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ISSN: 2594-4207
Vol. 5 - 2020
Dedicado ao Professor Paulo Bonavides, in memoriam
Solicita-se permuta.
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Si richiedeloscambio.
Pídesecanje.
Wir bitten um austausch.
REVISTA DIZER
Publicação Anual dos Acadêmicos do Curso de Direito
da Universidade Federal do Ceará
Anual
ISSN 2594-4207
CDU - 340
Conselho Editorial
Alan Elias Silva
Amanda de Sousa Araújo
Andréa dos Santos Teixeira
Antônio Gabriel Melo Queiroz
Bianca Mota do Nascimento Brasil Muniz
Carolina Xavier Regis
Darissa Hermínia Soares Moraes
Felipe Braga de Paula
Francisco Eliton Sousa da Silva
Izabella Felix Morais
James Douglas Silva de Lima
José Henrique de Oliveira Couto
Juliana Mayra da Silva Paiva
Kamyla Heleny Titara Martins
Lara Pontes Juvêncio Pena
Maria Clara Fernandes Ribeiro Neta
Marina Araújo da Silva
Mayara Melo dos Santos
Nana Yaa Boaduwaa Ennin
Nikaelly Lopes de Freitas
Talita de Jesus Correia
Victória Silvestre da Silva
Vivian Sampaio Braga
Wellen Pereira Augusto
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................... 04
EDITORIAL .............................................................................................................. 06
O ano de 2020 foi marcado por uma série de acontecimentos jamais imaginados,
que ocasionaram um forte impacto na vida de pessoas ao redor de todo o globo e enseja-
ram momentos de grande instabilidade e insegurança. Neste cenário, a produção de nos-
so quinto volume se mostrava como uma tarefa especialmente difícil e, em alguns mo-
mentos, praticamente impossível.
Ainda assim, o Corpo Editorial da Revista Dizer não desistiu, dedicando grandes
esforços para contornar as adversidades e buscando meios para desenvolver seus traba-
lhos dentro desta nova realidade em que se viu repentinamente inserido. Como resultado
de todo o trabalho árduo desenvolvido ao logo desse ano tão conturbado, logramos êxito
na produção de um volume que apresenta grande qualidade e que trata de assuntos de
forte impacto em nossa sociedade.
Assim, é com grande orgulho e sentimento de dever cumprido que publicamos o
quinto volume em nossa plataforma virtual! Os artigos que compõem o presente volume
tratam de temas atuais e de grande relevância, como a regulamentação dos profissionais
de entrega por aplicativo, a guarda compartilhada e a igualdade de gênero, a questão da
responsabilidade civil por aquilo postado nas redes sociais, o direito dos refugiados,
dentre outros assuntos de fundamental importância no contexto atual.
Nesse diapasão, cumpre ainda agradecer a todos aqueles que contribuíram para
que fosse possível a produção do volume aqui ofertado, em especial ao nosso patrocina-
dor, o escritório Paulo Quezado Advocacia, que tem apoiado o trabalho desenvolvido
pela Revista Dizer já ao longo de muitos anos, acreditando sempre na importância da
democratização do conhecimento jurídico. Também saudamos o trabalho ofertado por
nosso corpo de pareceristas, o qual demonstrou sério empenho para que os artigos que
compõem o volume fossem de excelência. Por último, agradecemos ao coordenador do
projeto, o Professor Dr. William Paiva Marques Júnior, que sempre nos presta o apoio e
a orientação necessários para o bom andamento de nossas atividades.
Desejamos que os artigos aqui apresentamos possam ocasionar no leitor uma am-
pliação de seus horizontes, levando-os a pensar acerca dos temas tratados e, principal-
mente, buscar meios de transformar a realidade em que vivemos. Tenham uma excelen-
te leitura!
Bruno Mesquita da Rocha
Presidente do Corpo Editorial da Revista Dizer
DEDICATÓRIA DO VOLUME AO PROF. PAULO BONAVIDES IN MEMORIAM
Certamente o ano de 2020 foi um ano de perdas indescritíveis, o mundo parou e precisou
se reinventar diante da pandemia ocasionada pela COVID-19. Em meio a tantas mortes e mudanças,
tivemos a infelicidade de perder um dos maiores - se não o maior - Constitucionalista do Brasil:
Paulo Bonavides. Diante de sua grande importância para a Universidade Federal do Estado do
Ceará, a Revista Dizer não poderia deixar de homenagear tão prestigiado jurista que, docente da
Salamanca, inspirou gerações com suas obras, as quais foram consideradas precursoras de uma série
de temas que eram centrais na doutrina alemã e norte-americana, ajudando a reconstruir o
constitucionalismo brasileiro após a Constituição de 1988.
O professor Bonavides colaborou intensamente para o engrandecimento da comunidade ci-
entífica de nossa Salamanca desde 1956, quando ingressou no corpo docente da UFC como
professor assistente da disciplina Introdução à Ciência do Direito. Já em 1958 conquistou os títulos
de doutor e professor catedráticos, após a apresentação de sua brilhante tese: Do Estado Liberal ao
Estado Social, passando a ministrar a disciplina de Teoria Geral do Estado. Colaborou, ainda, de
forma determinante para a criação do mestrado em nossa universidade em 1978, lecionando a
disciplina de Filosofia do Direito. Por estas e tantas outras colaborações, o professor recebeu a
condecoração Doutor Honoris Causa.
Por meio de suas obras Direito Constitucional (1980), Norma Jurídica e Análise Lógica:
Correspondência Kelsen-Klug (1984), Política e Constituição (1985), Constituinte e Constituição
(1986), Demócrito Rocha: Uma Vocaçao Para a Liberdade (1988), História Constitucional do Brasil
(com Paes de Andrade) (1988), A Constituição Aberta (1993), Curso de Direito Constitucional
(1993), Do País Constitucional ao País Neocolonial (1999), Teoria Constitucional da Democracia
Participativa (2001), Os Poderes Desarmados (2002), La Depoliticizzazione Della Legittimità
(2007), Constitutuição e Normatividade dos Princípios (2012), o professo Paulo Bonavides
influenciou positivamente todos os alunos que passaram pela Universidade Federal do Ceará, sendo
certo que suas pesquisas e teses jurídicas ainda iluminarão a mente das futuras gerações na
construção de suas próprias carreiras acadêmicas.
Decerto, o professor Paulo Bonavides com seu apreço pela ciência do Direito influenciou
inúmeros pesquisadores e deixou um grande legado para a comunidade científica. A Revista Dizer
como instrumento de difusão da pesquisa na graduação compartilha de tal propósito e dedica este
quinto volume ao seu grandioso legado.
Paulo Bonavides
10.05.1925 30.10.2020
EDITORIAL
Frente a tal situação, com redobrado esforço e empenho diligente, o Corpo Edi-
torial da Revista Dizer, periódico eletrônico gerido por estudantes do curso de Direito
da Universidade Federal do Ceará, diligenciou exitosos trabalhos para que este volume
pudesse ser publicado, trazendo artigos científicos que deixam sua preciosa contribuição
ao meio acadêmico e jurídico.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
renatosobrinho99@hotmail.com
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Em primeiro plano, cumpre analisar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas. Respeitável é a parcela da doutrina, nacional e internacional, a qual se debruça no
estudo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
A teoria negativa restringe a eficácia dos direitos fundamentais às relações de direito
público e culminou no desenvolvimento da State Action Doctrine, predominante nos Estados
Unidos, a qual preconiza que, via de regra, as garantias dos direitos fundamentais não alcançam
as relações privadas, a exceção da não-escravização, concretizada pela 13ª Emenda. Em meados
do século XX, com a adoção da public function theory pela Suprema Corte americana, os
particulares em exercício de funções públicas passaram a estar vinculados aos direitos
fundamentais (BRAGA, 2007, p. 99).
Noutro giro, a Teoria da Eficácia Indireta, forte na Alemanha, reconhece a presença
dos direitos fundamentais nas relações privadas, todavia confere ao legislador o papel de
compatibilizar os ditames constitucionais com as normas de direito privado, de forma a
assegurar ainda a proeminência da autonomia da vontade - justificando assim a expressão
“indireta”. Dessa forma, a interpretação dos direitos fundamentais deve estar sempre alinhada
com as cláusulas gerais basilares do direito privado (KERN, 2019, p. 281).
Difere-se, pois, da Teoria da Eficácia Direta, majoritária na Espanha, Portugal, Itália
e Argentina, que defende a aplicação direta e imediata da Constituição em relação ao Direito
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Privado e, por conseguinte, o alcance dos direitos fundamentais às relações particulares. Tal
entendimento decorre do §1º do art. 5º da Lei Maior, o qual preconiza a aplicabilidade imediata
dos direitos fundamentais. No Brasil, essa teoria também é defendida pela doutrina e adotada
pelo Supremo Tribunal Federal, conforme assinala Dirley da Cunha Júnior (2014, p. 500).
Não se pode olvidar menção à Teoria dos Deveres de Proteção, a qual propugna a
presença do poder estatal nas relações privadas como forma de proteção dos indivíduos contra
eventuais abusos perpetrados por terceiros. Desta forma, o Estado deverá adotar não apenas
uma postura negativa, no sentido de se abster de praticar lesões, mas também uma atuação
positiva, para fornecer efetiva proteção – formal e material – aos direitos fundamentais, seja no
âmbito da formulação e aplicação de políticas públicas, seja pela atuação do Poder Judiciário
(SARMENTO, 2010, p. 155).
Para o presente trabalho será adotada uma visão eclética (BRAGA, 2007, p.117-119),
congregando elementos da Teoria Mediata e Imediata, pois, em nosso sentir, a Constituição
Federal é o topo do ordenamento jurídico pátrio, acima das leis privadas, e, em caso de conflito,
deverá prevalecer. A autonomia privada é um dos pilares da sociedade moderna e está
salvaguardada pela Carta Maior, mas não pode ser entendida como ilimitada, sob pena de violar
as restrições constitucionais. Logo, não reconhecer a eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas é negar a superioridade hierárquica da Lei Maior.
Nesse sentido, deve-se adotar a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, de modo
que a interpretação das normas do Direito Privado deve ser conduzida de modo a convergir com
os comandos constitucionais, na linha do que preleciona Ingo Sarlet (2012, p. 326).
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
2
A metáfora do Marketplace of Ideas deriva da doutrina de defesa da liberdade, de índole liberal, desenvolvida
pelo teórico John Stuart Mill e se popularizou após a publicação do livro On Liberty (A Liberdade) em 1859. Cf.
PÓVOAS, ibid., p. 167.
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conseguinte, minimiza-se a atuação do Estado nessa escolha, figura a qual é vista como uma
ameaça à plena liberdade individual.
A experiência sócio-histórica, por outro lado, revelou que essa liberdade absoluta pode
conduzir à ascensão de posicionamentos autoritários e adeptos à censura, desfigurando a
concepção originalmente pregada pela ala liberal. O constituinte de 1988, atento a essa
realidade, consagrou a liberdade de manifestação como princípio para suprimir essa concepção
de direito absoluto. Nesse sentido, estabeleceu mecanismos de compatibilização com os demais
direitos fundamentais ao instituir, por exemplo, a vedação ao anonimato no mesmo inciso.
Impende assinalar que, com os avanços tecnológicos e o advento de veículos de
comunicação digitais, a liberdade de manifestação do pensamento aderiu a novos contornos,
mais pertinentes ao novo momento histórico, abarcando as novas plataformas como meios de
expressão, como também o conteúdo da mensagem comunicada eletronicamente (ROBL
FILHO; SARLET, 2016, p. 120).
[…] é empregada na alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no
campo das relações privadas, ou seja, na interação entre particulares, sem embargo de
encontrarem também fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e
internacional.
Art. 5º [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;
Todos esses direitos compõem o bloco moral do indivíduo, o qual constitui um bem
jurídico de relevância tal que sua proteção é ampla, irradiada em dispositivos do rol de garantias
fundamentais, mas também encontra espaço no Código Civil de 2002. Exemplo dessa proteção
é o inciso V do art. 5º que assegura o direito de resposta em caso de dano material, moral ou à
imagem. A defesa de tais bens jurídicos atesta essa nova concepção de valorização dos aspectos
extrapatrimoniais, em oposição à tradição patrimonialista hegemônica da doutrina civilista.
Contudo, é de vital importância destacar que, apesar dessa rede de proteção dos
direitos da personalidade, tais garantias não são absolutas. Os critérios variam de acordo com
as partes envolvidas na colisão de direitos (pessoas famosas ou indivíduos que possuem um
laço afetivo de qualquer natureza) e com o conteúdo da mensagem (a veracidade da informação
e o modo de expressão).
Ademais, na contemporaneidade, com o advento de novas formas e meios de interação
social, tais critérios incorporaram novas particularidades; a título de exemplo, o modo de
expressão nas redes sociais é distinto de uma comunicação física, presencial, de modo que duas
situações com partes e mensagens idênticas demandam análises diferenciadas.
Desta forma, nos casos de conflito, a avaliação deverá ser feita de acordo com as
particularidades de cada caso, por meio da ponderação de princípios.
Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de
acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios
terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser
declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na
verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob
determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser
resolvida de forma oposta.
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O doutrinador alemão ainda assinala que o conflito (colisão) deve ser solucionado por
meio do sopesamento dos direitos, de forma a definir qual deles tem maior peso no caso
concreto (ALEXY, 2008, p. 93). O instrumento se faz necessário, pois é a partir da análise do
caso concreto, de suas circunstâncias e peculiaridades, que se identifica qual dos direitos deverá
ceder.
Cumpre dissipar a concepção de um direito absoluto, a qual se mostra desconectada
da realidade, na medida em que a caracterização como absoluto conduz a conclusão de que este
prevalecerá sempre frente aos demais, estando em um patamar superior.
Por conseguinte, se o princípio é ilimitado, em caso de colisão do direito de um
indivíduo com o mesmo direito de outro(s), o mesmo direito se sobreporia e cederia para
proteger apenas um sujeito, em detrimento dos demais, pelo mesmo fundamento (ALEXY,
2008, p. 111). Do mesmo modo, inexiste sopesamento com resultado absoluto; o resultado da
análise do caso concreto vincula apenas o elemento fático ora em comento, não se
estabelecendo, portanto, uma imposição perene.
Nesse quadro insere-se a técnica da ponderação, por meio da qual pode ser solucionado
o impasse entre os direitos fundamentais. A ponderação, portanto, busca o equilíbrio e a
compatibilização dos princípios de modo a não sacrificar totalmente um deles.
Impende pontuar, contudo, que a limitação só pode ser realizada se guardar
conformidade formal e material com a Constituição. A forma abarca requisitos como a
iniciativa e o devido processo legal de limitação, enquanto que a matéria envolve a preservação
do “núcleo essencial” do direito e a instituição de um limite proporcional (SARLET, 2012, p.
369).
Proporcionalidade e princípios dialogam necessariamente; estes últimos se traduzem
como “mandamentos de otimização” que norteiam a concretização do possível à luz da
realidade fática e jurídica, enquanto a proporcionalidade, por sua vez, é composta de três
elementos (i) adequação, (ii) necessidade; e (iii) proporcionalidade em sentido estrito. A
máxima da proporcionalidade e suas componentes definem a otimização dos princípios
(ALEXY, 2008, p. 588). Faz-se necessário delimitar o conceito de cada elemento.
O exame da adequação demanda uma análise de todos os meios disponíveis para
alcançar determinado fim e a seleção daquele mais adequado para a resolução da situação. Deve
ser, portanto, uma medida que promova o fim ao qual está se vinculando ou, ao menos, busque
a “promoção gradual” de determinada finalidade (ÁVILA, 2005, p. 116).
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Por outro lado, revela-se inadequada a medida que, sob o argumento de defender um
determinado direito, imponha limitação demasiadamente rígida a outro direito, sem, no entanto,
oferecer efetivamente uma proteção ao primeiro.
O segundo aspecto diz respeito à necessidade. Uma medida é dita necessária quando,
dentre o rol de opções adequadas à promoção do fim ao qual se propõem, oferece interferência
menos gravosa à esfera jurídica do outro e uma restrição menor aos direitos fundamentais em
colisão (ÁVILA, 2005, p. 122).
O requisito da necessidade, pois, configura relevante contrapeso técnico hábil a coibir
limites excessivos aos limites dos direitos fundamentais, conduzindo a ponderação de forma
que um dos direitos cederá de forma mais suave.
O terceiro elemento é a proporcionalidade em sentido estrito, que se traduz na
investigação subjetiva do meio para o fim almejado; uma análise para definir se a proteção de
determinado direito justifica a limitação de outro.
Humberto Ávila (2005, p. 124) preleciona que, para verificar se uma medida é
proporcional, deverá se examinar se as vantagens relacionadas à promoção do fim justificam as
desvantagens decorrentes do meio adequado.
A construção da justificativa, no entanto, deve ser racional, pautada em argumentos
sólidos que embasem a adoção de determinado posicionamento.
A título de exemplo, em uma situação em uma rede social na qual o indivíduo A, após
desentendimento com o indivíduo B, publica em seu perfil um texto com conteúdo ofensivo em
relação a B. Trata-se de conflito entre a liberdade de manifestação do pensamento de A e o
direito à honra de B.
No primeiro nível da proporcionalidade, punir exclusivamente a plataforma é um
exemplo de medida inadequada, na medida em que a aplicação da sanção não surtiu nenhum
efeito de proteção do direito em questão.
No segundo plano, uma opção desnecessária seria o bloqueio da rede social em todo o
território nacional para evitar novas ofensas aos direitos da personalidade. Apesar de ser
adequada, pois promoveria o fim ao qual se propôs – qual seja, a proteção da honra de B –, não
se configura medida menos gravosa, pelo contrário, cerceia a liberdade de manifestação de
todos os demais usuários, independentemente da existência de vínculo com o caso.
No terceiro patamar, a exclusão do perfil de A, por exemplo, se mostraria
desproporcional, pois, apesar de adequada e necessária, essa medida cerceia totalmente a
liberdade de manifestação individual. A proteção da honra não justifica a supressão do direito
de manifestação de outrem.
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Nesse quadro de constante estado de violações, à época de sua edição, a Lei 12.965,
popularmente conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), foi recepcionada com
entusiasmo e vista como o início de um novo paradigma institucional, bem como diploma hábil
a nortear as relações nas redes e proteger os direitos fundamentais no plano digital.
Apesar de parte da doutrina entender que a liberdade de expressão veio como elemento
central da norma, é importante assinalar que esse destaque é derivado do próprio objeto de
regulamentação da lei, o que, por outro lado, não torna o direito absoluto e não abre
possibilidade de se sobrepor à dignidade da pessoa humana (TEFFÉ; MORAES, 2017, p. 114).
O legislador, ciente da necessidade de proteção dos direitos morais individuais,
irradiou, ao longo do texto normativo, diversos dispositivos acerca da inviolabilidade de
direitos e garantias3, com o fito de solidificar a proteção da intimidade, da vida privada, dentre
outros.
A proteção da privacidade pode ser vista sob a ótica do controle da circulação de dados
pessoais (TEFFÉ; MORAES, 2017, p. 112), a qual conduz à necessidade de observância não
apenas das plataformas, mas também pelos usuários, na medida em que a faculdade de
compartilhar conteúdos deve ser exercida com prudência.
No entanto, apesar dos avanços, o MCI, ao delimitar as diretrizes basilares para a
proteção dos usuários, peca ao não agregar mecanismos outros de garantia dos direitos
fundamentais (BARRETO, 2015, p. 267), haja vista que a estrutura principiológica, por si só,
3
Merecem destaque os seguintes dispositivos:
Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: [...]
II - proteção da privacidade;
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;
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não se mostra suficiente. Sua aplicação, portanto, deverá ser alinhada com os demais elementos
do sistema jurídico.
É possível destacar o art. 12 do Código Civil de 20024, que trata da proteção dos
direitos da personalidade contra ameaça ou lesão, bem como assegura o direito de reparação.
Ademais, o reconhecimento da ilicitude está presente nos arts. 186 e 187, com o consequente
de responsabilização previsto no art. 9275.
Além disso, como visto anteriormente, a Constituição Federal de 1988 contempla
diversos mecanismos de proteção dos direitos da personalidade, em contraposição à ideia de
liberdade de expressão irrestrita. Nessa linha, Flávia Leite pontua que a liberdade de
manifestação do pensamento deve ser exercida com base na razoabilidade, de modo que o
indivíduo deve fazer um juízo apriorístico acerca das repercussões positivas e negativas que
podem decorrer do seu discurso (LEITE, 2016, p. 151).
Portanto, a responsabilização dos indivíduos que praticam condutas ilícitas nas redes
sociais deve ser procedida por meio da aplicação sistemática dos diplomas normativos.
Com base no exposto anteriormente, entendemos que a definição de tais limites deve
ser pautada no princípio da proporcionalidade, no sentido de que a conduta deve ser testada
4
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei.
5
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano
a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
[...]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
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Nesse sentido, nos posicionamos pela adoção, de forma análoga, da Teoria da Lanterna
quando dos pedidos liminares e cautelares: nos casos de críticas leves, por exemplo, o mero
dissabor não impõe a urgência de suspensão da publicação6. Por outro lado, nas hipóteses de
evidente afronta aos direitos da personalidade, como o compartilhamento massivo de fotos e
textos ofensivos, a publicação deverá ser imediatamente suspensa. O mesmo deve ocorrer nos
casos nebulosos, nos quais o exame apriorístico não permite uma análise adequada dos fatos,
haja vista que o risco de dano à honra e à imagem está diretamente vinculado ao número de
interações (curtidas, comentários e compartilhamentos)7.
6
A título de exemplo, vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO LIMINAR DE ANTECIPAÇÃO
DOS EFEITOS DA TUTELA – SENTENÇA QUE JULGOU EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO
MÉRITO QUANTO AO PEDIDO DE RETIRADA DA POSTAGEM NA PÁGINA PESSOAL DO FACEBOOK
POR PERDA DO OBJETO, BEM COMO JULGOU IMPROCEDENTES OS DEMAIS PEDIDOS DO AUTOR
– RECURSO DE APELAÇÃO DO AUTOR: (1) – Dano moral – não configuração – crítica à política de
agendamentos do consultório médico – crítica típica de relação com o consumidor - ausência de comprovação de
efetivo dano à honra e à imagem do autor e da pessoa jurídica que ele representa – mero dissabor cotidiano no
caso concreto [...] – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. [grifos nossos].
(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. Apelação Cível 0014699-23.2016.8.16.0031. 17ª
Câmara Cível. Rel.: Juiz Fabian Schweitzer. J. 28.03.2019).
7
Em decisão recente, o TJGO se posicionou nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. MENSAGEM VEICULADA EM REDE SOCIAL
(FACEBOOK). LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO. OFENSA À HONRA E IMAGEM.
EXCLUSÃO DA POSTAGEM. MANUTENÇÃO DO PROCESSO EM SEGREDO DE JUSTIÇA.
IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA. [...] 4.
Na espécie, emerge o perigo de dano decorrente da demora no oferecimento da prestação jurisdicional (art. 300,
CPC), uma vez que a manutenção da postagem possui o potencial de atingir um número cada vez maior de pessoas
diante da alta rapidez com que se propagam as ideias transmitidas através da internet, bem como resta
demonstrada a reversibilidade da medida (art. 300, § 3º, CPC), ante a possibilidade de, a qualquer momento,
autorizar-se a republicação do conteúdo suprimido. [grifos nossos]. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE
GOIÁS. Agravo de Instrumento 5225958-29.2019.8.09.0000. 1ª Câmara Cível. Des. Carlos Roberto Favaro. J.
03/03/2020, DJe de 03/03/2020)
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[...] uma lesão concreta, como violação [...] de uma regra que, transcendendo a
regulação abstrata de um interesse, estabeleça sua relação com outro interesse
igualmente tutelado. A importância desta abordagem é significativa na medida em que
abre, na prática, um novo espaço de discricionariedade judicial que permite ao
magistrado selecionar, por meio do exame do dano, os interesses concretamente
tutelados, substituindo o raciocínio subsuntivo tradicional por uma efetiva ponderação
de interesses conflitantes. [...] a responsabilidade civil assume a posição de sistema
primário, na medida em que passa a determinar o merecimento de tutela ou não dos
interesses que, embora abstratamente protegidos, colidam com outros interesses
igualmente tutelados.
Essa definição acerca da tutela conduz à definição da forma pela qual os interesses
serão tutelados. A atuação deve ser alinhada e pautada em elementos objetivos, com o fito de
nortear a discricionariedade judicial e evitar abusos.
Propõe-se, então, que a reparação do dano seja majorada por dois critérios: direitos
violados e extensão do dano. No primeiro requisito, verificar-se-á se a conduta abalou a honra,
a imagem, a privacidade, dentre outros atributos da vítima. No segundo requisito, a investigação
deverá ser pautada na quantidade de interações do público com o conteúdo ofensivo, de modo
que o dano moral será proporcional à quantidade de curtidas, comentários e compartilhamentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ambiente democrático. Todavia, não pode ser entendido como absoluto e encontra limitações
inclusive no texto constitucional, o qual norteará a sua aplicação e exercício.
Noutro giro, os direitos da personalidade em seu aspecto moral possuem proteção
ampla na Lei Maior, sendo assegurado em diversos dispositivos. Não se pode, contudo,
confundir a rede de defesa como uma sobreposição eterna dos direitos da personalidade; estes
são flexibilizados e remodelados a depender dos agentes envolvidos, de modo que não há – e
nem deve haver – uma proteção absoluta.
Nesse sentido, a ponderação entre as garantias fundamentais, por meio da aplicação
dos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, é o
mecanismo recomendado para identificar qual dos direitos deverá prevalecer no caso concreto.
O exame atento do intérprete é fundamental, na medida em que evita abusos e o cerceamento
excessivo de um dos polos.
É importante repisar que as redes sociais redefiniram a responsabilidade civil, na
medida em que os conflitos adquiriram uma nova formatação e a forma de análise até então
concebida não se adéqua aos casos atuais. A propagação incontrolável permitiu que o dano
alcançasse uma amplitude nunca antes vista, potencializando e perpetuando as violações aos
direitos da personalidade. A internet pereniza as ofensas à honra, à imagem e à privacidade,
haja vista que os conteúdos podem ser armazenados e republicados sem qualquer tipo de
controle efetivo.
Nesse sentido, a liberdade de manifestação deve ser exercida com prudência, de modo
a evitar que condutas lesivas adquiram uma proporção desmedida e protegendo assim os
direitos da personalidade.
O ordenamento possui mecanismos que atuam no sentido de regular as relações
sociais: o Marco Civil da Internet, apesar de suas limitações, é diploma fundamental para
nortear a convivência harmônica nas redes e a responsabilização dos agentes. Na mesma linha,
o Código Civil, com suas normas gerais de definição de ilicitude e responsabilidade civil,
contribui para o combate aos abusos. Além disso, a jurisprudência nacional comunga desta
orientação e os julgados evidenciam que, nos casos de abusos de direito, os agentes são
responsabilizados pelas condutas ilícitas. Entretanto, em nosso sentir, com o fito de conferir
maior reforço às decisões, o Marco Civil da Internet deve ser aplicado com maior frequência.
Por derradeiro, reiteramos a ponderação como técnica de solução da colisão de direitos
fundamentais. No caso concreto, para delimitar qual dos direitos prevalecerá, se verificará se a
suspensão atende aos requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito. Nos casos de conteúdos de baixo potencial ofensivo, a mensagem será mantida na rede;
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nos casos de alto potencial ou de dúvida, para evitar danos irreparáveis, a mensagem será
suspensa até que se avalie com precisão o quadro.
A responsabilização civil deverá ser pautada na amplitude do dano, de modo que a
reparação será majorada com base no número de interações de terceiros com o conteúdo
ofensivo.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. 5.
Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
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P á g i n a | 27
ABSTRACT
This article deals with the civil liability of agents involved in conflicts
in social networks and the collision between freedom of expression and
the rights of the personality, such as the rights to honor and image, on
the internet, in view of the frequent conflict between these rights on
social networks. We sought to delimit the effectiveness of fundamental
rights in private relations, rights in collision and weighting as a
technique to resolve the impasse. Then, the civil liability of the agents
that publish messages and harmful content on the networks was
investigated, analyzing the relevant legal diplomas and delimiting a
proposal of accountability of the violators. Finally, it was found that the
prevalence of one of the rights, as well as the increase in the extent of
the damage for eventual liability, depends on the analysis of the
elements of the specific case. For the realization of this article, the legal-
dogmatic method and literature review were adopted.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
A Líbia vem sofrendo com instabilidade política desde 2011, com a queda de
Muammar Kadhafi, de modo que o Governo de Acordo Nacional (GNA) e o Exército Nacional
Líbio (ENL) buscam chegar ao poder. Dotada de uma localização estratégica, o país é
responsável por ligar o continente africano ao mar mediterrâneo, e possui grandes reservas
petrolíferas. Por outro lado, sabe-se que muitos estados ao redor do globo lutam contra a
imigração ilegal em seus territórios. Com o objetivo de coibir práticas como essa, a Itália,
apoiada pela União Europeia, realizou um tratado bilateral, conhecido como Memorandum of
Understanging com a Líbia, com o objetivo de treinar, equipar e financiar a Guarda Costeira
da Líbia para capturar os barcos e navios com migrantes e refugiados que tentavam cruzar o
Mar Mediterrâneo, restando retidos em águas líbias.
Entretanto, a Líbia não possui uma legislação procedimental acerca do refúgio,
portanto, aqueles que teriam direito à proteção internacional em um país signatário da
Convenção de 1951 e/ou do Protocolo de 1967, são capturados e encaminhados para centros de
detenção de migrantes. Esses centros, já receberam diversas denúncias de violações acerca dos
direitos humanos. Ademais, a Líbia é um território que se encontra em um profundo conflito
1
Discente do 9º Semestre do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco. E-mail:
carolina.paiva_@outlook.com
P á g i n a | 29
interno, o que representa um grande risco. Desse modo, o refugiado acaba deixando tudo para
trás, sendo capturado por um país que não lhe oferece a possibilidade real de proteção
internacional.
Considerando a renovação tácita do acordo ocorrida no início de 2020, o presente
artigo objetiva analisar a normatividade internacional, se debruçando sobre a insuficiência na
regulamentação dos direitos dos refugiados no mar e suas consequências no caso em tela.
Diante da ocorrência de diversas denúncias acerca das condições que acometem os migrantes
nos centros de detenção líbios, impõe-se a observância das possíveis violações aos Direitos
Humanos e ao Direito dos Refugiados devido a atuação da guarda costeira da Líbia.
Por fim, analisaremos de que forma o acordo bilateral entre as partes viola o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, através do estudo do princípio do Non-Refoulement como
Jus Cogens, assim como os demais tratados de direito internacional e da União Europeia. A
abordagem aplicada à pesquisa fora qualitativa, tendo em vista que emprega subjetividades e
nuances não quantificáveis. Ademais, quanto aos objetivos, fora realizada uma pesquisa
explicativa, identificando os fatores que determinam os fenômenos. Quanto aos tipos de
procedimentos, fora empregada a pesquisa bibliográfica e documental, aprofundando-se tanto
sobre os documentos em si, quanto analisando artigos científicos sobre a temática.
em seu art. 12. Frise-se que nenhuma das convenções pesquisadas possuem um artigo tratando
sobre refugiados e migrantes.
Ademais, mesmo a Convenção sobre a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (1974)
(CCA-IMO, 2014) não se mostra exauriente na matéria, visto que possui enfoque em leis e
regulamentos, no transporte de pessoas em caso de emergência, casos de força maior, entre
outros. Frise-se que mesmo o Protocolo de 1988 não possui normatividade sobre o assunto,
visto que possui ênfase na construção, em equipamentos, dispositivos, radiocomunicação, entre
outros.
É certo que tais documentos possuem sua importância internacional, entretanto, resta
claro que eles não são suficientes para assegurar a proteção dos direitos humanos e dos
refugiados no mar, gerando uma insuficiência de normatividade internacional acerca do tema.
Um dos institutos aplicáveis ao direito do mar que se intersecciona com essas questões
é a assistência de pessoas em perigo ou perdidas no mar (OXAM, 1997 apud WINTER;
BOTELHO, 2015). O instituto é um dos mais polêmicos dentro do alcance da Organização
Marítima Internacional (OMI), visto que acaba sendo desconsiderado por diversas políticas
marítimas de assistência, o que inclui também o desembarque de pessoas e entrega das mesmas
a um lugar seguro (WINTER; BOTELHO, 2015). A assistência marítima constitui como uma
obrigação do capitão do navio, enquanto o resgate marítimo seria uma imposição direcionada
aos estados costeiros ou de bandeira (KENNEY; TASIKAS, 2003 apud WINTER; BOTELHO,
2015).
Portanto, o instituto da assistência e o resgate marítimo possuem um enfoque na
preservação da vida humana no mar. Deixando de lado os demais Direitos Humanos que são
conhecidos, como o direito à liberdade, o direito a não detenção arbitrária, ao acesso à justiça
e, por fim, a buscar asilo em outros países em caso em perseguição, consagrado pelo art. XIV
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 2009).
É o que ocorre com relação ao acordo realizado entre a Líbia e a Itália. Isso porque os
moldes do procedimento determinado não lograram êxito em assegurar o direito de buscar o
refúgio nos casos cabíveis, uma vez que a Líbia não possui uma legislação procedimental
interna sobre o tema do refúgio, ou mesmos mecanismos que possibilitem as partes a desafiar
a detenção.
Enquanto não há uma regulamentação internacional conjunta realizada pelos Estados
acerca do tema, temos uma fragmentação do direito internacional, o que permite que textos
como o Memorandum of Understanding (GOVERNO ITALIANO, 2017) realizado entre a
Líbia e a Itália, com o apoio da União Europeia, possam surgir nas lacunas.
P á g i n a | 31
2
A Frontex, atualmente conhecida como Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, foi criada em
2004, pelo regulamento (EU) 2016/1624, com o objetivo de proteger as fronteiras externas do espaço de livre
circulação da União Europeia, auxiliando os Estados-membros e os países associados de Schengen.
P á g i n a | 32
país que não é signatário nem da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951), nem do Protocolo de
1967 (ACNUR, 1967).
A Lei Líbia nº 6, criada em 1987, determina em seu art. 18, a detenção por tempo
indefinido e o pagamento de uma multa equivalente a duzentos dinares líbios, àquele que entre
em ilegalmente, permaneça ou tente sair do país sem um visto válido ou documento de
residência (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20). Apesar da Constituição do país
assegurar, em seu art. 10º, a proteção dos refugiados políticos do retorno forçado, na prática, as
autoridades falham em assegurar tal direito (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20).
Além disso, o país não é signatário da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951) e nem do
Protocolo de 1967 (ACNUR, 1967). Assim, refugiados que arriscam suas vidas no mar
mediterrâneo, acabam impedidos de chegar ao seu local de destino, visto que são capturados
pela Guarda Costeira da Líbia, e ficam presos a esse país, em abrigos para refugiados, em
condição sub-humanas.
Ademais, o conflito instaurado no país acaba trazendo de volta uma realidade na qual
muitos refugiados fugiram em seus respectivos países. Frise-se que o conflito na Líbia já chegou
a atingir um centro de detenção que acolhia refugiados e migrantes (NAÇÕES UNIDAS, 2019),
causando a morte de mais de 50 refugiados e migrantes na detenção Tajoura, em Trípoli
(ACNUR, 2019).
Portanto, o acordo realizado acaba por afetar o direito de um solicitante de refúgio de
procurar proteção em outro estado nas hipóteses cabíveis. Com a política empregada, o
solicitante de refúgio não consegue chegar ao estado de destino devido à interceptação pela
guarda costeira da Líbia. Desse modo, o que ocorre na prática é a saída do refugiado para uma
situação tão ruim quanto aquela que o fez fugir em um primeiro momento. Como é cediço, a
imigração ilegal deve ser controlada e combatida, não podendo, todavia, ser tolhido o direito
de pleitear o refúgio, nas hipóteses cabíveis.
O acordo bilateral resultou na prisão de refugiados e migrantes, os expondo a
um país onde estão suscetíveis a sofrer violações e abusos, sem a possibilidade de buscar a
concessão do refúgio. Isso porque a lei da Líbia considera crime a tentativa de sair ou entrar
irregularmente de seus territórios (ACNUR, 2014). Assim, a legislação da Líbia não guarnece
especificamente os refugiados e solicitantes de refúgio, ao passo que, apesar do direito de asilo
P á g i n a | 33
estar presente na Constituição Interina da Líbia, em seu artigo 10, não há legislação específica
ou procedimental acerca do refúgio (ACNUR, 2014, p. 1).
Desse modo, eles recaem na legislação de imigração geral do país, que não contém
disposições sobre o status de refugiado, solicitante de refúgio ou mesmo o princípio do non-
refoulement, de modo que a soltura, frequentemente, apenas possibilita o retorno ao país de
origem, a evacuação ou reassentamento (ACNUR, 2014, p. 1).
Por outro lado, a Líbia é signatária da convenção africana, que faz menção em seu art.
V, parágrafo 3º (ACNUR, 2009, p. 8), ao que seria equivalente ao princípio do non-refoulement
da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951), pois destaca que nenhuma pessoa será submetida a
rejeição na fronteira, retorno ou expulsão, já que isso a obrigaria a retornar ou permanecer em
território onde sua vida, integridade e liberdade estariam ameaçadas.
Apesar de ser parte da Convenção Africana, a Líbia não estabeleceu um
procedimento de refúgio, ou tomou medidas práticas para a implementação da convenção
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2017). Em 2013, fora estabelecido um comitê, criado pela
Organização Internacional para Cooperação e Ajuda Emergencial, objetivando redigir uma Lei
de Refúgio, que fora devidamente submetida a análise (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017,
p. 20). No entanto, o conflito instaurado em 2014 interrompeu o processo político e legislativo
no país (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20). Ante a ausência de uma sistematização
judicial ou uma base legal processual estabelecida para autorizar a detenção dos migrantes,
estes são privados de qualquer mecanismo formal, administrativo ou judicial de recorrer da
detenção (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 9).
Cumpre destacar que a Líbia é signatária de outras convenções das Nações Unidas que
tangenciam a matéria, como a Convenção contra Tortura e outros tratamentos ou punições
cruéis, desumanas ou degradantes e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20). Essa última, estabelece o direito à liberdade e da
proibição de detenção arbitrária em seu art. 9, corroborando o entendimento de que o uso de
detenção para controlar a entrada irregular de migrantes e solicitantes de asilo é altamente
desencorajada dentro do Direito Internacional, visto que a mesma apenas deverá ser utilizada
como último recurso e respeitando as necessidades humanas básicas (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 21).
Além disso, a política de preparar a guarda costeira da Líbia para conter as migrações
pelo mar, apesar de combater as redes de tráfico locais, coloca em risco milhares de vidas que
são direcionadas a um país assolado pelo conflito e pela guerra civil, onde são encarceradas e
submetidas a várias violações aos Direitos Humanos, como superlotação, falta de acesso a
P á g i n a | 34
ventilação e à luz do sol nas celas, baixas condições de higiene e de saneamento, oferecendo
menos de dois livros de água por pessoa, e uma ingestão de menos de 800 calorias por dia
(MÉDICOS SEM FRONTEIRAS, 2017, p. 1). Há denúncias de exposição à tortura, violência
sexual, física e extorsão, investigações de incidentes de abuso, incluindo a venda de migrantes
(LYBIA..., 2017, p. 1). Devido à falta de um processo de registro, não se sabe o número exato
de pessoas em centros de detenção, e o tempo de permanência, visto que os centros liberam
indivíduos à sua discricionariedade, geralmente exigindo pagamentos (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 28). Sem um mecanismo legal capaz de recorrer da detenção,
eles ficam por tempo indeterminado, ante a ausência de um sistema que permita uma liberação
oficial ou mesmo para apurar a duração da detenção, o que leva a disseminação da extorsão e
tortura nesses locais (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 28).
As possibilidades de saída legal ocorrem através da deportação – o que é ineficaz do
ponto de vista do refúgio, visto que o refugiado retorna ao local onde sofrera perseguição,
podendo caracterizar violação ao art. 2º, III da Convenção da Organização Africana. Uma outra
medida cabível seria através do retorno humanitário voluntário, organizado pela Organização
Internacional da Migração e, por fim e menos comumente, uma negociação de soltura operada
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ANISTIA INTERNACIONAL,
2017, p. 29). Para aqueles que não podem onerar com a soltura, e não podem utilizar-se da
Repatriação Voluntária da OIM, ou não pertence as nacionalidades em que o ACNUR pode
atuar pugnando por uma libertação, a perspectiva é de permanecer detido por tempo indefinido.
Dentro do Direito Internacional, aqueles sujeitos a deportação devem receber o direito
de recorrer contra a decisão que deferiu sua deportação. Essas salvaguardas não fazem parte da
legislação da Líbia, e não são respeitadas na prática (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p.
21).
Outrossim, no caso em comento pode ser aplicada violação à Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (2000), que institui em seu art. 19, II, a proteção em caso de
afastamento, expulsão ou extradição, ao afirmar que são proibidas as expulsões coletivas, e que
ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para estado onde ocorra sério risco de ser
sujeito à pena de morte, tortura ou outras penas desumanas ou degradantes (JORNAL OFICIAL
DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2000, p. 12).
É certo que a instabilidade política, o conflito na região, a não assinatura de tratados
internacionais sobre o tema e a ausência de legislação sobre o refúgio, gera deficiências
intrínsecas na Líbia que a responsabilizam pela falha como Estado na prestação de suas
obrigações internacionalmente conhecidas. Entretanto, ao passo que a política anti-imigração
P á g i n a | 35
na região leva a assinatura de um acordo bilateral, potencializa o número de vítimas que serão
submetidas a tais condições degradantes, já conhecidas e amplamente disseminadas.
Desse modo, apesar de não estar cometendo essas violações em território europeu, o
que responsabilizaria os estados internacionalmente, designa-se para que outro país se torne
responsável. No caso da Líbia, essa postura se torna ainda mais confortável, por não se tratar
de um Estado Parte da Convenção e do Protocolo, assim como ante a ausência legislativa e
procedimental interna sobre o tema.
O teor do acordo acaba por negligenciar o direito de buscar asilo, eternizado no art.
XIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 2009), bem como o
direito de buscar refúgio, nos moldes da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951).
Considerando que aquele que tem direito a proteção internacional não dispõe de
mecanismos legais ou administrativos para perquirir o status de refugiado na Líbia, resulta-se
em um fluxo de pessoas retidas em território líbio devido a adoção de um acordo que acaba por
não distinguir na prática as modalidades migratórias. Assim, dezenas de pessoas fazem jus ao
status de refugiados são encarceradas, esperando pelo dia em que poderão, possivelmente, ser
reassentadas em um terceiro país.
3
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS (Não há dúvida sobre a jurisdição). Recurso nº 27765/09.
Grande Câmara. 23/02/2012.
4
No caso Hirsi Jamaa e outros vs. Itália, três embarcações se encontravam em território Maltês, fugindo de Trípoli,
com o objetivo de alcançar a Itália. Contudo, após a interceptação pelas autoridades italianas, foram transferidos
para navios italianos e levados de volta para Trípoli, sem que informassem aos demandantes o seu destino
P á g i n a | 37
de impedir sua chegada ao território Italiano (SEGOVIA, 2017, p. 16), incluindo como uma
violação a proibição a tortura e outros maus-tratos, para aqueles estados ou organizações que
operam qualquer embarcação de resgate no mar retornar os refugiados e os migrantes a Líbia,
o que levou a várias operações de resgate no mar da Europa, onde muitos ficavam na Itália
(ANISTIA INTERNACIONAL. 2017, p.8).
Contudo, devido a relutância dos Estados-membros em dividir as responsabilidades na
recepção dos refugiados que cruzavam o Mar Mediterrâneo, a posição do governo italiano
deixou de priorizar o salvamento, focando na redução do número de entrada de pessoas, o que
fora apoiado por outros governos do bloco (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 42), apesar
de o país ser signatário da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951) e do Protocolo de 1967
(ACNUR, 1967).
Em seguida, fora firmado o Memorandum of Understanding (USELLI, 2017, p. 2)
entre a Itália e a Líbia, onde as verbas eram, expressamente, italianas e europeias, tal como
disposto em seu art. 2º, II. Frise-se que o acordo foi inteiramente integrado na Declaração de
Malta assinada pelos membros da União Europeia no dia seguinte (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 43).
A mesma situação se repete atualmente, pois apesar de não haver a devolução concreta
do migrante – considerando que este é capturado em território líbio – há a intenção de impedir
a chegada na Itália. No referido caso, restou clarificado que a conduta italiana os expôs ao
perigo de serem submetidos a maus tratos, assim como a repatriação arbitrária. Por esse motivo,
fora determinado que tomassem todas as iniciativas necessárias para obter garantias de que os
demandantes não seriam submetidos a tratamentos incompatíveis com ao princípio do non-
refoulement (SEGOVIA, 2017, p. 16).
Mediante análise do acordo, é possível verificar a interpretação do art. 33 da
Convenção de 1951 (ACNUR, 1951) através da aplicação coletiva do princípio do Non-
Refoulement, tal como ocorre dentro da União Europeia. Isso porque, na prática, temos o mesmo
conceito de realização de um acordo bilateral entre a Itália e a Líbia, criando mecanismos
utilizados pelos estados com o objetivo de realocar refugiados de um estado para outro. Assim,
ocorre um impedimento de entrada em território italiano, para que não haja uma realocação
formal, mas sim prática.
verdadeiro. Em seguida, foram entregues as autoridades da Líbia. Isso ocorrera em razão da existência de um
acordo firmado entre Líbia e Itália, em 4 de fevereiro de 2009, para interceptação e entrega de imigrantes à Líbia.
Frise-se que este não fora o primeiro acordo nesse teor entre os países, visto que fora antecedido por outro acordo
bilateral em 2007. Por fim, a Itália fora condenada ao pagamento de mais de 16 mil euros, devido as diversas
violações aos documentos internacionais.
P á g i n a | 38
Tal como destacado por D’Angelo (2009), estados receptores que aplicam a
abordagem coletiva enviam refugiados a um terceiro estado, desde que o terceiro estado não
expulse o solicitante de refúgio a um quarto estado que possa violar a vida ou liberdade do
refugiado. Diante disso, percebe-se que, apesar de não haver o envio direto dos refugiados a
Líbia, eles são capturados pela Guarda Costeira da Líbia sem mesmo alcançar o território
italiano. Assim, na prática, ocorre que os refugiados ficam em um estado onde sua vida e
liberdade corre risco. Isso porque estes não podem pleitear o refúgio em solo líbio, devido à
ausência de uma regulamentação interna sobre o tema, assim como têm seu direito à liberdade
violado, visto que são submetidos aos centros de detenção em situações precárias.
Assim, percebe-se que o teor prático do acordo bilateral ignora o fato de que a Líbia
não é signatária da Convenção de 1951 (ACNUR, 2015), e por conseguinte, não oferece
qualquer proteção de tal documento internacional. A saída de situação de perseguição para
entrada em um país que criminaliza e institui detenção ao refugiado não é resolutiva, visto que
não cumpre com o seu papel de proteção ao indivíduo, que são capturados por um país que os
impossibilita de obterem o reconhecimento de seu status quo.
Destarte, o acordo realizado entre a Líbia e a Itália gerou um impedimento na
aplicabilidade do refúgio aos que buscavam asilo através do mar mediterrâneo, visto que estes
ficam à própria sorte esperando por uma repatriação voluntária ou negociação de soltura que
pode nunca vir a acontecer, devido a alta quantidade de migrantes e refugiados nos locais de
detenção.
Ademais, na formulação atual do Memorandum of Understanding (USELLI, 2017)
não há o respeito aos limites do princípio do Non-Refoulement e sua natureza jus cogens,
devendo ser observado pelas autoridades Líbias independentemente de ratificação à Convenção
de 1951 (ACNUR, 1951). Não há o respeito aos limites da interpretação da abordagem coletiva
do referido princípio, aplicado pela União Europeia com a instauração da Convenção de Dublin
(JORNAL OFICIAL DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 1997), ante a ausência de
segurança a liberdade e a vida dos refugiados que são encaminhados ao território líbio, tendo
em vista os centros de detenções, bem como o fato de se trata de um território em conflito,
devido aos grupos internos que lutam pelo poder.
Nesse sentido, a Resolução 1821 de 2011 adotada pela Assembleia Parlamentar do
Conselho da Europa explicita em seu art. 9.3 a garantia a todas as pessoas interceptadas, ao
tratamento humano e respeito aos seus direitos humanos, incluindo o princípio do non-
refoulement, independentemente de se as medidas de interceptação são implementadas dentro
P á g i n a | 39
de suas próprias águas territoriais, ou de outro estado com base em um acordo bilateral
(PARLIAMENTARY ASSEMBLY, 2011, p. 1).
Há o descumprimento do art. 9.6 da resolução, visto que o acordo bilateral realizado
pelas partes não garante o acesso justo e efetivo do procedimento do refúgio àqueles que
necessitem de proteção internacional, devido à ausência de adesão da Líbia a Convenção de
1951 (ACNUR, 1951) e ao Protocolo de 1967 (ACNUR, 1967), assim como a ausência de
legislação interna procedimental acerca do refúgio, o que inclui a criação de mecanismos que
possibilitem que os solicitantes de refúgio possam recorrer das decisões proferidas, assim como
a não detenção.
Pouco tempo após a assinatura do documento, a Comissão Europeia decidiu adotar
medidas contra países que se negaram a receber refugiados no procedimento de
compartilhamento de refugiados adotado pelo bloco. Em 02 de Abril de 2020, a Corte de Justiça
da União Europeia condenou5, através dos casos C-715/17, C-718/17 e C-719/17, a Hungria,
Polônia e República Tcheca, por não cumprir suas obrigações dentro da legislação da União
Europeia (COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION, 2020a), quais sejam a decisão
adotada pelo conselho no que tange a realocação mandatória dos 120.000 solicitantes de
proteção internacional, assim como a realocação voluntária de 40.000 solicitantes que haviam
adentrado no território europeu (COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION, 2020b).
É certo que esse tipo de conduta enfraquece a União Europeia diante dos desafios a
serem compartilhados. Todos os países do bloco são signatários da Convenção de 1951
(ACNUR, 1951) e do Protocolo de 1967 (ACNUR, 1967), possuindo obrigações internacionais
diante do acordo. Compartilhar as responsabilidades como um bloco é salutar para enfrentar a
situação da melhor forma possível.
No final de março, o Conselho da Europa, principal órgão de defesa dos direitos
humanos e da ordem democrática do continente, solicitou ao governo italiano a suspensão das
atividades de cooperação realizadas com a Guarda Costeira da Líbia, devido as violações de
direitos humanos ocorridas, bem como ao conflito instaurado (COUNCIL OF EUROPE, 2020,
p. 1). Além de pugnar pela suspensão das atividades que impactassem diretamente ou
indiretamente no retorno das pessoas interceptadas por mar, propôs a criação de suportes
adicionais a Guarda Costeira para assegurar o respeito pelos direitos humanos (COUNCIL OF
EUROPE, 2020, p. 1).
5
CORTE DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (não há dúvidas sobre a jurisdição). Processos apensos C-
715/17, C-718/17 e C-719/17. Terceira Secção. 02/04/2020
P á g i n a | 40
CONSIDERAÇÕES FINAIS
direitos humanos e aos direitos dos refugiados na Líbia, visto que aquele é ineficaz na proteção
internacional aos refugiados. Nesse sentido, frise-se que ao rechaçar essas pessoas ao território,
não há o respeito aos limites mínimos da segurança e nem a liberdade citada na Convenção de
Dublin.
A partir do momento que se veda a entrada em um território signatário dos tratados
internacionais, restando contra sua vontade em um país que não regulamenta o refúgio,
desprovido de mecanismos legais de aquisição do status de refugiado, viola-se o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, visto que o acordo impede que os refugiados que buscam
proteção por determinada rota possam efetivamente contar com a proteção de um estado.
Assim, ocorre o fortalecimento de rotas alternativas e redes de tráfico de pessoas.
A insuficiente regulamentação dos Direitos dos Refugiados no meio marinho, bem
como a falta de abertura para o diálogo acerca do tema, ocasiona uma fragmentação do direito
internacional, através de acordos multilaterais ou bilaterais, o que permite que textos como o
Memorandum of Understanding possam surgir nas lacunas. Assim, é salutar que o debate ocorra
em nível internacional, não estando restrito apenas aos estados envolvidos no acordo.
REFERÊNCIAS
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1967 protocol. Disponível em:
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<https://periodicos.unipe.br/index.php/direitoedesenvolvimento/article/view/280/262>.
Acesso em: 21 abr. 2020.
P á g i n a | 47
ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (PPGRI/UNILA). Especialista em Direito Constitucional
pela Universidade Regional do Cariri (URCA) em 2019. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza
(UNIFOR) em 2017. Pesquisador integrante do Núcleo de Pesquisa em Política Externa Latino-Americana
(NUPELA) e do Centro de Estudos Sócio-Políticos e Internacionais da América do Sul (CESPI/América do Sul).
Advogado. Participa da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero (CDSG) da Ordem dos Advogados do Brasil -
Secção do Ceará (OAB-CE).
2
Neste sentido, vide International Organization for Migration – IOM. World Migration Report 2020. Geneva:
2020. Disponível em: https://publications.iom.int/es/system/files/pdf/wmr_2020.pdf. Acesso em: 07 out 2020.
P á g i n a | 49
mundo em 2019, o que corresponde a 3,5% da população mundial. Ainda de acordo com o
documento, 41 milhões de pessoas estão internamente deslocadas e outras quase 26 milhões de
pessoas são refugiadas. Já o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR
(2020) divulgou que existem 41,3 milhões de deslocados(as) internos(as), 25,9 milhões de
refugiados(as) e 3,5 milhões de solicitantes de refúgio. O ACNUR concluiu ainda que o número
de refugiados(as) cresceu mais de 50% nos últimos 10 anos e que 52% deles(as) são crianças.
O documento revelou que 57% dos refugiados(as) do mundo são da Síria, do Afeganistão e do
Sudão do Sul; os três países que mais acolhem são Turquia, Paquistão e Uganda.
No continente americano, as migrações também são um fenômeno observável, tendo
despertado a atenção o aumento do fluxo migratório para os Estados Unidos da América,
principalmente originado do chamado triângulo norte, passando pelo México, até atingir a
fronteira sul. O debate sobre a construção do Muro de Trump (atual presidente dos EUA) gerou
polêmicas e deu visibilidade ao tema. Na América do Sul, de modo específico, as migrações
passaram a ser observadas a partir do terremoto haitiano (2010) e do incremento do fluxo
migratório de trabalhadores(as) de países andinos: precisamente, peruanos(as) para o Chile e
bolivianos(as) para o Brasil.
Na sequência, um novo fluxo migratório tornou-se notório a partir da guerra na Síria
e da primavera árabe de 2011, além do aprofundamento da crise venezuelana durante o governo
de Nicolás Maduro. O Brasil, que entre o século XIX e o início do século XX, recebeu um
contingente considerável de imigrantes europeus, como italianos e alemães, e japoneses (apenas
para destacar as comunidades de mais destaque) passa, no século XXI, a receber outro tipo de
fluxo migratório e um número considerável de pessoas na categoria de refugiados(as). Nesse
contexto, o objetivo geral do trabalho é refletir sobre o processo de integração local dos(as)
refugiados(as) no Brasil.
A incursão metodológica que possibilita a realização desta investigação será
direcionada por abordagens de pesquisa qualitativa e por método dedutivo. O procedimento
metodológico é bibliográfico e documental, já que será feito a partir do levantamento de
referências teóricas e documentos oficiais já analisados e publicados.
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados
temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não
queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do
país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele,
em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e
generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
de subjetividades que vão muito mais além do aparato legal, mas implicam um olhar sobre a
alteridade, a identidade, o pertencimento.
O que alicerça, portanto, o acolhimento de refugiados(as) pelos Estados aborda a
fronteira erguida entre inclusão e exclusão, admissão e rejeição, indivíduos ou grupos
desejáveis e indesejáveis; ao mesmo tempo, enseja vulnerabilidade, indefinição e incerteza a
esses migrantes internacionais forçados. Tal fronteira separa aqueles(as) que serão inseridos(as)
na ordem social, cultural, econômica e política estatal, aqueles que terão direito a ter direitos,
dos(as) que não serão contemplados(as) (NYERS, 2005).
Os(as) refugiados(as) são vistos como outsiders, uma vez que vêm de fora; são
estrangeiros(as), por não pertencerem à nação, por serem estranhos(as) aos códigos
compartilhados e informados pela identidade cultural, social, étnica, religiosa, linguística da
comunidade de destino (BAUMAN – SAYAD, 2005 – 2008).
A construção da definição jurídica e política de refugiado(a) remonta ao contexto da
Europa do pós-guerra. A partir da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951,
cunhou-se o termo refugiado(a) como aquele(a) que possui fundado temor de perseguição por
razões de raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou por opiniões políticas.
A decisão do Estado de reconhecer e receber refugiados(as) envolve múltiplos e
complexos fatores, os quais abarcam tanto política externa como doméstica. O país receptor
pode utilizar o acolhimento de refugiados(as) como instrumento para deslegitimar o país de
origem, ao rotulá-lo como perseguidor, repressor ou violador de direitos humanos (MOREIRA,
2014). Pode favorecer a entrada de refugiados(as) de determinadas origens, em virtude de
questões sociais, étnicas, culturais, políticas ou econômicas, em detrimento de outras, e/ou
perceber a presença dos(as) refugiados(as), sobretudo em grande contingente, como pesado
encargo socioeconômico ou como ameaça à segurança ou à identidade nacional (MOREIRA,
2014).
A construção da definição jurídica e política de refugiado(a) remonta ao contexto da
Europa do pós-guerra. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ratificar, no ano de
1960, a Convenção Internacional de 1951, relativa ao Estatuto do Refugiado. Em razão das
limitações, temporais e geográficas, evidenciadas na referida Convenção, foi estabelecido, em
1967, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, que propositava alcance mais amplo à
definição do termo “refugiado”. Tal documento foi assinado pelo Brasil no ano de 1972.
Posteriormente, o País assinou a Declaração de Cartagena, de 1984, um documento
regional que influenciou a associação entre o conceito de refúgio e o de direitos humanos,
especificamente o de direito humanitário na América Latina. É fundamental ressaltar que essa
P á g i n a | 52
3
Texto original: “Brazil attaches great priority to the protection of migrants, refugees and stateless persons. It is
party to the 1951 Refugee Convention and its 1967 Protocol, to the 1954 Convention on Stateless Persons and to
the 1961 Convention on the Reduction of Statelessness, and has submitted the accession to the Convention on the
Rights of Migrant Workers for Congressional approval”.
4
A Constituição deveria ser um símbolo de repactuação social e democrática do País, porém, seus princípios
constitucionais confrontavam com o legado autoritário que a Lei nº 6.815/80 havia trazido dos anos de opressão
vividos pelo Brasil. O tema é complexo, mas, durante 37 anos, a referida lei (fundamentada no paradigma da
segurança nacional e da proteção ao mercado de trabalho interno) produziu efeitos no ordenamento jurídico
brasileiro até, finalmente, ser revogada pela Lei nº 13.445/17.
P á g i n a | 53
Com base nesses princípios, pode-se afirmar que os alicerces da concessão do refúgio,
vertente dos direitos humanos e espécie do direito de asilo, são expressamente
assegurados pela Constituição Federal de 1988, sendo ainda elevados à categoria de
princípios de nossa ordem jurídica. Sendo assim, a Constituição Federal de 1988
estabelece, ainda que indiretamente, os fundamentos legais para a aplicação do
instituto do refúgio pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, além de obrigar o Brasil a zelar pelos direitos humanos e a respeitá-los,
a concessão do refúgio seria uma forma de efetivação dos dispositivos constitucionais, de modo
que os princípios estariam sendo cumpridos e a igualdade estaria assegurada, o que gera
segurança jurídica sobre o tema. É importante salientar que o(a) refugiado(a), uma vez
reconhecido(a) pelo País, goza de igualdade perante os(as) brasileiros(as) natos(as) e
naturalizados(as), uma vez que é detentor(a) dos direitos sociais preceituados pelo artigo 6º da
CRFB/88, mas não tem direito de votar nem de ser votado(a), o que incita uma complexa e
necessária discussão sobre sua cidadania.
O Brasil, em 1997, estabeleceu uma lei específica para os(as) refugiados(as): a Lei nº
9.474, de 22 de julho de 1997, que estabeleceu os critérios para se atribuir o status de
refugiado(a) e que também determinou o procedimento para o devido reconhecimento dessa
condição. A lei é responsável pela criação do CONARE, órgão administrativo que trata do tema
no país.
A Lei nº 9.474/97 foi produzida a partir do Programa Nacional de Direitos Humanos,
de 1996, e elaborada pelo governo brasileiro em conjunto com o ACNUR (PNDH, 1996). A
referida legislação é conhecida como umas das mais avançadas do mundo e é pioneira na
América Latina, “[...] sendo usada como parâmetro para inúmeros outros países, pois traz uma
P á g i n a | 54
Em relação às causas que motivam a fuga, estas são de difícil solução e podem se
perpetuar por anos, por isso foram estabelecidas algumas respostas, capazes de conferir ao
refugiado(a) a possibilidade de viver dignamente e em segurança, mesmo em situações de
vulnerabilidades. O ACNUR trabalha com três iniciativas – repatriação voluntária5,
reassentamento solidário6 e integração local7 –, que fazem parte do compromisso assumido pelo
Brasil ao assinar a Convenção de 1951, positivado pela Lei nº 9474/97.
O Brasil tem sido um país bastante procurado por indivíduos em situação de refúgio.
Sempre considerado por sua diversidade cultural e composição multiétnica, o país foi
edificando sua identidade a partir de ideias como “democracia racial” e “homem cordial”,
presentes nos debates propostos, respectivamente, pelo antropólogo Gilberto Freyre e
historiador Sérgio Buarque de Holanda, pensadores do Brasil e da formação da sociedade
brasileira.
A sociedade brasileira, contudo, também é uma das mais violentas do mundo, e essa
violência é parte inerente do nosso processo de colonização, o qual gerou práticas e dinâmicas
excludentes, elitistas e pautadas na construção do projeto colonial e modernizador europeu que
incluía a escravidão e, dessa forma, a sujeição de outros indivíduos e povos, cuja cultura foi
sublimada e cujos corpos foram objetificados.
5
A repatriação voluntária é o retorno seguro ao país de origem, segundo a vontade e conveniência do(a)
refugiado(a).
6
O reassentamento solidário é a transferência de refugiados(as) a um terceiro país seguro realizada mediante
acordo entre o país e o ACNUR.
7
A integração local é o objeto desta pesquisa e será abordada mais adiante.
P á g i n a | 55
8
O conceito de raça cósmica surgiu no livro La Raza Cósmica de autoria do mexicano José Vasconcelos Calderón.
O autor defende que na América Latina se formaria uma nova raça, em um processo de mestiçagem sobretudo
espiritual. Através de uma inversão semântica no conceito de raça, o autor apresenta uma nova proposta de
identidade latino-americana, com o fim político de legitimar as nações do continente e de se opor ao imperialismo
estadunidense (ASCENSO, 2013).
P á g i n a | 56
Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica dos refugiados
deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos
emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e
consulares. Art. 44. O reconhecimento de certificados e diplomas, os requisitos para
a obtenção da condição de residente e o ingresso em instituições acadêmicas de todos
os níveis deverão ser facilitados, levando-se em consideração a situação desfavorável
vivenciada pelos refugiados.
características peculiares. Como o poder público não tem estrutura para acolhimento nem
planos arrojados de integração para os(as) refugiados(as), fica sob a responsabilidade da
sociedade civil, de instituições religiosas, ONGs e associações de refugiados(as) fazer esse
trabalho. Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2015),
em parceria com o Ministério da Justiça, alguns gargalos sobre o processo de integração foram
revelados:
Não obstante, como explica Mahlke (2017, p. 244), “todos esses obstáculos podem ser
resumidos em um único problema: a falta de uma estrutura de acolhimento adequada,
acompanhada de políticas públicas direcionadas para a população refugiada”. A igualdade para
todos(as) apresentada pela CRFB/88 refere-se à igualdade de direitos e oportunidades e, para
isso ocorrer, é necessário considerar a condição especial dos(as) refugiados(as) e promover
ações para que essa igualdade seja atingida (Mahlke, 2017).
A população migrante e, em especial, refugiada já enfrenta as barreiras linguísticas e,
muitas vezes, não conta com uma rede de apoio em seu novo país. Seu ponto de partida já é
consideravelmente mais desafiador. Constata-se a existência de novas e distintas fronteiras para
uma efetiva integração em uma nova sociedade. Os desafios culturais impostos pelo idioma e a
dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e a serviços, conforme vislumbrado no gráfico 1,
também podem ser considerados efeitos de uma investida discriminatória, segregacionista, que
impede a integração de refugiados(as) à sociedade brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, a política migratória revelou, sem dúvidas, muitos avanços. Apesar dos
erros e da inoperância administrativa, o País mostrou-se assertivo ao assinar os acordos
internacionais para proteção dos refugiados. Internamente, no período democrático, houve a
criação de um sistema jurídico migratório audacioso, porque garantiu a pluralidade de direitos
aos refugiados, mas ainda com resquícios da ideologia da segurança nacional, timidamente
mascarada por políticas públicas pouco eficientes. O país conta com um aparato legislativo
muito importante, porém falta vontade política para que a lei seja efetivada de forma correta.
Outro problema enfrentado e evidenciado na pesquisa é que, teoricamente, os
refugiados deveriam ser bem recebidos nos países de destino, porém isso nem sempre acontece.
A falta de políticas públicas para integração dos refugiados gera outros desafios, como a
xenofobia e a carência de acesso aos serviços públicos. A dificuldade de integrá-los a sociedade
brasileira pode ser interpretada como uma grave violação aos direitos humanos dos refugiados.
Finalmente, este breve texto buscou concentrar-se nas dificuldades e nos dilemas
vivenciados por migrantes refugiados(as) no Brasil. Foi possível perceber que, apesar dos
avanços legais importantes, as fronteiras a serem cruzadas ainda são consideráveis de acordo
com a problemática que envolve a integração desses indivíduos à sociedade brasileira. A
inclusão social, a equidade e a observação dos direitos humanos, no sentido da percepção da
dignidade da pessoa humana para relações interpessoais mais horizontais e solidárias, ainda
P á g i n a | 61
merecem ser objeto de políticas públicas específicas, as quais visem a essas populações em
condição de vulnerabilidade.
REFERÊNCIAS
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historical analysis. New Issues in Refugee Research. Geneva: UNHCR, 2004.
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VASCONCELOS, José. The cosmic race; La raza cósmica. Los Angeles: Centro de
Publicaciones, California State University, 1979.
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ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Mestrando em Psicologia pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Especialista em Direito de
Família e Sucessões pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus – FDDJ (São Paulo/Brasil). Pós-graduando
em Advocacia Extrajudicial e em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale (São Paulo/Brasil). Graduado em
Direito pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Advogado.
2
Doutora em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Mestre em Qualidade
Ambiental pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Especialista em Redação pela Unisinos (São
Leopoldo/Brasil). Docente do Curso de Direito da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Advogada.
P á g i n a | 65
A análise desse tema justifica-se, por conseguinte, tendo em conta que as mudanças climáticas
podem desencadear catástrofes que ameaçam a sobrevivência das pessoas na Terra, forçando-
as à busca de alternativas de vida em lugares que não aqueles em que estavam acostumadas a
viver e nos quais eram consideradas cidadãs, consequentemente, com proteção jurídica. A
desterritorialização traz implicações que acentuam a situação de vulnerabilidade, colocando em
xeque a eficácia dos direitos assegurados à pessoa humana e podendo comprometer, não raras
vezes, o mínimo existencial e a dignidade.
Considerando tal contexto, esta pesquisa visa a responder ao seguinte questionamento:
a atual proteção jurídica prevista aos refugiados ambientais consubstancia-se materialmente e
é capaz de assegurar o mínimo existencial? Parte-se da hipótese de que os refugiados, apesar
da legislação que os protege, nem sempre têm a garantia do mínimo existencial efetivada,
quando precisam, muitas vezes, recebem tratamento que afronta a sua dignidade e carecem de
uma eficaz proteção ante a vulnerabilidade a que ficam expostos.
Nesse desiderato, tem-se como objetivo geral demonstrar que a situação de
vulnerabilidade advinda de catástrofes ambientais – muitas delas decorrentes das mudanças
climáticas – requer ampla e efetiva proteção jurídica aos refugiados ambientais, assegurando-
lhes a fruição de direitos que promovam o seu bem-estar e que se coadunem com o respeito à
dignidade da pessoa humana e a promoção do mínimo existencial. Como objetivos específicos,
traçaram-se os seguintes: discorrer sobre as mudanças climáticas e algumas de suas
consequências, entre elas, o deslocamento e o refúgio ambiental; e apresentar os principais
diplomas legais que dão suporte à proteção dos refugiados ambientais.
A pesquisa, que é de caráter exploratório, tem trajetória metodológica amparada no
método dedutivo, com a análise da proteção jurídica à pessoa humana e, então, uma abordagem
particularizada das garantias aos refugiados, tendo como técnica a revisão bibliográfica na
legislação e na doutrina.
Destarte, o artigo apresenta, na primeira parte, algumas considerações sobre as
mudanças climáticas e o consequente advento de refugiados ambientais, distinguindo-os de
deslocados internos, abordando, na sequência, a proteção que o ordenamento jurídico destina
aos refugiados ambientais por meio de uma visão abrangente sobre os avanços legislativos. Por
fim, são apresentadas algumas considerações mais à guisa de reflexão do que com o intento de
encerrar a discussão atinente ao tema.
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Ao longo do tempo, a Terra tem sofrido várias alterações tanto naturais quanto
decorrentes da ação humana, sobrevivendo a mudanças climáticas advindas, muitas vezes [...]
de práticas habituais, irracionais, reincidentes e degradadoras do meio ambiente [...]”, que
comprometem o bem-estar, a segurança e a qualidade de vida das pessoas (BÜRING;
TONINELO, 2018, p. 59).
As mudanças climáticas estão relacionadas às variações do clima em termos globais e
regionais, implicando alterações de precipitação, temperatura, nebulosidade e fenômenos
climáticos, em geral, decorrentes de causas naturais ou antrópicas (STEIGLEDER, 2010).
Atribui-se esse fenômeno às emissões de gases de efeito estufa, as quais provêm da produção e
do consumo de energia pela indústria, pela agricultura, pelos meios de transporte, entre outros.
Desse modo, é possível dizer que, ao mesmo tempo que a Revolução Industrial representou um
avanço no que diz respeito a trazer melhorais à vida das pessoas, aumentou as emissões dos
gases de efeito estufa com a intensa utilização de combustíveis fósseis (BÜRING; TONINELO,
2018).
Desencadeou-se, assim, uma crise ambiental, que está relacionada à dificuldade tanto
de identificar quanto de resolver os problemas ecológicos que têm afetado o bem-estar humano.
Uma crise ambiental decorre de problemas ecológicos que não são resolvidos, “[...] de modo
que os membros da sociedade começam a perder a noção de pertencimento [...]” (SANTOS,
2020, p. 59). A tomada de consciência acerca dessa crise “[...] é deflagrada, principalmente, a
partir da constatação de que as condições tecnológicas, industriais e formas de organização e
gestões econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida” (LEITE; AYALA,
2014, p. 27).
Com as mudanças climáticas e a confirmação dos cenários que têm sido projetados,
será preciso “[...] um esforço mundial no sentido de dirimir as consequências dessas mudanças
sobre a vida das pessoas” (BLANK, 2015, p. 158). Entre tais consequências, destacam-se o
comprometimento da diversidade biológica da Terra e o advento de uma série de problemas à
saúde humana, incluindo a possibilidade de morte. Além disso, essas mudanças podem ser
responsáveis por processos de erosão e enchentes em zonas costeiras, extinção de espécies,
interferências na produtividade agrícola, entre tantos outros problemas capazes de afetar o
ecossistema e a manutenção da vida no próprio planeta. Assim, “[...] poucos fenômenos globais
e duradouros mostram-se tão ameaçadores à subsistência da vida no planeta quanto as
mudanças climáticas, oriundas do aquecimento global ocasionado, por sua vez, pelo efeito
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estufa” (CARVALHO, 2010, p. 43). O aquecimento global é, portanto, tema que se destaca, na
atualidade, no cenário político ambiental (FENSTERSEIFER, 2010).
O aquecimento global tem interferido na produção de alimentos, com a redução de
áreas agricultáveis em consequência, entre outros eventos, da intensificação de secas e
enchentes. Agravará, igualmente, o problema das pessoas que necessitarão se deslocar por
causas ambientais. Diante disso, é necessário que sejam sistematizados “[...] mecanismos
políticos e jurídicos capazes de garantir o amparo a essas pessoas, de modo a prover-lhes os
direitos fundamentais quando tiverem de abandonar seus lares, ainda que seus destinos sejam
outra região dentro de seus próprios países” (BLANK, 2015, p. 158).
Existem apontamentos científicos que comprovam ser provável que o efeito estufa
venha alterando o clima. Tal fenômeno é oriundo “[...] de um processo de isolamento térmico
do planeta em decorrência dos gases do efeito estufa (green house gases) que, concentrados na
atmosfera, impedem que os raios solares penetrem na atmosfera e que retornem ao espaço em
razão da formação deste bloqueio” (CARVALHO, 2010, p. 43-44).
Embora a existência do efeito estufa ainda seja debatida e gere controvérsias, verifica-
se uma preocupação nesse sentido, destacando-se vários documentos que reconhecem ser grave
e complexa a atual situação climática, a exemplo dos Protocolos de Cartagena, de Quioto e de
Montreal, a Convenção de Viena e a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre o Clima. Em
vista disso, em 1988, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) foi criado
com o intuito de possibilitar acesso a informações científicas sobre as mudanças climáticas e
seus impactos não apenas ambientais, mas também socioeconômicos (CARVALHO;
DAMACENA, 2012).
No Brasil, instituiu-se a Política Nacional de Mudanças Climáticas, por meio da Lei
nº 12.187/2009, da qual exsurge o compromisso nacional voluntário de promover ações de
mitigação das emissões de gases de efeito estufa, objetivando, conforme explicita o artigo 12,
reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas até 2020. O detalhamento dessas ações está
contemplado, por sua vez, no Decreto nº 7.390, de 2010 (CARVALHO; DAMACENA, 2012).
É fato que tem aumentado a ocorrência de desastres, muitos dos quais atribuídos às
mudanças climáticas. Esses eventos catastróficos, como inicialmente se salientou, têm forçado
pessoas a abandonarem o local onde viviam, buscando refúgio em outras terras, muitas vezes,
além das fronteiras do próprio país. Existe estimativa de que poderá haver 200 milhões de
pessoas em situação de refúgio até o ano de 2050 (RAMOS, 2011) e, de acordo com dados da
Organização das Nações Unidas, 50 milhões de pessoas já tiveram de abandonar o seu lar em
decorrência de desastres naturais ou mudanças climáticas. A previsão é de que o número de
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refugiados ambientais, em 2050, será de “[...] 250 milhões a 1 bilhão de pessoas [...]” (SOUZA;
DELPUPO, 2013, p. 146-148).
Neste ponto, cabe referir a diferença entre deslocados internos e refugiados ambientais.
Os primeiros são aqueles que se deslocam dentro do próprio país, ao passo que os refugiados
deixam o seu país e buscam refúgio em outro, não por questões políticas ou para terem acesso
a melhores condições de vida, mas em consequência das adversidades oriundas das catástrofes
ambientais (FRANCO FILHO, 2013). Para Serraglio (2014), todavia, essa distinção não existe,
pois considera que tanto os deslocados quanto os refugiados migram por causa de desastres
ambientais, quer seja dentro do próprio país, quer seja no âmbito internacional.
Deixando-se de adentrar em tais dissensos, a realidade é que, quando a pessoa está na
condição de refugiada, significa que perdeu as suas raízes, a sua residência, o seu território,
onde ocorrem as trocas materiais e espirituais, onde se dá o exercício da própria vida (SANTOS,
1999). Assim, ter de abandonar o local onde a pessoa vivia implica perdas das mais variadas
ordens, como os laços de amizade, as relações com a comunidade, a identidade com o lugar, as
tradições, entre outras adversidades (RAIOL, 2009). E, perder a comunidade representa, de
certa maneira, perder a dignidade, a qual está assegurada em vários ordenamentos jurídicos e,
no Brasil, de forma expressa, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III
(JESUS, 2009).
Nesse passo, insta salientar que “[...] a vulnerabilidade ambiental contribui para maior
exposição à violação de direitos humanos, especialmente do direito à vida”, além de violação
de direitos humanos econômicos, sociais, civis e políticos (CAVEDON; VIEIRA, 2011, p.
181), sendo necessário não olvidar que as pessoas mais pobres, em geral, são também as mais
vulneráveis às consequências das alterações climáticas e dos desastres ambientais. Acentua-se,
com isso, a situação de precariedade e de difícil acesso aos direitos sociais básicos,
comprometendo, portanto, a proteção da sua dignidade. Em face do incremento no número de
catástrofes ambientais, vislumbra-se, igualmente, a potencialização da vulnerabilidade dessas
pessoas, as quais ficarão privadas do mínimo existencial à sua sobrevivência
(FENSTERSEIFER, 2010).
Ressalta-se que não existe previsão expressa, na Constituição Federal de 1988, acerca
do mínimo existencial. Para que seja possível compreendê-lo, é necessário detectar os
implícitos da legislação e as bases que o sustentam. Em síntese, pode-se dizer que decorre do
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O núcleo do mínimo existencial diz respeito às
condições básicas para a existência humana e os elementos indispensáveis ao exercício da
dignidade, abrangendo uma existência digna em termos físicos, espirituais e intelectuais, com
P á g i n a | 69
Humanos que se pode buscar socorro para amparar os refugiados ambientais, pois tal
documento evidencia a proteção a que esses indivíduos têm direito.
Na trajetória evolutiva de proteção ao instituto do refúgio, frisa-se que, em 1950, como
consequência do grande número de refugiados da Segunda Guerra, foi criado o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR – e, em 28 de julho de 1951,
adveio a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Assim, aponta Mazzuoli (2014) que
os textos globais de proteção aos refugiados são a Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados, de 1951, e o seu Protocolo, de 1967.
Sob tais lentes, deve-se ter presente que a proteção internacional da pessoa humana
abarca três ramos convergentes do Direito Internacional: o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados. O
Direito Internacional dos Direitos Humanos visa a “[...] proteger os direitos de qualquer
cidadão, independentemente de sua raça, cor, sexo, língua, religião etc.” (MAZZUOLI, 2014,
p. 881). O Direito Internacional Humanitário objetiva proteger pessoas em tempos de conflitos;
já o Direito dos Refugiados é um ramo do Direito Internacional Público que visa à proteção
específica de pessoas que buscam refúgio em outros Estados em consequência de conflitos ou
situações de risco. É neste conceito que se incluem as “vítimas de situação de risco”, quais
sejam, os refugiados ambientais (SOUSA, 2016, p. 461).
É mister lembrar, neste contexto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
prevê que os seres humanos devem agir pautados na fraternidade em relação uns aos outros,
sem qualquer distinção relacionada a condição política, jurídica ou internacional do país ou
território a que pertença determinada pessoa, e daí decorre, por conseguinte, o dever de amparo
aos refugiados ambientais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Para Mendes e Brasil (2020, p. 69), “A solidariedade, assim como a fraternidade, traz
em seu âmago a preocupação para com o outro, ou seja, a solidariedade que impõe que uma
pessoa se preocupe com o outro e que cada um se preocupe com o todo”. Do mesmo modo, a
fraternidade “[...] traz a ideia de preocupação com o irmão, a união, exige uma responsabilidade
do indivíduo para com a sociedade” (MENDES; BRASIL, 2020, p. 69).
No que diz respeito ao Brasil, foi contemplado um diploma para a proteção dos
refugiados, a Lei nº 9.474, de 23 de julho de 1997, embora sem previsão de proteção específica
aos refugiados ambientais. Essa lei regulamentou o Estatuto dos Refugiados no País e
estabeleceu a sua aplicação, tratando da condição jurídica de refugiado, do ingresso no território
nacional e do processo para o pedido de refúgio. Segundo o seu teor, o Comitê Nacional para
os Refugiados (CONARE) é o órgão do Ministério da Justiça competente para reconhecer a
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situação de refugiado no País, bem como para decidir a cessação e determinar a perda da
condição de refugiado (BRASIL, 1997).
No ano de 2017, foi instituída, a Lei de Migração, Lei n° 13.445, prevendo a revogação
da Lei n° 6.815, de 1980 – Estatuto do Estrangeiro, a qual, até então, tratava da situação do
estrangeiro no País. De acordo com os preceitos da lei mais atual, a política migratória brasileira
deverá ser pautada pelos Direitos Humanos, pela não discriminação, pelo acesso igualitário,
pelo reconhecimento acadêmico e profissional, entre outros Princípios (BRASIL, 2017).
Essa lei explicita o repúdio e a prevenção da xenofobia, do racismo e de quaisquer
formas de discriminação, prevendo acesso igualitário do migrante a vários benefícios, serviços
e programas sociais, além de contemplar muitos direitos que já encontram guarida no Texto
Supremo de 1988. Conforme o teor do artigo 4º da Lei de Migração, in verbis, “Ao migrante é
garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (BRASIL, 2017).
Ademais, o artigo em comento prevê, em seu inciso XVI, o direito que tem o imigrante
de ser informado acerca das garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização
migratória. Também foram assegurados aos imigrantes direitos que anteriormente eram
exclusivos dos brasileiros, entre eles, constam a não criminalização da migração (art. 3º, III), o
acolhimento humanitário (art. 3º, VI), o direito à igualdade, à vida, à segurança e à propriedade
(art. 4º), direitos esses voltados ao amparo da dignidade de tais indivíduos (BRASIL, 2017).
Quanto aos direitos fundamentais que devem ser assegurados aos refugiados, como os
direitos à vida, à saúde, à propriedade, à educação, à moradia, entre outros, destaca Sarlet que
pode ser flexibilizada a ideia de que a titularidade desses direitos diz respeito tão somente aos
estrangeiros residentes no Brasil, pois ela deve ser “[...] sempre guiada pelos princípios da
dignidade da pessoa humana e da correlata noção de titularidade universal dos direitos humanos
e fundamentais” (SARLET, 2012, p. 306).
Em caso de ocorrência de desastres ambientais, a Lei de Migração brasileira prevê,
explicitamente, a hipótese de concessão de visto temporário ou quando houver violação de
Direitos Humanos. É essa a previsão do artigo 14, § 3º, da lei em tela, ao dispor acerca do visto
temporário que será “[...] concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação
[...] de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos
humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de
regulamento” (BRASIL, 2017). Nessa ótica, pontuam Sparemberger e Bühring (2010) que deve
ser assegurada uma série de direitos sociais às pessoas que precisam abandonar o local onde
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viviam em virtude de causas ambientais, como acesso a alimentos, água, habitação, assistência
médica e informação.
Os autores supramencionados salientam que lidar com catástrofes ambientais requer
também respeito à unidade familiar, para que membros da mesma família não sejam separados,
com possibilidade de reconstituição da família dispersada pelo desastre ambiental, assim como
é necessário ter acesso à educação e à formação; à subsistência pelo trabalho; ao realojamento
e à nacionalidade, priorizando-se a não discriminação (SPAREMBERGER; BÜHRING, 2010).
Esses são direitos a serem efetivamente garantidos e que devem compor o mínimo existencial,
que representa “[...] um patamar mínimo para a existência humana, consubstanciado no seu
conteúdo as condições materiais mínimas para a concretização do princípio-matriz de todo o
sistema jurídico, que é a dignidade da pessoa humana” (FENSTERSEIFER, 2008, p. 269).
Na concepção de Rissi (2017, p. 107), o “[...] enraizamento do mínimo existencial não
ocorre somente a partir da dignidade da pessoa humana, mas também de outros direitos, e de
maneira ponderada, nos princípios da cidadania, soberania e outros”. Ademais, o autor assevera
que
Sob tal ótica, registra-se que a dignidade compreende “[...] um valor espiritual e moral
inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais
pessoas [...]” (MORAES, 2014, p. 18). A dignidade do indivíduo é respeitada quando ele é “[...]
tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar
de igualdade com os seus semelhantes” (BRANCO, 2014, p. 278).
Conforme realça Sarlet (2012), todos são iguais em dignidade, reconhecidos como
pessoas e integrantes da comunidade humana. Assim, entende-se que, acima de tudo, a
dignidade dos refugiados ambientais deve ser respeitada, não sendo passível de sofrer qualquer
tipo de afronta, pois constitui direito fundamental a partir do qual decorrem outros direitos.
É relevante ainda trazer a lume que o Brasil, sob o manto dos preceitos constitucionais,
rege-se, em suas relações internacionais, pelo Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos
e – como antes referido – pelo repúdio ao terrorismo e ao racismo, além de prever a concessão
de asilo político, conforme está estampado no artigo 4°, incisos II, VIII e X, da Carta Magna de
P á g i n a | 73
1988, que assim estabelece: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios: [...] II - prevalência dos direitos humanos; [...] VIII -
repúdio ao terrorismo e ao racismo; [...] X - concessão de asilo político. [...]” (BRASIL, 1988).
Em síntese, existe ampla legislação que pode ser suscitada quanto se trata de proteger
os refugiados ambientais, a qual abrange instrumentos gerais de Direitos Humanos. Mesmo
assim, Santos (2015) entende que prevalece a necessidade de uma proteção especial,
fundamentada no Princípio da Dignidade Humana, que, como reiterado diversas vezes ao longo
deste texto, constitui o principal fundamento para a proteção dessas pessoas em condição de
extrema vulnerabilidade, com todas as limitações que a situação impõe, devendo ser
consideradas e atendidas as suas necessidades em uma perspectiva de solidariedade e de
fraternidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nestes singelos apontamentos aqui apresentados, verifica-se que crescem as
preocupações em torno das mudanças climáticas e das consequentes catástrofes ambientais que
elas poderão causar. Ao redor do mundo, já são notórios os sinais de mudanças no clima, as
quais, em geral, são atribuídas ao efeito estufa, embora haja divergentes opiniões acerca do
tema. Independentemente desses dissensos, o fato é que os desastres ambientais têm feito parte
da realidade de muitas regiões, impulsionando os moradores dos locais atingidos a um
deslocamento que ora se dá dentro do próprio território em que viviam, ora impõe atravessar as
fronteiras do próprio país e ter de superar obstáculos, entre eles, a perda das raízes e do que elas
representam, bem como a hostilidade dos governantes e da própria população.
Essa situação traz uma acentuada vulnerabilidade a esses indivíduos, que, embora
tenham proteção garantida no que tange à sua dignidade, deparam-se com várias violações dos
seus direitos fundamentais, ou seja, além de lhes ser cerceado o direito à moradia, enfrentam
duras mazelas no que tange à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança, à integridade física,
à liberdade, entre tantos outros problemas.
Em termos mundiais, não são escassos os diplomas que podem ser invocados quando
se trata de proteger os refugiados ambientais, abarcando várias áreas do Direito. Nesse sentido,
salientam-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional dos
Refugiados, o Direito Internacional do Meio Ambiente, entre outros. Entretanto, nem sempre
esse quadro normativo é capaz de assegurar a eficácia do conjunto de direitos que compõem o
mínimo existencial, isso sem falar da situação em que os refugiados ficam à mercê da
P á g i n a | 74
assistência humanitária, como se esta fosse um favor e não existissem direitos garantidos a esses
indivíduos. Desse modo, além da dor, do sofrimento e da falta de expectativas decorrentes do
deslocamento compulsório e da situação de refúgio, tais pessoas nem sempre encontram
mecanismos aos quais possam se apegar para suscitar os seus direitos, estabelecendo-se um
quadro de indignidade e de falta de atendimento ao mínimo existencial.
Em face dessas constatações, resta evidente que um longo percurso ainda há de ser
trilhado em prol de garantir o mínimo existencial e todas as implicações que dele advêm aos
refugiados ambientais. Não basta, para isso, um conjunto de leis, também não são suficientes
discussões teóricas, mas urge, sim, uma preocupação mais engajada atinente ao efetivo amparo
de todas as pessoas refugiadas e vulneráveis, uma vez que é direito seu terem efetivadas as
garantias previstas nos mais diversos diplomas legais e que têm como bandeira, acima de tudo,
a proteção da dignidade da pessoa humana.
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P á g i n a | 79
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ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 5º Semestre Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail:
ednnilza@hotmail.com
P á g i n a | 82
2
“Partes interessadas” em português.
P á g i n a | 83
Uma crise no âmbito empresarial pode significar desde deteriorações das condições
econômicas de uma sociedade até uma completa incapacidade financeira de dar prosseguimento
a empresa, por isso possuir mecanismos para o combate de crises é do interesse daqueles que
tutelam e se beneficiam do desenvolvimento bem sucedido de empresas.
Esse trabalho é um estudo exploratório e descritivo que se fundamenta em uma
abordagem qualitativa, apoiada por pesquisas bibliográficas e documentais. Para o
desenvolvimento da pesquisa utilizou-se principalmente as obras de Frazzio Jr. (2010), Pimenta
(2017), Tomazette (2017), Coelho (2015) e Negrão (2020).
Essa pesquisa justifica-se em razão da importância da empresa para o desenvolvimento
socioeconômico nacional, nesse contexto, é necessária a busca por soluções adequadas e
eficientes para as crises que podem comprometer a atividade empresária. Então, visa-se
demonstrar a relevância e adequação das soluções de mercado como instrumento prioritário de
resposta às crises empresariais.
Sendo assim, o objetivo geral deste artigo é estudar as soluções de mercado como
método prioritário de superação das crises empresariais, para tal deve-se identificar os
principais tipos de crise no ambiente empresarial, explorar o princípio da função social da
empresa e sua conservação, distinguir os tipos de solução para as crises e analisar em específico
as soluções de mercado.
.
2 A EMPRESA EM CRISE
3
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 04 de dez. 2020.
P á g i n a | 84
Na maioria das vezes, as empresas já são portadoras congênitas das sementes das
moléstias de que padecerão, como se em seu código genético já estivessem inscritas
suas deficiências. A escolha do tipo societário inadequado, a estruturação
administrativa insuficiente, a estimação imprópria do capital social e a obsolescência
do objeto social eleito são alguns exemplos de vícios de origem. Em outros casos, os
males são adquiridos, advêm de causas exógenas, são supervenientes. É o caso das
restrições de crédito bancário, de prioridades adversas resultantes da política
econômica nacional, elevação da taxa de juros, crise de abastecimento etc. (FAZZIO
JR., 2010, p. 5).
Entre os fatores externos, também podem ser citados: crises políticas, má conservação
de estradas de acesso à localidade em que se situa o estabelecimento empresarial, catástrofes
climáticas ou ecológicas na região de produção ou de fornecimento de matéria à transformação
ou circulação da mercadoria, crises internacionais, guerras, revoluções e atos de terrorismo. Já
os fatores internos, podem ser visualizados em outras situações, como nos casos de má gestão
e de enfermidade do empresário ou de pessoa de sua família (NEGRÃO, 2020a).
Sobre as crises, Tomazette (2017, p.38, V. 3) infere que:
Existem 5 (cinco) espécies principais de crises pelas quais uma empresa pode passar,
são elas: crise de rigidez, crise de eficiência, crise econômica, crise financeira e crise
patrimonial. (TOMAZETTE, 2017).
A crise de rigidez ocorre quando a atividade desenvolvida não se adapta ao mercado
consumidor e as evoluções dos produtos e serviços oferecidos. Ou seja, existe uma
inflexibilidade quanto a mudanças, o que pode acarretar na obsolescência4 dos produtos ou
serviços oferecidos pela sociedade. Em um primeiro momento a crise de rigidez atinge somente
os interesses do empresário, mas podem ocorrer desdobramentos preocupantes se não
solucionada (TOMAZETTE, 2017).
4
Ao falar-se em obsolescência, refere-se ao processo pelo qual um produto ou serviço torna-se desatualizado e
perde a utilidade devido ao surgimento de novas tecnologias ou métodos.
P á g i n a | 85
Dentre as causas internas dessa crise está a escassa capacidade de inovação, a qual
impede a adequação da produção às expectativas dos clientes. Além disso, ela pode
advir de problemas nas relações com terceiros clientes, fornecedores, instituições de
crédito, o que pode atrapalhar o fluxo de entrada e saída de mercadorias.
Quando se trata de uma crise econômica, fala-se de uma “retração considerável nos
negócios desenvolvidos pela sociedade empresária” (COELHO, 2015, p. 241). Elas têm suas
origens em fatores internos e externos, que são capazes de alterar a capacidade de gerar lucro
da empresa e, portanto, podem inviabilizar a continuação dos negócios (NEGRÃO, 2020a).
A crise econômica se configura quando a atividade tem rendimentos menores que seus
custos, sendo assim, atuando no prejuízo. Em um primeiro momento essa crise só afeta os
interesses dos sócios e empresários, mas ela pode evoluir de tal maneira a afetar interesses de
terceiros, por tanto, o mercado e o estado se preocupam com seus desdobramentos e apresentam
soluções (TOMAZZETE, 2017).
Avançando para a crise financeira, “revela-se quando a sociedade empresária não tem
caixa para honrar seus compromissos” (COELHO, 2015, p. 241). Nota-se que nesse caso os
credores e terceiros que fazem parte de contratos empresarias tem seus interesses afetados, ao
passo em que a sociedade já não detém mais condições de efetuar pagamentos regulares e quitar
débitos. Essa é a crise mais ameaçadora para terceiros, portanto, atrai o interesse tanto do
Estado quando do mercado (TOMAZETTE, 2017).
Sobre empresas em crises financeiras e as possíveis causas dessa situação, Negrão
(2020a, p. 163, V. 3) leciona que:
Acerca das crises econômicas e financeiras, Fazzio Jr. (2010) pondera que as
diferenças entre elas são sutis e que em muitos casos essas crises manifestam-se em conjunto.
Destacando que há linhas de compreensão que não vislumbram diferenças entre as duas noções,
P á g i n a | 86
sendo possível compreender de maneira global apenas uma espécie: a crise econômico-
financeira, cujos efeitos na companhia seriam o descumprimento de seus encargos e a
dificuldade de manter seus pagamentos em dia.
Por sua vez, a crise patrimonial refere-se à insolvência da empresa, situação em que
os bens da empresa, seu patrimônio, não são suficientes para arcar com as dívidas do seu passivo
(COELHO, 2015). Ainda sobre a crise patrimonial, infere-se que ela pode ser apenas passageira
e decorrente de investimentos expressivos realizados pela sociedade, nesse sentido, observa-se
que:
Além disso, a função social da empresa impõe que a atividade empresária seja
exercida de modo a respeitar e não prejudicar os diversos interesses de terceiros e da
coletividade que estão organizados em torno da empresa. Por exemplo, notam-se os interesses
dos empregados, do Fisco e da comunidade. (PIMENTA, 2017).
A função social da empresa tutela o desenvolvimento social e nacional e, realiza a
existência da dignidade da pessoa humana e da justiça social. Ela relaciona-se diretamente com
a importância da empresa no âmbito coletivo, já que esse princípio estimula a geração de
empregos, circulação de riquezas, valorização do trabalho, redução de desigualdades sociais e
tutela do interesse de terceiros que não as partes do contrato ou ato institucional societário.
A atividade empresarial é importante, pois, não possui limites singulares, pelo
contrário, ela alcança uma ampla dimensão socioeconômica e possui grande repercussão social.
A empresa mostra-se como uma unidade econômica que interage no mercado, distribui bens e
serviços e gera empregos, consequentemente, o seu fim gera sequelas no mercado e na
coletividade. (FAZZIO JR., 2010).
Já o princípio da conservação da empresa, existe, pois, reconhece-se que é mais
benéfico para a coletividade que empresas viáveis continuem em funcionamento, ao passo que
a continuidade da atividade empresária mantém também os empregos gerados e a circulação de
riquezas. Nesse contexto, a empresa continua a desenvolver-se e a realizar a sua função social,
fato que estimula o desenvolvimento socioeconômico e protege os interesses da coletividade
(NEGRÃO, 2020b).
Ademais, o princípio da conservação da empresa determina que a continuidade da
atividade é mais importante que o destino do empresário ou da sociedade empresária e seus
sócios, já que “A separação entre a sorte da empresa e a de seus titulares apresenta-se, às vezes,
como o caminho mais proveitoso no sentido de uma solução justa” (FAZZIO JR., 2010, p. 21).
Sendo assim, pode-se inferir que a função social e a conservação da empresa são
princípios que dão destaque a relevância social da empresa, e essa relevância, não só social
como também econômica, demonstra a necessidade de soluções viáveis e eficazes – que visam
a recuperação da empresa – para superação de crises nesse âmbito. Findado esse tópico deve-
se prosseguir com a análise dos tipos de solução disponíveis para a empresa em crise.
[...] garantir não apenas (a) os direitos e interesses do devedor e (b) os direitos e
interesses dos credores, mas também, quiçá sobretudo, (c) os superiores direitos e
interesses da empresa, dos seus empregados e da comunidade em que ela atua, pois as
dificuldades econômicas, financeira, técnicas, tecnológicas e gerenciais da empresa
não preocupam somente ao devedor e a seus credores, porém por igual ao Poder
Público e à coletividade, sendo certo que , além e acima do interesse privado de
composição dos conflitos entre devedor e seus credores, há o interesse público e social
P á g i n a | 89
5
BRASIL. Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 04 de dez. 2020.
P á g i n a | 90
6
Ibid
7
Ibid
P á g i n a | 91
de contornar uma crise empresarial. No próximo tópico será abordada a relevância da utilização
preferencial das soluções de mercado.
Trespasse é um termo doutrinário para o negócio jurídico oneroso que ocorre quando
há transferência, alienação ou cessão de estabelecimento mercantil (NEGRÃO, 2020c). Para a
compreensão do trespasse é necessário, a priori, relatar que o estabelecimento empresarial é
um complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
empresária8.
Sabe-se que para exercer a empresa o empresário precisa de diversos bens e eles podem
ser tanto móveis quanto imóveis e também materiais e imateriais, e, é esse conjunto de bens
necessários para o exercício da empresa que forma o estabelecimento. A doutrina majoritária
considera que o estabelecimento empresarial é um bem móvel, porém, ele pode ser formado
também por bens imóveis (NEGRÃO, 2020c).
8
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 04 de dez. 2020.
P á g i n a | 93
Por ser possível que haja um tratamento unitário para o conjunto de bens que forma o
estabelecimento, também é possível que o conjunto seja objeto de negócios jurídicos, desde que
estes sejam compatíveis com sua natureza (TOMAZETTE, 2018).
Embora o estabelecimento empresarial não compreenda as relações obrigacionais do
seu titular, o legislador preocupou-se com os efeitos obrigacionais decorrentes das negociações
que envolvam o estabelecimento e regulou essa questão em relação ao trespasse no Código
Civil (CRUZ, 2019).
Ao falar-se especificamente do trespasse, entende-se que a transferência, alienação ou
cessão de estabelecimento mercantil inclui todo o conjunto bens que o forma, salvo se os
contratantes estipularem de forma diversa no contrato de trespasse (NEGRÃO, 2020c). Nesse
negócio jurídico, o estabelecimento empresarial – que não pode ser confundido com a figura da
sociedade empresária ou da atividade exercida – deixa de integrar o patrimônio do alienante e
passa para o patrimônio do adquirente. (COELHO, 2012).
O legislador, tutelando os interesses de pessoas estranhas ao negócio, estabeleceu que
para que a transferência do estabelecimento tenha eficácia perante terceiros é necessário que o
contrato de trespasse seja registrado na Junta Comercial e que após disso ocorra sua publicação
na imprensa oficial (CRUZ, 2019).
Já que com o trespasse há uma alteração do titular do estabelecimento, há também um
grande interesse por parte dos credores na execução desse negócio, pois boa parte do patrimônio
do devedor pode estar sendo transferido para outra pessoa. (TOMAZETTE, 2018). Percebe-se
que o estabelecimento é garantia de credores, devido ao fato de faz parte do patrimônio do
empresário. (COLEHO, 2012).
Cabe ainda um destaque à seguinte previsão legal: na hipótese do alienante não possuir
bens suficientes para solver seu passivo após o trespasse este só será eficaz se houver o
pagamento de todos os credores ou o consentimento destes9. O propósito dessa previsão legal
também é salvaguardar o direito de terceiros (NEGRÃO, 2020c).
Destaca-se que os contratos de trespasse e de alienação de controle (que serão
explorados no próximo tópico) guardam certas similaridades quanto aos efeitos econômicos
gerados, já que eles são meios de transferência da empresa, porém eles são institutos jurídicos
distintos (COELHO, 2012).
O trespasse funciona como solução de mercado para as crises empresariais na medida
em que as causas destas podem ser combatidas com os efeitos desse negócio jurídico. Nota-se
9
Ibid
P á g i n a | 94
que com a transferência do estabelecimento é possível preservar a atividade, caso a fonte das
dificuldades sejam questões como uma má administração dos recursos disponíveis, conflito de
interesses internos, baixa capacidade de inovação dos diretores ou problemas pessoais de
sócios.
Por exemplo, na crise patrimonial, a queda das vendas pode acarretar falta de liquidez
e, consequentemente, levar a insolvência. (COELHO, 2015). A queda das vendas pode ser
causada por uma falta de competitividade do produto, resultado da má gerência e falta de
inovação ou de uma abordagem de marketing ineficiente.
Quando os meios de produção são transferidos para novos empreendedores, é possível
observa-se que persiste a geração de empregos e ocorre a possibilidade de inovação e mudanças
nos rumos da sociedade. Nesse caso, o adquirente de um estabelecimento comercial pode
escolher exercer a atividade de modo a investir em novas tecnologias, reformar prédios e locais
de atendimento aos consumidores e adotar estratégias de marketing eficientes para o público
alvo. E esse cenário possibilitaria o enfrentamento de crises como as patrimoniais citadas no
parágrafo anterior.
Então, é possível inferir que o trespasse de estabelecimento apresenta-se como solução
para crises, pois o adquirente do estabelecimento, que percebeu na empresa em crise uma opção
viável de investimento, é capaz de realizar novos investimentos na atividade e pode ter novos
métodos de administração e condução da empresa. Então, o trespasse possibilita a manutenção
da atividade empresária e a continuidade da sua função social. Observa-se, também, que com a
execução correta desse negócio jurídico, há a possibilita do pagamento dos credores do
alienante.
Nessas condições, o trespasse reequilibra as forças da ordem econômica e preserva a
empresa e sua função social, mostrando-se uma solução viável para crises empresariais. Em
seguida será analisado o negócio de alienação de controle, que apesar de gerar resultados
semelhantes é operado de forma distinta e específica.
A alienação de controle é descrita pela Lei 6.404 de 1976, Lei das sociedades por
ações, como a operação de transferência de ações, outros valores mobiliários ou direitos sobre
P á g i n a | 95
10
BRASIL. Lei n. 6.404 de 15 de dezembro de 1976. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404compilada.htm. Acesso em: 04 de dezembro de 2020.
11
As sociedades Anônimas são tipos societários com as seguintes características básicas: são sociedades de
capitais; são sempre empresárias, independente do objeto; o capital social é dividido em ações; e a responsabilidade
dos acionistas é limitada ao preço de emissão das ações subscritas. (BORBA, 2012).
12
Segundo o art. 2º da Lei n. 6.385/76, os valores mobiliários são títulos ou contratos de investimento coletivo,
anunciados publicamente, que geram direito de participação, de parceria ou de remuneração, são exemplos: as
ações e debêntures.
P á g i n a | 96
contratos como os de franquia, que são firmados entre a sociedade e terceiros e possuem
capacidade de reduzir significativamente o âmbito de atuação da companhia. (BERTOLDI,
2003/2004).
Quando se fala em alienação de controle na SA fechada, a forma é livre, deve-se apenas
seguir as regras comuns de transferência de ações caso não existam cláusulas especiais no
estatuto social. Porém, quando se fala de SA aberta, a alienação de controle é submetida a regras
específicas, algumas delas presentes na Lei 6.404/1976 e outras em normas da CVM
(MAMEDE, 2018).
Nota-se que companhias abertas se sujeitam a normas mais rígidas, a constante
fiscalização da CVM e a publicidade mais acentuada (BORBA, 2012). Isso ocorre devido a
fatores como a grande envergadura econômica desses tipos societários e aos diversos interesses
públicos e privados relacionados aos mesmos.
Ademais, a alienação de controle em sociedades abertas provoca um grande impacto
no Mercado de Valores Mobiliários (MAMEDE, 2018). Destaca-se também que esse negócio
jurídico afeta interesses internos e externos à sociedade. Os primeiros podem ser divididos em
dois: os interesses dos acionistas e os dos trabalhadores da companhia, que se beneficiam do
funcionamento “saudável” da atividade. Já quanto aos interesses externos, nota-se que há um
interesse público geral na manutenção de um livre mercado de aquisição de companhias.
(SALOMÃO FILHO, 2019).
Portanto, percebe-se que a alienação de controle é uma solução de mercado.
Exemplificando, ao falar-se em sociedade abertas, é notório que a imagem da companhia e dos
seus controladores afeta o volume de negócios. Por exemplo, a imagem pública negativa de um
controlador poder influenciar o modo como a sociedade controlada é percebida. Então, a
imagem de confiabilidade e estabilidade que a sociedade empresária deveria apresentar no
MVM pode ser comprometida. Nessas situações, a alienação do controle pode possibilitar que
o público volte a confiar na sociedade e nas suas possibilidades de lucro, de maneira que a
companhia volte a ser alvo de investimentos e possa utilizar o capital aplicado pelo público para
superar dificuldades.
Como foi apontado no tópico 2 (dois), a crise financeira configura-se com a falta de
caixa para suprir as obrigações assumidas (COELHO, 2015), então, a entrada de investimentos
advindos do MVM devido à mudança do controlador da sociedade mostra-se uma maneira
viável de aumentar o caixa disponível para o cumprimento das obrigações assumidas.
Sendo assim, a alienação de controle pode ser vista como instrumento adequado para
superação de crises e preservação da empresa e da sua função social. A pesquisa aponta que
P á g i n a | 97
problemas que podem ocorrer na SA, como a falta de confiança do público, podem ser
contornados de maneira eficiente e viável com a utilização dessa solução de mercado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito desse estudo é analisar as crises empresariais, estudar as soluções de
mercado e apontar seus benefícios para a continuidade da empresa e proteção da sua função
social.
A realização do estudo permitiu concluir que as soluções de mercado são um
importante meio de superação das crises empresariais, elas possibilitam o contorno de
dificuldades econômicas, patrimoniais e financeiras através de mecanismos naturais da ordem
econômica. Desse modo, preserva-se a empresa e possibilita-se sua continuação de maneira
“saudável” e benéfica para a coletividade.
Destaca-se que o trabalho não nega a importância da recuperação judicial e
extrajudicial de empresas. Esses instrumentos são resultado de uma importante evolução do
direito e são necessários no contexto do princípio da conservação da empresa e da sua função
social.
No entanto, observa-se que a intervenção estatal deve ser utilizada em última instância,
quando tratar-se de empresas viáveis e relevantes social e economicamente que não
encontraram solução no mercado para suas crises.
Dessa forma, pode-se evitar sobrecarregar do aparelho estatal; possibilitar o
funcionamento saudável das estruturas do mercado e da economia brasileira e resguardar a
socialização do ônus da recuperação judicial apenas para casos necessários e viáveis.
Sendo assim, a pesquisa alcançou o objetivo proposto e confirmou a hipótese de
trabalho, que as soluções de mercado são um instrumento ideal para solução adequada de crises
empresariais.
REFERÊNCIAS
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
595 p.
P á g i n a | 98
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito empresarial. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. V.
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______. Curso de direito comercial: direito de empresa. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. V.
1.
CRUZ, André Santa. Direito empresarial. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 1024 p.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas. 5. ed. São Paulo:
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LOBO, Jorge. Direito da crise econômica da empresa. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.
1, n. 3. p. 156-197, trim. 1998. Disponível em:
https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista03/revista03_156.pdf. Acesso
em: 03 set. 2020.
MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. 10. ed. São Paulo:
Atlas, 2018. 552 p.
______. Curso de direito comercial e de empresa: teoria geral da empresa e direito societário.
16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020c. V. 1. 568 p.
PIMENTA, Eduardo Goulart. Direito societário. [Recurso Online]. Porto Alegre: Editora Fi,
2017. 631 p. Disponível em: https://www.editorafi.org/073eduardo.
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário: eficácia e sustentabilidade. 5. ed., São
Paulo: Saraiva Educação, 2019. 476 p.
P á g i n a | 99
______. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário. 9. ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2018. V. 1. 718 p.
P á g i n a | 100
ABSTRACT
This paper aims to study the enterprise in crisis, explore the principle
of social function and analyze Market solutions for the crisis. This
research also aimed to demonstrate the importance of market solutions.
For the realization of this study, the exploratory and descriptive
methods were used, based on a qualitative approach, and supported by
bibliographical and documentary researches. As a main result, it was
noticed that Market solutions are an important way of overcoming a
crisis in the enterprise. In conclusion, it was observed that the use of
Market solutions as an instrument to respond to business crisis can be
linked to avoiding the overload on the judiciary system; enabling the
healthy functioning of Market structures and Brazil's economy; and the
possibility of avoiding the social onus of paying for a judicial recovery.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Semi-Árido. E-mail:
gabriel.maia@outlook.com.br
2
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Semi-Árido. E-mail:
lucaspatricius@gmail.com
P á g i n a | 102
Essa nova categoria de profissionais, no entanto, passou a ser eximida de muitos dos
seus direitos principalmente pelo fato de não existirem dispositivos legais que regulem tais
atividades. Somando-se a isso, os atuais meios pelos quais as empresas de serviço por aplicativo
oferecem essas inovações são, por vezes, fatores determinantes para a crescente insalubridade
e precarização das atividades laborais de muitos trabalhadores que atuam como profissionais de
entrega, pois, além de não existir vínculo empregatício nesses casos, os riscos e os custos das
atividades ficam a cargo exclusivo do trabalhador. As plataformas, nesse sentido, estabelecem
baixas taxas de remuneração e não gerem os aplicativos atentos à necessidade de se garantir a
segurança e a proteção dos entregadores, o que aumenta de forma direta a precarização das
atividades desses profissionais. Diante do intenso desenvolvimento tecnológico aplicado às
relações trabalhistas, o Direito parece não ter se adaptado ao novo cenário, e com isso, a
insegurança jurídica passou a imperar e tornar obscuro o futuro de muitos trabalhadores.
A relação entre profissionais de entrega e os aplicativos de serviços é o principal objeto
de estudo na presente análise, especialmente no que tange ao reconhecimento do vínculo
empregatício. Diante desse impasse, muito entregadores tem acionado a Justiça do Trabalho
para tentar conseguir um possível vínculo de emprego com esses aplicativos no intuito de
adquirir direitos expressos na Constituição Federal e na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT). Dessa maneira, a pesquisa parte do questionamento relativo à necessidade ou não de
uma regulamentação própria dos profissionais de entrega e quais são os posicionamentos
adotados pela Justiça do Trabalho e pelo Congresso Nacional sobre a questão. Ademais, o
objetivo deste artigo é, além de apontar quais direitos devem ser assegurados aos profissionais
de entrega, demonstrar a vulnerabilidade da categoria dentro do arcabouço jurídico brasileiro.
Para tanto, a investigação ora empreendida foi feita a partir de uma metodologia de
pesquisa bibliográfica e documental, sustentada na análise de estudos recentes, bem como, dos
posicionamentos da doutrina e da redação de Projetos de Lei em tramitação no Congresso
Nacional. Ademais, foi realizada uma análise de decisões da Justiça do Trabalho, pretendendo-
se compreender as fundamentações utilizadas. Nesse sentido, o estudo está estruturado em três
etapas, abordando-se, na primeira, a categoria dos profissionais de entrega e o processo de
“uberização”. Na segunda, será discutido, brevemente, sobre o reconhecimento do vínculo
empregatício e o posicionamento dos tribunais sobre a relação entre os profissionais de entrega
e aplicativos de serviços. E, por fim, será demonstrado se há ou não a necessidade de
regulamentação específica para essa categoria de profissionais e a atuação do Poder Legislativo
sobre a questão.
P á g i n a | 103
Em diversos países, os primeiros anos do século XXI foram marcados pela forte
tendência de expansão de novos contingentes de trabalhadores, principalmente no setor de
serviços, indústria e agroindústria. Em contraste com a tese amplamente disseminada na década
de 1980, que diz respeito à retração da classe trabalhadora por força da estrutura informacional-
digital, que substituiria a mão de obra humana por maquinários, o que se presencia atualmente
é o advento do novo proletariado da era digital, cujos trabalhos são impulsionados pelas
tecnologias da informação (TICs), introduzindo uma nova divisão internacional do trabalho
inclinada à precarização e informalidade (ANTUNES, 2018).
A partir da década de 1970, a indústria passou, de modo gradativo, a incorporar a
utilização de elementos da microeletrônica e das conexões em rede ao sistema produtivo, e com
isso, importantes alterações ocorreram na composição orgânica do capital de muitas empresas.
A crescente inviabilização da força de trabalho empregada e o simultâneo investimento em
tecnologias e maquinários passaram a ser uma realidade, resultando em ganhos decorrentes das
inovações tecnológicas, mas também no rebaixamento dos custos vinculados ao trabalho
humano, além de estimular processos de enfraquecimento de legislações trabalhistas e o
aumento das terceirizações. O crescente uso de computadores e internet ensejou, ainda, a
construção de um ambiente de plataformas digitais em que as organizações produtivas passaram
a idealizar um ambiente competitivo voltado para um grande contingente populacional, dando
forma a um meio que liga prestadores de serviços a consumidores (FRANCO; FERRAZ, 2019).
Seja por motivação lógica de dar utilidade às coisas, ou mesmo pela atratividade das
novas tecnologias, o atual pacto do denominado “ubercapitalismo” consegue cada vez mais
estabilidade na sociedade a partir de um apelo aos desejos dos trabalhadores por melhores
condições laborais. A materialização desse quadro é a chamada economia de compartilhamento
(sharing economy), também conhecida como “economia de biscates”, que, na prática, é uma
economia baseada em serviços sob demanda que foi iniciada para monetizar serviços que antes
eram privados, e o Brasil é um dos grandes referenciais dessa economia no ocidente. Nesse
ponto, a análise da situação deve ser prontamente voltada para a discussão sobre novos meios
que potencializam a exploração online, pois apesar de que esse capitalismo de plataforma
indique, mesmo aparentemente, uma série de benefícios aos consumidores, proprietários e
investidores, o valor agregado para os trabalhadores vulneráveis é incerto (ABRAMOVAY,
2017; SCHOLZ, 2016).
P á g i n a | 104
para a relação jurídica entre empregador e empregado ser concretizada, não basta apenas
atender os requisitos individuais, e sim aos elementos que configuram a existência do vínculo
empregatício.
Conforme Maurício Godinho Delgado (2019), diante da relevância sociojurídica
desses requisitos, eles são captados pelo Direito, que lhes atribui efeitos compatíveis, fazendo
com que passem a ser considerados elementos fático-jurídicos. De acordo com o doutrinador,
a prestação de serviços que o Direito do Trabalho leva em consideração é aquela celebrada por
uma pessoa natural e que tenha efetivo caráter de infungibilidade (em relação ao trabalhador),
e intuitu personae, no que diz respeito ao prestador de serviços. Além disso, é necessário que o
trabalho prestado mantenha um caráter de permanência (continuidade) que seja estabelecido
via contrato bilateral, sinalagmático e oneroso, exatamente por envolver diversas prestações e
contraprestações recíprocas e economicamente mensuráveis. Por fim, o autor também atribui
como requisito para a configuração de vínculo empregatício o elemento da subordinação, pelo
qual o empregado se compromete em realizar os serviços nos moldes do poder exercido pela
direção empresarial.
Em razão do longo caminho já percorrido pela legislação trabalhista, uma parcela da
sociedade e juristas passaram a acreditar na necessidade de mudanças que incidissem sobre o
ordenamento jurídico, mais especificamente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Nesse panorama, o texto do Projeto de Lei 6.787/2016, propôs, dentre outras modificações, a
prevalência do acordo sobre a lei, o fim da contribuição sindical obrigatória e regras para
trabalho intermitente. Superado o Projeto, foi publicada a Lei nº 13.467/2017, de 13 de julho
de 2017, a qual passou a ter vigência no dia 11 de novembro do ano seguinte, e trazendo consigo
significativas transformações na legislação trabalhista até então vigente e em diversos direitos
laborais. Entretanto, em razão das mudanças, muita insegurança jurídica permaneceu
remanescente desde a vigência da lei, principalmente em razão da forma que o Judiciário
Trabalhista recepciona e aplica tais normas (MARQUES, 2020).
Apesar da ascensão das plataformas tecnológicas como intermediadoras de serviços -
que contribuiu para o surgimento de uma nova classe de trabalhadores – o arcabouço jurídico
brasileiro não abrange de forma efetiva todas as modalidades empregatícias. Por isso, tal
cenário passou a contribuir para uma morosidade do judiciário relacionada especialmente às
diversas interpretações sobre a questão (MOURA, 2019).
A situação dos profissionais de entrega é, portanto, obscura dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, tendo em vista que os tribunais proferem sentenças ora reconhecendo o
vínculo empregatício, ora em contrário, uma vez que a interpretação dos requisitos para a
P á g i n a | 107
caracterização do vínculo é, ainda, bastante diversa. Nesse sentido, a decisão proferida pela 14ª
Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região reconheceu o vínculo empregatício entre
um motoboy e o aplicativo Rappi, startup de entrega sob demanda, reformando a sentença
proferida em 1º grau, em que a magistrada Gessica Osorica Grecchi Amandio julgou
improcedente o reconhecimento do vínculo. Assim, o referido órgão colegiado entendeu que:
Já em decisão proferida pela 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, a magistrada Shirley
Escobar julgou improcedente a Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público do
Trabalho, que requeria o reconhecimento do vínculo empregatício entre os entregadores e o
aplicativo Ifood, como também com o aplicativo Rappi. O Ministério Público alegou que as
P á g i n a | 109
Nessa linha, não foram vislumbradas pela magistrada quaisquer ilegalidades existentes
no modelo de negócio analisado, especialmente com o reconhecimento de que a prestação de
serviços feita pelos profissionais de entrega se encaixaria, em regra, nos parâmetros definidos
pela legislação que caracterizam o trabalho autônomo. Assim, foram julgados improcedentes
os pedidos de declaração de vínculo de emprego entre entregadores e o aplicativo Rappi.
Sob outra perspectiva se deu o entendimento do desembargador Sergio Pinto Martins,
plantonista do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2), quando decidiu pela suspensão da
decisão proferida pela Juíza Lávia Lacerda Menendez, que obrigava a plataforma de entregas
Loggi a reconhecer vínculo empregatício de seus profissionais de entrega pelo regime da CLT.
Conforme o magistrado, a sentença original não pode ser cumprida “independentemente do seu
trânsito em julgado”, tendo em vista que a parte tem o direito de recorrer e que o valor da
indenização por dano moral coletivo é muito elevado: R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de
reais).
Sobre o caso, o desembargador dispôs, ainda, que:
3 Essas iniciativas foram estabelecidas na Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho, adotada
pela Conferência Internacional do Trabalho na sua 108ª sessão, em junho de 2019.
P á g i n a | 111
Até o mês de julho de 2020, a Câmara dos Deputados já contabilizava 26 (vinte e seis)
Projetos de Lei que dispõem sobre o trabalho dos entregadores em todo país, versando sobre
condições de trabalho, benefícios, salários, e outros pontos relevantes para a categoria. Cada
Projeto de Lei é dotado de peculiaridades, e uma parcela desses se sobressai nas discussões, a
exemplo do PL n° 3.748/2020, de autoria da Deputada Federal Tabata Amaral (PDT-SP), que
propõe a criação do trabalho sob demanda firmado perante um novo regime de trabalho para
integrar a relação entre os profissionais de entrega e os aplicativos de serviços. Conforme o art.
2° do referido Projeto de Lei, o trabalho sob demanda é “aquele em que os clientes contratam a
prestação de serviços diretamente com a plataforma de serviços sob demanda, que, por sua vez,
apresenta proposta para execução dos serviços para um ou mais trabalhadores”.
Outro ponto relevante estabelecido no PL n° 3.748/2020 é a estipulação de um valor
por hora, o que poderá mudar significativamente a relação entre entregadores e aplicativos, isso
porque o trabalhador sob demanda poderá ser remunerado de duas formas: por meio de verba
única, nunca inferior ao piso da categoria, por salário mínimo, ou por salário mínimo-hora, e
não de forma avulsa como é feito, atualmente, por meio de taxas. Independente da hipótese
escolhida na relação, devem, ainda, ser somados ao valor o pagamento proporcional de férias e
décimo terceiro, como estabelece o art. 5° do Projeto.
Além disso, o PL ainda estende alguns benefícios aos profissionais da categoria, como
o seguro-desemprego e salário-maternidade, a obrigação dos aplicativos de serviços em
fornecer equipamentos de proteção individual (EPI), e a vedação do descredenciamento dos
profissionais sem justa causa. A proposta da Deputada Tabata Amaral é abrangente, tendo em
vista que o trabalho sob demanda poderá ser estendido a outras categorias, para além de
entregadores, como trabalhadores vinculados a aplicativos que oferecem outros tipos de
serviços, instaurando um novo regime de trabalho, paralelo ao da CLT.
Em contrapartida, o PL n° 3.577/2020, de autoria do Deputado Federal Márcio Jerry
(PCdoB-MA), propõe uma alteração à CLT, e não uma regulamentação própria como sugere o
PL n° 3.748/2020. Dentre as alterações, o Capítulo I, Título III da CLT, passaria a integrar a
Seção XV, denominada “DOS EMPREGADOS QUE PRESTAM SERVIÇOS DE ENTREGA
DE MERCADORIAS POR MEIO DE APLICATIVOS”, dispondo:
Art. 350-A. Será considerado empregado, para fins do disposto no art. 3º desta lei o
profissional que, por meio de empresas operadoras de aplicativos de entrega, exercer
atividade de entregador de mercadorias, de forma pessoal, onerosa e habitual
vinculado à empresa.
§ 1º Considera-se empresa operadora de aplicativo de entrega qualquer plataforma
eletrônica que faça a intermediação entre o fornecedor de produtos e serviços e o seu
consumidor.
P á g i n a | 113
Art. 235-J. Para os fins do caput do art. 3º desta Consolidação, será considerado
empregado o profissional que, por meio de empresas operadoras de aplicativos,
exercer atividade de motorista ou entregador de mercadorias, de forma pessoal,
onerosa, habitual e com subordinação à empresa.
§ 1º Considera-se habitual a atividade do motorista ou do entregador que
desenvolverem sua profissão, predominantemente, por meio do aplicativo de
transporte de passageiros ou entrega de mercadorias.
Nesse sentido, o Projeto propõe, ainda, que o motorista ou entregador que exercerem
a sua atividade por aplicativo sem que se configure a relação de emprego, terão a possibilidade
de se cadastrar como microempreendedores individuais, observada a Lei Complementar nº 123,
de 14 de dezembro de 2006, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno
Porte.
Em sua justificativa, o deputado Rui Falcão afirma que o rápido crescimento da
prestação de serviços via aplicativo fomenta as discussões sobre o enquadramento dos
motoristas e entregadores na condição de empregado, e que a proposição busca assegurar que
esses profissionais estejam em condições de igualdade com os demais trabalhadores, na medida
em que exerçam suas atividades com a presença dos referidos elementos que configuram a
relação de emprego.
P á g i n a | 114
Para mais, existem outros Projetos de Lei que não regulamentam a categoria e nem
propõem alterações à CLT, apesar de versarem sobre o tema, a exemplo do PL n° 3.384/2020,
de autoria do Deputado Federal Ivan Valente (PSOL-SP), que tem o intuito somente de
assegurar direitos aos entregadores de produtos e serviços cadastrados em empresas que operam
através de aplicativos de serviços, no período da pandemia provocada pelo Covid-19. Em
relação às demais propostas citadas, o PL nº 3.384/2020 possui, pois, uma menor margem de
abrangência, pois se restringe apenas ao período em que durar o estado de calamidade pública
decorrente da pandemia do Coronavírus, com o fito de obrigar os aplicativos de serviços a
fornecerem máscaras, álcool em gel e luvas para proteção pessoal durante as entregas; acesso à
água potável e alimentação; acesso a espaço seguro para descanso; e assegurar assistência
financeira aos entregadores afastados em razão de acidente ou por suspeita ou contaminação
pelo Covid-19.
Apesar de tais discussões sobre o tema, o trabalho dos profissionais de entrega por
aplicativo ainda não segue os parâmetros ideais de segurança e saúde estabelecidas nas Normas
Regulamentadoras expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (que atualmente integra
o Ministério da Economia), demonstrando a inexistência de trabalho decente nessa ramificação
da atividade. No Brasil, portanto, na medida em que os requisitos do vínculo empregatício
continuam previstos nos arts. 2º e 3º da CLT, esses trabalhadores continuarão sendo
prejudicados, somado à possibilidade de contratação desses profissionais por meio de diversas
modalidades (intermitente, por tempo parcial, temporário etc.), sem a observância do respeito
aos direitos trabalhistas fundamentais e um trabalho decente (MONICI, 2019). Diante disso, é
também uma recomendação da OIT a garantia de ações que efetivem a transição, para os
trabalhadores, da informalidade para a formalidade, de modo a assegurar a observância de
segurança e proteção necessária para essas pessoas.
Destarte, perante o surgimento das novas atividades laborais que não se mantém dentro
do que se considera como as relações tradicionais de trabalho, não poderia a legislação
trabalhista se eximir da regulamentação desses contratos atípicos, especialmente porque são
fatores que conduzem a situações de precariedade e desumanização do trabalhador. Nesse
sentido, a adaptação do Direito do Trabalho à atualidade fomenta o desenvolvimento de um
equilíbrio entre ser, em essência, uma legislação que assegure o direito dos trabalhadores e,
concomitantemente, um Direito que efetive os meios necessários para que níveis elevados de
empregabilidade sejam mantidos (RODRIGUES, 2019).
P á g i n a | 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
garantir o exercício de um trabalho decente, além dos demais direitos trabalhistas estabelecidos
pela Organização Internacional do Trabalho e pela Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988.
Isto posto, observa-se o caráter urgente da necessidade de uma regulamentação
própria dos profissionais de entrega, para que se possa obter o resguardo jurídico da categoria
e terem seus direitos trabalhistas efetivados. Assim, diante das controvérsias em relação ao
reconhecimento do vínculo empregatício desses profissionais com os aplicativos, bem como as
interpretações judiciais divergentes, é primordial o amplo debate entre entregadores, aplicativos
de serviços e o Estado, no intuito de assegurar boas condições de trabalho dentro do
ordenamento jurídico pátrio.
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(coord.). Direitos fundamentais e inovações no Direito. Porto: Instituto Iberoamericano de
Estudos Jurídicos - IBEROJUR, 2020. p. 151-159.
ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
As interações humanas são permeadas por conflitos. Nesse sentido, nas mais diversas
sociedades foram desenvolvidos mecanismos solucionadores, os quais institucionalizam, de
acordo com os valores de determinada comunidade, as expectativas criadas após uma frustração
social. Uma das formas de afastar a resolução de conflitos do âmbito da força foi o
estabelecimento de leis e jurisdição estatal, protegendo os hodiernamente chamados direitos
fundamentais e a dignidade da pessoa humana.
1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. Bolsista de Iniciação Científica
PIBIC/UFBA pela Fapesb. E-mail: rafaelafreitas2509@gmail.com
P á g i n a | 122
2
O termo designa o fenômeno, muito popularizado no ambiente digital, de boicote a figuras públicas,
instituições ou empresas que tenham cometido atitudes consideradas preconceituosas ou ofensivas.
P á g i n a | 123
3
SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. 410 U.S 113 (Roe v Wade). Harry A Blackmun. j. 22/01/1973.
P á g i n a | 124
fofocas inúteis, as quais só podem ser obtidas por meio da invasão ao ciclo doméstico4.
(Tradução nossa)
No momento em que a intimidade, antes restrita ao ciclo doméstico, tem seus limites
indiscretamente desconsiderados, o direito à dignidade é infringido. Afinal, a invasão de
privacidade pode por si só violar o direito à dignidade. Como lecionam Peixoto e Ehrhardt
Júnior (2018, p. 46), “uma invasão da privacidade pode se constituir como uma ofensa
intrínseca contra a dignidade individual. Intrínseca porque causa dano independentemente das
consequências circunstanciais advindas da conduta danosa”.
Não obstante, a preocupação dos advogados se refere, também, - senão principalmente
– à exposição ao ridículo imposta pelos jornais à elite estadunidense. Nesse sentido, as mazelas
provenientes da violação da privacidade multiplicam-se em função da disseminação e
proporção da exposição, pois estão relacionadas, também à opinião pública e íntima da própria
pessoa.
Tendo em vista a definição de direito à honra dada por Cunha Júnior (2019), o qual
classifica o referido direito como sendo um desdobramento da proteção dada à privacidade, o
direito à honra se propõe a tutelar os conjuntos de atributos concernentes à reputação, tais quais
consideração social, bom nome, boa fama, assim como a consciência da própria dignidade
pessoal. Nesse sentido, a disseminação de um conteúdo referente à vida privada, não somente
viola o direito à liberdade do indivíduo de decidir até que ponto compartilhará suas ações, falas
e opiniões, mas influencia na imagem e reputação daquele perante a sociedade, tratando-se de
uma verdadeira ofensa ao direito à honra e à imagem. Dessa maneira, a Constituição brasileira,
no seu artigo. 5º, tratou de proteger o direito à privacidade, assim como todas as suas
ramificações:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;
4
The press is overstepping in every direction the obvious bounds of propriety and decency. Gossip is no longer
the resource of the idle and the vicious, but has become a trade, which is pursued with industry as well as effrontery.
To satisfy a prurient taste the details of sexual relations are spread broadcast in the columns of the daily papers.
To occupy the indolent, column upon column is filled with idle gossip, which can only be procured by intrusion
upon the domestic circle.
P á g i n a | 125
3 PRIVACIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
5
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp n. 1025.047/SP, T3. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma. j.
26/06/2008. DJ 05/08/2008.
P á g i n a | 126
controle6, a qual não é mais um distante cenário distópico, pelo contrário, tem suas ferramentas
já postas em práticas por diversos Estados ao redor do mundo (DELEUZE, 1992).
No âmbito privado, a captação e venda, por parte de empresas, dos dados pessoais dos
seus usuários, impulsionou uma hiperconcentração de dados informacionais nas mãos de
grandes corporações (PARRA et al., 2018). Nesse cenário, inaugura-se um debate acerca da
autonomia do consumidor digital e a disponibilidade do direito à privacidade.
Por fim, a popularização das redes sociais estimulou a sociedade de transparência,
onde as menores e mais cotidianas decisões são constantemente expostas e espetacularizadas
(HAN, 2015). Assim, a produção de conteúdo não mais é monopolizada por famosas redes de
televisão e editoras conhecidas. Logo, qualquer publicação nas redes pode ter uma grande
audiência, sendo, por vezes, um alcance inesperado.
Nesse contexto, as implicações na violação dos direitos da personalidade tomam
proporções nunca antes vistas, frente à coletivização do poder de disseminação de ideias,
difusão e eternização de cada informação na rede de computadores. Em tal quadro, o direito à
privacidade torna-se cada vez mais vulnerável e a ofensa à honra potencialmente mais grave.
6
Deleuze (1992) define uma sociedade de controle como sendo aquela na qual os cidadãos estão sobre constante
vigilância.
P á g i n a | 127
A chegada das redes sociais alterou os limites antes impostos à exposição da vida
íntima e privada. Hoje em dia cada passo, cada café, cada imprevisto e cada opinião são
compartilhados aos seguidores e aos amigos do mundo digital. Trata-se de uma cultura da
transparência, na qual tudo precisa ser mostrado para, então, tornar-se real. Nesse diapasão,
Han (2015, p.13) discorre sobre a sociedade da transparência da seguinte forma:
Partindo dessa linha de raciocínio, a tutela do direito à privacidade tem por objetivo
proteger não somente um indivíduo específico, mas também toda uma sociedade, por
meio de restrições de onde começa e onde termina o direito de cada indivíduo em
relação a sua intimidade.
Ao realizar uma cotidiana postagem em uma plataforma digital pessoal, delimitar essa
diferenciação pode não ser uma tarefa fácil. Assim, muitas vezes, durante a construção
individual de uma esfera particular de compartilhamento, é possível violar o direito à
privacidade alheio, assim como demais direitos da personalidade. Afinal, se um sujeito, em sua
página pessoal, expõe livremente o seu apreço por uma série de TV, porque não poderia
compartilhar seu descontentamento com sua professora universitária8?
7
The absolutization of exhibition value finds expression as the tyranny of visibility. The increase of images is not
inherently prob- lematic; what proves problematic is the iconic compulsion to become a picture. Everything must
become visible. The imperative of transparency suspects everything that does not submit to visibil- ity. Therein
lies its violence.
8
No Distrito Federal, estudantes da Faculdade de Farmácia da Universidade de Brasília publicaram um manifesto
nas redes sociais desacreditando a competência técnica de sua professora. Por conta das ofensas, os alunos foram
condenados a pagar uma indenização de R$ 8.500,00 (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E
DOS TERRITÓRIOS. Apelação Cível 423575020058070001. T3. Des. João Mariosi. j. 26/01/2011. DJ.
01/02/2011.
P á g i n a | 128
Vale ressaltar que, para Brant (2010), na lesão contra a honra existe o dano fato e o
dano consequência. O dano fato termina em si mesmo, por si só caracteriza dano ao direito da
personalidade. O dano consequência, por sua vez, são os reflexos do fato, seus desdobramentos,
suas implicações (BRANT, 2010).
No contexto da ofensa à honra que se dá por meio das redes sociais, é inegável que o
dano consequência acaba sendo, na maioria das vezes, muito maior do que aquele proveniente
9
From the dawn of time, people have gossiped, circulated rumors, and shamed others. These social practices are
now moving over to the Internet, where they are taking on new dimensions. They transform from forgettable
whispers within small local groups to a widespread and permanent chronicle of people’s lives.
10
Shaming is nothing new—we’ve been doing it for centuries. But Internet shaming creates a permanent record
of a person’s transgressions. And it is done by amateur self-appointed investigative reporters, often without
affording the target a chance at self-defense. Numerous others then join in to help shame the victim, creating the
cyberspace equivalent to mob justice.
P á g i n a | 129
das antigas formas de difamação. O alcance de uma publicação nas redes é sempre inesperado,
não obstante, uma vez compartilhado no mundo digital, qualquer conteúdo não é mais
controlado unicamente pelo autor, visto que pode ser salvo e mantido eternamente vivo por
qualquer outro usuário com o devido acesso.
Assim, além de se tratar de um ataque com proporções muito maiores do que as
esperadas, as violações aos direitos pessoais, quando realizadas na internet como forma de
vingança privada, criam uma ficha permanente dos erros do agredido (SOLOVE, 2007). Ao
compartilhar nas redes sociais comentários degradantes sobre um desafeto, é possível macular
por tempo inestimável a reputação do atacado, diferentemente dos efeitos que decorreriam de
uma decisão judicial, a qual visa reparar e proteger direitos violados, mas de forma limitada e
proporcional.
Não obstante os efeitos negativos da manifestação indiscriminada de discursos
ofensivos nas redes – os quais muitas vezes constituem um verdadeiro linchamento virtual –, a
prática desses ataques se tornou cada vez mais popular. Nesse cenário, o termo do ano eleito
pelo Dicionário Macquarie em 2019 foi “cultura do cancelamento” (LORE, 2020). O termo
significa essencialmente um boicote a figuras, em sua maioria públicas, empresas ou
instituições que teriam cometido atitudes consideradas inapropriadas ou ofensivas. Se de um
lado é necessário trazer à tona discussões relacionadas à responsabilidade social de figuras
influentes, do outro, a forma como essa reafirmação é feita pode ultrapassar os limites da
proporcionalidade e instituir comportamentos digitais que ferem direitos fundamentais do
indivíduo.
A repercussão dessa forma de agir nas redes estimula a prática da autotutela. A
exemplo, em Juiz de Fora, uma moradora de um prédio vizinho filmou o dono de um cão, em
um momento de demonstração de agressividade com o animal, e publicou na rede social
Facebook como forma de denúncia. A postagem foi reproduzida em outras comunidades e o
vizinho exposto chegou a ser ameaçado de morte. O homem ingressou com ação no Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, elucidando que estava apenas disciplinando o seu cão, o qual havia
feito um buraco na parede do apartamento, e apresentou laudos veterinários que atestavam que
o animal não apresentava sinal de maus tratos. O magistrado concluiu que a postagem
apresentava uma violação grave aos direitos à honra e à imagem, colocando em risco inclusive
P á g i n a | 130
Em paralelo com o papel crescente da internet na vida real, vivemos também uma era
de descrença no Estado. Seja com outsiders sendo eleitos na política, ou com o crescimento de
grupos libertários que descredibilizam o papel e as funções sociais do ente estatal, trata-se de
uma conjuntura que pleiteia pelo caminho contrário do escolhido historicamente para limitar os
abusos de poder de entes privados. No âmbito judiciário não tem sido diferente.
Consoante Luhmann (1983), o desenvolvimento do direito nas culturas antigas
possibilitou uma institucionalização das expectativas criadas após uma frustração social, após
um conflito. Dessa forma, o judiciário passava a representar uma promessa de segurança e
estabilidade.
11
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Apelação Cível 1.0145.14.042795-9/001. 15ª
Câmara Cível. Des. Octávio de Almeida Neves. j. 05/10/2017. DJ. 13/10/2017.
P á g i n a | 131
brasileira (IBGE, 2018) e somente 16,5% da população possuía ensino superior completo
(IBGE, 2018).
Nesse diapasão, o elitismo do judiciário contribui para o ceticismo nas instituições
estatais que leva à busca por formas de vingança privada (MARTINS 2015). Similarmente, para
Pinto (1991), certos setores sociais identificam as instituições jurisdicionais como sendo
diretamente vinculadas ao poder político-econômico, compreendendo-as como órgãos de poder
da classe dominante. Assim, cada vez mais distante da realidade popular, o magistrado não é
mais visto como solucionador de conflitos, mas como instrumento de reafirmação dos interesses
da elite. Nesse contexto de dissociação da imagem do poder judiciário de sua verdadeira função
social, o exercício da autotutela pode ser impulsionado, uma vez que seu aumento é
proporcional ao sentimento de ineficácia das instituições, sendo intrinsecamente ligado à
insegurança oriunda do sentimento de carência e privação dos serviços estatais (MARTINS,
2015).
Diante de todo o exposto, é possível visualizar que a crescente desconfiança na Justiça
brasileira se relaciona com o aumento na busca pela vingança privada. Tal paradigma dialoga
com a consolidação das redes sociais e o poder de influência social concedido a qualquer
usuário das mesmas. Assim, a busca pela resolução de conflitos deixa o âmbito estatal e retorna
para a autotutela, enraizada na opinião pública. O judiciário é destituído do papel de
intermediário em conflitos de prestação de serviço, problemas de vizinhança, ou demais
relações sociais, pois o conteúdo é postado nas redes à espera de um verdadeiro linchamento
virtual.
Dessa forma, o princípio da autotutela retorna atualizado e a vingança privada se
concretiza por meio da ofensa à honra e privacidade, uma vez que, no mundo virtual, a lei do
mais forte se baseia no número de compartilhamentos. Nesse cenário, a jurisdição passa a ser
uma função atribuída ao leitor da publicação, o qual não se limita pelos ditames do Estado
democrático de Direito, sendo ele um juiz parcial.
Conforme já foi visto, a sociedade tem passado por diversas mudanças no que diz
respeito ao conceito de privacidade, às implicações do uso das redes sociais e à sua confiança
no poder judiciário. Esse cenário tem incentivado não somente a escolha pela vingança privada
como forma solucionadora de conflitos, mas também sua realização por meio da ofensa à honra
e à privacidade em ambientes digitais.
P á g i n a | 133
O fenômeno da autotutela nas redes sociais ocorre quando a internet é utilizada para
concretizar um desejo de justiça, compartilhando um relato ou uma denúncia que expõe e acusa
terceiros. Aquele que realiza a postagem, ao crer que teve algum direito anteriormente violado,
considera a sua conduta como legítima, pois acredita que ela é protegida pelo seu direito à livre
manifestação e justificada pelo prejuízo que ele previamente sofreu (SOLOVE, 2007).
Tal pensamento incorre em grave erro, visto que a titularidade de um direito não
impede que seu exercício esteja viciado pela ilegalidade. Dessa forma, cabe analisar, como
forma exemplificativa, uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul12 acerca do
assunto em tela. O réu em questão havia comprado um equipamento fotográfico de cinco mil
reais (e depositado a quantia na conta dos autores), porém nunca recebeu o produto, o que
ocasionou diversos prejuízos profissionais.
Indignado, o consumidor postou em um grupo do Facebook o ocorrido, denunciou as
atitudes da empresa e a acusou de estelionato. Não obstante, divulgou imagens e dados de um
dos representantes da companhia (o qual também era um dos autores do processo). Os
desembargadores, então, condenaram o réu ao pagamento de indenização somente ao autor que
teve sua imagem divulgada:
Sob esse prisma, resta claro a dualidade do exercício do direito: é possível, de fato,
compartilhar uma reclamação legítima nas redes sociais, todavia, o seu conteúdo pode exceder
a boa-fé e os limites da legalidade, sendo passível de reparação jurídica. Assim, o Código Civil
brasileiro de 2002 delimita expressamente os limites impostos nesse sentido:
12
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível 70076330067. 10ª Câmara Cível.
Des. Marcelo Cezar Muller. j. 01/03/2018. DJ. 13/03/2018.
P á g i n a | 134
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes.
De início, insta pontuar que o artigo 187 consagrou a teoria do abuso do direito no
ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo a ideia da relatividade dos direitos, na qual eles
flexibilizam-se mutuamente, inexistindo direitos isolados e absolutos (BRAGA NETTO, 2010).
O abuso de direito é compreendido, então, como uma espécie de ato ilícito que consiste no uso
imoderado do direito subjetivo, um exercício do direito que exorbita a regularidade causando
dano a terceiros (AMARAL, 2003).
Ao analisar ambos os artigos, é possível compreender que a concretização do ato ilícito
no exercício de um direito independe de culpa. Diferentemente do que é especificado no artigo
186, para a incidência do artigo 187 não é necessário que o abuso do direito se dê de forma
voluntária. Depreende-se que a concepção adotada em referência ao abuso de direito é a
objetiva, sendo desnecessário a existência da consciência do excesso (JORDÃO, 2006).
Todavia, não somente aquele que comete o ato ilícito, muitas vezes, não percebe sua
ilicitude: a interpretação externa também é complexa. É muito mais simples apontar a ilicitude
de uma calúnia, falsa imputação de crime, ou até do bullying indiscriminado nas redes.
Entretanto, pode ser tortuoso reconhecer onde reside a antijuridicidade quando se trata de uma
indignação válida, a qual é exposta na esfera digital no vislumbre de receber uma compensação,
um ressarcimento assentado no sentimento de vingança, ensejado pelas consequências
negativas oriundas da desaprovação pública.
Contudo, conforme foi discutido, os danos dessa autotutela são dos mais variados,
incidindo em graves violações de direitos personalíssimos como honra, privacidade e
dignidade. Nesse sentido, a legislação estatal, a qual deve institucionalizar as expectativas
criadas após um conflito13, dispõe sobre os limites do exercício de um direito. Assim, discorre
Sergio Cavalieri Filho (2005, p. 170):
O fundamento principal do abuso de direito é impedir que o direito sirva como forma
de opressão, evitar que o titular do direito utilize seu poder com finalidade distinta
daquela a que se destina. O ato é formalmente legal, mas o titular do direito se desvia
da finalidade da norma, transformando-o em ato substancialmente ilícito. E a
realidade demonstra ser isso perfeitamente possível: a conduta está em harmonia com
a letra da lei, mas em rota de colisão com os seus valores éticos, sociais e econômicos
– enfim, em confronto com o conteúdo axiológico da norma legal.
13
Tendo em vista a perspectiva de Luhmann acerca da função estatal mencionada anteriormente (1983).
P á g i n a | 135
Em síntese, o exercício de um direito pode constituir um ato ilícito nos termos do artigo
187 do Código Civil de 2002. Dessa forma, uma indignação legítima, pautada na livre
manifestação, quando divulgada nas redes, pode incorrer em ato ilícito por abuso de direito caso
consista em um ataque à dignidade de outrem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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P á g i n a | 140
ABSTRACT
The digital era has shifted the boundaries imposed to the exhibition of
private and intimate life, transforming the dynamics of social relations.
Furthermore, it is possible to observe in contemporaneity the feeling of
discredit towards the judiciary as an entity responsible for conflict
solving, and, therefore, an increase in the search for unconventional
ways of obtaining justice. This scenario consolidated the phenomenon
of self-defense in social media, an act of imponderable and extremely
severe consequences. The present article aims to verse about the
motives related to the practice of this new form of private vengeance,
of which occurs throughout the offense to the personal rights of the
victim. Moreover, the paper aims to analyse the social consequences
and repercussions on the civil law sphere arising from the self-defense
in social media, considering the abuse of rights and collision of
fundamental principles. It was applied the hypothetical-deductive
method, through bibliographical, legislative and jurisprudencial
researches. In this sense, it was possible to conclude that the offense to
honor and privacy on social media is due to an increasingly digitalized
and transparent society, in which the false sense of autonomy, as well
as the descredit for the traditional forms of conflict solving, induces the
search for private vengeance in the digital scope. At last, it was found
that self-defense online, even when motivated by a legitimate
indignation, may constitute an abuse of rights liable to civil
responsibility, since it violates directly the fundamental principle of
human dignity.
RESUMO
Em face de uma coletividade aflita pelo crime patológico, para que não
cause consequências negativas ao todo e à parte além do razoável, é
essencial que o processo penal se adapte às diversas minúcias que
orbitam cada caso – uma dessas sendo a vulnerabilidade dos sujeitos
envolvidos. O presente artigo buscou, pois, explorar como a condição
de um desses, o autista, afeta o litígio criminal, em especial àqueles sob
análise do Tribunal do Júri. Analisou-se na pesquisa o tratamento
dispendido pelo Direito pátrio ao portador de Transtorno de Espectro
Autista (TEA), em especial no que tange à apreciação de crimes dolosos
contra a vida por parte dos jurados da sociedade civil. Para alcançar tal,
realizou-se um levantamento bibliográfico descritivo e exploratório de
produções acadêmicas nacionais e internacionais, tanto da área jurídica,
quanto da saúde. Percebeu-se, ao fim, que as dificuldades
conversacionais inerentes ao autismo de alta gravidade podem debilitar
o réu no que tange à colaboração com seus advogados, bem como
inviabilizar um possível depoimento no Tribunal. Tendo em vista que
diversas defesas se valem do interrogatório do réu para contestar a
autoria, isso pode prejudicar as arguições dos advogados do acusado.
Destarte, o exercício do direito ao silêncio pode ser contraproducente,
uma vez que o Tribunal do Júri pode interpretá-lo com ampla suspeita.
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. E-mail:
arturviniciuslf@gmail.com
P á g i n a | 142
Essa banalização, por dizer, do Direito Criminal acarreta prejuízo para os envolvidos
no litígio. Isto pois, se o processo penal é instrumento comum para a resolução de conflitos, e
não extraordinário, é deduzível que ele é suscitado mais frequentemente do que seria se tivesse
essa última natureza. Com o alto número de demandas, é natural que não se aprecie todas com
a cautela exigida para evitar consequências desarrazoáveis. Trata-se de uma questão humana:
quanto maior forem as partes em um todo, menos atenção especial cada uma receberá.
Em um processo penal, tal método pode acarretar efeitos drásticos. Tendo em vista que
a apreciação do crime e o exercício do jus puniendi possuem natureza negativa (ou seja,
cerceiam direitos ou perturbam a vida dos sujeitos envolvidos), é intolerável que o Direito
Criminal trate cada caso como se não passassem de outro componente em um todo. Cada crime
está rodeado de minúcias próprias, estas que não podem ser ignoradas ou sumarizadas para que
os aplicadores do Direito possam cumprir a quota de demandas a serem apreciadas.
Isso se torna óbvio quando se analisa os processos penais nos quais figuram sujeitos
com vulnerabilidade processual, isto é, que não se encontram em pé de igualdade com seus
acusadores, seja por motivos subjetivos, seja por objetivos. Tratar os litígios que envolvem tais
como partes sem a devida atenção pode resultar em desfechos desproporcionais, nos quais o
dano retribuído se torna absurdo quando comparado ao dano perpetrado.
Trazendo essa discussão a um microcosmos, o presente artigo se propõe a analisar
como certos sujeitos vulneráveis podem ser prejudicados no litígio que não trata suas demandas
como especiais. Aqui, focar-se-á no portador de Transtorno do Espectro Autista (TEA), e como
sua condição impõe certos obstáculos no processo que devem ser contornados com cautela, e
não ignorados em prol de celeridade. Almeja-se, pois, estudar como o autismo – em especial,
os deficit conversacionais inerentes a esse – afeta a capacidade do réu de colaborar com seus
advogados e demais procuradores, e de, em Tribunal, pleitear por sua inocência.
Essa pesquisa busca entender se as limitações comportamentais dos autistas afetam
negativamente sua defesa em face do Tribunal do Júri. Escolheu-se a lente dos crimes dolosos
contra a vida pois, como é sabido, os jurados que compõem tal Tribunal não julgam por
conhecimento jurídico, mas por questões pessoais que refletem a opinião da sociedade. Os
juízes togados possuem, em teoria, saber legal para não discriminar um autista em vista dos
deficit impostos por suas condições, mas isso não acontece com os membros daquele Tribunal.
Sobre os jurados que compõem o Júri recaem estereótipos, empatia (ou a falta dela) e
arbitrariedade motivacional. Esses sujeitos são os responsáveis por definir se o sujeito autista
acusado de um crime doloso contra a vida deve ou não ser privado de liberdade. São esses,
P á g i n a | 143
portanto, que merecem ser objeto de análise quando se objetiva indagar os efeitos negativos de
uma vulnerabilidade negligenciada.
Este artigo concentrou-se em estudar as consequências das limitações conversacionais
no interrogatório do réu pois, em muitos casos, é este o principal artifício da contestação de
autoria pela defesa. Se o autismo prejudicar tal, correto seria afirmar que a arguição em
benefício do réu tornar-se-ia deveras fragilizada, o que acentuaria mais ainda a disparidade
processual tangível. A partir dessa análise, buscou-se estudar se há viabilidade no exercício do
direito ao silêncio, bem como os reflexos positivos ou negativos de tal estratégia no Tribunal
do Júri.
Discutir tais questões é importantíssimo, uma vez, que de acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1 a 2% da população mundial pode portar condição no
Espectro Autista. Transpondo tais números para a brasileira, tem-se uma estimativa de dois a
quatro milhões de cidadãos autistas2. Por ser um grupo deveras grande, é inevitável que, vez ou
outra, seja apreciado um litígio criminal no qual um portador de TEA figure como réu.
O método utilizado para a pesquisa em questão foi o levantamento bibliográfico
descritivo e exploratório, de natureza qualitativa, de obras tanto nacionais, quanto
internacionais na matéria. Optou-se por dividir o artigo em três seções: na primeira, buscou-se
apresentar o conceito de autismo para o Direito, assim como se autistas podem cometer crimes;
na segunda, estudou-se concepções sobre o interrogatório, além do uso do direito ao silêncio
no Júri; e, na terceira, analisou-se como os deficit conversacionais dos autistas afetam o litígio.
2
Tendo em vista que o autismo possui níveis específicos de gravidade, não se pode falar qual é o número concreto
de indivíduos portadores. Os níveis mais brandos possuem comportamentos muito similares aos do homem médio,
o que dificulta bastante seus diagnósticos. Por esse motivo, é comum trabalhar, quando se fala de autismo, com
estimativas demográficas.
3
É fundamental destacar que, no decorrer deste trabalho, utiliza-se o termo “Transtorno do Espectro Autista”, em
coerência com o termo utilizado na Lei nº 12.764 de 2012. Contudo, nos dias de hoje, os profissionais da saúde
preferem o termo “Perturbação do Espectro Autista”, isto pois, de acordo com os próprios, a vinculação do termo
“Transtorno” carrega uma conotação negativa, sendo, pois, uma forma de preconceito (RORIZ; CANIÇO, 2016).
P á g i n a | 144
§ 1º Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do espectro autista
aquela portadora de síndrome caracterizada na forma dos seguintes incisos I ou II:
I - deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação
sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal
usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver
e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II - padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades,
manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por
comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de
comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos.
Como relembra Rocha et al. apud Bispo (2020), o dispositivo acima não adveio de
arbitrariedade, mas de esforços conjuntos de profissionais da saúde e parlamentares, que
buscaram introduzir concretude às relações condicionadas ao autismo. Ou seja, a despeito das
controvérsias da área da saúde sobre a definição de TEA, o Estado reconhece como autista
aquele sujeito cujo escopo comportamental esteja de acordo com o descrito nos incisos I e II.
Esse escopo é, por conseguinte, utilizado pelos profissionais competentes para atestar
que um sujeito é portador de alguma condição pertencente ao espectro autista. Realiza-se um
exercício de método comparativo em âmbito corriqueiro, não controlado, cujos resultados são
sobrepostos e, se congruentes, transpostos positivamente em um laudo ou parecer (a depender
da condição do analista) (ROCHA et al. apud BISPO, 2020). Apenas com um documento
desses, pode o Direito pátrio reconhecer um sujeito como autista, seja em esfera cível ou penal.
No entanto, a área da saúde contribui para o conceito de autismo com outras minúcias
que não foram transpostas com primazia para o texto da Lei nº 12.764. Estas somam à
concepção sem ressignificá-la ou diminuir a análise comparativa, portanto interessa entendê-
las. A priori, Amorim (2008, p. 12) revela que “o autismo é considerado uma síndrome
comportamental de base biológica com múltiplas etiologias [teorias sobre possíveis causas].”
Trata-se não de psicopatologia ou deficiência, mas de um espectro sindrômico cujo intervalo
de comportamentos dissociados abarca várias condições, como, por exemplo, a de Asperger.
Esse rol de perturbações neurológicas influencia paulatinamente o desenvolvimento
social e/ou intelectual do portador, que acaba desenvolvendo comportamentos similares, se não
idênticos, aos descritos no § 1º acima. Esses usualmente aparecem acompanhados de ecolalia 4
e uso errôneo de palavras ou gramática, em especial no que tange à capacidade de organizar
frases e diálogos de forma coesa e coerente (RORIZ; CANIÇO, 2016).
4
De acordo com Kanitz (2018), ecolalia seria uma forma de enfraquecimento na capacidade subjetiva de manipular
e expressar palavras, o que resulta na reprodução mecânica do que se ouve.
P á g i n a | 145
5
Comorbidade seria, nas palavras de Roriz e Caniço (2016), qualquer condição clínica que se desenvolve a partir
de uma doença prévia, seja por intermédio ou em consequência desta, ao ponto de que, se não existisse a primeira,
não seria possível atestar a existência da segunda.
P á g i n a | 146
apenas um aprofundamento de sintomas similares. Por isso, é essencial que se estude cada caso
com devido cuidado, uma vez que autistas se comportam de forma diferente a depender de suas
condições.
Negligenciar o trabalho comparativo metódico dos comportamentos viciosos pode
resultar no diagnóstico errôneo de um sujeito não autista, como se assim fosse. De igual
maneira, pode prejudicar os portadores de fato, visto que seus comportamentos podem ser
interpretados como uma mera dissociação dos atos do homem médio, e não como a perturbação
neurobiológica pertencente a um espectro sindrômico sem etiologia certa que é.
crime6. Por meio de contestação da capacidade neurobiológica do sujeito, almeja-se revelar que
não há fundamento para reprovabilidade, tampouco para punibilidade, restando apenas o
injusto, que será tratado com as medidas de segurança postas no art. 96 do Código Penal
(BISPO, 2020).
Existem três excludentes de culpabilidade: a inimputabilidade, a potencial
inconsciência da ilicitude e a inexigibilidade de conduta diversa. Nota-se de antemão que esta
última é impraticável no caso do réu autista, uma vez que o art. 22 do Código Penal determina
como inexigível apenas o injusto praticado em face de coação moral irresistível e de obediência
hierárquica (MASSOM, 2014). As duas últimas, porém, podem contribuir de forma mais
substancial para a discussão em questão.
Imputabilidade pode ser definida, nas palavras de Silva apud Bispo (2020, p. 3), como
“a capacidade física, psicológica, moral e mental desenvolvida para entender o caráter ilícito
do fato, comportando-se de acordo com esse entendimento, […] discernindo entre o certo e o
errado, controlando a sua vontade.” Inimputabilidade seria, por conseguinte, o oposto de tal: a
incapacidade biológica e psíquica (necessitando preencher os dois critérios cumulativamente)
do indivíduo de se autodeterminar ao ponto de realizar conduta diversa da perpetrada.
De acordo com Massom (2014, p. 171), existem dois elementos intrínsecos à
imputabilidade: o intelectivo – que concerne à “integridade biopsíquica, consistente na perfeita
saúde mental” – e o volitivo – que se refere ao “domínio da vontade, é dizer, o agente controla
e comanda seus impulsos” –, ambos vistos no momento em que o fato danoso foi perpetrado.
Disso, é perceptível que o Direito pátrio adotou a teoria biopsicológica da inimputabilidade7.
Conforme descreve taxativamente o Código Penal, três sujeitos se encaixam no rol de
inimputáveis: o menor absoluto (art. 27); o portador de doença mental e/ou desenvolvimento
mental incompleto (art. 26); e o ébrio completo, cuja condição derive de caso fortuito ou força
maior (art. 28, § 1º). A priori, pode-se pensar que autistas se encaixam na segunda espécie de
inimputáveis, uma vez que sua condição limitante tem base biológica.
6
Conforme Zaffaroni e Pierangeli (2011), assim como a maioria da doutrina, a capacidade de autodeterminação é
elemento intrínseco não apenas para se apreciar atos desviantes da norma, como também para fundamentar todo o
sistema penal hodierno. Isto pois, se o sujeito é incapaz de reconhecer o dano em suas próprias ações, ou se o faz
mas é incapaz de agir de forma diversa, não se pode exercer o jus puniendi. Esse é o argumento basilar da doutrina
pátria, contudo interessa destacar que ele está sendo contestado cada vez mais com a ascensão do determinismo
penal e das teorias conciliadoras. Zaffaroni e Pierangeli (2011) abordam brevemente tal questão em seu manual, e
assim também faz Massom (2014), todavia, por ser uma discussão extensa, ela não será trazida nesse artigo.
7
Isto é, a teoria que defende que “é inimputável quem, ao tempo da conduta, apresenta um problema mental e, em
razão disso, não possui capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse
entendimento.” (MASSOM, 2014, p. 172). Não basta, portanto, apenas possuir uma condição deficitária de ordem
biológica: é necessário que essa condição torne o sujeito incapaz em sua totalidade.
P á g i n a | 148
Todavia, essa é uma generalização errônea. Para entender o motivo dessa afirmação,
é preciso analisar com cautela o texto legal do art. 26 do Código Penal. Ele diz, in verbis:
Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento.
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude
de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou
retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento (grifos nossos).
8
Conforme dispõe o § 2º, do art. 1º da Lei Nº 12.764/12, “A pessoa com transtorno do espectro autista é
considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.
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forma contrária. A grande maioria apenas engendra comportamentos dissociados, o que poderia
ser usado para se pleitear semi-imputabilidade9.
No que concerne à última excludente de culpabilidade, a potencial inconsciência da
ilicitude, pode-se usar bastante as discussões supracitadas, ao ponto de se concluir, igualmente,
que apenas os portadores de altos graus de autismo não compreendem inteiramente a natureza
de seus atos. Aqui, importa atestar que o art. 26 é resoluto em diferenciar os deficit que limitam
inteiramente, e aqueles que apenas cerceiam a capacidade de entender a ilicitude de suas
ações10.
Logo, para o primeiro, pode-se atestar que ele não é capaz, ao momento do
cometimento do injusto, de entender a natureza errônea de seus atos; contudo, para o segundo,
pode-se dizer que ele tinha meios de discernir tal, porém não o fez por limite imposto por sua
condição neurobiológica. Mayes (2016, p. 95) concorda com tal, quando afirma que os
principais “casos revelam que um réu com autismo ainda pode ser considerado como tendo a
capacidade mental necessária para diferenciar certo de errado ao cometer um crime (tradução
nossa)11”. Uma página antes, porém, o mesmo autor atesta que “um réu com autismo pode ter
um deficit tão severo com pensamentos abstratos que o indivíduo não é capaz de compreender
conceitos legais simples como ‘culpa’ ou ‘inocência’ (tradução e grifo nossos)12” (MAYES,
2016, p. 94).
Desse modo, confirma-se que um portador de Transtorno do Espectro Autista pode
sim cometer um crime doloso contra a vida, caso sua condição biopsicológica o torne
relativamente incapaz de discernir o ilícito de suas ações e, por conseguinte, de agir de forma
diversa. Se o tornar inteiramente incapaz, porém, não se pode falar de crime, apenas de injusto.
9
Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 348), a semi-imputabilidade não afasta inteiramente a culpabilidade
(portanto, ainda se lida com um crime passível de punição), apenas a sobrepesa em face das especificidades
limitantes do caso concreto. Para os autores, nesses casos “a culpabilidade […] apresenta um menor grau de
censurabilidade, em virtude de uma perturbação da consciência que não chega a configurar uma inimputabilidade.”
10
Destarte, sobre a consciência da ilicitude, Raul Zaffaroni e Henrique Pierangeli (2011, p. 537) afirmam que a
“culpabilidade se conforma com uma possibilidade de compreensão da antijuridicidade, não requerendo uma
efetiva compreensão do injusto, que, na maioria dos casos, não existe ou é imperfeita.” Isso significa dizer que,
para se atestar inconsciência da ilicitude, não se deve suscitar o entendimento subjetivo do autor, mas sim a
abstração englobante genérica, que define que o homem médio, na situação em questão, seria capaz de reconhecer
o ilícito de sua conduta. Isso, no entanto, está sendo questionado por certos doutrinadores causalistas, que requerem
“uma efetiva compreensão ou um efetivo conhecimento da antijuricidade, que chamam ‘consciência da
antijuridicidade’.” (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2011, p. 532)
11
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: “cases reveal that a defendant with autism can still be found
to have the requisite mental capacity to differentiate right from wrong when committing a crime.”
12
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: “a defendant with autism may have such severe deficit in
abstract thought that the individual is not able to comprehend simple legal concepts such as ‘guilt’ or ‘innocence.’”
P á g i n a | 150
Trata-se, pois, do espaço destinado ao réu para sua defesa direta, o qual pode ser
gozado para contestar suas acusações ou construir argumentos de natureza pessoal, parcial e
subjetiva que sustentem sua tese defensiva escolhida. Sua natureza como meio de prova ou de
defesa ainda suscita bastante discordância por parte da doutrina, contudo Nucci (2020, p. 550)
é resoluto em crer que se trata de um “meio de defesa, primordialmente; em segundo plano, é
meio de prova”14, e seu posicionamento soa deveras pertinente.
A Lei nº 11.719 de 2008 alterou certos pormenores do interrogatório, em especial no
que tange ao momento em que é colhido. Agora, ele passa a figurar como o último ato da fase
de instrução, sendo realizado na mesma audiência em que se realiza a oitiva das testemunhas
(sempre por último, pois, como é sabido, ao réu é salvaguardado o direito de confrontar seus
acusadores e se defender de seus depoimentos) (LIMA, 2019).
É realizado, obrigatoriamente, com a presença do defensor, seja público, seja privado,
que deve auxiliar o réu no procedimento, mas não deve substituí-lo ou arrogar seu direito de
fala. Destarte, o advogado pode figurar como interrogante, questionando o réu para melhor
formular, dentro da tribuna, seu fundamento defensivo a partir de um manuseio dialético das
informações providas por seu cliente. Contudo, o § 1º do art. 474 coloca-o em último lugar na
ordem de interrogantes, atrás do Ministério Público, o assistente e o querelante (LIMA, 2019).
13
É essencial estabelecer antecipadamente que o presente artigo se concentra apenas no interrogatório judicial
(isto é, aquele depoimento que é prestado pelo réu no tribunal). O interrogatório policial – ou seja, a oitiva realizada
pela autoridade policial ainda na fase de inquérito – foi ignorado por motivos de brevidade e redundância.
14
Com isso, o doutrinador quer dizer que “o interrogatório é, fundamentalmente, um meio de defesa, pois a
Constituição assegura ao réu o direito ao silêncio. [...] Entretanto, caso opte por falar, abrindo mão do direito ao
silêncio, seja lá o que disser, constitui meio de prova inequívoco, pois o magistrado poderá levar em consideração
suas declarações para condená-lo ou absolvê-lo.” (NUCCI, 2020, p. 550)
P á g i n a | 151
Ainda que seja dever do interrogante ser “neutro, absolutamente imparcial, equilibrado
e sereno”, não gerando “no réu medo, insegurança, nem tampouco revolta e rancor” (NUCCI,
2020, p. 564), é perceptível que grande parte da atividade do Ministério Público no processo
criminal orbita a máxima de desconstrução da pessoa do réu. Diminuí-lo é uma estratégia
viável, em especial quando se lida com crimes dolosos contra vida, tendo em vista a gravidade
do delito e a suscetibilidade dos membros do Tribunal do Júri (ADORNO, 1994).
Isso acaba por favorecer a acusação, pois qualquer “hostilidade contra o réu,
expressada pelo representante do Ministério Público, pelo querelante ou pelo assistente,
também poderá contribuir para prejudicar a imagem do acusado diante dos jurados.” (NUCCI,
2020, p. 1013) À primeira vista, pode-se resolver tal contenda apenas invocando o direito ao
silêncio e se recusando a responder os questionamentos do representante da instituição
inquisidora. Isso, porém, encontra dois grandes problemas que serão destrinchados a seguir.
O primeiro e mais óbvio deles é a obrigatoriedade do atendimento ao interrogatório.
De acordo com o art. 260 do Código de Processo Penal, “Se o acusado não atender à intimação
para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser
realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.” Este dispositivo estabelece,
pois, que o réu não pode se recusar a participar do interrogatório, ainda que seja portador do
direito fundamental ao silêncio e a não autoincriminação.
Sobre isso, Nucci (2020) reconhece a absurdez da aplicação literal desse dispositivo,
defendendo que o réu só deve ser conduzido coercitivamente no interrogatório de qualificação
(ou seja, aquele destinado a descobrir informações sobre a identidade do réu, como nome,
endereço, estado civil, dentre outras). O Supremo Tribunal Federal, na figura do Ministro
Gilmar Mendes, concorda com tal expressão, quando considera, por meio da ADPF 395, não
recepcionada pela Constituição de 1988 a expressão “para interrogatório” do art. 260.
Ainda nesse ponto, Guilherme Nucci (2020, p. 551) defende que é
muito mais adequado que o interrogatório deixe de ser ato processual obrigatório,
afinal, o réu tem direito ao silêncio, devendo comparecer se quiser prestar declarações.
O ideal, portanto, seria o interrogatório como ato facultativo, a realizar-se a critério
exclusivo da defesa, quando o acusado estivesse devidamente identificado e não
necessitasse ser qualificado diante do juiz. Nessa hipótese, abrindo mão do direito ao
P á g i n a | 152
Lima (2019) crê, no entanto, que poucos são os magistrados que cerceiam o direito ao
silêncio e não autoincriminação do réu, forçando-o a realizar o interrogatório se não quiser. O
acadêmico reforça que o interrogatório deve continuar obrigatório no sentido de que o juiz não
pode negá-lo ao réu, se assim ele requisitar; mas que, em todos os outros casos, deve ter sua
execução condicionada à expressão clara e deliberada da defesa.
Entretanto, Tristão (2008) afirma que é raro que o réu abra mão inteiramente de realizar
o interrogatório, pois é por meio dele que a defesa, na maioria dos casos, é capaz de contestar
a autoria dos fatos15. É no interrogatório que o réu pleiteia mais profundamente por sua
inocência, alegando fatos contrários aos apresentados pela acusação e suas testemunhas, ou
apresentando uma nova ótica motivacional para seus atos.
Tristão (2008) ainda aponta que o interrogatório provê não apenas um espaço para
defesa direta por parte do réu, como também um meio para se reconstruir como ser humano em
face do juiz e/ou dos jurados da sociedade civil. Como a acusação trabalha diminuindo o sujeito
desviante a seus moldes mais animalescos, abrir mão de uma oportunidade de se apresentar
como um ser humano vítima de injustiça ou capaz de cometer erros é uma atitude arriscada.
Se pôr no interrogatório é, pois, uma atitude quase que obrigatória do réu, que só pode
abdicá-lo se tiver meios de defesa eficazes. Isso, porém, não é o padrão. Usualmente, a defesa
se encontra em alta desvantagem, tendo em vista os recursos do Ministério Público, bem como
a concretude de suas provas e testemunhos (TRISTÃO, 2008). Ainda que possua o maior ônus,
essa instituição é capaz de arcar com tal de forma mister, cerceando o espectro de atuação da
defesa, que, normalmente, se limita a tentar contestar as provas apresentadas (se estiver
pleiteando absolvição). O interrogatório, pois, se apresenta como um de seus poucos trunfos.
Este, porém, vem com certos riscos. O primeiro e mais óbvio deles é que, ao se dispor
a ser interrogado, o réu também se sujeita a ser sabatinado por seus acusadores, não apenas os
seus defensores (o que pode causar resultados desastrosos a depender da preparação do sujeito).
A subseção a seguir destina-se a explorar justamente essa questão, apresentando o conceito de
direito ao silêncio, analisando o segundo risco que corre o réu ao concordar com o interrogatório
e estudando como todas essas minúcias refletem no Tribunal do Júri.
15
Raul Zaffaroni e Henrique Pierangeli relembram que, para se condenar, é preciso que o Ministério Público tenha
comprovado materialidade dos fatos e provido indícios de autoria. Se um dos dois elementos for frágil ou estiver
inexistente, é muito provável que o Tribunal, seja ordinário, seja do Júri, decida pela absolvição do sujeito – isto
se o caso se quer chegar à Tribunal, pois muitos dos litígios com fraca fundamentação são arquivados ou desistidos.
P á g i n a | 153
16
Também se relaciona com o princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo), que atesta que o sujeito,
dentro do processo criminal, sempre será tido como inocente até que seja comprovada, objetivamente, sua
culpabilidade; e o princípio do devido processo legal, que garante aos litigantes idoneidade durante todos os atos
principais e corolários, de modo que não se suprima direitos ou se privilegie ou prejudique determinado indivíduo.
17
O art. 198 do Código de Processo Penal vigente atesta que “O silêncio do acusado não importará confissão, mas
poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.”, porém nota-se, como defendem Zaffaroni
e Pierangeli (2011), que tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Além disso, para
solidificar a atestação indubitável de que o gozo do direito ao silêncio não resulta, teórica e formalmente, em
prejuízo, o parágrafo único do art. 186, com redação da Lei nº 10.792, afirma que “O silêncio, que não importará
em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” Sendo assim, por mais que o juiz devidamente
investido em seu cargo possa desgostar do uso do direito ao silêncio, ele não pode utilizar tal recusa tácita e passiva
como fundamento para sua decisão.
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Na prática, porém, em especial nos litígios apreciados pelo Tribunal do Júri, o gozo
desse direito deve ser realizado com cautela, tendo em vista as consequências simbólicas e
significantes que pode acarretar. Isto pois, ainda que o juiz devidamente investido em seu cargo
não possa motivar suas decisões a partir de uma suspeita existente a partir do silêncio do réu na
tribuna, os jurados da sociedade civil, componentes intrínsecos daquele Tribunal, podem.
No Brasil, o Tribunal do Júri é composto por membros da sociedade civil que são, de
modo aleatório, invocados para apreciar crimes dolosos contra a vida18. Compete a esses
sujeitos determinar, por maioria simples, se o réu do litígio deve ser declarado culpado ou
inocente das acusações realizadas pelo Ministério Público. Realizam tal respondendo, de forma
individual, igualitária e secreta, a perguntas de sim ou não acerca do mérito, que são, em
seguida, recolhidas e apreciadas pelo juiz, que profere a sentença e realiza, conforme as
minúcias reconhecidas pelos jurados, a dosimetria da pena (ANTUNES, 2013).
Schritzmeyer (2012, p. 49) afirma que todo o processo se trata de “um jogo de
atribuição de sentidos atrelados ao poder de matar”, no qual os jurados atuam como
“ressignificadores” do fato levado a julgamento. “Eles transformam mortes físicas em
metáforas de dramas da vida, pois cadáveres motivam reflexões a respeito de conflitos [...]
Portanto […], as regras do jogo do Júri são as regras da vida em social” (SCHRITZMEYER,
2012, p. 49-50).
A autora ainda afirma que o jogo do Júri encontra forma na ritualística que deve ser
obrigatoriamente seguida, sob risco de nulidade do julgamento por vício. Por meio do ritual e
do teatro diretamente promovido por todos os envolvidos no litígio (não apenas partes, como
seus procuradores, assistentes, auxiliares da justiça, etc.), cria-se uma máxima de legitimidade
às decisões do Tribunal em questão. Ele se reveste de formalidade para compensar por sua falta
de investidura – requisito único que garante às suas decisões, legitimidade para fundamentar a
aplicação ou não do jus puniendi (SCHRITZMEYER, 2012).
O Tribunal do Júri nada mais é, pois, que um ato coletivo de interpretação ritualística
que almeja garantir legitimidade para decisões imotivadas. Como defende Antunes (2013), isso
é absurdo, pois, pelo Direito Penal carregar conotação negativa, engendrá-lo sem atrelagem
substancial à norma é abrir margem altíssima para a discricionariedade que resulta em decisões
injustas ou desarrazoáveis, derivadas puramente de elementos como o estigma.
18
Estes são, conforme o Código Penal taxativamente descreve: o homicídio e todas as suas modalidades; o
induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; o infanticídio; e o aborto criminoso provocado pela gestante ou por
terceiro, com ou sem seu consentimento.
P á g i n a | 155
A “produção do estigma é um processo pelo qual ocorre uma reação dos acusadores
ou das testemunhas que despoja do sujeito acusado e estigmatizado uma identidade considerada
normal, trata-se de um processo de despojamento da identidade considerada aceitável”
(ANTUNES, 2013, p. 60). Isso, a priori, poderia ser remediado com uma apelação para um
Tribunal composto unicamente de juízes devidamente investidos. Todavia, como relembra
Adorno (1994, p. 142), “Ao corpo de jurados cabe decidir […] sentença irrecorrível – ‘a decisão
do júri é soberana’ – a menos que constatadas irregularidades processuais”.
Por todos esses motivos, deve-se ter cuidado ao se utilizar o direito do silêncio, pois
ainda que ele represente a máxima do nemo tenetur se detegere, um jurado da sociedade civil
não está preso à norma processual. Ele não tem o dever de ignorar o silêncio do acusado,
podendo interpretá-lo como bem entender. Assim, em litígios que envolvam crimes dolosos
contra a vida, a defesa deve ponderar cuidadosamente sobre a utilização de seu maior trunfo.
Como é sabido, existe a expressão “Quem cala, consente”, que é assimilada em
paralelo com a premissa de que “Quem não deve, não teme”. Ainda que os jurados sejam
instruídos a deixar de lado tais preconcepções quando estejam integrando o Tribunal do Júri,
eles continuam a carregá-las, pois são indissociáveis (SCHRITZMEYER, 2012), tendo em vista
que advém de conhecimento popular concretizado e amplamente adotado.
Isso acaba por construir um espaço profundamente árduo no qual a defesa pode
construir sua arguição. Essa já está, usualmente, em desvantagem se forem considerados os
recursos e meios probatórios do Ministério Público. Aprofunda-se essa desigualdade ao se
perceber que sua principal estratégia – qual seja, a contestação de autoria por meio do
interrogatório do réu – pode ser recepcionada com um amplo rol de suspeição, esta que pode
resultar em um ímpeto para condenar. Se abrir mão dessa estratégia, instruindo o réu a usar
amplamente seu direito ao silêncio, recusando-se a responder seus acusadores, perde, de igual
medida, credibilidade.
Em face disso, é perceptível que a melhor estratégia para a defesa é manter a
contestação de autoria por meio do manuseio dialético das informações providas durante o
interrogatório do réu. Ainda que, no Tribunal do Júri, presencie hostilidade natural e imediata,
deve atuar no escopo que é capaz, a despeito das limitações impostas pelos jurados civis.
Entretanto, surge a indagação: quando o indivíduo possui algum tipo de deficit conversacional,
o quão este pode acabar prejudicando seu depoimento e, consequentemente, fragilizando ainda
mais sua defesa?
P á g i n a | 156
19
Importa ressaltar, ademais, que o autista ainda é considerado, pela sociedade hodierna, um sujeito propenso à
violência. Bispo (2020) defende que tal visão é fruto do século XX, quando o autista era visto como doente mental.
À época, esse termo carregava hostilidade, que foi, quiçá, transposta para os portadores de TEA e se mantém até
hoje. Porém, como o próprio acadêmico ressalta, a “associação sem bases científicas para tanto traduz-se em
prática discriminatória, ferindo a própria dignidade humana, fundamento da República”. Causa, pois, “indignação
no meio social a tentativa de conectar o autismo [...] com a violência ou a criminalidade.” (BISPO, 2020, p. 4-5).
20
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: An obsessional interest might lead someone to committing
an offence in the pursuit of that interest, perhaps exacerbated by a failure to recognise the implications of his/her
behaviour for him/herself and others”.
P á g i n a | 157
Também recai sobre esses sujeitos o perigo da suscetibilidade, pois são suscetíveis à
manipulação, o que, no interrogatório, pode-se mostrar preocupante, tendo em vista que é usual
para o Ministério Público pressionar os réus a fim de darem respostas contraditórias ou de
conteúdo confessional (TRISTÃO, 2008). De acordo com Howlin apud King e Murphy (2014,
p. 2718), a “baixa compreensão das situações sociais (e fracas habilidades de negociação)”
podem deixar “as pessoas com TEA abertas à manipulação por outros (tradução nossa)21”.
Por esse motivo, nos casos em que figure como réu um indivíduo no espectro autista,
é preciso que a defesa o prepare (normalmente com o auxílio de alguém que o deixe confortável)
com deliberada cautela e repetido esforço. Isso pode se mostrar um árduo desafio se o réu estiver
preso (portanto, em ambiente hostil) ou possuir um grau de autismo elevado ao ponto de não
conseguir assimilar instruções ou conceitos-chave para sua defesa22.
Freckelton apud King e Murphy (2014, p. 2718) crê que essa última questão é uma das
mais preocupantes, pois influencia “a aptidão de uma pessoa para pleitear, arrogar
culpabilidade, responsabilidade criminal e habilidade de sobreviver às alienações de custódia
(tradução nossa).” Assim, se o indivíduo é incapaz de, por si próprio, pleitear sua absolvição
por meio da dialética, ele é impróprio para ser interrogado, pois pode proferir uma série de
depoimentos imprevisíveis, que, de certeza, resultarão em autoincriminação ou em vilipêndio.
King e Murphy concluem, logo, que “dados seus deficit de comunicação e problemas
de funcionamento social, pessoas com TEA podem ter dificuldade em lidar com interrogatórios
policiais e no tribunal, como fazem as pessoas com DI [Deficiências Intelectuais] (tradução
nossa)23”. Tais deficit podem, ainda, “restringir a capacidade de uma pessoa de relatar
vitimização […] [e] podem impedir a capacidade de um indivíduo de consultar e auxiliar seu
advogado (tradução nossa)24.” (MAYES, 2016, p. 93-94).
Nessa perspectiva, Mayes (2016, p. 96) resume o maior desafio nos litígios criminais
nos quais figura como réu um portador de TEA, quando afirma que
21
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: “A lack of understanding of social situations (and poor
negotiating skills) […] may leave people with an ASD open to manipulation by others”.
22
Tentar fazer com que um autista retenha ordens, sugestões ou conceitos abstratos é deveras dificultoso, pois,
conforme Amorim (2008, p. 52-55), alguns autistas são incapazes até de “atingir noção de temporalidade e morte,
já que para estes são necessárias capacidade de simbolização, abstração e meta-representações.” Desse modo, se
eles possuem dificuldade em assimilar conceitos tão básicos, é bastante improvável de que sejam capazes de,
metodicamente, decorar e pronunciar suas defesas.
23
Transcreve-se, à seguir, o texto original em inglês: “given their communication deficit and social functioning
difficulties, people with ASD might struggle to cope in police interviews and in court, like people with ID do”.
24
Transcreve-se, à seguir, o texto original em inglês: “communication impairments may restrict a person’s ability
to report victimization [...] [and] may impede an individual’s ability to consult with and assist counsel”.
P á g i n a | 158
o testemunho oferecido por uma pessoa com autismo [...] ocasionalmente representa
um desafio especial à maneira costumeira com que um tribunal conduz um julgamento
e recebe provas. Em particular, vários réus desconfiam da capacidade de uma vítima
com autismo de testemunhar em tribunal (tradução nossa)25.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o discutido nas seções desse artigo, pode-se concluir que, sendo o réu
autista e o litígio apreciado pelo Tribunal do Júri, a defesa se encontra em fragilidade. Colocar
um portador de TEA para ser interrogado é um grande risco, tendo em vista suas dificuldades
conversacionais e suas possíveis crises de violência imprevisíveis. Todavia, exercer o direito
ao silêncio pode se mostrar ainda mais perigoso, uma vez que desperta as suspeitas dos jurados
e aumenta a hostilidade, já tão usual, que esses têm dos réus acusados de crimes contra a vida.
É importante, pois, que os advogados de defesa tenham altíssima cautela ao lidar com
réus pertencentes ao espectro autista, não apenas na última fase da instrução, como durante todo
o processo. Seria essencial que os demais envolvidos no litígio trabalhassem em conjunto para
prover ao réu um ambiente em que se sinta confortável o suficiente para expor sua visão dos
fatos ou pleitear sua inocência. Todavia, como o Tribunal do Júri se assenta na premissa
teatralizada de auferir legitimidade ao Estado para, em resposta aos crimes dolosos contra a
vida, reprimir gravemente o agente, tal assertiva é utópica na melhor das hipóteses.
25
Transcreve-se, à seguir, o texto original em inglês: “testimony offered by a person with autism […] occasionally
poses a special challenge to the customary manner in which a court conducts a trial and receives evidence. In
particular, several defendants have challenged the ability of a crime victim with autism to testify in court.
P á g i n a | 159
Assim, o advogado de defesa deve trabalhar arduamente para tentar balancear, no que
for possível, as disparidades entre acusador e acusado, quando este último possuir Transtorno
do Espectro Autista. Precisa pleitear semi-imputabilidade; ajudar repetidamente seu cliente para
que consiga assimilar suas respostas; formular uma defesa cujo núcleo argumentativo seja de
fácil compreensão; dentre outros. Somente com a cautela hiperbólica de seu procurador, pode
o acusado autista ter a mínima chance de sua inocência considerada com seriedade.
REFERÊNCIAS
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tribunal do júri. Revista USP, n. 21, p. 132-151. 1994.
BISPO, Wallace Nascimento. O tratamento jurídico-penal brasileiro dado aos crimes cometidos
pelos portadores da Síndrome de Asperger: uma análise sobre Christian Wolff. Revista Direito
no Cinema, Bahia, v. 2, n. 2, p. 74-80. 2020.
BRASIL. Decreto-Lei Nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 4
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KANITZ, Gabriela Carvalho. O EPD e o Paradoxo entre o Direito Civil e o Direito Penal.
Direito UNIFACS – Debate Virtual, Salvador, n. 216. 2018.
P á g i n a | 160
KING, Claire; MURPHY, Glynis H. A Systematic Review of People with Autism Spectrum
Disorder and the Criminal Justice System. Journal of Autism and Development Disorder,
Nova York, v. 44, p. 2717-2733. 2014.
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 7 ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
MASSOM, Cleber. Código Penal Comentado. 2 ed. São Paulo: Método, 2014.
MAYES, Thomas A. Persons with Autism and Criminal Justice: Core Concepts and Leading
Cases. Journal of Positive Behavior Interventions, Filadélfia, v. 3, n. 2, p. 92-100. 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 17 ed. Rio de Janeiro:
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RORIZ, Diana Catarina Amorim; CANIÇO, Hernâni Pombas. Autismo: o Doente, a Família e
a Sociedade. Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016. Disponível em:
<https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/33722/1/Tese%20Mestrado%20Diana%20Rori
z.pdf >. Acesso em: 4 ago. 2020.
TRISTÃO, Adalto Dias. Aspectos relevantes do interrogatório como meio de defesa. Tese
(Mestrado em Direito Processual Penal) – Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2008.
ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 7º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. E-mail:
damngerhl@gmail.com
2
No contexto deste trabalho, sempre considerar o termo “estadual” relativo ao Estado do Rio Grande do Norte.
3
A partir de agora, adotar-se-á a sigla LGBT (singular) e LGBTs (plural), que é o “acrônimo de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais. Eventualmente algumas pessoas utilizam a sigla GLBT, ou mesmo LGBTTT,
incluindo as pessoas transgênero/queer” (JESUS, 2012, p. 30).
P á g i n a | 163
Importa apontar a violência que essa parcela da população vivencia nesse contexto
sócio-histórico. Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia4 (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p.
12), em 2019 foram registradas “329 LGBT+ […] tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da
homotransfobia: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%)”, equivalendo a 1 morte a cada
26 horas (OLIVEIRA; MOTT, p. 13). Outrossim, segundo Boletim nº 05/2020 da Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2020), durante o lapso temporal de 1º de janeiro
a 31 de agosto de 2020, foram registrados 151 assassinatos de pessoas “trans”, o que
corresponde a um aumento de 22% em relação ao mesmo período do ano passado (ANTRA,
2020). Dados como esses escancaram a veemente opressão contra pessoas LGBTs,
exponenciada no contexto da pandemia do novo coronavírus.
Observa-se, a priori, que esses dados evidenciam um extermínio sistemático de LGBTs
motivado pelos discursos de ódio bradados em todas as instâncias da vida social potencializado
pela vulnerabilidade dessas populações. A título de exemplo, pode ser citado homicídio de
Dandara dos Santos, travesti de 42, morta a tiros na capital cearense em 15 de fevereiro de 2017
em plena luz do dia depois de ter sido espancada.
Por isso, o presente trabalho se torna relevante em razão da atualidade do tema da
LGBTfobia5, considerando o recente julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
26, enviada à Corte em 2013 pelo Partido Popular Socialista, e o Mandado de Injunção nº 4.733,
protocolado em 2012 pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros, decidindo
o Supremo Tribunal Federal enquadrar condutas LGBTfóbicas na tipificação da Lei do
Racismo, até que o Congresso Nacional edite lei específica6 (BRASIL, 2019).
Diante disso, a compreensão crítica do direito para além de normas justificada está a
importância deste estudo, evidenciando-se sua importância social, cultural e política. Sendo
assim, analisa-se as relações jurídicas inseridas dentro de um contexto histórico, material e
dialético. Além dos pontos citados, aponta-se como justificativa essencial a conexão do tema
com a autora, de forma que a consciência das opressões que vivencia seja pensada numa
perspectiva científica no âmbito da pesquisa, enquanto forma de tornar o conhecimento
potência de transformação social.
4
A partir de agora, adotar-se-á a sigla GGB.
5
Pontes (2018, p. 8) compreende a LGBTfobia como “termo utilizado para caracterizar condutas de discriminação
e preconceito sofridas pela população LGBT [...] em virtude da sua orientação sexual, identidade ou expressão de
gênero”, ou seja, devido a essas pessoas não se encontram dentro dos rígidos conceitos ancorados na
heteronormatividade e na lógica binária de gênero, tais como heterossexualidade, homem masculino e mulher
feminina.
6
A ADO teve relatoria do ministro Celso de Mello, e a MI, do ministro Edson Fachin; o julgamento foi concluído
no dia 13 de junho de 2019 (BRASIL, 2019).
P á g i n a | 164
Nesse sentido, cumpre apresentar a seguinte questão: com base numa leitura marxista
dos direitos humanos, em que medida o “RN Sem LGBTfobia” e a “Lei Dandara” são
eficientes, uma vez que convergem para a disputa pela ampliação de direitos de pessoas LGBTs
ao mesmo tempo em que também demandam o aumento do encarceramento?
A partir disso, objetiva-se: de forma geral, compreender quais são as limitações
formais e materiais que os textos legislativos aqui analisados impõem para o exercício do
Estado Democrático de Direito para as pessoas LGBTs. Ademais, de forma específica: (i)
apresentar os conceitos de direitos humanos e argumentar acerca de sua disputa na história das
lutas de classes; (ii) analisar concretamente principais ações propostas pelo movimento LGBT
brasileiro, desde a Ditadura Militar (1964-1985) até os dias atuais; e (iii) identificar a tônica do
PL nº 7292/2017 e da Lei Estadual nº 9036/2007, que propõem modificações estruturais do
direito e do Estado a partir de pautas LGBTs.
Na primeira seção, tendo em vista que o método desta pesquisa é o materialismo
histórico e dialético, são apresentados os conceitos de direitos humanos de perspectiva marxista,
atendo-se a contradições ideológicas, portanto, dialéticas, em todos os âmbitos da sociedade,
inclusive no jurídico. Tais contradições acendem com a contextualização das ações do
movimento LGBT brasileiro na esteira da Ditadura Militar (1964-1985), e, logo em seguida,
toca-se em pontos de confrontos vivenciados na ocasião da Constituinte de 1987 entre líderes
do movimento e os formuladores da posterior Constituição Federal de 1988.
Por se tratar de uma pesquisa exploratória e explicativa, recorreu-se a revisão literária
da história do movimento, ou seja, a adoção do método de pesquisa bibliográfica e da técnica
de coleta documental, nas quais foram apontados limites e contradições. Para efeito analítico,
foram consultados dispositivos dos textos legislativos supramencionados. Já para uma
compreensão mais apurada a respeito de como são conquistados os direitos por grupos
historicamente oprimidos, foram apreendidas leituras de sociologia jurídica e ciência política
de base marxista, uma vez que a compreensão que ora se discute é que o direito e o Estado são
instrumentos de disputa de classes antagônicas.
7
Chama atenção o caso “da morte de Michael Morgan Noronha, 57, pai de santo, morto em Campo Grande (MS),
pelo pintor Leonardo Rodrigues Jure, 25” (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p. 100), tendo o homicídio ocorrido no dia
30 de julho de 2018 e o réu relatado que prática do crime foi motivada “por medo de ter o relacionamento amoroso
exposto à sociedade, devido as chantagens feitas pela vítima” (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p. 100), o que
potencializa o argumento que as regras de heteronormatividades é um dos pilares da LGBTfobia.
8
O jurista marxista soviético argumenta que “o caráter ideológico de um conceito não elimina aquelas relações
reais e materiais que este imprime” (PACHUKANIS, 2017, p. 89).
P á g i n a | 166
(MARX, 2017, p. 146). Consoante Marx (2017, p. 146), é somente reunida na luta que essa
massa se constitui em “classe para si”, e os interesses – as “bandeiras” – defendidos “se tornam
interesses de classe”.
Dito isso, é partir da “luta política” (MARX, 2017, p. 146) com classes que defendem
interesses antagônicos que a dialética da história é ressignificada. E, nesse contexto, os dos
direitos humanos passam a ser objeto de disputa. Sendo assim, os direitos humanos, consoante
Lyra Filho (2006, p. 10-11):
conscientizam e declaram o que vai sendo adquirido nas lutas sociais e dentro da
História, para transformar-se em opção jurídica indeclinável. E condenam, é evidente,
qualquer Estado ou legislação que deseje paralisar o constante progresso, através de
ditaduras burocrático-policiais, sejam elas cínicas e ostensivas ou hipócritas e
disfarçadas.
Nesse sentido, não se pode perder de vista que os indivíduos não estão isolados em
universos paralelos, mas vivendo em sociedade, onde há a disputa de ideologias, construção de
consciências e identidades construídas a partir de bases materiais já existentes em suas classes
(MARX; ENGELS, 1998). Para Marx (2008, p. 47), “não é a consciência dos homens que
determina o seu ser”, mas o contrário; e essa consciência é o resultado da totalidade das relações
sociais de produção de base capitalista, as quais são constituídas pela “estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais”.
Por ser um movimento social, a luta LGBT não se fará com nenhuma ou pouca
contradição, uma vez que suas bandeiras foram levantadas – e ainda o são, ressignificadas no
processo dialético – “em torno do significado do casamento, da família, da parentalidade e da
própria identidade pessoal” (idem), descaracterizando a ideia de “pautas minoritárias” para
“pautas de grupos sem visibilidade social e política” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 11).
Desse modo, o movimento LGBT, tornando-se “um terreno político por excelência”
(SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 12) assim como outros movimentos progressistas910, passa a
questionar a autoridade do Estado brasileiro no tocante à ausência de políticas públicas e do
exercício da cidadania – em outras palavras, de direitos.
Convém ressaltar que publicizar a orientação sexual ou a identidade de gênero em
tempos de ditadura não era fácil, mas o movimento LGBT tornava esse ato como significado
de “uma afirmação de pertencimento e uma tomada de posição diante das normas sociais que
condenam, hostilizam ou reprimir a expressão da diversidade de orientação sexual [e de
identidade de gênero]” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 33). Ademais, essa resistência não deve
ser contextualizada isoladamente; pelo contrário, deve ser submetida à análise concreta de “uma
série de planejamento de combate a inúmeras violências e relatos de homicídios sofridos por
pessoas que fugiam de uma regra moral pautada na heterossexualidade normativa” (ROZARIO,
2018, p. 5), tendo, como consequência da organização, a elaboração de “um cronograma de
9
Cf. Pires (2018, p. 1059), confrontando com a ideia de “democracia racial”, destacam-se a atuação de grupos
cariocas como Movimento Negro Unificado (MNU), Grupo de União e Conscientização Negra (GRUCON),
Movimento Negro da Baixada (MNB), Clube Palmares (Volta Redonda/RJ), Grupo de Danças OLORUM BABA
MIM, Associação Cultural Afro-Brasileira e Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA).
10
Cf. Colling (2015, p. 375-77), da mesma forma, o movimento feminista brasileiro, que nos anos 1960 vivencia
uma “segunda onda”, passa a disputar, no contexto da ditadura militar, o espaço público e o político, levando ao
engajamento de mulheres em partidos de esquerda e organizações clandestinas.
P á g i n a | 168
De forma complementar, o art. 3º, IV, dispõe sobre a promoção do “bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
como um dos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, enquanto o art. 4º,
caput, II, dispõe que um dos princípios que regem as relações internacionais a República
Federativa do Brasil é a prevalência de direitos humanos.
Entretanto, Marmelstein (2014, p. 78) acredita que há violação do direito à igualdade
por parte do Estado brasileiro quando apresenta discussão acerca da discriminação às pessoas
LGBT no âmbito jurídico, como casamento homoafetivo (favorável pelo STF a partir da ADI
P á g i n a | 170
11
Ver, por exemplo, o material elaborado por BRASIL, 2020.
12
Em suas palavras: “A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade
burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral” (MARX, 2010, p. 54).
P á g i n a | 171
[…] práxis dos grupos e classes em ascensão [como também], à medida que essas
formulam os objetivos de sua luta, uma série de reivindicações, jurídicas também.
Isso, desde que por Direito não se tome, nem o que a ordem dominante estabelece,
nem um conjunto de princípios que não revelam bem de que fontes extraem substância
e validade e por que mudam, historicamente, ficando uns superados – como vimos,
quanto ao “dar a cada um o que é seu” – e outros aparecendo no horizonte, como, por
exemplo, o direito de todos a um nível de vida adequado, que emerge na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, consagrando um princípio ganho nas lutas
sociais mais modernas.
Assim, é possível apontar que essas reivindicações do movimento LGBT (as quais
podem e devem ser analisadas como “jurídicas também”) encontram na elaboração de leis –
por parte de parlamentares que discursam em defesa da cidadania, dos direitos humanos, do
respeito, do combate às discriminações, entre outros direitos essenciais, em tese garantidos pela
Constituição Federal de 1988 – o viés dado como legítimo, no contexto do Estado Democrático
de Direito brasileiro, de mudança da legislação para garantir o tripé cidadania-direitos-justiça a
corpos tão massacrados e negados historicamente.
No ano de 2017 o Projeto de Lei Federal nº 7.292 (BRASIL, 2017, online), de autoria
da deputada Luizianne Lins, pretendendo modificar o art. 121 do Código Penal, criando o tipo
penal de homicídio motivados pelo ódio a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
P á g i n a | 173
transgêneros e travestis (LGBTs), bem como também o art. 1º da Lei nº 8072/1990, incluindo
o “LGBTcídio” no rol de crimes hediondos.
Assim sendo, o PL, que foi intitulado com o nome da travesti cearense assassinada
(conforme mencionado na Introdução), faz alusão aos alarmantes dados de assassinato da
população travesti e transexual do Brasil. Segundo Lins (2017):
Sofremos com a ausência de leis que garantam proteção a esse segmento da população
e esse é um dos fatores que geram a vulnerabilidade. Esses crimes são tipificados por
discriminação e menosprezo à condição de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais, ou seja, cometidos exclusivamente pelo ódio e merecem a devida atenção
e punição.
Não é por acaso que o ativismo tem enfatizado a denúncia das violências específicas
contra a homossexualidade. De modo semelhante à “misoginia” ou o “machismo”,
para o caso do movimento feminista, e ao “racismo”, para o caso do movimento negro,
a homofobia aparece para o movimento LGBT como uma âncora a partir da qual se
procura estruturar as identidades coletivas associadas ao movimento e legitimar a
perspectiva de outras conquistas no campo dos direitos e da política.
13
Em reunião deliberativa de julho de 2018, o PL sofreu obstrução na Comissão de Direitos Humanos e Minoria
da Câmara dos Deputados. Para o deputado Éder Mauro indagou: “Com tanta coisa ruim acontecendo no Brasil,
como a corrupção, porque vamos discutir LGBTcídio? Como é que eu, como delegado, vou ter que perguntar para
uma família se a vítima era gay ou hétero para enquadrar”. Cf. BRASIL, 2018.
P á g i n a | 174
inclusão de mais uma qualificadora no crime de homicídio. Tal alteração pode ser
contextualizada como parte do “paralelo entre a eclosão da influência política e aceitação social
da democracia liberal-representativa como projeto emancipatório e a estabilização da
acumulação neoliberal na ordem capitalista” (DEMIER; GONÇALVEZ, 2017, p. 2354-5), cujo
regime “nunca perdeu sua qualidade de dominação de classe” (DEMIER; GONÇALVEZ, 2017,
p. 2356).
Nos marcos do “Estado Democrático de Direito”, vigora chamada a teoria mista ou
unificada da pena, adotada pelo Código Penal brasileiro, conforme redação de seu art. 59, caput,
que dispõe que o juiz estabelecerá a pena “conforme seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime”. Desta forma, evidencia-se que punir, em última instância,
significa reprovar e prevenir. Sendo assim, o PL ora em análise se apresenta como medida
paliativa que não inova, mas, quando muito, dificulta ou impossibilita ressocializar de fato os
agressores, se possível, utilizando-se de meios alternativos que ampliam os métodos de fazer
justiça, como a justiça restaurativa ou reparadora, ou até mesmo considerar a reparação no
âmbito da responsabilidade civil.
Dentre esses métodos,
a chamada justiça restaurativa […] procura realizar uma espécie de encontro entre a
vítima e o infrator ou criminoso, para que atenda as duas partes envolvidas e procure,
portanto, a mediação dos conflitos, apostando na voluntariedade das partes (SILVA,
2006, p. 116).
Centrando-se, pois, no texto do “RN sem LGBTfobia” (MINEIRO, 2017, online) são
apresentados os seguintes dispositivos:
“combate à violência”, mas quanto às violências já praticadas nas famílias, nas escolas, em
espaços públicos e privados14: como lidar com elas?
Ademais, o texto ainda propõe multas e outras formas de penalização que objetivam a
mudança ou, pelo menos, a redução de índices de violência contra pessoas LGBTs no Rio
Grande do Norte. Portanto, trata-se apenas elaborar índices e de criminalizar o que, segundo a
Constituição de 1988 e o Código Penal em vigor, já são penalizados. Por outro lado, defende
Mineiro (2017) que: “Para mudar essa realidade, é preciso fortalecer a consciência individual e
social na luta contra a LGBTfobia”.
Dito isso, embora as pesquisas apresentadas careçam de dados acerca de renda dos
violentadores, é possível apontar que “nos moldes de uma sociedade de classes”, evidencia-se
que os alvos dos processos penais – os chamados “inimigos do direito penal” – são os pobres
uma vez que existe “um fetichismo cada vez maior pela pena” (ARAUJO, 2015, p. 370-1).
Sendo assim, o momento sócio-histórico observa apenas uma sofisticação do poder punitivo,
entrando em contradição com questionamentos, tais como: “nunca se prendeu tanto e, ainda
assim, alguém se sente seguro? Houve diminuição nos índices de criminalidade? Os clientes do
direito penal encontram a prometida ressocialização quando acabam de cumprir suas penas?”
(ARAUJO, 2015, p. 371). A todas essas respostas, o “não” sintomático, conforme provam os
números de condutas LGBTfóbicas exponenciadas ano a ano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
14
Nesse sentido, foi sancionada a Lei Estadual nº 10.761/2018, de autoria do então deputado Sandro Pimentel e
sancionada pela governadora Fátima Bezerra, dispondo “sobre a obrigatoriedade de afixação de cartaz em órgãos
públicos e privados, informando que a Lei Estadual nº 9.036/2007 proíbe e pune atos de discriminação em virtude
de orientação sexual e identidade de gênero”, e dando outras providências, como as dimensões e elementos que o
cartaz deve conter (art. 3º) e os valores da multa em caso de descumprimento (art. 4º) (RIO GRANDE DO NORTE,
2020).
P á g i n a | 177
contexto sócio-histórico em que são estabelecidas, evidencia-se que a mera proteção à tutela de
bens jurídicos – como a vida, a integridade e a honra – suscitam acusações vazias de
“privilégios”, o que fundamenta a leitura classista do direito.
Entretanto, é necessário atentar que os dados apresentados de mortes de pessoas LGBT
revelam antes o contrário: que existe uma sistemática de negação de direitos básicos. O
casamento civil igualitário15 e mudança do prenome e gênero da pessoa transexual sem
necessidade de cirurgia de resignação sexual16 foram conquistados com base na organização do
movimento LGBTs em torno de suas próprias demandas. Ou seja, foram estabelecidos
interesses/pautas comuns (classe em si), e partir deles organizada a luta para sua conquista
(classe para si). Portanto, não podem ser rotulados de “privilégios”.
Dito isso, os textos legais supramencionados devem ser analisados com base no
método dialético marxista: as pautas LGBTs são organizados nas ruas e em periódicos a partir
do contexto imposto pela Ditadura Militar de 1964-1985 – afirmação – entram em contradição
também com o ordenamento jurídico brasileiro, no que tangem a ausência de direitos de
liberdade de expressão, cidadania e dignidade humana – negação –, e, por isso, passam a
disputar os rumos do país na Constituinte de 1987-1988, a qual elabora uma nova Constituição
Federal em 1988 com garantias fundamentais como base do “Estado Democrático de Direito”
– negação da negação. Entretanto, observando a ineficiência material de tais dispositivos, o
movimento LGBT luta para conquistar direitos específicos – negação da negação da negação.
Tal processo se revela essencial ao movimento ontológico.
Enfim, clara está a suficiências de textos como a Lei nº 7292/2017 e o PL nº
7.292/2017 somente para disputar a construção da emancipação política de pessoas LGBTs nos
limites da democracia liberal-representativa, uma vez que não propõem rupturas estruturais,
mas expansão do Estado penal, ignorando medidas alternativas de punição. Ou seja,
contraditório inclusive em si. Entretanto, desnudam-se materialmente insuficientes para aqueles
que sonham e lutam pela ruptura estrutural da qual floresça a emancipação humana.
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uma criminologia do século XXI. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 356-375,
jan./fev. 2015.
15
Regulamento a partir da Resolução nº 175/2015 do Conselho Nacional de Justiça.
16
A partir da ADI nº 4275/2018.
P á g i n a | 178
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P á g i n a | 181
ABSTRACT
Considering the data, from the most diverse origins, which point to the
violence to which LGBT people are subjected in Brazil, with special
attention in Rio Grande do Norte, this work aims to understand how the
history of the Brazilian LGBT movement contributes to changes in the
positivized and are modified by him, based on the analysis of the “RN
Without Homophobia” (Law nº 9,036/2007) and the “Dandara Law”
(Bill nº 7,292/2017) that propose to take specific discussions, regarding
that population, for the criticism of the legal system. The methodology
is analytical, reviewing bibliographic readings that present a history of
the Brazilian LGBT movement, being legal with a legal basis – starting
from the fundamental principles of the 1988 Federal Constitution, and
from changes that the legislative texts now studied propose to criminal
law – as well as criticism based on Marxist reading, highlighting
categories that contribute to a totalizing understanding. We conclude
that, although they are sufficient in a concrete socio-historical context,
they are rather the opposite when fighting for the structural rupture
towards human emancipation.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Especialista em Direito e Processo Administrativos pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Bacharela em
Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Advogada OAB/CE 36.213.
P á g i n a | 183
do trabalho reside na análise dessas funções, as origens e o dever do atendimento pelas gestões
públicas, sob a perspectiva do Direito Constitucional.
A metodologia empregada para a realização deste trabalho científico de viés
qualitativo utilizou a pesquisa exploratória – no que concerne ao estudo dos aspectos presentes
no instituto da propriedade modificado no tempo e no espaço – e explicativo – quando
relacionada aos contextos urbanos e atuais –, pois apoiada em doutrinas e trabalhos científicos
desenvolvidos na área.
Por último, intentou-se, através deste trabalho, contribuir para a observação das
funções da propriedade urbana, como garantidoras de direitos sociais básicos nos ambientes
urbanos sustentáveis.
Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente
estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito
de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e
que parecem terem sido inseparáveis. A ideia de propriedade privada fazia parte da
própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não
podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a ela; era sua propriedade
exclusiva. (COULANGES, 2006, online)
Nesse interstício, a concepção que havia de propriedade tomou, aos poucos, outros
rumos, vagando agora por terrenos de maior interesse social e coletivo, quase que relembrando
os tempos antigos de coletivização dos bens. Neste trajeto, verifica-se o retorno parcial ao que
se concretizou no passado, impossibilitada a continuidade do sistema da propriedade vivido
como antes, na completa coletivização, muito menos, como depois se apresentou, no uso
indiscriminado da coisa, sem restrição alguma em prol da coletividade.
No início da Carta Constitucional de 1988, artigo 5º, inciso XXII3, surge a referência
norteadora do instituto da propriedade, resguardada como direito e garantia fundamentais, bem
como direito e dever individuais e coletivos, determinando que todos têm o direito garantido à
propriedade. Embora não se distinga se propriedade mobiliária ou imobiliária, coerente à
própria sobrevivência humana, é necessário um arcabouço mínimo capaz de garantir moradia,
alimentação, vestuário, dentre vários outros bens passíveis de apropriação.
2
O direito de usar, gozar e dispor.
3
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
P á g i n a | 185
Carlos Roberto Gonçalves (2007, p.115), por sua vez, questiona a perda da propriedade
pela falta da devida finalidade atribuída, enquanto o mesmo tratamento não acontece se, pelo
completo abandono, a coisa não for mais utilizada.
A proposta do pensamento mais moderno, aliado à orientação constitucional, justifica-
se na insuficiência e incoerência dos parâmetros que perduraram até então, cabendo a discussão
de finalidade social e funções da cidade como medidores de eficiência da propriedade urbana.
4
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III - função social da propriedade;
P á g i n a | 186
Com as normas dos arts. 182 e 183, a Constituição fundamenta a doutrina segundo a
qual a propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de
cumprir sua função social específica: realizar as chamadas funções urbanísticas de
propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e de
circulação humana. (SILVA, 2011, p. 819)
Muito embora tais funções da cidade não estejam expressas no art. 182, o direito ao
trabalho, à moradia, ao transporte e ao lazer encontram-se previstos no art. 6º da CF/19886
como direitos sociais e como a base para a proteção das funções urbanas.
Coube ao Direito Urbanístico organizar a política de desenvolvimento urbano,
baseando-se nos supracitados artigos constitucionais, e adicionar o caráter de ordenação tão
próprio dos demais instrumentos reguladores das cidades. Em atenção a este conjunto de
elementos normativos que configuram a base do Direito Urbanístico, cabe ao gestor público a
execução destas normas em prol do interesse público, isto é, o pleno desenvolvimento das
funções socias da cidade aliado à garantia do bem-estar de seus habitantes.
5
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem- estar de seus habitantes.
6
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
P á g i n a | 187
Por isso é que, na observação justa de Pedro Escribano Collado, a função social da
propriedade privada urbana repousa num pressuposto de primordial importância, qual
seja o de que a atividade urbanística constitui uma função pública da Administração,
que, em consequência, ostenta o poder de determinar a ordenação urbanística das
cidades, implicando, nisso, a iniciativa privada e os direitos patrimoniais dos
particulares. Nesse sentido é que se pode dar razão ao ministro Moreira Alves, quando
afirma que a função social da propriedade urbana visa atender as funções do
urbanismo, que se reduzem a quatro: a habitação, o trabalho, a recreação e a circulação
dos homens dentro do território urbano. (SILVA, 1980, p. 6)
Pode-se afirmar que a relação entre função social da propriedade urbana e funções da
cidade tangencia questões de interesse social e melhoria das condições de vida da população,
quando o planejamento urbano é orientado no sentido de promover os direitos supracitados.
Isto porque o direito à cidade como direito subjetivo social (CARDOSO; THEMUDO, 2019)
abarca ambas as funções.
Essa relação, apesar de apontada como direta pela natureza dos institutos envolvidos,
não se encontra largamente difundida nas pesquisas científicas sobre os temas, pois
frequentemente são tratadas em espaços acadêmicos distintos: a função social da propriedade
urbana em discussões relacionadas aos estudos civilista e constitucional, enquanto as funções
sociais da cidade, em matérias de Direito urbanístico e, quando aprofundado, administrativo.
Por isto, o apoio jurisprudencial do entrelaçamento dos temas também é raro, o que demanda
pesquisas que se direcionem cada vez mais no sentido da comunicação entre as funções da
propriedade urbana.
A finalidade social da propriedade urbana é tudo aquilo que se propõe a desenvolver
o meio ambiente urbano e as necessidades da população, portanto combinável com as noções
de funções da cidade, quando não sinônimos. Em um paralelo de simples visualização, tem-se
que a propriedade seria o direito assegurado e a função social, o dever relacionado ao direito
fundamental, não configurando qualquer incompatibilidade entre ambas (PIRES, 2005, p. 74).
Consequentemente, pode-se concluir, pelo caráter de também de dever que as funções da cidade
apresentam.
Esta cidade que busca a sua nova identidade, que procura descobrir suas verdadeiras
funções sociais, a cidade sustentável, a cidade conectada em redes sociais e
econômicas, ao meio-ambiente, a cidade que cumpre com suas funções de
proporcionar o desenvolvimento e garantir o bem-estar de seus habitantes. A nova
cidade ideal traz em seu interior muitos dos conceitos das clássicas utopias, mas que
em realidade ainda possui os históricos problemas da velha cidade moderna, neste
período de mudança de paradigmas, de transição entre a sociedade industrial para a
sociedade da informação. (BERNARDI, 2006, p. 41)
A partir da conexão estabelecida entre tais institutos, cabe, por fim, analisá-los sob a
perspectiva prática, enquanto caracteres presentes na propriedade urbana e, consequentemente,
nas malhas urbanas as quais abrigam as relações humanas diárias.
Considerar atualmente a propriedade desligada de sua função social custaria muito
caro à sociedade e ao ambiente. O movimento de limitação dos direitos desenfreados, os quais
anteriormente eram aceitos como extensão do uso, do gozo e da disposição da propriedade,
segue uma necessidade decorrente da vida em sociedade.
[...] ainda que leis e códigos permaneçam intactos, as necessidades surgidas na vida
em sociedade acabam por formar constantemente novas instituições jurídicas. Nesse
contexto, foi a necessidade de superar as concepções individualistas do direito
privado, nas quais o homem é tomado isoladamente, que resultou na consagração da
noção de função social da propriedade. Influenciado pela filosofia positivista de
Augusto Comte, Leon Duguit chegou à conclusão de que a propriedade não tem mais
um caráter absoluto e que nem o homem nem a coletividade têm direitos, mas cada
indivíduo tem uma função a cumprir na sociedade. Estes seriam os fundamentos da
regra de Direito que impõe deveres a todos, inclusive ao Estado. (JELINEK, 2006, p.
10)
produziu a liberdade, mas não nos permitiu enxergar o outro. Tornamo-nos cegos e
surdos diante dos que nos cercam. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 306, v. 5)
Mas é certo que o princípio da função social não autoriza a suprimir, por via
legislativa, a instituição da propriedade privada. Contudo, parece-nos que pode
fundamentar a socialização de algum tipo de propriedade, onde precisa mente isso se
tome necessário à realização do princípio, que se põe acima do interesse individual.
Por outro lado, em concreto, também não autoriza a esvaziar a propriedade de seu
conteúdo essencial mínimo, sem indenização, porque este está assegurado pelas
normas de garantia do respectivo direito. (SILVA, 1980, p. 6)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
envolvidas e seus diferentes objetivos de vida - requer atentar para o cumprimento de sua função
social.
O fim social, tomado sob uma perspectiva mais abrangente, deve atender aos interesses
coletivos e à preservação do ambiente, através do uso racional e de acordo com as finalidades
para as quais o bem foi destinado. E as funções da cidade, por sua vez, servem de ferramentas
de ponderação para o uso, o gozo e a fruição das propriedades urbanas.
O dinamismo do planejamento urbano, concretizado pelas gestões municipais e pela
sociedade civil, carece de debates. Portanto, é necessário aliar as noções de funções da
propriedade, cujos conceitos já se encontram continuamente trabalhados pelas comunidades
técnica e acadêmica, às funções da cidade pela estreita relação com os interesses práticos das
populações.
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P á g i n a | 195
ABSTRACT
This work deals with the institute of urban property associated with its
social function and the functions of the city. It aims to analyze the
transformation of this institute from the period before the Federal
Constitution of 1988 to the present day, inserted in the Information Age.
This study was developed through bibliographic research, using
doctrine and scientific papers on the subject. The subject is of great
relevance, as it deals with practical issues that are frequent in the daily
journey of the urban population, bringing the urbanistic perspective of
the city's functions. Thus, the social and city functions are consecrated
as inherent to the urban property institute.
RESUMO
O objetivo deste artigo é versar sobre a positivação da igualdade entre
mulheres e homens no ordenamento jurídico brasileiro à luz do modelo
compartilhado de guarda. No Brasil, a sanção da Lei nº 13.058/2014
permite ao juiz definir, quando não há acordo dos pais e em nome do
suposto bem estar dos filhos, a guarda compartilhada. Afinal, o
compartilhamento da guarda significa uma redução das desigualdades
de gênero nas vivências parentais? A metodologia utilizada para
realização do trabalho consiste na revisão bibliográfica, de modo a
estabelecer as premissas teóricas e esclarecer os conceitos, examinando
as leis brasileiras e delineando nexos com a matriz feminista. Conclui
que guarda compartilhada desestabiliza a assimetria de gênero,
desenhando modalidades plurais de paternidade e maternidade, mas não
representa o fim das desigualdades entre mulheres e homens na
parentalidade. É o que será aqui apresentado e discutido.
Palavras-Chave: Igualdade de gênero. Parentalidade. Guarda
compartilhada.
1 INTRODUÇÃO
1
Assistente Social. Mestra em Sociologia e Discente do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Estadual do Ceará
2
Assistente Social. Mestra em Sociologia e Docente do Curso de Bacharelado em Serviço Social, do Mestrado
Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
da Universidade Estadual do Ceará
P á g i n a | 197
Novo Código foi promulgado em 2002 e legitimou um conjunto importante de mudanças que
já vinham ocorrendo há décadas na sociedade, particularmente no que se refere à moral e à
organização familiar, na qual se inserem o divórcio e a situação que dele emana: a da guarda de
crianças e/ou adolescentes.
“O pessoal é político”: essa conhecida citação é raiz das críticas feministas à
convencional dicotomia liberal público/doméstico, permite considerar que o que acontece na
vida pessoal, particularmente nas relações afetivo-sexuais, não está imune às dinâmicas de
conflitualidade de poder. Nem o domínio da vida doméstica, pessoal, nem aquele da vida não
doméstica, econômica e política, podem ser interpretados isolados um do outro. Nessa esteira,
quando se pensa a necessidade de critérios para o Estado intervir ou não na vida familiar há um
equívoco decorrente dessa dicotomia público/privado. Isso porque a pergunta deveria ser no
sentido de quais são os limites da intervenção e não se intervém ou não (MIGUEL, 2014).
No plano da intervenção/regulação das responsabilidades parentais, quando os pais
não moram juntos, seja porque nunca moraram ou se separaram, é importante mencionar as
terminologias “guarda unilateral” ou “guarda compartilhada” - utilizadas para fazer referência
ao modelo de cuidado e responsabilidade em relação à criança e ao adolescente. Cumpre
lembrar que a Lei do Divórcio (Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977) não fazia referência
à expressão "guarda compartilhada", mas determinava que prevaleceria o que fosse extraído do
acordo em relação à guarda no caso de dissolução da sociedade conjugal.
Sancionada em 22 de dezembro de 2014 pela Presidente Dilma Rousseff, a chamada
“Nova Lei da Guarda Compartilhada” - Lei 13.058, alterou os artigos 1.583 a 1.585 e 1.634, da
Lei n° 10.406/2002 - Código Civil para estabelecer o significado da expressão guarda
compartilhada e dispor sobre a aplicação desse instituto jurídico. Cumpre referir algumas
inovações trazidas pela Lei 13.058/14: os genitores separados passam a ter tempo de convívio
com os filhos e uma distribuição equilibrada, devendo dividir as decisões sobre a sua vida; se
não houver acordo entre os genitores, o Juiz vai determinar, a depender das circunstâncias, que
ela seja compartilhada.
Considerando que a recente legislação favorece a responsabilização conjunta pelos
filhos, a questão precípua é: afinal, o compartilhamento obrigatório da guarda significa uma
redução das desigualdades de gênero nos papéis parentais? À luz deste questionamento, o
presente estudo tem por objetivo tratar da incorporação da guarda compartilhada, como modelo
para a parentalidade no Brasil e as suas consequências para a igualdade de gênero.
Em termos metodologia adotada, firma-se: a pesquisa é de natureza qualitativa, do tipo
bibliográfica. Assim, examinam-se textos e leis brasileiras de modo a estabelecer as premissas
P á g i n a | 198
círculos feministas, muitas vezes perde-se de vista o fato de que a massa das mulheres ainda
acredita que os homens não podem ter uma atuação parental efetiva (HOOKS, 2019).
Diante do fenômeno de contornos multifacetados que é a guarda compartilhada, estaria
este instituto a traçar uma clara via na efetivação do direito das crianças a um cuidado parental
simétrico e a reestruturar os costumes e hábitos maternos e paternos a fim de que as mulheres
não sejam as únicas provedoras desse cuidado? Hooks (2019) sugere que, na verdade, é a
eliminação do sexismo a solução para o problema do exercício desigual da parentalidade.
O feminismo, em suas várias vertentes, combina a militância pela igualdade de gênero
com a investigação relativa às causas e aos mecanismos de reprodução da dominação
masculina3 e, além disso, espelha transformações nos comportamentos, representações e
valores relativos à conjugalidade e à sua dissolução, à organização da vida familiar, à
maternidade, à paternidade, ao lugar da criança na família, e às relações sociais de gênero.
Duarte (2003) observa que a vitória do movimento feminista é inquestionável quando
se constata que suas bandeiras mais radicais tornaram parte integrante da sociedade, como, por
exemplo, mulher frequentar universidade, escolher profissão, receber salários iguais,
candidatar-se ao que quiser. “Tudo isso, que já foi um absurdo sonho utópico, faz parte de nosso
dia a dia e ninguém nem imagina mais um mundo diferente” (p. 151).
Hooks (2019) reconhece a pertinência e o vigor que as discussões contidas na seara
dos estudos feministas emprestam para a melhor compreensão das mudanças profundas na vida
de mulheres e homens que vivem nesta sociedade arraigada de valores machistas, patriarcais,
imperialistas e capitalistas. A autora prossegue e diz que todos obtiveram benefícios das
revoluções culturais postas em evidência pelo movimento feminista contemporâneo. No
entanto, uma coisa é certa: o movimento feminista não criou uma revolução feminista constante,
tampouco erradicou o patriarcado e/ou o sexismo. Assim sendo, as conquistas feministas estão
sempre em risco.
Tenha-se presente que a discussão sobre a guarda compartilhada está estreitamente
alicerçada nos lugares sociais atribuídos a mulheres e homens em uma dada sociedade e ao
3
Dono de uma linguagem própria, com vocabulário e conceitos específicos, Pierre Bourdieu construiu um
sofisticado repertório conceitual a partir de incursões em terrenos empíricos bastante diversificados que resultou
na elaboração de potentes noções e conceitos. Pode-se dizer que a teoria da dominação é o fio condutor de seu
corpus teórico. A dominação masculina hierarquiza o masculino e o feminino, sendo os homens os dominantes
que impõem seus valores e regras aos dominados que os internalizam de modo inconsciente, adotam seus esquemas
de pensamento e a eles se submetem. Os pilares dessa dominação são o Estado, a família, a igreja e a escola. Ela
é resultado de uma violência “invisível”, “insensível” e “suave” exerce-se principalmente por vias simbólicas, que
parece estar na “ordem das coisas”, não precisando ser enunciada ou justificada, dado que ela impõe as diferenças
biológicas entre mulheres e homens como seu fundamento natural e evidente, como se fosse uma dominação a-
histórica.
P á g i n a | 200
longo da história. Portanto, os distintos caminhos percorridos por diferentes países até a
regulamentação da guarda compartilhada representam as multifacetas desse controverso
instituto que abriga em suas arestas lócus de relações de gênero e de diversidade de papéis
parentais. Temas estes que ganham significativa robustez e visibilidade na agenda feminista.
Grupos sociais de naturezas diversas lutaram pela legalização da guarda compartilhada
em diferentes países. Essa diversidade fala das nuanças do sistema de gênero de cada um, do
lugar dado às mulheres e como estas são subjetivadas no dispositivo materno. Ressalta-se o
processo em alguns países: no Canadá, foram os movimentos feministas que exigiram, em 1980,
a autoridade parental compartilhada ao Poder Legislativo (Coté, 2016); em Portugal, a
instituição da guarda compartilha foi um resultado da coalizão entre os interesses feministas e
os direitos dos pais-homens (Marinho, 2011; Aboim, 2006). No Brasil, advoga Simioni (2015),
foram os grupos de defesa dos direitos dos pais-homens que se organizaram para instituir a
guarda compartilhada. “A redação e a luta pela aprovação da lei dessa modalidade de guarda
não contaram com a participação nem de grupos feministas nem dos grupos de mulheres-mães,
os quais não a reivindicavam” (RIBEIRO, p. 87).
Por seu turno, Coté (2016) põe em causa que as famílias são um locus importante das
relações de gênero, e o nascimento, a criação e o cuidado dos filhos são organizados como
eventos não produtivos e causa de dependência para as mulheres. A autora postula que, o
surgimento da guarda compartilhada como prática foi, é claro, o produto final da generalização
da separação conjugal e do divórcio, mas também o produto do desejo de uma nova geração de
pais (casais heterossexuais) de manter papéis simétricos, e não diferenciados.
Ramos (2016) elucida que no Brasil a igualdade é consagrada no artigo 5º da
Constituição Federal Brasileira, garantindo que homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações, podendo usufruir das mesmas oportunidades e papéis dentro da sociedade. Nessa
esteira, Ribeiro (2017) conjectura que o advento do neoconstitucionalismo, após o fim da
Segunda Guerra Mundial, situou a Constituição como pilar do sistema jurídico e suas normas
passaram a ter eficácia irradiante para o resto do ordenamento. Os princípios assumiram o
caráter de norma jurídica ao lado das regras e passaram a ser utilizados em casos concretos. A
sociedade evoluiu e com ela o Direito também ganhou novos contornos, consagrando de direitos
fundamentais, dentre eles, a igualdade formal e material, principalmente com relação à mulher.
No plano internacional, diversos diplomas passaram a consagrar a igualdade de gênero
como direito humano, devendo ser efetivado por todos os países. Dentre eles destacam-se: a
Carta das Nações Unidas, de 1945; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a
Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis a Mulher, de 1948; a
P á g i n a | 201
Benevides (2016) realça ainda que, a partir dos anos de 1990, surge uma rediscussão
na concepção das desigualdades entre os sexos baseada em gênero. Assim, “o movimento
feminista pode articular reivindicações em defesa dos direitos negados e violados, definir
prioridades e exercer pressões na comunidade internacional” (p. 83). Em síntese, vem se
experimentando maior flexibilidade nos papéis maternos e paternos, devido aos processos
mudanças nas definições de gênero e relações de poder, bem como ao aumento do entendimento
do homem como responsável, tanto quanto a mulher, pela educação, cuidado e formação moral
e psicológica dos filhos. Todos esses fatores conjuntamente têm lançado luz para o modelo de
guarda compartilhada no contexto brasileiro.
Na ciência jurídica, essas mudanças revelaram-se como molas propulsoras para
importantes alterações legislativas ocorridas nos anos de 2008 e de 2014 que normatizam, no
ordenamento jurídico brasileiro, a guarda compartilhada. Esse modelo de guarda pode ser
compreendido, nos termos da própria prescrição normativa, como a responsabilização conjunta
e o exercício de direitos e deveres da mãe e do pai que não vivem sob o mesmo teto,
concernentes ao pode familiar dos filhos (LAGARES E HACKBARDT, 2015).
Tomando em consideração as postulações de Burckhart (2017), depreende-se que o
Direito incorporou uma série de dispositivos normativos e decisões judiciais que almejam a
igualdade de gênero. Afirma o autor que o campo jurídico passa cada vez mais a ser renovado
tendo em vista as reivindicações sociais e as epistemologias feministas. Contudo, no plano
institucional, nota-se que ainda “remanescem discursos e práticas que invocam concepções
sexistas. Trata-se de uma das grandes contradições para o Direito contemporâneo” (p. 207).
Em suas noções, Pitanguy (2019) assevera que as leis, bem como suas interpretações
e implementações espelham relações de poder e padrões culturais predominantes em
determinadas sociedades. Ou seja, tanto o seu conteúdo normativo quanto a sua prática se
situam na esfera política, envolvendo disputas de poder nacionais e internacionais por
significados e vivências. A autora avalia ainda que, ao longo das três últimas décadas do século
P á g i n a | 203
XX, existe uma clara relação entre o ativismo feminista e as mudanças em legislações, a
proposição de novas leis, a implementação de políticas públicas e a resistência a retrocessos.
O Código Civil de 2002 trouxe para a legislação civil brasileira a igualdade jurídica
entre mulheres e homens na seara familiar. Com a sua publicação no ano de 2002, também foi
apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.350/2002, cujo objetivo foi criar um
novo modelo de guarda no ordenamento jurídico que evidenciasse uma participação mais
igualitária de mães e pais na criação de seus filhos. Após seis anos de debates parlamentares, o
referido projeto resultou, no ano de 2008, na promulgação da lei que instituiu a guarda
compartilhada no Brasil (Lei nº 11698/08).
No Brasil, a Lei nº 11.698/08 era aguardada com expectativa por muitos pais que
vislumbravam um novo cenário nas determinações dos arranjos de guarda de filhos de genitores
não conviventes. Com o aumento do número de separações, cresceu também o número de
pesquisas sobre o tema, constatando-se a necessidade premente de, nos dias de hoje, o Estado
garantir a autoridade parental de ambos os pais (RODRIGUES, 2017).
O estudo da guarda compartilhada inscreve-se na interpretação das transformações na
paternidade, na maternidade e na coparentalidade, bem como nas relações sociais de gênero na
família (MARINHO, 2011). Grisard (2002) leciona que guarda compartilhada não se refere
apenas à tutela física ou custódia material, mas todos outros atributos da autoridade parental
são exercidos em comum, os pais têm efetiva e equivalente autoridade legal para tomar decisões
importantes quanto ao bem-estar de seus filhos e, frequentemente, têm uma paridade maior no
cuidado dos filhos do que os pais com guarda unilateral. O estudioso apresenta as vantagens
não somente aos filhos, assim como ao pai e mãe a respeito da guarda compartilhada ao
asseverar que compartilhando o trabalho e as responsabilidades, minimiza o conflito parental,
diminui os sentimentos de culpa e frustração por não cuidar dos mesmos, ajuda-os a atingir os
objetivos de trabalharem em prol dos melhores interesses morais e materiais das
crianças/adolescentes.
Rosa (2015) assinala que tradicionalmente, a guarda era tratada como um direito
subjetivo a ser atribuído a um dos genitores na separação, em contrapartida ao direito de visita
deferido a quem não fosse outorgada essa posição de vantagem, que teria o dever de a ela
submeter-se. O avanço legislativo contribui para que, por meio da atribuição conjunta de
responsabilidades, possa ser pavimentado um caminho virtuoso para a coparentalidade e a
preservação do bom desenvolvimento psíquico dos filhos, principalmente após o desfazimento
do vínculo conjugal de seus pais.
P á g i n a | 204
posicionamento favorável à sua aplicação, o que não vinha acontecendo até então. Isto porque,
historicamente, nas dissoluções litigiosas entre casais que envolvessem disputa de guarda de
crianças e adolescentes, a Justiça brasileira demonstrou certa tendência a se posicionar no
sentido de que, quando questionado acerca de qual genitor teria maior capacidade para obter a
guarda da criança ou do adolescente, a mãe, em regra, seria apontada como sendo melhor opção
(MOCELIN, 2017).
Rosa (2015) sugere que o ano de 2014 representou o marco da transformação de uma
lógica anteriormente reiterada socialmente como “homem não tem jeito com criança” - ideia
presa aos papeis sociais que atribuíam os cuidados parentais apenas à mãe - para uma realidade
presente de que ambos os pais são essenciais na vida dos filhos. Complementa o autor que no
percurso do instituto da guarda no direito brasileiro, pode-se notar uma origem unitária e,
preferencialmente, destinada aos cuidados maternos e, no mesmo passo de conquista de espaço
e emancipação feminina, tem-se a consolidação igualitária de cogestão dos interesses dos filhos
entre ambos os genitores.
Necessário é lembrar que, embora presente no ordenamento jurídico brasileiro desde
2008, a guarda compartilhada exigiu novo regramento, não apenas para sua efetividade, mas,
acima de tudo, para apresentar novos esclarecimentos e diretrizes. O advento da Lei n.
13.058/2014 trouxe a necessidade de uma releitura em relação à noção de guarda compartilhada
em si. A guarda compartilhada também revaloriza o papel paterno, uma vez que surgiu da
necessidade de reequilibrar os papéis parentais, diante da guarda uniparental concedida
sistematicamente à mãe, é o que postulam Rosa (2015) e Ramos (2016).
Por outro ângulo, o terreno da parentalidade pode consubstanciar um novo campo para
o exercício da dominação masculina (Bourdieu, 2016), baseado, justamente, nos princípios da
autonomia, da individualidade e da igualdade parental, que passam, assim, a legitimar a
desigualdade assente já não nas diferenças de gênero tradicionais e, sim, nos recursos e traços
pessoais. Deste modo, ter as características parentais mais adequadas constitui a chave da
apropriação (MARINHO, 2011).
Ainda que a guarda compartilhada apresente vantagens, é certo que possui
desvantagens a ser consideradas. Rodrigues (2017) põe em relevo que por ser um instituto
“recente” sua aplicação prática pode ser prejudicada pela falta de entendimento dos operadores
do direito e da sociedade sobre a questão. O Código Civil aborda assunto em dois artigos e
salienta que a guarda compartilhada será atribuída, inclusive, quando não houver acordo entre
os genitores.
P á g i n a | 206
cabe guardar as crianças, alguns as deixam aos cuidados de outras mulheres (namoradas, avós
paternas, tias paternas, babás). A instituição da guarda compartilhada significou, nesse cenário:
Esse modelo responde à crise dos filhos divorciados, pais inadimplentes e mães
solteiras reduzidas à pobreza. Como todos os modelos, as suas funções são
representacionais, morais e normativas. Como tal, ele cria novos constrangimentos
sociais e morais para pais e mães. Os pais ganham acesso mais fácil às crianças após
o divórcio, uma redução das obrigações de apoio financeiro e maior responsabilidade
pelo cuidado dos filhos. As mães veem a obrigação de cuidar das crianças diminuir
na maioria dos casos, mas não em todos. A obrigação de assistência material é maior
para elas, que ainda herdam uma nova obrigação forjada pela natureza intrínseca da
guarda física compartilhada: a de supervisionar a participação do pai no arranjo em
prol do cuidado comum dos filhos (COTÉ, 2016, p. 12).
Nos dizeres sempre expressivos de Bourdieu (1989), não se pode negar que a conduta
dos agentes jurídicos também está diretamente ligada ao habitus4 de classe, família, escola, isto
é, ao contexto social no qual nasceu e cresceu. Necessário frisar a lição de Giusto (1999):
Os profissionais do judiciário, dentre os quais alguns juízes, promotores e psicólogos
nasceram e cresceram sob a égide do papel socialmente imposto aos casais, que
reservava à mulher a tarefa da educação dos filhos e cuidados da casa, e ao homem o
encargo do sustento da família, e trazem consigo as marcas indeléveis desta educação.
Isto fatalmente se reflete na maneira de conduzir e de julgar as ações que tramitam na
esfera do Direito de Família, apesar das fortes correntes atualizadoras que se pode
identificar (p. 66).
4
O habitus é uma noção mediadora que analisa a maneira como as estruturas sociais são incorporadas pelos
indivíduos na forma de disposições duráveis acerca de modos de agir, pensar e sentir, na forma de esquemas de
percepção e apreciação. Explica como as estruturas sociais se tornam estruturas mentais/cognitivas, como a ordem
social se reproduz objetiva e subjetivamente. É importante destacar que isso não significa que o habitus seja algo
estático ou eterno. Ele é socialmente forjado, está sempre em construção e é resultado de um exaustivo processo
de inculcação e de incorporação, pois exige uma transformação duradoura dos corpos e das mentes dos indivíduos.
P á g i n a | 210
obstáculos. Assim, mesmo que haja litígio pelo compartilhamento da responsabilidade com o
filho, certamente ele não será resolvido sob a ordem jurídica.
Com variedades de opções e as lacunas existentes, bem verdade que os contornos sobre
as questões desenhadas neste artigo ainda estão nublados e há um caminho a ser trilhado, com
a premência de consolidação do cuidado parental assumido em condições equânimes pelo pai
e pela mãe – esta, ainda é uma missão a se realizar, apesar dos esforços e das meritórias
iniciativas, a exemplo da Lei 13.058/2014.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
estruturas opressoras que continuam tão fortes, firmes e ferrenhas, a Lei 13.058/14 não é
parâmetro de igualdade ou desigualdade.
As considerações aqui explicitadas têm o propósito de ensejar novas reflexões que
cercam as práticas de responsabilidade parental.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, S. O Segundo sexo - fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1980.
BOURDIEU, P. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas: Papirus, 2011.
BRASIL. Lei n° 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634,
da Lei n° 10.406/2002 – Código Civil para disciplinar a guarda compartilhada.
BRASIL. Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008. Altera os arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para instituir e disciplinar a guarda compartilhada.
P á g i n a | 212
COTÉ, D. Guarda Compartilhada e Simetria nos Papéis de Gênero: novos desafios para a
igualdade de gênero. In: Revista Observatório, Tocantins, V. 2, Nº 3, ago 2016.
GIUSTO, E. Guarda de Filhos: quando os homens também são discriminados, São Paulo:
Revista Brasileira de Direito de Família, n.3, 1999.
MIGUEL, L. F.; BIROLLI, F.. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo,
2014.
MOCELIN, M. A Lei da Guarda Compartilhada (n° 13.058/14) como reflexo das políticas
públicas de ação afirmativa. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2017. Disponível em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.589014&seo=1>. Acesso em: 02 jul.
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PITANGUY, J. Carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In:
HOLLANDA, H. B. (Org). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
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P á g i n a | 213
TORNQUIST, C. S. Em nome dos filhos ou o “retorno da lei do pai”: entrevista com Martins
Dufrense. Estudos Feministas. v. 16 n. 14 Florianópolis/ SC, 2008.
P á g i n a | 214
ABSTRACT
The purpose of this article is to discuss the positivity of equality
between women and men in the Brazilian legal system in the light of
the shared custody model. In Brazil, the sanction of Law No. 13,058 /
2014 allows the judge to define, when there is no agreement by the
parents and in the name of the supposed well-being of the children,
shared custody. After all, does sharing custody mean a reduction in
gender inequalities in parenting experiences? The methodology used to
carry out the work consists of a bibliographic review, in order to
establish the theoretical premises and clarify the concepts, examining
Brazilian laws and delineating links with the feminist matrix. It
concludes that shared custody destabilizes gender asymmetry, drawing
plural forms of paternity and motherhood, but it does not represent an
end to inequalities between women and men in parenting. It is what will
be presented and discussed here.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Licenciada e Bacharel em Ciências Biológicas
pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: alinebrodovalho@gmail.com
2
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: rafaelruling@hotmail.com
P á g i n a | 216
recebem a imposição de sanção política, mesmo quando o crime de responsabilidade possa ter
sido apenas tentado.
Assim dada à circunstância atual do tema, priorizou-se realizar um estudo através do
método dedutivo, no qual investigou-se na jurisprudência e doutrina, os limites do alcance dos
instrumentos jurídicos de democracia direta. Além disso, foram propostos os pressupostos da
utilização do plebiscito, referendo e iniciativa popular como métodos para ampliar o poder de
decisão popular em deliberações de relevância nacional. Nesse sentido, o tema central deste
artigo é propor uma maior participação popular no processo de impeachment.
Para tanto, o presente trabalho, que adota o método de abordagem dedutivo, busca
compreender qual seria a interpretação jurídica sobre os instrumentos jurídicos mencionados, a
fim de verificar se eles podem ser convocados para a realização de um impedimento.
Além do mais, objetiva-se trabalhar a hipótese de instituição do referendo revocatório
ou recall político do mandato de Presidente da República e de Congressista. E ainda, discutir
sobre a possibilidade de criação de lei por meio de iniciativa popular para regulamentar a
participação popular no processo de impeachment.
E assim, demonstrar a relevância de respeitar a vontade soberana do povo, pois no
atual contexto político, em uma democracia indireta, os parlamentares têm poucas obrigações
junto ao seu eleitorado, e a população tem sua opinião marginalizada frente aos interesses de
poucas pessoas, detentoras de grande parcela de poder, tanto econômico quanto político.
2 A NATUREZA DO IMPEACHMENT
confiança do povo, com isso não há uma condenação propriamente dita, instaurando-se um
julgamento conforme critérios políticos, visto que o Senado é o único responsável pela
instauração e julgamento do processo de crime de responsabilidade.
No entanto, há autores, como o eminente jurista Pontes de Miranda (1969, p.138), que
defendem a natureza penal do impeachment, pois os crimes de responsabilidade são figuras de
delitos penais.
Porém mais que isso, há uma vertente, representada por Cavalcante Filho e Oliveira
(2016, p.13), que explana que o impeachment é resultado da independência e harmonia entre os
poderes. E ainda, devido a sua natureza jurídica híbrida exige a base jurídica (a existência de
uma conduta tipificada como crime de responsabilidade) e o fator político (o entendimento de
que a conduta tipificada se qualifica com um atentado à Constituição).
Nesse sentido, muitos estudiosos do assunto têm abordado o tema, como no trecho a
seguir:
Enquanto Ives Gandra da Silva Martins (2016, p.294), enuncia que “assim, quaisquer
que sejam os argumentos jurídicos a justificar o impeachment, a decisão parlamentar será
sempre, indiscutivelmente, política, lembrando-se que, mesmo nos Estados Unidos, o instituto
jamais foi aplicado”.
Sendo assim, entendemos que a natureza do impeachment, no Brasil, é de um processo
político ou administrativo, logo não penal, dado que o objetivo não é aplicação de pena criminal,
mas de punir o agente público eletivo acusado de gestão ineficiente, para que posteriormente,
seja julgado pelo Senado Federal, segundo competência atribuída pela Constituição Federal.
Com o advento da condenação pelo Senado, o acusado será julgado pelo Poder Judiciário nos
crimes comuns.
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da
Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal
Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de
responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo
Tribunal Federal;
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado
Federal.
3
BRASIL. Constituição Federal de 1988, art. 14. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 nov.2020.
P á g i n a | 219
Outrossim, cumpre-nos esclarecer que o art.14 da Lei nº1.079/50 prevê que qualquer
cidadão (indivíduo com capacidade eleitoral ativa) pode apresentar denúncia contra o
Presidente da República perante a Câmara dos Deputados.
Ademais, segundo o art.19 da mencionada lei, após o recebimento da denúncia, ela
deverá ser lida no expediente da sessão seguinte e despachada para uma comissão especial
eleita, a fim de que ela elabore um parecer sobre a denúncia. Após a votação do parecer perante
a comissão especial, a denúncia passa a ser analisada pelos deputados em plenário, sendo
exigido o quórum de 2/3 para autorização do processo contra o Presidente da República.
E ainda não poderá exceder cento e vinte dias, contados da data da declaração da
procedência da acusação, o prazo para o processo e julgamento dos crimes definidos na Lei que
define os crimes de responsabilidade.
[...] porque o representante não está vinculado aos seus eleitorados, de quem não
recebe instrução alguma, e se receber não tem obrigação jurídica de atender, e a quem,
por tudo isso, não tem que prestar contas, juridicamente falando, ainda que
politicamente o faça, tendo em vista o interesse na reeleição. Afirma-se, a propósito,
que o exercício do mandato decorre de poderes que a Constituição confere ao
representante, que lhe garante a autonomia da vontade, sujeitando-se apenas aos
ditames de sua consciência. (SILVA, J. A. 1990, p.123).
subjetivos, que podem permitir a barganha de votos, onde deveria ocorrer uma grande reflexão,
por causa da importância do contexto.
Essa crise de representação é analisada por Noberto Bobbio.
Parto de uma constatação sobre a qual podemos estar todos de acordo: a exigência,
tão frequente nos últimos anos, de maior democracia exprime-se como exigência de
que a democracia representativa seja ladeada ou mesmo substituída pela democracia
direta. Tal exigência não é nova: já a havia feito, como se sabe, pai da democracia
moderna, Jean-Jacques Rousseau, quando afirmou que ‘a soberania não pode ser
representada’ e, portanto, ‘o povo inglês acredita ser livre mas se engana
redondamente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez eleitos
estes, ele volta a ser escravo, não é mais nada”. (BOBBIO, 1997, p. 41)
A Lei de n° 9.709 de 18 de novembro de 1998 por meio do seu artigo 2°4, inciso II,
regulamenta as disposições previstas pelo texto constitucional no inciso II do artigo 14°, que
regulamenta esse instituto.
Após a promulgação da Constituição de 1988, esse instrumento jurídico fora acionado
somente uma vez em 2005 para referendar a matéria sobre a proibição da comercialização de
armas fogo e munição prevista pela Lei n° 10.826 de 22 de Dezembro de 2003, também
conhecida como Estatuto do Desarmamento. O Congresso havia aprovado a alteração no artigo
35° do Estatuto que tornaria assim proibida a comercialização de arma de fogo e munição em
todo o território nacional, porém após a consulta a população, a mesma rejeitou a decisão
legislativa, e por assim manteve legal o comércio.
Esse mecanismo de participação da cidadania foi utilizado outra vez, em 1963,
consoante pesquisa realizada junto ao Tribunal Superior Eleitoral (2020). O objetivo da consulta
foi definir se a forma de governo, denominada de parlamentarismo continuaria a viger ou não.
À época, o povo brasileiro rejeitou esse sistema de governo, optando pelo presidencialismo.
Sendo assim, podemos pontuar que esse instituto jurídico é pouco utilizado, talvez por
conta do custo da consulta eleitoral, considerando a dimensão territorial do Brasil. Destarte, o
que deve sopesar sobre a possibilidade de ter ou não esse tipo de consulta é que o direito ao
voto não deve ser resumido a fazer escolhas dos representantes do povo ou dos Estados, mas
também a possibilidade do brasileiro decidir temas conflitantes do ponto de vista moral, ético
e político.
Isso é cristalino no mencionado parágrafo único do artigo 1º da Carta Cidadã, que
ordena que o poder emana do povo, que poderá exercer indiretamente por meio dos
representantes eleitos ou diretamente, por meio do referendo, plebiscito ou iniciativa popular.
4
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.2. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 222
ocorre quando o povo é chamado a pronunciar-se sobre a conveniência ou não de uma lei a ser
feita pelo Parlamento (AZAMBUJA, 1941, p. 224).
Como citado anteriormente, é por meio da Lei de n° 9.709 de 18 de Novembro de 1998
em seu artigo 2° 5 , inciso I, que há a regulamentação das disposições previstas pelo texto
constitucional no inciso I do artigo 14°, que normatiza esse instituto.
Em consulta ao Tribunal Superior Eleitoral (2020) é possível identificar 4 (quatro)
momentos plebiscitários no Brasil, todos Pós-Constituição de 1988.
O primeiro foi realizado em 21 de abril de 1993, com o intuito de escolher monarquia
ou república e parlamentarismo ou presidencialismo. Essa consulta consolidou a forma e o
sistema de governo atuais. Em 2011, tivemos o plebiscito no Estado do Pará, versando sobre
possível desmembramento desse Estado e criação de mais dois estados na região- Carajás e
Tapajós. Em 2016, tivemos a tentativa de plebiscito em Maranhão, para tratar de
desmembramento e anexação de municípios, todavia, o TSE suspendeu a consulta popular.
Já em 2018, o projeto previa a realização de plebiscito sobre a revogação do Estatuto
do Desarmamento juntamente com as eleições de 2018, mas, passadas as eleições sem sua
aprovação, houve perda de objeto, segundo consta do requerimento nº554, de 2018 do Senado
Federal.
Além dessa Lei, temos na legislação infraconstitucional a Resolução nº 23.385, de 16
de agosto de 2012, que estabelece diretrizes gerais para a realização de consultas populares
concomitante com eleições ordinárias. De acordo com o art.1º:
[...] a consulta popular a realizada mediante plebiscito ou referendo, para que o povo
delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa
ou administrativa, consoante previsto nos §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 9.709/1998.
Por conseguinte, cabe esclarecer que a consulta popular objeto da referida resolução,
será realizada por sufrágio universal e voto direto e secreto, concomitantemente com o primeiro
turno das eleições ordinárias subsequentes à edição do ato convocatório.
Por fim, cabe esclarecer que o plebiscito realizado em 1993 estava previsto no art. 2º
do ADCT (Ato das disposições constitucionais transitórias), da então recém promulgada
Constituição Federativa do Brasil de 1988.
5
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.2. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 223
6
BRASIL. Constituição Federal de 1988, art. 14. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25 de Julho de 2020.
7
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.3. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 224
por exemplo, por má administração, podendo ser iniciado ainda pelo Congresso em sua maioria
absoluta” (SARMENTO, 2015, online).
Lado outro, a referida proposta visava a acrescentar as eleições, como meio de
exercício da soberania popular (artigo 14) e ainda previa o acréscimo do artigo 14-A, que
possuiria o seguinte teor:
Art. 14-A Transcorrido um ano da data da posse nos respectivos cargos, o Presidente
da República, ou os membros do Congresso Nacional, poderão ter seus mandatos
revogados por referendo popular, na forma do disposto nos parágrafos seguintes.
§ 1º O mandato de senador poderá ser revogado pelo eleitorado do Estado por ele
representado.
§ 2º O eleitorado nacional poderá decidir a dissolução da Câmara dos Deputados,
convocando-se nova eleição, que será realizada no prazo máximo de três meses.
§ 3º O referendo previsto neste artigo realizar-se-á por iniciativa popular, dirigida ao
Superior Tribunal Eleitoral, e exercida, conforme o caso, mediante a assinatura de dois
por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por sete Estados, com não
menos de cinco décimos por cento em cada um deles, ou mediante a assinatura de dois
por cento do eleitorado estadual, distribuído pelo menos por sete Municípios, com não
menos de cinco décimos por cento em cada um deles.
§ 4º Os signatários da iniciativa popular devem declarar o seu nome completo, a sua
data de nascimento e o Município onde têm domicílio eleitoral, vedada a exigência de
qualquer outra informação adicional.
§ 5º O referendo para revogação do mandato do Presidente da República poderá
também realizar-se mediante requerimento da maioria absoluta dos membros do
Congresso Nacional, dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral.
§ 6º O referendo será considerado sem efeito, se a soma dos votos nulos e em branco
corresponder a mais da metade do total dos sufrágios expressos.
§ 7º Se o resultado do referendo for contrário à revogação do mandato eletivo, não
poderá ser feita nova consulta popular sobre o mesmo assunto, até a expiração do
mandato ou o término da legislatura.
§ 8º O referendo regulado neste artigo será convocado pelo Superior Tribunal Eleitoral.
§ 9º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios regularão, em suas respectivas
Constituições e Leis Orgânicas, o referendo revocatório dos mandatos do chefe do
Poder Executivo e dos membros do Poder Legislativo.
8
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.13. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 226
maneira imediata. Logo, por meio da iniciativa popular, poderia ocorrer a expressão popular da
manifestação da necessidade de possuir uma lei que regulamente a participação popular neste
processo.
Desse modo, ficaria afastada a natureza política do impeachment, no que tange a
competência do Congresso no julgamento, uma vez que, ao mesmo restringiria somente
admissão do impeachment no que cerne a sua natureza penal. Dessa forma, teríamos uma
harmonia entre os três poderes, conforme previsto na teoria dos freios e contrapesos.
Nesse contexto, a população assumiria o papel de titular de direito de julgador da
natureza política, em via que, fora a responsável pela eleição do presidente, e, dessa forma,
assumiria o protagonismo através de mecanismos de democracia direta.
Ressalta-se que com essas condições previstas no projeto de Lei de Iniciativa Popular,
ocorreria um rearranjo na sucessão dos poderes da linha presidenciável. Caberia ocorrer a linha
sucessória ordinariamente na vacância dos respectivos cargos, e de maneira transitória após o
impedimento, num prazo de 90 dias até novas eleições diretas.
Em suma, tais medidas dependem da unificação popular através de seu anseio para que
haja o mínimo da porcentagem exigida de eleitorado para que o projeto de lei seja submetido
ao Congresso. Porém é importante ressaltar que a população seria a parte mais interessada no
processo, pois com o impedimento do presidente, seu voto seria anulado. Por isso, faz-se
necessário optar pela iniciativa popular, para que, dessa forma, o povo tenha a oportunidade de
expressar sua vontade soberana por meio do voto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho expôs que o papel desempenhado pelos eleitores não deve ser
restrito ao direito ao voto, e sim, deve-se estimular a participação dos mesmos, em diversas
decisões para o país. Para isso, temos diversos instrumentos jurídicos de democracia direta,
como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular (art. 14, CF).
Nesse sentido, na ocorrência da retirada do Presidente da República do seu cargo, cabe
ao povo decidir sobre natureza política do impeachment, ou seja, se o mesmo possui capacidade
de governabilidade, uma vez que ele é detentor da soberania popular, e ao Congresso restringe-
se ser um órgão de admissibilidade da denúncia e da verificação da ocorrência de crime de
responsabilidade.
Dessa forma, poderemos distinguir a natureza penal e política, por meio da iniciativa
popular apresentada, não permitindo assim barganha política para manutenção ou deposição de
P á g i n a | 227
legítimo presidente, uma vez que, caberia somente a soberania popular para decidir tal
procedimento.
Assim sendo, sugerimos que por meio da iniciativa popular seja apresentado projeto
de lei que atenda os anseios da população brasileira, visto que não há cabimento para a
manutenção de agentes públicos eletivos ineficientes ou praticantes de atos ilícitos. Isso vem a
enquadrar com a primazia do Estado Democrático de Direito, pois sob a órbita constitucional
deve prevalecer o que a Constituição enuncia, de que o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, B.G. Poder Executivo. In: ______. Curso de Direito Constitucional. Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p.1415- 1493.
P á g i n a | 228
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MARTINS, I. G. da S. et al (Org.). Impeachment instrumento da democracia. São Paulo:
Iasp, 2016. p. 289-319. Disponível em: <http://www.iasp.org.br/livros/impeachment/>. Acesso
em: 04 out. 2016
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1990.
P á g i n a | 229
ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 6º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. E-mail: eric.lins@outlook.com
2
Discente do 6º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. E-mail: josenetot6@gmail.com
P á g i n a | 232
2 CONCEITO DE FAMÍLIA
Ainda no tempo de Caio, a família id est patrimonium (quer dizer, parte da herança)
era transmitida testamentariamente. Segundo esse autor, a expressão foi inventada
pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe tinha sob suas
ordens a mulher, os filhos e um certo número de escravos, submetidos ao poder
paterno romano, com direito de vida e morte sobre todos eles. Essa família seria
baseada no domínio do homem, com expressa finalidade de procriar filhos de
paternidade inconstestável (sic), inclusive para fins de sucessão. Foi a primeira forma
de família fundada sobre condições não naturais, mas econômicas, resultando no
triunfo da propriedade individual sobre a compropriedade espontânea primitiva
(LÔBO, 2004, on-line).
A família da Roma Antiga, portanto, era comandada por um único homem, o pater
familias, que concentrava os poderes econômicos, políticos, militares e religiosos do
P á g i n a | 235
A nítida relação do Estado com a Igreja Católica estabeleceu fortes bases patriarcais e
religiosas na formação da família, principalmente considerando a completa abstenção do texto
constitucional imperial a respeito do conceito de família, enquanto estrutura social.
P á g i n a | 237
Dilvanir José da Costa (2006, p. 13-19), Flávia David Vieira e Edvania Gomes da Silva
(2015, p. 22-30) apontam que a lei pátria indicava as regras de direito canônico para dispor
acerca do casamento, mais especificamente o Concílio de Trento e a Constituição da
Arquidiocese da Bahia, o que remete à concepção do casamento como instrumento de negócio
e procriação existentes na Idade Média e Moderna. Neste sentido, a Constituição da
Arquidiocese da Bahia, de 1853, dispunha nos parágrafos 259 e 260:
259 O ultimo Sacramento dos sete instituidos por Christo nosso Senhor é o do
Matrimonio. E sendo ao principio um contracto com vinculo perpetuo, e indissoluvel,
pelo qual o homem, e a mulher se entregão um ao outro, o mesmo Christo Senhor
nosso o levantou com a excellencia do Sacramento, significando a união, que ha entre
o mesmo Senhor, e a sua Igreja, por cuja razão confere graça aos que dignamente o
recebem. A materia deste Sacramento é o domínio dos corpos, que mutuamente fazem
os casados, quando se recebem, explicado por palavras, ou signaes, que declarem o
consentimento mutuo, que de presente tem. A fórma são as palavras, ou signaes do
consentimento, em quanto significão a mutua aceitação. Os Ministros são os mesmos
contrahentes.
260 Foi o Matrimonio ordenado principalmente para tres fins, e são tres bens, que
nelle se encerrão. O primeiro é o da propagação humana, ordenada para o culto, e
honra de Deos. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem guardar
mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da
união de Christo Senhor nosso com a Igreja Catholica. Alem destes fins é também
remedio da concupiscencia, e assim S. Paulo o aconselha como tal aos que não podem
ser continentes.
Art. 1º O casamento civil, unico válido nos termos do art. 108 do decreto n. 181 de 24
de janeiro ultimo, precederá sempre ás cerimonias religiosas de qualquer culto, com
que desejem solemnisal-o os nubentes.
Art. 2º O ministro de qualquer confissão, que celebrar as cerimonias religiosas do
casamento antes do acto civil, será punido com seis mezes de prisão e multa
correspondente á metade do tempo. Paragrapho unico. No caso de reincidencia será
applicado o duplo das mesmas penas.
Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção
especial do Estado.
Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de
casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo. [...]
Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante
ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou
os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde
que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos
impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil
3
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891: Art. 56. São effeitos do casamento: § 1º
Constituir familia legitima e Legitimar os filhos anteriormente havidos de um dos contrahentes com o outro,
salvo si um destes ao tempo do nascimento, ou da concepção dos mesmos filhos, estiver casado com outra
pessoa. § 2º Investir o marido da representação legal da familia e da administração dos bens communs, e
daquelles que, por contracto ante-nupcial, devam ser administrados por elle. § 3º Investir o marido do direito de
fixar o domicilio da familia, de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos. § 4º Conferir á
mulher o direito de usar do nome da familia do marido e gozar das suas honras e direitos, que pela legislação
brazileira se possam communicar a ella. § 5º Obrigar o marido a sustentar e defender a mulher e os filhos. §6º
Determinar os direitos e deveres reciprocos, na fórma da legislação civil, entre o marido e a mulher e entre elles
e os filhos.
P á g i n a | 239
e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei
estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à
celebração do casamento.
É mister ressaltar, a priori, que a Constituição de 1946 teve por base a de 1934,
reproduzindo algumas tecnicalidades desta, e, sobre a família, dispõe:
Há nítida proximidade com o disposto na Constituição de 1934, porém o art. 164 traz
expressas proteções aos dois núcleos familiares mais vulneráveis, maternidade e filiação,
tentando coibir situação insalubre e perigosa. Essa tutela especial é fundamental no rompimento
da família como propriedade do pátrio poder, da legal superioridade do esposo e pai sobre
esposa e filhos, bem como para garantir que pessoas com uma vulnerabilidade natural estejam
amparadas e possam desenvolver-se saudavelmente em um ambiente familiar.
Por sua vez, conforme Barroso (210, p.137-138), na vigência da Constituição de 1967
considerava-se que apenas através do casamento era possível ocorrer a formação da
família; mas que apesar da literalidade do dispositivo a jurisprudência passou a
reconhecer efeitos jurídicos às uniões livres, à medida que avançavam as concepções
culturais e sociais. (TAPIA, 2012, p. 15)
Verifica-se que as concepções mais liberais abriram caminho através dos ideais
residuais de religiosidade acerca do casamento. O estabelecimento da dissolubilidade do
casamento implica o reconhecimento jurídico de novos vínculos pessoais e de diferentes formas
de ver os já antigos, tais como pai ou mãe separado com filho e pessoa com enteado.
Essa abertura introduzida pela Emenda Constitucional n.º 9/77 fundamenta-se em
mudanças comportamentais que levariam a uma completa e inovadora forma do texto
constitucional de abordar as famílias.
Sob esta ótica, a entidade familiar composta de qualquer dos pais e seus descendentes,
dispostas no § 4.°, adquire igualmente um caráter geral de inclusão, sem excluir outros modelos
familiares, ao fazer uso do advérbio “também”. Mesmo que haja a possibilidade de significar
pela exclusão, a interpretação de tal artigo, em conformidade com todo o documento
P á g i n a | 243
constitucional, deve seguir pelo que melhor realiza a dignidade da pessoa humana e a
contemplação real da afetividade no Direito.
Com uma regra constitucional clara pela não exclusão de modelos de famílias além
dos presentes em seu art. 226, tem-se que normas recepcionadas pela Constituição e também
publicadas posteriormente a ela não podem contrariá-la. Sendo o documento constitucional
paradigma fundante de validade para as demais regras e princípios do ordenamento jurídico,
estes só continuam a vigorar na medida que permaneçam em sintonia com a Constituição, ou
seja, que não contrariem o texto dela e seu espírito.
Assim, leis como a que instituiu o Código Civil, em 2002, após 27 anos de tramitação
de seu projeto, apesar de que reúnam inúmeros institutos preciosos a determinadas e diversas
áreas do ordenamento jurídico em vigor, não podem ser lidos como senhores das palavras finais,
visto que suas interpretações e aplicações necessitam estar também em conformidade com
aquelas feitas em relação à Constituição Federal.
Não por outra razão se tem testemunhado grandes avanços para as famílias
homoafetivas, com transformações nos textos legais provocadas pelas mudanças em sua
interpretação diante da Constituição de 1988. Ainda que diante de inércia legislativa para a
modificar-se o positivado em artigos como o 1.723 do Código Civil, que dispõe da união estável
entre homem e mulher como entidade familiar, não citando outras configurações, correntes
doutrinárias e jurisprudenciais reconhecem a transformação do sentido no texto em face de uma
Constituição inclusiva e voltada à dignidade humana.
4 TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS
guarda das três filhas por, após o divórcio, ter constituído uma relação estável com uma
mulher. Relatam que a Suprema Corte chilena entendeu que:
[...] as filhas de Karen Atala estavam em “situação de risco”, o que as inseria numa
“posição de vulnerabilidade em seu convívio social, vez que claramente seu ambiente
familiar único é distinto de forma significativa dos seus companheiros de escola e
conhecidos da vizinhança em que vivem, expondo-as ao isolamento e à discriminação,
o que também afetaria seu desenvolvimento pessoal. (VECCHIATTI e VIANA, 2014,
p. 22-23)
A ação foi julgada em 2012, e o Estado chileno foi condenado por violar os direitos à
igualdade, não discriminação, vida privada e proteção da honra. Todos direitos previstos na
Convenção Americana de Direitos Humanos.
O caso mencionado é fundamental para o estabelecimento de precedentes de
julgamento e interpretação das normas internacionais em favor de pessoas LGBTQ+, que não
são expressamente protegidas. Novamente, Vecchiatti e Viana anotam:
Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação
sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma
família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade
de gênero de qualquer de seus membros.
Os Estados deverão: [...]
e) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias
para garantir que nos Estados que reconheçam o casamento ou parceria registrada
entre pessoas do mesmo sexo, qualquer prerrogativa, privilégio, obrigação ou
benefício disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as de sexo
diferente esteja igualmente disponível para pessoas casadas ou parceiros/as
registrados/as do mesmo sexo;
f) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias
para assegurar que qualquer obrigação, prerrogativa, privilégio ou benefício
disponível para parceiros não-casados de sexo diferente esteja igualmente disponível
para parceiros não-casados do mesmo sexo;
reconhecer judicialmente a união estável e sete para o casamento civil de pessoas do mesmo
sexo, ambas por precedente do Poder Judiciário, estando ainda a Constituição e a lei
infraconstitucional ainda omissas da permissão expressa.
5 ENTENDIMENTO DO JUDICIÁRIO
4
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Plenário. Min. Ayres Britto. j. 05
maio 2011. DJ. 14/10/2011. p. 20.
5
Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. Pleno. Min. Ayres
Britto j. 05 maio 2011. DJ. 14/10/2011. p. 20.
P á g i n a | 246
novo gênero familiar, não previsto no rol constitucional, que, assim como o Ministro Cezar
Peluso, entendeu em seu voto como apenas exemplificativo:
Assim, segundo penso, não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo
em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento,
quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher,
quer, ainda, na monoparental. [...] Ora, embora essa relação não se caracterize como
uma união estável, penso que se está diante de outra forma de entidade familiar, um
quarto gênero, não previsto no rol encartado no art. 226 da Carta Magna, a qual pode
ser deduzida a partir de uma leitura sistemática do texto constitucional e, sobretudo,
diante da necessidade de dar-se concreção aos princípios da dignidade da pessoa
humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da não-
discriminação por orientação sexual aplicáveis às situações sob análise. (STF, 2011,
ADIn nº. 4277)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
6
No julgamento das Ações Constitucionais, o Ministro Lewandowiski chama de “uniões homoafetivas estáveis”
com a finalidade de deixar claro que, na visão dele, não se trata de interpretação do artigo 1.723 do Código Civil
c/c o artigo 226, §3, da Constituição, mas de novo modelo de entidade familiar semelhante ao dos dispositivos
mencionados.
P á g i n a | 247
significados e sentidos pelo direito romano e canônico, como apresentado, e continuou a mudar.
Evidencia-se, assim, que não pode o Direito buscar tolher sua característica de eternamente
mutável, conforme o espaço e o tempo em que se busca entendê-la.
Embora o texto constitucional de 1988 tenha sido receptivo a determinados modelos
de família, outros pareceram permanecer excluídos, como a família homoafetiva. Entretanto,
crescente é o entendimento no sentido de que a Constituição, em todo seu espírito de inclusão,
de realização da dignidade da pessoa humana e de afetividade, abraça tais famílias mesmo sem
citá-las expressamente, provocando grandes transformações, até mesmo hermenêuticas, em
textos já dispostos.
Desta forma, o julgamento da ADI n.º 4277 e da ADPF n.º 132 no STF é um marco
para os direitos LGBTQ+ ao reconhecer, sob proteção da própria Constituição Federal, que as
relações homoafetivas devem gozar do mesmo status de uniões estáveis heteroafetivas, pois
igualmente baseadas na afetividade e na solidariedade entre seus membros.
Ainda que não seja a via judiciária a ideal para estabelecerem-se direitos, muito melhor
garantidos pela via legislativa, por leis expressas, os clamores do povo não podem ser
ignorados. As relações humanas estão se modificando no mundo todo há tempos e pessoas
LGBTQ+ reivindicam seus direitos e necessitam de seu reconhecimento. Essas transformações
devem provocar o ordenamento jurídico, e ele deve responder de acordo.
Assim, as pessoas LGBTQ+ não podem continuar privadas de seus direitos civis sob
a justificativa de que devam esperar a demorada atuação legislativa para que suas famílias sejam
expressamente protegidas em Constituição ou outra norma infraconstitucional.
Compreende-se como correto o entendimento firmado pelo STF de que a união
homoafetiva seja entidade familiar constitucionalmente protegida. Tal reconhecimento trouxe
um grande avanço na luta pelos direitos civis das pessoas LGBTQ+ e não pode restringir-se a
apenas decisões judiciais.
Decerto que ainda há um longo caminho a percorrer, mas são visíveis os próximos
passos na garantia desses direitos, agora consistentes primordialmente na luta pela devida
positivação desta família pelo Poder Legislativo, cujos membros não são outros do que os
elegidos pelos votos do povo, a cujos anseios deve servir, inclusive reconhecendo suas
transformações e novas realidades, como é a família homoafetiva.
REFERÊNCIAS
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Conquista, v. 8, n. 2, p. 22-30, dez. 2015. Disponível em:
<http://periodicos2.uesb.br/index.php/redisco/issue/view/219>. Acesso em: 10 jun. 2020.
P á g i n a | 250
ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Discente do 9º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. E-mail:
samararandrade@hotmail.com
P á g i n a | 252
Não obstante, para serem efetivados, os supracitados direitos demandam uma atuação
estatal, que se viabiliza por meio dos poderes executivo – instituidor de políticas públicas – e
do legislativo – responsável pela elaboração e aprovação de leis. Este, particularmente, contudo,
é incapaz de regular todas as situações jurídicas que possam ocorrer no seio social, demandando
do judiciário a função de suprir as suas deficiências por meio de um controle posterior dos feitos
à luz da Constituição.
Sob esse viés, a infringência de um direito ou o descaso para com este proveniente de
um dos poderes compele outro a intervir em seu âmbito de atividade, ensejando – diga-se quase
inexoravelmente – que as ordenações constitucionais sejam apreciadas e empregadas pelo
judiciário, sob a designação de jurisdição constitucional. Ato contínuo, os órgãos judiciais,
especialmente o Supremo Tribunal Federal, por ser o tribunal constitucional, vem,
crescentemente, proferindo decisões que envolvem questões sociais, políticas e morais,
produto, em parte, das metamorfoses e das rupturas dos arquétipos sobrevindas nos últimos
tempos.
O efeito backlash, como ficou conhecido esse fenômeno, apesar de ser uma legítima
manifestação democrática, pode acarretar retrocessos e malefícios aos beneficiados pelas
decisões. Nessa perspectiva, é imprescindível o aprofundamento dos estudos e das
investigações acerca dessa matéria, visto que alberga diversos aspectos democráticos, tais como
P á g i n a | 253
a separação dos poderes, a participação popular na construção interpretativa das leis e da Carta
Magna, a interferência política nas decisões judiciárias e na função legiferante estatal e,
primacialmente, a solidificação de direitos e de garantias.
2
Art. 6º, da CRFB/88: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
P á g i n a | 255
Não obstante, não raras são as vezes em que essas normas de eficácia limitada
encontram-se pendentes de regulamentação (omissão total ou absoluta) ou a apresentam de
forma incompleta, insuficiente ou carente de consubstanciação (omissão parcial), incorrendo
em inconstitucionalidade e inviabilizando, em quaisquer dos casos, o desempenho pleno de um
direito ou de uma garantia fundamental. Nessa esteira, é dever do poder legiferante suprir os
hiatos ocasionadores dos óbices à essa concretização e à produção de efeitos, o que não exclui
do poder judiciário o dever de fiscalizar as ilegalidade violadoras ou ameaçadoras de algum
direito, na forma do artigo 5º, XXXV da CRFB/883.
3
Art. 5º, XXXV, da CRFB/88: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito .
P á g i n a | 256
Por sua vez, Ramos (2015) assevera em suas lições que o ativismo judicial é a função
jurisdicional para além dos limites que o ordenamento jurídico incumbe ao Poder Judiciário, o
qual atua solucionando litígios de natureza subjetiva – conflitos de interesse – ou objetiva –
conflitos normativos. Frisa-se, por oportuno, que tal atividade, posto que vital para o
funcionamento da engrenagem constitucional, mostra-se, ainda sim, deficitária, já que opera
como medida paliativa e, por conseguinte, insuficiente para regular de modo definitivo o evento
que lhe deu causa.
assume uma posição protagonista. O referido remédio está previsto no art. 5º, LXXI, da
CFRB/88, bem como na Lei nº 13.300/16, e se presta à defesa dos direitos fundamentais
“sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania”, assegurando o pleno gozo por seus destinatários.
Tem que ser levado em consideração, outrossim, que quem governa o Estado brasileiro
é a Constituição. A tripartição de poderes, nesse sentido, é um mecanismo para se atingir justa,
equitativa e democraticamente os fins últimos nela gravados. Disso se extrai a permissão para
que o Judiciário avoque para si competências excepcionais sem que haja ofensa às disposições
constitucionais, visto ser expressamente autorizado por estas, como é o caso do Mandado de
Injunção. Bitencourt Neto (2009) destaca que:
[...] a primeira conclusão quanto aos efeitos do mandado de injunção é a de que, como
direito fundamental processual, é instrumento apto a superar a falta de lei que
inviabilize o exercício de uma posição ativa jusfundamental. Em outras palavras, o
mandado de injunção é meio de excepcional atuação judicial na definição de escolhas
primárias, diretamente a partir da Constituição, para permitir o exercício de um direito
fundamental. No caso em exame o mandado de injunção é meio de exercício
extraordinário, pelo juiz, de uma competência que cabe, regra geral, ao legislador: a
definição de escolhas de natureza política que permite, por exemplo, a fruição de
prestações materiais decorrentes de direitos sociais. (BITENCOURT NETO, 2009,
p.143)
Uma das decisões mais expressivas nesse sentido foi bojo do Mandado de Injunção
4733 e da Ação Direta de inconstitucionalidade por Omissão6 (ação objetiva do controle
concentrado que visa a dar efetividade ao texto constitucional cujas normas de eficácia limitada
encontrem-se pendentes de regulamentação), nas quais o STF, além de ter reconhecido a mora
inconstitucional do Congresso Nacional no que tange à criação de lei específica que, criminalize
as condutas homofóbicas e transfóbicas, em atenção ao art. 5º, XLI, da CRFB/887, aplicou, por
analogia e com efeitos prospectivos, a Lei de Combate ao Racismo (Lei 7.716/89),tornando-as
igualmente inafiançáveis até que sobrevenha lei penal própria.
4
Art. 8º, II, da Lei nº 13.300/16: Reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para:
estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados
ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los, caso não
seja suprida a mora legislativa no prazo determinado.
5
Súmula Vinculante nº 33: Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do regime geral da
previdência social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição Federal,
até a edição de lei complementar específica.
6
Instrumento de controle abstrato (concentrado) do Poder Judiciário que se consolida através de processo
constitucional com o objetivo para de assegurar a supremacia da Constituição em razão de omissão de qualquer
dos Poderes ou de órgão administrativo.
7
Art. 5º, XLI, da CRFB/88:A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
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Nessa perspectiva, por mais que os juízes não pertençam à política, suas funções
constitucionais sim, advindo daí sua legitimidade democrática cujo propósito não é o de
aumentar o poderio dessa classe de modo a desarmonizar o equilíbrio dos arranjos institucionais
em prol do judiciário e em detrimento dos outros, mas sim de amplificar a proteção da
democracia e dos direitos fundamentais (CORDEIRO, 2012).
Ocorre que ambas as espécies desse instituto estão inseridas em um contexto em que
a dignidade da pessoa humana é o centro dos demais direitos fundamentais, devendo pautar as
ações estatais, ainda mais quando a ineficiência destas engendra ônus que não cabem ao cidadão
suportar. Insta realçar que esse “direito-base” é, até mesmo, para os jusnaturalistas, um limite
ao poder constituinte originário, o qual, enquanto desvencilhado do direito positivo, deve ater-
se ao direito natural. Afilia-se a esse sentido Sarmento (2010), o qual salienta que no momento
da aplicação das normas, de todas elas, deve haver seu reexame pelo aplicador do direito sob
novas lentes, as quais terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça
social, impressas no tecido constitucional. Analogamente, Medina (2019) alega:
O fato é que para toda ação há uma reação correspondente, e com o ativismo judicial
não poderia ocorrer de modo diverso. Nesse âmbito, em que a defesa dos direitos fundamentais
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– precipuamente os das minorias – pelo judiciário adota, na maioria das vezes, cunho
contramajoritário, notadamente o liberal, e mediante a polêmica e controvérsia que geralmente
permeiam a temática, camadas sociais e institucionais essencialmente conservadoras, eivadas
de um sentimentalismo insatisfatório, reagem fervorosa e negativamente à deliberação judicial,
gerando intensa comoção e adesão popular, o que dá oportunidade política e eleitoral para os
setores legislativos que compartilham dos mesmos ideais e aquece as contendas existente entre
o jurídico e o político.
Não obstante, é premente notar que o fundamento dessas reações adversas não é a
decisão em si, o seu erro ou o seu acerto, mas sim a ideologia e os valores que estão por trás,
de forma que se proferida decisão conservadora, embora não seja a tendência, os progressistas
também podem se insurgir e desencadear processo semelhante, mas com implicações
peculiares. A reação, nesse sentido, está muito mais atrelada à quebra abrupta do status quo e
da saída da zona de conforto de parcela da população, corolário do choque ideológico.
legislativo, ou mesmo do executivo, a qual, por sua vez, tornar-se-ia objeto de uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade a ser julgada pelo próprio STF, recaindo, assim, em um círculo
vicioso. Nas palavras de Clève (2006):
Apesar de essas manifestações serem uma representação democrática, uma vez que
permite ao povo explicitar sua própria leitura do texto constitucional e trazer à baila debates
sobre temáticas que normalmente permaneceriam latentes, há de se reconhecer que foi por meio
do ativismo judicial que houve a implementação de direitos negligenciados e repudiados
historicamente a essa minorais, tais como a igualdade entre os indivíduos e a dignidade da
pessoa humana. A espera da mudança gradual da consciência social frente ao dinamismo das
metamorfoses culturais para que se evite tanto o ativismo, quanto as reações antagônicas, vai
de encontro à busca pela solidificação de direitos orientada pela Constituição.
que, quando da promulgação da Carta, era vista sob uma óptica conservadora em que não se
reconhecia a liberdade sexual como um direito inerente ao homem, visão esta transformada
drasticamente.
Ilustrando a pertinência das decisões tomadas pelos tribunais pátrios, em especial pelo
STF pelos motivos já elencados, aponta-se o recente julgamento de uma liminar no bojo de sete
ADI’s em face da Medida Provisória 927/2020, aprovada para dispor sobre as medidas a serem
tomadas para o enfrentamento do estado de calamidade pública decretado em decorrência da
pandemia instaurada pelo vírus Covid-19. Por voto da maioria, os casos de infecção pelo vírus
passaram a ser reconhecidos como doença ocupacional ou acidente de trabalho, sendo que a
MP, especificamente no artigo 29, afirmava que só poderia ser reconhecido como tal se fosse
comprovado o nexo causal. Indubitável, destarte, a magnitude do relevo do ativismo e de sua
preponderância em face do dinamismo social.
8
Art. 1º, IV, da Lei nº 8989/1995: Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis
de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a 2.000 cm³ (dois mil
centímetros cúbicos), de, no mínimo, 4 (quatro) portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustível
de origem renovável, sistema reversível de combustão ou híbrido e elétricos, quando adquiridos por: IV – pessoas
portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de
seu representante legal;
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existente até então era injustificável – vez que estendia a prerrogativa a outras classes de
deficiência – e conflitante com as finalidades – proteção e inclusão – do sistema ínsito ao
Estatuto da Pessoa com Deficiência e com o Estado Democrático de Direito.
Sem dúvidas, há critérios a serem seguidos para que haja uma delineamento adequado
da jurisdição constitucional – a exemplo do próprio direito, das teorias interpretativas e
argumentativas, da pressão política dos atores sociais, do amplo debate social, dentre outros
(FERNANDES, 2010) – sem que a isso se objete a simples possibilidade de comportamentos
reacionários, os quais, apesar das chances de suscitarem um efeito rebote, são significativo meio
de colocar em destaque questões socialmente relevantes que exigem enfrentamento. Demais, é
salutar advertir que o Supremo não está atuando em qualquer seara legislativa, mas sim naquela
para qual foi devidamente autorizado, já que, ao tomar decisões, está pondo em prática aquilo
que anteriormente fora almejado pelo constituinte. Não há, pois, outro impulso, senão o
democrático.
COSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões estão longe de terminar, até porque são essenciais para a evolução da
democracia e para a construção desse novo panorama de um judiciário enérgico, mas a
harmonia entre os poderes deve apaziguar a competitividade entre eles, visto que o ordenamento
jurídico é uno e tem como escopo máximo o bem estar social, de forma que sejam a todos
assegurados as liberdades civis e os direitos e garantias fundamentais, independentemente de
quem seja a última palavra.
REFERÊNCIAS
CLÈVE, Clemerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de Direito
Constitucional e Internacional, v. 54, p. 28-39, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Curso Direito Civil Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
GOMES, Luiz Flávio. O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes? 2009.
Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/12921/o-stf-esta-assumindo-um-ativismo-judicial-
sem-precedentes>. Acesso em: 10 ago. 2020.
MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
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ABSTRACT
The present work seeks to analyze the role of the Judiciary Power in
making decisions that involve fundamental rights in face of a normative
omission of other powers, especially the legislative, as well as the
reactionary behaviors arising from that ascending protagonism that
marks the era of Constitutionalism or Post-Positivism.
In addition, it places on the agenda important and controversial concrete
cases that demanded the undertaking of judicial activism, with the aim
of illustrating the relevance of this participatory posture for the
realization of these rights, which, in their majority, concern to socially
sensitive and latent affairs. It was concluded at the end that, despite the
need for debates, criticism and limits to this acting, judicial activism
and the backlash effect are rooted to the very concept of Democracy
and it is essential for its gradual reconstruction based on the supremacy
of the constitutional norms that proclaim imperative prerogatives to
guarantee a dignified existence for the citizen.
For this purpose, exploratory and qualitative research was used, made
possible by the bibliographic and legislative analysis on the topic
addressed, aiming for the understanding of the dimensions that cover
the studied institute and its importance for Brazilian Law.
Keywords: Judicial Activism. Constitutionalism. Democracy.
Fundamental rights. Backlash effect. Omission.