
no que se refere às práticas culturais da popu-
lação. Os dados da pesquisa demonstram que
Buscando compreender o papel das tecno- as variáveis de escolaridade e classe seguem
logias de informação e comunicação (TICs) em sendo marcadores sociais relevantes na aná-
sua relação com o tema da participação cul- lise das atividades culturais on-line. A faixa etá-
tural, o artigo tratou das práticas culturais de ria dos indivíduos, já identificada nas ativida-
usuários de Internet brasileiros tendo por base des presenciais, tem seu peso ampliado, dado o
a pesquisa TIC Domicílios 2017 (Comitê Gestor maior uso da rede pelos mais jovens. O único
da Internet no Brasil, 2018). Embora seja notá- aspecto que parece relativizado nesse universo
vel a expansão do acesso à rede no país e a am- é o da localização domiciliar, embora as bar-
pliação das possibilidades de fruição e produ- reiras existentes no próprio acesso à Internet
ção cultural no contexto digital, os resultados ainda limitem tal relativização.
revelam desigualdades bastante relevantes no De qualquer modo, observa-se a reprodução
aproveitamento desses potenciais. das desigualdades existentes na sociedade no
As evidências recolhidas pela pesquisa TIC universo digital, não só como reflexo dos hábi-
Domicílios permitem identificar o perfil da- tos culturais de maneira geral, como também
queles que mais se beneficiam da rede como pelas restrições de acesso à rede. Ainda que es-
mediadora das práticas culturais, bem como a teja circunscrito à realidade brasileira, as ten-
influência da infraestrutura de conexão e das dências apontadas pelo estudo encontram res-
variáveis sociodemográficas sobre as atividades paldo também em levantamentos já realizados
culturais realizadas na Internet. em outros países, sobretudo no contexto latino-
No que tange à barreira inicial de acesso, a -americano (Sistema de Información Cultural
ampliação do número de usuários de Internet de la Argentina, 2018; Consejo Nacional de la
se deu com a manutenção de desigualdades Cultura y las Artes, 2018). Assim, é esperado
geográficas e socioeconômicas, com maior al- que a análise do cenário brasileiro contribua
cance da rede em determinadas regiões do país, com a reflexão acerca das transformações gera-
áreas urbanas e dentre segmentos de maior das pela expansão da Internet nas práticas cul-
renda e escolaridade. As disparidades também turais de modo mais amplo.
têm marcado a expansão desse acesso em ter- Contudo, configurando-se a TIC Domicílios
mos dos dispositivos utilizados e formas de co- como um estudo sobre o acesso e uso da
nexão disponíveis aos usuários: ainda que a in- Internet e tendo-se inserido, a partir disso, a
clusão digital venha se dando sobretudo pelo abordagem de atividades que dialogam com o
uso exclusivo de telefone celular e por cone- tema da participação cultural, a pesquisa não
xões móveis, as oportunidades de uso da rede permite inferir sobre os efeitos das práticas
57
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
culturais on-line sobre as práticas off-line, nem emissão descentralizada de mensagens e a cria-
sobre a interconexão entre ambas. Ainda assim, ção de outros repertórios, narrativas, imaginá-
é possível identificar que os grupos que mais rios e representações, dando lugar e visibili-
acessam a rede e realizam tais práticas na dade a práticas culturais autônomas de sujeitos
Internet são os mesmos que mais frequentam sociais não necessariamente inseridos na dinâ-
atividades culturais presenciais – incluindo os mica do mercado e da indústria cultural (Costa,
mais jovens, escolarizados e que se encontram 2017). Por outro lado, permitiu também a dis-
no topo da pirâmide socioeconômica (Leiva & seminação da desinformação, da discriminação
Meirelles, 2019). Outros estudos apontam ainda e dos discursos de ódio, trazendo novos desa-
que ambas as práticas se reforçam mutuamente fios para a regulação e moderação de conteú-
e que a Internet encoraja a frequência a insti- dos on-line.
tuições e eventos culturais, seja pelo estímulo Há que se acrescentar a essa difícil equa-
à formação do gosto, seja pela divulgação dos ção o fato de que a capacidade de dissemina-
mesmos (National Endowment for the Arts, ção desses conteúdos é também bastante de-
2015). sigual. Além da concentração da atenção em
A TIC Domicílios traz, portanto, elemen- determinadas plataformas, o alcance dos con-
tos para compreensão do papel da Internet na teúdos produzidos pelos usuários não é com-
promoção do direito à cultura, tanto no que parável ao dos grandes conglomerados atuantes
se refere ao acesso a bens culturais quanto à na produção e distribuição de conteúdos on-
produção de conteúdos on-line. A ampliação da -line. A estrutura difusa da rede e o princípio da
fruição cultural pela Internet, sobretudo nos neutralidade não garantem a descentralização e
campos do audiovisual e da música, coloca as a diversidade de conteúdos e expressões cultu-
atividades culturais multimídia dentre as mais rais no ambiente digital.
realizadas pelos usuários da rede no Brasil. Ao A Internet conforma-se, assim, como um
mesmo tempo em que apresenta maior di- terreno em disputa. O acesso desigual à cone-
versificação de conteúdos frente às mídias de xão e aos dispositivos não corresponde à igual
massa e à programação cultural local, a con- individualização do consumo e à difusão da
centração do consumo em grandes plataformas multiplicidade de vozes em condições de equi-
de streaming traz novas questões para o debate dade. Além disso, as práticas dos usuários inse-
em torno da diversidade cultural na Internet rem-se dentro de uma estrutura de conforma-
(Lima, 2018). Os acervos de conteúdos dispo- ção da rede em que predomina a lógica privada
nibilizados nessas plataformas e a incidência de grandes corporações. Quanto mais consu-
dos algoritmos na definição do que é acessado mimos, compartilhamos e postamos conteúdos,
pelos usuários aponta para novas formas de le- mais geramos dados para uso comercial e polí-
gitimação e curadoria na era digital, baseadas tico e, em última instância, para modulação de
na personalização da experiência a partir dos nossos próprios comportamentos.
dados de consumo prévio e de mecanismos de Em termos da participação cultural, esse de-
inteligência artificial. bate suscita novas perguntas acerca da forma
Com relação à produção e postagem de con- como as plataformas influenciam no reper-
teúdos próprios na rede, apesar de menos tório de conteúdos que são acessados pelos
comum do que o acesso e o compartilhamento seus usuários, seja por elementos econômicos
de conteúdos, os dados apontam ser essa uma – dadas as estratégias de monetização e a ló-
prática cada vez mais difundida entre os usuá- gica publicitária inerente ao modelo de con-
rios de Internet. Por um lado, isso permitiu a teúdo gratuito –, seja por elementos técnicos
58
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
Recebido em 10/07/2019
Aceito em 18/12/2019
62
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 INTERNET E PARTICIPAÇÃO CULTURAL: O CENÁRIO LUCIANA PIAZZON B. LIMA,
PÁGINAS 38 A 63 BRASILEIRO SEGUNDO A PESQUISA TIC DOMICÍLIOS WINSTON OYADOMARI
10 Disponível em https://cetic.br/tics/domici-
lios/2017/individuos/J4/. Acesso em 22 de novem-
bro de 2019.
Recebido em 10/07/2019
Aceito em 18/12/2019
64
ARTIGO
Palavras-chave Resumo
privacidade Em 1992, Tércio Sampaio Ferraz Júnior es-
sigilo creveu um parecer que foi publicado, no ano
dados pessoais seguinte, sob o título de “Sigilo de dados: o
Tércio Sampaio Ferraz Jr direito à privacidade e os limites à função fis-
Supremo Tribunal Federal calizadora do Estado”. Em sucessivos julga-
mentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) in-
corporou parcialmente o argumento do texto,
erigindo com base nele sua doutrina de pro-
teção da privacidade relativa a dados em trân-
sito (telecomunicações) ou armazenados (sigilo
bancário). Passados quase 30 anos da publica-
ção do texto, e diante dos avanços tecnológi-
cos do período, este artigo procura avaliar o
que permanece e o que está superado no texto
original de Ferraz Júnior. Para tanto, serão
apresentados: (i) a estrutura e o argumento do
texto; (ii) uma reconstrução histórica do con-
texto em que o texto foi escrito, a partir de
declarações de Ferraz Júnior e reportagens jor-
nalísticas da época; (iii) a maneira como os ar-
gumentos de Ferraz Júnior foram incorporados
pelo STF; (iv) os pontos da leitura de 1993 que
ainda se mostram fundamentais, bem como
alguns que devem ser superados. O STF tem
ações em curso nos quais terá de revisitar o
tema, e a iminente vigência da Lei Geral de
Proteção de Dados seguramente levará o tribu-
nal a ter de renovar suas manifestações sobre
o direito à proteção de dados. A conclusão do
artigo é que há importantes considerações do
artigo que permanecem atuais, enquanto ou-
tros pontos merecem novas reflexões.
66
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
Keywords Abstract
brazil In 1992, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a leading
privacy Brazilian legal philosopher, published the essay
secrecy “Sigilo de dados: o direito à privacidade e os
personal data limites à função fiscalizadora do Estado”. The
Tércio Sampaio Feraz Júnior essay orients the Brazilian Supreme Federal
Court (STF) caselaw on data secrecy and pri-
vacy, stating that the constitutional provision
on data secrecy only protects data in transit –
leaving stored data unguarded. Almost thirty
years after its first issue and, given the many
techno and sociological changes occurred in
the period, this essay aims at evaluating which
aspects of the essay stand and which do not. To
do so, the article should present: (i) the struc-
ture and argument of Ferraz Júnior’s text; (ii)
a historical reconstruction of the context in
which the text was written; (iii) how Ferraz
Júnior’s arguments were assimilated by the STF;
(iv) parts of the 1993 article that are still funda-
mental, as well as some that must be overcome.
The STF is currently analysing cases in which
it should revisit its caselaw on data secrecy
and privacy, and the imminent General Data
Protection Law deem it likely that the Court
changes its position. We conclude the essay by
stating that there are aspects of the 1993 article
still relevant nowadays, whilst some others are
in need of further reflexion.
67
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
trata, contudo, de uma faculdade exclusiva do criminal, por exemplo), nas hipóteses em que
indivíduo e a serviço do direito à privacidade: o teor da comunicação não puder ser obtido
há sigilos que protegem interesses do Estado– de outra forma. Assim, conclui o autor que a
melhor dizendo: da comunidade, como são os ressalva do artigo 5º, inciso XII, que prevê a
casos de sigilos impostos em nome da segu- interceptação de comunicações por ordem ju-
rança nacional. O sigilo é, portanto, instrumen- dicial, seja aceita somente nas comunicações
tal, não representando um fim em si mesmo. telefônicas, nas quais não restam vestígios físi-
Não há um direito fundamental ao sigilo, e sim cos do conteúdo comunicado, por sua caracte-
circunstâncias nas quais o sigilo é instrumental rística de “instantaneidade” (Ferraz Júnior, 1993,
à proteção de um direito fundamental (à priva- p. 447).5 Houve aqui uma ponderação do cons-
cidade). Logo, e sempre segundo Ferraz Júnior, tituinte quanto à amplitude do sigilo, o qual
enquanto liberdades fundamentais–como é o sofreu restrição no próprio texto constitucio-
caso da privacidade–só encontram limites em nal para permitir, em hipóteses que acabaram
outras liberdades fundamentais, o sigilo e sua definidas em lei posterior,6 a perenização do
inviolabilidade são marcados pela instrumenta- conteúdo dessas comunicações instantâneas e
lidade (Ferraz Júnior, 1993, p. 445). não escritas. Por exemplo, diante de uma co-
De sua leitura do inciso XII do art. 5º, Ferraz municação por carta, é possível requerer uma
Júnior entende que o sigilo ali referido diz res- busca e apreensão para ter acesso à carta guar-
peito estritamente à comunicação de dados, e dada (Ferraz Júnior, 1993, p. 447).
não aos dados em si (1993, p. 446).3 A partir
das simetrias identificadas no texto constitu-
cional, o sigilo de dados seria próximo ao si- (iii) Limites da função
gilo de correspondência. Recorrendo a Pontes fiscalizadora do Estado.
de Miranda (2004, p. 273), o autor conceitua
a privacidade, em conjunto com a inviolabi- Por fim, Ferraz Júnior passa a enfrentar um
lidade de domicílio e correspondência, como problema prático: quais seriam os limites à
uma liberdade de “negação” (1993, p. 443). Ela função fiscalizadora do Estado em casos de re-
seria, portanto, uma imunidade4 contra o pre- querimento de acesso a movimentações bancá-
tendido poder de devassa ou intromissão inves- rias? Nessas situações, não estaríamos diante
tigativa em certas esferas das vidas privadas de da interceptação de um ato comunicativo entre
cidadãos. O sigilo, e sua manutenção, efetiva- banco e correntistas, e sim de acesso a dados
riam esse direito, mas sem se confundir com o armazenados nos bancos de dados da institui-
conteúdo daquilo que protegem. Assim, Ferraz ção financeira. Não sendo comunicação, pros-
Júnior conclui que o objeto da inviolabilidade segue o texto, sua proteção não poderia se dar
do sigilo não são os dados em si, e sim a li- pelo inciso XII do artigo 5º, que diz respeito
berdade de negar acesso ao conteúdo por ele apenas ao sigilo de comunicações. Contudo,
abarcado. isso não significa que restariam desprotegidos:
A interceptação de uma mensagem – isto a tutela jurídica de dados pessoais armazena-
é, a invasão do fluxo entre emissor e receptor, dos fundamentar-se-ia no inciso X do mesmo
visando a acessar o conteúdo comunicacional artigo 5º, por sua inegável pertinência à priva-
que é transmitido – representa violação à pro- cidade dos indivíduos (Ferraz Júnior, 1993, p.
teção conferida pelo sigilo. Por isso ela só deve 448). Incidiria, neste caso, o princípio da exclu-
ser admitida, ainda que com ordem judicial sividade, com fundamento no direito à privaci-
e para fins de interesse público (investigação dade, genericamente, e não do direito ao sigilo
70
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
estariam protegidas pelo sigilo bancário; mas dados seriam transmitidos entre um agente
tal restrição não valeria para empresas de car- contratualmente obrigado a manter sigilo (as
tão de crédito, por não serem “instituições fi- operadoras de cartão de crédito) para outro
nanceiras” no sentido estrito do termo (Folha agente legalmente obrigado a manter sigilo (a
de São Paulo, 1992). Administração Pública tributária). Neste hori-
As administradoras de cartão de crédito, por zonte estreito, a tese do texto foi levada ao STF,
sua vez, contestavam tal interpretação e defen- a partir de casos relativos à higidez do sigilo fi-
diam a inconstitucionalidade da medida. Por nanceiro de cidadãos em face da atividade fis-
meio da Associação Brasileira de Cartões de calizadora do Estado.
Crédito, prometiam recorrer ao Judiciário con-
tra eventual portaria que demandasse os extra-
tos de seus clientes (Folha de São Paulo, 1992). 4. A incorporação do
De fato, o art. 12 chegou a ser regulamentado texto pelo STF
pela Portaria n° 144, de 25 de fevereiro de 1992,
a qual estabelecia a possibilidade de requisição
de dados cadastrais de todas as instituições fi- Com o objetivo de compreender a repercus-
nanceiras, a não ser as administradoras de car- são, divulgação e “herança” do artigo de 1993,
tão de crédito (Portaria 144/1992, do Ministério buscou-se identificar e avaliar criticamente a
da Economia, Fazenda e Planejamento). forma como o STF o incorporou à sua juris-
O tema continuou a ser debatido entre as- prudência. Isto é, procurou-se mensurar qual
sociações do setor e o Secretário da Fazenda foi o efetivo papel do texto nas decisões esco-
Nacional, que temia contestação judicial das lhidas, em que medida a argumentação o uti-
medidas. Em maio de 1992 foi noticiado que, lizou como recurso e, por fim, se a tese asso-
no âmbito das negociações, Tércio Sampaio ciada a ele passou a integrar a ratio decidendi do
Ferraz Júnior, na figura de Procurador-Geral Tribunal.10
da Fazenda, enviou um parecer que fornecia
a base legal para a portaria. Com isso, havia a
expectativa de que a Procuradoria chegasse a 4.1. Casos em que
um acordo com as referidas empresas (Nastari, o argumento do
1992b). Ao que tudo indica, o acordo não se
concretizou e nenhuma outra portaria chegou texto foi invocado
a ser publicada sobre o tema.9
Como se vê, o texto era motivado por um A jurisprudência do STF acerca da prote-
problema bastante específico e circunstanciado: ção constitucional ao sigilo de dados, notada-
o direito de acesso, para um fim específico (fis- mente a tese que “para o STF, o sigilo garan-
calização tributária), a um tipo específico de tido pelo art. 5º, XII, da CF refere-se apenas
dado (movimentações de cartão de créditos), à comunicação de dados, e não aos dados em
que ficava em posse de um pequeno grupo de si mesmos” (Mendes & Branco, 2012, p. 421),
empresas atuantes em um setor acompanhado foi destacadamente construída em dois casos11:
de perto por reguladores estatais, as quais ti- o Mandado de Segurança nº 21.729/DF, e o
nham, com seus clientes (titulares dos car- Recurso Extraordinário 418.416/SC. Para com-
tões de crédito), relações contratuais estabele- preender de que modo o “Sigilo de dados” foi
cidas. Adicionalmente, vale destacar que, a se incorporado à jurisprudência da Corte, serão
permitir a política objetivada pelo governo, os apresentados brevemente os dois casos, com
72
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
obtida por meio ilícito: argumentava-se que daquela–i.e., que estendesse o sigilo a dados
a decisão que autorizou a busca e apreensão armazenados – levaria a absurdos: dados de re-
também teria resultado em violação à proteção gistro (como uma anotação em papel) não se-
constitucional do sigilo de dados. Por mais que riam invioláveis em si, mas passariam a sê-lo
o mandado de busca e apreensão mencionasse se fossem armazenados em computadores. Para
a apreensão de equipamentos de informática, impedir a atuação fiscalizadora estatal, então,
a defesa argumentava que isso não implicava bastaria que o indivíduo movesse dados de ou-
possibilidade de decodificação dos registros ar- tros meios de armazenamento para o computa-
mazenados em computador apreendido (o que dor, garantindo-lhes o status de sigilosos.
efetivamente havia ocorrido).
A defesa de Hang destacava a decisão do
Plenário do STF na Ação Penal nº 307 (1994) 4.2. Incorporação
(Caso Collor). Na oportunidade, o tribunal seletiva
havia decidido que era ilícita a decodificação
dos registros de computador apreendidos na Como conclusão preliminar, temos que, a
sede de uma empresa. Contudo, havia uma di- despeito de o MS nº 21.729 por vezes ser indi-
ferença fundamental: no caso da AP no 307, ao cado como precedente, a tese sobre o sigilo de
contrário do que ocorrera no RE nº 418.416-SC, dados referir-se à comunicação de dados e não
tal apreensão fora feita sem mandado judicial. aos dados em si não compôs a ratio decidendi
A partir dos argumentos da defesa, sob pena do Tribunal naquela ocasião. Representou, en-
de contrariar decisão anterior do Plenário, a tretanto, um primeiro passo nesse sentido. O
Primeira Turma decidiu afetar o caso para jul- Ministro Sepúlveda Pertence, que já́ se mos-
gamento pelo Tribunal Pleno. trara convencido pela tese naquela oportuni-
Em 10 de maio de 2006, na sessão plenária dade, foi responsável por recuperá-la no RE nº
de julgamento, o Ministro Sepúlveda Pertence 418.416, na condição de relator. Nessa oportu-
(relator) destacou a existência de mandado ju- nidade, o tema foi abertamente discutido e re-
dicial específico no 2° caso. Quanto à alegação ferendado pelo Tribunal Pleno como um todo.
de violação ao sigilo de dados, afirmou que a Desse modo, foi a partir desse caso em que se
norma do inc. XII do art. 5º não se aplicava deu a efetiva incorporação da tese do texto à
àquela situação, pois não houve “quebra de si- jurisprudência do STF.
gilo de comunicações de dados (interceptação A incorporação de “Sigilo de dados” pelo
das comunicações), mas sim apreensão de base STF, contudo, foi seletiva.17 A obra só foi citada
física na qual se encontravam os dados, me- nos trechos em que se caracterizava a proteção
diante prévia e fundamentada decisão judi- constitucional do “sigilo de dados” presente no
cial” (RE n° 418.416-SC, 2006, pp. 1252-1253). artigo 5º, inciso XII–isto é, firmando o enten-
Quando retomou considerações que fizera no dimento de que esta proteção se volta à comu-
MS 21.729, Pertence invocou “Sigilo de dados” nicação de dados e não aos dados em si. Se essa
em tom elogioso: “trabalho preciso sobre o não chega a ser uma leitura equivocada do ar-
tema do d. Tércio Ferraz, do qual extraio essa tigo, pois a distinção entre dados em trânsito e
síntese magnífica, que não tenho dúvidas em dados armazenados de fato está nele, ela deixa
subscrever” (RE n° 418.416-SC, 2006, p. 1254). de fora, ao mesmo tempo, um ponto relevante
Os demais membros do Plenário acompa- do argumento completo do autor: para além
nharam o voto do Relator.16 O Ministro Cezar da distinção entre dados armazenados ou em
Peluso acrescentou que interpretação diversa trânsito comunicativo, Ferraz Júnior também
74
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
afirmava que, embora a proteção constitucio- quem estivesse disposto a arcar com os cus-
nal do sigilo (inc. XII do art. 5º) não alcançasse tos econômicos e sociais de um litígio, a ge-
dados armazenados, o acesso a eles seria bali- ração atual de leis de proteção de dados busca
zado pela guarida constitucional da privacidade elevar o padrão coletivo dessa tutela. Esse ob-
(inc. X do mesmo artigo). Isto é, seria relevante jetivo é perseguido a partir de variadas estra-
avaliar em que medida o acesso aos dados ar- tégias. Doneda (2011, p. 98) destaca, entre ou-
mazenados no hard disk violaria a intimidade tras, o fortalecimento da posição do indivíduo
do indivíduo: mesmo que eles não pudessem frente às entidades que coletam e processam
ser chamados de “sigilosos”, nada impedia que seus dados, tornando seu controle mais efe-
fossem considerados, por exemplo, “íntimos”, e tivo; da decisão de consentimento individual,
contassem com proteção condizente a esse sta- limitando-a, por exemplo, no que diz respeito
tus. A despeito disso, considerações sobre inti- a dados pessoais sensíveis; criação de autorida-
midade e potencial violação ao art. 5º, inciso X des independentes responsáveis por garantir a
não integraram a análise do STF em qualquer observância das normas.
um desses casos. A recuperação de considera- Na LGPD, destacam-se princípios para o tra-
ções desse tipo mostra-se, hoje, mais necessária tamento dos dados pessoais, quais sejam (art.
do que nunca. A essa tarefa, dedica-se a seção 6º): (i) finalidade, ideia de que o tratamento
final do artigo. deve ser realizado apenas para propósitos le-
gítimos, específicos, explícitos e informados
ao titular; (ii) adequação, que determina que o
5. Privacidade e proteção tratamento seja compatível com as finalidades
de dados: desafios atuais informadas ao titular; (iii) necessidade, exigên-
cia de que o tratamento se limite ao mínimo
e caminhos da tutela necessário para a realização de suas finalida-
jurídica des. Com o objetivo de possibilitar ao titu-
lar o controle sobre seus dados pessoais e as
formas de tratamento destes, a lei estabelece
Em 1993, Ferraz Júnior já traçava paralelos ainda: (iv) livre acesso aos dados e às formas
entre a proteção do sigilo de dados e a inti- de tratamento; (v) direito dos titulares de ga-
midade do indivíduo. Em quase trinta anos, o rantir a qualidade de dados, atualizando-os ou
conceito de privacidade passou por importan- pedindo sua correção; e (vi) transparência com
tes alterações. A proteção de dados pessoais relação às práticas de tratamento utilizadas. A
se consolida como categoria decorrente dessa lei, pauta-se, ainda, pelos princípios da (vii) se-
evolução. gurança e (viii) prevenção, estimulando a ado-
Após desenvolvimentos germinais na disci- ção de medidas técnicas e administrativas para
plina legal do direito à proteção de dados pes- a proteção de dados pessoais. Por fim, a LGPD
soais,18 chegamos à atual geração legislativa (ix) veda qualquer tratamento para fins discri-
nesta matéria. Nela destacam-se o Regulamento minatórios ilícitos ou abusivos e (x) estabelece
Geral de Proteção de Dados Pessoais (RGPD)19 da que os agentes deverão adotar medidas aptas
União Europeia; e, localmente, a recém apro- a comprovar a observância e o cumprimento
vada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais das normas de proteção de dados pessoais, bem
(Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 ou LGPD). como a eficácia dessas medidas.
Se antes a proteção jurídica contra violações a Tais princípios buscam possibilitar o controle
dados pessoais estava disponível somente para do titular sobre seus dados pessoais e as formas
75
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
com o fim de permitir interceptação de men- de modo seletivo, oferece balizas que seguem
sagens. Tal iniciativa baseia-se em uma leitura úteis à proteção da privacidade dos cidadãos
abrangente do inc. XII do art. 5º (bem como no em face da conveniência investigativa estatal.
parágrafo único do art. 1o da Lei 9.296/1996),
que, ao contrário da interpretação de Ferraz
Júnior, permitiria interceptação de qualquer es- b. O que está
pécie de comunicação – não apenas das comu- superado
nicações “instantâneas”, de que a comunicação
telefônica seria exemplar.
A interpretação de “Sigilo de dados”, por
outro lado, não admite essa leitura ampliativa: (i) “Privacidade”, no
uma vez que as mensagens deixam vestígios tocante a nossos
na ponta emissora e receptora da comunica- dados pessoais,
ção, investigações que se interessem pelo teor não pode mais ser
das mensagens trocadas devem recorrer a ou- conceituada apenas
tras técnicas de investigação – notadamente, a como um direito que se
apreensão de aparelhos e a perícia de seu con- defende passivamente,
teúdo. Em caso de mensagens trocadas e ar- por resistência
mazenadas em servidores (“na nuvem”), cabe a intromissões
também lembrar de sua proteção pela regra ou devassas.
geral da privacidade, independentemente de
não se tratar de comunicação em curso. Afinal, Conforme já exposto na parte 2 deste texto,
o teor dessas comunicações armazenadas como a concepção de privacidade adotada em “Sigilo
regra abrange elementos de intimidade, honra de dados” é de um direito de bloqueio ou resis-
e imagem, recomendando cautela exemplar no tência (Ferraz Júnior, 1993, p. 443), que daria a
acesso a seu conteúdo, e sendo vedadas, à pri- seu titular a faculdade de impedir intromissões
meira vista, devassas indiscriminadas quanto indevidas ou devassas nas esferas de exclusivi-
ao intervalo de tempo, os interlocutores e o as- dade de sua vida privada. Essa concepção, em-
sunto das mensagens. bora siga válida, não mais esgota a dimensão
Além disso, a distinção lança luz sobre outro que o direito à privacidade assume nos dias de
debate contemporâneo relacionado ao sigilo de hoje.
dados: a possibilidade de emprego de tecnolo- Como bem destaca Doneda, novas dinâmi-
gias de criptografia forte por parte de aplicati- cas associadas à informação, propulsionadas
vos de troca de mensagens instantâneas.20 O ar- pela tecnologia e a intensificação dos fluxos de
gumento de órgãos de persecução penal de que informação, afetam de forma inédita a relação
as empresas de tecnologia têm o dever de pos- entre dados pessoais e privacidade (2006, p. 6).
sibilitar a interceptação de mensagens trocadas Nesse cenário, o direito à privacidade não mais
não se sustenta a partir de consideração que o se estrutura em torno do isolamento do indiví-
grosso das mensagens trocadas por estas plata- duo. Ele deve, isto sim, oferecer meios adequa-
formas deixam vestígios (Queiroz, 2018, p. 21). dos para a proteção de uma esfera privada do
Em um contexto no qual a informatização indivíduo de maneira funcional em um con-
é regra, e a quantidade de dados armazenados texto de “vida em relação” (Doneda, 2006 p. 2).
em bancos de dados informáticos será cada vez Para fazer frente a esse desafio, a privacidade
maior, “Sigilo de dado”, desde que não seja lido não pode se reduzir a uma liberdade negativa
79
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
rumo a uma concepção relacional e positiva da porque estejam em dados armazenados, e não
privacidade. em trânsito. Essa particular leitura de “Sigilo
de dados”, que não é a única possível de ser
feita do texto e nem é necessariamente a me-
(iii) Distinção rígida lhor, deve ser descartada em favor de outra que
entre dados em equalize a proteção de dados armazenados e
trânsito e dados dados em trânsito pelo critério que substanti-
armazenados como vamente importa: o grau de exclusividade que
critério para maior se deve reconhecer às informações contidas
ou menor proteção nos dados e seu impacto sobre a privacidade de
contra intromissões. seu titular. O inc. X, art. 5º, da Constituição dá
conta desta fundamentação sem dificuldades.
Se é verdade, como dito há pouco, que a dis- Em julgamento recente, uma das turmas do
tinção entre dados estáticos e dados em fluxo STF parece ter iniciado interpretação nesse
não precisa acarretar desconsideração à sen- sentido.24
sibilidade de dados armazenados para fins de
proteção da privacidade, é também verdade
que, talvez pela recepção apenas parcial de (iv) Dados menos
“Sigilo de dados” pelo STF, essa clivagem, que exclusivos não
está de fato presente no texto, tem sido uti- necessariamente são
lizada para negligenciar a devida proteção a menos relevantes
dados armazenados. para a integridade
Isso é sem dúvida um problema e merece moral do indivíduo.
superação. Já não faz sentido distinguir entre
dados em trânsito e dados estáticos como cri- “Sigilo de dados” faz uma importante distin-
tério para maior ou menor proteção à priva- ção entre tipos diferentes de dados pessoais,
cidade: o barateamento do armazenamento de segundo a sua “exclusividade”. Alguns dados,
dados e a migração das comunicações humanas diz Ferraz Júnior, são mais exclusivos, porque
para serviços providos pela Internet, com op- não foram feitos para sair da esfera de segredos
ções de armazenamento de segurança em ser- de seu titular: “dados de foro íntimo, expres-
vidores (“backups na nuvem”), torna o conjunto sões de autoestima, avaliações personalíssimas
de dados armazenados sobre um indivíduo, por com respeito a outros, pudores, enfim dados
seu considerável volume e abrangência tempo- que, quando constantes de processos comuni-
ral, mais sensível à sua intimidade do que con- cativos, exigem do receptor extrema lealdade e
versas telefônicas interceptadas. A hierarquia alta confiança, e que, se devassados, desnuda-
protetiva que coloca dados em trânsito acima riam a personalidade, quebrariam a consistên-
de dados armazenados simplesmente é anacrô- cia psíquica, destruindo a integridade moral do
nica diante das mudanças na tecnologia e nas sujeito” (Ferraz Júnior, 1993, pp. 448-449).
práticas comunicativas desde 1993 até os dias Outros, prossegue o texto, são feitos para a
atuais (Sidi, 2016; Quito, 2018). atividade comunicativa e relacional inerente à
Se não é possível ignorar a distinção entre vida em sociedade:
os incisos X e XII do art. 5º da Constituição,
tampouco há razão para impor uma prote- pelo sentido inexoravelmente
ção menos efetiva à nossa intimidade apenas comunicacional da convivência, a vida
81
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
a interceptação em casos que não for possível esse momento, considerando que a denúncia
a apreensão posterior desses dados. De outro, de Pedro Collor na Revista Veja foi realizada no
Queiroz (2018) observa que a inconstitucionali- mês de maio de 1992.
dade do art. 1º da Lei de Interceptações decorre
de uma interpretação literal e hermenêutica da 10 Tal análise foi realizada a partir da me-
norma constitucional, a última a partir da dis- todologia explorada em Hübner Mendes (2010)
tinção de Ferraz Júnior entre as comunicações e Vojvodic, Machado e Cardoso (2009).
que deixam vestígios e aquelas que não deixam.
Além disso, argumenta que se vive um con- 11 Foi realizada pesquisa na Plataforma de
texto de hipervulnerabilidade de informações jurisprudência do STF com os termos chave
pessoais sensíveis da internet, onde a proteção “sigilo de dados e XII”. Foram encontrados 14
da privacidade merece ser privilegiada. acórdãos, 427 decisões monocráticas, 44 infor-
mativos. Analisamos as ementas e indexações
6 Lei Geral de Interceptações–Lei nº dos referidos acórdãos. Destes, dez eram im-
9.296, de 24 de julho de 1996. pertinentes, tratando de assuntos diversos re-
lacionados ao inciso XII. Os outros quatro [HC-
7 Em maio de 2017, o Internetlab, centro AgR 124322/RS (2016), RHC 132062/RS (2016),
independente de pesquisa sobre direito e so- HC 91867/PA (2016) e RE 418416/SC (2006) em-
ciedade, organizou o I Congresso Internacional pregavam a tese de Sampaio Ferraz acerca da
Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era proteção do sigilo de dados se referir aos dados
Digital, que contou com a palestra “Sigilo de em trânsito e citavam, expressamente, o MS N°
dados, o direito à privacidade e o poder do 21.729/DF (2001). O mais antigo dos quatro, o
Estado: 25 anos depois” ministrada por Ferraz RE 418.416/SC (2006), foi referenciado nos ou-
Júnior. Ver: Ferraz Júnior, T. S. (2018). Sigilo de tros três julgados desse grupo.
dados, o direito à privacidade e os limites do
poder do Estado: 25 anos depois. In Abreu, J. 12 O mandado de segurança argumentava,
D. S., & Antonialli, D., Direitos Fundamentais e em resumo, que: (i) o pedido violava o sigilo
Processo Penal na Era Digital: Doutrina e Prática bancário concedido a suas operações, que só
em Debate. Vol. I. São Paulo: InternetLab, pp. poderia ser quebrado mediante ordem judicial,
18-41. de acordo com o art. 38 da Lei nº 4.595/1964;
(ii) a exceção de quebra de sigilo a respeito de
8 Informação consta na biografia dispo- documentos e informações preceituada no
nibilizada em seu site pessoal: http://www.tercio- art. 8º, §2º da Lei Complementar nº 75/1993
sampaioferrazjr.com.br/?q=biografia. Acesso em: 15 de (Estatuto do Ministério Público) só valeria para
junho de 2019. autoridades públicas, e o Banco do Brasil não
representaria uma no caso; e (iii) apesar de a
9 Essa foi a última notícia ou portaria privacidade, representada no art. 5º, inc. X, e
encontrada sobre o assunto. Foram consulta- sigilo bancário não serem absolutos, estes só
das as bases de dados do Acervo do Estado de poderiam ser quebrados mediante decisão
São Paulo e Acervo da Folha de São Paulo, bem judicial.
como os Diários Oficiais da Imprensa Nacional.
O arrefecimento da discussão pode ser expli- 13 A reconstrução dos dois casos se deu por
cado pelo período político tenso que seguiu a meio da leitura do acórdão. Entretanto, diante
da indicação no acórdão de que o parecer da
89
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR E SIGILO DE DADOS: O DIREITO À RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ,
PÁGINAS 64 A 90 PRIVACIDADE E OS LIMITES À FUNÇÃO FISCALIZADORA DO ESTADO: O QUE... PAULA PEDIGONI PONCE
Vice Procuradoria havia tratado do o sigilo de 18 Para uma reconstrução completa das
dados, o documento foi solicitado via Lei de gerações de proteção de dados pessoais, ver:
Acesso à Informação à Seção de Arquivo do STF Mendes, 2014, pp. 37-44; Doneda, 2006, pp.
para a consulta de seu conteúdo. 203-217; Bioni, 2019, pp. 117-121.
distinção que ora fazemos para o direito à pri- 23 Para uma detalhada visão da evolução
vacidade, para o qual a dimensão positiva, no histórica do conceito de privacidade à luz das
tocante ao direito protetivo de dados pessoais, mudanças sociais e tecnológicas de cada pe-
é sumamente relevante. ríodo da história dos EUA, v. Igo, 2018.
ARTIGO
Como vencer
uma eleição sem
sair de casa:
a ascensão do
populismo digital
no Brasil
Letícia Cesarino
Professora no Departamento de Antropologia
e no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:
leticia.cesarino@gmail.com
92
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
Palavras-chave Resumo
antropologia digital Desde ao menos a eleição de Trump e o refe-
populismo rendo sobre o Brexit, o tema do populismo vol-
Ernesto Laclau tou à tona com grande força ao debate público
bolsonarismo e acadêmico. Este artigo busca avançar a dis-
pós-verdade cussão com base na experiência eleitoral brasi-
leira de 2018, onde, em contraste com os even-
tos de 2016, interveio de modo significativo o
aplicativo WhatsApp. Baseado em dez meses
de pesquisa online em redes sociais bolsona-
ristas, o presente estudo avança o conceito de
populismo digital para pensar as particularida-
des e efeitos da digitalização contemporânea
do mecanismo populista clássico descrito por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, articulando-o
com noções da cibernética, teorias de sistemas
e teoria antropológica.
93
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
How to win an
election from home:
on the rise of digital
populism in Brazil
Keywords Abstract
digital anthropology At least since Trump’s election and the Brexit
populism referendum, populism has become a hot topic
Ernesto Laclau in public and academic debates. This arti-
Bolsonarism cle seeks to contribute to these debates based
post-truth on Brazil’s 2018 presidential elections, where
WhatsApp played an unprecedented role. Based
on ten months of online research on pro-Bol-
sonaro social media, this study advances the
notion of digital populism in order to tease out
the particularities and effects of the digitaliza-
tion of this classic mode of constructing po-
litical hegemony. To this end, it incorporates
insights from cybernetics, systems theory and
anthropological theory to Ernesto Laclau and
Chantal Mouffe’s theory of populism.
94
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
256 pessoas, número máximo permitido pelo de construir esse canal exclusivo. Essa estraté-
aplicativo) também disponíveis publicamente gia teve como efeito a produção de uma reali-
através de links, em geral no Facebook ou dade à parte cuja relação com o entorno (i.e.,
Twitter. Nestes, qualquer usuário podia postar, o resto da web) era mediada por uma série de
e embora a maior parte das interações consis- gatekeepers digitais: sobretudo influenciadores
tisse em compartilhamentos, havia ocasional- e coletivos, mas também mediadores não-hu-
mente diálogo entre os membros. Esses grupos, manos como algoritmos, bots ou criptografia
junto com o WhatsApp pessoal da minha inter- (Recuero, Zago & Soares, 2017).
locutora, formaram o conjunto da minha pai- Poder-se-ia objetar que toda bolha digital é
sagem etnográfica nesse aplicativo. Após o re- um mecanismo desse tipo, e isto é verdadeiro.
sultado da eleição, essas redes se reorganizaram Todavia, minha experiência de pesquisa con-
significativamente. Todos os grupos dos quais corre para a tese de Santos et al. (2019), tam-
eu participava no final da campanha eventual- bém apoiada por outras observações qualitati-
mente se desfizeram. Porém, novos foram cria- vas como as de Nemer (2018), de que, diferente
dos e permanecem bastante ativos. Como tam- de bolhas que são geradas através dos algorit-
bém observou Nemer (2019), os novos grupos mos e padrões de uso quotidianos das mídias
parecem abrigar aquelas franjas mais “radicais” sociais, há, no caso em tela, uma assimetria e
de seguidores do presidente. Isso não significa, direcionalidade que, no desenrolar da rede, se
contudo, que outros usuários não continuem combinam e se retroalimentam com os usos
recebendo parte do conteúdo que circula nos e ações espontâneos por parte das pessoas co-
grandes grupos através de contatos pessoais em muns. Essa direcionalidade pode ser observada
seu WhatsApp – com efeito, essa tem sido a ex- de modo mais claro no plano meta-comunica-
periência da minha interlocutora privilegiada tivo ou sistêmico: por um lado, na montagem
desde então. de um aparato midiático digital que corresse
O universo desta pesquisa se ancorou, por- em paralelo às formas tradicionais de produção
tanto, no WhatsApp como ponta capilar de uma e disseminação da informação e conhecimento
ecologia das mídias mais ampla que vem sendo autorizados (como o jornalismo profissional,
mapeada e analisada por diversos pesquisado- especialistas acadêmicos e outros formadores
res a partir de inserções teórico-metodológicas de opinião como artistas); e por outro, nos pa-
diferentes, e desde antes das eleições de 2018 drões discursivos recorrentes no conteúdo di-
(Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017; Ortellado & gital que circulava nesse aparato. Buscarei, no
Ribeiro, 2018; Santos et al., 2019; Nemer, 2019). que segue, evidenciar este último ponto, suge-
Como outros (Recuero, Zago & Soares, 2017; rindo que a estruturação do conteúdo da cam-
Gerbaudo, 2018), creio que seja vital apontar as panha tanto oficial quanto não-oficial do can-
mudanças que esse ecossistema vem introdu- didato vitorioso em 2018 derivou, em alguma
zindo na esfera pública, pois sua estrutura vai medida, de algum tipo de “ciência do popu-
de encontro ao sentido liberal, habermasiano lismo” (Cesarino, 2019a).
do termo, por ser pouco pública, pouco dialó-
gica, e isolar parte do público do contato com o
contraditório e a diferença. Tanto na memética 3. Teoria e prática do
da campanha quanto em declarações do então populismo
candidato (por exemplo, conclamando seus se-
guidores a desligar a tevê e se informar apenas
por meio de suas lives), era explícita a intenção Inicialmente, a coleta de conteúdo se deu
98
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
articular essas demandas em uma “cadeia de “povo” é produzida pelo líder e seu aparato mi-
equivalência” longa e inclusiva o suficiente diático (Cesarino, 2006). O mesmo vale para as
para subsumir a heterogeneidade inicial numa identidades definíveis a partir do espectro po-
identidade política comum, que ele chama de lítico esquerda-direita, que, no caso brasileiro,
“povo” (que, no caso em tela, consistiu em uma vem sendo significativamente rearranjado no
maioria eleitoral). No processo de extensão da contexto antagonístico que levou à ruptura po-
cadeia para os múltiplos grupos e indivíduos pulista recente (Malini, Ciarelli & Medeiros,
que compõem a sociedade, particularidades e 2017; Solano, 2018).
diferenças entre eles são seletivamente excluí-
das em favor da mobilização de símbolos e pa-
lavras de ordem capazes de ligar todos ao líder.
Essa equivalência é construída através da
mobilização de significantes vazios ou flutuan-
tes,3 frequentemente envolvendo noções vagas
de nação, ordem, segurança e mudança. Daí o
caráter impreciso, redundante, simplificador,
emotivo, “vazio” – em uma palavra, performa-
tivo (Cesarino, 2006) – do discurso populista:
só assim é possível produzir equivalência entre
uma ampla gama de particularidades. As res-
sonâncias desse tipo de discurso político com
a linguagem da memética e outras dinâmicas
próprias das redes sociais já foram notadas – [Figura 1] Reorganização do espectro
por exemplo, a hashtag como significante vazio político, a partir da qual um candidato que
que articula “multidões” insatisfeitas online, e passou quase trinta anos no baixo clero
o “espírito transgressor” que faria das mídias do Congresso Nacional logra se colocar
digitais avenidas privilegiadas para “represen- como alguém vindo de fora do sistema
tar os não-representados” excluídos da grande (por Luiz Philipe Orleans e Bragança, eleito
mídia e do sistema político (Gerbaudo, 2018, deputado federal pelo PSL em 2018).
p. 748). Há, todavia, diversos outros pontos –
mais do que de afinidades, de co-constituição
estrutural (Cesarino, no prelo b) – entre a dinâ- Além do eixo paradigmático ligando líder e
mica das redes sociais e a mecânica populista. povo, a extensão discursiva5 das cadeias de equi-
Um deles diz respeito ao modo como, para valência opera através de um eixo sintagmático
Laclau e Mouffe, as identidades políticas, indi- que produz uma fronteira entre o que cha-
viduais ou coletivas, não preexistem às relações mei do sistema líder-povo (Cesarino, no prelo
que as constituem ou à sua nomeação enquanto b) e uma exterioridade constitutiva (Laclau,
tal4 – o que vai ao encontro de discussões sobre 2005) que opera como uma alteridade ameaça-
o modo como subjetividades são formadas atra- dora: nos termos de Schmitt, um inimigo. Para
vés de perfis em mídias sociais (Malini, 2016). Laclau, no populismo, o antagonismo amigo-i-
No caso do populismo, essa performatividade nimigo se sobrepõe a outra divisão, entre elite
torna-se explícita a ponto de ser possível tra- e povo, a partir da qual o líder alega representar
çar, com relativa precisão, as táticas discursivas os “de baixo” contra algum tipo de elite privile-
através das quais a identidade comum com o giada, auto-interessada, hipócrita e/ou corrupta.
100
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
[Figura 2]
Co-produção
emergente da
identidade de
direita a partir da
oposição à identidade
de esquerda em
grupos públicos Embora o próprio Outro aspecto essencial ao populismo, e mi-
de WhatsApp Laclau não destaque nimizado pela teoria política liberal, diz res-
(pós-eleição). este ponto, é impor- peito ao papel central dos afetos e paixões no
tante que a figura do comportamento e formação das identidades
inimigo funcione também enquanto um pe- políticas. Há todo um complexo argumento
rigo permanente à integridade do grupo e/ou psicanalítico embasando este eixo da teoria de
da sua liderança. Essa virtualidade onipresente Laclau (2005), baseado em Freud e Lacan, que
funciona como uma pressão externa que per- não cabe recuperar aqui.6 Para nossos propó-
mite manter a coesão do sistema líder-povo, sitos, é suficiente notar que o líder populista
ainda que falte organicidade à sua base interna. constrói o povo principalmente através de ape-
Essa função é frequentemente desempenhada los emotivos, estéticos, morais, que podem ser
por rumores ou denúncias de risco à vida do tanto positivos (esperança, desejo de ordem, de
líder e/ou de seus aliados, por parte de algum justiça ou de mudança) quanto negativos (ódio
inimigo externo ou, às vezes, interno (infiltra- ao inimigo, ressentimento, revanchismo, de-
dos, traidores); ou por alegações de persegui- cepção). É aqui que o carisma pessoal do líder
ção, acompanhadas de narrativas conspirató- assume importância, normalmente acompa-
rias. A carta-testamento de Getúlio Vargas e a nhado de algum tipo de culto à personalidade.
referência de Jânio Quadros a “forças terríveis” No populismo digital, agências não-humanas,
são exemplos paradigmáticos desse elemento como “algoritmos emocionais”, passam a de-
na história brasileira. Na minha experiência de sempenhar parte importante dessa função mo-
pesquisa, conteúdos desse tipo, que desempe- bilizadora, ou de produção de equivalência,
nhavam uma função principalmente mobili- por meio de afetos (Malini, Ciarelli & Medeiros,
zadora, estiveram entre os mais circulados no 2017).
WhatsApp durante a campanha eleitoral. É por isso que julgamentos políticos den-
tro do mecanismo populista parecem simples
e reducionistas, pois baseados em emoções,
101
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
julgamentos morais e estéticos e numa esco- mais conhecida mídia desse tipo seja a Voz do
lha binária entre amigo e inimigo. Mas é jus- Brasil, canal radiofônico obrigatório ligando di-
tamente essa simplicidade que permite o alar- retamente (e unidirecionalmente) líder e povo,
gamento inigualável da mobilização do tipo estabelecido durante o processo de rotinização
populista, pois ela não tem como condição de do populismo de Getúlio Vargas. Neste ponto,
possibilidade nenhum tipo de educação po- é possível perguntar em que medida o caráter
lítica no sentido específico: as pessoas fazem digital das mídias mobilizadas pelas lideran-
seus julgamentos através dos mesmos parâme- ças populistas contemporâneas introduz uma
tros utilizados em situações da vida quotidiana. ruptura com a tradição populista pregressa.
Daí também a crescente confusão de fronteiras, Algumas dessas possíveis inovações serão des-
a ser destacada na seção conclusiva, entre a po- tacadas a seguir, através de conceitos da ciber-
lítica e outras esferas sociais. nética e teorias de sistemas.
Finalmente, cabe notar que tanto a ruptura
populista quanto a sua posterior rotinização
enquanto governo têm como pré-condição a 4. Populismo digital e a
mobilização e o controle bem-sucedido de cer- perspectiva cibernética
tas mídias por parte do líder, através das quais
ele busca assegurar acesso direto, exclusivo e
contínuo aos seus seguidores. O líder popu- Além de evidenciar como o conteúdo da
lista constrói o povo através de mediações di- campanha Bolsonaro nas redes se estrutu-
versas, que, no passado, envolviam principal- rou com base em padrões discursivos descri-
mente mídias analógicas como jornais, rádio tos pela teoria do populismo, o presente es-
e televisão, bem como contágio através de mí- tudo busca aproximar a seguinte questão: o que
dias informais como rumores ou em situações ocorre com a mecânica e efeitos do populismo
de efervescência coletiva (multidões). Talvez a quando ele passa a operar cada vez mais por
102
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
[Figura 5] Diferentes
versões cut-and-
paste do significante
flutuante “kit gay”
circuladas em redes
bolsonaristas durante
a campanha eleitoral.
binário amigo-ini-
migo delimitador da
fronteira entre o sis-
tema e seu entorno.
Aquele que foi sele-
cionado pelo líder
como seu antagonista
participou do sistema,
al., 2018; Nemer, 2018; dos Santos et al., 2019) portanto, enquanto exterioridade constitutiva
sugerem, a campanha digital de Bolsonaro ope- (nos termos de Laclau) ou enquanto ambiente
rou através de uma estrutura segmentar análoga ou entorno (nos termos de Luhmann). Nas
à descrita pelo antropólogo britânico Edward eleições de 2018, essa posição estrutural se an-
Evans-Pritchard (2013): ao mesmo tempo que corou na figura imediata de um dos candida-
visava efeitos de microdirecionamento a per- tos – Fernando Haddad – mas também flutuou
fis de eleitores específicos, era capaz de man- amplamente enquanto Lula, PT, Jean Willys,
ter uma unidade virtual no “topo”. A imagem comunismo, militância, resistência, globalismo,
do candidato, ao mesmo tempo unitária e frag- velha política... numa série paradigmática (no
mentada – nos termos lévi-straussianos de sentido de Saussure) virtualmente inesgotável.
Kalil et al. (2018), caleidoscópica –, circulou
no WhatsApp através de uma topologia, estra-
tegicamente construída, de “redes policêntri-
cas segmentadas e integradas” do tipo “hidra”
(Santos et al., 2019). Esse padrão caleidoscópico
e segmentar, que se vale de affordances (Gibson,
1986) digitais próprias do WhatsApp e da eco-
logia de mídias mais ampla em que o aplicativo
se insere, introduz, a meu ver, uma inovação
importante com relação ao populismo analó-
gico (Cesarino, 2019b).
Já no eixo da diferença, elementos externos [Figura 6] Significante vazio do inimigo
ao sistema líder-povo (como fatos noticiados flutua a partir de uma divisão binária inicial:
pela imprensa, análises feitas por especialis- bandido, vagabundo versus cidadão de bem.
tas ou contestações levantadas pela oposição) Memética exorta o usuário a escolher um
só eram interiorizados enquanto informação lado e a definir o voto com base em imagens.
significativa mediante sua redução ao código
104
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
Mas embora o adversário só penetre no sis- rítmico evidente no aparato mobilizador do po-
tema líder-povo mediante sua redução ao có- pulismo digital, notadamente o firehosing diário
digo binário amigo-inimigo, no período elei- de conteúdos compartilhados via WhatsApp.8
toral ele operou como uma exterioridade ativa, Além disso, o ritmo da mobilização era impri-
pois suas reações ao mecanismo populista ten- mido pelo próprio conteúdo. Eram bastante
deram a retroalimentá-lo, estabilizando um frequentes, por exemplo, áudios supostamente
padrão relacional similar ao que Bateson cha- gravados por alguém relevante, mas que se pas-
mou de cismogênese simétrica (Bateson, 1972; savam por alguém relevante (um procurador
Karczeski, 2018). Ou seja, as reações do inimigo da república, um funcionário de embaixada,
às ações da liderança populista, e vice-versa, um empregado de alguma empresa da grande
geraram uma escalada progressiva da divisão mídia) trazendo “fatos” exclusivos ou narrati-
entre os dois polos que foi instrumental para vas alarmistas. Textões ou vídeos alertavam as
promover o candidato do PSL de deputado ale- pessoas para algum tipo de ameaça ou com-
górico e inexpressivo a novo salvador da pátria plô em andamento, fosse por parte do Partido
(Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017). O aspecto dos Trabalhadores (PT), do Tribunal Superior
simétrico do antagonismo amigo-inimigo foi Eleitoral (TSE), ou mesmo de entidades “ter-
central neste processo, pois parte da eficácia do roristas” internacionais como o Hezbollah e as
mecanismo populista adveio da canibalização e Farc.
inversão (Laclau, 2005) de enunciados e ações Outro ponto de convergência com as teo-
do oponente. Esse aspecto foi estruturante de rias de sistemas diz respeito à questão da efi-
boa parte da memética da campanha Bolsonaro, cácia, ou da verdade, como efeito performativo
e era ocasionalmente explicitado enquanto a posteriori às relações. Muitos são os desdobra-
“jogar o feitiço contra o feiticeiro” ou “dançar mentos possíveis desse ponto, em especial no
conforme a sua música”. que tange à co-produção contemporânea entre
mídias digitais, neoliberalismo, pós-verdade e
neopopulismos (Mirowski, 2019; Cesarino, no
prelo b); porém, eles estão além do escopo da
presente análise. Aqui, basta notar que, como
nos sistemas, a eficácia é intrínseca à própria
definição do populismo: ou o líder é eficaz na
construção do “povo”, ou não é uma liderança
populista no sentido próprio do termo. Assim,
ainda que alguns dos padrões e táticas aqui
analisados possam ser encontrados nas campa-
nhas digitais de outros candidatos em 2018 e
mesmo antes, a eficácia – que, neste contexto,
[Figura 7] Espelhamento estético e inversão era eleitoral – esteve inequivocamente do lado
esquerda-direita. Canibalização da palavra de do candidato do PSL.
ordem feminista “lute como uma garota”. Finalmente, chegamos ao que vejo como o
principal elemento diferencial da eficácia do
A perspectiva de sistemas permite, ainda, populismo em sua modalidade digital: sua to-
lançar luz sobre outro ponto que se mos- pologia fractal. Se na sua versão analógica a
trou central no caso em tela: a temporalidade eficácia do populismo dependia pesadamente
da mobilização populista.7 Havia um aspecto do carisma pessoal do líder, em especial sua
105
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
receptor dados de antemão: elas são o sistema uma relação não-mediada com a liderança. Isso
líder-povo. Tanto líder quanto povo se co-cons- é observado na expectativa, demonstrada por
tituem recursivamente em e através desse apa- muitos usuários ativos nessas redes, de que se
rato digital: um tipo de mediação que produz o está apenas a um tweet, um post, um comparti-
efeito paradoxal de uma ausência de mediação lhamento do smartphone do líder ou de alguém
(Mazzarella, 2019); uma topologia assimétrica do seu entorno (como os filhos ou algum mi-
que se quer horizontal (Marres, 2018); um dire- nistro). O próprio presidente alimenta regular-
cionamento discursivo que prolifera enquanto mente essa expectativa, ao postar no Twitter ou
espontaneidade (Santos et al., 2019). Facebook que tomou uma decisão oficial de-
pois de ouvir pedidos de algum de seus apoia-
dores em suas redes.
Vai se disseminando, por este meio, uma ilu-
são de que intermediários como instituições
e especialistas são desnecessários, ou mesmo
prejudiciais, ao processo democrático (Cesarino,
2019b; Cesarino, no prelo b) – que passaria a
se resumir, como o presidente eleito colocou
em sua cerimônia de diplomação, a uma re-
lação “direta” entre líder e povo. O polo insti-
tucionalista do espectro democrático descrito
por Mouffe (2000) é assim esvaziado em favor
do polo populista, a ponto de a democracia ser
equacionada simplesmente à vontade do povo,
incorporada no líder e que deve ser implemen-
tada contra tudo e todos, inclusive contra o sis-
tema institucional de pesos e contrapesos.
Por fim, cabe notar a conexão estreita entre para reinstituir a ordem em novas bases, se-
o que se convencionou chamar de pós-verdade guiu uma progressão bem nítida. Ela é evidente
e o populismo digital – algo que discuto mais inclusive na estética dos movimentos de rua:
detalhadamente em outro lugar (Cesarino, no começando com os protestos difusos reivindi-
prelo a; Cesarino, no prelo b; Waisbord, 2018). cando “demandas sociais” de 2013 (Malini, 2016,
Desde o início da campanha eleitoral, o meca- p. 28), que foram gradualmente ganhando uma
nismo populista bolsonarista buscou limitar o estrutura antagonística mais clara através dos
acesso do “povo” a uma esfera pública de caráter movimentos anticorrupção e pró-impeachment
mais aberto e pluralista, bem como a estruturas em 2015 e 2016 (Recuero, Zago & Soares, 2017;
tradicionais de produção de conhecimento au- Malini, Ciarelli & Medeiros, 2017; Solano, 2018),
torizado. Foram muitos e variados os conteú- alcançando a sua forma final com a unificação
dos direcionados à deslegitimação da imprensa pela liderança populista em 2018 (Ortellado &
profissional e de especialistas. Numa das no- Ribeiro, 2018; Kalil et al., 2018).
táveis inversões de que falou Laclau (2005), as A “realidade” da crise que propicia a irrupção
mídias sociais, e em especial o WhatsApp, se bem sucedida do líder carismático está sujeita
tornaram o domínio da verdade e da liberdade às mesmas mediações em jogo na mecânica
de expressão, enquanto a esfera pública pas- populista. Certos tipos de conteúdo que costu-
sou a ser condenada como o lócus de fakes e mavam “vazar” nos grupos de WhatsApp pró-
manipulações. Nesse contexto, torna-se cada -Bolsonaro tanto antes quanto depois da elei-
vez mais difícil diferenciar mídia centralizada ção deixam entrever que a própria percepção
e oficial de mídia informal e descentralizada; de crise que ensejou a ruptura populista tam-
discernir verdades de rumores; fatos de conspi- bém vem sendo, em alguma medida, perfor-
rações. Acredito que esta seja uma das bases da mada digitalmente. Destacam-se, aqui, conteú-
eficácia da campanha de Bolsonaro, que ope- dos “caseiros” ou repassados de outras mídias
rou aquilo que Jean e John Comaroff (2004) tematizando o caos na segurança pública e um
chamaram de “dialética da produção e redução” esgarçamento radical da ordem moral: fotos
da desordem: bolhas digitais que, por um lado, de policiais, bandidos ou inocentes mortos, ví-
produziam entropia (desordem informacional) deos explícitos de violência e ofensas sendo co-
para, por outro, oferecer um discurso agrega- metidas (espancamentos, assaltos, vandalismo,
dor do tipo populista que prometesse imprimir tortura, estupros) e narrativas apócrifas sobre
ordem à desordem. crimes noticiados na imprensa ou nas pró-
prias mídias sociais, sobre justiça sendo feita
ou não.10 Outra linha que chama atenção diz
5. Des/ordem e populismo respeito a conteúdo pornográfico: fotos e ví-
deos de nudes ou sexo explícito, links para sites
de pornografia ou prostituição online, às vezes
O caso brasileiro é, em muitos sentidos, compartilhados por celulares registrados no es-
quase um exemplo de livro-texto da teoria de trangeiro. Um terceiro tipo relativamente fre-
Laclau e Mouffe. Nos últimos anos, o processo quente refere-se a fraudes: usuários oferecendo
de transformação de uma multidão insatisfeita a venda desde dinheiro e cartões de crédito fal-
heterogênea, que se formou espontaneamente sos até carteiras de motorista, diplomas escola-
em reação a uma sensação difusa de crise e de- res e outros documentos fraudados. É comum
sordem, no “povo” que formaria a base eleitoral que as próprias regras dos grupos tragam in-
da liderança que alegava vir de fora do sistema terdições a esse tipo de conteúdo – outro forte
108
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
enquanto a liderança emergente da versão bra- 2019b). Estas últimas foram, pelo contrário,
sileira da alt right americana passou a ser vista amplamente mobilizadas pelo mecanismo po-
como representando o povo, os de baixo (atra- pulista para operar como o inimigo, ameaça ou
vés de símbolos recorrentes na memética como elite corrupta: a “ditadura gayzista”, as “femi-
o relógio Casio e a caneta Bic). Essa mesma ca- nazis”, o MST “terrorista”, o movimento negro
deia de equivalência foi progressivamente se que se vitimiza e divide a sociedade. O que
estendendo, por exemplo, para o globalismo eram minorias oprimidas passaram a ser vis-
enquanto plano de dominação mundial e des- tas com fonte de opressão e de cerceamento
truição da soberania dos estados-nação por de liberdades, ou como segmentos indevida-
uma suposta “elite global” liderada por George mente privilegiados – através de significan-
Soros. tes vazios frequentes na memética como o da
Figura 12. Líder é como o “povo”: “bolsa” (-travesti, -prostituta, -presidiário) ou,
humilde e sem preconceitos. O inimigo quando a mira estava voltada para artistas, a
(a “esquerda”) é elite hipócrita. “Lei Rouanet”. Construiu-se, em oposição a essa
concepção do inimigo, uma cadeia de equiva-
lência articulada através de identidades vagas
Outra inversão bem-sucedida partiu do anti- como indivíduos, cristãos, trabalhadores ou
-politicamente correto, que já vinha ganhando “patriotas”, colocados como preteridos ou opri-
tração no mundo online (Gerbaudo, 2018) con- midos pela militância pelo direito à diferença.
trariando, e ao mesmo tempo espelhando, a O modo como o eleitorado feminino foi mo-
militância feminista, LGBTIQ e outras pautas bilizado pela campanha Bolsonaro na reta final
identitárias. A campanha Bolsonaro construiu do primeiro turno foi particularmente instru-
parte da sua base eleitoral mobilizando indi- tivo da maneira como o mecanismo populista
víduos e grupos subalternos que não se reco- operacionalizou a sobreposição, descrita por
nheciam através da gramática das políticas de Douglas (2002), entre classificações simbóli-
reconhecimento (Kalil et al., 2018; Cesarino, cas baseadas em noções de pureza e impureza
110
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
gramática foi extensivamente utilizada para Outro ponto diz respeito à inversão que se in-
endereçar outros domínios, como na série de corpora na própria figura da liderança carismá-
memes abaixo: tico-populista – associada por Tania Luhrmann
(2016), em uma análise da eleição de Trump, à
questão também douglasiana do tabu. Embora
o carisma pessoal de Jair Bolsonaro destoe de
lideranças populistas históricas que depen-
diam pesadamente de seus dotes e personali-
dades individuais, como Perón ou mesmo Lula
(Cesarino, 2006), ele logrou projetar para a sua
base a imagem de um homem simples e ho-
nesto. O que a oposição via como despreparo e
truculência, longe de serem entendidos como
defeitos por seus eleitores, também passaram
a ser lidos nessa chave, como evidências de al-
guém do povo que é igual a eles. Em outras
palavras, o que eram vícios no contexto pré-
-populista (falta de formação acadêmica, ex-
Figura 16. Ordem / periência de gestão, conhecimento especiali-
desordem; limpeza / zado, trato e linguagem formal, participação
bagunça; linearidade em debates qualificados) tornaram-se virtudes,
/ confusão; segurança e vice-versa. Ou, na versão teológica dessa in-
/ perigo; verde e versão presenteada por seu apoiador, o pastor
amarelo / vermelho evangélico Silas Malafaia, no primeiro ato pú-
e preto; 17 / 13. blico de Bolsonaro após o resultado eleitoral
(um culto na Assembleia de Deus Vitória em
Cristo): “Deus não escolhe os capacitados; ca-
pacita os escolhidos”.
112
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
Por fim, o carisma pessoal de Jair Bolsonaro parece ser central para compreender o apelo
também foi propagado por meio de uma versão e sucesso da nova direita não apenas no Brasil,
neoliberal de culto à personalidade, encapsu- mas globalmente. Isso aponta para uma ten-
lada na alcunha de “mito”. No mundo online, a dência emergente fundamental, e provavel-
imagem do candidato (e de Sergio Moro) figu- mente duradoura: a redefinição do que se en-
rava em vídeos e memes, ou em versões cartu- tende por política na era digital.
nísticas, misturada a de figuras heroicas como
super-heróis ou soldados. Durante a campanha,
Jair Bolsonaro tornou-se, num sentido muito 6. Considerações
concreto, uma marca, se transfigurando espe- conclusivas: redefinindo a
cialmente em camisetas vendidas em camelôs,
lojas e websites. política na era digital
Depois da eleição, essa tendência se desdo-
braria numa verdadeira indústria de empreen-
dedores digitais de toda sorte. Para muitos dos No campo da antropologia digital, uma pro-
militantes pró-Bolsonaro que tentam fazer di- blemática frequente diz respeito à confusão de
nheiro com canais do YouTube (que explodi- fronteiras que tem acompanhado a digitaliza-
ram nos grupos de WhatsApp após a eleição) ção crescente da vida em todas as suas face-
e múltiplas outras formas de monetização de tas, desde as mais públicas até as mais íntimas
cliques, palestras, livros e master classes, ati- (Horst & Miller, 2012). Com efeito, concluo su-
vismo político e empreendedorismo se mis- gerindo que, na campanha de 2018, houve uma
turam. Longe de ser incidental, esse aspecto diluição ainda mais acentuada das fronteiras
entre a esfera político-eleitoral e outros domí-
nios da vida, como o culto às celebridades, pa-
rentesco, religião, indústria do entretenimento
(música, filmes, séries), esportes (futebol, lutas,
clubes de tiro) e, em especial, a linguagem e as
dinâmicas identitárias e de sociabilidade pró-
prias das redes sociais. É frequente ouvir de
eleitores de Jair Bolsonaro que eles não se in-
teressavam por política até ele se candidatar à
presidência – mas isso porque sua estratégia
de campanha digital transformou radicalmente
o que se entendia por política até então. O ca-
risma digital e a simplicidade discursiva tanto
da memética quanto do discurso populista, que
foram a marca da sua campanha, fizeram com
que qualquer um se sentisse à vontade e en-
corajado a participar da política nesses novos
termos. O que era até então considerado a nor-
matividade político-eleitoral foi ou relegado ao
Figura 17. Do meme para o domínio do inimigo (a “velha política”) ou des-
offline: empreendedorismo digital contado como irrelevante ou obsoleto (debates
e a “marca” Bolsonaro. enfadonhos com outros candidatos, planos de
113
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
crescente da polí-
tica tem levado o ci-
dadão comum a se
sentir cada vez mais
qualificado para dar
uma opinião autori-
zada sobre os fatos –
o que converge com
a ascensão de epis-
temologias “popula-
res” em contextos de
pós-verdade e crise
do sistema de peritos
Figura 19. Os “marqueteiros do Jair” durante a campanha (Cesarino, no prelo
eleitoral se transformam, após a posse, na “base parlamentar” do a; Cesarino, no prelo
presidente, representada por símbolos da seleção de futebol. b).11
Finalmente, vale
destacar que um dos
podia ocasionalmente se converter em violên- golpes de mestre da campanha Bolsonaro foi
cia verbal ou mesmo física. A atitude de violên- incorporar como seu símbolo maior a camisa
cia sublimada em jocosidade típica do ethos fu- canarinho, já apropriada para a direita pelo an-
tebolístico consolidou-se em alguns dos slogans tipetismo dos anos anteriores. Desde o início, a
populares da campanha do PSL, como “é bom campanha do PSL contrapôs o verde-e-amarelo
jair se acostumando” e “chora que dói menos”. ao vermelho do PT, do MST, do comunismo,
Após o resultado eleitoral, não foram poucas como se o que ele representasse não fosse parte
as menções na mídia a analogias entre as come- legítima da nação brasileira: “nossa bandeira
morações da vitória de Bolsonaro com uma vi- nunca será vermelha”. “Esquerdistas” eram re-
tória final da seleção (inclusive, devido à coin- petidamente exortados a deixar a nação, para
cidência das cores, alguns dos fakes que mais Cuba ou para a Venezuela. Isso ficou claro es-
circularam traziam fotos de agremiações de rua pecialmente no segundo turno, quando a cam-
durante a copa como se fossem manifestações panha Haddad substituiu o vermelho por uma
a favor do candidato). Proliferaram acusações simbologia verde, amarela e azul – o que foi
de que os perdedores estariam “torcendo con- alvo de intensa ridicularização no WhatsApp
tra” o novo governo, negando assim à oposição por parte dos eleitores de Bolsonaro, que já
seu papel legítimo em um regime democrá- se consideravam donos da simbologia nacio-
tico. Após a eleição, o ritmo de mobilização in- nal. Como vimos aqui, a simbologia das cores
tensa nas redes sociais, inclusive no WhatsApp, e outros elementos estéticos estão longe de ser
a princípio se arrefeceu (Santos et al., 2019; apenas cosméticos, visto que a mobilização do
Nemer, 2019). Porém, houve uma reorganiza- tipo populista opera em larga medida através
ção no sentido de manter redes de “informação” de significantes vazios, no plano subconsciente
sobre o novo governo, como ocorre ao longo dos afetos. Dentro de um quadro cismogênico
do ano com as mídias permanentes que infor- avançado como foi o caso da campanha de 2018,
mam e debatem os campeonatos e a situação a simples visão de uma blusa amarela ou ver-
dos clubes. Como no futebol, a digitalização melha era capaz de evocar raiva ou indignação,
115
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
como camisas de times adversários antes ou da Cambridge Analytica, Steve Bannon, e pos-
depois de um clássico muito disputado. sivelmente também por técnicas de marketing
Diante da radicalidade da ruptura populista digital e táticas militares de guerra híbrida que
observada nas eleições brasileiras de 2018, é ecoam muitos dos padrões metacomunicativos
preciso concluir apontando duas recursivida- identificados acima (Kalil et al., 2018; Leiner &
des importantes implicadas na digitalização Dominici, 2019).
crescente da política. Em primeiro lugar, há, Em segundo lugar, como outros também têm
na campanha digital de Bolsonaro e em ou- notado, é preciso reconhecer a profundidade
tras como a de Trump, uma recursividade evi- dos efeitos da digitalização da política aponta-
dente entre teoria e prática do populismo. Em dos aqui. A arquitetura digital das mídias so-
outras palavras, a notável regularidade e con- ciais, conforme ela se configurou nos termos
sistência dos padrões discursivos do tipo po- dos modelos de negócios das grandes empre-
pulista observados no universo de conteúdo sas do setor (Marres, 2018; Santos et al, 2019),
digital analisado indicam, mais do que a capa- opera por meio de ciclos cibernéticos cada vez
cidade da teoria de “explicar” a empiria, que mais capilares que incidem de modo profundo
é a prática político-eleitoral que vem sendo sobre as subjetividades, afetos e visões de
moldada por algum tipo de “ciência do popu- mundo dos usuários (Mirowski, 2019; Marres,
lismo” (Cesarino, 2019a). Se ela passa especifi- 2018; Gerbaudo, 2018; Malini, 2016). Neste sen-
tido, o fato de o mecanismo populista conti-
nuar operando mesmo após a campanha pode
produzir efeitos duradouros sobre as sensibili-
dades políticas dos cidadãos, e por conseguinte,
sobre os próprios alicerces do estado democrá-
tico de direito tal qual o conhecemos – que,
como notou Mouffe (2000), depende de um de-
licado equilíbrio e sistema de pesos e contrape-
sos entre os polos opostos da institucionalidade
e da soberania popular.
Kalil, I. (2018) O que são e no que acreditam Malini, F., Ciarelli, P. & Medeiros, J. (2017). O
os eleitores de Jair Bolsonaro. Relatório sentimento político em redes sociais:
do Núcleo de Etnografia Urbana e big data, algoritmos e as emoções nos
Audiovisual (NEU) da FESPSP. Acessado tweets sobre o impeachment de Dilma
em 18 de setembro de 2019, disponível Rousseff. Liinc em Revista, 13(2), 323-342.
em https://www.fespsp.org.br/upload/ Marres, N. (2018). Why we can’t have our facts
usersfiles/2018/Relat%C3%B3rio%20para%20 back. Engaging Science, Technology and
Site%20FESPSP.pdf Society, 4, 423-443.
Kantorowicz, E. (1998). Os dois corpos do rei: um Mazzarella, W. (2019). The anthropology
estudo sobre a teologia política medieval. São of populism: beyond the liberal
Paulo: Companhia das Letras. settlement? Annual Review of Anthropology,
Karczeski, L. (2018). Mulheres em (des)associação: 48, 45-60.
um estudo antropológico sobre os mecanismos Mirowski, P. (2019). Hell is truth seen too late.
de formação das “bolhas” pró e contra Boundary 2, 46(1), 1-53.
Bolsonaro no Facebook. Trabalho de Mouffe, C. (2000). The democratic paradox.
Conclusão de Curso, Ciências Sociais, Londres: Verso.
UFSC. Nemer, D. (2018). Three types of WhatsApp
Kuhn, T. (2006). A estrutura das revoluções users getting Brazil’s Jair Bolsonaro
científicas. São Paulo: Perspectiva. elected. Acessado em 24 de setembro,
Laclau, E. (2005). On populist reason. Londres: disponível em https://www.theguardian.
Verso. com/world/2018/oct/25/brazil-president-jair-
Leiner, P. & Dominici, T. (2019). Caminho de bolsonaro-whatsapp-fake-news
Bolsonaro ao poder seguiu “lógica da Nemer, D. (2019). A radicalização
guerra”, diz antropólogo que estuda invisível da direita brasileira no
militares. Acessado em 18 de setembro WhatsApp. Acessado em 24 de
de 2019, disponível em https://apublica. setembro, disponível em https://www.
org/2019/04/caminho-de-bolsonaro-ao-poder- huffpostbrasil.com/entry/whatsapp-bolsonaro_
seguiu-logica-da-guerra-diz-antropologo-que- br_5d5b5487e4b0d1e11366e0a9
estuda-militares/ Ortellado, P. & Ribeiro, M. (2018). A
Lemos, A., Hous, D. & Passos, P. (2018) Sem campanha de Bolsonaro no Facebook:
rastro, WhatsApp pauta eleição de 2018. antissistêmica e conservadora, pouco
Acessado em 18 de setembro de 2019, liberal e nada nacionalista. Monitor
disponível em https://www1.folha.uol.com. do Debate Político no Meio Digital, Nota
br/poder/2018/10/sem-rastro-whatsapp-pauta- Técnica 3, 25 de setembro.
eleicao-de-2018.shtml Pasquini, P. (2018). 90% dos eleitores de
Luhmann, N. (1995). Social systems. Stanford: Bolsonaro acreditaram em fake news,
Stanford University Press. diz estudo. Acessado em 18 de setembro
Luhrmann, T. (2016). The paradox of de 2019, disponível em https://www1.folha.
Donald Trump’s appeal. Acessado em uol.com.br/poder/2018/11/90-dos-eleitores-de-
18 de setembro de 2019, disponível bolsonaro-acreditaram-em-fake-news-diz-estudo.
em https://www.sapiens.org/culture/ shtml
mary-douglas-donald-trump/
118
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 COMO VENCER UMA ELEIÇÃO SEM SAIR DE CASA: LETÍCIA
PÁGINAS 91 A 120 A ASCENSÃO DO POPULISMO DIGITAL NO BRASIL CESARINO
Recebido em 23/06/2019
Aceito em 18/12/2019
121
ARTIGO
Responsabilidade
civil pelo uso
de sistemas
de inteligência
artificial:
em busca de um
novo paradigma
Enrico Roberto
Pesquisador do InternetLab e do Lawgorithm.
Doutorando em direito pela Universidade de
São Paulo.
122
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
Responsabilidade
civil pelo uso
de sistemas de
inteligência artificial:
em busca de um
novo paradigma
Palavras-chave Resumo
responsabilidade No presente artigo, buscamos endereçar o pro-
civil / inteligência blema de como o direito civil poderia respon-
artificial / der a casos de danos causados por sistemas de
aprendizado de inteligência artificial. Para tal, traçamos uma
máquina / risco definição de sistema de inteligência artificial
com foco em uma de suas técnicas de imple-
mentação, o aprendizado de máquina. Tais
sistemas são definidos, portanto, por sua ca-
pacidade de autoaprendizado e de tomar deci-
sões autônomas, sendo ainda desenvolvidos de
forma difusa, i.e., por autores diversos e po-
tencialmente anônimos, e em uma “black box”,
i.e., de forma que seu funcionamento interno
não possa ser satisfatoriamente esclarecido. A
partir do enfoque da “interação homem-má-
quina”, ou seja, da constatação de que sistemas
de inteligência artificial são utilizados e desen-
volvidos em complemento à ação humana, rea-
lizamos breve ensaio sobre a subsunção de re-
Artigo desenvolvido gras brasileiras de responsabilização subjetiva e
em programa de objetiva a tais sistemas, ressaltando os desafios
pós-graduação que sua aplicabilidade encontra em diferentes
mediante bolsa de situações. Por fim, realizamos exposição não
estudos oferecida exaustiva a respeito das iniciativas legislativas
pela CAPES no mundo sobre o tema.
123
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
Keywords Abstract
civil liability / In this article, we seek to address the pro-
artificial intelligence blem of how civil law could respond to cases
/ machine learning / of damage caused by artificial intelligence sys-
risk tems. For this, we draw a definition of arti-
ficial intelligence systems focusing on one of
its implementation techniques, machine lear-
ning. Such systems are defined, therefore, by
their capacity for self-learning and autono-
mous decision-making. Besides that, we note
how their development takes place diffusely,
i.e., by diverse and potentially anonymous au-
thors, and in the scope of a black box, i.e., so
that their internal functioning can not be satis-
factorily clarified. From an approach which we
will call the “man-machine interaction”, that
is, from the observation that artificial intelli-
gence systems are used and developed in addi-
tion to human action, we conduct a brief essay
on the applicability of Brazilian rules on sub-
jective and objective liability to such systems,
stressing the challenges that are posed to such
applicability in different situations. Finally, we
make a non-exhaustive exposition of the legis-
lative initiatives on the subject taking place in
the world.
124
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
Para o desenvolvimento das ideias do ar- dos quais se pode pensar em inteligência artifi-
tigo que se segue, em especial o mencionado cial. Especificamente, o termo pode referir-se a
exercício de subsunção normativa, utilizare- máquinas capazes de: (i) pensar como humanos;
mos como ponto de partida, para maior clareza (ii) agir como humanos; (iii) pensar racional-
e concretude nos raciocínios apresentados, o mente ou (iv) agir racionalmente. Na esteira da
primeiro caso apontado acima, o do atropela- possibilidade de “agir racionalmente”, elabora-
mento de Elaine Herzberg por um carro autô- ram a hoje frequentemente utilizada definição
nomo da Uber no Arizona. No entanto, dada a de agente racional: “aquele que age de forma a
mencionada insuficiência de tal material para alcançar o melhor resultado ou, quando há in-
estudos empíricos aprofundados e a proposta certeza, o melhor resultado esperado” (Russel
desse artigo de apresentar caminhos pretensa- & Norvig, 2016, p. 2, tradução livre).
mente aplicáveis a sistemas de inteligência ar- Trata-se, como se vê, de uma definição cen-
tificial no geral, conforme descrito na formu- trada na ideia de “resultado” e na possibilidade
lação de nosso problema acima, procuraremos de alcançá-lo de uma forma ou de outra. No en-
a todo momento “universalizar” as argumenta- tanto, como bem apontado por Scherer (2015, p.
ções trazidas no contexto desse caso específico. 361), a dificuldade de se definir concretamente
um sistema a partir de tais noções, em vista da
amplitude de significados possíveis para “resul-
2. Inteligência artificial: tado” ou “melhor resultado esperado”, tem por
introdução ao objeto corolário a dificuldade de fixação do termo em
uma tecnologia objetivamente delimitada – e,
por consequência, sua limitada aplicabilidade a
questões regulatórias. Em verdade, conforme
passamos a elucidar em seguida, buscamos nos
2.1. Sistemas focar para os fins deste artigo em um dos tipos
de inteligência específicos de inteligência artificial: os algorit-
mos de machine learning, ou aprendizado de má-
artificial quina. Trata-se de vertente da inteligência ar-
tificial que, principalmente com o aumento na
Embora uma definição precisa e abrangente quantidade de bases de dados disponíveis e na
de inteligência artificial possa desempenhar capacidade computacional dos microchips de si-
um papel essencial em muitas questões jurídi- lício, viu impressionante desenvolvimento nos
cas e éticas, não é particularmente necessária últimos anos (Alpaydin, 2016, p. 1).
ou desejável para os fins deste artigo. A des- Assim, no âmbito desta exposição, um “sis-
peito disso, importante notar, a título de es- tema de inteligência artificial” é definido como
clarecimento, que “inteligência artificial” é um um software que possui capacidades de autoaprendi-
termo que, desde sua concepção, nos anos 1950, zagem e pode, portanto, tomar decisões autônomas
pressupõe diferentes definições e abordagens, independentes. Como todo software, deve encon-
cada qual em seus diferentes contextos. Tais trar-se armazenado em algum hardware, impor-
definições e abordagens, muitas vezes focadas tância do qual variará entre os diferentes sis-
na capacidade de emular uma ou outra capaci- temas de inteligência artificial (por exemplo, a
dade humana, foram celebremente estrutura- importância do hardware para delimitar o que
das por Russel e Norvig (2016, p. 2), que identi- constitui um “carro autônomo” é maior do que
ficaram quatro pontos focais diferentes a partir para delimitar o que constitui um “assistente
126
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
humanos. Com isso, podemos concluir que, na 2017, p. 16), sistemas de inteligência artificial
maior parte do tempo, ao se falar de ações pre- também causam – e causaram – danos. O caso
tensamente autônomas, estará ocorrendo, em de Elaine Herzberg é paradigmático, mas, do
realidade, uma interação homem-máquina. ponto de vista da responsabilidade subjetiva, rela-
Essa observação é de suma importância jurí- tivamente simples. Seria necessário averiguar,
dica. Nesses casos, será sempre importante esta- na prática, se houve ação ou omissão voluntá-
belecer os limites e possibilidades de tal intera- ria, negligência ou imprudência nos termos do
ção: é claro que, em muitas situações, o humano Código Civil – por parte de algum ser huma-
responderá nos limites de sua esfera de controle e das no.5 Nesse caso, o motorista “reserva”, um dos
ações que tomou ou deixou de tomar. A automação polos humanos da interação homem-máquina,
de parte de suas ações não deve afastar o sim- poderia ser culpado: será que poderia ter inter-
ples fato de que o homem deve responder, sub- vindo antes do acidente, e só não o fez por ne-
jetivamente, nos limites de sua imputabilidade. gligência ou imperícia? O teste de subsunção
Assim, na terminologia utilizada por este artigo, nesse caso já é conhecido do direito há séculos,
fica claro que o humano responderá no limite por mais que os fatos sejam novos, e não cabe
de sua atuação no “polo humano” da interação aos nossos propósitos delimitá-lo aqui.
homem-máquina. Nesse ponto, relevante notar A responsabilidade subjetiva também poderia
que grande parte da legislação atualmente em recair sobre os próprios produtores ou outros
discussão no mundo para administrar os pro- envolvidos na cadeia de produção do veículo,
blemas resultantes da utilização de carros autô- naturalmente. Seria o caso de peças montadas
nomos procura, mesmo que inadvertidamente, com imperícia, falta de vistorias legal ou tec-
criar limites e deveres para o “polo humano” nicamente necessárias, etc. Pertinente notar
da interação, conforme veremos adiante. que a produtora do LiDAR (radar de reconhe-
Se de um dos lados da régua da “interação cimento de imagens do carro autônomo) ins-
homem-máquina” se encontra a atuação hu- talado no Volvo do caso do Arizona já alegou
mana, deve-se considerar, juridicamente, ana- sua falta de culpa pela tragédia (Felton, 2018).
lisá-la exatamente sob as regras da responsa- Nesse caso, a averiguação de responsabilidade
bilidade subjetiva, aquela efetivamente focada subjetiva dos produtores, dada a complexidade
no sujeito de direito. A ela contraporemos, nos do produto e da cadeia produtiva, seria eviden-
itens seguintes, a responsabilidade objetiva, temente bastante dificultosa (não é à toa que o
aquela cujo foco é o objeto, como tentativa de Código de Defesa do Consumidor estabelece a
abordagem do outro polo da interação: a do responsabilidade solidária entre os participan-
“objeto máquina”. tes da cadeia de produção). Nos casos de carros
autônomos e de outros sistemas de inteligência
artificial, as dificuldades multiplicam-se prin-
3. O polo humano cipalmente em vista da difusão de seus pro-
da interação: dutores e pela black box inerente a esse tipo de
tecnologia, conforme apontado acima.
responsabilidade A discussão sobre responsabilidade subje-
subjetiva? tiva de produtores de sistemas de inteligência
artificial tem, inclusive, interessante intersec-
ção com as polêmicas sobre viés algorítmico:
Mesmo sendo, em alguns casos, menos pro- a discussão sobre vieses inerentes às decisões
pensos a acidentes do que humanos (Smith, de algoritmos de machine learning, advindos
130
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
constituiria um defeito? O Art. 12 do CDC esta- produto com defeito e este defeito ter
belece que “o produto é defeituoso quando não causado dano ao consumidor (...)?”
oferece a segurança que dele legitimamente se
espera”.
A dualidade de argumentos imediatamente Responde aos questionamentos, depois, afir-
se apresenta. Por um lado, contra a aplicação mando haver um “sistema misto” no Brasil,
do CDC pode-se dizer, numa perspectiva ma- onde todos os fundamentos se misturam.
croscópica, que o nível de segurança esperado Ressalta, no entanto, que o dever de segurança
de sistemas de inteligência artificial jamais será é “de todos os fornecedores que ajudam a in-
absoluto; sempre haverá a chance de aciden- troduzir (atividade de risco) o produto no mer-
tes, mesmo que em quantidade menor do que cado”, mas que “só haverá violação deste dever,
a esperada de condutores humanos. E, com nascendo a responsabilidade de reparar os
efeito, é difícil afirmar que uma decisão au- danos, quando existir um defeito no produto.
tônoma por parte de um sistema de inteligên- (...) No sistema do CDC, pode haver o dano e
cia artificial constitui um “erro”. Em realidade, o nexo causal entre o dano e produto (...), mas
tomar decisões autônomas com um certo grau de se não existir o defeito, não haverá obrigação
risco é um efeito esperado e desejado desse tipo de reparar.
de sistema, sendo a existência de danos poten- Se por um lado se pode dizer que houve a
ciais em tais decisões amplamente reconhecida criação de um risco com a introdução do sis-
e tecnicamente impossível de se afastar, con- tema no mercado, seria difícil afirmar, em di-
forme vimos acima. Por outro lado, pode-se versos casos, que uma decisão autônoma to-
dizer que o CDC, na verdade, faz referência à mada por uma máquina deve ser considerada
perspectiva microscópica: refere-se à expecta- um defeito, exatamente por se tratar de carac-
tiva de segurança de um produto individual- terística desejada e esperada desse tipo de tec-
mente considerado. E, é claro, espera-se que nologia. Essa argumentação é tão mais forte
carros autônomos não atropelem pedestres, ou, quanto mais autônoma e independente de in-
de forma geral, que sistemas de inteligência ar- terferência humana for a ação tomada pelo
tificial não causem danos. sistema.
A depender da maneira como se interpreta De qualquer maneira, se entendermos que
a finalidade dessas normas de responsabiliza- o CDC é aplicável ao caso,8 a discussão preci-
ção objetiva, pode-se decidir contra ou a favor saria se voltar, neste momento, à apuração da
da aplicação do CDC para tais casos. Nas pala- conduta da própria pedestre, para averiguar se,
vras de Marques, Benjamin e Miragem (2013, nos termos dessa lei, a culpa foi “exclusiva-
p. 381): mente do consumidor ou de terceiro”. Tratar-
se-ia de excludente de responsabilidade obje-
Mister perguntar inicialmente qual seria tiva sob o CDC, nos termos de seu Art. 12, §3º,
o fundamento dessa responsabilidade III. Percebe-se aqui que essa apuração de res-
[por defeito no produto]. Seria a culpa ponsabilidade não é a mesma que caberia caso
do fornecedor ao não agir com a o veículo fosse conduzido por um ser humano,
diligência necessária (...)? Seria o risco sujeito às regras de responsabilização subje-
criado pela atividade dos fornecedores tiva do Código Civil, conforme visto acima. Se
(...)? Ou teria esta responsabilidade fosse esse o caso, a inexistência de negligência
como base o resultado objetivo da ação ou imperícia por parte do motorista seria sufi-
do fornecedor, de ter introduzido um ciente para o afastamento da responsabilidade;
133
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
no caso do CDC, somente a culpa exclusiva da Gaak mencionado acima, por exemplo. Caso se
pedestre (ou outro terceiro) afastaria a respon- concretize um mundo de open robotics e de pro-
sabilidade daquele que introduziu o sistema de dução robótica difusa, espera-se a criação de
inteligência artificial no mercado. riscos sociais que vão muito além daqueles en-
Com isso, a lei atual, quando aplicada aos dereçados pela proteção consumerista.
carros autônomos, parece tender a responsa- A black box e a produção difusa trazem ainda
bilizar a empresa – mesmo que tal aplicabi- outros desafios nesse contexto. O primeiro e
lidade seja em alguns aspectos questionável. mais patente é a questão da produção de prova.
A responsabilização da empresa por acidentes Para os produtores do sistema de inteligência
causados por carros autônomos, de fato, é um artificial, caso se encontrem sujeitos ao CDC
efeito que vem sendo largamente esperado e e, com isso, à inversão do ônus da prova, a
explorado: conforme diversos autores vêm no- black box pode levar involuntariamente a um
tando, a implementação em massa de tecno- aumento desmedido de sua responsabilidade,
logias autônomas provavelmente resultará, na já que eles próprios não poderiam provar que
prática, em um “deslocamento de responsabilidade” a ação tomada pelo sistema não se tratou de
dos motoristas, que passam a ser inexistentes um defeito ou vício, por mais que seja espe-
ou com esfera de atuação reduzida, aos pro- rado que algumas ações autônomas possam
dutores, que responderão, objetivamente, sob causar dano. E, além disso, de forma geral, a
regras normalmente voltadas à proteção con- limitação do grau de culpa subjetiva dos en-
sumerista. Nesse sentido, por exemplo, argu- volvidos em qualquer tal questão envolvendo
mentam Bodungen e Hoffmann (2016, p. 503); sistemas de inteligência artificial ficaria seria-
Smith (2017, p. 1777); Beiker e Calo (2010); mente prejudicada, o que potencializaria o des-
Boeglin (2015, p. 172); Horner e Kaulartz (2016, locamento da responsabilidade aos produtores
p. 22); e Jänich, Schräder e Reck (2015, p. 313). conforme apontado anteriormente. Os tribu-
Os efeitos socioeconômicos desse desloca- nais e o poder público, quando depararem-se
mento são desconhecidos. Por um lado, argu- com tais questões, deverão levar em considera-
menta-se, o aumento dos custos e riscos que ção tal impossibilidade técnica no sopesamento
devem ser assumidos pelas empresas para fazer de suas decisões.
frente a danos inevitáveis pode inibir a inova-
ção na área e evitar a entrada de concorrentes
menores no mercado. Por outro, seria inadmis- 4.3. Código Civil ou
sível que não houvesse responsáveis por tais aci- um novo tipo de
dentes, e parece justo que seja a empresa – em
consonância com o fato de ser decisão comer- responsabilidade
cial sua a implementação do sistema – a encar- objetiva
regada de indenizar civilmente os danos a que
deu causa. Nos casos não abrangidos pela responsabi-
Além do desafio imposto pela definição de lidade consumerista, poderíamos argumen-
“defeito” e sua aplicabilidade à inteligência arti- tar pela aplicabilidade do parágrafo único do
ficial, dado o fato de que sua autonomia é dese- Art. 927 do Código Civil, que estabelece que
jada, outro importante desafio se impõe à apli- “haverá obrigação de reparar o dano, inde-
cação do CDC nesses casos: especificamente, o pendentemente de culpa, (...) quando a ativi-
fato de que, em muitos casos, sequer se poderá dade normalmente desenvolvida pelo autor do
falar em relação de consumo – é o caso do robô dano implicar, por sua natureza, risco para os
134
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
direitos de outrem.” De fato, parece que, na si só. Até mesmo a criação de um novo tipo
falta de leis específicas para a inteligência ar- de capacidade ou personalidade jurídica para
tificial, essa normativa encontraria aplicabili- os próprios sistemas de inteligência artificial
dade em diversas situações. vem sendo defendida, sob diferentes moldes
Mesmo em sua simplicidade normativa, (Teubner, 2018).
no entanto, não se afastam todos os desafios
– nesse caso, especificamente, pela delimita-
ção em diversos momentos de quem seria o 5. Legislação existente
autor da atividade desenvolvida. Como vimos,
o sistema não somente agirá de forma inde-
pendente, mas também, muitas vezes, será im- Sob a ótica da “interação homem-máquina”,
possível estabelecer quem especificamente agiu é possível captar o que muitas leis em discussão
de forma a resultar em determinado dano. Isso vêm fazendo, mesmo que inadvertidamente:
não só por conta da black box da inteligência estabelecendo limites e obrigações de atuação
artificial, mas também pela absoluta difusão de para empresas e motoristas de carros autôno-
seus desenvolvedores. mos, o “polo humano” da interação. De forma
A realidade é que será impossível apontar geral, deve-se ressaltar, o que se observa das
uma única pessoa que tenha dado causa a de- iniciativas regulatórias para a inteligência arti-
terminado dano, e que caberá ao legislador ou ficial ao redor do mundo é que vêm se focando
à jurisprudência delimitar o conceito de “ati- na questão dos carros autônomos, mesmo que
vidade normalmente desenvolvida” para o caso com algumas importantes exceções.
de implementação de sistemas de inteligência A legislação do estado da Califórnia, por
artificial. Portanto, postos tais desafios, pare- exemplo, é digna de nota: obriga a empresa
ce-nos que a responsabilidade da empresa sob produtora de um carro autônomo a garantir o
o CDC ou do “autor” sob o Art. 927 do Código respeito às regras de trânsito por seus veícu-
Civil parece ser solução meramente temporá- los, assim como regras de conduta para mo-
ria – não pode ser considerada remédio final toristas “reserva” e motoristas remotos, entre
para os riscos criados por decisões autônomas outras. Assim, mesmo que deixe aberta para
tomadas por sistemas de inteligência artificial a empresa a forma de cumprir com a regu-
no geral. lamentação, cria deveres de conduta para os
Para administrar essa nova categoria de humanos envolvidos na atividade. O Arizona,
risco social, alguns autores têm defendido, por por outro lado, exige mera licença veicular
exemplo, um novo tipo de responsabilidade objetiva, por parte das empresas, não estabelecendo ne-
baseada primordialmente na noção de “criação nhuma outra obrigação. É provavelmente por
de um perigo” ou de “implementação de um esse posicionamento, situado em um dos extre-
robô” (Spindler, 2015, p. 766). Inspiram-se e mos da (pretensa) régua “pró-inovação vs. se-
usam como analogia, por exemplo, a responsa- gurança pública”, que seu território vem sendo
bilidade civil pelo comportamento de animais, extensivamente utilizado para esse tipo de teste
a responsabilidade de mandantes pelos atos (Hawkins, 2018). Recomendações do órgão de
dos mandatários e até mesmo, em referência trânsito alemão, o Bundesministerium für Verkehr
ao direito romano antigo, a responsabilidade und digitale Infrastruktur (Redaktion beck-ak-
por atos de escravos (Wilzig, 1981, p. 442). A tuell, 2017), tomam linhas similares: estabe-
exploração minuciosa dessas propostas e seus lecem regras de atuação e de responsabiliza-
possíveis resultados demandaria uma tese por ção de motoristas reserva e das empresas que
135
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
Geral de Proteção de Dados brasileira (LGPD) causados por sistemas de inteligência artificial?” sob
(Brasil, 2018) e a Regulação Geral de Proteção os princípios de responsabilidade civil do di-
de Dados da União Europeia (RGPD) (European reito romano germânico e com foco na lei bra-
Union, Parliament & Council, 2016), na qual sileira. A partir de observações concernentes
aquela se inspirou. Por se tratar a inteligên- ao caso do mencionado atropelamento, expan-
cia artificial de uma (importante) técnica de dimos seus raciocínios para expor, também, as
processamento de dados, como apontamos ex- principais questões apresentadas pela discussão
tensivamente aqui, natural que tais normas sobre a responsabilidade de sistemas de inteli-
encontrem aplicabilidade a diversos aspectos gência artificial no geral.
dessa tecnologia. Assim, mesmo que a regu- Para tal, partiu-se de uma definição de sis-
lação da proteção de dados não pretenda re- tema de inteligência artificial focada em sua ca-
ferir-se exclusivamente à inteligência artifi- pacidade de autoaprendizado. Para nossos fins,
cial, seus princípios e direitos têm importante portanto, fala-se desse tipo de sistema quando
repercussão no desenvolvimento e uso desse este apresentar a possibilidade de realizar infe-
tipo de tecnologia. Especificamente, fazemos rências não esperadas e não pré-programadas
questão aqui de mencionar o (i) “direito à re- a partir de um conjunto de dados. Esta capaci-
visão humana” sobre decisões tomadas unica- dade é possibilitada tecnicamente pelas técni-
mente com base em tratamento automatizado cas de machine learning, ou aprendizado de má-
de dados, direito estabelecido pelo RGPD e ori- quina, e dela decorre a capacidade de encontrar
ginalmente também pela LGPD (limitado neste soluções – ou decisões – de forma não previ-
caso, no entanto, após um veto presidencial), e sível e não controlada pelos programadores ou
(ii) o “direito à explicação”, segundo o qual o usuários do sistema; decisões, portanto, inde-
titular de dados tem o direito de obter infor- pendentes ou autônomas.
mações a respeito da forma como determinada Fora isso, ressaltamos duas características
decisão automatizada foi tomada, por exemplo. importantes da inteligência artificial: o fato
As dificuldades e desafios da aplicação das re- de que sua criação se dá frequentemente de
gulações de proteção de dados à inteligência forma difusa, i.e., por diversos atores e em di-
artificial vêm sendo bem exploradas pela li- versos locais, de forma muitas vezes anônima e
teratura especializada, tal como nos trabalhos não reconstruível, e de que seu funcionamento
desenvolvidos por Goodman e Flaxman (2017), ocorre de maneira inexplicável e opaca, den-
Selbst e Powles (2017), e Edwards e Veale (2017). tro de uma black box inacessível não somente
aos usuários do sistema, mas também a seus
desenvolvedores.
6. Conclusão Finalmente, apontamos como o uso e desen-
volvimento dos sistemas de inteligência artifi-
cial não deve ser considerado, para fins jurídi-
O acidente fatal em que um carro autônomo cos, como um objeto em si mesmo, devendo
da Uber se envolveu foi, ao que tudo indica, o nosso foco pousar em realidade sobre a “in-
primeiro de muitos casos similares. O aumento teração homem-máquina”. Trata-se do fato de
do uso desse tipo de tecnologia forçará o direito que todo sistema é utilizado, de alguma forma,
a encontrar respostas satisfatórias às questões como complemento à ação humana, de ma-
de responsabilização que se levantarão. Nesse neira a se visualizar uma “régua” onde um
artigo, buscamos trabalhar o problema “como dos extremos é a mencionada decisão autô-
o direito civil poderia responder a casos de danos noma com mínima ou nenhuma interferência
137
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
humana e a outra é o comportamento sob a es- estabelecimento de uma relação causal entre
fera de ação e controle humanos. suas ações e os danos, e em vista da produção
O “polo humano” dessa interação vem sendo difusa e opaca desse tipo de sistema, não se vis-
estudado pelo Direito há milênios, por mais lumbra a possibilidade de configuração da res-
que os fatos trazidos aqui sejam novos. Do ponsabilidade subjetiva.
ponto de vista da responsabilidade civil, pode- O que se observa, assim, é que o uso de sis-
ríamos exatamente pensar na responsabilidade temas de inteligência artificial pressupõe um
do sujeito que se encontra em tal polo, na res- certo “risco da autonomia” que não pode ser
ponsabilidade subjetiva. facilmente endereçado pela responsabilidade
Assim, nesse caso, deve-se averiguar, para o subjetiva. Seria o caso, então, de se pensar em
teste de subsunção do caso de um dano cau- uma responsabilidade objetiva, modalidade
sado com o uso de um sistema de inteligên- exatamente desenhada para fazer frente a de-
cia artificial, se houve negligência, imperícia terminados riscos impostos à coletividade?
ou dolo por parte do usuário do sistema – tal Do ponto de vista da responsabilidade obje-
como a motorista reserva que se encontrava no tiva, poderíamos a princípio nos indagar sobre
veículo no momento do aludido acidente. a aplicação do CDC. As discussões nesse caso
Fora isso, a depender da situação, e por mais são diversas: há diversos argumentos possí-
que a constatação prática disso seja bastante di- veis. Em especial, tratamos da dificuldade do
ficultosa, poder-se-ia falar também da respon- uso do conceito de “defeito” para as decisões
sabilização subjetiva dos produtores do veículo autônomas, já que são elementos desejados e
ou de partes dele, como seu próprio LiDAR esperados desse tipo de sistema. Fora isso, es-
(radar de reconhecimento de imagens do carro pecialmente num mundo de open robotics e de
autônomo). Essa averiguação é dificultada tam- produção difusa de sistemas, pressupostos bá-
bém pela black box da inteligência artificial, e sicos para aplicação do CDC não se aplicariam:
nos casos de sistemas de inteligência artificial não estaríamos falando de produtos colocados
produzidos de forma difusa, pela dificuldade no mercado de consumo. Paradigma dessa si-
acentuada em se estabelecerem elos causais in- tuação é o caso do robô Gaak, sistema desen-
dividualizados entre seus desenvolvedores e o volvido para fins acadêmicos que, por conta de
dano causado. uma decisão autônoma, poderia ter custado a
Por mais que a responsabilização subjetiva um motorista que passava pelas redondezas a
encontre alguns desafios nesse caso concreto, sua vida.
ela não parece insuficiente, a priori, para en- No caso da não-aplicabilidade do CDC, pode-
dereçar os danos causados dentro da esfera de ríamos aludir ainda ao parágrafo único do Art.
atuação humana. No entanto, quanto mais au- 927 do Código Civil. De fato, a amplitude dessa
tônoma for a ação danosa, i.e., quão mais perto norma, que estabelece a responsabilização
do “polo máquina” da interação homem-má- “quando a atividade normalmente desenvol-
quina ela estiver, mais se acentuam determina- vida pelo autor do dano implicar, por sua natu-
dos desafios. Especificamente, conforme vimos, reza, risco para os direitos de outrem”, permi-
dificilmente se poderia falar em negligência ou tiria sua aplicação a diversos casos envolvendo
em omissão nos termos do Código Civil por danos causados pela inteligência artificial, em
uma decisão completamente autônoma tomada especial quando se considera a existência de
por uma inteligência artificial. Em vista de não um “risco da autonomia”, conforme vimos. No
haver possibilidade de atuação por parte dos entanto, a dificuldade de se apontar atores es-
desenvolvedores ou usuários, ou mesmo de pecíficos para o dano ou de se delimitar qual
138
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
Marques, C. L., Benjamin, A. H. & Miragem, B. Order to Adopt. Title 13, Division 1, Chapter 1.
(2013). Comentários ao Código de Defesa do Article 3.7–Testing of Autonomous Vehicles.
Consumidor. Revista dos Tribunais. (State of California) (EUA). Disponível
Redaktion beck-aktuell, Kabinett beschließt em https://www.dmv.ca.gov/portal/wcm/
Maßnahmenplan zum automatisierten connect/a6ea01e0-072f-4f93-aa6c-e12b844443cc/
Fahren. (2017, 23 de agosto). Disponível DriverlessAV_Adopted_Regulatory_Text.
em https://rsw.beck.de/aktuell/meldung/ pdf ?MOD=AJPERES
kabinett-beschliesst-massnahmenplan-zum- Teubner, G. (2018). Digitale Rechtssubjekte?
automatisierten-fahren. Zum privatrechtlichen Status
Russell, S. J., & Norvig, P. (2016). Artificial autonomer Softwareagenten. Archiv für
intelligence: a modern approach. die civilistische Praxis, 218(2), (pp. 155-
Malaysia; Pearson Education Limited. 205). Disponível em https://www.jura.
Scherer, M. U. (2015). Regulating artificial uni-frankfurt.de/69768539/TeubnerDigitale-
intelligence systems: risks, challenges, RechtssubjekteAcP-18Dez17.pdf
competencies, and strategies. Harv. JL & Law No. 2018/049–A Local Law in relation
Tech., 29, 353. to automated decision systems used by
Selbst, A. D., & Powles, J. (2017). Meaningful agencies, 2018. (The New York City
information and the right to Council) (EUA). Disponível em http://
explanation. International Data Privacy legistar.council.nyc.gov/LegislationDetail.
Law, 7(4), (pp. 233-242). aspx?ID=3137815&GUID=437A6A6D-62E1-47E2-
Smith, B. W. (2017). Automated Driving And 9C42-461253F9C6D0
Product Liability. Mich. St. L. Rev., 1. Torres, A. L. (2013). A tecnutopia do software livre:
Snow, J. (2017, 7 de novembro). New Research uma história do projeto técnico e político do
Aims to Solve the Problem of AI GNU. (Tese de Doutorado, Universidade
Bias in “Black Box” Algorithms. MIT de São Paulo).
Technology Review. Artificial Intelligence. Bill 112 of 18th October 2017–Automated and
Disponível em https://www.technologyreview. Electric Vehicles Bill. (United Kingdom
com/s/609338/new-research-aims-to-solve-the- Parliament) (Reino Unido). Disponível
problem-of-ai-bias-in-black-box-algorithms/ em https://publications.parliament.uk/pa/bills/
Spindler, G. (2015). Roboter, Automation, cbill/2017-2019/0112/18112.pdf
künstliche Intelligenz, selbststeuernde
Kfz: Braucht das Recht neue
Haftungskategorien? Computer und Recht,
31(12), (pp. 766-776).
SAE International’s On-Road Automated
Vehicle Standards Committee. (2013,
dezembro). Summary of Levels of
Driving Automation for On-Road
Vehicles. Stanford Center for Internet and
Society. Disponível em http://cyberlaw.
stanford.edu/loda
142
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO
PÁGINAS 121 A 143 ARTIFICIAL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA ROBERTO
Recebido em 30/06/2019
Aceito em 18/12/2019
144
ARTIGO
O fenômeno
das fake news:
definição, combate
e contexto
O fenômeno
das fake news:
definição, combate
e contexto
Palavras-chave Resumo
desinformação O artigo apresenta um panorama sobre a ques-
fake News tão das fake news no Brasil e realiza uma análise
mídia comparada a fim de identificar práticas para-
redes sociais digmáticas de tentativa de combate ao fenô-
política meno da desinformação. Para tal, o trabalho
faz um compilado bibliográfico das principais
definições de fake news em voga na atualidade,
bem como analisa as vertentes dos projetos de
lei em trâmite no Congresso Nacional brasi-
leiro em 2019.
146
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
Keywords Abstract
misinformation The article presents a general panorama on the
fake news contemporary issue of misinformation and
media fake news. It focuses primarily on Brazil, but
social network also aims to make a comparative analysis on
politics public and private policies to fight fake news
and misinformation. In order to do that, the
article makes an attempt to gather the main
definitions of fake news, and review the pro-
jects to fight misinformation that are now pen-
ding in Brazil’s National Congress.
147
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
ou seja, no qual qualquer um pode dizer qual- O fenômeno da desinformação tem uma di-
quer coisa sobre qualquer assunto da maneira mensão claramente política, na medida em
que bem entender. A informação pode vir de que pode moldar o que tomamos por realidade.
qualquer fonte e sem nenhum critério, com Em contextos de guerra, a produção de men-
potencial de se espalhar, de manipular as emo- tiras para fins políticos é feita de modo ainda
ções e de realizar influência destrutiva e de- mais explícito. Um exemplo clássico disso são
terminante na população, capaz talvez de defi- as falsas estações de rádio alemãs, transmiti-
nir os rumos das democracias contemporâneas das no Reino Unido durante a Segunda Guerra
(Mans, 2018). Mundial, nas quais um interlocutor inglês se
Para enfrentar essa questão e entender de passava pelo alemão Der Chef e difundia co-
maneira mais adequada o contexto atual, pro- mentários contra o líder nazista Adolf Hitler
pomos partir de três premissas, que serão ex- (Itagiba, 2019). Outro exemplo famoso são
ploradas a seguir: i) a desinformação, as menti- as manipulações de imagens, no seio de um
ras e os boatos na política sempre existiram; ii) amplo projeto de revisionismo histórico, feitas
as Tecnologias da Informação e Comunicação na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(TICs) deram um novo contorno e uma nova (URSS). A série de fotografias abaixo, datada
escala ao fenômeno da desinformação, produ- originalmente de 1926, demonstra a progres-
zindo algo nunca antes visto na história da hu- são de alterações em imagens a fim de eliminar
manidade; e iii) não é possível reduzir todo o membros que perdiam a simpatia do líder Josef
contexto de crise democrática global apenas à Stalin (Macdonald, 2018).
existência do fenômeno da desinformação.
2.1.1. A desinformação,
a mentira e os boatos
sempre existiram
mundo, marcado por radicalizações políticas e de uma compreensão mais acurada do fenô-
por uma espécie de guerra ideológica que di- meno, de seus elementos, de seu funciona-
vide a sociedade em grupos antagônicos e ri- mento e de seus limites é que se tornará pos-
vais. Esse contexto está marcado por grandes sível elaborar qualquer medida de combate
incertezas e medos diversos, por crises econô- minimamente efetiva e certeira, sem efeitos
micas cíclicas e pela desconfiança nas institui- colaterais ainda mais perversos. Além disso, a
ções políticas e midiáticas. Um terreno fértil boa definição do termo é essencial para qual-
para que todo tipo de discurso de ódio, teo- quer produção legislativa adequada sobre o
rias da conspiração e campanhas difamatórias tema. Como se verá adiante, a tentativa de cri-
ganhe maior proporção. O fenômeno contem- minalizar diversas práticas associadas ao fenô-
porâneo das fake news só pode ser devidamente meno das fake news, sem grande compreensão
compreendido nesse contexto como produ- de suas nuances, tem fomentado projetos de
ção de “informação de combate”, voltada para lei que possuem efeitos extremamente amplos
corroborar narrativas pré-estabelecidas e for- e pouco efetivos, em grande medida por parti-
talecer uma determinada posição, pouco im- rem de definições mal lapidadas.
portando a qualidade do trabalho de investi- É preciso ter em mente que estamos lidando
gação ou de apuração dos fatos. Mais do que com um terreno extremamente sensível, em
notícias falsas, o que temos são “mídias hiper- permanente tensão com o respeito à liberdade
-partidárias” fazendo circular informações em de expressão. Qualquer vagueza nos tipos pe-
um mundo radicalmente polarizado (Ribeiro & nais ou indeterminação nos dispositivos le-
Ortellado, 2018a). gais pode abrir brechas perigosas para práticas
O objetivo do presente artigo não é o apro- de censura ou perseguição política. Excessos
fundamento dos múltiplos fatores que tiveram devem ser evitados, como, por exemplo, o en-
algum papel relevante na produção desse con- quadramento como fake news de conteúdo sa-
texto hiperpolarizado e inconstante do século tírico e humorístico. O claro estabelecimento
XXI. As breves observações feitas aqui tiveram dos limites, portanto, mostra-se essencial para
por objetivo apenas situar melhor o problema qualquer esforço legislativo nessa matéria.
das fake news e evitar uma visão reducionista,
que tende a fazer delas a causa por excelência
dos problemas atuais. 2.2.2. Formas de
classificação
zombaria a figuras políticas importantes. Salah para aprovação. Não está claro, nesta fase,
Salem Saleh Sulaiman, primeiro cidadão ma- se o governo proporá emendas à legislação
laio processado criminalmente pela lei anti-fake ou novamente buscará sua revogação total.
news, foi condenado ao pagamento de multa de (Buchanan, 2018, p. 2, tradução nossa)
10 mil ringgits por postar vídeo no YouTube no
qual acusava a polícia de demorar cinquenta
minutos para responder a um chamado que de-
nunciava violência sofrida contra um professor
palestino na cidade de Kuala Lumpur, em 21 de 3.3. Caso Brasil
abril de 2018. A denúncia contra Sulaiman ale-
gava que ele teria postado, com más-intenções, O candidato de extrema direita do Partido
conteúdo falso online (Shahbaz, 2018). Social Liberal (PSL), Jair Messias Bolsonaro, foi
Importa destacar que a Malásia é um país eleito o 38º presidente do Brasil no dia 28 de
que constantemente recebe notas baixas em outubro de 2018, com 55,13% dos votos válidos.
indicadores globais relacionados à liberdade de O contexto eleitoral de 2018 no Brasil foi mar-
expressão do país, figurando na posição 145 de cado pelo partidarismo informacional e pela
180 países analisados em 2018 pelo World Press polarização dos eleitores em dois blocos opos-
Freedom Index.5 A conjuntura política da Malásia, tos. Os pesquisadores Márcio Moretto Ribeiro
um país de baixíssimo nível de alternância de e Pablo Ortellado analisaram 500 páginas de
poder, histórico conjuntural de perseguição Facebook com conteúdo político, selecionando
de opositores do governo e baixos índices de as mais curtidas por cidadãos brasileiros desde
liberdade de expressão, tornam a redação de o ano de 2014, e encontraram um padrão no
uma lei de criminalização de fake news com ter- qual há uma divisão de curtidas por perfis lo-
mos abertos e multas altas um instrumento po- calizados em duas bolhas opostas, sem inter-
tencial de censura por parte do governo cen- secção, denominadas pelos pesquisadores como
tral, conforme indicam as acusações em nível ‘clusters’ ou, em uma tradução livre, “grupos” ou
internacional. “aglomerações”. Nas palavras dos pesquisadores:
Embora o líder de oposição Mahathir
Mohamad tenha sido eleito, apoiando a pauta De um lado, todas as páginas dos partidos
de revogação da lei anti-fake news, ela ainda se e políticos de esquerda, amalgamadas com
encontra vigente no país. Nas palavras da pes- as do feminismo, do movimento negro e
quisadora internacional Kelly Buchanan: do movimento LGBT, além das páginas das
ONGs de direitos humanos; do outro lado,
A câmara baixa do Parlamento votou a as páginas dos partidos e dos políticos de
favor de uma lei de revogação em agosto direita, amalgamadas com as do liberalismo
de 2018. No entanto, a câmara alta, que econômico e do conservadorismo moral.
ainda é controlada por apoiadores do Quando o padrão de interação dos usuários
governo anterior, votou contra a lei em forma esses dois clusters (Figura 1), com
setembro de 2018. De acordo com a poucas conexões entre eles, podemos
Constituição da Malásia, a câmara baixa dizer que os usuários estão polarizados.
pode aprovar a lei novamente depois (Ribeiro & Ortellado, 2018a, p. 74)
de decorrido o período de um ano e, se
a câmara alta deixar de aprová-la, a lei
poderá ser apresentada posteriormente
156
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
foi o polêmico caso do “kit gay”, uma notícia Outro aspecto a ser considerado no caso bra-
falsa6 que teve grande circulação nas redes so- sileiro de disseminação de fake news diz res-
ciais, acusando o candidato Fernando Haddad peito ao comprometimento da neutralidade da
de ter implantado nas escolas infantis, quando rede, que foi estabelecida pelo Marco Civil da
exercia o cargo de Ministro da Educação, um Internet7 como um dos princípios da Internet
material que mostrava crianças nuas e meni- e diz respeito à garantia de acesso não diferen-
nos se beijando. Esse caso ganhou proporções ciado a todas as informações que circulam na
ainda maiores na corrida eleitoral pelo fato de Internet. Tal princípio visa o tratamento igua-
o próprio candidato Jair Bolsonaro disseminar litário na estrutura da rede, sem diferença de
essa notícia falsa quando foi entrevistado pelo velocidade na transmissão e recepção ou servi-
Jornal Nacional, principal jornal televisivo bra- ços acessados por seus usuários. Apesar disso, a
sileiro, no dia 29 de outubro de 2018 (Coletta, prática do zero rating, ou seja, de oferecimento
2018). de planos de telefonia que isentam o con-
Nos termos de pesquisa da organização Avaaz, sumo de dados para acesso de aplicativos como
dos 85,2% dos eleitores de Bolsonaro que leram o WhatsApp e Facebook, tornou-se comum
ou receberam a notícia, 83,7% acreditaram nela. no Brasil entre empresas provedoras de con-
Por outro lado, dos 61% dos eleitores de Haddad teúdo e operadoras que garantem o acesso à
que viram a notícia, apenas 10,5% acreditaram Internet. A Nota Técnica nº 34/2017/CGAA4/
(Pasquini, 2018). Isso demonstra a força que o SGA1/SG/CADE, publicada no Diário Oficial da
“viés de confirmação” possui em contextos hi- União em 01/09/2017 e emitida pelo Conselho
perpolarizados, ou seja, a propensão que temos Administrativo de Defesa Econômica (2017), si-
de acreditar em notícias que reforçam a narra- nalizou a legalidade dessa prática, alegando que
tiva pela qual já possuímos afinidade. não gera “efeitos anticompetitivos”. É impor-
Se o problema das fake news tem claramente tante assinalar, contudo, que o uso contínuo
uma dimensão global, o caso brasileiro pa- de um plano de dados que limita o acesso da
rece ser ainda mais dramático, especialmente Internet às redes sociais e a sítios específicos
em relação à deturpação do justo debate polí- impede a realização de checagem de fatos e cria
tico. Em primeiro lugar, quanto ao impacto, de um ambiente de informação unicamente rea-
acordo com o estudo Papo Digital 2018, feito lizada no interior das redes sociais. Vê-se, por-
pela Hello, agência de pesquisa de mercado e tanto, a importância de se garantir planos mais
inteligência, sete em cada dez brasileiros usam acessíveis e democráticos à Internet, especial-
as redes sociais para se informar. Trata-se de mente em um país como o Brasil que possui
um dado que demonstra a relevância das redes serviços de rede extremamente caros e len-
sociais e da Internet como meio primário de tos (Núcleo de Informação e Coordenação do
informação no Brasil (Papo Digital: O cuidado Ponto BR, 2018).
das marcas com interações polarizadas no di- Soma-se a isso o fato de, no Brasil, de
gital, 2018). Além disso, de acordo com a pes- acordo com pesquisa TIC Domicílios 2017
quisa Global Advisor, realizada pelo Instituto realizada pelo Cetic.br (Centro Regional de
Ipsos entre 22 de junho e 3 de julho de 2018 Desenvolvimento de Sociedade e Informação),
com mais de 19.000 pessoas em 27 países, o a população brasileira que aufere renda mensal
Brasil teria a população que mais acredita em de até três salários mínimos não possui com-
fake news no mundo (63%), seguido da Arábia putador em casa e acessa a Internet primordial-
Saudita (58%) e da Coreia do Sul (57%) (Calliari, mente pelo telefone celular, contratando pla-
2018). nos de baixo custo e recebendo um conteúdo
158
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
PL 2917/2019 Não define fake news. Trabalha Altera o Código Penal (Art. 143, sobre a retrata-
(Valdevan Noventa, PSC) com os conceitos pré-existentes ção em casos de calúnia e difamação) e a Lei de
de calúnia, difamação e de ofensas Direito de Resposta a fim de incluir a Internet
que ensejam o direito de resposta. e suas aplicações.
PL 9973/2018 Criar, divulgar, ou compartilhar, Altera o art. 323 do Código Eleitoral, a fim de
(Nelson Trad, PSD) no ano eleitoral, por qualquer tipificar a disseminação de fake news, bem como
meio de comunicação social, fatos aumentar as multas já previstas para divulga-
sabidamente inverídicos em rela- ção de conteúdo falso. Possibilita responsabili-
ção a pré-candidatos, candidatos zação do provedor de conteúdo em caso de des-
ou partidos, capazes de exercerem cumprimento de ordem judicial para remoção.
influência perante o eleitorado.
PL 9554/2018 Divulgar informação ou notícia que Modifica o art. 287-A do Código Penal para ti-
(Pompeo de Mattos, PDT) sabe ser falsa e que possa modificar pificar a divulgação de fake news e estabelecer as
ou desvirtuar a verdade com rela- seguintes penas: detenção, de um a três anos, e
ção à saúde, segurança pública, eco- multa, se o fato não constitui crime mais grave,
nomia ou processo eleitoral ou que e, para o caso de divulgação pela Internet, reclu-
afete interesse público relevante. são, de dois a quatro anos, e multa, se o fato não
constitui crime mais grave. Há previsão de au-
mento de pena de um a dois terços se o agente
divulga a informação ou notícia falsa visando
obtenção de vantagem para si ou para outrem.
161
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
PL 9533/2018 Notícias falsas capazes de provocar Altera a Lei de Segurança Nacional para tipificar
(Francisco Floriano, DEM) atos de hostilidade e violência con- a produção e divulgação de fake news, impondo
tra o governo. pena de reclusão, de 1 a 4 anos, nos termos do
art. 22-A. Também altera o art. 23, que diz res-
peito a “incitar à subversão da ordem política ou
social; à animosidade entre as Forças Armadas
ou entre estas e as classes sociais ou as institui-
ções civis; à luta com violência entre as classes
sociais; à prática de qualquer dos crimes previs-
tos nesta Lei, impondo reclusão de 2 a 8 anos
para incitação ocorrida na Internet”.
Na análise dos PLs em trâmite nas casas le- aplicações da Internet. A proposta, apesar de
gislativas brasileiras, percebe-se a tendência bá- apresentar coerência na tentativa de evitar a
sica de responsabilização de provedores ou de anonimidade, que auxilia um ambiente propí-
criminalização de condutas relacionadas à difu- cio à disseminação de fake news, abre a possibi-
são de fake news. Alguns dos projetos realizam lidade de controle e de perfilação ainda maior,
ressalvas de que o conteúdo artístico ou hu- na medida em que envolve um cadastro único
morístico não deve ser enquadrado como fake a ser usado em todas as redes sociais, facili-
news. Ainda assim, não há especificação dos cri- tando o cruzamento de dados para fim de dire-
térios que permitiriam distinguir a sátira ou o cionamento de conteúdo e serviços.
humor daquilo que é inverídico e tem poten-
cial de causar danos.
Por exemplo, podemos imaginar o caso de 4. Insuficiências e
uma imagem manipulada que é disseminada desafios
como piada na Internet, mas que acaba sendo
tomada como verdade e prejudicando deter-
minadas pessoas públicas ou grupos políticos.
Quais seriam os limites do combate a esse tipo
de notícia, em uma situação na qual a mera 4.1. Censura
disseminação é criminalizada? Como um pro- estatal: minha
vedor deve remover esse conteúdo de forma
imediata mediante notificação, na medida em avó poderá ser
que as notificações podem i) ser realizadas por punida pelo
pessoas que não desejam ver o conteúdo dispo- compartilhamento
nibilizado ou ii) atingir casos em que a escolha
de remoção ataca diretamente a liberdade de de mensagens?
expressão?
Destaca-se, ainda, o PL 3389/2019, de auto- Embora inúmeros projetos de lei tenham
ria do deputado federal Fábio Faria (PSD/RN), sido propostos a fim de combater as fake news
que visa estabelecer legalmente a necessidade no Brasil, observa-se que a maioria absoluta
de Cadastro de Pessoa Física ou Jurídica (CPF/ visa apenas criminalizar o ato de disseminação
CNPJ) para que seja realizado cadastro em de notícias falsas, sem a instauração de uma
162
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
‘Fake News’ é eleita palavra do ano e ganhará Lei Nº 12.965, de 23 de abril de 2014 – Marco
menção em dicionário britânico. (02 Civil da Internet. (Brasil). Acesso em 10 de
de novembro, 2017). BBC. Disponível junho de 2019, disponível em http://www.
em https://www.bbc.com/portuguese/ planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/
internacional-41843695#orb-banner l12965.htm
Genesini, S. (2018). A pós-verdade é uma Lei Nº 13.005, de 25 de junho de 2014. (Brasil).
notícia falsa. Revista USP, (116), pp. 45-58. Acesso em 15 de outubro de 2019,
Global Digital Report. (2019). We Are Social. disponível em http://www.planalto.gov.br/
Disponível em https://wearesocial.com/ ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm
global-digital-report-2019 Lei Nº 13.188, de 11 de novembro de 2015. (Brasil).
Gomes, A. B., Duarte, F., & Rocillo, P. (2018). Acesso em 10 de junho de 2019,
Glossário da Educação Digital (Vol. 1). disponível em http://www.planalto.gov.br/
Instituto de Referência em Internet e ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13188.htm
Sociedade. Acesso em 16 de outubro de Lei Nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. (Brasil).
2019, disponível em https://drive.google. Acesso em 28 de junho de 2019,
com/file/d/1aPCQRfcYekMoKLGjLeDoa7oRx7536 disponível em http://www.planalto.gov.br/
yrQ/view ccivil_03/leis/l7170.htm
Gragnani, J. (05 de outubro, 2018). Um Brasil LupaEducação: um programa para capacitar
dividido e movido a notícias falsas: qualquer um em técnicas de checagem.
uma semana dentro de 272 grupos (2010). Revista Piauí: Folha de S. Paulo.
políticos no WhatsApp. BBC. Disponível Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/
em https://www.bbc.com/portuguese/ lupa/2017/03/28/lupa-educacao/
brasil-45666742 Macdonald, F. (30 de janeiro, 2018). A
Higa, P. (2019). WhatsApp limita manipulação de imagens pelos
encaminhamento de mensagens para soviéticos, muito antes da era das ‘fake
evitar fake news. Tecnoblog. Disponível news’. BBC. Disponível em https://www.
em https://tecnoblog.net/252279/whatsapp- bbc.com/portuguese/vert-cul-42810209
limite-encaminhar-mensagens-fake-news/ Macedo, I. (26 de outubro, 2018). Das 123
Itagiba, G. (2017). Fake News e Internet: fake news encontradas por agências de
esquemas, bots e disputa pela atenção. checagem, 104 beneficiaram Bolsonaro.
ITS Rio – Instituto de Tecnologia e Congresso em Foco. Acesso em 06 de
Sociedade do Rio de Janeiro: Rio de novembro de 2019. Disponível em
Janeiro. Disponível em https://itsrio.org/ https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/
wp-content/uploads/2017/04/v2_fake-news-e- das-123-fake-news-encontradas-por-agencias-de-
internet-bots.pdf checagem-104-beneficiaram-bolsonaro/
Klein, D. O., & Wueller, J. R. (2017). Fake Mans, M. ( junho, 2018). A Era da Pós Verdade.
news: a legal perspective. Journal of Revista .BR, ed. 14, ano 9, pp. 5-11.
Internet Law 20(10). pp. 5-13. Disponível Disponível em https://www.nic.br/media/
em https://papers.ssrn.com/sol3/papers. docs/publicacoes/3/revista-br-ano-09-2018-
cfm?abstract_id=2958790 edicao14.pdf
Kuper, S. (2019). How schools are
fighting fake news. Financial Times.
Disponível em https://www.ft.com/
content/0fa3ab8a-2412-11e9-8ce6-5db4543da632
169
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
Mello, P. C. (18 de outubro, 2018). Empresários Projeto de Lei 559/2019. (Câmara dos
bancam campanha contra o PT pelo Deputados) (Brasil). Disponível em
WhatsApp. Folha de S. Paulo. Disponível https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
em https://www1.folha.uol.com.br/ fichadetramitacao?idProposicao=2191472
poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha- Projeto de Lei 3389/2019. (Câmara dos
contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml Deputados) (Brasil). Disponível em
Meneses, J. P. (2018). Sobre a necessidade de https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
conceptualizar o fenómeno das fake news. fichadetramitacao?idProposicao=2207075
Observatório (OBS*), Special Issue, vol. Projeto de Lei 9973/2018. (Câmara dos
12, nº 4, pp. 37-53. Disponível em: http:// Deputados) (Brasil). Disponível em
obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376/ https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
pdf fichadetramitacao?idProposicao=2171207
Mota, C. (2017). Robôs e ‘big data’: as armas do Projeto de Lei 9554/2018. (Câmara dos
marketing político para as eleições de Deputados) (Brasil). Disponível em
2018. BBC. Disponível em https://www.bbc. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
com/portuguese/brasil-41328015 fichadetramitacao?idProposicao=2167903
Núcleo de Informação e Coordenação do Projeto de Lei 9533/2018. (Câmara dos
Ponto BR (2018). Internet, democracia Deputados) (Brasil). Disponível em
e eleições: guia prático para gestores https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
públicos e usuários. Comitê Gestor fichadetramitacao?idProposicao=2167860
da Internet no Brasil: São Paulo. ISBN Ribeiro, M. M., & Ortellado, P. (2018). Nota
978-85-5559-063-4. Disponível em Técnica #2: A difusão dos boatos sobre
https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/13/ Marielle Franco, do Whatsapp aos sites
Guia%20Internet,%20Democracia%20e%20 de notícia. Monitor do Debate Político no
Elei%C3%A7%C3%B5es.pdf Meio Digital. Disponível em http://www.
Papo Digital: O cuidado das marcas com monitordigital.org/notas-tecnicas/nota-tecnica-2/
interações polarizadas no digital. Hello Ribeiro, M. M., & Ortellado, P. (2018a). O que
Research. (2018). Acesso em 13 de são e como lidar com as notícias falsas.
junho de 2019, disponível em https:// Sur – Revista Internacional de Direitos
helloresearch.com.br/#estudos1 Humanos (vol. 15, nº 27), pp. 71-83.
Pasquini, P. (2018). Estudo diz que 90% dos Disponível em https://sur.conectas.org/wp-
eleitores de Bolsonaro acreditam em content/uploads/2018/07/sur-27-portugues-
fake news. Valor Econômico. Disponível marcio-moretto-ribeiro-pablo-ortellado.pdf
em https://www.valor.com.br/politica/5965577/ Salvadori, F. (01 de maio, 2010). Banda
estudo-diz-que-90-dos-eleitores-de-bolsonaro- larga no Brasil é cara e ruim;
acreditaram-em-fake-news entenda. NIC.br. Disponível em
Projeto de Lei 2917/2019. (Câmara dos https://www.nic.br/noticia/na-midia/
Deputados) (Brasil). Disponível em banda-larga-no-brasil-e-cara-e-ruim-entenda/
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ Santos, A. (2019). O Impacto do big data e dos
fichadetramitacao?idProposicao=2203521 algoritmos nas campanhas eleitorais. ITS
Projeto de Lei 2601/2019. (Câmara dos Rio – Instituto de Tecnologia e Sociedade do
Deputados) (Brasil). Disponível em Rio de Janeiro. Disponível em https://itsrio.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ org/wp-content/uploads/2017/03/Andreia-Santos-
fichadetramitacao?idProposicao=2199770 V-revisado.pdf
170
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
Shahbaz, A. (2018). Fake news, data collection, Valente, J., & Pita, M. (2018). Monopólios
and the challenge to democracy. In Digitais: concentração e diversidade na
Freedom on the Net 2018: The Rise of Internet. Intervozes – Coletivo Brasil
Digital Authoritarianism. Disponível em de Comunicação Social. São Paulo:
https://freedomhouse.org/report/freedom-net/ Intervozes. Disponível em https://
freedom-net-2018/rise-digital-authoritarianism intervozes.org.br/publicacoes/monopolios-
Tan, E. G., & Ang, B. (09 de fevereiro, 2017). digitais-concentracao-e-diversidade-na-internet/
Clickbait: Fake News and Role of WhatsApp diz como tenta combater fake news
the State. RSiS–S. Rajaratnan School of no Brasil. (19 de outubro, 2018). Época.
International Studies. Disponível em https:// Disponível em https://epocanegocios.globo.
www.rsis.edu.sg/rsis-publication/cens/co17026- com/Tecnologia/noticia/2018/10/whatsapp-diz-
clickbait-fake-news-and-role-of-the-state/ como-tenta-combater-fake-news-no-brasil.html
Taplin, J. (2017). Move Fast and Break Things: World Internet User Statistics and 2019 World
How Facebook, Google, and Amazon Population. Internet World Stats: Usage
Cornered Culture and Undermined and Population Statistics. Acesso em 25
Democracy. New York: Little, Brown de junho de 2019, disponível em https://
and Company. www.internetworldstats.com/stats.htm
Torres, R., Gerhart, N., & Negahban, A.
(2018). Epistemology in the Era
of Fake News: An Exploration of
Information Verification Behaviors
among Social Networking Site Users.
Newsletter, ACM SIGMIS Database,
vol. 49 (3), agosto de 2018, pp. 78
– 97. doi: 10.1145/3242734.3242740.
Disponível em https://dl.acm.org/citation.
cfm?id=3242734.3242740
Tribunal Superior Eleitoral. (16 de outubro,
2018). Facebook e Youtube têm
48h para retirar do ar vídeos com
inverdades sobre livro de educação
sexual. Disponível em http://www.tse.jus.br/
imprensa/noticias-tse/2018/Outubro/facebook-e-
youtube-tem-48-horas-para-retirar-do-ar-videos-
com-inverdades-sobre-livro-de-educacao-sexual
TSE decreta sigilo até 2023 de reuniões que
discutiram grampos por fake news.
(03 de maio, 2019). Consultor Jurídico.
Disponível em https://www.conjur.com.
br/2019-mai-03/tse-decreta-sigilo-reunioes-
discutiram-grampos-fake-news
171
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 O FENÔMENO DAS FAKE NEWS: MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
PÁGINAS 144 A 171 DEFINIÇÃO, COMBATE E CONTEXTO EMANUELLA R. HALFELD MACIEL
ARTIGO
A democracia
frustrada: fake news,
política e liberdade
de expressão nas
redes sociais
A democracia frustrada:
fake news, política e
liberdade de expressão
nas redes sociais
Palavras-chave Resumo
democracia O artigo discute as razões que levaram, nos úl-
fake news timos anos, à deterioração do espaço público
liberdade de expressão formado pelas redes sociais, considerando, em
redes sociais particular, o problema da difusão generalizada
de notícias falsas – ou fake news, na consagrada
expressão de língua inglesa – e os seus impac-
tos sobre as democracias contemporâneas. O
argumento central é o de que a produção de
notícias está estruturada em um jogo de for-
ças que se estabelece entre, de um lado, in-
centivos econômicos e interesses políticos; e,
de outro, incentivos provenientes da reputa-
ção e da regulação estatal. Nas redes sociais, a
tênue estabilidade entre essas forças, que vi-
gorava no ambiente da mídia tradicional, deu
lugar a uma relação de desequilíbrio, que fa-
vorece a publicação de notícias falsas, impul-
sionada por fatores como a descentralização
dos meios de expressão, a redução de barrei-
ras de entrada no mercado, a personalização de
anúncios, o declínio de antigos e a ascensão de
novos intermediários.
174
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
Frustrated democracy:
fake news, politics and
freedom of expression
in social media
Keywords Abstract
democracy The article discusses the reasons that led to
fake news the deterioration of the public space formed
freedom of expression by social media in recent years, considering,
social media in particular, the problem of the widespread
dissemination of fake news and its impacts on
contemporary democracies. The central argu-
ment is that news production stands on a ba-
lance of forces that is established between, on
the one hand, economic incentives and politi-
cal interests; and, on the other hand, reputa-
tion and state regulation incentives. On social
media, the tenuous stability between these for-
ces, which prevailed in the traditional media
environment, was replaced by an imbalance
relationship, which favors the production of
fake news, driven by factors such as decentra-
lization of means of expression, low barriers to
entry, advertising personalization, and the fall
of old intermediaries and the rise of new ones.
175
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
primeiro lugar no concorrido mercado da ci- ou são freados por outros igualmente impor-
dade de Nova York (Wu, 2016, p. 306). tantes.4 É o caso da reputação que um perió-
Com base nesse exemplo histórico, é possível dico possui – ou pretende ter – perante anun-
extrair uma primeira e fundamental causa para ciantes e leitores. Nesse sentido, determinados
a difusão de notícias falsas, aplicável, com as anunciantes podem se recusar a ver suas mar-
devidas adequações, tanto aos jornais de Nova cas estampadas em um jornal sensacionalista,
York do século XIX quanto ao atual fenômeno que abusa de linguagem de baixo calão, ima-
das fake news. Trata-se dos incentivos gerados gens apelativas e reportagens sem credibilidade.
pela própria estrutura competitiva do mercado Da mesma forma, leitores interessados em in-
ou, mais precisamente, pelo fato de que a re- formação de qualidade tendem a optar por
muneração dos agentes econômicos é direta- publicações que privilegiem abordagens plu-
mente proporcional ao tamanho da audiência rais e equilibradas, baseadas em fatos e dados
ou da atenção coletada. Tais incentivos podem objetivos.
impulsionar esses agentes a uma corrida rumo Assim, a própria estrutura do mercado –
ao fundo do poço, uma espécie de luta pela so- aliado a outros fatores, como a regulação es-
brevivência ou, ainda, uma busca desenfreada tatal – pode ser eficaz em impor limites aos
pela ampliação de margens de lucro, no bojo imperativos econômicos que guiam as condu-
da qual são desprezados os princípios éticos do tas dos agentes. No caso dos jornais, esses li-
jornalismo e a qualidade dos conteúdos publi- mites foram instrumentos relevantes para via-
cados. Nas palavras de Tim Wu: bilizar, ao longo dos anos, a formação de uma
imprensa crítica, independente e com credibi-
Já vimos o modus operandi básico dos lidade perante leitores e anunciantes – embora
mercadores da atenção: obter atenção não imune a críticas.
com coisas aparentemente gratuitas e De qualquer modo, o fato é que, no mercado
revendê-la. Mas uma consequência desse de jornais e demais veículos de comunicação,
modelo é uma total dependência da há uma espécie de jogo de forças entre os in-
aquisição e manutenção da atenção. Isso centivos gerados, de um lado, pela importân-
significa que, sob a competição de mercado, cia de se manter uma reputação elevada e, de
o embate seguirá naturalmente rumo outro, pela necessidade de ultrapassar concor-
ao fundo do poço; a busca por atenção rentes e obter mais audiência. Por isso, a de-
vai quase invariavelmente tender para a pender do contexto e do momento histórico,
alternativa mais chocante, espalhafatosa um desses incentivos pode se impor sobre o
e ultrajante […]. A corrida em direção outro, gerando desequilíbrios e impulsionando
aos mais baixos padrões, apelando para o recurso a conteúdos de qualidade duvidosa e,
o que se poderia chamar de instintos em particular, a publicação de notícias falsas.
básicos do público, representa um Um episódio famoso da televisão brasileira
dilema fundamental e contínuo para ilustra bem o argumento. No dia 7 de setem-
o mercador da atenção — até onde ele bro de 2003, o programa “Domingo Legal”,
está disposto a ir para prender a atenção transmitido pela rede SBT e apresentado por
das pessoas? (Wu, 2016, pp. 281-286) Gugu Liberato, exibiu uma entrevista forjada
com integrantes da organização criminosa
PCC (Primeiro Comando da Capital). Na oca-
Esse dilema se torna mais claro ao se consi- sião, dois homens armados e encapuzados fi-
derar que os incentivos econômicos concorrem zeram, em rede nacional, ameaças a diversas
178
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
comunicação e a posição privilegiada que estes No entanto, ao contrário dos leitores do New
ocupam na esfera pública – e que lhes confere York Sun, desprovidos de meios para confirmar
a possibilidade de serem fiadores da relevân- se havia mesmo vida na Lua, a fraude eleitoral
cia e da veracidade de uma determinada ver- foi desmantelada, principalmente em razão do
são dos fatos. Interferir, de forma sorrateira, no desenvolvimento de um sistema de apuração
debate público ou em um processo eleitoral, independente pelo Jornal do Brasil. Diante da
pode não trazer retornos imediatos do ponto divergência entre os dados divulgados pelo jor-
de vista financeiro ou das taxas de audiência. nal e pela emissora de TV, a fraude se tornou
Além disso, envolve riscos nada desprezíveis insustentável e, ao final, Brizola foi eleito go-
no que concerne à reputação do veículo e às vernador (Carvalho, 2016, p. 86).
possíveis consequências legais. Não obstante, a Esse exemplo e os demais acima mencio-
médio e a longo prazo, a recompensa pode ser nados demonstram de que forma imperativos
significativa em caso de êxito – por exemplo, econômicos e interesses políticos constituem
mediante a aprovação de uma lei ou a eleição incentivos relevantes para a publicação de no-
de um candidato, com a consequente formação tícias falsas. Isso ocorre, em particular, em am-
de um ambiente político e econômico favorável bientes excessivamente polarizados do ponto
aos interesses da empresa. de vista político ou de forte competição pela
Em um episódio conhecido, e que ilustra bem audiência e pela busca de atenção, nos quais
de que forma os interesses políticos podem ser são frágeis os constrangimentos gerados por
determinantes para a publicação de notícias fal- incentivos contrários, como a reputação e a re-
sas, a Rede Globo de Televisão se associou a um gulação estatal. Com algumas nuances, a pro-
esquema fraudulento de contagem de votos na pagação de notícias falsas nas redes sociais está
eleição para governador do Rio de Janeiro em diretamente relacionada a esses fatores, con-
1982. A fraude, realizada em conjunto com a forme veremos a seguir.
Proconsult, empresa responsável pela apuração
dos votos, visava à derrota de Leonel Brizola,
candidato oposicionista, que havia retornado ao 3. Redes sociais,
país após a anistia em 1979. Conforme a descri- democracia e fake news
ção de Venício Lima (2005, p. 105):
mídia social” (Castells, 2017, capítulo VI). pontuadas a fim de se delinear uma compreen-
Essa autonomia da comunicação somente são mais precisa sobre o tema. A primeira é
foi possível graças à natureza aberta e descen- que, na Internet e nas redes sociais, há uma
tralizada da Internet. Aberta porque, uma vez exponencial dissociação entre as escolhas efe-
conectado à rede, qualquer um pode se ma- tuadas pelos anunciantes e o conteúdo ao qual
nifestar, da forma e no momento que enten- se vinculam suas marcas e seus produtos. Isso
der convenientes. E descentralizada porque a ocorre porque a compra de anúncios passou
interação nas plataformas digitais é essencial- a se basear, fundamentalmente, nos minucio-
mente direta e horizontal, sem a necessidade sos dados de usuários coletados por empre-
ou a dependência de intermediários. Por isso sas como Google e Facebook. Muitas vezes, os
mesmo, as redes sociais viabilizaram a expres- anunciantes sequer sabem com qual conteúdo
são de vozes e interesses que não encontravam suas marcas estão sendo associadas ou onde
guarida nos meios tradicionais de representa- seus anúncios serão expostos. Não por outro
ção política, tais como a mídia e o sistema po- motivo, em março de 2017, diversas empresas
lítico institucional. suspenderam a verba publicitária destinada ao
Nos dias de hoje, no entanto, seria ingenui- YouTube, após a revelação de que estariam fi-
dade descrever a Internet e as mídias sociais nanciando conteúdo extremista na plataforma
apenas como um espaço de comunicação au- de vídeo (Solon, 2017).
tônoma. É certo que, em grande medida, tais Como consequência, na medida em que os
características continuam presentes. Porém, é anunciantes estão concentrados em personali-
preciso considerar que, ao lado da descentrali- zar e direcionar a publicidade para um deter-
zação dos meios de expressão e da diminuição minado público alvo – o que pode ser efetuado
da dependência em face de antigos interme- de forma cada vez mais automatizada e precisa
diários, operou-se uma paradoxal concentração – a análise quanto à reputação e ao tipo de con-
do controle das principais plataformas digitais teúdo ofertado perdeu relevância.
e uma correlata ampliação do poder de gran- De fato, se, no ambiente da mídia tradicional,
des corporações. Por consequência, estas assu- alcançar uma audiência específica dependia,
miram a condição de novos e influentes inter- essencialmente, da mediação de um veículo de
mediários – para os mais críticos, exercendo, comunicação ou da vinculação da marca a um
inclusive, o papel de monopolista – sobre boa determinado conteúdo, no ambiente digital, a
parte da comunicação efetuada por meio da mesma escolha pode ser efetuada de forma di-
Internet e das redes sociais. reta, com base em características detalhadas
A atual pandemia das fake news é consequên- dos usuários aos quais serão apresentados os
cia direta desse novo ambiente econômico e do anúncios, independentemente da plataforma,
modelo de negócios predominante na rede, de do veículo ou do conteúdo. Como explica
acordo com o qual quanto mais audiência uma Jonathan Taplin (2017, p. 161):
página obtém, maiores são suas receitas com
anúncios. Assim como nos exemplos analisa- Esta é a publicidade programática, [...] que
dos na primeira parte deste trabalho, esse mo- agora domina a publicidade na Internet. Em
delo gera incentivos para uma corrida rumo ao primeiro lugar, ela prejudica o conteúdo
fundo do poço, pautada por uma competição, de qualidade, porque o anunciante não
sem limites, por mais e mais atenção. está interessado no conteúdo do site. O
Mas há algumas diferenças importantes em seu único interesse é alcançar o usuário.
relação à mídia tradicional, que devem ser Portanto, não há diferenciação entre o
181
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
plataformas digitais, a coleta massiva de dados Os portais nacionais também recorrem às es-
de usuários e a distribuição de anúncios na tratégias de publicar reportagens sem a iden-
rede. Nesse cenário, barrar a difusão de notí- tificação dos responsáveis pela elaboração dos
cias falsas se tornou um grande desafio, pois, textos, além de não divulgar dados para con-
em última análise, envolve discutir o próprio tato e se valer de nomes e logotipos semelhan-
modelo de negócios sobre o qual estão estrutu- tes aos de veículos de comunicação conhecidos,
radas as redes sociais e as principais empresas sempre com o fim de confundir leitores e con-
que atuam na Internet. ferir credibilidade à publicação. Por exemplo, o
logotipo da página “A Folha Brasil” possui apa-
rência similar ao do jornal Folha de S. Paulo.
4. Fake news no Brasil Em um levantamento efetuado pelo BuzzFeed
Brasil, o portal figura como responsável pela
publicação da notícia falsa sobre a operação
Em agosto de 2017, circulou na Internet a Lava Jato mais popular no Facebook, no pe-
informação de que uma das novelas da Rede ríodo compreendido entre janeiro e novembro
Globo exibiria o primeiro beijo gay infantil da de 2016. Aliás, assim como em levantamento
televisão brasileira. Apesar de nitidamente falsa, similar efetuado nos EUA, o desempenho das
a notícia, que teria sido anunciada pela apre- informações falsas no Facebook sobre a Lava
sentadora Fátima Bernardes, foi objeto de cerca Jato superou com folga o de reportagens verí-
de 400 mil compartilhamentos em poucos dias, dicas (Aragão, 2016; Silverman, 2017).
impulsionados por páginas como a News Atual A utilização de robôs também tem sido um
e a Sociedade Oculta, segundo dados do Monitor recurso usual nas redes sociais brasileiras.
do Debate Político no Meio Digital, projeto vin- Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas,
culado à Universidade de São Paulo.7 esse tipo de conta, que permite a automatiza-
Como se pode observar, as fake news não são ção e a coordenação de postagens, mediante
uma peculiaridade dos EUA. De fato, também a utilização de softwares que aparentam serem
no Brasil, diversos sites se dedicam a publicar usuários comuns, foi o responsável por cerca
notícias falsas, de olho na audiência e na re- de 20% das manifestações de usuários do
muneração obtida como contrapartida pela exi- Twitter favoráveis ao candidato Aécio Neves no
bição de anúncios. Por aqui, o modelo de ne- dia do debate transmitido pela Rede Globo no
gócios, as estratégias de comunicação e até o segundo turno da eleição presidencial de 2014.
faturamento possuem padrão similar aos das Percentual similar foi identificado entre mani-
páginas americanas. festantes pró-Dilma Rousseff no dia da realiza-
É o caso do site Pensa Brasil, criado por um ção do maior protesto a favor do Impeachment
morador da cidade de Poços de Caldas, no em março de 2015 e entre as manifestações
estado de Minas Gerais. Segundo estimati- favoráveis à greve geral realizada em abril de
vas divulgadas pela Folha de S. Paulo, o por- 2017 contra as reformas trabalhista e previden-
tal rende ao proprietário entre R$ 50.000,00 ciária propostas pelo governo Michel Temer
e R$ 75.000,00, na esteira da audiência gerada (Ruediger, 2017).
por notícias como a de que o cantor Gilberto O estudo demonstra que o recurso a formas
Gil teria proferido críticas ao então juiz Sérgio artificiais de manifestação nas redes sociais no
Moro ou a de que a ex-primeira-dama, Marisa Brasil é uma constante nos mais diversos es-
Letícia, teria sido fotografada na Itália após a pectros políticos. Seguindo um padrão simi-
sua morte (Victor, 2017). lar ao identificado na interferência russa nas
186
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
eleições dos EUA de 2016, os robôs são utiliza- desse tipo de informação seria, portanto, o
dos com o fim de obter apoio a determinadas atendimento a interesses políticos, próprio de
causas, atacar opositores, espalhar boatos e no- “mídias hiper-partidárias” ou, ainda, da produ-
tícias falsas e, em última análise, manipular a ção de “informações de combate na forma de
opinião pública, criando um ambiente excessi- matérias noticiosas” (Ribeiro & Ortellado, 2018,
vamente polarizado, com consequências dano- pp. 73-77).
sas para a democracia: A força da polarização e dos interesses po-
líticos, no entanto, não afasta a importância
Uma das conclusões mais evidentes de uma análise mais ampla, que incorpore
nesse sentido é a concentração dessas também outros aspectos, como o papel exer-
ações em polos políticos localizados no cido pelos imperativos econômicos na pro-
extremo do espectro político, promovendo dução desse tipo de notícia. Afinal, em maior
artificialmente uma radicalização do ou menor grau, é necessário algum tipo de
debate e, consequentemente, minando suporte financeiro para sustentar as mídias
possíveis pontes de diálogo entre os hiper-partidárias.
diferentes campos políticos constituídos. Finalmente, nas eleições presidenciais de
Outro elemento flagrante é o ‘inchamento’ 2018, observou-se um padrão similar de disse-
de movimentos políticos que são, na minação de notícias falsas, com destaque para
realidade, de dimensão bastante inferior. a utilização do aplicativo WhatsApp como meio
Somados, esses riscos e outros de divulgação, estratégia questionável do ponto
representados pelos robôs, são mais do de vista da legislação eleitoral (Cruz, Massaro,
que o suficiente para jogar luz sobre & Borges, 2019). Por exemplo, estudo realizado
uma ameaça real à qualidade do debate pelo ITS Rio a partir do monitoramento de gru-
público no Brasil e, consequentemente, do pos de WhatsApp identificou fortes indícios de
processo político e social definidor dos ação coordenada e do uso de instrumentos de
próximos anos. (Ruediger, 2017, p. 8) automação para disseminar propaganda polí-
tica pelo aplicativo de mensagens (Machado &
Konopacki, 2018). Por sua vez, reportagens do
Nessa linha, Ribeiro e Ortellado (2018) sus- El País apontaram a divulgação de notícias fal-
tentam que a difusão de notícias falsas no sas como um dos focos de grupos de WhatsApp
Brasil é um produto da polarização política dos que reuniam apoiadores do então candidato
últimos anos, baseada na disputa que se esta- Jair Bolsonaro. Entre tais notícias, a de que o
beleceu entre as narrativas dos campos con- candidato do PT, Fernando Haddad, teria de-
servador (“antipetismo”) e progressista (“anti- fendido, em livro, a relação sexual entre pais
-antipetismo”). Para comprovar seu argumento, e filhos ou, ainda, a de que determinadas per-
os autores se amparam em uma análise de ma- sonalidades teriam confirmado apoio ao candi-
térias produzidas por sites de notícias e divul- dato do PSL (Benites, 2018; Oliveira & Blanco,
gadas no Facebook na semana em que o ex- 2018). Tal diagnóstico foi confirmado por es-
-presidente Lula foi julgado e condenado pelo tudo elaborado pela USP, UFMG e Agência Lupa,
Tribunal Regional Federal da 4ª Região (21 a de acordo com o qual entre as 50 imagens que
27/01/2018). A conclusão é a de que tais notí- mais circularam em grupos de WhatsApp du-
cias, em geral, não expressam “mentiras, es- rante o primeiro turno das eleições de 2018,
tritamente falando, mas [...] diversas gradações somente 4 eram verdadeiras (Marés & Becker,
de distorção”. O motor central da divulgação 2018).
187
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
Embora não se possa atribuir uma relação [...] as pessoas que escrevem e compartilham
de causalidade direta entre a disseminação de ideias deveriam ser recompensadas por sua
notícias falsas pelo WhatsApp e o resultado da capacidade de esclarecer e informar, e não
eleição de 2018, é inegável o seu papel como apenas por conseguir atrair alguns poucos
mecanismo de mobilização social e de acirra- segundos de atenção. Acreditamos que
mento da polarização política, em particular existem milhões de pessoas inteligentes
mediante ataques dirigidos ao sistema polí- que querem aprofundar sua compreensão
tico e à mídia tradicional. O fato é que o an- do mundo e estão insatisfeitas com o que
tigo modelo de campanha, baseado, essencial- encontram nos meios tradicionais e em
mente, no rádio e na TV, tende a ceder lugar a suas redes sociais. Acreditamos que um
“novas dinâmicas de comunicação política que sistema melhor – um que serve às pessoas
se desenvolvem e se transformam a partir da – é possível. Na verdade, é imperativo.
emergência da internet e das novas mídias so-
ciais” (Cruz, Massaro, & Borges, 2019, p. 31), nas
quais a divulgação de notícias falsas se apre- Ainda não há indícios de que a proposta –
senta como um dos elementos centrais. para muitos, utópica – do Medium seja viável,
No Brasil, portanto, o fenômeno das fake news e mesmo a recente instituição do modelo de
apresenta características semelhantes às identi- assinaturas tem sido objeto de críticas e de ce-
ficadas nos EUA. A conjugação entre incentivos ticismo por parte de analistas (Streitfeld, 2017).
econômicos e interesses políticos impulsiona a Não obstante, a ideia de que é possível e ne-
publicação de notícias falsas e distorce o am- cessária a construção de um novo modelo, que
biente público das redes sociais. Nesse cenário, independa ou, ao menos, que diminua os im-
o desafio posto é o de implementar medidas pactos da busca por atenção na cadeia de pro-
que possam conter esses efeitos nocivos e, ao dução de conteúdo online, deve ser tomada
mesmo tempo, promover a produção e a dis- como um princípio orientador, isto é, um ideal
seminação de conteúdos jornalísticos de quali- que deve nortear a busca por soluções e alter-
dade, bem como a autonomia do espaço virtual nativas que visem conter a desinformação nas
de comunicação. redes sociais.8
Considerando esse princípio geral, bem
como a análise efetuada ao longo deste traba-
5. Em busca de soluções lho, podem ser apontadas quatro estratégias
centrais no combate às fake news: (i) reduzir
os incentivos econômicos que premiam, de
Um dos fundadores do Twitter, Evan forma desproporcional, a atenção em detri-
Williams é também o responsável pela criação mento da qualidade ou, ainda, páginas sen-
do Medium, uma espécie de rede social de blogs sacionalistas e intermediários em detrimento
e de publicações profissionais e amadoras. O de produtores de conteúdo relevante e origi-
mote central da plataforma é ambicioso: a de- nal; (ii) fortalecer os incentivos relacionados
finição de um novo modelo de publicações na à reputação; (iii) conter a ação dos incentivos
Internet, que remunere escritores e jornalis- políticos; e (iv) subsidiariamente, impor cons-
tas em razão da qualidade do conteúdo ofer- trangimentos legais sobre a publicação de no-
tado. Conforme a descrição do próprio Willians tícias falsas.
(2017): A primeira estratégia é central, na medida
em que atinge a principal motivação de muitas
188
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
das páginas que se dedicam à produção e à di- Seguindo essa linha, o Facebook passou a im-
fusão de notícias falsas. Sem acesso a anúncios pedir que anúncios fossem associados a notícias
e a recursos financeiros, o modelo de negó- falsas após a checagem de sua veracidade por
cios desses portais se torna insustentável ou, ao organizações parceiras. Além disso, confirmada
menos, mais difícil de ser viabilizado. A imple- a falsidade, o alcance da publicação é reduzido
mentação da estratégia é relativamente simples, de forma significativa e, em caso de compar-
haja vista a concentração da distribuição da pu- tilhamento frequente desse tipo de notícia, a
blicidade online nos sistemas controlados por página responsável será proibida de anunciar
grandes empresas como Google e Facebook e o na rede social. O Google adotou medidas simi-
fato de que as notícias falsas mais populares são lares, que restringem a exposição de anúncios
produzidas por um grupo reduzido de páginas e que permitem a identificação de conteúdo
e, mais ainda, compartilhadas ativamente por comprovadamente falso nos resultados de seu
um número pequeno de usuários (Friedland buscador. Em outra frente, o Facebook anun-
et al., 2019). Mesmo quando se trata da difu- ciou o desenvolvimento de uma ferramenta de
são de notícias falsas pelo WhatsApp, parece incentivo à venda de assinaturas por veículos
haver uma forte conexão entre os diversos gru- de notícia. O modelo, cujo intuito é o de pro-
pos de mensagens, o que permite sustentar a mover as fontes de remuneração do jornalismo
hipótese de que há uma estrutura coordenada de qualidade, permitiria que, após a visualiza-
de disseminação de conteúdo, em um modelo ção de um número determinado de notícias no
mais próximo do “broadcast” do que da descen- aplicativo da rede social, o usuário seria redi-
tralização típica das novas mídias (Machado & recionado para a página de subscrição corres-
Konopacki, 2018). Conforme apontado em re- pondente, destinando-se as receitas geradas, in-
latório do Shorestein Center, da Universidade tegralmente, ao produtor do conteúdo9 (Hern,
de Harvard: 2016; Shuckla & Lyons, 2017; Summers, 2017).
Medidas como essas são essenciais para apri-
[...] a aparente concentração da morar o ambiente digital, corrigindo parte das
circulação de notícias falsas torna a sua distorções vigentes, em particular mediante a
identificação e as intervenções efetuadas diminuição dos incentivos econômicos para
pelas plataformas bem simples. Embora a publicação de notícias falsas. De qualquer
existam exemplos de sites de notícias modo, sem efetivas pressões externas, de usuá-
falsas que surgem do nada, na realidade, rios, governos, organizações sociais e anuncian-
é provável que a maioria dessas notícias tes, não é desprezível a chance dessas altera-
provenha de um número pequeno de ções se demonstrarem tímidas e limitadas, ou,
sites. Identificar as responsabilidades das mesmo, de se basearem em termos e políticas
plataformas e obter a sua atuação proativa não transparentes, com a ampliação da concen-
será essencial em qualquer estratégia de tração econômica e do poder de controle da
peso para enfrentar as notícias falsas. Se informação que circula na Internet e nas redes
as plataformas conseguissem atenuar a sociais — afinal, essas empresas são as grandes
disseminação de informações de apenas beneficiárias do atual modelo.10
alguns sites, o problema das fake news A segunda estratégia é a de fortalecer os in-
poderia ser reduzido, de forma brusca, centivos relacionados à reputação dos veículos
no curto prazo (Lazer et. al, 2017). de comunicação. Como visto, enquanto a repu-
tação no ambiente da mídia tradicional estava
associada ao nome e à confiabilidade da fonte
189
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
de informação, na Internet e nas redes sociais, fake news. A sua divulgação massiva daria pu-
a credibilidade da fonte perdeu relevância, na blicidade e conhecimento aos usuários a res-
medida em que: (i) com reduzidos custos de peito da falta de credibilidade das informações
entrada e de manutenção, páginas que publi- divulgadas por essas páginas, possibilitando
cam notícias falsas podem se dedicar a obter a criação de contracorrentes de informação e
atenção e retornos financeiros imediatos, sem ampliando-se, exponencialmente, o ônus asso-
se preocupar com a sua reputação no longo ciado a uma reputação ameaçada, o que tam-
prazo; e (ii) a legitimidade de uma notícia ou bém exerceria influência sobre anunciantes.12
de uma versão sobre a realidade social pode Essas medidas podem ser reforçadas me-
ser assegurada por meio do convencimento di- diante o esclarecimento e o empoderamento
reto de usuários, seja mediante a publicação de de usuários, de modo a permitir que estes pos-
anúncios personalizados ou mediante a sua re- sam identificar notícias falsas e se posicionar
petição e disseminação massivas, efetuadas por criticamente sobre as informações que circu-
perfis falsos ou reais. lam na Internet. Afinal, usuários são parte re-
Nesse cenário, o fortalecimento dos incen- levante do processo de atribuição de credibi-
tivos relacionados à reputação demanda, entre lidade a uma notícia nas redes sociais: quanto
outras medidas, ampliar os ônus associados à mais pessoas compartilham, notadamente ami-
reputação de páginas dedicadas à publicação gos e pessoas próximas, maior aparenta ser a
de notícias falsas. Com esse intuito, é essen- confiabilidade dos fatos relatados. Nessa linha,
cial, por um lado, atribuir visibilidade à con- o Facebook anunciou que, ao lado de notícias
testação e à checagem dos fatos que demons- cuja veracidade foi contestada, serão apresen-
trem o caráter inverídico da informação, em tados artigos com conteúdo alternativo, ofere-
particular daquelas com maior repercussão nas cendo aos usuários “mais perspectivas e infor-
redes sociais. É preciso, nesse sentido, expor mações adicionais” (Facebook promises new
a verdade de forma mais ruidosa e alta, o que fake news measures, 2017).
pode ser efetuado pelas próprias redes sociais A proposta vai ao encontro do objetivo de
ou, ainda, pelos veículos tradicionais de mídia. empoderar os usuários, permitindo, em al-
De fato, no Brasil, a mídia tradicional ainda é guma medida, romper a bolha de informação
fonte relevante de informação para muitas pes- gerada nas redes sociais e reforçada por seus
soas e possui alto índice de confiança, o se- algoritmos. Não obstante, trata-se de uma ação
gundo maior entre 36 países pesquisados, com limitada, particularmente em vista do tama-
cerca de 60% dos entrevistados afirmando que, nho do problema e das inúmeras alternativas
de forma geral, confiam nos veículos de co- que poderiam ser testadas. Nesse sentido, Cass
municação. O nível de confiança é muito mais Sunstein sugere que o Facebook ofereça uma
elevado do que, por exemplo, o dos EUA (38%) espécie de “botão do acaso” (serendipity button),
e o da França (30%), países em que, notoria- por meio do qual os usuários seriam expostos
mente, o fenômeno das fake news exerceu forte a notícias e informações aleatórias:
influência em processos eleitorais recentes
(Newman, N., Fletcher, R., Kalogeropoulos, A., Experimentação é a palavra de ordem
Levy, D. A. L., & Nielsen, R. K, 2017).11 aqui. Uma ideia mais agressiva seria a
Por outro lado, é importante atribuir visibili- de que os usuários receberiam pontos
dade negativa às páginas que mais publicam no- de vista aleatórios ou opostos por
tícias falsas. Uma possibilidade seria a criação padrão, sujeito à opção de desabilitar
de um ranking dos portais que mais publicam a funcionalidade. Com esse sistema, o
190
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
seu News Feed poderia conter todo tipo usuários, à semelhança do que vem ocorrendo
de surpresas. Claro, você continuaria em outras redes sociais, tais como a instituição
vendo publicações de seus amigos, mas de meios de encaminhamento de denúncias re-
você também teria acesso a outras coisas; lativas ao uso de spam ou de postagens de no-
seu News Feed seria um pouco como tícias falsas, inclusive mediante parcerias com
viver em uma cidade grande ou ler um agências de checagem de fatos.13
jornal. É verdade que alguns usuários Por fim, qual o papel da regulação estatal na
não gostariam disso e, por tal motivo, o contenção das fake news? Como regra geral, a
Facebook também não amaria o sistema – atuação do Estado, por meio de multas e ou-
mas as pessoas poderiam desativá-lo com tras penas, deve ser subsidiária e excepcional,
facilidade. (Sunstein, 2017, pp. 232-233) limitada às situações mais graves, nas quais
seja possível identificar a ocorrência de danos
e a violação a direitos individuais.14 No Brasil,
Essas medidas também são importantes o tema é sensível, dada a larga tradição au-
como forma de contenção dos incentivos as- toritária que ainda persiste no país e que se
sociados aos interesses políticos. Isso porque reflete nas inúmeras e constantes tentativas
a disseminação de notícias falsas se beneficia – por meio de projetos de lei e decisões judi-
diretamente da polarização no ambiente di- ciais – de impor a censura na rede. No âm-
gital e do fato de os usuários terem cada vez bito eleitoral, em particular, a legislação que
menos acesso a pessoas e a informações que rege a realização de campanhas na Internet é
reflitam pontos de vista diversos ou que con- muito restritiva, conferindo amplos poderes a
trariem as suas convicções. Assim, embora não juízes para bloquear o acesso a páginas e de-
se possa negar a relevância do aprimoramento terminar a retirada de publicações considera-
de técnicas que permitam identificar o uso de das ofensivas. O maior problema, como lembra
robôs, perfis falsos e publicações automatiza- Aline Osorio (2017, p. 348), “está na excessiva
das, as alternativas e a experimentação deve- proteção conferida pela legislação e pela juris-
riam ser mais profundas e envolver a discussão prudência eleitoral à honra e à reputação dos
e o aprimoramento da atual estrutura das redes políticos e candidatos”.
sociais, incluindo a difusão de notícias falsas Nesse contexto, há o risco de que o combate
pelo WhatsApp. às fake news seja utilizado como um rótulo abs-
Neste último caso, a necessária proteção à trato para incorporar velhas e conhecidas de-
privacidade de usuários não pode encobrir o mandas visando silenciar opositores e discur-
fato de que o aplicativo deixou de ser apenas sos críticos em face de autoridades e políticos.
um meio particular de troca de mensagens, A regra, portanto, deve ser a garantia da liber-
haja vista ter assumido o papel de veículo de dade de expressão, tomando por base o princí-
informação e de transmissão de notícias, com pio assegurado na jurisprudência do Supremo
amplas repercussões sobre a esfera pública, o Tribunal Federal, de acordo com o qual o exer-
que, certamente, demanda um tratamento di- cício desse direito abrange a crítica a qualquer
ferenciado. São relevantes, nesse sentido, a am- pessoa, ainda que contundente e em tom ás-
pliação da transparência acerca das políticas da pero, especialmente contra as autoridades e os
empresa, incluindo a divulgação de metadados agentes de Estado (ADPF nº 130, 2009).15
a respeito do uso da plataforma, além da adoção
de medidas que limitem as possibilidades de
disseminação de notícias falsas e empoderem
191
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
Cruz, F., Massaro, H., & Borges, E. (2019). Friedland, L., Joseph, K., Grinberg, N., Swire-
‘Santinhos’, memes e correntes: um Thompson, B., & Lazer, D. (2019). Fake
estudo exploratório sobre spams news on Twitter during the 2016 U.S.
recebidos por WhatsApp durante presidential election. Science, 363, pp.
as eleições. InternetLab: São Paulo. 374-378. Acesso em 19 de novembro
Disponível em: http://www.internetlab.org. de 2019, disponível em https://science.
br/pt/informacao-e-politica/santinhos-memes-e- sciencemag.org/content/363/6425/374.abstract
correntes-um-estudo-sobre-spams-nas-eleicoes/ Funke, D. (2017, 14 de setembro). Fake news
Dewey, C. (2016, 17 de novembro). Facebook probably won’t affect the outcome of
fake-news writer: ‘I think Donald Germany’s election. Here’s why. Poynter.
Trump is in the White House because Acesso em 26 de setembro de 2017,
of me’. Washington Post. Acesso em 18 de disponível em https://www.poynter.org/
setembro de 2019, disponível em https:// news/fake-news-probably-wont-affect-outcome-
www.washingtonpost.com/news/the-intersect/ germanys-election-heres-why
wp/2016/11/17/facebook-fake-news-writer-i- Google’s revenue worldwide from 2002 to
think-donald-trump-is-in-the-white-house- 2016. (2017). Statista. Acesso em 22
because-of-me/?utm_term=.0024acfe5ea4 de setembro de 2017, disponível em
Entenda o caso Gugu e a suposta entrevista do https://www.statista.com/statistics/266206/
PCC. (2003, 23 de setembro). Folha de googles-annual-global-revenue/
S. Paulo. Acesso em 12 de setembro de Hern, A. (2016, 15 de novembro). Facebook
2017, disponível em http://www1.folha.uol. and Google move to kick fake news
com.br/folha/cotidiano/ult95u82662.shtml sites off their ad networks. The
Especialistas divergem de decisão da Justiça Guardian. Acesso em 24 de setembro
sobre “Domingo Legal”. (2003, 22 de de 2017, disponível em https://www.
setembro). Folha de S. Paulo. Acesso em theguardian.com/technology/2016/nov/15/
12 de setembro de 2017, disponível em facebook-google-fake-news-sites-ad-networks
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ Jackson, J. (2016, 13 de novembro). Mark
ult95u82586.shtml Zuckerberg vows more action to tackle
Facebook promises new fake news measures. fake news on Facebook. The Guardian.
(2017, 03 de agosto). BBC NEWS. Acesso em 25 de setembro de 2017,
Acesso em 04 de setembro de 2017, disponível em https://www.theguardian.com/
disponível em http://www.bbc.com/news/ technology/2016/nov/13/mark-zuckerberg-vows-
technology-40812697 more-action-to-tackle-fake-news-on-facebook
Facebook’s annual revenue and net Kafka, P. (2017, 27 de julho). Facebook
income from 2007 to 2016. (2017). wants to help news publishers sell
Statista. Acesso em 22 de setembro subscriptions, but says it doesn’t want
de 2017, disponível em https:// a cut of the revenue. Recode. Acesso
www.statista.com/statistics/277229/ em 24 de setembro de 2017, disponível
facebooks-annual-revenue-and-net-income/ em https://www.recode.net/2017/7/27/16051316/
facebook-mark-zuckerberg-subscription-media-
publisher-terms-revenue-data
194
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
Konopacki, M., & Machado, C. (2018). Poder Ministério multa SBT por falsa reportagem
computacional: automação no uso do sobre o PCC. (2003, 11 de dezembro).
WhatsApp nas eleições. ITS Rio. Acesso Folha de S. Paulo. Acesso em 12 de
em 26 de junho de 2019, disponível em setembro de 2017, disponível em
https://feed.itsrio.org/poder-computacional- http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/
automa%C3%A7%C3%A3o-no-uso-do-whatsapp- ult90u39660.shtml
nas-elei%C3%A7%C3%B5es-e969746d231f Newman, N., Fletcher, R., Kalogeropoulos, A.,
Lazer, D., Baum, M., Grinberg, N., Friedland, Levy, D. A. L., & Nielsen, R. K. Digital
L., Joseph, K., Hobbs, W., & Mattsson, C. news report. (2017). Reuters Institute,
(2017). Combating fake news: an agenda University of Oxford. Acesso em 26 de
for research and action. Harvard setembro de 2017. Disponível em https://
Kennedy School, Shorenstein Center reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/sites/default/
on Media, Politic, and Public Policy. files/Digital%20News%20Report%202017%20
Acesso em 25 de setembro de 2017, web_0.pdf ?utm_source=digitalnewsreport.
disponível em https://shorensteincenter.org/ org&utm_medium=referral
combating-fake-news-agenda-for-research/ North, D. (2018). Instituições, mudança
Lemos, A. (2017, 14 de fevereiro). Compra de institucional e desempenho econômico. Três
mídia cai 1,6%, diz Monitor. Acesso em Estrelas, São Paulo.
20 de setembro de 2017, disponível em Oliveira, J., & Blanco, P. (2018, 28 de outubro).
http://www.meioemensagem.com.br/home/ Os ‘whatsapp’ de uma campanha
midia/2017/02/14/compra-de-midia-cai-16-diz- envenenada. El País Brasil. Disponível
monitor.html em https://brasil.elpais.com/especiais/2018/
Lima, V. (2005). Globo e política: “tudo a ver”. eleicoes-brasil/conversacoes-whatsapp/
In: Britos, V., & Bolaño, C. (orgs.). Rede Osorio, A. (2017). Direito eleitoral e liberdade de
Globo: 40 anos de poder e hegemonia. expressão. Fórum, Belo Horizonte.
Paulus: São Paulo, pp. 103-129. Prado, L. (2008, 20 de agosto). Ibope Monitor:
Marés, C., Becker, C. (2018, 17 de outubro). O investimentos publicitários no semestre.
(in)acreditável mundo do WhatsApp. Acesso em 20 de setembro de 2017,
Agência Lupa. Acesso em 04 de disponível em: http://www.clubedecriacao.
julho de 2019, disponível em https:// com.br/ultimas/ibope-monitor-92/
piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/10/17/ Recomendação nº 4, de 11 de junho de
whatsapp-lupa-usp-ufmg-imagens/ 2018. Recomenda sobre medidas de
Mattos, L. (2007, 23 de janeiro). Em queda combate às fake news (notícias falsas)
desde caso PCC, Gugu tenta levantar e a garantia do direito à liberdade de
ibope com jornalismo. Folha de S. Paulo. expressão. Conselho Nacional dos
Acesso em 12 de setembro de 2017, Direitos Humanos. Acesso em 18 de
disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ setembro de 2019, disponível em: http://
folha/ilustrada/ult90u67784.shtml www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/
Miguel, L. F., & Biroli, F. (2011). Caleidoscópio Kujrw0TZC2Mb/content/id/27129495/do1-
convexo: mulheres, política e mídia. 2018-06-25-recomendacao-n-4-de-11-de-
Unesp, São Paulo. junho-de-2018-27129463
195
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
Ribeiro, M. M., & Ortellado, P. (2018). O que Shukla, S., & Lyons, T. (2017, 28 de agosto).
são e como lidar com as notícias falsas. Blocking Ads from Pages that
Sur, Revista Internacional de Direitos Repeatedly Share False News. Facebook
Humanos, (v. 15), n. 27, pp. 71-83. Newsroom. Acesso em 24 de setembro
Disponível em https://sur.conectas.org/o-que- de 2017, disponível em https://newsroom.
sao-e-como-lidar-com-as-noticias-falsas/ fb.com/news/2017/08/blocking-ads-from-pages-
Ruediger, M. A. (2017). Robôs, redes sociais that-repeatedly-share-false-news/
e política no Brasil: estudo sobre Silverman, C. (2016, 16 de novembro). This
interferências ilegítimas no debate analysis shows how viral fake election
público na web, riscos à democracia e news stories outperformed real news
processo eleitoral de 2018. Fundação on Facebook. BuzzFeed. Acesso em 21
Getúlio Vargas, Diretoria de Análise de de setembro de 2017, disponível em
Políticas Públicas. Disponível em http:// https://www.buzzfeed.com/craigsilverman/
dapp.fgv.br/robos-redes-sociais-e-politica-estudo- viral-fake-election-news-outperformed-real-
da-fgvdapp-aponta-interferencias-ilegitimas-no- news-on-facebook?utm_term=.qs87MNwJ3Z#.
debate-publico-na-web/ ih0P74Wwjb
Shaban, H. (2017, 27 de julho). Quarterly Solon, O. (2017, 25 de março). Google’s
earnings for Google, Facebook reflect bad week: YouTube loses millions
growing dominance in digital ad as advertising row reaches US. The
market. Washington Post. Acesso em 20 Guardian. Acesso em 16 de setembro
de setembro de 2017, disponível em de 2017, disponível em https://www.
https://www.washingtonpost.com/business/ theguardian.com/technology/2017/mar/25/
economy/quarterly-earnings-for-google- google-youtube-advertising-extremist-content-
facebook-reflect-growing-dominance-in-digital- att-verizon
ad-market/2017/07/27/938360e4-731a-11e7-8f39- Streitfeld, D. (2017, 20 de maio). ‘The internet
eeb7d3a2d304_story.html is broken’: @ev is trying to salvage it.
Shane, S. (2017, 07 de setembro). The Fake New York Times. Acesso em 23 de setem-
Americans Russia Created to Influence bro de 2017, disponível em https://www.
the Election. New York Times. Acesso nytimes.com/2017/05/20/technology/evan-wil-
em 20 de setembro de 2017, disponível liams-medium-twitter-internet.html?emc=e-
em https://mobile.nytimes.com/2017/09/07/us/ dit_th_20170521&nl=todaysheadlines&nli-
politics/russia-facebook-twitter-election.html d=68634180/%E2%80%98The
Shane, S., & Goel, V. (2017, 06 de setembro). Subramanian, S. (2017, 21 de maio). Inside
Fake Russian Facebook Accounts the Macedonian fake-news complex.
Bought $100,000 in Political Ads. New Wired. Acesso em 18 de setembro de
York Times. Acesso em 20 de setembro, 2017, disponível em https://www.wired.
disponível em https://www.nytimes. com/2017/02/veles-macedonia-fake-news/
com/2017/09/06/technology/facebook-russian- Summers, N. (2017, 04 de julho). Google
political-ads.html?mcubz=0. will flag fake news stories in search
results. Engadget. Acesso em 24 de
setembro de 2017, disponível em
https://www.engadget.com/2017/04/07/
google-fake-news-fact-check-search-results/
196
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
enciclopédia online também fundada por Wales. dos elementos que contribuíram para reduzir
Sem anúncios ou conteúdos exclusivos para as- o impacto das fake news nas eleições legislativas
sinantes, a página é de acesso livre, mantida de setembro de 2017 (Funke, 2017).
unicamente por doações de leitores e voluntá-
rios, que podem contribuir ativamente na cor- 12 A sugestão é inspirada na experiência
reção e aprimoramento das reportagens. da campanha “Quem Financia a Baixaria é con-
9 Como explicou Campbell Brown, repre- tra a Cidadania”. Criada nos anos 2000, a cam-
sentante do Facebook: “o jornalismo de quali- panha divulgava o “ranking da baixaria”, con-
dade custa caro para ser produzido e nós que- tendo a relação dos programas da TV brasileira
remos ter certeza de que ele pode prosperar no que mais desrespeitavam direitos humanos.
Facebook. Como parte do nosso teste para per- Com isso, buscava-se pressionar tanto as emis-
mitir que os editores possam implementar um soras quanto os anunciantes (Carvalho, 2016,
paywall no Instant Articles, haverá um redirecio- pp. 118-119).
namento para seus próprios sites para processar
assinaturas, mantendo 100% da receita gerada” 13 Tardáguila, Bevenuto e Ortellado (2018)
(Kafka, 2017). sugerem medidas como limitação do tamanho
de novos grupos e restrição de encaminhamen-
10 Lembre-se que, de início, a estratégia tos e transmissões pelo WhatsApp. Por sua vez,
do Facebook foi a de menosprezar o impacto da Cruz, Massaro e Borges (2019) sugeriram a cria-
circulação das fake news sobre as eleições pre- ção de um canal direto, no âmbito da Justiça
sidenciais nos EUA. Com o aumento da pres- Eleitoral, para recebimento de denúncias de
são e das informações disponibilizadas, essa ati- spam.
tude se converteu em uma postura mais ativa,
acompanhada do anúncio de diversas medidas 14 Como pondera Sérgio Branco, “não pa-
visando enfrentar o problema ( Jackson, 2016). rece, contudo, que a regulação jurídica será a
mais eficiente. Nem pela censura, nem pela
11 Não se trata aqui de afirmar a existên- indenização. Afinal, muitas das notícias falsas
cia de uma relação causal direta entre o baixo são juridicamente irrelevantes e não geram
índice de confiança na mídia e a difusão de qualquer consequência no mundo real. [...] Em
notícias falsas, até porque este é um fenômeno outros casos, entretanto, como alguns daque-
complexo, associado a diversos fatores. Não les aqui mencionados, de fato há danos reais,
obstante, o dado em questão é relevante, pois, e estes devem ser compensados e punidos”
entre outras consequências, a baixa confiança (Branco, 2017, p. 61). Em sentido similar, cf.
na mídia pode impulsionar leitores a procu- Ribeiro e Ortellado (2018, p. 80).
rar fontes não tradicionais de informação, con-
forme ponderam Allcott e Gentzkow (2017, 15 Na Recomendação nº 4, de 11 de junho
p. 224), tomando por base dados que atestam de 2018, o Conselho Nacional dos Direitos
uma queda mais acentuada de confiança na Humanos (CNDH) externou preocupação com
mídia dos EUA entre eleitores republicanos. o risco de “derrubada generalizada de conteú-
Vale registrar, ainda, que, na Alemanha, o ín- dos na internet”, restrição de “críticas legíti-
dice de confiança na mídia é elevado, em torno mas” e silenciamento de “vozes dissidentes”,
de 50%, o que vem sendo apontado como um em especial se aprovadas propostas legislati-
vas baseadas em critérios vagos e em sanções
desproporcionais, notadamente na área penal.
199
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A DEMOCRACIA FRUSTRADA: FAKE NEWS, POLÍTICA LUCAS BORGES
PÁGINAS 172 A 199 E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS DE CARVALHO
Recebido em 05/07/2019
Aceito em 18/12/2019
200
ARTIGO
“Li e aceito”:
violações a direitos
fundamentais nos
termos de uso das
plataformas digitais
“Li e aceito”:
violações a direitos
fundamentais nos
termos de uso das
plataformas digitais
Palavras-chave Resumo
termos de uso O objetivo deste trabalho é averiguar em que
direitos fundamentais medida os Termos de Uso, enquanto espé-
privacidade cie contratual específica, se adequam a pa-
liberdade de expressão râmetros mínimos de efetivação de Direitos
devido processo legal Fundamentais. A pesquisa desenvolveu-se a par-
tir da teoria da eficácia horizontal dos Direitos
Fundamentais (Drittwirkung). Buscou-se, em
primeiro lugar, verificar se Intermediários de
Internet – empresas que desenvolvem platafor-
mas online e aplicativos e proveem o acesso
à Internet – são capazes de impor limitações
a direitos fundamentais dos usuários. Em se-
guida, a pesquisa analisou a materialização da
relação jurídica entre plataformas e usuários
através dos Termos de Uso, analisando sua va-
lidade no ordenamento jurídico brasileiro e os
problemas relacionados à obtenção do consen-
timento do usuário. Por fim, os Termos de Uso
foram analisados enquanto espécie contratual
específica, ressaltando-se cláusulas comuns a
este tipo de contrato e como tais disposições se
opõem aos direitos de privacidade, liberdade
de expressão e devido processo legal. A pes-
quisa concluiu que os Termos de Uso e as polí-
ticas de privacidade das empresas não se mos-
tram compatíveis, em diversos aspectos, com
garantias mínimas dos Direitos Fundamentais
dos usuários.
202
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
Keywords Abstract
terms of service This study aims to analyze the Terms of Service
fundamental rights of digital platforms as a unique contractual
privacy genre in order to verify if these documents
freedom of expression comply with minimum Fundamental Rights
due process standards. The research was developed relying
upon the third-party effect of Fundamental
Rights (Drittwirkung) and aimed to examine
at to what extent Internet Intermediaries can
cause limitations to users’ rights such as pri-
vacy, freedom of expression, and due process,
as well as if these rights are applicable in the
private relationship between users and online
platforms. This work also demonstrates how
Terms of Use embodies a legal relationship;
lists common clauses to this category of con-
tract and indicate its legal problems; and de-
monstrates how theses common clauses are
not compatible with freedom of expression,
privacy, and due process rights.
203
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
que a vinculação dos particulares aos Internet são estruturas dotadas de grande poder
direitos fundamentais – em se tratando de sobre os indivíduos e se apresentam como ver-
detentores de poder social – será também dadeiras infraestruturas de serviços considera-
equivalente à que se verifica no caso dos dos essenciais. Os gigantes da Internet4, por sua
órgãos estatais. (Sarlet, 2012, p. 325) dimensão e oferta de serviços em grande es-
cala, tornaram-se indispensáveis ao cotidiano
do homem contemporâneo. O Google é uma
Daniel Sarmento também entende que ferramenta indispensável para busca de dados;
deve haver aplicação direta dos Direitos a Amazon tornou-se a empresa mais valiosa
Fundamentais nas relações jurídicas do mundo e exerce um papel fundamental no
assimétricas: setor de vendas a varejo; e o Facebook tornou-
-se imprescindível para o fluxo de informações
A desigualdade material justifica a e comunicação entre pessoas. À medida em
ampliação da proteção dos direitos que estas plataformas são mais utilizadas, elas
fundamentais na esfera privada, porque se tornam mais fundamentais para o acesso à
se parte da premissa de que a assimetria informação, podendo-se afirmar que parte da
do poder prejudica o exercício da vida econômica, social e cultural dos indiví-
autonomia privada das partes mais débeis. duos flui por meio dos serviços oferecidos por
O hipossuficiente, no mais das vezes vai estas empresas.
acabar curvando-se diante do arbítrio do Rahman (2018) identificou diferentes for-
mais poderoso, ainda que, do ponto de vista mas de poder exercidos pelos Intermediários
puramente formal, seu comportamento de Internet, especialmente pelas plataformas
possa parecer decorrente do exercício da sua online. Em primeiro lugar, as plataformas on-
autonomia privada. (Sarmento, 2004, p.262) line detêm a seu favor a quantidade de usuários
que dependem do seu serviço e o acessam dia-
riamente. Isto gera uma procura por parte de
Para Konrad Hesse (1998), a vinculação direta outras entidades que desejam ver seu conteúdo
dos particulares aos Direitos Fundamentais se veiculado por meio daquelas plataformas online
verifica nos casos em que se cuida de exercí- que possuem muitos usuários. Hoje, por exem-
cio de poder econômico e social e a liberdade plo, os grupos de jornalismo precisam veicular
fundamental individual se encontra particular- suas notícias por meio do Facebook para garan-
mente ameaçada. tir mais acessos, da mesma forma que editoras
Percebe-se que a doutrina jurídica é consis- e autores, se quiserem alcançar um maior nú-
tente ao reconhecer a aplicabilidade imediata mero de potenciais clientes, colocarão seus li-
dos Direitos Fundamentais naquelas relações vros à venda na Amazon. Além disto, é comum
privadas em que haja uma certa subordina- que plataformas online estipulem preços para
ção entre o indivíduo e o ente privado dotado aqueles interessados em ver seus conteúdos
de maior poder social. Resta saber se a rela- destacados ou impulsionados.
ção entre os Intermediários de Internet e seus Isto leva a uma outra forma de poder: o con-
usuários pode ou não ser classificada como pa- trole da transmissão de informações. Através
ritária, ou se entre eles existe uma desigual- de seus algoritmos, as plataformas online
dade capaz de justificar a aplicação dos Direitos podem privilegiar determinados conteúdos em
Fundamentais naquelas relações. detrimentos de outros, controlando, portanto,
Evidentemente, os Intermediários de o fluxo de informações recebidas pelo usuário.
206
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
Através de pequenos ajustes nos seus códigos outro lado, preservar o princípio da autono-
e motores de busca, é possível, por exemplo, mia sem que isso signifique o poder de sujei-
que o Google apresente determinada informa- tar e ser sujeitado à arbitrariedade de entidades
ção no topo da sua lista de resultados para al- privadas. É evidente que na colisão entre di-
guns usuários e resultados diferentes para ou- reitos fundamentais de titulares diversos deve
tros utilizadores. ser buscada uma solução norteada pela ponde-
Em terceiro lugar, as plataformas online, em ração dos valores em pauta, almejando obter
especial as redes sociais, possuem mecanismos um equilíbrio e concordância prática, caracte-
de classificação e etiquetação dos seus usuá- rizada pelo não sacrifício completo de um dos
rios. Através das informações coletadas, como Direitos Fundamentais, bem como pela preser-
páginas visualizadas e conteúdos com o qual vação, na medida do possível, da essência de
o usuário interagiu e classificou, as redes so- cada um.
ciais “encaixam” seus usuários em determi- Em seguida, será feita uma análise de como
nados perfis e grupos sociais, com o fim de os Termos de Uso das plataformas online ma-
direcionar publicidade e apresentar conteúdo terializam uma relação jurídica contratual, na
relevante para aquele grupo ou indivíduo. A qual a autonomia privada e a aplicabilidade
geração destes rankings de usuários e produtos de outros Direitos Fundamentais estão em
afeta diretamente as escolhas feitas pelos usuá- conflito.
rios no que se refere a compras online e con-
sumo de conteúdo na Internet. Esta segmen-
tação dos usuários, segundo Lorenzetti (2004)5, 3. Dimensão contratual
tem despertado críticas. A etiquetação perfor- dos termos de
mada pelas plataformas online e a adoção de al-
goritmos acaba reproduzindo vieses de gênero, uso: autonomia e
classe social e etnia, reforçando estereótipos ar- consentimento
raigados na sociedade (Frazão, 2019).
Como se percebe, as plataformas online detêm
um alto grau de controle sobre o fluxo de in- As relações cibernéticas nunca foram livres
formações na Internet, o que lhes garante um de uma regulação offline. Em verdade, a Web foi,
poder social que dificilmente será alcançado em vários aspectos, produzida e monitorada
por um único indivíduo. Analisando a capaci- pelo poder estatal, que vem tentando regula-
dade que os Intermediários de Internet têm de mentar sua utilização através de uma robusta
afetar a vida cotidiana de seus usuários, é evi- legislação. Tampouco a Internet está livre dos
dente que na relação entre eles deve prevalecer poderes e interesses corporativos. Atualmente,
o entendimento de que se aplicam os Direitos as maiores comunidades e os serviços mais uti-
Fundamentais. É afirmar, portanto, que, nas lizados são de propriedade de empresas de tec-
relações entre usuários e Intermediários de nologia, comumente chamadas de “gigantes da
Internet, os Direitos Fundamentais devem ser Internet”, com capacidade de controle sobre
respeitados como meio de alcançar um equilí- as estruturas e algoritmos que formam a rede.
brio na relação jurídica firmada entre as partes. Além da regulação legal e por código ou algo-
É preciso dizer, no entanto, que o reconhe- ritmo (Lessig, 2006), os usuários de Internet se
cimento da eficácia dos Direitos Fundamentais submetem, por fim, a uma regulação contra-
nas relações privadas não busca anular o prin- tual. A grande maioria dos provedores de servi-
cípio da autonomia privada. Busca-se, por ços online, ao oferecerem seus serviços, exigem
207
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
que o usuário final se vincule a um contrato online a um elevado grau de risco econômico
que regula a relação jurídica entre as partes. e jurídico, mormente quando estes serviços
Estes contratos são comumente denominados podem ser utilizados por uma quantidade in-
pelas expressões “termos de uso” (“terms of use”), determinada de usuários nas mais diversas ju-
“acordo do usuário” (“user agreement”), “condi- risdições. Trata-se, portanto, de mecanismo
ções de uso” (“conditions of use”), “avisos legais” jurídico que visa viabilizar a oferta dos servi-
(“legal notices”), “termos” (“terms”) ou “termos e ços a nível global, criando previsibilidade e se-
condições de uso” (“terms and conditions of use”). gurança jurídica, resguardando o provedor de
Qualquer pessoa que tente acessar serviços serviços online de uma série de limitações jurí-
oferecidos por plataformas online será defron- dicas existentes, como a responsabilidade pelo
tada com a necessidade de concordar com a fato ou vício do produto ou do serviço, a di-
seguinte afirmação: “Li e aceito os Termos de versidade de jurisdições competentes e de leis
Uso”. Os Termos de Uso ou Termos de Serviço aplicáveis para o julgamento de eventuais lití-
são contratos que governam a relação jurídica gios. Na prática, percebe-se que os Termos de
entre o usuário final e o provedor de serviços Uso oferecem muitas vantagens aos provedores
online. Estes contratos são geralmente acompa- de serviços online, que os utilizam para impor
nhados de outros documentos anexos, como cláusulas limitativas dos direitos dos usuários.
políticas de privacidade, política de cookies, pa- Ditos contratos devem ser classificados como
drões de comunidade, entre outros (Venturini relações de consumo. No direito brasileiro, a
et al., 2016). relação jurídica de consumo é estabelecida pela
Os Termos de Uso são documentos padro- composição de fornecedor e consumidor em
nizados, definidos unilateralmente pelo prove- lados opostos, e tendo como objeto o produto
dor de serviços e apresentados indiscriminada- ou serviço, conforme se depreende da análise
mente a todos os usuários. Considerando que dos arts. 2º e 3º do CDC6. A categoria de pro-
os usuários não têm a possibilidade de negociar, duto ou serviço é desenvolvida no art. 3º, pará-
mas apenas de aceitar ou não as cláusulas, esses grafos 1º e 2º, do CDC com ampla abrangência,
contratos se encaixam na categoria de contra- considerando todo bem ou atividade fornecida
tos de adesão, definidos pelo Código de Defesa no mercado de consumo, mediante remune-
do Consumidor no seu art. 54, caput; ração. Há que se dizer, porém, que a obten-
ção de lucro por parte da empresa de tecnolo-
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas gia nem sempre está associada ao pagamento
cláusulas tenham sido aprovadas pela de forma direta e monetária pelo usuário. No
autoridade competente ou estabelecidas caso das redes sociais por exemplo, os usuá-
unilateralmente pelo fornecedor rios não realizam pagamentos para a utiliza-
de produtos ou serviços, sem que o ção de suas contas. Isso não significa, contudo,
consumidor possa discutir ou modificar que as plataformas não possuam fins lucrativos.
substancialmente seu conteúdo. Empresas provedoras de aplicações e de con-
teúdo recebem remuneração de outras formas,
comercializando dados e direcionando campa-
A adoção deste tipo de contrato busca via- nhas publicitárias realizadas para seus usuários,
bilizar a oferta de um produto a nível global, sem que estes possam escolher tê-las ou não.
eliminando custos com negociação e eventuais Neste sentido, o Superior Tribunal de
responsabilidades. A falta de um instrumento Justiça já decidiu que a remuneração de que
jurídico padronizado submeteria as plataformas trata o artigo 3º, § 2º, do CDC não precisa
208
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
necessariamente ser econômica, bastando que vista o formato utilizado para a exposição
algum benefício seja adquirido por aquele que do hiperlink, isto é, indicado com letras
figura enquanto fornecedor, como é o caso das minúsculas, no canto inferior da página
remunerações indiretas auferidas pelas redes da internet (geralmente não visível
sociais.7 Conclui-se, portanto, que se tratam de quando se acessa o site) e com uma cor
relações de consumo, segundo a lei e jurispru- demasiadamente clara, a ponto de tornar-se
dência nacionais. imperceptível, tendo em vista a cor
Quanto à forma de obtenção do consenti- utilizada no plano de fundo da tela. Assim,
mento dos usuários, os Termos de Uso podem o consumidor que, ingenuamente, acesse
ser classificados em “click-wrap agreements” ou uma página na internet, poderá estar se
“browse-wrap agreements”. Nos “click-wrap agree- vinculando a termos e condições que sequer
ments” ou “contratos de clique”, os termos do tomou conhecimento de sua existência.
contrato ou os meios para acessá-lo são exibi- Por isso, esta prática comercial telemática
dos previamente para o utilizador, que tem a chama a atenção dos juristas, na busca
opção de aceitá-los mediante um clique num incessante da justiça e equilíbrio contratual,
botão virtual que indique sua concordância. Já ainda mais em se tratando de uma relação
nos “browse-wrap agreements”, as cláusulas con- de consumo. Portanto, os consumidores
tratuais são disponibilizadas por meio de um merecem um sistema de proteção
hiperlink no rodapé da página do site, com pouca diferenciado, ainda mais diante deste novo
visibilidade, e incluem cláusulas que vinculam contexto tecnológico. (Lima, 2009, p. 540)
o usuário sem sua aceitação expressa, que é
presumida pelo mero acesso ao site ou utiliza-
ção do serviço. Por outro lado, é possível afirmar que a dou-
A modalidade “browse-wrap agreement” não trina se inclina para a validade dos “click-wrap
tem sido considerada válida pela maioria dos agreements”, justamente porque nesta moda-
tribunais e doutrina do sistema Common Law, lidade o usuário manifesta sua vontade ex-
tampouco pelos tribunais da União Europeia pressamente, exteriorizando-a através de uma
(Lima, 2009). Também não seria sustentável de- conduta social típica, ou seja, um clique em
fender sua aplicação e validade de acordo com um determinado ícone representativo de sua
o direito brasileiro, uma vez que, nesta espé- anuência (Lima, 2009):
cie, não se concede oportunidade prévia ao
usuário de analisar a cláusulas dos Termos de A expressão “click-wrap” deriva do fato de
Uso a que se pretende sua vinculação, e “sem o que estes contratos online frequentemente
mútuo consenso, sem a alteridade, não há con- requerem um clique com o mouse em
trato” (Tartuce, 2014, p. 137). Admitir a validade um ícone na tela ou num botão que
dessa modalidade contratual feriria o direito sinaliza a aceitação da parte às condições
do consumidor à informação clara e precisa contratuais. Os contratos click-wrap
(art. 6º, inc. III do CDC8), a boa-fé objetiva e a são usados, dentre outras coisas, para (1)
própria autonomia privada. A propósito: estabelecer os termos para o download e
uso de programas na Internet; (2) definir
O “browse-wrap” demanda pouca ou os Termos de Uso de um site, isto é, as
nenhuma interação com o usuário, condições para que os usuários acessem
que, usualmente, nem chega a tomar um site ou a parte de um site, como um
conhecimento de sua existência, haja chat ou um serviço de mensagem; e (3)
209
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
estabelecer os termos para venda bens e Termos de Uso dos serviços e produtos online
serviços online. (Buono & Friedman, 1999)9 utilizados e, menos ainda, que os termos sejam
plenamente compreendidos por usuários que
não são detentores de conhecimento jurídico.
Logo, o consentimento eletrônico nos con- Os principais obstáculos a um consentimento
tratos do tipo “click-wrap” é manifestado de informado e esclarecido sobre os Termos de
forma expressa no momento em que o adqui- Uso são os seguintes: o texto longo, a lingua-
rente clica no ícone referente à expressão de gem ininteligível e a dificuldade de encontrar
anuência, tais como “eu aceito”, “eu concordo”, e acessar os Termos de Uso.
“sim”, etc. A partir deste instante, em linha com Vários estudos apontam que a leitura é de-
o princípio do Direito Civil de que o contrato morada. Um estudo da Universidade Carnegie
se torna lei entre as partes (pacta sunt servanda), Mellon, nos Estados Unidos, de 2008, mostrou
o usuário-adquirente está obrigado às cláusulas que um usuário precisaria reservar oito horas
contratuais, com as quais concordou expres- diárias e 76 dias para ler somente as políticas
samente. Esta concordância expressa, contudo, de privacidade de uma média de 1.462 pági-
não significa a impossibilidade de se anular nas visitadas em um ano (McDonald & Cranor,
o contrato ou algumas de suas cláusulas. O 2008). Em 2007, um estudo monitorou mais
acordo poderá ser anulado nos casos de vício de 48.000 indivíduos que visitaram a página
no consentimento, ou seja, naquelas hipóteses de um serviço e os resultados mostraram que
nas quais a concordância com os Termos de os Termos de Uso foram acessados por menos
Uso tenha se dado por erro, dolo ou coação, de 0,2% dos visitantes e, entre os que visitaram,
ou estado de necessidade.10 Também será pos- o tempo médio gasto visualizando o contrato
sível declarar nulas cláusulas consideradas abu- foi de 30 segundos (Bakos, Marotta-Wurgler,
sivas, conforme o art. 51 do CDC, como, dentre & Trossen, 2014). Num ambiente virtual mar-
outras, cláusulas de isenção de responsabili- cado pela troca rápida de informações, a leitura
dade, arbitragem compulsória e aquelas que dos Termos de Uso se torna dispendiosa e en-
possibilitem a alteração unilateral do contrato fadonha, consumindo o tempo produtivo dos
pelo fornecedor sem garantir esta opção para usuários.
o usuário. Além disto, a linguagem utilizada pelos pro-
O artigo 5º, XII, da Lei Geral de Proteção de vedores de serviços online não é suficiente-
Dados define o consentimento como a “mani- mente clara para os usuários. Os Termos de
festação livre, informada e inequívoca pela qual Uso são escritos em linguagem jurídica densa,
o titular concorda com o tratamento de seus com utilização de termos técnicos de difícil
dados pessoais para uma finalidade específica”. compreensão por parte do usuário final. Os
No formato “click-wrap agreement”, pode-se termos utilizados são vagos, de modo a abran-
dizer que o consentimento é livre e inequívoco. ger o maior número possível de situações fá-
Contudo, não é possível afirmar, com certeza, ticas e isentar os provedores de serviços online
que o consentimento é informado. O clique do de eventuais responsabilidades. Um estudo rea-
usuário no botão representativo de sua anuên- lizado por Prichard e Hayden (2008), analisou
cia, embora possa ser compreendido como um o quão inteligíveis eram 100 Termos de Uso
engajamento na confirmação do seu consenti- do tipo “click-wrap” e concluiu que entre 61 e
mento, não implica a existência de um assen- 97% dos contratos eram difíceis ou muito di-
timento plenamente informado. Isto porque fíceis de serem entendidos e que apenas entre
não se espera usuário comum que leia todos os 1% e 11% dos contratos poderiam ser facilmente
210
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
entendidos pelo usuário médio. com a leitura dos Termos de Uso e outros
O acesso aos Termos de Uso é, ainda, deli- contratos de adesão, o Código de Defesa do
beradamente dificultado, seja pela alocação Consumidor, no seu art 54, §3º, estabeleceu o
na página de Internet, seja pela formatação de princípio da legibilidade das cláusulas contra-
seu texto. Muito embora os contratos de cli- tuais, impondo que estes instrumentos devam
que permitam que o usuário acesse os Temos ser redigidos em letra do tipo Times New Roman
de Uso antes de aceitá-los, o meio para visuali- e tamanho da fonte 12. Além disto, as cláusulas
zar estes Termos nem sempre é claro. O hyper- que impliquem em restrição de direitos, como
link de acesso às cláusulas é geralmente indi- as que limitam a responsabilidade do fornece-
cado com letras minúsculas, no canto inferior dor e elegem determinado foro, devem estar
da página da Internet (geralmente não visível destacadas nos termos do §4º do mesmo dispo-
quando se acessa o site) e com uma cor dema- sitivo legal. Quanto às ambiguidades e contra-
siadamente clara ou escura, a ponto de tornar- dições, as informações devem ser prestadas de
-se imperceptível, tendo em vista a cor utili- forma clara, em atenção ao artigo art. 7º, inciso
zada no plano de fundo da tela. Outras técnicas VI e XI, do Marco Civil da Internet13 e do art.
utilizadas incluem a maior ênfase dada aos bo- 6º, III, do CDC, sendo vedada, portanto, a re-
tões de “EU ACEITO”, enquanto que os botões dação confusa que, muitas vezes, tem o fim de
relacionados à rejeição, cancelamento ou dis- ludibriar o usuário, que desiste de entender a
cordância são colocados de maneira discreta. cláusula e acaba aceitando o contrato. De qual-
Finalmente, as fontes e a diagramação utilizada quer forma, o ônus da clareza cabe ao provedor
nos textos dos contratos não favorecem a lei- de serviços online, sob pena de sofrer os prejuí-
tura confortável e fluida, nem há qualquer seg- zos da interpretação mais favorável ao consu-
mentação no texto que facilite a busca por uma midor14 ou mais favorável ao aderente em caso
informação específica. de dúvida15
O fato de os Termos de Uso serem longos,
complexos e de difícil acesso garante às empre-
sas a possibilidade de incluir cláusulas desfavo- 4. Cláusulas comuns aos
ráveis e até mesmo absurdas. Em uma brinca- termos de uso
deira no dia 1º de abril de 2010, a loja de jogos
online Gamestation.co.uk incluiu uma dispo-
sição nos seus Termos de Uso estabelecendo A redação das cláusulas dos Termos de Uso,
a transferência da alma do usuário para a em- na forma como comumente se apresentam,
presa. No total, 7.500 usuários não clicaram tem sido cada vez mais objeto de discussão,
na opção de “cancelar transferência de alma” uma vez que tais cláusulas têm implicações di-
disponibilizada pelo site11. Por outro lado, al- retas na efetivação dos Direitos Fundamentais
gumas empresas já deram prêmios para os pri- dos usuários de Internet. Os Termos de Uso
meiros usuários que lessem os Termos de Uso. definem, entre outras coisas, como o conteúdo
Em 2019, a empresa de seguros SquareMouth gerado por usuários será tratado, suspenso ou
lançou uma campanha secreta chamada It Pays bloqueado; se os dados do usuário poderão ser
to Read para disseminar a importância da lei- comercializados, monitorados e/ou entregues
tura dos Termos de Uso. A companhia pagou às autoridades; e como disputas judiciais serão
um prêmio de 10 mil dólares para a primeira resolvidas. Exercem, portanto, enorme influên-
cliente que leu todos os Termos de Uso.12 cia na implementação dos direitos dos usuá-
Para minimizar os problemas relacionados rios de Internet no que se refere à liberdade de
211
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
por exemplo, reconhece a legislação brasileira sistema protetivo estabelecido pelo CDC ao dis-
como aplicável, mas restringe o foro compe- por, em seu art. 8º, sobre a nulidade das cláu-
tente para resolução de litígios aos tribunais sulas que, “em contrato de adesão, não ofere-
situados no estado de São Paulo. A rede so- çam como alternativa ao contratante a adoção
cial Tumblr, por sua vez, exige que o usuário do foro brasileiro para solução de controvérsias
que deseja utilizar seus serviços concorde que decorrentes de serviços prestados no Brasil”.
“quaisquer queixas ou litígios que possa ter Outro ponto relevante é a adoção de cláu-
contra o Tumblr terão de ser resolvidos exclu- sula de arbitragem. Não raramente, as platafor-
sivamente por um tribunal estadual ou federal mas online incluem cláusulas arbitrais em seus
no Condado de Nova Iorque, Nova Iorque17”. Termos de Uso. Com relação à adoção deste
Em se tratando de contratos de consumo, a tipo de cláusula em contratos de adesão, existe
jurisprudência pátria já se consolidou no sen- posicionamento consolidado na jurisprudên-
tido da abusividade latente das cláusulas que, cia brasileira. O Superior Tribunal de Justiça
seja pela eleição de um foro especial para o possui precedentes reconhecendo a eficácia da
contrato de consumo, seja por impor uma ar- cláusula de arbitragem neste tipo de contrato
bitragem privada ou de órgãos ligados aos for- apenas quando o “aderente venha a tomar a
necedores, acabam por dificultar (ou mesmo iniciativa de instituir a arbitragem, ou con-
inviabilizar) o acesso à justiça, afrontando di- corde, expressamente, com a sua instituição”20.
reitos fundamentais do consumidor. A eleição A Corte também entendeu que a cláusula arbi-
de foro diverso do domicílio do consumidor, tral não prevalece quando o consumidor pro-
ainda que não inviabilize ou impossibilite, di- cura a via judicial para a solução de litígios.21
ficulta sua defesa e ofende o art. 6º, VIII, do
CDC, que diz ser direito básico do consumidor
a facilitação de sua defesa em juízo (Grinover et 4.2. Controle de
al., 2019). Logo, tal cláusula ofende o “sistema” conteúdo, uso
de defesa do consumidor, sendo, portanto,
nula. Juntamente com as cláusulas que deter- dos produtos e
minam uma legislação estrangeira para reger o serviços e suas
contrato, estas provisões violam a garantia de proibições
uma proteção judicial efetiva, prevista no art.
5º, XXXV, da CF18. Esta é a posição do Superior As plataformas online, via de regra, incluem
Tribunal de Justiça, que considera inválidas as uma ou mais cláusulas definindo práticas acei-
cláusulas de eleição de foro em contrato que táveis no uso de seus produtos e serviços, bem
consumo quando a) no momento da celebra- como quais condutas são vedadas quando de
ção, a parte aderente não dispuser de intelec- sua utilização. Ações para combater as condutas
ção suficiente para compreender o sentido e as indesejadas incluem monitoramento, filtragem,
consequências da estipulação contratual; b) a bloqueio e a remoção de conteúdos postados
prevalência de tal estipulação resultar em in- e hospedados, a exclusivo critério da própria
viabilidade ou especial dificuldade de acesso ao plataforma. Os Termos de Uso do Instagram,
Judiciário; c) se tratar de contrato de obrigató- por exemplo, autorizam a empresa a “remover
ria adesão, assim entendido o que tenha por qualquer conteúdo ou informação comparti-
objeto produto ou serviço fornecido com ex- lhada no Serviço” se a empresa acreditar que
clusividade por determinada empresa.19 tal conteúdo viola os Termos de Uso, as políti-
O Marco Civil da Internet ratificou todo o cas ou quando o Instagram estiver autorizado
213
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
ou obrigado por lei a assim proceder22. As ati- Os usuários e a sociedade civil denunciam
vidades e condutas comumente consideradas atos de violência e abuso contra a mulher,
impróprias incluem, entre outras, o envio de incluindo ameaças físicas, comentários
spam, o cometimento de fraudes, invasões em misóginos, publicação de fotografias
contas de outros usuários, a postagem ou hos- íntimas falsas ou sem consentimento
pedagem de conteúdo que seja ilegal, obsceno, e a publicação de informações pessoais
difamatório ou que promova discriminação, o confidenciais; ameaças de agressão contra
cometimento de crimes ou discurso de ódio. grupos politicamente marginalizados, raças
A Organização das Nações Unidas, por meio e classes minoritárias e grupos étnicos
do Parecer do Relator Especial sobre a promo- que sofrem perseguição violenta; bem
ção e proteção do direito à liberdade de opi- como abusos dirigidos contra refugiados,
nião e de expressão (2018), aponta que medidas imigrantes e requerentes de asilo político.
de censura não devem ser delegadas a agen- Ao mesmo tempo, as plataformas teriam
tes privados. Por outro lado, em consonância reprimido o ativismo em favor das
com a jurisprudência das cortes constitucio- pessoas LGBTI; protestos contra governos
nais ao redor do mundo, incluindo o STF, o pa- repressivos; denúncias de limpeza étnica
recer reconhece conteúdos que podem ser le- e críticas aos fenômenos e estruturas de
gitimamente proibidos: (i) pornografia infantil; poder de natureza racista.24 (Organização
(ii) discurso de ódio; (iii) difamação e (iv) apo- das Nações Unidas, 2018, p.12)
logia à violência (incluindo genocídio, discri-
minação e hostilidade contra grupos minoritá-
rios). A maior parte das plataformas se reserva Em razão desta peculiaridade, as platafor-
o direito de remover e proibir certos conteú- mas online têm reconhecido a importância de
dos, além de dispor de mecanismos que permi- se considerar o contexto na análise da remoção
tem aos usuários denunciarem conteúdos con- de conteúdos. Apesar disto, o cuidado com o
siderados violadores de direitos, da legislação contexto não impediu a remoção de conteúdos
local (p. ex., pornografia infantil, racismo) ou com conteúdo histórico, cultural e educacio-
que violem os Termos de Uso da plataforma. nal; relatos sobre conflitos; evidências de cri-
A polêmica em relação a estas cláusulas reside mes de guerra; discurso contrário a grupos ex-
na definição dos limites daquilo que se pode tremistas; e esforços para combater discursos
considerar como “aceitável”, “obsceno” e “dis- homofóbicos, xenofóbicos e racistas25.
criminatório”, dentre outras definições vagas e Esforços têm sido feitos na adoção de mode-
imprecisas. ração por algoritmos e ferramentas automáti-
A proibição do Twitter de um “comporta- cas, como a tecnologia PhotoDNA, que ajuda
mento que incite medo sobre um grupo pro- a detectar pornografia infantil. Ferramentas
tegido”23, por exemplo, não serve de base para como esta podem ajudar as empresas a identi-
uma moderação de conteúdo adequada. A falta ficar rapidamente imagens com conteúdo ile-
de clareza das políticas no que se refere a ódio gal em meio a infinidade de conteúdos envia-
e comportamento abusivo tem dado lugar a de- dos por usuários. Por outro lado, a aplicação
núncias de incoerência na aplicação destas po- irrestrita de algoritmos para remoção automá-
líticas, de maneira a prejudicar minorias, ao tica de conteúdo pode trazer riscos à liberdade
mesmo tempo que fortalece a situação de gru- de expressão, já que as tecnologias ainda têm
pos dominantes ou poderosos: certos limites para decifrar nuances e contex-
tos da comunicação humana. Se a automação
214
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
nos Termos de Uso, mas considera o uso conti- mais diversos processos de tomada de decisão.
nuado dos serviços como anuência do usuário Aliando tecnologias de extração de informa-
às alterações30. ções sobre usuários de Internet, desanonimiza-
Embora sendo claro que a negociação in- ção e combinação de dados, é possível que em-
dividual com cada usuário para alteração dos presas tracem perfis psicológicos e prevejam,
Termos de Uso seja impraticável, algumas boas com alto grau de acerto, quais as preferências
práticas devem ser adotadas pelas plataformas políticas e até mesmo em quais candidatos um
para uma adequação a padrões mínimos neste usuário poderá ou irá votar, atingindo aspectos
quesito. Neste sentido, as Recomendações da intimidade do eleitor e do direito ao voto se-
sobre Termos de Uso e Direitos Humanos creto, garantia fundamental que dá suporte ao
apresentadas no 10º Fórum de Governança da sistema político democrático. É preciso, por-
Internet das Nações Unidas (2015) estabelecem tanto, que o tráfego eletrônico de dados seja
que os Termos de Uso das plataformas devem protegido para que não haja uma devassa na
respeitar o núcleo mínimo do direito de ser intimidade do indivíduo, fato que é constitu-
ouvido, devendo ser garantido ao usuário o di- cionalmente proibido, uma vez que todos têm
reito de ser notificado a respeito da retirada de direito à proteção de sua intimidade.
conteúdo, de alterações nos Termos de Uso e A privacidade tem status de Direito
outros procedimentos31. Fundamental, prevista no art. 5º, inciso X, da
Constituição Federal32. Especificamente no to-
cante à utilização da Internet, o Marco Civil da
4.4. Privacidade, Internet (Lei 12.965/14) estabelece que o uso
monitoramento, da Internet no Brasil tem como princípios a
proteção da privacidade e a proteção dos dados
tratamento, pessoais33 (art. 3º, inciso II e III). Em relação aos
compartilhamento dados pessoais, entrará em vigor, em 2020, a
e divulgação de Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18),
cujo objetivo, entre outros, é o de “proteger
dados pessoais os direitos fundamentais de liberdade e de
privacidade”.
O internauta, ao navegar, deixa um rastro Uma análise realizada por Kamarinou,
de informações economicamente rentável. Em Milard e Hon (2015) identificou a existência
virtude da rotina de funcionamento da Internet, de padrões nos Termos de Uso utilizados pelas
com o rastreamento de IPs, cookies e históricos plataformas online também no que se refere à
de navegação, o usuário gera um perfil de uso política de tratamento de dados pessoais dos
aproveitável que possui valor de mercado. Este usuários e privacidade. As cláusulas relacio-
rastro de informações gerado pelo usuário re- nadas à política de dados pessoais e privaci-
laciona-se com o chamado big data. Com uma dade são geralmente disponibilizadas em um
enorme parcela da população utilizando dia- documento apartado denominado “Política de
riamente as redes sociais, e consequentemente Privacidade”, e apresentam uma série de pro-
deixando rastros, e a disponibilidade cada vez visões em comum, quase sempre muito desfa-
maior de tecnologias para reter, agrupar e pro- voráveis aos usuários. Os pontos que merecem
cessar esses dados, aqueles que possuem acesso destaque são aqueles relacionados (i) ao com-
a esse manancial de dados prontamente passa- partilhamento de dados; (ii) ao monitoramento
ram a utilizar tais ferramentas para apoiar os de atividades e comunicações do usuário; e (iii)
216
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
alerta aos usuários sobre a obtenção de dados O escaneamento contínuo de e-mails e men-
do usuário dentro e fora da plataforma, pela sagens é particularmente preocupante, uma
própria empresa e por terceiros, para fins de vez que a comunicação por mensagens pela
propaganda direcionada. No entanto, não traz Internet se equipara à troca de correspondên-
informações sobre quais terceiros podem cole- cias, cujo sigilo é protegido no art. 5º, XII, da
tar dados e quais informações podem ser ob- Constituição Federal, que exige ordem judicial
tidas, limitando-se a afirmar que “Alguns ter- prévia para sua quebra. Pode-se afirmar, por-
ceiros podem coletar dados sobre você quando tanto, que este tipo de cláusula afronta o di-
você usa nossos serviços. Isto pode incluir reito à inviolabilidade das comunicações, ga-
dados que você envia (como informações de rantido no art. 5º, XII, da Constituição Federal,
pagamento) ou informações coletadas auto- sendo tais provisões nulas de pleno direito de
maticamente (no caso de terceiros provedo- acordo com o art. 8º, parágrafo único, inciso I,
res de análises e anunciantes)”35. Esta cláusula do Marco Civil da Internet37.
é especificamente preocupante por reconhe- Damásio de Jesus e José Antônio Milagre,
cer que terceiros processam dados de titulares em obra sobre o Marco Civil da Internet onde
que podem não ter tido acesso aos respecti- apontam nulidades recorrentes nos Termos de
vos Termos de Uso nem ter manifestado seu Uso, lecionam:
consentimento expresso, livre e informado,
violando frontalmente o disposto no art. 7º, I, Ao dar, mais uma vez, ênfase à importância
da Lei Geral de Proteção de Dados e o art. 7º, ao respeito ao direito à privacidade e à
VII, do Marco Civil da Internet, que dispõem liberdade de expressão nas comunicações,
que o tratamento de dados depende do con- o Marco Civil elenca em seu art. 8º que
sentimento expresso, livre e informado de seu são nulas de pleno direito cláusulas que
titular36. violem tais direitos, dispostas em contratos
Além do monitoramento das atividades, de prestadores de internet. Assim, no
grande parte dos Termos de Uso de platafor- Brasil, com o Marco Civil, tornam-se nulas
mas online abre a possibilidade de monitorar os cláusulas contratuais que impliquem ofensa
conteúdos e mensagens privadas dos usuários. ao sigilo das comunicações privadas e as
A título de exemplo, a política de privacidade cláusulas que, em contrato de adesão, não
do Google reconhece que a empresa coleta os ofereçam como alternativa ao contratante
conteúdos que o usuário cria, faz upload e re- a adoção do foro brasileiro para solução
cebe de outras pessoas, incluindo “e-mails en- de controvérsias decorrentes de serviços
viados e recebidos, fotos e vídeos salvos, docu- prestados no Brasil. ( Jesus & Milagre, 2014)
mentos e planilhas criados e comentários feitos
em vídeos do YouTube”.
A política de privacidade do Facebook, por E preciso observar, por outro lado, que algu-
sua vez, afirma que pode coletar informações mas companhias têm adotado a chamada crip-
sobre localização, contatos, reconhecimento fa- tografia de ponta-a-ponta, que não permite que
cial, dispositivos, ações e comunicações dos usuá- o conteúdo das mensagens e arquivos envia-
rios “a fim de analisar o contexto e o conteúdo dos seja analisado pela plataforma ou por ter-
incluído nesses itens”, reconhecendo, ainda, ceiros. O exemplo mais conhecido no Brasil é
que a rede social “processa automaticamente o o da plataforma de mensagens Whatsapp, que
conteúdo e as comunicações que você e outras destaca em sua política de privacidade que
pessoas fornecem”. as “mensagens estão criptografadas para que
218
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
nós ou terceiros não as possam ler.” A adoção prevista nos Termos de Uso. No entanto, é
deste tipo de sistema de criptografia garante comum que a redação das cláusulas vá adiante
maior privacidade ao usuário, embora seja alvo e permita a divulgação de dados por simples
de críticas. No Brasil, desde 2015, o Whatsapp requisição de autoridade governamental ou
já enfrentou pelo menos 4 suspensões de sua policial. Algumas políticas de privacidade vão
operação por não entregar a autoridades ju- ainda mais longe e declaram que a empresa po-
diciais o conteúdo das conversas de usuários derá divulgar dados pessoais do usuário sem-
investigados. As suspensões do aplicativo por pre que isso for considerado do interesse da
magistrados foram alvo de uma Arguição de empresa. Neste sentido é a política de privaci-
Descumprimento de Preceito Fundamental dade da Apple, que estabelece a possibilidade
(ADPF 403), pendente de julgamento no STF. de divulgação de informações pessoais dos
usuários por “solicitação de autoridades públi-
cas”, “problemas de importância pública”, ou
4.4.3. Entrega de dados quando a empresa considerar a divulgação “ra-
para autoridades zoavelmente necessária para impor termos e
condições ou proteger operações ou usuários”38.
No que se refere à entrega de dados pessoais
dos usuários para autoridades, as políticas de
privacidade não proveem garantias suficientes 4.4.4. Limitação de
aos usuários. responsabilidade
O relatório A/HRC/17/27, da ONU, reco-
menda que os Intermediários de Internet não Talvez o maior ponto em comum dos Termos
implementem restrições ao direito à priva- de Serviço de diferentes plataformas seja no to-
cidade sem intervenção judicial prévia (Rue, cante à limitação de responsabilidade da plata-
2013) e o Guia dos Direitos Humanos para forma e a inexistência de garantias oferecidas
usuários de Internet deixa claro que o usuário pelos provedores de serviços online. Em linhas
de Internet “não pode ser objeto de medidas de gerais, as cláusulas de limitação de responsabi-
vigilância geral ou intercepção” e que os dados lidade buscam eximir o fornecedor de serviços
pessoais do usuário só serão acessados em “cir- online de toda e qualquer responsabilidade civil
cunstâncias excepcionais previstas na lei, por que possa decorrer do uso dos serviços ofere-
exemplo, numa investigação criminal.” cidos ou limitar eventuais indenizações a um
Na Constituição brasileira, o art. 5º, inciso valor pré-fixado. As cláusulas costumam ser es-
XII, não deixa dúvidas de que a ordem judi- critas de forma destacada, com caracteres em
cial prévia é imprescindível para a intercepta- caixa-alta ou em negrito.
ção de mensagens e conteúdo privado. Neste O conteúdo é geralmente extenso e prevê
mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça a maior gama possível de situações em que o
entende que é “ilícita a devassa de dados, bem provedor de serviços online possa ser responsa-
como de conversas de whatsapp sem prévia bilizado, sendo comum a utilização de vocábu-
autorização judicial” (STJ – 6ª Turma – RHC los como “quaisquer” “todos” ou “nenhum”, de
51.531-RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, jul- forma a abarcar todos os danos eventualmente
gado em 19/4/2016 (Info 583). sofridos pelos usuários e terceiros. A título de
Como a maioria dos ordenamentos jurídi- exemplo, a cláusula de limitação de respon-
cos nacionais faz menção à interceptação por sabilidade do YouTube destaca que o usuário
ordem judicial, esta hipótese está quase sempre “concorda em defender, indenizar e isentar o
219
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
YouTube, sua controladora, seus executivos, di- o prejuízo ou a violação (ou até USD$ 10,00
retores, funcionários e representantes de toda e se os Serviços forem gratuitos).40” Para Flávio
qualquer ação judicial, danos, obrigações, per- Tartuce (2016, p. 252), “além da cláusula de ex-
das, custos ou dívidas” e que clusão total da responsabilidade do fornecedor
ou prestador, não tem validade a cláusula que
EM NENHUMA CIRCUNSTÂNCIA O atenua o dever de reparar dos fornecedores ou
YOUTUBE, SEUS EXECUTIVOS, DIRETORES, prestadores em detrimento do consumidor”.
FUNCIONÁRIOS OU REPRESENTANTES Portanto, as cláusulas de isenção total de
SERÃO RESPONSABILIZADOS POR responsabilidade e as cláusulas de limitação
QUALQUER DANO DIRETO, INDIRETO, do quantum indenizatório simbólico incluídas
INCIDENTAL, ESPECIAL, PUNITIVO em Termos de Uso não encontram guarida em
OU IMPREVISTO RESULTANTE DE nosso ordenamento jurídico. Viola-se direta-
QUAISQUER ERROS, EQUÍVOCOS OU mente o direito assegurado à indenização pre-
IMPRECISÃO DE CONTEÚDO, DANOS visto nos arts. 5º, incisos V e X, da Constituição
PESSOAIS OU MATERIAIS , DE QUALQUER Federal41 e 927 do Código Civil42. Além disso,
NATUREZA, RESULTANTE DO SEU reconhecida a aplicação do CDC na relação ju-
ACESSO E DO USO DO NOSSO SERVIÇO, rídica entre provedores de serviço online e os
(...) QUAISQUER ERROS OU OMISSÕES EM usuários, é preciso reconhecer também a apli-
QUALQUER CONTEÚDO OU QUALQUER cação do princípio da reparação integral dos
PERDA OU DANO DE QUALQUER danos, inscrito no art. 6º, inc. II, do CDC e no
NATUREZA SOFRIDO EM CONSEQÜÊNCIA art. 25, que veda expressamente “a estipulação
DO USO DE QUALQUER CONTEÚDO (...) 39 contratual de cláusula que impossibilite, exo-
nere ou atenue a obrigação de indenizar”. Por
fim, o Marco Civil da Internet consagra no seu
O Código de Defesa do Consumidor admite, art. 2º, inc. VI, que o uso da Internet no Brasil
no art. 51, I, a limitação da responsabilidade tem como um de seus fundamentos a “respon-
indenizatória em situações justificáveis quando sabilização dos agentes de acordo com suas ati-
o consumidor for pessoa jurídica. Logo, deve vidades”, prevendo hipóteses de responsabili-
ser feita a diferenciação entre a limitação de zação civil dos provedores de serviços online
responsabilidade justificável e a isenção de res- nos seus artigos 19 e 2143.
ponsabilidade total, como no caso da cláusula
transcrita acima. Desta forma, quando o prove-
dor de serviços online traz uma previsão con- 5. Conclusão
tratual de irresponsabilidade total, esta cláusula
deverá ser considerada nula de pleno direito.
É também comum encontrar nos Termos de O objetivo deste trabalho foi documentar e
Uso cláusulas de limitação de responsabilidade analisar em que extensão os Termos de Uso de
que fixam um quantum indenizatório simbó- plataformas online, enquanto modalidade con-
lico ou quase simbólico que acabam por fulmi- tratual específica, oferecem proteção aos direi-
nar a responsabilidade de indenizar. Os Termos tos à privacidade, liberdade de expressão, de-
de Uso da Microsoft, por exemplo, admitem o vido processo e indenização de seus usuários.
pagamento de indenização por danos diretos Em primeiro lugar, restou demonstrado que
“até o valor equivalente ao valor pago por seus as empresas de tecnologia são grandes deten-
Serviços para o mês durante o qual ocorreu toras de poder social e econômico. Em razão
220
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
disto, são capazes de causar limitações sig- Internet, ao invés de reforçar sua responsabi-
nificativas no que se refere ao exercício dos lidade em resguardar a privacidade, o acesso
Direitos Fundamentais dos usuários de Internet. à justiça e a liberdade de expressão dos usuá-
Por isto mesmo, de acordo com a teoria da efi- rios. Esta função minimizadora de riscos atri-
cácia horizontal dos Direitos Fundamentais buída aos Termos de Uso pelos Intermediários
(Drittwirkung), devem respeitar parâmetros mí- de Internet explica não só a falta de clareza nas
nimos de Direitos Fundamentais em suas rela- redações dos contratos, como também a ausên-
ções com os usuários. Os Termos de Uso, en- cia de informações suficientes, contrariando
quanto materialização jurídica desta relação, critérios mínimos de efetivação de direitos
deveriam conter cláusulas protetivas dos direi- fundamentais, especialmente à privacidade, li-
tos dos usuários. berdade de expressão, devido processo, infor-
Também se conclui que os Termos de Uso, mação e indenização.
enquanto espécie contratual específica, são
enquadrados como contratos de adesão e go-
vernam uma relação de consumo, conforme
doutrina e jurisprudência nacionais, mesmo
que não haja pagamento efetivo em dinheiro.
Embora o consentimento do usuário-consumi-
dor para vincular-se a estes contratos e utili-
zar os serviços oferecidos seja obtido através
de um clique em um botão indicativo de sua
anuência, demonstrou-se que, em regra, este
consentimento não é informado. A obtenção
de um consentimento esclarecido é dificultada
pelas redações longas, com linguagem técnica
e de difícil acesso pelos usuários, o que con-
traria disposições do Marco Civil da Internet,
do Código de Defesa do Consumidor e da Lei
Geral de Proteção de Dados.
Com relação à estrutura comumente adotada
pelos Termos de Uso, viu-se que existe um pa-
drão seguido pelas empresas na redação des-
tas políticas. A despeito da legislação contrária,
são muito comuns cláusulas de eleição de foro
e escolha de legislação, permissões para mo-
nitorar conteúdos e mensagens privadas, dis-
posições que limitam a liberdade de expressão
e provisões que excluem a responsabilidade
civil das empresas. A conclusão a que se chega,
portanto, é de que os Termos de Uso não ofe-
recem garantias suficientes para os usuários.
De forma contrária, estes contratos revelam-
-se instrumentos jurídicos que visam minimi-
zar a responsabilidade dos Intermediários de
221
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
Jesus, D. d., & Milagre, J. A. (2014). Marco Civil Lippi, M., Pałka, P., Contissa, G., Lagioia, F.,
da Internet: comentários lei 12.965 de 23 de Micklitz, H.-W., Sartor, G., & Torroni,
abril de 2014. São Paulo: Saraiva. P. ( junho de 2019). CLAUDETTE: an
Kamarinou, D., Millard, C., & Hon, W. K. automated detector of potentially unfair
(2015). Privacy in the Clouds: An clauses in online terms of service.
Empirical Study of the Terms of Service Artificial Intelligence and Law, 27(2), pp.
and Privacy Policies of 20 Cloud Service 117-139. Acesso em 07 de outubro de
Providers. Queen Mary School of Law Legal 2019, disponível em https://link.springer.
Studies Research Paper(205). com/article/10.1007%2Fs10506-019-09243-2
Klausner, E. A. (2012). Direito Internacional do Loos, M., & Luzak, J. (2016). Wanted: a bigger
Consumidor–A Proteção do Consumidor stick. On unfair terms in consumer
no Livre-Comércio Internacional. Curitiba: contracts with online service providers.
Juruá. Journal of Consumer Policy, 39, pp. 63-90
Lessig, L. (2006). Code version 2.0. Basic Books. . Disponível em: https://hdl.handle.
Lévy, P. (2011). A inteligência coletiva: por uma net/11245/1.491516
antropologia do ciberespaço (8ª ed.). (L. Lorenzetti, R. L. (2004). Comércio eletrônico.
P. Rouanet, Trad.) São Paulo: Edições Revista dos Tribunais.
Loyola. MacKinnon, R., Hickok, E., Bar, A., & Lim,
Lima, C. R. (2009). Validade e obrigatoriedade dos H.-i. (2014). Fostering freedom online: the
contratos de adesão eletrônicos (shrink-wrap role of Internet intermediaries. UNESCO,
e click-wrap) e dos termos e condições de uso Paris. Acesso em 15 de Jun de 2018,
(browse-wrap): um estudo comparado entre disponível em http://unesdoc.unesco.org/
Brasil e Canadá. São Paulo: Universidade images/0023/002311/231162e.pdf
de São Paulo. Acesso em 11 de Setembro Marques, C. L. (2013). Manual de Direito do
de 2018, disponível em http://www.teses. Consumidor. Revista dos Tribunais.
usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-03062011- McDonald, A. M., & Cranor, L. F. (2008). The
090910/publico/Tese_Doutorado_versao_ Cost of Reading Privacy Policies. Journal
simplificada.pdf of Law and Policy for the Information
Lima, M. A., & Junior, I. F. (2016). Marco Civil Society, 4. Acesso em 11 de Setembro
da Internet: Limites da previsão legal de de 2018, disponível em https://kb.osu.edu/
consentimento expresso e inequívoco bitstream/handle/1811/72839/ISJLP_V4N3_543.
como proteção jurídica dos dados pdf ?sequence=1&isAllowed=y
pessoais na Internet. Revista De Direito, Mendes, G. F. (2009). Curso de Direito
Governança E Novas Tecnologias. Acesso Constitucional. São Paulo: Saraiva.
em 24 de novembro de 2018, disponível OECD. (2015). OECD Digital Economy
em http://indexlaw.org/index.php/revistadgnt/ Outlook2015. Paris: OECD Publishing.
article/view/831/826 Acesso em 21 de novembro de
2019, disponível em https://ec.europa.
eu/eurostat/documents/42577/3222224/
Digital+economy+outlook+2015/
dbdec3c6-ca38-432c-82f2-1e330d9d6a24
223
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 11 7.500 online shoppers unknowingly sold their
26/06/2012, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de souls. (2010, 15 de abril). Fox News. Acesso em
Publicação: DJe 29/06/2012). Disponível em: 07 de ouutbro de 2019, disponível em https://
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_ www.foxnews.com/tech/7500-online-shoppers-unkno-
registro=201103079096&dt_publicacao=29/06/2012 . wingly-sold-their-souls
Acesso em 03 de julho de 2019
12 Campanha It Pays to read. Disponível em
8 Art. 6º São direitos básicos do consumi- https://www.squaremouth.com/campaign/pays-to-read/.
dor: III–a informação adequada e clara sobre os Acesso em 07 de outubro de 2019
diferentes produtos e serviços, com especifica-
ção correta de quantidade, características, com- 13 Art. 7º: O acesso à internet é essencial
posição, qualidade, tributos incidentes e preço, ao exercício da cidadania, e ao usuário são asse-
bem como sobre os riscos que apresentem; gurados os seguintes direitos: VI–informações
claras e completas constantes dos contratos de
9 No original, em inglês: The term “click- prestação de serviços, com detalhamento sobre
-wrap” is derived from the fact that such on- o regime de proteção aos registros de conexão e
line agreements often require clicking with a aos registros de acesso a aplicações de internet,
mouse on an on-screen icon or button to sig- bem como sobre práticas de gerenciamento da
nal a party’s acceptance of the contract. Among rede que possam afetar sua qualidade; (...) XI–
other things, click-wrap agreements are used publicidade e clareza de eventuais políticas de
to: (1) establish the terms for the download and uso dos provedores de conexão à internet e de
use of software over the Internet; (2) set forth aplicações de internet;
a Web site’s Terms of Service, i.e., the rules by
which users may access the Web site or a por- 14 Art. 47, CDC: As cláusulas contratuais
tion of the Web site such as a chat or message serão interpretadas de maneira mais favorável
service; and (3) establish the terms for the sale ao consumidor.
of goods and services online.
15 Art. 423, CC: Quando houver no con-
10 Em um caso que foi objeto de ação na trato de adesão cláusulas ambíguas ou contra-
justiça catarinense, uma servidora pública des- ditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais
cobriu um perfil falso em seu nome na rede favorável ao aderente.
social Orkut. Na época, para denunciar o per-
fil falso, foi obrigada a criar uma conta no site, 16 Contrato do Usuário LinkedIn.
aceitando os Termos de Uso. Neste caso, por Disponível em https://www.linkedin.com/legal/user-
exemplo, o consentimento com os Termos de -agreement?_l=pt_BR#complaints . Acesso em 04 de
Uso surgiu de uma situação de necessidade e o julho de 2019.
consentimento estava viciado. Em razão disto,
o contrato poderia ser anulado (Apelação Cível 17 Termos de Serviço do Tumblr.
n. 2011.029199-7, do TJ-SC). Disponível em https://www.tumblr.com/policy/pt/
terms-of-service. Acesso em 21 de novembro de
2019
227
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
18 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, publicación de imágenes íntimas falsas o sin
sem distinção de qualquer natureza, garantin- consentimiento y la publicación de informa-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen- ción personal confidencial; las amenazas de
tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à agresión contra los grupos políticamente mar-
liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie- ginados, las razas y las castas minoritarias y los
dade, nos termos seguintes: XXXV–a lei não grupos étnicos que sufren persecución vio-
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão lenta; y los abusos dirigidos contra los refu-
ou ameaça a direito; giados, los migrantes y los solicitantes de asilo.
Al mismo tiempo, las plataformas habrían re-
19 STJ, Conflito de Competência nº 15797- primido el activismo en favor de las personas
0-SC, 2ª Seção, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, lesbianas, gais, bisexuales, transgénero y ase-
v.u., DJU de 12.8.96 e in Ementário do STJ, xuadas; la contestación contra los Gobiernos
Brasília jurídica, vol. 16, nº 250, p. 128. No represivos; la denuncia de la depuración étnica;
mesmo sentido: STJ, REsp nº 56711-4-SP, 4ª y las críticas de los fenómenos y las estructuras
Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. de de poder de naturaleza racista.”
7.2.95, DJU de 20.3.95, p. 6.128
25 Cf. Relatório A/HRC/38/35, da ONU.
20 REsp 1189050/SP, Rel. Ministro LUIS Disponível em https://daccess-ods.un.org/access.nsf/
FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado GetFile?Open&DS=A/HRC/38/35&Lang=S&Type=DOC
em 01/03/2016, DJe 14/03/2016
26 Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
21 REsp 1628819/MG, Rel. Ministra NANCY sem distinção de qualquer natureza, garantin-
ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen-
27/02/2018, DJe 15/03/2018 tes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
22 Termos de Uso do Instagram. priedade, nos termos seguintes: IV–é livre a
Disponível em : https://www.facebook.com/help/ins- manifestação do pensamento, sendo vedado o
tagram/478745558852511/?helpref=hc_fnav . Acesso anonimato;
em 05 de julho de 2019.
27 Art. 220. A manifestação do pensa-
23 Política contra propagação de ódio do mento, a criação, a expressão e a informação,
Twitter. Disponível em https://help.twitter.com/pt/ sob qualquer forma, processo ou veículo não
rules-and-policies/hateful-conduct-policy. Acesso em sofrerão qualquer restrição, observado o dis-
05 de julho de 2019 posto nesta Constituição.
24 Organização das Nações Unidas. 28 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre
Parecer do Relator Especial sobre a promoção outras, as cláusulas contratuais relativas ao for-
e proteção do direito à liberdade de expressão. necimento de produtos e serviços que: XIII–
Disponível em: https://daccess-ods.un.org/access.nsf/ autorizem o fornecedor a modificar unilateral-
GetFile?Open&DS=A/HRC/38/35&Lang=S&Type=DOC. mente o conteúdo ou a qualidade do contrato,
No original, em espanhol: “Los usuarios y la após sua celebração;
sociedad civil informan de actos de violen-
cia y abuso contra la mujer, incluidas las ame-
nazas físicas, los comentarios misóginos, la
228
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
35 Política de Privacidade no Vimeo. 42 Art. 927, CC: Aquele que, por ato ilícito,
Disponível em https://vimeo.com/privacy . Acesso causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
em 05 de julho de 2019.
229
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “LI E ACEITO”: VIOLAÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS RAMON MARIANO
PÁGINAS 200 A 229 NOS TERMOS DE USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS CARNEIRO
Recebido em 10/07/2019
Aceito em 18/12/2019
230
ARTIGO
Palavras-chave Resumo
Lei Geral de Proteção de Dados A presente pesquisa tem por fim analisar, em
dados pessoais aspectos conceituais e teóricos, a efetividade
crianças da regra prevista na Lei Geral de Proteção de
adolescentes Dados brasileira, que dispõe sobre a necessi-
consentimento parental dade do consentimento específico dos pais ou
responsáveis legais quanto ao tratamento dos
dados pessoais de crianças. Em termos gerais,
pretende-se verificar se o consentimento, con-
forme previsto na lei, é capaz de assegurar a
proteção do público jovem, incluindo aqui os
adolescentes. Para tanto, foi necessário investi-
gar o problema de pesquisa a partir de perspec-
tivas relacionadas (i) à exclusão dos dados pes-
soais de adolescentes do controle parental, (ii) à
real efetividade do consentimento dos pais em
ambientes virtuais e (iii) aos aspectos educati-
vos que transcendem o consentimento parental.
Ademais, como se trata de regulamentação re-
cente, optamos por percorrer o tema pelo mé-
todo da pesquisa bibliográfica, tendo em vista
ainda os modelos de proteção de dados insti-
tuídos na Europa e nos Estados Unidos, bem
como a experiência teórica e prática brasileira
em outras áreas. Assim, tendo em perspectiva
os pontos suscitados e os métodos utilizados,
concluímos pela parcial efetividade do dispo-
sitivo em tela, uma vez que (i) não engloba os
adolescentes em seu âmbito de proteção, des-
considerando a sua incapacidade civil e seu de-
senvolvimento psicológico e (ii) não é eficaz na
previsão de formas aptas a promover um con-
sentimento verídico e inequívoco dos pais ou
responsáveis. Entretanto, destacamos de forma
positiva a intenção legislativa em unir o con-
sentimento dos pais a práticas educativas.
232
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
Keywords Abstract
Brazilian General Data Protection Law This research aims to verify, in conceptual and
personal data theoretical aspects, the effectiveness of the spe-
children cific consent by the parents or the holder of
adolescents parental responsibility on the children’s and
parental consent adolescents’ personal data processing, provi-
ded in the Brazilian General Data Protection
Law. In general terms, it is intended to analyze
whether consent, as provided by law, is able to
ensure the protection of the young public. In
order to do so, it was necessary to investigate
the research problem from perspectives related
to (i) the exclusion of the adolescents’ perso-
nal data from parental control, (ii) the real ef-
fectiveness of parental consent in virtual envi-
ronments, and (iii) the educational aspects that
transcend parental consent. Moreover, because
it is a subject recently regulated, we have cho-
sen to explore the topics by the method of bi-
bliographic research, also considering the data
protection models established in Europe, and
in the United States, as well as Brazilian theo-
retical and practical experience in other areas.
Thus, taking into account the points raised and
the methods used, we have concluded that the
legal provision under analysis is only partially
effective, since (i) it does not include adoles-
cents in their scope of application, disregarding
their civil incapacity and their psychological
development, and (ii) that it is not effective in
predicting ways to promote true and unequi-
vocal consent of parents or the holder of pa-
rental responsibility. Notwithstanding, we un-
derstand as a positive aspect of the norm that
it aims to combine the control of parents to
educational practices.
233
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
Dessa forma, ao admitir que os menores de mudanças legislativas já estão em curso e mui-
16 (dezesseis) e maiores de 12 (doze) anos te- tos países ainda não se posicionaram quanto à
nham capacidade para consentir sobre os seus implementação definitiva do critério etário de-
dados na esfera civil, a LGPD vai de encontro finido na lei geral7.
com o disposto no nosso Código Civil, o qual Dentro do cenário europeu, alguns estudio-
afasta a capacidade absoluta daqueles que se sos do assunto entendem que a GDPR, ao fixar
encontram nessa faixa etária. Diferindo-se do a idade limite de 16 (dezesseis) anos, ignorou
caso da capacidade relativa, em que é possível a o nível de maturidade entre crianças e adoles-
prática dos atos civis pelos menores, desde que centes. Desconsiderando, inclusive, que para
possam sofrer um controle de validade pelos esta última categoria a Internet representa um
seus pais. eficiente meio de engajamento social e a limi-
Por outro lado, deve-se ressaltar o entendi- tação poderia comprometer a participação dos
mento consolidado no Enunciado nº 138 do jovens.
Conselho da Justiça Federal [CJF] (2016, p. 2), Nesse sentido, Krivokapić e Adamović (2016,
aprovado na III Jornada de Direito Civil, de pp. 210-211) destacam:
acordo com o qual “a vontade dos absoluta-
mente incapazes, na hipótese do inc. I do art. Na falta de uma análise adequada sobre o
3º é juridicamente relevante na concretização limite de idade, não há como compreender
de situações existenciais a eles concernentes, até que ponto o limite adotado atinge
desde que demonstrem discernimento bastante o equilíbrio entre os riscos e os danos
para tanto”. relacionados com a proteção de dados,
Entretanto, o fornecimento de dados pes- por um lado, e os direitos das crianças
soais não costuma se relacionar com situações (UNCRC) [United Nations Convention
existenciais, o que não justifica a flexibilização on the Rights of the Child–Convenção
da incapacidade absoluta para permitir aos me- sobre os Direitos da Criança], por outro.
nores de 16 (dezesseis) anos praticarem sozi-
nhos atos civis válidos. (...)
Apresentados tais aspectos teóricos, recorre-
mos agora a uma análise comparada da legisla- A respectiva provisão da GDPR pode ser o
ção. Nessa linha, nota-se que a União Europeia resultado da indiscriminação entre crianças
prevê em sua Lei Geral de Proteção de Dados, menores e adolescentes mais jovens.
General Data Protection Regulation (GDPR), Pesquisa recente indica que uma linha
Regulation (EU) 2016/679, artigo 8.º, item 1, o divisória pode ser traçada entre as crianças
consentimento dos pais ou responsáveis até a de acordo com a maturidade escolar, e é
faixa etária limite de 16 (dezesseis) anos. Porém, essa diferenciação que os legisladores do
autoriza os Estados-Membros a fixarem limite GDPR parecem ter ignorado completamente.
inferior, restrito a 13 (treze) anos de idade6.
Atualmente, a maioria dos países europeus Enquanto que as crianças mais novas
adota a idade limite de 16 (dezesseis) anos, con- possam realmente não entender as
forme prevista na Regulation (EU) 2016/679, implicações de suas atividades on-line
GDPR. Contudo, já se prevê alteração signi- e os riscos de proteção de dados, os
ficativa na adoção desse critério, haja vista a adolescentes podem estar muito mais
possibilidade de adaptação da norma de acordo conscientes deles (mais até do que seus pais)
com a ordem jurídica interna. Proposições de ou podem, inclusive, estar utilizando os
236
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
ainda uma preocupação com a veracidade do via e-mail, desde que sejam requeridas outras
consentimento dado, o §5º do mesmo dispo- etapas que permitam confirmar que o consen-
sitivo prevê que o controlador deverá realizar timento foi dado pelo responsável, tal como a
todos os esforços necessários para verificar que confirmação posterior via carta ou ligação13.
o consentimento foi, de fato, dado pelo respon- As opções concedidas pelo COPPA, apesar de
sável da criança11. não frustrarem todas as possibilidades de um
Os dispositivos supracitados vêm em con- consentimento falso dado pela própria criança,
sonância com o regulamento de proteção de apontam um caminho que permite ao operador
dados da União Europeia (GDPR), que traz ao criar e aprimorar soluções que superem esta
longo do seu texto, em especial no artigo 8º, as barreira.
mesmas previsões relacionadas à proteção de Ademais, o órgão de proteção ao consumidor
dados das crianças na Internet12. No entanto, o de tal país, Federal Trade Comission, é o responsá-
regulamento europeu, da mesma forma que a vel por fiscalizar o cumprimento do normativo,
LGPD, não dispõe de forma específica sobre os sendo possível que os pais e responsáveis legais
meios que deverão ser empregados para garan- denunciem plataformas que estejam coletando
tir a obtenção do consentimento nos termos dados de menores sem o devido consentimento.
legais. Retornando ao cenário brasileiro, ante a au-
Ainda no âmbito das regulamentações, os sência de previsão semelhante no nosso orde-
Estados Unidos, apesar de não possuírem uma namento, a expectativa é de que uma regula-
legislação unificada sobre direitos e garantias de ção pormenorizada, no que tange a este ponto,
privacidade de dados na rede, editou, em 2000, possa vir em algum ato normativo a ser edi-
o Children’s Online Privacy Protection Act (COPPA tado pela Autoridade Nacional de Proteção de
1998), que dispõe especificamente sobre a pro- Dados (ANPD). Enquanto sua existência não se
teção dos dados de crianças na Internet, sendo coaduna, a LGPD deixa aos operadores a aber-
obrigatória sua observância também para apli- tura para que encontrem soluções inovadoras
cativos e jogos. e adequadas.
No entanto, diferentemente da regulação Superando-se o tópico quanto à veracidade
brasileira e da europeia, o COPPA 1998 traz em do consentimento dos pais, a efetiva proteção
sua redação (§312.5, “b”) formas de obtenção do dos dados das crianças encontra outra dificul-
consentimento parental para o cumprimento dade: ainda que os responsáveis de fato conce-
do dispositivo, sendo elas: (i) o preenchimento dam o consentimento, muitas vezes eles não
de um formulário de consentimento pelos pais, possuem o entendimento pleno daquilo que
enviado ao operador por e-mail; (ii) a solicita- está sendo por eles autorizado.
ção de uma transação monetária, que notifique Em um primeiro momento, pode-se pensar
o titular do cartão de crédito/débito (ou outro que a solução óbvia seria a edição de termos de
meio) da transação; (iii) ter um número de tele- uso e privacidade, onde deveria ser indicado
fone para o qual o responsável possa ligar gra- ao usuário – ou ao responsável que está con-
tuitamente e conceder o consentimento; (iv) sentindo com o uso – exatamente quais dados
consentimento do responsável via videoconfe- estão sendo coletados, de qual forma serão pro-
rência; (v) verificar a identidade do responsável cessados e, ainda, de que modo seria possível
comparando os dados com formulários gover- solicitar a exclusão destes dados.
namentais, devendo os dados serem excluí- No entanto, conforme é sabido, o contexto
dos do banco de dados do operador logo após da sociedade tecnológica atual trouxe uma rea-
a checagem; ou (vi) permitir o consentimento lidade onde os pais – por terem menos tempo
239
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
exemplo, cita-se a UmanID, uma aplicação que desenvolvimento tecnológico, é importante re-
permite aos usuários solicitar das empresas in- fletir acerca do quão limitada pode ser a es-
formações sobre os dados por elas coletados, fera de proteção das crianças e adolescentes.
permitindo de forma específica que os pais/res- Todavia, o controle parental deve se guiar por
ponsáveis solicitem da empresa as informações limites razoáveis a fim de possibilitar uma cria-
que foram coletadas sobre seus filhos. A apli- ção também para o uso da Internet e das tec-
cação vem no sentido de permitir que sejam nologias, ao invés de “proibir” ou restringir
tomadas as medidas cabíveis para exclusão do excessivamente a “vida virtual” das crianças e
conteúdo coletado, e até mesmo responsabili- adolescentes.
zação das empresas em caso de armazenamento Como destacado por Alessandra Borelli (2018,
ilegal dos dados. p. 142):
Assim, apesar de ainda não ser possível vis-
lumbrar uma proteção eficaz aos dados das Em termos legais, crianças são sujeitos
crianças, o contexto de constante evolução tec- de direito, como quaisquer pessoas. Aliás,
nológica, em conjunto com a evolução nor- considerando sua condição peculiar de
mativa, permite olhar com positividade para ser em desenvolvimento, fazem jus a
o futuro das crianças em rede. Ressalte-se, no um tratamento diferenciado, não sendo
entanto, a necessidade de que seja reforçada a exagero afirmar que dispõem de mais
conscientização dos responsáveis e das próprias direitos que os próprios adultos.
crianças quanto à concessão de dados pessoais
e perigos que dela decorrem, o que será me-
lhor explorado a seguir. Aqui deve ser marcada a grande diferença
existente entre crianças e adolescentes. As
crianças possuem maior dependência dos pais
4. A importância da ou responsáveis pela sua tenra idade. Precisam
conscientização da dos pais para praticamente todas as atividades
cotidianas. Na infância, a criança passa pela
criança e do adolescente socialização primária (Berger & Berger, 1975),
sobre a proteção de período no qual molda traços característicos
dados pessoais para além de sua personalidade e guarda informações e
aprendizados até o fim da vida.
do controle parental Por sua vez, os adolescentes já estão em um
momento diferente de socialização e desenvol-
vimento social. Na adolescência, além da con-
Como demonstrado nos tópicos anteriores, o tinuidade da formação da personalidade, o ado-
âmbito de proteção das crianças e dos adoles- lescente quer mostrar e deixar marcada suas
centes é diferente dos adultos. As crianças e principais características pessoais nos ambien-
adolescentes, por serem indivíduos em cons- tes em que convive. A adolescência marca a
trução, estão em situação de vulnerabilidade transição entre a infância e o começo da vida
que torna necessária uma esfera de proteção adulta, e, portanto, também requer um maior
mais expandida. Esfera esta que, nessa fase da nível de autonomia.
vida, muitas vezes é definida pelos pais, res- É necessário que os pais e responsáveis este-
ponsáveis e familiares. jam atentos à forma que exercem seu controle
Em uma sociedade de expansão do na infância e na adolescência. A forma como se
241
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
faz esse controle em uma fase pode não ser efi- não foi feito com o fim precípuo de proteger a
caz na outra. Da mesma forma, também deve menina, mas como forma de controlar as an-
existir um limite para o controle parental, sob siedades da mãe. Veja, a intenção inicial da mãe
pena de se prejudicar o crescimento cogniti- era boa, consistia em um meio de poder encon-
vo-psicológico das crianças e dos adolescentes. trar a filha caso ela se perdesse. Entretanto, no
O segundo episódio da quarta temporada do meio do caminho, o controle parental se tor-
famoso seriado Black Mirror trata exatamente nou tão absurdo a ponto de impedir que a me-
sobre o excesso do controle dos pais. O episó- nina tivesse qualquer experiência considerada
dio, intitulado Arkangel (Brooker & Foster, 2017), normal, como sentir medo de um cachorro
mostra a relação nociva construída entre mãe grande.
e filha durante a infância e a adolescência. O Em outras palavras, a função dos pais é ga-
abuso do controle parental retratado na série rantir o melhor interesse da criança e do ado-
inicia-se quando a menina, ainda pequena, se lescente, o que se reflete nos deveres de pro-
perde no parque e é encontrada nos trilhos do teção e cuidado. Porém, não devem tolher a
trem. Para evitar que isso aconteça novamente, liberdade de acesso e participação digital dos
a mãe participa de um programa chamado filhos a fim de curar suas próprias ansiedades
Arkangel, que consiste na instalação de um chip e preocupações. Devem existir limites para o
no cérebro da garota. A partir disso, é possível controle parental para proteção da infância, da
que a mãe veja as mesmas coisas que a filha, adolescência e da privacidade dos filhos.
saiba o seu nível de estresse, suas condições de A função dos pais sempre foi complexa, mas,
saúde e ainda realize o seu rastreamento. Tudo agora, talvez seja mais porque estamos numa
isso gerenciado por um tablet, o qual funciona situação desconhecida. Lidamos com uma ge-
como uma unidade parental. ração que cresce imersa na tecnologia. Os pais
Usando o dispositivo tecnológico, a mãe são de geração diferente, eles não viveram, e
consegue impedir ações que causam medo na nem seus predecessores, os impactos da tec-
criança, como visualizar um cachorro raivoso nologia durante a sua infância e adolescên-
ou imagens envolvendo sangue. Inclusive, per- cia. Então, como lidar com uma geração de
cebendo essa última questão, ainda com sete hiperconectados?
anos, a menina tenta desenhar imagens vio- Os nascidos de 2010 em diante, a chamada
lentas e tudo isso fica como um borrão, o que a geração alfa, nascem totalmente imersos em
leva a se autolesionar na tentativa de “enxergar um cenário tecnológico. Sendo que em tal ano
seu próprio sangue”. Nesta situação, a mãe de- ocorre a popularização dos smartphones, tablets e
cide desconectar a unidade parental e passa o do Facebook. A criança já nasce envolvida com
resto da infância sem a intercepção do Arkangel. tecnologia, aprende a mexer nos dispositivos
Entretanto, com quinze anos, a mãe desco- dos pais para colocar seus desenhos e jogos fa-
bre que a filha mentiu sobre dormir na casa de voritos. Os nascidos antes de 2010, pertencen-
uma amiga, não obtendo, no entanto, nenhuma tes à geração Z, apesar de não terem nascido
informação sobre seu real paradeiro. Assim, re- inseridos na tecnologia, passaram a conviver
solve ligar a unidade parental para saber qual a com ela de forma crescente durante a sua vida.
sua localização, mas, além disso, acaba vendo a Em pesquisa realizada pelo Instituto Play
filha tendo relações sexuais e utilizando subs- (2016) e encomendada pelo Canal Gloob, canal
tâncias ilícitas. infantil por assinatura da rede Globosat, de-
Existe um problema claro no controle pro- monstrou-se como as crianças dessa geração
posto pelo Arkangel: abusividade. O controle informam-se quanto às novidades. O resultado
242
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
mostrou que 61% se informa pelo YouTube, que as crianças e adolescentes fazem da rede,
51% por propaganda nos sites, 42% em sites aspectos importantes e fundamentais para se
das marcas/lojas/Google e 42% pelo Facebook. pensar acerca da educação digital. O maior
A pesquisa sobre o uso da Internet por crian- uso é com atividades de comunicação, sendo
ças e adolescentes no Brasil–TIC Kids Online que 79% dessa prática corresponde ao envio de
Brasil – que considerou crianças e adolescen- mensagens instantâneas e 73% ao uso de redes
tes de 9 a 17 anos, revelou que 85% eram usuá- sociais. Nas atividades de educação e busca de
rios da Internet e que 93% deles utilizavam o informações na rede, destacam-se a pesquisa
telefone celular para acessar a Internet. Assim, para fazer trabalhos/deveres escolares, utilizada
24,7 milhões de crianças e adolescentes estão por 76% das crianças e adolescentes, e a leitura
conectados à rede no Brasil. Dados preocupan- ou visualização de notícias online, por 51% deles.
tes apontam que 39% das crianças e adolescen- Nas atividades de multimídia e entretenimento,
tes já viram alguém sendo discriminado ou so- 71% assistiram a vídeos, programas, filmes ou
frendo preconceito na esfera digital, além de séries e ouviram música online, sendo que, em
22% terem declarado que já foram tratados de termos proporcionais, as crianças e adolescen-
forma ofensiva ou de maneira que não gosta- tes são o grupo que mais consomem esse tipo
ram/chatearam na Internet. de conteúdo cotidianamente, o que reforça a
Interessante também pontuar que, com re- questão do cuidado com os dados, especial-
lação às variáveis socioeconômicas, segundo a mente dados sensíveis, desse grupo vulnerá-
pesquisa TIC Kids Online Brasil, 98% dos adoles- vel e, ao mesmo tempo, explicita ainda mais
centes e crianças da classe AB e 93% da classe a necessidade de respeito aos preceitos estipu-
C eram usuários da Internet. Entretanto, na lados pela LGPD no seu art. 14 que trata sobre
classe DE, sete em cada dez crianças e adoles- a tutela de direitos desse grupo no ambiente
centes faziam o uso constante da rede. A maior virtual.
parte das crianças e adolescentes que se man- A mesma pesquisa aponta que 70% dos pais
tém conectados estão nas áreas urbanas (90%) ou responsáveis achavam que as crianças e ado-
sendo que, na área rural, o uso de redes por lescentes usavam a Internet de forma segura.
eles chega a 63%. Por região do país, as crian- Entretanto, 50% dessas crianças e adolescen-
ças e adolescentes que mais usam a rede são as tes relataram que seus pais ou responsáveis
do Sudeste e Centro Oeste, com aderência de sabem mais ou menos da sua atividade na rede.
93%, seguidas de 92% do Sul, 77% do Nordeste Inclusive, entre os de 11 a 17 anos, 76% rela-
e 68% do Norte. taram que sabem usar mais as redes que seus
Ainda é preciso ressaltar a faixa etária pais.
das crianças e dos adolescentes usuários da Claro que é um assunto delicado e complexo,
Internet. Os dados da pesquisa supracitada mas, tendo em vista a sociedade hiperconec-
apontam que corresponde a 74% das crianças tada em que vivemos, tem que estar na mesa
de 9 a 10 anos, 82% das crianças de 11 a 12 anos, de debate. As crianças e os adolescentes são o
87% dos adolescentes de 13 a 14 anos e 93% dos futuro do país e devem ser tratados conforme
adolescentes de 15 a 17 anos. Com relação à fre- os preceitos que queremos replicar no futuro.
quência, 88% das crianças e adolescentes aces- A esfera virtual apresenta muitas possibilidades,
sam a Internet todos ou quase todos os dias, e para um lado e para o outro. Os dados acima
71% deles declararam que usam a rede mais de elencados fomentam a necessidade de refletir
uma vez por dia. sobre o assunto. Os pais devem defender seus
A pesquisa se preocupou em elencar os usos filhos na esfera online, mas sem esquecer que
243
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
eles crescem no meio tecnológico. e inequívoco, uma vez que quase ninguém lê
Neste sentido, a proibição, muitas vezes, não esses documentos.
é fonte estimuladora de comportamento, pelo As empresas devem se atentar para esse fato
contrário, consiste em meio unilateral de im- e ter o dobro de cuidado ao disponibilizarem
posição de vontade, o que pode gerar revolta, serviços e/ou produtos para menores. Como le-
especialmente nos adolescentes. Uma das solu- ciona Alessandra Borelli (2018, p. 156), “aquele
ções possíveis que se apresenta é a educação di- que cria, aprimora e recria produtos e serviços
gital. Para tanto, é necessário que os pais apren- destinados a eles [crianças e adolescentes], sem
dam, eduquem a si mesmos e aos seus filhos dúvida, possui responsabilidade que deve ser
para permitir um melhor contato entre a vida traduzida no compromisso de, do início ao fim,
real e a vida virtual, priorizando o enfoque com pensar no melhor interesse da criança”.
o cuidado na disposição dos dados. Pensando, mais uma vez, em métodos alter-
A LGPD se preocupou com essa questão, nativos de solucionar os problemas apontados,
ainda que apenas para o grupo das crianças. O pode-se citar o uso do legal design, uma forma
§6º do art. 14 estabelece: das empresas aprimorarem o seu contato com
o público esclarecendo sua política de privaci-
§ 6º As informações sobre o tratamento dade. A técnica consiste na utilização do design
de dados referidas neste artigo deverão para apresentar as questões jurídicas de forma
ser fornecidas de maneira simples, clara direcionada ao seu destinatário. Em outras pa-
e acessível, consideradas as características lavras, o método permite que as empresas colo-
físico-motoras, perceptivas, sensoriais, quem os termos jurídicos em linguagem mais
intelectuais e mentais do usuário, com acessível e inteligível aos diretamente atingidos
uso de recursos audiovisuais quando por aquela norma. Assim, por meio das ferra-
adequado, de forma a proporcionar mentas que o legal design incorpora no viés jurí-
a informação necessária aos pais ou dico, será possível estabelecer novas estratégias
ao responsável legal e adequada ao e meios que façam as crianças e adolescentes–e
entendimento da criança. (Grifo nosso) seus pais–entenderem exatamente o que está
envolvido em um simples click.
1 Art. 14. O tratamento de dados pessoais 5 Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito
de crianças e de adolescentes deverá ser rea- anos completos, quando a pessoa fica habi-
lizado em seu melhor interesse, nos termos litada à prática de todos os atos da vida civil.
deste artigo e da legislação pertinente. Parágrafo único. Cessará, para os menores, a in-
capacidade: I–pela concessão dos pais, ou de
§ 1º O tratamento de dados pessoais de crian- um deles na falta do outro, mediante instru-
ças deverá ser realizado com o consentimento mento público, independentemente de homo-
específico e em destaque dado por pelo menos logação judicial, ou por sentença do juiz, ou-
um dos pais ou pelo responsável legal. (Grifo vido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos
nosso) completos;
on one hand, and children’s rights (UNCRC) 11 Art. 14. O tratamento de dados pessoais
on the other. (...) The respective GDPR provi- de crianças e de adolescentes deverá ser rea-
sion might be the result of indiscriminating lizado em seu melhor interesse, nos termos
between younger children and younger teena- deste artigo e da legislação pertinente. § 5º O
gers. A recent research indicates that a divi- controlador deve realizar todos os esforços ra-
ding line might be drawn between the chil- zoáveis para verificar que o consentimento a
dren according to their school maturity,16 and que se refere o § 1º deste artigo foi dado pelo
it is this differentiation that GDPR legisla- responsável pela criança, consideradas as tec-
tors appear to have ignored completely. While nologias disponíveis.
it might be that younger children really do
not understand the implications of their on- 12 Segundo a GDPR, o controlador dos
line activities and data protection risks, tee- dados não deve medir esforços para garan-
nagers might be much more aware of those tir que o consentimento requerido foi efeti-
(even more than their parents) or might even vamente dado ou autorizado pelo responsá-
be using the internet services to connect with vel legal da criança, levando em consideração
their community through social networks in a tecnologia disponível. Ademais, prevê pro-
situations when they encounter problems and teção específica em relação aos dados pessoais
seek out the solution. Internet for teenagers is das crianças, haja vista o menor nível de cons-
a valuable source of news and possibilities for ciência destas quanto aos riscos, consequências
engagement, as well as an efficient tool for en- e salvaguardas em causa dos seus direitos em
gagement in civil society and environmental relação ao tratamento de dados pessoais.
issues, while GDPR could seriously jeopardize
all those indispensable benefits.” Tradução livre. Texto original: Art. 8 GDPR.
Conditions applicable to child’s consent in re-
9 Artigo 1 da Convenção sobre os Direitos lation to information society services (2) The
da Criança: “para efeitos da presente Convenção controller shall make reasonable efforts to ve-
considera-se como criança todo ser humano rify in such cases that consent is given or au-
com menos de dezoito anos de idade, a não thorised by the holder of parental responsibi-
ser que, em conformidade com a lei aplicável à lity over the child, taking into consideration
criança, a maioridade seja alcançada antes”. available technology. Recital 35. Special protec-
tion of children’s personal data. Children merit
10 Art. 227. É dever da família, da socie- specific protection with regard to their per-
dade e do Estado assegurar à criança, ao ado- sonal data, as they may be less aware of the
lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, risks, consequences and safeguards concerned
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à edu- and their rights in relation to the processing of
cação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, personal data. Such specific protection should,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convi- in particular, apply to the use of personal data
vência familiar e comunitária, além de colocá- of children for the purposes of marketing or
-los a salvo de toda forma de negligência, dis- creating personality or user profiles and the
criminação, exploração, violência, crueldade e collection of personal data with regard to chil-
opressão. dren when using services offered directly to a
child.
249
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS DE B. F. F. YANDRA, A. C. A. SILVA,
PÁGINAS 230 A 249 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: A EFETIVIDADE DO CONSENTIMENTO DOS PAIS... J. G. SANTOS
13 Tradução livre. Texto original: §312.5 14 Art. 14. O tratamento de dados pessoais
Parental consent. (b) Methods for verifiable de crianças e de adolescentes deverá ser rea-
parental consent. (1) An operator must make lizado em seu melhor interesse, nos termos
reasonable efforts to obtain verifiable parental deste artigo e da legislação pertinente. § 6º As
consent, taking into consideration available te- informações sobre o tratamento de dados re-
chnology. Any method to obtain verifiable pa- feridas neste artigo deverão ser fornecidas de
rental consent must be reasonably calculated, maneira simples, clara e acessível, considera-
in light of available technology, to ensure that das as características físico-motoras, percepti-
the person providing consent is the child’s pa- vas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuá-
rent. (2) Existing methods to obtain verifiable rio, com uso de recursos audiovisuais quando
parental consent that satisfy the requirements adequado, de forma a proporcionar a informa-
of this paragraph include: (i) Providing a con- ção necessária aos pais ou ao responsável legal
sent form to be signed by the parent and re- e adequada ao entendimento da criança.
turned to the operator by postal mail, facsi-
mile, or electronic scan; (ii) Requiring a parent,
in connection with a monetary transaction, to
use a credit card, debit card, or other online
payment system that provides notification of
each discrete transaction to the primary ac-
count holder; (iii) Having a parent call a toll-
-free telephone number staffed by trained per-
sonnel; (iv) Having a parent connect to trained
personnel via video-conference; (v) Verifying
a parent’s identity by checking a form of go-
vernment-issued identification against data-
bases of such information, where the parent’s
identification is deleted by the operator from
its records promptly after such verification is
complete; or (vi) Provided that, an operator
that does not “disclose” (as defined by §312.2)
children’s personal information, may use an
email coupled with additional steps to pro-
vide assurances that the person providing the
consent is the parent. Such additional steps in-
clude: Sending a confirmatory email to the pa-
rent following receipt of consent, or obtaining
a postal address or telephone number from the
parent and confirming the parent’s consent by
letter or telephone call. An operator that uses
this method must provide notice that the pa-
rent can revoke any consent given in response
to the earlier email.
Recebido em 30/06/2019
Aceito em 18/12/2019
250
ARTIGO
A experiência de
governo eletrônico
do Judiciário
brasileiro: estudo de
caso dos Tribunais
de Justiça
A experiência de governo
eletrônico do Judiciário
brasileiro: estudo de caso dos
Tribunais de Justiça
Palavras-chave Resumo
governo eletrônico A jurisprudência é uma das principais mani-
e-gov festações do Direito e impacta diretamente
jurisprudência a vida social, especialmente em searas como
transparência a justiça constitucional e a defesa de direitos
Tribunal de Justiça sociais e difusos. A adoção das Tecnologias da
Comunicação e Informação pelos governos e
o advento da Lei da Transparência motivaram
órgãos do Poder Judiciário a divulgar grande
conjunto de dados, inclusive jurisprudenciais,
de forma espontânea. No entanto, para que esta
gama de informações venha a subsidiar uma
maior participação popular, é necessário que
o cidadão tenha facilidade em acessá-las e em
compreendê-las. Por isso, foi realizada uma
pesquisa qualitativa, de cunho exploratório e
descritivo, para analisar a usabilidade de por-
tais dos vinte e sete Tribunais de Justiça bra-
sileiros, com foco na ferramenta de busca por
jurisprudência, e também a apreensibilidade
da linguagem jurídica presente nas interfaces
de busca e nos resultados fornecidos. Foi ve-
rificada a ausência de padronização das inter-
faces dos diferentes portais e a adoção parcial
das recomendações de usabilidade. Quanto à
apreensibilidade, a presença de termos jurídi-
cos na interface de coleta de dados continua
oferecendo barreiras ao cidadão leigo, embora
parte dos portais avaliados demonstre preo-
cupação com a melhoria desse aspecto. Como
conclusão, nota-se a tendência de aperfeiçoa-
mento das práticas de governo eletrônico dos
Tribunais de Justiça, rumo a um cenário de in-
teração mais efetiva com a sociedade.
252
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
The experience of
e-government in the
Brazilian Judiciary
Power: a case study
of Courts of Justice
Keywords Abstract
electronic government Jurisprudence is one of the main manifesta-
e-gov tions of Law and has a direct impact on social
jurisprudence life, especially in fields such as constitutional
transparency justice and the defense of social and diffuse
Court of Justice rights. Not only the adoption of Information
and Communication Technologies by Brazilian
governments but also the enactment of the
Brazilian Transparency Act motivated Judiciary
government entities to publish spontaneously
a large set of data, including jurisprudence. But
the desired popular engagement from these ac-
tions will only be effective when the citizens
could access and understand easily this infor-
mation. Therefore, a qualitative, exploratory
and descriptive study was carried out in portals
from twenty-seven Brazilian Courts of Justice.
They were analyzed in relation to usability, fo-
cusing on search tools for jurisprudence, and
to apprehensibility of legal language in these
search interfaces and in their results. It was ve-
rified absence of standardization among inter-
faces of different portals and partial adoption
of usability guidelines. Regarding apprehensi-
bility, legal terms present on these interfaces
still offer barriers to citizens, although some
of these portals concern over the improvement
of this aspect. Finally, there is a tendency to
improve e-government practices of the Courts
of Justice, towards a scenario of more effective
interaction between these entities and society.
253
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
resistente à interação com a sociedade, reque- aplicação de técnicas que priorizam a experiên-
rendo, para além de soluções tecnológicas para cia do usuário, ou seja, que facilitam o uso dos
a produção, o uso e a difusão de informação sites e asseguram que qualquer pessoa, durante
governamental, o desenvolvimento de um pro- a interação, consiga utilizá-los da forma espe-
jeto político (Pinho, 2008; Jardim, 2007). Além rada e, idealmente, sem obstáculos (Longaray,
dessas características, ainda não totalmente su- Silva, Munhoz, Machado & Tondolo, 2018). Isto
peradas, a Carta Magna de 1988 estabelece o significa que os “sistemas devem ser fáceis de
princípio constitucional da Legalidade para as usar e de aprender, flexíveis”, facilitando a in-
ações da Administração Pública, o que implica teração entre pessoas e máquinas e o sucesso
em dizer que o poder público deve agir estri- na realização dos comandos desejados (Benyon,
tamente de acordo com o que a lei o autoriza a 2011, pp. 49-53).
fazer (França, 2014). Assim, diante do impasse É um critério a ser considerado desde a con-
de que a implementação de novas formas de re- cepção das interfaces web, com design centrado
lacionamento entre governo e cidadãos deman- no ser humano, e vem recebendo contribuições
dava o devido subsídio legal, foi instituída a Lei incrementais na literatura especializada (Bevan,
12.527/11, mais conhecida como Lei de Acesso à 1995; Furtado, 2016; Jacob, 2015; Nielsen &
Informação ou Lei da Transparência. Em seus Loranger, 2007; Petrie & Kheir, 2007). Para esse
quarenta e sete artigos, a Lei da Transparência conjunto de autores, a avaliação da usabilidade
não só define condições de acesso e de divul- é fundamental e não se limita à interface física
gação de dados por parte dos órgãos públicos e dos sistemas, mas estende-se aos seus requi-
as responsabilidades em caso de negativa de in- sitos de funcionamento e ao componente hu-
formações, como também introduz o conceito mano presente na interação. Para além desta
de publicidade como regra–enquanto o sigilo, base conceitual, comum a todas as plataformas,
resguardado em casos específicos, passa a ser diretrizes de usabilidade diferenciadas podem e
uma exceção. devem ser desenvolvidas de acordo com o seu
Nesse contexto, as TICs destacam-se como o contexto de uso. No âmbito da educação, por
principal canal para que os governos disponi- exemplo, Cunha (2019) estudou a relevância
bilizem informações sem a necessidade de pro- da usabilidade em um sistema integrado de bi-
vocação, em uma postura chamada de “trans- bliotecas universitárias, enquanto Silva (2019) o
parência ativa” (Santos & Rocha, 2019; Silva & fez para o contexto de cursos técnicos à distân-
Vakovski, 2015). cia. Em relação à aplicativos e serviços online,
Oliveira, Seabra e Mattedi (2019), Cilumbriello
et al (2019) e Macedo, Veloso e Costa (2019) ava-
2.2. A usabilidade liam, respectivamente, a usabilidade de um app
de portais de segurança colaborativa para smartphones,
de um software para design de interiores e de
jurídicos um serviço de “e-faturas” voltado a pessoas em
idade avançada.
O fortalecimento da transparência e do con- É necessário, portanto, dispor de modelos
trole social no âmbito do Poder Judiciário de- especialmente desenvolvidos e validados para
pende fortemente da usabilidade dos portais indicar o grau de usabilidade de sites gover-
de cada um dos entes governamentais que o namentais. Nesse sentido, o próprio Governo
integram. Federal publicou o Modelo de Acessibilidade
O termo usabilidade refere-se ao estudo e à do Governo Eletrônico (ou eMAG) (Brasil, 2014),
256
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
que compila diretrizes disponíveis na literatura acordo com o nível médio de escolaridade da
internacional a fim de aprimorar a usabilidade população e em estratégias de simplificação
de interfaces web governamentais. Dentre os e de apreensibilidade de textos, como o Plain
pontos a serem observados, estão: Language (Webb & Geyer, 2019).
a) Contexto e navegação: o usuário deve na- No caso de portais vinculados ao Poder
vegar com facilidade entre links e menus, dis- Judiciário, a importância do aspecto textual
por de um mapa do site, além de conseguir na usabilidade é ainda mais evidente, dadas as
identificar com clareza a função e a identidade peculiaridades da linguagem jurídica. Os ope-
de cada página ( já que as páginas internas de radores do Direito têm como principal ferra-
um site podem ter sido encontradas a partir de menta de trabalho a palavra, especialmente em
mecanismos de externos de busca, indepen- sua forma escrita; por meio dela, dão defini-
dente de visita à página inicial–home); ções, descrevem processos, compartilham e le-
b) Carga de informação: os elementos da in- gitimam “a doutrina, a jurisprudência e a le-
terface (links, ícones, cores, fundos, menus) gislação” (Carneiro & Murrer, 2018; Souza et
devem ser planejados com o intuito de facilitar al., 2017). A interdependência entre palavra e
a apreensão das informações; Direito é marcada por uma espécie de dialeto,
c) Autonomia: o usuário deve ter autonomia a Linguagem Jurídica, de difícil compreensão
ao escolher o navegador web de sua preferên- fora da esfera judiciária. A alcunha “juridi-
cia, e ao optar por abrir (ou não) novas abas e quês”, originada no âmbito popular e tornada
janelas; representativa dessa barreira de comunicação,
d) Erros: o usuário deve ser esclarecido abrange esse vasto conjunto de termos e hábi-
prontamente sobre falhas e indisponibilidades tos adotados por profissionais do Direito, mas
no sistema e ter facilidade ao corrigir erros que passíveis de adaptações em nome da clareza e
ele mesmo tenha cometido. da objetividade, tais como (Carneiro & Murrer,
e) Desenho: as informações devem ser legí- 2018):
veis e com estética agradável, facilitando a de- a) Adoção de títulos e subtítulos que infor-
codificação dos dados durante a interação; mem sobre, ou resumam, o texto subsequente;
f ) Consistência e Familiaridade: o site deve b) Retirada de informações não essenciais;
ser familiar, intuitivo e fazer uso de convenções. c) Apresentação de informações importantes
g) Redação: textos devem ser diagramados e logo no início;
redigidos levando em conta a audiência do por- d) Incorporação de gráficos, planilhas ou
tal, frases e conceitos familiares ao usuário, cla- imagens na apresentação de temas complexos;
reza e objetividade. e) Criação de sumários e/ou introduções em
Além dos itens anteriores, que enfocam ma- documentos grandes e/ou com muitos itens.
joritariamente o aspecto gráfico das interfaces, f ) Explicação de uma única ideia por
pesquisadores como Lehnhart, Rampelloto, sentença;
Vieira e Löbler (2015) e Martins e Filgueiras g) Elaboração de sentenças com até trinta e
(2007) reforçam a importância de estabelecer cinco palavras, em média;
parâmetros de usabilidade específicos para o h) Uso de verbos, e não de substantivos, para
aspecto textual, ou seja, para a redação, con- exprimir ação (p. ex. “para documentar” x “para
siderando o grande volume de informações a documentação”);
apresentado na forma escrita nos portais go- i) Uso de sentenças positivas;
vernamentais. Nesse sentido, sugerem um j) Adoção de sintaxe simples;
processo de readequação das informações, de k) Uso da linguagem cotidiana em detrimento
257
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
unificada” contém, portanto, a visão de um romano do non liquet, em que a ausência de pre-
determinado tribunal em relação a casos que visão legal permitia ao juiz eximir-se da obri-
contemplam questões parecidas levadas a jul- gação de julgar. Por isso, mesmo que o juiz não
gamento. Caso um tribunal já possua sólido en- atue como legislador positivo (o que extrapo-
tendimento sobre determinado tema, ele pode laria a competência do Poder Judiciário), existe
produzir um documento intitulado “súmula”, uma relativa discricionariedade no papel de-
que uniformiza a jurisprudência já publicada cisório nos casos concretos sem previsão legal
por aquele órgão sobre o assunto. explícita, que atende a anseios e demandas da
É preciso destacar, no entanto, que a juris- sociedade e que indica aos legisladores a ne-
prudência não tem função coercitiva, isto é, não cessidade de preencher as lacunas identificadas.
obriga um tribunal a decidir nesta ou naquela Essa concomitância das funções pragmática,
direção. Ainda assim, na prática, decisões reite- adaptativa e criativa da jurisprudência gera re-
radas fornecem um importante norte para a in- flexos em toda a vida social, notadamente em
terpretação e a aplicação do Direito (Lenzi, s.d.). searas como a justiça constitucional e a prote-
Apenas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ção de direitos sociais e interesses difusos, daí
competência para redigir súmulas de cunho a grande importância do acesso à jurisprudên-
vinculante, ou seja, que obrigam os demais tri- cia como ferramenta de controle social junto
bunais a tomarem decisões em um mesmo sen- ao Poder Judiciário. O rico material informa-
tido. Isso acontece quando o STF já emitiu inú- tivo proporcionado pela jurisprudência dos
meras decisões sobre casos semelhantes. diferentes tribunais deve, portanto, ser ofere-
Notadamente após o advento da Constituição cido à população de forma clara, transparente
de 1988, a jurisprudência brasileira passou a e acessível, ressalvados os casos que transitam
exercer três funções complementares: a prag- em segredo de justiça. Nesse sentido, é comum
mática, que norteia a aplicação da lei em um que os tribunais disponibilizem em seus por-
caso concreto; a adaptadora, que harmoniza o tais, por meio da ferramenta de busca juris-
texto legal com as demandas e ideais contem- prudencial, o inteiro teor (isto é, o documento
porâneos; e a criativa, que preenche lacunas, integral do processo) e também a ementa (uma
ou seja, questões não claramente previstas na espécie de cabeçalho, que resume o conteúdo
legislação em vigor (Breves comentários à ju- do documento em questão).
risprudência brasileira: conceito, evolução his- Outra dificuldade envolvida no acesso à ju-
tórica, aplicação e efeitos, 2002). risprudência pelo público leigo está associada
Assim, dentro da função pragmática, a ju- ao desconhecimento da própria composição
risprudência fornece a fundamentação para do sistema judiciário–e, por consequência, de
que juízes formem o seu livre convencimento onde e como efetuar as pesquisas jurispruden-
motivado e possam emitir suas decisões. Na ciais. Entre as diferentes instâncias de tribunais
função adaptativa, a jurisprudência orienta a colegiados, no topo, está o Supremo Tribunal
decisão a ser tomada e como a lei deve ser in- Federal (STF), dedicado a questões ligadas di-
terpretada diante de um caso concreto, unifor- retamente à Constituição, casos de extradi-
mizando julgamentos de situações semelhan- ção solicitados por Estado estrangeiro e tam-
tes. Em sua função criadora, a jurisprudência bém de habeas corpus de cidadãos brasileiros.
torna-se fonte do Direito, já que ao juiz é ve- Para questões não vinculadas diretamente à
dado o direito de deixar de julgar o que lhe for Constituição, a última instância é o Superior
submetido, mesmo diante de eventuais lacunas Tribunal de Justiça (STJ). Na hierarquia, abaixo
na lei. Esta função contrapõe-se ao princípio deles, estão os Tribunais Regionais Federais
259
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
possível mediante o número do processo ou a endereço dos portais e pode, inclusive, inferir
data de julgamento – ambas as informações in- qual o link do TJ de outros Estados da federação.
disponíveis ao cidadão comum. Assim, o acesso No entanto, o acesso às ferramentas de busca
às ementas e ao inteiro teor dos acórdãos do jurisprudencial a partir da página inicial varia
TJMA não pôde ser avaliado neste artigo. muito de portal a portal, algumas delas exi-
O endereço (URL) das páginas iniciais dos gindo a navegação em páginas intermediárias,
portais é padronizado por meio da associa- resultando em um acesso não intuitivo, com
ção da sigla do Tribunal de Justiça (TJ) à sigla URLs complexas, e que obrigam o usuário a
do Estado ou do Distrito Federal e Territórios abrir novas abas ou janelas. Todos os endereços
(DFT) e ao domínio <jus.br>. Com isso, o dos portais acessados nesta pesquisa são forne-
usuário não encontra dificuldade ao digitar o cidos na [Tabela 1] .
[Tabela 1] Endereços dos portais dos Tribunais de Justiça acessados nesta pesquisa
Nos portais do TJDFT, TJES, TJGO, o con- booleanos na busca por jurisprudência. Houve,
teúdo mais importante–páginas serviços e se- também, grande presença de links com siglas
ções mais utilizadas–estava disposto antes da familiares ao ambiente jurídico, mas de co-
dobra, ou seja, sem a necessidade de rolagem nhecimento improvável por parte do cidadão
vertical e/ou horizontal. Nos demais portais, leigo, aspecto que será melhor apresentado na
ainda que o uso fosse lógico e intuitivo ao cida- Diretriz 7–Redação.
dão, foi necessária a rolagem para a localização A rolagem horizontal não foi verificada nos
de informações relevantes e da própria busca portais acessados, mas a necessidade de rola-
jurisprudencial. No caso do TJMA e TJMT, en- gem vertical foi comum a todos os sites. Isso
tretanto, o acesso a acórdãos foi disponibilizado pode ser relacionado ao excesso de informa-
sem qualquer destaque, no fim da página. ções na página inicial de alguns dos portais
analisados. TJPA, TJMA, TJMS e TJTO exibiram
inúmeros menus, cada um deles com muitos
Diretriz 2 – Carga links, favorecendo a confusão no usuário. No
de informação caso do TJPA, a opção de busca jurisprudencial
“Acórdãos e Jurisprudência” foi, inclusive, inse-
Os portais, em geral, favoreceram o uso in- rida em um bloco intitulado “Outros sites”, no
tuitivo e não exigiram memorização para o canto inferior direito da página inicial, como
acesso à jurisprudência, com destaque para se fosse uma funcionalidade externa e não ine-
TJDFT, TJES, TJGO, TJMG, TJSP e TJMT, que ofe- rente às atribuições do Tribunal [Figura 2].
receram layouts com
atributos de forma-
tação de texto–como
fontes e cores–mais
adaptados ao tama-
nho da página.
Em todas as pági-
nas acessadas, os links
estavam claramente
definidos e identifi-
cados, com textos ob-
jetivos e que facilita-
vam a compreensão
do conteúdo. Foram
evitados os links com
descrições genéricas,
como “Clique aqui”
ou “Veja mais”, cujos
textos não agregam informação sobre o que o [Figura 2] Menu com excesso e
usuário vai encontrar ao acessá-los. Exceções informações no portal do TJPA.
foram o TJMA, que fez uso da expressão “Mais
notícias” em link no menu lateral direito, e o Em relação a passos desnecessários para a
TJSE, que redigiu “Clique aqui” em link para obtenção da informação desejada, o TJCE soli-
orientar o usuário quanto ao uso de operadores citou ao usuário o teste CAPTCHA (acrônimo
264
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
Quanto aos filtros disponibilizados, o nú- página” em destaque no canto superior direito
mero de opções foi elevado em grande parte [Figura 5] Por meio dela, foi aberto um menu
das ferramentas de busca jurisprudencial ava- de acesso rápido que facilita o processo de pes-
liadas. O layout mais amigável ao cidadão foi quisas jurisprudenciais no portal.
o apresentado pelo TJTO [Figura 4], que não Além do TJRS, o único portal a possibilitar
exigiu conhecimento de vocabulário jurídico, certa personalização foi o TJDFT, por meio da
à exceção do termo “ementa” (que também é opção de copiar um link com o endereço da
utilizado em outros contextos e, portanto, pode página de resultados, evitando o trabalho de
ter seu significado inferido pelo usuário). refazer a pesquisa em caso de necessidade de
acessar novamente os mesmos dados. O TJDFT
também foi o único a possibilitar a opção de fil-
Diretriz 3 trar processos que tramitam em modo público
– Autonomia ou em segredo de justiça. Nos casos de sigilo, o
tribunal permitiu acesso à ementa, sem exigir
Os portais avaliados mostraram-se eficien- cadastro do usuário. TJPR e TJMG, por sua vez,
tes, porém pouco flexíveis e/ou passíveis de ofereceram possibilidade de customização em
personalização no que se refere à apresentação relação ao aumento (zoom in) ou à diminuição
de resultados. Destaque deve ser dado ao TJRS, (zoom out) do tamanho do texto na tela.
que exibiu ao usuário a opção “Personalize esta Em todos os casos, foi possível interromper
265
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
Diretriz 7
– Redação
Em geral, os sites consultados não oferece-
ram a opção de substituição ou de explicação
de termos técnicos da área jurídica no mo-
mento da busca por jurisprudência. Exceções
foram o TJMT, que disponibilizou a opção de
baixar relatório sintético sobre acórdãos pré-
-selecionados, e o TJTO e o TJBA, que oferece-
ram sumários para cada acórdão selecionado.
[Figura 9] Acesso à jurisprudência A retirada de informações desnecessárias ao
facilitado para o cidadão. usuário leigo, o destaque dado à essência do
documento, com a apresentação das informa-
formatos não convencionais. Na busca de ju- ções importantes em destaque, e a adoção de
risprudência, a opção avançada oferecia, na interfaces gráficas diferenciadas favorecem a
maior parte dos portais, a possibilidade de pes- apreensibilidade dos textos, como pode ser ob-
quisa por Data de Julgamento ou por Data de servado no print da consulta jurisprudencial
Publicação, sempre no formato DD/MM/AAAA feita ao TJBA [Figura 10].
(dia, mês e ano). Outros critérios importantes para a apreen-
Uma parcela dos portais organizou e agru- sibilidade, como a adoção de sintaxe simplifi-
pou informações e serviços direcionados e/ cada, em linguagem cotidiana, e com sentenças
ou mais procurados por diferentes públicos, positivas e curtas, puderam ser observados na
como: “Cidadão”, “Servidor”, “Magistrado”, página inicial do relatório fornecido pelo TJTO
“Advogado”, “Administração”, “Institucional”, para um acórdão pré-selecionado [Figura 11].
“Operadores do Direito”, “Imprensa” (casos do Nas páginas iniciais dos portais, foram ve-
TJMA, TJPE e TJRR, TJPI, TJRN, TJMG). No en- rificados excessivo uso de siglas jurídicas nos
tanto, nos sites que disponibilizaram essa di- rótulos de links. O TJCE, por exemplo, utili-
visão, nem sempre o acesso à jurisprudência zou SIC (Serviço de Informação ao Cidadão) e
foi considerado de possível interesse para o ci- NUPEMEC (Núcleo Permanente de Métodos
dadão não vinculado à área jurídica. Apenas Consensuais para a Solução de Conflitos) em
o TJSC e o TJSE [Figura 9] inseriram a opção links antes da dobra. Já o TJGO, TJRR e TJMG
“Jurisprudência” para todos os públicos. as utilizaram em botões de acesso rápido, tam-
bém antes da dobra. Todas elas são de difícil
269
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
Apesar disso, alguns tribunais buscam supe- Pesquisa de opinião da consulta de juris
rar esses entraves de usabilidade e de apreensi- prudencial [sic] do site do PJMT [sic]:
bilidade da busca jurisprudencial. O TJMT, por A consulta jurisprudencial é essencial para
exemplo, disponibilizou formulário de pes- auxiliar a composição de decisões, sentenças
quisa de satisfação [Tabela 2], na própria página e votos. Para subsidiar o aperfeiçoamento do
de pesquisa de jurisprudência, apresentando-o serviço de consultas existente no site deste
da seguinte forma (Tribunal de Justiça do Mato Tribunal, precisamos saber a sua experiência
Grosso, 2019): quanto ao uso de nossos serviços.
5. Qual sua avaliação quanto a facilidade Avalie a facilidade Múltipla escolha Sim
de uso da pesquisa? de uso. (Ótimo/ Bom/ Regular/ Ruim)
6. Qual sua avaliação geral da Consulta Avalie o nível de Múltipla escolha Sim
de Jurisprudência do PJMT [sic]? satisfação. (Ótimo/ Bom/ Regular/ Ruim)
Maia, J., Silva, E., & Silva, A. C. (2019). Padrões web em governo eletrônico e-PWG:
Impactos da (in)compreensão da cartilha de codificação. (2010).
linguagem forense e os desafios Ministério do Planejamento Orçamento
do acesso à justiça. Revista Direito e Gestão. Disponível em http://epwg.
Em Debate, 27(50), pp. 128-138. doi: governoeletronico.gov.br/cartilha-codificacao
10.21527/2176-6622.2018.50.128-138 Padrões web em governo eletrônico e-PWG:
Martins, S., & Filgueiras, L. Métodos de cartilha de usabilidade. (2010, abril).
Avaliação de Apreensibilidade das Ministério do Planejamento, Orçamento
Informações Textuais: uma Aplicação e Gestão. Disponível em http://epwg.
em Sítios de Governo Eletrônico. governoeletronico.gov.br/cartilha-usabilidade
Proceedings of Latin American Petrie, H., & Kheir, O. (2007). The relationship
Conference on Human-Computer between accessibility and usability of
Interaction, Brasil, 2007. websites. Proceedings of the SIGCHI
Nielsen, J., & Loranger, H. (2007). Usabilidade conference on human factors in
na web: projetando websites com computing systems. USA. (pp. 397-406).
qualidade. Rio de Janeiro: Campus. Pinho, J. A. G. (2008). Investigando portais de
Melo, L. A. (2018). Governo eletrônico: uma governo eletrônico de estados no Brasil:
proposta para a avaliação dos serviços muita tecnologia, pouca democracia.
governamentais eletrônicos sob o RAP, 42(3), pp. 471-93.
prisma da usabilidade. (Dissertação de Przeybilovicz, E., Cunha, M. A., & Meirelles,
mestrado não publicada). Universidade F. S. (2018). O uso da tecnologia da
Federal de Uberlândia, Uberlândia, informação e comunicação para
Brasil. caracterizar os municípios: quem são e
Neves, F. S., Alves, F. F., & Luxinger, G. T. M. C. o que precisam para desenvolver ações
(2018). A tensão entre os princípios da de governo eletrônico e smart city. Rev.
segurança jurídica e da efetividade no Adm. Pública, 52 (4), pp. 630-649.
Estado Democrático de Direito. Anais Santos, P. M.; Bernardes, M. B.; Rover, A. J.;
do III Congresso de Processo Civil & Mezzaroba, O. (2013). Ranking dos
Internacional. Brasil, Vitória. tribunais de contas brasileiros: uma
Oliveira, M., Seabra, R. D., & Mattedi, A. avaliação a partir dos padrões web em
P. (2018). Usabilidade de aplicativos governo eletrônico. Rev. Adm. Pública,
de segurança colaborativa para 47(3), pp. 721-744.
smartphones: uma revisão sistemática. Santos, L. N., & Rocha, J. S. (2019). A
Revista de Sistemas e Computação, importância da transparência para o
Salvador, 8(2), pp. 262-276. fortalecimento
Oliveira, E. C., Silva, A. C. B., Silva, V, & da gestão pública democrática. Id on Line Rev.
Campelo, K. S. (2019). Disclosure nos Mult. Psic., 13(44), pp. 892-904.
portais de transparência públicos: um Schwartzman, S. (2015). Bases do
estudo sob a ótica da Lei de Acesso autoritarismo brasileiro. (5ª ed.). Rio de
à Informação, Transparência Fiscal, e Janeiro: Publit.
Governança Pública. Braz. J. of Develop.,
5(6), pp. 5257-5284.
277
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 A EXPERIÊNCIA DE GOVERNO ELETRÔNICO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: VÂNIA DE
PÁGINAS 250 A 277 ESTUDO DE CASO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA OLIVEIRA ALVES
ARTIGO
Panorama mundial
da regulação da
neutralidade da rede
Panorama mundial
da regulação da
neutralidade da rede
Palavras-chave Resumo
Internet Governos ao redor do planeta têm estabele-
neutralidade da rede cido regulamentações sobre a Neutralidade da
regulações da neutralidade da rede Rede, princípio segundo o qual o tráfego na
Internet não pode ser discriminado por ori-
gem, destino ou conteúdo. A Neutralidade da
Rede se traduz na transparência das políticas
de gerenciamento de tráfego, com impacto di-
reto na liberdade de escolha dos usuários, na
concorrência e na inovação. O debate sobre a
Neutralidade da Rede no Estados Unidos ini-
cia-se nos anos 2000 e continua intenso por lá,
numa clara demonstração do jogo de forças en-
volvido. No Brasil, a Neutralidade da Rede foi
regulamentada como um dos princípios pre-
vistos no Marco Civil da Internet. Neste artigo
são descritos os principais esforços de regula-
mentação da Neutralidade da Rede no mundo,
destacando seus principais aspectos.
280
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
A worldwide overview
of network neutrality
regulations
Keywords Abstract
Internet Governments worldwide have established re-
net neutrality gulations on Network Neutrality, a principle
net neutrality regulations according to which Internet traffic cannot be
discriminated by source, destination or con-
tent. Net Neutrality implies that providers
must adopt transparent traffic management
policies, and has a direct impact on user free-
dom of choice, competition and innovation.
The debate around Net Neutrality started in
the United States in the early 2000s and is still
intense there, in a clear demonstration of the
strong forces involved. In Brazil, Net Neutrality
was regulated as one of the principles establi-
shed in the Marco Civil da Internet. This arti-
cle describes the main efforts to regulate the
Net Neutrality in the world, highlighting their
main aspects.
281
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
diversidade cultural, para a vida social e para a de consumidores. Para os serviços “de atacado”
democracia e, portanto, a Nkom trabalha para (wholesale), providos de um ISP para outros
preservar a Internet como uma plataforma ditos secundários, haverá uma análise comple-
aberta (Sørensen, 2014). mentar. Quando um ISP empregar práticas de
gerenciamento de tráfego da Internet mais res-
tritivas para os seus serviços “de atacado” do
Canadá que para os seus serviços “de varejo”, será ne-
cessária a aprovação da Comissão para implan-
Em 21 de outubro de 2009, o Canadá, por tar essas práticas. Práticas de gerenciamento de
meio da CRTC (Canadian Radio Television and tráfego da Internet, aplicadas aos serviços “de
Telecommunications Commission), expõe as suas atacado”, devem respeitar o arcabouço das prá-
determinações em relação ao uso de práticas ticas de gerenciamento de tráfego da Internet,
de gerenciamento do tráfego da Internet pelos e não devem ter um impacto significativo e
ISPs. A Comissão estabelece uma abordagem desproporcionado para o tráfego de ISPs secun-
baseada em princípios que equilibram apro- dários (CRTC, 2009).
priadamente a liberdade dos canadenses de uti-
lizar a Internet para várias finalidades com os
interesses legítimos dos ISPs de gerenciar o trá- Chile
fego gerado em suas redes.
A CRTC baseou suas determinações em Em 18 de agosto de 2010, o governo do Chile
quatro considerações, conforme segue: (i) promulgou a Lei 20.453. Nela, o governo chi-
Transparência. A utilização de quaisquer prá- leno consagra expressamente o princípio da
ticas de gerenciamento de tráfego de Internet Neutralidade da Rede para os consumidores e
pelos ISPs deve ser transparente; (ii) Inovação. usuários da Internet. Esta Lei estabelece as se-
O investimento na rede é uma ferramenta fun- guintes regras para as concessionárias de servi-
damental para lidar com o congestionamento, ço público de telecomunicações (que prestam
por exemplo, e deve continuar sendo a prin- serviço aos provedores de acesso à Internet),
cipal solução utilizada pelos ISPs; no entanto, e também para os provedores de acesso à
o investimento por si só não elimina a neces- Internet, que prestam serviços comerciais de
sidade de certas práticas de gerenciamento de conectividade para os usuários: (i) Não podem
tráfego na Internet; (iii) Clareza. Os ISPs devem arbitrariamente bloquear, interferir, discrimi-
assegurar que quaisquer práticas de gerencia- nar, impedir ou restringir o direito de qualquer
mento de tráfego de Internet que empregarem usuário da Internet em usar, enviar, receber ou
não sejam injustamente discriminatórias e nem oferecer qualquer conteúdo, aplicação ou ser-
indevidamente preferenciais; (iv) Neutralidade viço legal através da Internet, e qualquer outra
concorrencial, que é classificada pela CRTC em atividade ou uso legal através da rede; (ii) Não
serviços de “varejo” e de “atacado”, descritos a podem limitar o direito de um usuário de in-
seguir. Para os serviços “de varejo” (retail), pro- serir ou usar qualquer classe de equipamentos
vidos a usuários finais, os ISPs podem conti- ou dispositivos na rede, desde que sejam legais
nuar a empregar práticas de gerenciamento de e que não danifiquem ou prejudiquem a qua-
tráfego da Internet sem a aprovação prévia da lidade ou serviço da rede; (iii) Deverão forne-
Comissão. A CRTC destaca que irá rever essas cer, às expensas dos usuários que os solicitem,
práticas, avaliando-as com base em preocupa- serviços de controle parental para conteúdos
ções decorrentes principalmente de queixas que violem a lei, a moral ou os bons costumes,
285
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
serviço; (v) implementarão mecanismos para aos padrões mínimos de QoS. Desde que cum-
preservar a privacidade dos usuários contra pram os quatro requisitos estabelecidos acima,
vírus e a segurança da rede; além disso, (vi) os ISPs em Singapura podem estabelecer nicho
bloquearão o acesso a determinados conteúdos, ou oferecer serviços diferenciados de Internet
aplicativos ou serviços, somente a pedido ex- (Info-communications Media Development
presso do usuário (Colômbia, 2011a). Authority, 2010). Isso significa que os ISPs em
A Resolução 3.502, de 16 de dezembro de Singapura podem oferecer serviços ou con-
2011, estabelece as condições regulatórias da teúdos especializados ou personalizados de
Neutralidade da Internet, relativas aos seguin- Internet e podem executar práticas razoáveis
tes princípios, em cumprimento ao estabele- de gerenciamento de rede, mas são proibidos
cido no artigo 56 da Lei 1.450 de 2011: (i) livre de impor práticas discriminatórias que tornem
escolha; (ii) sem discriminação; (iii) transparên- qualquer conteúdo de Internet legítimo ina-
cia; e (iv) informação. Além disso, a Resolução cessível ou inutilizável (Info-communications
3.502 também estabelece os aspectos técnicos Media Development Authority, 2011).
da Neutralidade da Internet, tais como: (i) in-
dicadores de qualidade do serviço de acesso à
Internet; (ii) bloqueio de conteúdos; (iii) segu- Coréia
rança da rede, e (iv) práticas de gerenciamento
de tráfego. E, ainda, a mesma Resolução 3.502 A agência de regulação da Coréia do Sul, a
traz a lista das práticas de gerenciamento de KCC (Korea Communications Commission) traz,
tráfego consideradas como razoáveis (Colômbia, em seu relatório anual de 2011, um qua-
2011b). dro contendo os Princípios Básicos para a
Administração da Neutralidade da Rede e do
Tráfego da Internet neste país. Os princípios
Singapura são os seguintes: (i) Direitos do usuário: os
usuários da Internet têm direito à informação
Em 11 de novembro de 2010, a autoridade sobre seu tráfego na Internet, sendo permitido
das telecomunicações de Singapura, subor- livremente utilizar conteúdos legítimos, apli-
dinada ao Ministério de Comunicações e cações e dispositivos, a menos que eles cau-
Informação, a IDA (Infocomm Development sem perigo (hazard) para os serviços ou redes;
Authority), atualmente chamada de IMDA (The (ii) Administração transparente do tráfego da
Info-communications Media Development Internet. Os ISPs devem divulgar a finalidade,
Authority), lançou uma consulta pública sobre o escopo, as condições, os procedimentos e os
a Neutralidade da Rede. E, no mesmo dia em métodos para administrar o tráfego da rede e
que a Colômbia aprova a sua lei, em 16 de devem também notificar os usuários dos de-
junho de 2011, a partir do resultado desta con- talhes ou efeitos das ações tomadas como ne-
sulta, a IDA publica a decisão sobre o que con- cessárias para administrar o tráfego da rede.
sidera ser a sua abordagem política em relação (iii) Proibição de bloqueio: quaisquer conteú-
à Neutralidade da Rede, conforme segue em re- dos, aplicações ou dispositivos legítimos, não
sumo. Os provedores de rede: não poderão efe- devem ser bloqueados, a menos que eles cau-
tuar qualquer bloqueio de conteúdo legítimo sem perigo para os serviços ou para as redes.
da Internet; deverão cumprir as regras de con- (iv) Proibição de discriminação “não razoável”
corrência e interconexão; deverão dar transpa- dos conteúdos, aplicações e serviços legítimos.
rência às suas informações; e deverão atender (v) Gestão “razoável” do tráfego: o tráfego pode
287
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
Ressalta também que o mercado dos ISPs é su- foi encontrada, levando a crer que o assunto
ficientemente competitivo, e que os consumi- permanece em discussão neste país.
dores são capazes de mudar de ISPs de forma
relativamente fácil se as restrições forem um
problema. E ressalta ainda que a Comissão é da Rússia
opinião de que a prática de taxa zero de deter-
minados conteúdos é benéfica para os usuários Em 11 de fevereiro de 2014, o governo da
finais. A Comissão espera que as pressões com- Federação Russa aprovou o plano de ação
petitivas do mercado levem a barreiras mais para o desenvolvimento da concorrência no
elevadas de dados e na quantidade de con- setor das telecomunicações, elaborado pelo
teúdo que é armazenado em cache; consequen- Ministério das Comunicações com a participa-
temente, a prática e a importância do tráfego ção do FAS, o Serviço Federal Antimonopólio
de taxa zero ficam suscetíveis de serem reduzi- (Federal Antimonopoly Service). Segundo o FAS,
das (Commerce Commission of New Zealand, neste plano de ação foram incluídas medidas
2012). destinadas a apoiar a Neutralidade da Rede
Em 18 de junho de 2015, o site Internet NZ (Federal Antimonopoly Service, 2014). Ao exe-
lança um documento de Discussão Pública cutar o plano de ação, o FAS elaborou um re-
(O’Neill, 2015; Network neutrality in New latório sobre a aplicação dos princípios da
Zealand: public discussion document 2015), Neutralidade da Rede em redes de telecomu-
para buscar a opinião dos neozelandeses e ini- nicações, propondo formalizar as disposições
ciar um diálogo nacional, aberto e colaborativo que determinam a política de Neutralidade,
sobre o que a Neutralidade da Rede significa nos seguintes atos normativos legais: a lei fe-
na Nova Zelândia (Network neutrality in New deral sobre as comunicações, as regras para a
Zealand: public discussion document 2015). conexão de redes de telecomunicações, além
Em 08 de setembro de 2015, o Ministério dos de regras para os serviços de comunicações.
Negócios, Inovação e Emprego (Ministry of As consultas públicas sobre estes atos norma-
Business, Innovation & Employment) divulga um tivos legais para formalizar os princípios da
documento de discussão contínua e pública Neutralidade da Rede começaram em 12 de no-
para revisão da Lei das Telecomunicações de vembro de 2014 e em 27 de janeiro de 2015. O
2001. Este documento também buscou anga- FAS participou de uma audiência pública com
riar pontos de vista sobre uma série de opções representantes do setor das telecomunicações
para a regulação das comunicações após o ano e da Tecnologia da Informação e Comunicação.
de 2020, encorajando as partes interessadas, as Como resultado desta audiência pública, os es-
empresas e os consumidores a participar. Para pecialistas chegaram à conclusão que as nor-
isto, levanta várias questões, sendo que várias mas gerais da Lei Antimonopólio abrangem os
referem-se de forma direta à Neutralidade da principais princípios da Neutralidade da Rede,
Rede (Nova Zelância, 2015). Todas as contribui- e foi tomada a decisão de estabelecer um Grupo
ções recebidas estão disponíveis na página do de Trabalho do FAS para a aplicação dos prin-
Ministério (Nova Zelância, 2001). cípios da Neutralidade da Rede na Federação
Embora tenham sido encontradas várias con- Russa, com o envolvimento dos reguladores
siderações sobre a Neutralidade da Rede na e do mercado (Federal Antimonopoly Service,
Nova Zelândia, e algumas questões inerentes 2015a).
tenham sido postas em consulta pública, até o Em 20 de abril de 2015, este Grupo de
final desta pesquisa nenhum tipo de regulação Trabalho teve sua primeira reunião, e como
289
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
nenhum fato de violação dos princípios do FAS as menções aos documentos acima ci-
da Neutralidade da Rede foi revelado, tam- tados, elaborados pelo Grupo de Trabalho em
bém concluiu que o cumprimento das nor- defesa e adoção dos princípios da Neutralidade
mas gerais da Lei Antimonopólio apoia os da Rede, nenhum destes documentos foi loca-
princípios da Neutralidade da Rede (Federal lizado no site. Ou seja, não foi encontrado qual-
Antimonopoly Service, 2015c). A segunda re- quer tipo de documento que contenha a regu-
união do Grupo de Trabalho ocorreu em 30 lação propriamente dita, que liste os princípios
de Novembro de 2015, e nela os participantes ou regras a serem adotados pelos ISPs.
acordaram em empregar uma regulação sobre
a Neutralidade da Rede, cuja finalidade é apoiar
o desenvolvimento da Internet como uma pla- Brasil
taforma aberta para inovações, diminuindo
barreiras de acesso para usuários finais, ope- No Brasil, embora a regulação da Neutralidade
radores e fornecedores de conteúdo e serviços da Rede comece a se concretizar somente em
(Federal Antimonopoly Service, 2015b). Em 16 2014, desde 2007 ocorriam discussões em torno
de Dezembro de 2015, houve a terceira reu- da necessidade de regulamentar a Internet
nião do Grupo. Esta reunião ocorreu para dis- (Lemos, 2007). Entretanto, o governo brasi-
cutir os objetivos, conceitos e princípios fun- leiro decidiu por um marco civil em vez de um
damentais da Neutralidade da Rede, descritos marco criminal e, a partir de 2009, são toma-
em um projeto sobre a Neutralidade da Rede das as primeiras providências para a constru-
a ser refinado na próxima reunião (Federal ção deste marco civil. Em 05 de junho de 2009,
Antimonopoly Service, 2015d). o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil),
Em 23 de fevereiro de 2016, o Grupo de ente responsável pela governança da Internet
Trabalho elaborou um documento que cha- no Brasil, aprova e lança uma Resolução com
mou de “Documento Fundamental sobre a os 10 Princípios para a Governança e Uso da
Neutralidade da Rede”. Este documento teve Internet no Brasil (Comitê Gestor da Internet
como finalidade assegurar o acesso não dis- no Brasil, 2009b), na qual a Neutralidade da
criminatório e as condições de desempenho Rede aparece como o sexto princípio (Comitê
para os provedores de serviços e de conteúdo. Gestor da Internet no Brasil, 2009a). Em 29
Além disso, o documento teve como finalidade de outubro de 2009, a Secretaria de Assuntos
criar condições para o desenvolvimento das Legislativos do Ministério da Justiça, em parce-
telecomunicações, da concorrência e de uma ria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro,
cooperação entre os participantes do mercado, da Fundação Getúlio Vargas, lança o projeto
considerando que estas condições certamente para a construção colaborativa do Marco Civil,
irão facilitar os investimentos e as inovações. tomando como base os 10 princípios estabele-
Todos os membros do Grupo de Trabalho, re- cidos pelo CGI.br.
presentantes do Ministério das Comunicações, O processo para esta construção colabora-
especialistas do governo, especialistas inde- tiva ocorreu em duas fases. Na primeira fase,
pendentes e representantes da indústria de co- foram debatidas ideias sobre os tópicos pro-
municações e da comunidade da tecnologia de postos para a regulação a partir de um texto-
informação e comunicação concordaram em -base produzido pelo Ministério da Justiça. Na
observar os princípios da Neutralidade da Rede segunda fase, a discussão teve como parâmetro
(Federal Antimonopoly Service, 2016). a minuta do Anteprojeto de Lei do Marco Civil.
Ainda que tenham sido encontradas no site Cada artigo, parágrafo, inciso ou alínea deste
290
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
Anteprojeto de Lei também esteve aberto para de conexão à Internet, paga ou gratuita, bem
participação da sociedade, em forma de con- como na transmissão, comutação ou rotea-
sulta pública. Também ocorreram foros de dis- mento, é vedado ao ISP bloquear, monitorar,
cussão (Brasil, 2016a). Estas duas fases resulta- filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de
ram na elaboração do Projeto de Lei 2.126, de dados (Brasil, 2014).
2011, que estabeleceu os princípios, as garantias, Assim, em atendimento ao exposto na Lei
os direitos e os deveres para o uso da Internet do Marco Civil, para poder fornecer as infor-
no Brasil e que, em 24 de agosto de 2011, foi mações devidas à Presidente da República, o
encaminhado ao Congresso Nacional (Brasil, CGI.br realizou uma consulta pública entre
2011b). Em 25 de março de 2014, a Câmara dos 19 dezembro de 2014 e 20 de fevereiro de
Deputados aprova este Projeto de Lei, encami- 2015 para recolher os subsídios da sociedade
nhando-o em 26 de março de 2014 ao Senado (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2015). O
Federal e, em 23 de abril de 2014, ele é trans- Ministério da Justiça também promoveu sua
formado na Lei Ordinária 12.965 (Brasil, 2011a). consulta pública, entre 28 de janeiro e 30 de
A Neutralidade da Rede está exposta no abril de 2015 e, por meio dela, recebeu mais de
Artigo 9º da Lei Ordinária 12.965/2014, deter- 60 mil visitas e cerca de 1.200 comentários da
minando que o responsável pela transmissão, população (Brasil, 2016a). E, da mesma forma, a
comutação ou roteamento tem o dever de tra- Anatel realizou a sua consulta pública entre os
tar de forma isonômica quaisquer pacotes de dias 31 de março e 19 de maio de 2015 (Agência
dados, sem distinção por conteúdo, origem e Nacional de Telecomunicações, 2015). Em 10
destino, serviço, terminal ou aplicação. Salienta de novembro de 2015, o CGI.br encaminha
que: (i) a discriminação ou degradação do trá- ao Ministério da Justiça e à Casa Civil o docu-
fego será regulamentada nos termos das atri- mento elaborado a partir das contribuições re-
buições privativas do Presidente da República, cebidas em sua consulta pública e das contri-
para a fiel execução desta Lei. Para isto, serão buições vindas a partir de discussões ocorridas
ouvidos o CGI.br e a Anatel (Agência Nacional no âmbito de um grupo de trabalho especifica-
de Telecomunicações). A discriminação ou de- mente constituído para tratar da regulamenta-
gradação do tráfego somente poderá decorrer ção (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2015).
de requisitos técnicos indispensáveis à presta- Como resultado das contribuições recebi-
ção adequada dos serviços e aplicações. A prio- das, o Ministério da Justiça elabora a minuta
rização somente é permitida para os serviços do Decreto Presidencial para regulamentar o
de emergência; (ii) Na hipótese de discrimina- Marco Civil e, em 27 de janeiro de 2016, a apre-
ção ou degradação do tráfego prevista, o ISP senta à sociedade em nova Consulta Pública
deve abster-se de causar dano aos usuários. para colher contribuições de redação ou de con-
Deve agir com proporcionalidade, com trans- teúdo até o dia 29 de fevereiro (Brasil, 2016b).
parência e com isonomia. Deve informar pre- Em 05 de maio de 2016, a então presidente
viamente, de modo transparente, claro e sufi- Dilma Rousseff recebe do Ministério da Justiça
cientemente descritivo aos seus usuários, quais a minuta do Decreto que vai regulamentar o
as práticas adotadas para o gerenciamento e a Marco Civil da Internet. Por fim, em 11 de maio
mitigação de tráfego, inclusive as relacionadas de 2016, a presidente assina o Decreto nº 8.771,
à segurança da rede. Deve oferecer serviços em que regulamenta a Lei 12.965, de 23 de abril de
condições comerciais não discriminatórias e, 2014. Este Decreto trata das hipóteses admiti-
ainda, deve abster-se de praticar condutas an- das de discriminação de pacotes de dados na
ticoncorrenciais. Além disso, (iii) na provisão Internet e de degradação de tráfego. O Decreto
291
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
fevereiro de 2015. Entretanto, desde 2002, a segura, onde o tráfego indesejado, tais como
FCC vinha tomando várias medidas para que spam, é restringido (Federal Communications
isto ocorresse. Em 2002, a FCC classificou o Commission, 2009).
serviço doméstico de Internet de alta veloci- Em 21 de dezembro de 2010, a FCC adota três
dade como “serviço de informação” (Federal regras básicas para preservar a Internet como
Communications Commission, 2002). O fato uma plataforma aberta para a inovação, o inves-
gerou polêmica porque este serviço era consi- timento, a criação de emprego, o crescimento
derado como um serviço básico, e os ISPs eram econômico, a concorrência, e a livre expressão:
considerados provedores deste tipo de serviço, (i) a transparência (transparency); (ii) nenhum
como os provedores de telefonia. Assim, a par- bloqueio (no blocking), e (iii) nenhuma discri-
tir do momento em que a FCC fez a classifi- minação não razoável (no unreasonable discrimi-
cação do serviço de acesso à Internet como nation) (Federal Communications Commission,
“serviço de informação”, e não de “telecomuni- 2010).
cações”, deu-se início ao debate sobre as ques- Em 14 de janeiro de 2014, as três regras ado-
tões que envolvem o trânsito na Internet e a sua tadas pela FCC em 2010 são julgadas pela Corte
regulação, debate este que foi denominado por de Apelação do Distrito de Columbia (The United
Tim Wu, também em 2002, como Neutralidade States Court of Appeals for the District of Columbia).
da Rede (Wu, 2002). Em 5 de agosto de 2005, Como resultado do julgamento, esta Corte de
a FCC divulga que a Suprema Corte concordou Apelação afirma a autoridade da FCC para regu-
com a sua posição adotada em 2002 (Federal lar o serviço de acesso à Internet de banda larga,
Communications Commission, 2005). sanciona a regra da transparência, mas anula as
Em 16 de julho de 2007, a FCC finaliza sua regras de não bloqueio e de discriminação não
consulta pública sobre a Neutralidade da Rede, razoável, por considerar que não são práticas
obtendo um total de 27.000 comentários a ilícitas quando classificadas em “serviços de in-
favor e contra, provenientes de empresas, con- formação” versus “serviços de telecomunicações”
sumidores e representantes do governo, sendo (Federal Communications Commission, 2014b).
que a maioria dos participantes eram usuários Em 08 de maio de 2014, 122 investidores em
comuns da Internet que enviaram seus comen- tecnologia, como por exemplo, fundos de pen-
tários por e-mail (Anderson, 2007). Em 12 de são e instituições financeiras, enviam uma
Fevereiro de 2008, o Congresso Americano carta à FCC, encorajando a Comissão a conside-
aprova a Lei HR 5.353, denominada Preservação rar todas as ferramentas jurisdicionais disponí-
da Liberdade na Internet (Internet Freedom veis, no sentido de garantir uma Internet livre
Preservation), a fim de direcionar a FCC a con- e aberta que recompense, sem prejuízo, o in-
duzir um processo para avaliar a concorrência, vestimento e o empreendedorismo. Esta carta é
a defesa do consumidor e as questões relacio- uma crítica às regras da FCC. Segundo estes in-
nadas à liberdade de escolha do consumidor vestidores, as regras não contemplam todos os
para serviços de acesso à Internet de banda pontos necessários para garantir a Neutralidade
larga (United States of America, 2008). Em 22 da Rede porque não impedem, por exemplo,
de outubro de 2009, a FCC lança à consulta pú- que os ISPs trafeguem o conteúdo na Internet
blica uma proposta de regulamentação sobre as por meio das chamadas “pistas rápidas e len-
práticas da indústria de banda larga, em espe- tas” (priorização paga). Os investidores deixam
cial sobre as regras para permitir aos provedo- claro à FCC nesta carta que precisam de re-
res de banda larga administrar razoavelmente gras simples, fortes e exequíveis contra a dis-
suas redes e ajudar a garantir uma Internet criminação e as taxas de acesso, e não apenas
294
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
contra o bloqueio. (Letter to FCC chairman de não haver bloqueio. O não estrangulamento
Tom Wheeler, 2014). Em 15 de maio de 2014, proíbe a degradação do tráfego da Internet com
a FCC lança nova consulta pública com o ob- base na origem, destino ou conteúdo. Também
jetivo de encontrar a melhor abordagem para proíbe especificamente a conduta que prioriza
proteger e promover a Internet aberta, rece- conteúdos específicos, por exemplo, que com-
bendo comentários até 15 de julho e respon- petem com serviços do próprio provedor de
dendo-os até 10 de setembro de 2014 (Federal banda larga;
Communications Commission, 2014a). (iii) Não Priorização Paga: a priorização paga
Finalmente, nas regras adotadas em 26 de ocorre quando um ISP aceita pagamento (mo-
fevereiro de 2015 (Federal Communications netário ou não) para gerenciar sua rede de uma
Commission, 2015b), a FCC volta a classificar o forma que beneficia determinado conteúdo,
acesso de banda larga à Internet como um “ser- aplicação, serviço ou dispositivo. A priorização
viço de telecomunicações”, o que lhe garante o paga refere-se à gestão da rede de um ISP para
fundamento jurídico necessário para preservar favorecer, direta ou indiretamente, algum trá-
e proteger a Internet aberta. As regras adotadas fego sobre outros tipos de tráfego, incluindo
visam proteger e manter o acesso aberto e livre uso de técnicas como a engenharia de tráfego,
para os conteúdos lícitos online, sem que os a priorização, a reserva de recursos ou outras
ISPs estejam autorizados a bloquear, prejudicar formas de gerenciamento de tráfego prefe-
ou estabelecer pistas rápidas e lentas para os rencial, em troca de benefício monetário ou
conteúdos lícitos. De acordo com a FCC, estas não, recebido de um terceiro, ou, para benefi-
novas regras foram projetadas para proteger a ciar uma entidade afiliada; (iv) Transparência:
liberdade de expressão e inovação na Internet, assegurar a transparência para que os consu-
bem como promover o investimento em redes midores sejam plenamente informados sobre
de banda larga do país. Também para a FCC, o acesso à Internet que estão pagando e para
estas novas regras foram fundamentadas na que os provedores de borda tenham a informa-
base legal mais forte possível, e aplicam-se aos ção de que necessitam para compreender se os
serviços de banda larga fixa e móvel (Federal seus serviços irão funcionar como anunciado.
Communications Commission, 2015a). (v) Interconexão: o Serviço de Acesso à Internet
Dentre as 400 páginas deste documento de de banda larga – BIAS (Broadband Internet Access
regulação, denominado FCC 15-24–Report and Service) envolve a troca de tráfego entre um ISP
Order on Remand, Declaratory Ruling, and Order, de e as redes de conexão. Segundo esta regra, os
26 de fevereiro de 2015, destacam-se pela sua clientes devem ser capazes de alcançar “todos
inerência à Neutralidade da Rede as seguintes ou substancialmente todos os destinos de
regras que visam proteger os consumidores de Internet”, incluindo, necessariamente, a pro-
táticas que ameaçam a Internet aberta, descri- messa de fazer os acordos de interconexão ne-
tas a seguir: (i) Não bloqueio: os consumidores cessários para permitir esse acesso (Federal
de Internet de banda larga devem obter o que Communications Commission, 2015b).
pagaram, ou seja, ter acesso a todos os destinos Quanto à taxa zero, a FCC salienta que tal
(legais) na Internet; (ii) Não estrangulamento: prática tem o potencial de distorcer a concor-
a proibição de estrangulamento é necessária rência, permitindo que os prestadores de ser-
tanto para satisfazer as expectativas razoáveis viços escolham entre conteúdo e aplicativos, ao
de um cliente de banda larga de ter acesso a mesmo tempo em que novas ofertas de ser-
toda a Internet legítima, quanto para evitar al- viços, dependendo de como elas sejam estru-
guma artimanha concebida para evitar a regra turadas, podem beneficiar os consumidores
295
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
pontos discutidos para a Internet aberta e a igual, sem priorização paga de tráfego no ser-
Neutralidade da Rede na Europa e os envia viço de acesso à Internet. Ao mesmo tempo,
ao Parlamento e demais órgãos represen- a igualdade de tratamento permite o geren-
tativos a fim de verificar eventual necessi- ciamento de tráfego razoável no dia-a-dia, de
dade de orientações suplementares (European acordo com requisitos técnicos justificados, e
Commission, 2011). Em 17 de novembro de que deve ser independente da origem ou do
2011, o Parlamento Europeu observa que, nesta destino do tráfego; (iv) Será permitida a pres-
fase, não há necessidade de intervenção regu- tação de serviços especializados ou inovado-
lamentar adicional em nível europeu sobre a res, desde que eles não prejudiquem o acesso
Neutralidade da Rede e solicita transparência à Internet aberta. Tais serviços incluem o IPTV,
no gerenciamento do tráfego efetuada pelos a videoconferência, ou os serviços de saúde
ISPs, incluindo uma melhor informação para de alta definição, como a telecirurgia; (v) Taxa
os usuários finais (European Parliament, 2011). zero: também chamada na União Europeia de
Em 3 de dezembro de 2012, o BEREC publica conectividade patrocinada, a taxa zero é consi-
as orientações sobre a avaliação da razoabili- derada pela Comissão, pelo Parlamento e pelo
dade das práticas de gerenciamento de tráfego Conselho Europeu como uma prática comer-
efetuada pelos ISPs e as restrições relacionadas cial utilizada por alguns provedores de acesso à
(Body of European Regulators for Electronic Internet, nomeadamente os operadores móveis,
Communications, 2012). Em 5 de setembro para não contar o volume de dados de aplica-
de 2013, a Open Forum Europe, uma organiza- tivos particulares na quota mensal limitada do
ção sem fins lucrativos, realiza uma pesquisa usuário (European Commission, 2015).
junto aos Estados- membros para obter uma Em 26 de outubro de 2015, Tim Berners-
posição oficial de cada um sobre a regulamen- Lee ressalta que esta proposta é fraca e confusa
tação da Neutralidade da Rede, independente- porque permite aos ISPs: (i) criar “pistas rápi-
mente se a favor ou contra ela (Olmos & Castro, das”, cobrando das empresas para fornecerem
2013). E, em 14 de julho de 2014, a Comissão conteúdos priorizados na forma de serviços es-
Europeia apresenta a situação da Neutralidade pecializados; (ii) isentar algumas aplicações da
da Rede na Europa, país a país, a respeito do quota de dados dos usuários da Internet, nova-
estado de implementação do seu quadro regu- mente chamada de taxa zero; (iii) definir clas-
latório (European Commission, 2014). ses de serviços, acelerando ou desacelerando o
Finalmente, em 30 de junho de 2015, a tráfego destas classes; e (iv) retardar o tráfego
Comissão, o Parlamento e o Conselho Europeu a qualquer hora, argumentando, por exem-
chegam a um acordo sobre os elementos-chave plo, que o congestionamento estava prestes a
para um mercado único de telecomunicações acontecer, portanto, estava impedindo este imi-
para os 28 Estados-membros. Dentre as regras nente congestionamento. Para Tim Berners-
propostas, destacam-se pela sua inerência à Lee, se essas regras propostas forem adotadas
Neutralidade da Rede as seguintes: (i) Não ha- como estão, irão ameaçar a inovação, a liber-
verá nenhum bloqueio ou estrangulamento de dade de expressão e a privacidade, além de
conteúdo online, aplicações e serviços; (ii) Cada comprometer a capacidade de liderança da
europeu poderá ter acesso à Internet aberta e Europa na economia digital. Mais de trinta
todos os provedores de conteúdo e de serviços empresas, como BitTorrent, Netflix e Reddit,
devem ser capazes de fornecer os seus serviços bem como organizações como Bits of Freedom
através de uma Internet aberta de alta quali- e Electronic Frontier Foundation, assinaram
dade; (iii) Todo o tráfego será tratado de forma uma carta aberta ao Parlamento Europeu para
299
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
Fung, B. (2017). The FCC just voted to repeal Lei n. 27.078, de 16 de dezembro de
its net neutrality rules, in a sweeping 2014. (2014). Ley argentina digi-
act of deregulation. The Washington tal: Declárase de interés público el
Post. Acesso 18 de janeiro de 2019, dis- desarrollo de las Tecnologías de la
ponível em https://www.washingtonpost. Información y las Comunicaciones,
com/news/the-switch/wp/2017/12/14/the-fcc-is- las Telecomunicaciones, y sus recur-
-expected-to-repeal-its-net-neutrality-rules-to- sos asociados, estableciendo y garan-
day-in-a-sweeping-act-of-deregulation/ tizando la completa neutralidad de
Internetnz leads discussion on Net Neutrality las redes. Acesso em 27 de junho de
in NZ. (2015). Scoop Independent News. 2019, disponível em https://www.argentina.
Acesso em 16 de abril de 2019, disponí- gob.ar/normativa/nacional/ley-27078-239771/
vel em http://www.scoop.co.nz/stories/BU1506/ actualizacion
S00710/internetnz- leads-discussion-on-net-neu- Lei n. 29. 904, de 20 de julho de 2012. (2012).
trality-in-nz.htm Ley de promoción de la banda ancha
Karr, T. (2016). Free Press: court win gives fcc y construcción de la red dorsal na-
the power to protect net neutrality: U.S. cional de la fibra óptica. Peru. Acesso
Court of Appeals confirms the FCC’s em 27 de junho de 2019, disponí-
authority to stop ISPs from stifling vel em http://www2.congreso.gob.pe/Sicr/
free expression and innovation online. TraDocEstProc/Contdoc01_2011.nsf/d99575da99e-
Acesso em 29 de maio de 2019, disponí- bfbe305256f2e006d1cf0/0a5612728dba-
vel em https://www.freepress.net/news/press- 0c8a05257a40004e7403/%24FILE/L29904.pdf
-releases/free-press-court-win-gives-fcc-power- Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. (2014).
-protect-net-neutrality Estabelece princípios, garantias, direi-
Kinzinger, A. (2016). Rep. Kinzinger’s Bill, H.R. tos e deveres para o uso da Internet
2666, Passes the House. Washington. no Brasil. Diário Oficial da República
Acesso em 29 de abril de 2019, disponí- Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 abr.
vel em https://kinzinger.house.gov/news/docu- 2014. Acesso em 02 de maio de 2019,
mentsingle.aspx?DocumentID=399309 disponível em http://www.planalto.gov.br/
Korea Communications Commission. (2012). ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
Annual report 2011. Acesso em 02 Lei nº 20.453, de 18 de agosto de 2010. (2010).
de maio de 2019, disponível em ht- Consagra el principio de neutralidad en
tps://2013mirimstudent12.files.wordpress. la red para los consumidores y usua-
com/2013/02/annual_report_2011.pdf rios de internet. Acesso em 02 de maio
Kroes, N. (2010). Net neutrality: the way for- de 2019, disponível em http://www.leychile.
ward. SPEECH. Acesso em 15 de maio cl/N?i=1016570&f=2010-08-26&p
de 2019, disponível em http://europa.eu/ Lemos, R. (2007). Internet brasileira precisa
rapid/press-release_SPEECH-10-643_en.htm de marco regulatório civil. Acesso em
Lee, M. (2016). S.2602 - Restoring Internet 21 de janeiro de 2019, disponível em
Freedom Act. Acesso em 29 de abril de http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/
2019, disponível em https://www.congress. ult4213u98.jhtm
gov/bill/114th-congress/senate-bill/2602/text Letter to FCC chairman Tom Wheeler. (2014).
Acesso em 29 de janeiro de 2019, dispo-
nível em https://ecfsapi.fcc.gov/file/7521121517.
pdf
307
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
Ley 1.450 de 2011: por lacual se expideel- Ministry of Internal Affairs and
Plan Nacional de Desarrollo, 2010-2014. Communications. (2008, março).
(2011). Colômbia, Congresso Nacional. Study Group Report: Report from
Acesso em 01 de maio de 2019, disponí- Panel on Neutrality of Networks. MIC
vel em http://www.alcaldiabogota.gov.co/sisjur/ Communications News, Japão, v. 18(23).
normas/Norma1.jsp?i=43101 Acesso em 18 de junho de 2019, dispo-
Marco Civil da Internet: 1a e 2a fases. (2016). nível em http://www.soumu.go.jp/main_sosiki/
Pensando o Direito, Ministério da joho_tsusin/eng/Releases/NewsLetter/Vol18/
Justiça. Acesso em 23 de fevereiro de Vol18_23/Vol18_23.html
2019, disponível em http://pensando.mj.gov. Motion of the FCC to dismiss case no. 15-1063
br/marcocivil and 15- 1078. (2015). Estados Unidos da
Marco Civil da Internet: seus direitos e deve- América. Acesso em 29 de abril de 2019,
res em discussão. (2016). Cultura Digital. disponível em https://apps.fcc.gov/edocs_
Acesso em 22 de janeiro de 2019, dispo- public/attachmatch/DOC-333492A1.pdf
nível em http://culturadigital.br/marcocivil/ Net neutrality debate: TRAI aims to resolve
Mensagem Presidencial no 326/2011. (2011). some issues by early 2016. (2015). The
Brasil, Presidência da República. Acesso Indian Express. Acesso em 11 de janeiro
em 22 de fevereiro de 2019, disponí- de 2019, disponível em http://indianexpress.
vel em http://www.camara.gov.br/proposi- com/article/technology/tech- news-technology/
coesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=- trai-aims-to-resolve-some-net-neutrality-issues-
D272A93F3D42F351E84E34549D702EC.no- -by-early-2016/
de2?codteor=913021&filename=Tramitacao- Network neutrality in New Zealand: public
PL+2126/2011 discussion document. (2015).Internet
Ministry of Internal Affairs and NZ. Acesso em 22 de abril de 2019, dis-
Communications (2007). Report on ponível em https://internetnz.nz/content/
Network Neutrality: working group on network-neutrality-discussion-document
Network Neutrality. Japão, 2007. Acesso Network neutrality: guidelines for Internet
em 17 de junho de 2019. Disponível neutrality: version 1.0. (2009). Acesso
em http://www.soumu.go.jp/main_sosiki/joho_ em 07 de maio de 2019, disponível em
tsusin/eng/pdf/070900_1.pdf http://www.legi-internet.ro/fileadmin/editor_
Ministry of Internal Affairs and folder/pdf/Guidelines_for_network_neutra-
Communications. (2006). New lity_-_Norway.pdf
Competition Promotion Program 2010. Norwegian Communications Authority.
Japão, 2006. Acesso em 17 de junho de (2013). The Norwegian model. Acesso
2019. Disponível em http://www.soumu. em 07 de maio de 2019, disponí-
go.jp/main_sosiki/joho_tsusin/eng/pdf/060928_1. vel em http://eng.nkom.no/technical/in-
pdf ternet/net-neutrality/the-norwegian-mo-
del https://eng.nkom.no/topical-issues/news/
the-norwegian-model-for-net-neutrality
308
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
O’Neill, R. (2015). Internet NZ ignites net Regulating communications for the future:
neutrality debate: net neutrality is review of the telecommunications act
barely discussed in New Zealand, but 2001. (2015). Nova Zelândia. Ministry
market changes make a conversation of Business, Innovation & Employment.
necessary, says Internet NZ. ZD Net. Acesso em 22 de abril de 2019, disponí-
Acesso em 16 de abril de 2019, dispo- vel em http://www.mbie.govt.nz/info-services/
nível em https://www.zdnet.com/article/ sectors- industries/technology-communications/
internet-nz-ignites-net-neutrality-debate/ communications/regulating-the- telecommu-
Olmos, A.; Castro, J. (2013). Net Neutrality in nications-sector/review-of-the-telecommu-
the EU: country factsheets. Acesso em nications-act- 2001/consultation-8-sept-2015/
26 de maio de 2019, disponível em http:// telecommunications-review-2015
openforumacademy.org/library/ofa-research/ Regulation (EC) No 1211/2009 of the European
OFA%20Net%20Neutrality%20in%20the%20 Parliament and of the Council. (2009).
EU%20-%20Country%20Factsheets%2020130905. Official Journal of the European
pdf Union, 2009. Disponível em https://
Projeto de Lei do Senado nº 174, de 2016. eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.
(2016). Ementa: Insere o inciso XIV no do?uri=OJ:L:2009:337:0001:0010:EN:PDF
art. 7o da Lei 12.965, de 23 de abril Resolución 3.502 de 2011. (2011). Por la cual se
de 2014, para vedar a implementa- establecen las condiciones regulatorias
ção de franquia limitada de consumo relativas a la neutralidad en Internet,
nos planos de internet banda larga en cumplimiento de lo establecido en
fixa. Autoria: Senador Ricardo Ferraço. el artículo 56 de la Ley 1450 de 2011.
Brasília. Acesso em 08 de abril de 2019, Colômbia, La Comisión de Regulación
disponível em http://www25.senado.leg.br/ de Comunicaciones. Acesso em 01 de
web/atividade/materias/-/materia/125599 maio de 2019, disponível em: http://www.
Projeto de Lei nº 2126/2011. (2011). Câmara alcaldiabogota.gov.co/sisjur/normas/Norma1.
dos Deputados, Brasília, 2011a. Acesso jsp?i=45061
em 19 de fevereiro de 2019, disponível Roy, P. K. (2015). India’s fight for net neutra-
em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ lity. BBC News. Acesso em 11 de janeiro
fichadetramitacao?idProposicao=5172 55 de 2019. disponível em http://www.bbc.
Reglamento de Neutralidad de red, de com/news/world-asia-india-32313704
15 de dezembro de 2016. (2016). S. 2602 (114th): Restoring Internet Freedom
RESOLUCIÓN DE CONSEJO Act. (2017). Acesso em 21 de abril de
DIRECTIVO Nº 165-2016-CD/ 2019, disponível em https://www.govtrack.
OSIPTEL. El Peruano: Diario Oficial del us/congress/bills/114/s2602
Bicentenário. Acesso em 27 de junho Sadauskas, A. (2015). Australia needs to
de 2019, disponível em https://busquedas. have a conversation about Net(work)
elperuano.pe/normaslegales/reglamento-de-neu- Neutrality: NBN chairman. Acesso em
tralidad-en-red-resolucion-no-165-2016-cdosip- 12 de abril de 2019, disponível em http://
tel-1467489-1/ www.itnews.com.au/news/australia-needs-to-ha-
ve-a-conversation-about-net- neutrality-says-nb-
n-chairman-411946
309
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
Save the Internet. (2016). EU wants to thank Sørensen, F. (2014). Net neutrality and
everyone who participated in this outs- charging models. Acesso em 01
tanding effort to protect net neutrality de maio de 2019, disponível em
in Europe and keep the Internet free http://eng.nkom.no/topical-issues/news/
and open! Internet wins, thank you!. net-neutrality-and-charging-models
Save The Internet. Acesso em 03 de ja- Stop the Trump administration’s attack on
neiro de 2019, disponível em https://www. Net(work) Neutrality. (2017). Save The
savetheinternet.eu/ Internet. Acesso em 24 de maio de 2019,
Secretaria de Comunicacines y Transportes. disponível em https://www.savetheinternet.
(2014). Decreto por el que se expiden com/sti-home
La Ley Federal de Telecomunicaciones Submissions received. (2001). Nova
y Radiodifusión, y La Ley del Sistema Zelândia. Ministry of Business,
Público de Radiodifusión del Estado Innovation & Employment. Acesso
Mexicano; y se reforman, adicionan y em 23 de abril de 2019, disponí-
derogan diversas disposiciones em ma- vel em https://www.mbie.govt.nz/search/
teria de telecomunicaciones y radiodifu- SearchForm?Search=submissions+received+2001
sión. Mexico. Poder Ejecutivo. Secretaria Subsecretaría de Telecomunicaciones. (2011).
de Comunicaciones y Transportes. SUBTEL instruye y exige a empresas de
Diario Oficial. Acesso em 17 de junho internet mayor transparencia en planes
de 2019. Disponível em http://www.sct.gob. de banda ancha por Ley de Neutralidad
mx/fileadmin/Comunicaciones/LFTR.pdf de Red. Acesso em 24 de abril de 2019,
Senado aprova projeto que proíbe limitação disponível em http://www.subtel.gob.cl/
de dados na internet fixa. (2017). Senado subtel- instruye-y-exige-a-empresas-de-interne-
Federal. Brasília,. Acesso em 28 de abril t-mayor-transparencia-en-planes-de-banda- an-
de 2019, disponível em https://www12. cha-por-ley-de-neutralidad-de-red/
senado.leg.br/noticias/materias/2017/03/15/sena- Subsecretaría de Telecomunicaciones. (2014).
do-aprova-projeto-que-proibe-limitacao-de-da- Ley de Neutralidad y Redes Sociales
dos-na-internet-fixa Gratis. Acesso em 24 de abril de 2019,
Setenareski, L. E. (2017). Fiscalização da neu- disponível em http://www.subtel.gob.cl/
tralidade da rede e seu impacto na evo- ley-de- neutralidad-y-redes-sociales-gratis/
lução da internet. 2017. 202 p. Tese Telecom Regulatory Authority of India.
(Doutorado em Informática) - Setor de (2015a). Consultation Paper On
Ciências Exatas, Universidade Federal Regulatory Framework for Over-the-top
do Paraná, Curitiba. Acesso em 12 de (OTT) services. Acesso em 27 de maio
março de 2019, disponível em http://hdl. de 2019, disponível em https://main.trai.gov.
handle.net/1884/52573 in/consultation-paper-regulatory-framework-o-
Sign the Petition: protect Net Neutrality! ver-top-ott-communication-services
(2017). Public Knowledge. Acesso Telecom Regulatory Authority of India.
em 24 de maio de 2019, disponí- (2015b). Consultation Paper on
vel em https://petitions.signforgood.com/ Differential Pricing for Data Services.
ProtectNetNeutrality/?code=PK Nova Delhi. Acesso em 17 de fevereiro
de 2019, disponível em http://www.trai.gov.
in/WriteReaddata/ConsultationPaper/Document/
CP- Differential-Pricing-09122015.pdf
310
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 PANORAMA MUNDIAL DA REGULAÇÃO L. E. SETENARESKI, L. M. PERES,
PÁGINAS 278 A 310 DA NEUTRALIDADE DA REDE L. C. E. BONA, E. P. DUARTE JR.
ARTIGO
Virtualidade,
violência online
e corpo: uma
compreensão
fenomenológica
Virtualidade, violência
online e corpo:
uma compreensão
fenomenológica
Palavras-chave Resumo
fenomenologia Este trabalho pretende discorrer sobre a vio-
virtual lência online, tendo como exemplos o cyber-
internet bullying, os discursos de ódio, o contágio e a
corporeidade indução à violência em crianças e jovens e
violência online os trollings. Tem-se como objetivo uma lei-
tura fundamentada em estudos fenomenoló-
gicos, através da compreensão de aspectos do
fenômeno. Nesse sentido, para apreender a
violência online, é importante dar um passo
anterior e evidenciar primeiramente o fenô-
meno da virtualidade/online. O que é o virtual
e quais implicações essa mediação promove no
mundo da vida? Propõem-se questionamentos
sobre como ocorrem as relações com si pró-
prio e com os outros diante do alargamento das
formas de interação influenciadas pelas tecno-
logias digitais. A pergunta central passa a ser,
portanto, quem é o ser humano que vivencia
o universo online? Busca-se apreender aspectos
essenciais dessa experiência, voltando-se para
a defesa do espaço do sentir, Aisthesis, e dessa
forma, para uma compreensão da corporeidade
em sentido fenomenológico, sugerindo a ne-
A autora é pesquisadora cessidade de reflexões atuais sobre ética e esté-
de pós-doutorado com tica. O corpo está presente no espaço virtual e
financiamento FAPESP apresenta-se como uma corporeidade híbrida.
processo no. 2018/ 11351-2 Amplia-se, dessa forma, o tema da violência
e desenvolve o projeto online para debates que pontuem caminhos no
“Psicoterapia mediada pelas entrelaçamento entre vida online e offline, de
TICs - um estudo longitudinal”. maneira integrada, conectada e ética.
313
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
Virtuality, online
violence and body:
a phenomenological
understanding
Keywords Abstract
phenomenology This paper aims to discuss online violence, ta-
virtual king as examples cyberbullying, hate speech,
Internet contamination and induction of violence in
corporeity children and youth, and trollings. The objec-
online violence tive is a reading based on phenomenological
studies, by understanding aspects of the phe-
nomenon. In this sense, in order to seize on-
line violence is important to take a previous
step and first highlight the phenomenon of on-
line/virtuality. What is virtual and what does
this mediation promote in the world of life?
Questions are proposed about how the rela-
tionship with oneself and others occurs, given
the widening forms of interaction influenced
by digital technologies. The central question
then becomes who is the human being who ex-
periences the online universe? It seeks to grasp
essential aspects of this experience, turning to
the defense of the space of feeling, Aisthesis,
and thus to an understanding of corporeality
in a phenomenological sense, suggesting the
need for current reflections on ethics and aes-
thetics. The body is present in the virtual space
and presents itself as a hybrid corporeality. In
this way, the theme of online violence is ex-
panded to debates that punctuate paths in the
interweaving of online and offline life, in an
integrated, connected, and ethical way.
314
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
exemplo, nos casos de cyber revenge, em geral influenciam as decisões de suicídio, de encora-
caracterizados pela divulgação de fotos íntimas jamento à práticas de atos de violência, idola-
de ex-relacionamentos (Carvalho, 2016). tria ou pactos de violência e de suicídio (Pereira,
O Cyberbullying é derivado do bullying, que 2017; Luxton et al., 2012; Mishara, 2007).
pode ser traduzido como intimidar ou ame- A sociabilidade de crianças e jovens passa
drontar. Apresenta-se em distintas configura- pelo contato direto com as mídias digitais, não
ções e pode ser reconhecido como atos de vio- havendo mais distinções entre o mundo online
lência psicológica e sistemática contra crianças e offline, as interações mediadas pela Internet
e adolescentes que ocorrem por meio das redes através do celular ocorrem a qualquer mo-
de sociabilidade digital, a qualquer momento mento do dia (Aguaded, 2011). As comunica-
e sem um espaço circunscrito e demarcado fi- ções eletrônicas aumentam o risco do contágio
sicamente. Além disso, pode ser disseminado de suicídio e de comportamentos de autoagres-
globalmente e o tempo de permanência das são entre pessoas jovens (Robertson, 2012).
postagens ofensivas é indeterminado. A tec- No que se refere aos riscos de exposição a
nologia online incentiva a comunicação da vio- conteúdos inadequados ou sensíveis, como os
lência por meio de e-mails ameaçadores, men- relacionados a autodano e riscos de contato e
sagens negativas em sites de relacionamento e de conduta, com temáticas relacionadas à into-
torpedos com fotos e textos constrangedores lerância ou a discursos de ódio:
para a vítima, em um campo ilimitado de ata-
ques e medo, visto que a agressão pode ocorrer cerca de dois em cada dez usuários de
a qualquer momento e disseminar-se massiva- Internet entre 11 e 17 anos (19%) declararam
mente. Tanto as vítimas quanto os praticantes ter tido contato com formas para ficar
de cyberbullying vivenciam experiências negati- muito magros(as), 15% com formas de
vas em sua saúde, podendo ocorrer inclusive machucar a si mesmo, 13% com formas
evasão escolar, isolamento social, depressão, de cometer suicídio e 10% com assuntos
ideação suicida e suicídio. O risco de suicídio relacionados a experiência ou uso de
aumenta entre as vítimas em virtude da insta- drogas (...) 39% dos usuários de Internet
bilidade, isolamento e falta de esperança, o que entre 9 e 17 anos tendo declarado ter visto
caracteriza o Cyberbullicídio. Entre os aspectos alguém ser discriminado ou sofrer algum
pouco abordados, destaca-se a importância de tipo de preconceito na rede. O principal
problematizar como a cultura cyber estabelece motivo citado para a discriminação
as novas sociabilidades (Ferreira & Deslandes, testemunhada por esse público foi a cor
2018; Luxton et al., 2012). ou raça (26%), seguido por aparência física
No que se refere ao suicídio, uma revisão (16%), gostar de pessoas do mesmo sexo
bibliográfica sobre a temática nas redes sociais (14%) e religião (11%). (Centro Regional
virtuais aponta a existência de dois tipos de co- de Estudos para o Desenvolvimento da
municação online: uma comunicação preven- Sociedade da Informação, 2018, pp.140-142).
tiva, com a difusão de grupos de apoio online,
tele psiquiatria e uma comunicação pró-sui-
cida, em que a Internet oferece fácil acesso aos O acesso a formas de discriminação, auto-
conteúdos sobre métodos de violência, além de dano, preconceitos na Internet atinge dire-
informações detalhadas de métodos, com des- tamente essa faixa etária. Isso significa que o
crições de formas letais e venda ilegal de subs- uso do celular influencia as atividades reali-
tâncias, grupos de pessoas que se identificam e zadas, impactando na formação de habilidades
317
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
propriamente, o virtual? Novas formas de co- A técnica reduz o agir gestual do homem no
municação, interação, relacionamento, com- mundo. Ela traz consigo uma redução ao mí-
partilhamento e vinculação vêm se estabele- nimo absoluto da experiência do corpo, a le-
cendo por meio da Internet. Trata-se de um veza do pressionar do dedo nas teclas e uma
convite que busca clarificar os elementos fun- intelectualização extrema da relação com o
damentais sobre as coisas para as quais se re- mundo. Porém, mais importante do que a eli-
flete, deslocando a atenção dos fatos contingen- são do corpo, a anulação dos esforços media-
tes para o sentido originário e indissociável de dores e a intelectualização nas relações com o
uma intencionalidade (Tourinho, 2012). mundo, destaca-se o elemento voluntarista, a
vontade como elemento determinante da ação
humana, ou seja, “a multiplicação de situações
4. Sobre o fenômeno de decisão e livre arbítrio absolutos, a possibi-
virtual lidade de construção e apagamento de mundos
inteiros com o esforço mínimo da ligeira pres-
são sobre o botão” (Santos, 2007, p. 192).
Numa leitura fenomenológica, quais os com- Na vida online, o excesso de possível de vi-
plexos motivacionais que movem o humano vências subjetivas estão potencializadas ao má-
ao desenvolvimento tecnológico? Quais as in- ximo. É possível realizar qualquer esfera do
fluências no mundo da vida? Quais implicações desejo, qualquer princípio volitivo humano,
a técnica promove? As reflexões que seguem independentemente de seus fins, quer seja para
sobre o fenômeno virtual partem das leituras, o bem ou para o mal. A ação humana é com-
a saber: “O virtual e as virtudes” (Santos, 2007), preendida no âmbito de uma reflexão sobre um
“Wirklichkeiten in Denen Wir Leben Aufsätze poder-fazer que não conhece limites, circuns-
Und Eine Rede” (Blumenberg, 1996) e “Crises crita por uma infinitude de exigências, o que
das Ciências Europeias e a Fenomenologia nos coloca diante de uma vida marcada pela fi-
transcendental: uma introdução à Filosofia nitude de uma existência e a infinitude de uma
Fenomenológica” (Husserl, 1936/2012). As exigência (Husserl, 1936/2012; Santos, 2007).
novas tecnologias, mais do que um objeto con- As máquinas de última geração buscam a sa-
creto, material, físico, carregam em si a pecu- tisfação dessa exigência infinita, ao promete-
liaridade de manifestar à consciência outras rem a materialização de um conceito de todos
apreensões do humano e, em contrapartida, os conceitos. Há um vertiginoso aumento das
outras formas de relacionamento e de expres- possibilidades, baseadas na combinatória e na
sividade cultural. programabilidade ilimitada. A configuração das
Entende-se por “virtual” ou “realidade vir- máquinas informatizadas ultrapassa o conceito
tual”, numa análise fenomenológica, o nome de máquina da Revolução Industrial, pois sua
dado ao mundo que foi produzido pelas “novas” produção não se restringe somente à produ-
tecnologias da informação, como tendência ção em série de um mesmo produto, não são
para se opor ao “real”, dando-lhe um estatuto programadas apenas para produzir um compo-
de simulacro ou de não ser. Entretanto, as ima- nente ou uma forma, mas elas foram feitas para
gens virtuais são reais e, portanto, em sua es- criar muitas outras realidades. O que as distin-
sencialidade, “o que caracteriza o virtual não é gue das demais máquinas é o fato de serem po-
um déficit do real, mas um excesso de possível (grifo livalentes, elas são programadas para produzir
do autor), com que a subjetividade, literal- todas as formas possíveis (Santos, 2007). Diante
mente, debate” (Santos, 2007, p. 192). desta polivalência é necessário se atentar às
321
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
influências no cotidiano, marcado pelo excesso máquinas é sempre possível destruir uma obra
de possibilidades que se apresentam num for- imperfeita e tentar fazer de uma forma melhor,
mato real-virtual, ressignificando as neces- as novas tecnologias trazem como último hori-
sidades da vida e trazendo novas escolhas e zonte a reversibilidade absoluta. O que as tec-
exigências demasiadas e superlativas a serem nologias da Internet mostram é a possibilidade
atingidas na singularidade de uma vida finita. de materialização do pensamento, a exteriori-
A criação das tecnologias não se limita ape- zação das experiências de pensamento, o injetar
nas ao uso e à oferta de novas possibilidades no mundo virtual dessa substância própria da
ao homem diante das necessidades, há também subjetividade (Santos, 2007). Segundo o autor:
uma inquietude humana e um fascínio diante
da criação e a esperança de vencer a finitude Esse potencial de abstração é intensificado
pelos seus próprios meios, o que exige contra- no espaço virtual (grifo do autor) e das
partidas no modo de viver e de se relacionar. O imagens de síntese, pela promessa de
que move os avanços técnicos e tecnológicos uma reversibilidade sem limites que,
pode ser sintetizado numa vontade de intensi- possibilitando sem esforço o apagar
ficação infinita da finitude, fundamentados a do passado, permite um constante
partir de uma inquietude humana, com a ra- regresso a posição de partida, realizando
dicalização do sentimento de contingência do uma infinidade de mundos possíveis
mundo, e numa esperança, por meio de um anteriormente incompossíveis, tornando
alargamento infinito dos limites da finitude impossível essa linha que os atos humanos
através do aperfeiçoamento ilimitado do po- desenham no tempo, chamado de história.
der-fazer. A técnica é o meio através do qual A possibilidade de realizar todos os possíveis
é possível saltar da vida finita para o infinito, mata a história. (...) aquilo que nos mostram
salto que é útil e necessário. Ainda assim, a téc- as tecnologias da Internet e do virtual não
nica apresenta o risco da automatização e auto- é a sublimação da matéria pelo espírito,
nomização dos processos de pensamento e co- mas ao contrário, é a materialização
nhecimento e, dessa forma, pode distanciar o do pensamento, a exteriorização das
homem do sentido das próprias coisas (grifo do experiências de pensamento, o injetar no
autor), repercutindo numa crise das ciências mundo virtual dessa indecisão e irresolução
(Blumenberg, 1996). que constitui a substância própria da
Um outro elemento característico do espaço subjetividade. (Santos, 2007, p. 212)
virtual criado pelas novas tecnologias é a re-
versibilidade sem limites, com a qual se torna
possível apagar o passado sem esforços e, dessa A materialização no mundo virtual solicita
forma, estar diante de um constante regresso à uma mudança de perspectiva do saber psicoló-
posição de partida. Isso permite a realização de gico, visto que o pensamento e a própria sub-
uma infinidade de mundos possíveis, o que re- jetividade passam a pertencer a um universo
percute, também, no modo de compreensão da real/virtual, permeado por uma infinidade de
história, essa linha desenhada pelos atos huma- possibilidades atemporais e a-espaciais. Novas
nos no tempo. A possibilidade de realizar todos tecnologias repercutem em novas experiências
os possíveis mata a história. Os atos humanos de historicidade, de pensamento e de subjeti-
são irreversíveis: assim como no xadrez, na vidade, diante do alargamento da finitude de uma
política nunca pode se repetir um lance, uma existência e da infinitude de uma exigência (Santos,
decisão humana é irreversível. Na esfera das 2007, p. 231). Nesse aspecto, é importante
322
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
considerar a defesa do espaço do sentir en- completamente, podendo ser natural, própria
quanto uma política de sobrevivência e reduto de todos os seres humanos, ou artificial, pro-
da ética. São necessárias reflexões acerca dos duto de um excesso de forças de uns sobre ou-
sentidos dessas transformações numa esfera tros. Pode ser compreendida como algo ligado
ética e estética, questionamentos sobre como ao ímpeto, à produção de danos psicológicos,
ficam as relações e condutas diante da virtua- com atos contrários à liberdade e à vontade do
lidade, como ficam as relações com si próprio outro (Paviani, 2016). Trata-se de uma temática
e com os outros, quais outras formas de en- anterior ao desenvolvimento das novas tecno-
contro surgem na experiência, com um alar- logias. Entretanto, alguns fatores derivados es-
gamento dos modos de se relacionar, de se co- pecificamente do acesso online merecem des-
municar e de se vincular. Como fica, também, taque e conscientização dos usuários: um dos
o contato a partir destas transformações no aspectos diz respeito à temporalidade da in-
âmbito da relação sensível com uma realidade formação, a alta velocidade da propagação, do
virtual-real, que vem promovendo um novo compartilhamento e da difusão entre grupos e
modo de se posicionar diante das experiências pessoas. Uma mensagem é capaz de descons-
da vida, um convite para um reposicionamento truir uma identidade e modificar todo um per-
sensível com o mundo (Santos, 2007). curso da vida em questão de segundos.
Em síntese, o virtual mediado pelas TICs, No que se refere aos aspectos de saúde men-
para além da redução do agir corporal e da di- tal, a violência online, como por exemplo, o
minuição dos esforços físicos, é marcado pelo cyberbullying, o cyberbullicídio, as automutilações
excesso do possível, a prevalência da vontade digitais, exige uma conduta cautelosa na co-
com as múltiplas situações de livre arbítrio, municação, na informação e no cuidado psico-
uma vida marcada por uma existência finita lógico e social, sendo legitimada como impor-
e com exigências infinitas, em que as máqui- tante causa de sofrimento psíquico. Entretanto,
nas respondem a essa solicitação em seus as- tem uma violência mais sutil, que aparece,
pectos de materialização e exteriorização das ainda, camuflada e calada, provavelmente pro-
experiências de pensamento, de polivalência e motora de sintomas e sofrimentos que não
reversibilidade absolutas, o que implica a con- explicitam diretamente as influências que os
figuração de uma multiplicidade de formas de novos modos de relacionamento online vêm
interação com o mundo e com as pessoas. configurando, tornando-se hábitos, atitudes e
comportamentos naturalizados, ainda que pro-
porcionem um importante desgaste emocional.
5. Sobre a violência no Além disso, a quebra entre os limites do pú-
virtual blico e do privado provoca transformações nos
atos mediados pela Internet. Assim como fora
das redes, no que se refere aos atos de violência
A violência, propriamente, sempre esteve online, há o envolvimento de um agressor e de
presente na vida humana. É um conceito com- um agredido, porém, não há apenas um grupo
plexo que implica em vários elementos e po- específico de espectadores, mas uma infinidade
sições teóricas e diversas tentativas de solu- de pessoas que, camufladas pelas telas físicas,
cioná-la e eliminá-la. As formas de violência acabam por incentivar, motivar e estimular tais
também são numerosas, refletem-se na so- atos, não conscientes de suas próprias respon-
ciedade como um todo e surgem sempre sabilidades, em virtude da falsa impressão de
de modo novo, não sendo possível evitá-las anonimato e distanciamento do problema.
323
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
Há uma sutileza que é apreendida na obser- locais coletivos, como nas refeições, nas horas
vação das relações cotidianas, por meio de um de lazer, em momentos de deslocamento e nas
olhar crítico-reflexivo voltado as tecnologias escolas. A Internet se tornou uma nova ferra-
e a como elas vêm influenciando a vida atual. menta de auxílio diante da expressão de senti-
Ainda decorrente dos limites entre o pessoal e mentos infantis, como birras, choros, queixas
coletivo, as redes sociais e aplicativos de trocas de tédio, pedidos de atenção aos adultos. Como
de mensagens instantâneas, por meio dos ce- essas experiências remodelam a vida? Quais
lulares, estão presentes em qualquer momento implicações trazem para as famílias e para o
do dia. É comum uma cena em que uma pes- desenvolvimento das crianças? A Internet passa
soa está envolvida por experiências e atos posi- a preencher um espaço nos relacionamentos
tivos, de alegria, satisfação, etc., e, inesperada- familiares, de modo a evitar pequenas situa-
mente, é intermediada por uma mensagem no ções de conflito, impossibilitando o desenvol-
celular, onde uma outra pessoa, não presente vimento de estratégias para lidar com os pró-
na experiência inicial, comunica-se através de prios sentimentos, como as frustrações, a raiva
atos negativos, como por exemplo, insatisfação, e o tédio. Seria uma violência velada, ao alterar
destrutividade, descontentamento, cobrança, o percurso de ação ativa e reativa diante dos
crítica negativa, de modo a sobrepor a vivên- eventos da vida?
cia positiva inicial. Que sentido esse ato sutil Nota-se no discurso comum que as novas
proveniente dos recursos das novas tecnolo- tecnologias e o acesso online vêm promovendo
gias provoca no estado afetivo das pessoas? Que uma falta de comprometimento e desestímulo
sentido essa experiência traz para a vida? Como ao envolvimento com o outro, o desinteresse
esses atos invadem, interferem e ocupam o co- e não abertura para o confronto com aquilo
tidiano das pessoas? No geral, essa comunica- que é diferente. Porém, a presença do outro
ção não é legitimada como uma fonte de sofri- afeta, promove e favorece o reposicionamento
mento real no dia-a-dia e, muitas vezes, vive-se diante de crenças e valores. A intersubjetivi-
uma imersão em vivências online que mobili- dade é um importante acesso a valores ainda
zam sofrimento, mas que se tornam naturaliza- não vividos, novas perspectivas de vida e de
das, promovendo uma angústia implícita, sem futuro, favorecendo o autoconhecimento e o
a identificação de suas origens. Por outro lado, amadurecimento. O compartilhamento de va-
um aparente exercício de livre-arbítrio ao ex- lores afins é importante, pois favorece o des-
pressar sem censura ou senso crítico os afetos pertar de aspectos adormecidos; por outro lado,
e opiniões invade a privacidade do outro modi- a troca entre diferenças, embora provoque um
ficando instantaneamente seu estado de ânimo, estranhamento inicial, favorece a autodefinição
o que afeta, também, as pessoas ao redor e a de quem sou eu e quem não sou eu, tornando
singularidade do momento inicial positivo. conscientes defeitos e aspectos não valorados
Seria essa uma violência velada? Com que fre- ou evitados anteriormente, sendo uma impor-
quência isso ocorre no cotidiano das pessoas? tante forma de auto avaliação e constituição de
Como essas comunicações afetam a vida e os identidade (Stein, 2000).
estados emocionais? E neste novo contexto de interação humana,
As crianças também vivem a naturalização qual é o espaço para o confronto? Quais as pos-
da Internet nas relações pessoais. Desde muito sibilidades de interação entre as diferenças e a
cedo, expostas às redes de compartilhamento, legitimação do espaço das singularidades e das
com vídeos, jogos online, esses dispositivos mó- diversidades? Na Internet, a quantidade de in-
veis estão presentes nos ambientes sociais e formações veiculadas é ilimitada, de forma que,
324
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
ao se buscar uma informação, é comum a lista- pode e deve ter suas próprias opiniões, e, como
gem de assuntos que confirmam as crenças in- consequência, a ausência de debate acaba por
dividuais, ou, ainda, de modo passivo, as redes interferir na capacidade de reflexão crítica. O
sociais online, no geral, mostram postagens e compartilhar das diferenças é uma ferramenta
publicações que confirmam os valores e cren- fundamental para o desenvolvimento pessoal e
ças. A individualidade é, ainda, mais reforçada, para o senso crítico. A vida online vem provo-
na medida em que se pode cancelar, deletar ou cando mudanças nas maneiras de perceber o
bloquear pessoas e temáticas que desagradam mundo que afetam também a vida offline. O eco
ou não são afins. É importante também pon- dentro das bolhas individuais seduz ao confir-
tuar que essa sintonia de valores, muitas vezes, mar as próprias visões de mundo, porém pode
não é ocasional, mas sim provocada por meio provocar importantes prejuízos nos relacio-
de algoritmos que são programados para bus- namentos interpessoais, como as dificuldades
car a satisfação do usuário, de modo a aumen- de relacionamento, de socialização e interação
tar o interesse e o tempo de uso, beneficiando, com o outro, pouca capacidade crítica, baixa
também, campanhas publicitárias e interesses tolerância às diversidades, às frustrações e ao
comerciais. E assim, uma nova modalidade de confronto com a realidade. O desenvolvimento
relacionamentos com o outro e com o mundo implica a desconstrução de valores e constru-
se configura, de modo a tornar fácil o distan- ção de novas identidades. Portanto, são neces-
ciamento daquilo que desagrada, favorecendo a sários momentos de confronto, frustração, es-
interação apenas com crenças, valores, ideias e tranhamento, introspecção e reavaliação. De
pessoas concordantes, criando grandes bolhas que forma o virtual/online influencia a saúde
de relacionamento. As novas tecnologias foram mental? As redes sociais se configuram de
construídas e programadas para organizar as quais maneiras nos relacionamentos pessoais?
buscas individuais a partir da relevância e in- O que é realmente relevante para a vida e para
teresse pessoal. Os dados inseridos nos aplica- o bem-estar de si e dos próximos, propiciado
tivos alimentam uma base de informações que pelas novas tecnologias?
são capazes de definir os gostos, preferências, Uma violência advinda do público e da pu-
a visão de mundo e crenças, definindo e deli- blicidade interfere, também, nas necessidades
neando as identidades. Através de uma coleta privadas, na medida em que não se consegue
detalhada de tudo que é postado, registrado, ter consciente o que é, de fato, uma necessi-
buscado e pesquisado é feito um mapeamento dade real. A criação e a manipulação de dese-
da própria personalidade a partir das pegadas jos fazem com que a publicidade proporcione
digitais, reafirmando as próprias opiniões, por aos objetos um poder que na verdade não pos-
seleções pessoais e por direcionamento publi- suem. As ofertas excessivas de produtos criam
citário, resultando em relacionamentos que re- o desejo de todas as coisas, comprar todas as
produzem ecos das próprias vozes (Sorj et al, coisas, falar sobre todas as coisas, sem espaço
2017). para a criatividade, com uma falsa sensação de
Ouvir somente ecos das próprias crenças re- liberdade que, em realidade, promove o apri-
percute na forma de se relacionar. O relacio- sionamento ao consumismo. Trata-se, pois, da
namento com iguais provoca baixa tolerância asfixia da ética, da reflexão responsável e dos
a divergências, distanciamento de novas visões valores (Romano, 2014).
de mundo, influenciando na convivência com O cotidiano dos relacionamentos online pa-
as diversidades, o reconhecimento do outro, rece trazer problemáticas no que se refere a
que é tão humano quanto si próprio e que como os atos afetam ao outro, à sociedade e
325
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
à humanidade, de forma ampliada. Nas expe- que se vive uma ausência do outro enquanto
riências acima expostas, o elemento comum corpo concreto?
parece apontar para um declínio da capacidade O corpo, com suas sensibilidades percepti-
de se relacionar com o outro e também con- vas, está presente no virtual/online. O corpo é
sigo. Porém, para além de olhar o fenômeno da real, as imagens compartilhadas, paisagens, ob-
virtualidade e suas manifestações de violência jetos, implicam um corpo representado e um
velada, é importante retornar um pouco mais corpo afetado. A subjetividade está presente
na tentativa de evidenciar quem é o sujeito que nesse universo, na medida em que o virtual
faz a experiência, e não somente como ele é solicita intensamente as sensações, a visão, as
afetado por ela. informações sonoras, a audição, a infinidade
de modos de vida possíveis, vídeos, músicas,
dimensões culturais, expressividade. Há inves-
6. Sobre a corporeidade timentos tecnológicos a fim de minimizar as
no virtual/online perdas táteis, olfativas e gustativas na vida on-
line. As mensagens de áudio e texto, as novas
configurações de relacionamentos afetivos,
Algumas reflexões parecem necessárias para amizades, expressões de intimidades, assim
pensar a relação pessoal com as novas tecno- como os discursos de ódio, o contágio e indu-
logias e os sentidos de vida: como as tecnolo- ção de comportamentos, as insatisfações sem
gias preenchem as horas livres? Quais vivên- discernimentos, as ações indiferentes às conse-
cias estão constituindo a vida de cada pessoa? quências, há toda uma esfera de vivências on-
O que é definido ativamente como relevante line que repercute sobre um corpo e uma sub-
para cada momento da vida, para os relaciona- jetividade. As formas de vivenciar as relações,
mentos, para os modos singulares de conhecer as apreensões acerca dos relacionamentos afe-
e se informar? A ausência do tédio e das situa- tivos passam pelas experiências dos aplicativos,
ções de confronto com as diversidades, neces- as amizades são mediadas pelas redes sociais,
sárias para o desenvolvimento da autopercep- o conceito de infância passa por dispositivos
ção e da percepção alheia, a ausência do esforço online. A Internet e seus modos de vida exer-
físico para alcançar qualquer forma de desejo cem um fascínio, um encantamento, uma atra-
e realização provocam alterações no modo de ção física, requisitando e seduzindo os sentidos
se relacionar com o mundo e com o próprio perceptivos envolvidos. É o corpo, em sua es-
corpo. Sedentarismo, falta de estimulação física, pecificidade física, finito, a condição necessária,
motora e psíquica/sensorial nas diferentes fai- da ordem do sensível, do espaço do sentir, da
xas etárias, aplicativos de localização e desloca- relação comigo, com o outro e com o mundo.
mento nas cidades e espaços físicos: o que sig- Entre os elementos estruturais da constitui-
nificam essas transformações para a orientação ção humana, a corporeidade evidenciada pela
pessoal, espacial e temporal da vida? O corpo, fenomenologia de Husserl diferencia o corpo
condicionado e limitado pelas leis da gravidade, material, mecânico, biológico, fragmentável
passa a vivenciar outras noções de orientação (Korper, palavra de origem alemã) de um corpo
e novas maneiras de apreensão da objetividade especificamente dotado de vida (Leib, palavra de
da natureza, em especial quando se vivenciam origem alemã), um corpo que porta em si uma
as experiências de realidade virtual. Será que, expressividade única, ainda que, estrutural-
cotidianamente, diferentes formas de violência mente, possua semelhanças universais em sua
se desvelam e atingem os corpos na medida em constituição material. Este corpo possui um
326
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
aspecto vital, que é a psique, os impulsos, as Para se abordar o tema, é preciso suspender
pulsões e as reações. E, para além de um corpo a violência virtual e apreender o fenômeno
vivo, psíquico, o ser humano tem como dife- que se manifesta no cotidiano online/offline. A
rença dos demais seres vivos a possibilidade de pergunta, então, deixa de ser referida à violên-
criação, de reflexão e de desejo, contidos no cia online e passa a ser voltada à compreensão
que, fenomenologicamente, é chamado de es- sobre quem é o ser humano que se relaciona
pírito (Husserl, 2002a; Husserl, 2002b; Stein, no universo online? A atenção deve se voltar,
2000; Silva & Cardoso, 2013). Husserl, em portanto, para quem é o sujeito que vive as ex-
Ideias II, discorre sobre a constituição e afirma periências intersubjetivas no virtual/online. Por
que “o limite entre Leib e o resto do mundo se quais facetas da amizade, da confiança, dos re-
dá segundo essa propriedade: a consciência dos lacionamentos, das violências, se é afetado?
limites do meu corpo é dada pelos limites do Como apreender as relações com o mundo, as
tato” (Husserl, 2002b, p. 59). relações interpessoais, com o próprio corpo e
É por meio desta corporeidade vivente que com o limite da corporeidade de si e do outro?
se torna possível compreender as relações in- Ao olhar atentamente para o mundo da vida e
tersubjetivas, sendo o Leib um imprescindível ao colocá-lo em suspensão, ao apreender e cap-
meio de relação através de um jogo sutil de per- tar o sujeito que vive a experiência do virtual/
cepção e a-percepção que permite apreender a online, desvelam-se novos elementos essenciais
psique e o espírito de cada pessoa. Este corpo da corporeidade no entrelaçamento da vida on-
revela a peculiaridade de cada ser humano, a line e offline.
unicidade, a dignidade, a inviolabilidade e a Diodato (2019), a partir de uma leitura feno-
liberdade. Tal concepção supera as conceitua- menológica husserliana sobre o mundo da vida
ções mecanicistas de corpo, que valorizam uma (Lebenswelt, palavra de origem alemã), refere
psique dissociada de uma experiência de vida que na vida atual o mundo se tornou midiá-
integral. O encontro com o outro revela, por- tico, um meio habitado pelas novas tecnologias
tanto, o Leib como o único dado objetivável da digitais, que o torna comunicativo como um
alteridade pessoal (Manganaro, 2007). todo. Discute a novidade ontológica do virtual
Seriam as experiências online as responsá- a partir da definição de corpo-ambiente vir-
veis por essas novas formas de violência? As tual, que se caracteriza como um ente de tipo
violências clássicas não são criações originá- novo, imersivo e interativo, ontologicamente
rias da tecnologia, desde muito tempo se vive híbrido, sendo, ao mesmo tempo, interno e ex-
sob a ameaça, os suicídios, as automutilações, terno. Com a expressão corpo-ambiente virtual,
o bullying, roubos, piratarias etc. Na perspectiva busca-se compreender, em sentido mais amplo,
fenomenológica, é a intersubjetividade corpó- uma imagem digital interativa através da feno-
rea que legitima as experiências, o corpo físico menologia de um algoritmo em formato biná-
é o limite concreto entre o eu e o outro, o li- rio que interage com um usuário-expectador,
mite da ética, da finitude da vida, da implica- através de periféricos de um computador. O
ção com a própria vida, com o outro e com o corpo-ambiente virtual é estruturalmente re-
mundo. São nas situações face a face que se lacional e essencialmente interativo e escapa à
instauram conflitos que exigem posicionamen- dicotomia interno externo, na medida em que
tos, consequências, responsabilidades. Portanto, não é uma imagem da consciência nem é ex-
as tecnologias e o universo online são apenas terno a ela, sendo, portanto, interno-externo.
meios que possibilitam um novo arcabouço de Os corpos virtuais não são representações da
experiências. realidade, mas são realidades construídas de
327
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
modo essencialmente diferente daquelas ori- estética enquanto interação sensível com o
ginárias da participação do corpo vivo com o mundo, portanto, uma interação entre coisas
mundo, em virtude da percepção-visível que que estão no sujeito e coisas que estão fora
atravessa o corpo e se torna gesto, movimen- dele. Aisthesis (palavra de origem grega) signi-
tando o corpo mediado por instrumentos de fica sentir, compreender pelos sentidos, com
reprodução analógica, portanto, imagem. Eles referência aos sentidos do tato, da visão, da au-
não são nem simples imagens, nem simples dição, olfato e paladar, relacionado ao que sen-
corpos, mas corpos-imagem, os quais se dis- sibiliza, o que afeta os sentidos. Portanto, esté-
tanciam das distinções ontológicas entre objeto tica é compreendida em relação à pessoa que é
e evento, já que como objetos, têm uma rela- sensibilizada por algo que a afetou e que gerou
tiva estabilidade e permanecem no tempo, mas algum tipo de sentimento.
como evento, existem somente no acontecer
da interatividade. É sim concreto, enquanto
perceptível e sujeito-objeto das ações, mas pe- 7. Considerações finais
culiarmente sutil, exatamente porque é inte-
rativo. É um corpo híbrido também enquanto
artificial-natural, visto que é um produto da A inserção das novas tecnologias de informa-
técnica, mas possui como natureza própria a ção e comunicação na vida das pessoas já é uma
mudança, como um sistema vivente, atual. O realidade com alcance mundial. A Internet tem
corpo virtual é um ente que existe somente se configurado cada vez mais como uma fer-
enquanto encontro e, portanto, como intera- ramenta que implica não apenas no acesso a
tividade constitutiva. Isso induz a conceber a fontes de conhecimento, mas também a novos
relação como em si constitutiva de entidade modos de vida e de expressão de subjetividades.
e, portanto, distinta das propriedades relacio- O fenômeno do virtual recoloca o agir humano,
nais. Em tais ambientes informatizados, de- ao oferecer o excesso de possíveis guiado pelo
senvolvidos por uma mente coletiva, o usuá- elemento voluntarista, pela prevalência da von-
rio interage por meio de seu avatar, seu alter tade, junto ao livre arbítrio, perante uma exis-
ego virtual, que permite agir nesse ambiente, tência finita. A polivalência e a reversibilidade
produzindo transformações e, outras vezes, en- promovidas pelas máquinas altera o percurso
quanto expectador e, também, autor das situa- da natureza, saindo de uma lógica linear e re-
ções. Uma estética da rede implica uma revisão direcionando as formas de apreender o outro
da noção da relação korper-Leib (palavras de ori- e o mundo, distancia-se de uma compreensão
gem alemã), isto é, das dimensões estratégicas linear dos eventos da história, configurando-
da relação homem-mundo em que se está ab- -se numa vida desenhada por uma pluralidade
sorvido (Diodato, 2019). mosaica.
Na perspectiva do corpo, é um outro corpo Dentre as múltiplas formas de relaciona-
que desvela, enquanto corpo híbrido, que su- mento, a violência passa a se expressar tam-
pera dicotomia ao se tornar simultaneamente bém através desses contornos com o universo
interno-externo, objeto-evento, artificial-na- virtual/online, em que o conhecimento pode
tural. E no contexto das relações, como pen- acessar igualmente a destrutividade, as sub-
sar o alargamento dos sentidos do mundo da jetividades podem se expressar livremente,
vida, qual ética e qual estética são necessárias independente da moral implicada. Embora
compor nessas novas perspectivas? Ética, com- uma visão naturalista possa apontar o distan-
preendida como a relação entre as pessoas, e ciamento do corpo no mundo virtual/online,
328
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 VIRTUALIDADE, VIOLÊNCIA ONLINE E CORPO: NARA HELENA LOPES
PÁGINAS 311 A 330 UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA PEREIRA DA SILVA
RESENHA
“Formato
governa acesso”:
A poética
computacional
de Dennis Tenen
“Poética computacional”, de acordo com flutuante, telas de cristal líquido, o código que
Dennis Tenen (2017), é “uma estratégia de in- regula a performance de tais componentes – e
terpretação capaz de alcançar além do conteúdo a como as interações entre esse conjunto de
da superfície para revelar plataformas e infraes- elementos co-produz o texto pelo que é, o que
truturas.” (Tenen, 2017, Introduction, Thesis ele chama de um laminado textual, uma com-
and Archive, para. 8). Em seu livro Plain Text: binação de lógica e física “que mantém a ins-
The Poetics of Computation [Texto Simples: A poética crição em suspenso.” (Tenen, 2017, Chapter
da computação, em tradução livre], publicado em 3, Composite Media, para. 2) É apenas através
2017 pela Stanford University Press, o autor en- dessa prática que a crítica textual terá o poder
cara um tema ainda pouco mapeado, mas ex- de afirmar a abordagem humanista necessária
tremamente pertinente para a teoria literária para que a literatura mantenha seu potencial
contemporânea: a ontologia e a fenomenolo- sob o que Kittler chama de “condições de alta
gia de textos digitais. Professor de Literatura tecnologia.” (Tenen, 2017, Introduction, Theory,
Comparada na Universidade de Columbia e ex- par. 15) Para impedir a literatura de se tornar
-engenheiro de software da Microsoft, Tenen é, tecnologicamente determinada, de acordo com
como poucos, capaz de enfrentar esse desafio e o autor, pesquisadores e leitores devem esten-
trazer uma perspectiva informada que contem- der seus olhares ao substrato material e às in-
ple uma relação dialética entre os sistemas de fraestruturas que cercam qualquer texto digi-
conhecimento e credos de ambas as disciplinas. tal e informam o modo como eles são lidos, e
Posicionando seus argumentos em oposi- com isso serem capazes de identificar e respon-
ção a muito do que a teoria da mídia dos anos der à forma com que estruturas de poder são
1990 e 2000 produziu sobre textualidade digi- incorporadas neles de “maneiras não-óbvias.”
tal, seja o que o autor chama de qualidades su- (Tenen, 2017, Conclusion, Global Perspectives,
postamente imateriais e cintilantes dos estudos par. 4)
de software de Wendy Hui Kyong Chun ou de O livro é metodologicamente interessante
abordagem pessimista “antihumanista” (Tenen, pois formula uma histórica crítica epistemo-
2017, Introduction, Theory, para. 15) no traba- lógica da relação entre literatura e computação.
lho de Friedrich Kittler, o livro se alinha a uma A maior parte dos seus cinco capítulos são ao
visão de digitalidade materialista e orientada a menos parcialmente dedicados a prover rela-
objetos que vem ganhando tração com a pu- tos historiográficos de diferentes linhagens de
blicação de trabalhos como On the Existence of pensamento que influenciaram o ponto sobre
Digital Objects [Sobre a existência de objetos digi- o qual atualmente se encontra a textualidade
tais, em tradução livre], de Yuk Hui (2016), e digital, seja através de estudos de caso e ane-
Digital Materiality [Materialidade digital, em tra- dotas ou da justaposição de ideias e filosofias
dução livre], de Paul M. Leonardi (2010). Deste contemporâneas entre si. Os capítulos, res-
modo, Tenen argumenta que é primordial para pectivamente nomeados “Metaphor Machines”
o estabelecimento de qualquer forma relevante [“Máquinas de metáfora”, em tradução livre],
de interpretação de textos digitais que o para- “Laying Bare the Device: The Modernist Roots of
digma da ‘leitura atenta’ (close reading, no ori- Computation” [“Desnudando o dispositivo: as
ginal) seja aplicado não somente à superfície raízes modernistas da computação”, em tradu-
do texto mas também ao hardware e aos com- ção livre], “Form, Formula, Format” [“Forma, fór-
ponentes materiais propriamente ditos que mula, formato”, em tradução livre], “Recondite
permitem que tal texto seja definido – silício, Surfaces” [“Superfícies recônditas”, em tradução
tunelamento quântico, transistores de portão livre] e “Literature Down to a Pixel” [“Literatura
333
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “FORMATO GOVERNA ACESSO”: PEDRO
PÁGINAS 331 A 339 A POÉTICA COMPUTACIONAL DE DENNIS TENEN ZYLBERSZTAJN
reduzida a um pixel”, em tradução livre], são das nossas teorias de criação de significado,
sequenciados de maneira a sintetizar o fluxo “formato governa acesso” (Tenen, 2017, Chapter
de experiências em um objeto digital, com o 3, Digital Formalisms, par. 5). Nos é apresen-
argumento “progredindo da ação do interrup- tada a visão de código como um “signo pro-
tor numérico do teclado, através do cobre e do gramático”, seguindo Baudrillard (Tenen, 2017,
silício, até o cristal líquido e o portão flutuante Chapter 1, par. 1), que opera como um agente
e em direção ao leitor e à comunidade.” (Tenen, ativo nesse processo semiótico, como um me-
2017, Introduction, Plan of the Present Work, diador entre formatos de dados distintos que
par. 1). exerce poder e afeta a leitura – que “deter-
Entre os diversos méritos do livro, é espe- mina uma platéia, privilegiando certas vozes e
cialmente significativa a aproximação de mão modos de ler.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital
dupla que o autor promove entre os campos da Formalisms, para. ). Infelizmente, enquanto
ciência da computação e dos estudos literários. a camada de formatação e o signo programá-
Não apenas ele está preocupado com os efeitos tico são descritos com a devida importância
que a tecnologia computacional transmite às nesse capítulo, a ênfase do livro em materia-
formas contemporâneas de textos digitais, mas lidade física previne um engajamento mais
também em elucidar a importância do pensa- aprofundado com o papel desempenhado pelo
mento literário no desenvolvimento histórico software e pela programação nas técnicas de es-
dessas mesmas tecnologias. Baseando-se for- crita e leitura de texto digitais. Afinal, como
temente no Formalismo Russo, e em particu- Tenen mesmo aponta, o código “é um exercí-
lar no trabalho de Viktor Shklovsky, mas tam- cio de poder, e não sua representação” (Tenen,
bém em vastas fontes da teoria literária, teoria 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, par. 6); é
da mídia e da crítica textual, Tenen consegue o que molda a palavra escrita visível de acordo
demonstrar a importância de metáforas e seu com suas próprias formulações, relacionando
emprego e análise literária no desenvolvimento “matéria e conteúdo.” (Tenen, 2017, Chapter 3,
tanto de interfaces propriamente ditas quanto Digital Formalisms, par. 6). Nesse sentido, Plain
no discurso crítico acerca da engenharia de Text pode ser lido em paralelo, ainda que nem
software e hardware. Através de um relato quase sempre em uníssono, com livros como Software
literário da mutualidade de influências entre Takes Command, de Lev Manovich (2013), ou
o pensamento de Ludwig Wittgenstein e Alan Philosophy of Software, de David Berry (2011),
Turin, o autor expõe magistralmente como que não focam especificamente na ontologia
a lógica da computação veio a ser essencial- dos textos ao que se relacionam com o mundo
mente dialógica. E a discussão contida no ter- digital, mas proveem uma compreensão dos
ceiro capítulo é particularmente rica em seu modos de produção, usos e práticas contem-
estabelecimento de uma teoria híbrida do for- porâneas de software, ou mesmo Programmed
mato que engloba homólogos tanto na ciên- Visions, de Wendy Chun (2011), que mesmo
cia da computação quanto na crítica textual. tendo sido mencionado por Tenen como pro-
Para afirmar o que ele nomeia a ‘camada de pondo uma visão oposta a dele, é um marco di-
formatação’, somos levados em uma incursão visório na sua elaboração de código como um
de debates formalistas e idealistas envolvendo instrumento indelevelmente associado com au-
Platão, Hegel, Shklovsky e outros, que eluci- toridade e controle social, o que evidentemente
dam os conceitos de forma, fórmula e formato tem suas implicação em formas de leitura.
do autor, sintetizados no argumento preciso de É uma tendência desse título, e talvez tam-
que apesar de não figurar no primeiro plano bém de seu autor, entender o livro impresso
334
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “FORMATO GOVERNA ACESSO”: PEDRO
PÁGINAS 331 A 339 A POÉTICA COMPUTACIONAL DE DENNIS TENEN ZYLBERSZTAJN
como uma forma levemente essencializada, em preto e branco dela, uniforme em todas
que textos e leituras são imutáveis, únicos, e as cópias da edição. Ao fazer isso, é
em alguma medida não afetados por suas pró- claro, subvertem a intenção de Sterne de
prias qualidades e transformações materiais. encarnar um emblema da intenção não
Nesse sentido, esse relato, que é no demais ex- específica, da diferença, do significado
tremamente humanista (para usar os próprios indeterminado, da própria instabilidade
termos do autor), dá pouca importância no seu do texto de cópia em cópia. (McKenzie,
argumento principal a algumas agências fun- 1999, pp. 35-36, tradução do autor)
damentalmente humanas: aquelas do trabalho
e das assemblagens humano-materiais que cir-
cundam a produção de livros impressos, como Apesar de qualquer disputa iminente, Plain
maneira de informar como – e se – eles se di- Text: The Poetics of Computation é decididamente
ferenciam de livros digitais. O papel do leitor um marco no desenvolvimento do pensamento
também é minimizado, e conceitos de intenção crítico na interseção entre teoria literária e es-
autoral e de um único texto original tomam tudos de software. É um trabalho ambicioso que
o primeiro plano. Nessa perspectiva, o livro prospera em avançar muitos dos aspectos fun-
produz uma certa tensão com exemplos mais damentais desse campo em expansão e na de-
estabelecidos da Bibliografia e da História dos finição de um léxico de conceitos úteis que
textos, representadas por exemplo por Roger certamente moldarão discussões futuras nesse
Chartier e Donald McKenzie, e esse diálogo po- tópico e em campos adjacentes. Não apenas
deria ser levado mais adiante na medida que isso, é um passo em direção à compreensão dos
esse título se torna um locus de discussão in- locais de inscrição no mundo digital e com isso,
telectual. Aqui, me lembro especificamente um trabalho de grande importância política
de uma passagem no livro Bibliography and the que se esforça em engajar leitores e críticos
Sociology of Texts, de McKenzie (1999), em que a contornar futuros textuais tecnologicamente
ele menciona a famosa página marmorizada no determinados. Citando uma última sessão do
Tristram Shandy, de Laurence Sterne, para dis- livro, “o código não é normalmente feito para
cutir simultaneamente o privilégio dado pelo ser decodificado por aqueles sobre os quais
escritor ao olhar do leitor sobre a indetermina- ele age. Recipientes de controle codificado são
ção do texto e a variação que uma edição pode poupados da fricção da significação, permane-
trazer ao texto a medida que o objeto livro se cendo em um estado de assemiose, e, portanto,
transforma: de ignorância.” (Tenen, 2017, Chapter 1, par. 2)
Essa passagem parece resguardar o motivo por
Cada página marmorizada à mão é trás da publicação desse volume: forçar em sua
necessariamente diferente, porém totalidade a fricção da significação sobre nossos
integral ao texto. Como um sortimento modos de ler (aparentemente) novos.
de formas coloridas completamente não
representacionais, uma página marmorizada,
distintamente de uma página letrada,
pode inclusive ser dita não ter significado
algum. A maior parte das edições modernas,
se tentam incluí-la e não se contentam
apenas com uma nota sobre sua presença
original, imprimirão uma imagem em
335
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “FORMATO GOVERNA ACESSO”: PEDRO
PÁGINAS 331 A 339 A POÉTICA COMPUTACIONAL DE DENNIS TENEN ZYLBERSZTAJN
Referências
“Format Governs Access”: floating gates, liquid cristal displays, the code
Dennis Tenen’s Poetics of that regulate their performance – and to how
the interactions between this assemblage of
Computation elements co-produce the text for what it is, in
what he calls a textual laminate, the combine
of logic and physics “that hold inscription in
“Computational poetics”, according to Dennis suspense.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Composite
Tenen, is “a strategy of interpretation capable Media, para. 2). It is only through this that tex-
of reaching past the surface content to reveal tual criticism will have the power to assert the
platforms and infrastructures.” (Tenen, 2017, humanist approach necessary for literature to
Introduction, Thesis and Archive, para. 8). In maintain its potential under what Kittler calls
his book Plain Text: The Poetics of Computation, “conditions of high technology.” (Tenen, 2017,
published in 2017 by the Stanford University Introduction, Theory, para. 15). To preclude li-
Press, the author faces a largely unaccounted terature from being technologically determi-
for but extremely pertinent theme in contem- ned, according to the author, scholars and rea-
porary literary theory: the ontology and phe- ders should extend their gaze onto the material
nomenology of digital texts. Both a professor of substrate and the infrastructures that surround
Comparative Literature at Columbia University any digital text and inform the way they are
and a former software engineer at Microsoft, read, and so be able to identify and respond
Tenen is able like few others to tackle this chal- to the way in which power structures are em-
lenge and bring forth an informed perspective bodied in them in “nonobvious ways.” (Tenen,
that contemplates a dialectical relationship 2017, Conclusion, Global Perspectives, para. 4).
between the knowledge and belief systems of The book is methodologically interesting,
both disciplines. as it formulates a critical epistemological his-
Positioning its arguments in opposition to tory of the relationship between literature
much of what 1990s to 2000s media theory and computation. Most of its five chapters are
have said about digital textuality, be it what the at least partially dedicated to providing his-
author calls the supposedly immaterial, shim- toriographical accounts of different lineages
mering qualities of Wendy Hui Kyong Chun’s of thought that have impacted the point in
software studies or the pessimistic ‘antihu- which digital textuality currently stands, either
manistic’ (Tenen, 2017, Introduction, Theory, through case studies and anecdotes, or through
para. 15) approach of Friedrich Kittler, the book the juxtaposition of contemporaneous philo-
aligns itself with an object-oriented, materia- sophies and ideas. The chapters, respectively
list take on digitality, which has been getting called “Metaphor Machines”, “Laying Bare the
traction with publication of works such as Yuk Device: The Modernist Roots of Computation”,
Hui’s On the Existence of Digital Objects (2016), “Form, Formula, Format”, “Recondite Surfaces”,
and Paul M. Leonardi’s Digital Materiality (2010). and “Literature Down to a Pixel,” are sequen-
Thus, Tenen argues that it is paramount for the ced in a way that synthesizes the flow of ex-
establishment of any kind of relevant interpre- perience in a digital object, with the argument
tation of digital texts that the ‘close reading’ “progress[ing] from the action of the numeri-
paradigm be applied not only to the surface cal keyboard switch, through the copper and
text but also to the actual material compo- silicon, to liquid crystal and the floating gate,
nents and hardware that allow for such text and on toward the reader and the community.”
to be rendered – silicon, quantum tunneling, (Tenen, 2017, Introduction, Plan of the Present
337
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 “FORMATO GOVERNA ACESSO”: PEDRO
PÁGINAS 331 A 339 A POÉTICA COMPUTACIONAL DE DENNIS TENEN ZYLBERSZTAJN
of the reader is also downplayed, and autho- useful concepts that will most certainly shape
rial intent and the idea of a single original text future discussions in this topic and its adja-
take the foreground. From this perspective, the cent fields. Not only that, it is a step forward
book produces some tension with the more in understanding the sites of inscription in
established textual history and bibliography the digital world and with that, a very politi-
represented, for instance, by Roger Chartier cally important work which strives to engage
and Donald McKenzie, and this dialog could readers and critics in circumventing techno-
be taken further as the book itself becomes a logically determined futures for textuality. To
locus of intellectual discussion. Here, I am spe- quote one last section from the book “code is
cifically reminded of a passage in McKenzie’s not usually meant to be decoded by those it
Bibliography and the Sociology of Texts, in which acts upon. Recipients of codified control are
he brings up Laurence Sterne’s famous marb- spared the friction of signification, remaining
led page in Tristram Shandy in order to discuss instead in the state of asemiosis and therefore
simultaneously the writers’s privileging of the nescience.” (Tenen, 2017, Chapter 1, para. 2).
reader’s gaze over the indeterminacy of the text This seems to bear the motive behind the pu-
and the variance an edition can bring to the blication of this volume: to force back the full
text as the book object changes: friction of signification upon our (apparently)
new modes of reading.
Each hand-marbled page is necessarily
different and yet integral with the text. As
an assortment of coloured shapes which
are completely non-representational, a
marbled page as distinct from a lettered
one might even be said to have no meaning
at all. Most modern editions, if they do
attempt to include them, and do not settle
merely for a note of their original presence,
will print a black-and- white image of
them which is uniform in every copy of
the edition. By doing that, of course, they
subvert Sterne’s intention to embody an
emblem of non-specific intention, of
difference, of undetermined meaning,
of the very instability of text from copy
to copy. (McKenzie, 1999, pp. 35-36)
References
PRODUÇÃO ARTÍSTICA
2850 interpolações
de triângulos v3
Alexandre Villares
Arquiteto pela FAU-USP e mestre pela
FEC-Unicamp. Pesquisa práticas artísticas que
se valem de meios computacionais e o ensino
de programação em um contexto visual. E-mail:
abav@lugaralgum.com
341
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 2850 INTERPOLAÇÕES ALEXANDRE
PÁGINAS 340 A 344 DE TRIÂNGULOS V3 VILLARES
2850 interpolações
de triângulos v3
↘ p. 310
2850 interpolações de
triângulos v3
Alexandre Villares
[obra algorítmica], 2019
↘ p. 311
2850 interpolações de
triângulos v3 (detalhe)
Alexandre Villares
[obra algorítmica], 2019
342
N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ JANEIRO DE 2020 2850 TRIANGLE ALEXANDRE
PÁGINAS 340 A 344 INTERPOLATIONS V3 VILLARES
2850 Triangle
Interpolations v3
↘ p. 310
2850 Triangle
Interpolations v3
Alexandre Villares
[algorithmic work], 2019
↘ p. 311
2850 Triangle
Interpolations v3 (detalhe)
Alexandre Villares
[algorithmic work], 2019
343
PRODUÇÃO 2850 INTERPOLAÇÕES ALEXANDRE
ARTÍSTICA DE TRIÂNGULOS V3 VILLARES
344
N. 1 ⁄ V. 2 ⁄PRODUÇÃO
FEVEREIRO DE 2020 RESPONSABILIDADE CIVIL
2850
PELO
INTERPOLAÇÕES
USO DE SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ENRICO ALEXANDRE
ROBERTO & TEREZA
PÁGINAS
ARTÍSTICA
8 A 31 ARTIFICIAL: EMDE
BUSCA
TRIÂNGULOS
DE UM NOVO
V3 PARADIGMA SOBRENOMENOFF
VILLARES