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ISSN: 2594-4207

ISSN: 2594-4207

Periódico dos Discentes da Faculdade de


Direito da Universidade Federal do Ceará

Vol. 5 - 2020
Dedicado ao Professor Paulo Bonavides, in memoriam
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REVISTA DIZER
Publicação Anual dos Acadêmicos do Curso de Direito
da Universidade Federal do Ceará

Reitor Chefe do Departamento de Direito Processual


Prof. José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque Prof. Sérgio Bruno Araújo Rebouças
Vice-Reitor Chefe do Departamento de Direito Público
José Glauco Lobo Filho Prof. Dr. Machidovel Trigueiro Filho
Chefe do Departamento de Direito Privado
FACULDADE DE DIREITO Prof. Dr. Francisco Paulo Brandão Aragão
Diretor
Prof. Dr. Maurício Feijó Benevides de Magalhães Filho Orientador do projeto da Revista Dizer
Vice-Diretora Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior
Profa. Dra. Camilla Araújo Colares de Freitas
Coordenador do Curso de graduação em Direito REVISÃO
Prof. Dr. Alex Xavier Santigo da Silva Comissão Editorial da Revista Dizer

Revista Dizer / Publicação Anual dos Acadêmicos do Curso de Direito da


Universidade Federal do Ceará. – Ano 5, n. 5 (jan./dez. 2020).

Anual
ISSN 2594-4207

1. Direito – Periódicos. I. Universidade Federal do Ceará. Faculdade de


Direito/UFC

CDU - 340

Comissão Editorial da Revista Dizer


Universidade Federal do Ceará – Faculdade de Direito/UFC
R. Meton de Alencar, S/N – bairro Centro
Fortaleza/CE - CEP 60.035-160
Home Page: www.periodicos.ufc.br/dizer
E-mail: arevistadizer@gmail.com
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará
Volume 5 – dezembro de 2020

Coordenador de Extensão e Editor-Chefe


Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior

Presidente do Corpo Editorial


Bruno Mesquita da Rocha

Conselho Editorial
Alan Elias Silva
Amanda de Sousa Araújo
Andréa dos Santos Teixeira
Antônio Gabriel Melo Queiroz
Bianca Mota do Nascimento Brasil Muniz
Carolina Xavier Regis
Darissa Hermínia Soares Moraes
Felipe Braga de Paula
Francisco Eliton Sousa da Silva
Izabella Felix Morais
James Douglas Silva de Lima
José Henrique de Oliveira Couto
Juliana Mayra da Silva Paiva
Kamyla Heleny Titara Martins
Lara Pontes Juvêncio Pena
Maria Clara Fernandes Ribeiro Neta
Marina Araújo da Silva
Mayara Melo dos Santos
Nana Yaa Boaduwaa Ennin
Nikaelly Lopes de Freitas
Talita de Jesus Correia
Victória Silvestre da Silva
Vivian Sampaio Braga
Wellen Pereira Augusto
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................................................................... 04

DEDICATÓRIA AO PROFESSOR PAULO BONAVIDES IN MEMORIAM ........ 05

EDITORIAL .............................................................................................................. 06

I....... RESPONSABILIDADE CIVIL NAS REDES SOCIAIS: CONFLITOS E


LIMITES ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITOS DA PERSO-
NALIDADE .............................................................................................................. 10

II ..... REFUGIADOS NA LÍBIA PELO MAR: UMA ANÁLISE DO MEMO-


RANDUM OF UNDERSTANDING E SUAS IMPLICAÇÕES ................................... 28

III ... NOÇÕES SOBRE REFÚGIO E INTEGRAÇÃO LOCAL NO BRASIL .......... 48

IV .... .A VULNERABILIDADE DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS E A GA-


RANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL ..................................................................... 64

V ..... A EMPRESA EM CRISE E A IMPORTÂNCIA DAS SOLUÇÕES DE


MERCADO .................................................................................................................. 81

VI. ... A ECONOMIA DE COMPARTILHAMENTO NO BRASIL E O DEBATE


SOBRE A REGULAMENTAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE ENTREGA POR
APLICATIVOS. ........................................................................................................... 101

VII .. O FENÔMENO DA AUTOTUTELA NAS REDES SOCIAIS: OFENSA À


HONRA E PRIVACIDADE COMO FORMA DE VINGANÇA PRIVADA ............. 121

VIII. O RÉU AUTISTA NO TRIBUNAL DO JÚRI: COMO SUAS LIMITA-


ÇÕES CONVERSACIONAIS AFETAM SEU INTERROGATÓRIO. ...................... 141

IX .... O MOVIMENTO LGBT BRASILEIRO, A LEI RN SEM HOMOFOBIA E


O PROJETO DE LEI DANDARA: UMA INTERPRETAÇÃO DIALÉTICA
MARXISTA ................................................................................................................. 162
X ..... A PROPRIEDADE URBANA VINCULADA JURIDICAMENTE ÀS
FUNÇÕES SOCIAL E DA CIDADE. ......................................................................... 182

XI .... GUARDA COMPARTILHADA E IGUALDADE DE GÊNERO: UMA


EQUAÇÃO POSSÍVEL? ............................................................................................. 196

XII .. INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE DEMOCRACIA DIRETA PARA


CONVOCAÇÃO DE ELEIÇÕES APÓS O IMPEACHMENT ................................... 215

XII. UNIÕES HOMOAFETIVAS: O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE


FAMÍLIA E A INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA PELO STF ............................... 231

XIV. EFEITO BACKLASH COMO CONSEQUÊNCIA DIRETA DO ATIVISMO


JUDICIAL CARACTERÍSTICO DA PRÁXIS JURÍDICA BRASILEIRA EN-
QUANTO ARCABOUÇO PROTETIVO DOS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS ...................................................................................................... 251
APRESENTAÇÃO

O ano de 2020 foi marcado por uma série de acontecimentos jamais imaginados,
que ocasionaram um forte impacto na vida de pessoas ao redor de todo o globo e enseja-
ram momentos de grande instabilidade e insegurança. Neste cenário, a produção de nos-
so quinto volume se mostrava como uma tarefa especialmente difícil e, em alguns mo-
mentos, praticamente impossível.
Ainda assim, o Corpo Editorial da Revista Dizer não desistiu, dedicando grandes
esforços para contornar as adversidades e buscando meios para desenvolver seus traba-
lhos dentro desta nova realidade em que se viu repentinamente inserido. Como resultado
de todo o trabalho árduo desenvolvido ao logo desse ano tão conturbado, logramos êxito
na produção de um volume que apresenta grande qualidade e que trata de assuntos de
forte impacto em nossa sociedade.
Assim, é com grande orgulho e sentimento de dever cumprido que publicamos o
quinto volume em nossa plataforma virtual! Os artigos que compõem o presente volume
tratam de temas atuais e de grande relevância, como a regulamentação dos profissionais
de entrega por aplicativo, a guarda compartilhada e a igualdade de gênero, a questão da
responsabilidade civil por aquilo postado nas redes sociais, o direito dos refugiados,
dentre outros assuntos de fundamental importância no contexto atual.
Nesse diapasão, cumpre ainda agradecer a todos aqueles que contribuíram para
que fosse possível a produção do volume aqui ofertado, em especial ao nosso patrocina-
dor, o escritório Paulo Quezado Advocacia, que tem apoiado o trabalho desenvolvido
pela Revista Dizer já ao longo de muitos anos, acreditando sempre na importância da
democratização do conhecimento jurídico. Também saudamos o trabalho ofertado por
nosso corpo de pareceristas, o qual demonstrou sério empenho para que os artigos que
compõem o volume fossem de excelência. Por último, agradecemos ao coordenador do
projeto, o Professor Dr. William Paiva Marques Júnior, que sempre nos presta o apoio e
a orientação necessários para o bom andamento de nossas atividades.
Desejamos que os artigos aqui apresentamos possam ocasionar no leitor uma am-
pliação de seus horizontes, levando-os a pensar acerca dos temas tratados e, principal-
mente, buscar meios de transformar a realidade em que vivemos. Tenham uma excelen-
te leitura!
Bruno Mesquita da Rocha
Presidente do Corpo Editorial da Revista Dizer
DEDICATÓRIA DO VOLUME AO PROF. PAULO BONAVIDES IN MEMORIAM

Certamente o ano de 2020 foi um ano de perdas indescritíveis, o mundo parou e precisou
se reinventar diante da pandemia ocasionada pela COVID-19. Em meio a tantas mortes e mudanças,
tivemos a infelicidade de perder um dos maiores - se não o maior - Constitucionalista do Brasil:
Paulo Bonavides. Diante de sua grande importância para a Universidade Federal do Estado do
Ceará, a Revista Dizer não poderia deixar de homenagear tão prestigiado jurista que, docente da
Salamanca, inspirou gerações com suas obras, as quais foram consideradas precursoras de uma série
de temas que eram centrais na doutrina alemã e norte-americana, ajudando a reconstruir o
constitucionalismo brasileiro após a Constituição de 1988.
O professor Bonavides colaborou intensamente para o engrandecimento da comunidade ci-
entífica de nossa Salamanca desde 1956, quando ingressou no corpo docente da UFC como
professor assistente da disciplina Introdução à Ciência do Direito. Já em 1958 conquistou os títulos
de doutor e professor catedráticos, após a apresentação de sua brilhante tese: Do Estado Liberal ao
Estado Social, passando a ministrar a disciplina de Teoria Geral do Estado. Colaborou, ainda, de
forma determinante para a criação do mestrado em nossa universidade em 1978, lecionando a
disciplina de Filosofia do Direito. Por estas e tantas outras colaborações, o professor recebeu a
condecoração Doutor Honoris Causa.
Por meio de suas obras Direito Constitucional (1980), Norma Jurídica e Análise Lógica:
Correspondência Kelsen-Klug (1984), Política e Constituição (1985), Constituinte e Constituição
(1986), Demócrito Rocha: Uma Vocaçao Para a Liberdade (1988), História Constitucional do Brasil
(com Paes de Andrade) (1988), A Constituição Aberta (1993), Curso de Direito Constitucional
(1993), Do País Constitucional ao País Neocolonial (1999), Teoria Constitucional da Democracia
Participativa (2001), Os Poderes Desarmados (2002), La Depoliticizzazione Della Legittimità
(2007), Constitutuição e Normatividade dos Princípios (2012), o professo Paulo Bonavides
influenciou positivamente todos os alunos que passaram pela Universidade Federal do Ceará, sendo
certo que suas pesquisas e teses jurídicas ainda iluminarão a mente das futuras gerações na
construção de suas próprias carreiras acadêmicas.
Decerto, o professor Paulo Bonavides com seu apreço pela ciência do Direito influenciou
inúmeros pesquisadores e deixou um grande legado para a comunidade científica. A Revista Dizer
como instrumento de difusão da pesquisa na graduação compartilha de tal propósito e dedica este
quinto volume ao seu grandioso legado.

Paulo Bonavides
10.05.1925 30.10.2020
EDITORIAL

Como é de conhecimento geral, a pandemia que assolou país no ano de 2020


impactou a vida de milhões de pessoas, ocasionando efeitos que refletiram diretamente
no desenvolvimento dos trabalhos relativos à produção de nosso quinto volume.

Frente a tal situação, com redobrado esforço e empenho diligente, o Corpo Edi-
torial da Revista Dizer, periódico eletrônico gerido por estudantes do curso de Direito
da Universidade Federal do Ceará, diligenciou exitosos trabalhos para que este volume
pudesse ser publicado, trazendo artigos científicos que deixam sua preciosa contribuição
ao meio acadêmico e jurídico.

Os artigos aqui contidos discorrem sobre diversos temas, contribuindo imen-


samente com um ambiente democrático de conhecimento, o que beneficia principalmen-
te os estudantes e pesquisadores.

Gabriel Vitor Medeiros Maia e Lucas Patrícius de Medeiros Leite escreve-


ram o artigo “A ECONOMIA DE COMPARTILHAMENTO NO BRASIL E O
DEBATE SOBRE A REGULAMENTAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE EN-
TREGA POR APLICATIVOS”, no qual, por meio de uma bibliografia rica e densa,
pondera-se sobre a urgente necessidade de regulação normativa dos motoristas de apli-
cativos, com a finalidade de alcançar melhorias nas condições trabalhistas dos mesmos.

“A PROPRIEDADE URBANA VINCULADA JURIDICAMENTE ÀS


FUNÇÕES SOCIAL E DA CIDADE”, de autoria de Lívia Brandão Mota Cavalcan-
ti, é um texto que trata a respeito da propriedade urbana e sua função social à luz da
Constituição Federal de 1988 e da cidade. Neste trabalho, a articulista também demons-
trou como a propriedade urbana, analisada sob os pilares das funções sociais da Carta
Magna e da cidade, garante os direitos sociais básicos.

Em seguida, Rogers Alexander Boff e Valéria Koch Barbosa com o artigo


científico “A VULNERABILIDADE DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS E A
GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL”, trazem a discussão com vistas à legali-
dade da garantia do mínimo existencial para os humanos que migraram por causa de
mudanças climáticas, que, como efeito dominó, acarretam desastrosas catástrofes natu-
rais. O trabalho, amparado na metodogia de abordagem dedutiva, evidenciou, também,
que os refugiados por causas ambientais nem sempre possuem preservadosos os direitos
que os auxiliam na manutenção da dignidade humana.

Através do tema “ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO


PROVISÓRIA DA PENA APÓS CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI”,
João Pedro Martins de Sousa e Ayssa Moselle Viana Castro levantaram instigantes
considerações acerca da possibilidade de execução provisória da pena em caso de con-
denação igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão pelo Tribunal do Júri. Para
isso, utilizaram de embasamento os princípios constitucionais aplicáveis ao processo
penal e às Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54, proferidas pelo Su-
premo Tribunal Federal. Além disso, também teceram perspectivas sobre o Recurso
Extraordinário n° 1.235.340, o qual torna lícita a prisão imediata do condenado após a
condenação por Tribunal do Júri.

No trabalho “EFEITO BACKLASH COMO CONSEQUÊNCIA DIRETA


DO ATIVISMO JUDICIAL CARACTERÍSTICO DA PRÁXIS JURÍDICA BRA-
SILEIRA ENQUANTO ARCABOUÇO PROTETIVO DOS DIREITOS E GA-
RANTIAS FUNDAMENTAIS”, a autora Samara Andrade Rodrigues teve como
objetivo demonstrar a função desempenhada pelo judiciário na tomada de decisões que
envolvam direitos fundamentais nos casos concretos em que existam omissões normati-
vas, sobretudo as advindas do poder legislativo. Ao abordar casos concretos e de fun-
damentações jurídicas, a autora concluiu que o ativismo judiciário e o efeito backlash
são essenciais para garantir aos cidadãos normas que possam garantir tanto dignidade,
quanto uma democracia pautada nas imperiosas normas constitucionais.

“GUARDA COMPARTILHADA E IGUALDADE DE GÊNERO: UMA


EQUAÇÃO POSSÍVEL?”, escrito por Laura Hêmilly Campos Martins, teve como
objetivo ponderar sobre a igualdade entre mulheres e homens na questão da guarda
compartilhada.

Aline Borges Rodovalho Batista e Rafael Ruling Estênico, no artigo “INS-


TRUMENTOS JURÍDICOS DE DEMOCRACIA DIRETA PARA CONVOCA-
ÇÃO DE ELEIÇÕES APÓS O IMPEACHMENT”, analisam as possibilidades de
instrumentos jurídicos para uma eleição após a interrupção do mandato do presidente da
república por um impeachment, bem como propõem a separação das naturezas penal e
política deste instituto jurídico. Também fazem considerações acerca do recall de polí-
ticos ineficientes ou que pratiquem delitos.

Em “NOÇÕES SOBRE REFÚGIO E INTEGRAÇÃO LOCAL NO BRA-


SIL”, Thiago Augusto Lima Alves procurou pautar sobre a situação dos refugiados no
Brasil. Para isso, o autor conceituou o termo “refúgio”, e levantou questões relacionadas
com a história do arcabouço legislativo para os refugiados e com a realidade ontológica
dos mesmos.

Em seguida, no artigo “O FENÔMENO DA AUTOTUTELA NAS REDES


SOCIAIS: OFENSA À HONRA E PRIVACIDADE COMO FORMA DE VIN-
GANÇA PRIVADA”, escrito por Rafaela Lamêgo e Aquino Rodrigues de Freitas,
trata da vingança na sociedade elevada ao âmbito virtual. Assinalaram, ainda, que a
descrença no poder judiciário e a falsa sensação de autonomia levam os indivíduos a
cometerem a autotutela - vingança privada - desconciderando o direito privado alheio,
principalmente no que concerne à honra e à privacidade.

Em “O MOVIMENTO LGBT BRASILEIRO, A LEI RN SEM HOMO-


FOBIA E O PROJETO DE LEI DANDARA: UMA INTERPRETAÇÃO DIALÉ-
TICA MARXISTA”, Dandara da Costa Rocha ponderou sobre a história do movi-
mento dos LGBT’s no Brasil e como a mesma influencia o direito positivado e é influ-
enciado. Para isso, a autora relacionou a realidade com a dialética marxista, com enfo-
que em uma relação de dominante e dominado; e com as legislações nacionais, especi-
almente a Constituição Federal.

No texto científico “O RÉU AUTISTA NO TRIBUNAL DO JÚRI: COMO


SUAS LIMITAÇÕES CONVERSACIONAIS AFETAM SEU INTERROGATÓ-
RIO”, Artur Vinícius de Lima Fernandes objetivou demonstrar como um portador de
Transtorno de Espectro Autista gera efeitos no litígio criminal, especialmente no Tribu-
nal do Júri.

Ana Carolina Paiva Coelho, autora de “REFUGIADOS NA LÍBIA PELO


MAR: ‘’UMA ANÁLISE DO MEMORANDUM OF UNDERSTANDING E SUAS
IMPLICAÇÕES‘’”, trouxe ponderações acerca da política migratória italiana, apoiada
pela União Europeia à luz do Memorandum of Understanding assinado pela Líbia, com
a finalidade de demonstrar como é a condição de vida dos migrantes capturados e que
continuam na Líbia. Além disso, a autora também pondera acerca dos tratados de direito
do mar e dos direitos humanos, sempre relacionando com a temática principal, a dos
refugiados na Líbia pelo mar.

No texto científico “RESPONSABILIDADE CIVIL NAS REDES SOCI-


AIS: CONFLITOS E LIMITES ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DI-
REITOS DA PERSONALIDADE”, Renato Nonato Xavier Sobrinho arguiu que nas
redes sociais existem conflitos entre a liberdade de expressão e os direitos de personali-
dade, uma vez que os indivíduos interferem na esfera privada de outrem, atingindo os
direitos à honra e a imagem, principalmente; e, justamente por isso, há uma responsabi-
lidade civil daqueles que violam os direitos de personalidade de outrem.

Por fim, em “UNIÕES HOMOAFETIVAS: O CONCEITO CONSTITU-


CIONAL DE FAMÍLIA E A INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA PELO STF”,
Eric Holanda Lins e José Erolísio Teixeira Neto propuseram analisar o conceito de
“família” sobre a perspectiva da diversidade, concluindo que as uniões homoafetivas,
sob égide do pilar constitucional, também são entidades familiares. Também enfatiza-
ram decisões da Suprema Corte que confirmam a união homoafetiva como entidade
familiar.

Assim, o Corpo Editorial da Revista Dizer agradece a todos os envolvidos na


produção de nosso volume, o que possibilitou a publicação de excelentes artigos, os
quais apresentam altíssima qualidade e importância no contexto jurídico e acadêmico.

Uma boa leitura e que ela adicione muito a seu saber!

Corpo editorial da Revista Dizer


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RESPONSABILIDADE CIVIL NAS REDES SOCIAIS: CONFLITOS E LIMITES


ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITOS DA PERSONALIDADE

Renato Xavier Sobrinho1

RESUMO

O presente artigo trata sobre a responsabilização cível dos agentes


envolvidos em conflitos nas redes sociais e a colisão entre a liberdade
de expressão e os direitos da personalidade, como os direitos à honra e
à imagem, na internet, tendo em vista o frequente conflito entre esses
direitos nas redes sociais. Buscou-se delimitar a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas, os direitos em colisão e a
ponderação enquanto técnica de resolução do impasse. Em seguida,
investigou-se a responsabilidade civil dos agentes que publicam
mensagens e conteúdos danosos nas redes, analisando os diplomas
legais pertinentes e delimitando uma proposta de responsabilização dos
infratores. Por fim, verificou-se que a prevalência de um dos direitos,
bem como a majoração da amplitude do dano para eventual
responsabilização, depende da análise dos elementos do caso concreto.
Para a realização desse artigo foi adotado o método jurídico-dogmático
e a revisão de literatura.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos da personalidade. Direitos


fundamentais. Liberdade de expressão. Redes sociais.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objeto o conflito entre a liberdade de manifestação do


pensamento e os direitos da personalidade no ambiente digital. O advento das redes sociais
provocou uma verdadeira revolução nas concepções de vida pública e privada e a possibilidade
de comunicação globalizada e instantânea viabilizou a disponibilização de conteúdos para uma
coletividade indefinida.
Apesar dos efeitos positivos dessa nova forma de comunicação, os retrocessos são
igualmente cristalinos. Nesse rol é possível destacar a relativização da privacidade, a qual está
diretamente conectada a uma exposição descontrolada dos indivíduos. Em um ambiente de
alcance potencializado e divulgação descontrolada, as violações ganham uma amplitude
inédita.
Por se tratar de conflito entre direitos fundamentais, é de vital importância delimitar a
eficácia do ordenamento nas relações entre particulares e os mecanismos adequados para a

1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
renatosobrinho99@hotmail.com
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resolução da controvérsia. Ademais, faz-se necessário estudar a responsabilidade civil sob a


ótica deste novo paradigma, no qual o dano deriva não apenas do ato de falar, mas também do
publicar, curtir e compartilhar.
Nesse sentido, o presente estudo se mostra relevante, pois confere um olhar
diferenciado para a questão, congregando os direitos fundamentais e a técnica da ponderação à
responsabilidade civil e as normas de direito privado, em uma perspectiva civil-constitucional.
Trata-se de uma pesquisa teórica, realizada através da revisão de literatura e análise de
documentação – tais como doutrina, legislação e jurisprudência – e de casos concretos. Adotou-
se o método jurídico-dogmático, o qual busca compreender as relações normativas entre os
distintos campos do Direito por meio da análise da estrutura interna do ordenamento jurídico
sem, no entanto, ignorar as relações e valores externos.

2 A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO PRIVADO:


CONFLITOS ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E OS DIREITOS DA
PERSONALIDADE E A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO

Em primeiro plano, cumpre analisar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas. Respeitável é a parcela da doutrina, nacional e internacional, a qual se debruça no
estudo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
A teoria negativa restringe a eficácia dos direitos fundamentais às relações de direito
público e culminou no desenvolvimento da State Action Doctrine, predominante nos Estados
Unidos, a qual preconiza que, via de regra, as garantias dos direitos fundamentais não alcançam
as relações privadas, a exceção da não-escravização, concretizada pela 13ª Emenda. Em meados
do século XX, com a adoção da public function theory pela Suprema Corte americana, os
particulares em exercício de funções públicas passaram a estar vinculados aos direitos
fundamentais (BRAGA, 2007, p. 99).
Noutro giro, a Teoria da Eficácia Indireta, forte na Alemanha, reconhece a presença
dos direitos fundamentais nas relações privadas, todavia confere ao legislador o papel de
compatibilizar os ditames constitucionais com as normas de direito privado, de forma a
assegurar ainda a proeminência da autonomia da vontade - justificando assim a expressão
“indireta”. Dessa forma, a interpretação dos direitos fundamentais deve estar sempre alinhada
com as cláusulas gerais basilares do direito privado (KERN, 2019, p. 281).
Difere-se, pois, da Teoria da Eficácia Direta, majoritária na Espanha, Portugal, Itália
e Argentina, que defende a aplicação direta e imediata da Constituição em relação ao Direito
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Privado e, por conseguinte, o alcance dos direitos fundamentais às relações particulares. Tal
entendimento decorre do §1º do art. 5º da Lei Maior, o qual preconiza a aplicabilidade imediata
dos direitos fundamentais. No Brasil, essa teoria também é defendida pela doutrina e adotada
pelo Supremo Tribunal Federal, conforme assinala Dirley da Cunha Júnior (2014, p. 500).

Não se pode olvidar menção à Teoria dos Deveres de Proteção, a qual propugna a
presença do poder estatal nas relações privadas como forma de proteção dos indivíduos contra
eventuais abusos perpetrados por terceiros. Desta forma, o Estado deverá adotar não apenas
uma postura negativa, no sentido de se abster de praticar lesões, mas também uma atuação
positiva, para fornecer efetiva proteção – formal e material – aos direitos fundamentais, seja no
âmbito da formulação e aplicação de políticas públicas, seja pela atuação do Poder Judiciário
(SARMENTO, 2010, p. 155).

Para o presente trabalho será adotada uma visão eclética (BRAGA, 2007, p.117-119),
congregando elementos da Teoria Mediata e Imediata, pois, em nosso sentir, a Constituição
Federal é o topo do ordenamento jurídico pátrio, acima das leis privadas, e, em caso de conflito,
deverá prevalecer. A autonomia privada é um dos pilares da sociedade moderna e está
salvaguardada pela Carta Maior, mas não pode ser entendida como ilimitada, sob pena de violar
as restrições constitucionais. Logo, não reconhecer a eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas é negar a superioridade hierárquica da Lei Maior.

No entanto, é importante assegurar que a eficácia horizontal não anule as


consolidações do Direito Privado; devem o legislador e o julgador, por conseguinte, harmonizar
a autonomia da vontade com as garantias fundamentais das partes com base na
proporcionalidade.

Nesse sentido, deve-se adotar a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, de modo
que a interpretação das normas do Direito Privado deve ser conduzida de modo a convergir com
os comandos constitucionais, na linha do que preleciona Ingo Sarlet (2012, p. 326).

Pacificada a questão preliminar, faz-se mister delinear os direitos em conflito antes de


realizar a ponderação.

2.1 Liberdade de Manifestação do Pensamento


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Inicialmente, cumpre assinalar a concepção dual da liberdade de expressão, concebida


em sua perspectiva objetiva como elemento essencial para a salvaguarda da estabilidade
democrática e da participação popular, ao passo em que a perspectiva subjetiva abarca a
liberdade de manifestação enquanto desdobramento da dignidade da pessoa humana e do
desenvolvimento da personalidade (FARIAS, 2004, p. 55). Por razões de recorte metodológico,
o presente estudo abordará a perspectiva subjetiva.
A liberdade de manifestação do pensamento está incrustada no art. 5º, IV da CF88, in
verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

Trata-se de um direito fundamental que contempla a faculdade de exprimir livremente


suas convicções sobre determinado fato ou ideia, abarcando assim o pensamento, a explanação
de constatação e a fala crítica.
Pode, ainda, ser concebida como um meio de aprimoramento mental do indivíduo,
processo que envolve a compreensão de suas razões e emoções e a exteriorização de suas
convicções, abarcando não apenas a possibilidade de o indivíduo se comunicar, mas de os
demais o ouvirem (POVOAS, 2015, p. 166).
A doutrina especializada no estudo desse direito não é uníssona. Uma das correntes
mais protagonistas adota uma visão mais ampla da liberdade de expressão, ancorada na
metáfora do livre mercado de ideias2, por meio da qual se sustenta a tese de que todos os
indivíduos podem expressar livremente seus posicionamentos no ambiente comum da
sociedade. Dessa forma, os demais partícipes dessa comunidade podem analisar todas as ideias,
posicionamentos e teorias e selecionar aquelas que fossem mais adequadas para a realidade
social.
É notável a influência da autonomia da vontade e da crença na racionalidade humana,
haja vista que pressupõe a atuação livre e prudente do ser humano como elementos basilares e
infalíveis, os quais viabilizariam sempre a seleção adequada dos posicionamentos. Por

2
A metáfora do Marketplace of Ideas deriva da doutrina de defesa da liberdade, de índole liberal, desenvolvida
pelo teórico John Stuart Mill e se popularizou após a publicação do livro On Liberty (A Liberdade) em 1859. Cf.
PÓVOAS, ibid., p. 167.
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conseguinte, minimiza-se a atuação do Estado nessa escolha, figura a qual é vista como uma
ameaça à plena liberdade individual.
A experiência sócio-histórica, por outro lado, revelou que essa liberdade absoluta pode
conduzir à ascensão de posicionamentos autoritários e adeptos à censura, desfigurando a
concepção originalmente pregada pela ala liberal. O constituinte de 1988, atento a essa
realidade, consagrou a liberdade de manifestação como princípio para suprimir essa concepção
de direito absoluto. Nesse sentido, estabeleceu mecanismos de compatibilização com os demais
direitos fundamentais ao instituir, por exemplo, a vedação ao anonimato no mesmo inciso.
Impende assinalar que, com os avanços tecnológicos e o advento de veículos de
comunicação digitais, a liberdade de manifestação do pensamento aderiu a novos contornos,
mais pertinentes ao novo momento histórico, abarcando as novas plataformas como meios de
expressão, como também o conteúdo da mensagem comunicada eletronicamente (ROBL
FILHO; SARLET, 2016, p. 120).

2.2 Direitos da Personalidade

A terminologia personalidade compreende duas dimensões: a primeira, de


caráter objetivo, significa a capacidade do sujeito de ter direitos e contrair obrigações; a
segunda, subjetiva, compreende um conjunto de bens jurídicos inerentes à condição humana
(TEPEDINO, 2008, p.5). Constituem, portanto, elementos da construção individual, os quais
derivam da dignidade da pessoa humana e compõem o núcleo essencial desta.
Anderson Schreiber (2013, p. 13) preleciona que a expressão direitos da
personalidade:

[…] é empregada na alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no
campo das relações privadas, ou seja, na interação entre particulares, sem embargo de
encontrarem também fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e
internacional.

Impende delimitar que os direitos da personalidade se dividem em dois subgrupos: os


direitos à integridade física e os de integridade moral. O primeiro conjunto compreende os
atributos tangíveis do indivíduo, diretamente ligados à proteção do corpo, inclusive no pós-
morte. O segundo agrupamento abrange os aspectos subjetivos do indivíduo, tais como a
liberdade, a honra e a intimidade. Para fins de recorte metodológico, o presente artigo se cingirá
ao estudo dos direitos morais.
Nessa linha, a Carta da República, em seu art. 5º, X, consagra os direitos da
personalidade em sua vertente moral:
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Art. 5º [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;

Todos esses direitos compõem o bloco moral do indivíduo, o qual constitui um bem
jurídico de relevância tal que sua proteção é ampla, irradiada em dispositivos do rol de garantias
fundamentais, mas também encontra espaço no Código Civil de 2002. Exemplo dessa proteção
é o inciso V do art. 5º que assegura o direito de resposta em caso de dano material, moral ou à
imagem. A defesa de tais bens jurídicos atesta essa nova concepção de valorização dos aspectos
extrapatrimoniais, em oposição à tradição patrimonialista hegemônica da doutrina civilista.
Contudo, é de vital importância destacar que, apesar dessa rede de proteção dos
direitos da personalidade, tais garantias não são absolutas. Os critérios variam de acordo com
as partes envolvidas na colisão de direitos (pessoas famosas ou indivíduos que possuem um
laço afetivo de qualquer natureza) e com o conteúdo da mensagem (a veracidade da informação
e o modo de expressão).
Ademais, na contemporaneidade, com o advento de novas formas e meios de interação
social, tais critérios incorporaram novas particularidades; a título de exemplo, o modo de
expressão nas redes sociais é distinto de uma comunicação física, presencial, de modo que duas
situações com partes e mensagens idênticas demandam análises diferenciadas.
Desta forma, nos casos de conflito, a avaliação deverá ser feita de acordo com as
particularidades de cada caso, por meio da ponderação de princípios.

2.3 Colisão entre a Liberdade de Expressão e os Diretos da Personalidade e a Técnica


da Ponderação

O conflito de direitos ora em comento traz consigo a difícil missão de compatibilizar


a proteção das partes, haja vista que ambas são titulares de direitos fundamentais.
Nesse sentido, Robert Alexy (2008, p. 93) preleciona que:

Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de
acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios
terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser
declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na
verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob
determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser
resolvida de forma oposta.
P á g i n a | 16

O doutrinador alemão ainda assinala que o conflito (colisão) deve ser solucionado por
meio do sopesamento dos direitos, de forma a definir qual deles tem maior peso no caso
concreto (ALEXY, 2008, p. 93). O instrumento se faz necessário, pois é a partir da análise do
caso concreto, de suas circunstâncias e peculiaridades, que se identifica qual dos direitos deverá
ceder.
Cumpre dissipar a concepção de um direito absoluto, a qual se mostra desconectada
da realidade, na medida em que a caracterização como absoluto conduz a conclusão de que este
prevalecerá sempre frente aos demais, estando em um patamar superior.
Por conseguinte, se o princípio é ilimitado, em caso de colisão do direito de um
indivíduo com o mesmo direito de outro(s), o mesmo direito se sobreporia e cederia para
proteger apenas um sujeito, em detrimento dos demais, pelo mesmo fundamento (ALEXY,
2008, p. 111). Do mesmo modo, inexiste sopesamento com resultado absoluto; o resultado da
análise do caso concreto vincula apenas o elemento fático ora em comento, não se
estabelecendo, portanto, uma imposição perene.
Nesse quadro insere-se a técnica da ponderação, por meio da qual pode ser solucionado
o impasse entre os direitos fundamentais. A ponderação, portanto, busca o equilíbrio e a
compatibilização dos princípios de modo a não sacrificar totalmente um deles.
Impende pontuar, contudo, que a limitação só pode ser realizada se guardar
conformidade formal e material com a Constituição. A forma abarca requisitos como a
iniciativa e o devido processo legal de limitação, enquanto que a matéria envolve a preservação
do “núcleo essencial” do direito e a instituição de um limite proporcional (SARLET, 2012, p.
369).
Proporcionalidade e princípios dialogam necessariamente; estes últimos se traduzem
como “mandamentos de otimização” que norteiam a concretização do possível à luz da
realidade fática e jurídica, enquanto a proporcionalidade, por sua vez, é composta de três
elementos (i) adequação, (ii) necessidade; e (iii) proporcionalidade em sentido estrito. A
máxima da proporcionalidade e suas componentes definem a otimização dos princípios
(ALEXY, 2008, p. 588). Faz-se necessário delimitar o conceito de cada elemento.
O exame da adequação demanda uma análise de todos os meios disponíveis para
alcançar determinado fim e a seleção daquele mais adequado para a resolução da situação. Deve
ser, portanto, uma medida que promova o fim ao qual está se vinculando ou, ao menos, busque
a “promoção gradual” de determinada finalidade (ÁVILA, 2005, p. 116).
P á g i n a | 17

Por outro lado, revela-se inadequada a medida que, sob o argumento de defender um
determinado direito, imponha limitação demasiadamente rígida a outro direito, sem, no entanto,
oferecer efetivamente uma proteção ao primeiro.
O segundo aspecto diz respeito à necessidade. Uma medida é dita necessária quando,
dentre o rol de opções adequadas à promoção do fim ao qual se propõem, oferece interferência
menos gravosa à esfera jurídica do outro e uma restrição menor aos direitos fundamentais em
colisão (ÁVILA, 2005, p. 122).
O requisito da necessidade, pois, configura relevante contrapeso técnico hábil a coibir
limites excessivos aos limites dos direitos fundamentais, conduzindo a ponderação de forma
que um dos direitos cederá de forma mais suave.
O terceiro elemento é a proporcionalidade em sentido estrito, que se traduz na
investigação subjetiva do meio para o fim almejado; uma análise para definir se a proteção de
determinado direito justifica a limitação de outro.
Humberto Ávila (2005, p. 124) preleciona que, para verificar se uma medida é
proporcional, deverá se examinar se as vantagens relacionadas à promoção do fim justificam as
desvantagens decorrentes do meio adequado.
A construção da justificativa, no entanto, deve ser racional, pautada em argumentos
sólidos que embasem a adoção de determinado posicionamento.
A título de exemplo, em uma situação em uma rede social na qual o indivíduo A, após
desentendimento com o indivíduo B, publica em seu perfil um texto com conteúdo ofensivo em
relação a B. Trata-se de conflito entre a liberdade de manifestação do pensamento de A e o
direito à honra de B.
No primeiro nível da proporcionalidade, punir exclusivamente a plataforma é um
exemplo de medida inadequada, na medida em que a aplicação da sanção não surtiu nenhum
efeito de proteção do direito em questão.
No segundo plano, uma opção desnecessária seria o bloqueio da rede social em todo o
território nacional para evitar novas ofensas aos direitos da personalidade. Apesar de ser
adequada, pois promoveria o fim ao qual se propôs – qual seja, a proteção da honra de B –, não
se configura medida menos gravosa, pelo contrário, cerceia a liberdade de manifestação de
todos os demais usuários, independentemente da existência de vínculo com o caso.
No terceiro patamar, a exclusão do perfil de A, por exemplo, se mostraria
desproporcional, pois, apesar de adequada e necessária, essa medida cerceia totalmente a
liberdade de manifestação individual. A proteção da honra não justifica a supressão do direito
de manifestação de outrem.
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À luz do exposto, no caso de colisão verifica-se que o sopesamento dos direitos


fundamentais deve observar a máxima da proporcionalidade, com o fito de modular as
limitações aos direitos em colisão e evitar abusos.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL NAS REDES SOCIAIS

As redes sociais viabilizaram a mudança de paradigma nas relações interpessoais. A


interação e o contato visual, que antes demandavam a presença física das partes, agora podem
ser realizadas virtualmente, unindo pessoas ao redor do globo. Por conseguinte, a velocidade
do fluxo de informações entre pessoas e a possibilidade de transmissão de mensagens e
conteúdos variados de forma imediata afetou diretamente a concepção de privacidade, na
medida em a vida íntima dos sujeitos hoje pode ser publicizada em diferentes graus nas redes
sociais para um público indeterminado.
O avanço dos meios de comunicação, por outro lado, também contribuiu para
retrocessos. A relativização da privacidade viabilizou não apenas a exposição inédita da vida
privada como também potencializou o risco e desenvolveu novas modalidades de violação dos
direitos da personalidade.
Ademais, a possibilidade de manifestação livre e irrestrita do pensamento, em um
espaço no qual a vida de todos os sujeitos pode ser facilmente acessada, gera efeitos nocivos e
incontroláveis, na medida em que a mensagem veiculada pode ser replicada e armazenada por
terceiros, sem qualquer forma de coibição efetiva, e repostada futuramente, perpetuando o
conteúdo na rede e lhe conferindo uma amplitude jamais vista. Um simples desentendimento,
por exemplo, ao ser postado nas redes sociais como forma de sanção, pode acarretar danos
irreversíveis à imagem da pessoa exposta. Situações outras, tais como o revenge porn, também
atestam as ameaças aos direitos da personalidade.
Situações delicadas envolvem uma análise mais atenta. A título de exemplo, na rede
social Instagram, algumas contas foram criadas com a finalidade única de expor os indivíduos
que não estão obedecendo as normas de isolamento social durante a pandemia da COVID-19
no país. As contas são abertas (qualquer pessoa, registrada ou não na rede social, pode visualizar
seu conteúdo) e realizam postagens nas quais são exibidas as fotos, nomes e perfis das pessoas,
acompanhadas de comentários críticos acerca.
Por conseguinte, em razão dessa abertura, terceiros podem comentar e compartilhar
livremente as imagens, o que contribui para uma ampliação desmedida da exposição e a
potencialização dos danos decorrentes das violações à honra, imagem e vida privada.
P á g i n a | 19

Em nosso sentir, tais condutas podem se mostrar desproporcionais, configurando


abuso de direito, na medida em que a comunidade se vale de forma arbitrária do seu direito de
manifestação do pensamento para concretizar verdadeira autotutela, à revelia dos mecanismos
estatais e dos meios adequados de solução de conflitos.
Por mais nobre que seja a motivação do agente, sua conduta viola frontalmente direitos
fundamentais dos indivíduos, de modo que chancelar tais práticas é legitimar a vingança privada
nas redes sociais, o que é inadmissível e incompatível com um Estado de Direito.

3.1 A Regulamentação instituída pelo Marco Civil da Internet

Nesse quadro de constante estado de violações, à época de sua edição, a Lei 12.965,
popularmente conhecida como Marco Civil da Internet (MCI), foi recepcionada com
entusiasmo e vista como o início de um novo paradigma institucional, bem como diploma hábil
a nortear as relações nas redes e proteger os direitos fundamentais no plano digital.
Apesar de parte da doutrina entender que a liberdade de expressão veio como elemento
central da norma, é importante assinalar que esse destaque é derivado do próprio objeto de
regulamentação da lei, o que, por outro lado, não torna o direito absoluto e não abre
possibilidade de se sobrepor à dignidade da pessoa humana (TEFFÉ; MORAES, 2017, p. 114).
O legislador, ciente da necessidade de proteção dos direitos morais individuais,
irradiou, ao longo do texto normativo, diversos dispositivos acerca da inviolabilidade de
direitos e garantias3, com o fito de solidificar a proteção da intimidade, da vida privada, dentre
outros.
A proteção da privacidade pode ser vista sob a ótica do controle da circulação de dados
pessoais (TEFFÉ; MORAES, 2017, p. 112), a qual conduz à necessidade de observância não
apenas das plataformas, mas também pelos usuários, na medida em que a faculdade de
compartilhar conteúdos deve ser exercida com prudência.
No entanto, apesar dos avanços, o MCI, ao delimitar as diretrizes basilares para a
proteção dos usuários, peca ao não agregar mecanismos outros de garantia dos direitos
fundamentais (BARRETO, 2015, p. 267), haja vista que a estrutura principiológica, por si só,

3
Merecem destaque os seguintes dispositivos:
Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: [...]
II - proteção da privacidade;
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;
P á g i n a | 20

não se mostra suficiente. Sua aplicação, portanto, deverá ser alinhada com os demais elementos
do sistema jurídico.
É possível destacar o art. 12 do Código Civil de 20024, que trata da proteção dos
direitos da personalidade contra ameaça ou lesão, bem como assegura o direito de reparação.
Ademais, o reconhecimento da ilicitude está presente nos arts. 186 e 187, com o consequente
de responsabilização previsto no art. 9275.
Além disso, como visto anteriormente, a Constituição Federal de 1988 contempla
diversos mecanismos de proteção dos direitos da personalidade, em contraposição à ideia de
liberdade de expressão irrestrita. Nessa linha, Flávia Leite pontua que a liberdade de
manifestação do pensamento deve ser exercida com base na razoabilidade, de modo que o
indivíduo deve fazer um juízo apriorístico acerca das repercussões positivas e negativas que
podem decorrer do seu discurso (LEITE, 2016, p. 151).
Portanto, a responsabilização dos indivíduos que praticam condutas ilícitas nas redes
sociais deve ser procedida por meio da aplicação sistemática dos diplomas normativos.

3.2 Uma Proposta de Parâmetro para a Responsabilização Civil dos Praticantes de


Ilicitudes nas Redes Sociais

Impende assinalar ainda que a colisão entre a liberdade de expressão e os direitos da


personalidade e a posterior discussão da responsabilização civil é questão controversa, tendo
sido submetida à sistemática de Repercussão Geral, sob o Tema 837, ainda pendente de
definição:

Definição dos limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de


igual hierarquia jurídica – como os da inviolabilidade da honra e da imagem – e
estabelecimento de parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve
ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a
outras consequências jurídicas.

Com base no exposto anteriormente, entendemos que a definição de tais limites deve
ser pautada no princípio da proporcionalidade, no sentido de que a conduta deve ser testada

4
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei.

5
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano
a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
[...]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
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pelos três subprincípios – necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito – para


verificar sua compatibilidade com os direitos da personalidade.

A doutrina constitucional, em especial nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello,


ao se debruçar no estudo dos requisitos de relevância e urgência das medidas provisórias,
assinala que tais conceitos são dotados de uma forte carga de indeterminação e fluidez. Essa
imprecisão, contudo, não afasta a existência de uma “zona de certeza positiva” (na qual é
inquestionável a aplicação do conceito) e outra “zona de certeza negativa” (em que é
inquestionável a sua inaplicabilidade), separadas por uma “zona de penumbra”, essa, incerta,
na qual, pela dúvida, aplicar-se-ia (BENITEZ, 2002, p. 205-206).

Nesse sentido, nos posicionamos pela adoção, de forma análoga, da Teoria da Lanterna
quando dos pedidos liminares e cautelares: nos casos de críticas leves, por exemplo, o mero
dissabor não impõe a urgência de suspensão da publicação6. Por outro lado, nas hipóteses de
evidente afronta aos direitos da personalidade, como o compartilhamento massivo de fotos e
textos ofensivos, a publicação deverá ser imediatamente suspensa. O mesmo deve ocorrer nos
casos nebulosos, nos quais o exame apriorístico não permite uma análise adequada dos fatos,
haja vista que o risco de dano à honra e à imagem está diretamente vinculado ao número de
interações (curtidas, comentários e compartilhamentos)7.

6
A título de exemplo, vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO LIMINAR DE ANTECIPAÇÃO
DOS EFEITOS DA TUTELA – SENTENÇA QUE JULGOU EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO
MÉRITO QUANTO AO PEDIDO DE RETIRADA DA POSTAGEM NA PÁGINA PESSOAL DO FACEBOOK
POR PERDA DO OBJETO, BEM COMO JULGOU IMPROCEDENTES OS DEMAIS PEDIDOS DO AUTOR
– RECURSO DE APELAÇÃO DO AUTOR: (1) – Dano moral – não configuração – crítica à política de
agendamentos do consultório médico – crítica típica de relação com o consumidor - ausência de comprovação de
efetivo dano à honra e à imagem do autor e da pessoa jurídica que ele representa – mero dissabor cotidiano no
caso concreto [...] – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. [grifos nossos].
(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. Apelação Cível 0014699-23.2016.8.16.0031. 17ª
Câmara Cível. Rel.: Juiz Fabian Schweitzer. J. 28.03.2019).

7
Em decisão recente, o TJGO se posicionou nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. MENSAGEM VEICULADA EM REDE SOCIAL
(FACEBOOK). LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO. OFENSA À HONRA E IMAGEM.
EXCLUSÃO DA POSTAGEM. MANUTENÇÃO DO PROCESSO EM SEGREDO DE JUSTIÇA.
IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA. [...] 4.
Na espécie, emerge o perigo de dano decorrente da demora no oferecimento da prestação jurisdicional (art. 300,
CPC), uma vez que a manutenção da postagem possui o potencial de atingir um número cada vez maior de pessoas
diante da alta rapidez com que se propagam as ideias transmitidas através da internet, bem como resta
demonstrada a reversibilidade da medida (art. 300, § 3º, CPC), ante a possibilidade de, a qualquer momento,
autorizar-se a republicação do conteúdo suprimido. [grifos nossos]. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE
GOIÁS. Agravo de Instrumento 5225958-29.2019.8.09.0000. 1ª Câmara Cível. Des. Carlos Roberto Favaro. J.
03/03/2020, DJe de 03/03/2020)
P á g i n a | 22

A gradação se faz indispensável, na medida em que nenhum direito é absoluto e a


liberdade de manifestação do pensamento é garantia basilar da Lei Maior, não podendo ser
contida em casos de menor relevância. Contudo, os direitos da personalidade estão em uma
posição de maior vulnerabilidade, haja vista que a amplitude das redes sociais potencializa os
(riscos de) danos decorrentes das violações, razão pela qual esse conjunto de garantias merece
uma maior proteção. Além disso, a possibilidade de reverter a suspensão do conteúdo ou do
perfil – caso se verifique a inocorrência de lesão ou ameaça a direito – permite que a liberdade
de manifestação do pensamento seja plenamente restabelecida sem prejuízos para as partes.
Além disso, é importante assinalar a nova concepção de dano, sustentada na alteração
da função da responsabilidade civil. Nessa linha preleciona Anderson Schreiber (2009, p. 187)
ao definir o dano como:

[...] uma lesão concreta, como violação [...] de uma regra que, transcendendo a
regulação abstrata de um interesse, estabeleça sua relação com outro interesse
igualmente tutelado. A importância desta abordagem é significativa na medida em que
abre, na prática, um novo espaço de discricionariedade judicial que permite ao
magistrado selecionar, por meio do exame do dano, os interesses concretamente
tutelados, substituindo o raciocínio subsuntivo tradicional por uma efetiva ponderação
de interesses conflitantes. [...] a responsabilidade civil assume a posição de sistema
primário, na medida em que passa a determinar o merecimento de tutela ou não dos
interesses que, embora abstratamente protegidos, colidam com outros interesses
igualmente tutelados.

Essa definição acerca da tutela conduz à definição da forma pela qual os interesses
serão tutelados. A atuação deve ser alinhada e pautada em elementos objetivos, com o fito de
nortear a discricionariedade judicial e evitar abusos.
Propõe-se, então, que a reparação do dano seja majorada por dois critérios: direitos
violados e extensão do dano. No primeiro requisito, verificar-se-á se a conduta abalou a honra,
a imagem, a privacidade, dentre outros atributos da vítima. No segundo requisito, a investigação
deverá ser pautada na quantidade de interações do público com o conteúdo ofensivo, de modo
que o dano moral será proporcional à quantidade de curtidas, comentários e compartilhamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do exposto, resta evidenciado que os direitos fundamentais se aplicam às


relações entre particulares. Tal aplicação deve ser conduzida através e em concordância com as
normas de direito privado.
O direito de liberdade de manifestação do pensamento é uma das garantias basilares
do Estado de Direito e sua proteção está vinculada a manutenção da autonomia individual e do
P á g i n a | 23

ambiente democrático. Todavia, não pode ser entendido como absoluto e encontra limitações
inclusive no texto constitucional, o qual norteará a sua aplicação e exercício.
Noutro giro, os direitos da personalidade em seu aspecto moral possuem proteção
ampla na Lei Maior, sendo assegurado em diversos dispositivos. Não se pode, contudo,
confundir a rede de defesa como uma sobreposição eterna dos direitos da personalidade; estes
são flexibilizados e remodelados a depender dos agentes envolvidos, de modo que não há – e
nem deve haver – uma proteção absoluta.
Nesse sentido, a ponderação entre as garantias fundamentais, por meio da aplicação
dos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, é o
mecanismo recomendado para identificar qual dos direitos deverá prevalecer no caso concreto.
O exame atento do intérprete é fundamental, na medida em que evita abusos e o cerceamento
excessivo de um dos polos.
É importante repisar que as redes sociais redefiniram a responsabilidade civil, na
medida em que os conflitos adquiriram uma nova formatação e a forma de análise até então
concebida não se adéqua aos casos atuais. A propagação incontrolável permitiu que o dano
alcançasse uma amplitude nunca antes vista, potencializando e perpetuando as violações aos
direitos da personalidade. A internet pereniza as ofensas à honra, à imagem e à privacidade,
haja vista que os conteúdos podem ser armazenados e republicados sem qualquer tipo de
controle efetivo.
Nesse sentido, a liberdade de manifestação deve ser exercida com prudência, de modo
a evitar que condutas lesivas adquiram uma proporção desmedida e protegendo assim os
direitos da personalidade.
O ordenamento possui mecanismos que atuam no sentido de regular as relações
sociais: o Marco Civil da Internet, apesar de suas limitações, é diploma fundamental para
nortear a convivência harmônica nas redes e a responsabilização dos agentes. Na mesma linha,
o Código Civil, com suas normas gerais de definição de ilicitude e responsabilidade civil,
contribui para o combate aos abusos. Além disso, a jurisprudência nacional comunga desta
orientação e os julgados evidenciam que, nos casos de abusos de direito, os agentes são
responsabilizados pelas condutas ilícitas. Entretanto, em nosso sentir, com o fito de conferir
maior reforço às decisões, o Marco Civil da Internet deve ser aplicado com maior frequência.
Por derradeiro, reiteramos a ponderação como técnica de solução da colisão de direitos
fundamentais. No caso concreto, para delimitar qual dos direitos prevalecerá, se verificará se a
suspensão atende aos requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito. Nos casos de conteúdos de baixo potencial ofensivo, a mensagem será mantida na rede;
P á g i n a | 24

nos casos de alto potencial ou de dúvida, para evitar danos irreparáveis, a mensagem será
suspensa até que se avalie com precisão o quadro.
A responsabilização civil deverá ser pautada na amplitude do dano, de modo que a
reparação será majorada com base no número de interações de terceiros com o conteúdo
ofensivo.

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P á g i n a | 27

CIVIL RESPONSIBILITY IN SOCIAL NETWORKS: CONFLICTS AND LIMITS


BETWEEN FREEDOM OF SPEECH AND PERSONALITY RIGHTS

ABSTRACT

This article deals with the civil liability of agents involved in conflicts
in social networks and the collision between freedom of expression and
the rights of the personality, such as the rights to honor and image, on
the internet, in view of the frequent conflict between these rights on
social networks. We sought to delimit the effectiveness of fundamental
rights in private relations, rights in collision and weighting as a
technique to resolve the impasse. Then, the civil liability of the agents
that publish messages and harmful content on the networks was
investigated, analyzing the relevant legal diplomas and delimiting a
proposal of accountability of the violators. Finally, it was found that the
prevalence of one of the rights, as well as the increase in the extent of
the damage for eventual liability, depends on the analysis of the
elements of the specific case. For the realization of this article, the legal-
dogmatic method and literature review were adopted.

Keywords: Personality rights. Fundamental rights. Freedom of speech.


Social networks.
P á g i n a | 28

REFUGIADOS NA LÍBIA PELO MAR: UMA ANÁLISE DO MEMORANDUM OF


UNDERSTANDING E SUAS IMPLICAÇÕES

Ana Carolina Paiva Coelho1

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar a política migratória empregada pela


Itália e apoiada pela União Europeia, mediante a assinatura do
Memorandum of Understanding (2017) com a Líbia. Assim, é ofertado
treinamento, equipamentos especiais e verbas objetivando conter o
avanço das migrações no mar mediterrâneo, através da Guarda Costeira
da Líbia. Após três anos da assinatura do acordo, bem como de sua
renovação tácita, o presente artigo objetiva analisar a legislação
internacional acerca dos temas adjacentes, as condições de vida
daqueles que são capturados e permanecem na Líbia e o atual cenário
diante do controverso acordo em relação aos tratados de direito do mar
e aos tradados internacionais de direitos humanos.

Palavras-chave: Refugiados. Mar Mediterrâneo. Memorandum of


Understanding. Guarda Costeira Líbia.

1 INTRODUÇÃO

A Líbia vem sofrendo com instabilidade política desde 2011, com a queda de
Muammar Kadhafi, de modo que o Governo de Acordo Nacional (GNA) e o Exército Nacional
Líbio (ENL) buscam chegar ao poder. Dotada de uma localização estratégica, o país é
responsável por ligar o continente africano ao mar mediterrâneo, e possui grandes reservas
petrolíferas. Por outro lado, sabe-se que muitos estados ao redor do globo lutam contra a
imigração ilegal em seus territórios. Com o objetivo de coibir práticas como essa, a Itália,
apoiada pela União Europeia, realizou um tratado bilateral, conhecido como Memorandum of
Understanging com a Líbia, com o objetivo de treinar, equipar e financiar a Guarda Costeira
da Líbia para capturar os barcos e navios com migrantes e refugiados que tentavam cruzar o
Mar Mediterrâneo, restando retidos em águas líbias.
Entretanto, a Líbia não possui uma legislação procedimental acerca do refúgio,
portanto, aqueles que teriam direito à proteção internacional em um país signatário da
Convenção de 1951 e/ou do Protocolo de 1967, são capturados e encaminhados para centros de
detenção de migrantes. Esses centros, já receberam diversas denúncias de violações acerca dos
direitos humanos. Ademais, a Líbia é um território que se encontra em um profundo conflito

1
Discente do 9º Semestre do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco. E-mail:
carolina.paiva_@outlook.com
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interno, o que representa um grande risco. Desse modo, o refugiado acaba deixando tudo para
trás, sendo capturado por um país que não lhe oferece a possibilidade real de proteção
internacional.
Considerando a renovação tácita do acordo ocorrida no início de 2020, o presente
artigo objetiva analisar a normatividade internacional, se debruçando sobre a insuficiência na
regulamentação dos direitos dos refugiados no mar e suas consequências no caso em tela.
Diante da ocorrência de diversas denúncias acerca das condições que acometem os migrantes
nos centros de detenção líbios, impõe-se a observância das possíveis violações aos Direitos
Humanos e ao Direito dos Refugiados devido a atuação da guarda costeira da Líbia.
Por fim, analisaremos de que forma o acordo bilateral entre as partes viola o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, através do estudo do princípio do Non-Refoulement como
Jus Cogens, assim como os demais tratados de direito internacional e da União Europeia. A
abordagem aplicada à pesquisa fora qualitativa, tendo em vista que emprega subjetividades e
nuances não quantificáveis. Ademais, quanto aos objetivos, fora realizada uma pesquisa
explicativa, identificando os fatores que determinam os fenômenos. Quanto aos tipos de
procedimentos, fora empregada a pesquisa bibliográfica e documental, aprofundando-se tanto
sobre os documentos em si, quanto analisando artigos científicos sobre a temática.

2 A REGULAMENTAÇÃO PROTETIVA INSUFICIENTE DOS DIREITOS


HUMANOS E DOS REFUGIADOS NO MAR

No ordenamento internacional atual não há uma regulamentação protetiva suficiente


aos direitos humanos no mar, visto que as convenções e tratados relacionados a matéria
costumam enfatizar a preservação de espécies marinhas e do meio ambiente, permitindo que
acordos como o Memorandum of Understanding (GOVERNO ITALIANO, 2017) surjam nas
lacunas. Na convenção de Montego Bay (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1990), por exemplo,
há apenas o art. 146, que descreve necessidade de se tomar medidas para assegurar a vida
humana.
Além da Convenção de Montego Bay, outros tratados cuidaram da proteção da vida
humana no mar, como por exemplo a Convenção sobre a Salvaguarda da Vida Humana no
Mar (1974) (CCA-IMO, 2014), art. 2º, parágrafo 5º, a Convenção Internacional sobre Busca
e Resgate (1979) (CCA-IMO, 2010), em seu art. 1.3, a Convenção Internacional sobre
Salvamento (1989) (CCA-IMO, 1989), em seu art. 10º, e, por fim, a Convenção sobre Alto Mar
(1958) (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2011), que destaca esse dever
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em seu art. 12. Frise-se que nenhuma das convenções pesquisadas possuem um artigo tratando
sobre refugiados e migrantes.
Ademais, mesmo a Convenção sobre a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (1974)
(CCA-IMO, 2014) não se mostra exauriente na matéria, visto que possui enfoque em leis e
regulamentos, no transporte de pessoas em caso de emergência, casos de força maior, entre
outros. Frise-se que mesmo o Protocolo de 1988 não possui normatividade sobre o assunto,
visto que possui ênfase na construção, em equipamentos, dispositivos, radiocomunicação, entre
outros.
É certo que tais documentos possuem sua importância internacional, entretanto, resta
claro que eles não são suficientes para assegurar a proteção dos direitos humanos e dos
refugiados no mar, gerando uma insuficiência de normatividade internacional acerca do tema.
Um dos institutos aplicáveis ao direito do mar que se intersecciona com essas questões
é a assistência de pessoas em perigo ou perdidas no mar (OXAM, 1997 apud WINTER;
BOTELHO, 2015). O instituto é um dos mais polêmicos dentro do alcance da Organização
Marítima Internacional (OMI), visto que acaba sendo desconsiderado por diversas políticas
marítimas de assistência, o que inclui também o desembarque de pessoas e entrega das mesmas
a um lugar seguro (WINTER; BOTELHO, 2015). A assistência marítima constitui como uma
obrigação do capitão do navio, enquanto o resgate marítimo seria uma imposição direcionada
aos estados costeiros ou de bandeira (KENNEY; TASIKAS, 2003 apud WINTER; BOTELHO,
2015).
Portanto, o instituto da assistência e o resgate marítimo possuem um enfoque na
preservação da vida humana no mar. Deixando de lado os demais Direitos Humanos que são
conhecidos, como o direito à liberdade, o direito a não detenção arbitrária, ao acesso à justiça
e, por fim, a buscar asilo em outros países em caso em perseguição, consagrado pelo art. XIV
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 2009).
É o que ocorre com relação ao acordo realizado entre a Líbia e a Itália. Isso porque os
moldes do procedimento determinado não lograram êxito em assegurar o direito de buscar o
refúgio nos casos cabíveis, uma vez que a Líbia não possui uma legislação procedimental
interna sobre o tema do refúgio, ou mesmos mecanismos que possibilitem as partes a desafiar
a detenção.
Enquanto não há uma regulamentação internacional conjunta realizada pelos Estados
acerca do tema, temos uma fragmentação do direito internacional, o que permite que textos
como o Memorandum of Understanding (GOVERNO ITALIANO, 2017) realizado entre a
Líbia e a Itália, com o apoio da União Europeia, possam surgir nas lacunas.
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Levando em consideração a insuficiência de normatividade, bem como o alto números


de pessoas que perdem a vida ao tentar cruzar o mediterrâneo, fora apresentada no Parlamento
Europeu, a proposta de resolução nº B9-0154/2019, em 2019, tratando sobre busca e salvamento
no mediterrâneo. A resolução incluía a prestação de contas pela Frontex2 sobre suas operações
ao Parlamento Europeu, bem como as informações sobre sua cooperação com a Líbia, a
continuidade da abertura dos portos dos Estados-membros aos navios de ONG, e a partilha de
informações sobre o nível de apoio e financiamento da União Europeia e dos Estados-membros
aos guardas de fronteiras de países terceiros, incluindo Líbia, Turquia, Egito, Tunísia e
Marrocos.
Também estava incluso o apoio as recomendações do Comissário para os Direitos
Humanos do Conselho da Europa de reapreciação das atividades e práticas de cooperação com
a Guarda Costeira da Líbia, identificando quais dessas possuem impacto direto ou indireto no
regresso das pessoas interceptadas no mar, e as violações graves aos Direitos Humanos,
suspendendo as atividades até a existência de garantias claras de conformidades com os Direitos
Humanos. Contudo, a referida resolução não foi aprovada.
Nesse sentido, temos um Direito do Mar que necessita de ampliação do debate acerca
do tema, para salvaguardar os Direitos Humanos no mar, o que depende da mudança de
posicionamento dos Estados, para que possam estar mais abertos a dialogar sobre o assunto, e
a pensar de forma construtiva a ampliação de certos direitos no mar. Isso porque mesmo que os
muros fiquem mais altos, e os estados se fechem cada vez mais para a migração, ela sempre irá
acontecer, por ser inerente de um mundo globalizado.
Desse modo, apesar da existência dos institutos do resgate e da assistência no direito
do mar, não há um documento internacional tratando sobre a proteção da vida dos refugiados
no mar. Por conseguinte, são assinados acordos bilaterais e multilaterais entre as partes ao redor
do mundo, com o objetivo precípuo de frear o tráfico de pessoas e a imigração irregular, mas
que, entretanto, pode vir a tolher o direito de alguém que preencha os requisitos para ser
considerado refugiado.
O acordo realizado pelas partes, com fundos italianos e europeus (USELLI, 2017),
acaba por redirecionar esses possíveis refugiados, que objetivavam adentrar em territórios de
países signatários das Convenções internacionais acerca do tema, sendo redirecionado para um

2
A Frontex, atualmente conhecida como Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, foi criada em
2004, pelo regulamento (EU) 2016/1624, com o objetivo de proteger as fronteiras externas do espaço de livre
circulação da União Europeia, auxiliando os Estados-membros e os países associados de Schengen.
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país que não é signatário nem da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951), nem do Protocolo de
1967 (ACNUR, 1967).

3 A AUSÊNCIA DE PROTEÇÃO JURÍDICA PRÁTICA AOS REFUGIADOS NA


LÍBIA E SUA DECORRENTE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

A Lei Líbia nº 6, criada em 1987, determina em seu art. 18, a detenção por tempo
indefinido e o pagamento de uma multa equivalente a duzentos dinares líbios, àquele que entre
em ilegalmente, permaneça ou tente sair do país sem um visto válido ou documento de
residência (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20). Apesar da Constituição do país
assegurar, em seu art. 10º, a proteção dos refugiados políticos do retorno forçado, na prática, as
autoridades falham em assegurar tal direito (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20).
Além disso, o país não é signatário da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951) e nem do
Protocolo de 1967 (ACNUR, 1967). Assim, refugiados que arriscam suas vidas no mar
mediterrâneo, acabam impedidos de chegar ao seu local de destino, visto que são capturados
pela Guarda Costeira da Líbia, e ficam presos a esse país, em abrigos para refugiados, em
condição sub-humanas.
Ademais, o conflito instaurado no país acaba trazendo de volta uma realidade na qual
muitos refugiados fugiram em seus respectivos países. Frise-se que o conflito na Líbia já chegou
a atingir um centro de detenção que acolhia refugiados e migrantes (NAÇÕES UNIDAS, 2019),
causando a morte de mais de 50 refugiados e migrantes na detenção Tajoura, em Trípoli
(ACNUR, 2019).
Portanto, o acordo realizado acaba por afetar o direito de um solicitante de refúgio de
procurar proteção em outro estado nas hipóteses cabíveis. Com a política empregada, o
solicitante de refúgio não consegue chegar ao estado de destino devido à interceptação pela
guarda costeira da Líbia. Desse modo, o que ocorre na prática é a saída do refugiado para uma
situação tão ruim quanto aquela que o fez fugir em um primeiro momento. Como é cediço, a
imigração ilegal deve ser controlada e combatida, não podendo, todavia, ser tolhido o direito
de pleitear o refúgio, nas hipóteses cabíveis.
O acordo bilateral resultou na prisão de refugiados e migrantes, os expondo a
um país onde estão suscetíveis a sofrer violações e abusos, sem a possibilidade de buscar a
concessão do refúgio. Isso porque a lei da Líbia considera crime a tentativa de sair ou entrar
irregularmente de seus territórios (ACNUR, 2014). Assim, a legislação da Líbia não guarnece
especificamente os refugiados e solicitantes de refúgio, ao passo que, apesar do direito de asilo
P á g i n a | 33

estar presente na Constituição Interina da Líbia, em seu artigo 10, não há legislação específica
ou procedimental acerca do refúgio (ACNUR, 2014, p. 1).
Desse modo, eles recaem na legislação de imigração geral do país, que não contém
disposições sobre o status de refugiado, solicitante de refúgio ou mesmo o princípio do non-
refoulement, de modo que a soltura, frequentemente, apenas possibilita o retorno ao país de
origem, a evacuação ou reassentamento (ACNUR, 2014, p. 1).
Por outro lado, a Líbia é signatária da convenção africana, que faz menção em seu art.
V, parágrafo 3º (ACNUR, 2009, p. 8), ao que seria equivalente ao princípio do non-refoulement
da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951), pois destaca que nenhuma pessoa será submetida a
rejeição na fronteira, retorno ou expulsão, já que isso a obrigaria a retornar ou permanecer em
território onde sua vida, integridade e liberdade estariam ameaçadas.
Apesar de ser parte da Convenção Africana, a Líbia não estabeleceu um
procedimento de refúgio, ou tomou medidas práticas para a implementação da convenção
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2017). Em 2013, fora estabelecido um comitê, criado pela
Organização Internacional para Cooperação e Ajuda Emergencial, objetivando redigir uma Lei
de Refúgio, que fora devidamente submetida a análise (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017,
p. 20). No entanto, o conflito instaurado em 2014 interrompeu o processo político e legislativo
no país (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20). Ante a ausência de uma sistematização
judicial ou uma base legal processual estabelecida para autorizar a detenção dos migrantes,
estes são privados de qualquer mecanismo formal, administrativo ou judicial de recorrer da
detenção (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 9).
Cumpre destacar que a Líbia é signatária de outras convenções das Nações Unidas que
tangenciam a matéria, como a Convenção contra Tortura e outros tratamentos ou punições
cruéis, desumanas ou degradantes e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 20). Essa última, estabelece o direito à liberdade e da
proibição de detenção arbitrária em seu art. 9, corroborando o entendimento de que o uso de
detenção para controlar a entrada irregular de migrantes e solicitantes de asilo é altamente
desencorajada dentro do Direito Internacional, visto que a mesma apenas deverá ser utilizada
como último recurso e respeitando as necessidades humanas básicas (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 21).
Além disso, a política de preparar a guarda costeira da Líbia para conter as migrações
pelo mar, apesar de combater as redes de tráfico locais, coloca em risco milhares de vidas que
são direcionadas a um país assolado pelo conflito e pela guerra civil, onde são encarceradas e
submetidas a várias violações aos Direitos Humanos, como superlotação, falta de acesso a
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ventilação e à luz do sol nas celas, baixas condições de higiene e de saneamento, oferecendo
menos de dois livros de água por pessoa, e uma ingestão de menos de 800 calorias por dia
(MÉDICOS SEM FRONTEIRAS, 2017, p. 1). Há denúncias de exposição à tortura, violência
sexual, física e extorsão, investigações de incidentes de abuso, incluindo a venda de migrantes
(LYBIA..., 2017, p. 1). Devido à falta de um processo de registro, não se sabe o número exato
de pessoas em centros de detenção, e o tempo de permanência, visto que os centros liberam
indivíduos à sua discricionariedade, geralmente exigindo pagamentos (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 28). Sem um mecanismo legal capaz de recorrer da detenção,
eles ficam por tempo indeterminado, ante a ausência de um sistema que permita uma liberação
oficial ou mesmo para apurar a duração da detenção, o que leva a disseminação da extorsão e
tortura nesses locais (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 28).
As possibilidades de saída legal ocorrem através da deportação – o que é ineficaz do
ponto de vista do refúgio, visto que o refugiado retorna ao local onde sofrera perseguição,
podendo caracterizar violação ao art. 2º, III da Convenção da Organização Africana. Uma outra
medida cabível seria através do retorno humanitário voluntário, organizado pela Organização
Internacional da Migração e, por fim e menos comumente, uma negociação de soltura operada
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ANISTIA INTERNACIONAL,
2017, p. 29). Para aqueles que não podem onerar com a soltura, e não podem utilizar-se da
Repatriação Voluntária da OIM, ou não pertence as nacionalidades em que o ACNUR pode
atuar pugnando por uma libertação, a perspectiva é de permanecer detido por tempo indefinido.
Dentro do Direito Internacional, aqueles sujeitos a deportação devem receber o direito
de recorrer contra a decisão que deferiu sua deportação. Essas salvaguardas não fazem parte da
legislação da Líbia, e não são respeitadas na prática (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p.
21).
Outrossim, no caso em comento pode ser aplicada violação à Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (2000), que institui em seu art. 19, II, a proteção em caso de
afastamento, expulsão ou extradição, ao afirmar que são proibidas as expulsões coletivas, e que
ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para estado onde ocorra sério risco de ser
sujeito à pena de morte, tortura ou outras penas desumanas ou degradantes (JORNAL OFICIAL
DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2000, p. 12).
É certo que a instabilidade política, o conflito na região, a não assinatura de tratados
internacionais sobre o tema e a ausência de legislação sobre o refúgio, gera deficiências
intrínsecas na Líbia que a responsabilizam pela falha como Estado na prestação de suas
obrigações internacionalmente conhecidas. Entretanto, ao passo que a política anti-imigração
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na região leva a assinatura de um acordo bilateral, potencializa o número de vítimas que serão
submetidas a tais condições degradantes, já conhecidas e amplamente disseminadas.
Desse modo, apesar de não estar cometendo essas violações em território europeu, o
que responsabilizaria os estados internacionalmente, designa-se para que outro país se torne
responsável. No caso da Líbia, essa postura se torna ainda mais confortável, por não se tratar
de um Estado Parte da Convenção e do Protocolo, assim como ante a ausência legislativa e
procedimental interna sobre o tema.
O teor do acordo acaba por negligenciar o direito de buscar asilo, eternizado no art.
XIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 2009), bem como o
direito de buscar refúgio, nos moldes da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951).
Considerando que aquele que tem direito a proteção internacional não dispõe de
mecanismos legais ou administrativos para perquirir o status de refugiado na Líbia, resulta-se
em um fluxo de pessoas retidas em território líbio devido a adoção de um acordo que acaba por
não distinguir na prática as modalidades migratórias. Assim, dezenas de pessoas fazem jus ao
status de refugiados são encarceradas, esperando pelo dia em que poderão, possivelmente, ser
reassentadas em um terceiro país.

4 A ASSINATURA DO MEMORANUDM VIOLA O PRINCÍPIO DO NON


REFOULEMENT?

O princípio do Non-Refoulement possui natureza jus cogens, visto que se trata de


norma imperativa do Direito Internacional. Assim, qualquer transgressão que esteja sob o
domínio de jus cogens, é considerada ilegal, independentemente de possuir natureza unilateral,
bilateral ou multilateral (PAULA, 2008, p. 431).
Trata-se de um valor fundamental que consubstancia os princípios de ordem pública
internacional, contra os quais não podem se opor os sujeitos de direito internacional, visto que
se tratam de normas imperativas, que se colocam acima das normas dispositivas, limitando a
produção normativa dos estados (PEREIRA, 2017, p. 30). Por essa razão, independentemente
de ser signatária da Convenção Africana, e mesmo não sendo signatária da Convenção de 1951
(ACNUR, 1951), a Líbia tem o dever de respeitar o Princípio do Non-Refoulement, que não
permite derrogação.
Diante disso, percebe-se que o teor do Memorandum of Understanding (USELLI,
2017) acaba por impedir a entrada de refugiados e migrantes em território europeu, através da
atuação da Guarda Costeira Líbia. Por um lado, não há a entrada literal em um território que se
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possa pleitear o refúgio, não se constituindo formalmente a violação ao Princípio do Non-


Refoulement pelas autoridades italianas.
Em contrapartida, ao levamos em consideração as situações que acometem aos
refugiados que acabam capturados pela Guarda Costeira da Líbia, que são destinados aos
centros de detenção, podendo ser repatriados, ocorre uma clara violação ao princípio do Non-
Refoulement, visto que o refugiado não consegue obter a proteção internacional de outro país,
considerando a ausência de legislação acerca do tema por parte da Líbia.
Entretanto, se mostra irrazoável restringir as violações apenas ao estado líbio, visto
que se trata de um acordo bilateral entre as partes, com concordância mútua e ciência das
responsabilidades internacionalmente estabelecidas acerca do Direito dos Refugiados, do
Princípio do Non-Refoulement, assim como das normas jus cogens.
O princípio do non-refoulement possui várias formas de interpretação. A
aplicabilidade que mais se adequa ao mecanismo utilizado pela União Europeia é a abordagem
coletiva ao princípio, fixada na Convenção de Dublin de 1997 (JORNAL OFICIAL DAS
COMUNIDADES EUROPEIAS, 1997).
A interpretação coletiva do princípio possui mecanismos utilizados pelos estados,
através de acordos multilaterais ou bilaterais, com o objetivo de realocar refugiados de um
estado a outro (D’ANGELO, 2009, p. 298). Assim, o solicitante de refúgio requer o instituto
no primeiro Estado-membro, sendo esse estado membro responsável pela concessão ou pela
recusa do pedido (D’ANGELO, 2009, p. 298), averiguando o preenchimento dos requisitos de
acordo com os tratados internacionais e a legislação nacional (JORNAL DAS
COMUNIDADES EUROPEIAS, 1997, p. 3). A regra do terceiro estado seguro permite o envio
de um solicitante a outro Estado-membro, que consequentemente, irá revisar o pedido de asilo
(D’ANGELO, 2009, p. 298). Esses acordos permitem que os Estados-membros possam
redistribuir refugiados para outros ‘’países seguros de refúgio’’ para melhor alocar a
responsabilidade de provimento do refúgio, tal como é aplicável atualmente dentro da União
Europeia (D’ANGELO, 2009, p. 298).
No julgamento do caso Hirsi Jamaa e outro versus Itália3 (EUROPEAN COURT OF
HUMAN RIGHTS, 2012), a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu no sentido de ser
ilegal4 a operação que resultou na devolução dos imigrantes ilegais à Líbia, com clara intenção

3
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS (Não há dúvida sobre a jurisdição). Recurso nº 27765/09.
Grande Câmara. 23/02/2012.
4
No caso Hirsi Jamaa e outros vs. Itália, três embarcações se encontravam em território Maltês, fugindo de Trípoli,
com o objetivo de alcançar a Itália. Contudo, após a interceptação pelas autoridades italianas, foram transferidos
para navios italianos e levados de volta para Trípoli, sem que informassem aos demandantes o seu destino
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de impedir sua chegada ao território Italiano (SEGOVIA, 2017, p. 16), incluindo como uma
violação a proibição a tortura e outros maus-tratos, para aqueles estados ou organizações que
operam qualquer embarcação de resgate no mar retornar os refugiados e os migrantes a Líbia,
o que levou a várias operações de resgate no mar da Europa, onde muitos ficavam na Itália
(ANISTIA INTERNACIONAL. 2017, p.8).
Contudo, devido a relutância dos Estados-membros em dividir as responsabilidades na
recepção dos refugiados que cruzavam o Mar Mediterrâneo, a posição do governo italiano
deixou de priorizar o salvamento, focando na redução do número de entrada de pessoas, o que
fora apoiado por outros governos do bloco (ANISTIA INTERNACIONAL, 2017, p. 42), apesar
de o país ser signatário da Convenção de 1951 (ACNUR, 1951) e do Protocolo de 1967
(ACNUR, 1967).
Em seguida, fora firmado o Memorandum of Understanding (USELLI, 2017, p. 2)
entre a Itália e a Líbia, onde as verbas eram, expressamente, italianas e europeias, tal como
disposto em seu art. 2º, II. Frise-se que o acordo foi inteiramente integrado na Declaração de
Malta assinada pelos membros da União Europeia no dia seguinte (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2017, p. 43).
A mesma situação se repete atualmente, pois apesar de não haver a devolução concreta
do migrante – considerando que este é capturado em território líbio – há a intenção de impedir
a chegada na Itália. No referido caso, restou clarificado que a conduta italiana os expôs ao
perigo de serem submetidos a maus tratos, assim como a repatriação arbitrária. Por esse motivo,
fora determinado que tomassem todas as iniciativas necessárias para obter garantias de que os
demandantes não seriam submetidos a tratamentos incompatíveis com ao princípio do non-
refoulement (SEGOVIA, 2017, p. 16).
Mediante análise do acordo, é possível verificar a interpretação do art. 33 da
Convenção de 1951 (ACNUR, 1951) através da aplicação coletiva do princípio do Non-
Refoulement, tal como ocorre dentro da União Europeia. Isso porque, na prática, temos o mesmo
conceito de realização de um acordo bilateral entre a Itália e a Líbia, criando mecanismos
utilizados pelos estados com o objetivo de realocar refugiados de um estado para outro. Assim,
ocorre um impedimento de entrada em território italiano, para que não haja uma realocação
formal, mas sim prática.

verdadeiro. Em seguida, foram entregues as autoridades da Líbia. Isso ocorrera em razão da existência de um
acordo firmado entre Líbia e Itália, em 4 de fevereiro de 2009, para interceptação e entrega de imigrantes à Líbia.
Frise-se que este não fora o primeiro acordo nesse teor entre os países, visto que fora antecedido por outro acordo
bilateral em 2007. Por fim, a Itália fora condenada ao pagamento de mais de 16 mil euros, devido as diversas
violações aos documentos internacionais.
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Tal como destacado por D’Angelo (2009), estados receptores que aplicam a
abordagem coletiva enviam refugiados a um terceiro estado, desde que o terceiro estado não
expulse o solicitante de refúgio a um quarto estado que possa violar a vida ou liberdade do
refugiado. Diante disso, percebe-se que, apesar de não haver o envio direto dos refugiados a
Líbia, eles são capturados pela Guarda Costeira da Líbia sem mesmo alcançar o território
italiano. Assim, na prática, ocorre que os refugiados ficam em um estado onde sua vida e
liberdade corre risco. Isso porque estes não podem pleitear o refúgio em solo líbio, devido à
ausência de uma regulamentação interna sobre o tema, assim como têm seu direito à liberdade
violado, visto que são submetidos aos centros de detenção em situações precárias.
Assim, percebe-se que o teor prático do acordo bilateral ignora o fato de que a Líbia
não é signatária da Convenção de 1951 (ACNUR, 2015), e por conseguinte, não oferece
qualquer proteção de tal documento internacional. A saída de situação de perseguição para
entrada em um país que criminaliza e institui detenção ao refugiado não é resolutiva, visto que
não cumpre com o seu papel de proteção ao indivíduo, que são capturados por um país que os
impossibilita de obterem o reconhecimento de seu status quo.
Destarte, o acordo realizado entre a Líbia e a Itália gerou um impedimento na
aplicabilidade do refúgio aos que buscavam asilo através do mar mediterrâneo, visto que estes
ficam à própria sorte esperando por uma repatriação voluntária ou negociação de soltura que
pode nunca vir a acontecer, devido a alta quantidade de migrantes e refugiados nos locais de
detenção.
Ademais, na formulação atual do Memorandum of Understanding (USELLI, 2017)
não há o respeito aos limites do princípio do Non-Refoulement e sua natureza jus cogens,
devendo ser observado pelas autoridades Líbias independentemente de ratificação à Convenção
de 1951 (ACNUR, 1951). Não há o respeito aos limites da interpretação da abordagem coletiva
do referido princípio, aplicado pela União Europeia com a instauração da Convenção de Dublin
(JORNAL OFICIAL DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 1997), ante a ausência de
segurança a liberdade e a vida dos refugiados que são encaminhados ao território líbio, tendo
em vista os centros de detenções, bem como o fato de se trata de um território em conflito,
devido aos grupos internos que lutam pelo poder.
Nesse sentido, a Resolução 1821 de 2011 adotada pela Assembleia Parlamentar do
Conselho da Europa explicita em seu art. 9.3 a garantia a todas as pessoas interceptadas, ao
tratamento humano e respeito aos seus direitos humanos, incluindo o princípio do non-
refoulement, independentemente de se as medidas de interceptação são implementadas dentro
P á g i n a | 39

de suas próprias águas territoriais, ou de outro estado com base em um acordo bilateral
(PARLIAMENTARY ASSEMBLY, 2011, p. 1).
Há o descumprimento do art. 9.6 da resolução, visto que o acordo bilateral realizado
pelas partes não garante o acesso justo e efetivo do procedimento do refúgio àqueles que
necessitem de proteção internacional, devido à ausência de adesão da Líbia a Convenção de
1951 (ACNUR, 1951) e ao Protocolo de 1967 (ACNUR, 1967), assim como a ausência de
legislação interna procedimental acerca do refúgio, o que inclui a criação de mecanismos que
possibilitem que os solicitantes de refúgio possam recorrer das decisões proferidas, assim como
a não detenção.
Pouco tempo após a assinatura do documento, a Comissão Europeia decidiu adotar
medidas contra países que se negaram a receber refugiados no procedimento de
compartilhamento de refugiados adotado pelo bloco. Em 02 de Abril de 2020, a Corte de Justiça
da União Europeia condenou5, através dos casos C-715/17, C-718/17 e C-719/17, a Hungria,
Polônia e República Tcheca, por não cumprir suas obrigações dentro da legislação da União
Europeia (COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION, 2020a), quais sejam a decisão
adotada pelo conselho no que tange a realocação mandatória dos 120.000 solicitantes de
proteção internacional, assim como a realocação voluntária de 40.000 solicitantes que haviam
adentrado no território europeu (COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION, 2020b).
É certo que esse tipo de conduta enfraquece a União Europeia diante dos desafios a
serem compartilhados. Todos os países do bloco são signatários da Convenção de 1951
(ACNUR, 1951) e do Protocolo de 1967 (ACNUR, 1967), possuindo obrigações internacionais
diante do acordo. Compartilhar as responsabilidades como um bloco é salutar para enfrentar a
situação da melhor forma possível.
No final de março, o Conselho da Europa, principal órgão de defesa dos direitos
humanos e da ordem democrática do continente, solicitou ao governo italiano a suspensão das
atividades de cooperação realizadas com a Guarda Costeira da Líbia, devido as violações de
direitos humanos ocorridas, bem como ao conflito instaurado (COUNCIL OF EUROPE, 2020,
p. 1). Além de pugnar pela suspensão das atividades que impactassem diretamente ou
indiretamente no retorno das pessoas interceptadas por mar, propôs a criação de suportes
adicionais a Guarda Costeira para assegurar o respeito pelos direitos humanos (COUNCIL OF
EUROPE, 2020, p. 1).

5
CORTE DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (não há dúvidas sobre a jurisdição). Processos apensos C-
715/17, C-718/17 e C-719/17. Terceira Secção. 02/04/2020
P á g i n a | 40

Entretanto, em 2 de fevereiro de 2020, o acordo bilateral, conhecido como


Memorandum d’intensa, em italiano, fora automaticamente renovado, como disposto no art. 8
do documento. (GOVERNO ITALIANO, 2017). Desse modo, para que a Itália – bem como a
União Europeia, visto que a mesma apoiou a conduta - não estivesse em débito com as
normativas do continente europeu e internacionais de direitos humanos, deveriam criar
mecanismos capazes de assegurar o respeito aos direitos humanos, bem como os direitos dos
refugiados na Líbia, visto que estes não conseguem o deferimento desse status em território
líbio, sendo ineficaz na busca pela proteção internacional de outro estado em razão de
perseguição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há como se ignorar que a vigência do Memorandum of Understanding coloca em


risco a vida de diversos refugiados e migrantes, ao permanecer em um país que se encontra em
uma Guerra Civil, submetendo-os ao encarceramento, bem como a violações de direitos
humanos. Em que pese a responsabilidade da Líbia diante das violações de Direitos Humanos
contra refugiados ocorridas em seu território, sabe-se que esta possui o dever internacional de
respeitar a aplicabilidade do Princípio do Non-Refoulement, mesmo que o estado não seja
signatário da Convenção de 1951 e de seu Protocolo, devido à natureza jus cogens, que não
permite derrogação. Ademais, a Líbia é signatária da Convenção Africana de Kampala, que
possui em seu escopo pontos equivalentes ao princípio da não devolução.
Por outro lado, é responsabilidade da Itália, como país signatário da Convenção de
1951, do Protocolo de 1967 e da Convenção de Dublin, o respeito aos referidos princípios, que
não se encontram legalmente resguardados pelo atual texto do Memorandum D’intensa. Isso
porque o documento não assegura a proteção aos Direitos dos Refugiados na Líbia, visto que
no país não há legislação procedimental que permita a concessão do refúgio.
Diante da renovação tácita ocorrida no início de 2020 por mais 3 anos, não há empenho
suficiente por parte das autoridades italianas e europeias para assegurar um tratamento razoável
aos possíveis refugiados que são capturados pela Líbia. Tentativas de modificação do acordo
mal sucedidas não podem ser entendidas como exaurientes. É certo que a Líbia detém de
soberania para aplicar a legislação e assinar aos tratados internacionais que lhe convir,
entretanto, os moldes da aplicabilidade do Memorandum of Understanding sugerem a
existência de uma concordância das partes com as situações a qual os migrantes são submetidos
em território líbio. Por isso, devem ser criados mecanismos capazes de assegurar o respeito aos
P á g i n a | 41

direitos humanos e aos direitos dos refugiados na Líbia, visto que aquele é ineficaz na proteção
internacional aos refugiados. Nesse sentido, frise-se que ao rechaçar essas pessoas ao território,
não há o respeito aos limites mínimos da segurança e nem a liberdade citada na Convenção de
Dublin.
A partir do momento que se veda a entrada em um território signatário dos tratados
internacionais, restando contra sua vontade em um país que não regulamenta o refúgio,
desprovido de mecanismos legais de aquisição do status de refugiado, viola-se o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, visto que o acordo impede que os refugiados que buscam
proteção por determinada rota possam efetivamente contar com a proteção de um estado.
Assim, ocorre o fortalecimento de rotas alternativas e redes de tráfico de pessoas.
A insuficiente regulamentação dos Direitos dos Refugiados no meio marinho, bem
como a falta de abertura para o diálogo acerca do tema, ocasiona uma fragmentação do direito
internacional, através de acordos multilaterais ou bilaterais, o que permite que textos como o
Memorandum of Understanding possam surgir nas lacunas. Assim, é salutar que o debate ocorra
em nível internacional, não estando restrito apenas aos estados envolvidos no acordo.

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Acesso em: 21 abr. 2020.
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REFUGEES IN LYBIA BY SEA: “AN ANALYSIS OF THE MEMORANDUM OF


UNDERSTANDING AND ITS IMPLICATIONS’’

ABSTRACT

This article aims to analyse de migration policy used by Italy and


supported by the European Union by signing the Memorandum of
Understanding (2017) with Libya. Thus, training, special equipment
and funds are offered to contain the progress of migrations in the
Mediterranean Sea, through the Libyan Coast Guard. After three years
of the signing of the agreement, as well as it is tacit renewal, this article
aims to analyse international legislation on the adjacent topics, the
living conditions of those who are captured and remain in Libya and the
current scenario of this controversial agreement in the light on maritime
treaties and international human rights treaties.

Keywords: Refugees. Mediterranean Sea. Memorandum of


Undestanding. Libyan Coast Guard.
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NOÇÕES SOBRE REFÚGIO E INTEGRAÇÃO LOCAL NO BRASIL

Thiago Augusto Lima1

RESUMO

O presente texto se dedica a uma reflexão sobre a integração de


refugiados(as) à sociedade brasileira. A incursão metodológica que
possibilita a realização desta investigação é direcionada por abordagens
de pesquisa qualitativa e por método dedutivo. O procedimento
metodológico é bibliográfico e documental. O trabalho abrange a
própria conceituação do termo refúgio e evidencia uma construção
histórica do arcabouço jurídico em torno da questão dos(as)
refugiados(as) em nosso país, para, finalmente, apresentar a situação
dos(as) refugiados(as), dentre a categoria migrantes, na sociedade
brasileira. É importante ressaltar que as migrações se tornaram
elemento central para o entendimento de uma crise civilizacional
contemporânea e nos fazem repensar a noção de fronteiras. Ao romper
os limites físicos de seus Estados, mas respondendo também a lógicas
e dinâmicas que superam as fronteiras políticas – as quais são abstratas
–, seja por crises também outras, como a ambiental, os(as)
refugiados(as) se deparam com fronteiras para sua inserção e integração
em seus países de destino.

Palavras-chave: Direito Internacional dos Refugiados. Direitos


Humanos. Refúgio. Migrações. Brasil.

1 INTRODUÇÃO

A migração é um fenômeno universal que cresce em número e complexidade,


desafiando os instrumentos legais e institucionais vigentes. Quando o Estado não oferece meios
de sobrevivência digna e segura, a sociedade busca formas de reação; a mobilidade humana é
uma dessas formas de resistência. Atualmente, apesar das evoluções sociais, o mundo ainda se
depara com os grandes êxodos, muitos dos quais se justificam pelos mesmos motivos daqueles
já ocorridos há centenas de anos.
O relatório World Migration Report 2020, publicado pela Organização Internacional
para as Migrações – OIM2, estimou a existência de 272 milhões de migrantes internacionais no

1
Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (PPGRI/UNILA). Especialista em Direito Constitucional
pela Universidade Regional do Cariri (URCA) em 2019. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza
(UNIFOR) em 2017. Pesquisador integrante do Núcleo de Pesquisa em Política Externa Latino-Americana
(NUPELA) e do Centro de Estudos Sócio-Políticos e Internacionais da América do Sul (CESPI/América do Sul).
Advogado. Participa da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero (CDSG) da Ordem dos Advogados do Brasil -
Secção do Ceará (OAB-CE).
2
Neste sentido, vide International Organization for Migration – IOM. World Migration Report 2020. Geneva:
2020. Disponível em: https://publications.iom.int/es/system/files/pdf/wmr_2020.pdf. Acesso em: 07 out 2020.
P á g i n a | 49

mundo em 2019, o que corresponde a 3,5% da população mundial. Ainda de acordo com o
documento, 41 milhões de pessoas estão internamente deslocadas e outras quase 26 milhões de
pessoas são refugiadas. Já o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR
(2020) divulgou que existem 41,3 milhões de deslocados(as) internos(as), 25,9 milhões de
refugiados(as) e 3,5 milhões de solicitantes de refúgio. O ACNUR concluiu ainda que o número
de refugiados(as) cresceu mais de 50% nos últimos 10 anos e que 52% deles(as) são crianças.
O documento revelou que 57% dos refugiados(as) do mundo são da Síria, do Afeganistão e do
Sudão do Sul; os três países que mais acolhem são Turquia, Paquistão e Uganda.
No continente americano, as migrações também são um fenômeno observável, tendo
despertado a atenção o aumento do fluxo migratório para os Estados Unidos da América,
principalmente originado do chamado triângulo norte, passando pelo México, até atingir a
fronteira sul. O debate sobre a construção do Muro de Trump (atual presidente dos EUA) gerou
polêmicas e deu visibilidade ao tema. Na América do Sul, de modo específico, as migrações
passaram a ser observadas a partir do terremoto haitiano (2010) e do incremento do fluxo
migratório de trabalhadores(as) de países andinos: precisamente, peruanos(as) para o Chile e
bolivianos(as) para o Brasil.
Na sequência, um novo fluxo migratório tornou-se notório a partir da guerra na Síria
e da primavera árabe de 2011, além do aprofundamento da crise venezuelana durante o governo
de Nicolás Maduro. O Brasil, que entre o século XIX e o início do século XX, recebeu um
contingente considerável de imigrantes europeus, como italianos e alemães, e japoneses (apenas
para destacar as comunidades de mais destaque) passa, no século XXI, a receber outro tipo de
fluxo migratório e um número considerável de pessoas na categoria de refugiados(as). Nesse
contexto, o objetivo geral do trabalho é refletir sobre o processo de integração local dos(as)
refugiados(as) no Brasil.
A incursão metodológica que possibilita a realização desta investigação será
direcionada por abordagens de pesquisa qualitativa e por método dedutivo. O procedimento
metodológico é bibliográfico e documental, já que será feito a partir do levantamento de
referências teóricas e documentos oficiais já analisados e publicados.

2 BRASIL COMO DESTINO DE REFÚGIO

Os(as) refugiados(as) são considerados(as) migrantes internacionais forçados(as), que


cruzam as fronteiras nacionais de seus países de origem em busca de proteção. De acordo com
a definição do ACNUR, são aqueles(as) que estão fora de seu país de origem devido a temores
P á g i n a | 50

bem fundamentados em um histórico de perseguição por motivo de raça, religião,


nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou a opinião política, como
também devido à violência generalizada, grave violação dos direitos humanos e conflitos
internos; não podem ou não querem, portanto, voltar a seu país de origem porque não contam
com proteção estatal.
No Brasil, de acordo com a Lei nº 9.474/97, que estabeleceu o Estatuto dos
Refugiados, o entendimento sobre o indivíduo refugiado se apresenta da seguinte maneira:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados
temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não
queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do
país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele,
em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e
generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

O debate sobre os movimentos de refugiados(as) impacta não apenas os Estados-


nação, como também as relações internacionais, considerando que as migrações internacionais
se desenvolvem entre Estados soberanos, organizados em um sistema internacional. Esses
deslocamentos operam a transferência de um indivíduo sob a jurisdição de um Estado para a de
outro, o que gera mudança no pertencimento a uma comunidade política, conforme Emma
Haddad (2008). É em função desses impactos que este se torna um tema fundamental para as
relações internacionais e para o estudo de nossas sociedades contemporâneas.
Haddad (2008) entende que a categoria dos(as) refugiados(as) se define com referência
ao Estado e não existiria sem o conceito de soberania e sem a relação entre Estado, cidadania e
território. De um lado, a existência do sistema estatal, assentada na soberania, é o que torna
inteligível a categoria dos(as) refugiados(as); de outro, a prática de proteger, solucionar, incluir
e excluir os(as) refugiados(as) é o que contribui para reafirmar a soberania e o sistema estatal,
reproduzindo essa relação.
A questão migratória se tornou um tema central para as relações internacionais
contemporâneas. Pensar o Estado em meio a um processo acirrado de globalização, com a
emergência de temas que se tornam parte de uma agenda transnacional e cujos impactos
interferem e sobrepassam as fronteiras estabelecidas de modo artificial no processo de
construção do moderno sistema de estados, induz à reflexão sobre as bases da política
contemporânea, anteriormente fundadas nas construções de identidades, consolidadas na ideia
de pertencimento a um projeto de nação. Dessa forma, a situação de quem se refugia é carregada
P á g i n a | 51

de subjetividades que vão muito mais além do aparato legal, mas implicam um olhar sobre a
alteridade, a identidade, o pertencimento.
O que alicerça, portanto, o acolhimento de refugiados(as) pelos Estados aborda a
fronteira erguida entre inclusão e exclusão, admissão e rejeição, indivíduos ou grupos
desejáveis e indesejáveis; ao mesmo tempo, enseja vulnerabilidade, indefinição e incerteza a
esses migrantes internacionais forçados. Tal fronteira separa aqueles(as) que serão inseridos(as)
na ordem social, cultural, econômica e política estatal, aqueles que terão direito a ter direitos,
dos(as) que não serão contemplados(as) (NYERS, 2005).
Os(as) refugiados(as) são vistos como outsiders, uma vez que vêm de fora; são
estrangeiros(as), por não pertencerem à nação, por serem estranhos(as) aos códigos
compartilhados e informados pela identidade cultural, social, étnica, religiosa, linguística da
comunidade de destino (BAUMAN – SAYAD, 2005 – 2008).
A construção da definição jurídica e política de refugiado(a) remonta ao contexto da
Europa do pós-guerra. A partir da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951,
cunhou-se o termo refugiado(a) como aquele(a) que possui fundado temor de perseguição por
razões de raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou por opiniões políticas.
A decisão do Estado de reconhecer e receber refugiados(as) envolve múltiplos e
complexos fatores, os quais abarcam tanto política externa como doméstica. O país receptor
pode utilizar o acolhimento de refugiados(as) como instrumento para deslegitimar o país de
origem, ao rotulá-lo como perseguidor, repressor ou violador de direitos humanos (MOREIRA,
2014). Pode favorecer a entrada de refugiados(as) de determinadas origens, em virtude de
questões sociais, étnicas, culturais, políticas ou econômicas, em detrimento de outras, e/ou
perceber a presença dos(as) refugiados(as), sobretudo em grande contingente, como pesado
encargo socioeconômico ou como ameaça à segurança ou à identidade nacional (MOREIRA,
2014).
A construção da definição jurídica e política de refugiado(a) remonta ao contexto da
Europa do pós-guerra. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ratificar, no ano de
1960, a Convenção Internacional de 1951, relativa ao Estatuto do Refugiado. Em razão das
limitações, temporais e geográficas, evidenciadas na referida Convenção, foi estabelecido, em
1967, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, que propositava alcance mais amplo à
definição do termo “refugiado”. Tal documento foi assinado pelo Brasil no ano de 1972.
Posteriormente, o País assinou a Declaração de Cartagena, de 1984, um documento
regional que influenciou a associação entre o conceito de refúgio e o de direitos humanos,
especificamente o de direito humanitário na América Latina. É fundamental ressaltar que essa
P á g i n a | 52

discussão nasce no ordenamento jurídico brasileiro em meio ao regime ditatorial, quando


milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros(as) saíram do país em busca de asilo político,
exilando-se no exterior por razões político-ideológicas.
O passo decisivo aconteceu sob um regime democrático, considerando-se que o marco
migratório brasileiro se baseia, essencialmente, na Constituição da República Federativa do
Brasil (CRFB/88) e nas Leis nº 9.474, de 1997, e nº 13.445, de 2017. A legislação brasileira foi
considerada importante pelo ACNUR por tratar da proteção aos refugiados(as) e por ser
referência para os demais países da América do Sul. Sobre o assunto, Antônio de Aguiar
Patriota (2017, p. 173, tradução nossa3) explica que:

O Brasil atribui grande prioridade à proteção de migrantes, refugiados e pessoas


impedidas de receber dinheiro. É parte da Convenção sobre Refugiados de 1951 e seu
Protocolo de 1967, da Convenção de Apátridas de 1954 e da Convenção de 1961 sobre
a Redução da Apatridia, e submeteu a adesão à Convenção sobre os Direitos dos
Trabalhadores Migrantes para Aprovação do Congresso.

O procedimento para a solicitação e a concessão do refúgio no Brasil, resumidamente,


acontece da seguinte forma: primeiramente, solicita-se a condição de refugiado(a) à Polícia
Federal nas fronteiras; a análise do pedido é realizada pela Cáritas Arquidiocesanas; a seguir, a
decisão é proferida, em primeira instância, pelo Comitê Nacional para os Refugiados –
CONARE; dessa decisão, caso seja negado o reconhecimento do status de refugiado(a), abre-
se outra fase, que é o recurso cabível da decisão negativa do CONARE para o Ministro da
Justiça, que decidirá em último grau de recurso.
A CRFB/884, em seu artigo 1º, aborda os fundamentos que constituem o Estado
Democrático de Direito, como a dignidade da pessoa humana. Já o artigo 3º revela que, entre
os objetivos fundamentais do Brasil, estão os de “[...] construir uma sociedade livre, justa e
solidária” e de “[...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O artigo 4º idealiza a existência de um país
integrado com a comunidade internacional, o qual colabore para o desenvolvimento das outras
nações e para o fortalecimento dos direitos humanos:

3
Texto original: “Brazil attaches great priority to the protection of migrants, refugees and stateless persons. It is
party to the 1951 Refugee Convention and its 1967 Protocol, to the 1954 Convention on Stateless Persons and to
the 1961 Convention on the Reduction of Statelessness, and has submitted the accession to the Convention on the
Rights of Migrant Workers for Congressional approval”.
4
A Constituição deveria ser um símbolo de repactuação social e democrática do País, porém, seus princípios
constitucionais confrontavam com o legado autoritário que a Lei nº 6.815/80 havia trazido dos anos de opressão
vividos pelo Brasil. O tema é complexo, mas, durante 37 anos, a referida lei (fundamentada no paradigma da
segurança nacional e da proteção ao mercado de trabalho interno) produziu efeitos no ordenamento jurídico
brasileiro até, finalmente, ser revogada pela Lei nº 13.445/17.
P á g i n a | 53

No esforço de reconstrução dos direitos humanos do Pós-Guerra, há, de um lado, a


emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, de outro, a emergência
da nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e a valores,
com ênfase no valor da dignidade humana. Por sua vez, no âmbito do Direito
Constitucional ocidental, testemunha-se a elaboração de textos constitucionais abertos
a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque ao valor da dignidade
humana (PIOVESAN, 2017, p. 353 e 354).

O texto da CRFB/88 não discorre expressamente sobre os(as) refugiados(as), mas


estes(as) estão inseridos(as) no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III,
CRFB/88), na prevalência dos direitos humanos e na concessão de asilo político (art. 4º, incisos
II e X, CRFB/88). Além desses dispositivos, existe o artigo 5º, o qual assegura que “[...] todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”. Segundo Jubilut (2007, p. 181),

Com base nesses princípios, pode-se afirmar que os alicerces da concessão do refúgio,
vertente dos direitos humanos e espécie do direito de asilo, são expressamente
assegurados pela Constituição Federal de 1988, sendo ainda elevados à categoria de
princípios de nossa ordem jurídica. Sendo assim, a Constituição Federal de 1988
estabelece, ainda que indiretamente, os fundamentos legais para a aplicação do
instituto do refúgio pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse sentido, além de obrigar o Brasil a zelar pelos direitos humanos e a respeitá-los,
a concessão do refúgio seria uma forma de efetivação dos dispositivos constitucionais, de modo
que os princípios estariam sendo cumpridos e a igualdade estaria assegurada, o que gera
segurança jurídica sobre o tema. É importante salientar que o(a) refugiado(a), uma vez
reconhecido(a) pelo País, goza de igualdade perante os(as) brasileiros(as) natos(as) e
naturalizados(as), uma vez que é detentor(a) dos direitos sociais preceituados pelo artigo 6º da
CRFB/88, mas não tem direito de votar nem de ser votado(a), o que incita uma complexa e
necessária discussão sobre sua cidadania.
O Brasil, em 1997, estabeleceu uma lei específica para os(as) refugiados(as): a Lei nº
9.474, de 22 de julho de 1997, que estabeleceu os critérios para se atribuir o status de
refugiado(a) e que também determinou o procedimento para o devido reconhecimento dessa
condição. A lei é responsável pela criação do CONARE, órgão administrativo que trata do tema
no país.
A Lei nº 9.474/97 foi produzida a partir do Programa Nacional de Direitos Humanos,
de 1996, e elaborada pelo governo brasileiro em conjunto com o ACNUR (PNDH, 1996). A
referida legislação é conhecida como umas das mais avançadas do mundo e é pioneira na
América Latina, “[...] sendo usada como parâmetro para inúmeros outros países, pois traz uma
P á g i n a | 54

ampla abordagem de situações que caracterizam o status de refugiado” (PEREIRA, 2004, p.


36).
Apesar de ser considerada uma legislação importante em âmbito internacional, ainda
não é tão avançada quanto legislações como a do México e a da Argentina, pois nesses países
a legislação específica para os(as) refugiados(as) abrange a questão de gênero como
fundamento de perseguição e de concessão do refúgio. Para Helisane Mahlke (2017, p. 01),

A anacrônica estrutura de proteção ainda continua a mesma do período que sucedeu


as duas Guerras Mundiais, caracterizada pela fragmentação da interpretação
normativa; pela fraca institucionalização; e pela apropriação do direito ao refúgio pela
agenda de política externa dos Estados. [...] Tem-se um modelo de proteção aos
refugiados totalmente dependente de iniciativas nacionais. Com essa estrutura, o
poder de decisão sobre o status do refugiado acaba por se converter em domínio do
Estado e segue, previsivelmente, os interesses por ele definidos, frequentemente em
detrimento dos direitos daqueles aos quais deveria proteger.

Em relação às causas que motivam a fuga, estas são de difícil solução e podem se
perpetuar por anos, por isso foram estabelecidas algumas respostas, capazes de conferir ao
refugiado(a) a possibilidade de viver dignamente e em segurança, mesmo em situações de
vulnerabilidades. O ACNUR trabalha com três iniciativas – repatriação voluntária5,
reassentamento solidário6 e integração local7 –, que fazem parte do compromisso assumido pelo
Brasil ao assinar a Convenção de 1951, positivado pela Lei nº 9474/97.
O Brasil tem sido um país bastante procurado por indivíduos em situação de refúgio.
Sempre considerado por sua diversidade cultural e composição multiétnica, o país foi
edificando sua identidade a partir de ideias como “democracia racial” e “homem cordial”,
presentes nos debates propostos, respectivamente, pelo antropólogo Gilberto Freyre e
historiador Sérgio Buarque de Holanda, pensadores do Brasil e da formação da sociedade
brasileira.
A sociedade brasileira, contudo, também é uma das mais violentas do mundo, e essa
violência é parte inerente do nosso processo de colonização, o qual gerou práticas e dinâmicas
excludentes, elitistas e pautadas na construção do projeto colonial e modernizador europeu que
incluía a escravidão e, dessa forma, a sujeição de outros indivíduos e povos, cuja cultura foi
sublimada e cujos corpos foram objetificados.

5
A repatriação voluntária é o retorno seguro ao país de origem, segundo a vontade e conveniência do(a)
refugiado(a).
6
O reassentamento solidário é a transferência de refugiados(as) a um terceiro país seguro realizada mediante
acordo entre o país e o ACNUR.
7
A integração local é o objeto desta pesquisa e será abordada mais adiante.
P á g i n a | 55

Ao passo que o Brasil se negava enquanto fruto da diáspora africana e do genocídio


indígena, construía para si, como projeto de nação insurgente e de república recém-fundada, a
ideia de uma nação mestiça, fruto do encontro de raças originais que levariam à construção de
uma espécie de nova raça cósmica8 (VASCONCELOS, 1979).
Os imigrantes europeus foram aos poucos se adaptando às paisagens e construindo
novas comunidades no Sul do país. Os que migraram do Japão foram garantindo sua integração
no Paraná e em São Paulo e os árabes já se faziam presentes até no imaginário popular, por
meio da figura do mascate, o comerciante. Estes dominaram a península ibérica e sua presença
e influência cultural e gastronômica foi sendo paulatinamente sentida e naturalizada.
O movimento migratório recente, que marca as primeiras décadas do século XX, no
entanto, revela conotações e elementos distintos. Haitianos(as), venezuelanos(as), sírios(as),
entre outros povos passaram a solicitar o visto de refugiado(a) ao Brasil.
Essas comunidades são recentes, sem histórico passado, estigmatizadas pela imagem
internacionalmente construída de seus países, elementos que as fazem enfrentar as barreiras
religiosas e linguísticas em um país que viu emergir, justamente ao longo da última década, o
crescimento das forças conservadoras e da simpatia a movimentos protofascistas, que consistem
em uma menor adesão ao regime democrático, ao Estado democrático de direito e à defesa dos
direitos humanos.
Os elementos e dinâmicas sociopolíticas que marcam a sociedade brasileira na
atualidade também respondem a aspectos econômicos, como a crise mundial de 2008. A partir
de então, como um fenômeno global, em meio a um período de recessão econômica e de
aumento do desemprego, os(as) nacionais de diferentes países passaram a ressentir a entrada de
migrantes, temendo perderem postos de trabalho e considerando, através das visões
estigmatizadas, xenófobas e racistas, o potencial aumento da violência e pressão sobre serviços
públicos já escassos e de baixa qualidade e a possibilidade de verem sua qualidade de vida
diminuir pelo imaginário da competição com aquele(a) que chega.
Outro aspecto fundamental desse fenômeno é também seu componente cultural e
moral, já que em termos valorativos a emergência da extrema direita e de forças conservadoras
implica menos tolerância com o diferente, por questões de orientação sexual, questões
linguísticas, culturais, raciais e religiosas.

8
O conceito de raça cósmica surgiu no livro La Raza Cósmica de autoria do mexicano José Vasconcelos Calderón.
O autor defende que na América Latina se formaria uma nova raça, em um processo de mestiçagem sobretudo
espiritual. Através de uma inversão semântica no conceito de raça, o autor apresenta uma nova proposta de
identidade latino-americana, com o fim político de legitimar as nações do continente e de se opor ao imperialismo
estadunidense (ASCENSO, 2013).
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O Brasil apresentou avanços em termos legais e jurídicos para o recebimento de


migrantes e, em especial, refugiados(as), mas, na última década, sofreu um considerável
retrocesso democrático que não se reflete tão somente no posicionamento político-ideológico
de governantes, mas em uma cultura democrática que se deteriorou consideravelmente,
contribuindo para um ambiente mais hostil, menos cordial, mais individualista, tribal,
polarizado e radicalizado.

3 A INSERÇÃO E A INTEGRAÇÃO DE REFUGIADOS(AS) NA SOCIEDADE


BRASILEIRA

A integração é uma das formas de solucionar o problema do(a) refugiado(a) e, para


Karen Jacobsen (2001), a integração local pode ser mais ou menos difícil a depender da situação
política e/ou econômica do país de acolhimento. O termo “integração local” é considerado vago.
Para a literatura, a expressão faz referência ao processo que se desenvolve quando o(a)
refugiado(a) passa a interagir em novo contexto no país receptivo. O Estatuto do Refugiado, no
capítulo sobre integração, apresenta a seguinte redação:

Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica dos refugiados
deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos
emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e
consulares. Art. 44. O reconhecimento de certificados e diplomas, os requisitos para
a obtenção da condição de residente e o ingresso em instituições acadêmicas de todos
os níveis deverão ser facilitados, levando-se em consideração a situação desfavorável
vivenciada pelos refugiados.

O “conceito” referido no Estatuto do Refugiado em nada esclarece e/ou ajuda a


resolver o problema de integrar esses indivíduos. O Estatuto também não menciona políticas
públicas de integração e não aborda os elementos necessários para efetivar tal termo. Esse
assunto fica sem previsão legal adequada e por isso sua execução fica dependente de políticas
específicas de governos, os quais não garantem organicidade.
O conceito de integração, portanto, fica a cargo da literatura. Jeff Crisp (2004) entende
que o(a) refugiado(a) não precisa abandonar sua própria cultura. A ideia é que nacionais e
estrangeiros(as) possam ajustar seus comportamentos e atitudes entre si, demandando esforço
dos(as) nacionais para entender o diferente e o direito do(a) refugiado(a) de preservar seu
repertório cultural de origem. O autor destaca a multidimensionalidade da integração local que,
para ele, possui três dimensões: dimensão legal, que serve para garantir direitos no país
acolhedor; dimensão econômica, para que o(a) refugiado(a) possa ter uma vida
economicamente viável e autônoma; e dimensão sociocultural, por meio da qual se preserva a
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tranquilidade do(a) refugiado(a) de viver em uma sociedade sem o risco/temor de sofrer


discriminação ou exploração (CRISP, 2004).
Mahlke (2017, p. 244) adverte que a “integração não deve ser confundida com
‘assimilação’, uma vez que ao refugiado não deve ser exigido que abandone sua cultura e
identidade para compor indistintamente a sociedade local”, mas que seja permitido viver em
um ambiente plural. Para Tom Kuhlman (1991), a integração é o processo mediante o qual
os(as) refugiados(as) mantêm sua própria identidade, mas se tornam parte da sociedade
acolhedora à medida que podem conviver com a população local de modo aceitável.
Os autores Ager e Strang (2008) concebem a integração como um processo dialético
entre refugiados(as) e sociedade receptora. Para eles, os elementos centrais desse grupo se
referem à aquisição e acesso a emprego, moradia, educação e saúde; à cidadania e a direitos; e
a processos de relações sociais com grupos dentro da comunidade receptora, tornando-se crucial
identificar também as barreiras estruturais a essas relações em função da língua, da cultura e do
ambiente local.
Tal abordagem concebe a integração como via de mão dupla, a qual supõe adaptação
não apenas do(a) recém-chegado(a), como também da sociedade receptora. Isso implica
mudança em termos de valores, normas, comportamentos tanto para os (as) refugiados(as)
quanto para os membros da comunidade local. Ao mesmo tempo, faz-se necessário propiciar o
acesso a serviços e oportunidades de empregos, assim como a aceitação dos(as) refugiados(as)
em termos de interação social e aquisição de direitos, inclusive políticos. Essa visão se opõe
àquela voltada para assimilação, mediante a qual se espera que os(as) refugiados(as) descartem
sua cultura, tradição, língua de origem, devendo se integrar na sociedade receptora sem
qualquer acomodação recíproca (MOREIRA, 2014).
No caso do Brasil, é necessário vencer a falta de estrutura para o acolhimento. O
recente aumento do fluxo de refugiados(as) gerou uma demanda de ampliação ou criação de
infraestrutura. Atualmente, esse problema fica sob a responsabilidade dos municípios, mas nem
todos têm condições de arcar com essas políticas de acolhimento sem a ajuda dos Estados e da
União. A cidade de São Paulo, de acordo com Silva e Fernandes (2018), foi a precursora do ato
de criar instituições para acolher os(as) refugiados(as). Porém, outras cidades – que também
recebem muitos(as) refugiados(as) –, como Belo Horizonte, Brasília, Criciúma e Caxias de Sul,
não possuem um serviço exclusivo para recepção desses indivíduos.
Os(as) refugiados(as) podem solicitar que um albergue público os(as) receba, no
entanto, esses locais estão atendendo a população em situação de rua. São duas populações com
vulnerabilidade, mas que necessitam de cuidados diferenciados, tendo em vista suas
P á g i n a | 58

características peculiares. Como o poder público não tem estrutura para acolhimento nem
planos arrojados de integração para os(as) refugiados(as), fica sob a responsabilidade da
sociedade civil, de instituições religiosas, ONGs e associações de refugiados(as) fazer esse
trabalho. Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2015),
em parceria com o Ministério da Justiça, alguns gargalos sobre o processo de integração foram
revelados:

No contexto nacional, e conjugando-se os dados obtidos em todas as entrevistas e


questionários, conseguiu-se traçar um perfil geral dos imigrantes no Brasil, bem como
verificar que: a) há violações de seus direitos humanos, b) há vários obstáculos de
acesso a direitos e serviços, c) não há diretrizes centralizadas de atendimento a
imigrantes, e d) que os imigrantes não têm conhecimento de ações para a melhoria de
sua proteção no Brasil (IPEA, 2015).

Apesar da Lei nº 9.474/97 determinar que os(as) refugiados(as) em solo brasileiro


devem estar sujeitos(as) aos mesmos direitos e deveres dos(as) nacionais, várias dificuldades
são percebidas, como a barreira do idioma, a falta de documentação solicitada, a existência de
requisitos e exigências para a inclusão em programas sociais e/ou de créditos, conforme afirma
Mahlke (2017). Os gráficos abaixo foram feitos pelo IPEA (2015) e demonstram os problemas
vivenciados pelos grupos de refugiados(as):

GRÁFICO 1 – PRINCIPAIS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS IMIGRANTES (BRASIL)


P á g i n a | 59

Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA

Ainda de acordo com a pesquisa do IPEA (2015), a partir da perspectiva das


instituições, as dificuldades dos(as) imigrantes são maiores do que as da população nacional, o
que pode ser entendido como discriminação e/ou vulnerabilidade específica dos(as) imigrantes.

GRÁFICO 2 – DEMONSTRA QUE AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS IMIGRANTES SÃO


MAIS GRAVES QUANDO COMPARADAS COM AS DIFICULDADES DA POPULAÇÃO EM GERAL

Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA

A pesquisa realizada pelo IPEA (2015) é uma comprovação de que a integração


enfrenta dificuldades para ser efetivada. Já Simões et al. (2017, p. 21-48), nos mostra que o
Relatório sobre o Perfil Sociodemográfico e Laboral da Imigração no Brasil evidenciou que
somente 38,9% dos refugiados tiveram acesso aos serviços de saúde, 10,4% aos serviços
educacionais e 2,2% aos serviços de assistência social. Sobre os que têm certificado de ensino
superior, a pesquisa evidencia que 90,48% não conseguem a revalidação dos diplomas, fato que
impacta negativamente no sucesso de conseguirem emprego em suas áreas de formação.
O percentual que frequentou ou frequenta curso de português no Brasil é de 53,66%,
um índice baixo, porque mais de 48% dos entrevistados falam outro idioma além daqueles
perguntados (português, francês, inglês, espanhol e árabe). Além disso, salienta-se que 7,1%
estão sem documentação no Brasil, 22,8% possuem carteira de trabalho e 29%, Cadastro de
Pessoa Física.
P á g i n a | 60

Não obstante, como explica Mahlke (2017, p. 244), “todos esses obstáculos podem ser
resumidos em um único problema: a falta de uma estrutura de acolhimento adequada,
acompanhada de políticas públicas direcionadas para a população refugiada”. A igualdade para
todos(as) apresentada pela CRFB/88 refere-se à igualdade de direitos e oportunidades e, para
isso ocorrer, é necessário considerar a condição especial dos(as) refugiados(as) e promover
ações para que essa igualdade seja atingida (Mahlke, 2017).
A população migrante e, em especial, refugiada já enfrenta as barreiras linguísticas e,
muitas vezes, não conta com uma rede de apoio em seu novo país. Seu ponto de partida já é
consideravelmente mais desafiador. Constata-se a existência de novas e distintas fronteiras para
uma efetiva integração em uma nova sociedade. Os desafios culturais impostos pelo idioma e a
dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e a serviços, conforme vislumbrado no gráfico 1,
também podem ser considerados efeitos de uma investida discriminatória, segregacionista, que
impede a integração de refugiados(as) à sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, a política migratória revelou, sem dúvidas, muitos avanços. Apesar dos
erros e da inoperância administrativa, o País mostrou-se assertivo ao assinar os acordos
internacionais para proteção dos refugiados. Internamente, no período democrático, houve a
criação de um sistema jurídico migratório audacioso, porque garantiu a pluralidade de direitos
aos refugiados, mas ainda com resquícios da ideologia da segurança nacional, timidamente
mascarada por políticas públicas pouco eficientes. O país conta com um aparato legislativo
muito importante, porém falta vontade política para que a lei seja efetivada de forma correta.
Outro problema enfrentado e evidenciado na pesquisa é que, teoricamente, os
refugiados deveriam ser bem recebidos nos países de destino, porém isso nem sempre acontece.
A falta de políticas públicas para integração dos refugiados gera outros desafios, como a
xenofobia e a carência de acesso aos serviços públicos. A dificuldade de integrá-los a sociedade
brasileira pode ser interpretada como uma grave violação aos direitos humanos dos refugiados.
Finalmente, este breve texto buscou concentrar-se nas dificuldades e nos dilemas
vivenciados por migrantes refugiados(as) no Brasil. Foi possível perceber que, apesar dos
avanços legais importantes, as fronteiras a serem cruzadas ainda são consideráveis de acordo
com a problemática que envolve a integração desses indivíduos à sociedade brasileira. A
inclusão social, a equidade e a observação dos direitos humanos, no sentido da percepção da
dignidade da pessoa humana para relações interpessoais mais horizontais e solidárias, ainda
P á g i n a | 61

merecem ser objeto de políticas públicas específicas, as quais visem a essas populações em
condição de vulnerabilidade.

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P á g i n a | 63

NOTIONS ON REFUGE AND LOCAL INTEGRATION IN BRAZIL

ABSTRACT

This paper is dedicated to a reflection on the integration of refugees in


Brazilian society. The methodological incursion that makes it possible
to carry out this investigation is guided by qualitative research
approaches and by inductive method. The methodological procedure is
bibliographic and documentary. The work covers the very conception
of the term refuge, and highlights a historical construction of the legal
framework around the issue of refugees in Brazil, to finally present the
situation of refugees, among the migrants category, in Brazilian society.
It is important to emphasize that migration is part of the central element
for understanding a contemporary civilizational crisis and makes us
rethink the concept of borders. By breaking the physical limits of their
States, but also responding to logics and dynamics that go beyond
political boundaries - such as those that are abstract -either through
other crises, such as the environmental crisis, refugees are faced with
borders for their insertion and integration in their destination country.

Keywords: International Refugee Law. Human rights. Refuge.


Migrations. Brazil.
P á g i n a | 64

A VULNERABILIDADE DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS E A GARANTIA DO


MÍNIMO EXISTENCIAL

Rogers Alexander Boff 1


Valéria Koch Barbosa 2

RESUMO

As evidências de mudanças climáticas e o consequente aumento de


catástrofes ambientais são notórios ao redor do mundo, obrigando um
contingente de pessoas a ter de buscar refúgio em outros países, dada a
impossibilidade de prosseguir a vida no local em que habitavam. As
vítimas, as quais, em geral, são pessoas que já estavam expostas a
diversos riscos e, portanto, vivenciando uma situação de
vulnerabilidade, passam, na condição de refugiadas, a ter de enfrentar
adversidades ainda mais severas, entre elas, a violação de direitos
assegurados à pessoa humana. Tendo em vista tal contexto, este estudo
exploratório, que se utiliza do método dedutivo e tem como suporte
pesquisa bibliográfica na doutrina e na legislação, aborda a necessidade
de garantir o mínimo existencial aos refugiados ambientais, apontando
a proteção jurídica que lhes é assegurada e que deve ser respeitada.
Como resultados, constatou-se que os refugiados ambientais, ao terem
de, forçosamente, deixar os locais onde viviam e nos quais mantinham
sua vida, sua rotina e seus laços, nem sempre têm respeitados os direitos
que dão amparo à preservação de sua dignidade. Assim, embora haja
farta legislação prevendo a proteção da dignidade dessas pessoas, como
o Direito dos Refugiados e o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, muitas garantias necessitam se consubstanciar no que tange
à sua eficácia a fim de atenuar a situação de vulnerabilidade e
efetivamente assegurar o mínimo existencial.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Direitos Humanos.


Mínimo existencial. Mudanças climáticas. Refugiados Ambientais.

1 INTRODUÇÃO

As mudanças climáticas são ensejadoras de constantes transformações e eventos


adversos no cenário mundial, trazendo consigo um número crescente de refugiados ambientais.
Essa realidade exige que se atente para a proteção jurídica dirigida a esses indivíduos em
situação de vulnerabilidade, a qual decorre da exposição a variados riscos e suas consequências.

1
Mestrando em Psicologia pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Especialista em Direito de
Família e Sucessões pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus – FDDJ (São Paulo/Brasil). Pós-graduando
em Advocacia Extrajudicial e em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale (São Paulo/Brasil). Graduado em
Direito pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Advogado.
2
Doutora em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Mestre em Qualidade
Ambiental pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/Brasil). Especialista em Redação pela Unisinos (São
Leopoldo/Brasil). Docente do Curso de Direito da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Advogada.
P á g i n a | 65

A análise desse tema justifica-se, por conseguinte, tendo em conta que as mudanças climáticas
podem desencadear catástrofes que ameaçam a sobrevivência das pessoas na Terra, forçando-
as à busca de alternativas de vida em lugares que não aqueles em que estavam acostumadas a
viver e nos quais eram consideradas cidadãs, consequentemente, com proteção jurídica. A
desterritorialização traz implicações que acentuam a situação de vulnerabilidade, colocando em
xeque a eficácia dos direitos assegurados à pessoa humana e podendo comprometer, não raras
vezes, o mínimo existencial e a dignidade.
Considerando tal contexto, esta pesquisa visa a responder ao seguinte questionamento:
a atual proteção jurídica prevista aos refugiados ambientais consubstancia-se materialmente e
é capaz de assegurar o mínimo existencial? Parte-se da hipótese de que os refugiados, apesar
da legislação que os protege, nem sempre têm a garantia do mínimo existencial efetivada,
quando precisam, muitas vezes, recebem tratamento que afronta a sua dignidade e carecem de
uma eficaz proteção ante a vulnerabilidade a que ficam expostos.
Nesse desiderato, tem-se como objetivo geral demonstrar que a situação de
vulnerabilidade advinda de catástrofes ambientais – muitas delas decorrentes das mudanças
climáticas – requer ampla e efetiva proteção jurídica aos refugiados ambientais, assegurando-
lhes a fruição de direitos que promovam o seu bem-estar e que se coadunem com o respeito à
dignidade da pessoa humana e a promoção do mínimo existencial. Como objetivos específicos,
traçaram-se os seguintes: discorrer sobre as mudanças climáticas e algumas de suas
consequências, entre elas, o deslocamento e o refúgio ambiental; e apresentar os principais
diplomas legais que dão suporte à proteção dos refugiados ambientais.
A pesquisa, que é de caráter exploratório, tem trajetória metodológica amparada no
método dedutivo, com a análise da proteção jurídica à pessoa humana e, então, uma abordagem
particularizada das garantias aos refugiados, tendo como técnica a revisão bibliográfica na
legislação e na doutrina.
Destarte, o artigo apresenta, na primeira parte, algumas considerações sobre as
mudanças climáticas e o consequente advento de refugiados ambientais, distinguindo-os de
deslocados internos, abordando, na sequência, a proteção que o ordenamento jurídico destina
aos refugiados ambientais por meio de uma visão abrangente sobre os avanços legislativos. Por
fim, são apresentadas algumas considerações mais à guisa de reflexão do que com o intento de
encerrar a discussão atinente ao tema.
P á g i n a | 66

2 AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS, AS CATÁSTROFES E O ADVENTO DE


REFUGIADOS AMBIENTAIS

Ao longo do tempo, a Terra tem sofrido várias alterações tanto naturais quanto
decorrentes da ação humana, sobrevivendo a mudanças climáticas advindas, muitas vezes [...]
de práticas habituais, irracionais, reincidentes e degradadoras do meio ambiente [...]”, que
comprometem o bem-estar, a segurança e a qualidade de vida das pessoas (BÜRING;
TONINELO, 2018, p. 59).
As mudanças climáticas estão relacionadas às variações do clima em termos globais e
regionais, implicando alterações de precipitação, temperatura, nebulosidade e fenômenos
climáticos, em geral, decorrentes de causas naturais ou antrópicas (STEIGLEDER, 2010).
Atribui-se esse fenômeno às emissões de gases de efeito estufa, as quais provêm da produção e
do consumo de energia pela indústria, pela agricultura, pelos meios de transporte, entre outros.
Desse modo, é possível dizer que, ao mesmo tempo que a Revolução Industrial representou um
avanço no que diz respeito a trazer melhorais à vida das pessoas, aumentou as emissões dos
gases de efeito estufa com a intensa utilização de combustíveis fósseis (BÜRING; TONINELO,
2018).
Desencadeou-se, assim, uma crise ambiental, que está relacionada à dificuldade tanto
de identificar quanto de resolver os problemas ecológicos que têm afetado o bem-estar humano.
Uma crise ambiental decorre de problemas ecológicos que não são resolvidos, “[...] de modo
que os membros da sociedade começam a perder a noção de pertencimento [...]” (SANTOS,
2020, p. 59). A tomada de consciência acerca dessa crise “[...] é deflagrada, principalmente, a
partir da constatação de que as condições tecnológicas, industriais e formas de organização e
gestões econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida” (LEITE; AYALA,
2014, p. 27).
Com as mudanças climáticas e a confirmação dos cenários que têm sido projetados,
será preciso “[...] um esforço mundial no sentido de dirimir as consequências dessas mudanças
sobre a vida das pessoas” (BLANK, 2015, p. 158). Entre tais consequências, destacam-se o
comprometimento da diversidade biológica da Terra e o advento de uma série de problemas à
saúde humana, incluindo a possibilidade de morte. Além disso, essas mudanças podem ser
responsáveis por processos de erosão e enchentes em zonas costeiras, extinção de espécies,
interferências na produtividade agrícola, entre tantos outros problemas capazes de afetar o
ecossistema e a manutenção da vida no próprio planeta. Assim, “[...] poucos fenômenos globais
e duradouros mostram-se tão ameaçadores à subsistência da vida no planeta quanto as
mudanças climáticas, oriundas do aquecimento global ocasionado, por sua vez, pelo efeito
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estufa” (CARVALHO, 2010, p. 43). O aquecimento global é, portanto, tema que se destaca, na
atualidade, no cenário político ambiental (FENSTERSEIFER, 2010).
O aquecimento global tem interferido na produção de alimentos, com a redução de
áreas agricultáveis em consequência, entre outros eventos, da intensificação de secas e
enchentes. Agravará, igualmente, o problema das pessoas que necessitarão se deslocar por
causas ambientais. Diante disso, é necessário que sejam sistematizados “[...] mecanismos
políticos e jurídicos capazes de garantir o amparo a essas pessoas, de modo a prover-lhes os
direitos fundamentais quando tiverem de abandonar seus lares, ainda que seus destinos sejam
outra região dentro de seus próprios países” (BLANK, 2015, p. 158).
Existem apontamentos científicos que comprovam ser provável que o efeito estufa
venha alterando o clima. Tal fenômeno é oriundo “[...] de um processo de isolamento térmico
do planeta em decorrência dos gases do efeito estufa (green house gases) que, concentrados na
atmosfera, impedem que os raios solares penetrem na atmosfera e que retornem ao espaço em
razão da formação deste bloqueio” (CARVALHO, 2010, p. 43-44).
Embora a existência do efeito estufa ainda seja debatida e gere controvérsias, verifica-
se uma preocupação nesse sentido, destacando-se vários documentos que reconhecem ser grave
e complexa a atual situação climática, a exemplo dos Protocolos de Cartagena, de Quioto e de
Montreal, a Convenção de Viena e a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre o Clima. Em
vista disso, em 1988, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) foi criado
com o intuito de possibilitar acesso a informações científicas sobre as mudanças climáticas e
seus impactos não apenas ambientais, mas também socioeconômicos (CARVALHO;
DAMACENA, 2012).
No Brasil, instituiu-se a Política Nacional de Mudanças Climáticas, por meio da Lei
nº 12.187/2009, da qual exsurge o compromisso nacional voluntário de promover ações de
mitigação das emissões de gases de efeito estufa, objetivando, conforme explicita o artigo 12,
reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas até 2020. O detalhamento dessas ações está
contemplado, por sua vez, no Decreto nº 7.390, de 2010 (CARVALHO; DAMACENA, 2012).
É fato que tem aumentado a ocorrência de desastres, muitos dos quais atribuídos às
mudanças climáticas. Esses eventos catastróficos, como inicialmente se salientou, têm forçado
pessoas a abandonarem o local onde viviam, buscando refúgio em outras terras, muitas vezes,
além das fronteiras do próprio país. Existe estimativa de que poderá haver 200 milhões de
pessoas em situação de refúgio até o ano de 2050 (RAMOS, 2011) e, de acordo com dados da
Organização das Nações Unidas, 50 milhões de pessoas já tiveram de abandonar o seu lar em
decorrência de desastres naturais ou mudanças climáticas. A previsão é de que o número de
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refugiados ambientais, em 2050, será de “[...] 250 milhões a 1 bilhão de pessoas [...]” (SOUZA;
DELPUPO, 2013, p. 146-148).
Neste ponto, cabe referir a diferença entre deslocados internos e refugiados ambientais.
Os primeiros são aqueles que se deslocam dentro do próprio país, ao passo que os refugiados
deixam o seu país e buscam refúgio em outro, não por questões políticas ou para terem acesso
a melhores condições de vida, mas em consequência das adversidades oriundas das catástrofes
ambientais (FRANCO FILHO, 2013). Para Serraglio (2014), todavia, essa distinção não existe,
pois considera que tanto os deslocados quanto os refugiados migram por causa de desastres
ambientais, quer seja dentro do próprio país, quer seja no âmbito internacional.
Deixando-se de adentrar em tais dissensos, a realidade é que, quando a pessoa está na
condição de refugiada, significa que perdeu as suas raízes, a sua residência, o seu território,
onde ocorrem as trocas materiais e espirituais, onde se dá o exercício da própria vida (SANTOS,
1999). Assim, ter de abandonar o local onde a pessoa vivia implica perdas das mais variadas
ordens, como os laços de amizade, as relações com a comunidade, a identidade com o lugar, as
tradições, entre outras adversidades (RAIOL, 2009). E, perder a comunidade representa, de
certa maneira, perder a dignidade, a qual está assegurada em vários ordenamentos jurídicos e,
no Brasil, de forma expressa, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III
(JESUS, 2009).
Nesse passo, insta salientar que “[...] a vulnerabilidade ambiental contribui para maior
exposição à violação de direitos humanos, especialmente do direito à vida”, além de violação
de direitos humanos econômicos, sociais, civis e políticos (CAVEDON; VIEIRA, 2011, p.
181), sendo necessário não olvidar que as pessoas mais pobres, em geral, são também as mais
vulneráveis às consequências das alterações climáticas e dos desastres ambientais. Acentua-se,
com isso, a situação de precariedade e de difícil acesso aos direitos sociais básicos,
comprometendo, portanto, a proteção da sua dignidade. Em face do incremento no número de
catástrofes ambientais, vislumbra-se, igualmente, a potencialização da vulnerabilidade dessas
pessoas, as quais ficarão privadas do mínimo existencial à sua sobrevivência
(FENSTERSEIFER, 2010).
Ressalta-se que não existe previsão expressa, na Constituição Federal de 1988, acerca
do mínimo existencial. Para que seja possível compreendê-lo, é necessário detectar os
implícitos da legislação e as bases que o sustentam. Em síntese, pode-se dizer que decorre do
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O núcleo do mínimo existencial diz respeito às
condições básicas para a existência humana e os elementos indispensáveis ao exercício da
dignidade, abrangendo uma existência digna em termos físicos, espirituais e intelectuais, com
P á g i n a | 69

a efetiva participação dos indivíduos na sociedade e os mecanismos necessários para o seu


próprio desenvolvimento. Além disso, é preciso levar em conta que a fixação do mínimo
existencial poderá variar, uma vez que estará em consonância com o que se entende por vida
digna em determinado contexto histórico e social. No entanto, “[...] o que não se pode conceder
é a consideração de um mínimo que permita a espoliação da dignidade humana, frente aos seus
direitos constitucionalmente previstos e fundamentalmente positivados” (RISSI, 2017, p. 101),
cujos reflexos devem se estender aos refugiados ambientais.
Nessa senda, mister analisar o arcabouço jurídico de que os refugiados ambientais
dispõem, o que se faz na seção seguinte.

3 A PROTEÇÃO JURÍDICA AOS REFUGIADOS AMBIENTAIS

No plano internacional, a proteção dos refugiados teve origem a partir da criação da


Liga das Nações, após a Primeira Guerra Mundial, por intermédio do acordo de paz que marcou
o fim dessa Guerra, o Tratado de Versalhes, de 1919 (SERRAGLIO, 2014).
Em 1921, a Liga das Nações criou o Alto Comissariado para Refugiados Russos, o
primeiro órgão oficial a tratar dos direitos garantidos aos refugiados no plano internacional
(JUBILUT, 2007), que, mais tarde, passou a gerir toda e qualquer questão envolvendo
refugiados (RAMOS, 2011), até que foi criado o Escritório Nansen, instituído pela Liga das
Nações, em virtude da necessidade de um novo órgão para zelar pela proteção dos refugiados.
Esses foram, portanto, os pilares para o surgimento do Direito Internacional dos
Refugiados, que teve como base a Convenção de 1933, com a criação do Princípio do non
refoulement, ou seja, não rechaço, o qual, no Brasil, foi recepcionado por intermédio da Lei n°
9.474/1997 (JUBILUT, 2007).
Em 1948, instituiu-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diploma que
consagrou vários direitos, entre eles, o de ser reconhecido como pessoa em todos os lugares
(artigo VI), além da possibilidade de qualquer pessoa poder buscar e gozar asilo em outros
países quando vítima de perseguição (artigo XIV). Essa Declaração trouxe a concepção
contemporânea de Direitos Humanos, com fulcro na ideia de universalidade e indivisibilidade,
e acarretou o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Consoante destacam Ferreira e Serraglio (2015), é nos instrumentos do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, em especial, na Declaração Universal dos Direitos
P á g i n a | 70

Humanos que se pode buscar socorro para amparar os refugiados ambientais, pois tal
documento evidencia a proteção a que esses indivíduos têm direito.
Na trajetória evolutiva de proteção ao instituto do refúgio, frisa-se que, em 1950, como
consequência do grande número de refugiados da Segunda Guerra, foi criado o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR – e, em 28 de julho de 1951,
adveio a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Assim, aponta Mazzuoli (2014) que
os textos globais de proteção aos refugiados são a Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados, de 1951, e o seu Protocolo, de 1967.
Sob tais lentes, deve-se ter presente que a proteção internacional da pessoa humana
abarca três ramos convergentes do Direito Internacional: o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados. O
Direito Internacional dos Direitos Humanos visa a “[...] proteger os direitos de qualquer
cidadão, independentemente de sua raça, cor, sexo, língua, religião etc.” (MAZZUOLI, 2014,
p. 881). O Direito Internacional Humanitário objetiva proteger pessoas em tempos de conflitos;
já o Direito dos Refugiados é um ramo do Direito Internacional Público que visa à proteção
específica de pessoas que buscam refúgio em outros Estados em consequência de conflitos ou
situações de risco. É neste conceito que se incluem as “vítimas de situação de risco”, quais
sejam, os refugiados ambientais (SOUSA, 2016, p. 461).
É mister lembrar, neste contexto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
prevê que os seres humanos devem agir pautados na fraternidade em relação uns aos outros,
sem qualquer distinção relacionada a condição política, jurídica ou internacional do país ou
território a que pertença determinada pessoa, e daí decorre, por conseguinte, o dever de amparo
aos refugiados ambientais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Para Mendes e Brasil (2020, p. 69), “A solidariedade, assim como a fraternidade, traz
em seu âmago a preocupação para com o outro, ou seja, a solidariedade que impõe que uma
pessoa se preocupe com o outro e que cada um se preocupe com o todo”. Do mesmo modo, a
fraternidade “[...] traz a ideia de preocupação com o irmão, a união, exige uma responsabilidade
do indivíduo para com a sociedade” (MENDES; BRASIL, 2020, p. 69).
No que diz respeito ao Brasil, foi contemplado um diploma para a proteção dos
refugiados, a Lei nº 9.474, de 23 de julho de 1997, embora sem previsão de proteção específica
aos refugiados ambientais. Essa lei regulamentou o Estatuto dos Refugiados no País e
estabeleceu a sua aplicação, tratando da condição jurídica de refugiado, do ingresso no território
nacional e do processo para o pedido de refúgio. Segundo o seu teor, o Comitê Nacional para
os Refugiados (CONARE) é o órgão do Ministério da Justiça competente para reconhecer a
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situação de refugiado no País, bem como para decidir a cessação e determinar a perda da
condição de refugiado (BRASIL, 1997).
No ano de 2017, foi instituída, a Lei de Migração, Lei n° 13.445, prevendo a revogação
da Lei n° 6.815, de 1980 – Estatuto do Estrangeiro, a qual, até então, tratava da situação do
estrangeiro no País. De acordo com os preceitos da lei mais atual, a política migratória brasileira
deverá ser pautada pelos Direitos Humanos, pela não discriminação, pelo acesso igualitário,
pelo reconhecimento acadêmico e profissional, entre outros Princípios (BRASIL, 2017).
Essa lei explicita o repúdio e a prevenção da xenofobia, do racismo e de quaisquer
formas de discriminação, prevendo acesso igualitário do migrante a vários benefícios, serviços
e programas sociais, além de contemplar muitos direitos que já encontram guarida no Texto
Supremo de 1988. Conforme o teor do artigo 4º da Lei de Migração, in verbis, “Ao migrante é
garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (BRASIL, 2017).
Ademais, o artigo em comento prevê, em seu inciso XVI, o direito que tem o imigrante
de ser informado acerca das garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização
migratória. Também foram assegurados aos imigrantes direitos que anteriormente eram
exclusivos dos brasileiros, entre eles, constam a não criminalização da migração (art. 3º, III), o
acolhimento humanitário (art. 3º, VI), o direito à igualdade, à vida, à segurança e à propriedade
(art. 4º), direitos esses voltados ao amparo da dignidade de tais indivíduos (BRASIL, 2017).
Quanto aos direitos fundamentais que devem ser assegurados aos refugiados, como os
direitos à vida, à saúde, à propriedade, à educação, à moradia, entre outros, destaca Sarlet que
pode ser flexibilizada a ideia de que a titularidade desses direitos diz respeito tão somente aos
estrangeiros residentes no Brasil, pois ela deve ser “[...] sempre guiada pelos princípios da
dignidade da pessoa humana e da correlata noção de titularidade universal dos direitos humanos
e fundamentais” (SARLET, 2012, p. 306).
Em caso de ocorrência de desastres ambientais, a Lei de Migração brasileira prevê,
explicitamente, a hipótese de concessão de visto temporário ou quando houver violação de
Direitos Humanos. É essa a previsão do artigo 14, § 3º, da lei em tela, ao dispor acerca do visto
temporário que será “[...] concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação
[...] de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos
humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de
regulamento” (BRASIL, 2017). Nessa ótica, pontuam Sparemberger e Bühring (2010) que deve
ser assegurada uma série de direitos sociais às pessoas que precisam abandonar o local onde
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viviam em virtude de causas ambientais, como acesso a alimentos, água, habitação, assistência
médica e informação.
Os autores supramencionados salientam que lidar com catástrofes ambientais requer
também respeito à unidade familiar, para que membros da mesma família não sejam separados,
com possibilidade de reconstituição da família dispersada pelo desastre ambiental, assim como
é necessário ter acesso à educação e à formação; à subsistência pelo trabalho; ao realojamento
e à nacionalidade, priorizando-se a não discriminação (SPAREMBERGER; BÜHRING, 2010).
Esses são direitos a serem efetivamente garantidos e que devem compor o mínimo existencial,
que representa “[...] um patamar mínimo para a existência humana, consubstanciado no seu
conteúdo as condições materiais mínimas para a concretização do princípio-matriz de todo o
sistema jurídico, que é a dignidade da pessoa humana” (FENSTERSEIFER, 2008, p. 269).
Na concepção de Rissi (2017, p. 107), o “[...] enraizamento do mínimo existencial não
ocorre somente a partir da dignidade da pessoa humana, mas também de outros direitos, e de
maneira ponderada, nos princípios da cidadania, soberania e outros”. Ademais, o autor assevera
que

A CF traz em seu bojo diversos artigos que abrangem o princípio da dignidade da


pessoa humana: do art. 1º se projeta para o catálogo dos direitos fundamentais; do art.
5º o direito à vida; do art. 170 a existência digna, a qual envolve a ordem econômica;
o art. 226, § 7º o princípio da dignidade humana, na proteção da vida familiar, e art.
227 o direito à vida e à dignidade através da proteção à criança e ao adolescente
(RISSI, 2017, p. 107).

Sob tal ótica, registra-se que a dignidade compreende “[...] um valor espiritual e moral
inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais
pessoas [...]” (MORAES, 2014, p. 18). A dignidade do indivíduo é respeitada quando ele é “[...]
tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar
de igualdade com os seus semelhantes” (BRANCO, 2014, p. 278).
Conforme realça Sarlet (2012), todos são iguais em dignidade, reconhecidos como
pessoas e integrantes da comunidade humana. Assim, entende-se que, acima de tudo, a
dignidade dos refugiados ambientais deve ser respeitada, não sendo passível de sofrer qualquer
tipo de afronta, pois constitui direito fundamental a partir do qual decorrem outros direitos.
É relevante ainda trazer a lume que o Brasil, sob o manto dos preceitos constitucionais,
rege-se, em suas relações internacionais, pelo Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos
e – como antes referido – pelo repúdio ao terrorismo e ao racismo, além de prever a concessão
de asilo político, conforme está estampado no artigo 4°, incisos II, VIII e X, da Carta Magna de
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1988, que assim estabelece: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios: [...] II - prevalência dos direitos humanos; [...] VIII -
repúdio ao terrorismo e ao racismo; [...] X - concessão de asilo político. [...]” (BRASIL, 1988).
Em síntese, existe ampla legislação que pode ser suscitada quanto se trata de proteger
os refugiados ambientais, a qual abrange instrumentos gerais de Direitos Humanos. Mesmo
assim, Santos (2015) entende que prevalece a necessidade de uma proteção especial,
fundamentada no Princípio da Dignidade Humana, que, como reiterado diversas vezes ao longo
deste texto, constitui o principal fundamento para a proteção dessas pessoas em condição de
extrema vulnerabilidade, com todas as limitações que a situação impõe, devendo ser
consideradas e atendidas as suas necessidades em uma perspectiva de solidariedade e de
fraternidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nestes singelos apontamentos aqui apresentados, verifica-se que crescem as
preocupações em torno das mudanças climáticas e das consequentes catástrofes ambientais que
elas poderão causar. Ao redor do mundo, já são notórios os sinais de mudanças no clima, as
quais, em geral, são atribuídas ao efeito estufa, embora haja divergentes opiniões acerca do
tema. Independentemente desses dissensos, o fato é que os desastres ambientais têm feito parte
da realidade de muitas regiões, impulsionando os moradores dos locais atingidos a um
deslocamento que ora se dá dentro do próprio território em que viviam, ora impõe atravessar as
fronteiras do próprio país e ter de superar obstáculos, entre eles, a perda das raízes e do que elas
representam, bem como a hostilidade dos governantes e da própria população.
Essa situação traz uma acentuada vulnerabilidade a esses indivíduos, que, embora
tenham proteção garantida no que tange à sua dignidade, deparam-se com várias violações dos
seus direitos fundamentais, ou seja, além de lhes ser cerceado o direito à moradia, enfrentam
duras mazelas no que tange à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança, à integridade física,
à liberdade, entre tantos outros problemas.
Em termos mundiais, não são escassos os diplomas que podem ser invocados quando
se trata de proteger os refugiados ambientais, abarcando várias áreas do Direito. Nesse sentido,
salientam-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional dos
Refugiados, o Direito Internacional do Meio Ambiente, entre outros. Entretanto, nem sempre
esse quadro normativo é capaz de assegurar a eficácia do conjunto de direitos que compõem o
mínimo existencial, isso sem falar da situação em que os refugiados ficam à mercê da
P á g i n a | 74

assistência humanitária, como se esta fosse um favor e não existissem direitos garantidos a esses
indivíduos. Desse modo, além da dor, do sofrimento e da falta de expectativas decorrentes do
deslocamento compulsório e da situação de refúgio, tais pessoas nem sempre encontram
mecanismos aos quais possam se apegar para suscitar os seus direitos, estabelecendo-se um
quadro de indignidade e de falta de atendimento ao mínimo existencial.
Em face dessas constatações, resta evidente que um longo percurso ainda há de ser
trilhado em prol de garantir o mínimo existencial e todas as implicações que dele advêm aos
refugiados ambientais. Não basta, para isso, um conjunto de leis, também não são suficientes
discussões teóricas, mas urge, sim, uma preocupação mais engajada atinente ao efetivo amparo
de todas as pessoas refugiadas e vulneráveis, uma vez que é direito seu terem efetivadas as
garantias previstas nos mais diversos diplomas legais e que têm como bandeira, acima de tudo,
a proteção da dignidade da pessoa humana.

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P á g i n a | 80

ENVIRONMENTAL REFUGEES VULNERABILITY AND THE GUARANTEE TO


THE MINIMUM TO LIVE

ABSTRACT

Evidence of climate change and the resulting increase in environmental


catastrophes are notorious around the world, forcing a contingent of
people to have to seek refuge in other countries, because of the
impossibility of continuing to live in the place where they lived. The
victims, who, in general, are people who were already exposed to
various risks and, therefore, experiencing a situation of vulnerability,
start, as refugees, to face even more severe adversities, among them, the
violation of rights guaranteed to the human person. In view of this
context, this exploratory study, which uses the deductive method and is
supported by bibliographic research on doctrine and legislation,
addresses the need to guarantee the minimum in order to live to
environmental refugees, pointing out the legal protection that is
guaranteed to them and that must be respected. As a result, it was found
that environmental refugees, having to forcibly leave the places where
they lived and where they maintained their life, routine and ties, not
always receive the respect to the rights that support the preservation of
their dignity. Thus, although there is ample legislation protecting the
dignity to these people, such as Refugee Law and International Human
Rights Law, many guarantees need to be materialized with regard to
their effectiveness in order to mitigate the situation of vulnerability and
effectively ensure the minimum to live.

Keywords: Climate changes. Environmental Refugees. Minimum to


live. Human person dignity. Human rights.
P á g i n a | 81

A EMPRESA EM CRISE E A IMPORTÂNCIA DAS SOLUÇÕES DE MERCADO

Ednilza Amorim Jardim 1

RESUMO

A finalidade deste artigo é estudar da empresa em crise, explorar o


princípio da função social da empresa e em seguida analisar a solução
de mercado para crises, utiliza-se como exemplo o trespasse de
estabelecimento empresarial e a alienação de controle. Objetiva-se
demonstrar a importância das soluções de mercado com essa pesquisa.
Os métodos utilizados para a realização desse estudo foram o
exploratório e o descritivo, fundamentados em uma abordagem
qualitativa, apoiada por pesquisas bibliográficas e documentais. Como
resultado principal percebe-se que as soluções de mercado são um
importante meio de superação das crises empresariais, com esse
instrumento é possível contornar dificuldades econômicas, patrimoniais
e financeiras através de mecanismos naturais da ordem econômica. Em
conclusão, observa-se que ao utilizar-se prioritariamente de soluções de
mercado como instrumento de resposta para crises na empresa pode-se
evitar sobrecarregar do aparelho estatal; possibilitar o funcionamento
saudável das estruturas do mercado e da economia brasileira; e
resguardar a socialização do ônus da recuperação judicial apenas para
casos necessários e viáveis.

PALAVRAS-CHAVE: Empresa em crise. Soluções de mercado.


Função social. Trespasse. Alienação de Controle.

1 INTRODUÇÃO

A história do Direito Empresarial é marcada pela evolução do “sujeito” de direito. A


primeira fase do direito empresarial, chamada de sistema subjetivo, contava com normas que
se referiam àqueles que exerciam a atividade, os comerciantes, aos seus privilégios e a sua
falência. Porém, hoje em dia, com o sistema subjetivo moderno, o foco passou a ser a atividade
econômica, sua regulação, estimulo e preservação. Na modernidade conceitua-se o direito
empresarial como o direito das empresas.
Assim como o direito empresarial em sentido amplo, o direito falimentar ou concursal
– uma de suas ramificações – evoluiu, deixando de focar na liquidação da empresa para o

1
Discente do 5º Semestre Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail:
ednnilza@hotmail.com
P á g i n a | 82

pagamento de credores e passando a se ocupar da recuperação da empresa, sendo denominado


atualmente como Direito da empresa em crise.
Hoje em dia, com o desenvolvimento da atividade empresarial observa-se a criação de
empregos, estabelecimento de negócios jurídicos, estímulos à economia, desenvolvimento
tecnológico, geração de renda e demais impactos socioeconômicos. Os benefícios derivados da
continuidade da atividade empresarial fazem com que a empresa seja importante tanto para a
coletividade, quanto para os empresários e para terceiros envolvidos diretamente no
desenvolvimento da atividade, como os credores, os trabalhadores e os consumidores.
A importância da empresa correlaciona-se com sua função social, princípio
apresentado na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) em seu artigo 5°,
XXIII ao dizer que “a propriedade atenderá a sua função social”. Devido a sua função social, a
empresa não pode ser exercida apenas em benefícios dos sócios ou empresários, ela deve ser
exercida levando em conta também os interesses daqueles que se relacionam com ela – direta
ou indiretamente – como os investidores do mercado de valores; o Fisco; a comunidade em que
ela está inserida; e os stakeholders2, a título de exemplo os trabalhadores e os credores.
A partir do princípio da função social da empresa surgiu o princípio da conservação
da empresa, que tem em vista a continuidade da atividade empresarial devido a todos os
benefícios oriundos dela. A preservação da empresa baseia-se no pressuposto de que a atividade
é mais importante que os interesses dos sujeitos que articulam a organização da atividade.
Essas características positivas da empresa e seu grande destaque no desenvolvimento
socioeconômico nacional geram uma preocupação tanto do Estado quanto do mercado em zelar
para continuidade das atividades empresárias.
O Estado vê-se afetado ao passo que se beneficia do desenvolvimento gerado pelas
empresas, mas ao mesmo tempo é responsável por proteger os interesses de terceiros, evitando
descumprimento de obrigações e tutelando o crédito, além de cuidar dos interesses da
coletividade. O mercado por sua vez beneficia-se pelo crescimento e estimulo a economia e se
vê interessado e responsável pela monitoração das atividades econômicas desenvolvidas em seu
âmbito para que o próprio não seja prejudicado.
Devido ao interesse nutrido pelo estado e pelo mercado em estimular a continuidade
da atividade empresarial, ambos os entes possuem mecanismos para o combate de crises que
podem assolar a atividade econômica. Tais crises são comuns e podem derivar tanto de fatores
externos a atuação do empresário quanto de características intrínsecas a atuação do empresário.

2
“Partes interessadas” em português.
P á g i n a | 83

Uma crise no âmbito empresarial pode significar desde deteriorações das condições
econômicas de uma sociedade até uma completa incapacidade financeira de dar prosseguimento
a empresa, por isso possuir mecanismos para o combate de crises é do interesse daqueles que
tutelam e se beneficiam do desenvolvimento bem sucedido de empresas.
Esse trabalho é um estudo exploratório e descritivo que se fundamenta em uma
abordagem qualitativa, apoiada por pesquisas bibliográficas e documentais. Para o
desenvolvimento da pesquisa utilizou-se principalmente as obras de Frazzio Jr. (2010), Pimenta
(2017), Tomazette (2017), Coelho (2015) e Negrão (2020).
Essa pesquisa justifica-se em razão da importância da empresa para o desenvolvimento
socioeconômico nacional, nesse contexto, é necessária a busca por soluções adequadas e
eficientes para as crises que podem comprometer a atividade empresária. Então, visa-se
demonstrar a relevância e adequação das soluções de mercado como instrumento prioritário de
resposta às crises empresariais.
Sendo assim, o objetivo geral deste artigo é estudar as soluções de mercado como
método prioritário de superação das crises empresariais, para tal deve-se identificar os
principais tipos de crise no ambiente empresarial, explorar o princípio da função social da
empresa e sua conservação, distinguir os tipos de solução para as crises e analisar em específico
as soluções de mercado.

.
2 A EMPRESA EM CRISE

Entende-se como empresa a atividade econômica organizada para a produção ou a


circulação de bens ou serviços3. Além disso, observa-se que o lucro deve ser o fim perseguido,
de modo que uma empresa “saudável” e competitiva, em regra, não deve gerar prejuízos. No
entanto, nota-se que a empresa envolve essencialmente um risco econômico assumido pelo
empresário, que é contrabalançado pela ilimitada possibilidade de ganhos financeiros. Esse
risco econômico relaciona-se à possibilidade de insucesso na empreitada mercantil e ao
enfrentamento de dificuldades na manutenção “saudável” da companhia (PIMENTA, 2017).
Essas dificuldades podem culminar em variadas espécies de crise, que afetam de
diversas formas o exercício da atividade empresária. Tais crises podem derivar de fatores
estranhos ao exercício da atividade, alheios a atuação do empresário, ou de fatores internos,

3
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 04 de dez. 2020.
P á g i n a | 84

características específicas da atuação do empresário. (TOMAZETTE, 2017). A intensidade em


que as crises afetam a sociedade e seu desenvolvimento varia, podendo chegar a comprometer
agudamente a atividade econômica, ocasionando o fim da sociedade empresária. (FAZZIO JR.,
2010). Sobre as causas das crises empresariais:

Na maioria das vezes, as empresas já são portadoras congênitas das sementes das
moléstias de que padecerão, como se em seu código genético já estivessem inscritas
suas deficiências. A escolha do tipo societário inadequado, a estruturação
administrativa insuficiente, a estimação imprópria do capital social e a obsolescência
do objeto social eleito são alguns exemplos de vícios de origem. Em outros casos, os
males são adquiridos, advêm de causas exógenas, são supervenientes. É o caso das
restrições de crédito bancário, de prioridades adversas resultantes da política
econômica nacional, elevação da taxa de juros, crise de abastecimento etc. (FAZZIO
JR., 2010, p. 5).

Entre os fatores externos, também podem ser citados: crises políticas, má conservação
de estradas de acesso à localidade em que se situa o estabelecimento empresarial, catástrofes
climáticas ou ecológicas na região de produção ou de fornecimento de matéria à transformação
ou circulação da mercadoria, crises internacionais, guerras, revoluções e atos de terrorismo. Já
os fatores internos, podem ser visualizados em outras situações, como nos casos de má gestão
e de enfermidade do empresário ou de pessoa de sua família (NEGRÃO, 2020a).
Sobre as crises, Tomazette (2017, p.38, V. 3) infere que:

As crises sempre afetam os interesses do exercente da atividade, mas nem todas


afetam outros interesses (credores, fisco, trabalhadores, comunidade...). Aquelas que
afetam apenas os interesses do empresário não ensejam maiores preocupações do
ordenamento jurídico, uma vez que devem ser solucionadas internamente. De outro
lado, aquelas que podem afetar interesses de terceiros ensejam grande preocupação
do mercado e do aparato estatal.

Existem 5 (cinco) espécies principais de crises pelas quais uma empresa pode passar,
são elas: crise de rigidez, crise de eficiência, crise econômica, crise financeira e crise
patrimonial. (TOMAZETTE, 2017).
A crise de rigidez ocorre quando a atividade desenvolvida não se adapta ao mercado
consumidor e as evoluções dos produtos e serviços oferecidos. Ou seja, existe uma
inflexibilidade quanto a mudanças, o que pode acarretar na obsolescência4 dos produtos ou
serviços oferecidos pela sociedade. Em um primeiro momento a crise de rigidez atinge somente
os interesses do empresário, mas podem ocorrer desdobramentos preocupantes se não
solucionada (TOMAZETTE, 2017).

4
Ao falar-se em obsolescência, refere-se ao processo pelo qual um produto ou serviço torna-se desatualizado e
perde a utilidade devido ao surgimento de novas tecnologias ou métodos.
P á g i n a | 85

Já a crise de eficiência ocorre quando há um déficit no rendimento esperado, ou seja,


a empresa rende menos do que poderia render. Tal crise afeta precipuamente os interesses do
empresário, porém, também pode evoluir para crises mais graves dependendo do tamanho do
déficit e do planejamento realizado. (TOMAZETTE, 2017). Ademais, Tomazette (2017, p. 36,
V. 3) relata algumas causas da crise de eficiência:

Dentre as causas internas dessa crise está a escassa capacidade de inovação, a qual
impede a adequação da produção às expectativas dos clientes. Além disso, ela pode
advir de problemas nas relações com terceiros clientes, fornecedores, instituições de
crédito, o que pode atrapalhar o fluxo de entrada e saída de mercadorias.

Quando se trata de uma crise econômica, fala-se de uma “retração considerável nos
negócios desenvolvidos pela sociedade empresária” (COELHO, 2015, p. 241). Elas têm suas
origens em fatores internos e externos, que são capazes de alterar a capacidade de gerar lucro
da empresa e, portanto, podem inviabilizar a continuação dos negócios (NEGRÃO, 2020a).
A crise econômica se configura quando a atividade tem rendimentos menores que seus
custos, sendo assim, atuando no prejuízo. Em um primeiro momento essa crise só afeta os
interesses dos sócios e empresários, mas ela pode evoluir de tal maneira a afetar interesses de
terceiros, por tanto, o mercado e o estado se preocupam com seus desdobramentos e apresentam
soluções (TOMAZZETE, 2017).
Avançando para a crise financeira, “revela-se quando a sociedade empresária não tem
caixa para honrar seus compromissos” (COELHO, 2015, p. 241). Nota-se que nesse caso os
credores e terceiros que fazem parte de contratos empresarias tem seus interesses afetados, ao
passo em que a sociedade já não detém mais condições de efetuar pagamentos regulares e quitar
débitos. Essa é a crise mais ameaçadora para terceiros, portanto, atrai o interesse tanto do
Estado quando do mercado (TOMAZETTE, 2017).
Sobre empresas em crises financeiras e as possíveis causas dessa situação, Negrão
(2020a, p. 163, V. 3) leciona que:

Empresas economicamente saudáveis podem sofrer crises financeiras, algumas


momentâneas, outras não. A causa está na insuficiência de recursos financeiros para
o pagamento das obrigações assumidas e pode ser identificada em diversos fatores:
ausência de correta estimativa dos custos dos empréstimos tomados, no alto índice de
inadimplência de sua clientela ou em qualquer situação relativa à circulação e gestão
do dinheiro e de outros recursos líquidos.

Acerca das crises econômicas e financeiras, Fazzio Jr. (2010) pondera que as
diferenças entre elas são sutis e que em muitos casos essas crises manifestam-se em conjunto.
Destacando que há linhas de compreensão que não vislumbram diferenças entre as duas noções,
P á g i n a | 86

sendo possível compreender de maneira global apenas uma espécie: a crise econômico-
financeira, cujos efeitos na companhia seriam o descumprimento de seus encargos e a
dificuldade de manter seus pagamentos em dia.
Por sua vez, a crise patrimonial refere-se à insolvência da empresa, situação em que
os bens da empresa, seu patrimônio, não são suficientes para arcar com as dívidas do seu passivo
(COELHO, 2015). Ainda sobre a crise patrimonial, infere-se que ela pode ser apenas passageira
e decorrente de investimentos expressivos realizados pela sociedade, nesse sentido, observa-se
que:

Tal crise não é necessariamente perniciosa, na medida em que pode decorrer de


grandes investimentos realizados para expansão de um parque industrial, cujos
resultados podem ser mais que suficientes para restabelecer o equilíbrio patrimonial.
Apesar disso, tal crise pode gerar algumas preocupações, na medida em que pode
aumentar o risco de crédito (TOMAZETTE, 2017, p. 37-38, V. 3).

Como se destacou inicialmente, a atividade empresária possui o risco na sua essência,


estando sujeita aos diversos tipos de crises elencados a cima. No entanto, se uma empresa passa
por dificuldades, mas é economicamente e financeiramente viável, deve-se lutar pela sua
preservação. (LOBO, 1998). Por essa razão, é importante o estudo dos meios de solução para
tais crises.
Conclui-se, então, que entre as espécies de crise expostas as crises de rigidez e
eficiência não são tão preocupantes, porém podem desencadear situações mais críticas se não
forem solucionadas. Já as crises econômica, financeira e patrimonial são as que mais demandam
atenção, pois são mais graves, imediatas e atingem interesses de terceiros, por tanto, elas são os
alvos principais de soluções oferecidas tanto pelo mercado quanto pelo Estado. Na sequência,
a função social e o princípio da conservação da empresa serão estudados, pois a importância da
solução adequada das crises empresariais relaciona-se com esses conceitos.

3 FUNÇÃO SOCIAL E PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DA EMPRESA

A função social é um princípio de ordem econômica previsto no art. 170, III, da


CRFB/1988, tem função limitadora e é inerente a atividade empresarial. Essa diretriz
constitucional foi estabelecida com o objetivo de obrigar o legislativo e o judiciário à
implementar mecanismos jurídicos que permitam que as empresas possam exercer sua função
de produzir ou fazer circular bens e serviços de maneira economicamente eficiente, gerando o
bem estar social e o desenvolvimento da economia nacional. (PIMENTA, 2017).
P á g i n a | 87

Além disso, a função social da empresa impõe que a atividade empresária seja
exercida de modo a respeitar e não prejudicar os diversos interesses de terceiros e da
coletividade que estão organizados em torno da empresa. Por exemplo, notam-se os interesses
dos empregados, do Fisco e da comunidade. (PIMENTA, 2017).
A função social da empresa tutela o desenvolvimento social e nacional e, realiza a
existência da dignidade da pessoa humana e da justiça social. Ela relaciona-se diretamente com
a importância da empresa no âmbito coletivo, já que esse princípio estimula a geração de
empregos, circulação de riquezas, valorização do trabalho, redução de desigualdades sociais e
tutela do interesse de terceiros que não as partes do contrato ou ato institucional societário.
A atividade empresarial é importante, pois, não possui limites singulares, pelo
contrário, ela alcança uma ampla dimensão socioeconômica e possui grande repercussão social.
A empresa mostra-se como uma unidade econômica que interage no mercado, distribui bens e
serviços e gera empregos, consequentemente, o seu fim gera sequelas no mercado e na
coletividade. (FAZZIO JR., 2010).
Já o princípio da conservação da empresa, existe, pois, reconhece-se que é mais
benéfico para a coletividade que empresas viáveis continuem em funcionamento, ao passo que
a continuidade da atividade empresária mantém também os empregos gerados e a circulação de
riquezas. Nesse contexto, a empresa continua a desenvolver-se e a realizar a sua função social,
fato que estimula o desenvolvimento socioeconômico e protege os interesses da coletividade
(NEGRÃO, 2020b).
Ademais, o princípio da conservação da empresa determina que a continuidade da
atividade é mais importante que o destino do empresário ou da sociedade empresária e seus
sócios, já que “A separação entre a sorte da empresa e a de seus titulares apresenta-se, às vezes,
como o caminho mais proveitoso no sentido de uma solução justa” (FAZZIO JR., 2010, p. 21).
Sendo assim, pode-se inferir que a função social e a conservação da empresa são
princípios que dão destaque a relevância social da empresa, e essa relevância, não só social
como também econômica, demonstra a necessidade de soluções viáveis e eficazes – que visam
a recuperação da empresa – para superação de crises nesse âmbito. Findado esse tópico deve-
se prosseguir com a análise dos tipos de solução disponíveis para a empresa em crise.

4 SOLUÇÕES PARA AS CRISES

Como analisado anteriormente, as crises que afetam interesses de terceiros devem


possuir resposta imediata e eficaz, para que não haja um comprometimento da viabilidade de
P á g i n a | 88

continuação da empresa ou prejuízo a economia do país, à credores ou à outros afetados pelos


efeitos das crises.
Uma crise na empresa pode ser extremamente prejudicial, pois tem a potencialidade
de gerar prejuízos para partes além dos empreendedores e investidores que empregaram seu
capital no desenvolvimento da atividade. Crises fatais na empresa afetam outros agentes
econômicos. (COELHO, 2015).
Observa-se que com a “morte” de uma sociedade ocorre uma reação em cadeia de
encerramento de contratos e negócios jurídicos relativos à atividade desempenhada
anteriormente pela companhia. Com isso, os stakeholders, o mercado, a coletividade e o Fisco
sofrem impactos negativos. (FRAZZIO JR., 2010).
Os stakeholders são terceiros interessados na companhia, mas alheios à estrutura
organizacional desta, como os empregados e credores. (PIMENTA, 2017). Os interesses desses
terceiros são afetados negativamente com uma crise fatal na empresa, pois, observa-se que o
fim de uma companhia causa os seguintes efeitos: fornecedores perdem um cliente,
trabalhadores perdem seus empregos, credores tem piores perspectivas de obterem seus haveres
e o mercado sofre um impacto negativo com a falta de atividades no local que anteriormente
era ocupado por uma grande teia de relações jurídicas. (FAZZIO JR., 2010).
As soluções de mercado são as respostas naturais para o enfrentamento de crises, elas
dependem da atuação das forças de mercado e também da possibilidade econômica de
realização do investimento. Quando as soluções de mercado não são suficientes para a
superação do problema faz-se necessária a atuação do aparato estatal. Para superar tais crises o
ordenamento jurídico brasileiro possui duas soluções gerais, a recuperação judicial e a
recuperação extrajudicial (TOMAZETTE, 2017).
Nota-se que a preocupação com a função social da empresa nem sempre existiu, ela
foi resultado da evolução do pensamento jurídico. Historicamente, o direito concursal apenas
amparava os credores e garantia os interesses estatais, foi necessário anos de evolução pra que
ele deixasse de ser um mero complexo regulador de relações privadas. Hoje em dia, o direito
da empresa em crise se preocupa com o interesse público e as repercussões sociais. (FAZZIO
JR., 2010). Percebe-se que existiu uma Nova filosofia do Direito Concursal, ela pretendia:

[...] garantir não apenas (a) os direitos e interesses do devedor e (b) os direitos e
interesses dos credores, mas também, quiçá sobretudo, (c) os superiores direitos e
interesses da empresa, dos seus empregados e da comunidade em que ela atua, pois as
dificuldades econômicas, financeira, técnicas, tecnológicas e gerenciais da empresa
não preocupam somente ao devedor e a seus credores, porém por igual ao Poder
Público e à coletividade, sendo certo que , além e acima do interesse privado de
composição dos conflitos entre devedor e seus credores, há o interesse público e social
P á g i n a | 89

da preservação, reorganização, saneamento e desenvolvimento da empresa [...]


(LOBO, 1998, p. 156-157).

Antes da Lei n. 11.101/2005, lei de Falência e Recuperação de Empresas (LFR), havia


poucos estímulos no ordenamento jurídico brasileiro para a superação da crise com a finalidade
de manter em funcionamento a atividade econômica. O objetivo principal se encontrava na
tutela do crédito, visando sempre a quitação de dívidas e desconsiderando o valor da empresa
em funcionamento. Porém com o advento da LRF o conceito de recuperação judicial foi
inserido no ordenamento jurídico. Sobre a obsolescência da antiga legislação e as inovações da
LRF, Sanchez e Gialluca (2012, p. 49) observam que:

Desnecessário dizer que o contexto econômico, empresarial e social atual reclamava


mecanismos capazes de dar maior flexibilização de satisfação dos créditos ao devedor
que se encontrasse com dificuldade de honrar seus pagamentos, sem, contudo,
comprometer o prosseguimento da atividade empresarial. Como forma de suprir a
necessidade do empresário ou da sociedade empresária, com sérios problemas
financeiros, de negociar livremente o pagamento dos seus créditos com seus credores,
o legislador introduziu no direito brasileiro a recuperação judicial.

A finalidade da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial relatada pela LFR


é viabilizar a superação de situação de crise econômico-financeira do devedor, de modo que
seja possível haver uma continuidade da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos
credores, ou seja, promove-se a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à
atividade econômica5.
A recuperação judicial consiste em “[...] uma permissão legal que concede ao devedor
empresário ou sociedade empresária a possibilidade de negociar diretamente com todos os seus
credores ou tão somente com parte destes [...]” (SANCHEZ; GIALLUCA, 2012, p. 50). Essa
recuperação protege os direitos de credores, garante o controle do poder judiciário e tem como
finalidade a recuperação e preservação da empresa viável com a reorganização de seu passivo
(SANCHEZ; GIALLUCA, 2012).
A LRF possui uma lista exemplificativa dos meios de recuperação da atividade
econômica, estando presentes instrumentos financeiros, administrativos e jurídicos que podem
ser utilizados para a superação de crises. Algumas das opções apresentadas no artigo 50 da LRF
são: a dilação de prazos ou das condições de pagamento; a reestruturação da administração,
com substituição dos administradores ou redefinição de órgãos; a concessão de direitos

5
BRASIL. Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 04 de dez. 2020.
P á g i n a | 90

societários extrapatrimoniais aos credores, como o direito de veto (Golden shares) e a


renegociação das obrigações ou do passivo trabalhista6.
Já a recuperação extrajudicial, pode ser entendida como um procedimento que ocorre
em grande parte antes da homologação em juízo, portanto, há uma menor intervenção do Poder
Judiciário. (NEGRÃO, 2020).
Ademais, a recuperação extrajudicial não possui regulamentação legal tão detalhada,
concedendo maior liberdade para que o empresário e seus credores possam negociar termos que
sejam aceitos pela totalidade ou pela maioria dos interessados, de modo que a atuação do
Judiciário não é essencial e somente é solicitada com propósitos homologatórios
(TOMAZETTE, 2017).
Na LRF existem duas hipóteses de homologação em juízo do plano de recuperação
extrajudicial apresentado pelos interessados, sendo a primeira a homologação facultativa e a
segunda a homologação obrigatória7.
A homologação facultativa ocorre quando o plano de recuperação extrajudicial conta
com a adesão da totalidade dos credores atingidos pelas medidas previstas no plano. Sendo uma
homologação facultativa devido ao fato do plano já possuir força vinculante, já que todas as
partes se comprometeram com livre manifestação de vontade e então todas as partes se
encontram obrigadas nos termos do plano (COELHO, 2015).
Então, os motivos que justificam a homologação extrajudicial facultativa se limitam a
vontade de revestir o ato de maior solenidade, visando alertar as partes da importância do plano
ou abrir margem para a possibilidade de alienação por hasta judicial de filiais ou unidades
produtivas isoladas, quando prevista a medida na LRF (COELHO, 2015).
A homologação obrigatória ocorre na hipótese em que o devedor conta com a adesão
da maioria dos seus credores no plano de recuperação extrajudicial, porém existe uma minoria
de credores que resistem à adesão ao plano de recuperação. Essa maioria é compreendida como
pelo menos 3/5 de todos os créditos de cada espécie (dos créditos com garantia real, dos créditos
quirografários etc.) abrangida pelo plano de recuperação Nesse caso, quando o poder judiciário
homologa o plano, ele se torna obrigatório também para os credores que resistiram à adesão,
suprindo a necessidade de adesão voluntária. (COELHO, 2015).
Então, observa-se que existem soluções que demandam a movimentação da máquina
estatal para a recuperação da empresa e existem as soluções de mercado, que são o meio natural

6
Ibid
7
Ibid
P á g i n a | 91

de contornar uma crise empresarial. No próximo tópico será abordada a relevância da utilização
preferencial das soluções de mercado.

5 RELEVÂNCIA DAS SOLUÇÕES DE MERCADO

Como foi relatado anteriormente, “A solução de mercado é a forma natural de


superação das crises, mas depende da atuação das forças do mercado e também da possibilidade
econômica de realização dos investimentos” (TOMAZETTE, 2018, p. 39). Trata-se da forma
natural, pois é no mercado que a empresa nasce, sobrevive e cresce. (PIMENTA, 2017).
Esse tipo de solução ocorre quando outros investidores ou empreendedores, que
identificaram na empresa em crise uma oportunidade de lucro, se encontram interessados em
prover os recursos e adotar as medidas de administração necessárias para uma recuperação do
estado inicial de crise (COELHO, 2015).
Por exemplo, o interessado no investimento pode propor aos controladores da empresa
em crise negócios como a alienação do controle, a incorporação da sociedade, a assunção de
ativos, ou até mesmo o seu ingresso na sociedade, deste modo, se ambos considerarem a
transação vantajosa, a empresa pode recapitalizar-se e reorganizar-se, continuando a operar no
mercado e possivelmente crescer (COELHO, 2015).
Um dos grandes benefícios da solução de mercado é o fato de que não é necessária a
intervenção do poder judiciário, que seria justificável apenas se a solução de mercado não pode
ser concretizada em razão de disfunções no sistema econômico. Na hipótese de recuperação
judicial ou extrajudicial observa-se que a reorganização da atividade econômica é custosa e esse
custo, em regra, é suportado pela sociedade brasileira (COELHO, 2015).
Se a empresa não encontrou solução para sua crise no mercado, o custo da recuperação
será experimentado pelos agentes econômicos que ficam obrigados a investir em um negócio
em crise ou a sofrer perdas parciais ou totais de crédito. Nesse contexto, os agentes repassam
aos preços de seus produtos e serviços às taxas de riscos associadas à recuperação judicial ou
extrajudicial do devedor, de modo que o ônus da recuperação recai sobre a sociedade brasileira.
(COELHO, 2015). Exemplificando: “O crédito bancário e os produtos e serviços oferecidos e
consumidos ficam mais caros porque parte dos juros e preços se destina a socializar os efeitos
da recuperação das empresas.” (COELHO, 2015, p. 396)
Devido ao fato de haver uma socialização do ônus da recuperação judicial, é
importante que apenas sejam sujeitas a recuperações com intervenção estatal as empresas que
P á g i n a | 92

sejam viáveis econômica e financeiramente e/ou importantes social, politica ou


estrategicamente (LOBO, 1998). Empresas com tais características despertam a atenção e
interesse de novos sujeitos dispostos a assumir o risco do empreendimento, então, é natural que
elas sejam negociadas no próprio mercado.
Nesse contexto, destaca-se, que isso ocorre quando as estruturas do livre mercado estão
funcionando de modo adequado, porém, caso essas estruturas não funcionam
convenientemente, a solução de mercado não ocorre. Um exemplo dessa disfunção é o valor
idiossincrático da empresa, essa situação ocorrer quando o valor da empresa é o atribuído pelo
dono/controlador da sociedade de maneira subjetiva e exagerada. Nessa situação, existe
interesse de outros sujeitos em recapitalizar e reorganizar a sociedade, porém a solução de
mercado não ocorre porque o seu titular quer um preço que ninguém percebe vantagem em
pagar (COELHO, 2015).
Com o estudo realizado, percebe-se que teoricamente seria interessante a utilização de
soluções de mercado em detrimento de soluções judiciais ou extrajudiciais. Sendo assim, a
seguir serão analisadas as especificidades de dois negócios jurídicos que se apresentam como
solução de mercado para crises da empresa. Serão analisados o trespasse de estabelecimentos
empresariais e a aquisição de controle.

6 EXEMPLOS DE SOLUÇÕES DE MERCADO

6.1 Trespasse de Estabelecimentos Empresariais

Trespasse é um termo doutrinário para o negócio jurídico oneroso que ocorre quando
há transferência, alienação ou cessão de estabelecimento mercantil (NEGRÃO, 2020c). Para a
compreensão do trespasse é necessário, a priori, relatar que o estabelecimento empresarial é
um complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
empresária8.
Sabe-se que para exercer a empresa o empresário precisa de diversos bens e eles podem
ser tanto móveis quanto imóveis e também materiais e imateriais, e, é esse conjunto de bens
necessários para o exercício da empresa que forma o estabelecimento. A doutrina majoritária
considera que o estabelecimento empresarial é um bem móvel, porém, ele pode ser formado
também por bens imóveis (NEGRÃO, 2020c).

8
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 04 de dez. 2020.
P á g i n a | 93

Por ser possível que haja um tratamento unitário para o conjunto de bens que forma o
estabelecimento, também é possível que o conjunto seja objeto de negócios jurídicos, desde que
estes sejam compatíveis com sua natureza (TOMAZETTE, 2018).
Embora o estabelecimento empresarial não compreenda as relações obrigacionais do
seu titular, o legislador preocupou-se com os efeitos obrigacionais decorrentes das negociações
que envolvam o estabelecimento e regulou essa questão em relação ao trespasse no Código
Civil (CRUZ, 2019).
Ao falar-se especificamente do trespasse, entende-se que a transferência, alienação ou
cessão de estabelecimento mercantil inclui todo o conjunto bens que o forma, salvo se os
contratantes estipularem de forma diversa no contrato de trespasse (NEGRÃO, 2020c). Nesse
negócio jurídico, o estabelecimento empresarial – que não pode ser confundido com a figura da
sociedade empresária ou da atividade exercida – deixa de integrar o patrimônio do alienante e
passa para o patrimônio do adquirente. (COELHO, 2012).
O legislador, tutelando os interesses de pessoas estranhas ao negócio, estabeleceu que
para que a transferência do estabelecimento tenha eficácia perante terceiros é necessário que o
contrato de trespasse seja registrado na Junta Comercial e que após disso ocorra sua publicação
na imprensa oficial (CRUZ, 2019).
Já que com o trespasse há uma alteração do titular do estabelecimento, há também um
grande interesse por parte dos credores na execução desse negócio, pois boa parte do patrimônio
do devedor pode estar sendo transferido para outra pessoa. (TOMAZETTE, 2018). Percebe-se
que o estabelecimento é garantia de credores, devido ao fato de faz parte do patrimônio do
empresário. (COLEHO, 2012).
Cabe ainda um destaque à seguinte previsão legal: na hipótese do alienante não possuir
bens suficientes para solver seu passivo após o trespasse este só será eficaz se houver o
pagamento de todos os credores ou o consentimento destes9. O propósito dessa previsão legal
também é salvaguardar o direito de terceiros (NEGRÃO, 2020c).
Destaca-se que os contratos de trespasse e de alienação de controle (que serão
explorados no próximo tópico) guardam certas similaridades quanto aos efeitos econômicos
gerados, já que eles são meios de transferência da empresa, porém eles são institutos jurídicos
distintos (COELHO, 2012).
O trespasse funciona como solução de mercado para as crises empresariais na medida
em que as causas destas podem ser combatidas com os efeitos desse negócio jurídico. Nota-se

9
Ibid
P á g i n a | 94

que com a transferência do estabelecimento é possível preservar a atividade, caso a fonte das
dificuldades sejam questões como uma má administração dos recursos disponíveis, conflito de
interesses internos, baixa capacidade de inovação dos diretores ou problemas pessoais de
sócios.
Por exemplo, na crise patrimonial, a queda das vendas pode acarretar falta de liquidez
e, consequentemente, levar a insolvência. (COELHO, 2015). A queda das vendas pode ser
causada por uma falta de competitividade do produto, resultado da má gerência e falta de
inovação ou de uma abordagem de marketing ineficiente.
Quando os meios de produção são transferidos para novos empreendedores, é possível
observa-se que persiste a geração de empregos e ocorre a possibilidade de inovação e mudanças
nos rumos da sociedade. Nesse caso, o adquirente de um estabelecimento comercial pode
escolher exercer a atividade de modo a investir em novas tecnologias, reformar prédios e locais
de atendimento aos consumidores e adotar estratégias de marketing eficientes para o público
alvo. E esse cenário possibilitaria o enfrentamento de crises como as patrimoniais citadas no
parágrafo anterior.
Então, é possível inferir que o trespasse de estabelecimento apresenta-se como solução
para crises, pois o adquirente do estabelecimento, que percebeu na empresa em crise uma opção
viável de investimento, é capaz de realizar novos investimentos na atividade e pode ter novos
métodos de administração e condução da empresa. Então, o trespasse possibilita a manutenção
da atividade empresária e a continuidade da sua função social. Observa-se, também, que com a
execução correta desse negócio jurídico, há a possibilita do pagamento dos credores do
alienante.
Nessas condições, o trespasse reequilibra as forças da ordem econômica e preserva a
empresa e sua função social, mostrando-se uma solução viável para crises empresariais. Em
seguida será analisado o negócio de alienação de controle, que apesar de gerar resultados
semelhantes é operado de forma distinta e específica.

6.2 Alienação de Controle

A alienação de controle é descrita pela Lei 6.404 de 1976, Lei das sociedades por
ações, como a operação de transferência de ações, outros valores mobiliários ou direitos sobre
P á g i n a | 95

ações/valores mobiliários que resulte na transferência do poder de controle da sociedade10. Esse


é um tipo de negociação relativo às Sociedades Anônimas11 (SA).
A diferenciação entre SA aberta e SA fechada é relevante nesse contexto, pois as
normas que regem a alienação de controle divergem de acordo com o tipo de SA. A principal
diferença entre esses dois tipos é o ambiente de negociação dos títulos emitidos pelas
sociedades. As companhias abertas têm a capacidade de negociar valores mobiliários12 no
Mercado de Valores Mobiliários (MVM), pois possuem o registro especial na Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), já as sociedades fechadas, não possuem o registro e nem negociam
valores mobiliários no MVM. (BORBA, 2012).
Para que se entenda com mais clareza a alienação de controle, deve-se também
compreender o que é o poder de controle na sociedade anônima, que é a faculdade de dominação
e de disposição de uma empresa, é a capacidade de determinar os rumos de uma sociedade.
(COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2008).
Sobre esse conceito, Pimenta (2017, p. 274) diz que: “A palavra controle, em direito
societário, encontra-se estreitamente ligada à dominação, à imposição da vontade própria a
outrem. [...] Quem controla uma sociedade impõe sua vontade aos atos deste ente jurídico.”.
Ademais, Comparato e Salomão Filho (2008) asseveram que o poder de controle na
sociedade anônima está diretamente ligado ao poder de determinar as deliberações da
assembleia geral. Ou seja, relaciona-se com a capacidade e legitimidade de tomar decisões e
comandar uma companhia.
Esse poder de controle da sociedade anônima pode ser dividido em controle interno e
externo. Observa-se que o primeiro está relacionado com o poder que exercido por sujeitos no
interior da própria sociedade, que atuam definindo os rumos da atividade. É o caso dos titulares
de direitos próprios de acionistas e dos administradores. (COMPARATO; SALOMÃO FILHO,
2008).
O controle externo, por outro lado, é entendido como aquele proveniente de formas de
controle externas à sociedade empresária. Essas influências externas devem possuir o poder de
alterar significativamente os rumos da sociedade. Para exemplificar, podem ser observados os

10
BRASIL. Lei n. 6.404 de 15 de dezembro de 1976. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404compilada.htm. Acesso em: 04 de dezembro de 2020.
11
As sociedades Anônimas são tipos societários com as seguintes características básicas: são sociedades de
capitais; são sempre empresárias, independente do objeto; o capital social é dividido em ações; e a responsabilidade
dos acionistas é limitada ao preço de emissão das ações subscritas. (BORBA, 2012).
12
Segundo o art. 2º da Lei n. 6.385/76, os valores mobiliários são títulos ou contratos de investimento coletivo,
anunciados publicamente, que geram direito de participação, de parceria ou de remuneração, são exemplos: as
ações e debêntures.
P á g i n a | 96

contratos como os de franquia, que são firmados entre a sociedade e terceiros e possuem
capacidade de reduzir significativamente o âmbito de atuação da companhia. (BERTOLDI,
2003/2004).
Quando se fala em alienação de controle na SA fechada, a forma é livre, deve-se apenas
seguir as regras comuns de transferência de ações caso não existam cláusulas especiais no
estatuto social. Porém, quando se fala de SA aberta, a alienação de controle é submetida a regras
específicas, algumas delas presentes na Lei 6.404/1976 e outras em normas da CVM
(MAMEDE, 2018).
Nota-se que companhias abertas se sujeitam a normas mais rígidas, a constante
fiscalização da CVM e a publicidade mais acentuada (BORBA, 2012). Isso ocorre devido a
fatores como a grande envergadura econômica desses tipos societários e aos diversos interesses
públicos e privados relacionados aos mesmos.
Ademais, a alienação de controle em sociedades abertas provoca um grande impacto
no Mercado de Valores Mobiliários (MAMEDE, 2018). Destaca-se também que esse negócio
jurídico afeta interesses internos e externos à sociedade. Os primeiros podem ser divididos em
dois: os interesses dos acionistas e os dos trabalhadores da companhia, que se beneficiam do
funcionamento “saudável” da atividade. Já quanto aos interesses externos, nota-se que há um
interesse público geral na manutenção de um livre mercado de aquisição de companhias.
(SALOMÃO FILHO, 2019).
Portanto, percebe-se que a alienação de controle é uma solução de mercado.
Exemplificando, ao falar-se em sociedade abertas, é notório que a imagem da companhia e dos
seus controladores afeta o volume de negócios. Por exemplo, a imagem pública negativa de um
controlador poder influenciar o modo como a sociedade controlada é percebida. Então, a
imagem de confiabilidade e estabilidade que a sociedade empresária deveria apresentar no
MVM pode ser comprometida. Nessas situações, a alienação do controle pode possibilitar que
o público volte a confiar na sociedade e nas suas possibilidades de lucro, de maneira que a
companhia volte a ser alvo de investimentos e possa utilizar o capital aplicado pelo público para
superar dificuldades.
Como foi apontado no tópico 2 (dois), a crise financeira configura-se com a falta de
caixa para suprir as obrigações assumidas (COELHO, 2015), então, a entrada de investimentos
advindos do MVM devido à mudança do controlador da sociedade mostra-se uma maneira
viável de aumentar o caixa disponível para o cumprimento das obrigações assumidas.
Sendo assim, a alienação de controle pode ser vista como instrumento adequado para
superação de crises e preservação da empresa e da sua função social. A pesquisa aponta que
P á g i n a | 97

problemas que podem ocorrer na SA, como a falta de confiança do público, podem ser
contornados de maneira eficiente e viável com a utilização dessa solução de mercado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito desse estudo é analisar as crises empresariais, estudar as soluções de
mercado e apontar seus benefícios para a continuidade da empresa e proteção da sua função
social.
A realização do estudo permitiu concluir que as soluções de mercado são um
importante meio de superação das crises empresariais, elas possibilitam o contorno de
dificuldades econômicas, patrimoniais e financeiras através de mecanismos naturais da ordem
econômica. Desse modo, preserva-se a empresa e possibilita-se sua continuação de maneira
“saudável” e benéfica para a coletividade.
Destaca-se que o trabalho não nega a importância da recuperação judicial e
extrajudicial de empresas. Esses instrumentos são resultado de uma importante evolução do
direito e são necessários no contexto do princípio da conservação da empresa e da sua função
social.
No entanto, observa-se que a intervenção estatal deve ser utilizada em última instância,
quando tratar-se de empresas viáveis e relevantes social e economicamente que não
encontraram solução no mercado para suas crises.
Dessa forma, pode-se evitar sobrecarregar do aparelho estatal; possibilitar o
funcionamento saudável das estruturas do mercado e da economia brasileira e resguardar a
socialização do ônus da recuperação judicial apenas para casos necessários e viáveis.
Sendo assim, a pesquisa alcançou o objetivo proposto e confirmou a hipótese de
trabalho, que as soluções de mercado são um instrumento ideal para solução adequada de crises
empresariais.

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P á g i n a | 100

THE ENTERPRISE IN CRISIS AND THE IMPORTANCE OF MARKET SOLUTIONS

ABSTRACT

This paper aims to study the enterprise in crisis, explore the principle
of social function and analyze Market solutions for the crisis. This
research also aimed to demonstrate the importance of market solutions.
For the realization of this study, the exploratory and descriptive
methods were used, based on a qualitative approach, and supported by
bibliographical and documentary researches. As a main result, it was
noticed that Market solutions are an important way of overcoming a
crisis in the enterprise. In conclusion, it was observed that the use of
Market solutions as an instrument to respond to business crisis can be
linked to avoiding the overload on the judiciary system; enabling the
healthy functioning of Market structures and Brazil's economy; and the
possibility of avoiding the social onus of paying for a judicial recovery.

Keywords: Enterprise in crisis. Market solutions. Social function.


Alienation of the business enterprise. Control alienation.
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A ECONOMIA DE COMPARTILHAMENTO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE A


REGULAMENTAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE ENTREGA POR APLICATIVOS

Gabriel Vitor Medeiros Maia1


Lucas Patrícius de Medeiros Leite2

RESUMO

A economia de compartilhamento é um mercado baseado em serviços


sob demanda que, no Brasil, passou a ser responsável pelo
desenvolvimento de novas formas de organização do trabalho,
intermediadas por plataformas virtuais, bem como pela ascensão da
categoria de profissionais de entrega por aplicativos. Todavia, essa
categoria, atualmente, encontra-se prejudicada pela intensa insegurança
jurídica, haja vista a dissonância das decisões judiciais relacionadas ao
reconhecimento do vínculo empregatício estabelecido pela
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Dessa forma, o presente
trabalho tem o escopo de investigar a possível necessidade de
regulamentação dos profissionais de entrega no ordenamento jurídico
pátrio. A partir da análise de documentos legislativos (Projetos de Lei)
e da bibliografia pertinente ao tema, serão feitas considerações sobre a
vulnerabilidade jurídica em que se encontram os entregadores e do
posicionamento dos tribunais acerca do vínculo empregatício de tais
profissionais. Por fim, conclui-se que é necessária a regulamentação
própria dos profissionais de entrega por aplicativo, a fim de assegurar
os direitos dos trabalhistas dos entregadores e sanar o vácuo jurídico
vigente.

Palavras-chave: Profissionais de entrega. Aplicativos de serviços.


Consolidação das Leis do Trabalho. Projetos de Lei. Regulamentação.

1 INTRODUÇÃO

Com o advento da internet e da disseminação de computadores e smartphones, as


relações de consumo passaram a se modificar no decorrer do tempo e significativas alterações
passaram a acontecer no ambiente produtivo, especialmente em relação às empresas que
optaram por empreender esforços para trazer mais comodidade aos seus clientes com o uso de
novas tecnologias. Os aplicativos de serviços surgem, nesse contexto, com o fito de
proporcionar mais praticidade, dispondo de deliveries para que produtos cheguem ao
consumidor de forma rápida e segura, e com isso, uma nova categoria de profissionais passou
a se estabelecer no mercado: os profissionais de entrega.

1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Semi-Árido. E-mail:
gabriel.maia@outlook.com.br
2
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Semi-Árido. E-mail:
lucaspatricius@gmail.com
P á g i n a | 102

Essa nova categoria de profissionais, no entanto, passou a ser eximida de muitos dos
seus direitos principalmente pelo fato de não existirem dispositivos legais que regulem tais
atividades. Somando-se a isso, os atuais meios pelos quais as empresas de serviço por aplicativo
oferecem essas inovações são, por vezes, fatores determinantes para a crescente insalubridade
e precarização das atividades laborais de muitos trabalhadores que atuam como profissionais de
entrega, pois, além de não existir vínculo empregatício nesses casos, os riscos e os custos das
atividades ficam a cargo exclusivo do trabalhador. As plataformas, nesse sentido, estabelecem
baixas taxas de remuneração e não gerem os aplicativos atentos à necessidade de se garantir a
segurança e a proteção dos entregadores, o que aumenta de forma direta a precarização das
atividades desses profissionais. Diante do intenso desenvolvimento tecnológico aplicado às
relações trabalhistas, o Direito parece não ter se adaptado ao novo cenário, e com isso, a
insegurança jurídica passou a imperar e tornar obscuro o futuro de muitos trabalhadores.
A relação entre profissionais de entrega e os aplicativos de serviços é o principal objeto
de estudo na presente análise, especialmente no que tange ao reconhecimento do vínculo
empregatício. Diante desse impasse, muito entregadores tem acionado a Justiça do Trabalho
para tentar conseguir um possível vínculo de emprego com esses aplicativos no intuito de
adquirir direitos expressos na Constituição Federal e na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT). Dessa maneira, a pesquisa parte do questionamento relativo à necessidade ou não de
uma regulamentação própria dos profissionais de entrega e quais são os posicionamentos
adotados pela Justiça do Trabalho e pelo Congresso Nacional sobre a questão. Ademais, o
objetivo deste artigo é, além de apontar quais direitos devem ser assegurados aos profissionais
de entrega, demonstrar a vulnerabilidade da categoria dentro do arcabouço jurídico brasileiro.
Para tanto, a investigação ora empreendida foi feita a partir de uma metodologia de
pesquisa bibliográfica e documental, sustentada na análise de estudos recentes, bem como, dos
posicionamentos da doutrina e da redação de Projetos de Lei em tramitação no Congresso
Nacional. Ademais, foi realizada uma análise de decisões da Justiça do Trabalho, pretendendo-
se compreender as fundamentações utilizadas. Nesse sentido, o estudo está estruturado em três
etapas, abordando-se, na primeira, a categoria dos profissionais de entrega e o processo de
“uberização”. Na segunda, será discutido, brevemente, sobre o reconhecimento do vínculo
empregatício e o posicionamento dos tribunais sobre a relação entre os profissionais de entrega
e aplicativos de serviços. E, por fim, será demonstrado se há ou não a necessidade de
regulamentação específica para essa categoria de profissionais e a atuação do Poder Legislativo
sobre a questão.
P á g i n a | 103

2 PROFISSIONAIS DE ENTREGA POR APLICATIVO: O SURGIMENTO DE UMA


CATEGORIA E O PROCESSO DE “UBERIZAÇÃO”

Em diversos países, os primeiros anos do século XXI foram marcados pela forte
tendência de expansão de novos contingentes de trabalhadores, principalmente no setor de
serviços, indústria e agroindústria. Em contraste com a tese amplamente disseminada na década
de 1980, que diz respeito à retração da classe trabalhadora por força da estrutura informacional-
digital, que substituiria a mão de obra humana por maquinários, o que se presencia atualmente
é o advento do novo proletariado da era digital, cujos trabalhos são impulsionados pelas
tecnologias da informação (TICs), introduzindo uma nova divisão internacional do trabalho
inclinada à precarização e informalidade (ANTUNES, 2018).
A partir da década de 1970, a indústria passou, de modo gradativo, a incorporar a
utilização de elementos da microeletrônica e das conexões em rede ao sistema produtivo, e com
isso, importantes alterações ocorreram na composição orgânica do capital de muitas empresas.
A crescente inviabilização da força de trabalho empregada e o simultâneo investimento em
tecnologias e maquinários passaram a ser uma realidade, resultando em ganhos decorrentes das
inovações tecnológicas, mas também no rebaixamento dos custos vinculados ao trabalho
humano, além de estimular processos de enfraquecimento de legislações trabalhistas e o
aumento das terceirizações. O crescente uso de computadores e internet ensejou, ainda, a
construção de um ambiente de plataformas digitais em que as organizações produtivas passaram
a idealizar um ambiente competitivo voltado para um grande contingente populacional, dando
forma a um meio que liga prestadores de serviços a consumidores (FRANCO; FERRAZ, 2019).
Seja por motivação lógica de dar utilidade às coisas, ou mesmo pela atratividade das
novas tecnologias, o atual pacto do denominado “ubercapitalismo” consegue cada vez mais
estabilidade na sociedade a partir de um apelo aos desejos dos trabalhadores por melhores
condições laborais. A materialização desse quadro é a chamada economia de compartilhamento
(sharing economy), também conhecida como “economia de biscates”, que, na prática, é uma
economia baseada em serviços sob demanda que foi iniciada para monetizar serviços que antes
eram privados, e o Brasil é um dos grandes referenciais dessa economia no ocidente. Nesse
ponto, a análise da situação deve ser prontamente voltada para a discussão sobre novos meios
que potencializam a exploração online, pois apesar de que esse capitalismo de plataforma
indique, mesmo aparentemente, uma série de benefícios aos consumidores, proprietários e
investidores, o valor agregado para os trabalhadores vulneráveis é incerto (ABRAMOVAY,
2017; SCHOLZ, 2016).
P á g i n a | 104

No Brasil, de acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, os aplicativos de serviços,


tais como Uber, Ifood e Rappi, se tornaram, em 2019, o maior “empregador” do país, sendo
fonte de renda para quase 4 milhões de trabalhadores que utilizavam tais plataformas para atuar
como entregadores ou na função de motorista. Essa parcela significativa de brasileiros
representa 17% dos 23,8 milhões de trabalhadores na condição de autônomo, conforme dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE).
Dada a natureza desses aplicativos, chamam atenção, paralelamente, os indicativos de
que o uso de aparelhos celulares não para de crescer no país: entre 2017 e 2018, o percentual
de pessoas com idade superior a 10 anos que tinham telefone móvel para uso pessoal subiu de
78,2% para 79,3%, chegando a 82,9% nas zonas urbanas e a 57,3% nas áreas rurais. O
equipamento também foi o mais utilizado para acessar a internet, encontrado em 99,2% dos
domicílios que contavam com o serviço. Os dados são do Pnad Contínua TIC 2018, também do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Diante desse cenário, as empresas-aplicativo consolidam-se no mercado assumindo
um papel de mediadores entre consumidores e trabalhadores, oferecendo-lhes a estrutura
necessária, ainda que virtual, e cobrando por isso. Imerso nesse contexto, a “uberização” do
trabalho, também conhecido como crowdsourcing, é um termo constantemente utilizado para
representar um novo estágio da exploração de trabalho, responsável por retirar uma série de
garantias mínimas, na medida em que fomenta a subordinação dos profissionais. Nessa linha
de raciocínio, a nova geração de trabalhadores just-in-time é abarcada pela denominação Gig-
Economy, termo este referente ao mercado de serviços que muito embora sejam remunerados,
não têm uma forma de trabalho estável, e por isso necessitam do engajamento entre
trabalhadores e usuários, com definição e gerenciamento de estratégias próprias (ABÍLIO,
2020).
A concepção de economia compartilhada é um conceito geralmente vinculado à
divisão de bens de consumo, redução do consumo e menor impacto ambiental. Entretanto,
muitas empresas usam dessa essência para mascarar negócios tradicionalmente capitalistas,
fomentando a desvalorização e esvaziamento do conceito de economia compartilhada,
especialmente quando esse artifício é utilizado por agentes que contribuem para a precarização
das relações profissionais (KRAMER, 2017).
Nessa esteira, em 2020, conforme pesquisa feita por Abílio et al. (2020), os
entregadores de plataformas digitais estão perdendo remuneração durante a pandemia do
Coronavírus (Covid-19). Segundo esse estudo, 59,8% dos entregadores entrevistados relatou
P á g i n a | 105

uma diminuição em sua remuneração, comparando o atual momento de pandemia com o


período anterior; ao passo em que 29,6% afirmou que sua remuneração se manteve; e apenas
10% que tiveram seu salário majorado (1,5% não respondeu à questão). Em relação às medidas
de proteção voltadas à diminuição do risco de contágio por Covid-19, a maioria dos
entrevistados (57,7%) afirmaram ainda, não ter recebido nenhum tipo de apoio da empresa
nesse sentido. As plataformas que foram levadas em consideração nos estudos foram o Ifood,
Rappi, Uber Eats e Loggi.
As más condições de trabalho e pagamento dos profissionais de entrega levaram, em
julho de 2020, a uma paralisação das atividades da categoria. Conforme a BBC News Brasil,
entre as demandas, o grupo passou a reivindicar uma maior transparência em relação aos meios
de pagamento adotados pelas empresas, aumento dos valores mínimos para as entregas e mais
segurança no trabalho.
Diante do atual panorama, portanto, é de grande importância o reconhecimento de que
as plataformas digitais de serviços já estão imersas em diversos postos de trabalho no Brasil, o
que, por consequência, reproduz a necessidade de que um maior foco de análise seja dado a
essa categoria de trabalhadores com vistas a assegurar e garantir os seus direitos. Considerando
que o trabalhador é a parte hipossuficiente da relação, para que seja possível verificar melhorias
sobre a questão, medidas públicas devem ser implementadas, uma vez que é o Estado o principal
ator na proteção dos direitos resguardados pela legislação, e detém os meios pelos quais isso
pode ser viabilizado de forma assertiva e estruturada (SANTOS; TOLEDO, 2020).

3 A INSEGURANÇA JURÍDICA NO RECONHECIMENTO DO VÍNCULO


EMPREGATÍCIO ENTRE PROFISSIONAIS DE ENTREGA E APLICATIVOS DE
SERVIÇOS

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada por meio do Decreto-Lei nº


5.452, de 1 de maio de 1943, e sancionada pelo então presidente Getúlio Vargas, é o diploma
legal pelo qual são regulamentadas as relações individuais e coletivas de trabalho no Brasil,
estabelecendo os conceitos de empregado e empregador, bem como os requisitos necessários
para a configuração de vínculo empregatício.
A CLT aponta os referidos requisitos a partir da combinação de dois preceitos. No
caput do art. 2°, considera-se empregador: “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo
os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.
Quanto ao empregado, a CLT considera, conforme o seu art. 3°, aquele “que prestar serviços
de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Assim,
P á g i n a | 106

para a relação jurídica entre empregador e empregado ser concretizada, não basta apenas
atender os requisitos individuais, e sim aos elementos que configuram a existência do vínculo
empregatício.
Conforme Maurício Godinho Delgado (2019), diante da relevância sociojurídica
desses requisitos, eles são captados pelo Direito, que lhes atribui efeitos compatíveis, fazendo
com que passem a ser considerados elementos fático-jurídicos. De acordo com o doutrinador,
a prestação de serviços que o Direito do Trabalho leva em consideração é aquela celebrada por
uma pessoa natural e que tenha efetivo caráter de infungibilidade (em relação ao trabalhador),
e intuitu personae, no que diz respeito ao prestador de serviços. Além disso, é necessário que o
trabalho prestado mantenha um caráter de permanência (continuidade) que seja estabelecido
via contrato bilateral, sinalagmático e oneroso, exatamente por envolver diversas prestações e
contraprestações recíprocas e economicamente mensuráveis. Por fim, o autor também atribui
como requisito para a configuração de vínculo empregatício o elemento da subordinação, pelo
qual o empregado se compromete em realizar os serviços nos moldes do poder exercido pela
direção empresarial.
Em razão do longo caminho já percorrido pela legislação trabalhista, uma parcela da
sociedade e juristas passaram a acreditar na necessidade de mudanças que incidissem sobre o
ordenamento jurídico, mais especificamente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Nesse panorama, o texto do Projeto de Lei 6.787/2016, propôs, dentre outras modificações, a
prevalência do acordo sobre a lei, o fim da contribuição sindical obrigatória e regras para
trabalho intermitente. Superado o Projeto, foi publicada a Lei nº 13.467/2017, de 13 de julho
de 2017, a qual passou a ter vigência no dia 11 de novembro do ano seguinte, e trazendo consigo
significativas transformações na legislação trabalhista até então vigente e em diversos direitos
laborais. Entretanto, em razão das mudanças, muita insegurança jurídica permaneceu
remanescente desde a vigência da lei, principalmente em razão da forma que o Judiciário
Trabalhista recepciona e aplica tais normas (MARQUES, 2020).
Apesar da ascensão das plataformas tecnológicas como intermediadoras de serviços -
que contribuiu para o surgimento de uma nova classe de trabalhadores – o arcabouço jurídico
brasileiro não abrange de forma efetiva todas as modalidades empregatícias. Por isso, tal
cenário passou a contribuir para uma morosidade do judiciário relacionada especialmente às
diversas interpretações sobre a questão (MOURA, 2019).
A situação dos profissionais de entrega é, portanto, obscura dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, tendo em vista que os tribunais proferem sentenças ora reconhecendo o
vínculo empregatício, ora em contrário, uma vez que a interpretação dos requisitos para a
P á g i n a | 107

caracterização do vínculo é, ainda, bastante diversa. Nesse sentido, a decisão proferida pela 14ª
Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região reconheceu o vínculo empregatício entre
um motoboy e o aplicativo Rappi, startup de entrega sob demanda, reformando a sentença
proferida em 1º grau, em que a magistrada Gessica Osorica Grecchi Amandio julgou
improcedente o reconhecimento do vínculo. Assim, o referido órgão colegiado entendeu que:

Existe vínculo empregatício entre a operadora da plataforma virtual Rappi e os


entregadores. Há pessoalidade, haja vista a necessidade da realização de cadastro
pessoal e intransferível, não podendo o trabalhador substabelecer a execução do
serviço (entrega) a outrem. Há onerosidade, porquanto a relação não se assenta na
graciosidade, existindo entre as partes direitos e obrigações de cunho pecuniário. Não-
eventualidade, há fixação jurídica do trabalhador perante a tomadora, com
continuidade na prestação de serviços, o qual, por sua vez, é essencial ao
desenvolvimento da atividade econômica vendida pela empresa (comércio e entrega
de bens). Em relação à subordinação, na economia 4.0, “sob demanda”, a
subordinação se assenta na estruturação do algoritmo (meio telemático reconhecido
como instrumento subordinante, consoante art. 6º, CLT), que sujeita o trabalhador à
forma de execução do serviço, especificamente, no caso da Rappi, impondo o tempo
de realização da entrega, o preço do serviço, a classificação do entregador, o que
repercute na divisão dos pedidos entre os trabalhadores. Presentes os requisitos da
relação jurídica empregatícia. Recurso autoral provido.

O art. 6° da CLT é um dos dispositivos que fundamentam a decisão proferida, pois


estabelece que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador,
o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam
caracterizados os pressupostos da relação de emprego”. Para mais, vale salientar a relevância
do art. 6º, parágrafo único, que estabelece: “os meios telemáticos e informatizados de comando,
controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e
diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Conforme a decisão, “a rígida submissão do empregado ao cumprimento de jornada
de trabalho fixa não é, por si só, requisito para a configuração da subordinação jurídica”, e que
a relação de subordinação entre o entregador e o aplicativo se dá na medida em que os
complexos meios telemáticos, estabelecidos via algoritmo, condicionam a forma que o serviço
deve ser realizado para que se possa obter resultados mais eficientes, sendo exatamente nesse
elemento que estaria presente a subordinação. Ademais, a existência de padrões referentes ao
atendimento, forma de pagamento e preço de serviço também foram levados em consideração
principalmente por indicarem um sistema de avaliação dos profissionais que trabalham para os
aplicativos de serviço, reforçando a ideia de não-eventualidade presente na relação entregador-
aplicativo.
A decisão, além de reconhecer o vínculo empregatício, condenou a empresa a anotar
na Carteira de Trabalho e Previdência Social do autor, a ocupação de motociclista, com data de
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admissão em 25 de fevereiro de 2019 a 12 de junho de 2019, com os salários mensais indicados


pela empresa; proceder o pagamento de décimo terceiro salário proporcional 5/12, férias
proporcionais 5/12 + 1/3, diante do fato de que o autor manteve a relação com o aplicativo de
serviços por 5 meses; o pagamento dos recolhimentos fundiários, desde a admissão, incidentes
sobre todos os meses do período reconhecido, com a multa de 40%; e, por fim, atribuiu à causa
o valor de R$ 5.500,00 (cinco mil e quinhentos reais).
De forma análoga, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, em decisão proferida
pela 1ª Turma, reconheceu o vínculo empregatício entre um profissional de entrega e o Ifood,
em processo movido pelo próprio entregador no intuito de obter direitos trabalhistas. A decisão
foi unânime, e os magistrados acompanharam o voto da Desembargadora Relatora Maria
Cecília Alves Pinto, que afirmou em seu voto: “apesar do esforço da Ifood em mascarar os
traços característicos da relação subordinada de trabalho, o que se convencionou chamar de
‘uberização das relações de emprego’, foram provados os pressupostos dos artigos 2º e 3º da
CLT”.
No que diz respeito ao elemento da subordinação, a julgadora chamou atenção para o
depoimento do trabalhador, contida nos autos do processo, que diz respeito ao fato de que os
entregadores poderiam sofrer punição no caso de permanecerem fora da área de funcionamento
do aplicativo e não realizar o login. Tal declaração não foi contestada por qualquer outra prova
por parte do réu. Outrossim, na decisão consta a cláusula oitava do manual do entregador da
empresa, em que há previsão de que “o Ifood poderá reter pagamento ou descontar de
remunerações futuras devidas ao entregador, montantes destinados ao ressarcimento de danos
à empresa, aos clientes finais ou aos estabelecimentos parceiros”. Para mais, a relatora afirma
que:

[…] como é de conhecimento público e notório, há um padrão de qualidade traçado


pelas empresas de plataforma de entrega de mercadorias, sendo a fiscalização
realizada por meio das avaliações dos clientes. Trata-se, pois, de uma inegável
expressão do poder diretivo daquele que organiza, controla e regulamenta a prestação
dos serviços. Inegável, portanto, a presença da subordinação, seja estrutural ou
clássica - diante de magnitude do controle exercido de maneira absoluta e unilateral e
da inegável e inconteste ingerência no modo da prestação de serviços, com inserção
do trabalhador na dinâmica da organização, prestando serviço indispensável aos fins
da atividade empresarial.

Já em decisão proferida pela 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, a magistrada Shirley
Escobar julgou improcedente a Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público do
Trabalho, que requeria o reconhecimento do vínculo empregatício entre os entregadores e o
aplicativo Ifood, como também com o aplicativo Rappi. O Ministério Público alegou que as
P á g i n a | 109

referidas empresas contratavam os entregadores disfarçados na figura de trabalhadores


autônomos, seja de forma direta ou indireta, e por meio de empresas de logística, com o fito de
sonegar a existência de vínculo empregatício e os direitos decorrentes dessa relação jurídica.
Assim, a magistrada considerou:

[…] não restou demonstrada a servidão digital do trabalhador ao aplicativo. Em


resumo, restou demonstrado que o trabalhador se coloca a disposição para trabalhar
no dia que escolher trabalhar, iniciando e terminando a jornada no momento que
decidir, escolhendo a entrega que quer fazer e escolhendo para qual aplicativo vai
fazer uma vez que pode se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quanto
aplicativos desejar.

Nessa linha, não foram vislumbradas pela magistrada quaisquer ilegalidades existentes
no modelo de negócio analisado, especialmente com o reconhecimento de que a prestação de
serviços feita pelos profissionais de entrega se encaixaria, em regra, nos parâmetros definidos
pela legislação que caracterizam o trabalho autônomo. Assim, foram julgados improcedentes
os pedidos de declaração de vínculo de emprego entre entregadores e o aplicativo Rappi.
Sob outra perspectiva se deu o entendimento do desembargador Sergio Pinto Martins,
plantonista do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2), quando decidiu pela suspensão da
decisão proferida pela Juíza Lávia Lacerda Menendez, que obrigava a plataforma de entregas
Loggi a reconhecer vínculo empregatício de seus profissionais de entrega pelo regime da CLT.
Conforme o magistrado, a sentença original não pode ser cumprida “independentemente do seu
trânsito em julgado”, tendo em vista que a parte tem o direito de recorrer e que o valor da
indenização por dano moral coletivo é muito elevado: R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de
reais).
Sobre o caso, o desembargador dispôs, ainda, que:

o reconhecimento do vínculo de emprego de 15.000 condutores por meio de ação civil


pública não pode ser feita, pois esta tem objetivo de determinar obrigação de fazer ou
não fazer, mas não reconhecer vínculo de emprego. Cada um dos trabalhadores pode
ser empregado, autônomo, etc. Nem todos serão empregados e nem todos serão
autônomos. Há necessidade de se verificar a prova constante dos autos.

Assim, o magistrado considera inviável pleitear o vínculo de emprego dos


profissionais de entrega com o aplicativo Loggi, dado que a Ação Civil Pública não seria o
instrumento processual ideal para isso. A decisão concedeu efeito suspensivo ao recurso
ordinário postulado pela Loggi, sendo, pois, de caráter temporário, até que o tema seja julgado
pela Turma do TRT da 2ª Região.
Diante das decisões supracitadas, verifica-se que há notável insegurança jurídica nos
tribunais pátrios sobre a questão. Com efeito, a incongruência jurisprudencial em relação ao
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vínculo empregatício entre profissionais de entrega e aplicativos reforça a necessidade de


regulamentação dessa categoria, e é este o foco de análise do último item, que levará em
consideração, especialmente, os Projetos de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados e as
recentes demandas da sociedade brasileira sobre o assunto.

4 A NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DA CATEGORIA E A ATUAÇÃO DO


PODER LEGISLATIVO SOBRE A QUESTÃO

A utilização das Tecnologias da Informação (TICs) na gestão do trabalho, sob o ponto


de vista técnico, apesar de trazer significativas melhorias em relação à efetivação dos direitos
dos trabalhadores, vem, concomitantemente, desempenhando um papel preponderante no
incentivo e na legitimação de novas formas de trabalho não sujeitas à regulação protetiva
(FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020).
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT)3, é necessário que se
fortaleçam os meios pelos quais seja possível garantir segurança e proteção legal aos
trabalhadores, de acordo com os quatro pilares do que se entende por trabalho decente, quais
sejam: a) respeito aos direitos fundamentais; b) salário mínimo adequado; c) limites máximos
da jornada de trabalho; d) segurança e saúde no meio de trabalho. Desse modo, o trabalho
decente seria aquele concebido e posto em prática a partir dos parâmetros consolidados pelos
diversos atores sociais envolvidos na relação de trabalho, considerando, ainda, que a pobreza,
as desigualdades, os conflitos e as emergências humanitárias constituem sérias ameaças ao
desenvolvimento da prosperidade compartilhada e ao trabalho decente para todas as pessoas.
Desse modo, a inexistência de trabalhos forçados ou análogos à escravidão, por
exemplo, não é um fator suficiente para garantir o trabalho decente, tendo em vista a
abrangência desse conceito, que vai além das próprias e diretrizes delineadas na Declaração da
OIT sobre os Princípios Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento. No Brasil, o trabalho
decente deve estar em consonância com as práticas vinculadas ao desenvolvimento econômico
sustentável, de tal modo que é necessário aos governos, empregados e empregadores a reunião
de esforços em prol do bem estar coletivo e que incentivem a regulamentação e fiscalização das
normas internacionais sobre o tema. O trabalho decente, pois, apresenta uma clara vinculação
com o respeito aos direitos fundamentais individuais e sociais do trabalhador, visando o bem-

3 Essas iniciativas foram estabelecidas na Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho, adotada
pela Conferência Internacional do Trabalho na sua 108ª sessão, em junho de 2019.
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estar individual e coletivo, a dignidade da pessoa humana, e a valorização social do trabalho, e


os outros direitos trabalhistas elencados na Constituição Federal de 1988 (SABINO, 2019).
A ausência de regulamentação específica em face do risco inerente à atividade de
entrega é outro ponto relevante na discussão, pois os profissionais de entrega realizam seus
serviços mediante utilização de motocicletas e bicicletas para o transporte dos produtos. No
entanto, apesar do elevado grau de risco e quantidade de acidentes no trânsito decorrentes desses
serviços, as plataformas digitais não possuem quaisquer deveres e responsabilidades perante
um eventual acidente sofrido pelo entregador durante a prestação de serviços. Os entregadores
se expõem a esse risco iminente, não respeitando as leis de trânsito e sem qualquer uso de
equipamento de proteção, com o fito de atingir maior número de entregas, estimulados pelos
próprios aplicativos. Sob essa perspectiva, a Súmula nº 364 4, I, do TST, prevê o pagamento
relativo ao adicional de periculosidade a profissionais que se expõem a condições de risco, seja
de forma permanente ou intermitente (BELTRÃO, 2019).
Outrossim, vale enfatizar o texto expresso no art. 7º da Carta Magna, uma vez que o
referido artigo não faz distinção entre as formas de trabalho existentes no Brasil, e, sobretudo,
assegura a proteção social de todos os trabalhadores. Assim, esse dispositivo constitucional
garante os direitos de todos os trabalhadores, sejam urbanos ou rurais, que visem à melhoria de
sua condição social, por serem esses, justamente, a parte hipossuficiente na relação
empregatícia. Ainda na Constituição Federal, destaque-se o art. 170, que dispõe: “a ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social […]”, em outros
termos, ressalta a valorização do trabalho e sua relação com a ordem econômica pátria, posto
que é o trabalho que faz a consolidação da economia local e mundial (MARQUES, 2020).
Diante do estado de vulnerabilidade da categoria, se observa que os profissionais de
entrega por aplicativo não possuem legislação específica ou qualquer política salarial regulada
pelo Estado. Nesse sentido, já existem Projetos de Lei (PLs) em tramitação na Câmara dos
Deputados que versam sobre a temática, posto que se não houver regulamentação estatal,
evidentemente, por lógica capitalista, não serão os aplicativos de serviços que, por benesse, irão
modificar seus regulamentos e garantir os direitos dos profissionais de entrega.

4Súmula nº 364 do TST - Adicional de periculosidade. Exposição eventual, permanente e intermitente:


I - Tem direito ao adicional de periculosidade o empregado exposto permanentemente ou que, de forma
intermitente, sujeita-se a condições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dá-se de forma eventual, assim
considerado o fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-se por tempo extremamente reduzido.
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Até o mês de julho de 2020, a Câmara dos Deputados já contabilizava 26 (vinte e seis)
Projetos de Lei que dispõem sobre o trabalho dos entregadores em todo país, versando sobre
condições de trabalho, benefícios, salários, e outros pontos relevantes para a categoria. Cada
Projeto de Lei é dotado de peculiaridades, e uma parcela desses se sobressai nas discussões, a
exemplo do PL n° 3.748/2020, de autoria da Deputada Federal Tabata Amaral (PDT-SP), que
propõe a criação do trabalho sob demanda firmado perante um novo regime de trabalho para
integrar a relação entre os profissionais de entrega e os aplicativos de serviços. Conforme o art.
2° do referido Projeto de Lei, o trabalho sob demanda é “aquele em que os clientes contratam a
prestação de serviços diretamente com a plataforma de serviços sob demanda, que, por sua vez,
apresenta proposta para execução dos serviços para um ou mais trabalhadores”.
Outro ponto relevante estabelecido no PL n° 3.748/2020 é a estipulação de um valor
por hora, o que poderá mudar significativamente a relação entre entregadores e aplicativos, isso
porque o trabalhador sob demanda poderá ser remunerado de duas formas: por meio de verba
única, nunca inferior ao piso da categoria, por salário mínimo, ou por salário mínimo-hora, e
não de forma avulsa como é feito, atualmente, por meio de taxas. Independente da hipótese
escolhida na relação, devem, ainda, ser somados ao valor o pagamento proporcional de férias e
décimo terceiro, como estabelece o art. 5° do Projeto.
Além disso, o PL ainda estende alguns benefícios aos profissionais da categoria, como
o seguro-desemprego e salário-maternidade, a obrigação dos aplicativos de serviços em
fornecer equipamentos de proteção individual (EPI), e a vedação do descredenciamento dos
profissionais sem justa causa. A proposta da Deputada Tabata Amaral é abrangente, tendo em
vista que o trabalho sob demanda poderá ser estendido a outras categorias, para além de
entregadores, como trabalhadores vinculados a aplicativos que oferecem outros tipos de
serviços, instaurando um novo regime de trabalho, paralelo ao da CLT.
Em contrapartida, o PL n° 3.577/2020, de autoria do Deputado Federal Márcio Jerry
(PCdoB-MA), propõe uma alteração à CLT, e não uma regulamentação própria como sugere o
PL n° 3.748/2020. Dentre as alterações, o Capítulo I, Título III da CLT, passaria a integrar a
Seção XV, denominada “DOS EMPREGADOS QUE PRESTAM SERVIÇOS DE ENTREGA
DE MERCADORIAS POR MEIO DE APLICATIVOS”, dispondo:

Art. 350-A. Será considerado empregado, para fins do disposto no art. 3º desta lei o
profissional que, por meio de empresas operadoras de aplicativos de entrega, exercer
atividade de entregador de mercadorias, de forma pessoal, onerosa e habitual
vinculado à empresa.
§ 1º Considera-se empresa operadora de aplicativo de entrega qualquer plataforma
eletrônica que faça a intermediação entre o fornecedor de produtos e serviços e o seu
consumidor.
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Assim, caso aprovado, o PL n° 3.577/2020 passaria a assegurar, de forma expressa,


todos os direitos garantidos pela CLT aos entregadores de aplicativos. Além disso, a empresa
operadora de aplicativo de entrega deverá contratar seguro de vida em benefício do entregador,
bem como, seguro para a cobertura de danos, roubos e assaltos do veículo usado para a entrega
sem qualquer ônus para o motorista. Caberá, também, à empresa, assegurar ao entregador,
alimentação, água potável, e espaço seguro para descanso entre as entregas durante o horário
de trabalho; realizar ações de prevenção, promoção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e
vigilância em saúde dos trabalhadores; e garantir o afastamento remunerado por motivo de
saúde aos entregadores com remuneração equivalente à média dos valores percebidos por este
nos últimos três meses.
Outro Projeto de Lei que propõe uma alteração na Consolidação das Leis do Trabalho
é o PL nº 6.423/2019, do Deputado Federal Rui Falcão (PT-SP). A redação do PL estabelece
que o Capítulo I do Título I da CLT seja reformado de modo a equiparar a empregadores, para
efeitos exclusivos da relação de emprego, as empresas operadoras de aplicativos de transporte
de passageiros ou entrega de mercadorias. Do mesmo modo, o texto propõe alterações em
relação aos empregados, sejam eles entregadores ou motoristas:

Art. 235-J. Para os fins do caput do art. 3º desta Consolidação, será considerado
empregado o profissional que, por meio de empresas operadoras de aplicativos,
exercer atividade de motorista ou entregador de mercadorias, de forma pessoal,
onerosa, habitual e com subordinação à empresa.
§ 1º Considera-se habitual a atividade do motorista ou do entregador que
desenvolverem sua profissão, predominantemente, por meio do aplicativo de
transporte de passageiros ou entrega de mercadorias.

Nesse sentido, o Projeto propõe, ainda, que o motorista ou entregador que exercerem
a sua atividade por aplicativo sem que se configure a relação de emprego, terão a possibilidade
de se cadastrar como microempreendedores individuais, observada a Lei Complementar nº 123,
de 14 de dezembro de 2006, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno
Porte.
Em sua justificativa, o deputado Rui Falcão afirma que o rápido crescimento da
prestação de serviços via aplicativo fomenta as discussões sobre o enquadramento dos
motoristas e entregadores na condição de empregado, e que a proposição busca assegurar que
esses profissionais estejam em condições de igualdade com os demais trabalhadores, na medida
em que exerçam suas atividades com a presença dos referidos elementos que configuram a
relação de emprego.
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Para mais, existem outros Projetos de Lei que não regulamentam a categoria e nem
propõem alterações à CLT, apesar de versarem sobre o tema, a exemplo do PL n° 3.384/2020,
de autoria do Deputado Federal Ivan Valente (PSOL-SP), que tem o intuito somente de
assegurar direitos aos entregadores de produtos e serviços cadastrados em empresas que operam
através de aplicativos de serviços, no período da pandemia provocada pelo Covid-19. Em
relação às demais propostas citadas, o PL nº 3.384/2020 possui, pois, uma menor margem de
abrangência, pois se restringe apenas ao período em que durar o estado de calamidade pública
decorrente da pandemia do Coronavírus, com o fito de obrigar os aplicativos de serviços a
fornecerem máscaras, álcool em gel e luvas para proteção pessoal durante as entregas; acesso à
água potável e alimentação; acesso a espaço seguro para descanso; e assegurar assistência
financeira aos entregadores afastados em razão de acidente ou por suspeita ou contaminação
pelo Covid-19.
Apesar de tais discussões sobre o tema, o trabalho dos profissionais de entrega por
aplicativo ainda não segue os parâmetros ideais de segurança e saúde estabelecidas nas Normas
Regulamentadoras expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (que atualmente integra
o Ministério da Economia), demonstrando a inexistência de trabalho decente nessa ramificação
da atividade. No Brasil, portanto, na medida em que os requisitos do vínculo empregatício
continuam previstos nos arts. 2º e 3º da CLT, esses trabalhadores continuarão sendo
prejudicados, somado à possibilidade de contratação desses profissionais por meio de diversas
modalidades (intermitente, por tempo parcial, temporário etc.), sem a observância do respeito
aos direitos trabalhistas fundamentais e um trabalho decente (MONICI, 2019). Diante disso, é
também uma recomendação da OIT a garantia de ações que efetivem a transição, para os
trabalhadores, da informalidade para a formalidade, de modo a assegurar a observância de
segurança e proteção necessária para essas pessoas.
Destarte, perante o surgimento das novas atividades laborais que não se mantém dentro
do que se considera como as relações tradicionais de trabalho, não poderia a legislação
trabalhista se eximir da regulamentação desses contratos atípicos, especialmente porque são
fatores que conduzem a situações de precariedade e desumanização do trabalhador. Nesse
sentido, a adaptação do Direito do Trabalho à atualidade fomenta o desenvolvimento de um
equilíbrio entre ser, em essência, uma legislação que assegure o direito dos trabalhadores e,
concomitantemente, um Direito que efetive os meios necessários para que níveis elevados de
empregabilidade sejam mantidos (RODRIGUES, 2019).
P á g i n a | 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto de avanço das novas tecnologias, a economia de compartilhamento se


mostra cada vez mais presente no cotidiano dos brasileiros, principalmente, por meio dos
aplicativos de serviços. Diante desse cenário, em uma economia baseada em serviços sob
demanda, surge a “uberização” do trabalho, correspondente a um novo estágio da exploração
de trabalho que estimula a eliminação de uma série de garantias mínimas, na medida em que
fomenta a precarização das atividades laborais, como é o caso dos profissionais de entrega.
Tendo em vista que o ordenamento jurídico pátrio não contempla todas as modalidades
de empregos presentes no país, em especial aquelas que surgiram recentemente, os profissionais
de entrega se encontram, atualmente, em constante insegurança jurídica, ocasionada por
interpretações judiciais adversas sobre a questão, especialmente em relação ao reconhecimento
ou não do vínculo empregatício entre entregadores e aplicativos de serviços. O fato
determinante é que a Justiça do Trabalho ainda não possui um posicionamento uníssono sobre
a questão, tendo em vista que os tribunais proferem sentenças ora reconhecendo o vínculo
empregatício, ora em contrário.
O imbróglio no reconhecimento do vínculo empregatício, entre profissionais de
entrega e aplicativos de serviços, se encontra, também, dentro da doutrina, considerando que
muitos autores ainda não estão em harmonia sobre a questão. No limiar da discussão, se verifica
que os mais prejudicados são os próprios profissionais de entrega por aplicativo, que não
dispõem de direitos assegurados de forma expressa, nem políticas salariais ou condições
sanitárias, estas últimas agravadas em decorrência da pandemia do Covid-19.
As partir das análises realizadas, é evidente que os profissionais de entrega carecem
de uma regulamentação própria, tendo em vista a incongruência nas interpretações judiciais
acerca do reconhecimento do vínculo empregatício culminou por cessar direitos de muitos
entregadores do país. Outrossim, integrá-los à CLT também não parece ser a melhor alternativa,
pois, devido às especificidades dessa nova categoria de profissionais, muitos direitos e deveres
poderiam não se encaixar nesse novo formato de trabalho, que exige mais flexibilidade.
Destarte, a atuação do Poder Legislativo, especialmente na Câmara dos Deputados, em
promover o debate de inúmeras pautas que versam sobre a possibilidade de regulamentação da
categoria dos profissionais de entrega por aplicativo, é considerada um passo importante para
que os direitos desses trabalhadores sejam efetivados. A partir do reconhecimento de que há
um verdadeiro vácuo jurídico incidente sobre esses profissionais, o Estado, levando em
consideração a natureza adversa e recente dessa categoria, pode e deve tomar medidas para
P á g i n a | 116

garantir o exercício de um trabalho decente, além dos demais direitos trabalhistas estabelecidos
pela Organização Internacional do Trabalho e pela Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988.
Isto posto, observa-se o caráter urgente da necessidade de uma regulamentação
própria dos profissionais de entrega, para que se possa obter o resguardo jurídico da categoria
e terem seus direitos trabalhistas efetivados. Assim, diante das controvérsias em relação ao
reconhecimento do vínculo empregatício desses profissionais com os aplicativos, bem como as
interpretações judiciais divergentes, é primordial o amplo debate entre entregadores, aplicativos
de serviços e o Estado, no intuito de assegurar boas condições de trabalho dentro do
ordenamento jurídico pátrio.

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TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO. Recurso Ordinário em Rito


Sumaríssimo. Processo TRT/SP nº 1000963-33.2019.5.02.0005. 14ª Turma. Desembargador
Relator Francisco Ferreira Jorge Neto. j. 10/03/2020.

______. Recurso Ordinário. PetCiv n°1003814-60.2019.5.02.0000. j. 20/12/2019.


P á g i n a | 119

______ Sentença. ACPCiv n° 1000100-78.2019.5.02.0037. j. 27/01/2020.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Recurso Ordinário. Processo


TRT/MG n° 0010761-96.2019.5.03.0008. Desembargadora Relatora Maria Cecília Alves
Pinto. j.16/07/2020.
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THE SHARING ECONOMY IN BRAZIL AND THE DEBATE ON THE REGULATION


OF DELIVERY PROFESSIONALS BY APPLICATIONS

ABSTRACT

The sharing economy is a market based on services under demand that,


in Brazil, became responsible for the development of new forms of
work organization, intermediated by virtual platforms, and also for the
rise of the category of application delivery professionals. However, this
category is currently impaired by intense legal uncertainty, given the
dissonance of the judicial decisions related to their cognition of the
employment relationship established by the Consolidation of Labor
Laws (CLT). Thus, the present work aims to investigate the possible
need for regulation of delivery professionals in the national legal
system. Based on the analysis of legislative documents (Bills) and the
bibliography pertinent to the theme, considerations will be made about
the legal vulnerability in which the deliverers are and the position of the
courts regarding the employment relationship of such professionals.
Finally, we concluded that it is necessary the proper regulation of
delivery professionals by application, in order to ensure the rights of the
delivery workers' labor and to solve the current legal vacuum.

Keywords: Delivery professionals. Service applications. Consolidation


of labor laws. Bills. Regulation.
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O FENÔMENO DA AUTOTUTELA NAS REDES SOCIAIS: OFENSA À HONRA E


PRIVACIDADE COMO FORMA DE VINGANÇA PRIVADA

Rafaela Lamêgo e Aquino Rodrigues de Freitas1

RESUMO

A era digital alterou os limites impostos à exibição da vida íntima e


privada, transformando a dinâmica das relações sociais. Outrossim,
podemos observar na contemporaneidade a evolução da descrença no
judiciário como um ente solucionador de conflitos e, por conseguinte,
a busca crescente por meios não convencionais de obtenção de justiça.
Tal cenário provocou a consolidação do fenômeno da autotutela nas
redes sociais, uma prática de consequências imponderáveis e
extremamente severas. O presente trabalho se propõe a discorrer sobre
as causas relacionadas ao exercício dessa nova espécie de vingança
privada, a fim de compreender as mudanças nas relações interpessoais
que moldaram o cenário presente. Ademais, o artigo objetiva analisar
as consequências sociais e os desdobramentos na esfera do direito civil
oriundos da autotutela nas redes, considerando o abuso de direito e a
colisão de princípios fundamentais. O método utilizado foi o hipotético-
dedutivo, por meio de pesquisas bibliográficas, legislativas e
jurisprudenciais. Dessa forma, foi possível concluir que a ofensa à
honra e privacidade nas redes é decorrente de uma sociedade cada vez
mais digitalizada e transparente, na qual o falso senso de autonomia,
assim como o descrédito pelas formas tradicionais de resolução de
conflito, estimulam a busca pela vingança privada no âmbito digital.
Por fim, constatou-se, ainda, que a autotutela nas redes, mesmo quando
motivada por uma indignação legítima, pode constituir um abuso de
direito passível de responsabilidade civil, uma vez que viola
diretamente o princípio fundamental da dignidade humana.

Palavras-chave: Privacidade. Honra. Autotutela. Redes sociais.

1 INTRODUÇÃO

As interações humanas são permeadas por conflitos. Nesse sentido, nas mais diversas
sociedades foram desenvolvidos mecanismos solucionadores, os quais institucionalizam, de
acordo com os valores de determinada comunidade, as expectativas criadas após uma frustração
social. Uma das formas de afastar a resolução de conflitos do âmbito da força foi o
estabelecimento de leis e jurisdição estatal, protegendo os hodiernamente chamados direitos
fundamentais e a dignidade da pessoa humana.

1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. Bolsista de Iniciação Científica
PIBIC/UFBA pela Fapesb. E-mail: rafaelafreitas2509@gmail.com
P á g i n a | 122

Em contrapartida, a burocratização do Direito parece contribuir para uma dissociação


da sua essência com as relações sociais. Ao vislumbrar o Direito como uma ferramenta estatal
distante, destinada aos juristas e à punição de graves crimes, o cidadão médio toma para si o
papel de juiz informal, o qual tem sede de justiça e urge por soluções rápidas. Assim, podemos
observar a incidência cada vez maior de punições derivadas de outros ambientes de controle
social que não o legal. Tal paradigma, de sanções difusas expressivamente mais incisivas, de
fato, existe há anos. Todavia, na era virtual, essa prática passa a apresentar uma perigosa ameaça
aos direitos fundamentais da privacidade e da honra.
Em uma sociedade na qual informações podem ser divulgadas e rapidamente
disseminadas por qualquer um com acesso à internet, uma briga entre vizinhos pode tomar um
alcance nacional. De tal forma, se entrecruzam as linhas do direito à liberdade de expressão e à
dignidade da pessoa humana, tendo em vista que uma simples postagem nas redes pode trazer
consequências devastadoras à intimidade de quem se desejar.
Tais implicações são, na segunda década do século, já conhecidas por grande parte da
população, o que, somado ao desejo de justiça e a descrença nas formas convencionais de tutela
dos direitos, fazem surgir o fenômeno da autotutela nas redes sociais. Uma vingança privada
que se dá por intermédio da internet, ofendendo, em proporções inéditas, a honra, imagem e o
direito à privacidade do indivíduo.
Nesse cenário, termos como cultura do cancelamento2 e linchamento virtual ganham
evidência. Entretanto, a urgência do tema demanda uma atenção que ultrapassa a mera
visibilidade: é forçoso analisar precisamente os componentes que influem, condicionam e
sustentam a consolidação do uso nocivo das redes. Assim, é imperioso o fomento e a realização
da pesquisa científica em relação à nova problemática. Nesse contexto, o presente trabalho se
propõe a compreender a fonte do fenômeno da autotutela nas redes - analisando as
transformações do conceito de privacidade na era digital e a descrença no judiciário como ente
solucionador de conflitos – assim como suas consequências sociais e na esfera do direito civil.
Foi empregado nesta pesquisa o método hipotético-dedutivo por conta da atuação de
diferentes fatores nas conjecturas analisadas. Assim, a construção de premissas, as quais
possuem viabilidade para responder aos questionamentos levantados, otimiza o
desenvolvimento do artigo e a sua subsequente análise crítica permite a certificação das
conclusões encontradas.

2
O termo designa o fenômeno, muito popularizado no ambiente digital, de boicote a figuras públicas,
instituições ou empresas que tenham cometido atitudes consideradas preconceituosas ou ofensivas.
P á g i n a | 123

Deste modo, por meio da análise pautada em fontes bibliográficas, legislativas,


jurisprudenciais e na observação da realidade contemporânea, houve o levantamento de
hipóteses posteriormente submetidas ao processo de falseamento. O exame do problema
conduziu à premissa das mudanças do limite da privacidade e descrença no judiciário como
potencializadores do fenômeno da autotutela no ambiente virtual. Além disso, foi levantada a
hipótese do uso das redes sociais como ferramenta de concretização da vingança privada, a qual
ocorreria por meio da ofensa aos direitos personalíssimos do atacado.

2 DIREITO À PRIVACIDADE: ORIGEM E PROTEÇÃO DO DIREITO À HONRA

Durante toda a história, diferentes agrupamentos societários tiveram visões distintas


sobre o conceito de privacidade, sua abrangência e os seus limites. Trata-se de uma definição
diretamente influenciada pelos conceitos de coletividade, individualismo e moralidade,
dependente de análise das práticas sociais (SOLOVE, 2008).
No estudo dos direitos da personalidade, o direito à privacidade pode ser associado
tanto à dignidade, como faz a escola europeia, quanto à tutela da liberdade, como faz a escola
americana (PEIXOTO; EHRHARDT JÚNIOR, 2018). Todavia, é evidente – e assentado entre
os doutrinadores – se tratar de um direito que engloba, essencialmente, o direito à honra e à
imagem. Mesmo na tradição estadunidense, a qual, a exemplo do aborto3, legaliza certas
liberdades individuais com base no direito à privacidade, é possível notar a intersecção com o
direito à dignidade.
Retomando a origem da tutela legal da privacidade, a história por trás do insigne artigo
The right to privacy, que inaugurou a concepção de privacidade como direito, torna a relação
ainda mais clara. Warren e Brandeis pleitearam pela necessidade de se reconhecer e proteger
the right to be let alone (direito de ser deixado só), pois estavam indignados com a invasão da
vida doméstica da alta classe nova-iorquina pelos jornais estadunidenses. Os tabloides da época
eram extremamente invasivos, fato que foi exposto pelos advogados, como é possível notar no
seguinte trecho (BRANDEIS; WARREN, 1890, p. 196):

A imprensa está ultrapassando em todas as direções os limites óbvios da propriedade


e da decência. A fofoca não é mais o passatempo dos ociosos e perversos, mas tornou-
se uma mercadoria, a qual é buscada com assiduidade e insolência. Para satisfazer um
mal gosto lascivo, os detalhes de relações sexuais são disseminados nas colunas dos
jornais. Para ocupar os preguiçosos, colunas atrás de colunas são preenchidas com

3
SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. 410 U.S 113 (Roe v Wade). Harry A Blackmun. j. 22/01/1973.
P á g i n a | 124

fofocas inúteis, as quais só podem ser obtidas por meio da invasão ao ciclo doméstico4.
(Tradução nossa)

No momento em que a intimidade, antes restrita ao ciclo doméstico, tem seus limites
indiscretamente desconsiderados, o direito à dignidade é infringido. Afinal, a invasão de
privacidade pode por si só violar o direito à dignidade. Como lecionam Peixoto e Ehrhardt
Júnior (2018, p. 46), “uma invasão da privacidade pode se constituir como uma ofensa
intrínseca contra a dignidade individual. Intrínseca porque causa dano independentemente das
consequências circunstanciais advindas da conduta danosa”.
Não obstante, a preocupação dos advogados se refere, também, - senão principalmente
– à exposição ao ridículo imposta pelos jornais à elite estadunidense. Nesse sentido, as mazelas
provenientes da violação da privacidade multiplicam-se em função da disseminação e
proporção da exposição, pois estão relacionadas, também à opinião pública e íntima da própria
pessoa.
Tendo em vista a definição de direito à honra dada por Cunha Júnior (2019), o qual
classifica o referido direito como sendo um desdobramento da proteção dada à privacidade, o
direito à honra se propõe a tutelar os conjuntos de atributos concernentes à reputação, tais quais
consideração social, bom nome, boa fama, assim como a consciência da própria dignidade
pessoal. Nesse sentido, a disseminação de um conteúdo referente à vida privada, não somente
viola o direito à liberdade do indivíduo de decidir até que ponto compartilhará suas ações, falas
e opiniões, mas influencia na imagem e reputação daquele perante a sociedade, tratando-se de
uma verdadeira ofensa ao direito à honra e à imagem. Dessa maneira, a Constituição brasileira,
no seu artigo. 5º, tratou de proteger o direito à privacidade, assim como todas as suas
ramificações:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;

4
The press is overstepping in every direction the obvious bounds of propriety and decency. Gossip is no longer
the resource of the idle and the vicious, but has become a trade, which is pursued with industry as well as effrontery.
To satisfy a prurient taste the details of sexual relations are spread broadcast in the columns of the daily papers.
To occupy the indolent, column upon column is filled with idle gossip, which can only be procured by intrusion
upon the domestic circle.
P á g i n a | 125

Entretanto, existem doutrinadores que compreendem a tutela da honra como um direito


completamente autônomo, uma vez que uma ofensa à honra não incidiria necessariamente em
uma ofensa à privacidade. Uma calúnia, por exemplo, se trataria de um crime contra a honra
que não se relaciona com qualquer invasão de privacidade. Assim, é possível que a controvérsia
de um caso concreto resida na falsidade de uma acusação e não na existência de violação da
intimidade5. Dessa forma, analisaremos as ofensas, no âmbito digital, direcionadas tanto ao
direito à honra quanto ao direito à privacidade.
Ademais, a análise da dissolução dos limites da privacidade é imprescindível para
compreender o presente tema da autotutela como forma de vingança privada na internet, tendo
em vista que a mudança no padrão de compartilhamento de informações pessoais e situações
cotidianas não afeta somente a exposição individual, mas a de todos os envolvidos em cada
cenário disseminado. Isso se deve ao fato de que o conceito de vida privada envolve todos os
relacionamentos da pessoa, os familiares, íntimos, e também os objetivos, como relações de
trabalho, de estudo, relações comerciais, entre outras (BASTOS; MARTINS, 1997).
No momento em que a concepção de esfera privada é alterada, o relato de uma
discussão no mercado deixa de ser narrado a amigos e colegas próximos e se torna conteúdo
para alimentar as redes sociais. Se em 1890, Warren e Brandeis se preocupavam com a
disseminação de boatos em jornais, hoje em dia não só um paparazzi pode publicar uma foto
indesejada nos noticiários locais: qualquer um tem o poder de, a qualquer momento,
compartilhar uma informação a nível mundial. A internet, então, torna-se uma arma contra a
honra e a privacidade de quem se desejar.

3 PRIVACIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Vivemos, de fato, uma nova era no que se refere à privacidade. As fronteiras da


intimidade no século XXI passaram a ser menos demarcadas – em todas as searas que se possa
imaginar.
O milênio se iniciou com uma crise na segurança pública dos países capitalistas, o que
estimulou alguns estudiosos a alegarem o caráter antissocial do direito à privacidade, uma vez
que se oporia ao bem comum, à prevenção de crimes e à condução de operações governamentais
(SOLOVE, 2008). Essas teses corroboram e justificam a existência de uma sociedade de

5
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp n. 1025.047/SP, T3. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma. j.
26/06/2008. DJ 05/08/2008.
P á g i n a | 126

controle6, a qual não é mais um distante cenário distópico, pelo contrário, tem suas ferramentas
já postas em práticas por diversos Estados ao redor do mundo (DELEUZE, 1992).
No âmbito privado, a captação e venda, por parte de empresas, dos dados pessoais dos
seus usuários, impulsionou uma hiperconcentração de dados informacionais nas mãos de
grandes corporações (PARRA et al., 2018). Nesse cenário, inaugura-se um debate acerca da
autonomia do consumidor digital e a disponibilidade do direito à privacidade.
Por fim, a popularização das redes sociais estimulou a sociedade de transparência,
onde as menores e mais cotidianas decisões são constantemente expostas e espetacularizadas
(HAN, 2015). Assim, a produção de conteúdo não mais é monopolizada por famosas redes de
televisão e editoras conhecidas. Logo, qualquer publicação nas redes pode ter uma grande
audiência, sendo, por vezes, um alcance inesperado.
Nesse contexto, as implicações na violação dos direitos da personalidade tomam
proporções nunca antes vistas, frente à coletivização do poder de disseminação de ideias,
difusão e eternização de cada informação na rede de computadores. Em tal quadro, o direito à
privacidade torna-se cada vez mais vulnerável e a ofensa à honra potencialmente mais grave.

3.1 Ofensa à privacidade e redes sociais

O advento da internet garantiu à privacidade uma nova dimensão, sendo inclusive


reconhecida a necessidade de uma legislação que protegesse tal direito, tendo em vista o seu
inédito grau de vulnerabilidade. Nesse contexto, foi instituído o Marco Civil da Internet, Lei nº
12.965 de 2014, que, em seu artigo 8º, estabelece a garantia do direito à privacidade nas
comunicações como condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. De forma
similar, a Lei Geral de Proteção de Dados, Lei nº 13.709 de 2018, em seu primeiro artigo,
determina como objetivo proteger, dentre outros direitos, o da privacidade.
Historicamente, leis de proteção de dados surgem na tradição europeia, como uma
forma de controle vertical contra os abusos do Estado (PEIXOTO; EHRHARDT JÚNIOR,
2018). Atualmente, o direito brasileiro visa proteger os usuários da rede de internet,
majoritariamente, do abuso de empresas digitais privadas. Todavia, a realidade das redes sociais
traz uma mudança também nas demarcações da privacidade feitas pelo próprio indivíduo, e não
reside somente na violação feita por grandes empresas na venda de dados pessoais para
terceiros.

6
Deleuze (1992) define uma sociedade de controle como sendo aquela na qual os cidadãos estão sobre constante
vigilância.
P á g i n a | 127

A chegada das redes sociais alterou os limites antes impostos à exposição da vida
íntima e privada. Hoje em dia cada passo, cada café, cada imprevisto e cada opinião são
compartilhados aos seguidores e aos amigos do mundo digital. Trata-se de uma cultura da
transparência, na qual tudo precisa ser mostrado para, então, tornar-se real. Nesse diapasão,
Han (2015, p.13) discorre sobre a sociedade da transparência da seguinte forma:

A absolutização do valor da exibição encontra expressão como a tirania da


visibilidade. O aumento de imagens não é inerentemente problemático; o que se prova
problemático é a compulsão de se tornar uma foto. Todo precisa se tornar visível. A
imperatividade da transparência suspeita de tudo que não se submete à visibilidade.
Nisso reside a sua violência7. (Tradução nossa)

Torna-se um costume, senão uma necessidade, registrar cada ação realizada


socialmente, também, na esfera digital, de tal forma que a rede social passa a ser uma espécie
de etapa intermediária para a conclusão de condutas realizadas na vida real: se não é
compartilhado, não existiu. Nesse sentido, o limite do respeito à privacidade e à honra alheia,
também passa a ser alterado, uma vez que a separação entre a vida privada individual e a vida
privada de terceiros pode parecer um pouco nebulosa. Sobre esse tema, discorre Leonardi
(2012, p 122):

Partindo dessa linha de raciocínio, a tutela do direito à privacidade tem por objetivo
proteger não somente um indivíduo específico, mas também toda uma sociedade, por
meio de restrições de onde começa e onde termina o direito de cada indivíduo em
relação a sua intimidade.

Ao realizar uma cotidiana postagem em uma plataforma digital pessoal, delimitar essa
diferenciação pode não ser uma tarefa fácil. Assim, muitas vezes, durante a construção
individual de uma esfera particular de compartilhamento, é possível violar o direito à
privacidade alheio, assim como demais direitos da personalidade. Afinal, se um sujeito, em sua
página pessoal, expõe livremente o seu apreço por uma série de TV, porque não poderia
compartilhar seu descontentamento com sua professora universitária8?

7
The absolutization of exhibition value finds expression as the tyranny of visibility. The increase of images is not
inherently prob- lematic; what proves problematic is the iconic compulsion to become a picture. Everything must
become visible. The imperative of transparency suspects everything that does not submit to visibil- ity. Therein
lies its violence.
8
No Distrito Federal, estudantes da Faculdade de Farmácia da Universidade de Brasília publicaram um manifesto
nas redes sociais desacreditando a competência técnica de sua professora. Por conta das ofensas, os alunos foram
condenados a pagar uma indenização de R$ 8.500,00 (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E
DOS TERRITÓRIOS. Apelação Cível 423575020058070001. T3. Des. João Mariosi. j. 26/01/2011. DJ.
01/02/2011.
P á g i n a | 128

4 OFENSA À HONRA E REDES SOCIAIS

Durante todo o curso da história, condutas socialmente desaprovadas foram repassadas


por meio de, na forma mais crua da palavra, fofoca (HARARI, 2018). Essa foi, segundo
diversos teóricos, uma prática essencial para o desenvolvimento da linguagem humana
(HARARI, 2018). Dessa forma, todos, ou a maioria, dos integrantes de determinado grupo
comunitário eram informados sobre aquele acontecimento para, então, aplicar as sanções
difusas no transgressor.
A repreensão ficava a cargo dessas pessoas que compunham um núcleo social
específico – seja da vizinhança, do trabalho, ou da aula de culinária - pois a disseminação de
informação ocorria, majoritariamente, de forma individual. Até pouco tempo atrás, dificilmente
alguém que não se encaixasse na definição de “famoso” poderia ter sua intimidade discutida e
julgada por um número grande de pessoas. Contudo, hodiernamente, a internet e as redes sociais
mudaram completamente esse conceito, como ilustra o jurista americano Daniel Solove:

Desde o início dos tempos, pessoas tem fofocado, compartilhado rumores, e


humilhado outros. Essas práticas sociais estão agora se transportando para a internet,
onde tomam novas dimensões. Elas deixam de ser esquecíveis sussurros entre
pequenos grupos locais e passam a ser difundidas e permanentes histórias sobre a vida
das pessoas9. (SOLOVE, 2007, p.11) (Tradução nossa)
[…]
A humilhação não é algo novo – nós a temos feito por séculos. Mas a humilhação na
internet cria um registro permanente das transgressões das pessoas. E é feito por
repórteres investigativos amadores e autodeclarados, muitas vezes sem conceder ao
alvo a chance de se defender. Outros inúmeros se juntam para ajudar a humilhar a
vítima, criando o espaço cibernético equivalente a um linchamento10. (SOLOVE,
2007, p. 78) (Tradução nossa)

Vale ressaltar que, para Brant (2010), na lesão contra a honra existe o dano fato e o
dano consequência. O dano fato termina em si mesmo, por si só caracteriza dano ao direito da
personalidade. O dano consequência, por sua vez, são os reflexos do fato, seus desdobramentos,
suas implicações (BRANT, 2010).
No contexto da ofensa à honra que se dá por meio das redes sociais, é inegável que o
dano consequência acaba sendo, na maioria das vezes, muito maior do que aquele proveniente

9
From the dawn of time, people have gossiped, circulated rumors, and shamed others. These social practices are
now moving over to the Internet, where they are taking on new dimensions. They transform from forgettable
whispers within small local groups to a widespread and permanent chronicle of people’s lives.
10
Shaming is nothing new—we’ve been doing it for centuries. But Internet shaming creates a permanent record
of a person’s transgressions. And it is done by amateur self-appointed investigative reporters, often without
affording the target a chance at self-defense. Numerous others then join in to help shame the victim, creating the
cyberspace equivalent to mob justice.
P á g i n a | 129

das antigas formas de difamação. O alcance de uma publicação nas redes é sempre inesperado,
não obstante, uma vez compartilhado no mundo digital, qualquer conteúdo não é mais
controlado unicamente pelo autor, visto que pode ser salvo e mantido eternamente vivo por
qualquer outro usuário com o devido acesso.
Assim, além de se tratar de um ataque com proporções muito maiores do que as
esperadas, as violações aos direitos pessoais, quando realizadas na internet como forma de
vingança privada, criam uma ficha permanente dos erros do agredido (SOLOVE, 2007). Ao
compartilhar nas redes sociais comentários degradantes sobre um desafeto, é possível macular
por tempo inestimável a reputação do atacado, diferentemente dos efeitos que decorreriam de
uma decisão judicial, a qual visa reparar e proteger direitos violados, mas de forma limitada e
proporcional.
Não obstante os efeitos negativos da manifestação indiscriminada de discursos
ofensivos nas redes – os quais muitas vezes constituem um verdadeiro linchamento virtual –, a
prática desses ataques se tornou cada vez mais popular. Nesse cenário, o termo do ano eleito
pelo Dicionário Macquarie em 2019 foi “cultura do cancelamento” (LORE, 2020). O termo
significa essencialmente um boicote a figuras, em sua maioria públicas, empresas ou
instituições que teriam cometido atitudes consideradas inapropriadas ou ofensivas. Se de um
lado é necessário trazer à tona discussões relacionadas à responsabilidade social de figuras
influentes, do outro, a forma como essa reafirmação é feita pode ultrapassar os limites da
proporcionalidade e instituir comportamentos digitais que ferem direitos fundamentais do
indivíduo.
A repercussão dessa forma de agir nas redes estimula a prática da autotutela. A
exemplo, em Juiz de Fora, uma moradora de um prédio vizinho filmou o dono de um cão, em
um momento de demonstração de agressividade com o animal, e publicou na rede social
Facebook como forma de denúncia. A postagem foi reproduzida em outras comunidades e o
vizinho exposto chegou a ser ameaçado de morte. O homem ingressou com ação no Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, elucidando que estava apenas disciplinando o seu cão, o qual havia
feito um buraco na parede do apartamento, e apresentou laudos veterinários que atestavam que
o animal não apresentava sinal de maus tratos. O magistrado concluiu que a postagem
apresentava uma violação grave aos direitos à honra e à imagem, colocando em risco inclusive
P á g i n a | 130

sua integridade física, e condenou a reclamada ao pagamento de danos morais majorados em


R$ 5.000,0011.
Nesse sentido, no ambiente virtual, as repercussões da ofensa à honra são diversas,
ultrapassando limites da realidade digital e influenciando diretamente o cotidiano do afetado.
Tratam-se de repreensões que reverberam na opinião privada do ofendido sobre si mesmo, mas
também na opinião pública, podendo gerar inclusive desfechos trágicos, desde perda de
emprego até depressão, suicídio e linchamento físico.
Dessa forma, além de potencialmente afetar tanto a honra objetiva – referente à
reputação da pessoa, compreendendo seu bom nome e a fama na sociedade – quanto a subjetiva
– o sentimento pessoal de estima ou à consciência da própria dignidade (GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO, 2008) –, a ofensa à honra nas redes incide também em um dano
consequência. Isso se deve aos desdobramentos inevitáveis da conduta ofensiva, a exemplo dos
impactos negativos na saúde mental do indivíduo, oriundas de uma violação do seu sentimento
pessoal de estima; ou de implicações financeiras e sociais, frutos de uma má reputação social.
As iminentes e imponderáveis consequências negativas à honra e à imagem de outrem,
resultado de uma simples publicação nas redes, podem parecer muito convidativas àqueles que
se sentiram atacados por terceiros e desejam, de alguma forma, conseguir uma compensação.
Tal reparação todavia, não é, senão, meramente uma vingança privada à la século XXI.

5 DESCRENÇA NO JUDICIÁRIO COMO ENTE SOLUCIONADOR DE CONFLITOS

Em paralelo com o papel crescente da internet na vida real, vivemos também uma era
de descrença no Estado. Seja com outsiders sendo eleitos na política, ou com o crescimento de
grupos libertários que descredibilizam o papel e as funções sociais do ente estatal, trata-se de
uma conjuntura que pleiteia pelo caminho contrário do escolhido historicamente para limitar os
abusos de poder de entes privados. No âmbito judiciário não tem sido diferente.
Consoante Luhmann (1983), o desenvolvimento do direito nas culturas antigas
possibilitou uma institucionalização das expectativas criadas após uma frustração social, após
um conflito. Dessa forma, o judiciário passava a representar uma promessa de segurança e
estabilidade.

11
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Apelação Cível 1.0145.14.042795-9/001. 15ª
Câmara Cível. Des. Octávio de Almeida Neves. j. 05/10/2017. DJ. 13/10/2017.
P á g i n a | 131

A conquista decisiva reside, então, na institucionalização do procedimento judicial –


sistemas de interação de tipo especial, cuja função consiste em determinar a decisão
de uma situação em aberto, em absorver a incerteza e dessa forma substituir a luta
arcaica pelo direito por um processo que apresenta alternativas e possibilita opções
fundamentais. (LUHMANN, 1983, p. 207)

Entretanto, na contemporaneidade, a relação passa a ser adversa: é cada vez mais


evidente a descrença no Estado como ente solucionador de conflitos e a confiança no poder
judiciário decresce no país. De acordo com o último relatório ICJBrasil publicado pela
Fundação Getúlio Vargas (2017), apenas um quarto dos entrevistados alegou confiar na Justiça
brasileira.
Contudo, insta pontuar que o processo de desmoralização das instituições brasileiras é
histórico. Não obstante a longa tradição de justiça privada decorrente do passado escravocrata
brasileiro, Martins (2015) remonta o início desse processo de descrédito estatal à época da
ditadura militar, quando o governo interferiu ativamente nas entidades públicas a fim de torná-
las parciais e submetê-las às suas diretrizes políticas. Nesse contexto, os hodiernos atos de
justiça com as próprias mãos revelam que, no imaginário coletivo, as instituições brasileiras
ainda não retornaram ao seu leito natural – o de prestador de serviço ao cidadão e não
unicamente aos interesses da própria máquina estatal (MARTINS, 2015).
Ademais, segundo Cappelletti (1988), o acesso à justiça vai muito além do direito
formal de propor ou contestar uma ação, mas é o direito de pedir e obter uma resposta
satisfatória, mesmo que não necessariamente favorável, para os seus questionamentos. O Brasil,
nesse sentido, tem um longo caminho para percorrer rumo a democratização do acesso à justiça.
Assim, a própria burocracia e morosidade do judiciário brasileiro pode ser vista como
um obstáculo para estabelecer a confiança popular nas formas institucionais de acesso à justiça.
De tal forma, “a morosidade gera descrédito, prejudica não só a imagem do Poder Judiciário,
mas retira da pessoa humana o desejo de buscar uma solução para seu conflito” (GALASSI,
2012, p. 6).
Além disso, é necessário considerar o abismo social que distancia a realidade do grupo
que compõe, majoritariamente, o poder judiciário das condições vividas pela população
brasileira média. Segundo o último levantamento elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça
(2018), o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados, 80% dos juízes são brancos, 62% se
identificam como homens e 51% têm pais com ensino superior completo. O contraste é nítido
quando analisamos os dados referentes à totalidade da população brasileira. No mesmo ano,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 56,1% dos domiciliados no Brasil
consideravam-se pretos ou pardos (IBGE, 2018), as mulheres constituíam 51,7% da população
P á g i n a | 132

brasileira (IBGE, 2018) e somente 16,5% da população possuía ensino superior completo
(IBGE, 2018).
Nesse diapasão, o elitismo do judiciário contribui para o ceticismo nas instituições
estatais que leva à busca por formas de vingança privada (MARTINS 2015). Similarmente, para
Pinto (1991), certos setores sociais identificam as instituições jurisdicionais como sendo
diretamente vinculadas ao poder político-econômico, compreendendo-as como órgãos de poder
da classe dominante. Assim, cada vez mais distante da realidade popular, o magistrado não é
mais visto como solucionador de conflitos, mas como instrumento de reafirmação dos interesses
da elite. Nesse contexto de dissociação da imagem do poder judiciário de sua verdadeira função
social, o exercício da autotutela pode ser impulsionado, uma vez que seu aumento é
proporcional ao sentimento de ineficácia das instituições, sendo intrinsecamente ligado à
insegurança oriunda do sentimento de carência e privação dos serviços estatais (MARTINS,
2015).
Diante de todo o exposto, é possível visualizar que a crescente desconfiança na Justiça
brasileira se relaciona com o aumento na busca pela vingança privada. Tal paradigma dialoga
com a consolidação das redes sociais e o poder de influência social concedido a qualquer
usuário das mesmas. Assim, a busca pela resolução de conflitos deixa o âmbito estatal e retorna
para a autotutela, enraizada na opinião pública. O judiciário é destituído do papel de
intermediário em conflitos de prestação de serviço, problemas de vizinhança, ou demais
relações sociais, pois o conteúdo é postado nas redes à espera de um verdadeiro linchamento
virtual.
Dessa forma, o princípio da autotutela retorna atualizado e a vingança privada se
concretiza por meio da ofensa à honra e privacidade, uma vez que, no mundo virtual, a lei do
mais forte se baseia no número de compartilhamentos. Nesse cenário, a jurisdição passa a ser
uma função atribuída ao leitor da publicação, o qual não se limita pelos ditames do Estado
democrático de Direito, sendo ele um juiz parcial.

6 A AUTOTUTELA NAS REDES E O ABUSO DE DIREITO

Conforme já foi visto, a sociedade tem passado por diversas mudanças no que diz
respeito ao conceito de privacidade, às implicações do uso das redes sociais e à sua confiança
no poder judiciário. Esse cenário tem incentivado não somente a escolha pela vingança privada
como forma solucionadora de conflitos, mas também sua realização por meio da ofensa à honra
e à privacidade em ambientes digitais.
P á g i n a | 133

O fenômeno da autotutela nas redes sociais ocorre quando a internet é utilizada para
concretizar um desejo de justiça, compartilhando um relato ou uma denúncia que expõe e acusa
terceiros. Aquele que realiza a postagem, ao crer que teve algum direito anteriormente violado,
considera a sua conduta como legítima, pois acredita que ela é protegida pelo seu direito à livre
manifestação e justificada pelo prejuízo que ele previamente sofreu (SOLOVE, 2007).
Tal pensamento incorre em grave erro, visto que a titularidade de um direito não
impede que seu exercício esteja viciado pela ilegalidade. Dessa forma, cabe analisar, como
forma exemplificativa, uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul12 acerca do
assunto em tela. O réu em questão havia comprado um equipamento fotográfico de cinco mil
reais (e depositado a quantia na conta dos autores), porém nunca recebeu o produto, o que
ocasionou diversos prejuízos profissionais.
Indignado, o consumidor postou em um grupo do Facebook o ocorrido, denunciou as
atitudes da empresa e a acusou de estelionato. Não obstante, divulgou imagens e dados de um
dos representantes da companhia (o qual também era um dos autores do processo). Os
desembargadores, então, condenaram o réu ao pagamento de indenização somente ao autor que
teve sua imagem divulgada:

A manifestação do pensamento é livre, bem como a expressão de atividade intelectual,


artística, científica e de comunicação. A liberdade de expressão é fundamento
essencial da sociedade democrática. A crítica e a manifestação, dentro de certos
parâmetros, não devem ser consideradas ato ilícito e abusivo. O exercício de direito
do modo regular, sem excesso, não gera obrigação de indenizar. No caso, existiu
excesso por parte do réu que publicou a foto de um dos autores, o que violou o direito
de personalidade da pessoa.
[…]
A reclamação é legítima, considerando que o valor pago pelo autor(sic) não foi
restituído integralmente. O ocorrido justifica a reclamação por parte do consumidor,
que pagou, mas não recebeu o bem, nem o valor de volta. Esse fato é muito grave, a
reclamação e a divulgação não podem ser consideradas atos ilícitos, apesar das duras
palavras escritas pelo réu. Estava reclamando de um fato ocorrido, que eventualmente
pode configurar crime. E, nesse ponto, o exercício de um direito deve ter prevalência.
Deveras, o réu se excedeu em sua publicação no momento em que divulgou a foto do
Luis Henrique devendo recompensar o dano moral causado […].

Sob esse prisma, resta claro a dualidade do exercício do direito: é possível, de fato,
compartilhar uma reclamação legítima nas redes sociais, todavia, o seu conteúdo pode exceder
a boa-fé e os limites da legalidade, sendo passível de reparação jurídica. Assim, o Código Civil
brasileiro de 2002 delimita expressamente os limites impostos nesse sentido:

12
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível 70076330067. 10ª Câmara Cível.
Des. Marcelo Cezar Muller. j. 01/03/2018. DJ. 13/03/2018.
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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes.

De início, insta pontuar que o artigo 187 consagrou a teoria do abuso do direito no
ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo a ideia da relatividade dos direitos, na qual eles
flexibilizam-se mutuamente, inexistindo direitos isolados e absolutos (BRAGA NETTO, 2010).
O abuso de direito é compreendido, então, como uma espécie de ato ilícito que consiste no uso
imoderado do direito subjetivo, um exercício do direito que exorbita a regularidade causando
dano a terceiros (AMARAL, 2003).
Ao analisar ambos os artigos, é possível compreender que a concretização do ato ilícito
no exercício de um direito independe de culpa. Diferentemente do que é especificado no artigo
186, para a incidência do artigo 187 não é necessário que o abuso do direito se dê de forma
voluntária. Depreende-se que a concepção adotada em referência ao abuso de direito é a
objetiva, sendo desnecessário a existência da consciência do excesso (JORDÃO, 2006).
Todavia, não somente aquele que comete o ato ilícito, muitas vezes, não percebe sua
ilicitude: a interpretação externa também é complexa. É muito mais simples apontar a ilicitude
de uma calúnia, falsa imputação de crime, ou até do bullying indiscriminado nas redes.
Entretanto, pode ser tortuoso reconhecer onde reside a antijuridicidade quando se trata de uma
indignação válida, a qual é exposta na esfera digital no vislumbre de receber uma compensação,
um ressarcimento assentado no sentimento de vingança, ensejado pelas consequências
negativas oriundas da desaprovação pública.
Contudo, conforme foi discutido, os danos dessa autotutela são dos mais variados,
incidindo em graves violações de direitos personalíssimos como honra, privacidade e
dignidade. Nesse sentido, a legislação estatal, a qual deve institucionalizar as expectativas
criadas após um conflito13, dispõe sobre os limites do exercício de um direito. Assim, discorre
Sergio Cavalieri Filho (2005, p. 170):

O fundamento principal do abuso de direito é impedir que o direito sirva como forma
de opressão, evitar que o titular do direito utilize seu poder com finalidade distinta
daquela a que se destina. O ato é formalmente legal, mas o titular do direito se desvia
da finalidade da norma, transformando-o em ato substancialmente ilícito. E a
realidade demonstra ser isso perfeitamente possível: a conduta está em harmonia com
a letra da lei, mas em rota de colisão com os seus valores éticos, sociais e econômicos
– enfim, em confronto com o conteúdo axiológico da norma legal.

13
Tendo em vista a perspectiva de Luhmann acerca da função estatal mencionada anteriormente (1983).
P á g i n a | 135

Outrossim, a liberdade de expressão no sistema jurídico brasileiro não é absoluta – tal


qual nenhum outro direito fundamental. Todo e qualquer direito está sujeito a limitações
adequadas para proteger o bem jurídico por cujo motivo elas são efetuadas (HESSE, 1998). No
que tange a livre expressão, não obstante ser possível limitar direitos fundamentais que não
detêm reserva legal (DIMOULIS; MARTINS, 2018), trata-se de um direito
constitucionalmente limitado, dentre outras hipóteses, para proteger a dignidade da pessoa
humana. Nessa linha, expõe Dimoulis e Martins (2018, p. 181):

A previsão de indenização afeta o patrimônio(logo, o direito de propriedade) de quem


deverá pagá-la e sua liberdade de expressão, pois o objetivo da norma é evitar
agressões aos direitos de personalidade, sancionando algumas expressões com o dever
de indenizar.

Em síntese, o exercício de um direito pode constituir um ato ilícito nos termos do artigo
187 do Código Civil de 2002. Dessa forma, uma indignação legítima, pautada na livre
manifestação, quando divulgada nas redes, pode incorrer em ato ilícito por abuso de direito caso
consista em um ataque à dignidade de outrem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em base todos os aspectos anteriormente analisados, depreende-se que a ofensa


à honra e privacidade como forma de vingança privada nas redes é fruto de uma sociedade cada
vez mais digitalizada e controladora, na qual a vida passa a ser constante e inadvertidamente
replicada no universo virtual, quase como se constituísse uma sociedade autônoma. Inobstante,
a realidade cibernética concede ao usuário muita autonomia – ou um falso senso dela. Nesse
cenário, é possível compartilhar informações que serão vistas por um número inimaginável de
pessoas: absolutamente todos tem um poder potencial de influenciar opiniões.
Trata-se de uma época cuja discussão acerca da privacidade é retomada, uma vez que
a sociedade de transparência mudou a noção de vida íntima e privada. Entretanto, nem todos
querem fazer parte dessa narrativa, sendo muitas vezes expostos por aqueles que se equivocam
no momento de diferenciar até onde vai a própria intimidade e quando se inicia a do outro.
A invasão da privacidade, em tal panorama, é compartilhada com toda a internet,
podendo influenciar a estima coletiva acerca daquele cuja vida privada foi violada e até sua
concepção sobre si mesmo. O alcance de uma postagem nas redes sociais é sempre inesperado
P á g i n a | 136

e a ofensa aos direitos da personalidade pode se concretizar em consequências psicológicas,


patrimoniais e físicas.
As implicações de um simples comentário são as mais variadas e esse poder concedido
ao usuário, ao lado de uma descredibilização cada vez maior do judiciário, faz ressurgir os
sentimentos bárbaros de linchamento e vingança. Tudo é sempre apto à vigília e ao julgamento
do tribunal digital, o qual não segue os ditames constitucionais que limitam as penas. Assim,
recorrer à internet para a resolução de conflitos privados torna-se cada vez mais atraente.
Todavia, independentemente do fumus boni iuris e da liberdade de expressão, a ofensa
à honra e à privacidade constituem um abuso de direito passível de responsabilidade civil. As
condutas movidas pela indignação, mesmo que legítima, devem ser limitadas pelo direito à
dignidade humana, sempre tendo em vista a aplicação de sanções equilibradas e sob a luz de
prerrogativas como direito ao esquecimento.
Por fim, é imprescindível que estejamos sempre acompanhando os fenômenos sociais
referentes à autotutela. Frente ao aumento de práticas que corroboram com a vingança privada
e justiça com as próprias mãos, é imperioso reafirmar a institucionalização da resolução de
conflitos e os valores da dignidade da pessoa humana.

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P á g i n a | 140

THE PHENOMENON OF SELF-DEFENSE IN SOCIAL MEDIA: OFFENSE TO


HONOR AND PRIVACY AS A FORM OF PRIVATE VENGEANCE

ABSTRACT

The digital era has shifted the boundaries imposed to the exhibition of
private and intimate life, transforming the dynamics of social relations.
Furthermore, it is possible to observe in contemporaneity the feeling of
discredit towards the judiciary as an entity responsible for conflict
solving, and, therefore, an increase in the search for unconventional
ways of obtaining justice. This scenario consolidated the phenomenon
of self-defense in social media, an act of imponderable and extremely
severe consequences. The present article aims to verse about the
motives related to the practice of this new form of private vengeance,
of which occurs throughout the offense to the personal rights of the
victim. Moreover, the paper aims to analyse the social consequences
and repercussions on the civil law sphere arising from the self-defense
in social media, considering the abuse of rights and collision of
fundamental principles. It was applied the hypothetical-deductive
method, through bibliographical, legislative and jurisprudencial
researches. In this sense, it was possible to conclude that the offense to
honor and privacy on social media is due to an increasingly digitalized
and transparent society, in which the false sense of autonomy, as well
as the descredit for the traditional forms of conflict solving, induces the
search for private vengeance in the digital scope. At last, it was found
that self-defense online, even when motivated by a legitimate
indignation, may constitute an abuse of rights liable to civil
responsibility, since it violates directly the fundamental principle of
human dignity.

Keywords: Privacy. Honor. Self-defense. Social media.


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O RÉU AUTISTA NO TRIBUNAL DO JÚRI: COMO SUAS LIMITAÇÕES


CONVERSACIONAIS AFETAM SEU INTERROGATÓRIO

Artur Vinícius de Lima Fernandes1

RESUMO

Em face de uma coletividade aflita pelo crime patológico, para que não
cause consequências negativas ao todo e à parte além do razoável, é
essencial que o processo penal se adapte às diversas minúcias que
orbitam cada caso – uma dessas sendo a vulnerabilidade dos sujeitos
envolvidos. O presente artigo buscou, pois, explorar como a condição
de um desses, o autista, afeta o litígio criminal, em especial àqueles sob
análise do Tribunal do Júri. Analisou-se na pesquisa o tratamento
dispendido pelo Direito pátrio ao portador de Transtorno de Espectro
Autista (TEA), em especial no que tange à apreciação de crimes dolosos
contra a vida por parte dos jurados da sociedade civil. Para alcançar tal,
realizou-se um levantamento bibliográfico descritivo e exploratório de
produções acadêmicas nacionais e internacionais, tanto da área jurídica,
quanto da saúde. Percebeu-se, ao fim, que as dificuldades
conversacionais inerentes ao autismo de alta gravidade podem debilitar
o réu no que tange à colaboração com seus advogados, bem como
inviabilizar um possível depoimento no Tribunal. Tendo em vista que
diversas defesas se valem do interrogatório do réu para contestar a
autoria, isso pode prejudicar as arguições dos advogados do acusado.
Destarte, o exercício do direito ao silêncio pode ser contraproducente,
uma vez que o Tribunal do Júri pode interpretá-lo com ampla suspeita.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista. Tribunal do Júri.


Direito Processual Penal. Direito ao silêncio. Limitações
conversacionais. Interrogatório.

1 INTRODUÇÃO

Proporcional à expansão do crime patológico na coletividade está o alargamento do


Direito Penal e, de igual medida, do Processual Penal. As crises de segurança levaram o Estado
moderno a depender mais profundamente do litígio criminal no combate à onda de delitos
crescente, esta motivada por fatores como a guerra às drogas, a marginalização seccional, a
necropolítica, dentre outros. Isso macula, notoriamente, os alicerces penalistas, em especial a
concepção do Direito Criminal como ultima ratio. Ainda assim, é uma realidade indubitável
que acaba promovendo diversas minúcias que acompanham o agigantamento do Estado Penal.

1
Discente do 5º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. E-mail:
arturviniciuslf@gmail.com
P á g i n a | 142

Essa banalização, por dizer, do Direito Criminal acarreta prejuízo para os envolvidos
no litígio. Isto pois, se o processo penal é instrumento comum para a resolução de conflitos, e
não extraordinário, é deduzível que ele é suscitado mais frequentemente do que seria se tivesse
essa última natureza. Com o alto número de demandas, é natural que não se aprecie todas com
a cautela exigida para evitar consequências desarrazoáveis. Trata-se de uma questão humana:
quanto maior forem as partes em um todo, menos atenção especial cada uma receberá.
Em um processo penal, tal método pode acarretar efeitos drásticos. Tendo em vista que
a apreciação do crime e o exercício do jus puniendi possuem natureza negativa (ou seja,
cerceiam direitos ou perturbam a vida dos sujeitos envolvidos), é intolerável que o Direito
Criminal trate cada caso como se não passassem de outro componente em um todo. Cada crime
está rodeado de minúcias próprias, estas que não podem ser ignoradas ou sumarizadas para que
os aplicadores do Direito possam cumprir a quota de demandas a serem apreciadas.
Isso se torna óbvio quando se analisa os processos penais nos quais figuram sujeitos
com vulnerabilidade processual, isto é, que não se encontram em pé de igualdade com seus
acusadores, seja por motivos subjetivos, seja por objetivos. Tratar os litígios que envolvem tais
como partes sem a devida atenção pode resultar em desfechos desproporcionais, nos quais o
dano retribuído se torna absurdo quando comparado ao dano perpetrado.
Trazendo essa discussão a um microcosmos, o presente artigo se propõe a analisar
como certos sujeitos vulneráveis podem ser prejudicados no litígio que não trata suas demandas
como especiais. Aqui, focar-se-á no portador de Transtorno do Espectro Autista (TEA), e como
sua condição impõe certos obstáculos no processo que devem ser contornados com cautela, e
não ignorados em prol de celeridade. Almeja-se, pois, estudar como o autismo – em especial,
os deficit conversacionais inerentes a esse – afeta a capacidade do réu de colaborar com seus
advogados e demais procuradores, e de, em Tribunal, pleitear por sua inocência.
Essa pesquisa busca entender se as limitações comportamentais dos autistas afetam
negativamente sua defesa em face do Tribunal do Júri. Escolheu-se a lente dos crimes dolosos
contra a vida pois, como é sabido, os jurados que compõem tal Tribunal não julgam por
conhecimento jurídico, mas por questões pessoais que refletem a opinião da sociedade. Os
juízes togados possuem, em teoria, saber legal para não discriminar um autista em vista dos
deficit impostos por suas condições, mas isso não acontece com os membros daquele Tribunal.
Sobre os jurados que compõem o Júri recaem estereótipos, empatia (ou a falta dela) e
arbitrariedade motivacional. Esses sujeitos são os responsáveis por definir se o sujeito autista
acusado de um crime doloso contra a vida deve ou não ser privado de liberdade. São esses,
P á g i n a | 143

portanto, que merecem ser objeto de análise quando se objetiva indagar os efeitos negativos de
uma vulnerabilidade negligenciada.
Este artigo concentrou-se em estudar as consequências das limitações conversacionais
no interrogatório do réu pois, em muitos casos, é este o principal artifício da contestação de
autoria pela defesa. Se o autismo prejudicar tal, correto seria afirmar que a arguição em
benefício do réu tornar-se-ia deveras fragilizada, o que acentuaria mais ainda a disparidade
processual tangível. A partir dessa análise, buscou-se estudar se há viabilidade no exercício do
direito ao silêncio, bem como os reflexos positivos ou negativos de tal estratégia no Tribunal
do Júri.
Discutir tais questões é importantíssimo, uma vez, que de acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1 a 2% da população mundial pode portar condição no
Espectro Autista. Transpondo tais números para a brasileira, tem-se uma estimativa de dois a
quatro milhões de cidadãos autistas2. Por ser um grupo deveras grande, é inevitável que, vez ou
outra, seja apreciado um litígio criminal no qual um portador de TEA figure como réu.
O método utilizado para a pesquisa em questão foi o levantamento bibliográfico
descritivo e exploratório, de natureza qualitativa, de obras tanto nacionais, quanto
internacionais na matéria. Optou-se por dividir o artigo em três seções: na primeira, buscou-se
apresentar o conceito de autismo para o Direito, assim como se autistas podem cometer crimes;
na segunda, estudou-se concepções sobre o interrogatório, além do uso do direito ao silêncio
no Júri; e, na terceira, analisou-se como os deficit conversacionais dos autistas afetam o litígio.

2 O AUTISMO NO DIREITO PÁTRIO: CONCEPÇÕES INICIAIS

Antes de estudar sobre o impacto dos deficit conversacionais para o interrogatório do


réu autista, é necessário compreender o que seria autismo para o Direito brasileiro. Diferente
de outras condições biopsíquicas, cuja conceituação segue as minúcias dos debates da área da
saúde, o Transtorno de Espectro Autista3 possui definição codificada na legislação nacional. A

2
Tendo em vista que o autismo possui níveis específicos de gravidade, não se pode falar qual é o número concreto
de indivíduos portadores. Os níveis mais brandos possuem comportamentos muito similares aos do homem médio,
o que dificulta bastante seus diagnósticos. Por esse motivo, é comum trabalhar, quando se fala de autismo, com
estimativas demográficas.
3
É fundamental destacar que, no decorrer deste trabalho, utiliza-se o termo “Transtorno do Espectro Autista”, em
coerência com o termo utilizado na Lei nº 12.764 de 2012. Contudo, nos dias de hoje, os profissionais da saúde
preferem o termo “Perturbação do Espectro Autista”, isto pois, de acordo com os próprios, a vinculação do termo
“Transtorno” carrega uma conotação negativa, sendo, pois, uma forma de preconceito (RORIZ; CANIÇO, 2016).
P á g i n a | 144

Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, alcunhada de “Lei do Autista”, é a responsável por


tal, quando atesta, no § 1º de seu primeiro artigo, que

§ 1º Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do espectro autista
aquela portadora de síndrome caracterizada na forma dos seguintes incisos I ou II:
I - deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação
sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal
usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver
e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II - padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades,
manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por
comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de
comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos.

Como relembra Rocha et al. apud Bispo (2020), o dispositivo acima não adveio de
arbitrariedade, mas de esforços conjuntos de profissionais da saúde e parlamentares, que
buscaram introduzir concretude às relações condicionadas ao autismo. Ou seja, a despeito das
controvérsias da área da saúde sobre a definição de TEA, o Estado reconhece como autista
aquele sujeito cujo escopo comportamental esteja de acordo com o descrito nos incisos I e II.
Esse escopo é, por conseguinte, utilizado pelos profissionais competentes para atestar
que um sujeito é portador de alguma condição pertencente ao espectro autista. Realiza-se um
exercício de método comparativo em âmbito corriqueiro, não controlado, cujos resultados são
sobrepostos e, se congruentes, transpostos positivamente em um laudo ou parecer (a depender
da condição do analista) (ROCHA et al. apud BISPO, 2020). Apenas com um documento
desses, pode o Direito pátrio reconhecer um sujeito como autista, seja em esfera cível ou penal.
No entanto, a área da saúde contribui para o conceito de autismo com outras minúcias
que não foram transpostas com primazia para o texto da Lei nº 12.764. Estas somam à
concepção sem ressignificá-la ou diminuir a análise comparativa, portanto interessa entendê-
las. A priori, Amorim (2008, p. 12) revela que “o autismo é considerado uma síndrome
comportamental de base biológica com múltiplas etiologias [teorias sobre possíveis causas].”
Trata-se não de psicopatologia ou deficiência, mas de um espectro sindrômico cujo intervalo
de comportamentos dissociados abarca várias condições, como, por exemplo, a de Asperger.
Esse rol de perturbações neurológicas influencia paulatinamente o desenvolvimento
social e/ou intelectual do portador, que acaba desenvolvendo comportamentos similares, se não
idênticos, aos descritos no § 1º acima. Esses usualmente aparecem acompanhados de ecolalia 4
e uso errôneo de palavras ou gramática, em especial no que tange à capacidade de organizar
frases e diálogos de forma coesa e coerente (RORIZ; CANIÇO, 2016).

4
De acordo com Kanitz (2018), ecolalia seria uma forma de enfraquecimento na capacidade subjetiva de manipular
e expressar palavras, o que resulta na reprodução mecânica do que se ouve.
P á g i n a | 145

Os deficit conversacionais são, de fato, um elemento que se repete, em graus diversos,


por todas as condições que pertencem ao espectro. Segundo Roriz e Caniço (2016), isso se dá
graças a uma dissociação neurobiológica que torna dificultoso a escuta atenciosa, a
interpretação condicionada e a captação simbológica, o que resulta na assimilação destoante
entre o que o autista é capaz ativamente de falar e articular, e o que ele ouve e compreende.
Esses deficit, contudo, variam de gravidade de acordo com o grau do próprio autismo
– isto pois, por se tratar de uma perturbação incurável, ela se manifesta de modo diferente a
depender do portador. Kanitz (2018, p. 3) descreve as especificidades comportamentais e
comunicacionais dos variados graus de autismo na seguinte tabela:

Tabela 1 – Níveis de gravidade para transtorno do espectro autista

Fonte: Kanitz (2018, p. 3)

A autora ainda afirma que o autismo vem, normalmente, acompanhado de um amplo


rol de comorbidades5, estas que afetam de forma drástica a capacidade conversacional do
sujeito, e são comuns em todos os níveis de gravidade supramencionados.

“No caso do autismo ocorre frequentemente associado com comprometimento


intelectual e transtorno estrutural de linguagem. Outro tipo de transtorno que atinge
muito gravemente seus portadores é o transtorno do desenvolvimento intelectual.”
(KANITZ, 2018, p. 4).

Ademais, ao analisar a tabela acima, é perceptível que não há uma diferença


substancial na natureza dos comportamentos e dos deficit conversacionais desenvolvidos – há

5
Comorbidade seria, nas palavras de Roriz e Caniço (2016), qualquer condição clínica que se desenvolve a partir
de uma doença prévia, seja por intermédio ou em consequência desta, ao ponto de que, se não existisse a primeira,
não seria possível atestar a existência da segunda.
P á g i n a | 146

apenas um aprofundamento de sintomas similares. Por isso, é essencial que se estude cada caso
com devido cuidado, uma vez que autistas se comportam de forma diferente a depender de suas
condições.
Negligenciar o trabalho comparativo metódico dos comportamentos viciosos pode
resultar no diagnóstico errôneo de um sujeito não autista, como se assim fosse. De igual
maneira, pode prejudicar os portadores de fato, visto que seus comportamentos podem ser
interpretados como uma mera dissociação dos atos do homem médio, e não como a perturbação
neurobiológica pertencente a um espectro sindrômico sem etiologia certa que é.

2.1 A capacidade do sujeito autista de cometer crimes

Antes de analisar como os deficit conversacionais do portador de TEA podem


fragilizar sua defesa perante o Tribunal do Júri, essencial é definir se esse indivíduo é capaz de,
ao menos, cometer um crime doloso contra a vida. Isto pois, como defende a doutrina, um ato
danoso não é, necessariamente, um crime – classificando-se como tal apenas se advir de fato
típico, ilícito e culpável. Assim, é preciso estudar os pormenores concernentes às condições
desses sujeitos e compará-los com as minúcias que auferem capacidade de autodeterminação
ao homem médio.
De acordo com Raul Zaffaroni e Henrique Pierangeli (2011), quando há concretude
da conduta, apenas três hipóteses excluem a classificação desta como crime: os excludentes de
tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Os primeiros buscam diferenciar, material e
formalmente, o ato realizado do tipo descrito em legislação penal. Os segundos almejam isentar
o réu ao notar que, ainda que sua conduta seja típica, ela não viola princípios basilares da ordem
legal brasileira. As terceiras dirimentes supracitadas, contudo, merecem análise mais cuidadosa,
pois estas podem ser usadas, quando pertinente for, a favor dos réus autistas.
Um injusto (ato típico e antijurídico) é culpável quando “é reprovável ao autor a
realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas
circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse.” Por esse motivo, ao tratar de culpabilidade
“requer-se que este [o sujeito desviante] tenha tido a possibilidade exigível de compreender a
antijuridicidade de sua conduta, e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de
autodeterminação mais ou menos amplo” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 525).
Os excludentes de culpabilidade buscam, então, definir que o réu era incapaz, ao
tempo de perpetração do ato, de se autodeterminar – o que é critério essencial para se auferir
P á g i n a | 147

crime6. Por meio de contestação da capacidade neurobiológica do sujeito, almeja-se revelar que
não há fundamento para reprovabilidade, tampouco para punibilidade, restando apenas o
injusto, que será tratado com as medidas de segurança postas no art. 96 do Código Penal
(BISPO, 2020).
Existem três excludentes de culpabilidade: a inimputabilidade, a potencial
inconsciência da ilicitude e a inexigibilidade de conduta diversa. Nota-se de antemão que esta
última é impraticável no caso do réu autista, uma vez que o art. 22 do Código Penal determina
como inexigível apenas o injusto praticado em face de coação moral irresistível e de obediência
hierárquica (MASSOM, 2014). As duas últimas, porém, podem contribuir de forma mais
substancial para a discussão em questão.
Imputabilidade pode ser definida, nas palavras de Silva apud Bispo (2020, p. 3), como
“a capacidade física, psicológica, moral e mental desenvolvida para entender o caráter ilícito
do fato, comportando-se de acordo com esse entendimento, […] discernindo entre o certo e o
errado, controlando a sua vontade.” Inimputabilidade seria, por conseguinte, o oposto de tal: a
incapacidade biológica e psíquica (necessitando preencher os dois critérios cumulativamente)
do indivíduo de se autodeterminar ao ponto de realizar conduta diversa da perpetrada.
De acordo com Massom (2014, p. 171), existem dois elementos intrínsecos à
imputabilidade: o intelectivo – que concerne à “integridade biopsíquica, consistente na perfeita
saúde mental” – e o volitivo – que se refere ao “domínio da vontade, é dizer, o agente controla
e comanda seus impulsos” –, ambos vistos no momento em que o fato danoso foi perpetrado.
Disso, é perceptível que o Direito pátrio adotou a teoria biopsicológica da inimputabilidade7.
Conforme descreve taxativamente o Código Penal, três sujeitos se encaixam no rol de
inimputáveis: o menor absoluto (art. 27); o portador de doença mental e/ou desenvolvimento
mental incompleto (art. 26); e o ébrio completo, cuja condição derive de caso fortuito ou força
maior (art. 28, § 1º). A priori, pode-se pensar que autistas se encaixam na segunda espécie de
inimputáveis, uma vez que sua condição limitante tem base biológica.

6
Conforme Zaffaroni e Pierangeli (2011), assim como a maioria da doutrina, a capacidade de autodeterminação é
elemento intrínseco não apenas para se apreciar atos desviantes da norma, como também para fundamentar todo o
sistema penal hodierno. Isto pois, se o sujeito é incapaz de reconhecer o dano em suas próprias ações, ou se o faz
mas é incapaz de agir de forma diversa, não se pode exercer o jus puniendi. Esse é o argumento basilar da doutrina
pátria, contudo interessa destacar que ele está sendo contestado cada vez mais com a ascensão do determinismo
penal e das teorias conciliadoras. Zaffaroni e Pierangeli (2011) abordam brevemente tal questão em seu manual, e
assim também faz Massom (2014), todavia, por ser uma discussão extensa, ela não será trazida nesse artigo.
7
Isto é, a teoria que defende que “é inimputável quem, ao tempo da conduta, apresenta um problema mental e, em
razão disso, não possui capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse
entendimento.” (MASSOM, 2014, p. 172). Não basta, portanto, apenas possuir uma condição deficitária de ordem
biológica: é necessário que essa condição torne o sujeito incapaz em sua totalidade.
P á g i n a | 148

Todavia, essa é uma generalização errônea. Para entender o motivo dessa afirmação,
é preciso analisar com cautela o texto legal do art. 26 do Código Penal. Ele diz, in verbis:

Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento.
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude
de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou
retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento (grifos nossos).

O dispositivo em questão aborda duas questões nucleares: a inimputabilidade


(descrita no caput) e o que a doutrina passou a chamar de semi-imputabilidade (posta no
parágrafo único). Ambas trabalham na premissa de privilegiar o agente que, por condição
biopsíquica de ordem limitante ou dissociada, perpetra injusto danoso (BISPO, 2020), porém
em graus distintos, em concordância com o grau de incapacidade percebida. Aos primeiros,
defende-se isenção; já aos segundos, advoga-se por redução coerente à dissociação de seus atos
com os do homem médio.
Sendo assim, só se pode classificar como inimputável aquele sujeito autista que,
por intermédio de sua condição, realiza fato típico e ilícito, mas que é incapaz de reconhecer –
em qualquer grau de consciência – o dano que ele causou ativa ou passiva, direta ou
indiretamente. Pois, ainda que o portador de TEA seja tratado, em âmbito processual, como se
fosse deficiente mental8, isso não afasta, por si próprio, a consciência da antijuridicidade.
De acordo com Minshen apud Amorim (2008, p. 12), existem “associações de
autismo com crises compulsivas e sinais de prejuízo neurológico e deficiência mental, que
fornecem evidências de que o autismo é um transtorno do desenvolvimento com base
neurobiológica” Por conseguinte, apenas essas condições graves pertencentes ao espectro
sindrômico podem fundamentar devida inimputabilidade. Todas aquelas que apenas limitam a
capacidade de reconhecimento da ilicitude, e não a eliminam inteiramente, não basilam natureza
inimputável.
No entanto, como defendem Roriz e Caniço (2016), é bastante raro que as condições
autistas neguem qualquer capacidade biopsíquica de reconhecer a ilicitude dos atos e agir de

8
Conforme dispõe o § 2º, do art. 1º da Lei Nº 12.764/12, “A pessoa com transtorno do espectro autista é
considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.
P á g i n a | 149

forma contrária. A grande maioria apenas engendra comportamentos dissociados, o que poderia
ser usado para se pleitear semi-imputabilidade9.
No que concerne à última excludente de culpabilidade, a potencial inconsciência da
ilicitude, pode-se usar bastante as discussões supracitadas, ao ponto de se concluir, igualmente,
que apenas os portadores de altos graus de autismo não compreendem inteiramente a natureza
de seus atos. Aqui, importa atestar que o art. 26 é resoluto em diferenciar os deficit que limitam
inteiramente, e aqueles que apenas cerceiam a capacidade de entender a ilicitude de suas
ações10.
Logo, para o primeiro, pode-se atestar que ele não é capaz, ao momento do
cometimento do injusto, de entender a natureza errônea de seus atos; contudo, para o segundo,
pode-se dizer que ele tinha meios de discernir tal, porém não o fez por limite imposto por sua
condição neurobiológica. Mayes (2016, p. 95) concorda com tal, quando afirma que os
principais “casos revelam que um réu com autismo ainda pode ser considerado como tendo a
capacidade mental necessária para diferenciar certo de errado ao cometer um crime (tradução
nossa)11”. Uma página antes, porém, o mesmo autor atesta que “um réu com autismo pode ter
um deficit tão severo com pensamentos abstratos que o indivíduo não é capaz de compreender
conceitos legais simples como ‘culpa’ ou ‘inocência’ (tradução e grifo nossos)12” (MAYES,
2016, p. 94).
Desse modo, confirma-se que um portador de Transtorno do Espectro Autista pode
sim cometer um crime doloso contra a vida, caso sua condição biopsicológica o torne
relativamente incapaz de discernir o ilícito de suas ações e, por conseguinte, de agir de forma
diversa. Se o tornar inteiramente incapaz, porém, não se pode falar de crime, apenas de injusto.

9
Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 348), a semi-imputabilidade não afasta inteiramente a culpabilidade
(portanto, ainda se lida com um crime passível de punição), apenas a sobrepesa em face das especificidades
limitantes do caso concreto. Para os autores, nesses casos “a culpabilidade […] apresenta um menor grau de
censurabilidade, em virtude de uma perturbação da consciência que não chega a configurar uma inimputabilidade.”
10
Destarte, sobre a consciência da ilicitude, Raul Zaffaroni e Henrique Pierangeli (2011, p. 537) afirmam que a
“culpabilidade se conforma com uma possibilidade de compreensão da antijuridicidade, não requerendo uma
efetiva compreensão do injusto, que, na maioria dos casos, não existe ou é imperfeita.” Isso significa dizer que,
para se atestar inconsciência da ilicitude, não se deve suscitar o entendimento subjetivo do autor, mas sim a
abstração englobante genérica, que define que o homem médio, na situação em questão, seria capaz de reconhecer
o ilícito de sua conduta. Isso, no entanto, está sendo questionado por certos doutrinadores causalistas, que requerem
“uma efetiva compreensão ou um efetivo conhecimento da antijuricidade, que chamam ‘consciência da
antijuridicidade’.” (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2011, p. 532)
11
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: “cases reveal that a defendant with autism can still be found
to have the requisite mental capacity to differentiate right from wrong when committing a crime.”
12
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: “a defendant with autism may have such severe deficit in
abstract thought that the individual is not able to comprehend simple legal concepts such as ‘guilt’ or ‘innocence.’”
P á g i n a | 150

3 QUESTÕES CONCERNENTES AO INTERROGATÓRIO NA TRIBUNA

Tendo esclarecido o tratamento que o Direito brasileiro dá ao portador de Transtorno


do Espectro Autista, importa agora apresentar as minúcias relevantes ao tema que caracterizam
o interrogatório do réu na tribuna13. A presente seção objetiva, por conseguinte, apresentar
desde o conceito de interrogatório, até a aplicabilidade do direito de silêncio e o princípio de
não autoincriminação, criando o fundamento sobre o qual a crítica a seguir será edificada.
De antemão, para o Direito Processual Penal, pode-se conceituar interrogatório como

o ato processual que confere oportunidade ao acusado de se dirigir diretamente ao juiz


[ou aos jurados], apresentando a sua versão defensiva aos fatos que lhe foram
imputados pela acusação, podendo inclusive indicar meios de prova, bem como
confessar, se entender cabível, ou mesmo permanecer em silêncio, fornecendo apenas
dados de qualificação. (NUCCI, 2020, p. 549).

Trata-se, pois, do espaço destinado ao réu para sua defesa direta, o qual pode ser
gozado para contestar suas acusações ou construir argumentos de natureza pessoal, parcial e
subjetiva que sustentem sua tese defensiva escolhida. Sua natureza como meio de prova ou de
defesa ainda suscita bastante discordância por parte da doutrina, contudo Nucci (2020, p. 550)
é resoluto em crer que se trata de um “meio de defesa, primordialmente; em segundo plano, é
meio de prova”14, e seu posicionamento soa deveras pertinente.
A Lei nº 11.719 de 2008 alterou certos pormenores do interrogatório, em especial no
que tange ao momento em que é colhido. Agora, ele passa a figurar como o último ato da fase
de instrução, sendo realizado na mesma audiência em que se realiza a oitiva das testemunhas
(sempre por último, pois, como é sabido, ao réu é salvaguardado o direito de confrontar seus
acusadores e se defender de seus depoimentos) (LIMA, 2019).
É realizado, obrigatoriamente, com a presença do defensor, seja público, seja privado,
que deve auxiliar o réu no procedimento, mas não deve substituí-lo ou arrogar seu direito de
fala. Destarte, o advogado pode figurar como interrogante, questionando o réu para melhor
formular, dentro da tribuna, seu fundamento defensivo a partir de um manuseio dialético das
informações providas por seu cliente. Contudo, o § 1º do art. 474 coloca-o em último lugar na
ordem de interrogantes, atrás do Ministério Público, o assistente e o querelante (LIMA, 2019).

13
É essencial estabelecer antecipadamente que o presente artigo se concentra apenas no interrogatório judicial
(isto é, aquele depoimento que é prestado pelo réu no tribunal). O interrogatório policial – ou seja, a oitiva realizada
pela autoridade policial ainda na fase de inquérito – foi ignorado por motivos de brevidade e redundância.
14
Com isso, o doutrinador quer dizer que “o interrogatório é, fundamentalmente, um meio de defesa, pois a
Constituição assegura ao réu o direito ao silêncio. [...] Entretanto, caso opte por falar, abrindo mão do direito ao
silêncio, seja lá o que disser, constitui meio de prova inequívoco, pois o magistrado poderá levar em consideração
suas declarações para condená-lo ou absolvê-lo.” (NUCCI, 2020, p. 550)
P á g i n a | 151

De acordo com Guilherme Nucci (2020, p. 1012),

A medida é inadequada e pode afrontar vários princípios e garantias constitucionais,


dentre os quais o direito de não produzir prova contra si mesmo, o direito de
permanecer em silêncio e, sobretudo, a plenitude de defesa. [...] Certamente, não serão
poucos os casos em que o objetivo constituirá na provocação da confissão ou, no
mínimo, da exteriorização de contradições, em franco prejuízo à defesa.

Ainda que seja dever do interrogante ser “neutro, absolutamente imparcial, equilibrado
e sereno”, não gerando “no réu medo, insegurança, nem tampouco revolta e rancor” (NUCCI,
2020, p. 564), é perceptível que grande parte da atividade do Ministério Público no processo
criminal orbita a máxima de desconstrução da pessoa do réu. Diminuí-lo é uma estratégia
viável, em especial quando se lida com crimes dolosos contra vida, tendo em vista a gravidade
do delito e a suscetibilidade dos membros do Tribunal do Júri (ADORNO, 1994).
Isso acaba por favorecer a acusação, pois qualquer “hostilidade contra o réu,
expressada pelo representante do Ministério Público, pelo querelante ou pelo assistente,
também poderá contribuir para prejudicar a imagem do acusado diante dos jurados.” (NUCCI,
2020, p. 1013) À primeira vista, pode-se resolver tal contenda apenas invocando o direito ao
silêncio e se recusando a responder os questionamentos do representante da instituição
inquisidora. Isso, porém, encontra dois grandes problemas que serão destrinchados a seguir.
O primeiro e mais óbvio deles é a obrigatoriedade do atendimento ao interrogatório.
De acordo com o art. 260 do Código de Processo Penal, “Se o acusado não atender à intimação
para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser
realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.” Este dispositivo estabelece,
pois, que o réu não pode se recusar a participar do interrogatório, ainda que seja portador do
direito fundamental ao silêncio e a não autoincriminação.
Sobre isso, Nucci (2020) reconhece a absurdez da aplicação literal desse dispositivo,
defendendo que o réu só deve ser conduzido coercitivamente no interrogatório de qualificação
(ou seja, aquele destinado a descobrir informações sobre a identidade do réu, como nome,
endereço, estado civil, dentre outras). O Supremo Tribunal Federal, na figura do Ministro
Gilmar Mendes, concorda com tal expressão, quando considera, por meio da ADPF 395, não
recepcionada pela Constituição de 1988 a expressão “para interrogatório” do art. 260.
Ainda nesse ponto, Guilherme Nucci (2020, p. 551) defende que é

muito mais adequado que o interrogatório deixe de ser ato processual obrigatório,
afinal, o réu tem direito ao silêncio, devendo comparecer se quiser prestar declarações.
O ideal, portanto, seria o interrogatório como ato facultativo, a realizar-se a critério
exclusivo da defesa, quando o acusado estivesse devidamente identificado e não
necessitasse ser qualificado diante do juiz. Nessa hipótese, abrindo mão do direito ao
P á g i n a | 152

silêncio, poderia oferecer os meios de prova e as teses que entendesse cabíveis,


contando com o questionamento das partes, embora por intermédio do magistrado.

Lima (2019) crê, no entanto, que poucos são os magistrados que cerceiam o direito ao
silêncio e não autoincriminação do réu, forçando-o a realizar o interrogatório se não quiser. O
acadêmico reforça que o interrogatório deve continuar obrigatório no sentido de que o juiz não
pode negá-lo ao réu, se assim ele requisitar; mas que, em todos os outros casos, deve ter sua
execução condicionada à expressão clara e deliberada da defesa.
Entretanto, Tristão (2008) afirma que é raro que o réu abra mão inteiramente de realizar
o interrogatório, pois é por meio dele que a defesa, na maioria dos casos, é capaz de contestar
a autoria dos fatos15. É no interrogatório que o réu pleiteia mais profundamente por sua
inocência, alegando fatos contrários aos apresentados pela acusação e suas testemunhas, ou
apresentando uma nova ótica motivacional para seus atos.
Tristão (2008) ainda aponta que o interrogatório provê não apenas um espaço para
defesa direta por parte do réu, como também um meio para se reconstruir como ser humano em
face do juiz e/ou dos jurados da sociedade civil. Como a acusação trabalha diminuindo o sujeito
desviante a seus moldes mais animalescos, abrir mão de uma oportunidade de se apresentar
como um ser humano vítima de injustiça ou capaz de cometer erros é uma atitude arriscada.
Se pôr no interrogatório é, pois, uma atitude quase que obrigatória do réu, que só pode
abdicá-lo se tiver meios de defesa eficazes. Isso, porém, não é o padrão. Usualmente, a defesa
se encontra em alta desvantagem, tendo em vista os recursos do Ministério Público, bem como
a concretude de suas provas e testemunhos (TRISTÃO, 2008). Ainda que possua o maior ônus,
essa instituição é capaz de arcar com tal de forma mister, cerceando o espectro de atuação da
defesa, que, normalmente, se limita a tentar contestar as provas apresentadas (se estiver
pleiteando absolvição). O interrogatório, pois, se apresenta como um de seus poucos trunfos.
Este, porém, vem com certos riscos. O primeiro e mais óbvio deles é que, ao se dispor
a ser interrogado, o réu também se sujeita a ser sabatinado por seus acusadores, não apenas os
seus defensores (o que pode causar resultados desastrosos a depender da preparação do sujeito).
A subseção a seguir destina-se a explorar justamente essa questão, apresentando o conceito de
direito ao silêncio, analisando o segundo risco que corre o réu ao concordar com o interrogatório
e estudando como todas essas minúcias refletem no Tribunal do Júri.

15
Raul Zaffaroni e Henrique Pierangeli relembram que, para se condenar, é preciso que o Ministério Público tenha
comprovado materialidade dos fatos e provido indícios de autoria. Se um dos dois elementos for frágil ou estiver
inexistente, é muito provável que o Tribunal, seja ordinário, seja do Júri, decida pela absolvição do sujeito – isto
se o caso se quer chegar à Tribunal, pois muitos dos litígios com fraca fundamentação são arquivados ou desistidos.
P á g i n a | 153

3.1 O direito ao silêncio e o princípio da não autoincriminação no Tribunal do Júri

Falar em interrogatório é falar em direito ao silêncio – e, por conseguinte, em princípio


da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere, isto é, direito de não produzir prova contra
si mesmo). Salvaguardado pela Constituição da República Federativa do Brasil, no inciso LXIII
de seu art. 5º, ele pode ser definido “como sendo a prerrogativa que o cidadão comum possui
de ser informado pelo Estado do direito de se calar perante questionamentos realizados por seus
agentes no exercício de sua função institucional.” (DOROCINSKI, 2013);
É um direito que vai além do interrogatório judicial, adentrando também o policial e
demais depoimentos realizados pelo réu nas questões em que figure como tal. Destarte, está
ligado diretamente ao princípio de não autoincriminação16, que pode ser definido como o
privilégio gozado por todos aqueles acusados de alguma conduta desviante, que lhes permite
participar do processo sem serem forçados a ajudar seus acusadores, provendo-lhes
informações que, sem seus consentimentos, são utilizadas contra eles próprios (LIMA, 2019).
Como relembra Nucci (2020), trata-se de um direito abdicável, não de um dever rijo,
portanto o indivíduo pode abrir mão do silêncio para, caso ache necessário, contribuir oralmente
com o litígio na tribuna. Ao fazer isso, ele corre o risco de acabar produzindo prova contra si
mesmo, pois concorda em plenário que sua palavra pode ser usada tanto pela acusação, quanto
pela defesa. Porém, não é um direito estático, abdicável de modo único e resoluto.
O direito ao silêncio é bastante maleável, e pode ser invocado em qualquer momento
que o réu não se sinta confortável em depor ou creia que sua fala pode acabar lhe prejudicando.
Não acarreta, em teoria, qualquer represália para o réu que decide desse direito se valer, visto
que lhe é garantido acesso inviolável a tal17 (DOROCINSKI, 2013). De fato, existe para
“proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-
se nele o resguardo contra violências físicas e morais” (QUEIJO apud LIMA, 2019, p. 72),
portanto é intolerável que o gozo de tal prerrogativa gere prejuízo à parte ré.

16
Também se relaciona com o princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo), que atesta que o sujeito,
dentro do processo criminal, sempre será tido como inocente até que seja comprovada, objetivamente, sua
culpabilidade; e o princípio do devido processo legal, que garante aos litigantes idoneidade durante todos os atos
principais e corolários, de modo que não se suprima direitos ou se privilegie ou prejudique determinado indivíduo.
17
O art. 198 do Código de Processo Penal vigente atesta que “O silêncio do acusado não importará confissão, mas
poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.”, porém nota-se, como defendem Zaffaroni
e Pierangeli (2011), que tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Além disso, para
solidificar a atestação indubitável de que o gozo do direito ao silêncio não resulta, teórica e formalmente, em
prejuízo, o parágrafo único do art. 186, com redação da Lei nº 10.792, afirma que “O silêncio, que não importará
em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” Sendo assim, por mais que o juiz devidamente
investido em seu cargo possa desgostar do uso do direito ao silêncio, ele não pode utilizar tal recusa tácita e passiva
como fundamento para sua decisão.
P á g i n a | 154

Na prática, porém, em especial nos litígios apreciados pelo Tribunal do Júri, o gozo
desse direito deve ser realizado com cautela, tendo em vista as consequências simbólicas e
significantes que pode acarretar. Isto pois, ainda que o juiz devidamente investido em seu cargo
não possa motivar suas decisões a partir de uma suspeita existente a partir do silêncio do réu na
tribuna, os jurados da sociedade civil, componentes intrínsecos daquele Tribunal, podem.
No Brasil, o Tribunal do Júri é composto por membros da sociedade civil que são, de
modo aleatório, invocados para apreciar crimes dolosos contra a vida18. Compete a esses
sujeitos determinar, por maioria simples, se o réu do litígio deve ser declarado culpado ou
inocente das acusações realizadas pelo Ministério Público. Realizam tal respondendo, de forma
individual, igualitária e secreta, a perguntas de sim ou não acerca do mérito, que são, em
seguida, recolhidas e apreciadas pelo juiz, que profere a sentença e realiza, conforme as
minúcias reconhecidas pelos jurados, a dosimetria da pena (ANTUNES, 2013).
Schritzmeyer (2012, p. 49) afirma que todo o processo se trata de “um jogo de
atribuição de sentidos atrelados ao poder de matar”, no qual os jurados atuam como
“ressignificadores” do fato levado a julgamento. “Eles transformam mortes físicas em
metáforas de dramas da vida, pois cadáveres motivam reflexões a respeito de conflitos [...]
Portanto […], as regras do jogo do Júri são as regras da vida em social” (SCHRITZMEYER,
2012, p. 49-50).
A autora ainda afirma que o jogo do Júri encontra forma na ritualística que deve ser
obrigatoriamente seguida, sob risco de nulidade do julgamento por vício. Por meio do ritual e
do teatro diretamente promovido por todos os envolvidos no litígio (não apenas partes, como
seus procuradores, assistentes, auxiliares da justiça, etc.), cria-se uma máxima de legitimidade
às decisões do Tribunal em questão. Ele se reveste de formalidade para compensar por sua falta
de investidura – requisito único que garante às suas decisões, legitimidade para fundamentar a
aplicação ou não do jus puniendi (SCHRITZMEYER, 2012).
O Tribunal do Júri nada mais é, pois, que um ato coletivo de interpretação ritualística
que almeja garantir legitimidade para decisões imotivadas. Como defende Antunes (2013), isso
é absurdo, pois, pelo Direito Penal carregar conotação negativa, engendrá-lo sem atrelagem
substancial à norma é abrir margem altíssima para a discricionariedade que resulta em decisões
injustas ou desarrazoáveis, derivadas puramente de elementos como o estigma.

18
Estes são, conforme o Código Penal taxativamente descreve: o homicídio e todas as suas modalidades; o
induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; o infanticídio; e o aborto criminoso provocado pela gestante ou por
terceiro, com ou sem seu consentimento.
P á g i n a | 155

A “produção do estigma é um processo pelo qual ocorre uma reação dos acusadores
ou das testemunhas que despoja do sujeito acusado e estigmatizado uma identidade considerada
normal, trata-se de um processo de despojamento da identidade considerada aceitável”
(ANTUNES, 2013, p. 60). Isso, a priori, poderia ser remediado com uma apelação para um
Tribunal composto unicamente de juízes devidamente investidos. Todavia, como relembra
Adorno (1994, p. 142), “Ao corpo de jurados cabe decidir […] sentença irrecorrível – ‘a decisão
do júri é soberana’ – a menos que constatadas irregularidades processuais”.
Por todos esses motivos, deve-se ter cuidado ao se utilizar o direito do silêncio, pois
ainda que ele represente a máxima do nemo tenetur se detegere, um jurado da sociedade civil
não está preso à norma processual. Ele não tem o dever de ignorar o silêncio do acusado,
podendo interpretá-lo como bem entender. Assim, em litígios que envolvam crimes dolosos
contra a vida, a defesa deve ponderar cuidadosamente sobre a utilização de seu maior trunfo.
Como é sabido, existe a expressão “Quem cala, consente”, que é assimilada em
paralelo com a premissa de que “Quem não deve, não teme”. Ainda que os jurados sejam
instruídos a deixar de lado tais preconcepções quando estejam integrando o Tribunal do Júri,
eles continuam a carregá-las, pois são indissociáveis (SCHRITZMEYER, 2012), tendo em vista
que advém de conhecimento popular concretizado e amplamente adotado.
Isso acaba por construir um espaço profundamente árduo no qual a defesa pode
construir sua arguição. Essa já está, usualmente, em desvantagem se forem considerados os
recursos e meios probatórios do Ministério Público. Aprofunda-se essa desigualdade ao se
perceber que sua principal estratégia – qual seja, a contestação de autoria por meio do
interrogatório do réu – pode ser recepcionada com um amplo rol de suspeição, esta que pode
resultar em um ímpeto para condenar. Se abrir mão dessa estratégia, instruindo o réu a usar
amplamente seu direito ao silêncio, recusando-se a responder seus acusadores, perde, de igual
medida, credibilidade.
Em face disso, é perceptível que a melhor estratégia para a defesa é manter a
contestação de autoria por meio do manuseio dialético das informações providas durante o
interrogatório do réu. Ainda que, no Tribunal do Júri, presencie hostilidade natural e imediata,
deve atuar no escopo que é capaz, a despeito das limitações impostas pelos jurados civis.
Entretanto, surge a indagação: quando o indivíduo possui algum tipo de deficit conversacional,
o quão este pode acabar prejudicando seu depoimento e, consequentemente, fragilizando ainda
mais sua defesa?
P á g i n a | 156

4 COMO O AUTISMO PODE PREJUDICAR O RÉU DENTRO DO LITÍGIO PENAL

Primeiramente, deve-se esclarecer que a condição autista pode condicionar problemas


que vão além do interrogatório, afetando o litígio como um todo. Muitos desses derivam do fato
de que autistas não estão acostumados a lidar, muitas vezes, com mudanças bruscas em sua
rotina ou ambiente (RORIZ; CANIÇO, 2016). Como o processo penal é orbitado por várias
dessas mudanças, é perceptível que o portador de TEA pode se tornar facilmente perturbado ou
emocionalmente instável no decorrer das fases do litígio.
O indivíduo autista é, naturalmente, um sujeito que dissocia a percepção de seu
entorno. Amorim (2008, p. 54) crê que tal está fundamentado no fato de que eles tem
dificuldade, muitas vezes, em engendrar relacionamentos empáticos com sujeitos que não são
familiares. A autora afirma que “crianças com autismo apresentam deficit na aquisição desta
habilidade, falhando em interagir socialmente e reconhecer o estado mental das pessoas.”
Isso pode resultar num estado de violência dos réus autistas que se encontram
separados daqueles com os quais se sente confortável. Ainda que isso se apresente apenas em
surtos esporádicos, pode vir a corroborar com a visão desumanizadora que Antunes (2013)
atenta19, especialmente se ocorrer durante o espaço que o réu tem para, direta e ativamente,
pleitear sua inocência para com os jurados.
A percepção de que o sujeito com autismo possui deficit empático pode, ainda,
explicar o motivo pelo qual cometeu um crime, desde que esse esteja arrolado com ou seja
significado como derivado de sua condição neurobiológica. Howlin apud King e Murphy
(2014, p. 2718) acredita que um “interesse obsessivo pode levar alguém a cometer uma ofensa
na busca desse interesse, talvez exacerbado por uma falha em reconhecer as implicações de seu
comportamento para si mesmo e para os outros (tradução nossa)20”.
A despeito das crises de agressividade que podem acontecer durante o julgamento, se
postos em um ambiente que lhes é hostil sem qualquer sujeito presente que lhe seja familiar, os
portadores de Transtorno do Espectro Autista ainda enfrentam os desafios neurobiológicos que
suas condições podem suscitar. O conversacional é o principal deles, mas não é o único.

19
Importa ressaltar, ademais, que o autista ainda é considerado, pela sociedade hodierna, um sujeito propenso à
violência. Bispo (2020) defende que tal visão é fruto do século XX, quando o autista era visto como doente mental.
À época, esse termo carregava hostilidade, que foi, quiçá, transposta para os portadores de TEA e se mantém até
hoje. Porém, como o próprio acadêmico ressalta, a “associação sem bases científicas para tanto traduz-se em
prática discriminatória, ferindo a própria dignidade humana, fundamento da República”. Causa, pois, “indignação
no meio social a tentativa de conectar o autismo [...] com a violência ou a criminalidade.” (BISPO, 2020, p. 4-5).
20
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: An obsessional interest might lead someone to committing
an offence in the pursuit of that interest, perhaps exacerbated by a failure to recognise the implications of his/her
behaviour for him/herself and others”.
P á g i n a | 157

Também recai sobre esses sujeitos o perigo da suscetibilidade, pois são suscetíveis à
manipulação, o que, no interrogatório, pode-se mostrar preocupante, tendo em vista que é usual
para o Ministério Público pressionar os réus a fim de darem respostas contraditórias ou de
conteúdo confessional (TRISTÃO, 2008). De acordo com Howlin apud King e Murphy (2014,
p. 2718), a “baixa compreensão das situações sociais (e fracas habilidades de negociação)”
podem deixar “as pessoas com TEA abertas à manipulação por outros (tradução nossa)21”.
Por esse motivo, nos casos em que figure como réu um indivíduo no espectro autista,
é preciso que a defesa o prepare (normalmente com o auxílio de alguém que o deixe confortável)
com deliberada cautela e repetido esforço. Isso pode se mostrar um árduo desafio se o réu estiver
preso (portanto, em ambiente hostil) ou possuir um grau de autismo elevado ao ponto de não
conseguir assimilar instruções ou conceitos-chave para sua defesa22.
Freckelton apud King e Murphy (2014, p. 2718) crê que essa última questão é uma das
mais preocupantes, pois influencia “a aptidão de uma pessoa para pleitear, arrogar
culpabilidade, responsabilidade criminal e habilidade de sobreviver às alienações de custódia
(tradução nossa).” Assim, se o indivíduo é incapaz de, por si próprio, pleitear sua absolvição
por meio da dialética, ele é impróprio para ser interrogado, pois pode proferir uma série de
depoimentos imprevisíveis, que, de certeza, resultarão em autoincriminação ou em vilipêndio.
King e Murphy concluem, logo, que “dados seus deficit de comunicação e problemas
de funcionamento social, pessoas com TEA podem ter dificuldade em lidar com interrogatórios
policiais e no tribunal, como fazem as pessoas com DI [Deficiências Intelectuais] (tradução
nossa)23”. Tais deficit podem, ainda, “restringir a capacidade de uma pessoa de relatar
vitimização […] [e] podem impedir a capacidade de um indivíduo de consultar e auxiliar seu
advogado (tradução nossa)24.” (MAYES, 2016, p. 93-94).
Nessa perspectiva, Mayes (2016, p. 96) resume o maior desafio nos litígios criminais
nos quais figura como réu um portador de TEA, quando afirma que

21
Transcreve-se, a seguir, o texto original em inglês: “A lack of understanding of social situations (and poor
negotiating skills) […] may leave people with an ASD open to manipulation by others”.
22
Tentar fazer com que um autista retenha ordens, sugestões ou conceitos abstratos é deveras dificultoso, pois,
conforme Amorim (2008, p. 52-55), alguns autistas são incapazes até de “atingir noção de temporalidade e morte,
já que para estes são necessárias capacidade de simbolização, abstração e meta-representações.” Desse modo, se
eles possuem dificuldade em assimilar conceitos tão básicos, é bastante improvável de que sejam capazes de,
metodicamente, decorar e pronunciar suas defesas.
23
Transcreve-se, à seguir, o texto original em inglês: “given their communication deficit and social functioning
difficulties, people with ASD might struggle to cope in police interviews and in court, like people with ID do”.
24
Transcreve-se, à seguir, o texto original em inglês: “communication impairments may restrict a person’s ability
to report victimization [...] [and] may impede an individual’s ability to consult with and assist counsel”.
P á g i n a | 158

o testemunho oferecido por uma pessoa com autismo [...] ocasionalmente representa
um desafio especial à maneira costumeira com que um tribunal conduz um julgamento
e recebe provas. Em particular, vários réus desconfiam da capacidade de uma vítima
com autismo de testemunhar em tribunal (tradução nossa)25.

Em face disso, percebe-se que o processo criminal se encontra drasticamente pendido


em detrimento do acusado cuja condição pertença ao espectro autista. Por esse motivo, a fim
de prezar pelo mínimo de balanceamento no litígio, não deve o Poder Judiciário tratar a pessoa
autista com hostilidade, como resposta às dificuldades que suas condições trazem ao processo.
Esses sujeitos não podem ser responsabilizados por possuírem uma perturbação neurobiológica,
tampouco pelos reflexos que essa tem dentro da tribuna.
Quando se trata de um crime doloso contra a vida, tais cuidados devem ser ainda mais
reforçados, tendo em vista que os jurados da sociedade civil não estão atrelados ao texto legal.
Portanto, podem achar pertinente penalizar um acusado autista (optando por condenação parcial
ou total) apenas por esse entrar em crise no interrogatório, gaguejar durante as respostas ou não
realizar contato visual com seu acusador. Se for o caso, é notável como seguem os impulsos
derivados do estigma, e não propriamente da suposta abstração-maior de justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o discutido nas seções desse artigo, pode-se concluir que, sendo o réu
autista e o litígio apreciado pelo Tribunal do Júri, a defesa se encontra em fragilidade. Colocar
um portador de TEA para ser interrogado é um grande risco, tendo em vista suas dificuldades
conversacionais e suas possíveis crises de violência imprevisíveis. Todavia, exercer o direito
ao silêncio pode se mostrar ainda mais perigoso, uma vez que desperta as suspeitas dos jurados
e aumenta a hostilidade, já tão usual, que esses têm dos réus acusados de crimes contra a vida.
É importante, pois, que os advogados de defesa tenham altíssima cautela ao lidar com
réus pertencentes ao espectro autista, não apenas na última fase da instrução, como durante todo
o processo. Seria essencial que os demais envolvidos no litígio trabalhassem em conjunto para
prover ao réu um ambiente em que se sinta confortável o suficiente para expor sua visão dos
fatos ou pleitear sua inocência. Todavia, como o Tribunal do Júri se assenta na premissa
teatralizada de auferir legitimidade ao Estado para, em resposta aos crimes dolosos contra a
vida, reprimir gravemente o agente, tal assertiva é utópica na melhor das hipóteses.

25
Transcreve-se, à seguir, o texto original em inglês: “testimony offered by a person with autism […] occasionally
poses a special challenge to the customary manner in which a court conducts a trial and receives evidence. In
particular, several defendants have challenged the ability of a crime victim with autism to testify in court.
P á g i n a | 159

Assim, o advogado de defesa deve trabalhar arduamente para tentar balancear, no que
for possível, as disparidades entre acusador e acusado, quando este último possuir Transtorno
do Espectro Autista. Precisa pleitear semi-imputabilidade; ajudar repetidamente seu cliente para
que consiga assimilar suas respostas; formular uma defesa cujo núcleo argumentativo seja de
fácil compreensão; dentre outros. Somente com a cautela hiperbólica de seu procurador, pode
o acusado autista ter a mínima chance de sua inocência considerada com seriedade.

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P á g i n a | 161

THE AUTISTIC DEFENDANT IN THE JURI: HOW THEIR CONVERSATIONAL


DIFFICULTIES AFFECT THEIR INTERROGATORIES

ABSTRACT

In view of a community afflicted by pathological crime, so that it does


not cause negative consequences to the whole and to the part beyond
reason, it is essential for the criminal procedure to adapt to the different
details that orbit each case – one of which is the vulnerability of the
subjects involved. This paper sought to explore how the condition of
one of these, the autistic, affects criminal litigation, especially those
under analysis by the Jury. In the research, it was analyzed the treatment
given by the Law to the carrier of Autistic Spectrum Disorder (ASD),
as well as reflexes in the adjudication of willful crimes against life by
the jurors of civil society. To achieve this, a descriptive and exploratory
bibliographic review of national and international academic
productions, both in the legal and health fields, was carried out. It was
realized, in the end, that the conversational difficulties inherent in high-
severity autism can weaken the defendant in terms of collaboration with
his lawyers, as well as making a testimony in court impossible. In view
of the fact that several defenses use the defendant’s interrogatory to
challenge the authorship, this can harm his defense. In addition, the
exercise of the right to silence can be counterproductive, since the Jury
can interpret it with a wide range of suspicion.

Keywords: Autistic Spectrum Disorder. Jury. Criminal Procedure Law.


Right to silence. Conversational difficulties. Interrogatory.
P á g i n a | 162

O MOVIMENTO LGBT BRASILEIRO, A LEI RN SEM HOMOFOBIA E O PROJETO


DE LEI DANDARA: UMA INTERPRETAÇÃO DIALÉTICA MARXISTA

Dandara Costa Rocha1

RESUMO

Considerando os dados, das mais diversas procedências, que apontam


as violências a que são submetidas as pessoas LGBTs no Brasil, com
especial atenção no Rio Grande do Norte, este trabalho objetiva
compreender como a história do movimento LGBT brasileiro contribui
para modificações do direito positivado e são por ele modificadas, a
partir da análise da “RN Sem Homofobia” (Lei nº 9.036/2007) e da “Lei
Dandara” (PL nº 7.292/2017) que se propõem a levar discussões
específicas, no tocante àquela população, para o âmbito da crítica do
ordenamento jurídico. A metodologia é analítica, revisando leituras
bibliográficas que apresentam uma história do movimento LGBT
brasileiro, sendo jurídica de base legal – partindo dos princípios
fundamentais da Constituição Federal de 1988, e de alterações que os
textos legislativos ora estudados propõem ao direito penal –, bem como
crítica com base na leitura marxista, destacando categorias que aportem
para uma compreensão totalizante. Conclui-se que, embora sejam
suficientes num determinado contexto sócio-histórico, são antes o
contrário quando se luta pela ruptura estrutural rumo à emancipação
humana.

Palavras-chave: História do Movimento LGBT brasileiro. RN Sem


Homofobia. Lei Dandara. Dialética marxista.

1 INTRODUÇÃO

No início do século XXI, parlamentares brasileiros apresentaram tanto a nível


estadual2 quanto a nível federal propostas de lei que objetivavam garantir o exercício do Estado
Democrático de Direito às pessoas assexuais, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,
intersexuais, dentre outras identidades3. Exemplos dessas são a Lei Estadual nº 9.036/2007, de
autoria do então deputado Fernando Mineiro, e o Projeto de Lei nº 7.292/2017, formulado pela
então congressista Luizianne Lins.

1
Discente do 7º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. E-mail:
damngerhl@gmail.com
2
No contexto deste trabalho, sempre considerar o termo “estadual” relativo ao Estado do Rio Grande do Norte.
3
A partir de agora, adotar-se-á a sigla LGBT (singular) e LGBTs (plural), que é o “acrônimo de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais. Eventualmente algumas pessoas utilizam a sigla GLBT, ou mesmo LGBTTT,
incluindo as pessoas transgênero/queer” (JESUS, 2012, p. 30).
P á g i n a | 163

Importa apontar a violência que essa parcela da população vivencia nesse contexto
sócio-histórico. Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia4 (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p.
12), em 2019 foram registradas “329 LGBT+ […] tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da
homotransfobia: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%)”, equivalendo a 1 morte a cada
26 horas (OLIVEIRA; MOTT, p. 13). Outrossim, segundo Boletim nº 05/2020 da Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2020), durante o lapso temporal de 1º de janeiro
a 31 de agosto de 2020, foram registrados 151 assassinatos de pessoas “trans”, o que
corresponde a um aumento de 22% em relação ao mesmo período do ano passado (ANTRA,
2020). Dados como esses escancaram a veemente opressão contra pessoas LGBTs,
exponenciada no contexto da pandemia do novo coronavírus.
Observa-se, a priori, que esses dados evidenciam um extermínio sistemático de LGBTs
motivado pelos discursos de ódio bradados em todas as instâncias da vida social potencializado
pela vulnerabilidade dessas populações. A título de exemplo, pode ser citado homicídio de
Dandara dos Santos, travesti de 42, morta a tiros na capital cearense em 15 de fevereiro de 2017
em plena luz do dia depois de ter sido espancada.
Por isso, o presente trabalho se torna relevante em razão da atualidade do tema da
LGBTfobia5, considerando o recente julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
26, enviada à Corte em 2013 pelo Partido Popular Socialista, e o Mandado de Injunção nº 4.733,
protocolado em 2012 pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros, decidindo
o Supremo Tribunal Federal enquadrar condutas LGBTfóbicas na tipificação da Lei do
Racismo, até que o Congresso Nacional edite lei específica6 (BRASIL, 2019).
Diante disso, a compreensão crítica do direito para além de normas justificada está a
importância deste estudo, evidenciando-se sua importância social, cultural e política. Sendo
assim, analisa-se as relações jurídicas inseridas dentro de um contexto histórico, material e
dialético. Além dos pontos citados, aponta-se como justificativa essencial a conexão do tema
com a autora, de forma que a consciência das opressões que vivencia seja pensada numa
perspectiva científica no âmbito da pesquisa, enquanto forma de tornar o conhecimento
potência de transformação social.

4
A partir de agora, adotar-se-á a sigla GGB.
5
Pontes (2018, p. 8) compreende a LGBTfobia como “termo utilizado para caracterizar condutas de discriminação
e preconceito sofridas pela população LGBT [...] em virtude da sua orientação sexual, identidade ou expressão de
gênero”, ou seja, devido a essas pessoas não se encontram dentro dos rígidos conceitos ancorados na
heteronormatividade e na lógica binária de gênero, tais como heterossexualidade, homem masculino e mulher
feminina.
6
A ADO teve relatoria do ministro Celso de Mello, e a MI, do ministro Edson Fachin; o julgamento foi concluído
no dia 13 de junho de 2019 (BRASIL, 2019).
P á g i n a | 164

Nesse sentido, cumpre apresentar a seguinte questão: com base numa leitura marxista
dos direitos humanos, em que medida o “RN Sem LGBTfobia” e a “Lei Dandara” são
eficientes, uma vez que convergem para a disputa pela ampliação de direitos de pessoas LGBTs
ao mesmo tempo em que também demandam o aumento do encarceramento?
A partir disso, objetiva-se: de forma geral, compreender quais são as limitações
formais e materiais que os textos legislativos aqui analisados impõem para o exercício do
Estado Democrático de Direito para as pessoas LGBTs. Ademais, de forma específica: (i)
apresentar os conceitos de direitos humanos e argumentar acerca de sua disputa na história das
lutas de classes; (ii) analisar concretamente principais ações propostas pelo movimento LGBT
brasileiro, desde a Ditadura Militar (1964-1985) até os dias atuais; e (iii) identificar a tônica do
PL nº 7292/2017 e da Lei Estadual nº 9036/2007, que propõem modificações estruturais do
direito e do Estado a partir de pautas LGBTs.
Na primeira seção, tendo em vista que o método desta pesquisa é o materialismo
histórico e dialético, são apresentados os conceitos de direitos humanos de perspectiva marxista,
atendo-se a contradições ideológicas, portanto, dialéticas, em todos os âmbitos da sociedade,
inclusive no jurídico. Tais contradições acendem com a contextualização das ações do
movimento LGBT brasileiro na esteira da Ditadura Militar (1964-1985), e, logo em seguida,
toca-se em pontos de confrontos vivenciados na ocasião da Constituinte de 1987 entre líderes
do movimento e os formuladores da posterior Constituição Federal de 1988.
Por se tratar de uma pesquisa exploratória e explicativa, recorreu-se a revisão literária
da história do movimento, ou seja, a adoção do método de pesquisa bibliográfica e da técnica
de coleta documental, nas quais foram apontados limites e contradições. Para efeito analítico,
foram consultados dispositivos dos textos legislativos supramencionados. Já para uma
compreensão mais apurada a respeito de como são conquistados os direitos por grupos
historicamente oprimidos, foram apreendidas leituras de sociologia jurídica e ciência política
de base marxista, uma vez que a compreensão que ora se discute é que o direito e o Estado são
instrumentos de disputa de classes antagônicas.

2 DIALÉTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Parte-se do princípio de que a violência contra pessoas LGBTs é fruto de um processo


mais amplo do que os limites deste acrônimo. E, dessa forma, são negadas suas existências e
subjetividades enquanto seres humanos no mundo (SARTRE, 1987, p. 9).
P á g i n a | 165

Sendo assim, ressalta-se que as normas já existentes no ordenamento jurídico brasileiro


não são suficientes para garantir a cidadania plena de pessoas LGBTs, como apontado nos
dados anteriores, bem como combater a discriminação contra essa fração da sociedade, tendo
em vista muitas deficiências socioculturais e, ao mesmo tempo, legais. Oliveira e Mott (2020,
p. 91-100), apresentando “quinze notícias de sentenças criminais proferidas pela justiça em
casos de crimes cometidos contra LGBT+”, muitos deles por motivo fútil ou torpe7, que são
circunstâncias sempre agravantes de um crime (art. 61, II, “a”, Código Penal) quanto
qualificadoras do homicídio (art. 121, § 2º, I, II, Código Penal).
Konder (2008, p. 41-2) conceitua a dialética como um conjunto de leis da mediação e
contradição – “princípio básico do movimento pelo qual os seres existem” – encerrado pela
síntese. Segundo a leitura marxista, “o conhecimento é totalizante e a atividade humana, em
geral, é um processo de totalização, que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada”
(KONDER, 2008, p. 35). Em outras palavras, esse método parte de “uma visão de conjunto da
história da humanidade, quer dizer, da dinâmica da realidade humana como um todo”
(KONDER, 2008, p. 37), superando a noção imutável de racionalismo.
Diante disso, parte-se da ideia de que “as relações jurídicas, bem como as formas do
Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito
humano”, mas estão arraigadas “nas condições materiais de existência, em suas totalidades”
(MARX, 2008, p. 47). O seu conteúdo, pois, “conteúdo passam a ser representados pela própria
desigualdade de classe” (DEMIER; GONÇALVES, 2017, p. 2360).
Portanto, as lutas do movimento LGBT brasileiro são parte da história das lutas de
classes, uma vez que reivindica para si “uma modificação no conteúdo das normas jurídicas e
uma modificação das normas do direito”, como “também o desenvolvimento da forma jurídica
como tal” (PACHUKANIS, 2017, p. 86). Para Pachukanis (2017, p. 89), o direito é “uma forma
ideológica”, e “ao mesmo tempo, uma forma de ser social”8.
Nesse sentido, é possível apontar a história do processo de direitos e garantias para as
pessoas LGBTs é indissociável da totalidade das relações das lutas de classes em si,
compreendida como uma multidão, uma “massa”, criada a partir das transformações trazidas
pelo capital, que se constitui enquanto classe a partir do reconhecimento de interesses comuns

7
Chama atenção o caso “da morte de Michael Morgan Noronha, 57, pai de santo, morto em Campo Grande (MS),
pelo pintor Leonardo Rodrigues Jure, 25” (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p. 100), tendo o homicídio ocorrido no dia
30 de julho de 2018 e o réu relatado que prática do crime foi motivada “por medo de ter o relacionamento amoroso
exposto à sociedade, devido as chantagens feitas pela vítima” (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p. 100), o que
potencializa o argumento que as regras de heteronormatividades é um dos pilares da LGBTfobia.
8
O jurista marxista soviético argumenta que “o caráter ideológico de um conceito não elimina aquelas relações
reais e materiais que este imprime” (PACHUKANIS, 2017, p. 89).
P á g i n a | 166

(MARX, 2017, p. 146). Consoante Marx (2017, p. 146), é somente reunida na luta que essa
massa se constitui em “classe para si”, e os interesses – as “bandeiras” – defendidos “se tornam
interesses de classe”.
Dito isso, é partir da “luta política” (MARX, 2017, p. 146) com classes que defendem
interesses antagônicos que a dialética da história é ressignificada. E, nesse contexto, os dos
direitos humanos passam a ser objeto de disputa. Sendo assim, os direitos humanos, consoante
Lyra Filho (2006, p. 10-11):

conscientizam e declaram o que vai sendo adquirido nas lutas sociais e dentro da
História, para transformar-se em opção jurídica indeclinável. E condenam, é evidente,
qualquer Estado ou legislação que deseje paralisar o constante progresso, através de
ditaduras burocrático-policiais, sejam elas cínicas e ostensivas ou hipócritas e
disfarçadas.

Entrementes, atenta-se para o aspecto da história de rupturas e continuidades, isto é,


“sucessivas transformações […] de acordo com as necessidades sociais” (WOLKMER, 2006,
p. 7) e, por conseguinte, administrando-se a tentativa de não incorrer em anacronismo, mas sem
perder de vista que, consoante discorreu Marx (2011, p. 25), “os homens fazem a sua própria
história”, haja vista que não “segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de
sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado” (MARX, 2011, p. 25). Dito isso, não se pode “perder de vista que o desenvolvimento
dialético dos conceitos corresponde ao desenvolvimento dialético do próprio processo
histórico” (PACHUKANIS, 2017, p. 86).

3 O MOVIMENTO LGBT BRASILEIRO EM MOVIMENTO

3.1 “O estandarte do sanatório geral vai passar”: criatividade e resistência durante a


ditadura militar

As movimentações para debater homossexualidade no Brasil surgem como


experimentação, a qual acontece “no final dos anos setenta até os seus desdobramentos
presentes, na forma do movimento LGBT” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 11), em bares,
saunas, clubes, discotecas, em teatros e nos chamados “guetos” (SIMÕES; FACCHINI, 2009,
p. 18), isto é, ultrapassando a esfera do indivíduo. Da mesma forma, assim fundamenta Rozario
(2018, p. 5):

Os movimentos LGBTs brasileiros surgidos em meados do século XX tiveram como


marco histórico-político grandes influências do contexto internacional de
P á g i n a | 167

mobilização, especificamente dos movimentos LGBT norte-americano que num fato


histórico de violação de direitos estiveram como protagonistas: lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais, vítimas de uma gama de preconceitos, violências,
discriminações, agressões físicas e psicológicas.

Nesse sentido, não se pode perder de vista que os indivíduos não estão isolados em
universos paralelos, mas vivendo em sociedade, onde há a disputa de ideologias, construção de
consciências e identidades construídas a partir de bases materiais já existentes em suas classes
(MARX; ENGELS, 1998). Para Marx (2008, p. 47), “não é a consciência dos homens que
determina o seu ser”, mas o contrário; e essa consciência é o resultado da totalidade das relações
sociais de produção de base capitalista, as quais são constituídas pela “estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais”.
Por ser um movimento social, a luta LGBT não se fará com nenhuma ou pouca
contradição, uma vez que suas bandeiras foram levantadas – e ainda o são, ressignificadas no
processo dialético – “em torno do significado do casamento, da família, da parentalidade e da
própria identidade pessoal” (idem), descaracterizando a ideia de “pautas minoritárias” para
“pautas de grupos sem visibilidade social e política” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 11).
Desse modo, o movimento LGBT, tornando-se “um terreno político por excelência”
(SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 12) assim como outros movimentos progressistas910, passa a
questionar a autoridade do Estado brasileiro no tocante à ausência de políticas públicas e do
exercício da cidadania – em outras palavras, de direitos.
Convém ressaltar que publicizar a orientação sexual ou a identidade de gênero em
tempos de ditadura não era fácil, mas o movimento LGBT tornava esse ato como significado
de “uma afirmação de pertencimento e uma tomada de posição diante das normas sociais que
condenam, hostilizam ou reprimir a expressão da diversidade de orientação sexual [e de
identidade de gênero]” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 33). Ademais, essa resistência não deve
ser contextualizada isoladamente; pelo contrário, deve ser submetida à análise concreta de “uma
série de planejamento de combate a inúmeras violências e relatos de homicídios sofridos por
pessoas que fugiam de uma regra moral pautada na heterossexualidade normativa” (ROZARIO,
2018, p. 5), tendo, como consequência da organização, a elaboração de “um cronograma de

9
Cf. Pires (2018, p. 1059), confrontando com a ideia de “democracia racial”, destacam-se a atuação de grupos
cariocas como Movimento Negro Unificado (MNU), Grupo de União e Conscientização Negra (GRUCON),
Movimento Negro da Baixada (MNB), Clube Palmares (Volta Redonda/RJ), Grupo de Danças OLORUM BABA
MIM, Associação Cultural Afro-Brasileira e Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA).
10
Cf. Colling (2015, p. 375-77), da mesma forma, o movimento feminista brasileiro, que nos anos 1960 vivencia
uma “segunda onda”, passa a disputar, no contexto da ditadura militar, o espaço público e o político, levando ao
engajamento de mulheres em partidos de esquerda e organizações clandestinas.
P á g i n a | 168

atividades, pautas e bandeiras de lutas em busca de Políticas Públicas” (ROZARIO, 2018, p.


5).
Durante a repressão legalizada dos anos 1964-1985, que fechou periódicos com O
Pasquim e Luta Democrática, e normatizou o Código Penal Militar em 1969 (ainda em vigor),
que em seu art. 235 tipifica a conduta de “praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique
ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”, punindo com
detenção de seis meses a um ano. Nesse sentido, convém mencionar, conforme o faz Cabral
(2015, p. 136), que a Comissão Nacional da Verdade “apontou […] que as perseguições e
abusos sofridos por” LGBTs ocorreram “por parte dos militares e seus correligionários”, bem
como “por grupos de esquerda, apesar da participação ativa de LGBTs na resistência contra o
regime que, pela sua própria condição de minoria e subalternidade os submeteu às torturas mais
graves” (CABRAL, 2015, p. 136).
Naquele momento, surgiram coletivos ativistas de “entendidos”, a exemplos do GGB,
do Somos e do Triângulo Rosa (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 61). Assim, também se
apresentavam os escritores Peter Fry, Luiz Mott e Pires de Almeida; os psiquiatras Francisco
José Viveiros de Castro, Leonídio Ribeiro, Antonio Carlos Pacheco e Silva; os literatos João
Silvério Trevisan e Caio Fernando Abreu; e os cantores Ney Matogrosso, Cazuza e Renato
Russo (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 57-64), dentre outros.
No tocante à impressa, Simões e Facchini (2009, p. 75) ensinam que “O Pasquim foi
o primeiro veículo de grande circulação a tratar (…) da contracultura, do underground e do
desbunde”, e argumentam (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 86) que o “Lampião da Esquina”
foi um “jornal que se propunha a sair do ‘gueto’” para “ser um veículo pluralista aberto a
diferentes pontos de vista sobre diferentes questões minoritárias”, pondo “em prática com a
publicação de matérias sobre movimento feminista, movimento negro, transexualidade,
sadomasoquismo, populações indígenas, prisioneiros, ecologia e até mesmo uso de maconha”
(SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 86).
Dito isso, é importante, ainda, dar um destaque maior ao Lampião da Esquina, uma
vez que essa foi a mais importante manifestação organizada que pautou críticas tanto à aos
partidos de situação da ditadura quanto aos que se denominavam de “esquerda”. Nesse sentido,
é possível apontá-lo como propulsor de um “abalo” durante a ditadura, isso é, da possibilidade
de apontar a repressão tanto por parte da classe espoliadora quanto pelo lado da classe espoliada.

3.2 “Malditas Genis”: contradições e disputas na Constituinte de 1987/1988


P á g i n a | 169

Com o processo de abertura formal do Estado, o movimento LGBT viu na Assembleia


Constituinte de 1987/1988 o momento de debater direitos e garantias democráticas específicas
para se fazer constar na Constituição de 1988. Assim sendo, o movimento pode ser
compreendido no âmbito das chamadas “lutas sociais” (LYRA FILHO, 2006, p. 50), como um
sujeito coletivo de direito organizado para exigir direitos e garantias da criação da Constituição
Federal de 1988: o Estado Democrático de Direito. Dito isso, assim Rozario (2018, p. 6)
contextualiza o período:

A partir da década de 1980, os movimentos sociais em geral, com as novas


configurações em meio à sociedade e o Estado, cristalizam ideias via projetos com o
objetivo de possibilitar o diálogo entre militância e Estado.
Destaca-se a partir da década de 1990, uma efervescência do movimento LGBT, isto
é, apresentando-se ao cenário de um Estado democrático. Esses movimentos passam
a expandir-se em todo Brasil e surge um movimento heterogêneo cuja diversidade
está pautada na pluralidade intrínseca ao LGBT. Surgem Associações baseadas na
própria diversidade homoafetiva, segmentando a bandeira e fortalecendo as bandeiras
de lutas.

Assim sendo, a discussão aqui proposta aponta para a compreensão de direitos


fundamentais dispostos em artigos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
no tocante aos indivíduos e aos coletivos, sejam eles princípios ou direitos e garantias.
No art. 1º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) são mencionados os vocábulos
“cidadania”, “dignidade” e “pluralismo político”, os quais apontam para um garantismo sem
precedentes na história constitucional brasileira, chamado de direitos fundamentais. Esses
termos dialogam com o conceito de democracia elaborado por Chauí (2000, p. 560, grifos da
autora), assim descrevendo-o:

Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática,


quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república,
respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é
condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.

De forma complementar, o art. 3º, IV, dispõe sobre a promoção do “bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
como um dos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, enquanto o art. 4º,
caput, II, dispõe que um dos princípios que regem as relações internacionais a República
Federativa do Brasil é a prevalência de direitos humanos.
Entretanto, Marmelstein (2014, p. 78) acredita que há violação do direito à igualdade
por parte do Estado brasileiro quando apresenta discussão acerca da discriminação às pessoas
LGBT no âmbito jurídico, como casamento homoafetivo (favorável pelo STF a partir da ADI
P á g i n a | 170

nº 4277/2011)11, adoção de crianças e direitos previdenciários sucessórios. Nesse sentido, ainda


que alguns direitos tenham sido positivados, numa leitura marxista, as LGBTs precisam
conquistar o reconhecimento de direitos, tanto formais quanto materiais, pela luta.
Nesse sentido, encontra-se base no conceito de emancipação política de Marx. Para o
autor, seria a “dissolução da sociedade antiga”, estabelecendo-se “em relação à aparência de
um teor universal”; seria a forma – insuficiente, diga-se de passagem – de um “Estado livre sem
que o homem seja um homem livre”, dentro da ordem mundial vigente, apondo-a à
emancipação humana, que em última instância é a força social enquanto força política (MARX,
2010, p. 41-52)12.
Entretanto, essa conquista é fruto da história dos movimentos sociais, como o LGBT,
e da dialética com as classes dominantes, uma vez que “assim como o Estado é o Estado da
classe dominante, as ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época”
(GORENDER, 1998, p. XXXII), e LGBTs nunca ocuparam o palco dessa classe dominante,
por uma série de questões históricas, daí a necessidade de que lutasse por reconhecimento. É
nesse sentido que argumenta Chauí (2000, p. 560):

As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis) e, a partir


destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação,
lazer, cultura –, os direitos das chamadas “minorias” – mulheres, idosos, negros,
homossexuais, crianças, índios – e o direito à segurança planetária – as lutas
ecológicas e contra as armas nucleares.

Nesse sentido, não é à toa que na década da formação da Constituinte e da elaboração


da Constituição Federal o movimento LGBT organizado passava por um período de intenso
declínio, havendo diminuição evidente no número de organizações ativistas de 1981 a 1991
(SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 117) devido à epidemia do HIV. João Antônio Mascarenhas e
Luiz Mott foram responsáveis pela rearticulação ao redor da nova pauta, enquanto os grupos
Triângulo Rosa (até 1988), GGB e Atobá foram reconhecidos pelo “Estado como sociedades
civis como declaradamente homossexuais” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 117-118).
Diante do evidente fim da ditadura, Mascarenhas e Mott foram responsáveis por pautas
do movimento LGBT – com maior urgência a necessidade de políticas de saúde contra o HIV
via SUS – à Assembleia Constituinte de 1988, com escandalosas derrotas (SIMÕES;
FACCHINI, 2009, p. 122).

11
Ver, por exemplo, o material elaborado por BRASIL, 2020.
12
Em suas palavras: “A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade
burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral” (MARX, 2010, p. 54).
P á g i n a | 171

Embora esse processo evidencie que o caráter classista norteou a elaboração do


principal texto do ordenamento jurídico brasileiro, Ferreira (2018, p. 56, grifos do autor)
acredita que o debate no âmbito legislativo deve sempre ser de cunho político e analítico, uma
vez que constitui “uma oportunidade de cogitação legislativa e corresponde, portanto, para
utilizar a terminologia adotada por Aristóteles em sua Retórica, a uma manifestação do gênero
deliberativo”, e, neste sentido, “trata-se de um evento cujo foco é o futuro e cuja finalidade é a
tomada de decisões” (FERREIRA, 2018, p. 56).
Nesse sentido, é possível apontar que negações à proposição de “direitos LGBTs”
estariam alinhadas não à incompetência do Poder Legislativo, mas de uma escolha pelo
alinhamento político condizente com o pensamento da ideologia dominante. Sendo assim,
discorre Lyra Filho (2006, p. 21):

As formações ideológicas estariam [...] relacionadas com a divisão de classes,


favorecendo uma (privilegiada) e se impondo à outra (espoliada na própria base de
sua existência material). Tal dominação, evidentemente, não será eterna, pois as
contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e, conscientizados
nisso, os que carregam o peso da opressão abre-se espaço à contestação da “ideologia
oficial”.

Ademais, as organizações partidárias se tornaram essenciais para levar o debate a nível


institucional. Sendo assim, na década de 1990 foram criadas setoriais LGBTs no Partido dos
Trabalhadores e no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados e o projeto de lei de união
civil igualitária, em 1995, no mesmo ano da criação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais e Transexuais (ABLGT). Em 2000 foram lançados às primeiras candidaturas de
pessoas LGBTs (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 139).
Entretanto, os principais projetos eram voltados para a prevenção do HIV e o combate
à AIDS, e não para a educação crítica e total. Em 1999 foi criado o Programa Nacional de DST
e AIDS e foram realizados encontros, de 1995 a 1997, para aglutinar pessoas que trabalhavam
com AIDS, no contexto do Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis (SIMÕES;
FACCHINI, 2009, p. 144).
O governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou, consoante apresentam
Simões e Facchini (2009, p. 145), o “Programa Brasil Sem Homofobia em 2004”, e,

a partir de 2005, [lançou] os editais para apresentação de projetos voltados ao combate


e à prevenção da homofobia, incluindo a oferta de aconselhamento psicológico e
assessoria jurídica; e à qualificação de profissionais de educação nas temáticas de
orientação sexual e identidade de gênero (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 145).
P á g i n a | 172

Ações como essa evidenciam a conquista de direitos da população LGBT no marco da


democracia burguesa, em conformidade com suas lutas, o que não significa apontar que se trata
da materialização de pautas que, de fato, rompam com o sistema de opressão rumo à
emancipação humana. Por isso, essas questões são essenciais para compreender como as lutas
políticas travadas pelo movimento LGBT devem ser lidas como específicas e universais, de
forma que as reivindicações apresentaram inédito reconhecimento de direitos, com fundamento
nos direitos humanos, mas também potencializaram que a luta é o único instrumento capaz de
transformações mais profundas.

4 DO “RN SEM HOMOFOBIA” E DA “LEI DANDARA”

Diante dos embates, as conquistas e as derrotas que fazem parte do movimento


concreto no contexto sócio-histórico concreto, existe o debate em torno da formulação de leis
que visem diminuir danos à população LGBT, ampliar o (aparentemente, inalcançável) status
de cidadania. Para Lyra Filho (2006, p. 51, grifos do autor), é parte de um contexto da

[…] práxis dos grupos e classes em ascensão [como também], à medida que essas
formulam os objetivos de sua luta, uma série de reivindicações, jurídicas também.
Isso, desde que por Direito não se tome, nem o que a ordem dominante estabelece,
nem um conjunto de princípios que não revelam bem de que fontes extraem substância
e validade e por que mudam, historicamente, ficando uns superados – como vimos,
quanto ao “dar a cada um o que é seu” – e outros aparecendo no horizonte, como, por
exemplo, o direito de todos a um nível de vida adequado, que emerge na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, consagrando um princípio ganho nas lutas
sociais mais modernas.

Assim, é possível apontar que essas reivindicações do movimento LGBT (as quais
podem e devem ser analisadas como “jurídicas também”) encontram na elaboração de leis –
por parte de parlamentares que discursam em defesa da cidadania, dos direitos humanos, do
respeito, do combate às discriminações, entre outros direitos essenciais, em tese garantidos pela
Constituição Federal de 1988 – o viés dado como legítimo, no contexto do Estado Democrático
de Direito brasileiro, de mudança da legislação para garantir o tripé cidadania-direitos-justiça a
corpos tão massacrados e negados historicamente.

4.1 Lei nº 7.292/2017

No ano de 2017 o Projeto de Lei Federal nº 7.292 (BRASIL, 2017, online), de autoria
da deputada Luizianne Lins, pretendendo modificar o art. 121 do Código Penal, criando o tipo
penal de homicídio motivados pelo ódio a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
P á g i n a | 173

transgêneros e travestis (LGBTs), bem como também o art. 1º da Lei nº 8072/1990, incluindo
o “LGBTcídio” no rol de crimes hediondos.
Assim sendo, o PL, que foi intitulado com o nome da travesti cearense assassinada
(conforme mencionado na Introdução), faz alusão aos alarmantes dados de assassinato da
população travesti e transexual do Brasil. Segundo Lins (2017):

Sofremos com a ausência de leis que garantam proteção a esse segmento da população
e esse é um dos fatores que geram a vulnerabilidade. Esses crimes são tipificados por
discriminação e menosprezo à condição de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais, ou seja, cometidos exclusivamente pelo ódio e merecem a devida atenção
e punição.

Convém ressaltar que o verbete “vulnerabilidade” é constituído a partir de análises


materiais e concretas, como os já mencionados índices de assassinatos, mas antes mesmo da
concretização da morte, há a morte em vida: violências físicas e psicológicas; são estigmas,
estereótipos, violência por preconceito, bem como violências específicas (contra as mulheres,
contra as pessoas negras, contra pessoas gordas, contra deficientes físicos etc.). Ou seja, há
questões anteriores que devem ser levadas em conta antes de atribuir a esse projeto de lei de
suposto privilégio às pessoas LGBTs13.
No mesmo sentido, versando sobre a necessidade da ampliação do debate da
LGBTfobia para além dos limites dessa fração da sociedade, destaca-se o recente
enquadramento do Supremo Tribunal Federal da LGBTfobia como crime de racismo, conforme
mencionado anteriormente. Dito isso, esses ataques são exemplos das citadas “discriminações
e menosprezo à condição de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, ou seja,
cometidos exclusivamente pelo ódio e merecem”. Nesse sentido, Simões e Facchini (2009, p.
25) argumentam que:

Não é por acaso que o ativismo tem enfatizado a denúncia das violências específicas
contra a homossexualidade. De modo semelhante à “misoginia” ou o “machismo”,
para o caso do movimento feminista, e ao “racismo”, para o caso do movimento negro,
a homofobia aparece para o movimento LGBT como uma âncora a partir da qual se
procura estruturar as identidades coletivas associadas ao movimento e legitimar a
perspectiva de outras conquistas no campo dos direitos e da política.

Entretanto, tal Projeto de Lei, no uso de suas atribuições, trabalho do sentido


mantenedor do “vínculo conceitual entre crime e castigo” (DAVIS, 2018, p. 121), deixando de
propor medidas alternativas da pena, mas se trata apenas de uma alteração no Código Penal:

13
Em reunião deliberativa de julho de 2018, o PL sofreu obstrução na Comissão de Direitos Humanos e Minoria
da Câmara dos Deputados. Para o deputado Éder Mauro indagou: “Com tanta coisa ruim acontecendo no Brasil,
como a corrupção, porque vamos discutir LGBTcídio? Como é que eu, como delegado, vou ter que perguntar para
uma família se a vítima era gay ou hétero para enquadrar”. Cf. BRASIL, 2018.
P á g i n a | 174

inclusão de mais uma qualificadora no crime de homicídio. Tal alteração pode ser
contextualizada como parte do “paralelo entre a eclosão da influência política e aceitação social
da democracia liberal-representativa como projeto emancipatório e a estabilização da
acumulação neoliberal na ordem capitalista” (DEMIER; GONÇALVEZ, 2017, p. 2354-5), cujo
regime “nunca perdeu sua qualidade de dominação de classe” (DEMIER; GONÇALVEZ, 2017,
p. 2356).
Nos marcos do “Estado Democrático de Direito”, vigora chamada a teoria mista ou
unificada da pena, adotada pelo Código Penal brasileiro, conforme redação de seu art. 59, caput,
que dispõe que o juiz estabelecerá a pena “conforme seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime”. Desta forma, evidencia-se que punir, em última instância,
significa reprovar e prevenir. Sendo assim, o PL ora em análise se apresenta como medida
paliativa que não inova, mas, quando muito, dificulta ou impossibilita ressocializar de fato os
agressores, se possível, utilizando-se de meios alternativos que ampliam os métodos de fazer
justiça, como a justiça restaurativa ou reparadora, ou até mesmo considerar a reparação no
âmbito da responsabilidade civil.
Dentre esses métodos,

a chamada justiça restaurativa […] procura realizar uma espécie de encontro entre a
vítima e o infrator ou criminoso, para que atenda as duas partes envolvidas e procure,
portanto, a mediação dos conflitos, apostando na voluntariedade das partes (SILVA,
2006, p. 116).

No caso do PL em questão, aposta-se no encarceramento, renunciando à


ressocialização – negação da tese –, quando poderia combinar esses elementos – síntese.
Nesse sentido, Davis (2018, 122-123) argumenta que medidas como essas são
contextualizadas “de forma mais ampla”, o que permitir-se-ia “abordar a questão de
transformações radicais no sistema de justiça existente”. Trata-se, pois, de estratégias que
podem minimizar “os tipos de comportamentos que levam as pessoas a ter contato com a
polícia”, bem como “tratar aqueles que violam os direitos ou os corpos dos outros” (DAVIS,
2018. p. 122-123), como no caso dos LGBTfóbicos.

4.2 Lei Estadual nº 9.036/2007

No Estado do Rio Grande do Norte, o mandato do então deputado estadual Fernando


Mineiro elaborou em 2007 o Projeto de Lei 9.036 – aprovado no mesmo ano –, intitulado “RN
sem LGBTfobia”. Segundo Mineiro (2017), o texto foi pensado:
P á g i n a | 175

De acordo com o relatório de assassinatos de homossexuais de 2007, divulgado pelo


Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga associação brasileira de defesa dos direitos
gays no Brasil e que faz a coleta e divulgação desses dados há quase 40 anos, 60%
das vítimas eram da região Nordeste. Dentro desse cenário, o RN ocupava o terceiro
lugar no ranking da região com 9 homicídios naquele ano.
Contudo, o número de mortes contra LGBTs no estado provavelmente foi maior nesse
período. De acordo com o advogado Emanuel Palhano, assessor jurídico do mandato
de Mineiro, que à época trabalhava na Coordenadoria de Direitos Humanos e Defesa
das Minorias (Codem), as estatísticas apontavam para 23 homicídios. O órgão tinha
como base informações dos grupos LGBTs e o cruzamento de dados do Instituto
Técnico-Científico de Perícia do RN (Itep).

Embora se fundamente nos índices de assassinatos de pessoas LGBTs no Estado


potiguar, essa lei ainda não vai à raiz do problema, mas representa uma solução considerando
o contexto sócio-histórico e estrutural do Estado burguês. Dito isso, não significa que é todo
ineficaz; antes o contrário.
Nesse sentido, defende Koehler (2013, p. 148) que a lei penal “aponta quais são os
bens jurídicos mais relevantes, dentre os quais se inclui, sem dúvida, numa sociedade
democrática e pluralista, o respeito à diversidade”, e, sendo assim, a criminalização seria
“urgente”, uma vez que “preconceitos, costumes e visões de mundo se voltam contra cidadãos
pelo simples fato de não se identificarem ou não serem percebidos como heterossexuais”.
Entretanto, seria possível apontar que são esses os princípios que realmente norteiam Direito
Penal brasileiro? No final do texto, todavia, Koehler (2013, p. 148) estabelece bases para qual
seria uma resposta coerente e menos encarceradora:

Há um enorme desafio democrático a ser enfrentado, clamando pela construção de


uma nova política educativa a partir da própria visibilidade do fenômeno: a
compreensão dos direitos humanos, a proteção da vida, os direitos de igualdade, a
educação para a sexualidade ou para as sexualidades.

Centrando-se, pois, no texto do “RN sem LGBTfobia” (MINEIRO, 2017, online) são
apresentados os seguintes dispositivos:

Art. 1º Toda e qualquer manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra


cidadão homossexual, bissexual ou transgênero será punida nos termos desta lei;
[…]
Art. 3º São passíveis de punição o cidadão, inclusive os detentores de função pública,
civil ou militar, toda e organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de
caráter privado ou público, instaladas no Estado do Rio Grande do Norte, que
intentarem contra o que dispôs nessa lei.

Diante disso, mais uma vez é elencada a questão da punição, desconsiderada a


ressocialização, bem como são ausentes a metodologia que deve ser adotada para lidar com a
vítima. Em outras palavras, as garantias legais supramencionadas são, essencialmente, o
P á g i n a | 176

“combate à violência”, mas quanto às violências já praticadas nas famílias, nas escolas, em
espaços públicos e privados14: como lidar com elas?
Ademais, o texto ainda propõe multas e outras formas de penalização que objetivam a
mudança ou, pelo menos, a redução de índices de violência contra pessoas LGBTs no Rio
Grande do Norte. Portanto, trata-se apenas elaborar índices e de criminalizar o que, segundo a
Constituição de 1988 e o Código Penal em vigor, já são penalizados. Por outro lado, defende
Mineiro (2017) que: “Para mudar essa realidade, é preciso fortalecer a consciência individual e
social na luta contra a LGBTfobia”.
Dito isso, embora as pesquisas apresentadas careçam de dados acerca de renda dos
violentadores, é possível apontar que “nos moldes de uma sociedade de classes”, evidencia-se
que os alvos dos processos penais – os chamados “inimigos do direito penal” – são os pobres
uma vez que existe “um fetichismo cada vez maior pela pena” (ARAUJO, 2015, p. 370-1).
Sendo assim, o momento sócio-histórico observa apenas uma sofisticação do poder punitivo,
entrando em contradição com questionamentos, tais como: “nunca se prendeu tanto e, ainda
assim, alguém se sente seguro? Houve diminuição nos índices de criminalidade? Os clientes do
direito penal encontram a prometida ressocialização quando acabam de cumprir suas penas?”
(ARAUJO, 2015, p. 371). A todas essas respostas, o “não” sintomático, conforme provam os
números de condutas LGBTfóbicas exponenciadas ano a ano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, conforme se verificou, as leituras de Marx e Pachukanis apontam para o


movimento dialético das lutas de classes oprimidas, aqui em específico da fração LGBT, que
se organizam por demandas de transformações formais a partir da materialidade e dialética de
suas lutas. Portanto, esse movimento se dá na história, como mencionado.
Nesse sentido, foram apresentadas a Lei nº 7292/2017 – “RN Sem Homofobia” – e o
Projeto de Lei nº 7.292/2017 – “Lei Dandara” –, baseadas em princípios constitucionais, e tendo
como base uma suposta proteção às pessoas LGBTs por meio da positivação punição daqueles
que as violentam. Dito isso, tendo em vista que as relações jurídicas estão condicionadas ao

14
Nesse sentido, foi sancionada a Lei Estadual nº 10.761/2018, de autoria do então deputado Sandro Pimentel e
sancionada pela governadora Fátima Bezerra, dispondo “sobre a obrigatoriedade de afixação de cartaz em órgãos
públicos e privados, informando que a Lei Estadual nº 9.036/2007 proíbe e pune atos de discriminação em virtude
de orientação sexual e identidade de gênero”, e dando outras providências, como as dimensões e elementos que o
cartaz deve conter (art. 3º) e os valores da multa em caso de descumprimento (art. 4º) (RIO GRANDE DO NORTE,
2020).
P á g i n a | 177

contexto sócio-histórico em que são estabelecidas, evidencia-se que a mera proteção à tutela de
bens jurídicos – como a vida, a integridade e a honra – suscitam acusações vazias de
“privilégios”, o que fundamenta a leitura classista do direito.
Entretanto, é necessário atentar que os dados apresentados de mortes de pessoas LGBT
revelam antes o contrário: que existe uma sistemática de negação de direitos básicos. O
casamento civil igualitário15 e mudança do prenome e gênero da pessoa transexual sem
necessidade de cirurgia de resignação sexual16 foram conquistados com base na organização do
movimento LGBTs em torno de suas próprias demandas. Ou seja, foram estabelecidos
interesses/pautas comuns (classe em si), e partir deles organizada a luta para sua conquista
(classe para si). Portanto, não podem ser rotulados de “privilégios”.
Dito isso, os textos legais supramencionados devem ser analisados com base no
método dialético marxista: as pautas LGBTs são organizados nas ruas e em periódicos a partir
do contexto imposto pela Ditadura Militar de 1964-1985 – afirmação – entram em contradição
também com o ordenamento jurídico brasileiro, no que tangem a ausência de direitos de
liberdade de expressão, cidadania e dignidade humana – negação –, e, por isso, passam a
disputar os rumos do país na Constituinte de 1987-1988, a qual elabora uma nova Constituição
Federal em 1988 com garantias fundamentais como base do “Estado Democrático de Direito”
– negação da negação. Entretanto, observando a ineficiência material de tais dispositivos, o
movimento LGBT luta para conquistar direitos específicos – negação da negação da negação.
Tal processo se revela essencial ao movimento ontológico.
Enfim, clara está a suficiências de textos como a Lei nº 7292/2017 e o PL nº
7.292/2017 somente para disputar a construção da emancipação política de pessoas LGBTs nos
limites da democracia liberal-representativa, uma vez que não propõem rupturas estruturais,
mas expansão do Estado penal, ignorando medidas alternativas de punição. Ou seja,
contraditório inclusive em si. Entretanto, desnudam-se materialmente insuficientes para aqueles
que sonham e lutam pela ruptura estrutural da qual floresça a emancipação humana.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Thiago Celli Moreira de. O pensamento de Karl Marx e a criminologia crítica: por
uma criminologia do século XXI. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 356-375,
jan./fev. 2015.

15
Regulamento a partir da Resolução nº 175/2015 do Conselho Nacional de Justiça.
16
A partir da ADI nº 4275/2018.
P á g i n a | 178

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P á g i n a | 181

THE BRAZILIAN LGBT MOVEMENT, THE RN WITHOUT HOMOPHOBIA LAW


AND THE DANDARA LAW: A MARXIST DIALETIC INTERPRETATION

ABSTRACT

Considering the data, from the most diverse origins, which point to the
violence to which LGBT people are subjected in Brazil, with special
attention in Rio Grande do Norte, this work aims to understand how the
history of the Brazilian LGBT movement contributes to changes in the
positivized and are modified by him, based on the analysis of the “RN
Without Homophobia” (Law nº 9,036/2007) and the “Dandara Law”
(Bill nº 7,292/2017) that propose to take specific discussions, regarding
that population, for the criticism of the legal system. The methodology
is analytical, reviewing bibliographic readings that present a history of
the Brazilian LGBT movement, being legal with a legal basis – starting
from the fundamental principles of the 1988 Federal Constitution, and
from changes that the legislative texts now studied propose to criminal
law – as well as criticism based on Marxist reading, highlighting
categories that contribute to a totalizing understanding. We conclude
that, although they are sufficient in a concrete socio-historical context,
they are rather the opposite when fighting for the structural rupture
towards human emancipation.

Keywords: History of the Brazilian LGBT Movement. RN Without


Homophobia Law. Dandara Law. Marxist dialectic.
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A PROPRIEDADE URBANA VINCULADA JURIDICAMENTE ÀS FUNÇÕES


SOCIAL E DA CIDADE

Lívia Brandão Mota Cavalcanti1

RESUMO

O presente trabalho trata do instituto da propriedade urbana associada à


sua função social e às funções da cidade. Tem por objetivo analisar a
transformação deste instituto de período anterior à Constituição Federal
de 1988 aos dias atuais, inseridos na era da Informação. Esse estudo
desenvolveu-se por meio de pesquisa bibliográfica, recorrendo à
doutrina e aos trabalhos científicos sobre o tema. O assunto é de grande
relevância, pois trata de questões práticas frequentes na jornada diária
da população urbana, trazendo a perspectiva urbanística das funções da
cidade. Desse modo, a função social e da cidade se consagram como
inerentes ao instituto da propriedade urbana.

Palavras-chave: Propriedade urbana. Constituição Federal de 1988.


Função social. Funções da cidade.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta como objeto a compreensão da função social da propriedade e


das funções da cidade como instrumentos indissociáveis à propriedade urbana e aos contextos
urbanos, nos quais esta se encontra inserida.
A noção de propriedade, como hoje se observa, resultou de inúmeras fases e
processamentos de íntima ligação com os acontecimentos que ocorriam em determinadas
épocas, possibilitando a inclusão do resultado dessas evoluções nas legislações concomitantes.
A propriedade relativizada pelos interesses da coletividade é conquista recente, se comparada
ao conceito que se perpetuou durante séculos de um instituto de absoluta oponibilidade erga
omnes. E ainda mais tempo levou para a consideração das funções urbanísticas atreladas à
propriedade na urbe.
A definição do tema surge pelo interesse em compreender alguns dos mecanismos que
devem ser utilizados no planejamento dos espaços urbanos, diretamente relacionados ao direito
constitucional à propriedade e como se interligam oferecendo à sociedade possibilidades de
cumprimento dos direitos à moradia, ao labor, ao transporte e ao lazer. Desse modo, o objetivo

1
Especialista em Direito e Processo Administrativos pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Bacharela em
Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Advogada OAB/CE 36.213.
P á g i n a | 183

do trabalho reside na análise dessas funções, as origens e o dever do atendimento pelas gestões
públicas, sob a perspectiva do Direito Constitucional.
A metodologia empregada para a realização deste trabalho científico de viés
qualitativo utilizou a pesquisa exploratória – no que concerne ao estudo dos aspectos presentes
no instituto da propriedade modificado no tempo e no espaço – e explicativo – quando
relacionada aos contextos urbanos e atuais –, pois apoiada em doutrinas e trabalhos científicos
desenvolvidos na área.
Por último, intentou-se, através deste trabalho, contribuir para a observação das
funções da propriedade urbana, como garantidoras de direitos sociais básicos nos ambientes
urbanos sustentáveis.

2 A EVOLUÇÃO DOS CONTORNOS DA PROPRIEDADE URBANA

O instituto da propriedade urbana consiste em (re) construção constante, dados os


fatores históricos e sociais que o moldam cotidianamente. A compreensão dos termos os quais
orientam a organização das propriedades encontra-se relacionados com a sua evolução como
direito e os caracteres os quais definiam o agente proprietário. Os legisladores
infraconstitucionais, adstritos à constituição vigente que estão, dependem dos movimentos
históricos respectivos para a atualização das normas relativas à matéria.
Apropriar-se de algo, seja bem móvel ou imóvel de maneira a constituir caráter
definidor, fez parte da história do desenvolvimento humano, fosse ao fixar-se em determinado
solo ou estabelecer limitações ao que pertencesse aos indivíduos.

Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente
estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito
de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e
que parecem terem sido inseparáveis. A ideia de propriedade privada fazia parte da
própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não
podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a ela; era sua propriedade
exclusiva. (COULANGES, 2006, online)

Anteriormente, a noção de apropriação encontrava-se relacionada ao domínio de toda


a comunidade. Era uma propriedade coletiva, segundo Friedrich Engels (1984, p. 28), tendo
como razão o fato de que todos pertenciam ao mesmo grande núcleo familiar. Transcorreram
séculos e o patriarcalismo, aliado à família individual monogâmica, trouxe nova definição à
propriedade que agora passava a ser individualizada a uma singular família.
P á g i n a | 184

A apropriação acontecia de maneira a permitir que o titular do direito de propriedade


extraísse de uma coisa todo o seu potencial econômico, sendo assim o jus utendi, jus fruendi et
jus abutendi. 2 Portanto, a compreensão de gozo e abuso do que pertencesse a determinado
indivíduo permanecia respaldada pelo sistema, sem quaisquer vedações em prol da preservação
dos bens – podendo o proprietário usar e dispor livremente, sem reservas – já que a noção de
coletivização, ao menos no tocante aos direitos coletivos ou difusos, encontrava-se longínqua.
Documentos e textos históricos, como a Constituição francesa de 1791, o Código Civil
Napoleônico de 1804 e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, dotaram de
concreto significado o conteúdo do instituto, consagrando-o como um direito natural e
inalienável do ser humano.

É de se concluir, portanto, que a propriedade embora reconhecida desde o início da


civilização, a partir do século XVIII, tornou-se o prolongamento da personalidade
humana e ficou cunhada como instituto jurídico que merece proteção. O princípio
constitucionalista estabelece limites à ação do Estado, sobrepondo o cidadão ao súdito
e consagrando, dentre outros, o direito de propriedade. (PIRES, 2005, p. 22)

Nesse interstício, a concepção que havia de propriedade tomou, aos poucos, outros
rumos, vagando agora por terrenos de maior interesse social e coletivo, quase que relembrando
os tempos antigos de coletivização dos bens. Neste trajeto, verifica-se o retorno parcial ao que
se concretizou no passado, impossibilitada a continuidade do sistema da propriedade vivido
como antes, na completa coletivização, muito menos, como depois se apresentou, no uso
indiscriminado da coisa, sem restrição alguma em prol da coletividade.
No início da Carta Constitucional de 1988, artigo 5º, inciso XXII3, surge a referência
norteadora do instituto da propriedade, resguardada como direito e garantia fundamentais, bem
como direito e dever individuais e coletivos, determinando que todos têm o direito garantido à
propriedade. Embora não se distinga se propriedade mobiliária ou imobiliária, coerente à
própria sobrevivência humana, é necessário um arcabouço mínimo capaz de garantir moradia,
alimentação, vestuário, dentre vários outros bens passíveis de apropriação.

2
O direito de usar, gozar e dispor.
3
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
P á g i n a | 185

O inciso seguinte delega ao proprietário o dever de destinar o bem obtido à função


social cabível. Na Ordem Econômica e Financeira4, a função social encontra-se estabelecida
novamente de maneira expressa, não restando dúvidas quanto à necessidade de reinterpretação
do direito de gozo sobre a propriedade.
Pode-se afirmar que o princípio da função social integra o instituto da propriedade
urbana (ANDRADE, 2013, p. 68), sem o qual esta não pode ser considerada ou mesmo
protegida de maneira eficaz.
Percebe-se, contudo, certa resistência advinda do conservadorismo do Poder Judiciário
que requer constantes iniciativas de órgãos atuantes nas causas fundiárias, como a Defensoria
Pública (GODOY, 2019, p. 1843), para exigir a aplicação da finalidade social da propriedade
urbana, apesar de reconhecida largamente pela legislação pátria.
No mesmo sentido, há certo obstáculo doutrinário e prático ao conceito de propriedade
atento à finalidade social, o que demonstra rigidez na percepção de garantias discutíveis.

A propriedade dentro do ordenamento jurídico brasileiro ainda adota feições de


absoluta, exclusiva e perpétua. O caráter absoluto se dá devido a oponibilidade erga
omnes. A exclusividade por sua vez decorre do princípio de que a gama de direitos
inerentes pertence exclusivamente ao titular, mesmo que possa haver dois ou mais
titulares. Por fim, o caráter perpétuo resulta da constatação de que o direito de
propriedade subsiste independentemente de exercício ou do não uso da propriedade.
Ressalte-se que a não utilização ou utilização inadequada tem sido hodiernamente
vislumbrada como abuso de direito ou violação da função social da propriedade,
ensejando a possibilidade de desapropriação. (MATIAS; ROCHA, 2006, p. 10, grifo
do autor)

Carlos Roberto Gonçalves (2007, p.115), por sua vez, questiona a perda da propriedade
pela falta da devida finalidade atribuída, enquanto o mesmo tratamento não acontece se, pelo
completo abandono, a coisa não for mais utilizada.
A proposta do pensamento mais moderno, aliado à orientação constitucional, justifica-
se na insuficiência e incoerência dos parâmetros que perduraram até então, cabendo a discussão
de finalidade social e funções da cidade como medidores de eficiência da propriedade urbana.

3 O INSTITUTO DAS FUNÇÕES DA CIDADE

4
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III - função social da propriedade;
P á g i n a | 186

A Constituição Federal de 1988 trouxe no artigo 1825 as funções sociais da cidade,


apesar de não haver se debruçado na identificação das mesmas (GARCIAS; BERNARDI,
2008), cabendo a doutrina elucidar o tema.

Com as normas dos arts. 182 e 183, a Constituição fundamenta a doutrina segundo a
qual a propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de
cumprir sua função social específica: realizar as chamadas funções urbanísticas de
propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e de
circulação humana. (SILVA, 2011, p. 819)

Muito embora tais funções da cidade não estejam expressas no art. 182, o direito ao
trabalho, à moradia, ao transporte e ao lazer encontram-se previstos no art. 6º da CF/19886
como direitos sociais e como a base para a proteção das funções urbanas.
Coube ao Direito Urbanístico organizar a política de desenvolvimento urbano,
baseando-se nos supracitados artigos constitucionais, e adicionar o caráter de ordenação tão
próprio dos demais instrumentos reguladores das cidades. Em atenção a este conjunto de
elementos normativos que configuram a base do Direito Urbanístico, cabe ao gestor público a
execução destas normas em prol do interesse público, isto é, o pleno desenvolvimento das
funções socias da cidade aliado à garantia do bem-estar de seus habitantes.

A ligação constitucional entre as noções de ‘direito urbanístico’ e de ‘política urbana’


(política pública) já é capaz de nos dizer algo sobre o conteúdo desse direito, que surge
como o direito de uma ‘função pública’ chamada urbanismo, pressupondo finalidades
coletivas e atuação positiva do Poder Público, a quem cabe fixar e executar a citada
política. Pode-se, então, afirmar o caráter publicístico do direito urbanístico, pois este
ramo do Direito nasce justamente para construir, no tocante à gestão dos bens
privados, um sistema decisório complexo, em que o Estado exerce papel
preponderante [...] (SUNDFELD, 2014, p. 50, grifo do autor)

Segundo Hely Lopes Meirelles (2008), a ciência do Urbanismo encontra-se com o


Direito, produzindo orientações normativas que buscam efetivar as quatro funções urbanas,
quais sejam habitar, laborar, circular e recrear, por coexistirem nas mais básicas relações
humanas no contexto das cidades.

5
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem- estar de seus habitantes.

6
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
P á g i n a | 187

As exigências urbanísticas desenvolveram-se de tal modo nas nações civilizadas e


passaram a pedir soluções jurídicas, que se criou em nossos dias o direito urbanístico,
ramo do direito público destinado ao estudo e formulação dos princípios e normas
que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-campo. Na amplitude
desse conceito incluem-se todas as áreas em que o homem exerce coletivamente
qualquer de suas quatro funções essenciais na comunidade – habitação, trabalho,
circulação e recreação –, excluídas somente as terras de exploração agrícola, pecuária
ou extrativa que não afetem a vida urbana. (MEIRELLES, 2008, p. 525, grifos do
autor)

De maneira mais explicativa, constatam-se os vários setores que se beneficiam


diretamente da efetivação das funções da cidade, comprovando serem de suma importância para
o desenvolvimento urbano, sem as quais nem se consegue discutir crescimento e vida urbana.

Analisando-se o texto constitucional, pode-se muito bem considerar que, a rigor, o


objetivo de garantir o bem-estar dos habitantes da cidade já está contido no de
desenvolvimento das funções sociais da cidade. Desenvolver as funções sociais de
uma cidade representa implementar uma série de ações e programas que tenham por
alvo a evolução dos vários setores de que se compõe uma comunidade, dentre eles os
pertinentes ao comércio, à indústria, à prestação de serviços, à assistência médica, à
educação, ao ensino, ao transporte, à habitação, ao lazer e, enfim, todos os subsistemas
que sirvam para satisfazer as demandas coletivas e individuais. (CARVALHO
FILHO, 2013, p. 19)

Originárias da Carta de Atenas de 1933 e resultado do IV Congresso Internacional de


Arquitetura Moderna, as funções urbanísticas servem como critérios norteadores para os
agentes propulsores de políticas públicas, haja vista que permitem aos administrados executar
funções básicas relativas ao labor, à morada, à circulação e ao lazer.

Por isso é que, na observação justa de Pedro Escribano Collado, a função social da
propriedade privada urbana repousa num pressuposto de primordial importância, qual
seja o de que a atividade urbanística constitui uma função pública da Administração,
que, em consequência, ostenta o poder de determinar a ordenação urbanística das
cidades, implicando, nisso, a iniciativa privada e os direitos patrimoniais dos
particulares. Nesse sentido é que se pode dar razão ao ministro Moreira Alves, quando
afirma que a função social da propriedade urbana visa atender as funções do
urbanismo, que se reduzem a quatro: a habitação, o trabalho, a recreação e a circulação
dos homens dentro do território urbano. (SILVA, 1980, p. 6)

Inicialmente resultado das discussões de técnicos do Urbanismo, com o advento da


Constituição Federal de 1988 e a preocupação do legislador em atentar para o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade, a doutrina do Direito Urbanístico resgatou tais
funções da Carta Originária de Atenas, identificando sua eficácia para o ordenamento jurídico.
Insta compreender a relação direta e simbiótica entre o referido instituto e a finalidade social
da propriedade, como agentes de centros urbanos sustentáveis e democráticos.

4 A OBSERVÂNCIA DAS FUNÇÕES DA PROPRIEDADE URBANA


P á g i n a | 188

Pode-se afirmar que a relação entre função social da propriedade urbana e funções da
cidade tangencia questões de interesse social e melhoria das condições de vida da população,
quando o planejamento urbano é orientado no sentido de promover os direitos supracitados.
Isto porque o direito à cidade como direito subjetivo social (CARDOSO; THEMUDO, 2019)
abarca ambas as funções.
Essa relação, apesar de apontada como direta pela natureza dos institutos envolvidos,
não se encontra largamente difundida nas pesquisas científicas sobre os temas, pois
frequentemente são tratadas em espaços acadêmicos distintos: a função social da propriedade
urbana em discussões relacionadas aos estudos civilista e constitucional, enquanto as funções
sociais da cidade, em matérias de Direito urbanístico e, quando aprofundado, administrativo.
Por isto, o apoio jurisprudencial do entrelaçamento dos temas também é raro, o que demanda
pesquisas que se direcionem cada vez mais no sentido da comunicação entre as funções da
propriedade urbana.
A finalidade social da propriedade urbana é tudo aquilo que se propõe a desenvolver
o meio ambiente urbano e as necessidades da população, portanto combinável com as noções
de funções da cidade, quando não sinônimos. Em um paralelo de simples visualização, tem-se
que a propriedade seria o direito assegurado e a função social, o dever relacionado ao direito
fundamental, não configurando qualquer incompatibilidade entre ambas (PIRES, 2005, p. 74).
Consequentemente, pode-se concluir, pelo caráter de também de dever que as funções da cidade
apresentam.

O alcance da função social da cidade é a formulação de nova ética urbana voltada à


valorização do ambiente, cultura, cidadania, direitos humanos. Abarco o pleno
exercício do direito à cidade; enquanto se fustigam a causa da pobreza, protegem-se
o meio ambiente e os direitos humanos, reduz-se a desigualdade social e melhora-se
a qualidade de vida. (OLIVEIRA; CARVALHO, 2003, p. 64).

Estas funções, apesar de apresentarem conceitos distintos, são complementares, na


medida em que direcionam os contextos urbanos à nova ordem urbanística, voltada ao pleno
desenvolvimento das cidades, sem esgotamento dos recursos disponíveis no ambiente urbano.
Promove-se, portanto, a propriedade como instrumento de qualidade de vida social.

Hoje, na Idade Contemporânea, a propriedade-direito começa a transformar-se em


propriedade-função. Assim, entende-se que a propriedade surgiu com um caráter
individual, mas com o passar dos anos, perdeu essa característica para atender ao
social e isso não quer dizer que o proprietário perdeu o seu poder, mas apenas foi
temperado pela exigência da função social. (ANDRADE, 2013, p. 55)
P á g i n a | 189

Considerar a propriedade urbana instituto a serviço da consolidação dos direitos à


moradia, ao trabalho, à mobilidade urbana e à recreação, inseridos no contexto de
desenvolvimento nacional sustentável faz-se necessário e urgente, diante do movimento de
crescimento das cidades.

Esta cidade que busca a sua nova identidade, que procura descobrir suas verdadeiras
funções sociais, a cidade sustentável, a cidade conectada em redes sociais e
econômicas, ao meio-ambiente, a cidade que cumpre com suas funções de
proporcionar o desenvolvimento e garantir o bem-estar de seus habitantes. A nova
cidade ideal traz em seu interior muitos dos conceitos das clássicas utopias, mas que
em realidade ainda possui os históricos problemas da velha cidade moderna, neste
período de mudança de paradigmas, de transição entre a sociedade industrial para a
sociedade da informação. (BERNARDI, 2006, p. 41)
A partir da conexão estabelecida entre tais institutos, cabe, por fim, analisá-los sob a
perspectiva prática, enquanto caracteres presentes na propriedade urbana e, consequentemente,
nas malhas urbanas as quais abrigam as relações humanas diárias.
Considerar atualmente a propriedade desligada de sua função social custaria muito
caro à sociedade e ao ambiente. O movimento de limitação dos direitos desenfreados, os quais
anteriormente eram aceitos como extensão do uso, do gozo e da disposição da propriedade,
segue uma necessidade decorrente da vida em sociedade.

[...] ainda que leis e códigos permaneçam intactos, as necessidades surgidas na vida
em sociedade acabam por formar constantemente novas instituições jurídicas. Nesse
contexto, foi a necessidade de superar as concepções individualistas do direito
privado, nas quais o homem é tomado isoladamente, que resultou na consagração da
noção de função social da propriedade. Influenciado pela filosofia positivista de
Augusto Comte, Leon Duguit chegou à conclusão de que a propriedade não tem mais
um caráter absoluto e que nem o homem nem a coletividade têm direitos, mas cada
indivíduo tem uma função a cumprir na sociedade. Estes seriam os fundamentos da
regra de Direito que impõe deveres a todos, inclusive ao Estado. (JELINEK, 2006, p.
10)

O conceito ilimitado cede espaço à compreensão de que existem interesses públicos


maiores advindos do Estado Social e que propriedade alguma seria capaz de ser utilizada de
maneira absoluta sem gerar danos à liberdade de outrem de assim utilizar a sua propriedade em
prol dos direitos básicos de habitação, labor, circulação e lazer. O interesse e a propriedade
privados continuarão a exercer forte influência nas relações urbanas (SALEME, 2005, p. 5),
contudo só considerar-se-ão positivados quando atenderem as funções sociais e da cidade.

As profundas incertezas vividas ao longo do conturbado século XX certamente


refletiram no direito de propriedade. Os valores da liberdade individual e da igualdade
formal não poderiam prosperar em cenários de extenso desequilíbrio econômico. A
liberdade de uns poucos importa opressão de uma massa de pessoas, privadas de
acesso a bens mínimos e excluídas até de sua especial dignidade. Atingimos um
momento de profunda decepção, diante da constatação da fragilidade do ser humano.
Ao contrário do que preconizavam os arautos do racionalismo, a inteligência humana
P á g i n a | 190

produziu a liberdade, mas não nos permitiu enxergar o outro. Tornamo-nos cegos e
surdos diante dos que nos cercam. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 306, v. 5)

Evita-se, desse modo, a criação de espaços denominados vazios urbanos (PEREIRA;


ALENCAR, 2018, p. 132), cuja inutilização vai de encontro às funções discutidas, além de
invocarem problemas sociais, como especulação imobiliária ou até mesmo proliferação de
doenças.
As limitações frente ao ideal de propriedade absoluta indicam avanços advindos da
transdisciplinaridade do Direito, enquanto ciência que caminha aliada as demais áreas as quais
investigam o desenvolvimento das sociedades.

Inúmeras leis impõem restrições ao direito de propriedade, como o Código de


Mineração, o Código Florestal, a Lei de Proteção do Meio Ambiente etc. Algumas
contêm restrições administrativas, de natureza militar, eleitoral etc. A própria
Constituição Federal impõe a subordinação da propriedade à sua função social. [...]
Todo esse conjunto, no entanto, acaba traçando o perfil atual do direito de propriedade
no direito brasileiro, que deixou de apresentar as características de direito absoluto e
ilimitado, para se transformar em um direito de finalidade social. (GONÇALVES,
2007, p. 158, v. 3, grifo do autor)

A sociedade civil, sob a chancela da Administração Pública, encontra-se submetida a


atender as funções da propriedade, seja a finalidade social ou as funções urbanas diante da
imperatividade do ordenamento jurídico brasileiro e do olhar de crescimento dos espaços
urbanos. Para Jelinek (2006, p. 22), “a expressão função social passa por uma ideia operacional,
impondo ao proprietário não somente condutas negativas (abstenção, como não causar
contaminação do solo), mas também positivas (obrigações de fazer, como de parcelar gleba de
sua propriedade)”.

Mas é certo que o princípio da função social não autoriza a suprimir, por via
legislativa, a instituição da propriedade privada. Contudo, parece-nos que pode
fundamentar a socialização de algum tipo de propriedade, onde precisa mente isso se
tome necessário à realização do princípio, que se põe acima do interesse individual.
Por outro lado, em concreto, também não autoriza a esvaziar a propriedade de seu
conteúdo essencial mínimo, sem indenização, porque este está assegurado pelas
normas de garantia do respectivo direito. (SILVA, 1980, p. 6)

Este entendimento, pautado na propriedade com papel de (res) significação dos


espaços urbanos, contribui sobremaneira para a promoção do habitar, laborar, circular e recrear
sustentáveis, notadamente as funções da cidade, enquanto promove cidades justas e planejadas
para a vida das presentes e futuras gerações.

De fato, a correta apreensão deste elemento do direito de propriedade é fundamental


para construção de um espaço urbano mais justo, solidário e equânime, no qual todos
os seus habitantes possam gozar de um bem estar mínimo e de uma vida digna,
P á g i n a | 191

objetivos e princípios expressamente previstos em nossa Constituição. (SOUZA,


2011, p. 237)

O Direito acompanha as reflexões advindas dos fatos históricos. Com a propriedade


urbana não seria distinto: as relações nas cidades definem as necessidades e provocam o
repensar pela ciência que, só então, consolidam direitos e deveres em prol da harmonia da vida
em sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A propriedade urbana consagrou-se como um bem fortemente almejado por todos, já


que a maior parte da população se encontra atualmente nas cidades. Por isso, inúmeras
problemáticas relacionadas às zonas urbanas conectam-se com as funções da cidade e a
finalidade social da propriedade.
A trajetória histórica e gradual deste instituto comprova diferentes conceitos pelos
quais a propriedade foi reconhecida, até que, diante dos contornos mais modernos, a
constituição da propriedade urbana não pode mais ser defendida de maneira incondicional.
A preocupação com a proteção dos interesses difusos compartilha uma cidade que
permite e promove o direito à moradia, ao trabalho, à mobilidade e ao lazer, todos
expressamente contidos na Constituição Federal de 1988.
Em face de tal quadro, ocorreu a inclusão do dever de finalidade social à propriedade
devido ao avanço de temas caros à sociedade – ambientais, econômicos, éticos, de saúde pública
-, cuja presença para o desenvolvimento das cidades é indissociável.
A orientação constitucional restringe o uso desenfreado, o gozo inconsequente e a
disposição ilimitada e fortalece as diretrizes do uso consciente. Desse modo, a visão oriunda de
tempos e legislações passados, a qual garantia um desligamento da finalidade social ao instituto
da propriedade, não mais perdura, tendo em vista a necessidade de consonância tanto a
princípios e direitos constitucionais expressos, quanto à própria realidade vivida nos diferentes
grupos sociais urbanos.
Conjuntamente, as funções da cidade foram baseadas, longe de um ideário
inalcançável, na jornada diária do homem médio, contendo as relações humanas básicas para
se estabelecer e sobreviver, seja no aspecto pessoal e domiciliar, na geração de sua renda, no
deslocamento da casa para o trabalho e na ocupação do seu tempo livre. Refletir sobre as
propriedades urbanas presentes nessa jornada humana – considerados o universo de pessoas
P á g i n a | 192

envolvidas e seus diferentes objetivos de vida - requer atentar para o cumprimento de sua função
social.
O fim social, tomado sob uma perspectiva mais abrangente, deve atender aos interesses
coletivos e à preservação do ambiente, através do uso racional e de acordo com as finalidades
para as quais o bem foi destinado. E as funções da cidade, por sua vez, servem de ferramentas
de ponderação para o uso, o gozo e a fruição das propriedades urbanas.
O dinamismo do planejamento urbano, concretizado pelas gestões municipais e pela
sociedade civil, carece de debates. Portanto, é necessário aliar as noções de funções da
propriedade, cujos conceitos já se encontram continuamente trabalhados pelas comunidades
técnica e acadêmica, às funções da cidade pela estreita relação com os interesses práticos das
populações.

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P á g i n a | 195

URBAN PROPERTY BINDING LEGALLY TO SOCIAL AND CITY FUNCTIONS

ABSTRACT

This work deals with the institute of urban property associated with its
social function and the functions of the city. It aims to analyze the
transformation of this institute from the period before the Federal
Constitution of 1988 to the present day, inserted in the Information Age.
This study was developed through bibliographic research, using
doctrine and scientific papers on the subject. The subject is of great
relevance, as it deals with practical issues that are frequent in the daily
journey of the urban population, bringing the urbanistic perspective of
the city's functions. Thus, the social and city functions are consecrated
as inherent to the urban property institute.

Keywords: Urban property. Federal Constitution of 1988. Social


function. City functions.
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GUARDA COMPARTILHADA E IGUALDADE DE GÊNERO: UMA EQUAÇÃO


POSSÍVEL?
Laura Hêmilly Campos Martins1
Maria do Socorro Ferreira Osterne2

RESUMO
O objetivo deste artigo é versar sobre a positivação da igualdade entre
mulheres e homens no ordenamento jurídico brasileiro à luz do modelo
compartilhado de guarda. No Brasil, a sanção da Lei nº 13.058/2014
permite ao juiz definir, quando não há acordo dos pais e em nome do
suposto bem estar dos filhos, a guarda compartilhada. Afinal, o
compartilhamento da guarda significa uma redução das desigualdades
de gênero nas vivências parentais? A metodologia utilizada para
realização do trabalho consiste na revisão bibliográfica, de modo a
estabelecer as premissas teóricas e esclarecer os conceitos, examinando
as leis brasileiras e delineando nexos com a matriz feminista. Conclui
que guarda compartilhada desestabiliza a assimetria de gênero,
desenhando modalidades plurais de paternidade e maternidade, mas não
representa o fim das desigualdades entre mulheres e homens na
parentalidade. É o que será aqui apresentado e discutido.
Palavras-Chave: Igualdade de gênero. Parentalidade. Guarda
compartilhada.

1 INTRODUÇÃO

As sociedades foram se organizando ao atribuir papéis e valores aos indivíduos em


função do gênero a que pertencem e das construções simbólicas atribuídas a ele, determinadas
e modificadas no decorrer da história. Os mitos construídos e perpetuados no imaginário social
sobre a maternidade e a paternidade disseminam o entendimento de um instinto materno de
cuidado com os filhos e, consequentemente, de uma paternidade exercida de forma secundária
e desprestigiada.
No que se refere aos homens e às mulheres que passam por uma separação, diversas
questões são suscitadas, dentre as quais se destaca a hierarquização dos atributos masculinos e
femininos concernentes aos cuidados com os filhos. No Brasil, são recentes as mudanças no
Código Civil no sentido de uma maior equidade entre direitos das mulheres e dos homens. O

1
Assistente Social. Mestra em Sociologia e Discente do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Estadual do Ceará
2
Assistente Social. Mestra em Sociologia e Docente do Curso de Bacharelado em Serviço Social, do Mestrado
Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
da Universidade Estadual do Ceará
P á g i n a | 197

Novo Código foi promulgado em 2002 e legitimou um conjunto importante de mudanças que
já vinham ocorrendo há décadas na sociedade, particularmente no que se refere à moral e à
organização familiar, na qual se inserem o divórcio e a situação que dele emana: a da guarda de
crianças e/ou adolescentes.
“O pessoal é político”: essa conhecida citação é raiz das críticas feministas à
convencional dicotomia liberal público/doméstico, permite considerar que o que acontece na
vida pessoal, particularmente nas relações afetivo-sexuais, não está imune às dinâmicas de
conflitualidade de poder. Nem o domínio da vida doméstica, pessoal, nem aquele da vida não
doméstica, econômica e política, podem ser interpretados isolados um do outro. Nessa esteira,
quando se pensa a necessidade de critérios para o Estado intervir ou não na vida familiar há um
equívoco decorrente dessa dicotomia público/privado. Isso porque a pergunta deveria ser no
sentido de quais são os limites da intervenção e não se intervém ou não (MIGUEL, 2014).
No plano da intervenção/regulação das responsabilidades parentais, quando os pais
não moram juntos, seja porque nunca moraram ou se separaram, é importante mencionar as
terminologias “guarda unilateral” ou “guarda compartilhada” - utilizadas para fazer referência
ao modelo de cuidado e responsabilidade em relação à criança e ao adolescente. Cumpre
lembrar que a Lei do Divórcio (Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977) não fazia referência
à expressão "guarda compartilhada", mas determinava que prevaleceria o que fosse extraído do
acordo em relação à guarda no caso de dissolução da sociedade conjugal.
Sancionada em 22 de dezembro de 2014 pela Presidente Dilma Rousseff, a chamada
“Nova Lei da Guarda Compartilhada” - Lei 13.058, alterou os artigos 1.583 a 1.585 e 1.634, da
Lei n° 10.406/2002 - Código Civil para estabelecer o significado da expressão guarda
compartilhada e dispor sobre a aplicação desse instituto jurídico. Cumpre referir algumas
inovações trazidas pela Lei 13.058/14: os genitores separados passam a ter tempo de convívio
com os filhos e uma distribuição equilibrada, devendo dividir as decisões sobre a sua vida; se
não houver acordo entre os genitores, o Juiz vai determinar, a depender das circunstâncias, que
ela seja compartilhada.
Considerando que a recente legislação favorece a responsabilização conjunta pelos
filhos, a questão precípua é: afinal, o compartilhamento obrigatório da guarda significa uma
redução das desigualdades de gênero nos papéis parentais? À luz deste questionamento, o
presente estudo tem por objetivo tratar da incorporação da guarda compartilhada, como modelo
para a parentalidade no Brasil e as suas consequências para a igualdade de gênero.
Em termos metodologia adotada, firma-se: a pesquisa é de natureza qualitativa, do tipo
bibliográfica. Assim, examinam-se textos e leis brasileiras de modo a estabelecer as premissas
P á g i n a | 198

teóricas e esclarecer os conceitos que demarcam modos de legitimidade e fundamentação da


guarda compartilhada, com ênfase não apenas em noções jurídicas, mas situando a sociologia
como lente teórica promissora para a problematização.
Primeiramente, o estudo traça abordagens sobre a matriz feminista e sua relação
circular com o surgimento desse novo modelo de guarda, destacando as ideias do feminismo
como preponderantes para a positivação da igualdade entre mulheres e homens. A seguir, dá-
se a tecer considerações sobre a guarda compartilhada, em especial, no que se refere à
obrigatoriedade desta após o advento da Lei n. 13.058/2014, com ênfase não apenas em noções
jurídicas, mas situando a sociologia como lente teórica promissora para a problematização. No
mais, o artigo segue de reflexões conclusivas.

2 CONTRIBUIÇÕES DOS FEMINISMOS PARA A SIMETRIA PARENTAL

A desigualdade entre homens e mulheres é um marco presente na maioria das


sociedades, se não em todas. Fulcro de pactuação é a contribuição sempre expressiva de
Beauvoir (1980, p. 17): “Ora, a mulher sempre foi, se não a escrava do homem, ao menos sua
vassala [...] os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições”. Ao
denunciar a situação das mulheres como efeito de padrões de opressão, o pensamento feminista
caminhou para uma crítica ampla do mundo social, que reproduz assimetrias e impede a ação
autônoma de muitos de seus integrantes (MIGUEL, 2014).
A experiência biológica da gravidez e do parto, dolorosa ou prazerosa é usada, de certa
forma, para corroborar a ideia de que a parentalidade feminina é necessariamente superior à dos
homens. Hooks (2019) frisa uma questão já sabida: os homens não dividem a parentalidade de
modo equânime. Mais ainda, eles só dividirão a parentalidade de forma equitativa quando forem
ensinados, se possível, desde a infância, que a paternidade é tão importante quanto a
maternidade, que ambos carregam o mesmo significado. A autora ainda adverte que enquanto
as mulheres e a sociedade em geral enxergarem a simbiose mãe/filho como uma relação única
e especial pelo fato de ser a mulher quem carrega o bebê na barriga e dá à luz, a responsabilidade
pela criação e pelo cuidado parental continuará sendo primordialmente dela.
Os homens foram educados para evitar a assumir a responsabilidade pelo cuidado
parental, e essa atitude conta com o apoio das mulheres que acreditam que a maternidade é a
esfera de poder que elas perderiam se os homens participassem dela. Em verdade, muitas dessas
mulheres não desejam dividir de maneira equitativa os cuidados parentais com os homens. Nos
P á g i n a | 199

círculos feministas, muitas vezes perde-se de vista o fato de que a massa das mulheres ainda
acredita que os homens não podem ter uma atuação parental efetiva (HOOKS, 2019).
Diante do fenômeno de contornos multifacetados que é a guarda compartilhada, estaria
este instituto a traçar uma clara via na efetivação do direito das crianças a um cuidado parental
simétrico e a reestruturar os costumes e hábitos maternos e paternos a fim de que as mulheres
não sejam as únicas provedoras desse cuidado? Hooks (2019) sugere que, na verdade, é a
eliminação do sexismo a solução para o problema do exercício desigual da parentalidade.
O feminismo, em suas várias vertentes, combina a militância pela igualdade de gênero
com a investigação relativa às causas e aos mecanismos de reprodução da dominação
masculina3 e, além disso, espelha transformações nos comportamentos, representações e
valores relativos à conjugalidade e à sua dissolução, à organização da vida familiar, à
maternidade, à paternidade, ao lugar da criança na família, e às relações sociais de gênero.
Duarte (2003) observa que a vitória do movimento feminista é inquestionável quando
se constata que suas bandeiras mais radicais tornaram parte integrante da sociedade, como, por
exemplo, mulher frequentar universidade, escolher profissão, receber salários iguais,
candidatar-se ao que quiser. “Tudo isso, que já foi um absurdo sonho utópico, faz parte de nosso
dia a dia e ninguém nem imagina mais um mundo diferente” (p. 151).
Hooks (2019) reconhece a pertinência e o vigor que as discussões contidas na seara
dos estudos feministas emprestam para a melhor compreensão das mudanças profundas na vida
de mulheres e homens que vivem nesta sociedade arraigada de valores machistas, patriarcais,
imperialistas e capitalistas. A autora prossegue e diz que todos obtiveram benefícios das
revoluções culturais postas em evidência pelo movimento feminista contemporâneo. No
entanto, uma coisa é certa: o movimento feminista não criou uma revolução feminista constante,
tampouco erradicou o patriarcado e/ou o sexismo. Assim sendo, as conquistas feministas estão
sempre em risco.
Tenha-se presente que a discussão sobre a guarda compartilhada está estreitamente
alicerçada nos lugares sociais atribuídos a mulheres e homens em uma dada sociedade e ao

3
Dono de uma linguagem própria, com vocabulário e conceitos específicos, Pierre Bourdieu construiu um
sofisticado repertório conceitual a partir de incursões em terrenos empíricos bastante diversificados que resultou
na elaboração de potentes noções e conceitos. Pode-se dizer que a teoria da dominação é o fio condutor de seu
corpus teórico. A dominação masculina hierarquiza o masculino e o feminino, sendo os homens os dominantes
que impõem seus valores e regras aos dominados que os internalizam de modo inconsciente, adotam seus esquemas
de pensamento e a eles se submetem. Os pilares dessa dominação são o Estado, a família, a igreja e a escola. Ela
é resultado de uma violência “invisível”, “insensível” e “suave” exerce-se principalmente por vias simbólicas, que
parece estar na “ordem das coisas”, não precisando ser enunciada ou justificada, dado que ela impõe as diferenças
biológicas entre mulheres e homens como seu fundamento natural e evidente, como se fosse uma dominação a-
histórica.
P á g i n a | 200

longo da história. Portanto, os distintos caminhos percorridos por diferentes países até a
regulamentação da guarda compartilhada representam as multifacetas desse controverso
instituto que abriga em suas arestas lócus de relações de gênero e de diversidade de papéis
parentais. Temas estes que ganham significativa robustez e visibilidade na agenda feminista.
Grupos sociais de naturezas diversas lutaram pela legalização da guarda compartilhada
em diferentes países. Essa diversidade fala das nuanças do sistema de gênero de cada um, do
lugar dado às mulheres e como estas são subjetivadas no dispositivo materno. Ressalta-se o
processo em alguns países: no Canadá, foram os movimentos feministas que exigiram, em 1980,
a autoridade parental compartilhada ao Poder Legislativo (Coté, 2016); em Portugal, a
instituição da guarda compartilha foi um resultado da coalizão entre os interesses feministas e
os direitos dos pais-homens (Marinho, 2011; Aboim, 2006). No Brasil, advoga Simioni (2015),
foram os grupos de defesa dos direitos dos pais-homens que se organizaram para instituir a
guarda compartilhada. “A redação e a luta pela aprovação da lei dessa modalidade de guarda
não contaram com a participação nem de grupos feministas nem dos grupos de mulheres-mães,
os quais não a reivindicavam” (RIBEIRO, p. 87).
Por seu turno, Coté (2016) põe em causa que as famílias são um locus importante das
relações de gênero, e o nascimento, a criação e o cuidado dos filhos são organizados como
eventos não produtivos e causa de dependência para as mulheres. A autora postula que, o
surgimento da guarda compartilhada como prática foi, é claro, o produto final da generalização
da separação conjugal e do divórcio, mas também o produto do desejo de uma nova geração de
pais (casais heterossexuais) de manter papéis simétricos, e não diferenciados.
Ramos (2016) elucida que no Brasil a igualdade é consagrada no artigo 5º da
Constituição Federal Brasileira, garantindo que homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações, podendo usufruir das mesmas oportunidades e papéis dentro da sociedade. Nessa
esteira, Ribeiro (2017) conjectura que o advento do neoconstitucionalismo, após o fim da
Segunda Guerra Mundial, situou a Constituição como pilar do sistema jurídico e suas normas
passaram a ter eficácia irradiante para o resto do ordenamento. Os princípios assumiram o
caráter de norma jurídica ao lado das regras e passaram a ser utilizados em casos concretos. A
sociedade evoluiu e com ela o Direito também ganhou novos contornos, consagrando de direitos
fundamentais, dentre eles, a igualdade formal e material, principalmente com relação à mulher.
No plano internacional, diversos diplomas passaram a consagrar a igualdade de gênero
como direito humano, devendo ser efetivado por todos os países. Dentre eles destacam-se: a
Carta das Nações Unidas, de 1945; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; a
Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis a Mulher, de 1948; a
P á g i n a | 201

Convenção sobre Direitos Políticos da Mulher, de 1953; a Convenção Americana de Direitos


Humanos, de 1969; a Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher, de 1979; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, de 1994 e a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (SILVEIRA, 1998; BENEVIDES,
2016).
Ademais, no que concerne à eliminação da posição subordinada da mulher na vida
pública e privada, Benevides (2016, p. 96) elenca algumas medidas:

Incorporação da igualdade entre mulheres e homens nos textos constitucionais; edição


de leis prevendo sanções contras atos discriminatórios e crimes cometidos em razão
do gênero; garantia do direito ao voto; proteção à maternidade e compartilhamento da
responsabilidade entre homens e mulheres pela educação e desenvolvimento dos
filhos; garantia de acesso em igualdade de condições de trabalho, educação, etc.

Certamente o compartilhamento da responsabilidade entre homens e mulheres pela


educação e desenvolvimento dos filhos é um tema que está entrando na ordem do dia, também
na perspectiva da necessidade de políticas públicas. Tanto a Conferência Mundial de População
e Desenvolvimento, de 1994, como a Conferência Mundial da Mulher, de 1995, ambas
organizadas pelas Nações Unidas, ressaltaram, em seus documentos básicos, a necessidade de
os estados-membros enfatizarem a responsabilidade masculina para com o exercício da
sexualidade, seja em suas consequências reprodutivas, seja do ponto de vista de prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis. Além disso, ressaltaram a responsabilidade feminina e
masculina, não apenas para a manutenção material da família, mas também a
corresponsabilidade parental que mulheres e homens devem igualmente prestar aos filhos.
Conforme advoga Silveira (1998), a responsabilidade compartilhada com os filhos
indicaria a necessidade de políticas públicas não apenas voltadas para as mulheres, como
também para os homens. Ora, partiram das mulheres as demandas pela licença paternidade e
pelo direito à creche para as crianças, e não somente para os filhos de mulheres trabalhadoras,
o que permitiria, também, aos homens trabalhadores reivindicar por tais direitos. “No entanto,
não houve adesões masculinas a essas demandas, consagradas como conquistas legais no texto
da Constituição Federal de 1988” (p. 67).
Os movimentos sociais se intensificaram nas últimas décadas e possibilitaram a
reflexão e discussão do que é ser mulher na sociedade, principalmente o movimento feminista,
que, de acordo com Bourdieu (2016), fora assertivo em direcionar esforços para abalar as
estruturas da dominação masculina, garantindo que a herança historicamente conservada do
patriarcado viesse a enfraquecer-se, de forma que o discurso de opressão passou a ser alvo de
P á g i n a | 202

questionamento, deixando de ser concebido como uma evidência inquestionável. Benevides


(2016) argumenta que o ativo movimento feminista brasileiro de meados dos de 1970 foi uma
das forças progressistas de defesa da positivação da igualdade entre mulheres e homens, por
exemplo, nos sistemas de direitos humanos. Mister se faz ressaltar que:

Há quem defenda com razões as transformações sociais acentuaram as contradições


entre mulheres e homens sob diversos aspectos, causando desigualdades na vida
pessoal, conjugal e familiar ou que as dificuldades vividas na vida privada se
projetaram de maneira violenta por todo corpo social, em muitas regiões do mundo
(BENEVIDES, 2016, p. 84).

Benevides (2016) realça ainda que, a partir dos anos de 1990, surge uma rediscussão
na concepção das desigualdades entre os sexos baseada em gênero. Assim, “o movimento
feminista pode articular reivindicações em defesa dos direitos negados e violados, definir
prioridades e exercer pressões na comunidade internacional” (p. 83). Em síntese, vem se
experimentando maior flexibilidade nos papéis maternos e paternos, devido aos processos
mudanças nas definições de gênero e relações de poder, bem como ao aumento do entendimento
do homem como responsável, tanto quanto a mulher, pela educação, cuidado e formação moral
e psicológica dos filhos. Todos esses fatores conjuntamente têm lançado luz para o modelo de
guarda compartilhada no contexto brasileiro.
Na ciência jurídica, essas mudanças revelaram-se como molas propulsoras para
importantes alterações legislativas ocorridas nos anos de 2008 e de 2014 que normatizam, no
ordenamento jurídico brasileiro, a guarda compartilhada. Esse modelo de guarda pode ser
compreendido, nos termos da própria prescrição normativa, como a responsabilização conjunta
e o exercício de direitos e deveres da mãe e do pai que não vivem sob o mesmo teto,
concernentes ao pode familiar dos filhos (LAGARES E HACKBARDT, 2015).
Tomando em consideração as postulações de Burckhart (2017), depreende-se que o
Direito incorporou uma série de dispositivos normativos e decisões judiciais que almejam a
igualdade de gênero. Afirma o autor que o campo jurídico passa cada vez mais a ser renovado
tendo em vista as reivindicações sociais e as epistemologias feministas. Contudo, no plano
institucional, nota-se que ainda “remanescem discursos e práticas que invocam concepções
sexistas. Trata-se de uma das grandes contradições para o Direito contemporâneo” (p. 207).
Em suas noções, Pitanguy (2019) assevera que as leis, bem como suas interpretações
e implementações espelham relações de poder e padrões culturais predominantes em
determinadas sociedades. Ou seja, tanto o seu conteúdo normativo quanto a sua prática se
situam na esfera política, envolvendo disputas de poder nacionais e internacionais por
significados e vivências. A autora avalia ainda que, ao longo das três últimas décadas do século
P á g i n a | 203

XX, existe uma clara relação entre o ativismo feminista e as mudanças em legislações, a
proposição de novas leis, a implementação de políticas públicas e a resistência a retrocessos.
O Código Civil de 2002 trouxe para a legislação civil brasileira a igualdade jurídica
entre mulheres e homens na seara familiar. Com a sua publicação no ano de 2002, também foi
apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.350/2002, cujo objetivo foi criar um
novo modelo de guarda no ordenamento jurídico que evidenciasse uma participação mais
igualitária de mães e pais na criação de seus filhos. Após seis anos de debates parlamentares, o
referido projeto resultou, no ano de 2008, na promulgação da lei que instituiu a guarda
compartilhada no Brasil (Lei nº 11698/08).
No Brasil, a Lei nº 11.698/08 era aguardada com expectativa por muitos pais que
vislumbravam um novo cenário nas determinações dos arranjos de guarda de filhos de genitores
não conviventes. Com o aumento do número de separações, cresceu também o número de
pesquisas sobre o tema, constatando-se a necessidade premente de, nos dias de hoje, o Estado
garantir a autoridade parental de ambos os pais (RODRIGUES, 2017).
O estudo da guarda compartilhada inscreve-se na interpretação das transformações na
paternidade, na maternidade e na coparentalidade, bem como nas relações sociais de gênero na
família (MARINHO, 2011). Grisard (2002) leciona que guarda compartilhada não se refere
apenas à tutela física ou custódia material, mas todos outros atributos da autoridade parental
são exercidos em comum, os pais têm efetiva e equivalente autoridade legal para tomar decisões
importantes quanto ao bem-estar de seus filhos e, frequentemente, têm uma paridade maior no
cuidado dos filhos do que os pais com guarda unilateral. O estudioso apresenta as vantagens
não somente aos filhos, assim como ao pai e mãe a respeito da guarda compartilhada ao
asseverar que compartilhando o trabalho e as responsabilidades, minimiza o conflito parental,
diminui os sentimentos de culpa e frustração por não cuidar dos mesmos, ajuda-os a atingir os
objetivos de trabalharem em prol dos melhores interesses morais e materiais das
crianças/adolescentes.
Rosa (2015) assinala que tradicionalmente, a guarda era tratada como um direito
subjetivo a ser atribuído a um dos genitores na separação, em contrapartida ao direito de visita
deferido a quem não fosse outorgada essa posição de vantagem, que teria o dever de a ela
submeter-se. O avanço legislativo contribui para que, por meio da atribuição conjunta de
responsabilidades, possa ser pavimentado um caminho virtuoso para a coparentalidade e a
preservação do bom desenvolvimento psíquico dos filhos, principalmente após o desfazimento
do vínculo conjugal de seus pais.
P á g i n a | 204

Não obstante as especificidades e avanços acentuados pela guarda compartilhada,


Tornquist (2008), noutra direção, alerta que, em nome dos filhos, esse modelo pode representar
uma reação conservadora ao avanço dos direitos dos “novos” sujeitos contemporâneos:
mulheres e crianças. Mais ainda, é no bojo da complexidade que envolve a temática que a
estudiosa mantém sob suspeita medidas institucionais que se relacionam com a entrada em cena
de homens ditos cuidadores e/ou sensíveis.

3 GUARDA COMPARTILHADA: BALANCEANDO PERSPECTIVAS

A Lei 11.698/2008 presumia que a opção do compartilhamento seria aplicada quando


houvesse uma convivência harmoniosa entre os pais (RODRIGUES, 2017). A partir da
publicação da Lei 13.058 de 2014, como se depreende, a mudança na legislação normatiza o
deferimento da guarda compartilhada mesmo quando houver litígio, quer dizer, quando não
houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores
aptos a exercer o poder familiar, será aplicada esta modalidade, salvo se um dos genitores
declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.
Outra ressalva da Lei 13.058/2014 foi a previsão de multa para o estabelecimento
público ou privado que negar informações a um dos pais sobre seus filhos, visto que cabe a
ambos o acompanhamento do direito à educação e à saúde destes. Imperioso referir que a Lei
n. 11.698/2008 ao estabelecer a possibilidade da guarda compartilhada no ordenamento jurídico
brasileiro, trouxe a seguinte redação ao art. 1.584, § 2º, do Código Civil: quando “não houver
acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda
compartilhada”. Entretanto, com a expressão “sempre que possível”, acabou sendo
equivocadamente interpretado que o compartilhamento somente seria possível com acordo
entre os genitores (MOCELIN, 2017). Ora, filhos de pais que mantêm o diálogo e se entendem
bem, sequer precisam de normas e princípios sobre guarda compartilhada. “A lei jurídica
vigente é exatamente para quem não consegue estabelecer um diálogo, ou seja, para aqueles
que não se entendem sobre o compartilhamento das responsabilidades dos próprios filhos”
(MOCELIN, 2017, p. 37).
Rodrigues (2017) defende que a representação da guarda compartilhada como o
paradigma da igualdade de gêneros pode ser congruente com o ideal jurídico de igualdade dos
cidadãos, haja vista que ela põe em cena o ideal de que a aparente divisão do cuidado representa
o fim das hierarquias de gênero na parentalidade. Nesses termos, sobreleva a lição de Mocelin
(2017) para quem a Lei nº 13.058/14 é justificada pelo intuito de se exigir dos magistrados um
P á g i n a | 205

posicionamento favorável à sua aplicação, o que não vinha acontecendo até então. Isto porque,
historicamente, nas dissoluções litigiosas entre casais que envolvessem disputa de guarda de
crianças e adolescentes, a Justiça brasileira demonstrou certa tendência a se posicionar no
sentido de que, quando questionado acerca de qual genitor teria maior capacidade para obter a
guarda da criança ou do adolescente, a mãe, em regra, seria apontada como sendo melhor opção
(MOCELIN, 2017).
Rosa (2015) sugere que o ano de 2014 representou o marco da transformação de uma
lógica anteriormente reiterada socialmente como “homem não tem jeito com criança” - ideia
presa aos papeis sociais que atribuíam os cuidados parentais apenas à mãe - para uma realidade
presente de que ambos os pais são essenciais na vida dos filhos. Complementa o autor que no
percurso do instituto da guarda no direito brasileiro, pode-se notar uma origem unitária e,
preferencialmente, destinada aos cuidados maternos e, no mesmo passo de conquista de espaço
e emancipação feminina, tem-se a consolidação igualitária de cogestão dos interesses dos filhos
entre ambos os genitores.
Necessário é lembrar que, embora presente no ordenamento jurídico brasileiro desde
2008, a guarda compartilhada exigiu novo regramento, não apenas para sua efetividade, mas,
acima de tudo, para apresentar novos esclarecimentos e diretrizes. O advento da Lei n.
13.058/2014 trouxe a necessidade de uma releitura em relação à noção de guarda compartilhada
em si. A guarda compartilhada também revaloriza o papel paterno, uma vez que surgiu da
necessidade de reequilibrar os papéis parentais, diante da guarda uniparental concedida
sistematicamente à mãe, é o que postulam Rosa (2015) e Ramos (2016).
Por outro ângulo, o terreno da parentalidade pode consubstanciar um novo campo para
o exercício da dominação masculina (Bourdieu, 2016), baseado, justamente, nos princípios da
autonomia, da individualidade e da igualdade parental, que passam, assim, a legitimar a
desigualdade assente já não nas diferenças de gênero tradicionais e, sim, nos recursos e traços
pessoais. Deste modo, ter as características parentais mais adequadas constitui a chave da
apropriação (MARINHO, 2011).
Ainda que a guarda compartilhada apresente vantagens, é certo que possui
desvantagens a ser consideradas. Rodrigues (2017) põe em relevo que por ser um instituto
“recente” sua aplicação prática pode ser prejudicada pela falta de entendimento dos operadores
do direito e da sociedade sobre a questão. O Código Civil aborda assunto em dois artigos e
salienta que a guarda compartilhada será atribuída, inclusive, quando não houver acordo entre
os genitores.
P á g i n a | 206

Pesquisas científicas brasileiras, canadenses e portuguesas (Ribeiro 2017; Martins,


2018; Marinho e Correia, 2017; Simioni, 2015; Coté 2016) demonstram que a guarda de
crianças é um fenômeno complexo, em que a melhor organização para cada família e/ou criança
e/ou adolescente depende da interação entre inúmeras variáveis econômicas, socioculturais e
intrapsíquicas em um dado momento. No Brasil, a Lei nº 13.058/2014 parece reconhecer a
singularidade de cada família e de cada pleito de guarda. Para concretizar a diferenciação de
cada decisão, a citada lei prevê estudo individualizado por especialistas quando o Ministério
Público ou o magistrado acharem necessário.
Insta realçar, com base em Ramos (2016), que o estudo individualizado é essencial
para a definição do modelo de guarda, pois não há consenso entre os pesquisadores quanto ao
modo e à intensidade que as variáveis: idade da criança, qualidade da relação genitor-criança,
número de pernoites em cada residência, vínculo privilegiado com a mãe, vínculo com uma ou
mais figuras de segurança e qualidade da coparentalidade, favorecem ou impedem, de modo
geral, que a guarda compartilhada seja fator de proteção para os filhos.
Ribeiro (2017), em sua pesquisa sobre a guarda compartilhada a partir da experiência
vivida por mulheres, alerta que a teoria feminista fornece base para compreender a lógica
determinista do artigo da lei que define que, não havendo acordo entre pai e mãe em relação à
guarda dos filhos, esta será compartilhada. A autora é enfática quando assevera que, ao não
solicitar uma hermenêutica apurada da relação prévia da genitora e do genitor com a
“maternagem/paternagem”, evidencia-se a generalização “essencializada” de mulheres e
homens em grupos homogêneos marcados tão somente pela diferença sexual, sem considerar
fatores culturais, sociais e econômicos, entre tantos outros.
Nesse sentido, os legisladores brasileiros não consideraram a relação mulher-homem
em sua historicidade e em suas características, as quais incluem diferenças transformadas em
desvalias e assimetrias de poder. A construção das representações sociais da maternidade e da
paternidade em perspectiva interseccional também não foi apreciada como estruturante da
identidade de homens e mulheres. O único aspecto sobrepesado foi o desejo de alguns homens
de terem a presença de seus filhos, sem a apresentação de uma proposta de política de Estado
para uma mudança das representações de maternidade e paternidade e, consequentemente, dos
lugares sociais ocupados por mulheres e homens no casamento, na família e na sociedade como
um todo (RIBEIRO, 2017).
A autora supramencionada prossegue e salienta que, muitas vezes, esses pais-homens
não têm nenhum interesse na interação com a criança, mas desejam simplesmente estabelecer
um limite para o exercício da maternidade da mãe de seus filhos. Durante o período que lhes
P á g i n a | 207

cabe guardar as crianças, alguns as deixam aos cuidados de outras mulheres (namoradas, avós
paternas, tias paternas, babás). A instituição da guarda compartilhada significou, nesse cenário:

A perda de um espaço de reconhecimento e de poder importante para essas mulheres-


mães, questão que pode vir a adoecer emocionalmente a muitas delas, que têm, na
maternidade, o único espaço de poder e de sentido (RIBEIRO, 2017, p. 39).

De fato, o Estado brasileiro é machista, e o Poder Legislativo é composto por quase


90% de homens (SIMIONI, 2015). A reflexão feminista de gênero e as teorias críticas sobre a
produção de práticas sociais ainda não alcançaram nem um número expressivo de brasileiras e
brasileiros, em geral, tampouco os membros da área jurídica. Esse cenário permite visualizar a
sanção dessa lei, que contém um artigo que determina guarda compartilhada quando não houver
acordo entre pai e mãe, como uma reprodução do machismo ao encarregar os homens a
decidirem se as mulheres-mães terão ou não a guarda dos filhos, inclusive quando houve
violência conjugal contra a mulher durante o casamento (RIBEIRO, 2017).
Simioni (2015) demonstra o que Ribeiro (2017) problematiza: a importância da
promoção de uma transformação radical no sistema sexo-gênero. Tal transformação deve
conduzir a uma menor assimetria entre homens e mulheres e a uma nova representação social
da maternidade e da paternidade. É sobremodo importante assinalar que, para que a guarda de
crianças e adolescente seja realmente compartilhada, mudanças estruturais precisam ocorrer na
cultura brasileira, de modo que os papéis de mulheres e homens e a ocupação de espaços
públicos e privados sejam reformulados. Caso contrário, continuar-se-á a ver o que Simioni
(2015) denunciou: a guarda compartilhada de crianças é compartilhada entre a mãe das crianças
e as mulheres da família do pai ou suas namoradas, processo que contribui para perpetuar os
estereótipos de gênero. Aqui, toma-se de empréstimo a atualidade de Beauvoir (1980) no que
diz respeito aos direitos das mulheres: “mesmo quando os direitos lhe são abstratamente
reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta”
(p. 17).
Em nome dos filhos ou “retorno da lei do pai”? É assim que Tornquist (2008) adverte
dos riscos da guarda compartilhada, sugerindo que essa igualdade formal, não raro, é
ressignificada a partir de velhas estruturas patriarcais e acaba por legitimar o poder masculino
sobre a sua ex-mulher, através do chamado direito de paternidade. Em seu texto, a autora suscita
questionamentos como, por exemplo, o compartilhamento da guarda requer bem mais do que
notícias jornalísticas e análises superficiais que apenas celebram as virtudes dos homens
cuidadores, e que silenciam as narrativas a partir de um ponto de vista feminista de como as
decisões e acordos judiciais são vivenciados no cotidiano das famílias recompostas, sobretudo
P á g i n a | 208

num momento em que, na América Latina em específico, a reação conservadora e violenta


dirigida ao corpo das mulheres e aos seus direitos está mais uma vez colocada no pilar das
instâncias políticas.
Coté (2016) pactua com o argumento de que natureza invisível do cuidado das crianças
é um dos mecanismos de subordinação das mulheres. Paradoxalmente concebida como uma
maneira de libertá-las do fardo de serem mães solteiras, a guarda compartilhada pode se
transformar em fonte de subordinação. Ao se referir à neutralidade e à simetria dos gêneros
como normas e valores básicos, ela é representada como intrinsecamente justa e vantajosa para
as mulheres. A autora explicita que a medida dessa simetria dos gêneros é em si mesma falsa:
a real responsabilidade pelo cuidado nas famílias em guarda compartilhada não é igualmente
dividida e, no melhor dos casos, o cuidado cotidiano (escovar os dentes, dar banho, vestir, levar
para a escola ou creche, etc.) é simetricamente compartilhado. Porém, as tarefas e
responsabilidades de médio e longo prazo geralmente ficam a cargo exclusivo das mães. Insta
grifar, ainda em consonância com Coté (2016), que a guarda compartilhada era e ainda é
relativamente marginal, mas gerou fundamentos para a ascensão de um novo modelo de criação
dos filhos após a separação e o divórcio. Nas palavras da autora:

Esse modelo responde à crise dos filhos divorciados, pais inadimplentes e mães
solteiras reduzidas à pobreza. Como todos os modelos, as suas funções são
representacionais, morais e normativas. Como tal, ele cria novos constrangimentos
sociais e morais para pais e mães. Os pais ganham acesso mais fácil às crianças após
o divórcio, uma redução das obrigações de apoio financeiro e maior responsabilidade
pelo cuidado dos filhos. As mães veem a obrigação de cuidar das crianças diminuir
na maioria dos casos, mas não em todos. A obrigação de assistência material é maior
para elas, que ainda herdam uma nova obrigação forjada pela natureza intrínseca da
guarda física compartilhada: a de supervisionar a participação do pai no arranjo em
prol do cuidado comum dos filhos (COTÉ, 2016, p. 12).

Contraditórias implicações também estão surgindo por meio da guarda compartilhada.


É o que revela Simioni (2015) ao ressaltar que a família deixa de ser uma entidade, e a guarda
compartilhada agora representa o encontro de duas autonomias negociadas. Quando a guarda
compartilhada desponta com prioridade, profissionais e tribunais a recomendam vivamente,
mesmo para aqueles incapazes de chegar a um acordo. Nestes casos, Coté (2016) advoga que o
instituto em comento cria novos tipos de regulamentações e constrangimentos que
“modernizam” desigualdades, pondo em evidência a perpetuação da opressão das mulheres.
P á g i n a | 209

Nos dizeres sempre expressivos de Bourdieu (1989), não se pode negar que a conduta
dos agentes jurídicos também está diretamente ligada ao habitus4 de classe, família, escola, isto
é, ao contexto social no qual nasceu e cresceu. Necessário frisar a lição de Giusto (1999):
Os profissionais do judiciário, dentre os quais alguns juízes, promotores e psicólogos
nasceram e cresceram sob a égide do papel socialmente imposto aos casais, que
reservava à mulher a tarefa da educação dos filhos e cuidados da casa, e ao homem o
encargo do sustento da família, e trazem consigo as marcas indeléveis desta educação.
Isto fatalmente se reflete na maneira de conduzir e de julgar as ações que tramitam na
esfera do Direito de Família, apesar das fortes correntes atualizadoras que se pode
identificar (p. 66).

Certamente, nenhuma previsão sobre a efetividade do caráter impositivo da guarda


pode ser garantida de forma absoluta pelo juiz nem pelos profissionais que atuam no campo
jurídico. Depreende-se então que o compartilhamento obrigatório da guarda deve ser sugerido,
aconselhado e encorajado no ordenamento, mas não considerado a solução plausível para todos
os casos.
Ao figurar um estudo sobre guarda compartilhada, enfatiza-se as dinâmicas de
integração parentais e familiares intersectam-se com os posicionamentos de classe, de gênero,
de regionalidade, de raça/etnia, de religião dos atores familiares. É sobremaneira interessante
perceber como esses matizes se cruzam, com quais facetas a maternidade e a paternidade se
apresentam no Nordeste, por exemplo, e produzem formas plurais e flexíveis de se exercer o
compartilhamento da guarda.
A guarda compartilhada é também atravessada pelas diferenças de capitais sociais e
econômicos de homens e mulheres, que se repercutem nas modalidades variadas de negociação
da cooperação parental. No caso do Brasil, pensa-se que o estabelecimento da guarda
compartilhada como regra apresente melhores possibilidades de aplicação para as famílias onde
estão presentes as condições de sustento, bem como nas camadas privilegiadas da sociedade,
ou seja, classe média até alta. Ora, sabe-se que o acesso à justiça é um direito social fundamental
e, também é de opinião unívoca, que a estrutura jurídica brasileira não oferece suporte para toda
a população que, normalmente, seria parte em uma lide, tenha acesso a tal. Para famílias em
situação de pobreza, vulnerabilidade e miséria, nas quais o direito fundamental na ordem das
prioridades é o da própria sobrevivência, o exercício da guarda dos filhos é cercado de

4
O habitus é uma noção mediadora que analisa a maneira como as estruturas sociais são incorporadas pelos
indivíduos na forma de disposições duráveis acerca de modos de agir, pensar e sentir, na forma de esquemas de
percepção e apreciação. Explica como as estruturas sociais se tornam estruturas mentais/cognitivas, como a ordem
social se reproduz objetiva e subjetivamente. É importante destacar que isso não significa que o habitus seja algo
estático ou eterno. Ele é socialmente forjado, está sempre em construção e é resultado de um exaustivo processo
de inculcação e de incorporação, pois exige uma transformação duradoura dos corpos e das mentes dos indivíduos.
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obstáculos. Assim, mesmo que haja litígio pelo compartilhamento da responsabilidade com o
filho, certamente ele não será resolvido sob a ordem jurídica.
Com variedades de opções e as lacunas existentes, bem verdade que os contornos sobre
as questões desenhadas neste artigo ainda estão nublados e há um caminho a ser trilhado, com
a premência de consolidação do cuidado parental assumido em condições equânimes pelo pai
e pela mãe – esta, ainda é uma missão a se realizar, apesar dos esforços e das meritórias
iniciativas, a exemplo da Lei 13.058/2014.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa das considerações finais, cumpre retomar a principal indagação que se


destacou neste artigo: o compartilhamento obrigatório da guarda significa uma redução das
desigualdades de gênero nos papéis parentais?
Pois bem, a organização do movimento feminista consiste em subsidiar as mulheres
na travessia pela luta de direitos na esfera pública e privada, além de empoderá-las como
sujeitos ativos na apropriação de suas vivências. As conquistas obtidas pelo feminismo são
claras: o direito pelo voto (sufrágio), a redução das horas a serem trabalhadas, e o direito à
escolha à maternidade são algumas das mais estimadas, e atestam sua construção por intermédio
de fortes resistências e retrocessos. Nesses termos, a igualdade nos direitos políticos
conquistada pelo movimento das mulheres no início do século passado espelhou também
igualdade civil. Nos dias atuais, mulheres e homens são desafiados por um modelo de guarda
que busca consagrar essa isonomia.
Vale ratificar que a Lei 13.058/14 favorece a responsabilização conjunta pelos filhos.
Entretanto, a divisão sexual inculcada no imaginário coletivo quanto às expectativas e
características sociais, econômicas e afetivas para mulheres e homens, mostra ainda persistirem
diferenças expressivas no espectro das relações familiares. De certo modo, o modelo de
responsabilidade parental invocado pela Lei 13.058/14 abriga novos contornos de gênero:
fluidez de identidades, pluralidade de experiências e maior mobilidade para as mulheres. Mas
há objeções: as assimetrias que operam nas práticas parentais não se combatem apenas
discursivamente e/ou por força da legislação, mas por meio de práticas verdadeiramente
emancipadoras que caminhem na direção transformações sociais, econômicas e culturais que
enfrentem as raízes das desigualdades de gênero e os valores arcaicos amparados em noções
machistas. Logo, não se pode associar a guarda compartilhada à igualdade de gênero de modo
automático. Ou seja, levando em conta que as tramas sociais e familiares são tangenciadas por
P á g i n a | 211

estruturas opressoras que continuam tão fortes, firmes e ferrenhas, a Lei 13.058/14 não é
parâmetro de igualdade ou desigualdade.
As considerações aqui explicitadas têm o propósito de ensejar novas reflexões que
cercam as práticas de responsabilidade parental.

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SHARED CUSTODY AND GENDER EQUALITY: A POSSIBLE EQUATION?

ABSTRACT
The purpose of this article is to discuss the positivity of equality
between women and men in the Brazilian legal system in the light of
the shared custody model. In Brazil, the sanction of Law No. 13,058 /
2014 allows the judge to define, when there is no agreement by the
parents and in the name of the supposed well-being of the children,
shared custody. After all, does sharing custody mean a reduction in
gender inequalities in parenting experiences? The methodology used to
carry out the work consists of a bibliographic review, in order to
establish the theoretical premises and clarify the concepts, examining
Brazilian laws and delineating links with the feminist matrix. It
concludes that shared custody destabilizes gender asymmetry, drawing
plural forms of paternity and motherhood, but it does not represent an
end to inequalities between women and men in parenting. It is what will
be presented and discussed here.

Keywords: Gender equality. Parenting. Shared custody.


P á g i n a | 215

INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE DEMOCRACIA DIRETA PARA CONVOCAÇÃO


DE ELEIÇÕES APÓS O IMPEACHMENT

Aline Borges Rodovalho Batista1


Rafael Ruling Estênico2

RESUMO

O impeachment é o instituto que permite a impugnação de mandato do


Presidente da República. Todavia, atualmente não há previsão de
eleições diretas após o impedimento, dessa forma, o presente artigo
pretende expor as possibilidades e dificuldades de convocação de
eleições por meio de instrumentos jurídicos, como o referendo, o
plebiscito e a iniciativa popular. Outrossim, propõe a separação da
natureza penal e política do impeachment, através de um projeto de lei,
que deverá ser submetido por meio de um referendo à população. E por
fim, discutimos sobre a possibilidade do estabelecimento do recall
político no Brasil, como meio de abreviar mandatos eletivos de agentes
políticos considerados ineficientes ou por terem praticados ilícitos. O
presente trabalho adota o método de abordagem dedutivo.

Palavras-chave: Impeachment. Plebiscito. Referendo. Iniciativa


Popular.

1 INTRODUÇÃO

A Carta Magna Brasileira prevê responsabilidades, imunidades e prerrogativas ao


cargo de Presidente da República. O Chefe do Executivo Federal poderá ser processado nos
casos de crime comum ou crime de responsabilidade, após o juízo de admissibilidade por dois
terços da Câmara dos Deputados. E, também, ser submetido a julgamento perante o Supremo
Tribunal Federal (STF), nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes
de responsabilidade previstos no artigo 85 da Constituição Federal de 1988.
O crime comum pode ser entendido com aquele que pode ser cometido por qualquer
pessoa, enquanto o crime de responsabilidade é tratado no artigo 85 da Constituição e praticável
por pessoas investidas em certas funções.
A Lei nº 1.079/1950 define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo
processo de julgamento. É através dessa lei que o Presidente da República, os Ministros de
Estado, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e outros

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Licenciada e Bacharel em Ciências Biológicas
pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: alinebrodovalho@gmail.com
2
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: rafaelruling@hotmail.com
P á g i n a | 216

recebem a imposição de sanção política, mesmo quando o crime de responsabilidade possa ter
sido apenas tentado.
Assim dada à circunstância atual do tema, priorizou-se realizar um estudo através do
método dedutivo, no qual investigou-se na jurisprudência e doutrina, os limites do alcance dos
instrumentos jurídicos de democracia direta. Além disso, foram propostos os pressupostos da
utilização do plebiscito, referendo e iniciativa popular como métodos para ampliar o poder de
decisão popular em deliberações de relevância nacional. Nesse sentido, o tema central deste
artigo é propor uma maior participação popular no processo de impeachment.
Para tanto, o presente trabalho, que adota o método de abordagem dedutivo, busca
compreender qual seria a interpretação jurídica sobre os instrumentos jurídicos mencionados, a
fim de verificar se eles podem ser convocados para a realização de um impedimento.
Além do mais, objetiva-se trabalhar a hipótese de instituição do referendo revocatório
ou recall político do mandato de Presidente da República e de Congressista. E ainda, discutir
sobre a possibilidade de criação de lei por meio de iniciativa popular para regulamentar a
participação popular no processo de impeachment.
E assim, demonstrar a relevância de respeitar a vontade soberana do povo, pois no
atual contexto político, em uma democracia indireta, os parlamentares têm poucas obrigações
junto ao seu eleitorado, e a população tem sua opinião marginalizada frente aos interesses de
poucas pessoas, detentoras de grande parcela de poder, tanto econômico quanto político.

2 A NATUREZA DO IMPEACHMENT

O impeachment é um termo inglês que significa impugnação de mandato. É a


destituição legal, por meio de processo no Poder Legislativo, do ocupante de cargo de
Presidente da República.
O instituto do impeachment apresenta duas naturezas: política ou penal. Segundo
Moraes (2012, p.506), a maioria da doutrina nacional entende o impeachment como um instituto
de natureza política. Esse ponto de vista é defendido por vários publicistas, como Paulo
Brossard, Michel Temer e Ives Gandra da Silva Martins. Porém, outras posições são defendidas
na doutrina. Para Pontes de Miranda, impeachment possui natureza penal; e José Frederico
Marques, João Trindade Cavalcante Filho e Juliana Magalhães Fernandes Oliveira afirmam que
esse instituto apresenta natureza mista.
Em relação ao impeachment político, Paulo Brossard citado por Goés (2010, p.2),
esclarece que se trata do afastamento daquele que por más condutas não consegue obter
P á g i n a | 217

confiança do povo, com isso não há uma condenação propriamente dita, instaurando-se um
julgamento conforme critérios políticos, visto que o Senado é o único responsável pela
instauração e julgamento do processo de crime de responsabilidade.
No entanto, há autores, como o eminente jurista Pontes de Miranda (1969, p.138), que
defendem a natureza penal do impeachment, pois os crimes de responsabilidade são figuras de
delitos penais.
Porém mais que isso, há uma vertente, representada por Cavalcante Filho e Oliveira
(2016, p.13), que explana que o impeachment é resultado da independência e harmonia entre os
poderes. E ainda, devido a sua natureza jurídica híbrida exige a base jurídica (a existência de
uma conduta tipificada como crime de responsabilidade) e o fator político (o entendimento de
que a conduta tipificada se qualifica com um atentado à Constituição).
Nesse sentido, muitos estudiosos do assunto têm abordado o tema, como no trecho a
seguir:

[...] a Carta brasileira continua a fazer relevante distinção entre crimes de


responsabilidade e crimes comuns para efeito de impeachment. Embora utilize o
vocábulo ‘crimes’ para ambos os casos, apenas os últimos aparentam ser delitos penais
típicos com previsão no Código Penal e nas leis penais extravagantes, ao passo que os
primeiros seriam impropriamente denominados de crimes, pois se trata, em verdade,
de infrações político-administrativas com penalidades essencialmente políticas
(GALINDO, 2016, p. 52).

Enquanto Ives Gandra da Silva Martins (2016, p.294), enuncia que “assim, quaisquer
que sejam os argumentos jurídicos a justificar o impeachment, a decisão parlamentar será
sempre, indiscutivelmente, política, lembrando-se que, mesmo nos Estados Unidos, o instituto
jamais foi aplicado”.
Sendo assim, entendemos que a natureza do impeachment, no Brasil, é de um processo
político ou administrativo, logo não penal, dado que o objetivo não é aplicação de pena criminal,
mas de punir o agente público eletivo acusado de gestão ineficiente, para que posteriormente,
seja julgado pelo Senado Federal, segundo competência atribuída pela Constituição Federal.
Com o advento da condenação pelo Senado, o acusado será julgado pelo Poder Judiciário nos
crimes comuns.

3 O PROCESSO DE JULGAMENTO E ADMISSIBILIDADE DO IMPEACHMENT


P á g i n a | 218

O andamento do processo referente aos crimes de responsabilidade e comuns


cometidos pelo Presidente da República envolve duas partes: juízo de admissibilidade do
processo perante a Câmara dos Deputados e processo e julgamento pelo Senado Federal.
O processo de responsabilidade é iniciado na Câmara dos Deputados, onde deverá ser
declarada a procedência ou improcedência da acusação. Para a autorização é necessário que 2/3
dos deputados decidam pela instauração do processo nos termos do art.51, I da Constituição.
Bernardo Gonçalves Fernandes (2020, p.1455), leciona que após a autorização da
Câmara dos Deputados, o Senado decide se recebe ou não a denúncia. Se receber, é iniciado o
processo de impeachment, que ao final poderá ser votado pela absolvição ou condenação do
Presidente. Para isso, é necessário a aprovação de 2/3 dos senadores. Contudo, se a denúncia
for rejeitada, haverá o arquivamento do pedido. A Constituição, em seu art.86 3 , trata da
acusação contra o Presidente da República:

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da
Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal
Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de
responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo
Tribunal Federal;
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado
Federal.

Após a realização do juízo de admissibilidade por dois terços da Câmara dos


Deputados, e, também, ser submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas
infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade (CF,
art.86), o Presidente da República terá a acusação submetida a julgamento. Com isso percebe-
se que para ter processo sobre crimes de responsabilidade é necessário que haja o juízo de
admissibilidade pela Câmara dos Deputados, para que posteriormente, ocorra o julgamento do
Chefe do Poder Executivo (MORAES, 2012. p. 503-507)
Conforme as disposições gerais da Lei nº 1.079/1950, nos crimes de responsabilidade
do Presidente da República, a Câmara dos Deputados é tribunal de pronúncia e o Senado
Federal é o tribunal de julgamento (art.80). Além disso, consoante parágrafo único do artigo 80,
o Senado Federal funciona sob presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal, para a
apuração e julgamento dos crimes de responsabilidade.

3
BRASIL. Constituição Federal de 1988, art. 14. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 nov.2020.
P á g i n a | 219

Outrossim, cumpre-nos esclarecer que o art.14 da Lei nº1.079/50 prevê que qualquer
cidadão (indivíduo com capacidade eleitoral ativa) pode apresentar denúncia contra o
Presidente da República perante a Câmara dos Deputados.
Ademais, segundo o art.19 da mencionada lei, após o recebimento da denúncia, ela
deverá ser lida no expediente da sessão seguinte e despachada para uma comissão especial
eleita, a fim de que ela elabore um parecer sobre a denúncia. Após a votação do parecer perante
a comissão especial, a denúncia passa a ser analisada pelos deputados em plenário, sendo
exigido o quórum de 2/3 para autorização do processo contra o Presidente da República.
E ainda não poderá exceder cento e vinte dias, contados da data da declaração da
procedência da acusação, o prazo para o processo e julgamento dos crimes definidos na Lei que
define os crimes de responsabilidade.

4 A ATUAL CRISE EM UMA DEMOCRACIA INDIRETA

Democracia seria uma forma de governo, na qual, a governabilidade emana da


soberania do povo, pois assim está previsto no parágrafo único, do artigo 1º da Constituição
Federal de 1988. No caso do sistema democrático brasileiro, temos uma democracia
representativa em que os cidadãos elegem seus representantes para que estes venham decidir os
rumos da nação.
No entanto, à vista disso presenciamos a crise no Estado Social e de legitimidade do
sistema político-representativo, uma vez que a participação popular se limita ao momento
eleitoral. Posto isso, representantes eleitos decidem arbitrariamente segundo interesses pessoais,
ignorando as necessidades e a vontade do eleitorado, e assim o direito restringe-se a um sistema
de legalidade e coercitividade (FERRAZ, 2012).
Isso culmina para uma democracia indireta, em que o representante eleito pelo seu
eleitorado, não têm dever de vinculação a eles,

[...] porque o representante não está vinculado aos seus eleitorados, de quem não
recebe instrução alguma, e se receber não tem obrigação jurídica de atender, e a quem,
por tudo isso, não tem que prestar contas, juridicamente falando, ainda que
politicamente o faça, tendo em vista o interesse na reeleição. Afirma-se, a propósito,
que o exercício do mandato decorre de poderes que a Constituição confere ao
representante, que lhe garante a autonomia da vontade, sujeitando-se apenas aos
ditames de sua consciência. (SILVA, J. A. 1990, p.123).

Em um eventual caso de processo de impeachment, os parlamentares não necessitam


representar a vontade do povo, o que pode conferir a este processo, uma luta de interesses
P á g i n a | 220

subjetivos, que podem permitir a barganha de votos, onde deveria ocorrer uma grande reflexão,
por causa da importância do contexto.
Essa crise de representação é analisada por Noberto Bobbio.

Parto de uma constatação sobre a qual podemos estar todos de acordo: a exigência,
tão frequente nos últimos anos, de maior democracia exprime-se como exigência de
que a democracia representativa seja ladeada ou mesmo substituída pela democracia
direta. Tal exigência não é nova: já a havia feito, como se sabe, pai da democracia
moderna, Jean-Jacques Rousseau, quando afirmou que ‘a soberania não pode ser
representada’ e, portanto, ‘o povo inglês acredita ser livre mas se engana
redondamente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez eleitos
estes, ele volta a ser escravo, não é mais nada”. (BOBBIO, 1997, p. 41)

Com o intuito de sanar a crise de representatividade popular conforme exposto acima,


inicialmente introduzido na Suíça, foram criados os institutos jurídicos: plebiscito, referendo
popular e iniciativa popular. Todavia faltam clareza e consenso doutrinário, no ordenamento
jurídico, de qual seria seus conceitos e seus alcances, para que assim possam ter um uso efetivo.
Pela tradição jurídica, não há o costume de consulta da população, nem inicialmente
para leis ordinárias, quiçá para um processo de impeachment, no qual, há interesses de classes
dominantes detentoras do poder político e econômico, que com receio de opinião popular
contrária aos seus interesses, barram a participação coletiva, aproveitando da falta de clareza
dos conceitos e dos alcances dos institutos.

5 A CONCEITUAÇÃO E O PROCESSO HISTÓRICO DO INSTITUTO DO


REFERENDO

Apesar de não haver uma concordância sobre a conceituação do referendo na doutrina


atual, nesse artigo será adotada a tese do jurista Araújo Castro (1938, p.45) que diz que o mesmo
seria um instituto no qual o povo reassume a sua autoridade para aprovação de textos
normativos que sejam importantes ao seu anseio, sendo que possui autonomia para ratificar ou
rejeitar matéria legislativa já vista pelo Poder Legislativo. Em via que em alguns países, o povo
não se satisfaz em escolher os seus representantes: quer ter iniciativa das leis e o direito de
recusá-las ou sancioná-las com o próprio voto.
P á g i n a | 221

A Lei de n° 9.709 de 18 de novembro de 1998 por meio do seu artigo 2°4, inciso II,
regulamenta as disposições previstas pelo texto constitucional no inciso II do artigo 14°, que
regulamenta esse instituto.
Após a promulgação da Constituição de 1988, esse instrumento jurídico fora acionado
somente uma vez em 2005 para referendar a matéria sobre a proibição da comercialização de
armas fogo e munição prevista pela Lei n° 10.826 de 22 de Dezembro de 2003, também
conhecida como Estatuto do Desarmamento. O Congresso havia aprovado a alteração no artigo
35° do Estatuto que tornaria assim proibida a comercialização de arma de fogo e munição em
todo o território nacional, porém após a consulta a população, a mesma rejeitou a decisão
legislativa, e por assim manteve legal o comércio.
Esse mecanismo de participação da cidadania foi utilizado outra vez, em 1963,
consoante pesquisa realizada junto ao Tribunal Superior Eleitoral (2020). O objetivo da consulta
foi definir se a forma de governo, denominada de parlamentarismo continuaria a viger ou não.
À época, o povo brasileiro rejeitou esse sistema de governo, optando pelo presidencialismo.
Sendo assim, podemos pontuar que esse instituto jurídico é pouco utilizado, talvez por
conta do custo da consulta eleitoral, considerando a dimensão territorial do Brasil. Destarte, o
que deve sopesar sobre a possibilidade de ter ou não esse tipo de consulta é que o direito ao
voto não deve ser resumido a fazer escolhas dos representantes do povo ou dos Estados, mas
também a possibilidade do brasileiro decidir temas conflitantes do ponto de vista moral, ético
e político.
Isso é cristalino no mencionado parágrafo único do artigo 1º da Carta Cidadã, que
ordena que o poder emana do povo, que poderá exercer indiretamente por meio dos
representantes eleitos ou diretamente, por meio do referendo, plebiscito ou iniciativa popular.

6 A CONCEPÇÃO E PROCESSO HISTÓRICO SOBRE O INSTITUTO DO


PLEBISCITO

O plebiscito seria um instituto no qual o protagonismo da população é conclamado


pelo Poder Legislativo para expor a sua opinião sobre importância de matéria que será ainda
discutida pelo Congresso Nacional, de forma que, a população irá aprovar ou denegar o objeto
de plebiscito convocado. É conhecido também como referendum consultivo, uma vez que

4
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.2. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 222

ocorre quando o povo é chamado a pronunciar-se sobre a conveniência ou não de uma lei a ser
feita pelo Parlamento (AZAMBUJA, 1941, p. 224).
Como citado anteriormente, é por meio da Lei de n° 9.709 de 18 de Novembro de 1998
em seu artigo 2° 5 , inciso I, que há a regulamentação das disposições previstas pelo texto
constitucional no inciso I do artigo 14°, que normatiza esse instituto.
Em consulta ao Tribunal Superior Eleitoral (2020) é possível identificar 4 (quatro)
momentos plebiscitários no Brasil, todos Pós-Constituição de 1988.
O primeiro foi realizado em 21 de abril de 1993, com o intuito de escolher monarquia
ou república e parlamentarismo ou presidencialismo. Essa consulta consolidou a forma e o
sistema de governo atuais. Em 2011, tivemos o plebiscito no Estado do Pará, versando sobre
possível desmembramento desse Estado e criação de mais dois estados na região- Carajás e
Tapajós. Em 2016, tivemos a tentativa de plebiscito em Maranhão, para tratar de
desmembramento e anexação de municípios, todavia, o TSE suspendeu a consulta popular.
Já em 2018, o projeto previa a realização de plebiscito sobre a revogação do Estatuto
do Desarmamento juntamente com as eleições de 2018, mas, passadas as eleições sem sua
aprovação, houve perda de objeto, segundo consta do requerimento nº554, de 2018 do Senado
Federal.
Além dessa Lei, temos na legislação infraconstitucional a Resolução nº 23.385, de 16
de agosto de 2012, que estabelece diretrizes gerais para a realização de consultas populares
concomitante com eleições ordinárias. De acordo com o art.1º:

[...] a consulta popular a realizada mediante plebiscito ou referendo, para que o povo
delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa
ou administrativa, consoante previsto nos §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 9.709/1998.

Por conseguinte, cabe esclarecer que a consulta popular objeto da referida resolução,
será realizada por sufrágio universal e voto direto e secreto, concomitantemente com o primeiro
turno das eleições ordinárias subsequentes à edição do ato convocatório.
Por fim, cabe esclarecer que o plebiscito realizado em 1993 estava previsto no art. 2º
do ADCT (Ato das disposições constitucionais transitórias), da então recém promulgada
Constituição Federativa do Brasil de 1988.

7 A INSUFICIÊNCIA DO PLEBISCITO E REFERENDO NO IMPEACHMENT

5
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.2. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 223

A previsão de utilização dos institutos jurídicos se dá através do parágrafo único, do


art. 1° da Constituição de 1988, que diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição”. Em via que, em uma
democracia indireta, o aumento da participação daria por meio dos institutos regulados no Art.
14, inciso I, II e III da Constituição Federal do Brasil de 19886
Todavia percebemos o vício da Lei n° 9.709 de 18 de novembro de 1988 7, no art.3º,
pelo fato de que, há a possibilidade de participação direta. No entanto ocorre a vinculação entre
a autorização para a convocação do plebiscito e referendo, por meio do Congresso. Com isso
subjuga-se a participação direta à autorização da democracia indireta, na qual, já foi
mencionado que pode estar corrompida, por interesses próprios, estimulado pelo poder da classe
dominante, que não admite a participação popular.
De maneira que, a possibilidade de utilização desses instrumentos vê-se extremamente
prejudicada, se o anseio popular for contrário à decisão do Congresso, no caso plebiscito –
como consulta popular sobre impeachment – ou ratificação de medida, por meio do referendo,
se houver decisão determinada pelo Congresso.
A solução do condicionamento da soberania popular a autorização da democracia
indireta foi dada por diversos Projetos de Lei, que foram apensados, na Câmara dos Deputados,
ao Projeto de Lei nº 3.589/93. O referido PL transformou-se na Lei Ordinária nº 9.709/1998,
cujo objetivo é regulamentar a execução do disposto no artigo 14, itens I, II e III da Constituição,
em relação ao plebiscito, referendo e iniciativa popular. Ademais, nas diversas proposições foi
pontuado que os institutos do referendo e do plebiscito carecem de maior clareza, uma vez que
há controvérsia doutrinária, no âmbito nacional e também é diversificado como essa matéria é
tratada no âmbito do direito constitucional comparado (AFFONSO, 1996).
Posteriormente, foi Proposta a Emenda à Constituição (PEC) nº 73, de 2005, cujo
objetivo era alterar os artigos 14 e 49 da Constituição Federal e acrescentar o artigo 14-A, com
o propósito de instituir o referendo revocatório do mandato de Presidente da República e de
Congressista.
O referendo revocatório ou recall político, não pode ser confundido com o
impeachment, dado que aquele “é usualmente iniciado por eleitores e pode ser fundamentado,

6
BRASIL. Constituição Federal de 1988, art. 14. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25 de Julho de 2020.

7
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.3. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 224

por exemplo, por má administração, podendo ser iniciado ainda pelo Congresso em sua maioria
absoluta” (SARMENTO, 2015, online).
Lado outro, a referida proposta visava a acrescentar as eleições, como meio de
exercício da soberania popular (artigo 14) e ainda previa o acréscimo do artigo 14-A, que
possuiria o seguinte teor:

Art. 14-A Transcorrido um ano da data da posse nos respectivos cargos, o Presidente
da República, ou os membros do Congresso Nacional, poderão ter seus mandatos
revogados por referendo popular, na forma do disposto nos parágrafos seguintes.
§ 1º O mandato de senador poderá ser revogado pelo eleitorado do Estado por ele
representado.
§ 2º O eleitorado nacional poderá decidir a dissolução da Câmara dos Deputados,
convocando-se nova eleição, que será realizada no prazo máximo de três meses.
§ 3º O referendo previsto neste artigo realizar-se-á por iniciativa popular, dirigida ao
Superior Tribunal Eleitoral, e exercida, conforme o caso, mediante a assinatura de dois
por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por sete Estados, com não
menos de cinco décimos por cento em cada um deles, ou mediante a assinatura de dois
por cento do eleitorado estadual, distribuído pelo menos por sete Municípios, com não
menos de cinco décimos por cento em cada um deles.
§ 4º Os signatários da iniciativa popular devem declarar o seu nome completo, a sua
data de nascimento e o Município onde têm domicílio eleitoral, vedada a exigência de
qualquer outra informação adicional.
§ 5º O referendo para revogação do mandato do Presidente da República poderá
também realizar-se mediante requerimento da maioria absoluta dos membros do
Congresso Nacional, dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral.
§ 6º O referendo será considerado sem efeito, se a soma dos votos nulos e em branco
corresponder a mais da metade do total dos sufrágios expressos.
§ 7º Se o resultado do referendo for contrário à revogação do mandato eletivo, não
poderá ser feita nova consulta popular sobre o mesmo assunto, até a expiração do
mandato ou o término da legislatura.
§ 8º O referendo regulado neste artigo será convocado pelo Superior Tribunal Eleitoral.
§ 9º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios regularão, em suas respectivas
Constituições e Leis Orgânicas, o referendo revocatório dos mandatos do chefe do
Poder Executivo e dos membros do Poder Legislativo.

Em exame da justificativa da PEC nº73/2005 extraímos que “a Constituição, em vários


de seus dispositivos (art. 14, § 10, e artigos 55, 56 e 82), qualifica como mandato a relação
política que prende os agentes públicos eleitos ao povo que os elegeu” (SENADO FEDERAL,
2005, p.2).
Dessa maneira, consubstancia-se que o ordenamento jurídico constitucional não prevê
o exercício pleno da soberania popular, e isso constitui omissão grave, em razão de desvirtuar
a real democracia.
Outrossim, contrastando a aplicação do instituto do referendo no Brasil, com outras
Constituições, vislumbra-se que esse instrumento de participação popular é aplicado em alguns
estados dos Estados Unidos da América e também está previsto no artigo 72 da Constituição da
República Bolivariana da Venezuela, promulgada em 1999.
P á g i n a | 225

Ademais, algumas Constituições Estaduais Republicanas previam a revogação popular


de mandatos eletivos, vejamos (SENADO FEDERAL, 2005, p.4):

É de se salientar, aliás, que algumas das nossas primeiras Constituições estaduais


republicanas haviam criado a revogação popular de mandatos eletivos: a do Rio
Grande do Sul em seu art. 39, a do Estado de Goiás em seu art. 56 e as Constituições
de 1892 e 1895, em Santa Catarina.

Ante o exposto, consideramos que a aplicação do impeachment em substituição ao


recall, demonstra a fragilidade da democracia brasileira. Isso nos remete ao cenário político das
décadas de 60 e 70 no Brasil, momento em que o gestor público eleito dominava todas as
instâncias da vida civil do brasileiro.
Por isso, a eficácia da autonomia popular para convocação de eleições diretas após o
impeachment continua dificultada, uma vez que, os interesses casuísticos da classe dominante
poderiam interferir no processo democrático, corrompendo-o segundo seus interesses, de modo
que, não permitiriam a convocação de tais instrumentos jurídicos se não fossem de sua
conveniência.

8 A INICIATIVA POPULAR COMO REMÉDIO CONSTITUCIONAL PARA


ELEIÇÕES DIRETAS

A Constituição de 1988 inaugurou a introdução da possibilidade de iniciativa popular


para propor a criação de lei em um âmbito federal. Porém para regulamentar o inciso III do Art.
14 da Constituição criou-se a Lei de 9.709 de 18 de novembro de 1998, que através do seu art.
13 regulamenta o procedimento de iniciativa popular8
A Iniciativa Popular seria a possibilidade de o povo assumir a iniciativa do processo
legislativo, visto que ela se aproxima da democracia direta. Pelo referendum, a lei elaborada
pelo Parlamento adquire força obrigatória; pela iniciativa popular, o Parlamento é obrigado a
elaborar uma determinada lei. Se certo número de eleitores se manifesta pela necessidade de
certa lei, o Parlamento fica juridicamente obrigado a discuti-la e votá-la. Geralmente, a lei
votada pelo Parlamento em consequência da iniciativa popular é submetida ainda a referendum
(AZAMBUJA, 1941, p. 224).
Não há previsão legislativa indicando que após um impeachment, tenha que ocorrer
eleições diretas, desse modo, não se tem um resguardo normativo para sua reivindicação de

8
BRASIL. LEI Nº 9.709, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1998, art.13. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 25 jul.2020.
P á g i n a | 226

maneira imediata. Logo, por meio da iniciativa popular, poderia ocorrer a expressão popular da
manifestação da necessidade de possuir uma lei que regulamente a participação popular neste
processo.
Desse modo, ficaria afastada a natureza política do impeachment, no que tange a
competência do Congresso no julgamento, uma vez que, ao mesmo restringiria somente
admissão do impeachment no que cerne a sua natureza penal. Dessa forma, teríamos uma
harmonia entre os três poderes, conforme previsto na teoria dos freios e contrapesos.
Nesse contexto, a população assumiria o papel de titular de direito de julgador da
natureza política, em via que, fora a responsável pela eleição do presidente, e, dessa forma,
assumiria o protagonismo através de mecanismos de democracia direta.
Ressalta-se que com essas condições previstas no projeto de Lei de Iniciativa Popular,
ocorreria um rearranjo na sucessão dos poderes da linha presidenciável. Caberia ocorrer a linha
sucessória ordinariamente na vacância dos respectivos cargos, e de maneira transitória após o
impedimento, num prazo de 90 dias até novas eleições diretas.
Em suma, tais medidas dependem da unificação popular através de seu anseio para que
haja o mínimo da porcentagem exigida de eleitorado para que o projeto de lei seja submetido
ao Congresso. Porém é importante ressaltar que a população seria a parte mais interessada no
processo, pois com o impedimento do presidente, seu voto seria anulado. Por isso, faz-se
necessário optar pela iniciativa popular, para que, dessa forma, o povo tenha a oportunidade de
expressar sua vontade soberana por meio do voto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho expôs que o papel desempenhado pelos eleitores não deve ser
restrito ao direito ao voto, e sim, deve-se estimular a participação dos mesmos, em diversas
decisões para o país. Para isso, temos diversos instrumentos jurídicos de democracia direta,
como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular (art. 14, CF).
Nesse sentido, na ocorrência da retirada do Presidente da República do seu cargo, cabe
ao povo decidir sobre natureza política do impeachment, ou seja, se o mesmo possui capacidade
de governabilidade, uma vez que ele é detentor da soberania popular, e ao Congresso restringe-
se ser um órgão de admissibilidade da denúncia e da verificação da ocorrência de crime de
responsabilidade.
Dessa forma, poderemos distinguir a natureza penal e política, por meio da iniciativa
popular apresentada, não permitindo assim barganha política para manutenção ou deposição de
P á g i n a | 227

legítimo presidente, uma vez que, caberia somente a soberania popular para decidir tal
procedimento.
Assim sendo, sugerimos que por meio da iniciativa popular seja apresentado projeto
de lei que atenda os anseios da população brasileira, visto que não há cabimento para a
manutenção de agentes públicos eletivos ineficientes ou praticantes de atos ilícitos. Isso vem a
enquadrar com a primazia do Estado Democrático de Direito, pois sob a órbita constitucional
deve prevalecer o que a Constituição enuncia, de que o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente.

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informação legislativa, v. 33, n. 132, p. 11-27, 1996. Disponível em:
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P á g i n a | 230

LEGAL INSTRUMENTS OF DIRECT DEMOCRACY FOR CALLING DIRECT


ELECTIONS AFTER IMPEACHMENT

ABSTRACT

Impeachment is the institute that allows the impeachment of the


mandate of the President of the Republic. However, currently there is
no provision for direct elections after the impediment, so this article
aims to expose the possibilities and difficulties of calling elections
through legal instruments, such as the referendum, the plebiscite and
the popular initiative. Furthermore, it proposes the separation of the
criminal and political nature of impeachment, through a bill, which
should be submitted through a referendum to the population. And
finally, we discussed the possibility of establishing a political recall in
Brazil, as a means of shortening elective mandates for political agents
considered inefficient or for having practiced illicit acts.

Keywords: Impeachment. Plebiscite. Referendum. Popular Initiative.


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UNIÕES HOMOAFETIVAS: O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE FAMÍLIA E A


INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA PELO STF

Eric Holanda Lins1


José Erolísio Teixeira Neto2

RESUMO

Este trabalho se propõe a analisar a amplitude do conceito de família,


conforme a Constituição Federal de 1988, e a inclusão das uniões
homoafetivas em sua ideia. Para tanto, realiza-se uma análise histórica
da noção de família romana, averiguam-se as influências da Igreja no
Império e na Velha República e observam-se as profundas mudanças
sociais que culminaram no texto constitucional de 1988. Procedeu-se
a uma revisão bibliográfica, documental, constitucional e legal de
obras de autores prestigiados no Direito de Família, de artigos
acadêmicos voltados a estudar a família homoafetiva sob o viés
constitucional, bem como de passagens dos anteriores textos
constitucionais brasileiros que trataram da família, comparando-os
entre si a fim de verificar a evolução de tratamento dispensado pelos
constituintes anteriores na matéria. Por último, analisaram-se os
acórdãos prolatados nos recentes julgados da Suprema Corte que
reconheceram as uniões homoafetivas como exímias entidades
familiares. Constatou-se ser o atual conceito da entidade familiar o
mais amplo e mais atento à dignidade da pessoa humana firmado em
Constituição brasileira até então, no mesmo sentido de órgãos
internacionais, bem como reconhecido pelo Judiciário brasileiro,
verifica-se a conformidade das formações familiares entre pessoas do
mesmo sexo com os progressos em direitos fundamentais estampados
na Carta Magna de 1988, bem como a sua proteção garantida, ainda
que apesar da ausência de textos legais expressos com este teor.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Famílias homoafetivas.


Direitos LGBTQ+. Princípio da dignidade da pessoa humana.
Igualdade.

1 INTRODUÇÃO

O conceito de família sofreu muitas alterações ao longo da História, e a evolução da


sociedade redesenhou diversas vezes os papéis de gênero e a estrutura hierárquica que
constituía o núcleo familiar. Contemporaneamente, novas formas de família surgem com a
ampliação dos direitos civis das pessoas LGBTQ+, isto é, de pessoas lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, queer e outras pessoas de orientações e identidades sexuais distintas

1
Discente do 6º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. E-mail: eric.lins@outlook.com
2
Discente do 6º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. E-mail: josenetot6@gmail.com
P á g i n a | 232

da combinação heterossexual e cisgênero.


Contudo, embora de fato existam modelos de família formados por esses indivíduos,
o ordenamento jurídico brasileiro parece inicialmente não reconhecer sua existência, visto que
a interpretação literal do texto constitucional depreende que apenas famílias formadas a partir
do casamento ou da união estável entre pessoas de sexo diferentes, bem como as famílias
monoparentais, estão contempladas pela proteção estatal.
Desta forma, há a necessidade de compreender os limites da família esculpida na
Constituição Federal de 1988, que trouxe um amplo rol de garantias fundamentais e se baseou
sobretudo na dignidade da pessoa humana para justificar-se, a fim de entender se realmente os
modelos de família criados por pessoas LGBTQ+ estão além da proteção do Estado brasileiro.
É uma análise desafiadora, que integra conhecimentos do Direito de Família e do
Constitucional, considerando necessariamente fontes diversas da lei positivada, abrangendo
princípios que informam esses ramos do Direito, bem como a literatura e a jurisprudência
tecidas sobre a questão.
Para isso, o presente trabalho fez uso de análises bibliográficas, constitucionais,
legais, documentais e jurisprudenciais para compor a tese defendida. Foram consultadas obras
de autores prestigiados no Direito de Família, artigos acadêmicos voltados a estudar a família
homoafetiva sob o viés constitucional, bem como as Constituições brasileiras anteriores em
suas passagens que trataram da família, comparando-as entre si.
Foram, por fim, analisados os recentes posicionamentos do Supremo Tribunal
Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visando a abordar como o conceito
estrito de família expresso no texto constitucional está ultrapassado e como novas formas de
família, que surgem com o desenvolvimento social, devem ser abraçados pela proteção
especial do Estado prevista na Constituição.
Inicia-se verificando a evolução histórica do conceito de família, entendendo-o como
uma construção humana, sua transformação nos textos constitucionais brasileiros, passando
para a interpretação da atual Constituição e do sistema legal vigente, e expondo os
posicionamentos internacionais acerca do reconhecimento de direitos familiares à comunidade
LGBTQ+.
Observa-se a formação de um paradoxo na interpretação apenas literal do art. 226 da
Constituição Federal de 1988, promovendo a exclusão de diversos modelos de família, em
face do espírito de igualdade e de contemplação da dignidade da pessoa humana, que, ao
contrário, ditam por sua inclusão. Constata-se que a interpretação sistemática e teleológica do
mencionado artigo seria o que melhor atende ao próprio espírito constitucional atual, de forma
P á g i n a | 233

a afastar-se o conceito estrito de família oferecido pela Constituição.


Assim, em vista de que as decisões da Justiça brasileira vêm se consolidando na
esteira do reconhecimento das famílias homoafetivas, mesma em que seguem órgãos
internacionais e ordenamentos jurídicos afora, a questão merece especial estudo a fim de
entender a nova leitura que se dará sobre a Constituição em sua relação e seus fundamentos
constitucionais e, mesmo, sociais.

2 CONCEITO DE FAMÍLIA

A família é uma instituição milenar, retratada nas mais diversas representações


culturais e artísticas humanas, como estórias, escritos, esculturas e demais representações
visuais. É uma realidade sociológica comum aos seres humanos de diferentes sociedades e que,
nesta medida, alcança uma amplitude de diferentes configurações. No Brasil, o art. 226 da
Constituição Federal dispõe expressamente que a família é a base da sociedade, tendo especial
proteção do Estado.
Apesar de sua inquestionável importância sob a perspectiva constitucional, o conceito
da entidade família advém senão de um construto humano e histórico, de caráter dinâmico.
Conforme Sílvio de Salvo Venosa, a família, antes de um fenômeno jurídico, é um fenômeno
sociológico, suscetível a transformações:

Nesse alvorecer de mais de um século, a sociedade de mentalidade urbanizada,


embora não necessariamente urbana, cada vez mais globalizada pelos meios de
comunicação, pressupõe e define uma modalidade conceitual de família bastante
distante das civilizações do passado. Como uma entidade orgânica, a família deve
ser examinada, primordialmente, sob o ponto de vista exclusivamente sociológico,
antes de o ser como fenômeno jurídico. (VENOSA, 2013, p. 3)

As regras previstas em ordenamento não serão capazes de cerrar precisamente a


formação familiar, visto ela transformar-se junto aos seres humanos, mais ainda porque é por
eles formada. Daí que, observando-se a realidade humana, a concepção de família constituída
estritamente pela união de homem e mulher não é mais a única recepcionada, formando-se
novas concepções em apontamentos doutrinários, decisões judiciais e disposições legais e
infralegais.
Farias e Rosenvald (2017, p.33) concluem que a família é o fenômeno humano
fundante da sociedade, necessariamente entendida de maneira interdisciplinar, assim como
exige a sociedade contemporânea, de relações complexas e globalizadas. As estruturas
familiares apresentam diferentes modelos, que variam no tempo e no espaço, sempre
P á g i n a | 234

conforme a sociedade e as necessidades humanas.


Está presente a multiface da família, que é fundamento social e mesmo assim varia no
tempo e no espaço em que se apresenta. É, então, uma base que se molda de acordo com as
necessidades humanas, que se apresenta em diferentes modelos desde tempos mais antigos em
diferentes sociedades, e não apenas particularmente nas sociedades contemporâneas.
Por isso, é possível falar-se hoje em um plural de modelos diferentes de famílias, nem
sempre formadas pelas figuras de pai, mãe e filhos. Citem-se entre esses modelos a família
monoparental, formada por apenas pai (ou mãe) e filho, a família anaparental, em cuja formação
estão ausentes os pais, formando-se uma família socioafetiva entre avós e netos, tios e sobrinhos
ou mesmo entre irmãos, e a família homoafetiva, constituída pela união de pessoas do mesmo
sexo, que fazem presentes o mesmo amor, companheirismo e assistência mútua que as já
estabelecidas relações heteroafetivas.

2.1 Evolução histórica

Sobre o momento em que os grupamentos humanos passaram a ser denominados


famílias, Gagliano e Pamplona Filho (2017) destacam que, na Antiguidade, os grupamentos
familiares não eram formados por base na afetividade, como hoje. Contudo, novos instrumentos
jurídicos mudaram esse paradigma secular e colocaram o papel da afetividade no centro da
noção de família na contemporaneidade.
O conceito de família do direito romano detinha significado diverso das concepções
que o seguiram, isso porque o termo estava intrinsecamente ligado à dominação do senhor sobre
seus escravos, por isso famulus, expressão romana utilizada para nominar os escravos
domésticos. Acepção mais ampla de então envolve o poder paterno romano, com alguma
proximidade com a mais atual:

Ainda no tempo de Caio, a família id est patrimonium (quer dizer, parte da herança)
era transmitida testamentariamente. Segundo esse autor, a expressão foi inventada
pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe tinha sob suas
ordens a mulher, os filhos e um certo número de escravos, submetidos ao poder
paterno romano, com direito de vida e morte sobre todos eles. Essa família seria
baseada no domínio do homem, com expressa finalidade de procriar filhos de
paternidade inconstestável (sic), inclusive para fins de sucessão. Foi a primeira forma
de família fundada sobre condições não naturais, mas econômicas, resultando no
triunfo da propriedade individual sobre a compropriedade espontânea primitiva
(LÔBO, 2004, on-line).

A família da Roma Antiga, portanto, era comandada por um único homem, o pater
familias, que concentrava os poderes econômicos, políticos, militares e religiosos do
P á g i n a | 235

grupamento ou comunidade familiar, ao redor do qual giravam todos os descendentes e sobre


os quais detinha autoridade até seu falecimento, situação em que a família se desmembrava e
em que se formavam novas ao redor dos descendentes masculinos, novos pater. O que
determinava o pertencimento ou não de um indivíduo a essa família não eram laços sanguíneos
ou de matrimônio, mas a que pater familias estava sujeito o indivíduo.
Em tempos após os institutos romanos, em sua sempre evolução, a família recebeu
fortes influências do direito germânico e da doutrina cristã, tomando um sentido sacramental,
ao restringir seus termos a pais e filhos e sacramentando o casamento com solenidades frente à
Igreja, assim concentrando a economia no grupo familiar coeso (VENOSA, 2013, p. 24).
Ainda, a conotação do casamento como negócio, ao redor do qual cercavam diversos
interesses econômicos e religiosos, dos nubentes e da Igreja, perdurou por muito tempo,
notadamente na Idade Média e estendendo-se para a Idade Moderna.
Nesse período, o casamento se mostrava obrigatório, sem fins ao prazer e à satisfação.
Não se objetivava, com o casamento, a felicidade de dois indivíduos que guardassem afeição
um com o outro, mas, sim, a união dos indivíduos para o mesmo culto religioso doméstico, da
qual resultaria um terceiro indivíduo, responsável por dar prosseguimento a esse culto
(COULANGES, 1998, p. 47).
Era ao filho homem e primogênito, perpetuador da herança de família, acima de tudo
religiosa, a quem se dava amplo reconhecimento em sede de leis, influenciadas pela unidade de
culto cristã familiar. Apenas recentemente o casamento, ou melhor, a família, deixa de ser
governado pelo religioso e passa a ser tratado pelo Estado em seu âmbito jurídico, desvinculado
aos preceitos religiosos. Destaque-se a relevância desse acontecimento no sentido de que, a
partir de então, a organização autocrática, patriarcal e religiosa dá lugar a uma concepção
notadamente democrático-afetiva.
Caio Mário da Silva Pereira (2013, p. 27) aponta que a nova estrutura jurídica cerca o
conceito da família socioafetiva, para a qual mais importam os laços afetivos e a solidariedade
entre seus membros, independentemente de um vínculo jurídico ou biológico, e que até supera
a força dos vínculos biológicos. É a crescente “despatrimonização” do Direito de Família, com
a qualificação da família atualmente diante da afetividade e da solidariedade entre seus
membros.

2.2 Contextualização nacional: a abordagens das diversas Constituições do Brasil


P á g i n a | 236

Uma análise descritiva do texto positivo das Constituições brasileiras permite


evidenciar a evolução da ideia de família no direito nacional, constantemente transformada ao
longo dos sete processos constitucionalistas do Brasil e de influências de eventos nacionais e
internacionais.
Neste sentido, Paulo Lôbo (2018) coloca que o conceito jurídico de família nas
Constituições brasileiras é centrado em torno de três períodos:
1 Período histórico da união entre a Igreja e o Estado: predominância do conceito de família
constituída pelo casamento legítimo religioso e, dentro do recorte temporal deste trabalho,
iniciado com a Constituição de 1824.
2 Período histórico da separação oficial entre a Igreja e o Estado: a laicidade estrita, fruto da
adversidade do Estado à figura da Igreja, levou à predominância do conceito de família
constituída pelo casamento reconhecido no âmbito civil, iniciado com a Constituição de 24
de fevereiro de 1891. Um modelo fortemente patriarcal no começo e que gradativamente
sendo “mitigado” em sua rigidez ao longo do século XX.
3 Período contemporâneo: dentre as várias novidades da Constituição de 1988, a garantia de
direitos humanos e fundamentais atingiu o Direito de Família, que recebeu conceitos mais
abertos, independentes do casamento, civil ou religioso, e até previu entidades familiares
monoparentais.
Os três períodos merecem ser analisados a partir de cada texto constitucional,
demonstrando a mudança do conceito legal de família ao longo da história e buscando
estabelecer métodos hermenêuticos em sua interpretação no ordenamento jurídico brasileiro.

2.2.1 A Constituição do Império e a Igreja Católica (1824)

Em 7 de setembro de 1822, Dom Pedro I proclamou a independência do Brasil e


estabeleceu uma monarquia constitucional. Assim, a primeira Constituição foi outorgada pelo
Imperador em 1824, e, em seu art. 5º, trazia:

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do


Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.

A nítida relação do Estado com a Igreja Católica estabeleceu fortes bases patriarcais e
religiosas na formação da família, principalmente considerando a completa abstenção do texto
constitucional imperial a respeito do conceito de família, enquanto estrutura social.
P á g i n a | 237

Dilvanir José da Costa (2006, p. 13-19), Flávia David Vieira e Edvania Gomes da Silva
(2015, p. 22-30) apontam que a lei pátria indicava as regras de direito canônico para dispor
acerca do casamento, mais especificamente o Concílio de Trento e a Constituição da
Arquidiocese da Bahia, o que remete à concepção do casamento como instrumento de negócio
e procriação existentes na Idade Média e Moderna. Neste sentido, a Constituição da
Arquidiocese da Bahia, de 1853, dispunha nos parágrafos 259 e 260:

259 O ultimo Sacramento dos sete instituidos por Christo nosso Senhor é o do
Matrimonio. E sendo ao principio um contracto com vinculo perpetuo, e indissoluvel,
pelo qual o homem, e a mulher se entregão um ao outro, o mesmo Christo Senhor
nosso o levantou com a excellencia do Sacramento, significando a união, que ha entre
o mesmo Senhor, e a sua Igreja, por cuja razão confere graça aos que dignamente o
recebem. A materia deste Sacramento é o domínio dos corpos, que mutuamente fazem
os casados, quando se recebem, explicado por palavras, ou signaes, que declarem o
consentimento mutuo, que de presente tem. A fórma são as palavras, ou signaes do
consentimento, em quanto significão a mutua aceitação. Os Ministros são os mesmos
contrahentes.
260 Foi o Matrimonio ordenado principalmente para tres fins, e são tres bens, que
nelle se encerrão. O primeiro é o da propagação humana, ordenada para o culto, e
honra de Deos. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem guardar
mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da
união de Christo Senhor nosso com a Igreja Catholica. Alem destes fins é também
remedio da concupiscencia, e assim S. Paulo o aconselha como tal aos que não podem
ser continentes.

Justamente por reafirmar o poder da Igreja Católica no Brasil e a ideia de negócio, ou


contrato matrimonial perpétuo e indissolúvel, a ordem jurídica estabelecida pela Constituição
Imperial de 1824 é muito restrita e tem parâmetros de família pertinentes à época, baseados no
direito canônico, sendo a família mero instrumento de procriação e de lealdade religiosa.
O vínculo entre o Império e a Igreja seria rompido com a proclamação da República,
e o golpe de Estado que pôs fim ao reinado de Dom Pedro II e à Monarquia constitucional
trouxe novos parâmetros que afetariam diretamente a noção de família.

2.2.2 Constituição Republicana e rompimento cabal com a Igreja (1891)

Antes mesmo de se promulgar uma nova Constituição, dessa vez republicana, o


Governo Provisório da República, chefiado por Marechal Deodoro da Fonseca, editou o
Decreto n.º 181, de janeiro de 1890, que estabeleceu o casamento civil no país, rompendo com
a estrutura imperial acerca do matrimônio desde então.
A Constituição Republicana de 1891 estabeleceu um parâmetro muito relevante no art.
72, §4: “A Republica só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”.
P á g i n a | 238

O rompimento com a igreja e a regulação do casamento civil mudam os parâmetros de


análise da conceituação de família, que se desvincula dos dogmas e princípios do direito
canônico e da Igreja Católica. Nesta mesma ideia, a rigidez da separação entre Estado e Igreja
foi levada a tal ponto que o Decreto n.º 521, de junho de 1890, estabeleceu:

Art. 1º O casamento civil, unico válido nos termos do art. 108 do decreto n. 181 de 24
de janeiro ultimo, precederá sempre ás cerimonias religiosas de qualquer culto, com
que desejem solemnisal-o os nubentes.
Art. 2º O ministro de qualquer confissão, que celebrar as cerimonias religiosas do
casamento antes do acto civil, será punido com seis mezes de prisão e multa
correspondente á metade do tempo. Paragrapho unico. No caso de reincidencia será
applicado o duplo das mesmas penas.

A separação entre Estado e Igreja retira do conceito de família a noção de instrumento


religioso e o papel estritamente reprodutor. Todavia, o Decreto n.º 181 dispunha que o
casamento se daria entre homem e mulher, além de dispor sobre os efeitos3 dessa únião
estabelecendo uma estrutura patriarcal de submissão da família, mantendo ainda estrutura
semelhante ao pater familias romano.
Essa rigidez tornou o direito pouco democrático e republicano no âmbito da
abrangência familiar. Então, a Constituição de 1934 teria o importante papel de mitigar a
rispidez da antecessora.

2.2.3 Constituição Social e o abrandamento da rigidez (1934)

A Constituição de 1934 quebra a rigidez da anterior trazendo em seu corpo disposições


mais elaboradas acerca da família:

Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção
especial do Estado.
Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de
casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo. [...]
Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante
ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou
os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde
que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos
impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil

3
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891: Art. 56. São effeitos do casamento: § 1º
Constituir familia legitima e Legitimar os filhos anteriormente havidos de um dos contrahentes com o outro,
salvo si um destes ao tempo do nascimento, ou da concepção dos mesmos filhos, estiver casado com outra
pessoa. § 2º Investir o marido da representação legal da familia e da administração dos bens communs, e
daquelles que, por contracto ante-nupcial, devam ser administrados por elle. § 3º Investir o marido do direito de
fixar o domicilio da familia, de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos. § 4º Conferir á
mulher o direito de usar do nome da familia do marido e gozar das suas honras e direitos, que pela legislação
brazileira se possam communicar a ella. § 5º Obrigar o marido a sustentar e defender a mulher e os filhos. §6º
Determinar os direitos e deveres reciprocos, na fórma da legislação civil, entre o marido e a mulher e entre elles
e os filhos.
P á g i n a | 239

e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei
estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à
celebração do casamento.

A maior alteração no ordenamento jurídico em 1934 foi o reconhecimento do efeito


civil do casamento religioso. Embora essa medida não expanda o conceito de família
diretamente, valida uniões anteriormente não reconhecidas pelo Estado, impactando
indiretamente na democratização da família.

2.2.4 Constituição de 1937

A Constituição de 1937 não introduz grandes reformas na conceituação de família,


tendo em vista que o governo era o mesmo da antecessora. Vale, contudo, frisar como a
Constituição de 1937 reforçou a formação da família por casamento indissolúvel, que está sob
proteção especial do Estado, e essa proteção se adaptará ao tamanho da família. Essa última
parte é fundamental para entender como o Estado engatinha para o reconhecimento da
situação subjetiva de família, não apenas a visualizando do aspecto formal.

2.2.5 Constituição de 1946

É mister ressaltar, a priori, que a Constituição de 1946 teve por base a de 1934,
reproduzindo algumas tecnicalidades desta, e, sobre a família, dispõe:

Art 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá


direito à proteção especial do Estado.
§ 1º - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso
equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o
requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no
Registro Público.
§ 2º - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, terá efeitos
civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia
habilitação perante a autoridade competente.
Art 164 - É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à
infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa.

Há nítida proximidade com o disposto na Constituição de 1934, porém o art. 164 traz
expressas proteções aos dois núcleos familiares mais vulneráveis, maternidade e filiação,
tentando coibir situação insalubre e perigosa. Essa tutela especial é fundamental no rompimento
da família como propriedade do pátrio poder, da legal superioridade do esposo e pai sobre
esposa e filhos, bem como para garantir que pessoas com uma vulnerabilidade natural estejam
amparadas e possam desenvolver-se saudavelmente em um ambiente familiar.

2.2.6 Constituição de 1967 e o fim da indissolubilidade do casamento


P á g i n a | 240

A Constituição de 1967 se ateve a meramente reproduzir o exposto em sua antecessora.


A grande mudança se deu quando a Emenda Constitucional n.º 9, de 1977 estabeleceu a
dissolubilidade do casamento nos casos previstos em lei, rompendo com a lógica de família
constituída por casamento indissolúvel. Eloisa Veloso Rodriguez Tapia coloca, citando
Barroso:

Por sua vez, conforme Barroso (210, p.137-138), na vigência da Constituição de 1967
considerava-se que apenas através do casamento era possível ocorrer a formação da
família; mas que apesar da literalidade do dispositivo a jurisprudência passou a
reconhecer efeitos jurídicos às uniões livres, à medida que avançavam as concepções
culturais e sociais. (TAPIA, 2012, p. 15)

Verifica-se que as concepções mais liberais abriram caminho através dos ideais
residuais de religiosidade acerca do casamento. O estabelecimento da dissolubilidade do
casamento implica o reconhecimento jurídico de novos vínculos pessoais e de diferentes formas
de ver os já antigos, tais como pai ou mãe separado com filho e pessoa com enteado.
Essa abertura introduzida pela Emenda Constitucional n.º 9/77 fundamenta-se em
mudanças comportamentais que levariam a uma completa e inovadora forma do texto
constitucional de abordar as famílias.

2.2.7 Constituição Cidadã e o reconhecimento de novas formas de família (1988)

A redemocratização e a promulgação da nova Constituição, em 5 de outubro de 1988,


levaram à formação de um Estado Democrático de Direito brasileiro, estabelecendo princípios
pétreos de igualdade e isonomia, combate às desigualdades e à discriminação.
Sobre o conceito de família, dispõe o texto constitucional de 1988:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem
e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente
pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
P á g i n a | 241

A previsão constitucional é ampla, e abrange modelos de famílias não imaginados


pelos constituintes passados. Traz um projeto constitucional liberal e progressista, com noções
diretamente influenciadas pelos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia,
buscando proteger não o aspecto objetivo e formal da família, mas o aspecto subjetivo e
material, reconhecendo como família até mesmo uniões estáveis. Além disso, a Constituição de
1988 não hierarquiza os membros da família, ela cria, na verdade, obrigações recíprocas,
visando ao melhor desenvolvimento dos membros.
Apesar de a Constituição Cidadã ser a que traz o ideal de família mais democrático e
mais garantista até então, ela não está livre de críticas.
O casamento e a união estável reconhecidos pela Constituição são aqueles formados
por homem e mulher, excluindo em sua literalidade, em afronta a si mesma, uniões de pessoas
do mesmo gênero. É recorrente, todavia, na jurisprudência, inclusive do STF, o reconhecimento
do direito de formatos não previstos, em vista do espírito constitucional e o embasamento dele
nos princípios da dignidade e da isonomia.

3 O PARADOXO ENTRE O CONCEITO CONSTITUCIONAL E INFRALEGAL DE


FAMÍLIA

Diante de uma Constituição que marcava o início de novos tempos no Brasil, as


expectativas eram de que, fundada na dignidade da pessoa humana e na igualdade, a sociedade
brasileira pudesse avançar em passos iguais.
Para vários modelos de família restritos, até anos anteriores, àqueles formadas pelo
matrimônio entre homem e mulher e seus filhos legítimos, a nova Carta Magna indicou o
reconhecimento expresso de sua existência. Entretanto, diante do inquestionável avanço do
Estado brasileiro na questão, o reconhecimento pareceu ainda não vir para os demais modelos.
Por isso, legislações posteriores à Constituição acabaram por adotar o entendimento
de que estariam excluídas da proteção da Lei formações de família como as homoafetivas,
modelo de família composto, inicialmente, por duas pessoas do mesmo sexo biológico. Autores
mais clássicos enxergaram que a recepção constitucional das famílias surgidas de comunhões
entre pessoas recepcionadas ainda se restringia a entidades familiares formadas por pessoas de
sexos biológicos opostos:
A Lei brasileira parece-nos clara ao ditar a diversidade de sexo como requisito
elementar da união estável. A Constituição em vigor, com traços de modernidade,
consagrou a proteção do Estado à família, independentemente da celebração do
casamento, mas, pelo que tudo indica, desconsiderou a existência de entidades
familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. (MASCOTTE, 2009, p. 7)
P á g i n a | 242

Essa ausência de previsão constitucional expressa por tempos gerou atraso no


reconhecimento da entidade familiar homoafetiva, sendo apenas recentes decisões judiciais
visualizando tal status nessas relações humanas.
Por outro lado, há diversos outros autores que apontam, via interpretação sistemática
e teleológica da Constituição de 1988, não se encerrar no texto do art. 226 a família a ser
protegida pelo Estado brasileiro, como o faz Caio Mário da Silva Pereira (2013, p. 44) ao
enunciar que “novos tipos de grupamento humano marcados por interesses comuns e pelos
cuidados e compromissos mútuos hão de ser considerados como novas ‘entidades familiares’ a
serem tuteladas pelo direito”. Isto é, além da união estável e do casamento entre o homem e a
mulher e da família monoparental, outros modelos familiares agora devem ser abrangidos em
face das modificações realizadas no caput desse artigo.
Anteriormente aplicável à questão, o art. 167 da Constituição de 1967 dispunha que a
“[...] família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos”.
Em comparação, o caput do art. 226 da Constituição de 1988 delimita apenas que a
“[...] família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
Com a supressão da passagem “é constituída pelo casamento”, operou-se uma grande
transformação na abrangência da tutela constitucional da entidade familiar. Inexiste mais
expressa restrição à formação da família, como em Constituições anteriores. A supressão da
passagem “constituída pelo casamento”, presente na Constituição de 1967 e 1969, determina
que a família, apenas assim apontada pela Constituição de 1988, é objeto de tutela do Estado.
Paulo Lôbo registra precisamente que o art. 226 da Constituição de 1988 veio a se
tornar uma chamada “cláusula geral de inclusão”, ao prever genericamente que a família, sem
prever qualquer exclusão neste ponto, é tutelada pela proteção estatal:

A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos


determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que
reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução "a família,
constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por
qualquer dos pais e seus filhos". A interpretação de uma norma ampla não pode
suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. [...]
O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo
admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade,
estabilidade e ostensibilidade. (LÔBO, 2004, on-line)

Sob esta ótica, a entidade familiar composta de qualquer dos pais e seus descendentes,
dispostas no § 4.°, adquire igualmente um caráter geral de inclusão, sem excluir outros modelos
familiares, ao fazer uso do advérbio “também”. Mesmo que haja a possibilidade de significar
pela exclusão, a interpretação de tal artigo, em conformidade com todo o documento
P á g i n a | 243

constitucional, deve seguir pelo que melhor realiza a dignidade da pessoa humana e a
contemplação real da afetividade no Direito.
Com uma regra constitucional clara pela não exclusão de modelos de famílias além
dos presentes em seu art. 226, tem-se que normas recepcionadas pela Constituição e também
publicadas posteriormente a ela não podem contrariá-la. Sendo o documento constitucional
paradigma fundante de validade para as demais regras e princípios do ordenamento jurídico,
estes só continuam a vigorar na medida que permaneçam em sintonia com a Constituição, ou
seja, que não contrariem o texto dela e seu espírito.
Assim, leis como a que instituiu o Código Civil, em 2002, após 27 anos de tramitação
de seu projeto, apesar de que reúnam inúmeros institutos preciosos a determinadas e diversas
áreas do ordenamento jurídico em vigor, não podem ser lidos como senhores das palavras finais,
visto que suas interpretações e aplicações necessitam estar também em conformidade com
aquelas feitas em relação à Constituição Federal.
Não por outra razão se tem testemunhado grandes avanços para as famílias
homoafetivas, com transformações nos textos legais provocadas pelas mudanças em sua
interpretação diante da Constituição de 1988. Ainda que diante de inércia legislativa para a
modificar-se o positivado em artigos como o 1.723 do Código Civil, que dispõe da união estável
entre homem e mulher como entidade familiar, não citando outras configurações, correntes
doutrinárias e jurisprudenciais reconhecem a transformação do sentido no texto em face de uma
Constituição inclusiva e voltada à dignidade humana.

4 TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

O reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo gênero por países ao redor


do mundo estabelece novos comportamentos considerados respeitáveis e esperados pela
comunidade internacional.
Dentre alguns países que legalizaram a união homoafetiva estão: (i) Estados Unidos
da América, em 2015, quando a Suprema Corte reconheceu que os estados não podiam mais
impedir a união de pessoas do mesmo gênero (G1, 2015); (ii) Taiwan, primeiro país asiático
a, em 2019, passar uma lei possibilitando que casais homoafetivos se unissem civilmente
(G1, 2019) e; (iii) Costa Rica, primeiro país na América Central a autorizar o casamento de
pessoas de gêneros iguais em 2020 (CARTA CAPITAL, 2020).
No âmbito das decisões de cortes internacionais, Vecchiatti e Viana destacam o caso
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que a chilena Karen Atala Riffo perdeu a
P á g i n a | 244

guarda das três filhas por, após o divórcio, ter constituído uma relação estável com uma
mulher. Relatam que a Suprema Corte chilena entendeu que:

[...] as filhas de Karen Atala estavam em “situação de risco”, o que as inseria numa
“posição de vulnerabilidade em seu convívio social, vez que claramente seu ambiente
familiar único é distinto de forma significativa dos seus companheiros de escola e
conhecidos da vizinhança em que vivem, expondo-as ao isolamento e à discriminação,
o que também afetaria seu desenvolvimento pessoal. (VECCHIATTI e VIANA, 2014,
p. 22-23)

A ação foi julgada em 2012, e o Estado chileno foi condenado por violar os direitos à
igualdade, não discriminação, vida privada e proteção da honra. Todos direitos previstos na
Convenção Americana de Direitos Humanos.
O caso mencionado é fundamental para o estabelecimento de precedentes de
julgamento e interpretação das normas internacionais em favor de pessoas LGBTQ+, que não
são expressamente protegidas. Novamente, Vecchiatti e Viana anotam:

A evolução da cidadania internacional de pessoas LGBTI no SIDH em muito supera


o sistema global. A Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação
e Intolerância urge ser assinada pelos Estados-parte na CADH e, mais do que isso,
efetivada ao máximo possível para punir as violações de direitos humanos de LGBTI.
Ela serve, ainda, como mais um material para a ONU pensar numa convenção contra
discriminação e violência contra LGBTI. (VECCHIATTI e VIANA, 2014, p. 24)

Objetivando servir de guia para a atuação dos Estados em relação à legislação no


âmbito da diversidade sexual e de gênero, 25 países, incluso o co-presidente Brasil, reuniram-
se na cidade de Yogyakarta, em 2006, para produzir um documento, os Princípios de
Yogyakarta, que contém 29 princípios, dentro os quais está o direito de formar família:

Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação
sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma
família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade
de gênero de qualquer de seus membros.
Os Estados deverão: [...]
e) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias
para garantir que nos Estados que reconheçam o casamento ou parceria registrada
entre pessoas do mesmo sexo, qualquer prerrogativa, privilégio, obrigação ou
benefício disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as de sexo
diferente esteja igualmente disponível para pessoas casadas ou parceiros/as
registrados/as do mesmo sexo;
f) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias
para assegurar que qualquer obrigação, prerrogativa, privilégio ou benefício
disponível para parceiros não-casados de sexo diferente esteja igualmente disponível
para parceiros não-casados do mesmo sexo;

Vê-se que o Brasil já assumiu compromissos internacionais, fundamentados em


precedentes judiciais e princípios reconhecidos, com a proteção dos direitos de família de
pessoas LGBTQ+. Incomoda, portanto, ter seu ordenamento levado cinco anos para o
P á g i n a | 245

reconhecer judicialmente a união estável e sete para o casamento civil de pessoas do mesmo
sexo, ambas por precedente do Poder Judiciário, estando ainda a Constituição e a lei
infraconstitucional ainda omissas da permissão expressa.

5 ENTENDIMENTO DO JUDICIÁRIO

A caracterização das uniões homoafetivas como entidade familiar foi objeto de


julgamento pelo STF em 2011, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº
42774 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1325, cujo mérito era
referente à interpretação do art. 1723 do Código Civil de 2002, à luz da Constituição Federal
de 1988, objetivando a interpretação deste dispositivo para equiparar uniões estáveis
homoafetivas com as heteroafetivas, estas de expressa previsão constitucional e legal.
Deu-se procedência unânime às ações, que foram julgadas conjuntamente e cujos
aspectos dos votos merecem destaque. O Ministro Ayres de Britto foi o relator e fundamentou
a decisão no princípio da não discriminação e nos direitos à vida privada e à intimidade:

É que a total ausência de previsão normativo-constitucional sobre esse concreto


desfrute da preferência sexual das pessoas faz entrar em ignição, primeiramente, a
regra universalmente válida de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente
proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (esse o conteúdo do inciso II do
art. 5º da nossa Constituição); em segundo lugar, porque nada é de maior intimidade
ou de mais entranhada privacidade do que o factual emprego da sexualidade humana.
E o certo é que intimidade e vida privada são direitos individuais de primeira grandeza
constitucional, por dizerem respeito à personalidade ou ao modo único de ser das
pessoas naturais. (STF, 2011, ADIn nº. 4277)

Refere-se, ainda, que a disposição no art. 226, §3º, é voltada à superação da


hierarquização histórica, na qual a mulher era submissa ao homem, não se valendo de uso para
interpretação estrita na aplicação do dispositivo constitucional. Embora a Ministra Carmen
Lúcia tenha discordado do relator neste ponto, manteve-se favorável à equiparação.
O Ministro Ricardo Lewandowiski resgata as discussões da Assembleia Constituinte
em seu voto para embasar que a interpretação do art. 226, §3º da Constituição não tem
aplicabilidade às uniões homoafetivas, entendendo que sua intenção era de restringir a união a
homem e mulher. Todavia, o Ministro defendeu que as uniões homoafetivas constituem um

4
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Plenário. Min. Ayres Britto. j. 05
maio 2011. DJ. 14/10/2011. p. 20.
5
Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. Pleno. Min. Ayres
Britto j. 05 maio 2011. DJ. 14/10/2011. p. 20.
P á g i n a | 246

novo gênero familiar, não previsto no rol constitucional, que, assim como o Ministro Cezar
Peluso, entendeu em seu voto como apenas exemplificativo:

Assim, segundo penso, não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo
em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento,
quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher,
quer, ainda, na monoparental. [...] Ora, embora essa relação não se caracterize como
uma união estável, penso que se está diante de outra forma de entidade familiar, um
quarto gênero, não previsto no rol encartado no art. 226 da Carta Magna, a qual pode
ser deduzida a partir de uma leitura sistemática do texto constitucional e, sobretudo,
diante da necessidade de dar-se concreção aos princípios da dignidade da pessoa
humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da não-
discriminação por orientação sexual aplicáveis às situações sob análise. (STF, 2011,
ADIn nº. 4277)

É nítida a posição do STF no reconhecimento da possibilidade de constituição de união


estável por casais homoafetivos respondendo a uma crescente demanda popular e internacional.
Em 2013, o CNJ emitiu a Resolução nº 175, baseada na decisão de 2011 do STF, que
regula o casamento civil, ou a conversão da união homoafetiva estável6 em casamento. Essa
mudança foi um grande avanço só possível pela decisão do STF. Tratou-se de pronunciamento
cujos efeitos foram além dos efeitos jurídicos do controle concentrado de constitucionalidade.
E, com essa Resolução, famílias LGBTQ+ passaram a usufruir de direitos civis relacionados à
constituição familiar, garantindo dignidade e isonomia a elas.
O posicionamento da Suprema Corte brasileira estabeleceu parâmetros de
interpretação do conceito constitucional de família mais adequados ao projeto da Carta Magna,
que, assim como a legislação internacional, não deve ser interpretada de maneira excludente,
como questionou o ministro Joaquim Barbosa: “o silêncio da Constituição deve ser interpretado
como indiferença, desprezo ou hostilidade?”. A resposta é negativa, afinal, a interpretação
constitucional deve corroborar com os princípios constitucionais de garantia da dignidade
humana, isonomia, afetividade e liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O instituto da família, cuja história se confunde com a história da humanidade,


transformou-se e segue se transformando na medida em que é um fenômeno propriamente
antropológico, sendo-lhe dada a importância de base das relações humanas. Obteve diferentes

6
No julgamento das Ações Constitucionais, o Ministro Lewandowiski chama de “uniões homoafetivas estáveis”
com a finalidade de deixar claro que, na visão dele, não se trata de interpretação do artigo 1.723 do Código Civil
c/c o artigo 226, §3, da Constituição, mas de novo modelo de entidade familiar semelhante ao dos dispositivos
mencionados.
P á g i n a | 247

significados e sentidos pelo direito romano e canônico, como apresentado, e continuou a mudar.
Evidencia-se, assim, que não pode o Direito buscar tolher sua característica de eternamente
mutável, conforme o espaço e o tempo em que se busca entendê-la.
Embora o texto constitucional de 1988 tenha sido receptivo a determinados modelos
de família, outros pareceram permanecer excluídos, como a família homoafetiva. Entretanto,
crescente é o entendimento no sentido de que a Constituição, em todo seu espírito de inclusão,
de realização da dignidade da pessoa humana e de afetividade, abraça tais famílias mesmo sem
citá-las expressamente, provocando grandes transformações, até mesmo hermenêuticas, em
textos já dispostos.
Desta forma, o julgamento da ADI n.º 4277 e da ADPF n.º 132 no STF é um marco
para os direitos LGBTQ+ ao reconhecer, sob proteção da própria Constituição Federal, que as
relações homoafetivas devem gozar do mesmo status de uniões estáveis heteroafetivas, pois
igualmente baseadas na afetividade e na solidariedade entre seus membros.
Ainda que não seja a via judiciária a ideal para estabelecerem-se direitos, muito melhor
garantidos pela via legislativa, por leis expressas, os clamores do povo não podem ser
ignorados. As relações humanas estão se modificando no mundo todo há tempos e pessoas
LGBTQ+ reivindicam seus direitos e necessitam de seu reconhecimento. Essas transformações
devem provocar o ordenamento jurídico, e ele deve responder de acordo.
Assim, as pessoas LGBTQ+ não podem continuar privadas de seus direitos civis sob
a justificativa de que devam esperar a demorada atuação legislativa para que suas famílias sejam
expressamente protegidas em Constituição ou outra norma infraconstitucional.
Compreende-se como correto o entendimento firmado pelo STF de que a união
homoafetiva seja entidade familiar constitucionalmente protegida. Tal reconhecimento trouxe
um grande avanço na luta pelos direitos civis das pessoas LGBTQ+ e não pode restringir-se a
apenas decisões judiciais.
Decerto que ainda há um longo caminho a percorrer, mas são visíveis os próximos
passos na garantia desses direitos, agora consistentes primordialmente na luta pela devida
positivação desta família pelo Poder Legislativo, cujos membros não são outros do que os
elegidos pelos votos do povo, a cujos anseios deve servir, inclusive reconhecendo suas
transformações e novas realidades, como é a família homoafetiva.

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P á g i n a | 250

SAME-SEX UNIONS: THE CONSTITUTIONAL CONCEPT OF FAMILY AND THE


SUPREME COURT'S EXPANSIVE INTERPRETATION

ABSTRACT

This research has as purpose to analyze the breadth of the concept of


family as it is in the Brazilian Constitution of 1988 and the inclusion
of same-sex unions in its idea. To this end, a historical analysis of the
notion of the Roman family is carried out, the influence of the Church
in the Empire and the Old Republic is investigated and the deep social
changes that culminated in the 1988 constitutional text are analysed. It
was done through bibliographical, documentary, contitucional and
legal review of works by prestigious authors in Family Law, of
academic articles aimed at studying the same-sex families from a
constitutional point of view, as well as passages from previous
Brazilian constitutional texts that dealt with the family, comparing
them each other in order to verify the evolution of the treatment given
by the previous constituents in the matter. Finally, the decisions
handed down in the recent Supreme Court judgments that recognized
same-sex unions as distinguished family entities were analyzed. As the
concept of the family entity is found to be the broadest and most
attentive to the dignity of the human person established in the Brazilian
Constitution until then, in the same sense as international bodies, as
well as recognized by the Brazilian Judiciary, it is confirmed the
conformity of same-sex families with the fundamental rights’s
progression written in the Constitution of 1988, as well as their
guaranteed protection, in spite of the absence of legal texts expressing
this exact idea.

Keywords: Constitutional Law. Same-sex families. LGBTQ+ rights.


Principle of the dignity of the human person. Equality.
P á g i n a | 251

EFEITO BACKLASH COMO CONSEQUÊNCIA DIRETA DO ATIVISMO JUDICIAL


CARACTERÍSTICO DA PRÁXIS JURÍDICA BRASILEIRA ENQUANTO
ARCABOUÇO PROTETIVO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Samara Andrade Rodrigues1

RESUMO

O presente trabalho busca analisar o papel do Poder Judiciário na


tomada de decisões que envolvam direitos fundamentais frente a uma
omissão normativa dos outros poderes, sobretudo do legislativo, bem
como as condutas reacionárias provenientes desse protagonismo
ascendente que marca a era do Constitucionalismo ou Pós-Positivismo.
Coloca em pauta, ademais, importantes e polêmicos casos concretos
que demandaram a empreita do ativismo judicial, com o intuito de
ilustrar a pertinência dessa postura participativa para a concretização
dos referidos direitos, os quais, em sua maioria, dizem respeito a
assuntos socialmente sensíveis e latentes. Concluiu-se ao final que, a
despeito da necessidade de debates, de críticas e de limites a essa
atuação, o ativismo judicial e o efeito backlash são arraigados ao
próprio conceito de democracia e imprescindível para sua reconstrução
gradual pautada na supremacia das normas constitucionais
proclamadoras de prerrogativas imperiosas para a garantia de uma
existência digna ao cidadão. Lançou-se mão, para tanto, da pesquisa
exploratória e qualitativa, viabilizada pela análise bibliográfica e
legislativa sobre o tema abordado, visando à compreensão das
dimensões que revestem o instituto estudado e de sua importância para
o Direito Brasileiro.

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Constitucionalismo. Democracia.


Direitos Fundamentais. Efeito Backlash. Omissão.

1 INTRODUÇÃO

O protagonismo do Poder Judiciário é ascendente desde o advento da Constituição


Federal de 1988, a qual trouxe em seu âmago a proteção a direitos fundamentais materiais
esculpidos em normas de valor, inclusive reconhecendo como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. Assim, o que antes era palco
essencialmente das bases de organização do poder e do Estado, agora é dotado de notável
conteúdo axiológico.

1
Discente do 9º Semestre do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. E-mail:
samararandrade@hotmail.com
P á g i n a | 252

Não obstante, para serem efetivados, os supracitados direitos demandam uma atuação
estatal, que se viabiliza por meio dos poderes executivo – instituidor de políticas públicas – e
do legislativo – responsável pela elaboração e aprovação de leis. Este, particularmente, contudo,
é incapaz de regular todas as situações jurídicas que possam ocorrer no seio social, demandando
do judiciário a função de suprir as suas deficiências por meio de um controle posterior dos feitos
à luz da Constituição.

Conquanto as transformações sociais ocorram celeremente – como corolário de


mudanças culturais, comportamentais, políticas, dentre outros –, sua adequação ao
ordenamento jurídico via produção legislativa é, muitas vezes, insuficiente para acompanhar
referido processo. Parte dessa problemática pode ser explicada pela resistência de superação de
valores arcaicos e pela burocracia característica do processo legislativo, o que, sem embargo,
não pode deixar a sociedade subjugada à espera por respostas enquanto tem garantias e direitos
– estes, normas declaratórias de benefícios conferidos constitucionalmente; aquelas, os meios
pelos quais se propicia o exercício categórico destes, cuja infrutuosidade compromete a sua
consumação – ameaçados ou violados.

Sob esse viés, a infringência de um direito ou o descaso para com este proveniente de
um dos poderes compele outro a intervir em seu âmbito de atividade, ensejando – diga-se quase
inexoravelmente – que as ordenações constitucionais sejam apreciadas e empregadas pelo
judiciário, sob a designação de jurisdição constitucional. Ato contínuo, os órgãos judiciais,
especialmente o Supremo Tribunal Federal, por ser o tribunal constitucional, vem,
crescentemente, proferindo decisões que envolvem questões sociais, políticas e morais,
produto, em parte, das metamorfoses e das rupturas dos arquétipos sobrevindas nos últimos
tempos.

Esses decisórios, por sua vez, têm despertado o interesse e o envolvimento da


população – principalmente por versar sobre temáticas não consolidadas na opinião pública –,
que, muitas vezes, insurge-se contra eles, influenciando determinados setores políticos e
sociais. Essa insurgência ocorre, em suma, na forma de um contra-ataque político, o qual se
materializa sob a configuração, por exemplo, de revisões legislativas dos temas controversos.

O efeito backlash, como ficou conhecido esse fenômeno, apesar de ser uma legítima
manifestação democrática, pode acarretar retrocessos e malefícios aos beneficiados pelas
decisões. Nessa perspectiva, é imprescindível o aprofundamento dos estudos e das
investigações acerca dessa matéria, visto que alberga diversos aspectos democráticos, tais como
P á g i n a | 253

a separação dos poderes, a participação popular na construção interpretativa das leis e da Carta
Magna, a interferência política nas decisões judiciárias e na função legiferante estatal e,
primacialmente, a solidificação de direitos e de garantias.

Destarte, a essencialidade da qual se reveste ambiciona o exame crítico da posição de


um Estado Democrático de Direito enquanto sujeito ativo e passivo na observância do
regimento normativo dos direitos fundamentais, bem como a busca de respostas para
indagações relacionadas ao uso do poder judicial na tomada de decisões, às bases
constitucionais que o legitimam, ao confronto entre os poderes e ao qual pertence a atribuição
de por último imiscuir-se em um assunto de relevo social, dentre outros.

A pesquisa ora empreendida, por conseguinte, demonstrará os fatores que ocasionam


a interferência do terceiro poder na regulamentação de direitos e garantias, buscando o
esclarecimento a respeito das críticas que permeiam essa atuação, maiormente em relação à sua
constitucionalidade e à observância da tripartição de poderes. Após, será analisado a
interferência do efeito backlash como ato reacionário ao ativismo judicial e sua pertinência para
a construção democrática da política. A conclusão terá como enfoque a resposta sobre se o
comportamento do judiciário está em consonância com a ordem constitucional e em que medida
o efeito backlash pode interferir negativa ou positivamente sobre direitos concretizados
judicialmente.

Cinge-se o presente estudo da pesquisa exploratória e qualitativa, traçando como


percurso metodológico a análise bibliográfica e a revisão de literatura – doutrinas, artigos,
periódicos, trabalhos científicos e monográficos, dissertações de mestrado, teses de doutorado,
textos coletados em sites jurídicos de referência, entrevistas disponíveis em plataformas
digitais, dentre outras fontes secundárias que explanam a temática sob ângulos diversos.

Há de se perfilhar o enfoque teórico zetético e dogmático, uma vez que se buscará


exercer, de modo a se complementarem, a função especulativa e, posteriormente, a procura por
um possível plano de ação. Adotar-se-á, ademais, a pesquisa documental, a qual será viabilizada
por meio do exame de textos legais, de decisões judiciais e da jurisprudência consolidada dos
tribunais superiores brasileiros, assim como de atos normativos distintos. Essas técnicas
permitirão a visualização do panorama atual do instituto do efeito backlash e do ativismo
judicial e da perquirição crítico-construtiva destes, bem como o esclarecimento relativamente
às controvérsias que os guarnecem.
P á g i n a | 254

2 ATIVISMO JUDICIAL COMO FERRAMENTA DE CONCRETIZAÇÃO DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é fruto do Pós-positivismo
ou Neoconstitucionalismo, o qual se traduz em um movimento do direito que garante, preserva
e promove os direitos fundamentais. Representa a reformulação do positivismo jurídico por ter
promovido a reestruturação do ordenamento, que deixou de ser calcado no estrito respeito à lei
para ser, totalmente, influenciado pela Constituição – natural repositório dos direitos
fundamentais. Remodelou-se também, o sistema de interpretação do direito, não mais
coadunado ao método silogístico, mas inclinado para a exploração valorativa das normas
perante a Constituição. Dentre seus efeitos, destacam-se a supremacia do texto constitucional,
a promoção dos direitos fundamentais, a força normativa dos princípios constitucionais, a
constitucionalização do direito e a ampliação da jurisdição constitucional. Sepulta-se, pois, o
Estado de Direito, que cede lugar para o Estado Democrático de Direito. (GUTIERREZ
SOBRINHO, 2012)
A Carta é permeada por princípios programáticos, o que implica alegar que nela se
insculpem normas garantistas que reclamam uma laboração futura do Estado para que sejam
efetivadas, fazendo-lhes indiretas, mediatas (diferidas ou reduzidas) e não integrais – de eficácia
limitada. As denominadas normas definidoras de princípio programático são aquelas cujas
matérias traçadas não foram disciplinadas diretamente pelo constituinte, o qual se limitou a
estabelecer diretrizes, ou programas, a serem implementados pelos poderes instituídos,
objetivando a realização dos fins do Estado, dentre os quais estão inseridos os direitos
fundamentais sociais, que se desdobram, por exemplo, em educação, saúde, lazer, segurança,
previdência social, dentre outros elencados no artigo 6º2 da Constituição Federal (DINIZ,
2019).
Constituem-se, dessa forma, em direitos a serem efetivados não contra o Estado, mas
por meio deste, o que demanda uma postura ativa do legislador infraconstitucional para suprir
o que o constituinte deixou a seu encargo: completar as lacunas deixadas nos respectivos
dispositivos constitucionais e aclarar dubiedades, de modo a permitirem sua materialização e
aplicação no caso concreto. Repise-se que estes, independentemente de sujeitarem-se a medidas
ulteriores de natureza institucional, não são destituídos de eficácia, antagonicamente, dessarte,
trata-se de exercício vinculado e compulsório e não de mera faculdade.

2
Art. 6º, da CRFB/88: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
P á g i n a | 255

Não obstante, não raras são as vezes em que essas normas de eficácia limitada
encontram-se pendentes de regulamentação (omissão total ou absoluta) ou a apresentam de
forma incompleta, insuficiente ou carente de consubstanciação (omissão parcial), incorrendo
em inconstitucionalidade e inviabilizando, em quaisquer dos casos, o desempenho pleno de um
direito ou de uma garantia fundamental. Nessa esteira, é dever do poder legiferante suprir os
hiatos ocasionadores dos óbices à essa concretização e à produção de efeitos, o que não exclui
do poder judiciário o dever de fiscalizar as ilegalidade violadoras ou ameaçadoras de algum
direito, na forma do artigo 5º, XXXV da CRFB/883.

Pelo contrário, o envolvimento deste poder no que tange ao suporte prestado às


diretrizes constitucionais é atinente ao próprio escopo da Lei Fundamental da República, qual
seja, a salvaguarda e o perfazimento dos desígnios indeclináveis distribuídos ao longo de todo
o seu escrito. Dentro dessa noção, a inexistência de previsão em lei não obsta a atuação dos
operadores do direito, visto que seu fundamento jurídico de validade é retirado diretamente da
Constituição, conforme se extrai, exemplificativamente, do Art. 5º, § 2º, primeira parte, da
CRFB/88, nos seguintes termos: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”. Segundo assinala
José Miguel Garcia Medina (2019), essa deve ser a força motriz da atuação jurisdicional em um
Estado Democrático de Direito, de modo que se a jurisdição não atuar visando à materialização
desse desiderato, configurar-se-á, quando muito, em jurisdição na forma, mas não no conteúdo.

O Ministro Celso de Mello, neste interim, em voto proferido no julgamento do Recurso


Extraordinário (RE nº 107869/SP), ao versar sobre o Princípio da Supremacia da Ordem
Constitucional – consectário da rigidez normativa –, manifestou-se sobre a imposição ao Poder
Judiciário de, qualquer que seja a sede processual, recusar aplicar leis ou atos estatais
conflitantes com a Carta Federal, cuja superioridade normativa e valor jurídico incontrastável
reveste de nulidade o ato emanado pelo Poder Público que vulnerar os preceitos nela inscritos.

À vista disso, diante de um cenário de inércia ou de operação deficiente dos demais


poderes, os órgãos jurisdicionais assumem um posto que vai além de suas atribuições típicas,
tornando o conteúdo de suas decisões em verdadeiros reparadores da impotência e da
morosidade do legislador. Desta feita, partindo do pressuposto de que o exercício de um direito
fundamental assentado constitucionalmente resta obstado pelos motivos supra, o magistrado
toma para si a responsabilidade de solucionar o litígio aplicando a interpretação que melhor se

3
Art. 5º, XXXV, da CRFB/88: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito .
P á g i n a | 256

preste à concreção deste direito – denominada pela hermenêutica de interpretação finalística ou


teleológica –, avocando uma postura participativa, o que, sucintamente, caracteriza o ativismo
judicial.

Nessa conjuntura, múltiplos são os conceitos doutrinários destinados a explicar o que


de fato é esse instituto. Sabe-se, no entanto, que o imo do ativismo judicial está estritamente
ligado, em consonância com o que ilustra Granja (2014), ao papel criativo dos tribunais por
contribuírem com o direito ao consolidar o legítimo valor normativo constitucional, deliberando
sobre a singularidade do caso concreto, além de formar o precedente jurisprudencial e antecipar-
se, muitas vezes, à formulação ou à complementação da própria lei.

Por sua vez, Ramos (2015) assevera em suas lições que o ativismo judicial é a função
jurisdicional para além dos limites que o ordenamento jurídico incumbe ao Poder Judiciário, o
qual atua solucionando litígios de natureza subjetiva – conflitos de interesse – ou objetiva –
conflitos normativos. Frisa-se, por oportuno, que tal atividade, posto que vital para o
funcionamento da engrenagem constitucional, mostra-se, ainda sim, deficitária, já que opera
como medida paliativa e, por conseguinte, insuficiente para regular de modo definitivo o evento
que lhe deu causa.

Ressalta-se que no terreno do ativismo judicial, como um de seus principais múnus,


frequentemente se afasta a cláusula da reserva do possível (óbice levantado pelo Estado em
virtude da suposta impossibilidade de este cumprir as exigências definidas na Lei Maior perante
a inviabilidade econômico-financeira dos cofres públicos), visto que esta é subterfúgio
contumaz do qual se utiliza indevidamente os outros poderes políticos para se esquivarem de
encargos que lhe impendem.

Utiliza-se, para isso, como contraponto, o mínimo existencial, baliza à autonomia da


prática legislativa e que pressupõe uma série de prerrogativas inerentes à uma existência
minimamente digna – independentemente da previsão em lei já que intrínseco à concepção de
ser humano – a qual, para ser concreta, demanda o respeito aos direitos fundamentais –
propiciado pelo empreendimento de prestações positivas oriundas do Poder Público, tais como
a implementação de políticas públicas e de ações afirmativas –, sobretudo por ser uma vertente
resultante da dignidade da pessoa humana.

Nessa contextura, um dos mais notórios instrumentos do ativismo judicial é o mandado


de injunção – remédio constitucional originário da Carta Magna de 1988 – que por muito tempo
quedou-se inutilizado, mas que vem ganhando cada vez mais espaço à medida que o judiciário
P á g i n a | 257

assume uma posição protagonista. O referido remédio está previsto no art. 5º, LXXI, da
CFRB/88, bem como na Lei nº 13.300/16, e se presta à defesa dos direitos fundamentais
“sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania”, assegurando o pleno gozo por seus destinatários.

Tem que ser levado em consideração, outrossim, que quem governa o Estado brasileiro
é a Constituição. A tripartição de poderes, nesse sentido, é um mecanismo para se atingir justa,
equitativa e democraticamente os fins últimos nela gravados. Disso se extrai a permissão para
que o Judiciário avoque para si competências excepcionais sem que haja ofensa às disposições
constitucionais, visto ser expressamente autorizado por estas, como é o caso do Mandado de
Injunção. Bitencourt Neto (2009) destaca que:

[...] a primeira conclusão quanto aos efeitos do mandado de injunção é a de que, como
direito fundamental processual, é instrumento apto a superar a falta de lei que
inviabilize o exercício de uma posição ativa jusfundamental. Em outras palavras, o
mandado de injunção é meio de excepcional atuação judicial na definição de escolhas
primárias, diretamente a partir da Constituição, para permitir o exercício de um direito
fundamental. No caso em exame o mandado de injunção é meio de exercício
extraordinário, pelo juiz, de uma competência que cabe, regra geral, ao legislador: a
definição de escolhas de natureza política que permite, por exemplo, a fruição de
prestações materiais decorrentes de direitos sociais. (BITENCOURT NETO, 2009,
p.143)

Nesse contexto, até o ano de 2007, o Supremo Tribunal Federal, em matéria de


mandado de injunção (e também de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão),
adotava a posição não concretista geral, em virtude da qual o magistrado não podia aplicar por
analogia leis existentes para suprir a omissão legislativa, tampouco fixar prazo para que tal
omissão fosse suprida, restando-lhe somente a declaração da mora legislativa e da
inconstitucionalidade omissiva – sem geração de consequências práticas –, o que tornava o
mencionado remédio desguarnecido da funcionalidade para o qual foi criado.

A título de exemplo, destaca-se o julgamento do MI 470 – justificado pelo


inadimplemento do dever constitucional de legislar frente à inviabilização do exercício de
liberdades, prerrogativas e direitos proclamados pela própria Constituição – de relatoria do
Ministro Celso de Mello, no qual foi reconhecida a inércia legiferante do Congresso Nacional
– e a necessidade de sua intervenção concretizadora – em relação à falta de densidade normativa
suficiente do art. 192, § 3º, da CRFB/88, hoje já revogado. Limitou-se, contudo, a declarar a
mora, revelando incabível a estipulação de prazo para o suprimento da omissão a que ele próprio
deu causa.
P á g i n a | 258

( A partir de 2007, no entanto, por meio de uma verdadeira virada jurisprudencial, o


STF passou a aderir posições concretistas, as quais se desdobram em três de acordo com uma
divisão doutrinária (BAHIA, 2020): Geral (declara a mora e aplica por analogia lei já existente
até a superveniência de lei específica, manifestando efeito erga omnes), Individual Direta
(declara a mora e aplica por analogia lei já existente somente ao caso concreto e delimita as
condições para o exercício do direito4; possui efeito inter partes, da qual é exemplo a súmula
vinculante nº 335) e Individual Intermediária (declara a mora e fixa prazo para o Poder Público
legislar, findo o qual estabelece as condições para o exercício do direito).

Uma das decisões mais expressivas nesse sentido foi bojo do Mandado de Injunção
4733 e da Ação Direta de inconstitucionalidade por Omissão6 (ação objetiva do controle
concentrado que visa a dar efetividade ao texto constitucional cujas normas de eficácia limitada
encontrem-se pendentes de regulamentação), nas quais o STF, além de ter reconhecido a mora
inconstitucional do Congresso Nacional no que tange à criação de lei específica que, criminalize
as condutas homofóbicas e transfóbicas, em atenção ao art. 5º, XLI, da CRFB/887, aplicou, por
analogia e com efeitos prospectivos, a Lei de Combate ao Racismo (Lei 7.716/89),tornando-as
igualmente inafiançáveis até que sobrevenha lei penal própria.

Crucial é apontar que, embora o STF venha adotando os posicionamentos acima


referenciados, deixando há muito de apenas proferir decisões declaratórias da mora, há casos
de adoção de uma posição não concretista, a qual, respaldando-se na parte final do art. 8º, II, da
Lei nº 13.300/16, precisa as condições em que o impetrante pode promover ação própria na via
ordinária para ver reparados os prejuízos que teve de suportar em defluência da omissão
normativa, o que reflete a primazia que se vem dando à guarida dos direitos fundamentais,
evitando-se realizar somente a subsunção do fato à norma. Exemplo disto foi o julgamento do
Mandado de Injunção 6.619.

4
Art. 8º, II, da Lei nº 13.300/16: Reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para:
estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados
ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los, caso não
seja suprida a mora legislativa no prazo determinado.
5
Súmula Vinculante nº 33: Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do regime geral da
previdência social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição Federal,
até a edição de lei complementar específica.
6
Instrumento de controle abstrato (concentrado) do Poder Judiciário que se consolida através de processo
constitucional com o objetivo para de assegurar a supremacia da Constituição em razão de omissão de qualquer
dos Poderes ou de órgão administrativo.
7
Art. 5º, XLI, da CRFB/88:A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
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3 EFEITO BACKSLASH: CONSEQUENCIALISMO DO ATIVISMO JUDICIAL

É recorrente a discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito da possibilidade de o


Poder Judiciário, por meio de sua proatividade, atrair para si funções normativas e, portanto,
estranhas às que lhe foram primitiva e institucionalmente outorgadas e, em resultado, introduzir
no ordenamento jurídico um novo parâmetro de aplicação do direito, fruto de uma resolução
ideológica de um conflito entre o ser e o dever ser de direitos fundamentais, visto que a
incumbência de regê-los é pertencente originariamente ao legislativo, representante da vontade
popular.
Um dos fundamentos para mencionada controvérsia pode-se extrair da decisão
explanada no tópico anterior, na qual houve evidente flexibilização do princípio da legalidade
em sentido estrito em matéria penal, tendo em vista que criminalizou uma conduta por analogia,
a qual ostenta, ademais, vultuoso teor polêmico por se referir a um assunto ainda tratado
arcaicamente por fração antiliberal da sociedade. Diametralmente oposto a isso, justificou-se
pela tese adotada que a emergencialidade da situação ensejou a iniciativa do judiciário,
considerando que a manutenção da displicência do Congresso Nacional perpetuaria a negação
da dignidade e da humanidade desses grupos vulneráveis, sendo vital, nos termos do voto
proferido, o cumprimento do art. 5º, XLI, da CRFB/88.

Assim, sob o ponto de vista negativo e positivo, respectivamente, o judiciário atua em


função legiferante dúplice, ora invalidando atos ou leis dos outros dois poderes – como ocorre
no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, a exemplo da ADI (Ação Direta de
Inconstitucionalidade) –, ora exercendo atividade interpretativa expansiva, concedendo às
normas juízo de valor. Sustenta-se, consequentemente, a violação da separação entre os três
poderes em razão de uma suposta usurpação de competência, assim como também a
arbitrariedade do julgador, uma vez que fica a cargo do subjetivismo de cada um, isoladamente,
a interpretação e a aplicação do direito.

A despeito de consideráveis críticas, não se pode olvidar que a depreciação da Carta


por poderes por ela instituídos representa um temerário e inadmissível fenômeno de menoscabo
do funcionalismo que ela conferiu aos direitos e às liberdades básicos. Nesse ínterim, não há
separação irrestrita de poderes – nem a vedação por esta do ativismo –, mas antes um sistema
de freios e contrapesos que admite a cooperação mútua e, sobretudo, a ingerência de quem
detém a legitimidade de dar a última interpretação e de vinculá-la, máxime quando o propósito
é proteger direitos fundamentais em uma era de revelada superação do positivismo exacerbado.
P á g i n a | 260

O crescente poder político do judiciário, desta feita, é concomitante ao aumento de


sua independência e à amenização da concentração do poder nas mãos do executivo e do
legislativo que marcou épocas passadas, tendo em vista que nunca houve, de fato, um perfeito
equilíbrio entre estes, o que evidencia que o protagonismo de quaisquer um deles depende do
momento histórico no qual está inserto, sendo o presente caracterizado pela Constituição e seus
princípios como cerne do sistema jurídico.

Nessa perspectiva, por mais que os juízes não pertençam à política, suas funções
constitucionais sim, advindo daí sua legitimidade democrática cujo propósito não é o de
aumentar o poderio dessa classe de modo a desarmonizar o equilíbrio dos arranjos institucionais
em prol do judiciário e em detrimento dos outros, mas sim de amplificar a proteção da
democracia e dos direitos fundamentais (CORDEIRO, 2012).

De outra banda, a alegação de que o judiciário estaria invadindo competências e agindo


inconstitucionalmente é em demasiado brusca quando se traz à tona que este, ao gerenciar, a
posteriori, os atos e descuramentos dos outros órgãos, estampa, consoante Gomes (2009), duas
classes de atitudes, uma inovadora (quando o juiz “cria”, ex novo, um direito ou uma norma) e
outra reveladora (criação de uma norma, de um direito ou de uma regra, lato sensu, a partir de
valores pré-existentes).

Ocorre que ambas as espécies desse instituto estão inseridas em um contexto em que
a dignidade da pessoa humana é o centro dos demais direitos fundamentais, devendo pautar as
ações estatais, ainda mais quando a ineficiência destas engendra ônus que não cabem ao cidadão
suportar. Insta realçar que esse “direito-base” é, até mesmo, para os jusnaturalistas, um limite
ao poder constituinte originário, o qual, enquanto desvencilhado do direito positivo, deve ater-
se ao direito natural. Afilia-se a esse sentido Sarmento (2010), o qual salienta que no momento
da aplicação das normas, de todas elas, deve haver seu reexame pelo aplicador do direito sob
novas lentes, as quais terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça
social, impressas no tecido constitucional. Analogamente, Medina (2019) alega:

Os direitos fundamentais, de todo modo, são expressões da dignidade da pessoa


humana e, como tal, constituem o fundamento do Estado, norteando o exercício do
poder [...] É correto dizer que a autoridade moderna deve encontrar seu fundamento
nos direitos fundamentais. Ora, “não há uma Constituição dos direitos fundamentais
independente da Constituição do poder”. [...] A autoridade, pois, se legitima quando
os indivíduos, exercendo em plenitude seus direitos fundamentais, a aceita e respeita.
(MEDINA, 2019, p.28)

O fato é que para toda ação há uma reação correspondente, e com o ativismo judicial
não poderia ocorrer de modo diverso. Nesse âmbito, em que a defesa dos direitos fundamentais
P á g i n a | 261

– precipuamente os das minorias – pelo judiciário adota, na maioria das vezes, cunho
contramajoritário, notadamente o liberal, e mediante a polêmica e controvérsia que geralmente
permeiam a temática, camadas sociais e institucionais essencialmente conservadoras, eivadas
de um sentimentalismo insatisfatório, reagem fervorosa e negativamente à deliberação judicial,
gerando intensa comoção e adesão popular, o que dá oportunidade política e eleitoral para os
setores legislativos que compartilham dos mesmos ideais e aquece as contendas existente entre
o jurídico e o político.

Em decorrência disso, pode haver mudança na legislação com o fito de aniquilar o


decisum judicial e reforçar o ideal em liça ou, até mesmo, de promover uma mudança de
posicionamento dentro da própria esfera judiciária – tendo em vista a profusa influência que o
legislativo opera sobre si, no tocante, por exemplo, às indicações para ocupação dos cargos nos
tribunais –, o que implica em regressão do decisum, fenômeno este que a doutrina denominou
de efeito backlash. De fato, materializando-se o referido retrocesso, os beneficiados pela
decisão judicial esvaziada podem-se enxergar em situação ainda mais desfavorável, subtraindo
o valor de todo o árduo afinco para a conquista do direito suprimido.

Não obstante, é premente notar que o fundamento dessas reações adversas não é a
decisão em si, o seu erro ou o seu acerto, mas sim a ideologia e os valores que estão por trás,
de forma que se proferida decisão conservadora, embora não seja a tendência, os progressistas
também podem se insurgir e desencadear processo semelhante, mas com implicações
peculiares. A reação, nesse sentido, está muito mais atrelada à quebra abrupta do status quo e
da saída da zona de conforto de parcela da população, corolário do choque ideológico.

E o que falar da segurança jurídica? Sendo esta um dos pilares de confiabilidade


nos julgamentos e nas leis estatais, é cristalina sua ofensa quando uma decisão que, suprindo
omissões para a consumação de direitos fundamentais, mais tarde venha a ser rechaçada por
inovação legislativa que retire toda a efetividade que lhe fora concedida dantes. Nesse âmbito,
sendo o STF o principal ator no que se refere ao ativismo judicial, já que lhe foi conferida a
guarda da Constituição e a palavra última quando da existência de qualquer controvérsia a ela
relativa, é constitucional novel lei que vá de encontro à decisão que em tese é a que mais garante
a concretude da arquitetura constitucional, cuja supremacia não pode ser tomada por nenhuma
outra norma?

Especula-se se faria sentido se uma decisão da suprema corte pautada em todos os


ditames constitucionais futuramente fosse contrariada por uma produção normativa do
P á g i n a | 262

legislativo, ou mesmo do executivo, a qual, por sua vez, tornar-se-ia objeto de uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade a ser julgada pelo próprio STF, recaindo, assim, em um círculo
vicioso. Nas palavras de Clève (2006):

É preciso considerar, entretanto, que democracia não significa simplesmente governo


da maioria. Afinal a minoria de hoje pode ser a maioria de amanhã, e o guardião desta
dinâmica majoritária/contramajoritária, em última instância, é, entre nós, o próprio
Poder Judiciário que age como uma espécie de delegado do Poder Constituinte. Ou
seja, a democracia não repele, ao contrário, reclama a atuação do judiciário nesse
campo (CLÉVE, 2006, p. 35).

Caso típico ocorreu quando o STF, no julgamento da ADI nº 4277 e da ADPF


(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 132, reconheceu a união
homoafetiva como entidade familiar, estendendo a esta todas as prerrogativas inerentes à união
estável entre homem e mulher, na forma do artigo 226, § 3º (regulado pela lei nº 9.278/96) da
CRFB/88 e do artigo 1.723 do Código Civil.

O efeito backlash sobreveio em seguida. O Estatuto da Família, projeto de Lei que


tramitava no Congresso Nacional (PL 6583/13), que estabelecia os grupos que poderiam ser
considerados entidade familiar – dentre os quais não se encontrava os casais homoafetivos –,
ganhou repentinamente um considerável número de defensores, o que fez com que o apoio a
políticos conservadores alavancasse entre aqueles que negavam o direito de proteção estatal aos
casais homossexuais, possibilitando a criação de leis que pudessem ir na direção oposta às
decisões do supremo e a mitigação, dessa forma, de direito fundamental que já fora tardiamente
afirmado.

Apesar de essas manifestações serem uma representação democrática, uma vez que
permite ao povo explicitar sua própria leitura do texto constitucional e trazer à baila debates
sobre temáticas que normalmente permaneceriam latentes, há de se reconhecer que foi por meio
do ativismo judicial que houve a implementação de direitos negligenciados e repudiados
historicamente a essa minorais, tais como a igualdade entre os indivíduos e a dignidade da
pessoa humana. A espera da mudança gradual da consciência social frente ao dinamismo das
metamorfoses culturais para que se evite tanto o ativismo, quanto as reações antagônicas, vai
de encontro à busca pela solidificação de direitos orientada pela Constituição.

Sobreleva-se, nesse viés, o fenômeno da mutação constitucional, sendo este um


processo de mudança informal da Constituição sem que haja alterações em seu texto. Isso
ocorre, mormente, pela necessidade de ressignificação da norma, de seu alcance e sentido, por
estes não serem mais fiéis à realidade social. É o que se observa em relação à união homoafetiva,
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que, quando da promulgação da Carta, era vista sob uma óptica conservadora em que não se
reconhecia a liberdade sexual como um direito inerente ao homem, visão esta transformada
drasticamente.

Malgrado a decisão do STF ter observado os princípios constitucionais, reconhece-se


que a nova interpretação dada pela corte revestiu-se de uma mutação constitucional imprópria,
vez que consta expressamente em seu artigo 226, § 3º a expressão homem e mulher, óbice,
portanto, à redefinição sem alteração formal do texto, o que fomenta as críticas ao ativismo
judicial e à legitimidade do judiciário para tal. Por outro lado, o legislativo manteve-se inerte e
até o presente momento não emendou o texto constitucional. Imperioso, desse modo, reação
popular também no sentido de pressionar o legislativo a adequar a Constituição à nova realidade
social.

Ilustrando a pertinência das decisões tomadas pelos tribunais pátrios, em especial pelo
STF pelos motivos já elencados, aponta-se o recente julgamento de uma liminar no bojo de sete
ADI’s em face da Medida Provisória 927/2020, aprovada para dispor sobre as medidas a serem
tomadas para o enfrentamento do estado de calamidade pública decretado em decorrência da
pandemia instaurada pelo vírus Covid-19. Por voto da maioria, os casos de infecção pelo vírus
passaram a ser reconhecidos como doença ocupacional ou acidente de trabalho, sendo que a
MP, especificamente no artigo 29, afirmava que só poderia ser reconhecido como tal se fosse
comprovado o nexo causal. Indubitável, destarte, a magnitude do relevo do ativismo e de sua
preponderância em face do dinamismo social.

Demais, há pouco, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por


Omissão nº 30, ocorrido em 08/2020, o Plenário do STF decidiu que a isenção do Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI) sobre automóveis fabricados no País contida no art. 1º, IV, da
Lei nº 8989/19958 deve ser estendida às pessoas com deficiência auditiva, reconhecendo
omissão que era pauta desde o ano de 2015. Neste azo, foi determinado ao Congresso Nacional
o prazo de 18 meses para sanar a omissão legislativa, durante o qual, para não inviabilizar o
direito ao contemplados pela decisão, a Corte determinou que seja estendida aos mesmos a
previsão inserta no dispositivo para a concessão do benefício. Para o Supremo, a discriminação

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Art. 1º, IV, da Lei nº 8989/1995: Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis
de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a 2.000 cm³ (dois mil
centímetros cúbicos), de, no mínimo, 4 (quatro) portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustível
de origem renovável, sistema reversível de combustão ou híbrido e elétricos, quando adquiridos por: IV – pessoas
portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de
seu representante legal;
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existente até então era injustificável – vez que estendia a prerrogativa a outras classes de
deficiência – e conflitante com as finalidades – proteção e inclusão – do sistema ínsito ao
Estatuto da Pessoa com Deficiência e com o Estado Democrático de Direito.

Sem dúvidas, há critérios a serem seguidos para que haja uma delineamento adequado
da jurisdição constitucional – a exemplo do próprio direito, das teorias interpretativas e
argumentativas, da pressão política dos atores sociais, do amplo debate social, dentre outros
(FERNANDES, 2010) – sem que a isso se objete a simples possibilidade de comportamentos
reacionários, os quais, apesar das chances de suscitarem um efeito rebote, são significativo meio
de colocar em destaque questões socialmente relevantes que exigem enfrentamento. Demais, é
salutar advertir que o Supremo não está atuando em qualquer seara legislativa, mas sim naquela
para qual foi devidamente autorizado, já que, ao tomar decisões, está pondo em prática aquilo
que anteriormente fora almejado pelo constituinte. Não há, pois, outro impulso, senão o
democrático.

COSIDERAÇÕES FINAIS

O positivismo inflexível, desde a instauração do constitucionalismo, foi sendo


gradativamente maleabilizado, o que culminou na descentralização do poder de moldagem e de
aplicação das leis, outrora pertencente ao legislativo e ao executivo exclusivamente, atribuindo
legitimidade para isto ao judiciário. A hegemonia dos direitos e garantias fundamentais
concernente à ordem de um Estado Democrático de Direito reivindica, desse modo, uma
atuação contundente dos poderes para assegurar a efetividade destes, enquanto propósito
primordial da Carta da República.
Nesse enquadramento, vácuos que porventura existam nas normas e que venham a
comprometer o gozo das liberdades e das prerrogativas pelos seus titulares, particularmente em
um cenário de superação de paradigmas histórica e culturalmente enraizados, não podem ficar
à mercê da morosidade institucional do Estado, sob pena de um distanciamento ainda maior da
letra constitucional e da realidade. A nova hermenêutica constitucional – reforma dos métodos
interpretativos, que conferiu ao operador jurídico o condão de agir com uma discricionariedade
vinculada à observância dos direitos fundamentais ostentados na constituição, ainda que
inexistente previsão legislativa – tem sido o fundamento balizador em um cenário marcado por
incessantes lutas de reconhecimento de direitos preteridos pela lei e pela sociedade.
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O ativismo judicial, nesse sentido, é precursor de decisões sensíveis de suma


relevância social e de contra-ataques políticos – efeito backlash –, o que faz aflorar posições a
favor e contra esse instituto. Assim, se bem compreendido e empregado pelos operadores do
direito é ferramenta de concretização de direitos fundamentais, conformando-se em um
arcabouço protetivo dos contornos constitucionais, caso contrário, se mal compreendido e
empregado, oportuniza uma concepção de um governo de juízes, que vai na contramão da lisura
do direito.

Em todo caso, o ativismo e as reações que acarreta fazem parte da engrenagem


democrática, cabendo à jurisdição constitucional seguir as balizas constitucionais que lhe
permitem exercer um papel protagonista sem recair em arbitrariedades. Assim, restringir a
capacidade interpretativa jurídica e as inovações dela decorrentes, considerando que todos os
atos devem ser antecedidos de motivações íntegras, seria retroceder a épocas em que os filhos
adotivos ou tidos fora do casamento eram ilegítimos, ou em que o companheiro não usufruía
dos mesmos direitos do cônjuge, por exemplo.

A democratização da interpretação constitucional, ou seja, o engajamento e a


participação popular nesse processo, pode ocorrer sem que se retire a legitimidade do judiciário,
já que nenhuma lei é capaz de abarcar todas as situações fáticas que possam surgir, devendo
cada uma ser analisada particularmente, o que, indubitavelmente, faz-se extrair uma gama de
sentidos diversos de uma mesma norma. Não se pode invalidar, pois, o progresso social que
muitas dessas decisões, contrariando conceitos arcaicos, preconceituosos e violadores da
dignidade humana, trouxeram para a sociedade brasileira.

As discussões estão longe de terminar, até porque são essenciais para a evolução da
democracia e para a construção desse novo panorama de um judiciário enérgico, mas a
harmonia entre os poderes deve apaziguar a competitividade entre eles, visto que o ordenamento
jurídico é uno e tem como escopo máximo o bem estar social, de forma que sejam a todos
assegurados as liberdades civis e os direitos e garantias fundamentais, independentemente de
quem seja a última palavra.

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Weber Brasília, 26 ago. 2016.
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BACKLASH EFFECT AS A DIRECT CONSEQUENCE OF JUDICIAL ATVISM


CHARACTERISTIC OF BRAZILIAN LEGAL PRACTICE AS A PROTECTIVE
FRAMEWORK OF FUNDAMENTAL RIGHTS AND GUARANTEES

ABSTRACT

The present work seeks to analyze the role of the Judiciary Power in
making decisions that involve fundamental rights in face of a normative
omission of other powers, especially the legislative, as well as the
reactionary behaviors arising from that ascending protagonism that
marks the era of Constitutionalism or Post-Positivism.
In addition, it places on the agenda important and controversial concrete
cases that demanded the undertaking of judicial activism, with the aim
of illustrating the relevance of this participatory posture for the
realization of these rights, which, in their majority, concern to socially
sensitive and latent affairs. It was concluded at the end that, despite the
need for debates, criticism and limits to this acting, judicial activism
and the backlash effect are rooted to the very concept of Democracy
and it is essential for its gradual reconstruction based on the supremacy
of the constitutional norms that proclaim imperative prerogatives to
guarantee a dignified existence for the citizen.
For this purpose, exploratory and qualitative research was used, made
possible by the bibliographic and legislative analysis on the topic
addressed, aiming for the understanding of the dimensions that cover
the studied institute and its importance for Brazilian Law.
Keywords: Judicial Activism. Constitutionalism. Democracy.
Fundamental rights. Backlash effect. Omission.

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