Você está na página 1de 351

© 2023 Editora Íthala

CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Godoy Dotta – Doutor e mestre em Edu- Professor Adjunto de Direito Processual da Univer-
cação. Especialista em Administração, Metodologia sidade Federal Fluminense e membro do corpo per-
do Ensino Superior e em Metodologia do Conheci- manente do Programa de Mestrado e Doutorado
mento e do Trabalho Científico. Licenciado em So- em Sociologia e Direito da mesma universidade.
ciologia e Pedagogia. Bacharel em Tecnologia. Ligia Maria Silva Melo de Casimiro – Doutora em
Ana Claudia Santano – Pós-doutora em Direito Direito Econômico e Social pela PUC-PR. Mestre
Público Econômico pela Pontifícia Universidade em Direito do Estado pela PUC-SP. Professora de
Católica do Paraná. Doutora e mestre em Ciências Direito Administrativo da UFC-CE. Presidente do
Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Instituto Cearense de Direito Administrativo - ICDA.
Espanha. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Adminis-
Daniel Wunder Hachem – Professor de Direito trativo - IBDA e coordenadora Regional do IBDU.
Constitucional e Administrativo da Universidade Fe- Luiz Fernando Casagrande Pereira – Doutor e mes-
deral do Paraná e da Pontifícia Universidade Católi- tre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
ca do Paraná. Doutor e mestre em Direito do Estado Coordenador da pós-graduação em Direito Eleitoral
pela UFPR. Coordenador Executivo da Rede Docen- da Universidade Positivo. Autor de livros e artigos
te Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo. de processo civil e direito eleitoral.
Emerson Gabardo – Professor Titular de Direito Rafael Santos de Oliveira – Doutor em Direito pela
Administrativo da PUC-PR. Professor Associado de Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre
Direito Administrativo da UFPR. Doutor em Direito e graduado em Direito pela UFSM. Professor na
do Estado pela UFPR com Pós-doutorado pela For- graduação e na pós-graduação em Direito da Uni-
dham University School of Law e pela University of versidade Federal de Santa Maria. Coordenador do
California - UCI (EUA). Curso de Direito e editor da Revista Direitos Emer-
Fernando Gama de Miranda Netto – Doutor em Di- gentes na Sociedade Global e da Revista Eletrônica
reito pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. do Curso de Direito da mesma universidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Estado, democracia e desenvolvimento: estudos


E79 sobre a eficácia dos direitos fundamentais [recurso
eletrônico] / coordenação de William Soares Pugliese;
organização de Derick Davidson Cordeiro ...[et al.] –
Curitiba: Íthala, 2023.
350p.: 22,5 cm
ISBN: 978-65-5765-211-4
1. Direitos fundamentais. 2. Democracia. 3.
Desenvolvimento. I. Pugliese, William Soares (coord.).
II. Cordeiro, Derick Davidson (org.). III. Ganho,
Gabriela (org.). IV. Mano, Lucas Raphael de Souza
(org.). V. Dias, Maxwell Lima (org.).
CDD 340.1 (22.ed)
CDU 340

Editora Íthala Ltda. Coordenação editorial: Eliane Peçanha


Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70 Capa: Pedro Henrique de Camargo Ambrozim e
Bairro Mercês Luana Julião Weldt
80.710-130 – Curitiba – PR Revisão: Karla Leite
Fone: +55 (41) 3093-5252 Diagramação: Luana Julião Weldt
Fax: +55 (41) 3093-5257
http://www.ithala.com.br
E-mail: editora@ithala.com.br
Informamos que é de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos publicados na obra. Nen-
huma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autor-
ização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido
pelo art. 184 do Código Penal.
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
COORDENAÇÃO
WILLIAM SOARES PUGLIESE
ORGANIZADORES
DERICK DAVIDSON CORDEIRO
GABRIELA GANHO
LUCAS RAPHAEL DE SOUZA MANO
MAXWELL LIMA DIAS

EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2023
Sumário

APRESENTAÇÃO............................................................................. 7

O MANDADO DE SEGURANÇA E O ANTEPROJETO PARA UM CÓDIGO


BRASILEIRO DE PROCESSO CONSTITUCIONAL...................................... 9
William Soares Pugliese | Camila Soares Cavassin Jayme

APONTAMENTOS SOBRE UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO


CONSTITUCIONAL........................................................................ 23
William Soares Pugliese | Marcelo Fonseca Gurniski

A INTERNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE............................... 47


Wlademir Junior Lucietti Filho

O DIREITO TRIBUTÁRIO COMO MECANISMO PARA A MATERIALIZAÇÃO


DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE À CRISE SOCIOECONÔMICA
NO BRASIL................................................................................. 65
Luiza Boff Lorenzon | Marilaine Moreira de Jesus | Ramon Gabriel Conti

O DIREITO FUNDAMENTAL AO NOME E AS IMPLICAÇÕES TRAZIDAS


PELA LEI 14.382/2022 À SEGURANÇA JURÍDICA.............................. 83
Marilaine Moreira de Jesus | Luiza Boff Lorenzon | Jocimar Pereira de Souza

RODA RODA VIRA: A EFETIVAÇÃO DE CIDADES SUSTENTÁVEIS AO SOM


DE MAMONAS ASSASSINAS.......................................................... 97
Lucas Raphael de Souza Mano | Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

ENTRE RAZÕES E EMOÇÕES: MOTIVOS PARA O USO DE PRECEDENTES


NO DIREITO BRASILEIRO............................................................. 113
Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira | Lucas Raphael de Souza Mano

A RESSIGNIFICAÇÃO DA LEGITIMIDADE DO ESTADO ADMINISTRATIVO:


UMA TEORIA DA RACIONALIDADE SUSTENTÁVEL DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS................................................................................. 135
Maxwell Lima Dias
6| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho - Lucas Raphael de Souza Mano -
Maxwell Lima Dias - Orgs.

PLURALISMO JURÍDICO E DEMOCRACIA DELIBERATIVA: UMA NOVA


RACIONALIDADE PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A
PARTIR DA TEORIA DISCURSIVA DE HABERMAS.............................. 161
Maxwell Lima Dias

ANÁLISE DA RENÚNCIA DA RECEITA DE IPTU NO MUNICÍPIO DE


CURITIBA................................................................................. 193
Derick Davidson Cordeiro | Gabriela Ganho

A TEORIA DO ESTADO MODERNO WEBERIANO E A FORMAÇÃO DO


POPULISMO COMO MEIO INTEGRADOR POLÍTICO OU FORMA DE
RUÍNA DEMOCRÁTICA E INSTITUCIONAL........................................ 209
Sthephany Patrício da Silva

AUTORITARISMO, PODER MODERADOR E A INCUMBÊNCIA DE DEFESA


DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.......................................... 227
Dillings Barbosa Maquiné | Paulo César de Lara

MATERIALIZAÇÃO DO PLURALISMO CONSTITUCIONAL, UM CAMINHO


PARA A INCLUSÃO RACIAL NO BRASIL........................................... 253
Gabriela Ganho | Derick Davidson Cordeiro

A VIOLÊNCIA NO FUTEBOL E O PAPEL DA FIFA SUBORDINANDO-SE


AOS DIREITOS HUMANOS PARA DIMINUIR AS ATROCIDADES............ 271
Eduardo Tourinho Gomes

A AUTONOMIA DOS ENTES FEDERATIVOS NO COMBATE À PANDEMIA


DA COVID-19: UMA ANÁLISE A PARTIR DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE N. 6.341............................................. 297
Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana | Stanlei Ernesto Prause Fontana
Marcelo Fonseca Gurniski

A DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTO DO DESENVOLVIMENTO


NACIONAL A PARTIR DA TEORIA DE AMARTYA SEN......................... 321
Maxwell Lima Dias

ÍNDICE ALFABÉTICO.................................................................... 345


Apresentação

É uma satisfação redobrada apresentar a obra “Estado, Democracia e


Desenvolvimento: Estudos sobre a eficácia dos direitos fundamentais”. Por um lado, os
trabalhos aqui publicados refletem as pesquisas dos mestrandos e doutorandos em direi-
tos fundamentais e democracia, vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Direito da
Unibrasil. A iniciativa dos próprios alunos em produzir um livro a partir de seus escritos é
mais do que bem-vinda, pois permite a divulgação dos temas e das discussões abordadas
no programa.

De outro lado, há uma satisfação particular ao se perceber que os alunos da pós-


-graduação, de quem nos aproximamos e procuramos orientar, passam a desenvolver voos
próprios. Ao constatar que as pessoas com quem nos habituamos a conviver, semanal-
mente, estão reunidas em um livro, sentimos mais de perto a perpetuação dos vínculos.
Melhor do que uma fotografia, a coletânea de textos aqui apresentada marca um conjunto
de discussões ocorridas no PPGD da Unibrasil e dos pesquisadores que dela participaram.

Como o título do livro destaca, os estudos publicados giram em torno dos eixos
temáticos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unibrasil: Direitos Humanos e
Democracia. Mais especificamente, a obra organizada trata, como elementos centrais, do
Estado, da Democracia e do Desenvolvimento, com especial enfoque na eficácia dos direi-
tos fundamentais. Os temas estão evidentemente relacionados. Sem Estado, Democracia e
Desenvolvimento, não se pode conceber direitos fundamentais eficazes. Daí porque, com
este pano de fundo, o leitor encontrará textos que tratam de temas variados.

Sem tomar mais tempo do leitor, registro os cumprimentos aos organizadores da


obra, Derick Davidson Cordeiro, Gabriela Ganho, Maxwell Lima Dias e Lucas Raphael de
Souza Mano, pelo trabalho realizado.
O MANDADO DE SEGURANÇA E O
ANTEPROJETO PARA UM CÓDIGO
BRASILEIRO DE PROCESSO
CONSTITUCIONAL

William Soares Pugliese1


Camila Soares Cavassin Jayme2

Sumário: 1. Introdução. 2. Do Código Brasileiro de Processo Constitucional. 3. Do mandado


de segurança. 4. Comparação normativa da Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009 versus
Anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Constitucional. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente artigo visa compreender o que é um Código de Processo Constitucional e
seu objeto. O objetivo seguinte é estudar o Anteprojeto do Código Brasileiro de Processo
Constitucional, em especial, no que diz respeito ao remédio constitucional do mandado
de segurança, atualmente regido pela Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009. Feitas as
compreensões gerais, o artigo busca estabelecer um paralelo entre a legislação vigente
e a futura normativa, apontando quais são e em que consistem as principais alterações
normativas sobre o processo constitucional do mandado de segurança.

1
Pós-doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor e mestre pelo Programa de
Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vice-coordenador do Programa de Pós-
graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Professor substituto de Direito
Processual Civil da UFPR. Coordenador da Especialização de Direito Processual Civil da Academia Brasileira
de Direito Constitucional (ABDConst). Advogado. E-mail: william@pxadvogados.com.br
2
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Fundamentais e Democracia do Centro
Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil, 2021-2023), bolsista taxista da Capes/Prosup. Pós-graduada em
Direito Público pelo UniBrasil-Esmafe/PR (2014); Aperfeiçoamento em Direito pela Escola da Magistratura do
Paraná (Emap/PR, 2015). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR,2013).
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Jurisdição e Democracia do UniBrasil (2021-atual). Pesquisadora do Grupo
de Pesquisa Dirpol-CCONS-UFPR (06/2022-atual). Associada do Conpedi – Conselho Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Direito (2023). Assessora jurídica e chefe de gabinete de desembargadora substituta junto
ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) (2014-atual). camilasoarescjayme@hmail.com
10| William Soares Pugliese - Camila Soares Cavassin Jayme

Palavras-chave: Código de Processo Constitucional. Mandado de segurança. Alteração


legislativa.

1 INTRODUÇÃO
Da recente notícia3 quanto ao julgamento de milhares de processos no Supremo
Tribunal Federal e da constante vigilância da Corte em sua função de guarda da Constituição
da República Federativa do Brasil, desperta-se e instiga-se o interesse e estudo da promes-
sa do Código de Processo Constitucional.

A Constituição do Brasil é rica em detalhes, quanto às dezenas de direitos e garantias


fundamentais que devem ser salvaguardados, a exemplo disso o extenso artigo 5º com seus
setenta e nove incisos. Já o procedimento para apuração e declaração destes nem sempre
está integralmente previsto em seu corpo, surgindo então a necessidade de uso de um leque
de normas constitucionais e infraconstitucionais paralelas para o seu processamento.

Dentre os direitos e garantias fundamentais estabelecidos, destacou-se para o


presente estudo o instrumento do mandado de segurança, oponível contra atos ilegais
e coatores do próprio Estado. Hoje, previsto pela Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009,
o processamento do mandado de segurança está abrangido pela iniciativa de junção das
normas processuais constitucionais do Anteprojeto do Código de Processo Constitucional
Brasileiro. O presente estudo pretende verticalizar a análise do processo constitucional do
mandado de segurança nesse cenário de alteração e sucessão legislativa.

Para tanto, desenvolve-se, no primeiro tópico, as noções gerais quanto ao con-


teúdo e objeto do processo constitucional, bem como do Código Brasileiro de Processo
Constitucional. Na sequência, estuda-se o instituto do mandado de segurança e o seu pro-
cedimento. Por fim, em terceiro e último tópico, problematiza-se e busca-se estabelecer um
paralelo entre a regulamentação atual, e a futura, com destaque para as manutenções e al-
terações legislativas mais relevantes do processo constitucional do mandado de segurança.

O trabalho de pesquisa foi desenvolvido pelo método dedutivo e indutivo, com base
em análise documental indireta de artigos científicos de periódicos e doutrina nacional.
Também pelo método comparativo teve por fonte a análise da legislação atual aplicável ao
instituto em análise com a expectativa da legislação futura.

3
MINISTRO Luiz Fux encerra semestre judiciário com mais de 7 mil processos julgados em sessões colegiadas.
STF, 1 ago. 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/internacional/content.asp?id=489908&ori=1&idio-
ma=pt_br. Acesso em: 27 ago. 2022.
O mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro... |11

2 DO CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSO CONSTITUCIONAL


O Anteprojeto do Código de Processo Constitucional é uma iniciativa encabeçada
pelo jurista Paulo Bonavides (1925-2020), apresentada pela Comissão Especial de Juristas
do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sob Relatoria do consti-
tucionalista Paulo Lopo Saraiva4. O Anteprojeto justifica-se pela necessidade de fixação
de unidade, segurança jurídica e congruência no sistema constitucional, frente as mais
variadas ações constitucionais, que são julgadas por leis processuais infraconstitucionais
esparsas, sem qualquer unidade de técnica, deixando a desejar quanto a importância dos
temas5. Foi o controle de constitucionalidade a origem do processo constitucional e o seu
desenvolvimento é que levou ao questionamento da elaboração do processo constitucional
e seu conteúdo6.

Mas não só de controle de constitucionalidade se constitui o processo constitucio-


nal. O processo constitucional se ocupa de ser o guardião da Constituição, dos meios de
proteção da Constituição e dos direitos fundamentais7. Aqui, acrescenta-se o destaque e
direcionamento deste estudo para o mandado de segurança.

Recorde-se, por oportuno, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça


reconhece a possibilidade de mandado de segurança invocar a inconstitucionalidade da
norma como fundamento para seu pedido. Não se admite, no entanto, que a declaração de
inconstitucionalidade seja o pedido principal e autônomo8, sob pena de violação à Súmula
266 do Supremo Tribunal Federal9, que estabelece o não cabimento do mandado de segu-
rança contra lei em tese.

4
OAB. Processo n. 49.0000.215.009467-9/Conselho Pleno. Código Brasileiro de Processo Constitucional.
Relatório. As Bases Doutrinárias do Anteprojeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Conselheiro
Federal Sérgio Eduardo Freire Miranda. 2015 Disponível em: https://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-co-
digo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022. p. 4; 81.
5
OAB. Processo n. 49.0000.215.009467-9/Conselho Pleno. Código Brasileiro de Processo Constitucional.
Relatório. As Bases Doutrinárias do Anteprojeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Conselheiro
Federal Sérgio Eduardo Freire Miranda. 2015 Disponível em: https://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-co-
digo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022. p. 5.
6
MITIDIERO, Daniel. Processo constitucional: do controle ao processo, dos modelos ao sistema. São Paulo:
Thomson Reuters, 2022. [E-book]. local. RB-1.1.
7
MITIDIERO, Daniel. Processo constitucional: do controle ao processo, dos modelos ao sistema. São Paulo:
Thomson Reuters, 2022. [E-book]. local. RB 1.2.
8
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão AgRg no Recurso Especial n. 1.119.872 – RJ (2009/0015615-
7). Relator: Ministro Benedito Gonçalves. DJe: 30/11/2010. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/Get
InteiroTeorDoAcordao?num_registro=200900156157&dt_publicacao=30/11/2010. Acesso em: 27 ago. 2022.
9
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Súmula 266. Não cabe mandado de segurança contra lei em tese. Sessão
plenária de 13/12/1963. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula266/false.
Acesso em: 27 ago. 2022.
12| William Soares Pugliese - Camila Soares Cavassin Jayme

O estudo do direito constitucional processual e do direito processual constitucional


não são sinônimos10. O Código de Processo Constitucional está inserido no estudo do
direito processual constitucional. Neste mesmo alerta inicial, acrescenta-se que também
não se confunde processo constitucional com processo constitucionalizado, nem processo
constitucional com defesa da Constituição. O processo constitucional é um meio de defesa
da Constituição, enquanto o processo constitucionalizado é dizer que as normas consti-
tucionais se projetam e informam os diversos ramos do processo (civil, penal, trabalhista
etc.). O processo constitucional é instrumento típico de defesa judicial da Constituição,
enquanto a defesa da Constituição é todo o tipo de defesa da Constituição, com espaço
para sua interpretação e aplicação11.

O Código de Processo Constitucional surgirá “como espelho e repositório duma


legislação mais apta que a do passado em fazer efetivas as garantias processuais da
Constituição”12. A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, nasce da junção
de ensinamentos e influências americanas e europeias, fenômeno poeticamente descrito
como sendo o processo constitucional brasileiro um encontro de águas, em uma verdadei-
ra abundância de instrumentos para a garantia da Constituição. Como exemplos, tem-se a
ação direta de inconstitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamen-
tal e a ação declaratória de constitucionalidade13.

É objeto do processo constitucional e, portanto, do Código de Processo


Constitucional, as ações constitucionais enquanto verdadeiros direitos instrumentais do ci-
dadão colocados à disposição como caminho para a tutela dos seus direitos fundamentais14.

Com a lembrança de que o processo constitucional está presente em qualquer


demanda que se dedique a análise da conformidade dos atos normativos com a constitui-
ção15, serve o lembrete que indica que não se pode limitar o estudo do processo constitu-

10
SILVA, Elcio Domingues da; JAYME, Camila Soares Cavassin. A relevância dos princípios na construção, inter�-
pretação e aplicação do Código de Processo Constitucional Brasileiro. In: CUNHA, José Sebastião Fagundes
(coord.). Elementos para um Código de Processo Constitucional Brasileiro. Londrina: Thoth, 2022. p. 106-107.
11
MITIDIERO, Daniel. Processo constitucional: do controle ao processo, dos modelos ao sistema. São Paulo:
Thomson Reuters, 2022. [E-book]. local. RB-1.3.
12
OAB. Processo n. 49.0000.215.009467-9/Conselho Pleno. Código Brasileiro de Processo Constitucional.
Relatório. As Bases Doutrinárias do Anteprojeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Conselheiro
Federal Sérgio Eduardo Freire Miranda. 2015 Disponível em: https://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-co-
digo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022. p. 6.
13
MITIDIERO, Daniel. Processo constitucional: do controle ao processo, dos modelos ao sistema. São Paulo:
Thomson Reuters, 2022. [E-book]. local. RB-2.5.
14
ABBOUD, Georges. Processo constitucional. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-4.1.
15
SILVA, Elcio Domingues da; JAYME, Camila Soares Cavassin. A relevância dos princípios na construção, inter�-
pretação e aplicação do Código de Processo Constitucional Brasileiro. In: CUNHA, José Sebastião Fagundes
(coord.). Elementos para um Código de Processo Constitucional Brasileiro. Londrina: Thoth, 2022. p. 108.
O mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro... |13

cional com as ações de controle principal de constitucionalidade ou com as ações de com-


petência do Supremo Tribunal Federal, quando ele passa a enfatizar o estudo do controle de
constitucionalidade incidental16.

O alerta serve para que não se descuide no foco de que o Código de Processo
Constitucional abordará somente os procedimentos de controle de constitucionalidade,
mas também às ações de defesa dos direitos e garantias fundamentais.

O Anteprojeto do Código de Processo Constitucional vem dividido em dois seg-


mentos, os das ações de defesa dos direitos e garantias fundamentais e a defesa da cons-
tituição federal. Esmiuçando a proposta, identifica-se uma parte geral, do artigo 1º ao 7º,
a seção das garantias constitucionais das ações de defesa dos direitos fundamentais, do
artigo 8º ao 82, e a seção pertinente as ações de controle da constitucionalidade das leis e
atos normativos, do artigo 83 ao 116, quando encerrado com disposições gerais, do artigo
117 ao 166, e disposições finais, do artigo 16717.

No projeto, o mandado de segurança está incluído na seção pertinente as garan-


tias constitucionais das ações de defesa dos direitos fundamentais, em um total de 26
dispositivos, nos artigos 15 ao 41. Enquadrado o mandado de segurança no processo
constitucional, passa-se a análise do seu instituto.

3 DO MANDADO DE SEGURANÇA
A doutrina registra que, apesar dos mais de oitenta anos de aplicação do mandado
de segurança, ainda há desafios e motivos para o estudo do instrumento. O mandado
de segurança, desde a sua criação pela Constituição de 1934, vem se desenvolvendo e
se aperfeiçoando quanto a pontos essenciais de sua constituição. Há uma tentativa de
aproximar e ajustar o writ brasileiro as premissas da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e o Pacto de San José da Costa Rica, quanto a capacidade de “amparar toda
pessoa contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição
e pela lei”, vindo a corresponder à um instrumento simples, rápido e efetivo para a proteção
em face de tais atos ou mesmo para a proteção em face de iminente ameaça de que estes
se consolidem18.

16
MARINONI, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.
[E-book]. local. RB-8.1.
17
OAB. Processo n. 49.0000.215.009467-9/Conselho Pleno. Código Brasileiro de Processo Constitucional.
Relatório. As Bases Doutrinárias do Anteprojeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Conselheiro
Federal Sérgio Eduardo Freire Miranda. 2015 Disponível em: https://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-co-
digo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022.
18
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Mandado de segurança: o incessante aperfeiçoamento do instituto. In:
PESSOA, Paula; CREMONESE, Cleverson (org.); MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.).
14| William Soares Pugliese - Camila Soares Cavassin Jayme

O mandado de segurança constitui garantia constitucional para a tutela de direitos


fundamentais relativos às liberdades públicas, ou seja, é a manifestação do cidadão do
seu direito de resistência contra atos ilegais e abusivos praticados pelo poder público19.
Envolve-se com o processo constitucional como “instrumento de tutela específica para a
contenção e limitação da atividade estatal”20.

Questiona-se então, o que seriam os direitos fundamentais tutelados pelo remédio


constitucional do mandado de segurança. Indica-se o precioso e pontual conceito de que
“Os direitos fundamentais (Grundrechte) constituem, na atualidade, o conceito que engloba
os direitos humanos universais e os direitos nacionais dos cidadãos”21.

São direitos fundamentais não só a liberdade negativa destinada a impedir a inge-


rência do Estado, como também os direitos de natureza sociais que autorizam o cidadão
a exigir prestações positivas do Estado, bem como os direitos de natureza difusa, como
os direitos das crianças e do meio ambiente22. Portanto, os direitos fundamentais são um
grupo de direitos que não podem ser violados pelo Estado, por nenhuma das esferas do
Poder Público, ou pelos próprios particulares23.

Recorde-se que o mandado de segurança está previsto na categoria de direi-


to e garantia fundamental, individual e coletivo, instituído pela Constituição da República
Federativa do Brasil em seu artigo 5º, incisos LXIX e LXX, para proteção de direito líquido e
certo, quando uma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribui-
ções do Poder Público forem responsáveis pela ilegalidade ou abuso de poder, desde que
não sendo o caso de habeas corpus ou habeas data24.

Para compreensão do mandado de segurança, imprescindível a compreensão do


que consiste o direito líquido e certo e em que consiste ilegalidade ou abuso de poder. Os
conceitos não foram definidos expressamente na norma. Parte da doutrina afirma que direito
líquido e certo é aquele direito compreendido como “incontestável, com fato certo e legal-

Processo constitucional. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-45.1.
19
MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de segurança individual e coletivo: comen-
tários à Lei 12.016/2009. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RL-1.2.
20
MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de segurança individual e coletivo: comen-
tários à Lei 12.016/2009. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RL-1.2.
21
ABBOUD, Georges. Processo constitucional. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-4.6.
22
ABBOUD, Georges. Processo constitucional. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-4.5.
23
ABBOUD, Georges. Processo constitucional. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-4.6.
24
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.
htm. Acesso em: 27 ago. 2022.
O mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro... |15

mente fundamentado”25. O conceito, propriamente dito, é até hoje fonte de debates, inclusive
pela discordância quanto à sua natureza, se direito material ou processual. O objetivo é de
se tutelar fato sobre o qual não se reste dúvida, que deve ser provado documentalmente26.

Mais corriqueiramente o direito líquido e certo é tido na doutrina e jurisprudência


como o direito provado documentadamente. Direito líquido e certo é aquele que não ne-
cessita de dilação probatória para sua comprovação27. Há, contudo, crítica com relação a
expressão direito líquido e certo. Há doutrina que diga que “Na verdade, não é ‘o direito’ que
deverá ser ‘líquido e certo’. O texto legal sempre o é”28. Mas independente dela, a interpreta-
ção e o conceito convergem em considerar o direito líquido e certo como “ato considerado
ilegal ou abusivo é aquele que pode ser demonstrado de plano, mediante prova meramente
documental. Tutela-se um direito evidente”29.

Quanto a ilegalidade ou abuso do poder, o poder do Estado deve estar assentado na


soberania popular e na dignidade humana, cabendo no dualismo entre as normas de direito
público e direito privado se estabelecer e fortalecer os direitos fundamentais do cidadão no
aspecto privado, mas também destacar-se e detalhar-se as atribuições e os limites do po-
der público30. Portanto, a ilegalidade a ser apurada no ato indicado como coator é a atuação
do representante do Poder Público em desconformidade com a lei, ou com abuso de poder.

Passado pelo plano material do mandado de segurança, veja-se seu aspecto pro-
cessual. Algumas normas processuais quanto ao julgamento do mandado de segurança
constam da Constituição da República Federativa do Brasil. Nos termos do artigo 102,
inciso I, alínea d), o mandado de segurança contra atos do Presidente da República, das
Mesas da Câmaras dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do
procurador-geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal serão de competência
de julgamento do Supremo Tribunal Federal. Cabe também ao Supremo Tribunal Federal o

25
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo. Comentários ao art. 1º. In: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel et al.
Comentários à Lei do Mandado de Segurança. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. [E-book]. local.
RB-2.3.
26
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo. Comentários ao art. 1º. In: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel et al.
Comentários à Lei do Mandado de Segurança. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. [E-book]. Local.
RB-2.3.
27
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão RMS 36954 AgR/DF. Primeira Turma. Relator(a): Min. Luiz Fux.
Julgamento: 29 maio 2020. DJe: 17/06/2020. p. 10. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/
search/sjur426546/false. Acesso em: 30 ago. 2022.
28
MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de segurança individual e coletivo: comen-
tários à Lei 12.016/2009. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RL-1.2.
29
MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de segurança individual e coletivo: comen-
tários à Lei 12.016/2009. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RL-1.2.
30
ABBOUD, Georges. Processo constitucional. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-4.5.
16| William Soares Pugliese - Camila Soares Cavassin Jayme

julgamento em recurso ordinário em mandado de segurança decidido em única instância


pelos Tribunais Superiores, conforme inciso II, alínea a), do mesmo artigo31.

Outra regra processual constitucional estabelecida é a de que as decisões denegató-


rias de mandado de segurança proferidas pelo Tribunal Superior Eleitoral não se enquadram
na regra de irrecorribilidade do artigo 121, §3º, da Constituição. É, também, expressamente
cabível recurso quando os Tribunais Regionais Eleitorais denegarem mandado de segurança32.

Para além dessas previsões, as demais regras processuais que disciplinam o man-
dado de segurança estão previstas na Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 200933. É impor-
tante registrar que o mandado de segurança, como instrumento de amparo aos direitos
fundamentais, tem caráter processual e é essencialmente uma ação. Uma ação consti-
tucional como a ação popular, o mandado de injução, o habeas data e o habeas corpus,
dentre outras34.

Em apertado resumo, o processamento e julgamento do mandado de segurança,


nos termos da Lei n. 12.016/2009, envolve a apresentação de petição inicial (artigo 6º),
dentro do prazo decadencial de 120 dias da ciência do ato impugnado (artigo 23), quando a
autoridade coatora será notificada para prestar informações no prazo de 10 dias (artigo 7º,
inciso I), bem como será cientificado o órgão de representação judicial da pessoa jurídica
interessada (artigo 7º, inciso II). Poderá o juiz determinar liminarmente a suspensão do ato
coator, medida que ficará vigente até a prolação do julgamento (artigo 7º, inciso III e §§).
O Ministério Público será ouvido (artigo 12), quando então o feito estará com instrução
completa e apto para julgamento (artigo 12, parágrafo único).

A seguir, inicia-se a análise do objetivo central deste artigo, que é estabelecer o


paralelo entre o presente e o futuro do mandado de segurança.

31
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.
htm. Acesso em: 27 ago. 2022..
32
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.
htm. Acesso em: 27 ago. 2022.
33
BRASIL. Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo e
dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12016.htm. Acesso em: 27 ago. 2022.
34
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Mandado de segurança: o incessante aperfeiçoamento do instituto. In:
PESSOA, Paula; CREMONESE, Cleverson (org.); MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.).
Processo constitucional. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-45.2.
O mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro... |17

4 COMPARAÇÃO NORMATIVA DA LEI N. 12.016, DE 7 DE


AGOSTO DE 2009 VERSUS ANTEPROJETO DO CÓDIGO
BRASILEIRO DE PROCESSO CONSTITUCIONAL
Neste último tópico, propõe-se a análise da possível e provável transição da Lei
n. 12.016/2009 para o Código de Processo Constitucional. O primeiro ponto a ser ob-
servado é que, em qualquer dos casos, é imprescindível a consideração e aplicação do
direito processual civil35. Justamente pela lembrança de que o mandado de segurança é
essencialmente processual, o Código de Processo Civil não poderá deixar de alcançá-lo. A
doutrina recorda que em verdade seria absolutamente impossível processar um mandado
de segurança somente com as normas da legislação especial, sem a aplicação do Código
de Processo Civil36.

Na atual e ainda vigente Lei n. 12.016/2009 várias são as referências expressas de


aplicação do Código de Processo Civil (de 1973), como: o artigo 6º, §5º quanto a negativa
do mandado nos casos de extinção do processo sem resolução do mérito; o artigo 7º,
§1º quanto ao cabimento do recurso de Agravo de Instrumento em face de decisão que
concede ou denega a liminar; artigo 7, §5º, quanto as vedações relacionadas à concessão
de liminares se estenderem à tutela antecipada; e artigo 24, quanto as regras de litiscon-
sórcio37. As remissões continuam válidas, porque as normas previstas no Código de 1973
continuam presentes no Código de 2015.

No Anteprojeto do Código de Processo Constitucional, continuam presentes as


remissões ao uso e aplicação do Código de Processo Civil (ainda de 197338), para o man-
dado de segurança, vide: artigo 20, §6º, que mantém a disposição quanto a negativa do
mandado nos casos de extinção do processo sem resolução do mérito; artigo 21, §1º,

35
“O mandado de segurança precisa ser visto, pois, como uma ação, a que corresponde um processo subordina�-
do às regras do processo civil comum, não podendo ser tratado, por conseguinte, como medida de cabimento
excepcional, a despeito dos pressupostos a que deve atender, como ocorre, aliás, com referência a tantas outras
ações” MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Mandado de segurança: o incessante aperfeiçoamento do institu-
to. In: PESSOA, Paula; CREMONESE, Cleverson (org.); MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang
(coord.). Processo constitucional. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-45.2.
36
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Mandado de segurança: o incessante aperfeiçoamento do instituto. In:
PESSOA, Paula; CREMONESE, Cleverson (org.); MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang (coord.).
Processo constitucional. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book]. local. RB-45.2.
37
BRASIL. Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo e
dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12016.htm. Acesso em: 27 ago. 2022.
38
Como o Anteprojeto é anterior ao atual Código de Processo Civil de 2015, constaram nas remissões os dis�-
positivos pertinentes ao Código de 1973, os quais, provavelmente serão atualizados no decorrer da revisão e
aprovação do texto, para atualização aos dispositivos correspondentes no atual Código de 2015.
18| William Soares Pugliese - Camila Soares Cavassin Jayme

que mantém a previsão de cabimento do recurso de agravo de instrumento em face de


decisão que concede ou denega a liminar; artigo 21, §4º que repete a norma de vedações
relacionadas à concessão de liminares se estenderem à tutela antecipada; e artigo 38, que
novamente faz remissão as regras de litisconsórcio39.

Concluída a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil no processamento


do mandado de segurança, passa-se a análise das alterações legislativas propostas. Mas,
a verdade é que, da leitura da Lei n. 12.016/2009 e do Anteprojeto em estudo, pouco foi
alterado e a maior parte das disposições se mantêm e se repetem idênticas.

Uma primeira, e se não a mais significativa alteração legislativa que pode ser indi-
cada aparece já nos primeiros dispositivos, quanto ao conceito expresso de direito líquido
e certo. A Lei n. 12.016/2009 não dispôs de forma expressa o que é direito líquido e certo,
incumbindo na atualidade a doutrina e a jurisprudência em fazê-lo, conforme já sustentado.
O Anteprojeto se preocupou em expressamente registrar, no artigo 15, §1º que se caracte-
riza como direito líquido e certo aquele que se origina de um fato cuja ocorrência é, desde
logo, provada pelo impetrante, através de prova documentada. Ou seja, direito líquido e
certo é aquele direito que desde já é documentalmente provado.

O segundo ponto, diz respeito à vedação atual de interposição de mandado de


segurança quando possível a interposição de recurso administrativo com efeito suspensi-
vo, sem a exigência de caução (artigo 5º, inciso I, da Lei n. 12.016/2009). A proposta de
nova redação mantém a vedação, com exceção, quanto a possibilidade de o impetrante
indicar expressamente que renuncia ao direito de recorrer na esfera administrativa ou que
desiste do recurso já interposto, devendo fazer prova do alegado (artigo 19, inciso I, do
Anteprojeto). A redação como proposta é acertada para garantir o direito de acesso ao
judiciário, reconhecido no princípio da inafastabilidade da jurisdição, nos termos do artigo
5º, inciso XXXV, da Constituição do Brasil40.

No que diz respeito ao argumento de ilegitimidade passiva da autoridade coatora,


o dispositivo que o previa foi vetado (artigo 6º, §4º, da Lei n. 12.016/2009). Mas, sua
previsão vem novamente ser proposta e discutida na proposta do Código, que dispõe a
possibilidade de a autoridade coatora indicada na inicial alegar a sua ilegitimidade, quando
desde já deverá indicar a autoridade coatora correta, momento em que será oportunizado

39
OAB. Processo n. 49.0000.215.009467-9/Conselho Pleno. Código Brasileiro de Processo Constitucional.
Relatório. As Bases Doutrinárias do Anteprojeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Conselheiro
Federal Sérgio Eduardo Freire Miranda. 2015 Disponível em: https://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-co-
digo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022. p. 16.
40
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.
htm. Acesso em: 27 ago. 2022.
O mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro... |19

pelo magistrado ao impetrante a emenda à inicial com a correção do polo passivo, desde
que não esgotado o prazo decadencial. A alteração do polo passivo será possível mesmo
que implique alteração da competência, quando o magistrado irá remeter o feito ao juízo
competente, sem prejuízo dos atos já praticados (artigo 20, §§ 4º e 5º, do Anteprojeto).
A expressão vem de encontro com o que hoje está previsto no artigo 339, do Código de
Processo Civil41.

Quanto as medidas liminares, a atual legislação estabelece a proibição de conces-


são de liminar pertinente a compensação de crédito tributários, entrega de mercadorias e
bens provenientes do exterior, reclassificação ou equiparação de servidores público bem
como quanto a concessão de aumento ou extensão de vantagens ou pagamentos de qual-
quer natureza (artigo 7º, §2º, da Lei n. 12.016/2009). Essa limitação ao poder de decisão
magistrado não consta prevista na proposta do Anteprojeto.

A previsão (artigo 14, §1º, da Lei n. 12.016/2009) de obrigatoriedade de duplo grau


de jurisdição, através do reexame necessário, também denominado de remessa necessá-
ria, restou mantida para os casos de concessão da segurança. A novidade na proposta está
na possibilidade de sua dispensa, para os casos em que a lei assim prever, ou para quan-
do a decisão estiver de acordo com Súmula do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal
Superior (artigo 28, §1º, do Anteprojeto). Novamente a proposta está em conformidade
com os dispositivos processuais civis, que estipulam o descabimento da remessa neces-
sária se a sentença recorrida estiver fundada em precedentes (artigo 496, §4º, incisos
de I a IV42). Aqui, acrescenta-se o parêntesis quanto a importância da uniformização da
jurisprudência, ou seja, da observação dos precedentes, também para os casos afetos ao
processo constitucional.

Quanto ao julgamento do mandado de segurança de competência originária dos


tribunais, inicialmente era estipulada a possibilidade de defesa oral na sessão do julga-
mento (artigo 16, da Lei 12.016/2009), sem distinções. O dispositivo foi alterado pela Lei
n. 13.676, de 2018, passando a ser possível a sustentação oral somente no julgamento
do mérito ou do pedido liminar, em consonância com o que dispõe o Novo Código de
Processo Civil de 2015, em seu artigo 937, inciso VI. A proposta do Anteprojeto, autuado
em setembro de 2015, anterior, portanto, a vigência do Código de Processo Civil de 2015
está defasado neste aspecto, porque reproduz a lei de 2009 sem considerar a alteração
legislativa de 2015 e 2018 (artigo 30, do Anteprojeto).

41
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República,
2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em:
27 ago. 2022.
42
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República,
2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em:
27 ago. 2022.
20| William Soares Pugliese - Camila Soares Cavassin Jayme

Por fim, na atual norma tem-se fixado o descabimento de interposição de recurso


de Embargos infringentes e de condenação ao pagamento de honorários advocatícios, sem
prejuízo, no entanto, de aplicação de sanções no caso de litigância de má-fé (artigo 25,
Lei n. 12.016/2009). Questionado, o dispositivo foi declarado constitucional pelo Supremo
Tribunal Federal na ADI 4.296-DF43. No Anteprojeto, foi mantida a disposição que prevê a
impossibilidade do recurso de Embargos infringentes, sem qualquer menção ao descabi-
mento da sucumbência ou ressalva quanto a litigância de má-fé (artigo 39, do Anteprojeto).

5 CONCLUSÃO
Em que pese a grande importância da iniciativa e instauração de um Código de
Processo Constitucional Brasileiro, indicado pela necessidade de esquematização e com-
pilação dos procedimentos constitucionais no nosso ordenamento jurídico, nesse estudo
comparativo entre a norma vigente e a proposta apurou-se que muito pouco se propõem
alterar no procedimento que já conhecemos especificamente quanto ao processo constitu-
cional do mandado de segurança.

Salvo alguns ajustes necessários para adequação e compatibilidade da proposta,


quando da vigência do Código de Processo Civil de 1973, com o atual Código de Processo
Civil de 2015, nos parece que as alterações e acréscimos sugeridos são pertinentes para a
melhor técnica processual do remédio constitucional.

Conclui-se que a proposta de alteração legislativa do mandado de segurança abran-


gido pelo Anteprojeto do Código Brasileiros de Processo Civil é pontual, certeira e produti-
va, sendo assim bem-vinda na comunidade jurídica.

REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Processo constitucional. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book].

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:


Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 27 ago. 2022.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência
da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/
l13105.htm. Acesso em: 27 ago. 2022.

43
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.296 Distrito Federal.
Plenário. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgado em 09 jun. 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/
processos/downloadPeca.asp?id=15348211716&ext=.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022.
O mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro... |21

BRASIL. Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009. Disciplina o mandado de segurança individual e co-
letivo e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12016.htm. Acesso em: 27 ago. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.296 Distrito Federal.
Plenário. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgado em 09 jun. 2021. Disponível em: https://portal.stf.
jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15348211716&ext=.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão RMS 36954 AgR/DF. Primeira Turma. Relator(a): Min. Luiz
Fux. Julgamento: 29 maio 2020. DJe: 17/06/2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/
pages/search/sjur426546/false. Acesso em: 30 ago. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Súmula 266. Não cabe mandado de segurança contra lei em tese.
Sessão plenária de 13/12/1963. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-su-
mula266/false. Acesso em: 27 ago. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão AgRg no Recurso Especial n. 1.119.872 – RJ


(2009/0015615-7). Relator: Ministro Benedito Gonçalves. DJe: 30/11/2010. Disponível em: https://
processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200900156157&dt_publica-
cao=30/11/2010. Acesso em: 27 ago. 2022.

CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo. Comentários ao art. 1º. In: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel et al.
Comentários à Lei do Mandado de Segurança. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. [E-book].

MARINONI, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. São Paulo: Thomson Reuters,
2021. [E-book].

MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de segurança individual e coletivo:
comentários à Lei 12.016/2009. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book].

MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Mandado de segurança: o incessante aperfeiçoamento do ins-


tituto. In: PESSOA, Paula; CREMONESE, Cleverson (org.); MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo
Wolfgang (coord.). Processo constitucional. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021. [E-book].

MINISTRO Luiz Fux encerra semestre judiciário com mais de 7 mil processos julgados em sessões
colegiadas. STF, 1 ago. 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/internacional/content.asp?i-
d=489908&ori=1&idioma=pt_br. Acesso em: 27 ago. 2022.

MITIDIERO, Daniel. Processo constitucional: do controle ao processo, dos modelos ao sistema. São
Paulo: Thomson Reuters, 2022. [E-book].

OAB. Processo n. 49.0000.215.009467-9/Conselho Pleno. Código Brasileiro de Processo Constitucional.


Relatório. As bases doutrinárias do Anteprojeto da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Conselheiro
Federal Sérgio Eduardo Freire Miranda. 2015 Disponível em: https://www.oab.org.br/arquivos/anteproje-
to-codigo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf. Acesso em: 27 ago. 2022.

SILVA, Elcio Domingues da; JAYME, Camila Soares Cavassin. A relevância dos princípios na cons-
trução, interpretação e aplicação do Código de Processo Constitucional Brasileiro. In: CUNHA, José
Sebastião Fagundes (coord.). Elementos para um Código de Processo Constitucional Brasileiro.
Londrina: Thoth, 2022.
APONTAMENTOS SOBRE UMA
ADEQUADA INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL

William Soares Pugliese1


Marcelo Fonseca Gurniski2

Sumário: 1. Introdução. 2. Voluntarismo jurídico e decisão judicial. 3. A diferença entre


interpretar o Direito e decidir com base no voluntarismo. 4. Sobre uma adequada interpre-
tação constitucional. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente artigo tem como objetivo discutir premissas para que a interpretação consti-
tucional seja realizada de forma adequada. O pano de fundo do texto é o cenário de judi-
cialização da política ou, visto sob outra perspectiva, de ativismo judicial. Em verdade, o
exercício do poder jurisdicional está condicionado à motivação racional das decisões, o
que pressupõe a exposição de fundamentos jurídicos que fundamentem aquilo que foi deci-
dido. Para tanto, o artigo é estruturado nos seguintes tópicos. Em primeiro lugar, trata-se do
voluntarismo judicial e da decisão. Em seguida, examina-se a diferença entre interpretação
e decisão. Por fim, questiona-se o que seria uma adequada interpretação constitucional.

Palavras-chave: Interpretação. Processo constitucional. Judicialização da política.

1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, com seu texto e fun-
damento de validade, trouxe um novo modelo de Estado para o cenário nacional. Para

1
Pós-doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor e mestre pelo Programa de
Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vice-coordenador do Programa de Pós-
graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Professor substituto de Direito
Processual Civil da UFPR. Coordenador da Especialização de Direito Processual Civil da Academia Brasileira
de Direito Constitucional (ABDConst). Advogado. E-mail: william@pxadvogados.com.br
2
Doutorando do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro
Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil/PR). Mestre pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em
Direitos Fundamentais e Democracia pelo UniBrasil/PR. E-mail: marcelo@ng.adv.br
24| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

sua concretização, fez-se necessária uma mudança do perfil dos juristas, que precisaram
enfrentar a (re)construção do horizonte axiológico na hercúlea tarefa da interpretação cons-
titucional da Carta e de toda a legislação infraconstitucional que a ela devia se submeter.
Além disso, aperfeiçoaram sua formação, naquilo que os colocavam refratários às prescri-
ções constitucionais3.

A centralidade do Supremo Tribunal Federal e do Poder Judiciário, como um todo,


na tomada de decisões sobre grandes questões nacionais vêm sendo alvo de objeções e
estão a demonstrar a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo.
No caso brasileiro, isto se torna ainda mais complexo em virtude da extensão e do volume4.
Em síntese, questões de larga repercussão política e social estão sendo decididas por ór-
gãos do Poder Judiciário, não pelas instâncias políticas tradicionais – o Poder Legislativo e
o Poder Executivo. Por consequência, a judicialização envolve uma transferência de poder
para os juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e
no modo de participação da sociedade e na própria forma de interpretação do Direito.

Esse fenômeno expressa uma tendência mundial que, no caso brasileiro, encon-
tra-se favorecido pelo modelo institucional de redemocratização do país que fortaleceu e
expandiu o Poder Judiciário e aumentou a demanda por justiça na sociedade. O fenômeno
também se explica pela constitucionalização abrangente, que levou ao texto constitucional
inúmeras matérias que antes eram exclusivas do processo político e da legislação ordiná-
ria; e pelo controle de constitucionalidade, que permite que qualquer questão, política ou
moralmente relevante, possa ser levada ao Judiciário, em especial o STF5.

Evidente que a judicialização da política não decorreu de uma opção ideológica,


filosófica ou metodológica do Judiciário brasileiro, mas como uma circunstância que de-
correu do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade
política (juriscentrismo)6. De outro turno, o ativismo judicial é uma forma específica e ativa
de interpretar a Constituição, ampliando o seu sentido e alcance. Geralmente o ativismo
judicial “se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descola-

3
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009. p. 24-25.
4
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009.
5
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009. p. 24-25.
6
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |25

mento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam
atendidas de maneira efetiva”7.

A constatação de que o Poder Judiciário brasileiro está adotando postura evidente-


mente ativista é feita por Barroso, que aponta casos de violação da Constituição, como o
caso da fidelidade partidária8. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal declarou que a vaga
no Congresso pertence ao partido político9, com fundamento no princípio democrático.
Gerou-se, assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das explicita-
mente previstas no texto constitucional. Postura idêntica apareceu no julgamento do feito
que tratou da extensão da vedação do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com
a publicação de súmula vinculante após o julgamento de um único caso, em que a decisão
do Supremo Tribunal Federal assumiu uma “conotação quase-normativa”10.

O ativismo judicial possui uma dimensão positiva, de um juiz ativista que busca
proteção aos direitos fundamentais e garantias da supremacia da Constituição, adotando
postura concretizadora frente a abstração dos princípios constitucionais. Assim, a “realiza-
ção da Constituição passa pela atividade intelectual de interpretar/aplicar conceitos e cate-
gorias jurídicas de elevado grau de generalidade e abstração”11 sendo necessário, segundo
Teixeira, envolver competências institucionais que tocam a outros Poderes.

Todavia, ao contrário da visão concebida no Brasil, fundada na premissa de que


o ativismo é uma tendência mundial, há que se perceber a gravidade do problema que tal
comportamento gera às jovens democracias constitucionais, especialmente de ultrapassar
os limites estabelecidos para o exercício do poder distribuído pela Constituição12.

Outro problema do ativismo brasileiro é a ausência de racionalidade na elaboração


das decisões judiciais, que fogem de qualquer metodologia ou critério capaz de “conferir a

7
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009.
8
Sobre o tema ver: BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.
Revista de Direito do Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009.
9
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 26603-Distrito Federal. Plenário. Relator: Min.
Celso de Mello. Julgado em 04 de outubro de 2007. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.
asp?incidente=2513846. Acesso em: 29 ago. 2022.
10
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009. p. 26.
11
TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão polícia.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 48-49. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/rdgv/a/dr6L3MVvFz4MsrCShHytnrQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2023.
12
TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O ativismo judicial na débâcle do sistema político: sobre
uma hermenêutica da crise. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 11, n. 2, p. 751-772, 2016. p.
764. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/22912. Acesso em: 29 ago. 2022.
26| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

mínima coerência e integridade do ordenamento jurídico”13. Assim sendo, a concretização


da justiça pretendida pelo voluntarismo é capaz de alterar o poder decisório no autoritaris-
mo judicial, pois inviabiliza o controle das decisões.

É da democracia que as decisões judiciais sejam passíveis de controle, o que, por


óbvio, não conduz à tese de que ao julgador é proibido interpretar. Assim, se o direito é com-
posto por regras e princípios, guiados por uma constituição, afirmar que os textos jurídicos
suscitam dúvidas por suas vaguezas e ambiguidades não deve ser tomado como novidade14.

Assim, a discricionariedade a ser criticada é a que converte os juízes em legisla-


dores, e, para além disso, esse “poder discricionário” que propicia a “criação” do próprio
objeto de “conhecimento”, típica manifestação do positivismo. Em verdade, o exercício do
poder jurisdicional está condicionado à motivação racional das decisões, o que pressupõe
a exposição de fundamentos jurídicos que fundamentem aquilo que foi decidido. Neste
ponto, registra-se que há diferença entre o ativismo e a formação de precedentes – tema
que não será examinado neste texto, de forma explícita.

Se não é possível definir se as interpretações são boas ou más, imprescindível é se


determinar qual a instituição mais competente para tomar decisões. A questão, há tempos,
não mais se limita a definir como devem decidir os juízes, impende-se também a definição
de como a decisão pode ser reconhecida como legítima, diante da comunidade política15.

O presente artigo tem a seguinte estrutura. Em primeiro lugar, trata-se do volun-


tarismo judicial e da decisão. Em seguida, examina-se a diferença entre interpretação e
decisão. Por fim, questiona-se o que seria uma adequada interpretação constitucional.

2 VOLUNTARISMO JURÍDICO E DECISÃO JUDICIAL


Os juízes, no Estado Moderno, sempre foram vistos como sendo a boca da lei. Por
outro lado, a discricionariedade era admitida nas incertezas designativas, isto é, na zona de
penumbra das leis16. Trata-se de uma crítica decorrente da ruptura entre a questão de fato
e a questão de direito, vale dizer, a separação entre facticidade e validade. Em realidade,

13
TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O ativismo judicial na débâcle do sistema político: sobre
uma hermenêutica da crise. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 11, n. 2, p. 751-772, 2016. p.
765. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/22912. Acesso em: 29 ago. 2022.
14
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 102.
15
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Teorias interpretativas, capacidades institucionais
e crítica. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 19, n. 19, p. 131-168, jan./jun. 2016. p. 161-162.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/691. Acesso em: 29
ago. 2022.
16
HART, Herbert L. A. The concept of law. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |27

sob o pretexto da superação de um positivismo fundado no sistema de regras, surgiram


inúmeras teses cujo modelo interpretativo foi calcado em fórmulas e/ou procedimentos,
“cuja função é(ra) descobrir os valores presentes (implícita ou explicitamente) no novo
direito, ‘eivado de princípios e com textura aberta’”17.

Ao contrário do pensamento de parte expressiva de nossa doutrina, que acolhe a


discricionariedade judicial como um elemento do direito, direito e discricionariedade não
habitam o mesmo lócus. Se assim se admitisse, a decisão se pautaria por critérios não
jurídicos, em um ambiente “do antidireito – ainda que se fundamentasse por ‘justo’”18.

O ponto principal não está no exegetismo, no positivismo fático e nem nas teorias
de argumentação jurídica, enxergadas como um avançar da retórica e como um modo de
“corrigir as insuficiências do direito legislado”. A questão de “como se interpreta” e “como
se aplica” situa-se no sujeito da modernidade. Apenas na modernidade, com o iluminismo,
é que ocorre a ruptura do objetivismo. A partir daí se fundamenta a explicação na razão do
homem e seu subjetivismo, não se tratando mais de essência nem se sujeitando a estru-
turas. No século XX, essa subjetividade foi suplantada pelo “giro linguístico”19, onde o fun-
damento deixa de ser o sujeito, sendo o compreender um existencial da própria condição

17
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 103-104.
18
ABBOUD, Georges. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por
Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. Revista de Processo, Distrito Federal, v. 41, n. 251, jan. 2016.
Disponível em: https://www.academia.edu/download/51903609/ABBOUD-Georges_Discricionariedade-e-
penhora.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
19
Com o giro linguístico acontece uma mudança radical na forma de entender o conhecimento. “Refletindo sobre
o ato inicial de nomear, quando o primeiro homem deu o nome a uma árvore ao vê-la pela primeira vez, aquele
nome passou a significar alguma coisa em determinado contexto linguístico. Aquela árvore necessariamente
não passou a existir porque lhe foi conferida uma denominação, tampouco a sua nomeação estaria vinculada a
uma essência ou ideal daquela árvore, mas o nome árvore, em determinado contexto passou a significar algo,
uma imagem inconsciente em determinada comunicação intersubjetiva. Destarte, quando se fala a palavra
árvore diante de alguém, esse alguém cria uma imagem inconsciente de determinada árvore, baseado em
suas memórias acerca daquela representação linguística desde quando ele passou a ter acesso a um mundo
linguístico, repleto de significações e interpretações acerca da palavra árvore. [...] A linguagem aqui não é
mais um instrumento, mas verdadeiro ‘fio condutor’ e se torna imperioso observar, sobretudo, que sujeito/
objeto-árvore estão inseridos em um contexto linguístico, um mundo linguístico que dita as possibilidades de
determinada interlocução e do conhecimento acerca de algo. Ludwig Wittgenstein defendia a ideia de que não
existia uma coisa em si, um mundo em si, mas sim um mundo linguístico. Assim a linguagem deixa de ser um
instrumento de comunicação e passa a ser condição de possibilidade para a constituição do conhecimento”
(LOPES, Tomás Jobin Coutinho. Filosofia metafísica-transcendental, fenomenologia e giro linguístico: reflexões
sobre hermenêutica clássica e filosófica. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4256, 25 fev. 2015.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32380. Acesso em: 29 ago. 2022).
28| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

humana, portanto de dimensão ontológica. O objeto da cisão ocorrida no campo da filoso-


fia trazida pelo giro ontológico-linguístico, é onde o fundamento deixou de ser o sujeito20.

Portanto, quando uma decisão judicial é fundamentada no “livre convencimento”, o


magistrado comete um grave erro, porquanto acreditar que o sentido da lei está na mente
do jurista é uma ideia equivocada. Com a ocupação da filosofia pela linguagem, os sentidos
não estão nas coisas ou mesmo na mente das pessoas, mas sim na intersubjetividade, vale
dizer, “na capacidade de o homem se relacionar com seu semelhante”21.

Assim, o ativismo judicial brasileiro resulta de todo ato decisório fundado na von-
tade do juiz e, portanto, a partir das convicções pessoais, escolhas políticas, argumentos
morais, enfim, elementos metajurídicos22 que se deparam com o problema da diferença en-
tre atos de “escolher” e “decidir”, pois se o ato de escolha é dependente da subjetividade,
das preferências do sujeito, o ato de decidir, ao contrário, “se dá na intersubjetividade, uma
vez que toda decisão é antecipada por algo, que é a compreensão daquilo que a comuni-
dade política constrói como Direito”23. Portanto, “qualquer fórmula hermenêutico-interpre-
tativa solipsista dependerá de um subjetivo individual, como que a repristinar a fonte do
positivismo por meio do nominalismo”24. Está-se diante de rupturas paradigmáticas locais
que fundamentam o conhecimento em diferentes períodos da história25. Suprimir o livre
convencimento não equivale à proibição de interpretar. “Não se reproduz sentido nem se o
atribui livremente”. Streck lembrando Gadamer assevera que: “antes de dizer algo sobre o
texto deve-se deixar que o texto diga algo”26.

20
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 104.
21
KREMER, Bianca; PARAGUASSU, Mônica. Hermenêutica, jurisdição e discricionariedade judicial: desafios tra�-
zidos pela crise dos métodos de interpretação jurídica no Brasil. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v.
13, n. 1, p. 131-160, jan./abr. 2017. p. 157. Disponível em: https://seer.atitus.edu.br/index.php/revistadedirei-
to/article/view/1153/1101. Acesso em: 10 ago. 2023.
22
TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O ativismo judicial na débâcle do sistema político: sobre
uma hermenêutica da crise. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 11, n. 2, p. 751-772, 2016. p.
765. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/22912. Acesso em: 29 ago. 2022.
23
TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O ativismo judicial na débâcle do sistema político: sobre
uma hermenêutica da crise. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 11, n. 2, p. 751-772, 2016. p.
765. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/22912. Acesso em: 29 ago. 2022.
24
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 105.
25
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015.
26
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |29

Há uma incompatibilidade entre o exercício da função jurisdicional com a discri-


cionariedade. “O Judiciário é, pois, o oráculo do Direito, o órgão encarregado de dar a
última palavra sobre as interpretações jurídicas. Não compete a ele realizar escolhas sobre
indiferentes jurídicos, mas dizer [...] qual é a vontade do Direito”27, pois “crer, em uma
multiplicidade de respostas, indiferentes juridicamente, é ignorar quão denso é o Direito em
sua totalidade e preterir a dimensão de um direito em jogo”28.

Em uma democracia, a decisão judicial não depende de critérios subjetivos, mas


“de parâmetros e amarras próprios da democracia constitucional, ou seja: Constituição,
lei, precedentes, doutrina, jurisprudência etc.”29. Nesse modelo, não interessa o humor, o
senso de justiça e outros critérios de índole subjetiva do julgador, “mas sim sua correta
interpretação dos diversos elementos jurídicos que detêm normatividade em face das pe-
culiaridades do caso concreto”30.

A discricionariedade judicial, no positivismo jurídico, era um destino que não pode-


ria ser controlado pelos mecanismos teóricos da ciência do direito. A solução, assim, era
simples: “deixemos de lado a razão prática (discricionariedade) e façamos apenas episte-
mologia (ou, quando esta não der conta, deixe-se ao alvedrio do juiz – eis o ovo da ser-
pente gestado desde a modernidade)”31. Referida discricionaridade verifica-se no esquema
sujeito-objeto obsoleto, na “subjetividade assujeitadora que remete a decisionismos, nos
quais o sujeito se apropria dos sentidos e se torna ‘dono’ da Constituição, conferindo a
interpretação que melhor lhe aprouver”32, reforçando a natureza solipsista, abandonando o
caráter democrático dessas decisões.

27
MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria dos princípios e função jurisdicional. Revista de Investigações
Constitucionais, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 135-164, maio/ago. 2018. p. 158-159. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/rinc/a/F66fxBT8QWWhKVQ7QyVm9Gn/?lang=pt. Acesso em: 29 ago. 2022.
28
COSTA, Cesar Augusto Nardelli. Perspectivas para a interpretação constitucionalista: a contribuição da her�-
menêutica filosófica na atualização crítica do direito. Direito Público, v. 8, n. 39, p. 29-68, maio/jun. 2011. p.
60. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/ direitopublico/article/view/1933. Acesso em:
29 ago. 2022.
29
ABBOUD, Georges. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por
Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. Revista de Processo, Distrito Federal, v. 41, n. 251, jan. 2016.
Disponível em: https://www.academia.edu/download/51903609/ABBOUD-Georges_Discricionariedade-e-
penhora.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
30
ABBOUD, Georges. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por
Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. Revista de Processo, Distrito Federal, v. 41, n. 251, jan. 2016.
Disponível em: https://www.academia.edu/download/51903609/ABBOUD-Georges_Discricionariedade-e-
penhora.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
31
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 107-108.
32
DELGADO, Ana Paula Teixeira. Perspectivas para a justiça constitucional em tempos de pós-positivismo: legi�-
timidade, discricionariedade e papel dos princípios. Revista Interdisciplinar do Direito, Valença, v. 9, n. 1, p.
30| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

As decisões jurídicas, portanto, adquirirem “caráter democrático quando a discri-


cionariedade for substituída pelo próprio direito”33. Dito de outra forma, no momento em
que as decisões jurídicas forem pautadas por critérios jurídicos (interpretação com fulcro
na Constituição, leis e precedentes), podem ser objeto de um crivo racional que lhes ga-
rantem a legitimidade democrática. A decisão discricionária é “uma decisão de poder, não
jurídica, pautada na subjetividade do intérprete, logo, não pode ser subsumida a nenhuma
racionalidade jurídica”34.

Uma vez que o Direito não é uma mera racionalidade instrumental, há de superar
o “decido conforme minha consciência”35. Diante da constatação de que os “inimigos”
ainda são os mesmos: “filosofia da consciência e behaviorismo” e a relação Direito-Moral,
tem-se que questionar o empirismo jurídico. Contra o estado de exceção interpretativo, a
hermenêutica deve respeitar, de forma democrática e republicana, os limites interpretativos
de um texto jurídico.

3 A DIFERENÇA ENTRE INTERPRETAR O DIREITO E DECIDIR


COM BASE NO VOLUNTARISMO
Para Barroso, sérias objeções devem ser apostas ao ativismo judicial e se con-
centram nos riscos para a legitimidade democrática, na politização indevida da justiça e
nos limites da capacidade institucional do Judiciário. Assim, “os riscos da judicialização
e, sobretudo, do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a
falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias”36.

Evidenciando o caráter hermenêutico do Direito, constata-se o “crescimento no


grau de deslocamento do polo de tensão entre os poderes do Estado em direção à jurisdi-
ção (constitucional), pela impossibilidade de o legislativo (a lei) antever todas as hipóteses

239-254, maio 2018. p. 242. Disponível em: http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/view/516 Acesso


em: 29 ago. 2022.
33
ABBOUD, Georges. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por
Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. Revista de Processo, Distrito Federal, v. 41, n. 251, jan. 2016.
Disponível em: https://www.academia.edu/download/51903609/ABBOUD-Georges_Discricionariedade-e-
penhora.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
34
ABBOUD, Georges. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por
Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. Revista de Processo, Distrito Federal, v. 41, n. 251, jan. 2016.
Disponível em: https://www.academia.edu/download/51903609/ABBOUD-Georges_Discricionariedade-e-
penhora.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
35
STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão
judicial. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 65-74.
36
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009. p. 31.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |31

de aplicação”37. Ao tempo em que as demandas por direitos fundamentais crescem e que,


a partir de preceitos e princípios, o constitucionalismo invade o âmbito reservado à regu-
lamentação legislativa (liberdade de conformação do legislador), é imprescindível impor
limites ao “poder hermenêutico” dos juízes38.

Dito de outra forma, Streck consigna que:

Em tempos de enfrentamento entre Constitucionalismo Contemporâneo e positivis-


mo (em suas várias correntes) e tudo o que isso representa para uma sociedade
díspar e carente de realização de direitos como a brasileira, é de fundamental im-
portância discutir o problema metodológico representado pela tríplice questão que
movimenta a teoria jurídica contemporânea em tempos de pós-positivismo: como
se interpreta, como se aplica e se é possível alcançar condições interpretativas ca-
pazes de garantir uma resposta correta (constitucionalmente adequada), diante da
(in)determinabilidade do Direito e da crise de efetividade da Constituição, problemá-
tica que assume relevância ímpar em países de modernidade tardia como o Brasil,
em face da profunda crise de paradigmas que atravessa o Direito, a partir de uma
dogmática jurídica refém do positivismo jurídico cujo resultado final é uma mixa-
gem de vários modelos jusfilosóficos, como as teorias voluntaristas, intencionistas,
axiológicas e semânticas, para citar apenas algumas, as quais guardam um traço
comum: o arraigamento ao esquema sujeito-objeto39.

A diminuição da liberdade de conformação do legislador, em prejuízo do acréscimo


do espaço destinado à justiça, torna indispensável edificarem-se as condições para um
controle democrático da aplicação judicial da lei. Assim, de um direito meramente legi-
timador das relações de poder passa-se a um direito com potencialidade de transformar
a sociedade. O direito, no Estado Democrático de Direito, “é sempre um instrumento de
transformação, porque regula a intervenção do Estado na economia, estabelece a obriga-
ção da realização de políticas públicas e dos direitos fundamentais-sociais”40.

Diante da revolução copernicana que perpassou o Direito a partir do segundo pós-


-guerra perquire-se resposta para a pergunta: “como construir um discurso capaz de dar con-

37
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 97.
38
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 97.
39
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 96-97.
40
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 97.
32| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

ta de tais perplexidades sem cair em decisionismos e discricionariedades do intérprete?”41.


Essa nova relação entre Direito-Moral e aquilo que tem sido denominado “autonomia do di-
reito” moveram o problema da legitimidade para outro ponto: as condições interpretativas42.

No caso da interpretação jurídica, observa-se peculiaridade, visto que ela deve se


manifestar na solução de um caso concreto, que, por sua vez, também tem seus conteúdos
veiculados por textos, que carregam uma dimensão do passado e que precisam ser inter-
pretados. A atividade do intérprete do direito não está vinculada apenas à adequação entre
a generalidade da lei e a especificidade concreta do caso; ela implica, também, mediação
temporal do evento passado expresso pelo texto da lei ou do caso em face da atualidade da
interpretação que se está a realizar43.

Sem texto não há interpretação. Da relação entre texto, norma e âmbito da norma,
descreve-se um movimento circular que vai da concretude do caso para a dimensão mais
abstrata do programa da norma. Não existe norma sem texto, não é possível, hermeneu-
ticamente, supor que a interpretação desconsidere o texto, até porque se assim o fizesse
estaria mediando o quê? Qual sentido? De algum modo, há um texto legal e/ou constitucio-
nal. O texto sempre vem primeiro44.

Consoante Streck, para superar o positivismo, é preciso superar também aquilo


que o sustenta: o primado epistemológico do sujeito (da subjetividade assujeitadora) e
o solipsismo teórico da filosofia da consciência (sem desconsiderar a importância das
pretensões objetivistas do modo-de-fazer-direito contemporâneo, que recupera, dia a dia,
a partir de enunciados assertóricos, o “mito do dado”). Apenas com a superação dessas
teorias que ainda apostam no esquema sujeito-objeto é que poderemos escapar das arma-
dilhas positivistas45.

A hermenêutica se apresenta nesse contexto como um espaço no qual se pode


pensar adequadamente uma teoria da decisão judicial, livre que está, tanto das amarras

41
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 98.
42
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 98-99.
43
STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão
judicial. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 91-92.
44
STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão
judicial. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 92.
45
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 111.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |33

desse sujeito onde reside a razão prática, como daquelas posturas que buscam substituir
esse sujeito por estruturas ou sistemas46.

É tarefa contínua que se mostre como persistem equívocos nas construções epis-
têmicas atuais e como tais equívocos se dão em virtude do uso aleatório das posições que
compõem o chamado pós-positivismo. O caráter normativo dos princípios – das teorias
pós-positivistas – não pode ser encarado como um álibi para a discricionariedade. Com
isso está-se a dizer que a tese da abertura (semântica) dos princípios – com que trabalha a
teoria da argumentação – é incompatível com o modelo pós-positivista de teoria do direito47.

Gadamer assevera que

A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, ou seja, é


a tarefa da aplicação. A complementação produtiva do direito que se dá aí está
obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se sujeito à lei como qualquer
outro membro da comunidade jurídica. A ideia de uma ordem judicial implica que a
sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas uma ponderação
justa do conjunto48.

As teorias do Direito e da Constituição, preocupadas com a democracia e a con-


cretização dos direitos fundamentais-sociais previstos constitucionalmente, necessitam de
um conjunto de princípios que tenham nitidamente a função de estabelecer padrões her-
menêuticos com o fito de:
(a) preservar a autonomia do direito;
(b) estabelecer condições hermenêuticas para a realização de um controle da in-
terpretação constitucional;
(c) garantir o respeito à integridade e à coerência do direito;
(d) estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental dos
juízes e tribunais;
(e) garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e
que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente
adequada49.

46
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 111-112.
47
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 112.
48
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução
de Flávio Paulo Meurer. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 432-433.
49
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 112.
34| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

A decisão jurídica não pode ser entendida como um ato em que o juiz, diante de
várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquela que
lhe parece mais adequada. A escolha é sempre parcial e seu sinônimo técnico no direito
é discricionariedade e, possivelmente, arbitrariedade. Como dito, a decisão se dá, não a
partir de uma escolha, mas, sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa.
No caso da decisão jurídica é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói
como direito50.

Tornando mais claro, toda decisão deve se fundar em um compromisso pré com-
preendido. Esse compromisso passa pela reconstrução da história institucional do direito
e pelo momento de colocação do caso julgado dentro da cadeia da integridade do direito.
Portanto, a decisão jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador
das diversas possibilidades de solução de demanda. Ela se dá como um processo em que
o julgador deve estruturar sua interpretação – como a melhor, a mais adequada – de acordo
com o sentido do direito projetado pela comunidade jurídica51.

Neste sentido, destaca-se a norma do artigo 92652 do Código de Processo Civil de


2015, que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
coerente”53. Embora o enunciado do dispositivo apresente três deveres, isto é, estabilidade,
integridade e coerência, o presente artigo se limitará na análise da integridade e sua possí-
vel capacidade de impedir a discricionariedade judicial.

Segundo Dworkin, a integridade (inteireza, completude) está relacionada a um duplo


princípio: um princípio legislativo e um princípio jurisdicional54. No princípio jurisdicional,
está clara a acepção de que os argumentos de uma decisão judicial devem ser elaborados
com fulcro no conjunto do direito. Dito de outra forma, limita-se estruturalmente a decisão
judicial pelo conjunto de princípios, eis que há no próprio sistema de Direito razões para se
decidir. Neste sentido, uma decisão judicial nunca deve se fundamentar num argumento de

50
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 112-113.
51
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 113.
52
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República,
2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em:
27 ago. 2022.
53
Sobre o tema, vide PUGLIESE, William Soares. Princípios da jurisprudência. Belo Horizonte: Arraes, 2017.
54
Sobre o tema, vide: GURNISKI, Marcelo Fonseca. Integridade do Direito como meio de controle da discricio�-
nariedade judicial. In: ALVITES, Elena, POMPEU, Gina; SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Anais da VII Jornada da
Rede Interamericana de Direitos Fundamentais e Democracia. 1. ed. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2021. v. II.
p. 495-512.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |35

política para “não ultrapassar a sua competência e ferir os ideais democráticos”55, mas sim
num argumento de princípio.

Se a integridade está ligada à democracia e exige que os juízes construam a deci-


são judicial com fundamento no conjunto do Direito, resta, pois, afastada a argumentação
de que o texto carrega consigo a sua própria norma, podendo aniquilar o texto56.

Quando a integridade admite a existência de um sistema de princípios capazes de


solucionar o litígio, ela rejeita a tese básica do positivismo jurídico da existência de lacu-
nas normativas que possibilitam ao juiz decidir discricionariamente ao criar uma norma
e aplicá-la retroativamente. Isto se dá pelo fato de que a decisão que se fundamenta em
princípios, vale-se da história institucional da comunidade e cria “limite e condição de pos-
sibilidade de construção de uma decisão democrática”57.

Assim, a integridade vela pela impossibilidade de que juízes profiram decisões po-
líticas e jurídicas e que deixem de entender o Direito como um sistema único e coerente de
justiça e equidade na correta proporção. E mais, obriga os juízes a interpretar o direito com
fundamento no sistema de princípios que a comunidade adota, vedando as decisões que
não as observem pelo motivo de que o Direito tem que ser visto em sua integridade; sendo
essa, a exata compreensão do romance em cadeia, no qual a interpretação das regras
jurídicas decorre dos ideais de justiça, da igualdade e da própria integridade58.

4 SOBRE UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO


CONSTITUCIONAL
Até Kant, admitia-se existir uma relação real entre ser e essência, assim o sentido
dependia dos objetos, que tinham uma essência e, por isso, era possível revelá-lo59. Com

55
CHUEIRI, Vera Karam de; SAMPAIO, Joanna Maria de Araújo. Coerência, integridade e decisões judiciais.
Revista de Estudos Jurídicos da Unesp, Franca, v. 16, n. 23, p. 367-391, 2012. DOI: 10.22171/rej.v16i23.572.
p. 388-389. Disponível em: https://ojs.franca.unesp.br/index.php/estudosjuridicosunesp/article/view/572.
Acesso em: 29 ago. 2022.
56
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e princípios da interpretação constitucional. In: CANOTILHO, José J.
Gomes et al. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013. p. 83.
57
PEDRON, Flávio Quinaud Pedron; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do direito contemporâneo: uma análi-
se de teorias jurídicas de Robert Alexy, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas, Klaus Günther e Robert Brandom.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 97.
58
GURNISKI, Marcelo Fonseca. Integridade do Direito como meio de controle da discricionariedade judicial. In:
ALVITES, Elena, POMPEU, Gina; SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Anais da VII Jornada da Rede Interamericana
de Direitos Fundamentais e Democracia. 1. ed. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2021. v. II. p. 495-512.
59
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 13.
36| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

o Iluminismo, “o fundamento não é mais o essencialismo com uma certa presença da


illuminatio divina”60. O homem não está mais sujeito às estruturas, ele passa a “assujeitar”
as coisas, num esquema sujeito-objeto, em que o mundo passa a ser conhecido (explica-
do e fundamentado) pela razão61. Tal modelo de conhecimento propiciou o surgimento do
Estado Moderno.

Nessa relação sujeito-objeto a linguagem é manuseada como instrumento que


conecta as “idiossincrasias do sujeito a sua assujeitadora conclusão do conteúdo do ob-
jeto”62, vale dizer, neste paradigma, o magistrado, como intérprete, emprega a linguagem
para fundamentar sua decisão solipsista. Em outras palavras,

[...] o juiz ativista decide para depois fundamentar, isto é, ao receber determinado
caso, identificando sua “dificuldade”, de imediato aplica um princípio axiológico que
irá nortear o roteiro de sua fundamentação, com efeito, é neste quadro que a lingua-
gem se torna um álibi teórico dos valores intersubjetivos do intérprete63.

Assim sendo, é indispensável abandonar a relação sujeito-objeto para o fim de


que a linguagem deixe de ser um mero instrumento da vontade do intérprete, já que nesta
relação o que importa é o sujeito enquanto ser64.

E com o denominado giro linguístico, ocorrido no século XX, verificou-se a ruptura


com a filosofia da consciência (subjetividade). Para Streck, é “na linguagem que se dá a
ação; é na linguagem que se dá o sentido” e mais, “o sujeito surge na linguagem e pela
linguagem, a partir do que se pode dizer que o que morre é a subjetividade ‘assujeitadora’,
e não o sujeito da relação de objetos”65.

60
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015.
61
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 13-14.
62
PERES, Fernando Reis de Carvalho. Ativismo judicial: quem poderá nos defender da bondade dos bons?
Iurisprudentia, Juína/MT, v. 2, n. 4, p. 25-36, jun./dez. 2013. p. 33. Disponível em: https://www.revista.ajes.
edu.br/index.php/iurisprudentia/article/view/114/84. Acesso em: 10 ago. 2023.
63
PERES, Fernando Reis de Carvalho. Ativismo judicial: quem poderá nos defender da bondade dos bons?
Iurisprudentia, Juína/MT, v. 2, n. 4, p. 25-36, jun./dez. 2013. p. 33. Disponível em: https://www.revista.ajes.
edu.br/index.php/iurisprudentia/article/view/114/84. Acesso em: 10 ago. 2023.
64
PERES, Fernando Reis de Carvalho. Ativismo judicial: quem poderá nos defender da bondade dos bons?
Iurisprudentia, Juína/MT, v. 2, n. 4, p. 25-36, jun./dez. 2013. p. 33. Disponível em: https://www.revista.ajes.
edu.br/index.php/iurisprudentia/article/view/114/84. Acesso em: 10 ago. 2023.
65
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2015. p. 14-15.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |37

Contemporaneamente, alguns estudos teóricos tratam de enfrentar essas questões


e é importante, neste momento, apresentar, mesmo que sumariamente, as teorias enseja-
doras dos posicionamentos acima esboçados.

Wittgenstein foi o responsável por trazer a pragmática para a filosofia, mediante os


jogos de linguagem, com a intenção de superar a metafísica do sujeito-objeto. Essa teoria
apresenta a linguagem como condição de possibilidade do próprio conhecimento, supe-
rando sua função designativa ou mediadora do esquema sujeito-objeto, para “conceber a
linguagem como o modo pelo qual se conhece o mundo, de forma a conceber um novo
esquema: sujeito-sujeito”66.

A compreensão do esquema sujeito-sujeito é apresentada no jogo de linguagem, já


que o homem age, não como indivíduo isolado pelo seu arbítrio, mas conforme as regras e
normas que ele estabeleceu em conjunto com os outros indivíduos. Portanto, essas regras
elaboradas em conjunto, apresentam um quadro de referência intersubjetivo “que, por outro
lado, determinada as fronteiras das ações, estabelecidas comunitariamente, e, por outro,
deixa ao indivíduo, dentre dele, o espaço para as iniciativas”67.

Assim, Wittgenstein buscou afastar a compreensão de que cada palavra refletiria


um dado objeto específico. “Logo, propôs uma diferenciação entre o ‘portador do nome’ e
‘significado do nome’, pois o significado não dependeria da existência de seu portador”68.
Wittgenstein enfatizou “a importância do uso, do aspecto pragmático da linguagem, o qual
se realiza diante de uma correção, perante um conjunto de regras mínimas para a utilização
apropriada de expressões linguísticas”69. Veja-se que,

Na formulação dos jogos de linguagem, Wittgenstein argumenta que os atos in-


tencionais que outorgam significado não são essenciais para a compreensão da
linguagem. Por isso, a busca deveria ser voltada para a variedade de circunstâncias
em que os signos linguísticos são submetidos. O fato de que eles são parte de uma
atividade orientada não leva necessariamente a uma definição de um sistema de

66
OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de Oliveira; CAMACHO, Matheus Gomes. Reviravolta linguística-pragmática e
esboços de uma nova teoria hermenêutica jurídica. Revista de Argumentação e Hermenêutica Jurídica, Minas
Gerais, v. 1, n. 2, p. 228-243, jul./dez. 2015. p. 233. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/
HermeneuticaJuridica/article/view/800. Acesso em: 29 ago. 2023.
67
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 143-144.
68
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Interpretação constitucional: entre dinâmica e inte�-
gridade. Sequência, Florianópolis, n. 72, p. 67-91, abr. 2016. p. 70-71. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
seq/a/xy56KDyMBZW3L6m3sNJKw5B/?lang=pt. Acesso em: 29 ago. 2022.
69
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Interpretação constitucional: entre dinâmica e in�-
tegridade. Sequência, Florianópolis, n. 72, p. 67-91, abr. 2016. p. 71. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
seq/a/xy56KDyMBZW3L6m3sNJKw5B/?lang=pt. Acesso em: 29 ago. 2022.
38| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

regras para cada jogo de linguagem específico, mas indica o caráter convencional
dessa atividade humana70.

Portanto, Wittgenstein identificou que a linguagem é estabelecida por meio de crité-


rios públicos, pois “a prática da linguagem como, por exemplo, compreender uma ordem,
comunicação, expressão etc., só se torna possível porque há um uso compartilhado da
linguagem e que pode ser entendido por todos”71.

De outro lado, Heidegger buscou desvelar aquilo que ficou impensado durante toda
a tradição metafísica: o sentido do ser72. Heidegger realocou a questão sobre o sentido do
ser para superar a metafísica tradicional do sujeito-objeto, a partir da analítica existencial
do Dasein (ser-aí, pre-sença)73. O Dasein deve ser compreendido como “ente que cada
um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar”74.

Com efeito, a teoria heideggeriana procurou compreender o ser do ente na sua


historicidade, “no seu acontecer concreto, na sua facticidade, indo além das dissimulações
da vida, para superar o grande equívoco cometido pelo pensamento metafísico, que cha-
mou de ser, o que não era o ser, mas sim o ente”75. Nesse sentido, Heidegger apresentou
uma teoria do ser a partir da finitude da compreensão enquanto condição de acesso ao

70
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Interpretação constitucional: entre dinâmica e in�-
tegridade. Sequência, Florianópolis, n. 72, p. 67-91, abr. 2016. p. 71. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
seq/a/xy56KDyMBZW3L6m3sNJKw5B/?lang=pt. Acesso em: 29 ago. 2022.
71
PABLOS, Mayara Roberta. As contribuições de Wittgenstein para a filosofia do direito: uma análise da lingua-
gem e suas regras. 2013. 125f. Tese (Doutorado) – Pós-graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/106906/
PFIL0196-D.pdf?sequence=1. Acesso em: 29 ago. 2022.
72
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 137. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
73
OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de Oliveira; CAMACHO, Matheus Gomes. Reviravolta linguística-pragmática e
esboços de uma nova teoria hermenêutica jurídica. Revista de Argumentação e Hermenêutica Jurídica, Minas
Gerais, v. 1, n. 2, p. 228-243, jul./dez. 2015. p. 234. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/
HermeneuticaJuridica/article/view/800. Acesso em: 29 ago. 2023.
74
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte 1. 11. ed. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes,
2002. p. 33, § 2.
75
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 138. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |39

ser, mediante o método fenomenológico, compondo todo o questionamento pelo sentido à


ligação ao tempo76.

Heidegger identifica dois níveis na fenomenologia:


(i) o nível hermenêutico, de profundidade, que estrutura a compreensão “os tribunais
devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”77; e
(ii) um nível apofântico, de caráter lógico, meramente explicativo, ornamental.
Tais níveis, permitem a desmi(s)tificação das teorias argumentativas de raiz proce-
dimental de acesso ao conhecimento78.

Portanto, no intuito de superar os equívocos cometidos pela metafísica, “a diferen-


ça ontológica e o círculo hermenêutico tiveram um papel fundamental e necessário para
pensar aquilo que permaneceu impensado: o sentido do ser”79, o que tornou a hermenêu-
tica, para além de uma técnica de interpretação de textos, filosofia.

Dois teoremas são fundamentais para analisar a contribuição de Heidegger, segun-


do Streck:

[...] o círculo hermenêutico, de onde é possível extrair a conclusão de que o método


(ou o procedimento que pretende controlar o processo interpretativo) sempre chega
tarde, porque o Dasein já se pronunciou de há muito, e a diferença ontológica, pela
qual o ser é sempre o ser de um ente, rompendo-se a possibilidade de subsunções
e deduções, uma vez que, para Heidegger, o sentido é um existencial do Dasein, e
não uma propriedade “colada” sobre o ente, colocado atrás deste ou que paira não
se sabe onde, em uma espécie de “reino intermediário”80.

76
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 138. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
77
Sobre o tema, vide PUGLIESE, William Soares. Princípios da jurisprudência. Belo Horizonte: Arraes, 2017.
78
STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do es�-
quema sujeito-objeto. Sequência, Florianópolis, v. 28, n. 54, p. 29-46, jul. 2007. p. 32. Disponível em: https://
dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2521149.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
79
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 139. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
80
STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do es�-
quema sujeito-objeto. Sequência, Florianópolis, v. 28, n. 54, p. 29-46, jul. 2007. p. 32. Disponível em: https://
dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2521149.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.
40| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

Esses dois teoremas de Heidegger81 constituíram-se em uma virada paradigmática


e foram importantes “para a definição da verdade à medida que chama a atenção para
novas mediações que devem ser observadas”82, a saber:
(i) os “entes” no mundo somente “são” pois podem ser compreendidos;
(ii) “o compreender depende de um conjunto de significações e relações linguísti-
cas prévias que o Dasein dispõe”83;
(iii) “o conhecimento pertence unicamente ao ente que conhece, superando, assim,
as dicotomias positivistas entre fato/valor, sujeito/objeto, ciência/senso comum”84.
Os pressupostos da teoria heideggeriana se tornaram fundamentais para o pro-
jeto hermenêutico de Gadamer, que colocou a linguagem como o ponto mais elevado da
filosofia, isto é, “como condição de possibilidade para a compreensão de uma coisa que
somente existe para o homem quando é simbolizada por meio da linguagem”85.

Nesse sentido, Gadamer transportou a linguagem para o centro da reflexão filosófi-


ca, não como uma redução dela à questão de palavras, no sentido nominalista, “mas como
mediador do significado e do sentido de algo, superando o entendimento de que há um
sujeito cognoscente separado do objeto, capaz de apreendê-lo por meio de um instrumento
chamado linguagem”86.

81
Sobre o tema, ver: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte 1. 11. ed. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante.
Petrópolis: Vozes, 2002. p. 98-102, § 13.
82
MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a
verdade, radicalização hermenêutica e fundamentação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010. p. 47.
83
MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a
verdade, radicalização hermenêutica e fundamentação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010. p. 47.
84
MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a
verdade, radicalização hermenêutica e fundamentação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010. p. 47.
85
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 139. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
86
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 138. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |41

Apossando-se da visão de Heidegger, Gadamer entende que a compreensão é sem-


pre um “projetar-se”, a partir de determinadas perspectivas do intérprete87; “quem quiser
compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido
no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo”88.

As antecipações de sentido do texto (opiniões prévias do intérprete) não se con-


fundem com as arbitrariedades do julgador89, pois “a compreensão só alcança sua verda-
deira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias”90.
Trata-se, em realidade, do intérprete deixar que o texto diga algo antes do intérprete dizer
algo do texto. Nas palavras de Gadamer:

[...] uma consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-


-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nenhuma
“neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma;
implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pes-
soais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o
próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua
verdade com as opiniões prévias pessoais91.

E, com o reconhecimento do outro, o círculo hermenêutico ganha “a possibilidade


de reconhecer a coisa mesma, sendo que a objetividade é garantida pela distância e o re-
sultado do processo interpretativo é o ponto médio, constantemente reconstruído”92.

Assim, o intérprete atua sobre o texto, recriando-o a cada nova experiência, numa
espécie de movimento em espiral, porquanto a “pre-sença, enquanto promotora do sentido
do ser, modifica-se”93 a cada rodada. Para Gadamer, cada volta pressupõe o reajuste das

87
MELLO, Cleyson de Moraes. A hermenêutica de Has-Georg Gadamer. Revista Interdisciplinar do Direito,
Valença, v. 9, n. 1, p. 47-56, dez. 2012. p. 49. Disponível em: http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/
view/503. Acesso em: 29 ago. 2022.
88
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução
de Flávio Paulo Meurer. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 356.
89
MELLO, Cleyson de Moraes. A hermenêutica de Has-Georg Gadamer. Revista Interdisciplinar do Direito,
Valença, v. 9, n. 1, p. 47-56, dez. 2012. p. 49. Disponível em: http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/
view/503. Acesso em: 29 ago. 2022.
90
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução
de Flávio Paulo Meurer. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 356.
91
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução
de Flávio Paulo Meurer. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 358.
92
MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido da
estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 176.
93
MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido da
estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 178.
42| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

expectativas, na medida que o texto as requeira, considerando-se a unidade de pensamento


nele expressada, sendo encargo do círculo hermenêutico, “ampliar, em círculo concêntri-
cos, a unidade do sentido compreendido”94.

O Direito, ao colher esse novo entendimento, nega o procedimento subjuntivo ou


dedutivo na sua aplicação, pois

[...] a interpretação ocorre sempre no ponto médio [...] e o fundamento da decisão é


desde já, sempre, antecipado, o que levará a problema hermenêutico fundamental: a
impossibilidade do desdobramento metodológico no processo de busca da decisão
jurídica e a unidade das applicatio95.

Em sua hermenêutica filosófica, do paradigma da linguagem e na existência do


Dasein, Gadamer além de considerar a dimensão linguística da pré-compreensão do sujeito
(autocompreensão), presta especial atenção e insere em sua teoria o contexto histórico
no qual o sujeito está inserido96. Ao lançar olhos ao “horizonte do questionamento herme-
nêutico a partir da experiência da arte e, observando os pressupostos epistemológicos da
ontologia fundamental, [Gadamer] coloca a historicidade como princípio básico de sua
teoria hermenêutica”97.

Importante ressaltar que conhecer é interpretar, é compreender, uma vez que a bus-
ca do conhecimento é também um ato contínuo de interpretar aquilo que se quer conhecer.
Porém, conhecer não se reduz ao mundo da natureza, propaga-se para o campo da cultura,
das relações sociais, das normas e das instituições que as disciplinam. “É neste terreno
que se faz presente a interpretação jurídica, detestada pelos defensores do autoritarismo,
porém valorizada e defendida pelos construtores da democracia”98.

Frente as mudanças paradigmáticas da viragem ontológico-linguística, é impres-


cindível criar condições para que o poder dos magistrados não supere ao do direito, o que
pressupõe o sobrepujamento do positivismo e da teoria da argumentação.

94
MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido da
estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008.
95
MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido da
estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 178.
96
MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido da
estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 172.
97
MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido da
estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 173-174.
98
GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica constitucional: um contributo à constituição do estado democrático de
direito. Curitiba: Juruá, 2008. p. 292.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |43

A guinada ontológico-linguística abriu flanco para novas possibilidades à compre-


ensão do Direito, tornando impossível aferrar-se à conduta discricionária de decisões judi-
ciais e, neste sentido, “em tempos de superação do sujeito solipsista pela filosofia herme-
nêutica, de Heidegger, e pela hermenêutica filosófica, de Gadamer, é impossível continuar
insistindo”99 com qualquer posição voluntarista (discricionária) na elaboração da decisão
judicial.

Não se trata de diminuir a importância da atividade jurisdicional, mas impedir que o


desbordamento decorrente do velho problema engendrado pela filosofia da consciência, isto
é, a discricionariedade, oponha-se aos limites definidos pelo Estado Democrático de Direito100.

A interpretação do Direito (normas e princípios) não equivale a decidir conforme a


consciência do intérprete, uma vez que para se guindar a legitimidade do Poder Judiciário
deve-se assimilar que a hermenêutica estabelece critérios e procedimentos que limitam o
aplicador, especialmente aqueles imanentes das próprias constituições que demarcam a le-
gitimidade do Direito (procedimento e substância constitucional), obrigando-o à Democracia.

5 CONCLUSÃO
A partir do desenvolvimento acima apresentado, pode-se concluir que a ideia da
decisão conforme a consciência do intérprete deve ser abandonada. A hermenêutica deve
respeitar, de forma democrática e republicana, os limites interpretativos de um texto jurídico.

Neste sentido, a integridade é um princípio fundamental para delimitar os espaços


da interpretação. Ela vela pela impossibilidade de que juízes profiram decisões políticas e
jurídicas e que deixem de entender o Direito como um sistema único e coerente de justiça
e equidade na correta proporção. Além disso, obriga os juízes a interpretar o direito com
fundamento no sistema de princípios que a comunidade adota.

Por fim, interpretar o Direito não equivale a decidir conforme a consciência do intér-
prete, uma vez que para se guindar a legitimidade do Poder Judiciário deve-se assimilar que
a hermenêutica estabelece critérios e procedimentos que limitam o aplicador, especialmen-
te aqueles imanentes das próprias constituições que demarcam a legitimidade do Direito
(procedimento e substância constitucional), obrigando-o à democracia.

99
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 140. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
100
LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos de pós-po�-
sitivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v. 34, n. 2, p. 127-
148, jul./dez. 2014. p. 141. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/12058/1/2014_art_dpli-
ma.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
44| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido
por Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. Revista de Processo, Distrito Federal, v. 41, n.
251, jan. 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/download/51903609/ABBOUD-Georges_
Discricionariedade-e-penhora.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito
do Estado, Salvador, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência
da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/
l13105.htm. Acesso em: 27 ago. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 26603-Distrito Federal. Plenário. Relator:
Min. Celso de Mello. Julgado em 04 de outubro de 2007. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/pro-
cessos/detalhe.asp?incidente=2513846. Acesso em: 29 ago. 2022.

CHUEIRI, Vera Karam de; SAMPAIO, Joanna Maria de Araújo. Coerência, integridade e decisões judi-
ciais. Revista de Estudos Jurídicos da Unesp, Franca, v. 16, n. 23, p. 367-391, 2012. DOI: 10.22171/
rej.v16i23.572. Disponível em: https://ojs.franca.unesp.br/index.php/estudosjuridicosunesp/article/
view/572. Acesso em: 29 ago. 2022.

CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Interpretação constitucional: entre dinâmica e
integridade. Sequência, Florianópolis, n. 72, p. 67-91, abr. 2016. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/seq/a/xy56KDyMBZW3L6m3sNJKw5B/?lang=pt. Acesso em: 29 ago. 2022.

CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Teorias interpretativas, capacidades insti-
tucionais e crítica. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 19, n. 19, p. 131-168, jan./jun.
2016. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/691.
Acesso em: 29 ago. 2022.

COSTA, Cesar Augusto Nardelli. Perspectivas para a interpretação constitucionalista: a contribuição da


hermenêutica filosófica na atualização crítica do direito. Direito Público, v. 8, n. 39, p. 29-68, maio/
jun. 2011. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/1933.
Acesso em: 29 ago. 2022.

DELGADO, Ana Paula Teixeira. Perspectivas para a justiça constitucional em tempos de pós-posi-
tivismo: legitimidade, discricionariedade e papel dos princípios. Revista Interdisciplinar do Direito,
Valença, v. 9, n. 1, p. 239-254, maio 2018. Disponível em: http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/
article/view/516. Acesso em: 29 ago. 2022.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.


Tradução de Flávio Paulo Meurer. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica constitucional: um contributo à constituição do estado democrá-


tico de direito. Curitiba: Juruá, 2008.
Apontamentos sobre uma adequada interpretação Constitucional |45

GURNISKI, Marcelo Fonseca. Integridade do Direito como meio de controle da discricionariedade


judicial. In: ALVITES, Elena, POMPEU, Gina; SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Anais da VII Jornada da
Rede Interamericana de Direitos Fundamentais e Democracia. 1. ed. Porto Alegre: Fundação Fênix,
2021. v. II. p. 495-512.

HART, Herbert L. A. The concept of law. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte 1. 11. ed. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis:
Vozes, 2002.

KREMER, Bianca; PARAGUASSU, Mônica. Hermenêutica, jurisdição e discricionariedade judicial: de-


safios trazidos pela crise dos métodos de interpretação jurídica no Brasil. Revista Brasileira de Direito,
Passo Fundo, v. 13, n. 1, p. 131-160, jan./abr. 2017. Disponível em: https://seer.atitus.edu.br/index.
php/revistadedireito/article/view/1153/1101. Acesso em: 10 ago. 2023.

LIMA, Danilo Pereira. Discricionariedade judicial e resposta correta: a teoria da decisão em tempos
de pós-positivismo. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza,
v. 34, n. 2, p. 127-148, jul./dez. 2014. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/ri/bitstream/riu-
fc/12058/1/2014_art_dplima.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.

LOPES, Tomás Jobin Coutinho. Filosofia metafísica-transcendental, fenomenologia e giro linguístico:


reflexões sobre hermenêutica clássica e filosófica. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4256,
25 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32380. Acesso em: 29 ago. 2022.

MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial entre o sentido
da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008.

MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos


sobre a verdade, radicalização hermenêutica e fundamentação ética na práxis jurisdicional. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria dos princípios e função jurisdicional. Revista de Investigações
Constitucionais, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 135-164, maio/ago. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
rinc/a/F66fxBT8QWWhKVQ7QyVm9Gn/?lang=pt. Acesso em: 29 ago. 2022.

MELLO, Cleyson de Moraes. A hermenêutica de Has-Georg Gadamer. Revista Interdisciplinar do


Direito, Valença, v. 9, n. 1, p. 47-56, dez. 2012. Disponível em: http://revistas.faa.edu.br/index.php/
FDV/article/view/503. Acesso em: 29 ago. 2022.

OLIVEIRA, Guilherme Fonseca de Oliveira; CAMACHO, Matheus Gomes. Reviravolta linguística-pragmá-


tica e esboços de uma nova teoria hermenêutica jurídica. Revista de Argumentação e Hermenêutica
Jurídica, Minas Gerais, v. 1, n. 2, p. 228-243, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.indexlaw.org/
index.php/HermeneuticaJuridica/article/view/800. Acesso em: 29 ago. 2022.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed.


São Paulo: Edições Loyola, 2006.
46| William Soares Pugliese - Marcelo Fonseca Gurniski

PABLOS, Mayara Roberta. As contribuições de Wittgenstein para a filosofia do direito: uma análise da
linguagem e suas regras. 2013. 125f. Tese (Doutorado) – Pós-graduação em Filosofia, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/han-
dle/123456789/106906/PFIL0196-D.pdf?sequence=1. Acesso em: 29 ago. 2022.

PEDRON, Flávio Quinaud Pedron; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do direito contemporâneo:
uma análise de teorias jurídicas de Robert Alexy, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas, Klaus Günther e
Robert Brandom. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

PERES, Fernando Reis de Carvalho. Ativismo judicial: quem poderá nos defender da bondade dos
bons? Iurisprudentia, Juína/MT, v. 2, n. 4, p. 25-36, jun./dez. 2013. Disponível em: https://www.revis-
ta.ajes.edu.br/index.php/iurisprudentia/article/view/114/84. Acesso em: 10 ago. 2023.

PUGLIESE, William Soares. Princípios da jurisprudência. Belo Horizonte: Arraes, 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação
do esquema sujeito-objeto. Sequência, Florianópolis, v. 28, n. 54, p. 29-46, jul. 2007. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2521149.pdf. Acesso em: 29 ago. 2022.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e princípios da interpretação constitucional. In: CANOTILHO, José
J. Gomes et al. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2015.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas. Da possi-
bilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da
decisão judicial. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019.

TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão
polícia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/rdgv/a/dr6L3MVvFz4MsrCShHytnrQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2023.

TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. O ativismo judicial na débâcle do sistema político:
sobre uma hermenêutica da crise. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 11, n. 2, p.
751-772, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/22912. Acesso
em: 29 ago. 2022.
A INTERNACIONALIZAÇÃO DO
DIREITO À SAÚDE

Wlademir Junior Lucietti Filho1

Sumário: 1. Introdução. 2. A reforma sanitarista e a Constituição de 1988. 3. Direito à


saúde. 3.1. Mínimo Existencial. 3.2. Universalidade e integralidade. 4. A internacionalização
do direito à saúde. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
Este estudo tem por objetivo abordar a questão do direito à saúde no tocante a sua uni-
versalidade. Uma breve explanação do respaldo constitucional à luz dos tratados interna-
cionais que asseguram o acesso à saúde a todo e qualquer cidadão, de modo especial, o
acesso dos imigrantes e estrangeiros. Com isso, o Sistema Único de Saúde deve atender
qualquer pessoa que necessite de atendimento sanitário, seja este nacional seja estrangei-
ro. Em respeito aos princípios da universalidade e integralidade, compreender a cobertura
do sistema sanitário brasileiro em sua análise histórica, sua origem e suas funções sociais.
Ainda, reiterar o papel do Estado como propiciador dessa garantia fundamental, sendo,
através da arrecadação de impostos, destinado determinada porcentagem para custeio
dos programas preventivos e remediadores do sistema público de saúde. Breve comentário
sobre a judicialização da saúde comumente pleiteados no Brasil visando o financiamento
de medicamentos, insumos, cirurgias e afins, aos cidadãos que não possuem recursos
suficientes para sobrevivência digna.

Palavras-chave: Direito. Saúde. Internacionalização. Imigrantes. Estrangeiros.

1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que a sociedade é detentora de direitos fundamentais, e dentre eles
o direito à saúde, cuja disposição é passível de ser localizada junto ao rol artigo 6º da
Constituição Federal (CF).

1
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Especialista em Direito pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP/PR). Especialista em Direito
Constitucional pela Faculdade Focus. Bacharel em Direito pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP).
E-mail: wlademirfilho.adv@gmail.com
48| Wlademir Junior Lucietti Filho

Não obstante, o ordenamento jurídico impõe ao Estado2, aqui leia-se União, esta-
do, município, e Distrito Federal, o dever de garantir ao indivíduo o acesso à saúde no intuito
de reservar o mínimo essencial para a cidadã e o cidadão sobreviverem de forma digna.
Outrossim, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado3 a fim promover ações,
proteger e prevenir a saúde pública, possibilitando ao indivíduo o acesso universal e integral
dos serviços disponibilizados pelo SUS.
Nessa toada, cumpre questionar à legislação brasileira, dentro desta seara sanitária
se o acesso à saúde é uma garantia aos brasileiros natos e naturalizados, ou uma garantia
global, no sentido de que todo o indivíduo residente no Brasil ou que aqui esteja apenas de
forma transitória poderá fazer uso dos serviços públicos sanitários brasileiras.
Pois bem, muitos recordam-se de dois eventos de grande relevância ocorridos no
Brasil – sendo um de forma global – que levantaram ainda mais o questionamento sobre a
funcionalidade do sistema público de saúde, sendo:
1) a “invasão” dos Venezuelanos às cidades brasileiras de fronteira, buscando mo-
radia, trabalho e principalmente acesso à saúde; e
2) a pandemia da Covid-19 no âmbito mundial, mas que de certa forma colocou a
necessidade de atendimento sanitário de estrangeiros no território brasileiro para
tratamento do vírus SARS-CoV-2.
Assim, cumpre-se fazer um apanhado do direito à saúde no âmbito brasileiro e glo-
bal, para o fim de se compreender o status internacional deste direito fundamental à socieda-
de e tão essencial, uma vez que íntimo ao direito à vida e imprescindível para a democracia.

2 A REFORMA SANITARISTA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988


Considera-se a Reforma Sanitarista como o principal evento de alteração do status
do direito à saúde, haja vista que antes da Constituição de 1988, o acesso a esse direito co-
mente era permitido ao grupo de trabalhadores que contribuíam com a previdência social.
Destarte, o objetivo primordial deste movimento sanitário (Reforma Sanitarista) foi
o de revolucionar o acesso à saúde possibilitando para toda a sociedade, e não apenas
restrito aos contribuintes previdenciaristas4.
Essa ideia de reforma foi ganhando adeptos e após a realização da 8ª Conferência
de Saúde, foi inserido na pauta a possibilidade de modificação do status deste direito pas-
sando à sua constitucionalização com o acesso Universal e Integral à saúde.

2
Art. 196 e 198, §2º da Constituição Federal de 1988.
3
Art. 200 da Constituição Federal de 1988 e Lei n. 8080/1990
4
GEBRAN NETO, João Pedro; SCHULZE, Clenio Jair. Direito à saúde: análise à luz da judicialização. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2015.
A internacionalização do Direito à saúde |49

Essa reforma foi de grande relevância em prol dos direitos sociais, uma vez que, se
antes era necessário ser contribuinte da previdência, agora esse direito seria de todos, sem
qualquer distinção de classe ou ainda uma exigência direta de contraprestação5. Assim,
este direito foi inserido no rol do artigo 6º da CF6, a fim de constitucionalizá-lo. Desse
modo, a saúde foi enfim incorporada aos elementos básicos e necessários ao indivíduo
para a sobrevivência de maneira digna7.
Além disso, com a inclusão desse direito ao rol do art. 6 da CF/1988, se tronou
necessário estabelecer os responsáveis pela garantia deste direito, assim, o artigo 196 da
CF foi criado para determinar o dever do Estado de garantir através de políticas públicas
sociais e econômicas a assistência sanitária ao indivíduo.
Para não incorrer em novas e maiores burocracias, a Constituição definiu como
dever do Estado o dever da União, estados, municípios e do Distrito Federal, sendo solidários
entre si no atendimento à saúde no intuito de promover, proteger e recuperar à saúde pública.
Uma vez ciente do dever instituído pelo art. 196 da CF, para racionalizar o atendi-
mento sanitário ao indivíduo é que foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS) mediante Lei
n. 8.080/1990, sendo uma rede orientada pelo Ministério da Saúde (MS) como principal
objetivo o acesso universal e integral à saúde.
Assim, o SUS foi contemplado pela Constituição Federal de 88, em seu artigo 200,
o qual delimitou as competências deste sistema, onde se destacam a organização dos ser-
viços, o modelo de atenção, o financiamento, a gestão, a governança e a regulação a fim
de atender a universalidade do direito à saúde tratando da seguridade social8.
Temos ainda leis complementares e ordinárias relacionadas ao direito à saúde,
que são: Lei n. 8.142/1990 (que dispõe sobre qual é o papel da comunidade com relação
ao SUS e as migrações financeiras intergovernamentais); e também a Lei Complementar

5
INTRODUÇÃO. In: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SERGIO AROUCA. Assistência farmacêutica em foco
no Estado do Rio de Janeiro: normas e documentos para ação. Rio de Janeiro: Fiocruz, [s.d.]. p. 1. Disponível
em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/judicializacao/pdfs/introducao.pdf. Acesso em: 09 jul. 2020.
6
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.
htm. Acesso em: 10 ago. 2023.
7
GEBRAN NETO, João Pedro; SCHULZE, Clenio Jair. Direito à saúde: análise à luz da judicialização. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2015.
8
Diferentemente da educação, o arranjo constitucional do direito fundamental à saúde não o trata de forma au�-
tônoma como se fora uma política pública isolada, ao contrário, a saúde foi inserida em um sistema protetivo
integrado que o Constituinte de 1988 denominou de “seguridade social”. Esse é o teor do caput do art. 194 da
Constituição, segundo o qual “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa
dos Poderes Público e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social” (PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos direitos à saúde e à educação: uma perspectiva
constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 84-85).
50| Wlademir Junior Lucietti Filho

141/2012 (que regula o §3º do artigo 198 da Constituição Federal no tocante aos valores
mínimos exigidos e destinados à saúde pelos entes públicos).
Com isso, a Reforma Sanitarista tronou a saúde um direito social9, e nesta toada
o direito sanitário é acompanhado de um dever, momento em que se denota a participação
dos três poderes na positivação destes direitos estabelecendo um equilíbrio em atenção ao
estado político, social, temporal e econômico10. Através da Constituição de 1988 se esta-
beleceu o dever do Estado em relação aos direitos sociais – como é o caso da saúde – na
atuação direta, devendo promover ao menos um auxílio mínimo ao indivíduo11.

3 DIREITO À SAÚDE
De acordo com uma previsão Constitucional, o direito à saúde possui o status
fundamental, portanto, assegurado pelo Poder Público e garantido à sociedade.
O direito sanitário possui vital relação com a vida, assim, recebe a condição de ser
exigido com base no princípio do mínimo existencial, o qual visa a obtenção de condições
básicas ao indivíduo sobreviver de maneira digna.
Ademais, sabendo do respaldo constitucional deste direito, a necessidade de cria-
ção de uma política pública para atender este direito se fez necessária, por isso houve a
implementação do SUS com o objetivo maior de promover o acesso à sociedade como um
todo12. Regra esta que deve ser respeitada para não incorrer uma afronta à Constituição
Federal e ao princípio da impessoalidade.
Doutro modo, o poder público é submisso aos deveres de proteção deste direito,
quais sejam o respeito e a garantia dos direitos fundamentais e a obrigação de promover
o acesso à saúde13.

9
Na definição de José Afonso da Silva, os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do ho�-
mem, “são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições da vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações desiguais. Valem
como pressuposto de gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais pro-
pícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o
exercício efetivo da liberdade” (GOTTI, Alessandra. Direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 49).
10
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1991.
11
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.
php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
12
Art. 2º, §1º da Lei n. 8.080/1990
13
MERMELSTEIN apud GEBRAN NETO, João Pedro; SCHULZE, Clenio Jair. Direito à saúde: análise à luz da
judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2015.
A internacionalização do Direito à saúde |51

Bem verdade que políticas públicas somente ocorrem mediante financiamento do


erário, que por sua vez necessita da contribuição da sociedade por meio do pagamento de
impostos. Em que pese anteriormente à vigência da CF de 88 tivéssemos a garantia sani-
tária mediante adimplemento previdenciário, aqui em nada se confunde, pois anteriormente
era um requisito para o acesso, sendo uma contraprestação direta; já com o advento da
CF de 88, a saúde integra a pasta de obrigações do Estado, o qual deverá se programar de
forma orçamentária para a promoção da saúde pública14.
A fim de possibilitar à sociedade o acesso à saúde, foi determinado a criação das
regiões de saúde15, que nada mais são do que pontos estratégicos, que viabilizam o aten-
dimento de uma maior número de pessoas. Visa-se a otimização do alcance do indivíduo à
saúde pública, que mesmo que resida distante da capital ou às grandes metrópoles, poderá
ter acesso a estas regiões, que são determinadas geograficamente em um ponto central
para viabilizar o acesso de toda a população daquela região.
Muito embora a saúde possua o viés constitucional, cumpre registrar que este
direito não é absoluto, é subjetivo e com imprescindível participação do Poder Público para
positivá-lo. Esse viés subjetivo representa às pretensões possíveis que o indivíduo pode
demandar, quer se dizer, é um direito que não se limita simplesmente numa vontade ou em
um interesse protegido, sendo para tanto uma posição jurídica, um indivíduo com certo
interesse que mereça digna proteção16.

3.1 Mínimo existencial


Como já exposto, a saúde é um direito fundamental, o qual exige do Poder Público a
garantia de condições básicas/mínimas necessárias para a sobrevivência de maneira digna17.
Em que pese haja a transcrição literal deste dever estatal para com a sociedade, al-
guns autores compreendem que a obrigação de desenvolvimento social e de cuidado com

14
“[...] Esquece-se que, muitas vezes, que na essência da dignidade da pessoa humana deve estar a solidarie�-
dade e não ao egoísmo ou o individualismo. O que é essencial reter, nesse ponto, é que não é a necessidade
individual que determina o socialmente disponível” (CAÚLA, César. Dignidade da pessoa humana, elementos
do estado de Direito e exercício da jurisdição: o caso do fornecimento de medicamentos excepcionais no
Brasil. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 125).
15
BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Direito à saúde: para entender a gestão do SUS. 1.
ed. Brasília: CONASS, 2015. Disponível em: https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/DIREITO-A-SAUDE.pdf.
Acesso em: 10 ago. 2023.
16
CANOTILHO, 2017 apud FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito à saúde. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
17
“Assim, quando se defende um direito fundamental ao mínimo existencial, está se afirmando, em outras palavras,
que precisam ser asseguradas as condições básicas de vida digna ao ser humano” (DANIELI, Ronei. A judiciali-
zação da saúde no Brasil: do viés individualista ao patamar de bem coletivo. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 84).
52| Wlademir Junior Lucietti Filho

as atenções básicas é inerente do papel do Estado. Além disso, a sociedade18 também


possui relevância no papel de cuidado aos oprimidos, exemplo disto é a capacidade con-
tributiva, haja vista que os recursos públicos destinados às ações de promoção e proteção
são oriundos dos impostos 19.
Pois bem, ciente da importância dos direitos sociais como elementos cirúrgicos de
evolução social, insurgindo por parte do indivíduo certa necessidade de auxílio para obter
condições básicas de qualidade de vida, vê-se no Poder Público a esperança de garantia
do mínimo existencial20 para sobreviver de maneira digna21.
Importante frisar que uma vez ineficaz a política pública sanitária, a sociedade pode
valer-se do poder judiciário para o fim de reiterar ao Poder Público qual é o seu papel de
garantidor e então pleitear confirmação deste direito em uma obrigação de fazer, haja vista
que o poder judiciário pode determinar a aplicação das normas22, 23.

18
“É preciso que os direitos fundamentais sejam entendidos não como obrigação apenas do Estado, mas como
obrigação de cada cidadão. E é a partir daí que podemos conceber o direito da dignidade da pessoa humana,
porque o direito não faz milagre, mas existe para que as pessoas tenham a oportunidade de conviver de forma
harmônica” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Revista
de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: FGV, n. 252, p. 15-24, 2009. p. 19. Disponível em: https://periodicos.
fgv.br/rda/article/view/7953. Acesso em: 10 ago. 2023).
19
“Não é de todo nova a compreensão de que o Estado e a sociedade devem prover as condições materiais
básicas para os necessitados, que não tenham condições de se sustentar” (SARMENTO, Daniel. O mínimo
existencial. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 1644-1689, 2016. p.1645. Disponível
em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFile/26034/19156. Acesso em: 04 jul. 2020).
20
“[...] o mínimo existencial, que corresponde às condições elementares de educação, saúde e renda que per�-
mitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no
processo político e no debate público. Os três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – têm o dever de
realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial
desses direitos” (BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Rio de Janeiro: Procuradoria
Geral do Estado do Rio de Janeiro; Instituto Ideias, 2007. p. 10-11. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
dl/estudobarroso.pdf. Acesso em: 07 jul. 2020).
21
“[...] compreende ser relevante o papel dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para a concretização dos
direitos fundamentais na maior extensão possível, observado como parâmetro mínimo o núcleo essencial desses
direitos – a dignidade humana, doravante sintetizado como mínimo existencial” (DANIELI, Ronei. A judicialização
da saúde no Brasil: do viés individualista ao patamar de bem coletivo. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 85)
22
“[...] no sentido de que os órgãos judiciais podem aplicar tais normas ainda que não tenham sido objeto de
regulamentação legislativa” (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e mínimo existencial – notas
sobre um possível papel das assim chamadas decisões estruturais na perspectiva da jurisdição constitucional. In:
ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (org.). Processo estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 218).
23
“[...] doutrina e jurisprudência que em boa medida dão suporte à tese de que o mínimo existencial – compre�-
endido como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida
condigna representa o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais” (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos
fundamentais sociais e mínimo existencial – notas sobre um possível papel das assim chamadas decisões
estruturais na perspectiva da jurisdição constitucional. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (org.).
Processo estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 216).
A internacionalização do Direito à saúde |53

Importante reiterar que a saúde possui viés democrático, haja vista que os demais
direitos inerentes ao indivíduo só poderão ser realizados/vividos a partir do momento que
o indivíduo tenha condições, quiçá, mínimas de sobrevivência para exprimir suas vontades
e exercer os atos civis24.
Ampliando o mínimo essencial para a sua internacionalização, há na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 expressa a importância de garantia do direito à
saúde ao indivíduo e sua família25.
Assim, preciso é mencionar direitos fundamentais em correlação com o mínimo
existencial, uma vez que este princípio é fundamento básico para a positivação de garan-
tias fundamentais.
Desta forma, os direitos fundamentais são significativos para a coletividade, haja
vista que o desenvolvimento do ser humano depende intimamente de suas condições vida.
Com isso, o direito à saúde se mostra imprescindível de forma vital ao ser humano.
Cumpre salientar que nenhum direito fundamental possui relevância sobre o outro,
embora se possa sopesar a vida. Contudo, do ponto de vista jurídico todos os direitos funda-
mentais possuem a mesma importância. Portanto, necessário enfatizar que o direito à saúde
não se sobressai perante os demais, o que seria uma visão imprecisa dos direitos sociais.
Em que pese a educação não seja o direito fundamental em análise, preciso se
torna trazê-lo para este estudo, haja vista que foi o direito norteador do mínimo existencial.
Isso porque sua origem se deu pelo marco histórico de acesso à educação, fato esse ocor-
rido em 1960 na Alemanha, onde um grupo de estudantes que não haviam sido admitidos
na universidade de medicina em Hamburgo e Munique, devido a uma política que limitava
as vagas de cursos superiores26.
Isto posto, com a necessidade de garantir o acesso à educação, os alunos peti-
cionaram em juízo a garantia do acesso à universidade. O Tribunal Constitucional Alemão,

24
“A dignidade da pessoa humana, imperativo ético existencial, é também princípio e regra constitucional1 contem� -
plado na ordem jurídica brasileira como fundamento da República, perpassando, por sua força normativa, toda a
racionalidade do ordenamento jurídico nacional” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A dignidade
da pessoa humana no direito contemporâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo
constitucionalista. Revista trimestral de direito civil: RTDC, v. 9, n. 35, p. 101-119, jul./set. 2008.p. 101).
25
Artigo 25. “1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde
e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispen-
sáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos
de perda dos meios de subsistência fora de seu controle” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU.
Declaração universal dos direitos humanos. Assembléia Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Brasília:
Unesco no Brasil, 1998. p. 5. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf.
Acesso em: 10 ago. 2023).
26
SEVERO, 2001, p. 28 apud DANIELI, Ronei. A judicialização da saúde no Brasil: do viés individualista ao pata-
mar de bem coletivo. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 87.
54| Wlademir Junior Lucietti Filho

por sua vez, compreendeu que o pleito era plausível, e com isso deveria a educação ser
concretizada com base na medida do possível.
Apesar disso, o mínimo essencial não tornou o direito a educação absoluto, mas
possibilitou ao ente público, dentro dos seus limites, incluir os respectivos alunos em
seus Cursos.
Sarmento compreendeu que a ideia de mínimo existencial no Brasil foi claramente
incorporada pela Constituição de 1988 de forma que se compreende a ideia em conexão
com o princípio da dignidade da pessoa humana27.
Como já abordado, a garantia do mínimo existencial, tal qual os direitos fundamen-
tais, passa pela necessidade de recursos para sua confirmação, assim, notório no ponto de
vista social que as políticas públicas encontram limites na escassez de recursos28.
Deste modo, espera-se com este princípio de que o indivíduo encontre meios que lhe
proporcionem uma vida digna, razão esta que se encontra no direito um viés social, como
uma autoajuda, concepção essa muito utilizada na Alemanha (Hife zur Selbsthilfe), de modo
que a dignidade não se estabelece em si, mas o Estado visa protegê-la e promovê-la29.

3.2 Universalidade e integralidade


Pois bem, ciente da composição da saúde pública no Brasil por meio do SUS e da
garantia do direito fundamental sob o prisma do mínimo existencial, cumpre detalhar os
princípios da universalidade e integralidade existentes na Lei 8.080/1990 (SUS) como base
de atendimento da população.
Assim, a política pública do SUS ocorre por meio do Plano de Saúde, onde se ela-
boram metas, programa-se a destinação dos recursos e a formalização de todas as metas
e obrigações do SUS para determinada gestão.
O princípio da universalidade possui previsão legal na Constituição Federal, mais
precisamente no artigo 200, correlacionado com a Lei n. 8.080/1990 (Sistema único de
Saúde – SUS), onde se extrai do artigo 2º, § 1º, o papel do Estado no dever de possibilitar
o acesso universal a este direito de forma equânime.

27
SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 1644-1689,
2016. p. 1647. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFile/26034/19156.
Acesso em: 04 jul. 2020.
28
SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 1644-1689,
2016. p. 1672. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFile/26034/19156.
Acesso em: 04 jul. 2020.
29
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner; SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à
saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 24, 02 jul. 2008. p. 9. Disponível em: https://
bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/61269/reserva_possivel_minimo_existencial.pdf. Acesso em: 09 jul. 2020).
A internacionalização do Direito à saúde |55

Possuindo estreita relação com o artigo 5º da Constituição Federal, o acesso à


saúde trata todos iguais perante a lei, portanto, figura-se o princípio da equidade30.
Conclui-se que a universalidade - palavra derivada do latim ut universi, que quer dizer
conjunto, totalidade de algo – é o direito de todo ser humano, seja ele nacional ou não31.
Integralidade – derivada da mesma origem in integrum – significa algo retido pela
imparcialidade32– é a garantia de acesso aos serviços disponíveis relacionados à saúde33–,
ambos estão presentes na redação do artigo 7º da Lei n. 8.080/1990, incisos I e II34.
Portanto, a compreensão de que a inclusão de políticas públicas universais visando
reduz consideravelmente as desigualdades existentes no país, o que por si só já elimina as
chances de tal direito ser, por exemplo, pleiteado perante o Poder Judiciário35.
É importante elencar que, embora haja expressa previsão na Lei do SUS a gratui-
dade dos serviços de natureza social (como é o caso da saúde) possuem respaldo através
da Constituição Federal.
Ou seja, este princípio da universalidade como um direito público não se submete
a discriminações ou limitações, haja vista que a condição de ser humano já o torna apto
a ter a garantia do direito à saúde, uma vez que lhe é assegurado o acesso das condições
básicas para sobreviver de maneira digna no que tange à saúde, seja ela no sentido prote-
tivo ou até mesmo curativo36.
Por sua vez, o princípio integral também é assegurado pela Constituição (artigo 198
inciso II). Assim, tem-se que a não utilização dos princípios37 é reprovável, por isso, ainda
que não possua uma razão de dever ser, os princípios devem ser utilizados em busca da

30
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito à saúde. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
31
LIMA NETO, Jorge Nogueira de. Expressões e termos latinos para juristas. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
32
LIMA NETO, Jorge Nogueira de. Expressões e termos latinos para juristas. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
33
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito à saúde. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
34
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que inte�-
gram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da
Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de
saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado
e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em
todos os níveis de complexidade do sistema;
35
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.
php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
36
GEBRAN NETO, João Pedro; SCHULZE, Clenio Jair. Direito à saúde: análise à luz da judicialização. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2015.
37
O princípio por si só não gera uma razão definitiva, afinal, os princípios não possuem em sua simples exis�-
tência um dever ser (FERREIRA, Natália Braga. Notas sobre a teoria dos princípios de Robert Alexy. Revista
56| Wlademir Junior Lucietti Filho

realização prestacional de seu direito, pois os princípios de uma lei não podem perder a sua
força, sob pena de perder seu caráter, ou seja, a perda do direito pelo não uso38.
Outro critério importante na busca por localizar a fonte originária do acesso universal
à saúde é a correlação com o direito à vida, pois não se fala de vida sem saúde. Tal direito
também é de caráter constitucional, ou seja, a Lei n. 8.080/90 pode até mencionar o acesso
universal e integral à saúde, mas o seu principal fundamento vem da Constituição Federal.
Assim, a Lei do SUS é entendida como uma disposição complementar39, sendo uma
política pública desenvolvida para atender a sociedade. Desta forma, esta política visa atender a
todos que mais necessitem por meio de ações universalizadas buscando efetivar o direito fun-
damental ao indivíduo com o emprego de recursos necessários para a satisfação do direito40.
O crescimento do caminho traçado pela Constituição no Brasil efetivou os Direitos
Humanos elencando-os como fundamentais à sobrevivência digna de cada indivíduo41.
Por sua vez, o artigo 5º, § 1º da CF/1988 respalda tais direitos em nosso ordenamento,
merecendo aplicação imediata no tocante às garantias fundamentais42.
Nessa toada, cumpre trazer no âmbito global que os Tratados Internacionais aceitos
por decreto em nosso ordenamento jurídico possuem vital importância no implemento do
acesso à saúde aos não nacionais, ainda que a constituição Federal garanta a todo e qual-
quer cidadão que necessite do acesso à saúde pública brasileira43, 44.

Eletrônica do Curso de Direito (PUC Minas Serro), v. 2, p. 117-142, 2010. p. 122. Disponível em: http://perio-
dicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/viewFile/1290/1853. Acesso em: 12 jul. 2020).
38
JHERING, Rudolph Von. A luta pelo direito. São Paulo: Hunterbooks, 2015.
39
BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Direito à saúde: para entender a gestão do SUS. 1.
ed. Brasília: CONASS, 2015. Disponível em: https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/DIREITO-A-SAUDE.pdf.
Acesso em: 10 ago. 2023.
40
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.
php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
41
DANIELI, Ronei. A judicialização da saúde no Brasil: do viés individualista ao patamar de bem coletivo. Belo
Horizonte: Fórum, 2018.
42
Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade” §1º:” As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
43
Art. 24. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de gozar do melhor padrão possível de saúde e
dos serviços destinados ao tratamento das doenças e à recuperação da saúde. Os Estados Partes envidarão
esforços no sentido de assegurar que nenhuma criança se veja privada de seu direito de usufruir desses
serviços sanitários. (Decreto n. 99.710, de 21/11/1990).
44
Art. 12. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado
nível possível de saúde física e mental” (Decreto n. 591, de 06/07/1992).
A internacionalização do Direito à saúde |57

Em que pese o artigo 5º da CF/1988 considere nacionais e estrangeiros iguais pe-


rante, a existência dos Tratados Internacionais abarca uma maior segurança na positivação
deste direito social aos não nacionais.
Com isso, a concomitância da Constituição Federal brasileira com os tratados in-
ternacionais resguardam aos nacionais e aos não nacionais o acesso à saúde mediante o
sistema único de saúde brasileiro como visto a seguir.

4 A INTERNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE


Como anteriormente observado, no Brasil o direito sanitário possui grande valor
Constitucional aos nacionais, contudo, este valor também é potencializado aos estrangeiros.
O artigo 5º da CF apresenta que os estrangeiros não possuem distinções com relação aos
nacionais, quer se dizer, que merecem o mesmo tratamento por possuir os mesmos direitos.
Em que pese o artigo 95 do Estatuto do Estrangeiro – Lei Federal n. 6.815/198145–
prever que apenas os estrangeiros residentes no Brasil poderiam usufruir dos mesmos
direitos que os brasileiros, o Supremo Tribunal Federal (STF), pacificou que a leitura deste
artigo deve abarcar também aos não residentes46.
Com a revogação do diploma pela atual Lei de Migração, essa Novatio Legis trouxe
a igualdade entre nacionais e não nacionais, tendo ambos o acesso igualitário ao sistema
de direitos e garantias fundamentais brasileiros.
Portanto, essa máxima implica em dizer que ao estrangeiro cabe também o aces-
so à justiça, permitindo-lhe para tanto garantir o acesso ao plano público de saúde nas
esferas judiciais.
Nessa toada, cumpre mencionar a aplicabilidade deste entendimento, o qual já foi
objeto de mérito junto ao Tribunal Regional da 4ª Região, o qual deferiu o direito à saúde a
um estrangeiro com fulcro no artigo 5º da Constituição Federal, preservando as garantias
fundamentais ao ser humano47.

45
Já revogado pela Lei n. 2017/13.445.
46
“[...] Ressaltou-se que, em princípio, pareceria que a norma excluiria de sua tutela os estrangeiros não resi�-
dentes no país, porém, numa análise mais detida, esta não seria a leitura mais adequada, sobretudo porque
a garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana não comportaria exceção baseada
em qualificação subjetiva puramente circunstancial. Tampouco se compreenderia que, sem razão perceptível,
o Estado deixasse de resguardar direitos inerentes à dignidade humana das pessoas as quais, embora estran-
geiras e sem domicílio no país, se encontrariam sobre o império de sua soberania” (BRASIL. Superior Tribunal
Federal. HC 97.147. Segunda Turma. Relator para o acórdão: Ministro Cezar Peluso. Julgamento em 4.8.2009;
acórdão ainda não publicado; informação extraída do Informativo STF n. 554. Disponível em: http://www.stf.
jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo554.htm. Acesso em: 10 ago. 2023).
47
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TRANSPLANTE DE MEDULA. TRATAMENTO GRATUITO PARA ESTRANGEIRO. ART.
5º DA CF. O art. 5º da Constituição Federal, quando assegura os direitos garantias fundamentais a brasileiros e
58| Wlademir Junior Lucietti Filho

No referido caso, o paciente necessitava de transplante de medula óssea, e em


suma, o entendimento firmado foi de que até mesmo o estrangeiro irregular merece o
atendimento à saúde.
Assim, o refugiado48 merece o mesmo tratamento, ou seja, sem discriminações
ou limites na atuação das garantias fundamentais uma vez que este não pode comprovar
domicílio, tal fundamento não é justificável para a não concessão do mínimo existencial49.
Outro fator que merece atenção no que tange ao direito ao mínimo essencial é ex-
plicitado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV), em que se
apresenta a importância de garantir o direito à saúde ao indivíduo e a sua família50.
Portando, se compreende que tratar de direitos sociais sem correlacionar com o
mínimo existencial torna-se impossível, eis que são valores significativos para o indivíduo
e a toda uma coletividade, haja vista que seu crescimento e suas condições de vida limi-
tam-se em possuir as condições básicas para sobreviver, dentre outras questões, o direito
à saúde é imprescindível, vez que seu acesso é primordial para a sociedade.
Assim, o direito à saúde – interligado com o direito à vida, ambos fundamentais – é
também direito do imigrante e do refugiado, merecendo acesso mediante a política pública
do Sistema Único de Saúde, seja para a proteção ou prevenção da saúde.

estrangeiros residente no País, não está a exigir o domicílio do estrangeiro. O significado do dispositivo consti-
tucional, que o estrangeiro esteja sob a ordem jurídico-constitucional brasileira, não importa em que condição.
Até mesmo o estrangeiro em situação irregular no país encontra-se protegido e a ele são assegurados os direitos
e garantias fundamentais. (BRASIL. Justiça Federal. TRF4. AG 2005040132106/PR. Julgado em 29/8/2006).
48
Lei n. 9.474/1997: art. 1º: Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I – devido a fundados temores
de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se
fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo
nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regres-
sar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação
de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. Art. 2º:
Os efeitos da condição dos refugiados serão extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim
como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente, desde que se
encontrem em território nacional. Cf.: MELO, Leticia. O SUS deve garantir atendimento ao estrangeiro não re-
sidente? JusBrasil, 25 mar. 2015. Disponível em: https://leticiammelo.jusbrasil.com.br/artigos/176637472/o-
-sus-deve-garantir-atendimento-ao-estrangeiro-nao-residente. Acesso em: 12 jul. 2020.
49
Para Sarmento, “Não é de todo nova a compreensão de que o Estado e a sociedade devem promover as condições
materiais básicas para os necessitados, quem não tenham condições de se sustentar” (SARMENTO, Daniel. O mí-
nimo existencial. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 1644-1689, 2016. p. 1645. Disponível
em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFile/26034/19156. Acesso em: 04 jul. 2020).
50
Artigo 25. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde
e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispen-
sáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de
perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
A internacionalização do Direito à saúde |59

Tal entendimento não é só por analogia ao do direito ao trabalho, pois só consegue


trabalhar quem tem vigor, portanto na medida em que se assegura ao estrangeiro o direito
ao trabalho e a previdência, na mesma medida se positiva o direito à saúde.
Assim, os direitos fundamentais ganharam força após o término das Grandes
Guerras51, como já abordado, no Brasil a redemocratização ocorreu com a Constituição de
1988, conhecido como o núcleo dos direitos fundamentais52.
No entanto, para promover os direitos sociais, o financiamento é a principal fonte
para garantir o acesso da sociedade; por isso, a capacidade contributiva é essencial para a
concretização das políticas públicas. Uma vez que a obrigação é estatal, a arrecadação de
impostos é o financiador dessas garantias e sabe-se que os recursos são finitos53.
Esse papel da sociedade com relação às garantias sociais – que faz o dever do
Estado em promovê-las – também gera uma obrigação à sociedade, como já exposto,
os direitos fundamentais somente serão possíveis se houver arrecadação de tributos, ou
seja, se a sociedade não contribuir com seus impostos, o Estado terá uma escassez ainda
maior de recursos disponíveis para a positivação desses direitos, por isso, entende-se que
a sociedade também tem papel relevante na garantia desses direitos54.

51
Flávia Piovesan: Com o fim das Grandes Guerras, a sociedade se reorganizou com o propósito de se esta�-
belecerem em regimes constitucionais democráticos, baseados no respeito e proteção dos direitos humanos
(PIOVESAN, Flávia. A Constituição de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.
Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 47/48, jan./dez. 1997. Disponível em: https://www.
pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/rev6.htm. Acesso em: 13 jul. 2020).
52
Para Andressa Gotti: “No estado brasileiro, a redemocratização ocorreu na década de 80, sendo a Constituição
Da República Federativa do Brasil de 1988 o marco desse novo modelo estatal, baseado na dignidade da
pessoa humana, que por sua vez é o núcleo dos direitos fundamentais” (GOTTI, Alessandra. Direitos sociais.
São Paulo: Saraiva, 2012. p. 49).
53
GOTTI, Alessandra. Direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2012: “Assim, mesmo não havendo dispositivo ex-
presso acerca do dever fundamental de pagar imposto depreende-se da Constituição da República de 1988
que ele existe em nosso ordenamento jurídico. Deve-se ter em mente que o Estado Democrático de Direito
(art.1º, CR) não está simplesmente pautado no “império da lei” (Estado de Direito), mas almeja superar o
Estado de Direito, garantindo não somente a liberdade individual (com a proteção aos direitos de propriedade),
como também o respeito por todos os direitos e garantias fundamentais, baseadas no princípio da dignidade
da pessoa humana (art.1º, III, CF). Nesse novo modelo não se verifica a tributação, simplesmente, como a
clássica relação de poder entre o Estado e os indivíduos, mas uma relação baseada no estatuto constitucional
do indivíduo, com a necessidade de concretização dos direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídi-
co e com os deveres fundamentais a serem prestados pelo cidadãos”.
54
Cármen Lúcia: É preciso que os direitos fundamentais sejam entendidos não como obrigação apenas do
Estado, mas como obrigação de cada cidadão. E é a partir daí que podemos conceber o direito da dignidade
da pessoa humana, porque o direito não faz milagre, mas existe para que as pessoas tenham a oportunidade
de conviver de forma harmônica (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A dignidade da pessoa humana e o mínimo
existencial. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: FGV, n. 252, p. 15-24, 2009. p. 19. Disponível
em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/7953. Acesso em: 10 ago. 2023).
60| Wlademir Junior Lucietti Filho

Em se tratando de matéria de saúde, a Constituição Federal prevê que 12% da ar-


recadação dos impostos será destinada ao serviço público de saúde55, e segundo o Pacto
Internacional (art.12), este serviço deverá oferecer ao indivíduo o grau mais elevado de
saúde física e mental56.
No Brasil, somente em 24 de janeiro de 1992 que foi incorporado o pacto em nosso
sistema, tal fato ocorreu pelo advento do Decreto n. 591/1992.
O Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é explícito ao
tratar do direito à saúde em seu artigo 2º57, o qual impera que devem ser utilizados todos
os recursos disponíveis para a concretização dos direitos do indivíduo.
Mais além, o artigo 5º reitera o dever prestacional do Estado com relação à dignidade
da pessoa ao indicar que não será admitido nenhuma restrição no tocante às garantias funda-
mentais58; no texto, o referido ordenamento demonstra que não é possível ensejar qualquer
forma de omitir a prestação aos direitos fundamentais quer seja por advento de um meio le-
gal, quer seja por uma interpretação tendenciosa do Pacto abordado pelo Decreto 591/1992.
Ou seja, muito pode ser debatido quanto ao dever prestacional do Estado às garantias
fundamentais ao indivíduo, mas pouco há que se falar de omissão dos legisladores, vez que
os direitos fundamentais possuem expressa previsão tanto na Constituição Federal brasileira,
quanto no Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O que implica
dizer que a dignidade humana e a garantia de um direito tão fundamental, como é o caso da
saúde, supera a esfera nacional, com isso, temos a internacionalização de um direito que
deve ser concedido a todo e qualquer cidadão, independentemente de sua nacionalidade.

55
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro: FGV, n. 252, p. 15-24, 2009. p. 23. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/
rda/article/view/7953. Acesso em: 10 ago. 2023
56
O direito à saúde está expresso em seu artigo 12. A palavra saúde se origina do latim salutIe, que significa
“salvação, conservação da vida, cura, bem-estar” e, preservando este sentido, o conceito de saúde, segundo
definição apresentada pela Organização Mundial da Saúde, “é um estado de completo bem-estar físico, mental
e social e não apenas a ausência da doença ou enfermidade”.
57
Art. 2º: Cada Estado parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio
como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o
máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios apro-
priados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no Presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de
medidas legislativas.
58
Art. 5º: Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou
vigentes em qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o
pressente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.
A internacionalização do Direito à saúde |61

5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, temos que o não nacional possui as mesmas garantias funda-
mentais no Estado brasileiro que um nacional, respaldo previsto no artigo 5º da CF/1988,
no Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Lei do Refugiado
(9.474/1997), Decreto n. 591/1992 e Pacto de San José da Costa Rica. Enfim, garantia
jurídica não falta para a positivação dos direitos sociais, em especial o da saúde.
O Sistema Único de Saúde foi desenvolvido pelo Estado para viabilizar o acesso do
indivíduo, portanto, o direito material se equipara à Constituição Federal, que busca propor
a universalidade do direito e a integralidade do atendimento.
A sociedade por sua vez, possui importante papel para a concretização dos direitos
fundamentais. Haja vista que tudo demanda custo, e o financiamento advindo dos cofres do
Estado – leia-se: União, estados, municípios e Distrito Federal – só serão possíveis devido
à arrecadação de tributos. Como já abordado, as verbas são finitas e as necessidades são
muitas. Assim, o cidadão que contribui devidamente está ao mesmo tempo viabilizado o
custeio das políticas públicas, ou seja, as mantendo ativas.
Embora se fale de obrigação social, não podemos esquecer que o garantidor prin-
cipal é o Estado, sendo ele o responsável por programar e orientar o funcionamento das
políticas públicas. Lembra-se que, havendo falha na política implementada e possuindo o
indivíduo o direito, é plenamente plausível buscar a efetivação nas vias judiciárias.
Outrossim, os direitos sociais são intimamente ligados aos princípios basilares da
proteção à vida, o caráter jurídico e social os tornam os elementos principais da vida humana.
O exercício da democracia, o direito ao trabalho, o ir e vir, o direito ao desenvol-
vimento, enfim, um vasto campo de direitos assegurados à sociedade, seja coletivos ou
individuais, só podem ser executados se garantido o mínimo existencial. Sem isso, não há
o que se falar em dignidade da pessoa.
Nessa toada é que os direitos fundamentais são tão importantes e respaldados
juridicamente em várias fontes normativas. Então, assegurar estes direitos aos nacionais e
negá-los aos não nacionais soa, além de inconstitucional e fora dos padrões jurídicos, uma
afronta à ética e aos valores sociais.
Destarte, não há que se admitirem distinções raciais, culturais, e toda e qualquer di-
ferença possível no momento de fornecer condições básicas para as pessoas sobreviverem.
Assim, não há que se restringir o acesso à saúde aos não nacionais, pois o que
vale aqui é o sentido de pessoa, de vida, e todos merecem viver dignamente, lembrando
que a condição de cada um não o torna especial perante os outros, pois a lei nos coloca
em condição de igualdade, principalmente no direito de viver e exercer nossos direitos.
62| Wlademir Junior Lucietti Filho

Portanto, o principal elemento normativo que torna possível a igualdade de acesso


aos direitos e garantias fundamentais no Brasil é a Constituição Federal. Afinal, dela se origi-
na os direitos sociais, bem como a orientação para a criação do sistema público de saúde.
Com isso, entendemos que a nossa Carta Magna é o maior ordenamento jurídico em
nosso país, mesmo que os Tratados Internacionais sejam firmados com o Brasil, estes só pode-
rão ser incorporados em nosso sistema via decreto. Desta forma, os tratados possuem status
de emenda constitucional. Ou seja, mais um elemento constitucional de nosso sistema jurídico.
Por fim, todo humano residente ou não no Brasil, nacional ou não, merece, e a este
deve ser assegurado à sua dignidade o acesso às garantias fundamentais. Se violado este
direito, o indivíduo poderá ingressar em vias judiciais para buscar garanti-lo. Assim, se define
que o sistema público sanitário brasileiro deverá assistencializar todo e qualquer ser humano
que esteja em nosso território em respeito à Constituição Federal e à dignidade humana.

REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, forneci-
mento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Rio de Janeiro: Procuradoria
Geral do Estado do Rio de Janeiro; Instituto Ideias, 2007. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
dl/estudobarroso.pdf. Acesso em: 07 jul. 2020.
BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Direito à saúde: para entender a gestão do SUS.
1. ed. Brasília: CONASS, 2015. Disponível em: https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/DIREITO-A-
SAUDE.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:
Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 10 ago. 2023.
BRASIL. Decreto-lei n. 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Brasília: Presidência da República, 1992. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 06 jul. 2020.
BRASIL. Justiça Federal. TRF4. AG 2005040132106/PR. Julgado em 29/8/2006.
BRASIL. Lei Complementar n. 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3º do art. 198 da
Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde [...]. Brasília:
Presidência da República, 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp141.
htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília: Presidência
da República, 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/
l13445.htm. Acesso em: 04 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, pro-
teção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
A internacionalização do Direito à saúde |63

outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990a. Disponível em: https://www.planalto.


gov.br/ccivil_03/LEIS/L8080.htm. Acesso em: 05 ago. 2020.
BRASIL. Lei n. 8.147, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a alíquota do Finsocial. Brasília:
Presidência da República, 1990b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8147.
htm. Acesso em: 12 jul. 2020
BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na
gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos
financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990c.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm. Acesso em: 12 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria
o Conselho Nacional de Imigração [Revogada]. Brasília: Presidência da República, 1980. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.htm. Acesso em: 14 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto
dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília: Presidência da República, 1997.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9474.htm. Acesso em: 05 jul. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acesso ao Tribunal Constitucional: possibilidade de ações movi-
das por estrangeiros. [S.d.]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfCooperacaoIn-
ternacional/anexo/Respostas_Venice_Forum/24Port.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal Federal. HC 97.147. Segunda Turma. Relator para o acórdão: Ministro Cezar
Peluso. Julgamento em 4.8.2009; acórdão ainda não publicado; informação extraída do Informativo
STF n. 554. Disponível em: http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo554.
htm. Acesso em: 10 ago. 2023.
CAÚLA, César. Dignidade da pessoa humana, elementos do estado de Direito e exercício da jurisdi-
ção: o caso do fornecimento de medicamentos excepcionais no Brasil. Salvador: Juspodivm, 2010.
DANIELI, Ronei. A judicialização da saúde no Brasil: do viés individualista ao patamar de bem coletivo.
Belo Horizonte: Fórum, 2018.
FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa humana no direito contem-
porâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista. Revista
trimestral de direito civil: RTDC, v. 9, n. 35, p. 101-119, jul./set. 2008.
FERREIRA, Natália Braga. Notas sobre a teoria dos princípios de Robert Alexy. Revista Eletrônica do
Curso de Direito (PUC Minas Serro), v. 2, p. 117-142, 2010. Disponível em: http://periodicos.pucmi-
nas.br/index.php/DireitoSerro/article/viewFile/1290/1853. Acesso em: 12 jul. 2020.
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito à saúde. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner; SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial
e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 24, 02 jul. 2008.
Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/61269/reserva_possivel_minimo_existen-
cial.pdf. Acesso em: 09 jul. 2020.
GEBRAN NETO, João Pedro; SCHULZE, Clenio Jair. Direito à saúde: análise à luz da judicialização.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2015.
64| Wlademir Junior Lucietti Filho

GOTTI, Alessandra. Direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2012.


HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico
– reflexos sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo
& Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. Disponível em:
https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991.
INTRODUÇÃO. In: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SERGIO AROUCA. Assistência farma-
cêutica em foco no Estado do Rio de Janeiro: normas e documentos para ação. Rio de Janeiro:
Fiocruz, [s.d.]. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/judicializacao/pdfs/introducao.
pdf. Acesso em: 09 jul. 2020.
JHERING, Rudolph Von. A luta pelo direito. São Paulo: Hunterbooks, 2015.
LIMA NETO, Jorge Nogueira de. Expressões e termos latinos para juristas. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
MELO, Keila Morgana Gomes de. O dever fundamental de pagar imposto em face da concretização dos di-
reitos fundamentais. Publicações da Escola Superior da AGU, Brasília, v. 9, n. 1, p. 31-46, 2017. Disponível
em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/view/1151. Acesso em: 10 ago. 2023.
MELO, Leticia. O SUS deve garantir atendimento ao estrangeiro não residente? JusBrasil, 25 mar.
2015. Disponível em: https://leticiammelo.jusbrasil.com.br/artigos/176637472/o-sus-deve-garantir-
-atendimento-ao-estrangeiro-nao-residente. Acesso em: 12 jul. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração universal dos direitos humanos. Assembléia
Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Brasília: Unesco no Brasil, 1998. Disponível em: http://unes-
doc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 06 jul. 2020.
PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos direitos à saúde e à educação: uma perspectiva constitu-
cional. Belo Horizonte: Fórum, 2015.
PIOVESAN, Flávia. A Constituição de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos huma-
nos. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 47/48, jan./dez. 1997. Disponível em:
https://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/ver6.htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro: FGV, n. 252, p. 15-24, 2009. Disponível em: https://periodicos.
fgv.br/rda/article/view/7953. Acesso em: 10 ago. 2023.
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e mínimo existencial – notas sobre um pos-
sível papel das assim chamadas decisões estruturais na perspectiva da jurisdição constitucional. In:
ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (org.). Processo estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017.
SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4,
p. 1644-1689, 2016. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFi-
le/26034/19156. Acesso em: 04 jul. 2020.
O DIREITO TRIBUTÁRIO COMO
MECANISMO PARA A MATERIALIZAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE
À CRISE SOCIOECONÔMICA NO BRASIL

Luiza Boff Lorenzon1


Marilaine Moreira de Jesus2
Ramon Gabriel Conti3

Sumário: 1. Introdução. 2. A visão constitucional do direito tributário. 3. A ordem tributária


diante da crise socioeconômica no Brasil. 4. A (in)eficiência do Estado em garantir o exer-
cício de direitos fundamentais de caráter tributário. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente artigo buscou, por meio de um estudo explicativo e exploratório, analisar o
Direito Tributário como sendo um mecanismo para a materialização dos direitos funda-
mentais em face à crise socioeconômica no Brasil. Faz-se pertinente tal análise, na medida
em que o Estado, muitas vezes, torna-se ineficaz em garantir a efetivação dos diversos
direitos fundamentais de caráter tributário, reconhecendo-se a escassez de recursos, o que
suscita em uma urgente análise econômica. Para isso, sucede-se um exame do processo
de constitucionalização do Direito Tributário, para após retratar e analisar a ordem tributária

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil). Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná
(EMAP), Núcleo de Curitiba (2021). Graduada pela Universidade de Passo Fundo (UPF, 2020). Estagiária de
pós-graduação no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: luizabofflorenzon@hotmail.com
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil). Bolsista Prosup/Capes. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da
Magistratura do Paraná (Emap), Núcleo de Curitiba (2006) e em Direito Notarial e Registral pelo grupo IBMEC
(2021). Aprovada no 3º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Serventias
Notariais e Registrais no Estado do Paraná. Advogada. E-mail: laine.adv@gmail.com
3
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil). Bolsista Prosup/Capes Especialista em Direito Privado. Advogado.
E-mail: ramongconti@gmail.com
66| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

diante da crise socioeconômica no Brasil. Ao final, argumenta-se a acerca da (in)eficácia


do Estado em garantir o exercício de direitos fundamentais de caráter tributário, especial-
mente no que tange às políticas públicas e à prestação de serviços essenciais, de forma
que não se torne mais oneroso com aqueles que possuem menor poder aquisitivo.
Palavras-chave: Crise socioeconômica. Direito tributário. Direitos fundamentais. Eficácia.
Neoconstitucionalismo.

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo o estudo do Direito Tributário como sendo
um mecanismo para a materialização dos direitos fundamentais em meio a instabilidade
econômica e social presente na realidade brasileira, levando-se em consideração que a
Constituição Federal de 1988 (CF/88), prevê em seu artigo 3, incisos I a IV, a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem estar de todos, sem precon-
ceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação, a erra-
dicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais,
bem como o desenvolvimento nacional4.
Faz-se pertinente tal análise, na medida em que o Estado, muitas vezes, se torna
ineficaz em garantir a efetivação dos diversos direitos fundamentais de caráter tributário, re-
conhecendo-se a escassez de recursos, o que suscita em uma urgente análise econômica.
Assim, em um primeiro momento se faz necessário uma análise do Direito Tributário
à luz da visão constitucional atual, a qual atribuiu status de norma jurídica às normas cons-
titucionais, sendo dotadas de força normativa, e condicionadas às realidades sociais e polí-
ticas. Paralelamente a isso, mostra-se fundamental estabelecer instrumentos que garantam
o seu cumprimento obrigatório.
Nessa lógica, o Direito Tributário sofre mudanças com o processo de constitucio-
nalização dos temas por si só na medida em que elenca em suas normas infraconstitucio-
nais, buscando trazer dispositivos à luz da Constituição Federal e pautado na preocupação
de sua legitimação e aplicação.
Diante disso, pretende-se a construção desse ramo mais condizente com a realidade
econômica e social vivenciada pelo Brasil, a qual é pautada atualmente por uma ambivalência
e insegurança, o que surte a necessidade de se buscar novos princípios ou consagrá-los de
maneira mais coerente. A ordem tributária é entrelaçada com às questões sociais, de modo
que cabe ao Estado viabilizar e implementar direitos fundamentais, mas para isso faz-se opor-
tuno mecanismos válidos como instrumentos de concretização das previsões constitucionais.

4
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.
htm. Acesso em: 23 set. 2022.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |67

Nesse sentido, observa-se que as questões tributária devem ser ferramentas ca-
pazes de viabilizar a promoção de uma justiça social, bem como a efetivação de direitos
fundamentais, no entanto, isso traz consigo uma série de necessidades financeiras, que
importam em despesas para a coletividade.
O que se pretende ao final deste artigo é analisar se o Estado é eficaz em garantir
o exercício de direitos fundamentais de caráter tributário, especialmente no que tange às
políticas públicas e a prestação de serviços essenciais, sendo necessário para tanto uma
análise econômica da legislação aplicável à tributação, para que não gere mais despesas
aos contribuintes e também, não cause onerosidade aos cofres públicos, como maneira de
alcançar a máxima eficácia de tais direitos.
Nesse sentido, faz-se necessário considerar o tema relacionado ao que está previsto
no texto legal, além de se averiguar as posições doutrinárias e os conceitos técnicos acerca
dos entendimentos, para isso vale-se de uma análise indutiva e pesquisa bibliográfica.

2 A VISÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO TRIBUTÁRIO


Nas últimas décadas, especialmente ao final do século XX, várias interpretações
acerca de um Estado Constitucional de Direito surgiram, especialmente por pensadores
como Robert Alexy5, Ronald Dworkin6, Zagrebelsky7, dentre outros, que expõem em
matrizes filosóficas e sociais o chamado neoconstitucionalismo8. Ainda, busca-se enten-
der como o modelo de Estado Democrático de Direito é capaz de conciliar os valores da
democracia e do constitucionalismo atrelado ao pluralismo social e político9.

Seja qual for o nome que se queira empregar, a verdade é que o direito constitu-
cional sofreu e continua a sofrer profundas alterações nos últimos tempos, sendo que a
constitucionalização dos direitos o resultado dessa expansão que, conforme Luís Roberto
Barroso, possui três marcos fundamentais para delimitar: o histórico, teórico e filosófico10.

5
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008.
6
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
7
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derecho, justicia. Madrid: Trota, 2009.
8
Para estudo sobre o tema, vide: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo: elementos para uma definição. In:
MOREIRAM Eduardo R.; PUGLIESI, Márcio (coord.). 20 Anos da Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 2009.
9
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes doutriná�-
rios e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 394-
442, set./dez. 2019. p. 399-400. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
10
Sobre este tema, ver: BARROSO, Luís R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, v. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005. p. 22.
Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618. Acesso em: 15 set. 2022.
68| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

Pode-se salientar que, um dos principais desdobramentos do atual constituciona-


lismo é a atribuição de status de norma jurídica às normas constitucionais, rompendo com
a ideia anterior que considerava apenas a realização de uma constituição jurídica, condicio-
nada às realidades sociais e políticas, e não ao contrário11. Essa mudança foi fortemente
influenciado pelos estudos de Konrad Hesse, para o qual a Constituição não poderia mais
ser entendida como uma mera folha de papel, mas sim como um instrumento para a rea-
lização do direito, sendo influenciado pela política e pelas questões sociais, a qual agora
dispõe de mecanismos jurídicos capazes de conformá-la à tal realidade12.

Paralelamente à ideia da Constituição ser uma norma jurídica e portanto, dotada de


força normativa, mostra-se necessário estabelecer instrumentos que garantam o seu cum-
primento obrigatório13. Assim, adotou-se um modelo de controle de constitucionalidade,
inspirado na experiência norte-americana, a qual consistia na ideia de constitucionalizar di-
reitos e garantias fundamentais, que ficariam resguardados do processo político, cabendo
sua proteção ao Judiciário14.

Luís Roberto Barroso descreve todo esse fenômeno como uma nova forma de
enxergar e interpretar o direito, por meio de um direito constitucional, de modo que todo
ato, implica na aplicação direta ou indireta da Constituição. O autor ainda sintetiza, expondo
que “a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força
normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, [...] como um vetor
de interpretação de todas as normas do sistema”15.

11
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 403. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
12
“A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel, tal como caracterizada por Lassalle. Ela não afigu�-
ra “impotente para dominar, efetivamente a distribuição de poder”, tal como ensinado por Georg Jellinek e como,
hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo que se pretende cético. A Constituição não está
desvinculada da realidade histórica concreta de seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente,
por essa realidade. Em caso de conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte
mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbave Vorausstzungen) que, mesmo em caso
de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição” (HESSE, Konrad. A força normativa da
Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 25).
13
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 404. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
14
BARROSO, Luís R. Doze anos da Constituição brasileira de 1988 – uma breve e acidentada história de suces�-
so. In: BARROSO, Luís R. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 68-69.
15
BARROSO, Luís R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do direito cons�-
titucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, v. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005. p. 22. Disponível em:
https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618. Acesso em: 15 set. 2022.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |69

Nessa mesma perspectiva, Daniel Sarmento destaca duas observações: a primeira


é que esse movimento de constitucionalização rompe com fronteiras, mudando paradig-
mas, dogmas, e as relações entre público e privado16; a segunda diz respeito ao alcance
dele, na qual a Constituição passa a ser um elo universal para todos os ramos do Direito17.

Desse modo, o direito tributário sofre esse processo de constitucionalização dos


temas que estavam dispostos na legislação infraconstitucional. À vista disso, o autor
Ricardo Ribeiro divide a constitucionalização do direito tributário em duas vertentes: a pri-
meira é tida como formal, a qual retrata os dispositivos do Sistema Tributário Nacional, a
qual sempre foi muito explorada por doutrinadores e juristas; a segunda, possui uma índole
material, uma vez que está preocupada com a legitimação do sistema tributário e a aplica-
ção dos seus princípios, não tendo tanto adeptos quanto a primeira18.

O que carece atenção é sem dúvidas a ideia da constitucionalização do direito tri-


butário atrelado ao efeito expansivo de suas normas fundamentais. Segundo Marco Aurélio
Greco19:

A mudança política, social e fática levou a uma mudança de mentalidade que re-
percutiu no modo pelo qual devem ser compreendidas as condutas do Fisco e do
contribuinte. Em relação à conduta do Fisco questionam-se as finalidades de sua
ação, bem como a destinação e a aplicação dos recursos arrecadados e sua com-
patibilidade efetiva com as políticas públicas que devem subsidiar; em relação à
conduta do contribuinte questiona-se a existência de um fundamento substancial
que a justifique (razão ou motivo para o exercício da liberdade de contratar).

Dessa maneira, o direito tributário deve seguir de exemplo os outros ramos do


direito, cuja doutrina tem se esforçado até hoje para fornecer a revisão dos seus institutos

16
“A constitucionalização do Direito vai desafiar antigas fronteiras como Direito Público/ Direito Privado e Estado/
sociedade civil. Isso porque, numa ordem jurídica constitucionalizada, a Constituição não é apenas a lei funda-
mental do Estado”. “Ela é a lei fundamental do Estado e da sociedade” (SARMENTO, Daniel. Ubiquidade cons-
titucional: os dois lados da moeda. In: SARMENTO, Daniel. Livros e iguais – estudos de direito constitucional.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 177).
17
“Há agora um centro de gravidade, capaz de recolher e juridicizar os valores mais importantes da comunidade
política, no afã de conferir alguma unidade axiológica e teleológica ao ordenamento” (SARMENTO, Daniel.
Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SARMENTO, Daniel. Livros e iguais – estudos de direito
constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 177).
18
RIBEIRO, Ricardo L. A constitucionalização do direito tributário. In: RIBEIRO, Ricardo L. Temas de direito
constitucional tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2009.
19
GRECO, Marco Aurélio. Crise do Formalismo no direito tributário brasileiro. Revista da PGFN, Brasília: PGFN,
v. 1, n. 1, p. 9-18, jan./jun. 2011. p. 15, Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/central-de-conteudo/
publicacoes/revista-pgfn/revista-pgfn/ano-i-numero-i/revista.pdf. Acesso em: 17 set. 2022.
70| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

à luz dessas novas premissas20. Assim, o debate tributário reside hoje em saber quais os
parâmetros constitucionais e critérios devem ser adotados neste novo contexto em que os
princípios constitucionais, impõe ao aplicador do direito a construção de um complexo de
normas que obrigam o Estado à preservação dos indivíduos, garantindo-lhes condições
mínimas de vida e integração na sociedade21.

Os impedimentos e obstáculos quanto a financiamento e a ampliação das funções


estatais, motivou o surgimento de um Estado Social e Democrático de Direito, marcado por
uma sociedade de risco, a qual supera o positivismo22, 23. Nessa seara, o pós-positivismo
aproxima o direito dos valores, promovendo a ponderação e a segurança jurídica.

Essa segurança jurídica em uma sociedade de risco afasta-se da ideia individua-


lista do Estado Liberal, e da ideia de seguridade universal do Estado Social, buscando se
consolidar na ideia seguro social, não apenas de direitos mas na distribuição de prejuízos
e custos pelos indivíduos, decorrentes do pluralismo político e social24. Reconhece-se que
os direitos fundamentais e sociais denotam custos que devem ser partilhados por toda a
sociedade e financiados principalmente pelas receitas tributárias25.

Isso significa que, tanto as isenções quanto as incidências representam o compar-


tilhamento de custos dos direitos e a prevenção de riscos sociais por parte da sociedade, o
qual é um processo que onera alguns e confere vantagens para outros26. Conforme Barbosa

20
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 409. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
21
ALVES, Geovane M.; OLIVEIRA FILHO, Ivan de. A Constituição Federal e a defesa dos direitos dos contribuintes:
apontamentos sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações no direito tributário. Revista
Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 17, n. 17, p. 145-167, jan./jun. 2015. p. 156. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/564. Acesso em: 20 set. 2022.
22
Sobre sociedade de riscos: BECK, Ulrich. Sociedade de risco. rumo a uma outra modernidade. Tradução de
Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.
23
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 410. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
24
RIBEIRO, Ricardo L. A segurança jurídica do contribuinte. Legalidade, não-surpresa e proteção à confiança
legítima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 263.
25
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 411. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
26
RIBEIRO, Ricardo L. A segurança jurídica do contribuinte. Legalidade, não-surpresa e proteção à confiança
legítima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 263.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |71

destaca, no Brasil há uma tensão dialética entre uma sociedade carente e desigual, bem como
o extenso rol de direitos fundamentais que é consagrado na Constituição Federal. Ocorre que,
“administrar é, por essência, gerir recursos finitos para demandas ilimitadas. A cada decisão
alocativa explícita, o administrador se vê diante de uma decisão desalocativa implícita”27.

Dessas ideias surge a necessidade de se ir além da categoria de direitos do con-


tribuinte, e isso parte da aceitação de uma relação horizontal entre diferentes contribuintes
da obrigação, além da categorização vertical entre Estado e contribuinte. A ponderação é
ampliada pela inclusão de outros interesses no método de concretização do Direito, supe-
rando e justificando aquilo que não levam em consideração a realidade28.

De qualquer forma, não se surge um afastamento total do desenvolvimento teórico


do direito tributário, nem dos princípios constitucionais em que se baseia. Mas sim, o que
se pretende é a construção desse ramo de maneira mais condizente com a realidade social
e as normas vigentes, o que por consequência implica em uma necessária releitura de seus
princípios em uma perspectiva neoconstitucionalista.

3 A ORDEM TRIBUTÁRIA DIANTE DA CRISE SOCIOECONÔ-


MICA NO BRASIL
Com o fenômeno da globalização bem como pelo momento inquieto que as econo-
mias e políticas mundiais estão atravessando, leva-se a ponderar que com o crescimento
desenfreado dessas, acaba por gerar o desenvolvimento tal como interfere na medida em que
acompanha dificuldades pontuais. À vista disso, não se trata tão somente da crise econômi-
ca, mas de uma crise social pautada em valores, haja vista a imprescindível necessidade de
reflexão sobre os conceitos tributários assim como a efetivação de direitos fundamentais.

Diante de um crescimento econômico tridimensional, nota-se um progresso no


desenvolvimento integral dos indivíduos, seja na ótica do trabalho, lazer, alimentação, edu-
cação, entre outros, que promovam a nível global isso. É diante desse contexto, que as
questões sociais exigem um direito tributário maleável e adaptável às realidades.

27
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 411. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
28
BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes dou�-
trinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3,
p. 394-442, set./dez. 2019. p. 412. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/
revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
72| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

Conforme destaca Ricardo Lobo, a sociedade atual possui algumas características


relevantes: “a ambivalência, a insegurança, a procura de novos princípios e o redesenho do
relacionamento entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade”29.
Para Bauman a “ambivalência, [...], é uma desordem [...] o principal sintoma da desordem
é o agudo desconforto que sentimos quando somo incapazes de ler adequadamente a
situação e optar entre ações alternativas”30.

Os traços dessa sociedade, pautados em uma ambivalência e insegurança, faz com que
surja a necessidade de se buscar novos princípios ou consagrá-los de maneira mais coerente,
com o sentido de fundamentar o ordenamento jurídico e as relações entre sociedade e Estado.

Nesse sentido, conforme apontam os autores Domingos e Cunha, a ordem tributá-


ria deve atender a alguns princípios basilares, dentre eles:
(i) equidade ou capacidade contributiva: cada indivíduo deve contribuir segundo a
sua capacidade econômica;
(ii) progressividade: pautado pelos princípios da capacidade contributiva e da igual-
dade, prevê a elevação dos tributos de maneira gradual com finalidade fiscal ou
extrafiscal, atendidos os parâmetros estabelecidos pela lei;
(iii) neutralidade: a tributação não deve enfraquecer o consumo, o investimento e
a produção; e,
(iv) simplicidade: com a finalidade de minimizar custos administrativos, o cálculo,
a fiscalização e a exigência devem ser simplificados31.
Isto posto, a ordem tributária está entrelaçada diretamente com as questões so-
ciais, de tal maneira que para o Estado viabilizar e implementar direitos e garantias funda-
mentais é necessário tutelar adequadamente os valores sociais protegidos e angariados
pela Constituição Federal. Deste modo, é preciso mecanismos válidos como instrumentos
que concretizem as previsibilidades constitucionais32. Nessa feita, as questões tributárias

29
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitu-
cionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 177.
30
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999. p. 9.
31
DOMINGOS, Terezinha de O.; CUNHA, Leandro R. da. A tributação como instrumento de concretização da
dignidade da pessoa humana em face do desenvolvimento. In: TAVARES NETO, José Q.; FEITOSA, Raymundo
J. R. (coord.). 25 anos da Constituição Cidadã: os atores sociais e a concretização sustentável dos objetivos
da República. Florianópolis: FUNJAB, 2013. p. 48-71. p. 51. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/
artigos/?cod=154aa6866aefb6f8. Acesso em: 17 set. 2022.
32
JONER, Gabriel. O direito tributário como instrumento de concretização de direitos fundamentais: Diálogos
entre tributação e liberdade religiosa. Revista Diálogo Jurídico, Centro Universitário Farias Brito, v. 16, n. 2,
p. 21-33, 2018. p. 25. Disponível em: http://dialogojuridico.fbuni.edu.br/index.php/dialogo-juridico/article/
view/9. Acesso em: 17 set. 2022.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |73

devem ser ferramentas capazes de viabilizar a promoção de uma justiça social, bem como
contribuir com a efetivação de direitos fundamentais, como uma maneira de garantir a
manutenção do Estado e obstar a transgressão do tecido social33.

Ora, a promessa de implementar direitos traz consigo uma série de necessidades


financeiras, já que todas as prestações estatais, como os direitos individuais e sociais
garantidos pela Constituição, importam em despesas e devem ser suportados pela coleti-
vidade34. De acordo com Joner, a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado
Democrático de Direito, ou seja, um modelo de Estado pautado e caracterizado por abrigar
e defender os valores originários da sociedade e, sobretudo, agindo para concretizá-los,
não em uma dimensão negativa, mas sim, e principalmente, positiva35-36.

Assim, a existência do Estado resulta do fato de que a sociedade deve ser organi-
zada para subsistir, e deve ser pautada à realização de determinados objetivos. Para isso,
o Estado precisa de meios financeiros para poder cumprir com seus propósitos, neces-
sitando realizar atividades financeiras com o intuito de arrecadar, administrar e utilizar os
recursos para cumprir estes objetivos37.

No entanto, é notório que o cumprimento daqueles é tarefa difícil. Ademais a eco-


nomia brasileira está em crise, o que foi impulsionada pelo cenário inusitado da pandemia
da Covid-1938. Conforme apontam dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

33
DOMINGOS, Terezinha de O.; CUNHA, Leandro R. da. A tributação como instrumento de concretização da
dignidade da pessoa humana em face do desenvolvimento. In: TAVARES NETO, José Q.; FEITOSA, Raymundo
J. R. (coord.). 25 anos da Constituição Cidadã: os atores sociais e a concretização sustentável dos objetivos
da República. Florianópolis: FUNJAB, 2013. p. 48-71. p. 51. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/
artigos/?cod=154aa6866aefb6f8. Acesso em: 17 set. 2022.
34
SILVA, Sergio A. R. G da. A tributação na sociedade de risco. In: PIRES, Adilson R.; TÔRRES, Heleno T.
Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. 1. ed.
São Paulo: Renovar, 2006. p. 179- 223. p. 187.
35
JONER, Gabriel. O direito tributário como instrumento de concretização de direitos fundamentais: Diálogos
entre tributação e liberdade religiosa. Revista Diálogo Jurídico, Centro Universitário Farias Brito, v. 16, n. 2,
p. 21-33, 2018. p. 25. Disponível em: http://dialogojuridico.fbuni.edu.br/index.php/dialogo-juridico/article/
view/9. Acesso em: 17 set. 2022.
36
Sobre esse assunto, ver: SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
37
DOMINGOS, Terezinha de O.; CUNHA, Leandro R. da. A tributação como instrumento de concretização da
dignidade da pessoa humana em face do desenvolvimento. In: TAVARES NETO, José Q.; FEITOSA, Raymundo
J. R. (coord.). 25 anos da Constituição Cidadã: os atores sociais e a concretização sustentável dos objetivos
da República. Florianópolis: FUNJAB, 2013. p. 48-71. p. 51-52. Disponível em: http://www.publicadireito.com.
br/artigos/?cod=154aa6866aefb6f8. Acesso em: 17 set. 2022.
38
Para mais informações veja: HERNÁNDEZ, Javier G. V.; GARCIA, Denise S. S.; GARCIA, Heloise S. Revisitando
o ODS 1 pós pandemia: o papel das políticas econômicas. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v.
27, n. 2, p. 187-209, maio/ago. 2022. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i22463. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2463. Acesso em: 20 set. 2022.
74| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

(IPEA) houve um aumento significativo de preços para as indústrias no ano de 2020, o que
acaba por se refletir diretamente no consumidor final, além de que as taxas de juros subi-
ram, suscitando na aplicação de dinheiro na economia como forma de política monetária,
ocasionando uma inflação nacional39.

Não obstante, a corrupção, a burocracia para a criação e manutenção de empresas


privadas nacionais, o sistema de política de importação e exportação de mercadorias, entre
outros problemas, fez com que houvesse um aumento na dívida pública externa, dificultando
os fluxos de investimentos no país. Isso sucedeu em uma alta taxa de desemprego, elevação
no preço das mercadorias, principalmente da cesta básica, corte de investimentos em setores
sociais, além de desafios enfrentados quanto ao avanço das tecnologias, devido à tais cortes40.

Em meio a crises humanitárias, políticas e econômicas, é cobiçado que políticas


públicas sejam estáveis e previsíveis. No entanto, o que se vislumbra é um cenário nacio-
nal pautado em subfinanciamento, cortes de verbas, incentivos excessivos para parcerias
público-privadas que apenas trazem benefícios econômicos distante das necessidades,
sustentando propostas antagônicas de enfrentamento do cenário41.

Outro fator impeditivo para a restauração econômica e social do país diz respeito
ao afastamento à gestão das empresas públicas e privadas, pois somente empresas bem
desenvolvidas e consolidas no país conseguem resistir ao problemas financeiras, o que
acaba por oportunizar ainda mais o aumento de desemprego, diminuição de arrecadação e,
por consequência menor redistribuição de recursos e maior afastamento das perspectivas
de desenvolvimento e manutenção dos direitos fundamentais42, 43.

39
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Carta de conjuntura: n. 50, jan./mar. 2021. p. 4-6.
Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10472. Acesso em: 14 set. 2022.
40
DOMINGUES, Eduardo A.; MARCELLOS, Lincoln N.; PILEGGI, Luís C. Os direitos fundamentais sobre uma aná�-
lise tributária: em tempos de instabilidade política, crise econômica e pandemia. South American Development
Society Journal, v. 8, n. 22, p. 264-285, maio 2022. p. 277. Disponível em: http://www.sadsj.org/index.php/
revista/article/view/498. Acesso em: 15 set. 2022.
41
DOMINGUES, Eduardo A.; MARCELLOS, Lincoln N.; PILEGGI, Luís C. Os direitos fundamentais sobre uma aná�-
lise tributária: em tempos de instabilidade política, crise econômica e pandemia. South American Development
Society Journal, v. 8, n. 22, p. 264-285, maio 2022. p. 277-278. Disponível em: http://www.sadsj.org/index.
php/revista/article/view/498. Acesso em: 15 set. 2022.
42
Sobre outros problemas acarretados pela Covid-19, ver reportagem: FORD encerra a produção de veículos no
Brasil. G1, 11 jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/01/11/ford-fecha-fabri-
cas-e-encerra-producao-no-brasil-em-2021.ghtml. Acesso em: 20 set. 2022.
43
HENRIQUES, Cláudio M. P.; VASCONCELOS, Wagner. Crises dentro da crise: respostas, incertezas e desen�-
contros no combate à pandemia da Covid-19 no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, p. 25-44,
maio/jul. 2020. p. 25-44. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
ea/a/BWWTW6DL7CsVWyrqcMQYVkB/?lang=pt. Acesso em: 17 set. 2022.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |75

Ademais, na obra Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel


Ziblatt, os autores apontam que quando os indivíduos não creem em seus líderes, os fun-
damentos da democracia representativa são enfraquecidos e a relevância das eleições di-
minuem. Diante disso, se cria um obstáculo para o desenvolvimento econômico e social
do país, o que se reflete diretamente na obtenção de receitas por parte do ente estatal44.

Em grande medida, o Estado encontra alternativa para cumprir as obrigações pres-


critas pela Constituição Federal em matéria tributária, e se a função arrecadatória não for
suficiente para atingir os objetivos sociais, econômicos e políticos desejados, ele pode
se utilizar de outros meios tributários, majorando ou diminuindo a carga tributária, com o
objetivo de favorecer ou desestimular o comportamento dos contribuintes45.

Nesse sentido, além da tributação funcionar como uma forma de custeio das ati-
vidades estatais, essa também desempenha um papel relevante no que se refere às con-
dições para o desenvolvimento econômico, “sendo certo que um sistema tributário mal
administrado pode funcionar como entrave ao crescimento de uma nação ou bloco econô-
mico, agravando as condições de vida dos indivíduos”46.

Segundo Alves e Oliveira, a legitimidade da função arrecadatória do Estado, possui


dois aspectos significante de explanação. Em primeiro lugar, diz-se que existe uma legitimi-
dade política que, nos Estados Democráticos, os representante eleitos pelo povo decidem
acerca dos tributos, ou seja, assentam-se na ideia de um parlamento democrático. Em se-
gundo lugar, a legitimidade do tributo possui um condão sociológico, que segundo Michel
Bouvier, trata-se de uma aceitação íntima47. Dessa forma, o processo de tributação pode
ser entendido como sendo complexo e multirracional, produto da interação de inúmero
atores, cada qual de acordo com a sua própria racionalidade48.

44
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2018.
45
DOMINGUES, Eduardo A.; MARCELLOS, Lincoln N.; PILEGGI, Luís C. Os direitos fundamentais sobre uma aná�-
lise tributária: em tempos de instabilidade política, crise econômica e pandemia. South American Development
Society Journal, v. 8, n. 22, p. 264-285, maio 2022. p. 282. Disponível em: http://www.sadsj.org/index.php/
revista/article/view/498. Acesso em: 15 set. 2022.
46
SILVA, Sergio A. R. G da. A tributação na sociedade de risco. In: PIRES, Adilson R.; TÔRRES, Heleno T.
Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. 1. ed.
São Paulo: Renovar, 2006. p. 179- 223. p. 189.
47
BOUVIER, Michel. As transformações contemporâneas do tributo: em direção a uma outra cultura? As exo�-
nerações tributárias e a concorrência fiscal no âmbito interno e internacional. Revista Internacional de Direito
Tributário, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 3-26, jul./dez. 2004. p. 06.
48
ALVES, Geovane M.; OLIVEIRA FILHO, Ivan de. A Constituição Federal e a defesa dos direitos dos contribuintes:
apontamentos sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações no direito tributário. Revista
Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 17, n. 17, p. 145-167, jan./jun. 2015. p. 147. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/564. Acesso em: 20 set. 2022.
76| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

Conforme análise realizada por Ricardo Lobo Torres, é preciso ir além da cren-
ça um tanto quanto ingênua na possibilidade de fechamento permanente dos conceitos
tributários, como se nesse ramo do direito subsistisse uma perfeita harmonia entre pen-
samento e linguagem, e que houvesse a plenitude na aplicação dos conceitos. O direito
tributário, como os outros ramos do direito, opera por meio de conceitos abertos, que
devem ser sanados por meio de interpretações administrativas e argumentações jurídicas
democraticamente desenvolvidas49, 50.

Do ponto de vista econômico, nenhuma economia pode funcionar sem no mínimo


uma estrutura de organização institucional que, por sua vez, essa necessita de financia-
mentos. A partir dessa constatação, surgem duas inquietações quanto a eficiência econô-
mica e a equidade no financiamento de políticas públicas.

4 A (IN)EFICIÊNCIA DO ESTADO EM GARANTIR O


EXERCÍCIO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE
CARÁTER TRIBUTÁRIO
A eficiência do estado em garantir o exercício de direitos fundamentais possui o
sentido de maximizar determinados interesses sociais eleitos como sendo de maior impor-
tância. Como se observa, este não é um conceito neutro, afastando de compreensões e
pré-compreensões, uma vez que a decisão de maximizar um objetivo específico já revela
uma visão de mundo51.

A arrecadação tributária garante ao ente estatal os mecanismos necessários para


custear suas políticas públicas em prol da realização do bem-estar social, que em última
instância, é a própria razão de ser do Estado. O dever de contribuir é inerente e inato ao
indivíduo como ser social, sendo esse um pressuposto constitucional52.

Conforme Bogo pontua, no atual Estado Democrático de Direito e diante do cenário


atual, surge a necessidade de uma tributação efetiva para atender às demandas cada vez

49
TORRES, Ricardo L. Legalidade tributária e riscos sociais. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n.
59, p. 95-112, 2000. p. 96.
50
Sobre a utilização de conceitos indeterminados no campo do Direito Tributário, ver: RIBEIRO, Ricardo L.
Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 44.
51
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 216. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022.
52
ALVES, Geovane M.; OLIVEIRA FILHO, Ivan de. A Constituição Federal e a defesa dos direitos dos contribuintes:
apontamentos sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações no direito tributário. Revista
Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 17, n. 17, p. 145-167, jan./jun. 2015. p. 157. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/564. Acesso em: 20 set. 2022.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |77

maiores da sociedade, sendo que a consecução desses objetivos está atrelado ao cumpri-
mento de limites impostos pela ordem constitucional e os direitos e garantias nela previs-
tos. É um tema de grande preocupação, e ao mesmo tempo, de interesse para a sociedade,
principalmente pelo conteúdo da discussão que envolve, conflitos entre princípios e bens
jurídicos tutelados constitucionalmente53.

Para isso, é imprescindível se definir uma “unidade de medida” como um critério de


eficiência, que irá tentar responder à questão: se as pessoas buscam maximizar, o que re-
almente maximizam? Os critérios de interesses a serem escolhidos são: dinheiro, utilidade,
riqueza humana ou felicidade?54. Os questionamentos têm por objetivo determinar o con-
junto de interesses que é almejado pelos indivíduos, ou seja, “coisas que satisfazem direta
ou indiretamente necessidades ou desejos humanos55. Em razão de uma multiplicidade de
necessidades e desejos humanos faz-se necessário encontrar um critério de conduta que
possibilidade mensurar as escolhas coletivas e individuais. Este critério deverá ser o mais
amplo e genérico possível para abarcar toda a generalidade de interesses56.

Assim, pelo critério da utilidade, permite-se a abstração das tendências individuais


e a possibilidade de se mensurar a importância de um determinado bem em relação a
outros. Dessa forma, quanto mais específico for um determinado item, mais útil será para
uma determinada pessoa57.

Outro critério citado por Caliendo é o dinheiro, mas com o inconveniente de que
para isso

o acréscimo de uma unidade diminui seu valor ao invés de acrescentar. Assim, se


eu tenho um real e acrescento outro tenho um acréscimo de 50% para cada real
adicional terei uma redução no acréscimo, assim, a próxima unidade irá acrescentar
somente 33% de valor e assim gradativamente. Tal não ocorre com as preferências
em que a utilidade do afeto não se diminui com a sua intensidade, maximizar a utili-
dade somente potencializa a unidade e não o contrário como no dinheiro58.

53
BOGO, Luciano Alaor. Elisão tributária: licitude e abuso de direito. Curitiba: Juruá, 2006. p. 352.
54
BOGO, Luciano Alaor. Elisão tributária: licitude e abuso de direito. Curitiba: Juruá, 2006. p. 216
55
MARSHAL, Alfred. Princípios de economia. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Col. Os Economistas, v. 1). p. 62.
56
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 216. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022.
57
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 216. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022.
58
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 217. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022.
78| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

O autor ainda aponta que o dinheiro tem sido o critério mais eficiente ao contrário
da utilidade, já que com o dinheiro é possível se conceber comparações entre os indivíduos,
além do que é intuito admitir que os mesmo optem por ter mais dinheiro do que menos.
Ademais, as críticas ao uso desses dois critérios têm sido enormes, especialmente por auto-
res como Ronald Dworkin e Martha Neussbaum. Para Martha, o comportamento humano é
complexo demais para ser entendido simplesmente por um critério de utilidade ou monetário.
Dworkin ainda enfatiza que, a disposição de “pagar pode esbarrar na impossibilidade de pagar
dos mais pobres, gerando indagações sobre a justiça da distribuição dos recursos”59.

A dificuldade na escolha desses critérios reside no fato de que a doutrina não con-
segue encontrar alternativas consensuais ao critério monetário ou de utilização, principal-
mente porque esses dão estabilidade, objetividade e simplicidade. Como se vê, nenhum
dos critérios explicitados acima pode responder plenamente ao desafio de constitui interes-
ses individuais e coletivos60.

Nesse sentido, para que se tenha uma compreensão dos direitos fundamentais
em caráter tributário, nota-se que o direito não procurar apenas tratar de eficiência, se-
não também de justiça, que em diversos casos, é necessário o diálogo de ambos.
Consequentemente, reconhecendo-se a escassez dos recursos para a efetivação dos di-
versos direitos fundamentais de natureza tributária, além dos demais interesses pretendido
pelo Estado, urge que a sociedade faça escolhas entre opções razoáveis, o que suscita a
racionalidade do comportamento humano diante da escassez61.

Em outras palavras, promover-se-á os direitos fundamentais em caráter tributário


com o máximo de aproveitamento dos recursos, e para isso se faz necessário uma análise
econômica. Segundo Paulo Caliendo, “a eficiência econômica irá possuir o sentido de maxi-
mização de determinados bens sociais eleitos como sendo de significativa importância”62.

59
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 217. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022.
60
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 218. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022.
61
RIBEIRO, Maria Carla P.; CAMPOS, Diego C. da S. Análise econômica do direito e a concretização dos direitos
fundamentais. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 11, n. 11, p. 304-329, jan./jun. 2012.
p. 317. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/266. Acesso
em: 20 set. 2022.
62
CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições e limi�-
tes. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. p. 203. DOI: 10.30899/
dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em: 20 set. 2022..
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |79

Ao se tratar da eficiência da atuação do Estado na promoção de direitos funda-


mentais de natureza tributária, “quer-se dizer a máxima efetivação de tais direitos, com
a aplicação mais adequada dos recursos, sempre observando as limitações dos valores
éticos e morais reconhecido pela sociedade”63.

Dessa forma, é necessário por parte do Estado como gestor e provedor de direitos,
uma análise econômica da legislação aplicável à tributação, como maneira de alcançar a má-
xima eficácia dos direitos fundamentais, especialmente nas políticas públicas e prestação de
serviços essenciais, de forma que onere menos a classe que possui menos poder aquisitivo,
para que sejam livres e possam desfrutar de uma vida digna com a máxima promoção de
bem-estar social, ao menor custo possível, sem que isso afete também os cofres públicos.

5 CONCLUSÃO
No decorrer deste artigo buscou-se apresentar em breves linhas a problemática
do Estado em garantir a efetivação dos diversos direitos fundamentais de caráter tributá-
rio, diante da escassez de recursos e dos problemas socioeconômicos vividos no Brasil.
Isso faz suscitar, em caráter urgente, uma análise econômica como forma de alcançar a
máxima eficácia dos direitos, especialmente em políticas públicas e prestação de serviços
essencial, de maneira que os indivíduos possam gozar de uma vida digna com a máxima
proteção do bem-estar social.

Nesse sentido, quando se trata de conferir aplicabilidade e eficácia aos direitos


fundamentais de caráter tributário, em especial para a implementação de políticas públicas
e prestação de serviços essenciais à coletividade, é preciso render-se aos métodos de
análise e soluções disponíveis, em prol da eficácia desses direitos, uma vez que em uma
sociedade que vem sofrendo mudanças, uma análise econômica da legislação aplicável
à tributação pode ser um mecanismo para alcançar a máxima eficácia e efetividade dos
direitos fundamentais de natureza tributária.

Do diálogo entre economia e Direito, é possível considerar não apenas os preceitos


de justiça, mas também buscar uma maior eficácia no uso dos recursos, os quais são
escassos, surgindo uma maneira de melhorar a gestão responsável por parte do setor
público, para implementação de políticas públicas que atenda aos deveres fundamentais e
objetivos da República Federativa do Brasil.

63
RIBEIRO, Maria Carla P.; CAMPOS, Diego C. da S. Análise econômica do direito e a concretização dos direitos
fundamentais. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 11, n. 11, p. 304-329, jan./jun. 2012.
p. 322. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/266. Acesso
em: 20 set. 2022.
80| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

Nesse sentido, a tributação realizada de maneira eficaz pode promover a concre-


tização dos direitos fundamentais de forma a possibilitar uma maior concretização das
garantias fundamentais, que são tão onerosas para o Estado Democrático de Direito.

No entanto, é evidente que a atividade arrecadatória do país não é suficiente para resol-
ver todos os problemas de justiça social, isso porque apenas um dos alicerces para se buscar
a eficácia dos direitos fundamentais. Além do ente estatal criar mecanismos eficazes para a ar-
recadação tributária, cabe ao mesmo determinar parâmetros adequados para o enquadramen-
to dos valores obtidos, levando-se em consideração a busca por um desenvolvimento social.

A satisfação dos anseios sociais à garantia de uma vida mais digna para todos
(longe da mera ideia de sobrevivência), deve ser o objetivo principal de um Estado que é
regido por uma constituição cidadã, e para isso além do correto emprego da arrecadação,
faz-se necessário uma análise econômica da legislação aplicável à tributação, de modo a
enquadrar seus conceitos à realidade brasileira.

Certamente há limites para a aplicação de uma análise econômica, assim como para
muitos dos elementos abordados neste artigo, porém, crê-se na significante relevância des-
te estudo para a construção de mecanismos e uma ordem tributária mais justa e eficiente, de
modo a conseguir alcançar todos os objetivos pretendidos na Constituição Federal.

REFERÊNCIAS
 LEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
A
Malheiros, 2008.

ALVES, Geovane M.; OLIVEIRA FILHO, Ivan de. A Constituição Federal e a defesa dos direitos dos
contribuintes: apontamentos sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações
no direito tributário. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 17, n. 17, p. 145-167,
jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/564. Acesso em: 20 set. 2022.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999.

BARBOSA, Marcus V. Constitucionalização do direito tributário e o Supremo Tribunal Federal: aportes


doutrinários e jurisprudenciais para um direito tributário renovado. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v.
21, n. 3, p. 394-442, set./dez. 2019. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/
edicoes/revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_394.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.

BARROSO, Luís R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do direito


constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, v. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005. Disponível
em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618. Acesso em: 15 set. 2022.
O Direito tributário como mecanismo para a materialização dos Direitos... |81

BARROSO, Luís R. Doze anos da Constituição brasileira de 1988 – uma breve e acidentada história
de sucesso. In: BARROSO, Luís R. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

BOGO, Luciano Alaor. Elisão tributária: licitude e abuso de direito. Curitiba: Juruá, 2006.

BOUVIER, Michel. As transformações contemporâneas do tributo: em direção a uma outra cultura? As


exonerações tributárias e a concorrência fiscal no âmbito interno e internacional. Revista Internacional
de Direito Tributário, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 3-26, jul./dez. 2004.

BECK, Ulrich. Sociedade de risco. rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento.
São Paulo: Editora 34, 2010.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:


Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 23 set. 2022.

CALIENDO, Paulo. Direitos fundamentais, direito tributário e análise econômica do Direito: Contribuições
e limites. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 7, p. 203-222, 2009. DOI:
10.30899/dfj.v3i7.486. Disponível em: https://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/486. Acesso em:
20 set. 2022.

CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo: elementos para uma definição. In: MOREIRAM Eduardo
R.; PUGLIESI, Márcio (coord.). 20 Anos da Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 2009.

DOMINGOS, Terezinha de O.; CUNHA, Leandro R. da. A tributação como instrumento de concretização
da dignidade da pessoa humana em face do desenvolvimento. In: TAVARES NETO, José Q.; FEITOSA,
Raymundo J. R. (coord.). 25 anos da Constituição Cidadã: os atores sociais e a concretização susten-
tável dos objetivos da República. Florianópolis: FUNJAB, 2013. p. 48-71. Disponível em: http://www.
publicadireito.com.br/artigos/?cod=154aa6866aefb6f8. Acesso em: 17 set. 2022.

DOMINGUES, Eduardo A.; MARCELLOS, Lincoln N.; PILEGGI, Luís C. Os direitos fundamentais so-
bre uma análise tributária: em tempos de instabilidade política, crise econômica e pandemia. South
American Development Society Journal, v. 8, n. 22, p. 264-285, maio 2022. Disponível em: http://
www.sadsj.org/index.php/revista/article/view/498. Acesso em: 15 set. 2022.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.

GRECO, Marco Aurélio. Crise do formalismo no direito tributário brasileiro. Revista da PGFN, Brasília:
PGFN, v. 1, n. 1, p. 9-18, jan./jun. 2011. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/central-de-con-
teudo/publicacoes/revista-pgfn/revista-pgfn/ano-i-numero-i/revista.pdf. Acesso em: 17 set. 2022.

FORD encerra a produção de veículos no Brasil. G1, 11 jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.
com/economia/noticia/2021/01/11/ford-fecha-fabricas-e-encerra-producao-no-brasil-em-2021.ght-
ml. Acesso em: 20 set. 2022.

HENRIQUES, Cláudio M. P.; VASCONCELOS, Wagner. Crises dentro da crise: respostas, incertezas e
desencontros no combate à pandemia da Covid-19 no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34,
n. 99, p. 25-44, maio/jul. 2020. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.003. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/ea/a/BWWTW6DL7CsVWyrqcMQYVkB/?lang=pt. Acesso em: 17 set. 2022.
82| Luiza Boff Lorenzon - Marilaine Moreira de Jesus - Ramon Gabriel Conti

HERNÁNDEZ, Javier G. V.; GARCIA, Denise S. S.; GARCIA, Heloise S. Revisitando o ODS 1 pós pan-
demia: o papel das políticas econômicas. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 27, n. 2,
p. 187-209, maio/ago. 2022. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i22463. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2463. Acesso em: 20 set. 2022.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Carta de conjuntura: n. 50, jan./mar. 2021.
Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10472. Acesso em: 14 set. 2022.

JONER, Gabriel. O direito tributário como instrumento de concretização de direitos fundamentais::


Diálogos entre tributação e liberdade religiosa. Revista Diálogo Jurídico, Centro Universitário Farias
Brito, v. 16, n. 2, p. 21-33, 2018. Disponível em: http://dialogojuridico.fbuni.edu.br/index.php/dialogo-
-juridico/article/view/9. Acesso em: 17 set. 2022.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018.

MARSHAL, Alfred. Princípios de economia. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Col. Os Economistas, v. 1).

RIBEIRO, Maria Carla P.; CAMPOS, Diego C. da S. Análise econômica do direito e a concretização
dos direitos fundamentais. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 11, n. 11, p.
304-329, jan./jun. 2012. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/
article/view/266. Acesso em: 20 set. 2022.

RIBEIRO, Ricardo L. A constitucionalização do direito tributário. In: RIBEIRO, Ricardo L. Temas de


direito constitucional tributário. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2009.

RIBEIRO, Ricardo L. A segurança jurídica do contribuinte. Legalidade, não-surpresa e proteção à


confiança legítima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

RIBEIRO, Ricardo L. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SARMENTO, Daniel.
Livros e iguais – estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SILVA, Sergio A. R. G da. A tributação na sociedade de risco. In: PIRES, Adilson R.; TÔRRES, Heleno
T. Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo
Torres. 1. ed. São Paulo: Renovar, 2006. p. 179- 223.

TORRES, Ricardo L. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios


constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II.

TORRES, Ricardo L. Legalidade tributária e riscos sociais. Revista Dialética de Direito Tributário, São
Paulo, n. 59, p. 95-112, 2000.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derecho, justicia. Madrid: Trota, 2009.
O DIREITO FUNDAMENTAL AO NOME
E AS IMPLICAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI
14.382/2022 À SEGURANÇA JURÍDICA

Marilaine Moreira de Jesus1


Luiza Boff Lorenzon2
Jocimar Pereira de Souza3

Sumário: 1. Introdução. 2. O direito fundamental ao nome e suas características. 3. A pos-


sibilidade de alteração do nome e a segurança jurídica. 4. Conclusão. Referências.

Resumo
Este artigo tem por objetivo realizar uma análise do direito fundamental ao nome, suas
características e quais as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022 à segurança jurídica,
visto que a referida lei possibilitou a alteração do nome da pessoa natural de forma imoti-
vada, diretamente na esfera extrajudicial (cartório), em qualquer tempo após a maioridade
civil. Foram realizadas buscas nos bancos de dados do Capes, Google Acadêmico e SciELO
através das seguintes palavras-chave: Direito ao nome; Direitos da personalidade; Direito
fundamental; Imutabilidade do nome. Por se tratar de uma novidade legislativa, há pouco
material sobre o tema, contudo, foi possível constatar que a possibilidade de modificação

1
Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia do Programa de Pós-graduação em Direito do Centro
Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Bolsista Prosup/Capes. Especialista em Direito Aplicado pela
Escola da Magistratura do Paraná (Emap), núcleo de Curitiba (2006) e em Direito Notarial e Registral pelo
grupo IBMEC (2021). Aprovada no 3º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de
Serventias Notariais e Registrais no Estado do Paraná. Advogada. E-mail: laine.adv@gmail.com
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil). Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná
(Emap), núcleo de Curitiba (2021). Graduada pela Universidade de Passo Fundo (UPF, 2020). Estagiária de
pós-graduação no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: luizabofflorenzon@hotmail.com
3
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Bacharel em Direito pela
Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (Cesul). Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Estadual
do Centro-Oeste (Unicentro). Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Francisco
Beltrão (Cesul). Especialista em Direito Notarial e Registral pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus.
Id Lattes: http://lattes.cnpq.br/1858016693442887. Id Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6075-9252
E-mail: souza.advocacia.sj@gmail.com.
84| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

do nome diretamente em cartório e de forma imotivada não põe em risco à segurança


jurídica das relações que envolvam seu portador, visto que atualmente existem diversas
tecnologias que nos permitem identificar pessoas com alto grau de segurança. A identifi-
cação biométrica em suas diversas formas (leitura facial, íris, impressão digital, curvatura
das mãos, voz), as certificações digitais, o Cadastro Nacional das Pessoas Físicas - CPF,
são exemplos de mecanismos que asseguram as relações jurídicas envolvendo a pessoa
humana. Da mesma forma, a aludida novidade legislativa aproxima a pessoa natural do seu
direito fundamental ao nome e ao exercício dos seus direitos da personalidade.

Palavras-chave: Direito ao nome. Direitos da personalidade. Direito fundamental.


Imutabilidade do nome.

1 INTRODUÇÃO
O direito ao nome é um dos atributos mais importantes da personalidade, trata-se
de um direito fundamental que possibilita a identificação de uma pessoa, tanto no seio da
sua família, quando no meio social em que vive. Consiste em um direito fundamental e, por
consequência, inerente à toda pessoa natural.

Por muitos anos, até o advento da Lei 14.382/2022, o nome era regido pelo
Princípio da Imutabilidade ou, como alguns autores defendiam, Princípio da Definitividade,
pois em alguns casos a lei autorizava sua alteração. Entretanto, a referida lei alterou a
redação do art. 56 da Lei 6015/73 para possibilitar que toda pessoa, após ter atingido a
maioridade civil, possa requerer pessoalmente e de forma imotivada a alteração de seu
prenome (primeiro nome) diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais.

Dessa forma, o legislador ordinário modificou uma regra antiga, trazendo, a priori,
dúvidas em relação à segurança das relações jurídicas que envolvam a pessoa que alterou
ou resolver alterar o nome.

O objetivo do presente trabalho é, através de uma pesquisa bibliográfica, escla-


recer se a possibilidade de, após a maioridade civil, alterar o nome de forma imotivada
e diretamente em cartório, põe em risco a segurança jurídica ou, considerando o avanço
da tecnologia, a exemplo da identificação biométrica (leitura facial, íris, impressão digital,
curvatura das mãos, voz), e certificações digitais, é possível convivermos com essa regra
sem colocar em risco as relações jurídicas que envolvam aqueles que fizeram ou desejam
fazer alteração do seu nome.

A presente pesquisa não pretende esgotar o tema, visto que consiste em uma re-
cente alteração legislativa, mas trazer ao leitor uma posição concisa sobre a possibilidade
ou não de alterar o nome, sem colocar em risco a segurança jurídica das relações envol-
vendo o seu portador e terceiros.
O Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022... |85

2 O DIREITO FUNDAMENTAL AO NOME E SUAS


CARACTERÍSTICAS
O nome consiste em um elemento que possibilita a identificação da pessoa natural
no meio social em que vive ou de alguma forma se relaciona. Trata-se de um direito da
personalidade inato, ou seja, inerente à toda pessoa humana. O nome constitui um dos
atributos mais importantes da personalidade.

Para Limongi França, de modo geral, o nome é elemento indispensável ao próprio


conhecimento do ser humano, porquanto é em torno dele que a mente agrupa uma série de
atributos pertinentes aos diversos indivíduos, o que permite a sua rápida caracterização e
o seu relacionamento com os demais4.

Como regra, levando em consideração a teoria natalista adotada pelo Código Civil
de 2002, a pessoa natural carrega consigo os direitos da personalidade desde o seu nas-
cimento até o momento da sua morte. Trata-se do chamado “patrimônio mínimo”, ou seja,
de um mínimo imprescindível para pessoa natural desenvolver-se com dignidade.

O nome é o primeiro direito da personalidade do ser humano, ao nascer, ou mesmo


durante a gestação, em regra, a família escolhe qual será a principal forma de identificação
da pessoa que está para nascer. O nome só será juridicamente materializado com o registro
do recém-nascido ou, em casos de registro de tardio, com o registro de nascimento da pes-
soa no Registro Civil das Pessoas Naturais, conforme dispõe o art. 50 da Lei 6.015 de 1973.

O direito ao nome constitui um direito fundamental na medida que sem ele a pessoa
humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive5. A pessoa huma-
na sem nome figura como um indigente para o Estado, isto é, ela simplesmente não existe
e, por consequência, torna-se insuscetível de qualquer política pública.

Segundo ensina Ferrajoli, os direitos fundamentais são todos aqueles direitos sub-
jetivos que correspondem universalmente a “todos” os seres humanos enquanto pessoas,
cidadãos ou pessoas com capacidade de agir; entendido por direito subjetivo qualquer ex-
pectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) ligada a um indivíduo
por uma norma jurídica6.

Para Ingo Wolfgang Sarlet os direitos fundamentais são todas aquelas posições
jurídicas relativas às pessoas, que, do ponto de vista do Direito Constitucional positivo,
foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integradas ao texto da

4
FRANÇA, Rubens Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1958. p. 22.
5
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 178.
6
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Tradução de Perfecto Andrés Ibánez e Andrea
Greppi [espanhol]. Madri: Trotta, 2004. p. 37.
86| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

Constituição e, assim, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fun-


damentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser
equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição
formal7. Assim, mesmo que o direito ao nome não esteja expressamente previsto em
nossa Constituição, trata-se de um direito fundamental por equiparação.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 248.869 de 07.08.2003, de relatoria do


Ministro Maurício Correa, reconheceu que o direito ao nome se insere no conceito de digni-
dade de pessoa humana, princípio reconhecido como fundamento da República Federativa
do Brasil conforme dispõe o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

O ordenamento jurídico brasileiro garante a toda pessoa natural o direito de ter um


nome (prenome e sobrenome) que constitui, ao mesmo tempo, o dever de ter um nome;
o direito de interferir no próprio nome, que representa as hipóteses em que a lei autoriza
a alteração do nome; e o direito de impedir o uso indevido do seu nome por terceiros8.

Etimologicamente a palavra nome tem origem grega e deriva do latim “nomem”,


do verbo “noscere” ou “gnoscere” (conhecer ou ser conhecido). Significa a denominação
ou a designação que é dada a uma coisa ou a uma pessoa com o objetivo de identificá-la.
A própria fala humana se aperfeiçoou com a articulação dos fonemas e com isso os vo-
cábulos foram se formando e o ser humano sentiu a necessidade de nominar as coisas e,
posteriormente as pessoas como forma de distinção delas9.

Desde os primórdios da humanidade os povos já procuravam individualizar as pes-


soas por meio do nome. Muitas vezes o nome da pessoa natural representava a profissão
do seu portador e aos usos e costumes de localidades e povos.

França preleciona que em alguns povos considerados menos civilizados, a escolha


do nome tinha menos importância em comparação às culturas consideradas mais avan-
çadas. Segundo o autor, ao analisar a história de Heródoto e Plínio, denota-se a existência
de um povo, o único de que se tem notícia, em que os indivíduos não possuíam nomes
próprios. Segundo o autor, os Atlantes se chamavam em um conjunto de “Atlantes”, não
havia nenhum prenome que pudesse distinguir os elementos de um grupo10.

No direito germânico antigo era necessário somente o nome (primeiro nome) para
identificar uma pessoa, o sobrenome, também chamado nome de família, era mais uma

7
SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspec-
tiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 90.
8
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
9
FERRO JUNIOR, Izaías Gomes; SCHNEIDER, Analice Morais. Introdução ao estudo do nome. In: FERRO JUNIOR,
Izaías Gomes (coord.). O registro civil das pessoas naturais: novos estudos. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 123.
10
FRANÇA, Rubens Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1958. p. 25.
O Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022... |87

questão de status do que uma forma de identificação. Naquele tempo já havia previsão de
sanções para aquele que trocasse de nome11.

Na antiguidade, os nomes, incluindo prenome e sobrenome, refletiam a classe so-


cial e profissão do seu portador. Os gregos se utilizavam de nomes ligados à materialidade,
que refletiam classes sociais, qualidades ou espiritualidade. Os orientais escolhiam nomes
mais ligados a religião. Já os nomes germânicos eram relacionados mais a valentia, como
o heroísmo e a insolência. O nome ganhou maior importância à medida que adquiriu a
personalidade, algumas alcunhas, muitos patrimônios (Gonçalves, Esteves, Marques), e
nomes profissionais como Carreiro e Ferreiro, tornaram-se nomes de família12.

Entre os germanos a tradição de escolha do nome era realizada com uma festa,
onde o pai era o responsável por lançar seu filho na água e dar-lhe um nome. Na escolha
do nome os pais expressavam em alta voz o que gostariam que o filho se tornasse ou da
qualidade a qual desejavam que lhe fosse característica13.

A origem dos nomes de língua portuguesa possui ligação com a própria história
da língua. Os nomes medievais (período das Navegações) possuem origem nos nomes
adotados pelos povos que habitavam a Península, lusitanos e hispanos, dominados e in-
fluenciados pelos fenícios, gregos e em seguida pelos romanos, que, por sua vez, cederam
o território aos povos germânicos (já latinizados) e posteriormente aos árabes. Os romanos
possuíam um sistema de nomeação tríplice, isto é, utilizavam três nomes (triplex nomen);
entretanto, entre os séculos V e VIII, quando o cristianismo já mostrava sua força, o sistema
dos três nomes começou a enfraquecer. Os nomes, então, passaram a ser mais simples e,
por influência germânica, era escolhido somente um nome. Exemplos de origens variadas
de nomes usados na referida época oferece-nos uma pequena ideia da confusão de raças:
havia os de proveniência latina (Paulus, Tyberius, Amanda, Donata), grega (Andreas, de
Satirio, de) e germânica (Sisenandus, de sis e nanths). Contudo, do final da idade média até
o século XIX, tornaram-se mais frequentes os nomes de santos e santas da Igreja Católica
e nomes hebreus de origem bíblica14.

No Brasil, desde o início da colonização até pouco tempo antes da Proclamação


da República, o registro de nascimento era feito pela Igreja Católica através do batismo,

11
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – parte geral. Tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 238.
12
FERRO JUNIOR, Izaías Gomes; SCHNEIDER, Analice Morais. Introdução ao estudo do nome. In: FERRO JUNIOR,
Izaías Gomes (coord.). O registro civil das pessoas naturais: novos estudos. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 121.
13
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – parte geral. Tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 209.
14
CARVALHINHOS, Patrícia de Jesus. As origens dos nomes de pessoas. Revista Domínios de Linguagem,
ano 1, n. 1, p. 1-18, jan./jun. 2007. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem/article/
download/11401/6686/42466. Acesso em: 25 set. 2022.
88| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

era nesse momento que a pessoa natural recebia oficialmente um nome e passava a existir
para Deus e para o Estado.

Por todos esses anos, a competência do registro de nascimento era da Igreja Católica,
a qual possuía o monopólio dos Registros Públicos no Brasil. Com esse registro, o nome do
recém-nascido era inscrito no chamado Registro Eclesiástico, sendo que as anotações e
retificações eram feitas nos livros paroquiais, sob direção dos sacerdotes responsáveis.

Na época, eram registradas somente as pessoas que professavam a religião católi-


ca, excluídos todas as demais, ou seja, os evangélicos, os que seguiam religiões de origem
africana, enfim, aqueles que seguiam outra religião ou que se intitulavam ateus, viviam sem
documento algum.

No entanto, após muita resistência por parte da população que não era reconhecida
pelo Estado, foi editado o Decreto n. 1.144/61 que obrigou a Igreja Católica a realizar os
registros de nascimentos, casamentos e óbitos de pessoas que não seguiam a religião
oficial e professavam outra fé.

Nos termos da legislação vigente, o nome deve ser formado por um prenome (pri-
meiro nome) e um sobrenome (nome de família) ao menos. O nome é tido como um
instituto pré-jurídico, que surge com a necessidade social de identificar cada pessoa dentro
da sua comunidade15.

No que tange aos elementos formadores do nome, a doutrina diverge sobre o as-
sunto. O Código Civil de 1916 não possuía um conceito esclarecedor, confundindo, dessa
forma, os doutrinadores e operadores do direito, pois, ora utilizava o termo nome represen-
tando o nome completo, ora utilizava os termos nomes e prenomes e, ainda, outras vezes,
utilizava-se dos termos nomes e sobrenomes16.

Entretanto, o Código Civil de 10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor em 10 de


janeiro de 2003, trouxe uma conceituação clara sobre o instituto, dispondo no artigo 16
que: “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendido o prenome e sobrenome”17.

Da mesma forma, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 18,


determina que: “Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de
um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes
fictícios, se for necessário”18.

15
FERRO JUNIOR, Izaías Gomes; SCHNEIDER, Analice Morais. Introdução ao estudo do nome. In: FERRO JUNIOR,
Izaías Gomes (coord.). O registro civil das pessoas naturais: novos estudos. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 124.
16
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. v. 1. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 210-211.
17
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Presidência da República, 2002.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 25 set. 2022.
18
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. 1969, p. 1.
O Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022... |89

O nome também pode ser formado por elementos acessórios, ou seja, além do
prenome e do sobrenome, também podem ser utilizados o agnome, nome vocatório, apeli-
do ou alcunha, hipocorístico, pseudônimo, títulos eclesiásticos e de identidade acadêmica.

O agnome representa uma partícula utilizada para diferenciar as pessoas da mesma


família que possuem o mesmo prenome e sobrenome, a exemplo de José Dias e José Dias
Filho; João Maria Filho e João Maria Neto, nesses casos o “filho” e o “neto” caracterizam o
agnome. Os termos Junior e Sobrinho também são utilizados como agnome.

O nome vocatório é o nome pelo qual uma pessoa é de fato conhecida, a exemplo
de Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno, o qual é conhecido simplesmente como
Galvão Bueno; Olavo Braz Martins dos Santos Guimarães Bilac, conhecido popularmente
por Olavo Bilac ou de Dilma Vana Rousseff, conhecida como Dilma Rousseff.

Apelido ou alcunha são termos que também identificam a pessoa no meio social
em que vivem, geralmente são conferidos por terceiros e possuem caráter pejorativo. Em
regra, são ligados a características físicas, mentais, trabalho exercido, local de nascimento
de origem ou residência do seu portador.

Geralmente a intenção do apelido é hostilizar a pessoa do seu portador por meio


de alguma característica negativa, contudo, há casos que o apelido pode se tornar motivo
de orgulho para o seu portador, dando-lhe tanta notoriedade que a pessoa passa a pleitear
sua inclusão ao nome, como é o caso de Ex-Presidente da República Luiz Inácio da Silva,
que inclui ao seu nome o apelido Lula, passando a se chamar Luiz Inácio Lula da Silva19.

Segundo Amorim “os nomes hipocorísticos são aqueles em que se retira parte do
nome original, de modo a reduzi-lo, mantendo-se a sílaba mais forte, ou, termos diminu-
tivos utilizados para exprimir carinho”. Pode-se citar como exemplo os nomes Zé, Chico,
Chiquinho, Joãozinho, Pedrinho, Mariazinha, Ronaldinho, dentro outros20.

O pseudônimo serve para ocultar a real identidade do seu portador, bem como
para identificar os atos praticados em determinada condição. Existem vários exemplos de
pseudônimos, principalmente no meio artístico, à exemplo de Faustão, cujo nome é Fausto
Corrêa da Silva e Ratinho que se chama Carlos Roberto Massa.

Os títulos eclesiásticos são representados pelos termos como cardeal, bispo, arce-
bispo, padre, pastor, irmão, irmã, madre, dentre outros. Já os de identidade acadêmica são
representados pelos termos professor, mestre e doutor.

Por se tratar de um direito da personalidade, o nome possui algumas características:


primeiro, o nome não é somente um direito, mas também uma obrigação, na medida que é de

19
AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 04.
20
AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 16.
90| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

interesse de todos que os indivíduos que compõem uma sociedade sejam identificados. O nome
é indisponível, ou seja, o nome é um instituto insuscetível de ser cedido, alienado ou renunciado.
Deve ser exclusivo, isto é, o nome pertencente a uma pessoa só pode pertencer a ela, a ocor-
rência de homonímia não afasta a exclusividade, pois, somando-se ao nome outros elementos,
como a filiação, é possível individualizar a pessoa. É inalienável e intransmissível, na medida que
não pode ser vendido ou transferido a qualquer forma. É também irrenunciável21.

Feitas as considerações iniciais sobre o direito fundamental ao nome e suas princi-


pais características, como propósito do presente trabalho, passamos a analisar a possibi-
lidade de alteração do nome segundo a legislação brasileira, sobretudo após a publicação
da Lei 14.382/2022 que trouxe uma significativa alteração para as regras dos Registros
Públicos, dentre elas a modificação da redação do art. 56 da Lei 6.015/73.

3 A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO NOME E A


SEGURANÇA JURÍDICA
Como visto acima, o nome é um dos atributos mais importantes da personalidade,
é através dele que uma pessoa é devidamente identificada na sociedade em que vive ou de
alguma forma se relaciona. Sendo assim, até o advento da Lei 14.382/2022, era também
considerada a importância de sua imutabilidade, pois era através dela que seria possível
garantir a segurança jurídica e a estabilidade dos atos da vida civil.

Por muitos anos vigorou em nosso ordenamento jurídico a regra da imutabilidade


do nome ou da definitividade como preferem alguns autores, somente em casos especí-
ficos, expressamente previstos em lei ou em outros dispositivos legais é que poderia ser
alterado o nome que a pessoa recebeu ao ser registrada.

A redação do art. 56 da Lei 6.015/73 permitia que o interessado, no primeiro ano


após ter atingido a maioridade civil, poderia, pessoalmente ou através de procurador, alterar
o nome, desde que não prejudicasse os apelidos de família, devendo a alteração ser aver-
bada e publicada pela imprensa.

Interessante notar que existia um limite temporal para a alteração, somente no pri-
meiro ano após ter atingido a maioridade civil é que o interessado, pessoalmente ou por
procurador, poderia alterar o nome. Existia uma dúvida se havia a necessidade de motivação
e se o processo poderia ser realizado diretamente em cartório ou era necessário realizar um
pedido judicial, assim, na maioria das vezes os casos eram resolvidos na esfera judicial.

21
FERRO JUNIOR, Izaías Gomes; SCHNEIDER, Analice Morais. Introdução ao estudo do nome. In: FERRO
JUNIOR, Izaías Gomes (coord.). O registro civil das pessoas naturais: novos estudos. Salvador: Juspodivm,
2020. p. 143-150.
O Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022... |91

Farias e Rosenvald destacam que embora se trate de previsão legal de 1973, isto é,
anterior à Constituição de 1988, a referida norma se harmoniza com a concepção que en-
xerga o nome como um direito da personalidade. Respeita-se a autonomia da pessoa, suas
escolhas e seu percurso existencial. Abre a possibilidade que a própria pessoa redefina sua
trajetória em algo tão importante como é o nome22.

Contudo, a Lei 14.382/2022 alterou a redação do art. 56 da Lei 6015/73 para dizer
que a pessoa devidamente registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer
pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de deci-
são judicial, ou seja, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais.

O aludido artigo também dispõe que a alteração imotivada do prenome poderá ser
feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença
judicial, bem como a alteração deve ser averbada e publicada em meio eletrônico.

Portanto, não há mais limitação temporal e necessidade de motivação ou justifi-


cativa para alteração do nome, bem como o pedido pode ser feito diretamente no Registro
Civil das Pessoas Naturais.

Após a referida alteração legislativa, levando em consideração o nosso ordenamen-


to jurídico, sem pretensão de esgotar o tema, considerando que a lei não revogou as de-
mais previsões legais, além da possibilidade supracitada, pode-se afirmar que atualmente
o nome poder ser alterado nos seguintes casos:

De acordo com o parágrafo único do art. 55 da Lei 6015/73, é possível alterar o


nome em casos de prenomes suscetíveis de expor ao ridículo o seu portador. O processo
de alteração é realizado na via judicial e posteriormente averbado no Registro Civil das
Pessoas Naturais competente.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.905.614/SP, de


relatoria da Ministra Nancy Andrighi, permitiu a alteração de nome de uma criança que havia
recebido nome de Diane, mesmo nome dado a uma marca de anticoncepcional. O tribunal
entendeu que houve o descumprimento, por parte do pai, do acordo estabelecido entre os
genitores da criança acerca de seu nome (no caso concreto os genitores combinaram outro
nome; o pai foi sozinho no cartório de registro civil e escolheu nome diverso do combinado
– conforme sustentou a mãe, ele escolheu como nome da criança o mesmo da marca de
anticoncepcional utilizado pela mulher, como vingança pela gravidez indesejada)23.

22
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006. p. 208.
23
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1.905.614-SP. Terceira Turma. Relatoria:
Ministra Nancy Andrighi. DJe 06/05/2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/
stj/1205793241/inteiro-teor-1205793249. Acesso em: 25 set. 2022.
92| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

Nos termos do art. 58 da Lei 6015, é possível alterar o nome para incluir apelidos
públicos e notórios, como ocorreu no caso do ex-presidente Luiz Inácio da Silva que inclui
em seu nome o apelido Lula, passando a se chamar Luiz Inácio Lula da Silva.

O parágrafo único do mesmo artigo também possibilita a alteração do nome em


razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime,
por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público.

Da mesma forma, é possível alterar o nome (prenome e sobrenome) do adotado


em caso de adoção. Trata-se de regra prevista no art. 47, § 5º, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a qual estabelece que a sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e,
a pedido tanto do adotante como do adotado, poderá modificar o prenome e o sobrenome.

O nome também pode ser alterado nos casos de erro gráfico, nos termos do art.
110 da Lei 6.015/73. Trata-se de situação fática que, considerando documentos que com-
provem o erro, é possível retificar o registro independentemente de autorização judicial,
exigindo-se, contudo, a prévia oitiva do Ministério Público.

Outra possibilidade está relacionada com os filhos socioafetivos. Consiste em uma


hipótese também prevista na Lei 6.015/73, que, no seu artigo 57, § 8º, possibilita que o
enteado ou a enteada, havendo expressa concordância do padrasto ou madrasta, poderá
requerer ao juiz competente, a averbação no registro civil, incluindo o sobrenome de seu
padrasto ou de sua madrasta.

O art. 71, § 1º, da Lei 13.445/2017 (Lei de Migração), dispõe que qualquer du-
rante o processo de naturalização, o interessado poderá requerer ao juízo a tradução ou
adaptação do seu nome ao idioma oficial brasileiro. Entretanto, o § 2º do artigo 71 traz
a necessidade da manutenção de um cadastro contendo o nome traduzido ou adaptado
associado ao nome anterior.

Em 2018, ao julgar ADI 4.275 do Distrito Federal, de relatoria do Ministro Marco Aurélio,
O Supremo Tribunal Federal, conferindo interpretação conforme a Constituição e ao Pacto de
São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, com fundamento no princípio da dignidade
da pessoa humana, reconheceu o direito dos transgêneros, independentemente da cirurgia de
transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à
substituição de prenome e sexo diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais. O referido
procedimento foi regulamento através do Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça24.

24
LINS JÚNIOR, George Sarmento; MESQUITA, Lucas Isaac Soares. Neoconstitucionalismo ou supremocracia? Uma
análise do ativismo judicial no reconhecimento do nome social de pessoas trans na ação direta de inconstitucionali-
dade n. 4.275. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 24, n. 1, p. 161-190, jan./abr. 2019. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1442. Acesso em: 25 set. 2022.
O Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022... |93

Feitas as referidas considerações a dúvida é, como fica a segurança jurídica após


a Lei 14.382/2022 autorizar a alteração do nome em qualquer caso, independentemente de
motivação e decisão judicial; qual a consequência que esta alteração legislativa trouxe para
segurança do tráfego das relações jurídicas e estabilidade dos atos da vida civil.

Importa destacar que a doutrina e a jurisprudência pátria eram, majoritariamente,


defensoras da imutabilidade ou definitividade do nome, admitindo a alteração somente nos
casos previstos em lei ou em outros dispositivos legais.

Schreiber sustenta que a função de identificar os indivíduos é de interesse públi-


co, e, para que tal função seja cumprida, é necessário que o nome seja imutável, ou, no
mínimo, que a possibilidade de alteração do nome seja restrita a determinadas hipóteses
previstas em lei. Destaca que a necessidade existe para garantir a segurança coletiva por
meio da precisa identificação de cada indivíduo no meio social25.

Moraes escreve que o nome, para além de um direito, é também um dever. Se, por
um lado, o nome é um direito da personalidade identificador da pessoa em relação a ela
mesma e a sua dignidade, por outro lado, o nome também possui uma função identificadora
do indivíduo em relação à comunidade em que se encontra inserido e ao Estado – de onde
decorre o princípio da imutabilidade do nome. O princípio da imutabilidade, ainda que relati-
va, visa impedir que o nome seja alterado por malícia, má-fé ou capricho do seu portador26.

Extrai-se do ordenamento jurídico vigente que é de interesse do Estado que a pes-


soa mantenha o nome que recebeu ao ser registrado, isto é, que a pessoa deva permanecer
com o seu nome por toda vida, e até mesmo depois da sua morte, como identificador no
meio social. Além disso, a regra da imutabilidade, ainda que relativa, impediria a mudança
indiscriminada de nomes que prejudicaria a identificação das pessoas27.

Por outro lado, existiam juristas que considerando a constante evolução social,
admitiam a possibilidade de alteração do nome sem qualquer restrição, desde que fossem
observados os ditames legais, como é o caso do jurista argentino Adolfo Pliner, o qual já
defendia a relativização da imutabilidade do nome:

[...] a regla da inmutabilidad del nombre es um princípio jurídico de caráter dogmáti-


co. Constituye uma regla que responde simultaneamente a la satisfaccion de interes-

25
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 187.
26
MORAES, Maria Celina Bodin de. Sobre o nome da pessoa humana. Revista da EMERJ, v. 3, n. 12, p. 48-74.
2000. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista12/revista12_48.pdf
Acesso em: 25 Set. 2022. p. 48-74.
27
FARAJ, Friedrich; FERRO JÚNIOR, Izaías G. O fim da imutabilidade do nome civil das pessoas naturais. Migalhas
Notariais e Registrais, 12 jul. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-re-
gistrais/369545/o-fim-da-imutabilidade-do-nome-civil-das-pessoas-naturais. Acesso em: 25 set. 2022.
94| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

ses públicos y privados, em cuanto apunta al orden y a la seguridade jurídica, que son
los fines de la norma y las razones que la hacen valiosa. Pero la regla no puede consi-
derarse absoluta, carácter que acomoda muy raramente a las creaciones del hombre,
y mucho menos em matéria de ordenamentos normativos de la conducta humana28.

Não obstante parecer arriscado à segurança jurídica, a possibilidade de alteração


do nome de forma injustificada, diretamente no cartório e em qualquer fase da vida, é uma
evolução legal já prevista e esperada, na medida em que a sociedade e a tecnologia evo-
luem, o direito precisa acompanhar essa evolução.

A novidade legislativa deve ser vista com bons olhos, na medida em que aproxima
cada vez mais o direito ao nome aos direitos da personalidade. Com isso, fica garantida,
de forma ampla, a dignidade da pessoa humana, e, ao mesmo tempo, resguardada a
segurança jurídica, já que, apesar da alteração, o nome fica vinculado ao CPF- Cadastro
Nacional de Pessoas Físicas e a outros cadastros, evitando-se, dessa forma, fraudes e
prejuízos a terceiros29.

A impossibilidade de alteração do nome era plenamente justificada, na década de 70,


quando da elaboração e publicação da Lei 6.015/73, os sistemas eram totalmente analógicos
e não havia outras formas de identificação da pessoa natural como há nos dias de hoje.

Atualmente existem várias tecnologias que nos permitem identificar pessoas com
alto grau de segurança. São exemplos disso a identificação biométrica em diversas for-
mas (leitura facial, íris, impressão digital, curvatura das mãos, voz), além das certifi-
cações digitais - avançada, qualificada e simples, conforme dispõe a Lei 14.063/2020,
dentro outros mecanismos30.

Dessa forma, é possível afirmar que a referida alteração legislativa trouxe um gran-
de avanço para o exercício do direito fundamental ao nome, aproximando muito mais a pes-
soa natural do seu direito a ter um nome que lhe garanta dignidade e, também, segurança
jurídica, tanto para o seu portador, como para sociedade e o Estado.

28
PLINER, Adolfo. El nombre de las personas. 2. ed. actual. Buenos Aires: Astrea de Alfredo Y Ricardo De Palma,
1989. p. 281.
29
FARAJ, Friedrich; FERRO JÚNIOR, Izaías G. O fim da imutabilidade do nome civil das pessoas naturais. Migalhas
Notariais e Registrais, 12 jul. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-re-
gistrais/369545/o-fim-da-imutabilidade-do-nome-civil-das-pessoas-naturais. Acesso em: 25 set. 2022.
30
GERMANO, José Luiz; NALINI, José Renato; NOSCH, Thomas. Alteração do nome e a mutabilidade extraju�-
dicial – insegurança ou efetivação de direitos fundamentais? Migalhas Notariais e Registrais, 13 jul. 2022.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/369616/alteracao-do-no-
me-e-a-mutabilidade-extrajudicial. Acesso em: 25 set. 2022.
O Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022... |95

4 CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico, como um todo, busca garantir a segurança jurídica das rela-
ções sociais, logo, qualquer alteração legislativa que de alguma forma possa mitigar ou pre-
judicar essa segurança, causa preocupação para a doutrina e para os operadores do direito.

Dada a importância do nome da pessoa humana para sociedade e para as relações


jurídicas envolvendo seu portador, a novidade legislativa que autorizou sua alteração sem
qualquer justificativa e diretamente na esfera extrajudicial (cartório), causou certa preo-
cupação por parte da doutrina e dos operadores do direito, visto que até entrar em vigor
a Lei 14.382/2022, vigia no Brasil o Princípio da Imutabilidade do nome, somente sendo
admitida a modificação em casos específicos previstos em dispositivos legais.

No entanto, considerando a evolução da tecnologia, sobretudo das formas de


identificação das pessoas (leitura facial, íris, impressão digital, curvatura das mãos, voz,
certificações digitais – avançada, qualificada e simples), considerando, também, que o
direito precisa evoluir na medida que evolui a sociedade e a tecnologia, é possível afirmar
que a aludida alteração legislativa não põe em risco a segurança jurídica das relações que
envolverem a pessoa que alterou ou desejar alterar o nome.

Como visto, atualmente há diversas tecnologias que auxiliam na identificação da


pessoa humana com precisão, há também o Cadastro Único das Pessoas Físicas (CPF)
que não é alterado com a modificação do nome, assim, entende-se que a referida novidade
jurídica, além de não prejudicar a segurança jurídica, trouxe um grande avanço para o exer-
cício do direito fundamental ao nome, garantindo ainda mais dignidade para pessoa humana.

REFERÊNCIAS
AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Presidência da
República, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.
htm. Acesso em: 25 set. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1.905.614-SP. Terceira Turma. Relatoria:
Ministra Nancy Andrighi. DJe 06/05/2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurispruden-
cia/stj/1205793241/inteiro-teor-1205793249. Acesso em: 25 set. 2022.

CARVALHINHOS, Patrícia de Jesus. As origens dos nomes de pessoas. Revista Domínios de


Linguagem, ano 1, n. 1, p. 1-18, jan./jun. 2007. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/domi-
niosdelinguagem/article/download/11401/6686/42466. Acesso em: 25 set. 2022.

FARAJ, Friedrich; FERRO JÚNIOR, Izaías G. O fim da imutabilidade do nome civil das pessoas naturais.
Migalhas Notariais e Registrais, 12 jul. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/
96| Marilaine Moreira de Jesus - Luiza Boff Lorenzon - Jocimar Pereira de Souza

migalhas-notariais-e-registrais/369545/o-fim-da-imutabilidade-do-nome-civil-das-pessoas-naturais.
Acesso em: 25 set. 2022.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 4. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.

FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Tradução de Perfecto Andrés Ibánez e
Andrea Greppi [espanhol]. Madri: Trotta, 2004.

FERRO JUNIOR, Izaías Gomes; SCHNEIDER, Analice Morais. Introdução ao estudo do nome.
In: FERRO JUNIOR, Izaías Gomes (coord.). O registro civil das pessoas naturais: novos estudos.
Salvador: Juspodivm, 2020.

FRANÇA, Rubens Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1958.

GERMANO, José Luiz; NALINI, José Renato; NOSCH, Thomas. Alteração do nome e a mutabilidade
extrajudicial – insegurança ou efetivação de direitos fundamentais? Migalhas Notariais e Registrais,
13 jul. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-regis-
trais/369616/alteracao-do-nome-e-a-mutabilidade-extrajudicial. Acesso em: 25 set. 2022.

LINS JÚNIOR, George Sarmento; MESQUITA, Lucas Isaac Soares. Neoconstitucionalismo ou supre-
mocracia? Uma análise do ativismo judicial no reconhecimento do nome social de pessoas trans na
ação direta de inconstitucionalidade n. 4.275. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, v. 24, n.
1, p. 161-190, jan./abr. 2019. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/
rdfd/article/view/1442. Acesso em: 25 set. 2022.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado – parte geral. Tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Sobre o nome da pessoa humana. Revista da EMERJ, v. 3, n. 12,
p. 48-74. 2000. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista12/
revista12_48.pdf Acesso em: 25 Set. 2022.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
São José, Costa Rica, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.conven-
cao_americana.htm Acesso em: 25 set. 2022.

PLINER, Adolfo. El nombre de las personas. 2. ed. actual. Buenos Aires: Astrea de Alfredo Y Ricardo
De Palma, 1989.

SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. v. 1. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
RODA RODA VIRA:
A EFETIVAÇÃO DE CIDADES
SUSTENTÁVEIS AO SOM
DE MAMONAS ASSASSINAS

Lucas Raphael de Souza Mano1


Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira2

Sumário: 1. Introdução. 2. Direito à cidade: o direito fundamental good que ‘nóis’ não have.
3. 1406: adira já ao desenvolvimento sustentável. 4. Desafios para cumprimento da Agenda
2030. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda global adotada pela
Organização das Nações Unidas (ONU) para promover o desenvolvimento sustentável em
diversas áreas, incluindo a redução da pobreza, a promoção da saúde e o combate às
mudanças climáticas. Para a efetivação de cidades sustentáveis, é preciso que haja um
compromisso com os ODS e ações concretas para alcançá-los. As músicas de Mamonas
Assassinas nos permitem analisar as letras de algumas músicas da banda sob a perspec-
tiva de promover o desenvolvimento sustentável. Por exemplo, na música “Pelados em
Santos”, há uma crítica ao consumismo e à ostentação, o que pode ser relacionado com
o ODS 12, que trata da produção e consumo responsáveis. Já na música “Vira-Vira”, a
letra fala sobre a importância de buscar soluções criativas e inovadoras para problemas
cotidianos, o que pode estar relacionado ao ODS 9, que trata da inovação e infraestrutura.
O presente artigo visa abordar a questão das cidades e pobreza, alinhado aos desafios dos
ODS, sugerindo formas de superar as mazelas sociais.

1
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia (Linha de Pesquisa em Constituição e Condições Materiais
da Democracia) pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Bolsista Prosup/Capes. Advogado. E-mail: lucasmano.adv@gmail.com.
2
Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (Linha de Pesquisa em Jurisdição e Democracia)
pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Advogado.
E-mail: gabrielzapa@gmail.com.
98| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direito à moradia. Políticas públicas. Déficit habi-


tacional. Gentrificação.

1 INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 (CRFB/88) trouxe diversos direitos individuais que visam a
garantia à pessoa humana, incluindo liberdades sociais e econômicas, com reivindicações de
melhores condições de vida3. Portanto, deveria causar espanto aos nascidos até a década de
90, que as letras das músicas mais tocadas, pela banda mais famosa da época fossem: “Eu
queria um apartamento no Guarujá, mas o melhor que eu consegui foi um barro em Itaquá” e
“Chegando na capital, uns puta predião legal […] hoje to arrependido de ter feito migração”.

Afinal, o que a banda Mamonas Assassinas não retratava músicas sem sentido com o
intuito de humor. Suas obras abordavam as mazelas de uma sociedade em desenvolvimento,
porém, ainda extremamente desigual, no qual a “felicidade é um crediário nas Casas Bahia”.

A banda – tragicamente – terminou, mas suas letras ainda exprimem uma realidade
gritante da sociedade brasileira: o acesso à moradia digna aliada a grande desigualdade social
e econômica do país não encontraram resposta definitiva e, nos últimos anos, a ausência de
desenvolvimento de forma ampla, vem forçando inúmeros brasileiros a largarem a ‘profissão
de boia fria, trabalhando noite e dia’ e irem embora em busca de uma condição melhor de vida.

O rol de direitos presentes na Constituição aumentou (como a inserção de “trans-


porte” no art. 6º na CRFB), bem como as discussões. Ocorre que esse aumento no texto
(ou na sua interpretação), não foi suficiente para acabar com a desigualdade no país. Como
exemplo, o art. 6º da CRFB/88, aborda a moradia, com força de direito fundamental, mas
o que pesquisas demonstram é que o inchaço das cidades grandes, oriundo da migração
cuja partida se dá pelos moradores de cidades menores, em busca de melhores condição
de vida, favorecem a pobreza e a exclusão social.

O presente artigo visa analisar como o desenvolvimento sustentável, hoje uma das prio-
ridades do mundo através da agenda 2030, precisa ser pensada pela lógica do direito à cidade,
visando a garantia de trabalho, lazer, moradia e segurança. Sem esse quadripé, será impossível
o alcance de moradia digna e o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

O método escolhido é o dedutivo/indutivo, referenciando como forma de homena-


gem, a banda de Guarulhos que marcou uma geração ao usar suas músicas para expor os
malefícios da falta de planejamento urbano.

3
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, p. 39-48, abr./jun. 1998. Disponível em: https://www2.sena-
do.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/364/r138-04.pdf?sequence=4&isAllowed=y. Acesso em: 13 ago. 2023.
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |99

2 DIREITO À CIDADE: O DIREITO FUNDAMENTAL GOOD QUE


‘NÓIS’ NÃO HAVE

A função da cidade é a de garantir facilidade de trabalho, lazer, moradia e seguran-


ça4. Contudo, devido ao Brasil ser um país de proporções continentais, seu crescimento
acaba sendo desigual, forçando os moradores de locais mais pobres migrarem para cida-
des maiores, em busca de melhor qualidade de vida5.

Para que seja possível a garantia desse quadripé de direitos, um conglomerado de


pessoas dividindo espaços, formando bairros, se mostra eficaz. Isso se deve pela disponi-
bilidade de produtos e serviços disponíveis, alinhados com uma estrutura e planejamento.
Ora, com estradas e transporte apropriado, é possível a locomoção de uma ponta a outra
da cidade a fim de alcançar o objetivo almejado, por exemplo.

Ocorre que nos últimos anos, as cidades passaram a dispersar as pessoas, ao


invés de uni-las6.

Alguns dos efeitos causadores desse mal é a gentrificação, definido como:

O deslocamento, processual ou súbito, de residentes e usuários com condições de


vida precárias de uma dada rua, mancha urbana ou bairro para outro local para dar lu-
gar à apropriação de residentes e usuários com maior status econômico e cultural7.

Além disso, ainda existe o inchaço das cidades, resultado da migração provocada
pela falta de desenvolvimento de regiões mais pobres, favorecendo a disputa por territórios
a fim de moradia por pessoas que, na ânsia de ter o mínimo, se sujeitam a condições de
trabalho precárias8.

4
MELO, Ligia. Direito à moradia no Brasil: política urbana e acesso por meio da regularização fundiária. Belo
Horizonte: Fórum, 2010. p. 29.
5
DOTA, Ednelson Mariano; QUEIROZ, Silvana Nunes de. Migração interna em tempos de crise no Brasil.
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 415-430, maio/ago. 2019.
DOI:.22296/2317-1529.2019v21n2p415. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/5854/
pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
6
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 111. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
7
BRAGA, Emanuel O. Gentrificação. In: IPHAN. Dicionário do Patrimônio Cultural. [S.d.]. Disponível em: http://
portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/78/gentrificacao. Acesso em: 20 jan. 2023.
8
Sobre o tema: GARCIAS, Carlos M.; BERNARDI, Jorge L. As funções sociais da cidade. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 4, n. 4, p. 1-15, 2008. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.
unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/48. Acesso em: 14 ago. 2023.
100| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

Os aglomerados urbanos alteraram a estrutura dinâmica de construção social,


política, econômica e física que está focada no mundo digital e pela lógica capitalista,
que tornou os territórios espaços globais, mas não levou para toda a cidade acesso, por
exemplo, a tecnologia9.

Ainda que o acesso à internet estivesse disponível, em razão do custo dos produtos
tecnológicos (celular, tablets, computadores, notebooks etc.) nem todos conseguem ter
acesso a um aparelho que possa se conectar a aludida tecnologia. Estudos mostram que
em 2020, 66% dos jovens entre 9 até 17 anos não possuíam acesso à internet10.

Sem um ambiente e uma cultura de direitos fundamentais não há verdadeira demo-


cracia. Os direitos fundamentais são condições do regular funcionamento da democracia11.

Claro, não basta o texto constitucional prever a proteção e manutenção dos direitos
fundamentais. Também se faz necessário que o povo reconheça a importância de tais direi-
tos, pressionando seus representantes com o intuito de garantir o acesso destes.

Contudo, com a crescente onda de desinformação e corrosão de direitos pelo ne-


oliberalismo há o esquecimento da defesa dos direitos conquistados12. Como resultado,
alguns dos efeitos agressivos da mundialização da economia e da cultura, se destaca o in-
chaço de cidades, tornando-as megacidades, reduzindo o espaço disponível e aumentando
a escassez de disponibilidade.

De acordo com Morin, também é a mundialização a causa do agravamento do


destino de populações vulneráveis13, demonstrando que “chegando na capital, uns puta
‘predião’ legal”14 não estão acessíveis para a maioria, pois um quinto da humanidade
consome sozinho os quatro quintos da riqueza mundial15.

9
GARCIAS, Carlos M.; BERNARDI, Jorge L. As funções sociais da cidade. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 4, n. 4, p. 1-15, 2008. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/
index.php/rdfd/article/view/48. Acesso em: 14 ago. 2023.
10
TENENTE, Luiza. 30% dos domicílios no Brasil não têm acesso à internet; veja números que mostram dificul�-
dades no ensino à distância. G1: Educação, 26 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/
noticia/2020/05/26/66percent-dos-brasileiros-de-9-a-17-anos-nao-acessam-a-internet-em-casa-veja-nume-
ros-que-mostram-dificuldades-no-ensino-a-distancia.ghtml. Acesso em: 18 abr. 2023.
11
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Almedina, 2006. p: 06.
12
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Tradução de Jefferson Camargo.
São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 14.
13
MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. p. 142.
14
MAMONAS ASSASSINAS. Jumento celestino. São Paulo: EMI, 1995. CD (2:37).
15
MAMONAS ASSASSINAS. Jumento celestino. São Paulo: EMI, 1995. CD (2:37).
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |101

A presente discussão é complexa, e mesmo tendo o Brasil se aberto ao debate do tema


e criado um arcabouço jurídico visando a proteção e desenvolvimento das cidades, os interes-
ses políticos e mercadológicos interferem para uma política pública resolutiva do problema16.

A positivação de direitos fundamentais e garantias individuais, consequentemen-


te, aos direitos humanos, passaram a integrar o núcleo substancial da ordem normativa
constitucional17, além disso, é com o resgate da memória da população, instigando-os a
participação popular, também prevista na Constituição, que se constrói legalmente a pos-
sibilidade realista de influenciar o processo de formação da vontade do Estado no que diz
respeito à proteção dos direitos fundamentais18.

No debate voltado para a cidade, em uma análise ampliada, também vale o que está no
rol contido no art. 5º da CRFB/88, que recebeu status jurídico reforçado, incluídos as cláusulas
pétreas do art. 60, §4º, impedindo a supressão ou desgaste do poder constituinte derivado19.

Em sentido concentrado, o direito à cidade é construído com princípios da dig-


nidade da pessoa humana e da solidariedade, assim como de objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, dispostos no art. 3º da Constituição20.

Desta forma, o direito à cidade aglutina os direitos fundamentais, pois para a sua
concretização, se faz necessária a harmonização de vínculos de direitos históricos, sociais
e econômicos21.

A exemplo: o conceito de cidade sustentável, previsto no art. 2º do Estatuto da


Cidade, Lei n. 10.247/2001), como “direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento

16
BARBOSA, Álvaro Carlos Ramos. Desafios para a efetividade da função social da propriedade urbana: pro-
postas e perspectivas. 2022. 314f. (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022. p. 10. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/19008.
Acesso em: 13 ago. 2023.
17
SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspec-
tiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 62.
18
AFONSO DA SILVA, Virgílio. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: AFONSO DA SILVA,
Virgílio (org.). Interpretação constitucional. 1. ed. 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 481.
19
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 112. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
20
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 113. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
21
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 113. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
102| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao


lazer, para as presentes e futuras gerações”.

Na primeira dimensão se encontra a estruturação indispensável da cidade, à me-


dida que se trata da função social da propriedade, atendendo os interesses não apenas os
humanos, como também os das futuras gerações, conforme art. 182, §2º da CRFB/8822.

A modificação no conceito original da propriedade, com a positivação da função


social, conectou aos direitos fundamentais de segunda dimensão decorrentes do desen-
volvimento industrial, quais sejam a promoção da igualdade entre os cidadãos, superando
o interesse individualista no direito absoluto de fruir, dispor e gozar do bem.

E é nesta segunda dimensão que o Estado se desenvolveu visando a criação políti-


cas pública urbanas, asseguradoras do direito à cidade, tais como saneamento, infraestru-
tura, transporte, lazer, trabalho e saúde23.

Comparato adverte:

Sendo objetivo da justiça proporcional ou distributiva instaurar a igualdade substan-


cial de condições de vida, é óbvio que ela só pode realizar-se por meio de políticas
públicas ou programas de ação governamental24.

O direito à cidade é a garantia de um meio ambiente com qualidade de vida dos


cidadãos, gerando vínculos com bens difusos e coletivos.

É na Conferência de Berlim que se afirmou que “a cidades devem ser organizadas


de forma a desempenhar um papel decisivo na redução e eliminação de padrões insusten-
táveis de transportes e [lutar pela promoção] de construções ambientalmente sadios”25.

Desta forma, ainda que não esteja disposta taxativamente em nossa Constituição,
mas palpável na concepção internacional do qual o direito brasileiro se inspira, é possível
afirmar que o Direito à Cidade possui proximidade com os direitos humanos fundamentais

22
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 114. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
23
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 114. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
24
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 541.
25
MARQUES, José Roberto. Meio ambiente urbano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 91-92.
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |103

contemporâneos, visando a sadia qualidade de vida a seus cidadãos, com participação


social democrática nas políticas públicas26.

Neste processo de transformação social, também é o Direito à Cidade que ganha


um destaque maior, haja vista que o choque existente em seus aspectos políticos, sociais
e jurídicos, conflitam com a lógica privatizante e o direito metaindividual à fruição do bem
comum, qual seja, a cidade27.

Sendo, portanto, possível compreender que o desenvolvimento das cidades, ali-


nhada ao plano diretor e os art. 182 e 183, ambos da CRFB/88, são fundamentais para um
desenvolvimento eficaz, o que será mais bem trabalhado à seguir.

3 1406: ADIRA JÁ AO DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL28, 29
A Cidade precisa se desenvolver para abarcar novas empresas, atrair novos mora-
dores, a promoção de programas culturais e afins. Ocorre que o desenvolvimento não pode
acontecer sem planejamento30.

Um dos requisitos basilares é o respeito ao Plano Diretor, previso no art. 182 e 183
da CRFB/88, respeitando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem-estar de seus habitantes, o que inclui o combate à desigualdade, o desenvolvimento
com respeito ao quadripé de direitos já abordado aqui e a redução da poluição.

Em conjunto da Lei n. 10.257, de julho de 2001, que instituiu o Estatuto da Cidade


e estabeleceu parâmetros e diretrizes para a política urbana no Brasil, a fim de promover
política de desenvolvimento e expansão urbana.

26
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 115. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
27
BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à cidade. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. p. 115. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7193.
Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso em: 13 ago. 2023.
28
MAMONAS ASSASSINAS. 1406. São Paulo: EMI, 1995. CD (4:08).
29
O nome “1406” faz alusão ao número de telefone “(011) 1406”, pertencente aos infomerciais do Teleshop, exi�-
bidos pelo já extinto Grupo Imagem em comerciais da também extinta Rede Manchete, que vendiam produtos
ao estilo dos atuais comerciais da Polishop ou do canal de televendas Shoptime, da Globosat. Disponível em:
https://genius.com/Mamonas-assassinas-1406-lyrics. Acesso em: 18 abr. 2023
30
GARCIAS, Carlos M.; BERNARDI, Jorge L. As funções sociais da cidade. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 4, n. 4, p. 1-15, 2008. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/
index.php/rdfd/article/view/48. Acesso em: 14 ago. 2023.
104| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

Foi o Estatuto da Cidade que trouxe novos caminhos para o desenvolvimento urba-
no a partir da confirmação de diretrizes, princípios e instrumentos voltados à promoção do
direito à cidade e à governabilidade democrática31.

Juntos, Plano Diretor, Estatuto da Cidade e Constituição, trabalham na promoção


de gestão democrática e estímulo da função social da cidade e da propriedade. A busca
na quebra do paradigma entre centro e periferia, o que ainda não foi superado, pois nos
centros ainda é possível perceber o alto nível de investimento32.

O Plano Diretor, nos termos da Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, é


o responsável de enfrentar os desafios dos problemas aqui abordados, servindo ainda de
guia para a construção e desenvolvimento das cidades por todo o país33. Ainda:

O objetivo principal do Plano Diretor, de definir a função social da cidade e da proprie-


dade urbana, de forma a garantir o acesso à terra urbanizada e regularizada a todos os
segmentos sociais, de garantir o direito à moradia e aos serviços urbanos a todos os
cidadãos, bem como de implementar uma gestão democrática e participativa, pode
ser atingido a partir da utilização dos instrumentos definidos no Estatuto da Cidade,
que dependem, por sua vez, de processos inovadores de gestão nos municípios34.

Logo, é possível compreender que o desenvolvimento é o escopo que perpassa


pela cidade e suas imbricações jurídicas.

Neste quesito, é importante associar a sustentabilidade e o desenvolvimento juntos


à cidade, que se tornam categorias indissociáveis, vistos hoje no Brasil como ‘direito ao
futuro’, que pode ser sintetizado como o reconhecimento de um direito subjetivo das futu-
ras gerações ou mesmo de atribuição do reconhecimento do direito subjetivo das gerações
futuras ou mesmo a atribuição do status de sujeito de direitos à natureza e não apenas às
pessoas, os animais35.

31
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (org.). Os planos diretores municipais
pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital; IPPUR/UFRJ, 2011. p. 14.
32
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (org.). Os planos diretores municipais
pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital; IPPUR/UFRJ, 2011. p. 14.
33
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (org.). Os planos diretores municipais
pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital; IPPUR/UFRJ, 2011. p. 14.
34
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (org.). Os planos diretores municipais
pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital; IPPUR/UFRJ, 2011. p. 14.
35
SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. Algumas notas sobre o direito fundamental ao
desenvolvimento sustentável e a sua dimensão subjetiva e objetiva. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v.
10, n. 3, p. 21-40, dez. 2020. p. 22. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7272. Disponível em: https://www.publicacoes.
uniceub.br/RBPP/article/view/7272. Acesso em: 13 ago. 2023.
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |105

Ainda que a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares não seja linear e ab-
soluta, conforme ensinamento de Virgílio Afonso da Silva36, se faz necessária a observância de
que os imóveis disponíveis nas cidades são limitados e ainda muitos deles não estão atendendo
sua função social. Além disso, a expansão das populações, o inchaço das cidades e os padrões
de consumo superam a capacidade de disponibilidade dos recursos naturais do planeta37.

Esses problemas são apenas alguns dos desafios que a cidade precisa enfrentar.
Para uma realidade de moradia digna, vinculada a uma cidade inteligente e sustentável, a
referência se encontra nos art. 3º, 170 e 225 da CRFB/88.

De acordo com parte da doutrina, oriundo de um direito fundamental ao desenvolvi-


mento no sentido estrito e não em uma perspectiva ampliada. Inclusive, tal direito é vincula-
do ao § 2º do art. 5º da CRFB/88, no qual os direitos e garantias não podem excluir outros
decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou ainda, de tratados internacionais
de que a República Federativa do Brasil venha fazer parte38.

O desenvolvimento sustentável mais eficaz depende da facilidade de acesso a bens,


serviços e pessoas competentes trabalhando. E como o ser humano não é uma máquina com
o único intuito de produzir, quando o expediente acaba, deve ser direito deste, poder descer
dos ‘andaime’, pra pegar um cinema do Schwarzenegger e ‘tombém’ o Van Damme39.

Sendo o Desenvolvimento Sustentável um princípio, este depende de três verten-


tes: ambiental, social e econômica. A vertente ambiental está no dever de gerir, utilizando
de forma consciente dos recursos naturais disponíveis; a vertente social está ligada à de-
mocracia, que é marcada pela participação do povo nos processos decisórios relevantes
e a promoção de atividades econômicas duradouras, baseadas em recursos renováveis40.

Desta forma, o Estado Democrático, Social e Ecológico do Direito, não poderá ser
um Estado Mínimo, mas antes, deve ser um Estado Regulador, objetivando o desenvolvi-
mento humano e social de forma sustentável41.

36
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 25.
37
SOUZA, Mônica Teresa Costa. Direito e desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011. p. 142. GIDDENS, Anthony.
Sociology. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 614.
38
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 268-269.
39
MAMONAS ASSASSINAS. Chopis centis. São Paulo: EMI, 1995. CD (2:46).
40
SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. Algumas notas sobre o direito fundamental ao
desenvolvimento sustentável e a sua dimensão subjetiva e objetiva. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v.
10, n. 3, p. 21-40, dez. 2020. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7272. p. 26. Disponível em: https://www.publicacoes.
uniceub.br/RBPP/article/view/7272. Acesso em: 13 ago. 2023.
41
SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. Algumas notas sobre o direito fundamental ao
desenvolvimento sustentável e a sua dimensão subjetiva e objetiva. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v.
106| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

4 DESAFIOS PARA CUMPRIMENTO DA AGENDA 2030


Depois desse sofrimento, a maior desilusão

A agenda 2030 se reporta ao documento criado pela Assembleia Geral da


Organização das Nações Unidas, em setembro de 2015, no qual reuniu 193 Estados-
membros, em sua sede.

O objetivo é o de colocar em prática 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável


(ODS), além de 169 metas para a erradicação da pobreza e promoção da vida digna de todos.

De acordo com Luis Roberto Barroso, o enfrentamento da emergência climática


está sob três pilares:
1. a Convenção Quadro, em vigor desde 1994, ratificada por 197 países, instituindo
princípios abrangentes, obrigações de caráter geral e processos de negociação
entre os Estados signatários;
2. O Protocolo de Kyoto, em vigor desde 1997, ratificado por 192 países e institui
metas específicas de redução da emissão de gases de efeito estuda para 36 países
industrializados e a União Europeia. Aqui, os países em desenvolvimento ficaram
de fora dessa obrigação;
3. O acordo de Paris, em vigor desde 2016 e conta com a adesão de 185 países,
permitindo que cada signatário, voluntariamente, apresentaria uma contribuição
para a redução de emissão de gases poluentes, sem distinção de países desenvol-
vidos e em desenvolvimento42.
Na Constituição brasileira, o art. 225, assim estipula: “bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

E é no aumento da população que encontramos os maiores desafios: o crescimento


do consumo desenfreado de matérias primas não renováveis; a emissão de gases poluen-
tes e a diminuição de áreas verdes que poderiam auxiliar na redução desse mal; em razão
da desigualdade social, destaca-se ainda as invasões em áreas muito próximas a rios e
lagos, sem saneamento básico, ocorrendo o descarte não tratado de resíduos sólidos etc.

10, n. 3, p. 21-40, dez. 2020. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7272. p. 26. Disponível em: https://www.publicacoes.
uniceub.br/RBPP/article/view/7272. Acesso em: 13 ago. 2023.
42
BARROSO, Luís Roberto. Revolução tecnológica, crise da democracia e mudança climática: limites do direito
num mundo em transformação. Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 3, p. 1262-1313, set./dez. 2019. DOI:
10.21783/rei.v5i3.429. Disponível em: https://estudosinstitucionais.com/REI/article/view/429/444. Acesso
em: 04 abr. 2023.
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |107

É nas relações de poder que se encontra a raiz dos problemas apontados. Inclusive,
o assunto não é novo, conforme amplamente demonstrado por David Harvey43. A pobreza
aumenta junto com a cidade e a transferência de culpa entre os entes municipais, estaduais
e federal para dirimir o problema só agrava a situação já delicada.

A efetivação do cumprimento da Agenda 2030 se apresenta então, principalmente,


na ação do Estado na promoção de políticas públicas capazes de pensar em sustentabilida-
de e atendimento do coletivo, principalmente na promoção de defesa do meio ambiente44.

Essa ação do Estado não precisa ser unicamente de cunho social. Conforme pre-
conizado pela autora Adriana Schier, uma política pública pode atender uma necessidade
do Estado e ainda incentivar a atividade privada, mediante o fomento:

Fomento enquanto uma atividade administrativa que permite aos particulares atua-
rem na satisfação de interesses públicos vinculados à realização de direitos funda-
mentais, mediante incentivo do Estado.
[…] Esse mecanismo permite incrementar o desenvolvimento econômico, princi-
palmente a partir das subvenções ou das facilidades criadas para a livre iniciativa
que aderir aos programas de fomento45.

Na prática, não é este equilíbrio que vem sendo aplicado. Mediante um constante
e intenso lobby, o interesse do mercado e de seus agentes financeiros, a cidade passa
a ser espaço de disputa e poder e o povo, que é protegido “apenas” pelas palavras da
Constituição, perdem. Afinal, a democracia é construída no dia-a-dia, reforçada pelo amor
de seu povo que, arduamente trabalha pela sua manutenção46.

Alguns dos desafios enfrentados no Brasil para a produção dos indicadores são:
1. Fragilidade institucional na produção de parte das informações ambientais e
primárias;
2. Pulverização de informação por número grande de instituições;
3. Estatísticas dependentes de esforço despedindo para obtenção de informações;

43
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 180-181.
44
KAUCHAKJE, Samira; SCHEFFER, Sandra Maria. Políticas públicas sociais: a cidade e a habitação em questão.
Curitiba: InterSaberes, 2017. p. 17.
45
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 42.
46
MASTRODI, Josué; ROSSI, Renan A. Direito fundamental social à moradia: aspectos de efetivação e sua
autonomia em relação ao direito de propriedade. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 17,
n. 17, p. 168-187, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/
article/view/549. Acesso em: 13 ago. 2023.
108| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

4. Parte das informações produzidas serem pontuais e “instantâneos”, o que traz a


questão de como transformá-los em indicadores nacionais;
5. Irregularidade na produção de informação, ou seja, as pesquisas não possuem
periodicidade, estando dependentes de questões orçamentárias, dificultando a pro-
dução de conteúdo com intervalo definido47.
Na análise dos dados disponíveis, pelo menos 40 indicadores não possuem da-
dos disponíveis no país, como temas de perdas econômicas em desastres, agricultura
sustentável, métodos de planejamento familiar, consumo de materiais, tráfico de animais
silvestres, vítimas de violência, tráfico de pessoas etc.48.

Com essa falta de dados disponíveis, se torna quase impossível a realização de


planos de ação para a concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de
temas cruzados49.

Exemplo disso, é o caso das cidades: a meta 15.2 do ODS 15 (Vida Terrestre)
objetiva “até 2020, promover a implementação da gestão sustentável de todos os tipos de
florestas, deter o desmatamento, restaurar florestas degradadas e aumentar substancial-
mente o florestamento e o reflorestamento globalmente”. Além do fato de o Brasil já estar
atrasado50, as informações dispostas demonstram apenas sobre a Amazônia, não levando
em consideração as invasões na periferia das grandes cidades.

Atrelado a estes desafios, a aludida meta possui apenas um indicador, sendo este
o 15.2.1 – Progressos na gestão florestal sustentável, contribuindo para a ausência de
material direcionado.

47
KRONEMBERGER, Denise Maria Penna. Os desafios da construção dos indicadores ODS globais. Cienc. Cult.,
São Paulo, v. 71, n. 1, jan./mar. 2019. p. 4. DOI: 10.21800/2317-66602019000100012. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252019000100012&lng=pt&tlng=pt.
Acesso em: 20 abr. 2023.
48
FAO. Mountain Partneship. Monitoring progress on mountains in the SDGs: Mountain Green Cover Index
(MGCI). 2015. Disponível em: https://www.fao.org/mountain-partnership/our-work/advocacy/2030-agenda�-
-for-sustainable-development/mountain-green-cover-index/en/. Acesso em: 15 abr. 2023..
49
KRONEMBERGER, Denise Maria Penna. Os desafios da construção dos indicadores ODS globais. Cienc. Cult.,
São Paulo, v. 71, n. 1, jan./mar. 2019. p. 5. DOI: 10.21800/2317-66602019000100012. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252019000100012&lng=pt&tlng=pt.
Acesso em: 20 abr. 2023.
50
Ver: DESMATAMENTO da Amazônia brasileira bateu recorde do mês de fevereiro. Estado de Minas, 24
fev. 2023. Disponível: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2023/02/24/interna_internacio-
nal,1461504/desmatamento-da-amazonia-brasileira-bateu-recorde-do-mes-de-fevereiro.shtml. Acesso em:
21 abr. 2023.
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |109

É fundamental que sejam aproveitadas os ODS como interdependentes. Afinal, por


princípio, a Agenda 2030 é “não deixar ninguém para trás”. Assim, outro desafio é a neces-
sidade de afastar dados por sexo, faixa etária, cor, raça, gênero, classes etc.51.

Desta forma, para o combate das mazelas da cidade, além da interdependência dos
ODS, se faz necessário produzir indicadores ODS, mais apurados, com desenvolvimen-
to metodológico, padrões, guias, métodos estatísticos, qualidade estatística, estruturas de
governança, capacitação, assistência técnica, colaboração interinstitucional, mobilização de
recursos, infraestruturas. Tudo isso alinhado a utilização por gestores, públicos e privados, no
planejamento de ações e empreendimento, para que possam surgir boas políticas públicas52.

5 CONCLUSÃO
Pelo presente artigo, busca-se demonstrar que os resultados esperados com
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que visam o desenvolvimento sustentável dos
países, garantindo condições palpáveis de existência para as gerações futuras, perpassam
pelas cidades.

Contudo, para a concretização das metas dos ODS, outro problema precisa ser
adicionado para um planejamento e conclusão: A ausência de direcionamento e trabalho
em conjunto dos entes federativos, estão contribuindo para o avanço da lógica liberal,
resultando na gentrificação e na migração de pessoas que saem de pequenas cidades,
sentido cidades já superpovoadas.

Em que pese a Constituição Brasileira, em seus art. 182 e 183, já abordar e des-
crever sobre as cidades, e contar com outras diretrizes como o Estatuto da Cidade e a
criação dos Planos Diretores dos municípios, sem um trabalho em conjunto fica impossível
dar conta das mazelas sociais e dos novos desafios que surgem, como resultado de um
mundo cada vez mais conectado e digital.

Além disso, os centros urbanos estão sofrendo com as ações agressivas e cons-
tantes dos agentes financeiros, transformando as cidades em grandes espaços de brigas
políticas, forçando a população mais pobre para as periferias, acarretando desmatamento
e construções em locais irregulares, tais como: morro, encostas, ribeiras etc.

51
KRONEMBERGER, Denise Maria Penna. Os desafios da construção dos indicadores ODS globais. Cienc. Cult.,
São Paulo, v. 71, n. 1, jan./mar. 2019. p. 5. DOI: 10.21800/2317-66602019000100012. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252019000100012&lng=pt&tlng=pt.
Acesso em: 20 abr. 2023.
52
KRONEMBERGER, Denise Maria Penna. Os desafios da construção dos indicadores ODS globais. Cienc. Cult.,
São Paulo, v. 71, n. 1, jan./mar. 2019. p. 5. DOI: 10.21800/2317-66602019000100012. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252019000100012&lng=pt&tlng=pt.
Acesso em: 20 abr. 2023.
110| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

Logo, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável jamais poderão ser efetivados


se não houver uma vinculação e aplicação aos interesses da nação, aplicados a cidade. Pois,
é na cidade que se destaca os interesses e conflitos dos interesses privados e coletivos.

Conforme demonstrado, são as cidades que alteram os interesses sociais, políticos


e econômicos do país. Então, faz sentido que sejam avistadas como sujeitos de ação para
o alcance do resultado almejado. É na cidade que a proteção do meio ambiente se destaca,
mas é a União que detém o maior recurso. Logo, importante conciliar ambos para proteção
e desenvolvimento.

Quando se olha, exclusivamente, na aplicação da agenda 2030 no Brasil, é possível


denotar que o país já está atrasado. Em verdade, andava de ré até poucos anos atrás.

A falta de pesquisa e planejamento cruzado, considerando os interesses interdepen-


dentes da ONU e do país, impedem que dados atualizados e mais apurados permitam ao
Brasil a garantia da promoção dos direitos fundamentais e da democracia em seu território.

Para que se possa superar as mazelas sociais, a cidade é o meio, mas a pesquisa
é a ferramenta. A realização de dados precisos, dotados de método e periodicidade, ne-
cessitam ainda do compromisso dos administradores públicos para a criação de políticas
públicas voltadas aos resultados obtidos.

Outra consideração que é importante para a boa aplicação dos ODS, é a interdepen-
dência entre cada grande área de concentração e suas metas.

Assim, a realização de desenvolvimento e da garantia de direitos fundamentais,


precisa do trabalho mútuo dos agentes, como também das diretrizes e trabalhos dispostos
de profissionais comprometidos com o bem-estar social, a fim de evitar que a migração
seja por motivos de postos de trabalhos ruins e que a alegria da população seja algo melhor
que apenas um crediário em uma loja de departamento.

REFERÊNCIAS
AFONSO DA SILVA, Virgílio. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: AFONSO
DA SILVA, Virgílio (org.). Interpretação constitucional. 1. ed. 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007.

ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013.

BARBOSA, Álvaro Carlos Ramos. Desafios para a efetividade da função social da propriedade urbana:
propostas e perspectivas. 2022. 314f. (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/
handle/1/19008. Acesso em: 13 ago. 2023.

BARROSO, Luís Roberto. Revolução tecnológica, crise da democracia e mudança climática: limites do
direito num mundo em transformação. Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 3, p. 1262-1313, set./
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis... |111

dez. 2019. DOI: 10.21783/rei.v5i3.429. Disponível em: https://estudosinstitucionais.com/REI/article/


view/429/444. Acesso em: 04 abr. 2023.

BODNAR; Zenildo; ALBINO, Priscilla Linhares. As múltiplas dimensões do direito fundamental à ci-
dade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 03, p. 109-124 2020. DOI: 10.5102/rbpp.
v10i3.7193. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7193. Acesso
em: 13 ago. 2023.

BRAGA, Emanuel O. Gentrificação. In: IPHAN. Dicionário do Patrimônio Cultural. [S.d.]. Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/78/gentrificacao. Acesso em: 20
jan. 2023.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 12. ed. São Paulo: Saraiva,
2019.

COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista
de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, p. 39-48, abr./jun. 1998. Disponível em: https://
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/364/r138-04.pdf?sequence=4&isAllowed=y. Acesso
em: 13 ago. 2023.

DESMATAMENTO da Amazônia brasileira bateu recorde do mês de fevereiro. Estado de Minas, 24


fev. 2023. Disponível: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2023/02/24/interna_inter-
nacional,1461504/desmatamento-da-amazonia-brasileira-bateu-recorde-do-mes-de-fevereiro.shtml.
Acesso em: 21 abr. 2023.

DOTA, Ednelson Mariano; QUEIROZ, Silvana Nunes de. Migração interna em tempos de crise no Brasil.
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 415-430, maio/ago.
2019. DOI:.22296/2317-1529.2019v21n2p415. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/arti-
cle/view/5854/pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.

FAO. Mountain Partneship. Monitoring progress on mountains in the SDGs: Mountain Green Cover
Index (MGCI). 2015. Disponível em: https://www.fao.org/mountain-partnership/our-work/advoca-
cy/2030-agenda-for-sustainable-development/mountain-green-cover-index/en/. Acesso em: 15 abr.
2023.

GARCIAS, Carlos M.; BERNARDI, Jorge L. As funções sociais da cidade. Revista Direitos Fundamentais
& Democracia, Curitiba, v. 4, n. 4, p. 1-15, 2008. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.
com.br/index.php/rdfd/article/view/48. Acesso em: 14 ago. 2023.

GIDDENS, Anthony. Sociology. Cambridge: Polity Press, 2006.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Tradução de Jefferson
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.

KAUCHAKJE, Samira; SCHEFFER, Sandra Maria. Políticas públicas sociais: a cidade e a habitação em
questão. Curitiba: InterSaberes, 2017.
112| Lucas Raphael de Souza Mano - Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira

KRONEMBERGER, Denise Maria Penna. Os desafios da construção dos indicadores


ODS globais. Cienc. Cult., São Paulo, v. 71, n. 1, jan./mar. 2019. DOI: 10.21800/2317-
66602019000100012. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0009-67252019000100012&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 20 abr. 2023.

MAMONAS ASSASSINAS. 1406. São Paulo: EMI, 1995. CD (4:08).

MAMONAS ASSASSINAS. Chopis centis. São Paulo: EMI, 1995. CD (2:46).

MAMONAS ASSASSINAS. Jumento celestino. São Paulo: EMI. 1995. CD (2:37).

MARQUES, José Roberto. Meio ambiente urbano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p.
91-92.

MASTRODI, Josué; ROSSI, Renan A. Direito fundamental social à moradia: aspectos de efetivação e
sua autonomia em relação ao direito de propriedade. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 17, n. 17, p. 168-187, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.
com.br/index.php/rdfd/article/view/549. Acesso em: 13 ago. 2023.

MELO, Ligia. Direito à moradia no Brasil: política urbana e acesso por meio da regularização fundiária.
Belo Horizonte: Fórum, 2010.

MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Almedina, 2006.

SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (org.). Os planos diretores mu-
nicipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital; IPPUR/
UFRJ, 2011.

SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel de Jesus Tedesco. Algumas notas sobre o direito fundamental
ao desenvolvimento sustentável e a sua dimensão subjetiva e objetiva. Revista Brasileira de Políticas
Públicas, v. 10, n. 3, p. 21-40, dez. 2020. DOI: 10.5102/rbpp.v10i3.7272. p. 22. Disponível em: ht-
tps://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/7272. Acesso em: 13 ago. 2023.

SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desen-
volvimento. Curitiba: Íthala, 2019.

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.

SOUZA, Mônica Teresa Costa. Direito e desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2011.

TENENTE, Luiza. 30% dos domicílios no Brasil não têm acesso à internet; veja números que mostram
dificuldades no ensino à distância. G1: Educação, 26 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/
educacao/noticia/2020/05/26/66percent-dos-brasileiros-de-9-a-17-anos-nao-acessam-a-internet-em-
-casa-veja-numeros-que-mostram-dificuldades-no-ensino-a-distancia.ghtml. Acesso em: 18 abr. 2023.
ENTRE RAZÕES E EMOÇÕES:
MOTIVOS PARA O USO DE PRECEDENTES
NO DIREITO BRASILEIRO

Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira1


Lucas Raphael de Souza Mano2

Sumário: 1. Introdução. 2. Entre razões e emoções: a construção das decisões no Brasil.


2.1. Construindo precedentes no Brasil. 2.2. Por que seguir precedentes no Brasil?.
2.2.1. Respeito à Constituição. 2.2.2. Contraditório e ampla defesa. 2.2.3. Segurança
jurídica. 2.2.4. Imparcialidade e isonomia. 2.2.5. Hierarquia das cortes. 3. Conclusão.
Referências.

Resumo
O presente artigo aborda a construção de um sistema de precedentes no direito brasileiro,
e sustenta através de uma análise do funcionamento do judiciário e da lógica de construção
de decisões, motivos o uso de precedentes no direito brasileiro, com as principais vanta-
gens de uma adoção sistemática dos precedentes no dia-a-dia do judiciário. Utilizou-se a
revisão bibliográfica e o método lógico-dedutivo para a construção das ideias sustentadas
no presente trabalho.

Palavras-chave: Segurança jurídica. Precedentes. Decisões judiciais. Duplo grau de juris-


dição.

1
Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Programa de Pós-graduação do Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil). Especialista em Direito Previdenciário e em Processo Civil pela Universidade
Cândido Mendes/RJ. Advogado. E-mail gabrielzapa@gmail.com.
2
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia (Linha de Pesquisa em Constituição e Condições Materiais da
Democracia) pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Bolsista
Prosup/Capes. Advogado. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1913-9876. E-mail: lucasmano.adv@gmail.com.
114| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

1 INTRODUÇÃO
Entre razões e emoções a saída é fazer valer a pena.

O trecho da bela canção da banda de emocore NXZero traduz um pouco do que


pode ser encontrado na construção de decisões do judiciário: razões e emoções.

Razões, pois as decisões de modo geral e por previsão constitucional – e conse-


quentemente legal – devem estar dotadas de fundamentação clara e coesa, que não se
limite a mera reprodução e/ou indicação de súmula ou jurisprudência de Corte superior,
mas faça sua correta aplicação/distinção entre o caso apresentado e as decisões anterio-
res. Uma lógica de construção hercúlea. Tão hercúlea que Dworkin atribuiu ao seu juiz-ideal
Hércules, de Levando os Direitos a Sério a tarefa de dissecar hard cases e encontrar solu-
ções fáceis em casos difíceis.

Emoções pois as decisões estão intimamente relacionadas a emoção do julgador. O


magistrado é, por mais impessoal ao processo que seja, um ser humano. E o ser humano é
dotado de emoções que o carregaram para sua razão de decidir. E seria ilógico, improvável
e impossível suscitar que qualquer ser humano despisse suas emoções para julgar qual-
quer caso que fosse. Caso contrário, Dworkin não teria idealizado Hércules para conferir a
tarefa de construir as decisões com base nos princípios regentes da sociedade. Princípios
este, que em última análise, não uma expressão das emoções daquela sociedade.

O presente artigo tem por objetivo analisar a construção das decisões no Brasil em
conjunto com a sistemática de precedentes, que fora definitivamente introduzida no Código de
Processo Civil de 2015. Para tanto, dividiu-se o trabalho em duas frentes: a construção de de-
cisões, com análises de casos práticos e contrapontos entre a sistemática dos precedentes,
e numa segunda parte a própria construção de decisões dentro do processo civil brasileiro.
Por fim, ainda que integrante da segunda parte, buscou-se analisar motivos de caráter legal
(em sentido amplo) e principiológicos que sustentam as vantagens do uso de precedentes.

2 ENTRE RAZÕES E EMOÇÕES: A CONSTRUÇÃO DAS


DECISÕES NO BRASIL
O judiciário, no sistema de civil law, historicamente nasceu não como intérprete das
leis, tendo o juiz em verdade a função de um mero reprodutor da lei e de sua aplicação nos
casos concretos. Tanto era um mero reprodutor da lei, que o sistema advindo da Revolução
Francesa trouxe em 1790 a previsão de uma Corte de Cassação3.

3
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 58-59.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |115

Apesar do nome, a Corte de Cassação não era um órgão do Judiciário, e não pos-
suía função decisória, servindo única e exclusivamente para cassar as decisões dos juízes
que fossem contra a lei. Com o avanço e aprimoramento do sistema, no entanto, a Corte
passou a ser órgão do Poder Judiciário, e a última instância para definir a interpretação que
seria dada à vontade legislativa4.

No sistema de civil law brasileiro o papel de intérprete legislativo e constitucional


está presente nas atribuições do Poder Judiciário no texto constitucional. No art. 102 da
Constituição da República Federativa do Brasil, há a previsão de apreciação de controle de
constitucionalidade dos textos legislativos por parte do Supremo Tribunal Federal. No art.
103, há a previsão de controle legal e uniformização da interpretação dos textos infracons-
titucionais por parte do Superior Tribunal de Justiça.

Essa questão é vista a partir de uma evolução do processo civil atual e do próprio
constitucionalismo, que conferiram as cortes superiores a função de atribuir real sentido ao
direito, fazendo interpretações em casos reais e aplicação de princípios5.

A nova função assumida pelo judiciário, de intérprete de normas abstratas exige


do judiciário uma maior estabilidade e previsibilidade em suas decisões. Isso porque o
consenso presente no ordenamento também existe apenas em sentido abstrato6. Ora,
nenhum jurista seria capaz de defender o direito à restrição de circulação (oposto ao direito
à liberdade de ir e vir), ou o direito à censura (oposto ao direito de liberdade de expressão),
porém em casos concretos há divergência sobre a aplicação desses direitos.

Por exemplo, no tocante a liberdade de expressão, a letra fria da Constituição garan-


te, no seu art. 5º, IX7 a liberdade de expressão em níveis intelectuais e de comunicação,
por exemplo. E há um consenso dentro da própria sociedade sobre essa liberdade. Porém,
em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) precisou dar concretude (e limites)
à liberdade trazida pela Constituição, ao decretar a prisão do ex-deputado federal Roberto
Jefferson por manifestações antidemocráticas.

4
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 60.
5
MARINONI, Luiz Guilherme. Da corte que declara o ‘sentido exato da lei’ para a corte que institui precedentes.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 103, n. 950, p. 165-198, dez. 2014. p. 166. Disponível em: https://www.
academia.edu/76337447/DA_CORTE_QUE_DECLARA_O_SENTIDO_EXATO_DA_LEI_PARA_A_CORTE_QUE_
INSTITUI_PRECEDENTES_DA_CORTE_QUE_DECLARA_O_SENTIDO_EXATO_DA_LEI_PARA_A_CORTE_
QUE_INSTITUI_PRECEDENTES. Acesso em: 15 ago. 2022.
6
CAMBI, Eduardo; HAAS, Adriana; SCHMITZ, Nicole Naiara. Uniformização da jurisprudência e precedentes
judiciais. Anais do Simpósio Brasileiro de Processo Civil, v. 1, p. 463-496, mar. 2017. p. 466. Disponível em:
https://www.abdconst.com.br/archives/pdfs/simposios/anais/2017/grupos-de-trabalho/processo-civil-e-pre-
cedentes/eduardocambi.pdf. Acesso em: 12 ago. 2022.
7
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença;
116| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

Segundo a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, por mais que a constituição


garanta a liberdade de manifestação e o livre pensamento, a própria Constituição (em outro
texto abstrato), não permite manifestações que visam o rompimento do Estado de Direito e
a extinção de cláusulas pétreas8.

Porém, essa linearidade de pensamentos nem sempre é visível em todas as deci-


sões dentro do Poder Judiciário. Citando-se aqui outro caso concreto, o Supremo Tribunal
Federal fixou tese através da sistemática da Repercussão Geral, ao assumir a condição de
intérprete da Constituição, no sentido de que o uso de equipamentos de proteção individual
não afasta o reconhecimento da atividade especial, em se tratando do agente físico ruído,
para fins de concessão de benefício previdenciário9, 10.

Em um breve levantamento feito junto a 10ª Vara Federal de Curitiba, num total de
05 sentenças analisadas11, versando sobre a mesma matéria e após o pronunciamento do
STF sobre o tema, verificou-se que as sentenças ali proferidas, mesmo fazendo menção
à decisão do Supremo Tribunal Federal, afastavam a sua aplicação, conforme pode-se
exemplificar no seguinte excerto:

Pela transcrição supra, é possível perceber que os Ministros, ao mesmo tempo


em que confirmaram o afastamento da aposentadoria especial pelo uso de EPI’s,
excluíram a eficácia da declaração unilateral feita pelo empregador no PPP quanto
ao ruído, precipuamente em face de características próprias deste agente nocivo,
que teria outros efeitos não relacionados ao sistema auditivo.
De toda sorte, parece evidente que não houve desconsideração, pura e simples, dos
protetores auditivos para fins previdenciários. Assentou-se, apenas, que a mera decla-
ração de eficácia no PPP não seria prova suficiente da eliminação do agente nocivo.

8
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Petição 9.844/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Julgado em 12
ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-manda-prender-roberto.pdf. Acesso em:
24 nov. 2021.
9
Para maiores detalhes, ver: ARE 664.335/SC, STF, de Relatoria do Exmo. Min. Luiz Fux
10
Tese fixada: I - O direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do trabalhador a agente no�-
civo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo
constitucional à aposentadoria especial; II - Na hipótese de exposição do trabalhador a ruído acima dos limites
legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP),
no sentido da eficácia do Equipamento de Proteção Individual – EPI, não descaracteriza o tempo de serviço
especial para aposentadoria.
11
As sentenças foram analisadas a partir de levantamentos feitos em casos atuados como advogado, e levanta�-
mentos realizados através de consulta de publicações de sentenças da Justiça Federal do Paraná. Os autos ana-
lisados foram: 5052201-61.2012.4.04.7000; 5072360-54.2014.4.04.7000; 5028843-33.2013.4.04.7000;
5044513-77.2014.4.04.7000.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |117

Em sentido contrário, pode-se extrair do julgado que, comprovada a aptidão do


equipamento por outros meios, resta afastada a insalubridade e, por conseguinte, o
direito à aposentadoria especial12.

Decisões como a citada acima são repetidas em várias matérias processuais, ao


longo de toda a jurisdição brasileira, criando uma verdadeira sensação de insegurança jurídi-
ca, onde mesmo em casos em que existem decisões vinculantes, há o seu descumprimento.

Cumpre observar que o problema, ao menos na seara previdenciária, de des-


cumprimento dos precedentes parece ser algo latente, já tendo sido analisado na tese de
Estefânia Barboza, que trouxe a seguinte análise sobre o tema.

Nesse sentido, a Juíza Patrícia Helena Daher Lopes ao julgar caso de desaposen-
tação perante o INSS, embora reconhecer entendimento do STJ, decide de forma
contrária aquele Tribunal: “O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento segundo
o qual a renúncia opera efeitos ex nunc. A devolução de proventos não é devida,
visto que os valores recebidos tinham natureza alimentar. [...] Entretanto, este Juízo
entende de forma diversa. A exigência de devolução não encontra obstáculo no fato
de as prestações recebidas terem caráter alimentar” JFPR – Vara Previdenciária de
Curitiba – AO 2008.70.00.008373-3/PR – DJ 14.10.200913.

O que se tem visto é que, baseados pelo princípio do livre convencimento, através
de argumentos como juízo pessoal, ou interpretação própria do precedente fixado, os tribu-
nais inferiores e os juízes em primeiro grau sentem-se autorizados a não seguir os prece-
dentes das cortes superiores, mesmo aqueles tidos como vinculantes, como as decisões
na sistemática da Repercussão Geral.14

Lênio Streck, em sua coluna do ConJur, ao se deparar com o assunto de que o


juiz deve(ria) decidir conforme seu livre convencimento, exemplificou tal aberração dos
tempos modernos com a seguinte expressão: “o-juiz-constrói-sua-decisão-a-partir-de-u-

12
BRASIL. Justiça Federal. TRF4. Apelação Cível n. 5072360-54.2014.4.04.7000 (Processo Eletrônico -
E-Proc V2 - TRF) – 10º Vara Federal de Curitiba. 5ª Turma. Relator: Alexandre Gonçalves Lippel. Data de
autuação: 08/03/2017. Disponível em: https://consulta.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=con-
sulta_processual_resultado_pesquisa&selForma=NU&txtValor=50723605420144047000&chkMos-
trarBaixados=S&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=01/01/1970&selOrigem=T-
RF&sistema=&txtChave=&seq=. Acesso em: 13 ago. 2023.
13
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Escrevendo um romance por meio dos precedentes judiciais –
uma possibilidade de segurança jurídica para a jurisdição constitucional brasileira. A&C Revista de Direito
Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, v. 14, n. 56, p. 177-207, abr./jun. 2014. p. 205. Disponível
em: https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2015/01/Escrevendo-um-romance-por-meio-dos-
precedentes-judiciais.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
14
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 97-98.
118| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

ma-simbiose-de-razões-e-sentimentos”15 e continua, ao defender que assumir tal ideia


seria retirar o caráter institucional e político do Poder Judiciário, ao mesmo passo que
causa flagrante insegurança jurídica, à medida que a decisão proferida não viria do texto
legislativo, e sim da consciência do julgador, que é individualizada à cada julgador16.

Este entendimento equivocado de certos magistrados, em aplicar um princípio que


foi extinto no Código de Processo Civil de 2015 causa imensa insegurança jurídica no
sistema processual brasileiro, já que desconsidera substancialmente a hierarquia entre os
órgãos do Poder Judiciário, e mais ainda, não traz uniformidade sobre o entendimento do
direito pátrio.

Para que se obtenha êxito na construção de decisões uniformes, não basta que
elas existam, é necessário que elas se mantenham estáveis e sejam aplicadas com rigor,
tanto em sentido horizontal, isso é, pelas próprias Cortes que os proferem, como em sen-
tido vertical, onde os tribunais e juízos inferiores devem seguir os entendimentos firmados
pelas instâncias superiores.

Existem uma série de possibilidades sobre como se pode uniformizar as decisões


judiciais, de modo a se alcançar maior estabilidade.

Canotilho, ao referir-se à manutenção da jurisprudência dos tribunais, coloca-a


como se não fosse um direito do cidadão, uma vez que os juízes teriam “uma dimensão
irredutível da função jurisdicional a obrigação de os juízes decidirem, nos termos da lei”,
sendo que a estabilidade seria alcançada pela permitida revisão das decisões pelos tribu-
nais superiores17.

Tal pensamento foi superado, e conforme explica Barboza, pensar desse modo se-
ria como aceitar que a segurança jurídica não alcança todos os órgãos do poder público18.

15
STRECK, Lênio. O “decido conforme a consciência” dá segurança a alguém? Consultor Jurídico, 15 maio
2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-conforme-conscien-
cia-seguranca-alguem. Acesso em: 12 ago. 2022.
16
STRECK, Lênio. O “decido conforme a consciência” dá segurança a alguém? Consultor Jurídico, 15 maio
2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-conforme-conscien-
cia-seguranca-alguem. Acesso em: 12 ago. 2022.
17
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 381.
18
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Escrevendo um romance por meio dos precedentes judiciais –
uma possibilidade de segurança jurídica para a jurisdição constitucional brasileira. A&C Revista de Direito
Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, v. 14, n. 56, p. 177-207, abr./jun. 2014. p. 183. Disponível
em: https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2015/01/Escrevendo-um-romance-por-meio-dos-
precedentes-judiciais.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |119

José Augusto Delgado bem aponta em seu artigo intitulado “A imprevisibilidade das
decisões judiciárias e seus reflexos na segurança jurídica”, abordando a questão da impre-
visibilidade e seus reflexos, citando o ex-Ministro da Justiça Thomas Bastos, aponta que

Há estatísticas que mostram que a economia e o direito têm que andar cada vez
mais entrelaçados para fazer o país crescer, bem como que a possibilidade de cada
tribunal decidir de forma isolada gera insegurança nas relações financeiras. A im-
previsibilidade das decisões impede, por exemplo, que existam linhas de crédito de
longo prazo no país19.

Delgado, passa assim, a correlacionar um dos grandes problemas da insegurança


jurídica trazidas em decisões não uniformes, a questão econômica e a insegurança ao
investidor frente ao cenário de aplicação não isonômica das decisões à bel prazer do jul-
gador, destacando ainda

essa falta de previsibilidade jurídica leva à falta de segurança por parte daqueles que
investem no País, tornando-se empecilho ao desenvolvimento nacional, e afetando
também o cidadão, que não sabe quais as regras do jogo que vão prevalecer20.

Pode-se ainda adentrar na questão axiológica do descumprimento reiterado das


decisões das cortes superiores, que geram uma ofensa direta ao Estado Democrático de
Direito, e aos seus princípios, em especial, à dignidade da pessoa humana, da cidadania e
da estabilidade das instituições21, 22.

19
DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade das decisões judiciárias e seus reflexos na segurança jurídica.
BDJur, p. 1-75, 2007. p. 2. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/74120. Acesso em: 16
ago. 2022.
20
DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade das decisões judiciárias e seus reflexos na segurança jurídica.
BDJur, p. 1-75, 2007. p. 2. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/74120. Acesso em: 16
ago. 2022.
21
DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade das decisões judiciárias e seus reflexos na segurança jurídica.
BDJur, p. 1-75, 2007. p. 6. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/74120. Acesso em: 16
ago. 2022.
22
BITTON, Daniele Vaz. Segurança jurídica e imprevisibilidade nas decisões judiciais: um desafio para os ma-
gistrados. 2015. 17f. Artigo (Pós-Graduação Lato Sensu) – Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2se-
mestre2015/pdf/DanielleVazBitton.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
120| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

2.1 Construindo precedentes no Brasil


A sistemática de precedentes foi introduzida no Processo Civil brasileiro com o
novo Código de Processo Civil, em 2015, que trouxe no art. 92623 uma obrigatoriedade
das Cortes em uniformizar sua jurisprudência, e principalmente, “ater-se as circunstâncias
fáticas dos precedentes”, à primeira vista algo muito próximo do conceito da ratio deciden-
di Precedentes da Common Law.

Alexandre Câmara indica que são conhecidos e aceitos dois tipos de precedentes
na sistemática processual brasileira: os precedentes vinculantes e os não vinculantes, tam-
bém chamados de persuasivos ou argumentativos24.

Os precedentes vinculantes, como o próprio nome sugere, são vinculantes e tem


aplicabilidade obrigatória por parte das Cortes, e segue o conceito já visto de stare decisis
tanto em sentido horizontal, como vertical. Já os precedentes não vinculantes, são ape-
nas argumentativos, e compõem o sistema de decisões, mas podem ser ignorados pelos
julgadores em uma decisão fundamentada e especificamente para a sua não aplicação25.

O Código de Processo Civil direcionou a obrigatoriedade de seguir precedentes, no


seu art. 92726, onde prescreveu o que seriam os precedentes a serem observados (porém
sem fazer qualquer distinção entre vinculantes e persuasivos).

Há, no entanto, ao menos cinco principais interpretações doutrinárias para a vin-


culação de precedentes no Brasil27, desde a mais abrangente, até a que nega a adoção
obrigatória de um sistema de precedentes, ou defende sua inconstitucionalidade pro forme.

23
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão
enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes
que motivaram sua criação.
24
CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 439.
25
CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 440.
26
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em
julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal
de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
27
PAIXÃO, Shayane do Socorro de Almeida da; SILVA, Sandoval Alves da; COSTA, Rosalina Moitta Pinto da. A
superação dos precedentes na teoria dos diálogos institucionais: análise do caso da Vaquejada. Revista de
Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 08, n. 01, p. 275-301, jan./abr. 2021. p. 279. DOI: 10.5380/rinc.
v8i1.71072. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/71072. Acesso em: 23 ago. 2022.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |121

A primeira parte da doutrina entende que o rol trazido no art. 927 do CPC é integral-
mente vinculante, como defendem, por exemplo, Luiz Roberto Barroso e Patrícia Perrone
Campos Mello:

se instituiu um sistema amplo de precedentes vinculantes, prevendo-se a possibi-


lidade de produção de julgados com tal eficácia não apenas pelos tribunais supe-
riores, mas igualmente pelos tribunais de segundo grau. Nessa linha, o art. 927 do
novo Código definiu, como entendimentos a serem obrigatoriamente observados
pelas demais instâncias28.

De outra parte uma segunda corrente, como Fredie Didier Jr. prevê a existência de um
rol vinculante de caráter semântico, ao defender que os tribunais devem manter um sistema
de precedentes, incluindo aí súmulas e jurisprudências, sejam eles persuasivos ou obriga-
tórios, e todos esses ditames seriam apenas observações de princípios constitucionais29.

Uma terceira corrente doutrinária defende a existência de uma corrente em que o


art. 927 do CPC não poderia criar precedentes vinculantes, mas reconhecem a existência de
precedentes vinculantes a partir das decisões oriundas de reclamações constitucionais30.

A quarta corrente doutrinária entende que o rol do art. 927 não poderia sequer
criar precedentes, por entender que uma lei ordinária não poderia criar tal instrumento sem
previsão constitucional31 como é o caso de Lênio Streck:

Nossa principal objeção ao uso performático do sistema-de-precedentes é que no


Brasil, diversas vezes, sua utilização esconde o ovo da serpente. Parcela do pensamen-
to processual civil entende que é possível resolver o problema de insegurança jurídica
— que é, frise-se, um problema essencialmente qualitativo na prestação jurisdicional,
conforme explicamos nos nossos Comentários ao CPC (Saraiva, 2016) — mediante

28
BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão
dos precedentes no Direito brasileiro. Revista da AGU, Brasília, v. 15, n. 03, p. 09-52, jul./set. 2016. p. 18.
Disponível em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/854. Acesso em: 13 ago. 2023.
29
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais
dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. Revista do Ministério
Público do Rio de Janeiro, n. 64, p. 135-147, abr./jun. 2017. p. 136. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/
documents/20184/1255811/Fredie_Didier_Jr.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
30
PAIXÃO, Shayane do Socorro de Almeida da; SILVA, Sandoval Alves da; COSTA, Rosalina Moitta Pinto da. A
superação dos precedentes na teoria dos diálogos institucionais: análise do caso da Vaquejada. Revista de
Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 08, n. 01, p. 275-301, jan./abr. 2021. p. 279. DOI: 10.5380/rinc.
v8i1.71072. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/71072. Acesso em: 23 ago. 2022.
31
BERTAGNOLLI, Ilana; BAGGIO, Andreza Cristina. Os precedentes vinculantes do Novo Código de Processo Civil
e a aproximação entre common law e civil law no direito brasileiro. Ius Gentium, Curitiba, v. 8, n. 1, p. 162-181,
jan./jun. 2017. p. 174. Disponível em: https://www.revistasuninter.com/iusgentium/index.php/iusgentium/arti-
cle/view/325. Acesso em: 13 ago. 2023.
122| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

a criação de instrumentos de vinculação decisória, o que faz parecer que essa doutrina
ignora que a própria Constituição e a legislação que lhe é conforme vinculam efetiva-
mente a atuação do Judiciário antes de tudo. E não o contrário32.

Há ainda uma quinta parte da doutrina que defende a mera observação das deci-
sões presentes no art. 927, classificando-as como decisões persuasivas, como defendem
Adriano Pinto e Nilo de Mello:

“a palavra “observar”, por sua vez presente no art. 927, não possui em suas acep-
ções mais comuns a definitiva obrigatoriedade que enseja “dever”. Com sentido
de “tomar por modelo”, “olhar com atenção para”, “notar”, “examinar” ou, ainda,
“ponderar”, não se encontram palavras como “obrigatoriedade” ou “vinculatividade”
nas acepções mais utilizadas do verbo. A mera observação semântica do dispositi-
vo em comento, portanto, enseja um entendimento de que não seriam as decisões
mencionadas nos incisos do art. 927 obrigatórias, mas devem simplesmente serem
levadas em consideração, ponderadas ou examinadas anteriormente33.

O presente trabalho filia-se à primeira tese doutrinária, observando a vinculação


obrigatória de todos os incisos, por decorrência da própria interpretação que o Código
de Processo Civil apresenta. Acrescenta-se ainda que o rol de vinculação do art. 927 é
meramente exemplificativo, admitindo-se outras decisões como precedentes vinculantes.

Tal lógica decorre dos conceitos já vistos, e trazidos pelo texto do art. 926 do
Código de Processo Civil, de integridade e coerência, que em muito se assemelha à tese de
Dworkin de integridade do direito.

Conforme ressaltam Viana e Nunes, é inegável a influência dworkiniana em especial à


integridade e coerência no direito, ao determinar, recomendar, passar, à observação de qual-
quer maneira na aplicação do direito a partir dos casos pretéritos analisados pelas cortes34.

Seria impossível alcançar decisões justas e equânimes, sem rompimentos com o


passado ao não observar os precedentes fixados pelas Cortes Superiores, ou mesmo pelas
decisões anteriores de uma mesma Corte, como sugerem as teses doutrinárias descartadas.

32
STRECK, Lênio; ABBOUD, Georges. O que é isto — o sistema (sic) de precedentes no CPC? Consultor
Jurídico, 18 ago. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-isto-siste-
ma-sic-precedentes-cpc. Acesso em: 14 nov. 2021.
33
PINTO, Adriano Moura da F.; MELLO, Nilo Rafael B. de. O microssistema de precedentes no novo processo civil
brasileiro: uma interpretação. Revista Internacional Consinter de Direito, Vila Nova de Gaia, ano 5, n. 8, p. 525-
541, jan./jun. 2019. p. 537. Disponível em: https://revistaconsinter.com/index.php/ojs/article/view/239/458.
Acesso em: 13 nov. 2021.
34
VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes – a mutação do ônus argumentativo. São Paulo: Forense, 2018.
p. 221-223.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |123

Ademais, a mera alegação de que a lei ordinária não poderia criar um sistema
processual de precedentes, pois seria contrário à Constituição Federal é um argumento
que não se sustenta. O uso do sistema de precedentes, pelo contrário, é uma das formas
de garantir os princípios fundamentais protegidos pela Constituição, como a dignidade da
pessoa humana, o devido processo legal, respeito ao contraditório e à ampla defesa, e em
especial, a segurança jurídica – princípios estes que estão resguardados ao longo de todo
o texto constitucional e foram replicados no texto do código processual.

Ademais, é possível encontrar no próprio texto constitucional menções à preceden-


tes vinculantes, como no art. 102, §2º35, em sede de controle concentrado de constitucio-
nalidade, ou na produção, revisão ou cancelamento de súmulas vinculantes36 previstas no
art. 103-A da própria Constituição37.

Ademais, as razões para seguir precedentes estão diretamente vinculadas, como


dito anteriormente, à questões constitucionais, e em especial a Segurança Jurídica.

O sistema processual brasileiro, ao contrário do que pode parecer, ao utilizar em


seu sistema uma inspiração em Dworkin, não está se voltando ao sistema common law,
nem se pretende um uso autoritário dos precedentes. O que se pretende, em verdade é a
construção democrática de um sistema que visa o aperfeiçoamento das decisões, cons-
truindo, aí sim, um padrão que trará segurança jurídica aos jurisdicionados. Conforme
explicam Viana e Nunes:

A teoria de Dworkin oferece uma proposta de problematização do direito e, em


nossa visão, ao contrário de fornecer elementos para aceitação da aplicação de
precedentes judiciais de modo antidemocrático, dá uma contribuição decisiva. Com
Dworkin, parte-se do reconhecimento do direito formatado jurisprudencialmente –
e, para dizer a verdade, negá-lo, nos dias atuais, seria negar a própria realidade

35
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
[...]
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de in-
constitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito
vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas
esferas federal, estadual e municipal.
36
Se está ciente das críticas doutrinárias quanto ao sistema de súmulas vinculantes não ser propriamente um
componente do sistema de precedentes, em especial pelas falhas na identificação da ratio decidendi que as
deram origem, porém não se filia à esta tese doutrinária no presente trabalho, uma vez que entende-se, por se
tratar de um sistema Civil Law, a sua previsão codificada à insere neste sistema.
37
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços
dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de
sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e
à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua
revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
124| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

–, mas, por outro lado, permite expor as decisões anteriormente prolatadas a um


contínuo processo de aprendizagem38.

Seguindo a lógica de um processo de romance em cadeia, onde o aperfeiçoamento


das decisões é feita como se cada julgador escrevesse um capítulo do livro, como propõe
Dworkin, não é apenas uma realidade no direito processual brasileiro, através da sistemá-
tica do CPC quanto ao uso de precedentes, mas da própria norma constitucional de pre-
visibilidade e fundamentação das decisões judiciais, que visam conferir maior segurança
jurídica aos jurisdicionados, onde se tem a certeza da aplicabilidade do direito conforme os
princípios regentes na sociedade.

2.2 Por que seguir precedentes no Brasil?


Pugliese, trabalhando MacCormick aponta que existe “uma tensão inevitável entre
o caráter argumentativo do direito, de um lado, e a ordem, a segurança e a previsibilidade
que o Estado de Direito pretende oferecer, de outro”39.

2.2.1 Respeito à Constituição


Pugliese faz ainda uma separação das razões em duas partes essenciais: justifi-
cativas formalistas e justificativas consequencialistas. As formalistas são: imposição legal
e imposição constitucional; as consequencialistas pautam-se em: economia processual,
razoável duração do processo, legitimidade do Poder Judiciário, priorização da fase de ins-
trução, uniformização da aplicação do Direito (previsibilidade, orientação da Adm. Publica,
igualdade de tratamento), desestimulo à litigância e favorecimento de acordos40.

A imposição legal e constitucional trabalhada por Pugliese está ligada a inércia do


legislador. Como explica, existem atualmente “apenas leis que conferem aos tribunais o
poder de reformar decisões, como ocorre no Brasil. A diferença é que os tribunais tratam
os precedentes como uma regra criada pelos próprios juízes”41, porém a Constituição,

38
VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes – a mutação do ônus argumentativo. São Paulo: Forense, 2018.
p. 224.
39
PUGLIESE, William Soares. Formalismo valorativo e a fundamentação das decisões no código de processo
civil de 2015. Revista de Processo, v. 47, n. 328, p. 89-104, jun. 2022. p. 92.
40
PUGLIESE, William Sores. Teoria dos precedentes e interpretações legislativas. 2011. 108f. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. p.
48-79. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32233/R%20-%20D%20-%20
WILLIAM%20SOARES%20PUGLIESE.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
41
PUGLIESE, William Sores. Teoria dos precedentes e interpretações legislativas. 2011. 108f. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. p.
48-79. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32233/R%20-%20D%20-%20
WILLIAM%20SOARES%20PUGLIESE.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |125

apesar de não abordar o tema diretamente, trata da estrutura do Poder Judiciário, e conferiu
a instância final e irrecorrível aos Tribunais Superiores, sejam nas justiças especializada,
seja o Supremo Tribunal Federal.

Isso reflete uma necessidade de integridade, que somente será alcançada com
a repetibilidade de pronunciamentos judiciais que levem em considerações os mesmos
princípios e resultados ao proferir decisões, em respeito a própria história da sociedade e
do direito.

Enxerga-se no sistema de precedentes uma solução para se alcançar a referida


estabilidade e coerência do direito, seja em níveis verticais, seja em níveis horizontais.
Um sistema que obrigatoriamente vincule as decisões anteriores, é capaz de unificar a
codificação proposta pelo sistema de civil law com o respeito aos precedentes fáticos da
common law, efetivando-se um princípio fundamental, garantido pela Constituição, que é
a segurança jurídica.

Partindo para uma análise principiológica, seguir precedentes fortalece o caráter


interpretativo do julgador frente à aplicação da intenção do legislador. Isso porque o juiz
não está adstrito à lei para inferir suas razões, mas sim ao contexto geral do direito, que
abarca além da norma (a letra da lei), os princípios por traz da vontade do legislador em
positivar esta ideia42.

Como explica Pugliese,

As decisões genéricas, ao empregarem expressões que generalizam as provas pro-


duzidas nos autos ou os requisitos legais a serem preenchidos impedem que as
partes entendam a efetiva motivação da decisão. Consequentemente, prejudicam o
elemento de controle, pelas partes e pela sociedade, da decisão proferida.43

Seguir precedentes, aborda uma questão de inclusão dos princípios dentro das
decisões. Isso porque, num contexto atual do direito, onde a supremacia da Constituição
e sua aplicação frente aos demais diplomas legais é indissociável, a atividade jurisdicional
também deve ser. Viana e Nunes corroboram com tal ideia no sentido que

42
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. 2011. 440f. Tese
(Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Processual Civil, Faculdade de Direito,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. p. 125. Disponível em: https://www.lume.
ufrgs.br/handle/10183/194323#:~:text=Resumo%20O%20presente%20trabalho%20objetivou%20estru-
turar%20uma%20teoria,orientadores%20para%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20e%20supera%C3%A7%-
C3%A3o%20dos%20precedentes%20judiciais.. Acesso em: 13 ago. 2023.
43
PUGLIESE, William Soares. Formalismo valorativo e a fundamentação das decisões no código de processo
civil de 2015. Revista de Processo, v. 47, n. 328, p. 89-104, jun. 2022. p. 94.
126| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

a atividade jurisdicional se sujeita ao complexo de normas contido no texto constitu-


cional. Se nos dias atuais a assertiva pode parecer demasiadamente óbvia, em consi-
deração à inegável supremacia do texto constitucional, nem sempre foi assim e, para
sermos bem realistas, não é incomum, mesmo após a Constituição da República de
1988, depararmo-nos com decisões judiciais que fulminam o texto constitucional.
[...]
tornando-se imprescindível o trabalho de aprimoramento científico das garantias
constitucionais; portanto, trata-se de um acréscimo da máxima importância, corres-
pondente à visualização da garantia de participação das partes (de diálogo genuíno),
com a possibilidade de verem os seus argumentos gerar verdadeiro impacto na de-
cisão, e de fiscalidade (accountability) ao trabalho de todos os sujeitos processuais.44

Pelo que expõem os autores, identificamos mais alguns benefícios no uso dos
precedentes, como o aprimoramento das garantias constitucionais e seu resguardo, bem
como o poder de fiscalização das decisões e de sua qualidade.

2.2.2 Contraditório e ampla defesa


Seguir precedentes também apontam maiores resguardos de garantias constitucio-
nais, como o contraditório e a ampla defesa, trazendo outros subprincípios (ou direitos),
derivados deste, como o direito à informação, o direito a manifestação e o direito de ver
seus argumentos considerados em uma prolação de decisão45.

Nesse sentido, Fogaça e Fogaça explicam como seguir precedentes pode (e deve)
facilitar as partes compreender a aplicação do direito no caso, através de uma fundamen-
tação linear dentro do ordenamento.

O dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais também será enor-


memente prestigiado pela maior densidade argumentativa encontrada através do
exercício da jurisdição mediante a aplicação do sistema de precedentes obrigató-
rios. Extirpando-se do cenário nacional a existência de decisões contraditórias, a
própria credibilidade do Poder Judiciário será beneficiada46.

44
VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes – a mutação do ônus argumentativo. São Paulo: Forense, 2018.
p. 378.
45
ROSA, Viviane Lemes da; PUGLIESE, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma
análise do contraditório e ampla defesa. Revista da Advocacia Brasileira, São Paulo: RT, ano 2, n. 6, p. 225-
246, jul./set. 2017. p. 235-236.
46
FOGAÇA, Mateus Vargas; FOGAÇA, Marcos Vargas. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios e a flexi�-
bilidade no novo Código de Processo Civil. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 66, p.
509-533, jul./dez. 2015. p. 529. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/
view/1726#:~:text=Apresenta%20as%20bases%20da%20flexibilidade%20do%20sistema%20de,preceden-
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |127

Essa facilitação, além de prestigiar as partes ao terem a possibilidade em ver que


todos seus argumentos foram enfrentados pelos juízes, possibilita uma maior defesa dos
seus interesses, em eventuais recursos.

2.2.3 Segurança jurídica


Também, seguir precedentes traz maior celeridade e estabilidade e coerência das
decisões enfrentadas pelo poder judiciário47. Isso significaria conferir ao poder judiciário e
aos demais atores do judiciário, ou seja, advogados e partes, saber como se desenhou a
decisão e os critérios adotados pelo julgador para chegar aquele resultado.

Também aponta a existência de um maior respeito à segurança jurídica, justamente


pela maior estabilidade que se é alcançada ao seguir precedentes48. Da mesma forma,
aponta Ronaldo Cramer que

Estabilidade da jurisprudência significa a existência de precedentes firmes e sólidos,


capazes de demonstrar, sem dificuldade, o posicionamento do tribunal sobre deter-
minadas questões. E isso somente se alcança se os tribunais respeitarem, além dos
precedentes dos tribunais superiores, os seus próprios. Ademais, jurisprudência
estável constitui pressuposto para se identificar e se compreender, com segurança,
o precedente que será aplicado ao caso concreto.
[...]
Estabilidade ainda quer dizer que os tribunais devem, sempre que possível, evitar a
superação de seus precedentes, e, se e quando fizerem, devem justificar de forma
específica essa alteração (art. 927, §4º, do NCPC)49.

Canotilho divide a segurança jurídica em duas principais frentes: a estabilidade e a


previsibilidade:

(1) estabilidade ou eficácia ex post da segurança jurídica: uma vez adoptadas, na


forma e procedimento legalmente exigidos, as decisões estaduais não devem po-
der ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável alteração das mesmas
quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes.

te%20invocado%20%C3%A9%20revogado%20e%20exclu%C3%ADdo%20do%20sistema.. Acesso em: 13


ago. 2023.
47
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010.
48
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 40.
49
CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 125-126.
128| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

(2) previsibilidade ou eficácia ex ante do princípio da segurança jurídica que, fun-


damentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos
cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos50.

Há ainda, no duplo grau de jurisdição, uma tentativa de garantia da segurança jurí-


dica pelo uso dos precedentes. Marinoni aponta que

Ao mesmo tempo em que se vê na obrigatoriedade dos precedentes um atentado con-


tra a liberdade do juiz, celebra-se o duplo grau de jurisdição como garantia de justiça.
Os juízes pensam que exercer poder quando julgam como desejam, mas não perce-
bem que não têm poder de decidir (sozinhos) sequer uma ação de despejo fundada
em falta de pagamento ou uma ação ressarcitória derivada de acidente de trânsito, e,
além disto, que as suas sentenças, em regra, não interferem na vida dos litigantes51.

E continua, defendendo a segurança jurídica através do uso do duplo grau de ju-


risdição e respeito aos precedentes, exatamente pela insegurança causada pelas decisões
de primeiro grau.

Se é completamente contraditório sustentar a intocabilidade do duplo grau e, ao


mesmo tempo, o poder de o juiz de primeiro grau decidir em desacordo com os tri-
bunais superiores, não é necessário afirmar o duplo grau de jurisdição para respeitar
os precedentes. Na verdade, a relativização do duplo grau e a obediência aos prece-
dentes são elementos presentes no sistema que realmente respeita os seus juízes52.

Sem respeito aos precedentes, não é possível se alcançar a estabilidade da ordem


jurídica, pois se constitui um critério objetivo e pré-determinado de decisão que incrementa
a segurança jurídica.

Defende-se a teoria de Dworkin do direito como integridade e sua aplicação na


sistemática do processo civil brasileiro, em especial, pelo sistema de precedentes, uma
vez que a segurança jurídica somente será alcançada com o diálogo entre as decisões, e
diálogos intradecisões, onde permita-se compreender qual a interpretação está sendo dada
a legislação vigente no ordenamento atual.

50
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 380.
51
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: MARINONI, Luiz Guilherme
(org.). A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 220.
52
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: MARINONI, Luiz Guilherme
(org.). A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 222.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |129

2.2.4 Imparcialidade e isonomia


Seguir precedentes também fortalece a imparcialidade do julgador na prolação das
decisões, e se retrata não apenas naquelas suportadas no condão dos instrumentos de
suspeição e impedimento, mas também da impessoalidade do julgador em transmitir e
sobrepujar valores constitucionais sobre valores pessoais53.

Sarturi aponta para uma maior isonomia ao se seguir precedentes, afastando a


discricionaridade e a arbitrariedade do julgador ao prolatar as decisões, e o julgador ao não
seguir precedentes, estaria ferindo de morte a própria constituição.

a observância da igualdade também obriga os julgadores a justificarem as desi-


gualdades. Havendo fundamento para superação dos precedentes, a aplicação do
princípio da igualdade exige do julgador a exposição das suas razões, evitando-se a
discricionariedade e a arbitrariedade.
A aplicação incorreta de um precedente, além de violar norma específica, viola o
princípio da igualdade, disposto no art. 5º da Constituição Federal54.

Conforme bem aponta Marinoni, a igualdade que é tão resguardada em vários ele-
mentos processuais, como o contraditório e ampla defesa, o acesso à justiça pelas partes
hipossuficientes, paridade de técnica e tratamento, somente pode ser alcançada quando
toda essa igualdade é correlacionada na decisão55.

Ainda, Marinoni identifica que o problema da não isonomia não está apenas no
poder conferido ao juiz de decidir, mas na compreensão da lei e do seu subjetivismo,56 que
é agravado pela compreensão a partir da compreensão da lei a partir da Constituição,57
sendo estritamente necessário a padronização das decisões à partir do uso das técnicas
dos precedentes.58

53
PEREIRA, Paulo Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universalidade das decisões do STJ. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014. p. 69.
54
SARTURI, Cláudia. A teoria dos precedentes judiciais e o novo código de processo civil brasileiro. Publicações
da Escola da AGU, v. 9, n. 2, p. 25-46, jun. 2017. p. 39. Disponível em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.
php/EAGU/article/view/1956. Acesso em: 13 ago. 2023.
55
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 228-230.
56
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 234.
57
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 241.
58
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 246-247.
130| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

2.2.5 Hierarquia das cortes


Pode-se trabalhar a tese da hierarquia, seguindo a dimensão vertical e horizontal
da doutrina de stare decisis. Em que pese não exista uma determinação legal que obrigue
o julgador a seguir a hierarquia entre os tribunais, existem uma série de princípios e fatores
constituintes do processo que o vinculam aos precedentes anteriores dos tribunais.

Pugliese trabalha esse conceito, abordando um sentido inverso da ordem dos re-
cursos nos tribunais, onde “para evitar a reforma, o magistrado ou o colegiado deve se-
guir os precedentes estabelecidos pelos tribunais que lhe são superiores”59. E aponta que
“mesmo sem a estrita vinculação hierárquica entre os tribunais, o respeito aos precedentes
é uma prática positiva”60.

Muito bem exemplifica Marinoni a questão da hierarquia, relacionando-a com o


respeito à Constituição

Não há racionalidade na decisão ordinária que atribui à lei federal interpretação dis-
tinta da que lhe foi dada pelo órgão jurisdicional incumbido pela Constituição Federal
de uniformizar tal interpretação, zelando pela unidade do direito federal. A irracio-
nalidade é ainda mais disfarçada na decisão que se distancia de decisão anterior,
proferida pelo mesmo órgão jurisdicional em caso similar, ou melhor, em caso que
exigiu a apreciação de questão jurídica que o órgão prolator da decisão já definira61.

O respeito aos precedentes dentro do sistema processual brasileiro não é apenas


uma sugestão do legislador, mas uma obrigatoriedade que deve ser assumida cada vez
mais pelos julgadores, como um dever do juiz e um direito do jurisdicionado, assim como
o contraditório e a ampla defesa.

3 CONCLUSÃO
Seguir precedentes é mais que um mero gosto ou vontade do magistrado. É uma
determinação de caráter legal e constitucional, que privilegia o resguardo a Constituição e
seus princípios como a isonomia e a segurança jurídica, e mais além, garante ao sistema
uma agilidade e economicidade processual, custo direto ao erário público de um valor que

59
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 50.
60
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 53.
61
MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A
força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 230.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |131

pode ser empenhado em outras despesas e políticas públicas de maior relevância para o
desenvolvimento do país.

Com a construção feita no presente trabalho, indicou-se que ainda existem ques-
tões deficitárias no uso de precedentes por parte dos magistrados em amplo sentido. Em
momento algum buscou-se esgotar o assunto, mas trazer uma reflexão sobre o uso e a
aplicação de um sistema de precedentes, que mais que um mero capricho do legislador,
como já exposto, indica a construção de um sistema justo e equânime.

O incentivo a adoção de decisões anteriores não apenas fortalece o judiciário e o


unifica (como preconiza o texto do Código de Processo, que a jurisdição é una em todo
território nacional), mas confere maiores garantias e previsibilidade ao judiciário, que tem
sido constantemente alvo de críticas – sem fazer juízo de valor à elas – por apresentar re-
formas em decisões apenas no último grau, seja pelo abarrotamento das Cortes Superiores
com questões que poderiam facilmente ser suprimidas nas instâncias iniciais do judiciário
com o correto uso de uma lógica que privilegia os princípios utilizados para construção
das decisões.

REFERÊNCIAS
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Escrevendo um romance por meio dos precedentes judiciais
– uma possibilidade de segurança jurídica para a jurisdição constitucional brasileira. A&C Revista
de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, v. 14, n. 56, p. 177-207, abr./jun. 2014.
Disponível em: https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2015/01/Escrevendo-um-
romance-por-meio-dos-precedentes-judiciais.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.

BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascen-
são dos precedentes no Direito brasileiro. Revista da AGU, Brasília, v. 15, n. 03, p. 09-52, jul./set. 2016.
Disponível em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/854. Acesso em: 13 ago. 2023.

BERTAGNOLLI, Ilana; BAGGIO, Andreza Cristina. Os precedentes vinculantes do Novo Código de


Processo Civil e a aproximação entre common law e civil law no direito brasileiro. Ius Gentium,
Curitiba, v. 8, n. 1, p. 162-181, jan./jun. 2017. Disponível em: https://www.revistasuninter.com/ius-
gentium/index.php/iusgentium/article/view/325. Acesso em: 13 ago. 2023.

BITTON, Daniele Vaz. Segurança jurídica e imprevisibilidade nas decisões judiciais: um desafio para
os magistrados. 2015. 17f. Artigo (Pós-Graduação Lato Sensu) – Escola da Magistratura do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/traba-
lhos_conclusao/2semestre2015/pdf/DanielleVazBitton.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.

BRASIL. Justiça Federal. TRF4. Apelação Cível n. 5072360-54.2014.4.04.7000 (Processo Eletrônico


- E-Proc V2 - TRF) – 10º Vara Federal de Curitiba. 5ª Turma. Relator: Alexandre Gonçalves Lippel. Data
de autuação: 08/03/2017. Disponível em: https://consulta.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=-
consulta_processual_resultado_pesquisa&selForma=NU&txtValor=50723605420144047000&-
132| Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira - Lucas Raphael de Souza Mano

chkMostrarBaixados=S&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=01/01/1970&-
selOrigem=TRF&sistema=&txtChave=&seq=. Acesso em: 13 ago. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Petição 9.844/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Julgado
em 12 ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-manda-prender-roberto.
pdf. Acesso em: 24 nov. 2021.

CAMBI, Eduardo; HAAS, Adriana; SCHMITZ, Nicole Naiara. Uniformização da jurisprudência e pre-
cedentes judiciais. Anais do Simpósio Brasileiro de Processo Civil, v. 1, p. 463-496, mar. 2017.
Disponível em: https://www.abdconst.com.br/archives/pdfs/simposios/anais/2017/grupos-de-traba-
lho/processo-civil-e-precedentes/eduardocambi.pdf. Acesso em: 12 ago. 2022.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade das decisões judiciárias e seus reflexos na seguran-
ça jurídica. BDJur, p. 1-75, 2007. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/74120.
Acesso em: 16 ago. 2022.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institu-
cionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. Revista do
Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 64, p. 135-147, abr./jun. 2017. Disponível em: https://www.
mprj.mp.br/documents/20184/1255811/Fredie_Didier_Jr.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.

FOGAÇA, Mateus Vargas; FOGAÇA, Marcos Vargas. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios
e a flexibilidade no novo Código de Processo Civil. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo
Horizonte, n. 66, p. 509-533, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/in-
dex.php/revista/article/view/1726#:~:text=Apresenta%20as%20bases%20da%20flexibilidade%20
do%20sistema%20de,precedente%20invocado%20%C3%A9%20revogado%20e%20exclu%C3%AD-
do%20do%20sistema.. Acesso em: 13 ago. 2023.

MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: MARINONI, Luiz
Guilherme (org.). A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010.

MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI, Luiz Guilherme
(org.). A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2010.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

MARINONI, Luiz Guilherme. Da corte que declara o “sentido exato da lei” para a corte que institui
precedentes. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 103, n. 950, p. 165-198, dez. 2014. Disponível
em: https://www.academia.edu/76337447/DA_CORTE_QUE_DECLARA_O_SENTIDO_EXATO_DA_
LEI_PARA_A_CORTE_QUE_INSTITUI_PRECEDENTES_DA_CORTE_QUE_DECLARA_O_SENTIDO_
EXATO_DA_LEI_PARA_A_CORTE_QUE_INSTITUI_PRECEDENTES. Acesso em: 15 ago. 2022.
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro |133

PAIXÃO, Shayane do Socorro de Almeida da; SILVA, Sandoval Alves da; COSTA, Rosalina Moitta Pinto da.
A superação dos precedentes na teoria dos diálogos institucionais: análise do caso da Vaquejada. Revista
de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 08, n. 01, p. 275-301, jan./abr. 2021. DOI: 10.5380/rinc.
v8i1.71072. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/71072. Acesso em: 23 ago. 2022.

PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universalidade das decisões do STJ. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

PINTO, Adriano Moura da F.; MELLO, Nilo Rafael B. de. O microssistema de precedentes no novo
processo civil brasileiro: uma interpretação. Revista Internacional Consinter de Direito, Vila Nova de
Gaia, ano 5, n. 8, p. 525-541, jan./jun. 2019. Disponível em: https://revistaconsinter.com/index.php/
ojs/article/view/239/458. Acesso em: 13 nov. 2021.

PUGLIESE, William Sores. Teoria dos precedentes e interpretações legislativas. 2011. 108f.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2011. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/32233/R%20-%20
D%20-%20WILLIAM%20SOARES%20PUGLIESE.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.

PUGLIESE, William Soares. Formalismo valorativo e a fundamentação das decisões no código de


processo civil de 2015. Revista de Processo, v. 47, n. 328, p. 89-104, jun. 2022.

ROSA, Viviane Lemes da; PUGLIESE, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculan-
tes: uma análise do contraditório e ampla defesa. Revista da Advocacia Brasileira, São Paulo: RT, ano
2, n. 6, p. 225-246, jul./set. 2017.

ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. 2011. 440f.
Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Processual Civil, Faculdade de
Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Disponível em: https://www.
lume.ufrgs.br/handle/10183/194323#:~:text=Resumo%20O%20presente%20trabalho%20objeti-
vou%20estruturar%20uma%20teoria,orientadores%20para%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20e%20
supera%C3%A7%C3%A3o%20dos%20precedentes%20judiciais.. Acesso em: 13 ago. 2023.

SARTURI, Cláudia. A teoria dos precedentes judiciais e o novo código de processo civil brasileiro.
Publicações da Escola da AGU, v. 9, n. 2, p. 25-46, jun. 2017. Disponível em: https://revistaagu.agu.
gov.br/index.php/EAGU/article/view/1956. Acesso em: 13 ago. 2023.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica
de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

STRECK, Lênio. O “decido conforme a consciência” dá segurança a alguém? Consultor Jurídico, 15


maio 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-confor-
me-consciencia-seguranca-alguem. Acesso em: 12 ago. 2022.

STRECK, Lênio; ABBOUD, Georges. O que é isto — o sistema (sic) de precedentes no CPC? Consultor
Jurídico, 18 ago. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-is-
to-sistema-sic-precedentes-cpc. Acesso em: 14 nov. 2021.

VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes – a mutação do ônus argumentativo. São Paulo: Forense,
2018.
A RESSIGNIFICAÇÃO DA LEGITIMIDADE
DO ESTADO ADMINISTRATIVO:
UMA TEORIA DA RACIONALIDADE
SUSTENTÁVEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS1

Maxwell Lima Dias2

Sumário: 1. Introdução. 2. O problema da legitimação Estado e a transformação do


interesse público a partir da democracia: o leviatã pós-moderno. 3. Desenvolvimento e
sustentabilidade: novos fundamentos ao Estado democrático de Direito. 4. Uma teoria da
racionalidade democrática e sustentável das políticas públicas. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo desenvolver uma releitura de alguns dos postulados
do Direito Administrativo, estabelecendo um novo paradigma de legitimação do Estado, e
culminando no reconhecimento de um dever do Estado em criar políticas públicas funda-
mentadas na soberania popular e na promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Reforça-se, assim, a necessidade de refrear o autoritarismo estatal remanescente do sé-
culo XIX – pautada na ideia de livre discricionariedade. Reconhecendo o desenvolvimento
e a sustentabilidade como valores fundamentais, parte a presente pesquisa das ideias de
Amartya Sen e de Juarez Freitas, de desenvolvimento sustentável como um processo de
expansão multidimensional de capacidades. Para isso, o presente estudo tem por objetivos
específicos o exame do conceito e a evolução da sociedade civil e o surgimento do Estado
moderno, a partir das teorias liberais burguesas, influenciadas pelo Iluminismo, e a inves-
tigação do problema da legitimidade do Estado reconhecida por Habermas, através da ten-
são entre facticidade e validade. Além disso, o presente artigo ainda tem por objetivo espe-
cífico identificar outros fundamentos da legitimação do Estado Administrativo, através dos

1
Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina ‘Administração Pública e
Desenvolvimento Nacional Sustentável: o Direito administrativo e a realização de Direitos Fundamentais”, do
Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, Centro Universitário Autônomo do Brasil –
UniBrasil, Professora Dra. Adriana da Costa Ricardo Schier.
2
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Especialista em Direito Tributário Empresarial e Processo Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR). Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1528711136619490. E-mail: maxwelldias_8hotmail.com
136| Maxwell Lima Dias

valores da democracia e do desenvolvimento sustentável. Estabelecidas tais premissas,


buscou-se, através de uma conjugação entre as teorias discursiva de Habermas, normativa
de Celso Antônio Bandeira de Mello e sociológica de Duguit, reconstruir a racionalidade
jurídica, política e social das políticas públicas. Adotou-se no presente trabalho diversos
instrumentos de pesquisa e metodologias, sobretudo o raciocínio lógico-dedutivo, base-
ando-se na construção doutrinária, nacional e internacional, dos temas acima pautados.

Palavras-chave: Direito administrativo. Democracia. Desenvolvimento sustentável.


Políticas públicas.

1 INTRODUÇÃO
O Estado administrativo é ilegítimo? Irresponsável? Perigoso? Intolerável? Para os crí-
ticos do Estado Administrativo, o direito público tradicional passara a autorizar um aparato ad-
ministrativo com poderes assustadoramente de longo alcance, o que colocaria em risco a or-
dem privada, a liberdade econômica e produziria políticas irresponsáveis e antidemocráticas3.

Enquanto para os libertários, as instituições públicas gozariam de uma arbitrarie-


dade amplamente irrestrita capaz de invadir a liberdade privada e a propriedade privada4,
para os democratas, a cadeia de accountability – que vai dos cidadãos até os próprios
funcionários que detêm o poder estatal – é muito frágil, e é constantemente agredida pela
discricionariedade excessiva do Ato Administrativo, permitindo que os legisladores se es-
quivem da responsabilidade política pela ação estatal5.

Assim, a conclusão incontroversa a que chegam gregos e troianos é a de que a exces-


siva discricionariedade do Estado e concessão da autoridade às agências, em nome de um
bem-estar comum, “equivalem a uma transferência do Poder Legislativo para o Executivo”6.

Nesse sentido, ainda que pautado no bem comum, a discricionariedade do agir


estatal traz insegurança jurídica aos administrados e, muitas vezes, políticas públicas ine-
ficazes, socialmente indesejadas, com impacto, inclusive, dissonante do seu objetivo: o
bem-estar humano.

A partir disso, faz-se demasiadamente relevante e oportuna uma revisão do Direito


Administrativo brasileiro tradicional, baseado em um modelo político e ideológico liberal,

3
SUNSTEIN, Cass R; VERMEULE, Adrian. Lei e Leviatã: resgatando o Estado administrativo. Tradução de
Nathalia Penha Cardoso de França. São Paulo: Contracorrente, 2021. p. 18.
4
EPSTEIN, Richard A. How progressives rewrote the Constitution. Washington: Cato Institute, 2006.
5
LOWI, Theodore J. The end of liberalism: the second republic of the United States. Nova York: W. W. Norton, 2009.
6
SUNSTEIN, Cass R; VERMEULE, Adrian. Lei e Leviatã: resgatando o Estado administrativo. Tradução de
Nathalia Penha Cardoso de França. São Paulo: Contracorrente, 2021. p. 17.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |137

através da sua “pedra angular”, o interesse público, buscando uma ressignificação dos
pressupostos legitimadores do Estado.

A provocação científica que o presente trabalho ambiciona realizar, é a de que a


rede de proteção – formada por um sistema normativo-administrativo de cunho liberal –
existente entre um Leviatã sedento de poder e os cidadãos, talvez não seja suficiente para
assegurar aos administrados uma segurança jurídica contra eventuais abusos de poder
pelo Estado ou demais pessoas da Administração Pública.

Cumpre esclarecer de que não há qualquer pretensão, aqui, de apagar ou negar


as contribuições do movimento liberal clássico, mas tão somente uma ressignificação,
uma atualização a partir dos valores fundamentais da democracia e do desenvolvimento
sustentável, de modo a se incluir novos fundamentos ao Estado Democrático de Direito e
ao direito administrativo.

No desenvolvimento deste estudo foram utilizados diversos instrumentos de pes-


quisa e metodologias, sobretudo o raciocínio lógico-dedutivo, baseando-se na construção
doutrinária, em estudos acerca do tema no plano jurídico e filosófico nacional e interna-
cional, e cujos conhecimentos desenvolvidos serão aplicados para a proposição de uma
revisão e ressignificação do Direito Administrativo brasileiro tradicional.

No tocante à sua estrutura, o presente trabalho foi dividido em 3 tópicos de discus-


são: no primeiro tópico será analisada a formação do Estado, e o problema de sua legitima-
ção denunciado por Habermas, diante da tensão entre facticidade e validade do direito, bem
como a sua reconstrução através da democracia deliberativa. No segundo tópico, buscar-
-se-á identificar novos valores fundamentais justificadores da atuação do Estado. No ter-
ceiro tópico, buscar-se-á enunciar uma ressignificação do Direito Administrativo tradicional
no Brasil, a partir de uma nova racionalização das políticas públicas mediante a soberania
popular e o desenvolvimento sustentável. Por fim, serão trazidas as considerações finais.

2 O PROBLEMA DA LEGITIMAÇÃO ESTADO E A TRANSFOR-


MAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO A PARTIR DA DEMOCRA-
CIA: O LEVIATÃ PÓS-MODERNO
Como de costume do ser humano – de contar histórias de todos os tipos para
atribuir-se um sentido ao mundo e à vida social –, diversos filósofos iluministas, com o
objetivo de explicar o surgimento da sociedade civil, das leis, do Estado e da legitimidade
de sua autoridade, desenvolveram “a mais famosa e influente história política dos tempos
modernos”: a história do contrato social7.

7
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 13.
138| Maxwell Lima Dias

Ressalvadas as particularidades de cada uma das teorias, a ideia do Contrato Social,


no contexto das Guerras Civis8, das revoluções liberais e durante ápice do Iluminismo9,
é nos apresentada como uma história sobre a liberdade, sobre homens que, no estado
natural, trocaram as inseguranças da plena liberdade pela liberdade civil e equitativa, sal-
vaguardadas pelo Estado10.

Segundo expõe Thomas Hobbes, em sua maior obra – O Leviatã –, os homens,


reduzidos ao binômio desejo e medo11, firmaram entre si um contrato de sujeição com o
objetivo de fugir do estado de natureza e da guerra de todos contra todos. A teoria hobbe-
siana parte do pressuposto de que é da natureza do próprio homem subjugar uns aos
outros. Mesmo diante de uma “distribuição equitativa, o homem não se contenta com a
parte que lhe cabe”12.

A partir da criação do contrato social, restariam estabelecidas as regras para a re-


solução dos conflitos e a criação do poder estatal, consistindo na “transferência mútua de
prerrogativas”, que garantiria a segurança aos homens que estariam obrigados a cumprir os
pactos que tivessem celebrado. Para Hobbes, nessa contratação reside a fonte e a origem da
justiça, determinando que justo é o cumprimento do pacto e injusto seu descumprimento13.

8
O surgimento do Estado moderno é considerado uma resposta às guerras civis que assolaram o continente
europeu, como o movimento reformista liderado por Lutero na Alemanha, que culminou em um conflito com
30 anos de duração - entre 1618 e 1648 - e que cessou com a Paz de Westfália e a afirmação de que o prín-
cipe soberano determinava a confissão de seu povo. Também na França, a Guerra dos Huguenotes assolou o
país entre 1562 e 1598, quando o Rei Henrique IV proclamou o Édito de Nantes, garantindo aos Huguenotes a
tolerância religiosa. Na Inglaterra, a guerra civil foi travada entre os partidários da Monarquia e os adeptos do
sistema parlamentar, entre os anos de 1642 e 1651. Cf.: KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado – os
fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Tradução de Urbano Carvelli.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009. p. 70.
9
O Iluminismo, enquanto movimento intelectual político-filosófico, pregava o fim do absolutismo e do despotis�-
mo instaurado nos governos do Antigo Regime, e cujas ideias fermentaram as Revoluções Liberal-Burguesas
do final dos séculos XVIII e XIX. Dessa forma, o princípio organizador da sociedade moderna deveria ser a bus-
ca da felicidade, e caberia ao governo garantir direitos naturais tais como: a liberdade individual e a propriedade
privada, a tolerância para a expressão de ideias, igualdade perante a lei e a justiça com base na punição dos
delitos. Consideravam os homens iguais e as desigualdades seriam provocadas pelos próprios homens, pela
própria sociedade. Cf.: HOBSBAWM, Eri J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 16. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2002. p. 13.
10
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 14.
11
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2009. p. 27.
12
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Rosina
D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. p. 103.
13
SPENGLER, Fabiana M. O pluriverso conflitivo e seus reflexos na formação consensuada do Estado. Revista de
Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 22, n. 2, p. 182-209, maio/ago. 2017. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/835. Acesso em: 13 ago. 2023.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |139

A teoria liberal-iluminista justifica a criação do Estado, por meio da superação (com


ajuda da razão) de um estado de natureza para a convivência em uma sociedade civil,
visando a proteção ao bem comum. O Estado tem a tarefa de assegurar a proteção e a
promoção da liberdade dos cidadãos, bem como a garantia das necessidades existenciais
e gerais em uma ordem social. Em razão da evolução econômica e social, os cidadãos
transferiram parte de sua autonomia – a qual passarão a exercer por meio da comunida-
de – ao Estado. O bem comum sobrepõe-se, então, ao interesse individual do cidadão14.

Essa tem sido, portanto, a justificação do chamado Estado Liberal de Direito15,


pautado em uma ordem pública mínima e voltada para a proteção ao direito à vida, às liber-
dades individuais e à propriedade privada16. Acontece que a ideia de interesse público não
comporta apenas liberdades individuais (direitos negativos de abstenção do Estado), mas
também direitos sociais (direitos prestacionais) e de solidariedade17.

O surgimento desse novo poder administrativo, concentrado em um Estado detentor


do monopólio da violência demanda aos teóricos do racionalismo jurídico demonstrar efe-
tivamente a correlação entre o direito sancionado pelo soberano com o poder organizado
conforme o próprio direito. Para Hobbes, a legitimação do Estado conta, de um lado, com a
estrutura de regras contratuais e das leis, e do outro, com o poder de comando de um so-
berano, “cuja vontade pode dominar quaisquer outras vontades existentes sobre a Terra”18.

14
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 75.
15
O Estado de Direito é entendido como um projeto político, um modelo de organização social que, pautado
no mundo das normas jurídicas, impõe limites jurídicos ao livre exercício da soberania. Sobrepuja o poder
à legalidade. Nesse modelo, há a supremacia da lei, a qual é produto da formulação da vontade geral, e que
propõe-se ser geral e abstrata, para que todos os homens sejam tratados sem casuísmos, embargando-se,
desastre, perseguições e favoritismos. Assim, o Direito Administrativo, como ferramenta de controle do poder
estatal e de defesa do cidadão contra eventuais abusos por parte do Estado, nasce da própria constituição /
configuração do Estado de Direito. Cf.: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo.
32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 45-50.
16
ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: histó-
ria, teoria e crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 3-94.
17
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008. p. 263-267.
18
Os vestígios desse antagonismo não foram (inteiramente) apagados nem mesmo por Kant ou Rousseau,
embora neles a racionalidade da estrutura normativa, reforçada pela ideia de autonomia e liberdade, já ensaie
(ainda que de forma modesta e comedida) um esboço de democracia e soberania popular. No entanto, as
ideias reformistas de Kant ainda demonstram uma continuidade da ideia de rigidez e impenetrabilidade do
núcleo político-decisório da comunidade. Cf.: HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para
uma teoria discursiva do direito e da democracia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 371.
140| Maxwell Lima Dias

A ideia de um acordo levado a cabo por todos os homens considerados livres e


iguais, em prol de uma vontade geral, como já visto, corresponde uma perspectiva indivi-
dualista e racional de legitimação do Estado. A vontade geral, no entanto, não deve explicar
somente as razões válidas para justificação do Estado, mas também identificar a origem da
soberania. Partindo da teoria do discurso, de democracia como procedimento, o problema
da democratização deve, então, ser tratado como uma questão de organização19.

Para Habermas, as diferenças entre democracia e outras formas de dominação,


quando apontadas mediante um princípio racional de legitimação – seja sob o ponto de
vista normativo ou “empírico”20 –, e não por tipos de organização indicados a priori, cor-
respondem a uma visão equivocada da ordem política21.

Isso porque, de acordo com o filósofo (sociólogo e também jurista) alemão, o


modelo racional e empírico de democracia, o poder social (soberano) agiria “de forma
impositiva de interesses superiores que podem ser perseguidos de maneira mais ou menos
racional”. Por outro lado, uma teoria da democracia guiada pelo propósito normativo, se
limita a “emprestar” das ciências sociais o olhar objetivo, carecendo de elementos empí-
ricos substanciais22.

Discuti dois conceitos de legitimação, o empirista e o normativista. Um deles é


aplicável nos termos das ciências sociais, porém é insuficiente por abstrai o peso
sistemático de razões válidas; Outro seria satisfatório desse ponto de vista, mas é
insustentável por causa do contexto metafísico em que está inserido. Proponho por
isso um terceiro conceito de legitimação que chamo de reconstrutivo23.

O objetivo da teoria discursiva da legitimação reconstrutiva é identificar dispositivos


que possam fundamentar a proposição de que as instituições de base da sociedade e as
decisões políticas fundamentais decorrem, não somente da vontade geral, mas sobretudo,

19
Quando Habermas fala em justificação, ele refere-se às condições formais de aceitabilidade de razões que
emprestam eficácia às legitimações do Estado e da administração pública. HABERMAS, Jürgen. Para a recons-
trução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 390-393.
20
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 371.
21
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 392-393.
22
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 371-372.
23
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 420.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |141

do consentimento não coagido de todos os concernidos; se estes pudessem participar da


deliberação na condição de homens livres e iguais24.

A crítica que faz o filósofo ao movimento liberal diz respeito à certeza irrefutável di-
fundida de que as alternativas abertas pelo próprio desenvolvimento capitalista poderia ainda
hoje ser legitimada (de maneira tão convincente), como propôs Hobbes em sua época25.

Seguindo o raciocínio weberiano26, Habermas identifica que a racionalização do


Estado consiste em um projeto da modernidade capitalista, iniciado na Europa pós-revo-
luções burguesas, resultando em um alto grau de homogeneidade cultural. Os Estados
modernos surgem, assim, em meio a um mercado mundial que os europeus dominam27.

A saída, ao menos aparente, identificada por Habermas, para a superação do pro-


blema da incompletude, deficiência e desvalorização da legitimidade do Estado, está, então,
em designar a democracia, enquanto procedimentos e processos deliberativos, de partici-
pação popular na esfera pública, como pressuposto da soberania (popular). Ora, se de um
lado, a vontade geral consiste em uma justificação para a submissão ao Estado e às leis, tal
autoridade apenas é válida enquanto a soberania decorrer diretamente do agir comunicativo
do povo, e enquanto as leis refletirem as deliberações institucionalizadas, bem como as
opiniões publicamente geradas na esfera política informal28.

Tem-se, então, a partir dessa visão reconstrutiva da democracia, a legitimação do


Estado (pós-moderno): ao mesmo tempo em que a teoria do discurso retira a coerção das
decisões, a democracia deliberativa assegura que a vontade do povo prevaleça. A conju-

24
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 393.
25
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2016. p.393-394.
26
Segundo Weber, o Estado Moderno Ocidental, ou o Estado racional, como ele chamava, consiste em uma
estrutura ou o agrupamento político que reivindica, com êxito, o monopólio do constrangimento físico legítimo.
Weber salienta que um Estado eficiente está baseado em uma rígida burocracia, decorrente do elevado grau
de racionalidade que permeia esse órgão central. Racionalidade essa que permeou o agir da burocracia estatal
moderna e possibilitou os mecanismos necessários para o desenvolvimento capitalista. Cf: ARENDT, Hannah.
Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 81-94; KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e
do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 264-275; RIBEIRO,
Douglas Carvalho. Nascimento e queda do Leviatã: da congruência entre Estado moderno, crise e democracia.
Revista do CAAP, Belo Horizonte, n. 2, v. XIX, p. 85-102, 2013.
27
BANNWART JUNIOR, Clodomiro José; TESCARO JUNIOR, João Evanir. Jürgen Habermas: teoria crítica e de�-
mocracia deliberativa. Revista Confluências, Niterói, v. 12, n. 2, p. 129-156, out. 2012. Disponível em: https://
periodicos.uff.br/confluencias/article/view/34337/19738. Acesso em: 13 ago. 2023.
28
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 203-224.
142| Maxwell Lima Dias

gação da vontade geral, das leis e da soberania popular faz surgir o Estado Democrático
de Direito.

O Estado Democrático de Direito surge, pois, como transformador da realidade,


de modo que o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida
digna ao homem, e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública
no processo de construção e reconstrução, fundado no princípio da solidariedade social, e
que se institucionaliza um sistema de direitos fundamentais, que assegura autonomia dos
indivíduos frente aos poderes públicos e justiça social para corrigir desigualdades29.

Assim, o Estado Democrático de Direito – considerado por Lênio Streck como um


“plus normativo em relação às formulações anteriores”30 – pautado em valores funda-
mentais de terceira dimensão, como, o direito ao desenvolvimento nacional e o deveres
de solidariedade e fraternidade, os indivíduos deixam de ser considerados pelo Estado su-
jeitos-pacientes, e passam a ser considerados sujeitos-agentes, de tal sorte que, gozando
de oportunidades sociais adequadas, passam a ter condições de efetivamente moldarem o
seu próprio destino e ajudarem uns aos outros31.

Conforme afirma a Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988,


em seu artigo 1º, a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, e,
consequentemente, tem por objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
bem como a redução das desigualdades sociais (CF/88, artigo 3º, caput e incisos I e III).

Vê-se, pois, que por se tratar de uma constituição democrática, não há sentido
algum delimitar o interesse público, ou o bem comum, às liberdades individuais, conforme
defendido pelo liberalismo burguês, ou pelo libertarianismo. A tradição do direito adminis-
trativo brasileiro deve, portanto, readequar o conceito de interesse público ao novo para-
digma instaurado em nossa ordem política, jurídica e social.

29
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolsan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. rev. e atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 98-99.
30
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolsan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. rev. e atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 100.
31
Ao trazermos essa ideia de Amartya Sen, da importância da condição de agentes dos indivíduos, é importante,
salientar de que tal pensamento não se baseia na premissa neoliberal de um Estado Subsidiário, em que se
relega à iniciativa privada a incumbência de desenvolver atividades de cunho social. Pelo contrário, partimos
do pressuposto de um Estado responsável pela garantia e proteção de todos os direitos fundamentais, inclusive
a partir de políticas públicas efetivas. Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura
Teixeira Motta. Revisão Técnica de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 25-26;
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – refle-
xos sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional,
Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 135. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023; SCHIER, Adriana da Costa Ricardo.
Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento. Curitiba: Íthala, 2019. p. 45.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |143

A racionalização do interesse público e, consequentemente, das políticas públicas


implementadas para a sua materialização, deve buscar proteger não apenas as liberdades
individuais clássicas, mas também os direitos sociais, e os direitos coletivos e difusos
de desenvolvimento, sustentabilidade e solidariedade, comprometendo-se, sobretudo, à
redução das desigualdades sociais.

A ideia do interesse público, sob a identidade do bem comum, já se fazia presente


na filosofia política da antiguidade clássica, tendo afirmado Platão que o bem-comum cor-
responderia, sempre, ao bem máximo de cada ser humano, mas em integração e sintonia
como o bem máximo (possível e real) de todos os outros, em cada instante32. Para a filo-
sofia política de Aristóteles o bem comum seria, inclusive, a finalidade principal e o próprio
sentido da convivência humana na pólis, uma forma de organização política inerente à con-
dição humana e que propicia o mais elevado desenvolvimento moral do cidadão, condição
para a plena felicidade do homem33.

Durante a Idade Média, o bem comum foi identificado por São Tomás de Aquino
como sendo “tudo aquilo que o homem deseja, seja de que natureza for: bem material,
moral, espiritual, intelectual. Mas, sendo o homem um ser social, ele procura não só o seu
próprio bem, mas também aquele do grupo a que pertence. Cada grupo tem o seu próprio
bem comum”34. Assim, o homem, na qualidade de ser racional, torna-se o único dentre
todos os seres naturais dotado do poder de alcançar o bonum commune perfectum, que é
a felicidade ou beatitude. Porém, a verdadeira felicidade somente seria possível ao homem
que alcançar o bem comum por essência, que é Deus35.

Nas civilizações modernas, sob os fundamentos filosóficos do Iluminismo e do


liberalismo burguês, os teóricos contratualistas do final do século XVII e XVIII, acabaram
por alterar em alguma forma a concepção clássica de bem comum. Como visto, Hobbes,
Rousseau e Kant abordam a questão de bem comum (ou vontade geral) e de interesse

32
PEREIRA, Américo. Da ontologia da “polis” em Platão. Covilhã: LusoSofia – Biblioteca Online de Filosofia e
Cultura, 2011. p. 03-102. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/pereira_americo_ontologia_da_po-
lis_em_platao.pdf. Acesso em: 02 fev. 2022.
33
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Sobre a noção de bem comum no pensamento político ocidental: en�-
tre becos e encruzilhadas da dimensão ancestral do moderno conceito de interesse público. Revista de
Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 107-134, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/rinc/a/P6SykqXCqzPN9DYRQvbDyyq/?format=pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
34
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ide�-
ais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (org.). Supremacia
do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 86.
35
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Sobre a noção de bem comum no pensamento político ocidental: en�-
tre becos e encruzilhadas da dimensão ancestral do moderno conceito de interesse público. Revista de
Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 107-134, jan./abr. 2019. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/rinc/a/P6SykqXCqzPN9DYRQvbDyyq/?format=pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
144| Maxwell Lima Dias

público a partir de uma concepção individualista e liberal, colocando como princípios ba-
silares a defesa da propriedade privada e da liberdade natural dos homens, sendo que o
objetivo da sociedade civil e do Estado é assegurar e garantir o exercício destas liberdades
individuais, desviando os olhares da solidariedade social.

Já durante a pós-modernidade, a base teórica acerca da conceituação e função do


interesse público, no Direito Administrativo brasileiro, é fornecida pela escola encabeçada
por Celso Antônio Bandeira de Mello, sendo o jurista o principal referencial teórico do tema36.

Segundo o referido doutrinador, o interesse público seria “resultante do conjunto de


interesses que os indivíduos pessoalmente tem quando considerados em sua qualidade de
membros da sociedade e pelo simples fato de o serem”37.

Essa definição trazida por Celso Antônio Bandeira de Mello, de que o interesse
público consiste em um interesse dos vários membros do corpo social, e não apenas o
interesse de um “todo abstrato”, concebido em apartado dos interesses de cada membro –
uma faceta coletiva dos interesses individuais38 –, é de suma importância para se entender
os limites da legitimidade do Estado.

Vem tal definição a desmantelar a falsa desvinculação absoluta entre uns e outros,
advertir acerca da falsa inferência de que, sendo os interesses públicos interesses do Estado,
todo e qualquer interesse do Estado (e demais pessoas do Direito Público) seria a priori um
interesse público, sujeito ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

É que, além de subjetivar estes interesses, o Estado, tal como os demais particu-
lares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo
jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, indepen-
dentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o
Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhes são particu-
lares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras
individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são
interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob pris-
ma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito39.

A submissão da Administração Pública à legalidade já havia sido debatida e reco-


nhecida no Direito Administrativo brasileiro desde a segunda metade do século XIX, com

36
SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021. p. 33.
37
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 62.
38
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p.
62-63.
39
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 66.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |145

forte influência da doutrina estrangeira, no entanto, foi graças à doutrina de Celso Antônio
Bandeira de Mello, que a noção de interesse público - bem como a ideia de sua indisponi-
bilidade e da sua supremacia em face dos interesses egoísticos particulares - fora introdu-
zida na ordem jurídico-política brasileira40.

Otimista, Celso Antônio refuta a visão autoritária, a qual chama o jurista de ‘impres-
são fluida’, de que o “poder” seja o núcleo aglutinante do Direito Administrativo, i.e., a ideia
de que o Direito Administrativo constitui o ramo criado “em favor do poder, a fim de que ele
possa vergar os administrados”41. Contrariamente a esta corrente, o jurista adverte que o
Direito Administrativo consiste, na verdade, em um ramo do Direito que surge para regular
a conduta do Estado e proteger os cidadãos contra o exercício indevido do poder estatal42.

Antes de, pretensiosamente, desenvolver uma crítica (construtiva) ao Direito


Administrativo brasileiro, convém explicar que o presente trabalho reconhece e ratifica o
conceito do objeto do Direito Administrativo trazido por Celso Antônio, como um instru-
mento de controle do poder estatal e de defesa dos cidadãos-administrados contra even-
tuais abusos.

Não obstante seja inegável, e até inestimável, a contribuição e ensinamentos do


notório jurista brasileiro, essenciais à inclinação da doutrina administrativa brasileira em
se preocupar com um processo mais social e democrático43, é importante não ignorar a
realidade política, jurídica e social a nossa volta, tampouco contentarmo-nos em assisti-la
com olhares demasiadamente otimistas ou utópicos.

Conforme análise crítica (muito bem atenciosa e oportuna) tecida por Luasses44
ao Direito Administrativo brasileiro tradicional, o próprio Celso Antônio reconhece que as
bases ideológicas do Direito Administrativo brasileiro são aquelas resultantes das fontes
inspiradoras do Estado (liberal) de Direito, e neste “se estampa a confluência de duas
vertentes de pensamento: a de Rousseau e a de Montesquieu”45.

40
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. Direito administrativo e interesse público: estudos
em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 15.
41
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p.
43-44.
42
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p.
47-48.
43
SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021. p. 33.
44
SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021. p. 35.
45
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 48.
146| Maxwell Lima Dias

Essa base ideológica atribuída ao Direito Administrativo por Celso Antônio é funda-
mentada em clássicas premissas filosóficas modernas”(i) a igualdade formal e a te-
oria do contrato social, defendidos por Rousseau; e (ii) a separação de poderes, de
Montesquieu. Assim o modelo de Estado de Direito reflete um esquema de controle do
Poder, atingindo o Estado e, consequentemente, quem maneja o controle estatal [...]46.

Partindo, pois, da lição crítica de Luasses47, é preciso revisar e questionar os pres-


supostos teóricos do Direito Administrativo brasileiro e os resultados que são obtidos por
meio de teorias impregnadas de conceitos clássicos (outrora entendidos a priori) passíveis
de restrições, desconstruções ou ressignificações, sobretudo no plano epistemológico.

A provocação científica que o presente trabalho ambiciona realizar, é a de que a


rede de proteção – formada por um sistema normativo-administrativo de cunho liberal –
existente entre um Leviatã sedento de poder e os cidadãos, talvez não seja suficiente para
assegurar aos administrados uma segurança jurídica contra eventuais abusos de poder
pelo Estado ou demais pessoas da Administração Pública.

3 DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE: NOVOS FUN-


DAMENTOS AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Cumpre inicialmente o esclarecimento de que não há, aqui, qualquer pretensão de
apagar ou negar as contribuições do movimento liberal clássico, mas tão somente uma ressig-
nificação, uma atualização a partir do valor fundamental da democracia – como já visto – e do
valor (também) fundamental do Desenvolvimento Sustentável, como se verá adiante, de modo
a trazer novos fundamentos ao Estado Democrático de Direito e ao Direito Administrativo.

Para tanto, é de grande relevância relembrar da visão sociológica do Direito


Administrativo proposta por León Duguit na França – e refutada por Celso Antônio para a
realidade jurídico-positivista brasileira. Segundo o jurista brasileiro, Duguit havia proposto
uma linha de pensamento – a partir de uma visão sociologística do direito – quase que
inversa àquela defendida por ele, de substituição da puissance publique – do poder político
de autoridade detido pelo soberano – pelo conceito de ‘serviço público’ como fundamento
do Estado de Direito48.

46
SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021. p. 36.
47
SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021. p. 322.
48
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p.
44-47.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |147

Para Duguit, o Direito Administrativo deveria ter por fundamento não mais o po-
der estatal conferido pelos administrados, mas sim o serviços públicos49 prestados pelo
Estado à coletividade, por serem indispensáveis à coexistência social. Note-se que a altera-
ção do paradigma político proposta por Duguit correspondia a uma substituição do ‘poder’
por um ‘dever’ do Estado50, cuja legitimidade passaria a depender da efetiva prestação de
serviços à coletividade.

Não obstante o reconhecimento do mérito da teoria desenvolvida por Duguit, Celso


Antônio a refuta justamente pelo fato de ser lastreada em um fundamento sociológico de
serviço público e na realidade social, faltando-lhe base normativa sob o ponto de vista
jurídico-positivista51. Ao fugir de uma visão empirista do direito, restringiu-se o jurista bra-
sileiro ao normativismo da legitimação do Estado de Direito. Mais uma vez, estamos diante
da tensão entre facticidade e validade do direito denunciado por Habermas52.

Assim, partindo de uma teoria discursiva habermasiana, a tensão existente entre a


teoria da puissance publique – baseada na supremacia do interesse público - e a perspectiva
duguitiana – baseada na subserviência do Estado em face da comunidade – pode (e deve),
em prol do Estado Democrático de Direito, ser conciliada, mediante a identificação conjunta do
interesse público, democracia e serviço público como fundamento do Direito Administrativo.

A partir do que fora exposto até então, o Estado Democrático de Direito, reconhe-
cidamente uma pessoa dotada de autoridade, encontra no Direito Administrativo, os seus
limites de ação, e a sua razão de ser seria justificada a priori por um trinômio poder-demo-
cracia-servidão. Ou seja, o exercício do poder pelo Estado somente seria legítimo, quando
decorrente da participação direta e efetiva do povo – dotado de poder comunicativo – e
para a prestação de serviços públicos à toda comunidade e seus membros.

Acontece que, tendo em vista o poder discricionário do Estado em realizar políticas


públicas, essa nova concepção do Direito Administrativo acima sugerida não demonstra,
ainda, ser suficientemente completa e segura. A vinculação das prerrogativas do Estado à
prestação de serviços públicos se esbarra na falsa premissa de que discricionariedade do

49
Entende-se por serviço público, em Duguit, “toda atividade cujo cumprimento é assegurado, regulado e con�-
trolado pelos governantes, por ser indispensável à realização da interdependência social, e de tal natureza
que não pode ser assumida senão pela intervenção da força governante”. Cf.: DUGUIT, León. Traité de droit
constitutionnel. 2. ed. v. II. Paris: Fontemoing, 1923. p. 55.
50
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 45.
51
SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021. p. 46-47.
52
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
148| Maxwell Lima Dias

administrador público ensejaria a dispensa do cotejo com a eficácia direta e imediata dos
direitos fundamentais53. É o que aponta, nesse sentido, Juarez Freitas:

Em primeiro lugar, observa-se a crença infundada de que as políticas públicas perten-


ceriam ao reino da discricionariedade insindicável, como se as escolhas políticas (e,
por vezes, as omissões), embora manifestamente viciadas, não fossem catalogáveis
como inconstitucionais. Erro típico da mentalidade refratária aos contrapoderes de
controle. Constata-se, em segundo lugar, a proposição, não menos equivocada, de
que a separação de poderes representaria autêntica carta branca para os gestores
públicos, os quais apenas seriam controláveis pelas urnas, no tocante às escolhas
feitas, como se a higidez das prioridades concretamente adotadas fosse matéria re-
servada ao processo eleitoral, cujas distorções de financiamento e de ordem cognitiva
conspiram, frequentes vezes, contra o cerne da Constituição. Erro característico dos
que consideram legítimo e juridicamente seguro apenas aquilo que for produzido por
legisladores e governantes eleitos, numa concepção demasiado acanhada do proces-
so de deliberação democrática. [...] Não por acaso, os que assim pensam, parecem
não se importar, por exemplo, com a tardança vexatória na abolição da escravatura no
Brasil ou na derrubada da segregação racial, nos Estados Unidos54.

Assim, com o objetivo de dar combatividade ao autoritarismo estatal remanescente


do século XIX – pautada na ideia de discricionariedade imotivada55 –, faz-se necessário,
ainda, vincular a atuação do Estado ao compromisso com o Desenvolvimento Sustentável
da sociedade, de modo a exigir uma maior racionalidade às políticas públicas, e rejeitar, por
outro lado, a discricionariedade obscurantista e enviesada pela preferência excessiva ao
presente (“present-biased preference”), que forja realidades socioeconômicas e ambien-
tais inconsistentes, quando não catastróficas56.

53
FREITAS, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à boa administração. Revista Nomos, v. 35, n. 1,
p. 195-217, jan./jun. 2015. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21688/1/2015_art_jfrei-
tas.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
54
FREITAS, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à boa administração. Revista Nomos, v. 35, n. 1,
p. 195-217, jan./jun. 2015. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21688/1/2015_art_jfrei-
tas.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.
55
Lowi defende que a grande expansão do governo, na década de 1960, nos EUA, se deu em razão do sistema
político ter sucumbido aos interesses dos grupos organizados da sociedade, que foram capazes de impor seus
pontos de vista ao governo. O governo, por sua vez, assumiu a responsabilidade dos programas defendidos
por esses grupos e criou grandes repartições para levá-los a cabo. Tais repartições, segundo Lowi, assumiram
um poder discricionário de peso totalmente desproporcional, embora tenham sido capazes de justificar seu
poder alegando que representavam a vontade popular. Tal situação solapa a formalidade e o rumo necessários
ao planejamento efetivo da política pública; Ela exige o desenvolvimento de uma democracia muito mais lega-
lista ou jurídica. Cf.: DENHARDT, Robert B.; CATLAW, Thomas J. Teoria da administração pública. Tradução de
Noveritis do Brasil. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2017. p. 201.
56
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: um novo paradigma. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 23, n. 3, p.
940-963, set./dez. 2018.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |149

A importância da ressignificação do Direito Administrativo é de obstaculizar o exer-


cício do poder pelo Estado, partindo da premissa de que quanto mais obstáculos o detentor
encontrar no caminho no exercício do poder que lhe é outorgado, menor será a probabilidade
de este cometer abusos, de exercê-lo de forma desvirtuada e, consequentemente, maior será
a chance de ser exercido em conformidade com a Constituição57. Além disso, essa nova
racionalização do Direito Administrativo através do princípio da sustentabilidade, leva a uma
atuação estatal diretamente compromissada com a promoção do desenvolvimento nacional.
Cumpre ressaltar que o desenvolvimento, para fins do presente trabalho, não deve
ser interpretado restritivamente como relacionado (exclusivamente) ao crescimento eco-
nômico da sociedade. Pelo contrário, conforme leciona Juarez Freitas, o desenvolvimento,
quando aliado ao princípio da sustentabilidade, deve ser interpretado de forma multidimen-
sional, relacionando-se aos campos social, ambiental, econômico, jurídico, ético e político.
Assim, para o autor, o desenvolvimento sustentável, corresponde a um

Princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade


do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e
imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador,
ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e preca-
vido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar. [...]. Determina promover o desen-
volvimento social, econômico, ambiental, ético e jurídico-político, no intuito de assegurar
as condições favoráveis para o bem-estar das gerações presentes e futuras58.

Dada a proximidade do seu conteúdo material com a teoria de Juarez Freitas, con-
vém relacionar a ideia de desenvolvimento sustentável com aquela elaborada por Amartya
Sen, para quem o desenvolvimento consiste em “um processo de expansão das liberdades
reais que as pessoas desfrutam”59.
Para Sen, o aumento de rendas pessoais, a industrialização e a modernização
tecnológica e social, são, com certeza, importantes meios de expansão das liberdades
desfrutadas pelos membros da sociedade. No entanto, a expansão das liberdades depende
também de outros fatores, tão relevantes quanto aqueles, tais como as disposições sociais
e culturais, bem como a participação política60.

57
BITENCOURT, Caroline Müller. Controle jurisdicional de políticas públicas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012. p. 220.
58
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 50.
59
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 16.
60
Distingue o autor entre duas visões distintas a respeito do processo de desenvolvimento: (a) uma visão considera
o desenvolvimento como um processo ‘feroz’, a ser conquistado com muito ‘sangue, suor e lágrimas’, e que
requer que sejam, negligenciadas várias preocupações vistas como ‘frouxas’, como a existência de redes de
segurança social para proteger os mais pobres, o fornecimento de serviços sociais para a população, a garantia
aos direitos políticos e civis e, até, o ‘luxo’ da democracia. Tais preocupações, a partir dessa atitude agressiva,
150| Maxwell Lima Dias

Nesse sentido, sustenta Amartya Sen, que, em muitos casos, a pobreza econômica
que assola grande parte dos indivíduos de uma nação está relacionada, diretamente, à ausên-
cia de liberdades substantivas, como a liberdade de saciar a fome, o acesso a água potável,
acesso a tratamentos de saúde, saneamento básico, oportunidades sociais e políticas, aces-
so ao Mercado, bem como à carência de serviços e políticas públicas, assistência social61.
Cumpre ressaltar, assim, que a teoria desenvolvida por Amartya Sen, da qual, jun-
tamente com a teoria defendida por Juarez Freitas, utilizamos de referência no presente
trabalho, parte da visão “amigável” e “sustentável” de desenvolvimento, de modo que o
desenvolvimento é resultado de uma comunhão dos fatores econômicos, sociais, culturais
e políticos de uma sociedade (liberdades substanciais), fatores esses que, quando positi-
vos, geram uma expansão da liberdade dos indivíduos62.
A privação da liberdade, por outro lado, é decorrente de fatores negativos, como
pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática,
negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados re-
pressivos, os quais impedem o desenvolvimento nacional. Um povo privado de liberdades
é um povo não desenvolvido. Um povo privado de liberdades é um povo não desenvolvido.
A partir, então, dessa perspectiva dupla de Desenvolvimento e Sustentabilidade –
ou melhor, Desenvolvimento Sustentável –, tanto mais será desenvolvida uma sociedade,
quanto mais os seus indivíduos gozarem de liberdade para agir no mundo, escolhendo a
vida que valorizem.
Trata-se de teoria altamente complexa63, onde a conexão entre desenvolvimento
e Liberdade não é linear: não consiste em uma mera relação de causalidade, onde a exis-
tência de um é consequência do outro. A expansão da liberdade é, a um só tempo, o fim

poderiam vir a ser solucionadas posteriormente, quando o processo de desenvolvimento já houver produzido
frutos suficientes; e (b) a segunda visão, considera o desenvolvimento como um processo “amigável”, cuja
aprazibilidade se baseia em trocas mutuamente benéficas, pela atuação de redes de segurança social, liberdades
políticas, oportunidades sociais, de tal sorte que, a expansão destas liberdades, por si só, acarretariam em um
crescimento econômico. Cf.: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta.
Revisão Técnica de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 16-17.
61
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 17.
62
A correlação entre essas liberdades substanciais é tão intrínseca, que a promoção ou privação de qualquer
uma delas, gera reflexo, positivo ou negativo, nas demais. Exemplificando, a privação de liberdade econômica
pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, igual-
mente, gerar a privação de liberdade econômica.
63
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessi�-
dade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p.
63-91, jan./jun. 2014. p. 72.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |151

primordial e o principal meio do desenvolvimento64, à medida em que pessoas livres, e que


gozam de um maior número de direitos (protegidos pelo Estado), são “meios”65 necessá-
rios para o desenvolvimento66. O grau de desenvolvimento de uma sociedade deve ser ava-
liado, conforme as liberdades substantivas que os membros dessa sociedade desfrutam67.
Assim, alargando de forma radical a noção tradicional da expressão ‘liberdade’, o
autor inverte o sentido do desenvolvimento, que passa a ser visto como uma consequência
da Liberdade, ao mesmo tempo que reconhece as “liberdades” (no plural) como meios
para o desenvolvimento68. É a partir desse raciocínio, que são elencados cinco espécies
de liberdades (liberdades-meio) – componentes de um gênero “Liberdade” (liberdade-fim)
– chamadas de liberdades instrumentais ou liberdades substanciais69: as liberdades po-
líticas (direitos civis, como liberdade de participação no debate público), as facilidades
econômicas (acesso ao mercado, preços acessíveis, políticas econômicas distributivas de
capital), as oportunidades sociais (acesso à saúde, educação etc.) as garantias de trans-

64
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 55.
65
Importante destacar que a palavra “meio” utilizada para se referir a pessoas livres e titulares de direitos, tem por
objetivo apenas demonstrar que tais qualidades pessoais (livres e titulares de direitos) são condições essenciais
para a expansão do desenvolvimento. Nesse sentido, reforçamos a ideia de Kant, para quem a dignidade consiste
em valor intrínseco à existência humana, de modo que “o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional
– existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em
todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres
racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim” (KANT, Immanuel. Fundamentação da
metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.
52). Ora, o ideal seniano, de desenvolvimento como liberdade, preconiza, justamente, que um povo livre é um
povo desenvolvido, e que o desenvolvimento tem por finalidade a realização material da liberdade dos indivíduos.
66
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessi�-
dade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p.
63-91, jan./jun. 2014. p. 82.
67
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 56.
68
GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista
Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. p. 105. Disponível em: https://www.revistas.usp.
br/rdda/article/view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023.
69
Importante salientar as variações semânticas decorrentes da expressão Liberdade, decorrente, inevitavelmente, da
tradução para o português, da obra Desenvolvimento como Liberdade. Em sua obra original, cujo idioma é o inglês,
o autor engloba as chamadas liberdades substantivas (freedoms), que são as capacidades básicas do indivíduo,
como as condições para se evitar carências como a fome, a subnutrição e a morte prematura, e as liberdades rela-
cionadas com as aptidões como ler, expressar-se, fazer cálculos e participar da política. Portanto, o termo liberdade
em sua obra adquire conotação extremamente ampla, não se limitando (embora incluindo) às liberdades formais
(liberties), comumente relacionadas aos direitos dos indivíduos de não sofrerem intervenções restritivas ao exer-
cício dos seus direitos e faculdades legais (HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento
para além do viés econômico – reflexos sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito
Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 158. Disponível
em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023).
152| Maxwell Lima Dias

parência (segurança de que as interações sociais são transparentes, claras e sinceras) e a


segurança protetora (rede de segurança social que impede a miséria)70.
Daí se percebe que o autor, ao ampliar a configuração semântica da expressão li-
berdade, para aí incluir novas espécies de liberdades-meios, foge do tradicionalismo liberal
(ou liberalismo tradicional), restringindo as liberdades instrumentais ao status negativo das
liberdades individuais – como direitos de defesa ou de não intervenção estatal71.
Sob a perspectiva de ampliação do âmbito de proteção das liberdades, entende
Amartya Sen, que, se ao Estado competisse assegurar apenas a liberdade, em seu sentido
mais restrito (como direitos negativos ou de defesa), não seria possível alcançar de forma
efetiva o desenvolvimento, em razão da continuidade das desigualdades sociais72. Isso
porque é inegável, que a liberdade individual, pura e simples não vinculada à busca da efeti-
vidade dos mencionados direitos econômicos e sociais, poderá levar a uma sociedade for-
temente inigualitária, mediante a concessão de direitos apenas do ponto de vista formal73.
Assim, a perspectiva seniana de desenvolvimento como liberdade, somente se
justifica e serve de meio de justificação do Estado administrativo, quando estendemos
radicalmente a noção de liberdade, nela inserindo garantias que tradicionalmente não são
consideradas como liberdades, isto é, como direitos de defesa a intervenções estatais. Pelo
contrário, para Amartya Sen, a liberdade do povo decorre, inclusive, de Políticas Públicas
voltadas à efetividade dos direitos econômicos e sociais74.
Não obstante a clareza expressa por Amartya Sen, de que o maior êxito do desen-
volvimento é proporcional ao grau do custeio público75 – quando o Estado opera “por meio
de um programa de hábil manutenção social dos serviços de saúde, educação e outras

70
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 25-26.
71
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 164.
72
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 158. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
73
RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007. p. 130.
74
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 159. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
75
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 26.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |153

disposições sociais relevantes”76 –, Emerson Gabardo tece críticas acerca da escolha do


autor pela liberdade como meio e fim do desenvolvimento77.
Nesse sentido, explica Gabardo, que a abordagem de desenvolvimento escolhida por
Sen estabelece uma limitação liberal, à medida em que, para o autor paranaense, é reduzido o
objeto do desenvolvimento à ideia de liberdade, “cuja essência conceitual repousa em um inafas-
tável aspecto de ‘negatividade’ – afinal, ser livre é não possuir obstáculos à realização das ações
desejadas”78. Para ele, a concepção desenvolvimentista de Sen corresponde a um fraco liberalis-
mo, em que o desenvolvimento acaba muito mais ligado à ideia de que os homens devem possuir
‘condições mínimas de satisfação’ do que ‘condições máximas de satisfação’, posição essa que
ensejaria uma responsabilidade subsidiária por parte do Estado em promover o desenvolvimento
nacional79. Avançando a partir de outras premissas, aduz que o desenvolvimento é um direito de
caráter instrumental, um meio para o alcance de um objetivo, a felicidade80.
No entanto, o posicionamento esposado por Gabardo acaba limitando a teoria
seniana de desenvolvimento a um mero ideal liberal. A conclusão que se extrai, neste
trabalho, é que a teoria desenvolvida por Amartya Sen é, justamente, contrária àquela que
defende a subsidiariedade do Estado na garantia e promoção ao desenvolvimento.
Isso porque, embora justifique um desenvolvimento atrelado à liberdade (esta como
um fim, um objetivo), afirma que tal resultado apenas será possível mediante uma atuação
estatal (e aqui deve ser considerada uma atuação não interventiva, mas promotora), que
possa expandir as liberdades instrumentais dos indivíduos81. É preciso enfatizar que, para
Amartya Sen, não basta ao Estado garantir as liberdades, mas, expandi-las, mediante polí-
ticas públicas (democráticas e sustentáveis)82.

76
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 68.
77
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 26.
78
GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista
Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. p. 105. Disponível em: https://www.revistas.usp.
br/rdda/article/view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023.
79
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 159. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
80
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 20.
81
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 21.
82
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 191.
154| Maxwell Lima Dias

É possível, assim, a partir do entrelaçamento hermenêutico entre os concei-


tos de Desenvolvimento e Sustentabilidade, identificar que a figura do Desenvolvimento
Sustentável não se limita a um processo de expansão de capacidades, mas exibe, ainda,
uma faceta – e talvez seja essa a sua face principal – de direito fundamental83.
Segundo apurada lição de Adriana da Costa Ricardo Schier, o desenvolvimento nacio-
nal sustentável consiste em um princípio constitucional fundamental, implicitamente reconhe-
cido em face da cláusula de abertura material do art. 5º, §2º, da Constituição da República84.
O Desenvolvimento Sustentável pode ser compreendido, portanto, como um valor
fundamental, cuja efetivação é capaz de promover a realização de todos os objetivos funda-
mentais, que se traduzem em metas indeclináveis, tais como a redução das desigualdades
sociais e regionais e o combate severo aos regressivismos, por mais arraigados que este-
jam nos cérebros e nos corações oligárquicos dominantes.

4 UMA TEORIA DA RACIONALIDADE DEMOCRÁTICA E


SUSTENTÁVEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Como visto no capítulo acima, quão mais livre um povo, quanto maior for o seu
acesso – garantido e promovido por políticas públicas – a sistemas de saúde, à educação,
quanto maior for a sua capacidade política – poder comunicativo – de participar de debates
públicos, tão mais desenvolvida será aquela sociedade85.
Em virtude disso, é importante a noção dessas interações entre desenvolvimento e sus-
tentabilidade pelo Estado – e demais pessoas jurídicas de direito público – ao promover políticas
de desenvolvimento86. Políticas voltadas ao desenvolvimento, na visão de Amartya Sen, depen-
dem, de atuação positiva do Estado (e não mera abstenção). Considerações sobre a eficiência da

83
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 128.
84
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 77.
85
Essas liberdades aumentam diretamente as capacidades dos indivíduos, mas também suplementam-se mutua�-
mente e podem, além disso, reforçar umas às outras. Por exemplo: o maior investimento em políticas públicas
voltadas à educação efetiva dos indivíduos leva a uma maior qualificação da mão-de-obra, que, por consequência
gera um maior acesso ao Mercado e melhores condições financeiras, bem como uma maior consciência política
nas decisões públicas. Outro relevante exemplo, é aquele trazido por Sen, de que há comprovações empíricas de
que a maior qualidade da educação, sobretudo das mulheres, gera uma maior redução das taxas de fecundidade.
“Taxas de fecundidade elevadas podem ser consideradas, com grande justiça, prejudiciais à qualidade de vida,
especialmente das mulheres jovens, pois gerar e criar filhos recorrentemente pode ser muito danoso para o bem-
-estar e a liberdade da jovem mãe” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira
Motta. Revisão Técnica de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 58-62).
86
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 58-62.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |155

política desenvolvimentista suplementam o argumento em favor da equidade quando se defende a


assistência pública na provisão de educação básica, serviços de saúde e outros bens públicos87.
Ainda, segundo o autor indiano, políticas públicas voltadas à expansão dos servi-
ços de educação, saúde e seguridade social contribuem diretamente para a qualidade de
vida, havendo evidências, inclusive, de que, “mesmo com renda relativamente baixa, um
país que garante serviços de saúde e educação a todos pode efetivamente obter resultados
notáveis de duração e qualidade de vida de toda a população”88.
Um Estado administrativo fundamentado, de um lado, pelo poder exercido via so-
berania popular e, por outro, pelo dever de servir aos cidadãos, tem a sua legitimidade
atrelada à promoção da democracia e do desenvolvimento sustentável, através de políticas
públicas. A partir disso, a falsa premissa da livre discricionariedade estatal mantém-se sob
o controle da racionalidade política e jurídica.
Os espaços de atuação do Estado democrático (e sustentável) de Direito pressu-
põem a promoção de políticas públicas voltadas a uma expansão da capacidade dos cida-
dãos, bem como uma gestão compartilhada, caracterizada pela maior racionalidade comu-
nicativa, pela maior amplitude dos espaços de deliberação social, e pela maior sujeição ao
controle do povo. Dessa forma, o cidadão deixa de ser um simples legitimador do processo
de tomada de decisão, e passa a ser o próprio gestor e destinatário das políticas públicas.
A participação dos cidadãos na tomada de decisão, na qualidade de agentes polí-
ticos, são fundamentais para uma maior efetividade das políticas desenvolvimento, à me-
dida que debates entre diferentes perspectivas poderiam levar a reformulações conceituais
e práticas capazes de aperfeiçoar as políticas públicas. As interações entre burocracias
executoras e atores políticos e sociais ampliam o acesso à informação e o conhecimento
sobre os problemas a serem enfrentados, e (b) criam oportunidades para estratégias mais
eficientes e eficazes de “coprodução” de políticas públicas89.
Não há de se perder de vista – lembrando o objeto do presente trabalho – que a
inclusão e participação direta dos cidadãos nos processos decisórios contribui não apenas
para uma maior qualidade das decisões, como também, e sobretudo, para a legitimidade
das políticas públicas90.

87
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 170-192.
88
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 191.
89
ABERS, Rebecca; KECK, Margaret. Practical authority: agency and institutional change in Brazilian water poli-
tics. Nova Iorque: Oxford University Press, 2013.
90
PIRES, Roberto Rocha C. Desenvolvimentismo e inclusão política: tensões ou sinergias na implementação de gran�-
des projetos de infraestrutura? Revista Interseções, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 109-135, jun. 2015. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/view/18050/13434. Acesso em: 13 ago. 2023.
156| Maxwell Lima Dias

Assim, contrariamente ao que sugerira Rousseau – acerca da maior eficácia da


democracia em comunidades reduzidas – políticas apoiadas em amplos consensos são
mais propensas de serem implementadas com maior sucesso e a seguir seu curso desen-
volvimentista, do que políticas impostas por um governo que toma decisões contrárias aos
desejos de importantes setores da sociedade91.
Dessa forma, o exercício do poder se transforma, em nome da proteção aos direi-
tos e aos valores da cidadania, da democracia e do desenvolvimento sustentável, e passa
a reclamar a integração das dimensões política e jurídica no interior do aparelho de Estado,
combinando as esferas da Administração Pública e do governo92.
A Legitimidade do Estado se reveste cada vez mais de um comprometimento à
soberania popular e à sustentabilidade. Essa ressignificação jurídica, social e política dos li-
mites do Estado obriga o Direito Administrativo a rever o sentido da divisão interna do Estado
entre uma esfera profissional burocrática, a Administração Pública, e a “camada política”,
cujas linhas principais tradicionalmente não se inscrevem no âmbito da disciplina jurídica93.

A tônica não é o controle do poder (ainda que isso seja importante, de forma reno-
vada), mas examinar, a partir de categorias jurídicas fundamentais, como se forma e
se exerce o poder político. Também não estão em questão a necessidade de aprimo-
ramento da gestão pública, a profissionalização da burocracia e o aperfeiçoamento
dos mecanismos de impessoalidade, nem a urgência do ajustamento da represen-
tação parlamentar, eliminando-se as distorções eleitorais existentes. Esses são
consensos estabelecidos. Considerando o momento particular da história brasileira,
trata-se do fortalecimento da democracia e da valorização do Estado, com a “re-
descoberta” da gestão, fortemente permeada pela comunicação social. [...] Numa
sociedade em desenvolvimento, a inovação governamental depende não apenas de
inovações, propriamente ditas, mas, em grande medida, da conjugação dessas com
melhorias incrementais, cujos resultados criem condições de legitimação social e,
com isso, permanência e realimentação positiva do processo94.

Negar essa reformulação do Direito Administrativo, é aceitar, ou no mínimo ser


condescendente com a perene parasitagem do Estado dentro da sociedade civil pós-mo-

91
LIJPHART, Arend. Patterns of democracy. Government forms and performance in thirty-six democracies. New
Haven: Yale University Press, 1999. p. 260.
92
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva,
2013. p. 23-25.
93
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva,
2013. p. 23-25.
94
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva,
2013. p. 23-25.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |157

derna, e a permanência da crônica incapacidade do Estado em formular políticas públicas


democráticas e sustentáveis a longo prazo95.

5 CONCLUSÃO
O Estado moderno fora concebido, na teoria liberal burguesa, a partir de um pacto
social firmado entre os indivíduos de uma sociedade, em que dispõem de parte de sua
liberdade plena, natural, para, em troca, terem assegurados pelo Estado – agora detentor
do poder soberano – o seu direito à vida, a sua liberdade civil, seu direito à propriedade
privada e à igualdade perante a lei.
Assim, a legitimidade das leis e do exercício do poder pelo soberano em face dos
seus súditos se justificava pela proteção ao bem comum, à vontade geral. Dessa noção de
bem comum, surgiu a ideia de interesse público e o Direito Administrativo, com objetivo de
regular e impor controles ao exercício do poder estatal.
A partir de então, e até os dias atuais, é possível identificar que o direito administra-
tivo brasileiro tradicional – decorrente de um projeto moderno capitalista – reveste-se (ain-
da) de uma ideologia liberal clássica, fundamentado na supremacia do interesse público e
voltado à garantia de liberdades individuais mínimas.
Acontece que tal aparato jurídico-político mínimo não tem se mostrado suficiente a
embasar um direito administrativo eficaz à proteção de abusos de poder pelo soberano. Na ver-
dade, pelo contrário, ajuda a perpetuar a ideia de subsidiariedade do Estado e da discricionarie-
dade do seu a agir na realização de políticas públicas desvinculada dos direitos fundamentais.
Dessa forma, demonstrou-se a ascensão de um projeto pós-moderno do Estado
Democrático de Direito reconhecido em diversas constituições do mundo, a partir do ideário
da democracia deliberativa como fator legitimador da soberania. Além disso, a partir da teoria
do discurso de Habermas, buscou-se demonstrar a coexistência de mais de um fundamento
para a legitimação do Estado, como o interesse público, a democracia e os serviços públicos.
O ponto de especial importância para o presente estudo do Estado Administrativo
recai sobre a inclusão do Desenvolvimento e da Sustentabilidade – valores fundamentais
intrínsecos entre si – ao lado daqueles outros valores (também fundamentais) já referidos,
como fundamentos de legitimidade do Estado Democrático de Direito. Desse modo, procu-
rou-se criar um paradigma de racionalidade sustentável das políticas públicas, resultando
na seguinte conclusão: São legítimas, tão somente, aquelas políticas públicas exercidas
pelo Estado, a partir de uma participação direta e efetiva dos cidadãos na tomada de deci-

95
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: um novo paradigma. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 23, n. 3, p.
940-963, set./dez. 2018.
158| Maxwell Lima Dias

são e na eleição da agenda da respectiva política, e desde que tenha por objetivo expresso
a promoção do desenvolvimento sustentável da comunidade.
Em síntese, o interesse público, a democracia, os serviços públicos, o desenvolvi-
mento e a sustentabilidade são valores fundamentais que demandam a proteção do Direito
Administrativo reconfigurado, e cuja promoção passa a ser o objetivo e a razão de ser do Estado.

REFERÊNCIAS
ABERS, Rebecca; KECK, Margaret. Practical authority: agency and institutional change in Brazilian
water politics. Nova Iorque: Oxford University Press, 2013.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008.

ARENDT, Hannah. Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. Direito administrativo e interesse público:
estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros,
2015.

BANNWART JUNIOR, Clodomiro José; TESCARO JUNIOR, João Evanir. Jürgen Habermas: teoria crítica
e democracia deliberativa. Revista Confluências, Niterói, v. 12, n. 2, p. 129-156, out. 2012. Disponível
em: https://periodicos.uff.br/confluencias/article/view/34337/19738. Acesso em: 13 ago. 2023.

BITENCOURT, Caroline Müller. Controle jurisdicional de políticas públicas. Porto Alegre: Núria Fabris,
2012.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo:
Saraiva, 2013.

CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Sobre a noção de bem comum no pensamento político ocidental:
entre becos e encruzilhadas da dimensão ancestral do moderno conceito de interesse público. Revista
de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 107-134, jan./abr. 2019. Disponível em: ht-
tps://www.scielo.br/j/rinc/a/P6SykqXCqzPN9DYRQvbDyyq/?format=pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.

DENHARDT, Robert B.; CATLAW, Thomas J. Teoria da administração pública. Tradução de Noveritis do
Brasil. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ide-
ais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (org.). Supremacia
do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

DUGUIT, León. Traité de droit constitutionnel. 2. ed. v. II. Paris: Fontemoing, 1923.

EPSTEIN, Richard A. How progressives rewrote the Constitution. Washington: Cato Institute, 2006.

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
A ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria... |159

FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a


necessidade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais,
Osasco, n. 1, p. 63-91, jan./jun. 2014.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013.

FREITAS, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à boa administração. Revista Nomos,
v. 35, n. 1, p. 195-217, jan./jun. 2015. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riu-
fc/21688/1/2015_art_jfreitas.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: um novo paradigma. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 23,
n. 3, p. 940-963, set./dez. 2018.

GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado


Social. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. Disponível em: https://
www.revistas.usp.br/rdda/article/view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023.

HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. 1. ed.
São Paulo: Editora Unesp, 2016.

HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da
democracia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico
– reflexos sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. Disponível em: https://
www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de
Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

HOBSBAWM, Eri J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de


Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2009.

KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado – os fundamentos históricos da legitimidade do Estado


Constitucional Democrático. Tradução de Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009.

LIJPHART, Arend. Patterns of democracy. Government forms and performance in thirty-six democra-
cies. New Haven: Yale University Press, 1999.

LOWI, Theodore J. The end of liberalism: the second republic of the United States. Nova York: W. W.
Norton, 2009.
160| Maxwell Lima Dias

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2020.

PEREIRA, Américo. Da ontologia da “polis” em Platão. Covilhã: LusoSofia – Biblioteca Online de


Filosofia e Cultura, 2011. p. 03-102. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/pereira_ameri-
co_ontologia_da_polis_em_platao.pdf. Acesso em: 02 fev. 2022.

PIRES, Roberto Rocha C. Desenvolvimentismo e inclusão política: tensões ou sinergias na imple-


mentação de grandes projetos de infraestrutura? Revista Interseções, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p.
109-135, jun. 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/
view/18050/13434. Acesso em: 13 ago. 2023.

RIBEIRO, Douglas Carvalho. Nascimento e queda do Leviatã: da congruência entre Estado moderno,
crise e democracia. Revista do CAAP, Belo Horizonte, n. 2, v. XIX, p. 85-102, 2013.

RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências.


Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social (princípios de direito político). Tradução de Antônio de


P. Machado. 5. ed. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1958.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os


homens. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Folha de São Paulo, 2021.

SANTOS, Luasses Gonçalves. O interesse público sob a crítica da teoria crítica. 1. ed. São Paulo:
Contracorrente, 2021.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamen-
tais na perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.

SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desen-
volvimento. Curitiba: Íthala, 2019.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica
de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SPENGLER, Fabiana M. O pluriverso conflitivo e seus reflexos na formação consensuada do Estado. Revista
de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 22, n. 2, p. 182-209, maio/ago. 2017. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/835. Acesso em: 13 ago. 2023.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolsan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. rev. e
atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

SUNSTEIN, Cass R; VERMEULE, Adrian. Lei e Leviatã: resgatando o Estado administrativo. Tradução
de Nathalia Penha Cardoso de França. São Paulo: Contracorrente, 2021.

ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de
Direito: história, teoria e crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PLURALISMO JURÍDICO E
DEMOCRACIA DELIBERATIVA:
UMA NOVA RACIONALIDADE PARA O
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A
PARTIR DA TEORIA DISCURSIVA
DE HABERMAS1

Maxwell Lima Dias2

Sumário: 1. Introdução. 2. A concepção do Estado de Direito como um projeto liberal da


modernidade e a crítica social. 3. O problema da legitimidade do Estado e a teoria discursiva
de Habermas: a democracia deliberativa como racionalidade do Estado Democrático de
Direito. 4. O pluralismo jurídico como condição de racionalidade ao Estado Democrático de
Direito. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente artigo tem por objetivo investigar, a partir da teoria discursiva de Jürgen
Habermas, a possibilidade da incorporação do pluralismo jurídico como condição da de-
mocracia deliberativa, na tarefa de legitimação do Estado Constitucional Democrático de
Direito. Em sua teoria do discurso, Habermas denuncia a crise de um Estado Moderno em
ruínas, ante a falência dos pressupostos de legitimidade de um poder estatal – detentor do
monopólio da violência – em sociedades pluralistas caracterizadas pelas desigualdades. E
a partir disso, estabelece um novo paradigma de racionalização do Estado Democrático de
Direito, através do exercício do poder comunicativo dos concernidos na formação da opi-
nião pública. Mas seria o poder comunicativo suficiente para garantir uma democracia deli-
berativa plena, formada por sujeitos livres, iguais, conscientes e motivados? Assim, diante

1
Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina ‘Estado Constitucional e Direitos
Fundamentais”, do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil), Professor Dr. Marcos Augusto Maliska.
2
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Especialista em Direito Tributário Empresarial e Processo Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR). Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1528711136619490. E-mail: maxwelldias_8hotmail.com
162| Maxwell Lima Dias

do risco de a democracia deliberativa tomar um caminho revolucionário-utópico, a tentativa


de incorporar o pluralismo jurídico como condição do procedimento democrático objetiva
oferecer uma maior efetividade e reconhecimento ao agir comunicativo. A conjugação de
ambos os conceitos objetiva ampliar a esfera pública, à medida que passa a reconhecer as
normas não estatais criadas por grupos sociais em contexto de desigualdade.

Palavras-chave: Estado constitucional. Legitimidade. Teoria do discurso. Democracia de-


liberativa. Pluralismo jurídico.

1 INTRODUÇÃO
O direito, na Modernidade, passou por um processo intenso de racionalização, que
tinha por objetivo tornar a atividade jurídica mais eficiente e legitimá-lo através do princípio
da liberdade e da igualdade (igualdade formal em um primeiro momento, e igualdade ma-
terial após a crítica socialista), sem os antigos privilégios ostentados pela nobreza antes da
Revolução Francesa. Tanto este acontecimento revolucionário quanto as transformações
tecnológicas decorrentes da Revolução Industrial foram responsáveis pela formação de um
modelo jurídico moderno: o Estado de Direito, cujo paradigma, segundo Max Weber, é repre-
sentado pelo monopólio da violência e pela presença de uma estrutura estatal burocrática.

Até as revoluções sociais que aconteceram no início do séc. XX, e a Primeira


Grande Guerra, quando o debate acerca de direitos mais amplos e de um Direito mais ativo
na proteção destes direitos passou a surgir no pensamento político-filosófico da época,
o Estado não possuía uma função social protetiva como hoje se faz. O monismo era a
marca distintiva do Estado europeu e se propagou para inúmeros outros países. O direito,
nesse contexto, somente poderia ser legítimo caso sua aplicação estivesse subordinada
à estrutura burocrática do Estado e à sua aplicação pelos especialistas. Com a ascensão
do Estado do bem-estar social, após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade civil passou
a rever o significado de cidadania e lutar por ampliá-lo até atingir as minorias excluídas.

A crescente complexidade social e o avanço técnico das ciências sociais tornaram


injustificável a ideia liberal tradicional de que as sociedades modernas poderiam extrair
suas normas morais da consciência única de um sujeito racional universal. Os problemas
sociais decorrentes do modelo moderno, com seus rigores formalistas decorrentes do cen-
tralismo jurídico estatal, levaram, contudo, ainda no século XX, ao surgimento de reações
antagônicas ao monismo, com retomada do tema do pluralismo jurídico na preocupação
de filósofos e sociólogos do direito. A partir disso, o pluralismo jurídico passou a ser tema
central na reconceituação da relação entre direito e sociedade.

Todo esse debate torna-se ainda mais relevante se colocada sob o enfoque do
princípio democrático. Para Habermas, diante do desenvolvimento pluralista das socieda-
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |163

des, o Estado de Direito já não poderia retirar a sua legitimidade a partir dos pressupostos
liberais da modernidade. A racionalidade desse Estado dependeria, então, de um processo
legislativo em que, através de um procedimento democrático, decorra de um consenso em
torno de sua obrigatoriedade, diante de uma esfera pública apta a produzir e garantir o agir
comunicativo. Sendo assim, para Habermas, somente por meio da comunicação é que se
torna possível estabelecer o entendimento racionalmente desenvolvido entre os indivíduos,
coordenando suas ações. Desse modo, entende que a legitimidade normativa está fulcrada
na teoria do agir comunicativo.3

A partir da conjugação das ideias da democracia deliberativa e do pluralismo jurí-


dico, identificando-se este como um pressuposto do Estado Democrático de Direito, ob-
jetiva-se uma racionalidade jurídica pautada no paradigma de que direito é pluralista, e
que a ordem constitucional democrática tem por função estruturar e garantir um sistema
constitucional pluralístico.

Assim, a partir da constatação do esgotamento dos paradigmas marcados pelo


liberalismo individual e pelo formalismo positivista, a serem, então, superados, e basean-
do-se no racionalismo comunicativo habermasiano, o presente trabalho tem por objetivo
dar uma nova interpretação à teoria discursiva do direito, trazendo proposições epistemo-
lógicas fundadas na inclusão de um pluralismo jurídico de teor democrático-deliberativo na
referida teoria.

No desenvolvimento deste estudo foram utilizados diversos instrumentos de pes-


quisa e metodologias, sobretudo o raciocínio lógico-dedutivo, baseando-se na construção
doutrinária, em estudos acerca do tema no plano jurídico e filosófico nacional e interna-
cional, e cujos conhecimentos desenvolvidos serão aplicados para a proposição de uma
nova interpretação da teoria discursiva habermasiana, para partindo de seus princípios,
incorporar o conceito de pluralismo jurídico como condição da democracia deliberativa.

No tocante à sua estrutura, o presente trabalho foi dividido em 3 tópicos de dis-


cussão: no primeiro tópico analisaremos o conceito de Estado, a sua formação, evolução
histórica e sua justificação por meio do projeto moderno liberal burguês. No segundo tópico
examinaremos o problema da legitimação do Estado denunciado por Habermas, diante da
tensão entre facticidade e validade do direito, bem como a sua reconstrução através da
democracia deliberativa. No terceiro tópico, buscaremos identificar novos valores funda-
mentais justificadores da atuação do Estado, para, então, enunciar uma ressignificação do
Direito Administrativo tradicional no Brasil, a partir de uma nova racionalização das políticas

3
ANDRADE, Marcella Coelho. Legitimidade do Direito e participação política: um olhar sob a perspectiva da
democracia. In: JORNADA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS DA UFJF, 6., 2020, Juiz de Fora. Anais [...]. Juiz de Fora:
UFJF, 2020. p. 21/911-43/ 933.
164| Maxwell Lima Dias

públicas mediante a soberania popular e o pluralismo jurídico. Por fim, no quarto tópico
traremos as nossas considerações finais.

2 A CONCEPÇÃO DO ESTADO DE DIREITO COMO UM PROJE-


TO LIBERAL DA MODERNIDADE E A CRÍTICA SOCIAL
Em que pese à indubitável importância das obras de Aristóteles e Platão para o es-
tudo das instituições políticas das cidades gregas, ou da obra “Histórias” de Políbios, para
o estudo da constituição da república romana, para fins de recorte do presente trabalho,
buscou-se estudar a formação e a justificação dos Estados Modernos, a partir do pensa-
mento liberal acompanhada das críticas sociais.

Como de costume do ser humano – de contar histórias de todos os tipos para


atribuir-se um sentido ao mundo e à vida social –, diversos filósofos iluministas, com o
objetivo de explicar o surgimento da sociedade civil, das leis, do Estado e da legitimidade
de sua autoridade, desenvolveram “a mais famosa e influente história política dos tempos
modernos”: a história do contrato social4.

Ressalvadas as particularidades de cada uma das teorias, a ideia do Contrato Social,


no contexto das Guerras Civis, das revoluções liberais e durante ápice do Iluminismo5,
é nos apresentada como uma história sobre a liberdade, sobre homens que, no estado
natural, trocaram as inseguranças da plena liberdade pela liberdade civil e equitativa, sal-
vaguardadas pelo Estado6.

Segundo expõe Thomas Hobbes, em sua maior obra – O Leviatã –, os homens,


reduzidos ao binômio desejo e medo7, firmaram entre si um contrato de sujeição com o
objetivo de fugir do estado de natureza e da guerra de todos contra todos. A teoria hobbe-
siana parte do pressuposto de que é da natureza do próprio homem subjugar uns aos
outros. Mesmo diante de uma “distribuição equitativa, o homem não se contenta com a
parte que lhe cabe”8.

4
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 13.
5
O Iluminismo, enquanto movimento intelectual político-filosófico, pregava o fim do absolutismo e do despotis�-
mo instaurado nos governos do Antigo Regime, e cujas ideias fermentaram as Revoluções Liberal-Burguesas
do final dos séculos XVIII e XIX. Cf.: HOBSBAWM, Eri J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 16. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 13.
6
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 14.
7
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2009. p. 27.
8
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Rosina
D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. p. 103.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |165

A partir da criação do contrato social, restariam estabelecidas as regras para a re-


solução dos conflitos e a criação do poder estatal, consistindo na “transferência mútua de
prerrogativas”, que garantiria a segurança aos homens que estariam obrigados a cumprir os
pactos que tivessem celebrado. Para Hobbes, nessa contratação reside a fonte e a origem da
justiça, determinando que justo é o cumprimento do pacto e injusto seu descumprimento9.

Dada a sua artificialidade, o pacto por si só não seria suficiente para manter-se
constante e duradouro. Seria necessário, além disso, um poder comum capaz de fazer os
homens respeitarem e dirigirem suas ações ao bem comum, e a única forma de instituir tal
poder comum seria mediante a conferência de toda a força e poder a um homem, ou a uma
assembleia que pudesse reduzir todas as vontades humanas, por pluralidade de votos, a
uma só vontade10.

Partindo, também, da ideia de um pacto criado pelos homens para a cessação


da insegurança do estado natural, para a manutenção da ordem, e para evitar maiores
desigualdades, Rousseau preconiza que o Estado decorre da união de forças dos homens,
mediante a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a favor de toda
a comunidade. “Entregando-se cada qual por inteiro, a condição é igual para todos, e, por
conseguinte, sendo esta condição idêntica para todos, nenhum tem interesse em fazê-la
onerosa aos outros”11.

Não obstante as semelhanças entre ambas as teorias, Rousseau, diferentemente


de Hobbes, entende que no estado de natureza primitivo o homem era bom e vivia feliz, e
foi corrompido pelo progresso da civilização, pela divisão do trabalho e pela propriedade
privada, tornando-se escravo da cobiça e egoísta12. Diante, então, do surgimento de dife-
renças irremediáveis entre os ricos e pobres, poderosos e fracos – capazes, inclusive, de
ensejar a escravidão – os homens abrem mão de sua liberdade natural e do direito ilimitado
a tudo que lhe diz respeito, e, através do contrato social, criam o Estado – um corpo moral e

9
SPENGLER, Fabiana M. O pluriverso conflitivo e seus reflexos na formação consensuada do Estado. Revista de
Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 22, n. 2, p. 182-209, maio/ago. 2017. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/835. Acesso em: 13 ago. 2023.
10
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Rosina
D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. p. 103.
11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social (princípios de direito político). Tradução de Antônio de P.
Machado. 5. ed. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1958. p. 25.
12
“Não concluamos com Hobbes, principalmente, que, por não ter nenhuma ideia de bondade, o homem é natu�-
ralmente mau, que é vicioso porque não conhece a virtude e que recusa sempre a seus semelhantes serviços
que julga não lhes dever; [...]”. Cf.: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Folha de São Paulo, 2021. p. 31-59.
166| Maxwell Lima Dias

coletivo, composto de tantos membros quanto a assembleia de votantes –, o qual garantirá


aos homens a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui13.

Assim, Rousseau não se utiliza do ideia do contrato social para descrever a transi-
ção entre o estado de natureza e o estado civil, ao contrário, vale-se do contrato social para
justificar a submissão e a obediência dos homens às leis de uma sociedade moderna14. A
ideia de democracia em Rousseau baseia-se na premissa de que a bem comum é a mani-
festação da soberania e “a minoria, muitas vezes, engana-se quando discorda da maioria,
pois esta representa a vontade geral”15. Aqueles que foram eleitos pelo povo não seriam
representantes, mas tão somente instrumentos para execução da volonté générale.

Segundo Rawls, a vontade geral em Rousseau consiste em uma “forma de razão


deliberativa que cada cidadão compartilha com todos os demais por compartilharem tam-
bém de uma concepção de bem comum”16. As leis são obrigatórias à medida que tenham
sido aprovadas e consentidas pelo povo. A lei é, assim, como o ato da “vontade geral”
e a expressão da soberania corresponde a determinações abstratas, que não podem ser
conduzidas a interesses particulares17. Em razão disso, recomenda que comunidade deve
ser reduzida, pequena, para que possam se reunir com frequência18.

Já para Kant, ao contrário do que preconizara Hobbes19, o soberano pode cometer


injustiça contra os direitos do povo por erro escusável, haja vista ele não querer fazer injus-
tiça alguma: “O súbdito não refratário deve poder admitir que o seu soberano não lhe quer
fazer injustiça alguma”20. Isso significa que embora não queira, ele pode cometer injustiça.

13
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social (princípios de direito político). Tradução de Antônio de P.
Machado. 5. ed. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1958. p. 16-30.
14
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jeferson Luiz Camargo.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 187.
15
VIEIRA, Rejane Esther; MENDES, Betina Souza. Democracia segundo Rousseau: uma análise histórica sobre as
principais ideias de Rousseau na obra “O Contrato Social” e sua contribuição para a democracia na contempo-
raneidade. Revista dos Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 5, n. 5, jan./jun. 2009. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/226/219. Acesso em: 13 ago. 2023.
16
RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 243.
17
PANSIERI, Flávio. Liberdade e o Estado moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 92.
18
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. Porto Alegre: Globo, 1980. p. 62.
19
Sendo o pacto realizado apenas entre cada um dos indivíduos e não entre eles de um lado e o soberano de
outro, Hobbes afirma que o soberano não está suscetível a comer injustiças. Não haveria de se falar em vio-
lação de qualquer preceito contratual pelo soberano. O Estado, portanto, não poderia estar sujeito a qualquer
obrigação contratual, pois, para isso, deveria existir antes uma força para obrigá-lo a obedecer a estas regras
(PAVÃO, Aguinaldo. A crítica de Kant a Hobbes em teoria e prática. Philosophica, Lisboa, v. 31, p. 91-101,
2008. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/22926. Acesso em: 13 ago. 2023).
20
KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática
(1793). Tradução de Artur Morão. Covilhã: Lusofia Press, [s.d.]. Disponível em: http://www.lusosofia.net/
textos/kant_immanuel_correcto_na_teoria.pdf. Acesso em: 25 fev. 2022.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |167

Embora o procedimento de justificação do Estado em Kant seja similar ao da tradi-


ção contratualista, utilizando-se, inclusive, da terminologia contratualista (estado de natu-
reza, contrato, estado civil), o seu pensamento prático torna esses conceitos carregados
de uma semântica diversa daquela que se pode perceber em Hobbes. Para Kant, no estado
de natureza, no qual ele inclui o direito privado, os homens vivem numa situação de estabi-
lidade provisória, devido à falta do estado civil que, através de leis, estabeleça e garanta o
exercício da liberdade e da propriedade privada21.

O homem racional, segundo Kant, reconhece, portanto, a vulnerabilidade dos seus


direitos nesse estado, e postula como um ideal seu o estado civil, estabelecendo o dever
moral de sairmos do estado de natureza e ingressarmos no estado civil, passando, então, o
direito privado a ser reconhecido pelo direito público. Assim, para Kant, o abandono do es-
tado de natureza e “o ingresso no estado civil não dependem de ponderações prudenciais
que poderiam gestar um imperativo hipotético tal como: se queres viver em paz, ingressa
no estado civil. A entrada no estado civil é imperativamente categórica”22.

Ressalvadas as diferenças entre as perspectivas (brevemente) descritas acima, a


teoria liberal-iluminista justifica a criação do Estado, por meio da superação (com ajuda
da razão) de um estado de natureza para a convivência em uma sociedade civil, visando a
proteção ao bem comum. Deve-se acrescentar à definição tradicional liberal, uma determi-
nação ulterior ao Estado Liberal de Direito: a constitucionalização dos direitos naturais, ou
seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, positivados23.
O Estado é concebido, então, para os liberais, como um mal necessário, e enquanto mal –
ainda que necessário (e nisso o liberalismo se distingue do anarquismo) –, o Estado deve
intervir o mínimo possível na esfera de ação dos indivíduos24. A limitação das tarefas do
Estado é condição essencial para a teoria do controle do poder, de modo que o controle dos
abusos do poder é tanto mais fácil quanto mais restrito for o âmbito de intervenção/atuação
do Estado, isto é, “o Estado mínimo é mais controlável do que o Estado máximo”25.

21
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2017. p. 58-69.
22
PAVÃO, Aguinaldo. A crítica de Kant a Hobbes em teoria e prática. Philosophica, Lisboa, v. 31, p. 91-101,
2008. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/22926. Acesso em: 13 ago. 2023.
23
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense,
2017. p. 47.
24
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense,
2017. p. 47.
25
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense,
2017. p. 49.
168| Maxwell Lima Dias

Essa tem sido, portanto, a justificação do Estado moderno liberal, pautado em uma
ordem pública mínima e voltada para a proteção ao direito à vida, às liberdades individuais
e à propriedade privada, e cujo poder é exercido por uma maioria dos indivíduos26.

Acontece que, a ideia de interesse público não comporta apenas liberdades indivi-
duais (direitos negativos de abstenção do Estado), mas também direitos sociais (direitos
prestacionais) e de solidariedade – também conhecidos como direitos de primeira, segunda e
terceira dimensão, respectivamente, e não deve significar a absoluta sujeição das minorias27.

As diferenças entre as diversas concepções políticas do Estado fundamentam-se


na oposição entre esfera pública e esfera privada. Na perspectiva liberal, a criação do
Estado justifica-se na proteção da liberdade e da propriedade privada, enquanto em sua
perspectiva social, a esfera privada é relevantemente reduzida, para, assim, aumentar o
campo de intervenção do Estado, na garantia de liberdades e direitos sociais do povo. Sob
esta última perspectiva, a dominação estatal adquire um caráter jurídico público, funda-
mentado na soberania do interesse público sobre o privado28.

A partir da crítica social, o problema do Estado burguês de Direito se caracteriza por


uma ideologia de manutenção do status quo, de aversão à mudança, à medida que permite
a desigualdade de liberdades. Sua finalidade é sua própria autocontenção, excetuadas ape-
nas as hipóteses de ameaça à segurança individual. Qualquer ação política transformadora
se encontra automaticamente fora desse espectro e, assim, fora do campo de legalidade.
Essa forma de Estado de Direito permite, pois, que um sem número de iniquidades se
perpetuem sob a égide da lei29.

Entre os muitos problemas que emergem da formulação contratualista, um dos


mais relevantes é a exclusão de indivíduos do Contrato Social, os quais simplesmente não
foram chamados a participar do pacto30. Locke, por exemplo, assumira uma exigência

26
ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: histó-
ria, teoria e crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 3-94.
27
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008. p. 263-267.
28
PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo:
Boitempo, 2017. p. 142.
29
MORAES, Ricardo Quartim. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua
relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, v. 51, n. 204, p. 269-285, out./
dez. 2014. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/509938/001032358.pdf?se-
quence=1&isAllowed=y. Acesso em: 13 ago. 2023.
30
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p.
154-157.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |169

de racionalidade que ensejou a exclusão de crianças, mulheres e trabalhadores31. A atri-


buição de racionalidade deficiente para os dois primeiros grupos estaria baseada na sua
imaturidade e na sua debilidade intelectual inata32. No caso dos trabalhadores, o fato de
não conseguirem se tornar patrões, demonstraria o uso insatisfatório da razão33. Essas
exclusões – surpreendentes até para os séculos XVII e XVIII – foram de alguma forma cor-
rigidas pelas doutrinas liberais (e sobretudo pela Teoria Crítica), incorporando formalmente
mulheres e não proprietários à cidadania política34, mas essa inclusão não anula o fato de
que o cidadão abstrato, pressuposto pelas instituições, sempre foi o homem burguês35.

Assim, as críticas ao liberalismo se centravam na percepção de que, ao criar uma bar-


reira intransponível entre a esfera pública e a esfera privada, ele acabava por garantir à burgue-
sia um domínio quase total dos bens de produção e das riquezas em geral, ao mesmo tempo
em que deixava o proletariado com o mínimo necessário para uma magra subsistência36.

A dominação burguesa exprime-se, ainda, na dependência do governo em relação


aos bancos e grupos capitalistas, na submissão de cada trabalhador ema relação ao seu
empregador, e, na própria composição do aparato estatal – e sobretudo do Direito – como
uma instrumento de controle por parte da classe dominante37.

Com Marx, o pensamento moderno sofreu uma profunda inversão. Para o filósofo
alemão, o direito fundamental da liberdade proclamado nas Revoluções Burguesas basear-
-se-ia não na união dos Homens, mas cada vez mais na separação deles. A distinção entre
o direito público e o direito privado e a redução deste último ao livre arbítrio das partes,

31
Além, é claro, dos negros. Os não brancos estão ausentes da discussão de Locke. É possível pensar, como o
fez Charles Mills, que essa exclusão, associada ao fato de que o filósofo inglês se opunha à escravidão mas
investia em empresas de tráfico negreiro, indica que “Locke via os negros como não inteiramente humanos e
portanto sujeitos a um conjunto diferente de regras normativas” (MILLS, Charles W. The racial contract. Ithaca,
NY: Cornell University Press, 1997. p. 68).
32
MIGUEL, Luis Felipe. Carole Pateman e a fundação da teoria política feminista. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BALLESTRIN, Luciana. Teoria e política feminista: contribuições ao debate sobre gênero no Brasil. Porto
Alegre: Zouk, 2020. p. 13.
33
MACPHERSON, Crawford Brough. La teoría política del individualismo posesivo: de Hobbes a Locke.
Barcelona: Fontanella, 1974. p. 191-226.
34
Ainda que a ideia de família como uma esfera particular, alheia à cultura pública e imune à lei e ao contrato
social, ainda permita a submissão da mulher ao homem, sem qualquer intervenção do Estado (NUSSBAUM,
Martha C. Fronteiras da justiça. Deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. Tradução de Susana de
Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 18-19.
35
MIGUEL, Luis Felipe. Carole Pateman e a fundação da teoria política feminista. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BALLESTRIN, Luciana. Teoria e política feminista: contribuições ao debate sobre gênero no Brasil. Porto
Alegre: Zouk, 2020. p. 13.
36
LASKI, Harold J. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973. p. 172.
37
PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo:
Boitempo, 2017. p. 142.
170| Maxwell Lima Dias

confere por exclusão ao direito público, e, portanto, a lei, o caráter de representante dos
interesses gerais, alheio aos interesses privados38.

O abandono do liberalismo dogmático se deve tanto a uma transformação da estru-


tura econômica, notadamente por meio do crescimento da dimensão das empresas – que
remonta ao processo de concentração do capital e ao progresso técnico – como a uma
mudança na estrutura social, pois as massas passavam a reivindicar com ardor direitos
trabalhistas, previdenciários e sociais em geral39.

O Estado social surge, então, como consequência dos desafios econômicos postos a
cargo da sociedade e do clamor das massas, que exigia novas atuações por parte do Estado
para concretizar o princípio da igualdade, em substituição à igualdade formal (típica do libera-
lismo), com o objetivo de mitigar as desigualdades40. É o Estado do bem-estar social, aquele
modelo de Estado historicamente determinado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, e que
veio superar o abstracionismo, a neutralidade e o formalismo do Estado Liberal. O termo “so-
cial”, dessa maneira, refere-se “à correção do individualismo clássico liberal pela afirmação
dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social”41.

Cumpre salientar que não há uma ruptura com o Estado Liberal, mas uma amplia-
ção do conteúdo material dos direitos fundamentais por ele protegidos. A transformação
do Estado Liberal em Estado Social deve ser entendida como continuidade e não ruptura
da tradição liberal. Assim que o Estado avança progressivamente para se tornar ele próprio
o portador e garantidor da ordem social, ele precisa assegurar uma instrução positiva de
como se deve realizar a “justiça”, através de sua intervenção na esfera particular, para
além das determinações negativas relativas aos direitos liberais fundamentais. As garantias
formais devem ser substituídas por garantias materiais que indiquem regras programáticas
de justiça distributiva, dos direitos, recaindo cada vez mais ao Estado a distribuição do
crescimento do produto social42. No Estado liberal, a liberdade assegurada por meio da
delimitação refere-se a um Estado que estabelece limites para si mesmo, e que deixa a
situação social a cargo do indivíduo. No Estado social, a participação, como um direito e

38
MALISKA, Marcos Augusto. Os desafios do Estado moderno. Federalismo e Integração regional. 2003. 149f.
Tese (Doutorado) – Programa de Doutorado em Direito, Universidade Federal do Paraná (estágio de doutora-
mento na Ludwig Maximilian Universität), Curitiba, Munique, 2003.
39
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 186.
40
SILVA, Rodrigo Lima e. Evolução histórica e desafios dos modelos de Estado de Direito. Revista de Teorias e
Filosofias do Estado, v. 1, n. 2, p. 103-124, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/
revistateoriasfilosofias/article/view/679/0. Acesso em: 09 abr. 2023.
41
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 119.
42
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo:
Editora Unesp, 2014. p. 467-469.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |171

uma pretensão, refere-se a um Estado garantidor, que atribui, reparte e distribui, e que não
deixa o aspecto social a cargo do cidadão, mas vem em seu auxílio com concessões43.

Os direitos liberais fundamentais, inicialmente formulados como direitos de limi-


tação do poder do Estado, precisam então ser repensados como direitos de participação,
pois se trata de um Estado de direito democrático e social, cuja constituição destina-se a
estender a ideia material do Estado de Direito à democracia, sobretudo o princípio da igual-
dade e seu vínculo com o pensamento da participação política, e atribuir um conteúdo real
às ideias do Estado de bem-estar social44.

Na visão de Weber, o Estado moderno ocidental, ou Estado racional, pode ser defi-
nido pelo exercício legitimado da violência física em um determinado território, isto é, pela
expropriação dos meios privados da justiça – autotutela45. Nasce dessa ideia uma das
características essenciais do Estado moderno: a burocratização. Weber salienta que um
Estado eficiente está baseado em uma rígida burocracia, decorrente do elevado grau de ra-
cionalidade que permeia esse órgão central. É essa a versão de Weber, quando este busca
explicar o processo de transição das sociedades tradicionais para as sociedades modernas
e o consequente desenvolvimento dos imperativos que regeriam essa passagem46.

Segundo a teoria de Weber, a formação do Estado Moderno, pressupõe:


i) uma administração e uma ordem jurídica, através da veiculação de normas;
ii) uma administração militar, na qual os seus serviços realizam-se em concordân-
cia com rigorosos deveres e direitos;
iii) monopólio do poder e da autoridade sobre todas as pessoas, tanto sobre as
que nasceram na comunidade quanto aquelas que estão nos internos do território;
iv) legitimação da aplicação do Poder nos limites do território por concordância
com a ordem jurídica47.
A esse caráter específico do Estado, acrescentam-se outros traços: de um lado,
comporta uma racionalização do Direito com as consequências que são a especialização
dos poderes legislativo e judiciário, bem como a instituição de uma polícia encarregada
de proteger a segurança dos indivíduos e de assegurar a ordem pública; de outro lado,

43
ABENDROTH, Wolfgang; FORSTHOFF, Ernst; DOEHRING, Karl. El Estado social. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1986. p. 17-19
44
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo:
Editora Unesp, 2014. p. 470-471.
45
ARENDT, Hannah. Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 81-94.
46
RIBEIRO, Douglas Carvalho. Nascimento e queda do leviatã: da congruência entre Estado moderno, crise e
democracia. Revista do CAAP, Belo Horizonte, n. 2, v. XIX, p. 85-102, 2013.
47
KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 261; p. 264-275.
172| Maxwell Lima Dias

apoia-se em uma administração racional baseada em regulamentos explícitos que lhe per-
mitem intervir nos domínios os mais diversos, desde a educação até a saúde, a economia
e mesmo a cultura48.

3 O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DO ESTADO E A TEORIA


DISCURSIVA DE HABERMAS: A DEMOCRACIA DELIBERA-
TIVA COMO RACIONALIDADE DO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
Até o momento, discutiu-se o paradigma jurídico de racionalização do Estado
Moderno, no entanto, essa compreensão se modifica diante do problema de como se pode
construir o Estado democrático de direito em sociedades complexas. Um aspecto central
no debate sobre o Estado de direito refere-se à questão do pluralismo jurídico. Em que sen-
tido é possível se falar em legitimidade do direito em um contexto de pluralidade jurídica?49

Habermas, enfrentando o problema da legitimação do Estado moderno, lembra que


nas civilizações iniciais, as famílias dominantes se justificavam com o auxílio dos mitos
de origem. Nas civilizações antigas, com o desenvolvimento dos grandes impérios, a ne-
cessidade de justificação aumentava: não era mais a pessoa do governante que precisava
ser justificada, mas toda a ordem política. Assim, nessas civilizações a dominação se
justificava à partir, além dos mitos, nos cosmos, nas religiões e nas filosofias que remetem
aos grandes pensadores, como Confúcio, Buda, Sócrates. Nas sociedades modernas, a
reconstrução do direito natural clássico e as novas teorias jusnaturalistas legitimam o sur-
gimento do Estado moderno. Esse desenvolvimento, passando por Rousseau e Kant, leva,
em questões práticas, não mais aos princípios substantivos como natureza e Deus, mas os
princípios da razão. Na teoria contratualista de Locke, e até em Rawls, a ficção do estado de
natureza ou de uma posição original também tem o objetivo de legitimar o Estado e a socie-
dade civil através de um acordo de vontades que expressa a vontade geral50. Para Hobbes,
a legitimação do Estado contaria, de um lado, com a estrutura de regras contratuais e das

48
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830. Acesso
em: 13 ago. 2023.
49
MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno: notas para pensar a racionalidade jurídica.
2. ed. Curitiba: Juruá, 2022. p. 53.
50
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo:
Editora Unesp, 2016. p. 390-393.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |173

leis, e do outro, com o poder de comando de um soberano, “cuja vontade pode dominar
quaisquer outras vontades existentes sobre a Terra”51.

Para Habermas, entretanto, a ideia de um acordo levado a cabo por todos os ho-
mens considerados livres e iguais, em prol de uma vontade geral, como já visto, correspon-
de uma perspectiva individualista e racional de legitimação do Estado Moderno. A vontade
geral, no entanto, não deve explicar somente as razões válidas para justificação do Estado,
mas também identificar a origem da soberania52.

A passagem ao modelo do Estado social, como visto, se fundamentara na ideia


de que direitos subjetivos poderiam ser lesados não somente por intervenções legais,
mas também por omissões do Estado no exercício de seu poder53. Acontece que, com
o aumento e a mudança qualitativa das funções estatais, aumenta-se também o ônus de
legitimação do Estado de direito54. Se poder legítimo for equiparado a dominação política,
convém ter em mente que nenhum sistema político é capaz de assegurar por longo prazo a
lealdade das massas, isto é, a disposição dos indivíduos à obediência. No modelo racional
de Estado weberiano, em que dominação legal legitima-se apenas em razão de procedi-
mentos técnicos, as decisões realizadas legalmente são aceitas sem a consideração dos
motivos55. Esse poder concentrado em um Estado detentor do monopólio da violência
demanda aos teóricos do racionalismo jurídico demonstrar efetivamente a justificação da
submissão dos cidadãos ao direito.

Assim, segundo Habermas, partindo da teoria do discurso, o problema da justifica-


ção do Estado de direito deve, então, ser resolvido a partir do procedimento democrático.
Habermas enxerga a democracia como condição para o exercício da justiça e dos direitos
humanos, através de discussões públicas, racionais, sobre questões de interesse comum

51
Os vestígios desse antagonismo não foram (inteiramente) apagados nem mesmo por Kant ou Rousseau,
embora neles a racionalidade da estrutura normativa, reforçada pela ideia de autonomia e liberdade, já ensaie
(ainda que de forma modesta e comedida) um esboço de democracia e soberania popular. No entanto, as
ideias reformistas de Kant ainda demonstram uma continuidade da ideia de rigidez e impenetrabilidade do
núcleo político-decisório da comunidade. In: HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para
uma teoria discursiva do direito e da democracia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 371.
52
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion
Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2016.p. 391-393.
53
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 541.
54
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 543.
55
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo:
Editora Unesp, 2016. p. 382.
174| Maxwell Lima Dias

na formação da opinião pública, enquanto poder comunicativo e enquanto recurso de inte-


gração social de natureza simbólica56.

Habermas pretende, então, substituir a racionalidade moderna do Estado de direito,


por uma a racionalidade comunicativa, afirmando que a legitimidade do direito positivo não
decorreria mais de um direito moral a priori, mas de um processo de formação de opinião
e da vontade, em princípio, racional57.

A partir de uma análise minuciosa acerca do processo democrático como fonte de


legitimidade do Estado de direito, diante do pluralismo das visões de mundo e das socie-
dades modernas, Habermas desenvolve sua teoria do discurso, segundo a qual somente
as regulações normativas obtidas a partir do debate de todos os potenciais concernidos,
enquanto participantes de discursos racionais, podem pretender legitimidade58.

Para Habermas, as diferenças entre democracia e outras formas de dominação,


quando apontadas mediante princípios a priori – seja sob o ponto de vista normativo ou
“empírico”59 –, e não por um princípio de racionalidade comunicativa, correspondem a
uma visão equivocada da ordem política60.

Isso porque, de acordo com o filósofo (sociólogo e também jurista) alemão, no


modelo racional e empírico de democracia, o poder social (soberano) agiria “de forma
impositiva de interesses superiores que podem ser perseguidos de maneira mais ou menos
racional”. Por outro lado, uma teoria da democracia guiada pelo propósito normativo, se
limita a “emprestar” das ciências sociais o olhar objetivo, carecendo de elementos empí-
ricos substanciais61.

56
ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. A esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas: problemas, limi-
tes e perspectivas. 2018. 257f. Tese (Doutorado em Ética e Filosofia Política) – Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco, João Pessoa, 2018. p.
71. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/13173/1/Arquivototal.pdf. Acesso
em: 13 ago. 2023.
57
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 203-205.
58
ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. A esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas: problemas, limi-
tes e perspectivas. 2018. 257f. Tese (Doutorado em Ética e Filosofia Política) – Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco, João Pessoa, 2018. p.
218. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/13173/1/Arquivototal.pdf. Acesso
em: 13 ago. 2023.
59
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 371.
60
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo:
Editora Unesp, 2016. p.392-393.
61
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 371-372.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |175

O objetivo da teoria discursiva da legitimação reconstrutiva é identificar dispositivos


que possam fundamentar a proposição de que as instituições de base da sociedade e as
decisões políticas fundamentais decorrem, não somente da vontade geral, mas sobretudo,
do consentimento não coagido de todos os concernidos, se estes pudessem participar da
deliberação na condição de homens livres e iguais62.

A crítica que faz o filósofo ao movimento liberal diz respeito à certeza irrefutável di-
fundida de que as alternativas abertas pelo próprio desenvolvimento capitalista poderia ainda
hoje ser legitimada (de maneira tão convincente), como propôs Hobbes em sua época63.

Seguindo o raciocínio weberiano, Habermas identifica que a racionalização do


Estado consiste em um projeto da modernidade capitalista, iniciado na Europa pós-re-
voluções burguesas, resultando em um alto grau de homogeneidade cultural. Os Estados
modernos surgem, assim, em meio a um mercado mundial que os europeus dominam64.
Habermas, sustentando-se, então, em argumentos apoiados na dialética hegeliana, revisa,
amplia e transpõe a ética formalista de Kant, baseada no sistema de deveres: o imperativo
categórico como fundamento a priori dos enunciados normativos, caminhando para uma
razão prática discursiva65. Assim, para Habermas, a legitimidade do Estado direito não
decorreria mais de um juízo moral transcendental, mas de um processo de formação de
opinião e da vontade, através do poder comunicativo dos indivíduos.

Ora, se de um lado, a vontade geral consiste em uma justificação para a submissão


ao Estado e às leis, tal autoridade apenas é válida enquanto a soberania decorrer direta-
mente do agir comunicativo do povo, e enquanto as leis refletirem as deliberações institu-
cionalizadas, bem como as opiniões publicamente geradas na esfera política informal66.
Dessa forma, Habermas, acredita que para a superação do problema da incompletude,
deficiência e desvalorização da legitimidade do Estado em sociedades complexas e plurais,
é preciso designar a democracia, enquanto procedimentos e processos deliberativos, de
participação popular na esfera pública, como pressuposto da soberania (popular). Mas que
democracia hábil a respeitar e garantir o pluralismo seria essa?

62
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo:
Editora Unesp, 2016. p. 393.
63
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo:
Editora Unesp, 2016. p. 393.
64
BANNWART JUNIOR, Clodomiro José; TESCARO JUNIOR, João Evanir. Jürgen Habermas: teoria crítica e de�-
mocracia deliberativa. Revista Confluências, Niterói, v. 12, n. 2, p. 129-156, out. 2012. Disponível em: https://
periodicos.uff.br/confluencias/article/view/34337/19738. Acesso em: 13 ago. 2023.
65
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 263-264.
66
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 203-224.
176| Maxwell Lima Dias

Autores liberais, como Tocqueville67, Bobbio68 e Rawls69, embora reconheçam


o pluralismo existente nas sociedades modernas, entendem que a proteção das minorias
pode ser alcançada a partir da remoção das barreiras à participação delas no processo
político. As teses liberais sobre o pluralismo limitavam-se a estabelecer que qualquer grupo
cujos membros tivessem direito ao voto poderia proteger seus próprios interesses, partici-
pando das trocas do cenário político.

A solução real não está na neutralização do pluralismo, ou na sua mera tolerân-


cia, mas no seu reconhecimento. Contentar-se em tolerar o pluralismo é “esforçar-se para
aceitar o diferente”. É preciso reconhecer o pluralismo, respeitando o ser humano por suas
convicções e conferindo-lhe direitos70.

Uma nova visão do pluralismo, sobretudo com as contribuições da Teoria Crítica, e


da ideia de justiça como reconhecimento, demonstra a importância da ampliação da arena
de debates públicos, para a consolidação da opinião pública, e da intervenção do Estado
em fazer acontecer a participação das minorias na formação da opinião pública71.

Em nome da Teoria Crítica, Habermas representante da segunda geração da Escola


de Frankfurt, rejeita a política da modernidade ocidental, por sua superficialidade e, em
última instância, por seu caráter colaboracionista com as crescentes desigualdades nas
sociedades72. A sua revisão da política moderna iniciou-se com a obra A Transformação
Estrutural da Esfera Pública para a Privada, em que investiga a emergência da sociedade
civil burguesa, comparada com a correspondente emergência de uma esfera pública, na

67
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução de Neil Ribeiro da Silva. 4. ed. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1987.
68
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio
Nogueira, 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 96-101.
69
RAWLS, John. A theory of justice. Oxford: Oxford University Press, 1999; RAWLS, John. The idea of an over-
lapping consensus. Oxford Journal of Legal Studies, v. 7, n. 1, p. 1-25, primavera 1987. p. 1-3. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/764257. Acesso em: 08 abr. 2023.
70
ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução
de Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 181.
71
DAHL, Robert A. Um prefácio à teoria democrática. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
72
É consenso entre os estudiosos da ciência política, que a Teoria Crítica desenvolvida por Horkheimer e Adorno
não possuem contornos políticos. Os teóricos críticos dessa primeira fase do movimento chamado Escola
de Frankfurt, se recusaram explicitamente em engajarem-se em partidos políticos, a expressar opiniões
sobre acontecimentos atuais, a propor agendas para reformas ou mesmo falar de modo específico sobre
instituições políticas. A sua crítica estava focada em um domínio da cultura e da estética separado da política.
A Teoria Crítica em Marcuse possui conteúdo político, no entanto, sua crítica foi demasiadamente pessimista
e insuficientemente engajada a ponto de sugerir reformas políticas estratégias específicas. O que se buscava
era uma transformação histórica profunda, similar à transformação da Idade Média para a era moderna. Cf.:
CHAMBERS, Simone. A política da teoria crítica. In: RUSH, Fred (org.). Teoria crítica. Tradução de Beatriz
Katinsky e Regina Andrés Rebollo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008. p. 263-294.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |177

qual cidadãos particulares cooperam para construir a opinião pública. Para Habermas, o
debate público passa a ser um teste de racionalidade, justificando publicamente as razões
pelas quais o Estado age.

Supõe, de forma otimista, que a dominação e a injustiça não podem subsistir ao


escrutínio de um público esclarecido e com mentalidade civil73. Na esfera pública, através
da ação comunicativa, o que importa á a força do melhor argumento, o que implica que
a democracia só será atingida quando se formarem consensos pós-convencionais, cuja
participação de todos os potenciais concernidos é garantida. Do ponto de vista das discus-
sões públicas, o que importa, sobretudo, é a construção de uma noção de justo/direito, do
que da ideia de bem.

Habermas, influenciado pelo pensamento de Mead, busca reconstruir a democra-


cia através de processos discursivos coletivos, que envolva todos concernidos na tomada
de decisões, de modo que ideia de uma razão de caráter universal não decorra de instân-
cias transcendentais, mas do próprio engajamento prático dos indivíduos na esfera pública,
através da troca de argumentos. Essa troca de argumentos é o agir comunicativo adequado
à construção de soluções racionais para problemas públicos74.

Assim, diante do pluralismo presente nas sociedades modernas, Habermas propõe


uma ética do discurso, capaz de lidar com as tensões daí decorrentes através de procedi-
mentos discursivos, sendo a troca de argumentos um procedimento discursivo eficaz na
resolução de questões práticas morais. Ou seja, entende que os participantes em argu-
mentação devem agir com imparcialidade, abster-se de suas preferências iniciais, incluir e
pensar em todos os possíveis afetados, garantir a igualdade material, a liberdade e a facili-
dade de interação, deve admitir a inclusão de temas ao debate e deve possibilitar a revisão
dos resultados da argumentação. Portanto, o agir comunicativo supõe, necessariamente, a
força não coercitiva do melhor argumento75.

73
CHAMBERS, Simone. A política da teoria crítica. In: RUSH, Fred (org.). Teoria crítica. Tradução de Beatriz
Katinsky e Regina Andrés Rebollo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008. p. 263-294. p. 277.
74
ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. A esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas: problemas, limi-
tes e perspectivas. 2018. 257f. Tese (Doutorado em Ética e Filosofia Política) ¬– Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco, João Pessoa, 2018. p.
78. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/13173/1/Arquivototal.pdf. Acesso
em: 13 ago. 2023.
75
ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. A esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas: problemas, limi-
tes e perspectivas. 2018. 257f. Tese (Doutorado em Ética e Filosofia Política) ¬– Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco, João Pessoa, 2018. p.
79. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/13173/1/Arquivototal.pdf. Acesso
em: 13 ago. 2023.
178| Maxwell Lima Dias

É a partir desses princípios que Habermas enxerga a democracia como condição


para o exercício da justiça e dos direitos humanos, através de discussões públicas, racio-
nais, sobre questões de interesse comum na formação da opinião pública, enquanto poder
comunicativo e enquanto recurso de integração social de natureza simbólica. Assim, a
Democracia é a própria razão do Estado Social e Democrático de Direito, e não princípios
jurídicos a priori76.

Tem-se, então, a partir dessa visão reconstrutiva da democracia, a legitimação do


Estado de Direito: ao mesmo tempo em que a teoria do discurso retira a coerção das deci-
sões, a democracia deliberativa assegura que a vontade do povo prevaleça. A conjugação
da vontade geral, das leis e da soberania popular faz surgir o Estado Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito surge como transformador da realidade, de modo


que o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna
ao homem, e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no
processo de construção e reconstrução, fundado no princípio da solidariedade social, e
que se institucionaliza um sistema de direitos fundamentais, que assegura autonomia dos
indivíduos frente aos poderes públicos e justiça social para corrigir desigualdades77.

Da forma como é entendido hoje, o Estado Democrático de Direito deriva de um


arcabouço teórico que se desenvolve a partir do neoconstitucionalismo ou constituciona-
lismo contemporâneo. O Estado Democrático de Direito, pautado no Constitucionalismo
Contemporâneo, não se restringe ao seu antigo papel de garantir a segurança dos cidadãos
e lidar com seus conflitos particulares (Estado Liberal) ou promover reformas pontuais
para mitigar as contradições do modo de produção capitalista (Estado Social). Este novo
modelo do Estado de Direito – apresenta-se como agente transformador, fundado em uma
participação ativa dos cidadãos – dotados de poder comunicativo – na esfera pública.
Assim, o seu conteúdo material ultrapassa o dever de simplesmente garantir uma vida
digna ao homem, e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública
no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade.

No Estado Democrático de Direito – considerado por Lênio Streck, como um “plus


normativo em relação às formulações anteriores”78 – pautado em valores fundamentais

76
ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. A esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas: problemas, limi-
tes e perspectivas. 2018. 257f. Tese (Doutorado em Ética e Filosofia Política) – Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco, João Pessoa, 2018. p.
79. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/13173/1/Arquivototal.pdf. Acesso
em: 13 ago. 2023.
77
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolsan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. rev. e atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 98-99.
78
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolsan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. rev. e atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 100.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |179

de terceira dimensão, como, o direito ao desenvolvimento nacional e os deveres de soli-


dariedade e fraternidade, os indivíduos deixam de ser considerados pelo Estado sujeitos-
-pacientes, e passam a ser considerados sujeitos-agentes, de tal sorte que, gozando de
oportunidades sociais adequadas, passam a ter condições de efetivamente moldarem o
seu próprio destino e ajudarem uns aos outros79.

4 O PLURALISMO JURÍDICO COMO CONDIÇÃO DE RACIO-


NALIDADE AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A partir do que fora exposto até então, o Estado Democrático de Direito, reconhe-
cidamente uma pessoa dotada de autoridade, encontra no direito, os seus limites de ação,
e a sua razão de ser se justificaria pela ação comunicativa dos concernidos. Ou seja, o
exercício do poder pelo Estado somente seria legítimo, quando decorrente da participação
direta e efetiva dos atores políticos.

A racionalidade discursiva parece, no entanto, encontrar-se em crise. Nos últimos


anos tem-se visto que campanhas eleitorais transformaram-se em empreendimentos mi-
lionários, nos quais partidos políticos buscam “comercializar” candidatos como se fossem
produtos. À medida que as campanhas eleitorais são passagens obrigatórias para a arena
política, se habilitam a ingressar de forma verdadeiramente competitiva apenas aqueles
que controlam ou têm acesso a grandes somas de capital, de tal modo que apenas a elite
socioeconômica pré-seleciona os candidatos. Os donos de grandes empresas, que fazem
girar vultosas quantias, assim como os bancos que administram recursos abundantes, in-
fluenciam na escolha dos candidatos e a quantidade de votos que recebem ao final da cam-
panha. No Estado moderno, qualquer que fosse a ideologia acerca do sistema democrático,
as decisões do Estado pressupunha a influência da opinião pública. Nos tempos atuais,
entretanto, a opinião pública encontra-se enviesada em razão do controle de informações
exercido pelas grandes mídias sobre as massas, sem mencionar as fake news. O esclareci-
mento por parte dos sujeitos na esfera pública já não é mais o mesmo. A colonização – nos
termos da linguagem habermasiana – da democracia moderna pelo dinheiro põe em xeque
o próprio agir comunicativo80.

O resultado dessa redução do esclarecimento dos cidadãos participantes do debate


público, em razão de um controle da publicidade das informações por um determinado gru-

79
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de
Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 25-26.
80
SINGER, André; ARAUJO, Cícero; BELINELLI, Leonardo. Estado e democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. p.
204-206.
180| Maxwell Lima Dias

po dominante, acaba, por um lado, colocando em dúvidas a própria racionalidade comunica-


tiva do Estado de direito, e, por outro lado, marginalizando os indivíduos mal influenciados.

Em razão dessa potencial obstaculização ou controle do exercício do poder comu-


nicativo dos atores sociais, é preciso repensarmos os pressupostos da teoria discursiva ha-
bermasiana, para fortalecer a democracia deliberativa em uma sociedade plural. E o reconhe-
cimento do pluralismo jurídico parece ser o caminho ideal para superação desses desafios.

A ideia da incorporação do pluralismo jurídico às bases teóricas da racionalidade


comunicativa de Habermas tem por objetivo a ampliação da esfera pública da sociedade,
oportunizando a produção e o desenvolvimento de um novo direito legítimo não oficial e
justificado pelos interesses de uma parcela de indivíduos marginalizados dessa sociedade.
A existência dessa grande massa de excluídos – causa e consequência diretas do precário
desenvolvimento nacional –, propicia o surgimento de comunidades autônomas que bus-
cam implementar regras de convivência próprias, paralelas àquelas disciplinadas pelo direi-
to oficial. É a ausência do Estado nesses grupos de excluídos, que impossibilita a aplicação
do direito oficial, criando uma lacuna geradora de pluralismo jurídico81.

O objetivo desse trabalho é, portanto, pensar uma nova perspectiva para o Estado
Democrático de Direito – a partir da abertura da teoria discursiva do direito, para que seja
reconhecida a legitimidade de um direito paralelo criado diretamente a partir do exercício do
poder comunicativo – fundamentado num viés democrático e pluralista, tomando por base
o seguinte conceito de pluralismo jurídico: “a multiplicidade de práticas jurídicas existentes
num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou
não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais”82.

O surgimento, nas sociedades capitalistas, das múltiplas modalidades de ações


coletivas de massa, bem como as interpretações e a ampla literatura sócio-política dos
anos 70 e 80, sobre a significação dos chamados “novos movimentos sociais”, foram res-
ponsáveis pela construção de um novo paradigma de cultura política e organização social
emancipatória83, e imprimiram uma mudança estrutural do movimento constitucional, que

81
CATUSSO, Joseane. Pluralismo jurídico: um novo paradigma para se pensar o fenômeno jurídico. Revista
Eletrônica do CEJUR, Curitiba, a. 2, v. 1, n. 2, p. 119-147, ago./dez. 2007. Disponível em: https://revistas.ufpr.
br/cejur/article/view/16749. Acesso em: 13 ago. 2023.
82
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p.195.
83
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 119.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |181

acabou por absorver, em seu seio, as contradições de uma sociedade que, cada vez mais,
se afirma como pluralista84.

O paradigma pluralista, nesse sentido, visa combater o excludente paradigma monis-


ta, que compreende o direito exclusivamente como produto do poder legislativo do Estado85.

A noção de pluralismo jurídico comunica a ideia geral de que existem, e, inclusive,


vigem, em determinado espaço, normatividades oriundas de diferentes fontes, para além
das normas editadas pelo Estado (e particularmente pelo ente central dos Estados) que
exerce soberania sobre aquele território86. Tais fontes alternativas são decorrentes do pró-
prio exercício político dos cidadãos, de elegerem para si as normas que entendem válidas
para seu contexto sociocultural.

Para Wolkmer, esse cenário nos permite admitir que o principal núcleo para o qual
converge o pluralismo jurídico é a negação de que o Estado seja a fonte única e exclusiva
de todo o Direito. Tal concepção relativiza ou nega o monopólio de criação das normas
jurídicas por parte do Estado, priorizando a produção de outras formas de regulamenta-
ção, geradas por instâncias, corpos intermediários ou organizações sociais providas de
certo grau de autonomia e identidade própria. A ideia do pluralismo jurídico busca reduzir
a onipotência do centralismo-formalista moderno de que o único Direito válido, e com grau
de obrigatoriedade, é aquele emanado do poder do Estado, expresso sob a forma escrita e
publicizada da lei87.

84
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 11.
85
Pode-se afirmar que o monismo jurídico estatal é produto histórico da formação dos Estados Modernos do
Ocidente, nascidos sobre a dissolução da sociedade medieval, a qual, por sua vez, era regida por um sistema
normativo pluralista, proveniente da igreja, com status supranacional, bem como ordenamentos em nível infra-
nacional, oriundos dos feudos, comunas e corporações. Assim, o poder de emanar normas de direito passou
a se concentrar nas mãos do Estado, com a paulatina e sucessiva supressão dos demais centros de poder
inferiores e superiores, até a extinção de qualquer centro de produção jurídica que não se identificasse com o
Estado. Embora não seja o objeto do presente trabalho, debater o surgimento e o desenvolvimento do monis-
mo jurídico nas sociedades modernas, é importante ter em mente que a partir do positivismo jurídico - linha
de pensamento que nasce a partir do pensamento liberal em Bentham, a visão monista de direito tomou conta
da teoria geral do direito e do Estado. É possível identificar-se a ligação do direito estatal ao direito positivo, e
a consequente consagração da interpretação de que todo o direito somente é direito enquanto produzido pelo
Estado, além de que somente o direito positivo é o verdadeiro direito (SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das
normas coletivas. 2. ed. São Paulo: LTR, 2009).
86
BARCELLOS, Ana Paula Gonçalves Pereira de. Constituição e pluralismo jurídico: a posição particular do Brasil
no contexto latino-americano. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, p. 170-183, ago.
2019. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/6053. Acesso em: 13 ago. 2023.
87
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 171-193.
182| Maxwell Lima Dias

O pluralismo jurídico se manifesta, então, como um fenômeno relacionado à co-


existência de práticas jurídicas distintas em um mesmo espaço, oriundas de diferentes
fontes, à coexistência de manifestações jurídicas estatais ou não, de “direito oficial” e
“direito não-oficial”.

Trata-se, pois, de um movimento constitucional democrático que pretende dar va-


zão às possibilidades normativas de uma ordem constitucional que estrutura, garante e
reconhece as diferenças de uma sociedade plural88. Esse repaginado movimento cons-
titucional, que agrega e reflete na Constituição uma alta carga culturalista da sociedade,
se caracteriza por possuir uma estrutura aberta à dimensão plural da sociedade nacional,
com o reconhecimento das diferenças e dos direitos das minorias89. A partir de uma aná-
lise hermenêutica, é possível afirmar que o pluralismo do direito dispõe de um conteúdo
material mais amplo, que contempla também o pluralismo político, o pluralismo social e o
pluralismo cultural. Assim, se o Estado Moderno esteve assentado, em grande medida, no
princípio da igualdade, que buscava a homogeneização da sociedade e a democracia da
maioria, “a ordem constitucional do pluralismo coloca a cidadania em outras bases, nas
quais homogeneidade, assimilação e aculturação dão lugar à diversidade, ao reconheci-
mento e à pluralidade”90. Assim, segundo Maliska, o pluralismo jurídico pressupõe uma
Constituição aberta para dentro, de modo a permitir a integração destas particularidades
socioculturais à norma constitucional91.

Nesse mesmo sentido, Peter Häberle, em sua obra Hermenêutica Constitucional


– sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação
pluralista e ‘procedimental’ da constituição, com o objetivo de instrumentalizar a prote-
ção do pluralismo jurídico no sistema constitucional, busca projetar uma hermenêutica da
Constituição aberta a interpretações que integram uma dada sociedade democrática, em
nítida e imprescindível superação dos métodos tradicionais, através da busca por novos
meios e formas de participação, comunicação e interação entre todos os potenciais parti-
cipantes deste (contínuo) processo92.

88
MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno: notas para pensar a racionalidade jurídica.
2. ed. Curitiba: Juruá, 2022. p. 11-12.
89
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 11.
90
MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno: notas para pensar a racionalidade jurídica.
2. ed. Curitiba: Juruá, 2022. p. 12.
91
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 41.
92
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contri-
buição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2002. p. 13.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |183

Importante ressaltar que a hermenêutica constitucional defendida por Häberle não


restringe o poder de interpretação da Constituição apenas aos juízes, tribunais ou a uma
parcela cerrada da sociedade, mas é aberta a toda a sociedade93. Isto é, a interpretação
constitucional não diz respeito somente aos tribunais, na medida em que suas conclusões
afetam toda a sociedade. Em verdade, tal interpretação se apresenta, na prática, cada vez
mais como um espaço aberto de deliberação.

Para Häberle, assim como defende Habermas, a figura do Estado tem a sua legi-
timidade reconhecida através de pressupostos propriamente democráticos. A noção de
democracia, para Häberle, não se consubstancia apenas no âmbito da participação po-
lítica dos cidadãos. Ao adotar-se a compreensão de sociedade aberta, a própria noção
de democracia passaria a estar atrelada à ideia de democracia como resultado do deba-
te acerca de necessidades, possibilidades e alternativas pensadas a partir de demandas
da realidade concretamente considerada, bem como a partir dos consensos possíveis94.
“Constitucionalizar formas e processos de participação é uma tarefa específica de uma
teoria constitucional (procedimental)”95. O processo político, assim, decorreria de um pro-
cedimento de comunicação que envolve todos os atores possíveis, num diálogo de todos
entre si96.

Convém ressaltar, como visto acima, que a teoria de hermenêutica constitucional


desenvolvida por Häberle muito se assemelha com a teoria discursiva de Habermas, so-
bretudo no que diz respeito à tentativa se solucionar a crise de legitimidade dos Estados
constitucionais sob uma visão procedimental da democracia, com a ampliação dos canais
participativos da sociedade. Habermas entende que o diálogo e a argumentação racional

93
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contri-
buição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2002. p. 13.
94
O consenso, aqui considerado sob a perspectiva habermasiana, cuja validade será tão maior quanto mais for
resultado de conflitos e compromissos entre participantes, livres para fazer valer, argumentativa, consistente
e responsavelmente, diferentes opiniões, na defesa de seus interesses legítimos (GRANT, Carolina. Da socie-
dade aberta e pluralista de intérpretes da constituição de Peter Häberle à democracia deliberativa de Jürgen
Habermas: uma análise da concretização destas matrizes teóricas a partir da forma como se tem dado o
processo de elaboração de políticas públicas em gênero e raça no contexto brasileiro dos últimos anos? O ne-
cessário protagonismo dos atores sociais. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XXIII., 2014, Florianópolis.
Anais [...]. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2014).
95
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contri-
buição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2002. p. 55.
96
GRANT, Carolina. Da sociedade aberta e pluralista de intérpretes da constituição de Peter Häberle à democracia
deliberativa de Jürgen Habermas: uma análise da concretização destas matrizes teóricas a partir da forma
como se tem dado o processo de elaboração de políticas públicas em gênero e raça no contexto brasileiro dos
últimos anos? O necessário protagonismo dos atores sociais. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XXIII.,
2014, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2014.
184| Maxwell Lima Dias

realizados pelos interlocutores devem ser trazidos para dentro das cúpulas de poder, a
fim de legitimar suas escolhas e ações, enquanto Häberle vê em uma interpretação cons-
titucional aberta, com a participação de todos os canais da sociedade, o procedimento
necessário para a interpretação e aplicação legítimas da Constituição97.

Impende ressaltar, ainda, que a ideia do pluralismo jurídico não é negar o direito
estatal, ou o direito oficial, mas tomá-lo como uma das diversas manifestações que o
fenômeno jurídico pode assumir na sociedade98. E, partindo do reconhecimento desse
pluralismo, é possível trazer efetividade ao poder comunicativo para além da produção bu-
rocrática e racional do direito, ampliando a ressonância da teoria discursiva habermasiana
e oferecendo autenticidade às múltiplas manifestações normativas não-estatais originadas
em grupos sociais minoritários, e possibilitando a inclusão dos membros marginalizados
e excluídos da sociedade.

Buscando carona, então, na visão otimista de Wolkmer, de que, não obstante o plu-
ralismo tradicional, defendido pelas classes sociais hegemônicas, esteja ultrapassado99,
isso não significa a impossibilidade de se oferecer uma ressignificação epistemológica ao
pluralismo através de uma nova fundamentação.

Busca-se oferecer, pois, a emancipação de parcelas minoritárias da Sociedade


pluralista, através de uma amplificação e reconhecimento do poder comunicativo destes
grupos. A ideia central aqui é aliar o ideal do pluralismo jurídico à teoria do discurso de
Habermas, com a pretensão de expandir a esfera pública das sociedades plurais – amplian-
do o seu núcleo jurídico – e oferecer um maior reconhecimento ao poder comunicativo dos
indivíduos dessas sociedades, fortalecendo, assim, a democracia deliberativa.

O desafio dessa conjugação de conceitos (pluralismo jurídico e discurso) que


o próprio Habermas, em sua teoria discursiva, vê no Estado a centralidade do direito.
Habermas, a partir da teoria do discurso, visa fundar as premissas da democracia prima-
riamente nos próprios princípios do sistema constitucional alicerçados num sistema de
direitos. O autor enfatiza que há uma relação necessária entre direito e Estado, de modo
que não seria possível pensar a produção e aplicação de normas jurídicas sem um poder

97
AQUINO, Tatiana C. S. ; A democracia e a interpretação constitucional na visão de Jürgen Habermas e Peter
Häberle. In: MAIA, Luciano Mariz; ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de; SILVA, Lucas Gonçalves da (org.).
Direitos fundamentais e democracia I. 1. ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014. v. 1. p. 29-45.
98
CATUSSO, Joseane. Pluralismo jurídico: um novo paradigma para se pensar o fenômeno jurídico. Revista
Eletrônica do CEJUR, Curitiba, a. 2, v. 1, n. 2, p. 119-147, ago./dez. 2007. Disponível em: https://revistas.ufpr.
br/cejur/article/view/16749. Acesso em: 13 ago. 2023.
99
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 206.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |185

administrativo correspondente que, em virtude de sua legitimidade, tenha a possibilidade


de efetivar o direito100.

Nesse sentido, ao menos aparentemente, o pluralismo jurídico, ao estabelecer


que o Estado é apenas mais um centro de produção de direitos, existindo esferas não-
-estatais que produzem normas jurídicas, e concorrentes ao direito estatal, distanciam da
teoria do discurso de Habermas, para quem todo direito que é legítimo emana do Estado
de forma procedimental101.

Por outro lado, Habermas reconhece que a conexão interna entre direito e Estado
não é suficiente para justificar a concentração do poder no Estado, e a submissão dos
indivíduos às leis. O fato do Estado deter o poder político-administrativo para aplicação do
direito legítimo, fundamentado em princípios constitucionais, não é bastante se tal sistema
normativo não estiver aberto ao exercício do poder comunicativo pelo povo102.

Habermas sustenta que o Estado de direito somente se justifica quando cidadãos


engajados abandonarem o papel de sujeitos jurídicos privados e tomarem a perspectiva de
participantes que estão engajados no processo de transformação social e do direito, bem
como tenham alcance do conhecimento sobre as regras de sua vida em comum. É preciso
que os componentes desta esfera pública tenham, de forma racional, o entendimento e
compreensão da sua produção enquanto direito.

Dessa forma, seguindo a pretensão de Wolkmer, contudo valendo-se de pressu-


postos diferentes, busca-se apresentar uma extensão do pensamento de Habermas, acerca
de sua teoria do discurso, reconhecer no pluralismo jurídico a condição de democracia deli-
berativa legitimadora do Estado Democrático de Direito. Enquanto para Wolkmer, o modelo
a ser seguido é o da democracia participativa por meio de uma prática pluralista, o presente
artigo investiga a possibilidade de um modelo de pluralismo jurídico legitimado por uma
ação comunicativa dos concernidos em uma democracia deliberativa.

Em que pese Wolkmer rejeite ao modelo deliberativo da democracia103, que é a


base teórica da teoria discursiva de Habermas, reconhece o autor a necessidade de im-

100
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democra-
cia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2020. p. 132.
101
ASENSI, Felipe Dutra. Legitimidade do direito, sociedade e Estado: tensionando Habermas e o pluralismo
jurídico. In: ASENSI, Felipe Dutra; PAULA, Daniel Giotti de (org.). Tratado de direito constitucional. 1. ed. Rio de
Janeiro: Campus-Elsevier, 2014. v. 1. p. 70-83.
102
ASENSI, Felipe Dutra. Legitimidade do direito, sociedade e Estado: tensionando Habermas e o pluralismo
jurídico. In: ASENSI, Felipe Dutra; PAULA, Daniel Giotti de (org.). Tratado de direito constitucional. 1. ed. Rio de
Janeiro: Campus-Elsevier, 2014. v. 1. p. 70-83.
103
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 267.
186| Maxwell Lima Dias

plementação de estratégias de efetividade formal-procedimental, que ofereçam condições


para realização de uma política democrática tendente a produzir um espaço comunitário
descentralizado e participativo. Admite o autor ser a ética racional do discurso a mais
importante contribuição do racionalismo filosófico contemporâneo para a projeção de uma
ética universal104.

Segundo o próprio Wolkmer, a partir do ‘agir comunicativo’, lastreado “no consen-


so não-coagido e na convicção recíproca”, Habermas propõe-se a solucionar as patolo-
gias sociais (medo, dominação, alienação etc.) e os desvios da modernidade, a partir de
um entendimento fático e empírico, no consenso não coagido e na convicção recíproca,
abandonando a razão instrumental insuficiente, em troca de uma razão ‘prático-discursi-
va’, descentralizada, reconstruída e ampliada105. Isso leva a uma relevante mudança de
paradigma, à medida que a racionalidade deixa de estar pautada na faculdade abstrata do
sujeito isolado, mas passa a ser implementada socialmente, a partir de um procedimento
argumentativo entre os atores sociais106.

Ainda que Wolkmer elogie as contribuições da ética discursiva no tocante à relevân-


cia de suas análises e às suas categorias-chave, tais como “responsabilidade”, “solidarie-
dade”, “práxis emancipatória”, “valorização das subjetividades do mundo da vida” e “con-
senso da comunidade real”, entende que é necessário um desenvolvimento ulterior, pois tal
proposta parte de uma sociedade quase utópica, formada por homens competentes, livres,
conscientes e maduros, prevalecendo sempre a lógica do melhor argumento possível, o
que, efetivamente, não ocorre nas sociedades do capitalismo periférico, compostas por
sujeitos desiguais

Uma relevante resposta à crítica da democracia deliberativa como uma teoria re-
volucionária e utópica, pode ser sintetizada a partir da ideia de Fung e Cohen107, os quais,
assumindo que a deliberação é uma forma exigente de interação política, preconizam que,
quando o contexto sociopolítico for marcado por assimetrias estruturais, simbólicas e/ou
motivacionais, a deliberação deverá ser combinada com outras estratégias de comunica-
ção, como a mobilização da audiência pública, o ativismo, a contestação, a barganha, a
negociação, e até a desobediência civil, desde que tais estratégias de comunicação possu-

104
CATUSSO, Joseane. Pluralismo jurídico: um novo paradigma para se pensar o fenômeno jurídico. Revista
Eletrônica do CEJUR, Curitiba, a. 2, v. 1, n. 2, p. 119-147, ago./dez. 2007. Disponível em: https://revistas.ufpr.
br/cejur/article/view/16749. Acesso em: 13 ago. 2023.
105
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 279.
106
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo:
Alfa Ômega, 2001. p. 279-280.
107
COHEN, Joshua; FUNG, Archon. Radical democracy. Swiss Journal of Political Science, v. 10, n. 4, 2004.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |187

am justificação pública. São quatro circunstâncias que justificam a mudança dos padrões
de comunicação:
a) contexto marcado por participantes motivados a deliberar uns com os outros,
mas que, apesar de possuírem igual capacidade de fazê-lo, apresentam resultados
injustos ou ineficazes;
b) contexto marcado por participantes que estão motivados a deliberar entre si, mas
que apresentam posições social, econômica, cultural ou política diferentes, que re-
sultam na sobrerrepresentação de algumas posições, perspectivas e estilos de vida;
c) contexto marcados por desigualdades substanciais e por atores políticos não
dispostos a deliberarem;
d) contexto marcado pela negação completa das formas deliberativas de ação.
O objetivo dessa ideia é expandir a teoria discursiva habermasiana, para possibilitar
uma maior mobilização dos atores políticos na garantia de uma decisão deliberativa alcan-
çada, cumprindo a função de denunciar e criar alternativas às desigualdades sociopolíticas
e criar formas de institucionalizar tais alternativas108.

Não é de difícil percepção, portanto, a estreita conexão entre democracia delibera-


tiva e pluralismo jurídico. O reconhecimento das produções normativas não estatais, por
sujeitos sociais marginalizados, em contexto de desigualdade ou dominação, é reconhecer
o próprio poder comunicativo, objeto da racionalidade discursiva em Habermas.

Por outro lado, uma vez que Habermas entende que somente o direito sancionado
através do Estado é legítimo, faz-se imprescindível ressaltar que, não se presta o presente
trabalho a aplicar cega e restritivamente a Teoria do Discurso à tarefa de racionalização do
pluralismo jurídico em um Estado Democrático de Direito. O que se pretende é, a partir de
ideias desenvolvidas por Habermas, sobretudo o conceito de democracia deliberativa e
poder comunicativo, ampliar a esfera pública em que os sujeitos sociais exercem seu poder
comunicativo, mediante o reconhecimento da produção pluralista do Direito, de modo a
oferecer uma maior racionalidade ao Estado Democrático de Direito.

Assim, ao dissertar sobre o pluralismo jurídico como pressuposto do Estado


Democrático de Direito, assentado em uma ordem constitucional democrática, objetiva-se re-
forçar a racionalidade jurídica do poder estatal pautada no paradigma de que o direito – seja ele
“oficial” ou “não oficial” – é legítimo à medida que decorra de um consenso em torno de sua
obrigatoriedade, diante de uma esfera pública apta a produzir e garantir o agir comunicativo.

108
FARIAS, Cláudia. Feres. Democracia deliberativa e (des)igualdades. In: MIGUEL, Luis Felipe. Desigualdades e
democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 204-221.
188| Maxwell Lima Dias

5 CONCLUSÃO
A ideia liberal de um Estado moderno concebido de um pacto social firmado entre os
indivíduos de uma sociedade, em que dispõem de parte de sua liberdade plena, natural, para,
em troca, da salvaguarda de seus direitos de liberdade – e até de igualdade – já não é sufi-
ciente para explicar a unidade de representação do poder estatal em sociedades pluralistas.

Diante do pluralismo presente na sociedade do século XX, Habermas propõe uma


ética do discurso, capaz de lidar com as tensões daí decorrentes através de procedimentos
discursivos. Assim, se no pensamento moderno, a legitimidade das leis e do exercício do
poder pelo Estado se justificava pela vontade geral de uma maioria, a partir de então, e
até os dias atuais, é possível identificarmos uma demanda sociopolítica de legitimação do
direito a partir de um consenso dos concernidos, através de um procedimento democrático
discursivo garantidor do poder comunicativo. Dessa forma, demonstrou-se a ascensão de
um projeto pós-moderno do Estado Democrático de Direito reconhecido em diversas cons-
tituições do mundo, a partir do ideário da democracia deliberativa como fator legitimador
do Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, dada as pressões neoliberais da contemporaneidade, e diante do


risco de esvaziamento do poder comunicativo através da dominação cultural (ou do di-
nheiro), importante pensar o pluralismo jurídico – enquanto reconhecimento de normas
paralelas ao Estado produzidas diretamente pelos concernidos – como um pressuposto
da democracia deliberativa, na tarefa de racionalização do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS
ABENDROTH, Wolfgang; FORSTHOFF, Ernst; DOEHRING, Karl. El Estado social. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1986.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008.

ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. A esfera pública no pensamento de Jürgen Habermas: proble-
mas, limites e perspectivas. 2018. 257f. Tese (Doutorado em Ética e Filosofia Política) – Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco,
João Pessoa, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/13173/1/
Arquivototal.pdf. Acesso em: 13 ago. 2023.

ANDRADE, Marcella Coelho. Legitimidade do Direito e participação política: um olhar sob a perspecti-
va da democracia. In: JORNADA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS DA UFJF, 6., 2020, Juiz de Fora. Anais [...].
Juiz de Fora: UFJF, 2020.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |189

AQUINO, Tatiana C. S.; A democracia e a interpretação constitucional na visão de Jürgen Habermas e


Peter Häberle. In: MAIA, Luciano Mariz; ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de; SILVA, Lucas Gonçalves
da (org.). Direitos fundamentais e democracia I. 1. ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014. v. 1. p. 29-45.

ARENDT, Hannah. Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

ASENSI, Felipe Dutra. Legitimidade do direito, sociedade e Estado: tensionando Habermas e o pluralis-
mo jurídico. In: ASENSI, Felipe Dutra; PAULA, Daniel Giotti de (org.). Tratado de direito constitucional.
1. ed. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2014. v. 1. p. 70-83.

AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. Porto Alegre: Globo, 1980.

BANNWART JUNIOR, Clodomiro José; TESCARO JUNIOR, João Evanir. Jürgen Habermas: teoria crítica
e democracia deliberativa. Revista Confluências, Niterói, v. 12, n. 2, p. 129-156, out. 2012. Disponível
em: https://periodicos.uff.br/confluencias/article/view/34337/19738. Acesso em: 13 ago. 2023.

BARCELLOS, Ana Paula Gonçalves Pereira de. Constituição e pluralismo jurídico: a posição particular
do Brasil no contexto latino-americano. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, p.
170-183, ago. 2019. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/6053. Acesso
em: 13 ago. 2023.

BEDIN, Gilmar Antônio. O pensamento político de Norbert Lechner e o papel da ideia de utopia do con-
senso como fundamento da Democracia. Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v.
27, n. 1, p. 33-47, jan./abr. 2022. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.
php/rdfd/article/view/2220/728. Acesso em: 13 ago. 2023.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Brasiliense, 2017.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira, 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CATUSSO, Joseane. Pluralismo jurídico: um novo paradigma para se pensar o fenômeno jurídico.
Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba, a. 2, v. 1, n. 2, p. 119-147, ago./dez. 2007. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/16749. Acesso em: 13 ago. 2023.

CHAMBERS, Simone. A política da teoria crítica. In: RUSH, Fred (org.). Teoria crítica. Tradução de
Beatriz Katinsky e Regina Andrés Rebollo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008. p. 263-294.

COHEN, Joshua; FUNG, Archon. Radical democracy. Swiss Journal of Political Science, v. 10, n. 4,
2004.

DAHL, Robert A. Um prefácio à teoria democrática. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:
Zahar, 1989.

ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade.
Tradução de Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
190| Maxwell Lima Dias

FARIAS, Cláudia. Feres. Democracia deliberativa e (des)igualdades. In: MIGUEL, Luis Felipe.
Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora Unesp, 2016. p. 204-221.

GRANT, Carolina. Da sociedade aberta e pluralista de intérpretes da constituição de Peter Häberle à


democracia deliberativa de Jürgen Habermas: uma análise da concretização destas matrizes teóricas
a partir da forma como se tem dado o processo de elaboração de políticas públicas em gênero e
raça no contexto brasileiro dos últimos anos? O necessário protagonismo dos atores sociais. In:
ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XXIII., 2014, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2014.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição:


contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Denilson Luís Werle. São
Paulo: Editora Unesp, 2014.

HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Tradução de Rúrion Melo. São
Paulo: Editora Unesp, 2016.

HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e
da democracia. Tradução de Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de
Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

HOBSBAWM, Eri J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de


Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2017.

KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na
prática (1793). Tradução de Artur Morão. Covilhã: Lusofia Press, [s.d.]. Disponível em: http://www.
lusosofia.net/textos/kant_immanuel_correcto_na_teoria.pdf. Acesso em: 25 fev. 2022.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2009.

LASKI, Harold J. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973.

MACPHERSON, Crawford Brough. La teoría política del individualismo posesivo: de Hobbes a Locke.
Barcelona: Fontanella, 1974.
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade... |191

MALISKA, Marcos Augusto. Os desafios do Estado moderno. Federalismo e Integração regional.


2003. 149f. Tese (Doutorado) – Programa de Doutorado em Direito, Universidade Federal do Paraná
(estágio de doutoramento na Ludwig Maximilian Universität), Curitiba, Munique, 2003.

MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR,
Curitiba, v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/
view/14830. Acesso em: 13 ago. 2023.

MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração.


Curitiba: Juruá, 2013.

MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo jurídico e Direito moderno: notas para pensar a racionalidade
jurídica. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2022.

MIGUEL, Luis Felipe. Carole Pateman e a fundação da teoria política feminista. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BALLESTRIN, Luciana. Teoria e política feminista: contribuições ao debate sobre gênero no Brasil.
Porto Alegre: Zouk, 2020.

MILLS, Charles W. The racial contract. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.

MORAES, Ricardo Quartim. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito
e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, v. 51, n. 204,
p. 269-285, out./dez. 2014. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
id/509938/001032358.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 13 ago. 2023.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jeferson Luiz
Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça. Deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.


Tradução de Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São
Paulo: Boitempo, 2017.

PANSIERI, Flávio. Liberdade e o Estado moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancinni. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2020.

PAVÃO, Aguinaldo. A crítica de Kant a Hobbes em teoria e prática. Philosophica, Lisboa, v. 31, p. 91-
101, 2008. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/22926. Acesso em: 13 ago. 2023.

PEREIRA, Américo. Da ontologia da “polis” em Platão. Covilhã: LusoSofia – Biblioteca Online de


Filosofia e Cultura, 2011. p. 03-102. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/pereira_ameri-
co_ontologia_da_polis_em_platao.pdf. Acesso em: 02 fev. 2022.

RAWLS, John. A theory of justice. Oxford: Oxford University Press, 1999.

RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
192| Maxwell Lima Dias

RAWLS, John. The idea of an overlapping consensus. Oxford Journal of Legal Studies, v. 7, n. 1, p.
1-25, primavera 1987. p. 1-3. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/764257. Acesso em: 08
abr. 2023.

RIBEIRO, Douglas Carvalho. Nascimento e queda do Leviatã: da congruência entre Estado moderno,
crise e democracia. Revista do CAAP, Belo Horizonte, n. 2, v. XIX, p. 85-102, 2013.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social (princípios de direito político). Tradução de Antônio de


P. Machado. 5. ed. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1958.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os


homens. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Folha de São Paulo, 2021.

SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das normas coletivas. 2. ed. São Paulo: LTR, 2009.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica
de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

SILVA, Rodrigo Lima e. Evolução histórica e desafios dos modelos de Estado de Direito. Revista de
Teorias e Filosofias do Estado, v.1, n. 2, p. 103-124, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.
indexlaw.org/index.php/revistateoriasfilosofias/article/view/679/0. Acesso em: 09 abr. 2023.

SINGER, André; ARAUJO, Cícero; BELINELLI, Leonardo. Estado e democracia. Rio de Janeiro: Zahar,
2021.

SPENGLER, Fabiana M. O pluriverso conflitivo e seus reflexos na formação consensuada do Estado.


Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 22, n. 2, p. 182-209, maio/ago. 2017.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/835. Acesso
em: 13 ago. 2023.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolsan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. rev. e
atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução de Neil Ribeiro da Silva. 4. ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1987.

VIEIRA, Rejane Esther; MENDES, Betina Souza. Democracia segundo Rousseau: uma análise histórica
sobre as principais ideias de Rousseau na obra “o contrato social” e sua contribuição para a demo-
cracia na contemporaneidade. Revista dos Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 5, n.
5, jan./jun. 2009. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/226/219. Acesso em: 13 ago. 2023.

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 2. ed.
São Paulo: Alfa-Ômega, 1997.

ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de
Direito: história, teoria e crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ANÁLISE DA RENÚNCIA DA RECEITA DE
IPTU NO MUNICÍPIO DE CURITIBA

Derick Davidson Cordeiro1


Gabriela Ganho2

Sumário: 1. Introdução. 2. Questões preliminares sobre o município. 3. O tributo. 4. O IPTU


e o desenvolvimento municipal. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
A Constituição de 1988, demonstrou grande preocupação na concretização de garantias e
direitos fundamentais e sociais. Houve o reconhecimento de que o Estado é um substancial
agente garantidor e promotor desses direitos. Do mesmo modo, verificou-se que, para
que seja possível ao Estado cumprir com suas atribuições, voltadas o bem-estar social e
ao desenvolvimento econômico, social e urbano, é preciso considerar os custos desses
direitos. Uma forma encontrada pelo legislador constitucional, pensando nessa evolução
em diversas esferas, foi proteger e ampliar a autonomia e importância do ente de federativo
municipal, concedendo-lhe, inclusive, impostos próprios e atribuindo-lhe a política de de-
senvolvimento urbano. Neste âmbito, é possível ver notório impacto do IPTU na receita do
Município, sendo possível utilizar deste imposto tanto para aplicação em serviços, quanto
na prática de estimular ou desestimular um comportamento por parte do cidadão. O tra-
balho pretende fazer a análise disto com base na renúncia do IPTU, estabelecida na Lei de
Diretrizes Orçamentárias do Município de Curitiba.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Tributo. Renúncia. IPTU.


Extrafiscalidade. Município.

1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Especialista em Direito Imobiliário e Notarial e Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido
Mendes. Especialista em Direito e Processo Civil pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná. Advogado.
E-mail: ddcordeiro.adv@gmail.com
2
Mestre pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Especialista em Direito Civil e Empresarial
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Possui graduação em Direito pelas Faculdades
Integradas do Brasil. Advogada. E-mail: gabriela.ganho@gmail.com
194| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil, apelidada de “Constituição
Cidadã”, traz uma série de direitos e garantias fundamentais e sociais.
É possível afirmar que essa série de direitos e princípios inerentes à sobrevivência digna
humana, contidos em nossa Constituição, enunciam normas para um futuro em expansão3.
Assim, as normas imaginadas pelo legislador constitucional foram diversas, inclusive
indicando formas e métodos que possibilitam à sociedade adaptar-se, flexibilizar-se e atualizar-
-se da melhor maneira, visando as necessidades efetivamente atuais da comunidade em geral.
Deste modo, da Constituição espera-se que assegure o bem-estar social e cole-
tivo, mediante a inspiração e aplicabilidade de seus princípios, que servem de guia para
solucionar diferentes problemas do direito e, também, para organizar o próprio Estado4,
direcionando-o para o cumprimento dos direitos fundamentais no uso de suas atribuições,
como agente garantidor e promotor desses direitos.
É imprescindível salientar que a organização, deveres e obrigações do Estado, es-
tabelecidos no texto constitucional, constituindo-se em um sistema normativo aberto para
dentro5, pode ser traduzido em um sistema de redução de desigualdades, mas também,
e principalmente, em uma ferramenta de desenvolvimento.
Neste sistema aberto, um instrumento que viabiliza a concretização de direitos
e garantia fundamentais e sociais pelo Estado é o serviço público, sendo uma atividade
prestacional englobada no quadro do chamado Estado Social e Democrático de Direito6.
Todavia, para que o Estado possa prestar o serviço público e, até mesmo, agir
voltado ao desenvolvimento social e econômico, é necessário considerar o custo disto.
Por mais que não seja analisado em muitos estudos sobre o tema, os direitos e
garantias fundamentais têm um grande custo, pois são mantidos substancialmente pelas
instituições formais, cabendo ao Estado adquirir e gerir sua receita, voltando-se sempre ao
bem-estar geral, por meio da cobrança e/ou renúncia de impostos7.

3
CARDOZO, Benjamin N. The nature of the judicial process. New Haven: Yale University Press, 1921. p. 79.
4
VASCONCELOS, Rita de Cássia Côrrea de. Impenhorabilidade do bem de família: destinatários; proteção legal.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 180, 181.
5
Nesse sentido: MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração.
Curitiba: Juruá, 2013.
6
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Regime jurídico do serviço público: garantia fundamental do cidadão e proi-
bição de retrocesso legal. 2009. 224f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2009. p. 116-118. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/21460. Acesso em: 14 ago. 2023.
7
Nesse sentido ver: SUNSTEIN, Cass R.; HOLMES, Stephen. Cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova
York: Norton, 1999.
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |195

Desse modo, a Constituição concedeu ao poder público municipal a competência sobre


assuntos de interesse local, além de atribuir-lhe a política de desenvolvimento urbano8. Para o
cumprimento disto, o município dispõe de autonomia para cobrar ou renunciar impostos próprios.
O presente trabalho, portanto, será dividido em três partes. A primeira, pretende
esclarecer sobre a estrutura e organização do ente federativo municipal. A segunda, irá ob-
servar as questões pertinentes à tributação, e quais impostos relacionam-se ao município.
A terceira e última, analisará especificamente a questão do Imposto sobre a Propriedade
Predial e Territorial Urbana no Município de Curitiba.
Conforme restará explícito ao final, buscar-se-á demonstrar o impacto do imposto em
análise, e de que maneira a sua renúncia contribui na promoção do desenvolvimento econô-
mico e social, utilizando-se primordialmente da Lei de Diretrizes Orçamentárias de Curitiba.

2 QUESTÕES PRELIMINARES SOBRE O MUNICÍPIO


Para tratar da questão da renúncia de IPTU e suas consequências, precisamos
inicialmente tecer considerações acerca do município, compreendendo lições preliminares
e jurídicas que o definem.
Conforme ensinam Daniele Regina Pontes e José Ricardo Vargas de Faria, o surgi-
mento do modelo municipal desenhado na Constituição de 1988, adveio da necessidade
de atender-se às novas demandas da sociedade em um contexto de redemocratização9.
Os autores explicam que, anteriormente, jamais ocorreu uma preocupação com
“política urbana” nos textos constitucionais, fazendo do Município um ente substancial na
“estrutura político-administrativa brasileira”10.
Nas lições de Ivo Dantas e Gina Gouveia Pires de Castro, essa terminologia de
“organização político-administrativa” envolve duas questões11.
Inicialmente, de que maneira o ordenamento jurídico-positivo estabelece sua forma
de governo, vindo a estruturar seus órgãos governamentais e suas relações. Tal estrutura

8
Nesse sentido ver: MARTYNYCHEN, Marina. M. M. Operação urbana consorciada: uma alternativa para urba-
nificação das cidades. 2007. 199f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2007. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/12289/
disserta%c3%a7%c3%a3o%20-%20marina.pdf;sequence=1. Acesso em: 14 ago. 2023.
9
PONTES, Daniele Regina; FARIA, José Ricardo Vargas de Faria. Direito municipal e urbanístico. Curitiba: Iesde
Brasil, 2012. p. 16.
10
PONTES, Daniele Regina; FARIA, José Ricardo Vargas de Faria. Direito municipal e urbanístico. Curitiba: Iesde
Brasil, 2012. p. 17
11
DANTAS, Ivo; CASTRO, Gina Gouveia Pires de. Os municípios e a federação brasileira: a importância desses no con�-
texto constitucional brasileiro. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di; MENDES, Gilmar
Ferreira (coord.). Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum Conhecimento Jurídico, 2018. p. 81-112.
196| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

poderá ser organizada por repartições de poderes em plano horizontal ou de forma vertical,
não sendo possível confundir desconcentração de poder com a descentralização12.
Ademais, a segunda questão, para os autores, é pertinente aos processos pelos
quais os governantes chegam ao poder e a coexistência entre a forma de governo e o
regime político13.
Assim, verifica-se que a “organização político-administrativa da República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
todos autônomos, nos termos da Constituição (art. 18, da Constituição)”14.
A Constituição, desse modo, outorga ao município a prerrogativa política da auto-
nomia pela composição do seu governo e pela administração própria no que concerne ao
seu interesse local (art. 30, I)15.
Um dos princípios que asseguram a autonomia municipal, segundo Hely Lopes
Meirelles, é a garantia oferecida pela Constituição para o ente “decretar e arrecadar tributos
de sua competência e aplicar suas rendas, sem tutela ou dependência de qualquer poder,
prestando suas contas e publicando balancetes no prazo da lei” (art. 30, III, da CF).16
Meirelles afirma que as autonomias política e administrativa seriam inexpressivas
sem recursos próprios que garantissem isso17.
A receita dos municípios é proveniente de impostos, taxas e contribuição de melho-
ria, sendo então, a arrecadação pertencente integralmente a cada prefeitura que aproveitou
de sua competência e, respeitando a Constituição e o Código Tributário Nacional, instituiu
e cobrou tais tributos em seu respectivo território18.

12
DANTAS, Ivo; CASTRO, Gina Gouveia Pires de. Os municípios e a federação brasileira: a importância desses no
contexto constitucional brasileiro. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di; MENDES,
Gilmar Ferreira (coord.). Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum Conhecimento Jurídico, 2018.
13
DANTAS, Ivo; CASTRO, Gina Gouveia Pires de. Os municípios e a federação brasileira: a importância desses no
contexto constitucional brasileiro. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di; MENDES,
Gilmar Ferreira (coord.). Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum Conhecimento Jurídico, 2018.
14
DANTAS, Ivo; CASTRO, Gina Gouveia Pires de. Os municípios e a federação brasileira: a importância desses no
contexto constitucional brasileiro. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di; MENDES,
Gilmar Ferreira (coord.). Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum Conhecimento Jurídico, 2018.
15
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 91
16
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 113.
17
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
18
AFONSO, José Roberto R.; ARAUJO, Erika Amorim; NÓBREGA, Marcos Antonio Rios. IPTU no Brasil: um diag-
nóstico abrangente. São Paulo: FGV Projetos; Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), [s.d.]. v. 4. p. 19.
Disponível em: https://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/iptu_no_brasil_um_diagnostico_abran-
gente_0.pdf . Acesso em: 28 out 2022.
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |197

Os tributos de competência do Município já se encontram discriminados na


Constituição, em seu art. 156. Assim, ao ente federativo em análise, é possibilitada a co-
brança de quatro impostos:
(i) ISS (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza);
(ii) IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana);
(iii) ITBI (Imposto ‘Inter Vivos’ de Bens Imóveis e de Direitos Reais sobre bens
Imóveis), e;
(iv) IRRF (Imposto de Renda Retido na Fonte)19.
É substancial reiterar a consideração de Meirelles, que afirma não ser possível ao
Estado-membro “interferir nessa autonomia financeira dos seus Municípios, quer condicio-
nando a instituição dos tributos locais; quer restringindo sua majoração; quer concedendo
isenções de tributos Municipais [...]20. O autor ainda destaca a Súmula 69, do Supremo
Tribunal Federal, que determina: “A constituição estadual não pode estabelecer limite para o
aumento de tributos municipais”21.
Neste sentido, conclui Meirelles:

Nem mesmo a lei complementar prevista no art. 146 da CF pode criar outras limita-
ções que não as constitucionais, uma vez que o preceito maior não o permite, res-
tringindo seu objeto ao estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação
tributária e à regulamentação das “limitações constitucionais ao poder de tributar”22.

Posto isto, sendo notório, pela leitura do próprio texto constitucional e entendimen-
to firmado pelo STF, que a autonomia municipal é de suma importância, compreende-se o
intuito do legislador em efetivamente contribuir com a “Política Urbana”, resguardando de
diversas maneiras a autonomia do ente federativo.
Ainda, essa primordial evolução legislativa, fornecida pela Constituição de 1988,
demonstra ainda mais concreta preocupação com o desenvolvimento e bem-estar-social
ao determinar que seus entes federativos devem, necessariamente, destinar parte dos seus
recursos para determinadas áreas, como saúde e educação.

19
AFONSO, José Roberto R.; ARAUJO, Erika Amorim; NÓBREGA, Marcos Antonio Rios. IPTU no Brasil: um diag-
nóstico abrangente. São Paulo: FGV Projetos; Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), [s.d.]. v. 4. p. 19.
Disponível em: https://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/iptu_no_brasil_um_diagnostico_abran-
gente_0.pdf . Acesso em: 28 out 2022.
20
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 151.
21
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 69. A Constituição estadual não pode estabelecer limite para o
aumento de tributos municipais. DJ de 8/7/1964. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/suma-
riosumulas.asp?base=30&sumula=3629. Acesso em: 29 out. 2022.
22
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 151.
198| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

A arrecadação de tributos do município, portanto, deverá ser utilizada em determi-


nada quantidade nessas referidas áreas, não se constituindo qualquer limitação de recur-
sos para tais assuntos de grande interesse social.
Contudo, é importante frisar que não é somente pela cobrança e aplicação de tri-
butos que o desenvolvimento é gerado, mas também por sua renúncia, conforme será
demonstrado, precisamente por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias de Curitiba, do
ano de 2022, observando-se especificamente o que tange ao Imposto sobre a Propriedade
Predial e Territorial Urbana (IPTU).

3 O TRIBUTO
O Código Tributário Nacional, em seu art. 3°, traz o conceito de tributo: “Tributo é
toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir,
que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade ad-
ministrativa plenamente vinculada”.
A única fonte possível da obrigação de recolher tributos é a própria lei, sendo ele
uma obrigação de entregar determinada prestação ao Estado, tendo como característica
fundamental a compulsoriedade do seu dever23.
Além disto, o tributo não se confunde com uma sanção por ato ilícito (como a multa),
e é cobrado por meio de atividade administrativa vinculada, havendo dois princípios constitu-
cionais principais sobre o tributo expressos na constituição, quais sejam: o a legalidade tribu-
tária (art. 150, I, da CF) e o da vedação do tributo com efeito de confisco (art. 150, IV, CF)24.
Em suma, conforme ensina Alexandre Mazza, a partir do próprio vocábulo pluris-
significativo de “tributo”, extraímos as seguintes acepções distintas:

(a) dever de levar dinheiro aos cofres públicos; (b) quantia em dinheiro entregue ao
Estado no cumprimento desse dever; (c) comportamento de levar dinheiro (presta-
ção); (d) a lei que prescreve tal dever (norma jurídica); (e) a relação obrigacional que
tal lei cria; (f) o direito do sujeito ativo a receber seu crédito tributário25.

A doutrina compreende a divisão entre tributos ficais e os tributos extrafiscais ou


indutores. Nesse sentido, a autora Simone Martins Sebastião, indica que o tributo fiscal é a
cobrança e arrecadação em si, constituindo a própria necessidade de fornecer ao cidadão

23
MAZZA, Alexandre. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 109.
24
MAZZA, Alexandre. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 109-117
25
MAZZA, Alexandre. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 112
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |199

uma vida digna, cumprindo as normas constitucionais. O tributo fiscal gera receita para
cobrir encargos inerentes à administração pública26.
De outro lado, verificamos os tributos extrafiscais ou indutores, que recebem essa
denominação por estimular ou desestimular determinada conduta pelo Estado. A extrafis-
calidade, segundo Eduardo Schoueri, constitui na utilização do instrumento tributário para
regular comportamentos sociais, de natureza econômica, social e política27.
O autor explica acerca da denominação de “normas tributárias indutoras”:

[...] A expressão normas tributárias indutoras, tem o firme propósito de não deixar
escapar a evidência de, conquanto se tratando de instrumentos a serviço do Estado
na intervenção por indução, não perderem tais normas a característica de serem
elas, ao mesmo tempo, relativas a tributos e portanto sujeitas a princípios e regras
do campo tributário28.

Schoueri ainda fornece, por meio de Ruy Barbosa Nogueira, exemplo de indução da
norma tributária, e também demonstra a maneira de se cumularem competências materiais
e tributárias, como no caso da função regulatória do IPTU, na qual um município, ao mane-
jar o planejamento urbano, utiliza-se do imposto como maneira de obrigar os proprietários
de modo indireto a fazerem calçadas, muros ou reconstruir29.
Ainda, o autor explica melhor a questão da intervenção econômica do Estado. Tal
aspecto é extremamente pertinente ao tema, visto que a intervenção econômica do Estado
pode se dar de maneira direta, o que se entende por ser uma intervenção no domínio eco-
nômico, ou indireta, sendo a intervenção sobre o domínio econômico30.
Quando tratamos da indução sobre o domínio econômico (que é pertinente ao
tema), observamos que essa poderá se dar por direção ou por indução.
As normas diretoras têm efeitos mais rápidos em relação àquelas meramente indu-
toras, tendo efeito de, geralmente, caracterizar um ilícito. Outrossim, as normas diretoras
são mais recomendáveis quando se aguarda um comportamento da sociedade em geral.

26
SEBASTIÃO, Simone Martins. Tributo ambiental: extrafiscalidade e função promocional do direito. Curitiba:
Juruá, 2010. p. 133.
27
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 33.
28
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 34
29
NOGUEIRA, p. 348 apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio
de Janeiro: Forense, 2005.
30
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 103
200| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

No que concerte a este último aspecto, se a norma indutora buscar tolerar ou espe-
rar alguns comportamentos específicos de determinados elementos de maneira diferente da
maioria, então as normas tributárias indutoras fornecerão a “escolha” para o mercado, tendo
as normas de direção a função de prever critérios para quem serão os atingidos pela norma31.
Neste diapasão, cumpre salientar, também, que existem casos que a adoção de
normas de direção resta por mandatória. Ocorre isto quando não existe critério de mercado
para a escolha, ou em outros casos, quando o mercado será “exigência do sistema”, fa-
zendo-se necessário, neste último, a adoção de normas indutoras32.
Noutro caso, sendo a norma tributária indutora um desincentivo, deve indicar ao
contribuinte a possibilidade de deixar de adotar determinado comportamento e, ao mesmo
tempo, não transformar tal comportamento em uma sanção que atinja o indivíduo com
menor poder aquisitivo de maneira muito gravosa33.
Veja-se que, em conclusão à questão da intervenção do Estado sobre o Domínio
Econômico, ao tratar do assunto, Schoueri explica que a indução ocorre por meio de estí-
mulos ou desestímulos34. Então, extrai-se que a tributação indutora decaí numa espécie do
que é possível chamar de “sanção premial”.
Percebendo-se, assim, que o tributo indutor pode ser aplicado de uma ou outra
maneira, deixa-nos cristalina a ideia de que o tributo constitui a possibilidade, já discorrida
no texto, de assegurar os fundamentos e objetivos disposto no texto constitucional.
Deste modo, o incentivo ou desincentivo de determinada prática ou comportamen-
to pelo Estado pode fomentar o desenvolvimento social, político e econômico.
Na busca da redução das desigualdades, do mesmo modo que o tributo é aplicado,
havendo normas de direção e normas indutoras, é possível afirmar que ele pode deixar de ser
cobrado, com o mesmo intuito, não confundindo-se neste ponto a imunidade com a isenção.
Nesse sentido, verificamos que a imunidade é fornecida pelo próprio texto consti-
tucional, sendo uma limitação de competência tributária. A imunidade objetiva, subjetiva e
mista é encontrada no art. 150, da Constituição. Vejamos algumas situações:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre: a) patrimô-

31
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 105
32
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005.
33
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 106.
34
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 107.
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |201

nio, renda ou serviços, uns dos outros; b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda
ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos
trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos,
atendidos os requisitos da lei; d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua
impressão. e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo
obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas
por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os con-
tenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser.

Outras situações de imunidade são localizadas nos parágrafos do art. 150.


Todavia, quando tratamos da isenção, trazemos novamente o Código Tributário
Nacional, que estabelece em seu art. 175: “Excluem o crédito tributário: I - a isenção;
II - a anistia”.
Neste diapasão, conforme ensina Ives Gendra da Silva, existirá o tributo, um fato
gerador, mas não haverá o efeito tributário.35 Ocorre então, necessariamente, a exceção à
uma regra.
Desse modo, acreditando passar ao leitor uma leitura geral dos institutos neces-
sários ao tema, iremos verificar de que maneira a aplicação do IPTU e, principalmente, a
sua renúncia, contribuem para o desenvolvimento urbano, social, político e econômico,
utilizando-se como base o Município de Curitiba.

4 O IPTU E O DESENVOLVIMENTO MUNICIPAL


O Código Tributário Nacional, em seu art. 16, também apresenta a definição de
imposto, sendo: “Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação
independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”.
Logo, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), é o tributo de competência dos
municípios, tendo quatro fontes jurídicas, quais sejam:
(i) a Constituição Federal;
(ii) o Código Tributário Nacional;
(iii) o Estatuto da Cidade;
(iv) e o Plano Diretor dos municípios36.

35
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 312.
36
LEÃO, Celina Gontijo; FRIAS, Liconln. A importância social do IPTU e os problemas em sua gestão. Qualistas
Revista Eletrônica. v. 19, n. 1, p. 23-42, jan./mar. 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publica-
tion/326470126_A_IMPORTANCIA_SOCIAL_DO_IPTU_E_OS_PROBLEMAS_EM_SUA_GESTAO. Acesso em:
29 out. 2022.
202| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

Além disto, consoante ensinam os autores Octavio Campos Fischer e Marcos Augusto
Maliska, o dever de pagamento do IPTU não tem como fato gerador a propriedade pura e sim-
plesmente, mas o fato gerador é o direito de propriedade sobre bens situados em zona urbana37.
A base de cálculo do IPTU é o valor venal do Imóvel. Para os autores, esta base de
cálculo do imposto municipal é inadmissível, tendo em vista que é uma presunção sobre o
valor de venda do imóvel e, se o proprietário não tem intenção alguma de vender o imóvel
ou não existe, efetivamente, qualquer operação de venda do imóvel, não haveria sentido na
base de cálculo do imposto38.
Tal apontamento é necessário, em observância a considerável e impactante importância
do imposto em análise para a municipalidade, mesmo que sua arrecadação seja relativamente
menor do que outros tributos (o ISS, por exemplo), o IPTU serve para contribuir principalmente
com o desenvolvimento das zonas urbanas. Neste sentido, observamos a situação do IPTU pro-
gressivo, que é voltado para a função social da propriedade e aproveitamento do solo urbano.
A intenção do legislador fica evidente quando observamos o art. 182, da
Constituição:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.[...] §
4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no
plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edifica-
do, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena,
sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a
propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo
Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

No município de Curitiba, o plano diretor apresenta extrema consonância com a


Constituição, trazendo à norma, de maneira expressa, o cumprimento da função social da
propriedade:

37
FISCHER, Octavio Campos; MALISKA, Marcos Augusto. Regra matriz de incidência tributária – segurança
jurídica e a base de cálculo do IPTU. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n. 3, p.
272-293, set./dez. 2017. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/1212. Acesso em: 29 out. 2022.
38
FISCHER, Octavio Campos; MALISKA, Marcos Augusto. Regra matriz de incidência tributária – segurança
jurídica e a base de cálculo do IPTU. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n. 3, p.
272-293, set./dez. 2017. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/1212. Acesso em: 29 out. 2022.
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |203

Art. 132. Em cumprimento à função social da propriedade, o Município poderá exigir


que o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado promova
seu adequado aproveitamento, sob pena de aplicar sucessivamente os mecanismos
previstos no Estatuto da Cidade, de: I - parcelamento, edificação ou utilização compul-
sórios; II - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU progressivo
no tempo; III - desapropriação, com pagamento mediante títulos da dívida pública.

O plano diretor em análise, também demonstra diretamente a necessidade de utili-


zar-se do IPTU para o a conservação e preservação do meio ambiente:

art. 65. Município estabelecerá incentivos referente ao IPTU cujos proprietários de


imóveis adotem ações e práticas de conservação e preservação do meio ambiente.
§ 1º Para fins deste artigo, entendem-se como práticas de conservação e preserva-
ção do meio ambiente em imóveis a adoção das seguintes iniciativas: a) sistema de
captação com reuso da água da chuva; b) sistema de energia solar; c) construções
com material sustentável; d) utilização de energia passiva; e) sistema de utilização de
energia eólica; f) telhado e/ou parede verde. § 2º Lei Municipal específica definirá os
incentivos, os critérios necessários à sua concessão, a forma de fiscalização e outras
iniciativas de conservação e preservação do meio ambiente pelos proprietários de
imóveis. § 3º Somente os imóveis conectados com a rede de esgoto ou sistema eco-
lógico de tratamento poderão ser beneficiados com o disposto no caput deste artigo

As normas estabelecidas de maneira expressa na Constituição, ou no plano diretor


do Município de Curitiba, são substanciais, pois constituem instrumentos para a efetiva
realização de direitos e garantias fundamentais (serviços públicos, direito à moradia, tra-
balho, lazer, dentre outros), servindo também de inspiração para a elaboração de outras
normas para o contínuo desenvolvimento social, político e econômico da região.
Para verificarmos quais são essas regras voltadas ao desenvolvimento, passamos
a expor um diagnóstico da receita de IPTU do Município de Curitiba, contido na Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO)39 e, posteriormente, tratar das renúncias estabelecidas so-
bre o imposto em análise.
Na referida lei, é estimada uma arrecadação para o ano de 2023, utilizando-se
como referência a arrecadação dos últimos cinco anos, além da inflação projetada no
período e as alterações legislativas.
Assim, o valor bruto estimado de arrecadação do Imposto sobre a Propriedade Territorial
Urbana é de R$ 1.264.872.000, enquanto a estimativa de Renúncia de Receita do IPTU, des-
contos concedidos e outras deduções somam R$ 200.883.000, fazendo a expectativa de valor

39
Curitiba, Lei 16.036, “Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária Anual para
2023 e dá outras providências”, publicada em 30 de junho de 2022.
204| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

líquido de arrecadação do imposto em R$ 1.064.000.000, o que totalizará, segundo a LDO,


um crescimento nominal de 10% em comparação com a recita provável para o ano de 2022.
Outrossim, a projeção trazida pela LDO também considera uma estimativa de arre-
cadação para multas e juros, dívida ativa, e multas e juros da dívida ativa incidente no IPTU,
o que aumenta o valor líquido de arrecadação esperado para R$ 1.195.368.000.
A projeção demonstra o importante impacto do IPTU, tendo em vista que, ao in-
formar a receita total recebida, consta o valor de R$ 10.286.123.844 para o ano de 2022.
Isto é, se a receita total estimada para o ano de 2023 se consolidar (R$ 11.030.000.00), a
receita proveniente estimada, somente relativa ao IPTU, representará grande quantia do que
poderá ser utilizado na administração pública e na garantia de diversos direitos.
É certo que a arrecadação de IPTU poderia ser ainda maior, mas conforme expli-
cam Ana Paula Costa, André Custódio Pecini e Denise Fukumi Tsunoda, existem vários
desafios para que isto ocorra:
(i) expansões e reformas, além de construções de imóveis, não registradas nas
prefeituras;
(ii) a inadimplência desse tributo;
(iii) a dificuldade dos municípios em geral na avaliação dos imóveis40.
Para os autores a solução de grande parte desses problemas poderia ocorrer por
meio da obtenção de informação, primordialmente pelas técnicas de mineração de dados
para extração de conhecimento, possibilitando um auxílio mais eficiente aos órgãos, tanto
para promover melhorias nos serviços, quanto para tomar decisões de maneira mais ágil
e com maior confiança41.
Por conseguinte, a renúncia prevista de receita do IPTU constante na LDO do
Município de Curitiba expõe detalhadamente o intuito de promover desenvolvimento social,
político e econômico em cada item. Passamos a expô-los.
As primeiras renúncias apresentadas referem-se à Lei de Incentivo à Cultura e à
Lei de Incentivo ao Esporte. Segundo a LDO, as renúncias têm estimativa de totalizar, no
ano de 2023, o valor de R$ 2.250.000 para a primeira e, R$ 12.300.000 para a segunda.
Outras isenções voltam-se diretamente para lazer, direito à moradia e função social
da propriedade, sendo:

40
COSTA, Ana Paula; PECINI, André Custódio; TSUNODA, Denise Fukumi. A descoberta de padrões por meio da
mineração de dados no IPTU de Curitiba. Revista Do Serviço Público, Brasília, v. 72, n. 4, p. 753-778, out./dez.
2021. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/6063. Acesso em: 30 out. 2022.
41
COSTA, Ana Paula; PECINI, André Custódio; TSUNODA, Denise Fukumi. A descoberta de padrões por meio da
mineração de dados no IPTU de Curitiba. Revista Do Serviço Público, Brasília, v. 72, n. 4, p. 753-778, out./dez.
2021. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/6063. Acesso em: 30 out. 2022.
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |205

(i) Imóveis Simples, de utilização exclusivamente residencial, com até 70,0m² de


área construída, e tipo simples de construção (incluídos imóveis construídos pela
COHAB ou em parceria);
(ii) Aposentados ou Pensionistas com renda de até 3 salários mínimos, proprietá-
rios de um único imóvel de uso exclusivamente residencial;
(iii) Isenção Parcial (redução de alíquota) para imóveis não edificados nos dois
exercícios subsequentes ao da expedição do alvará de construção classe A. O
total estimado de renúncia para esses itens de isenções, no ano de 2023, perfaz o
montante de R$ 15.329.000.
Ademais, consta na LDO contribuições nas áreas da saúde e meio ambiente, com:
(i) Isenção Parcial (redução de alíquota) para imóveis onde estiverem edificados e
instalados hospitais conveniados com o SUS, e;
(ii) Isenção total ou parcial para terrenos integrantes do Setor Especial de Áreas Verdes
ou que possuam árvores imunes de corte. Para a primeira, a renúncia estimada totaliza
R$ 198.000, enquanto para a segunda R$ 118.290.000, sendo a maior renúncia.
Além disto, verificamos renúncias voltadas para o incentivo do turismo e à promo-
ção da cultura:
(i) Isenção Parcial (redução de alíquota) para imóveis onde estiverem edificados e
instalados hotéis, assim considerados os estabelecimentos utilizados como meio
de hospedagem de turismo, e;
(ii) Para os imóveis considerados como Patrimônio Histórico-cultural, com estimativa
de renúncia de R$ 4.700.000 para a primeira área, e R$ 13.580.000 para a segunda.
Ainda, devemos destacar a renúncia de IPTU voltada para o desenvolvimento eco-
nômico e, conforme a própria Lei de Diretrizes Orçamentárias justifica, para “combater
a evasão fiscal” pela não emissão da nota fiscal pelos prestadores de serviço. Esta re-
núncia, que é estimada no ano de 2023 no montante de R$ 18.672.000, e é voltada aos
“Tomadores de Serviços, com a concessão de créditos originários de parcelas do ISS,
recolhido por meio de nota fiscal eletrônica, a ser abatidos do pagamento do IPTU”.
Por fim, estimula-se a adimplência do imposto, com a bonificação para pagamento à vista
do IPTU. Nesse aspecto, estima-se a renúncia de R$ 18.850.000, não sendo isto um dado muito
“preciso” na LDO em estudo, em se tratando especificamente da renúncia voltada ao IPTU, posto
que considera-se também a renúncia da Taxa de Coleta de Lixo, inserida no mesmo montante.
Cumpre salientar que todas as renúncias citadas, segundo a própria LDO, são de
caráter não geral, seguindo os parâmetros da Lei Complementar 101 de 4 de maio de 2000,
a qual estipula:

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária


da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do
206| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos


dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos
uma das seguintes condições: I - demonstração pelo proponente de que a renúncia
foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e
de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei
de diretrizes orçamentárias; II - estar acompanhada de medidas de compensação,
no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da
elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tribu-
to ou contribuição; § 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito
presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou
modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou
contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado; §
2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o
caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará
em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.

Quando observamos a utilização da receita de IPTU, seja para a própria administra-


ção pública em sua prestação de serviços, ou no estímulo ou desestímulo de um compor-
tamento, verificamos que a norma geradora de qualquer uma dessas situações encontra
uma justificativa no cumprimento e eficácia de inúmeros direitos e garantias fundamentais.
Além disto, extrai-se que a administração pública necessita continuar manejando
a utilização do IPTU e sua renúncia em prol do desenvolvimento sustentável, social, eco-
nômico, político e econômico. Para isso, sempre que encontrada tal vinculação legal, não
é possível falar de fuga de recurso, pois a utilização e a renúncia buscam satisfazer cada
vez melhor as propostas do texto constitucional, sendo avaliadas e consideradas na Lei de
Diretrizes Orçamentárias de cada administração.
Por último, é importante frisar
(i) compreende-se que a melhor utilização ou renúncia do IPTU auxilia a chamada
justiça social42, promovendo a redução nos níveis de desigualdade, e;
(ii) ainda existem muitas dificuldades na arrecadação desse imposto43, havendo,
inclusive, críticas à sua base de cálculo, o que poderia ser mais bem regulamenta-
do diante do seu considerável impacto para o ente municipal.

42
LEÃO, Celina Gontijo; FRIAS, Liconln. A importância social do IPTU e os problemas em sua gestão. Qualistas
Revista Eletrônica. v. 19, n. 1, p. 23-42, jan./mar. 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publica-
tion/326470126_A_IMPORTANCIA_SOCIAL_DO_IPTU_E_OS_PROBLEMAS_EM_SUA_GESTAO. Acesso em:
29 out. 2022.
43
COSTA, Ana Paula; PECINI, André Custódio; TSUNODA, Denise Fukumi. A descoberta de padrões por meio da
mineração de dados no IPTU de Curitiba. Revista Do Serviço Público, Brasília, v. 72, n. 4, p. 753-778, out./dez.
2021. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/6063. Acesso em: 30 out. 2022.
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba |207

5 CONCLUSÃO
A preocupação com o desenvolvimento social urbano pode ser considerada um
verdadeiro marco histórico presente no texto constitucional promulgado em 1988.
Em outras palavras, a valorização do ente federativo municipal, com a garantia de
sua autonomia, e definição da sua função fiscal, demonstram as mudanças substanciais
obtidas a partir da redemocratização.
Contudo, ao se tratar da redução das desigualdades e do potencial desenvolvimentis-
ta trazidos pela Constituição, no que tange à efetividade dos direitos e garantias fundamentais
e sociais em nossa comunidade, dificilmente é observado o desafio dos seus custos.
Assim, o agir do Estado como agente promotor dos direitos e garantias fundamen-
tais e sociais deverá ser analisado conjuntamente com o obstáculo gerado pela receita.
No que que se refere à receita, portanto, o presente trabalho procurou demonstrar
o impacto do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial e Urbana, substancialmente
como instrumento para estimular ou desestimular comportamentos por parte do contri-
buinte e, além disso, como sua renúncia no Município de Curitiba auxilia no desenvolvi-
mento social, econômico e urbano.
Conforme observamos, todas as renúncias apresentam consideráveis justificativas
e voltam-se a concretização de inúmeros direitos, propiciando uma esfera mais efetiva e
concretizadora de direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS
AFONSO, José Roberto R.; ARAUJO, Erika Amorim; NÓBREGA, Marcos Antonio Rios. IPTU no Brasil:
um diagnóstico abrangente. São Paulo: FGV Projetos; Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP),
[s.d.]. v. 4. Disponível em: https://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/iptu_no_brasil_um_
diagnostico_abrangente_0.pdf . Acesso em: 28 out 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 69. A Constituição estadual não pode estabelecer limite
para o aumento de tributos municipais. DJ de 8/7/1964. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/juris-
prudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=3629. Acesso em: 29 out. 2022.

CARDOZO, Benjamin N. The nature of the judicial process. New Haven: Yale University Press, 1921.

COSTA, Ana Paula; PECINI, André Custódio; TSUNODA, Denise Fukumi. A descoberta de padrões por
meio da mineração de dados no IPTU de Curitiba. Revista Do Serviço Público, Brasília, v. 72, n. 4, p.
753-778, out./dez. 2021. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/6063.
Acesso em: 30 out. 2022.

DANTAS, Ivo; CASTRO, Gina Gouveia Pires de. Os municípios e a federação brasileira: a importância
desses no contexto constitucional brasileiro. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; PIETRO, Maria Sylvia
208| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho

Zanella Di; MENDES, Gilmar Ferreira (coord.). Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum
Conhecimento Jurídico, 2018.

FISCHER, Octavio Campos; MALISKA, Marcos Augusto. Regra matriz de incidência tributária – segu-
rança jurídica e a base de cálculo do IPTU. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba,
v. 22, n. 3, p. 272-293, set./dez. 2017. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/
index.php/rdfd/article/view/1212. Acesso em: 29 out. 2022.

LEÃO, Celina Gontijo; FRIAS, Liconln. A importância social do IPTU e os problemas em sua gestão.
Qualistas Revista Eletrônica. v. 19, n. 1, p. 23-42, jan./mar. 2018. Disponível em: https://www.resear-
chgate.net/publication/326470126_A_IMPORTANCIA_SOCIAL_DO_IPTU_E_OS_PROBLEMAS_EM_
SUA_GESTAO. Acesso em: 29 out. 2022.

MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração.


Curitiba: Juruá, 2013.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2010.

MARTYNYCHEN, Marina. M. M. Operação urbana consorciada: uma alternativa para urbanificação das
cidades. 2007. 199f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2007. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/12289/
disserta%c3%a7%c3%a3o%20-%20marina.pdf;sequence=1. Acesso em: 14 ago. 2023.

MAZZA, Alexandre. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

PONTES, Daniele Regina; FARIA, José Ricardo Vargas de Faria. Direito municipal e urbanístico.
Curitiba: Iesde Brasil, 2012.

SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Regime jurídico do serviço público: garantia fundamental do cidadão e
proibição de retrocesso legal. 2009. 224f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2009. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/21460. Acesso em: 14 ago. 2023.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005.

SEBASTIÃO, Simone Martins. Tributo ambiental: extrafiscalidade e função promocional do direito.


Curitiba: Juruá, 2010.

SUNSTEIN, Cass R.; HOLMES, Stephen. Cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova York:
Norton, 1999.

VASCONCELOS, Rita de Cássia Côrrea de. Impenhorabilidade do bem de família: destinatários; prote-
ção legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
A TEORIA DO ESTADO MODERNO
WEBERIANO E A FORMAÇÃO DO
POPULISMO COMO MEIO INTEGRADOR
POLÍTICO OU FORMA DE RUÍNA
DEMOCRÁTICA E INSTITUCIONAL

Sthephany Patrício da Silva1

Sumário: 1. Introdução. 2. Estado moderno racional. 3. Tipos ideais, dominação carismática


e a teoria do discurso como meio de dominação. 4. Teoria da integração na racionalidade
do Estado moderno e o surgimento do populismo como meio integrador e meio de ruptura
democrática. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O estudo tem como objetivo analisar a questão do populismo em um Estado pautado em
princípios democráticos. Analisa-se a estrutura de Estado Moderno Racional na teoria de
Max Weber no sentido de que a racionalização tem como finalidade o maior rendimento e a
eficácia para o desenvolvimento. Tal racionalização se divide em três tipos: cultural, social
e da personalidade, sendo esses elementos que demonstram a racionalização da socie-
dade. Expõe-se que a comunidade política encontre espaço no Estado Moderno, deve-se
verificar a existência de quatro características em sua teoria. Ademais, explicita-se outra
característica do Estado moderno e o fundamento basilar para este. Reafirma-se que o
Direito racional pressupõe uma burocracia profissional, explicitando o conceito Weberiano
de Burocracia e demonstrando sua importância, vez que se revela como um meio pelo qual
é expressão da lei sob as ações do Estado. Explora-se o conceito de tipo ideal em Weber
e as suas classificações. Na sequência se explica os tipos de dominação em sua teoria,
dando recorte e ênfase na dominação carismática e as formas de discursos políticos na
teoria do discurso de Charaudeau. Por fim, se analisa a teoria da integração e seus tipos

1
Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia (Linha de Pesquisa Constituição e Condições Materiais
da Democracia) pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (Prosup) da
Capes. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Constitucional (Nupeconst) do PPGD do UniBrasil.
E-mail: sthephanypatricio@yahoo.com
210| Sthephany Patrício da Silva

pautados no modelo de Estado moderno constitucional democrático, dando seguimento


na forma como a integração política pode resultar no populismo e, consequentemente na
reintegração dos cidadãos como também pode dar início ao populismo que rui a própria
integração e democracia que o legitima numa sociedade plural e aberta.

Palavras chaves: Estado moderno. Tipos ideais. Populismo. Integração política.


Democracia.

1 INTRODUÇÃO
Os discursos populistas que permeiam a sociedade brasileira nos últimos anos
se apresentam de forma intrigante para entender o que constitui o Estado Moderno que o
legitima existir. Dessa forma, o artigo está estruturado no primeiro tópico na teoria webe-
riana da constituição do Estado racional moderno, os seus três tipos de racionalização, as
características dessa racionalização, explicando o que, de que forma e porque o Estado, na
teoria de Weber, é detentor do monopólio da violência.

A burocracia demonstrada como conceito de tipo puro ideal é demonstrada a sua


importância para os tipos de dominação de poder, para o governo e administração deste
Estado racional operando dentro dos limites da democracia.

Por conseguinte, no tópico dois será abordado o que são de fato os tipos ideais de
Weber, que não se apresentam de forma pura na realidade mas se criam diante a necessi-
dade heurística dos acontecimentos. Com fulcro nesses ideais, faz-se um elo com os tipos
ideais de dominação, que se apresentam na teoria de três formas, mas dando maior ênfase
na dominação carismática e como ela se utiliza dos discursos para atingir sua finalidade.

O último tópico de conteúdo propõe-se a explicar como o Estado Constitucional pau-


tado na burocracia e na racionalidade, com abertura e pluralismo, diante a teoria da integra-
ção de Rudolf Smend, por intermédio da integração política pode dar vazão à formação do
populismo frete as Instituições democráticas e ser reintegrador dos cidadãos na sociedade
ou, formar um populismo que esfacela os ideais de democracia, as instituições e o próprio
processo de integração. Faz-se uso da metodologia lógico-dedutivo, e revisão bibliográfica.

2 ESTADO MODERNO RACIONAL


A estrutura de Estado como se visualiza atualmente, dotada de pressupostos de-
mocráticos, Instituições culturais, sociais e econômicas foi trabalhada por Max Weber no
desenvolver de suas teorias ao longo de sua vida. Essa estruturação que ganha corpo na
sociedade moderna é explicada por um processo geral de racionalização. A referida racio-
nalização é consistente em uma organização da vida pelo meio racional de coordenação e
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |211

divisão das atividades, sem deixar de lado a relação entre os homens, meio social inserido
e seus instrumentos, com a finalidade de maior rendimento e eficácia, ou seja, é o desen-
volvimento prático operado pelo homem de forma técnica pela racionalidade 2.

Na obra Teoria do Agir Comunicativo (Theorie des Kommunikativen Handelns),


Habermas descreve que essa racionalização weberiana possui três tipos, sendo elas: cultu-
ral, social e a racionalização da personalidade3. Respectivamente, a racionalidade cultural
é encontrada por Weber na modernidade na arte, religião, ciência, e na técnica. A racio-
nalização da sociedade é constituída em conjunto pelo núcleo organizativo da economia
capitalista e do Estado moderno que se dá por meio de um sistema tributário, monopólio da
violência por uma administração burocrática e um central comando militar.

Segundo Habermas, são esses três elementos descritos por Weber que expressam
a racionalização da sociedade. A terceira e última racionalização identificada por Habermas
em Weber é da personalidade que, segundo o autor, nada mais é do que a conduta racional
de vida do indivíduo em sociedade, sendo também um ponto central de ligação entre as
duas outras racionalizações – cultural e da sociedade4. Marcos Maliska entende que na
racionalização da personalidade já não basta a constatação de fatores materiais, mas pas-
sa a ser necessário que o indivíduo internalize valores e ideais no meio social 5.

Segundo Maliska, a comunidade política só tem existência no Estado Moderno


diante de quatro características na teoria de Weber, sendo elas:
i) a existência de uma ordem jurídica e uma administração que só podem ser alte-
radas por normas;
ii) um serviço de administração militar que funciona com os parâmetros rígidos de
direitos e deveres;
iii) o poder Estatal monopolizado sobre todas as pessoas que se estende tanto aos
que nasceram dentro da comunidade quanto as que estão nos limites do domínio
territorial e, por fim;

2
MALISKA, Marcos Augusto. Os desafios do Estado moderno. Federalismo e Integração regional. 2003. 149f.
Tese (Doutorado) – Programa de Doutorado em Direito, Universidade Federal do Paraná (estágio de doutora-
mento na Ludwig Maximilian Universität), Curitiba, Munique, 2003. p. 30.
3
HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen handelns. Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981. p. 226.
4
HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen handelns. Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981. p.
226-227.
5
MALISKA, Marcos Augusto. Os desafios do Estado moderno. Federalismo e Integração regional. 2003. 149f.
Tese (Doutorado) – Programa de Doutorado em Direito, Universidade Federal do Paraná (estágio de doutora-
mento na Ludwig Maximilian Universität), Curitiba, Munique, 2003. p. 32.
212| Sthephany Patrício da Silva

iv) a legitimidade e legitimação para a aplicação desse Poder em consonância da


ordem jurídica, respeitando os limites territoriais de soberania6.
Outro elemento essencial das características próprias do Estado moderno, na teoria
sociológica Weberiana, é o uso e detenção da coação física. O Estado não se deixa definir
pelos seus fins, mas pelo meio específico e peculiar desta coação. Ao entender que o
Estado moderno se funda na força, na lógica da estrutura social, se o conceito de violência
se ausentar, esvai-se também o conceito de Estado7.

Num passado não muito distante, o uso da força física era visto como algo per-
feitamente normal nas instituições. Atualmente, “temos de dizer que o Estado é uma co-
munidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física
dentro de um determinado território”8. Assim como sustentado por Maliska nos itens iii
e iv, nota-se que o território é característica essencial para a existência do Estado. Essa
existência é uma condicionante do direito na modernidade do uso da força física que é
atribuída às instituições ou às pessoas (relações privadas) na medida em que esse Estado
racional permite. Segundo Weber, “O Estado é considerado como a única fonte do ‘direito’
de usar a violência”9.

Sendo o Estado o único detentor desse direito à violência, pode surgir a dúvida
sobre o que legitima essa autoridade e monopólio sob os indivíduos que coexistem dentro
e nos limites territoriais. Max Weber deixa uma resposta a essa questão em sua teoria.
Equiparando os agrupamentos políticos ao Estado nessa questão, segundo ele, estes pos-
suem “[...] três justificações interiores, e portanto legitimações, básicas do domínio”10.
Tais domínios serão mais bem explorados no tópico seguinte.

Conforme explica Maliska, há traços que se acrescentam no caráter específico do


Estado: de um lado está a racionalização do Direito e as consequências da especialização
dos poderes judiciário e legislativo e de uma polícia com deveres de proteger e assegurar
a ordem pública e a segurança dos indivíduos; por outro lado o Estado está alicerçado em

6
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 18. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
7
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 98.
8
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 98.
9
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 98.
10
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 99.
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |213

uma administração racional que está baseada em regulamentos explícitos que dão permis-
são para intervir em temas diversos11.

O Direito racional dito acima remonta numa burocracia profissional, que, conse-
quentemente, se assenta no desenvolvimento do capitalismo moderno. Isso porque essa
burocracia estatal foi meio possibilitador do desenvolvimento do capitalismo dentro do
Estado moderno e meio de manutenção para a sua funcionalidade econômica12. Diante
disso, fica claro que entender o que é Burocracia em Weber na formação do Estado mo-
derno é primordial para compreender os desdobramentos políticos de uma democracia13.

Max Weber teve uma experiência essencial na América e relacionou o papel da


burocracia em uma democracia. Segundo o autor, a “máquina política era indispensável na
democracia de massas moderna, a menos que imperassem uma democracia sem líderes
e uma confusão de línguas”14. A máquina política que Weber está a falar é a administração
da política disciplinada por uma organização partidária.

Essa formação de máquinas é vista pelo autor de uma forma dialética, ou seja, Weber
entende que a democracia deve se opor à burocracia como tendência para uma ou outra cas-
ta, que tem uma realidade distanciada das pessoas comuns com fulcro em seus certificados,
cargos e títulos, todavia o âmbito das funções administrativas, “o fim da fronteira aberta e
a limitação das oportunidades torna o sistema de despojo15, com seu desperdício público,
irregularidades e falta de eficiência cada vez mais impossível e antidemocrático”16.

Max Weber faz duas identificações: a primeira é a da burocracia com a racionalida-


de e a segunda é o “processo de racionalização com o mecanismo, despersonalização e

11
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 20. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
12
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 20. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
13
Para uma análise da ressignificação do conceito de democracia recomenda-se a leitura do seguinte artigo:
WOLKMER, Antonio Carlos; FERRAZZO, Débora. Ressignificação do conceito de democracia a partir de direi-
tos plurais e comunitários latino-americanos. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 16,
n. 16, p. 200-228, 2014. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/558. Acesso em: 20 ago. 2022.
14
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 31.
15
Despojo é o costume de distribuir os cargos públicos para as pessoas que efetivamente trabalharam para que
o partido ascendesse ao poder. O sistema de despojo se apresenta contrário ao sistema de mérito.
16
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 32.
214| Sthephany Patrício da Silva

rotina opressiva”. Nesta segunda, a racionalização é entendida por Weber como oposta ao
conceito de liberdade pessoal17.

De fato a burocracia tem grande identificação e importância com as bases do


Estado racional moderno pois, primeiramente, o domínio racional legal se expressa por
meio desta burocracia que se entende como um governo fundado na razão, oposto ao po-
der de legitimação transcendente. Ou seja, a burocracia se revela como um meio pelo qual
é expressão da lei sob o agir desse Estado que já não mais se funda no poder verticalizado,
mas se apresenta como produto inevitável da racionalidade formal da modernidade18.

No entanto, esta burocracia que Weber se propôs a formular em sua teoria da so-
ciologia política pode sofrer interpretações diversas. O autor, em sua teoria não apresentou
a burocracia como uma forma organizacional numa estrutura de sistema social, mas sus-
tentou como um tipo ideal de poder que se apresenta em formas classificadas de domina-
ção19, o que possui ligação com o monopólio da violência legítima que detém o Estado20.

A formulação de tipos ideais não é algo novo dentro das teorias, pois assim tam-
bém foi feito com o racionalismo e o capitalismo. A constituição do tipo ideal se dá por
abstração da qual as características extremas de algum fenômeno são definidas, com o
intuito de explicar e apresentar tais fenômenos em sua essência. Porém, os tipos ideais,
sem eles quais forem, tem um grande valor heurístico, mas não se apresentam com essa
forma pura na realidade21.

Tendo o próprio autor reconhecido a valoração heurística do conceito, o tipo ideal


de burocracia apresenta-se muito mais numa forma de significação da própria burocracia
do que ela realmente é. Em outras palavras, nem toda associação formal irá possuir o con-
junto das características que são incorporadas neste tipo ideal. Assim, há a possibilidade

17
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e Wright Mills.
5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 68.
18
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 25. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
19
Para novas análise de dominação estatal e democracia substantiva, vide: GALVÃO, Ciro di Benatti; DUARTE,
Luciana Gaspar Melquíades. Direitos Fundamentais, dominação estatal e democracia substantiva. Revista
Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n. 3, p. 109-129, 2017. Disponível em: https://revistaele-
tronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1078. Acesso em: 20 ago. 2022.
20
MOTTA, Fernando Prestes; PEREIRA, Luiz Bresser. Introdução à organização burocrática. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1984. p. 20.
21
WEBER, Max. Objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: COHN, Gabriel (org.). Max Weber. 7. ed.
São Paulo: Ática, 2003. p. 79-127. p.113.
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |215

de que a burocracia22 pode ser entendida como um conjunto de características de diversos


acontecimentos que se formam continuamente, gerando um grau de burocratização que
deve ser examinado ou verificado nas organizações, grupos ou sociedades racionais23.

Marcos Maliska foi pontual ao sustentar que as burocracias reais são divergentes
dos tipos puros weberianos “[...] sendo as organizações administrativas estatais as que pos-
suem o maior grau de desvio em relação ao modelo abstrato definido”24. Em análise da obra
Introdução à Sociologia Geral de Milton Bins, Maliska complementa que a administração
pública – instituições democráticas – não se separa totalmente da política, uma vez que há
grande disputa dos partidos políticos e dos grupos de interesse em integrar as instituições
por meio dos cargos públicos diante os vastos recursos de poder que lhe são propiciados25.

Essas estruturas do Estado racional moderno formuladas na teoria weberiana são


fundamentais para entender o funcionamento político e que a ausência de uma boa atuação
dos deveres de abstenção e prestação Estatal podem resultar como resposta social às
próprias instituições, como será abordado a seguir.

22
A compreensão diversa sobre o tipo ideal de Burocracia em Weber é feita por vários autores. Destaca-se aqui a
crítica feita por Alvin Gouldner sobre a efetividade e características da Burocracia. Segundo ele, Weber parece
não ver a possibilidade de variação do modelo deste tipo ideal, isto porque a aceitação da validade de uma
norma legal pode ser estabelecida mediante um acordo ou uma exposição. Conforme Gouldner, Weber parece
supor que o contexto social e cultural de uma burocracia seria neutro, não levando em consideração o modo
de introdução das normas internas (imposição ou acordo de vontades) - p. 55- Diante disso, Alvin descreve
dois tipos de burocracia diante o tipo ideal da teoria weberiana: “Weber parece ter descrito implicitamente não
um, mas dois tipos de burocracia. Um desses tipos pode ser chamado de ‘forma representativa’ da burocracia,
baseado em normas estabelecidas por acordo, regras que são tecnicamente justificadas e administradas por
pessoal especialmente qualificado… Um segundo padrão que pode ser chamado de burocracia ‘punitiva’ é ba-
seado na imposição de normas e na obediência pura e simples”, vide: GOULDNER, Alvin W. Conflitos na teoria
de Weber. In: CAMPOS, Edmundo. Sociologia da burocracia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. p. 54-62. p. 58.
23
COVOLO, Rafael. Implicações dos procedimentos burocráticos no atendimento e na cultura organizacional
da agência IAPI do Instituto Nacional Social (INSS). 2006. 66f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. p. 16. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/
handle/10183/24355. Acesso em: 14 ago. 2023.
24
MALISKA, Marcos Augusto. Os desafios do Estado moderno. Federalismo e Integração regional. 2003. 149f.
Tese (Doutorado) – Programa de Doutorado em Direito, Universidade Federal do Paraná (estágio de doutora-
mento na Ludwig Maximilian Universität), Curitiba, Munique, 2003. p. 41.
25
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 26. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
216| Sthephany Patrício da Silva

3 TIPOS IDEAIS, DOMINAÇÃO CARISMÁTICA E A TEORIA


DO DISCURSO COMO MEIO DE DOMINAÇÃO
Conforme a Sociologia política de Weber, o Estado Racional moderno tem a legiti-
midade do seu poder – aqui pode-se lembrar também do monopólio da violência legítima
e a crítica do modelo de tipo ideal de Burocracia – pautado nos três tipos de dominação
explorados pelo sociólogo, sendo eles: a tradicional, carismática e a racional legal. Pontua-
se que esses tipos de dominação são apresentados como tipos ideais26.

A dominação em si é explicitada como “a probabilidade de encontrar obediência


de forma direta ou mediante um ‘quadro’ administrativo”. O indivíduo pode obedecer de
duas formas:

[...] um hábito cego de lealdade a quem dispõe dos meios de coação, em obediência
a normas e regras imemoriais que se perdem no tempo, ou, em obediência a um
carisma pessoal que se coloca como portador de uma missão de salvação, trazen-
do uma “boa nova” e reunindo um séquito de companheiros em torno de si com a
exortação “Está escrito, mas em verdade vos digo”27.

A dominação racional legal tem fundamento na burocracia em seu tipo puro. Este
tipo de dominação é típico do Estado moderno. Sendo assim, todo direito é válido pelo seu
fundamento em um procedimento racional, independente se for estabelecido por outorga ou
convenção. O conjunto de regras forma uma abstração de normas, técnicas, prescrições,
cabendo a aplicação dessas regras gerais aos casos particulares por meio do Judiciário,
enquanto a administração tem por finalidade a proteção dos interesses no delimitar dessas
regras28. Tanto as instâncias superiores quanto o próprio Presidente eleito estão vinculados
a essa ordem do direito impessoal e genérico e, consequentemente, suas ações devem ser
orientadas por ela. Segundo Marcos Maliska, “Os membros do agrupamento só obedecem
ao direito e são chamados cidadãos, isto quer dizer que não são obrigados a submeter-se
senão nas condições previstas pela lei”29.

26
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 22. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
27
WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
p. 39.
28
WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
p. 40.
29
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 24. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |217

Por conseguinte, o domínio tradicional tem fundamento nas crenças no divino e nas
santidades das tradições e na legitimidade dos que estão no poder ou recebem o poder em
nome do costume. Essa autoridade, não é democraticamente eleita por meio do sufrágio,
mas sim pela linhagem de outro homem que já está no poder em razão do costume, como
é o caso da primogenitura ou linhagem real monárquica. O poder legitima um reino a título
pessoal e a obediência é direcionada a pessoa, tornando-se um ato de piedade. Os indiví-
duos que estão sob a égide desse governo passam a ser súditos que devem obediência às
normas legitimadas pelo poder do domínio tradicional do Soberano. Todavia, alerta Maliska
que “a tradição não é assimilável ao puro arbítrio, pois se o soberano a viola, arrisca-se a
provocar uma resistência que, certamente, não visa ao sistema, mas sim a sua pessoa ou
a seus favoritos”30.

O que mais interessa pontuar aqui é o terceiro tipo de dominação trabalhado por
Weber nomeado de dominação carismática. O autor explica que a transmissão do carisma
pode se dar de duas diferentes formas, pela heredição ou se apresentar como tipo puro. O
carisma hereditário ocorria em monarquias no período absolutista, onde a qualificação ca-
rismática era encontrada e legitimada pela linhagem “sanguínea”. A dominação carismática
ocorre em seu tipo puro quando há reconhecimento pelos que o escutam e então decidem
o acompanhar. Weber pontua e diferencia que este tipo de dominação “[...] caracteriza-se
pela instabilidade, enquanto a dominação burocrática tem seu forte na estabilidade”31.

Weber entende que o sujeito carismático que apresenta esse tipo de dominação é
qualitativamente singular, pois seu carisma emerge de fatores comportamentais, internos
e psicológicos, o que não torna possível classificar determinados padrões da ação caris-
mática32. Tal sujeito assume objetivos estruturando tarefas e passa a requerer adesão e
obediência do que considera como missão. O êxito do indivíduo carismático passa a ser
condicionado à capacidade de passar seus valores e princípios aos que aderiram às pautas
(subordinados) da sua “missão”. Se os ouvintes não reconhecem essas pautas como
legítimas, o indivíduo se encontra em fracasso. Ao ponto que estes lhe dão o devido reco-
nhecimento, o tornam senhor deste grupo ou movimento enquanto o indivíduo conseguir
manter este reconhecimento33.

30
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba,
v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. p. 23. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/view/14830.
Acesso em: 13 ago. 2023.
31
WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
p. 42.
32
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade
de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. v. 2. p. 324.
33
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade
de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. v. 2. p. 324-326.
218| Sthephany Patrício da Silva

Nas categorias discursivas sustentadas por Patrick Charaudeau, os discursos polí-


ticos que possuem maior aderência pelos indivíduos nesses últimos anos, demonstra ser
34

uma conjuntura de gênero e espécie das categorias denominadas pelo autor como discurso
propagandístico e discurso promocional. O autor explica que uma das características do
discurso propagandístico é a finalidade de gerar estímulo aos cidadãos para crerem em
uma esfera coletiva, o que habitualmente utiliza os meios de difusão em massa 35.

Não obstante, a construção da narrativa é formulada com a finalidade de causar


uma falta do significante comum de um tipo ideal, gerando a busca de um meio para que
se alcance o objeto idealizado faltante, o que acaba por gerar uma vontade/necessidade ao
indivíduo de aderir a pauta discursiva. A segunda categoria discursiva, nominada de pro-
mocional, sendo também é espécie do gênero primeiro, se sustenta através da legitimidade
de princípios morais, estruturando todo o discurso na finalidade de reparar uma desordem
ou um problema social para promover o bem coletivo36.

Conforme explica Antonio Silva e Antonio Neto, esse reconhecimento da domina-


ção carismática para esse líder se fundamenta em um poder/capacidade de entrega irreal
do extraordinário:

A dominação carismática genuína desconhece disposições jurídicas, regulamentos


abstratos e a jurisdição formal. Seu direito objetivo é o resultado concreto da vivên-
cia extremamente pessoal de graça celestial e força heroica semelhante àquela dos
deuses, e significa renúncia ao compromisso com toda ordem externa em favor da
glorificação exclusiva do autêntico espírito profético e heroico. Por isso, manifesta-
-se de maneira revolucionária, invertendo todos os valores e rompendo de forma
soberana com todas as normas tradicionais ou racionais, segundo o princípio: está
escrito, mas eu vos digo37.

34
Para uma análise do mentor do pluralismo político no Estado Moderno, se indica a seguinte leitura: MEDER,
Stephan. Último gênio universal ou o primeiro pensador global? Leibniz como mentor do pluralismo político.
Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 24, n. 1, p. 5-25, 2019. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1552. Acesso em: 21 ago. 2022.
35
CHARAUDEAU, Patrick. O discurso propagandista: uma tipologia. In: MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato.
Análises do discurso hoje. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna), 2010. p. 57-78. Disponível em: http://
www.patrick-charaudeau.com/O-discurso-propagandista-uma.html. Acesso em: 17 ago. 2022.
36
CHARAUDEAU, Patrick. O discurso propagandista: uma tipologia. In: MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato.
Análises do discurso hoje. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna), 2010. p. 57-78. Disponível em: http://
www.patrick-charaudeau.com/O-discurso-propagandista-uma.html. Acesso em: 17 ago. 2022.
37
SILVA, Antonio dos Santos; CARVALHO NETO, Antonio. Uma contribuição ao estudo da liderança sob a ótica
weberiana de dominação carismática. Revista de Administração Mackenzie, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 20-47,
dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ram/a/jhfNT9fCSqrjNPn8rtNdzzC/. Acesso em: 14 ago. 2023.
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |219

Tratando-se da dominação carismática se faz um elo de ligação do reconhecimento


desses líderes pela utilização do discurso. Nesta lógica, o discurso político possui uma
lógica binária, sendo simbólico por parte da representação de um projeto de “sociedade
ideal”, que emerge os valores que se pretende assumir, e um pragmatismo que se dá atra-
vés de explicação dos meios que serão utilizados para reafirmar ou concretizar os valores
dessa sociedade ideal38.

Na finalidade de captar o maior número de sujeitos desejantes para fazer parte do


eleitorado, o discurso político coloca em ideal de objeto que venham representar determi-
nados valores39 que correspondem com as inquietações do público-alvo ao qual se dirige.
Nesta venda de objeto ideal a finalidade não é necessariamente explicar as ações que serão
tomadas ou, até mesmo, se há viabilidade para tornar real o objeto idealizado, mas sim
buscar reconhecimento dos indivíduos no objeto, gerando afeição que refletirá nos ideais
do Eu nos cidadãos. Os meios utilizados para essa captação se dão através de representa-
ções e imagens, evocando mitos ao imaginário que reverberam no espaço social40.

É a partir dessa narrativa que se pode dizer que o discurso político é predominante-
mente persuasivo, pois o cumprimento do seu objetivo em captar o maior número cidadãos
às suas proposições, o sujeito discursante se coloca na posição de poder para a realização
das promessas feitas e persuadi-los pela afeição e compartilhamento dos mesmos princí-
pios e valores como indivíduo41.

Então, quando a massa está formada ela se torna volúvel, excitável, impulsiva,
sente-se onipotente, não suporta o tempo entre seu desejo e a realização, e não aceita a
impossibilidade, sendo a noção da impossível jogada ao vento pelo indivíduo na massa,
diante a realização do seu desejo. Ainda, segundo Freud:

A massa é extraordinariamente crédula e influenciável, é acrítica, pensa em imagens


que evocam umas às outras associativamente [...] e não têm sua coincidência com
a realidade por uma instância razoável. Ao se reunirem os indivíduos numa massa,

38
CHARAUDEAU, Patrick. O discurso propagandista: uma tipologia. In: MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato.
Análises do discurso hoje. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna), 2010. p. 57-78. Disponível em: http://
www.patrick-charaudeau.com/O-discurso-propagandista-uma.html. Acesso em: 17 ago. 2022.
39
Um exemplo desses valores postos no discurso político pode ser encontrado no seguinte artigo: WERMUTH,
Maiquel Angelo Dezordi; NIELSSON, Joice Graciele. “Pela minha família, por Deus e pelo fim da corrupção”:
notas sobre o patrimonialismo na política brasileira contemporânea e a falência do Estado Democrático de
Direito. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n. 1, p. 46-79, 2017. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/870. Acesso em: 20 ago. 2022.
40
CHARAUDEAU, Patrick. O discurso propagandista: uma tipologia. In: MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato.
Análises do discurso hoje. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna), 2010. p. 57-78. Disponível em: http://
www.patrick-charaudeau.com/O-discurso-propagandista-uma.html. Acesso em: 17 ago. 2022.
41
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006. p. 78.
220| Sthephany Patrício da Silva

todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis, brutais,
destrutivos, que dormitam no ser humano, como vestígio dos primórdios do tempo,
são despertados para a livre satisfação instintiva42.

Diante das características nota-se que o estado de natureza é aflorado de tal


forma que o indivíduo que está inserido como parte na formação de massa não se utiliza
do uso da razão, consequentemente não consegue ter um olhar crítico sobre o que está
inserido. Pode-se dizer que o indivíduo na massa não é o sujeito kantiano, pois é persu-
adido e não convencido.

4 TEORIA DA INTEGRAÇÃO NA RACIONALIDADE DO ESTA-


DO MODERNO E O SURGIMENTO DO POPULISMO COMO
MEIO INTEGRADOR E MEIO DE RUPTURA DEMOCRÁTICA
O Estado moderno possui uma racionalidade que atualmente se funda no consti-
tucionalismo. Segundo Marcos Maliska, a existência de uma Constituição que comporte
abertura, integração e cooperação, só é possível com a existência de uma unidade política.
O autor, em sua obra Fundamentos da Constituição, apresenta e trabalha com a teoria da
integração de Rudolf Smend, que foi desenvolvido diante os pressupostos de uma teoria da
Constituição. Nas palavras de Maliska “A Constituição cumpre uma função integradora do
Estado, que se constitui, por sua vez, em uma união de vontade”43.

A teoria da Integração é entendida e defendida por Smend como um processo fun-


damental da dinâmica estatal. Isso se dá com a justificativa de que o objeto tanto do Estado
como do Direito Constitucional possui uma parcela de realidade espiritual. Nas palavras de
Rudolf Smend:

[...] o Estado não constitui como tal uma totalidade imóvel, cuja única expressão
externa consiste em expedir leis, acordos diplomáticos, sentenças ou atos adminis-
trativos. Se o Estado existe, é unicamente graças a estas diversas manifestações,
expressões de uma estrutura espiritual e, de um modo mais decisivo, através das
transformações e renovações que tem como objeto imediato dita estrutura inteli-
gível. O Estado existe e se desenvolve exclusivamente neste processo de contínua
renovação e permanente revivescência; utilizando aqui a célebre caracterização da
Nação de autoria de Renan, o Estado vive de um plebiscito que se renova a cada dia.

42
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 25-26.
43
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 95.
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |221

Para esse processo, que é o núcleo substancial da dinâmica do Estado, propôs já


em outro lugar a denominação de integração44.

O conceito de integração da obra de Smend tem por significação de uma configu-


ração da comunidade45. A eficácia integradora na teoria está condicionada à existência
de uma comunidade de valores que se mantém a salvo da luta política e, por isso, não
é questionada por ela. Nesta teoria, Smend demonstra que a integração da realidade se
apresenta em três tipos ou processos, sendo eles: Integração pessoal, integração funcional
e integração fática46.

A integração pessoal implica na organização de uma comunidade decorrente da


posição pessoal de liderança por meio das pessoas que a dirigem de forma política, de
modo a formar uma unidade política. Aqui se identifica os fenómenos de formação de
vontade e representação que são íntimos do processo político47.

Já a integração funcional se materializa nas formações de governos, pleitos eleito-


rais e eleições, sendo caracterizado pelas votações em geral cuja finalidade é formar um
sentido coletivo. Smend assim explica:

O característico dos processos integradores de uma comunidade determinada re-


side em que ditos processos são geralmente processos que produzem, atualizam,
renovam ou desenvolvem a substância espiritual da comunidade, que é precisa-
mente o que constitui seu conteúdo objetivo. Na vida política são, portanto, funda-
mentalmente processos de conformação da vontade comunitária. Entretanto, isso
não deve ser entendido – ao menos, não exclusivamente – em um sentido jurídico,
é dizer, como se se tratasse de um negócio jurídico em sua acepção mais ampla,
senão no sentido de uma contínua restauração da comunidade política como agru-
pamento de vontades, isto é, da permanente criação das condições necessárias

44
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1985. p. 62-63.
45
Tal afirmação se deu diante interpretação da seguinte passagem “A los tipos de integración que consisten
en momentos formales (personales y funcionales) analizados hasta ahora, se oponen radicalmente aquellos
tipos de configuración de la comunidad que se basan en valores comunitarios sustantivos” (SMEND, Rudolf.
Constitución y derecho constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1985. p. 93).
46
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1985. p. 70.
47
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1985. p. 71-72.
222| Sthephany Patrício da Silva

para as sucessivas atualizações – incluindo especialmente as de tipo jurídico – da


comunidade política como comunidade de vontades48.

Conforme Ernesto Laclau, quando há um conjunto de demandas bem pontuais


que as Instituições não conseguem atender, e essas demandas encontram um significante
comum projetado por uma demanda política, consequentemente ganha-se expressão polí-
tica, resultando no nascimento de um populismo. Em outras palavras, o populismo é uma
reação ao funcionamento inadequado dessas Instituições49.

O último tipo nomeado de integração fática é dependente do reconhecimento da


dependência recíproca entre a existência política e os valores de uma comunidade, pois
sem estes valores entende-se que não há a constituição de comunidade. Desta forma,
neste processo de integração os símbolos políticos constituem, segundo Smend, a “repre-
sentação dos valores históricos que possuem vigência atual”, os quais são as bandeiras,
os Chefes de Estado, festas nacionais, cerimônias políticas etc.50.

Maliska entende que a teoria de Smend é auxiliadora para compreender as condições


para a integração política. Segundo ele, “os três tipos de integração são instrumentos ainda
válidos para se pensar em que medida e de que maneira é possível alcançar os níveis neces-
sários de integração política” de forma a manter as diferenças culturais e sociais coexistentes
numa sociedade plural. Isto porque a integração política precisa da substância social para
acontecer, não sendo possível sua ocorrência diante um vínculo meramente formal51.

A teoria política de Smend possui um duplo significado diante da análise de Maliska,


pois esta “[...] se identifica com a função tradicional já desempenhada pela Constituição: a
de promover a integração política interna, estender a cidadania democrática a todos aque-
les que estão sob a sua jurisdição” além de “promover a equalização das condições de
vida no espaço do território nacional. Aqui, o internaliza a noção de cidadão agrupando-se
a uma unidade política, gerando o sentimento de pertencimento e valores dessa integra-
ção52. A outra face desta análise é entendida pelo autor, diante o contexto de abertura para

48
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1985. p. 80.
49
LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três
Estrelas, 2013. p. 21.
50
SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1985. p. 96-97.
51
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 97.
52
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 97
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |223

fora da Constituição como o processo de integração política internacional dos países - não
sendo tema de aprofundamento no presente artigo.

Pautado pela teoria de Ernesto Laclau, Maliska sustenta que o populismo não é
algo ruim como muitos autores defendem, mas é apenas algo inerente à democracia, pois
essa expressão política dada pelo populismo dá voz às demandas não atendidas pelas
instituições de forma a reintegrá-las politicamente. Deste modo, quando o populismo se
apresenta dessa forma integrativa, o populismo é um meio fortalecedor da democracia53.

A título complementar, na obra Como as democracias morrem, os autores de-


monstram por análise empírica que a subversão da democracia ocorre por meio de medida
com finalidade de selo nobre intencional, sendo eles: combate à corrupção, manutenção da
ordem e segurança nacional frente a um ataque comunista, conscientização e integração
que não sejam do mesmo viés moral conservador, supressão das ideias e políticas públi-
cas de informação que pairam contra os significantes comuns defendidos54.

Tais medidas ocorrem de forma gradativa, na maioria das vezes, com início atra-
vés de discursos polarizadores e medidas simbólicas na finalidade de construir a ideia de
ilegitimidade dos opositores. Posteriormente, busca-se a captura ou neutralização de ins-
tituições de controle como as Cortes Superiores, Tribunais de Contas, Procuradorias para
retirar os seus membros mais independentes e possa preencher, na tentativa de substitui-
ção, seus aliados fanáticos. Segundo o procedimento, isso diminui as limitações e riscos
que essas instituições democráticas representam aos objetivos autocratas55.

Quando o populismo se apresenta com essas demandas do significante comum,


tanto por parte do líder carismático, quanto por parte de seus súditos, pautando-se contra
os ideais democráticos, dos direitos e garantias fundamentais, o populismo torna-se algo
efetivamente ruim, pois atenta contra a própria democracia e integração política. O populis-
mo extremo seria uma mobilização política sem finalidade de transformação institucional56.

53
MALISKA, Marcos Augusto. Populism, democracy and the rule of law in today´s Brazil. In: KIRSTE, Stephan;
PAULO, Norbert (org.). Populism: perspectives from legal philosophie. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2021. v.
167. p. 233-245. p. 236.
54
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2018. p. 63
55
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2018. p. 64.
56
MALISKA, Marcos Augusto. Populism, democracy and the rule of law in today´s Brazil. In: KIRSTE, Stephan;
PAULO, Norbert (org.). Populism: perspectives from legal philosophie. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2021. v.
167. p. 233-245. p. 236.
224| Sthephany Patrício da Silva

Dos sujeitos integrantes do populismo, seja o líder ou os cidadãos, é importante


ressaltar que o movimento mesmo sendo inerente à democracia também encontra limites
na dominação racional legal de Weber.

5 CONCLUSÃO
A pesquisa analisou a estrutura, legitimação e poder do Estado Racional Moderno
na teoria proposta por Max Weber. Destacando a importância da burocracia e das formas
de legitimação do poder estatal. Os tipos ideais formulados por Weber são de suma im-
portância para entender o que hoje acontece dentro dos discursos sociais e políticos, nas
pautas levantadas pelos movimentos sociais e os métodos que são utilizados na teoria do
discurso para se atingir a finalidade de persuasão ao objeto vendido.

Dentro do Estado constitucional é possível visualizar a teoria da integração de


Rudolf Smend que, em sua integração política apresenta um caminho para a formação do
populismo pela ausência de prestação das Instituições para os indivíduos que incorporam
a noção de cidadania. O populismo pode se dar como forma integradora dessa política e
cidadania democrática, como pode se dar sem propósito modificativo institucional para as
demandas com significante comum, levantando pautas que ferem a própria democracia e
o processo de integração legitimado pela ordem constitucional aberta.

REFERÊNCIAS
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006.

CHARAUDEAU, Patrick. O discurso propagandista: uma tipologia. In: MACHADO, Ida Lucia; MELLO,
Renato. Análises do discurso hoje. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna), 2010. p. 57-78.
Disponível em: http://www.patrick-charaudeau.com/O-discurso-propagandista-uma.html. Acesso
em: 17 ago. 2022.

COVOLO, Rafael. Implicações dos procedimentos burocráticos no atendimento e na cultura organiza-


cional da agência IAPI do Instituto Nacional Social (INSS). 2006. 66f. Trabalho de conclusão de curso
(Graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: https://
lume.ufrgs.br/handle/10183/24355. Acesso em: 14 ago. 2023.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GALVÃO, Ciro di Benatti; DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades. Direitos Fundamentais, dominação
estatal e democracia substantiva. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n. 3,
p. 109-129, 2017. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/1078. Acesso em: 20 ago. 2022.
A teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo... |225

GOULDNER, Alvin W. Conflitos na teoria de Weber. In: CAMPOS, Edmundo. Sociologia da burocracia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. p. 54-62.

HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen handelns. Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1981.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo:
Três Estrelas, 2013.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018.

MALISKA, Marcos Augusto. Populism, democracy and the rule of law in today´s Brazil. In: KIRSTE,
Stephan; PAULO, Norbert (org.). Populism: perspectives from legal philosophie. Stuttgart: Franz
Steiner Verlag, 2021. v. 167. p. 233-245.

MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração.


Curitiba: Juruá, 2013.

MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o Estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR,
Curitiba, v. 1, n. 1, p. 15-28, ago./dez. 2006. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cejur/article/
view/14830. Acesso em: 13 ago. 2023.

MALISKA, Marcos Augusto. Os desafios do Estado moderno. Federalismo e Integração regional.


2003. 149f. Tese (Doutorado) – Programa de Doutorado em Direito, Universidade Federal do Paraná
(estágio de doutoramento na Ludwig Maximilian Universität), Curitiba, Munique, 2003.

MEDER, Stephan. Último gênio universal ou o primeiro pensador global? Leibniz como mentor do
pluralismo político. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 24, n. 1, p. 5-25,
2019. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1552.
Acesso em: 21 ago. 2022.

MOTTA, Fernando Prestes; PEREIRA, Luiz Bresser. Introdução à organização burocrática. 4. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1984.

PINHEIRO, Jair; PARAIZO, Maria Angélica. Populismo e autonomia relativa do Estado. Revista de
Políticas Públicas, v. 24, n. 2, p. 672-688, 2020. Disponível em: http://periodicoseletronicos.ufma.br/
index.php/rppublica/article/view/13418. Acesso em: 14 ago. 2023.

SAINT-PIERRE, Héctor L. Max Weber. Entre a paixão e a razão. Campinas: Ed. da Unicamp, 1994.

SILVA, Antonio dos Santos; CARVALHO NETO, Antonio. Uma contribuição ao estudo da liderança sob
a ótica weberiana de dominação carismática. Revista de Administração Mackenzie, São Paulo, v. 13,
n. 6, p. 20-47, dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ram/a/jhfNT9fCSqrjNPn8rtNdzzC/.
Acesso em: 14 ago. 2023.

SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Traducción de José María Beneyto Pérez.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985.
226| Sthephany Patrício da Silva

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora


Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. v. 2.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Organização de Hans Gerth e
Wright Mills. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2001.

WEBER, Max. Objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: COHN, Gabriel (org.). Max
Weber. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 79-127.

WERMUTH, Maiquel Angelo Dezordi; NIELSSON, Joice Graciele. “Pela minha família, por Deus e pelo
fim da corrupção”: notas sobre o patrimonialismo na política brasileira contemporânea e a falência
do Estado Democrático de Direito. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n.
1, p. 46-79, 2017. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/870. Acesso em: 20 ago. 2022.

WOLKMER, Antonio Carlos; FERRAZZO, Débora. Ressignificação do conceito de democracia a partir


de direitos plurais e comunitários latino-americanos. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, 2014. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/
index.php/rdfd/article/view/558. Acesso em: 20 ago. 2022.
AUTORITARISMO, PODER MODERADOR
E A INCUMBÊNCIA DE DEFESA DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Dillings Barbosa Maquiné1


Paulo César de Lara2

Sumário: 1. Introdução. 2. O autoritarismo como marca persistente no passado e


no presente da cultura política brasileira. 3. O judiciarismo como manifestação do
autoritarismo do judiciário de cúpula. 4. A defesa do Estado democrático de Direito no
sistema constitucional brasileiro. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
Discute-se a incumbência constitucional de defesa do Estado Democrático de Direito no
âmbito do desenho institucional da Separação de Poderes e em face do legado de autori-
tarismo no Brasil. Parte-se da premissa de que a história política da civilização brasileira
e da formação do Estado nacional é marcada por sucessivas formas de regimes autocrá-
ticos. Inicialmente, o autoritarismo se manifestou no controle e monopólio da monarquia
absolutista portuguesa sobre a Colônia do Brasil. No Império, o autoritarismo foi despótico,
representado pela figura do Monarca, que exercia o Poder Moderador, acumulando também
o exercício do Poder Executivo. Na República, ele foi representado pelo militarismo, com a
expansão e predomínio do Executivo sobre os demais Poderes e a supressão ou redução
dos espaços democráticos. Atualmente, assiste-se à escalada judiciarista, protagonizada
pelo Judiciário de cúpula. O Supremo Tribunal Federal tem arrogado a si a função de Poder
Moderador, de tutor último da institucionalidade, o que, na prática, tem se traduzido em au-
toritarismo judicial e estado de exceção. Adotou-se a pesquisa bibliográfica, utilizando-se
como método de abordagem o dedutivo, e como de procedimento, o hermenêutico. Ao fi-

1
Doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Graduado em Direito e em
História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor universitário. Servidor de carreira do
Ministério Público do Estado do Amazonas. E-mail: dillingsmaq@gmail.com
2
Doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor de Direito das Relações
Sociais da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: paulocesardelara@gmail.com
228| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

nal, afirma-se que a defesa da ordem constitucional-democrática – conforme interpretação


sistemática e teleológica – recai igualmente aos três Poderes – harmônicos, independentes
e colaborativos entre si –, e não apenas ao Judiciário, não existindo na atual ordem consti-
tucional a atribuição de Poder Moderador ao Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Autoritarismo. Constitucionalismo democrático. Judiciarismo. Poder mo-


derador. Supremo Tribunal Federal.

1 INTRODUÇÃO
Hodiernamente, o Brasil integra o grupo de países que adotaram o constitucio-
nalismo e a democracia como as melhores opções, historicamente comprovadas, de or-
ganização política e exercício equilibrado do poder, em face das diversas manifestações
autocráticas que a humanidade já vivenciou. Uma rápida análise do processo histórico da
civilização brasileira demonstra que o autoritarismo é uma constante na cultura política
nacional nesses últimos quinhentos anos. A busca contínua pela autonomia, pela autode-
terminação rememora o sonho hegeliano da liberdade. O poder precisa ser contido para
que a liberdade possa florescer e se desenvolver.

A presente reflexão se ocupa de analisar a relação entre o autoritarismo e a separa-


ção de poderes no âmbito do constitucionalismo democrático brasileiro questionando-se,
ao final, a quem cabe o ônus de defender o Estado Democrático de Direito. Nessa discus-
são, a figura do Poder Judiciário ganha relevo, já que o sistema político-jurídico nacional o
reconhece como o guardião da Constituição.

Inicialmente, far-se-á um retrospecto histórico cujo intuito é demonstrar a persis-


tência do autoritarismo na cultura política pátria, primeiro como legado da colonização por-
tuguesa, marcado pela autocracia do absolutismo monárquico; num segundo momento, na
fase imperial e já obtida a emancipação em relação à Coroa portuguesa, ele se manifestará
no caráter despótico do Poder Moderador e no centralismo do governo imperial; depois,
na Era Republicana, pelo militarismo; e, por último, pelo judiciarismo, com o exacerbado
protagonismo político do Supremo Tribunal Federal (STF). Em seguida, analisar-se-á de-
tidamente o autoritarismo que o STF tem manifestado especialmente nos últimos quinze
anos, quando passou a arrogar a si a condição de tutor da estabilidade do sistema polí-
tico-institucional, colocando-se acima dos demais poderes e atribuindo a si a função de
Poder Moderador, de fiador do Estado Democrático de Direito. Por último se discutirá a
quem incumbe a defesa do Estado Democrático de Direito, segundo o desenho institucional
traçado na Constituição de 1988, perquirindo-se acerca da existência do Poder Moderador
na atual ordem constitucional.
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |229

Para compor a presente reflexão, adotou-se a pesquisa bibliográfica, utilizando-se


como método de abordagem o dedutivo, e como método de procedimento, o hermenêu-
tico. Ao final, afirma-se que inexiste poder moderador na atual ordem jurídica brasileira, e
que o encargo da defesa da ordem constitucional-democrática – conforme interpretação
sistemática e teleológica da Constituição de 1988 – recai igualmente aos três Poderes da
República, já que harmônicos, independentes e colaborativos entre si.

2 O AUTORITARISMO COMO MARCA PERSISTENTE NO


PASSADO E NO PRESENTE DA CULTURA POLÍTICA
BRASILEIRA
O desenho institucional brasileiro hodierno confirmou a República como forma de
governo e a democracia como regime político, ratificando também a opção histórica pelo
federalismo como forma de Estado3. E, seguindo o paradigma liberal predominante no
Ocidente, o sistema político-jurídico nacional reconhece a soberania popular como a fonte
legitimadora do poder, estabelecendo que seu exercício se realiza por meio das diversas
competências atribuídas ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário (Parágrafo único do
art. 1º e art. 2º, ambos da CF/88)4.

Importante destacar que a adoção do sistema de tripartição de Poderes no Brasil


é opção política tomada no âmbito da experiência constitucional republicana, iniciando-se
em 1889 e projetando-se até a atualidade. Originalmente, no processo de formação do
Estado Nacional brasileiro (séc. XIX), vigorou o sistema quadripartido, de inspiração libe-
ral. Nesse período, em que se assistiu à efervescência dos ideais liberais, racionalistas e
positivistas, a Europa e a América passaram por importantes transformações no campo da
cultura, da política, da economia e da geopolítica. Foi nesse contexto de mudanças para-
digmáticas que o Brasil se tornou independente de Portugal (1822) e iniciou o processo de
consolidação como Estado Nacional soberano.

Inicialmente, adotou-se no Brasil o modelo monárquico herdado da tradição lusa,


com a primeira constituição brasileira sendo outorgada por Dom Pedro I, em 1824, o qual
também, sob o título de Dom Pedro IV, Rei de Portugal, outorgou a Carta Constitucional

3
Conforme se infere da literalidade do Art. 1º, caput, da Constituição Federal – CF/88,
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]:
4
Art. 1º Omissis.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
230| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

portuguesa de 18265, muito assemelhada à brasileira em sua estrutura e ideologia.


Embora estabelecesse a separação de Poderes e reconhecesse as liberdades civis funda-
mentais, a Carta Imperial brasileira desenhava um modelo de governo centralista, compor-
tando evidente contradição ideológica entre liberalismo e absolutismo. Ela inovou com a
adoção do Poder Moderador – a cargo do Imperador –, formalmente situado ao lado dos
demais Poderes, mas com a atribuição precípua de garantir a harmonia e o equilíbrio entre
eles, devendo ser acionado para dirimir eventuais conflitos. Conforme previa o art. 102, o
Monarca brasileiro também acumulava a atribuição de Chefe do Poder Executivo, o que se
traduzia em mais uma evidência do caráter autocrático da Carta Imperial.

A garantia da estabilidade político-institucional estava, então, confiada à pessoa do


Imperador, ostentando o Monarca o título de Defensor Perpetuo do Brazil, consoante pres-
creviam os Arts. 98 e 99 da Carta do Império. As atribuições constitucionais decorrentes do
Poder Moderador, conforme previa o art. 101, outorgavam ao Monarca o poder de intervir
no Legislativo (poder de livre nomeação dos Senadores; de convocar a Assembleia Geral;
de dissolver a Câmara dos Deputados; de sanção e veto dos atos legislativos da Assembleia
Geral e de suspensão dos atos dos Conselhos Provinciais); sobre o Executivo (poder de no-
mear e demitir os ministros de Estado, sendo que a chefia deste poder cabia ao Imperador;
poder de conceder anistia a condenados – indulto/graça); e sobre o Judiciário (poder de
suspender magistrados; de conceder perdão a condenados e de rever suas penas)6.

5
Conforme anotado por Currito, “Com a morte de D. João VI em 1826 (e já com a Proclamação da Independência
do Brasil em 1822), punha-se o problema da sucessão, nomeadamente de D. Pedro ‘Imperador do Brasil e
Príncipe Real de Portugal e Algarves’, solução que não agradava a brasileiros e portugueses, por junção dos
Reinos”. O autor acrescenta que, conforme assinalado por Marcello Caetano (Manual de Ciência Política e
Direito Constitucional. 4. ed. Lisboa: Coimbra Editora, 1963, p. 350-351) “O Imperador procurou, por isso,
uma solução política que se lhe afigurou hábil: para dar satisfação aos anseios liberais, já muito espalhados
em Portugal, deliberou outorgar, primeiro, no pleno exercício das suas prerrogativas régias, uma Constituição
à Monarquia Portuguesa (29 de Abril de 1826); seguidamente (2 de Maio) abdicou em sua filha D. Maria da
Glória, sob a condição de ela casar com o tio, D. Miguel, e de ser posta em vigor a Carta Constitucional”
(CURRITO, Eduardo. Constituições portuguesas e Constituição Europeia. Lisboa: Universidade Católica
de Lisboa, 2003. Disponível em: https://www.academia.edu/10387024/CONSTITUI%C3%87%C3%95ES_
PORTUGUESAS_E_CONSTITUI%C3%87%C3%83O_EUROPEIA. Acesso em: 22 nov. 2022).
6
Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824,
Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador
I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43.
II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o
bem do Imperio.
III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.
IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87. (Vide
Lei de 12.10/1832)
V. Prorrogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o
exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua.
VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado.
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |231

O maior teórico do poder moderador, o franco-suíço Benjamin Constant (1767-


1830), que inspirou fortemente o constitucionalismo monárquico brasileiro, entendia ser
insuficiente o modelo tradicional de tripartição de Poderes idealizado por Montesquieu e
descrito na obra O Espírito das Leis (1748)7. Conforme esclarece Ferreira, Constant con-
cebia o Poder Moderador como poder real ou poder neutro, que modifica a ação de outros
poderes, sem nunca exercer as suas próprias funções, sendo essa, afinal, a diferença
fundamental entre monarquia absoluta e monarquia constitucional.

A teoria de Benjamin Constant foi originalmente uma resposta aos erros da


Revolução [Francesa] e às deficiências das constituições modernas. Percebendo as
insuficiências da implementação da separação de poderes, pretendeu instituir um
mecanismo regulador, estritamente confinado à esfera constitucional e, portanto,
excluído da luta política; ele queria, assim, dar à luz um quarto poder dotado de uma
natureza ou, para usar o vocabulário da revista liberal francesa La Minerve, com a
qual colaborou, uma metafísica que lhe seria própria8.

Nesse sentido, a teoria política de Constant se posiciona não só contra o autorita-


rismo característico do absolutismo, mas também contra os excessos jacobinos ocorridos
no período pós-revolucionário9. Daí advém a sua preocupação em que existisse um poder
neutro, que seria acionado quando houvesse conflito entre os demais, que pudesse intervir
para restaurar a harmonia e que com eles não se confundisse. No caso do constituciona-
lismo imperial brasileiro, houve um distanciamento das ideias de Constant, já que o caráter

VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.


VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença.
IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado (sic).
Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado.
7
Ao tratar da Constituição da Inglaterra (Segunda Parte, Livro Décimo Primeiro, Capítulo VI), Montesquieu
afirma: “Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que
dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primei-
ro, o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram
feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne
invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a
este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado” (MONTESQUIEU, Charles de
Secondat, Baron de. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
167-168).
8
FERREIRA, Oscar. Le pouvoir modérateur dans la Constitution brésilienne de 1824 et la Charte constitutionnelle
portugaise de 1826: les influences de Benjamin Constant ou de Lanjuinais? Revue française de droit consti-
tutionnel, Presses Universitaires de France, ano 1, n. 89, p. 1-40, 2012. p. 1-4. Disponível em: https://www.
cairn.info/revue-francaise-de-droit-constitutionnel-2012-1-page-1.htm. Acesso em: 22 nov. 2022.
9
CAMPOS, Gabriel Afonso. Poder neutro e razão de Estado em Benjamin Constant. Revista de Ciências do
Estado, Belo Horizonte: v. 4, n. 1, e5150, p. 1-20, 2019. p. 2. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.
php/revice/article/view/e5150. Acesso em: 10 nov. 2022.
232| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

do Poder Moderador não era exatamente de poder neutro, mas de poder que assegurava ao
Monarca uma supremacia sobre os demais, mantendo, na prática, e em alguma medida,
parte das prerrogativas régias presentes no despotismo europeu.

A Carta Imperial permitia que o Monarca acumulasse as chefias de Estado e de


Governo; ele também era o titular dos poderes moderador e executivo (arts. 98 e 102)10.
Assim, o Imperador governava auxiliado por seus ministros que, por suas vezes, exerciam
o Poder Executivo. Sob essas balizas constitucionais e ideológicas Pedro I e Pedro II funda-
ram e consolidaram o Estado Nacional brasileiro, governando como déspotas esclarecidos
(ou seja, buscando compatibilizar o modelo absolutista de governo com o ideal racionalista
e liberal do Iluminismo). Desse modo, a experiência despótica brasileira não se confundia
com a das monarquias absolutistas europeias continentais dos séculos XVI ao XVIII já que
os poderes do Imperador brasileiro estavam limitados pela Constituição outorgada. Seu
liberalismo, contudo, não chegou ao nível do verificado na monarquia constitucional da
Inglaterra, vigente desde o final do século XVII, na qual o Parlamento detinha maior prota-
gonismo no sistema político11.

A experiência luso-brasileira do poder moderador foi única no mundo. E no caso


específico do Brasil, conforme destacado por Carvalho, conquanto o Segundo Reinado te-
nha se revelado menos centralista que o Primeiro, nele o Poder Moderador sofreu mais re-
sistência, embora tenha sido muito pouco utilizado por Dom Pedro II12. Conforme destaca
Alves, a doutrina do poder moderador objetivou, de fato, prolongar no tempo a legitimidade

10
Constituição Política do Imperio do Brazil, de 25 de março de 1824.
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Política, e é delegado privativamente ao Imperador,
como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manu-
tenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.
Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.
Art. 100. Os seus Titulos são “Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil” e tem o Tratamento de
Magestade Imperial.
11
Em que pese às críticas dirigidas ao caráter centralista do modelo brasileiro adotado, Lynch concorda com
José Murilo de Carvalho (A Monarquia Brasileira, 1993) no sentido de que a Carta Imperial de 1824 era, pro-
vavelmente, a constituição monárquica mais liberal de seu tempo (LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso
político monarquiano e a recepção do conceito de Poder Moderador no Brasil (1822-1824). Dados Revista
de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, p. 611-654, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/
dados/v48n3/a06v48n3.pdf. Acesso em: 30 out. 2022).
12
Na opinião de Carvalho houve “o distanciamento da Constituição Imperial do Primeiro Reinado das exigências
da teoria política de Benjamin Constant, uma vez que D. Pedro I não realizou efetivamente a separação entre
Executivo e Poder Moderador: antes, concentrou em suas mãos os dois poderes, fato que (no exercício
do poder) não ocorreu durante o Reinado de D. Pedro II” (CARVALHO, Eder Aparecido de. Imperadores do
Brasil: diferenças institucionais e políticas no exercício do Poder Moderador. 2019. 221f. Tese (Doutorado)
– Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2019. p. 11-13. Disponível em: http://wwws.fclar.unesp.br/
agenda-pos/ciencias_sociais/5221.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022).
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |233

monárquica dando-lhe sobrevida.13 Esse modelo autocrático perdurou até 188914 quando,
então, foi substituído pela República, implantada por meio de um golpe militar liderado pelo
Marechal Deodoro da Fonseca, um dos heróis da Guerra do Paraguai.

Por meio desse breve escorço histórico é possível demonstrar, em linhas gerais,
que na fase crucial de formação do Estado Nacional, a experiência de seis décadas de
Poder Moderador – de poder autocrático – deixou marcas na cultura política nacional. O
Brasil, enquanto Estado soberano, foi formado sob o gene do autoritarismo15, presente no
Poder Moderador. Se retrocedermos o período sob análise e considerarmos os três séculos
de período colonial (1500-1822), em que vigorou em Portugal uma monarquia absolutista,
que controlou o quanto pôde tudo o que dizia respeito à sua mais importante possessão
ultramarina, é dizer-se que, desde sua gênese, o Brasil esteve sob a forte influência de uma
cultura política autocrática e centralizadora do poder.

Passado o Período Imperial, as influências do autoritarismo despótico se refleti-


rão na subsequente Era Republicana. Os militares, que, especialmente após a Guerra do
Paraguai (1864-1870) se tornaram os grandes antagonistas da Monarquia, acabarão por
dar o golpe e proclamar a República, arrogando-se a si, a partir de então, a condição de
mentores e garantes do novo sistema político e da nova ordem institucional. Assim, a
República brasileira também nasceu a partir de um movimento autocrático, agora manifes-
tado sob um viés militarista.

E nessas treze décadas de vigência do modelo republicano, o militarismo, como


herdeiro do autoritarismo do Poder Moderador, manifestou uma postura controladora e

13
ALVES, Joaquim. A separação de poderes como elemento do Estado Democrático de Direito. Revista do
Tribunal Regional Federal: 3. Região, n. 84, p. 11-87, jul./ago. 2007.
14
“Em 1834 foi promulgado o Ato Adicional, que criava as Assembleias Legislativas provinciais e suprimia o
Poder Moderador – só restaurado em 1840, com a Emenda Interpretativa do Ato Adicional” (BRASIL. Câmara
dos Deputados. Constituições brasileiras. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 2005. Disponível
em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-camara/copy_of_museu/publicacoes/
arquivos-pdf/Constituicoes%20Brasileiras-PDF.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022.).
15
Para fins da presente reflexão adota-se o conceito de autoritarismo esboçado por Bobbio et al.: “Na tipologia
dos sistemas políticos, são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental
e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só
pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas. Nesse contex-
to, a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidas à expressão mínima e as instituições
destinadas a representar a autoridade de baixo para cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas.
[...] o termo Autoritarismo é empregado em dois sentidos: um deles, muito generalizado, compreende todos os
sistemas não democráticos caracterizados por um baixo grau de mobilização e de penetração da sociedade.
Este último significado coincide em parte com a noção de ideologia autoritária. Mas só em parte, pois que exis-
tem tanto os regimes autoritários de ordem como os regimes autoritários voltados para uma transformação,
embora limitada, da sociedade” (BOBBIO, Norberto et al. (coord.). Dicionário de política. Tradução de Carmen
C. Varriale et al. 11. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. v. 2. p. 94-95).
234| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

“paternalista” para com a ordem política nacional, numa espécie de caudilhismo tardio
à brasileira.16 Nesse período, a ação política dos militares resultou, algumas vezes, na
instalação de crises institucionais ou na tomada do poder e implantação de regimes de
exceção, como se viu, inicialmente, na ditadura da República da Espada (1889-1994),
depois no fascismo da Era Vargas (1930-1945), na Revolução Constitucionalista (1932) e,
por último, na Ditadura Militar (1964-1985)17. Por outro lado, em períodos de normalidade
política e institucional, militares e políticos com ascendência militar chegaram à Presidência
da República por meio do voto direto e democrático18. O protagonismo político dos mi-
litares e da instituição castrense na República assim como sua ligação ideológica com o
autoritarismo do Poder Moderador também foram percebidos por Bonavides:

[...] o poder moderador, embora houvesse formalmente desaparecido com as


Constituições republicanas, continuou em verdade a existir, de 1891 a 1964, tendo
por titular não um rei mas as Forças Armadas.
O papel do Exército, salvo a época do Estado Novo, fora o de um quarto poder,
restaurador das normas do jogo democrático, mediante várias e passageiras inter-
venções na vida política do País19.

16
Conforme Bobbio et al, o termo Caudilhismo se refere ao “regime imperante na maior parte dos países da
América espanhola, no período que vai dos primeiros anos da consolidação definitiva da Independência, em
torno de 1820, até 1860, quando se concretizaram as aspirações de unificação nacional. O termo, de origem
espanhola, é o adotado no uso corrente e científico, em referência a esse fenômeno. O Caudilhismo é ca-
racterizado pela divisão do poder entre chefes de tendência local: os caudilhos. Estes líderes, geralmente de
origem militar, oriundos, em sua grande maioria, da desmobilização dos exércitos que combateram nas guer-
ras de independência, de 1810 em diante, provinham, em certos casos, de estratos sociais inferiores ou de
grupos étnicos discriminados (mestiços, índios, mulatos, negros). [...] Presentemente, parte dos estudiosos
da ciência política creem que o Caudilhismo é particularmente significativo para a compreensão da gênese do
militarismo na América Latina” (BOBBIO, Norberto et al. (coord.). Dicionário de política. Tradução de Carmen
C. Varriale et al. 11. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. v. 2. p. 156-157).
17
O Brasil já teve os seguintes presidentes de origem ou ascendência militar não eleitos pelo voto direto: Marechal
Deodoro da Fonseca (1889-1991), Marechal Floriano Peixoto (1891-1994); Getúlio Vargas – era Sargento do
Exército, depois optou pela advocacia e pela política (1930-1945); General Castelo Branco (1964-1967);
General Costa e Silva (1967-1969); General Emílio Médici (1969-1974); General Ernesto Geisel (1974-1979);
e General João Figueiredo (1979-1985) (BRASIL. Biblioteca da Presidência da República. Galeria dos ex-pre-
sidentes. [S.d.]. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes. Acesso
em: 10 fev. 2023).
18
Os presidentes da República de origem militar eleitos pelo voto direto são: Marechal Hermes da Fonseca
(1910-1914), Marechal Eurico Dutra (1946-1951), Getúlio Vargas (1951-54) e Jair Bolsonaro – Capitão re-
formado (2019-2022). Juscelino Kubitschek de Oliveira, Presidente entre 1956-1961, era Tenente-Coronel da
Polícia Militar do Estado de Minas Gerais e integrou as tropas que combateram os revoltosos de 1932. Itamar
Franco, que governou entre 1992-1995 (Vice-Presidente eleito na chapa de Fernando Collor de Mello e que
o sucedeu após o impeachment), tinha a graduação de Aspirante a Oficial do Exército brasileiro (BRASIL.
Biblioteca da Presidência da República. Galeria dos ex-presidentes. [S.d.]. Disponível em: http://www.bibliote-
ca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes. Acesso em: 10 fev. 2023).
19
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 157-158.
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |235

Superado o último episódio de regime de exceção implantado pelos militares (1964-


1985), o Brasil voltou a respirar os ares da democracia, com o retorno à normalidade institu-
cional, processo simbolicamente representado pela promulgação da Constituição Federal de
1988. A nova ordem constitucional trouxe aos brasileiros a esperança de que o autoritarismo
havia sido, enfim, vencido. Ademais, a nefasta experiência dos regimes autocráticos e tota-
litários20 do século XX e a memória de seus resultados odiosos pareciam ter convencido a
todos de que o melhor caminho para a humanidade era a liberdade, a democracia e o Estado
de Direito. A despeito disso, viu-se brotar nesse início do século XXI outras formas de ame-
aças autoritárias; os regimes democráticos continuam em constante vulnerabilidade. O gene
do autoritarismo sofreu mutação e agora se manifesta de forma mais insidiosa, por meio
do soft power, do lawfare, da tecnocracia e do populismo midiático21, o que lhe permite
corroer lenta e sub-repticiamente as bases democráticas dos sistemas políticos vigentes ao
mesmo tempo em que, por meio da propaganda, consegue sustentar uma certa aparência
de normalidade institucional e respeito às liberdades fundamentais.

3 O JUDICIARISMO COMO MANIFESTAÇÃO DO AUTORITA-


RISMO DO JUDICIÁRIO DE CÚPULA
No caso brasileiro, o autoritarismo, posto em letargia no período pós-ditadura, ma-
nifestou-se novamente na atual ordem constitucional-democrática. Verifica-se nos últimos
quinze anos, mais ou menos, uma escalada autoritária do Judiciário brasileiro, especial-
mente do órgão de cúpula, que é o Supremo Tribunal Federal. Ao STF incumbe a atribuição
de guarda da Constituição22, sendo que essa posição de guardião é tanto jurídica quanto
política, já que a Carta Republicana é um documento que tem ambas as naturezas. De
modo que, embora seja um órgão jurisdicional, o STF também possui natureza e atuação
política. Essa atuação política, todavia, se dá no sentido institucional e sociológico, não
se confundindo com a atuação política do Executivo e do Legislativo, os quais são, por
natureza, suscetíveis às diversas influências e protagonismos ideológicos e partidários.

A atual crise do sistema representativo e as limitações inerentes ao sistema de


checks and balances são importantes fatores que têm favorecido esse movimento expan-

20
Acerca da Alemanha nazismo e da União Soviética stalinista como exemplos de estados totalitários, conferir
o clássico: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
21
A respeito das ameaças autoritárias que as democracias enfrentam na atualidade e dos desafios que lhe
impõem às sociedades plurais e tecnocráticas deste início de século, conferir: LEVITSKY, Steven; ZIBLATT,
Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018.
[E-book].
22
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição [...].
236| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

sivo do Judiciário frente aos demais Poderes. Por vezes, as tensões e os conflitos entre
o Executivo e o Legislativo e entre suas facções políticas não são adequadamente apazi-
guados ou bem administrados mediante o uso dos instrumentos disponíveis nas próprias
instâncias políticas. Outras vezes, as divergências ideológico-partidárias se mostram insu-
peráveis, impedindo que se consiga negociar um mínimo de consenso entre os Poderes
políticos, que viabilize a governabilidade. Esse funcionamento deficitário das instituições
representativas tem como consequência imediata para a população o não atendimento
adequado de suas necessidades e legítimas expectativas em relação à Política e às pres-
tações estatais, o que por sua vez favorece o fenômeno do populismo23 e o aumento da
judicialização de demandas que têm como objeto a concretização de direitos básicos.

Ao mesmo tempo, esse défice de representatividade democrática – decorren-


te das disputas entre os Poderes Executivo e Legislativo – tem também redundado no
fenômeno de crescente judicialização da política, já que as tensões e conflitos entre os
Poderes Executivo e Legislativo e entre suas facções políticas acabam por desaguar no
Poder Judiciário, culminando no STF. Desse modo, o Supremo Tribunal Federal, como ór-
gão de cúpula, foi transformado na grande arena das disputas políticas nacionais, sendo
alçapremado à condição de grande protagonista da política nacional. Essa situação implica
uma subversão da lógica da representatividade democrática. A exemplo do que já denun-
ciava Maus no início do presente século, a partir da análise da atuação do Tribunal Federal
Constitucional da Alemanha, o Brasil vive, hoje, um Estado Judicial, no qual o Judiciário de
Cúpula avoca para si a condição de instância moral da sociedade, constituindo-se como o
superego da sociedade24.

Se nos primeiros anos de sua criação e funcionamento25, a atuação do Supremo


Tribunal Federal foi marcada pelo confronto com o Poder Executivo, contexto no qual a Corte
decidiu que não poderia se envolver nas funções políticas do Executivo e do Legislativo,

23
De acordo com Maliska, o populismo é a essência da política, podendo ser de direito ou de esquerda, não
sendo sinônimo de autoritarismo. Um líder populista, como um significante das demandas sociais insatis-
feitas unidas em uma cadeia de equivalência, pode existir em um estado democrático. Esse líder terá uma
ligação direta com o povo e o representará dentro das instituições do sistema representativo tradicional.
Alternativamente, um líder populista também pode romper com o sistema democrático e o Estado de Direito
e estabelecer um governo autoritário. A esse respeito, cf.: MALISKA, Marcos Augusto. Populism, democracy
and the rule of law in today´s Brazil. In: KIRSTE, Stephan; PAULO, Norbert (org.). Populism: perspectives from
legal philosophie. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2021. v. 167. p. 233-245.
24
MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade
órfã. Tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p. 183-
202, nov. 2000. p. 186-187. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=4722888.
Acesso em: 10 mar. 2023.
25
BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Rio de
Janeiro: Congresso Nacional Constituinte, 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao91.htm. Acesso em: 30 out. 2022.
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |237

mesmo que elas envolvessem direitos individuais, por entender ser impossível separar
questões políticas e direitos individuais26, o STF atual, diferentemente, se mostra ativista,
voluntarista e autoritário. A Corte tem prestado pouca deferência aos demais Poderes,
infringindo a importantíssima regra moral da autocontenção (ou reserva institucional)27. A
indevida atuação política do STF está obliterando o jogo político-democrático que deveria
ser praticado com autonomia pelos demais Poderes.

A atual geração de ministros do STF, em sua maioria, não demonstra nenhum pudor
ao conhecer e decidir sobre praticamente tudo quanto diga respeito aos demais Poderes.
Em consequência dessa postura, tem-se um Judiciário que se agiganta a cada dia, de
forma autoritária, paulatinamente ocupando os espaços institucionais do Executivo e do
Legislativo, passando a controlar/decidir praticamente tudo que lhe bate à porta, chegando,
por exemplo, a alterar a Constituição e a legislar – competências típicas do Legislativo –,
assim como a determinar políticas públicas, decidir como serão aplicados os recursos do
orçamento e definir quem pode ou não pode ser nomeado para cargos políticos do alto
escalão – atribuições típicas do Executivo no exercício de seu poder discricionário.

Quando o Judiciário gradativamente vai deixando de exercer a deferência devida


aos demais Poderes e passa a adotar uma postura que vai maximizando sua interferência
nos assuntos eminentemente políticos tem-se como resultado o progressivo aviltamento
da democracia, originando uma tendência autoritária que se materializa em usurpação das
funções legislativas e executivas. Esse movimento é nominado por alguns como judiciaris-
mo. Nele, a atuação da Suprema Corte é marcada pelo ativismo judicial, pelo voluntarismo
do julgador e pela politização da Justiça. Acerca das origens históricas do judiciarismo,
Lynch assevera que:

Art. 55 - O Poder Judiciário, da União terá por órgãos um Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da
República e tantos Juízes e Tribunais Federais, distribuídos pelo País, quantos o Congresso criar.
Art. 56 - O Supremo Tribunal Federal compor-se-á de quinze Juízes, nomeados na forma do art. 48, n. 12,
dentre os cidadãos de notável saber e reputação, elegíveis para o Senado.
26
SILVA, Diogo Bacha e. Os contornos do ativismo judicial no Brasil: o fetiche do Judiciário brasileiro pelo contro�-
le dos demais poderes. Revista de Informação Legislativa, ano 50, n. 199, p. 163-178, jul./set. 2013. p. 173.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/50/199/ril_v50_n199_p163.pdf. Acesso em: 20 nov.
2022.
27
Segundo Jairo Nicolau, a tolerância mútua e a reserva institucional (autocontenção) são as duas regras infor-
mais decisivas para o funcionamento de uma democracia. “Tolerância mútua é reconhecer que os rivais, caso
joguem pelas regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. A reserva
institucional significa evitar as ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito.
Portanto, para além do texto da Constituição, uma democracia necessitaria de líderes que conheçam e res-
peitem as regras informais” (LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de
Renato Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018. Prefácio).
238| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

Ao contrário do que se pode imaginar, o judiciarismo é fenômeno antigo no Brasil.


Tem inspiração no papel de guardião da constituição exercido pela Suprema Corte
dos Estados Unidos, descrito e divulgado por clássicos como Tocqueville e James
Bryce. Ele aflorou entre nós com a República e a criação do Supremo Tribunal
Federal, encarregado de arbitrar as contendas entre os poderes políticos e garantir
os direitos fundamentais. Liderado por Rui Barbosa desde o começo do regime,
contra a ditadura do marechal Floriano Peixoto, e encampado por ministros do
Supremo Tribunal, como Pedro Lessa, o judiciarismo tornou-se a partir da presi-
dência Hermes da Fonseca (1910-1914) um discurso de combate ao establish-
ment da República Velha, cujo modelo político oligárquico baseado na Política dos
Governadores era diuturnamente denunciado pelos bacharéis28.

Conforme visto no primeiro item deste trabalho, o judiciarismo se apresenta como


o sucessor da Monarquia e do militarismo, evidenciando um semelhante caráter autoritário.
Na perspectiva histórica apresentada por Lynch, o judiciarismo se caracterizava pela defesa
do Poder Judiciário como “um sucedâneo do poder moderador monárquico, capaz de ga-
rantir, por intermédio da jurisdição constitucional, o primado do Estado de direito democrá-
tico contra as veleidades oligárquicas ou autoritárias do regime”29. Hodiernamente, esse
autoritarismo se evidencia numa prestação jurisdicional marcada por volatilidade jurispru-
dencial, casuísmos, interferência direta nos demais Poderes, violação de prerrogativas,
usurpação de funções e violações de direitos fundamentais30, 31. Essa postura autocrática
tem resultado em subtração do espaço que organicamente pertenceria ao Executivo e ao

28
LYNCH, Christian Edward Cyril. Ascensão, fastígio e declínio da “Revolução Judiciarista”. Insight Inteligência,
ano XX, n. 79, p. 158-168, out./dez. 2017. p. 161. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/5862497/mod_resource/content/1/LYNCH.%20A%20revolu%C3%A7%C3%A3o%20judiciarista%20
%28editado%29.pdf. Acesso em: 02 ago. 2022.
29
LYNCH, Christian Edward Cyril. Ascensão, fastígio e declínio da “Revolução Judiciarista”. Insight Inteligência,
ano XX, n. 79, p. 158-168, out./dez. 2017. p. 161. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/5862497/mod_resource/content/1/LYNCH.%20A%20revolu%C3%A7%C3%A3o%20judiciarista%20
%28editado%29.pdf. Acesso em: 02 ago. 2022.
30
Uma análise que bem ilustra a escalada autoritária da Corte brasileira é realizada em: LORENZETTO, Bruno
Meneses; PEREIRA, Ricardo dos Reis. O Supremo soberano no Estado de exceção: a (des)aplicação do
direito pelo STF no âmbito do Inquérito das “Fake News” (Inquérito n. 4.781). Sequência, Florianópolis, v.
41, n. 85, p. 173-203, ago. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/71524/44594. Acesso em: 30 ago. 2022.
31
Não nos deteremos em fazer um levantamento das inúmeras decisões arbitrárias, autoritárias e inconstitu�-
cionais do STF nas duas últimas décadas. Uma simples busca na internet a partir dos parâmetros “STF” e
“decisões autoritárias” já e suficiente para dimensionar a atuação expansiva da Corte na vida política do País e
na vida dos cidadãos na atualidade. Não obstante, um levantamento exemplificativo desses excessos pode ser
encontrado em: PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos (org.). Supremos
erros: decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. [E-book].
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |239

Legislativo, além de esvaziar o ideal de direito como integridade, segundo a perspectiva


proposta por Dworkin32.

4 A DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO


SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
O art. 1º da Constituição preceitua que a República Federativa do Brasil “consti-
tui-se em Estado Democrático de Direito”. A democracia é, pois, a essência do Estado
brasileiro. Muito mais importante que ser um Estado de Direito (governado por leis) é o fato
de que as leis brasileiras são feitas com a participação dos detentores da soberania, que
são os cidadãos. Ou seja, as leis são feitas pelo povo (por meio de seus representantes)
e para o povo (para o seu benefício). Nesse sentido, avulta a importância das chamadas
instituições democráticas, dentre as quais está o Supremo Tribunal Federal, que exerce o
controle concentrado de constitucionalidade das leis.

Como se tem buscado demonstrar, o autoritarismo não é fenômeno que acomete


exclusivamente os Poderes essencialmente políticos – Executivo e Legislativo. Os atenta-
dos contra a democracia e a instalação de regimes de exceção também podem ser obra
do autoritarismo judicial ou podem se concretizar com o importante apoio do Judiciário.
Levitsky e Ziblatt relatam exemplo recente ocorrido no regime autocrático da Venezuela:

O Judiciário também pode ser convocado para fazer jogo duro. Depois que conquis-
taram o controle da assembleia nacional venezuelana por maioria esmagadora numa
eleição em dezembro de 2015, os partidos de oposição tiveram esperanças de frear
o poder autocrático do presidente Nicolás Maduro. Assim, o novo Congresso apro-
vou uma lei de anistia que libertaria 120 presos políticos e votou contra a declaração
de estado de emergência econômica de Maduro (que lhe dava amplos poderes para
governar por decreto). Para repelir essa objeção, Maduro se voltou para a Suprema
Corte, agora controlada por seus partidários. A corte chavista efetivamente retirou
poderes do Legislativo, julgando que quase todos os seus projetos de lei – inclusive
a lei de anistia, os esforços para revisar o orçamento nacional e a rejeição do estado
de emergência – eram inconstitucionais. Segundo o jornal colombiano El Tiempo, a

32
A perspectiva teórica do Direito como integridade, de Dworkin, entende que os juízes devem interpretar as leis
em termos de princípios morais consistentes, devendo fazer uma leitura moral da Constituição (DWORKIN,
Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002). Para tanto,
Dworkin propõe “um gênero literário artificial” a partir do qual se possa conceber o Direito como um “romance
em cadeia”, no qual o juiz é tanto autor quanto crítico literário do discurso jurídico (DWORKIN, Ronald. O impé-
rio do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 275). Dessa forma, o
esforço coletivo intergeracional de interpretação do direito como um romance em cadeia, teria como resultado
a preservação da identidade e da integridade do edifício jurídico.
240| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

corte decidiu contra o Congresso 24 vezes em seis meses, derrubando “todas as


leis que ele havia aprovado”33.

O exemplo trazido pelos dois professores de Harvard, estudiosos do fenômeno


do autoritarismo, denota um típico caso de Judiciário aparelhado pelo Executivo e que se
conluiou com este para sufocar e neutralizar o Poder Legislativo (representante do povo),
dominado por parlamentares opositores do regime e que faziam resistência à tirania. A
situação descrita ilustra o quadro de total degeneração das instituições democráticas e do
sistema representativo na República Bolivariana da Venezuela. À crise política seguiu-se um
processo de escalada de violação dos direitos humanos, formalmente reconhecido pelas
Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos34. É de se reconhecer que um
dos sustentáculos da autocracia bolivariana é a Suprema Corte venezuelana, correspon-
sável pelo estado de exceção e de violação dos direitos humanos em que está submersa a
nação sul-americana35, 36.

33
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2018. [E-book]. [s.p.].
34
Em 2020, a Missão Internacional Independente de Apuração dos Fatos sobre a Venezuela, enviada ao País
pela ONU, divulgou seu primeiro relatório após a análise de mais de 3 mil casos que comprovam padrões de
violações e crimes. Governo, agentes do Estado e grupos de apoio ao presidente Nicolás Maduro “cometeram
violações flagrantes” e o presidente e os ministros do Interior e da Defesa “tinham conhecimento dos crimes”.
Em agosto de 2019, o Conselho Permanente da OEA aprovou a Resolução CP/RES. n. 1.133 (2244/19),
condenando de modo firme as graves e sistemáticas “violações dos direitos humanos na Venezuela, como
a prática de tortura, de detenções ilegais e arbitrárias, de execuções extrajudiciais, de desaparecimentos for-
çados, e a negação dos direitos e necessidades mais básicos, especialmente aqueles relacionados à saúde,
alimentação e educação” (MAQUINÉ, Dillings Barbosa; LARA, Paulo César. O socialismo do século XXI, a
Revolução Bolivariana e os direitos humanos na Venezuela. In: BOTTEGA, Clarissa et al. (org.). Reflexões
sobre direitos fundamentais. Deerfield Beach, FL: Pembroke Collins, 2022. p. 349-366. P. 360).
35
Passadas duas décadas de processo revolucionário, a situação dos direitos humanos na Venezuela é preocu�-
pante, já que o regime implantado por Chávez e aprofundado por Maduro, baseado na utopia do Socialismo do
Século XXI, contribuiu para desestruturar a economia de um dos países mais prósperos da região. Além disso,
a Revolução contribuiu para deteriorar a frágil democracia venezuelana, com o governo autoritário de Madura
realizando a captura das instituições de Estado, especialmente as Forças Armadas e o Judiciário, os quais lhe
dão total sustentação contra a resistência que ainda se vê em parte do Legislativo e na população em geral,
gerando um estado de exceção, com sistemáticas violações aos direitos humanos, que apontam para a prática
de crimes de lesa-humanidade, conforme denunciado pela comunidade internacional e reconhecido no âmbito
dos sistemas onusiano e interamericano de direitos humanos. A Venezuela vive a maior crise humanitária a
que a América já assistiu, atualmente agravada pela crise sanitária e pela recessão econômica que dela adveio
(MAQUINÉ, Dillings Barbosa; LARA, Paulo César. O socialismo do século XXI, a Revolução Bolivariana e os
direitos humanos na Venezuela. In: BOTTEGA, Clarissa et al. (org.). Reflexões sobre direitos fundamentais.
Deerfield Beach, FL: Pembroke Collins, 2022. p. 349-366. p. 361-362).
36
Em 2004, o governo Chávez expandiu o Tribunal Supremo para 22 membros e preencheu as novas cadeiras
com “revolucionários” leais ao regime. Isso produziu o efeito desejado. Ao longo dos nove anos seguintes,
nem sequer uma única decisão do Tribunal Supremo foi contra o governo. Já no governo de Maduro, o
Parlamento, que se opunha ao regime foi destituído de suas funções por decisão do Supremo Tribunal de
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |241

No caso do Brasil, dentre as muitas manifestações do autoritarismo judiciarista


está a de o Supremo Tribunal Federal colocar-se como o único garante e tutor da ordem
jurídica e democrática, apoiando-se na ideia de supremacia judicial e na sua condição de
guardião da Constituição. Isso significa o STF atribuir-se a si a função de Poder Moderador,
colocando-se como o árbitro dos demais Poderes e como tutor da sociedade. Essa ideia é
defendida por alguns estudiosos da atualidade e foi manifestada publicamente por alguns
ministros da Corte, conforme apontam Carvalho e Gileno:

Dentre os juristas contemporâneos que interpretam que o Supremo Tribunal Federal


assume o papel de Poder Moderador na República Federativa do Brasil, destaca-
-se o Ministro do STF, José Antonio Dias Toffoli. Em palestra intitulada O Poder
Moderador no Brasil: os Militares e o Poder Judiciário (proferida no Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista em 04 abril de 2014), assim o citado
Ministro referiu-se ao STF: “Hoje ele é o Poder Moderador”. Igualmente, o advoga-
do constitucionalista Marcello Cerqueira propugna a atuação do Supremo Tribunal
Federal como Poder Moderador: “O Poder Moderador incumbe ao Supremo Tribunal
Federal” (CERQUEIRA, 2016). Isso sem mencionar o ex-presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil, Marcus Vinicius Coelho, que admite que o STF deva desem-
penhar papel moderador no desenho institucional delineado pela Carta Magna de
1988 (PEREIRA, 2016). Inclui-se, ainda, o Ministro Maurício Corrêa, que em 18 de
setembro de 2003 (quando presidente do Supremo Tribunal Federal), em solenidade
dos 175 anos do Supremo Tribunal de Justiça (antecessor do STF), mencionou a
competência moderadora do STF - aliás, segundo Corrêa (2003), órgão “que dá a
última palavra sobre a interpretação da Constituição brasileira”. Na mesma cerimô-
nia discursou Teori Albino Zavascki, Ministro do Superior Tribunal de Justiça (poste-
riormente Ministro do Supremo Tribunal Federal): “A Suprema Corte [...] representa
poder moderador do Estado” (ZAVASCKI, 2003)37.

A par das referências acima transcritas, em evento realizado pelo portal Poder 360,
em 28.07.2020, o então Presidente do STF, ministro Dias Toffoli, afirmou “Nós, enquanto
Judiciário, enquanto Suprema Corte, nós somos editores de um país inteiro, de uma nação

Justiça, dominado por Maduro (LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução
de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018. [E-book]). O Parlamento venezuelano também
destituído de sua atribuição de indicar os membros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) para as eleições
legislativas de 2020.
37
CARVALHO, Eder Aparecido de; GILENO, Carlos Henrique. Reflexões sobre o Poder Moderador nas instituições
políticas brasileiras: o pretérito e o presente. Em tese, Florianópolis: PPGSP/UFSC, v. 15, n. 1 (parte II), p. 10-
32, mar./abr. 2018. p. 25. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/1806-5023.
2018v15n1p10. Acesso em: 22 nov. 2020.
242| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

inteira, de um povo inteiro”38, justificando a decisão do ministro Alexandre de Moraes de


determinar o bloqueio de perfis nas redes sociais de apoiadores do então presidente Jair
Bolsonaro, investigados no Inquérito 4781, chamado de inquérito das fake News, instau-
rado no âmbito do STF, e que lá tramita há quatro anos39. Um pouco antes, em 2017, o
ministro Roberto Barroso afirmou em uma palestra na UFMG que o Supremo tem o papel
iluminista de “empurrar a história”, promovendo “certos avanços sociais, mesmo contra o
sentimento majoritário, em casos como o das uniões homoafetivas”. Em artigo publicado
em 2015, Barroso defende que as supremas cortes “desempenham, ocasionalmente, o
papel e vanguarda iluminista, encarregada de empurrar a história quando ela emperra”.
Reconhece ser “uma competência perigosa, a ser exercida com grande parcimônia, pelo
risco democrático que ela representa e para que as cortes constitucionais não se trans-
formem em instâncias hegemônicas. Mas, às vezes, trata-se de papel imprescindível”40.
Por sua vez, o ministro Alexandre de Moraes, em uma palestra proferida em 03.08.2018,
no Templo Nobre da Grande Loja Maçônica do Estado de São Paulo, defendeu que o Poder
Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, detém e exerce, hoje, o Poder Moderador,
que, antes foi exercido pelas Forças Armadas:

38
Analisando a fala de Toffoli, Schüller faz o seguinte questionamento: “Eis aí a questão central: sociedades
abertas precisam de um ‘editor’? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de
mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro? A resposta a esta
pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do
direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu
sua ‘Areopagítica’. Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma.
Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram ‘dispõem da graça da infalibilidade, acima
de todos nessa terra’? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia” (SCHÜLLER,
Fernando. O Supremo é o editor da sociedade? Folha de São Paulo, 29 jul. 2020. Disponível em: https://www1.
folha.uol.com.br/colunas/fernando-schuler/2020/07/o-supremo-e-o-editor-da-sociedade.shtml. Acesso em:
20 jan. 2023).
39
A instauração e manutenção deste inquérito, também chamado de “Inquérito do Fim do Mundo”, além de ou-
tros, é mais uma evidência eloquente de que o Supremo Tribunal Federal exorbitou de suas competências e não
vê mecanismo que o faça parar. Nesse sentido, cf.: PIOVEZAN, Cláudia R. de Morais (org.). Inquérito do fim
do mundo: o apagar das luzes do Direito brasileiro. Londrina: E.D.A. – Educação, Direito e Alta Cultura, 2020;
e GRECO, Rogério. O STF e seus inquéritos ilegais. In: PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton
Gustavo Vasconcelos (org.). Supremos erros: decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre: Fundação
Fênix, 2020. [E-book]. p. 237-253; DALLARI, Adilson Abreu. Inquérito das notícias falsas. In: PEREIRA
JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos (org.). Supremos erros: decisões inconstitu-
cionais do STF. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. p. 237-253. [E-book].
40
BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, número especial, p. 24-50, 2015. P. 42. Disponível em: https://
www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/view/3180/pdf. Acesso em: 20 fev. 2023. Ver também:
BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis dos tribunais constitucionais
nas democracias contemporâneas. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2171-2228, dez.
2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/30806. Acesso
em: 08 maio 2023.
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |243

Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter nascido com o início da República, de


ter o legislador brasileiro copiado (no bom sentido) a Suprema Corte, ele trouxe
ainda toda a tradição do Supremo Tribunal de Justiça do Império. Basta verificar que
os mesmos magistrados permaneceram. Mas nasceu também, apesar de não ter
aplicado no início da República, com essa função de Poder Moderador. Eram duas
funções básicas, a moderação ou a decisão no caso de conflitos entre Executivo
e Legislativo. Porque no caso de impeachment tanto na Suprema Corte quanto
no Supremo Tribunal Federal quem preside o Senado é o Presidente do Supremo
Tribunal Federal. Mas, no Brasil, não pegou de cara isso [Poder Moderador]. No
Brasil, nós tivemos meio que uma experiência nacional, uma experiência própria:
que no século passado, durante décadas, quem exerceu o Poder Moderador no
Brasil, foram as Forças Armadas. Na hora da guerrilha institucional, na hora de
perturbações institucionais quem exercia isso eram as Forças Armadas, porque na
tradição brasileira ainda não havia aquela força do Poder Judiciário, do Supremo
Tribunal Federal para exercer esse papel41.

Das declarações referidas, infere-se evidente que a maior parte dos atuais mem-
bros do Supremo Tribunal Federal, em sua maioria indicados por governos de viés esquer-
dista/progressista dos últimos 20 anos, dá mostras eloquentes de que se autoconsideram
os guias iluminados da sociedade e os guardiães da estabilidade institucional, avocando a
si o indigitado Poder Moderador. Em razão disso, observa-se que, especialmente nos últi-
mos quinze anos, esses ministros vêm exercendo de forma progressiva essa “superprerro-
gativa” sobre os demais Poderes da República, colocando a Corte como a tutora da estabi-
lidade constitucional-democrática, como fiadora do Estado Democrático de Direito e, para
tanto, chegando ao ponto de reescrever o Texto Constitucional. Mas, o que a Constituição
Federal de 1988 prevê acerca dessa pretensa função moderadora do STF? É o Supremo o
fiador do Estado Democrático de Direito?

A Constituição brasileira segue a vertente do constitucionalismo democrático,


estabelecendo que o exercício da soberania popular estará concretizada, dentre outros,
na existência e atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, independentes e
harmônicos entre si. De igual modo, o modelo constitucional brasileiro prevê mecanismos
institucionais e jurídicos de autocontrole – o sistema de “freios e contrapesos” –, que
visam a garantir sua existência e seu regular funcionamento, permitindo que os Poderes se
controlem reciprocamente.

41
WEB-TV Rede Colmeia. Palestra do Ministro do Supremo Tribunal Federal Exmo. Senhor Doutor Alexandre de
Moraes – Ao vivo. YouTube, 03.09.2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hQpu--CfauU.
Acesso em: 20 mar. 2023.
244| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

Diferentemente dos demais Poderes, o Judiciário se caracteriza por uma maior


autocontenção, por uma atuação técnica e garantista, devendo primar pela imparcialidade
de suas decisões e pelo apartidarismo de suas manifestações políticas. Por sua vez, o
Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula e como guardião da Constituição, exerce
função importantíssima para a democracia brasileira haja vista que, em última análise, o
Texto Constitucional formaliza a expressão da vontade popular pelas mãos do constituinte
originário e derivado. Na medida em que o Estado brasileiro fez a opção política pelo regi-
me democrático, defender a Constituição equivale a defender a democracia42. Assim, ao
defender a Constituição, o STF está cumprindo sua função de defesa da ordem democrática
ainda que para tanto tenha que atuar de forma contramajoritária43, no exercício do controle
de constitucionalidade das normas emanadas tanto do Executivo quanto do Legislativo.

Todavia, além de não poder se transformar em arbítrio e autoritarismo (como visto


no tópico anterior), a nobre incumbência de defesa da Constituição não recai exclusiva-
mente aos membros da Suprema Corte, sendo estendida ao Presidente da República (e
seus Ministros) e a seu Vice, os quais são investidos nos respectivos cargos mediante o
juramento de “manter, defender e cumprir a Constituição”, conforme estabelece o art. 78
da Carta Política44. Compromisso semelhante é deferido aos Senadores da República por
ocasião da posse, conforme prescreve o § 2º do art. 4º do Regimento Interno do Senado
Federal45, assim como aos Deputados Federais, consoante prevê o § 3º do art. 4º do

42
Uma das acepções mais correntes de democracia assevera que ela necessariamente possui o caráter consti�-
tucional. Conforme sintetiza Sultany (2012, p. 394), “[...] Rawls e Dworkin defendem que a democracia, bem
entendida, é democracia constitucional. A existência de restrições constitucionais na forma de direitos contra
as maiorias é inerente a esta concepção. O controle de constitucionalidade possui importante papel institu-
cional na aplicação desses direitos. Essa aplicação é uma tarefa essencialmente democrática” (SULTANY,
Nimer. The state of progressive constitutional theory: the paradox of constitutional democracy and the project
of political justification. Harvard Civil Rights – Civil Liberties Law Review, v. 47, n. 2, p. 371-455, 2012. p. 394.
Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2132397. Acesso em: 20 nov. 2022.).
43
Acerca da dificuldade contramajoritária que caracteriza o controle de constitucionalidade exercido pela
Suprema Corte em face da legitimidade democrática do Poder Legislativo, conferir: BICKEL, Alexander. The
least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics. 2. Ed. New Haven and London: Yale University
Press, 1986.
44
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência
da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 30 out. 2020.
Art. 78. O Presidente e o Vice-Presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional,
prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem
geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
45
Regimento Interno do Senado Federal,
Art. 4º Omissis.
[...]
§ 2º Presente o diplomado, o Presidente designará três Senadores para recebe-lo, introduzi-lo no plenário e
conduzi-lo até a Mesa, onde, estando todos de pé, prestará o seguinte compromisso: “Prometo guardar a
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |245

Regimento Interno da Câmara dos Deputados46. De modo que uma interpretação sistemá-
tica e teleológica da Constituição Federal e dos regimentos das Casas Legislativas permite
afirmar que, em que pese à supremacia judicial do STF em relação ao controle de cons-
titucionalidade, a defesa do Estado Democrático de Direito é incumbência afeta aos três
Poderes da República, a qual deve se dar de forma independente, harmônica e colaborativa.

Em relação à discussão acerca da possível prevalência do Poder Moderador na atu-


al ordem constitucional e que ele estaria afeto às atribuições do STF, impõe-se reconhecer
que, conforme buscou-se demonstrar ao longo desta reflexão, esse poder vigorou formal-
mente na vigência da Constituição do Império e jamais foi adotado pelas constituições re-
publicanas, embora seu legado autoritarista tenha faticamente se manifestado no militaris-
mo da Era Republicana. De modo que, ao arrogar-se a si o exercício do Poder Moderador na
atual ordem constitucional, o Supremo está apenas reafirmando sua postura autocrática,
colocando-se acima dos demais Poderes, da sociedade e da própria Constituição47, afir-
mando um poder para o qual não há qualquer lastro de legitimidade político-institucional,
já que esse poder é incompatível com os fundamentos do Estado Democrático de Direito
ora vigente no Brasil.

Tampouco o Poder Moderador é afeto à instituição militar. A interpretação sistemáti-


ca e teleológica do texto do art. 142 da Constituição48, que prescreve que as forças arma-

Constituição Federal e as leis do País, desempenhar fiel e lealmente o mandato de Senador que o povo me
conferiu e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.
46
Regimento Interno da Câmara dos Deputados,
Art. 4º Omissis.
[...]
§ 3º Examinadas e decididas pelo Presidente as reclamações atinentes à relação nominal dos Deputados, será
tomado o compromisso solene dos empossados. De pé todos os presentes, o Presidente proferirá a seguinte
declaração: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do
povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Ato contínuo, feita a chamada,
cada Deputado, de pé, a ratificará dizendo: “Assim o prometo”, permanecendo os demais Deputados sentados
e em silêncio.
47
Conforme adverte Streck, a Constituição não pode se submeter à vontade dos Poderes constituídos, assim
como deve-se rejeitar qualquer posicionamento que confunda a autonomia do Direito com a discricionariedade
dos Tribunais, imprimindo, a seu modo, distintos sentidos ao texto constitucional. “Ora, ou o Direito tem um
grau de autonomia que está para além do poder do Supremo Tribunal Federal dizer algo que a Constituição
não disse, ou esse mesmo órgão de cúpula do Judiciário atuará como uma espécie de Poder Constituinte”
(STRECK, Lênio Luiz. No populismo de nosso tempo, importa um futuro que resista ao canto das sereias, In:
PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos; (org.). Supremos erros: decisões
inconstitucionais do STF. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. [E-book]. p. 117-125. p. 121).
48
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais
e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
246| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

das destinam-se “à garantia dos poderes constitucionais”, não permite qualquer entendi-
mento nesse sentido49. No mesmo sentido, embora o art. 15 e §§ da Lei Complementar n.
97/1999 estabeleçam que o emprego das Forças Armadas, mesmo na hipótese de atendi-
mento a pedido manifestado por quaisquer dos Poderes constitucionais para a garantia da
lei e da ordem, sempre estará subordinado à decisão do Presidente da República, prevalece
o entendimento de que essa competência não pode ser interpretada no sentido de tornar o
Executivo um superpoder, uma vez que isso implicaria desequilíbrio no sistema republica-
no, em total violação ao princípio da separação e harmonia entre os Poderes50. Por esse

§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no


emprego das Forças Armadas.
49
No entanto, há os que entendem de modo diverso. Adilson Abreu Dallari concorda com Ives Gandra da Silva
Martins e Amauri Feres Saad, no sentido de que o Art. 142, CF/88 outorga o Poder Moderador às Forças
Armadas para ser usado em situações excepcionais, a exemplo das sucessivas violações à Constituição pra-
ticadas pelos membros do STF em face dos demais Poderes: “Ambos os juristas [Gandra e Saad] concordam
em que o Art. 142 deve ser aplicado para recompor o equilíbrio entre os poderes. Nenhum deles está invo-
cando uma ressurreição do Poder Moderador, da Constituição Imperial, mas, sim, ambos estão destacando a
função das Forças Armadas no sentido da restauração da ordem constitucional e da manutenção da indepen-
dência e harmonia dos poderes, o que é essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito [...]
Em síntese, não há como, numa perspectiva estritamente jurídica e absolutamente fiel ao texto da Constituição
Federal, negar que o STF está desbordando de suas atribuições, invadindo a esfera de competência de outros
poderes e violando garantias constitucionais dos cidadãos. Aquilo que era havido como impossível, está
deveras acontecendo. Esse grave problema precisa ser solucionado pelos juristas” (DALLARI, Adilson Abreu.
Inquérito das notícias falsas. In: PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos
(org.). Supremos erros: decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. P. 237-253.
[E-book]. p. 251-252).
50
Tramita no STF a ADI 6457, que discute a constitucionalidade do Art. 1º, caput, e Art. 15, caput e §§ 1º, 2º
e 3º, da Lei Complementar nº 97/1999 (alterada pelas Leis Complementares nº 117/2004 e nº 136/2010).
Nessa ação, acatando parcialmente o pedido de medida liminar requerida, o Relator, Ministro Luiz Fux, proferiu
decisão conferindo interpretação conforme aos referidos dispositivos da Lei Complementar nº 97/1999, as-
sentando as seguintes teses: (i) A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia
dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador
entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; (ii) A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluin-
do-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcio-
namento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências mate-
riais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República; (iii) A prerrogativa do Presidente da República de
autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por
quaisquer dos outros poderes constitucionais – por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal,
do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados –, não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si;
(iv) O emprego das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”, embora não se limite às hipóteses de
intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave
e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos
ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais pode-
res, na forma da Constituição e da lei. Desde 2020, a decisão aguarda a análise ad referendum pelo Plenário da
Suprema Corte. A Advocacia-Geral da União manifestou-se em concordância com a medida cautelar deferida
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na ADI n. 6457 MC/DF. Proponente: Partido Democrático
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |247

mesmo argumento, também não se pode reconhecer o Poder Moderador ao Judiciário.


Quando o Supremo avoca a si o Poder Moderador está apenas explicitando uma tendência
judiciarista, estabelecendo um Estado Judicial, paternalista, conforme teorizou Maus51.

5 CONCLUSÃO
O autoritarismo é uma constante na história da civilização brasileira. Como legado
da colonização portuguesa, manifestou-se pelo monopólio da Coroa sobre as riquezas
da terra e pelo controle sobre a vida dos que aqui habitavam. No período imperial, ma-
nifestou-se no caráter despótico do Poder Moderador, jungido ao Poder Executivo, am-
bos nas mãos do Monarca; no período Republicano, manifestou-se no autoritarismo dos
integrantes da Instituição Militar que exerceram um poder moderador “de fato”, atuando
como garantes do sistema político; atualmente, assiste-se ao autoritarismo judiciarista do
Supremo Tribunal Federal, que se arroga titular do Poder Moderador e fiador da ordem
constitucional-democrática.

Conforme se demonstrou, a atual ordem constitucional não reconhece a função


moderadora nem ao Poder Judiciário, nem ao Executivo e tampouco às Forças Armadas.
Antes, estabelece a Constituição que os três Poderes, cada um na medida de suas com-
petências constitucionais, são responsáveis pelo equilíbrio do sistema democrático e re-
publicano. E para auxiliar no cumprimento dessa atribuição, cabe às Forças Armadas agir
quando para isso for convocada, atuando sem protagonismo político ou ideológico, dentro
dos limites constitucionais e legais.

O judiciarismo manifestado pelo Supremo Tribunal Federal está destruindo o ideal


do direito como integridade, está contribuindo para a degeneração do sistema representati-
vo e está minando as bases da democracia brasileira. Já que os ministros do STF não res-
peitam a reserva institucional (autocontenção) inerente ao cargo, é necessário que sejam
contidos. O instrumento que a Constituição disponibiliza para isso é o impeachment por
crime de responsabilidade, medida a cargo do Senado Federal, conforme prevê o art. 52,

Trabalhista – PDT. Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Luiz Fux.
Brasília, 12/06/2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaPresidenciaStf/anexo/ADI6457.
pdf. Acesso em: 04 out. 2022).
51
MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade
órfã. Tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p. 183-202,
nov. 2000. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=4722888. Acesso em: 10
mar. 2023.
248| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

II, da Constituição52 c/c art. 39 da Lei de Crimes de Responsabilidade – Lei n. 1.079/5053,


54
. Na medida em que os Senadores – para não se indisporem com os ministros do STF,
que são competentes para julgar os processos criminais em que muitos dos Senadores
são réus ou investigados –, não demonstram vontade política para analisar as dezenas
de pedidos de afastamento de ministros do STF protocolados no Senado, eles se fazem
cúmplices das exorbitâncias da Suprema Corte e se tornam corresponsáveis pela degene-
ração do sistema democrático-republicano. Se os supremos ministros não forem contidos
a autocracia judicial se instalará definitivamente e esse estado de exceção se tornará um
regime de exceção, a exemplo de tantos que vimos no passado e no presente.

REFERÊNCIAS
ALVES, Joaquim. A separação de poderes como elemento do Estado Democrático de Direito. Revista
do Tribunal Regional Federal: 3. Região, n. 84, p. 11-87, jul./ago. 2007.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.

BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria.
Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, número especial, p. 24-50, 2015. Disponível

52
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
[...]
II processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça
e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União
nos crimes de responsabilidade; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)
53
Art. 39. São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal:
1- alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal;
2 - proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;
3 - exercer atividade político-partidária;
4 - ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;
5 - proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções.
54
Tramita no Senado Federal o PL 1.388/2023, que tipifica uma série de novos crimes de responsabilidade e
amplia o rol de autoridades sujeitas a processos de impeachment. Além do presidente e do vice-presidente
da República, podem ser denunciados por crime de responsabilidade: ministros e comandantes da Marinha,
do Exército e da Aeronáutica; ministros do STF; membros dos conselhos nacionais de Justiça e do Ministério
Público; procurador-Geral da República; advogado-geral da União; ministros de tribunais superiores; ministros
do Tribunal de Contas da União (TCU); governadores e vice-governadores; secretários de estados e do Distrito
Federal; juízes e desembargadores; juízes e membros de tribunais militares e tribunais regionais Federais,
Eleitorais e do Trabalho; membros dos tribunais de contas de estados, Distrito Federal e municípios; e mem-
bros do Ministério Público da União, dos estados e do Distrito Federal (PROJETO de Pacheco para regular
impeachment detalha regras processuais. Agência Senado, 24 mar. 2023. Disponível em: https://www12.
senado.leg.br/noticias/materias/2023/03/24/projeto-de-pacheco-de-nova-lei-do-impeachment-detalha-re-
gras-processuais. Acesso em: 20 abr. 2023).
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |249

em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/view/3180/pdf. Acesso em: 20 fev.


2023.

BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papeis dos tribunais cons-
titucionais nas democracias contemporâneas. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4,
p. 2171-2228, dez. 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/
article/view/30806. Acesso em: 08 maio 2023.

BICKEL, Alexander. The least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics. 2. ed. New
Haven and London: Yale University Press, 1986.

BOBBIO, Norberto et al. (coord.). Dicionário de política. Tradução de Carmen C. Varriale et al. 11. Ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. v. 2.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

BRASIL. Biblioteca da Presidência da República. Galeria dos ex-presidentes. [S.d.]. Disponível em:
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes. Acesso em: 10 fev. 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Constituições brasileiras. Brasília: Centro de Documentação e


Informação, 2005. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-
-camara/copy_of_museu/publicacoes/arquivos-pdf/Constituicoes%20Brasileiras-PDF.pdf. Acesso
em: 22 nov. 2022.

BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Imperio do Brazil de 1824. Rio de Janeiro:
Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio do Brazil, 1824. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 30 ago. 2022.

BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891.
Rio de Janeiro: Congresso Nacional Constituinte, 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 30 out. 2022.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:


Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 30 out. 2020.

BRASIL. Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999. Dispõe sobre as normas gerais para a
organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Brasília: Presidência da República, 1999.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp97.htm. Acesso em: 09 set. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na ADI n. 6457 MC/DF. Proponente: Partido
Democrático Trabalhista – PDT. Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator:
Ministro Luiz Fux. Brasília, 12/06/2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaPre-
sidenciaStf/anexo/ADI6457.pdf. Acesso em: 04 out. 2022.

BRASIL. Resolução n. 17, de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Brasília:
Presidência da República, 1989 [2023]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legis-
250| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

lativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20
ate%20RCD%202-2023.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

BRASIL. Senado Federal. Regimento Interno do Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 1970
[2023]. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/regimento-interno. Acesso em:
14 ago. 2023.

CAMPOS, Gabriel Afonso. Poder neutro e razão de Estado em Benjamin Constant. Revista de Ciências
do Estado, Belo Horizonte: v. 4, n. 1, e5150, p. 1-20, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/
index.php/revice/article/view/e5150. Acesso em: 10 nov. 2022.

CARVALHO, Eder Aparecido de; GILENO, Carlos Henrique. Reflexões sobre o Poder Moderador nas
instituições políticas brasileiras: o pretérito e o presente. Em tese, Florianópolis: PPGSP/UFSC, v. 15,
n. 1 (parte II), p. 10-32, mar./abr. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/
article/view/1806-5023.2018v15n1p10. Acesso em: 22 nov. 2020.

CARVALHO, Eder Aparecido de. Imperadores do Brasil: diferenças institucionais e políticas no exer-
cício do Poder Moderador. 2019. 221f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
Araraquara, 2019. Disponível em: http://wwws.fclar.unesp.br/agenda-pos/ciencias_sociais/5221.pdf.
Acesso em: 22 nov. 2022.

CURRITO, Eduardo. Constituições portuguesas e Constituição Europeia. Lisboa: Universidade


Católica de Lisboa, 2003. Disponível em: https://www.academia.edu/10387024/
CONSTITUI%C3%87%C3%95ES_PORTUGUESAS_E_CONSTITUI%C3%87%C3%83O_EUROPEIA.
Acesso em: 22 nov. 2022.

DALLARI, Adilson Abreu. Inquérito das notícias falsas. In: PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA,
Milton Gustavo Vasconcelos (org.). Supremos erros: decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre:
Fundação Fênix, 2020. p. 237-253. [E-book].

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.

FERREIRA, Oscar. Le pouvoir modérateur dans la Constitution brésilienne de 1824 et la Charte consti-
tutionnelle portugaise de 1826: les influences de Benjamin Constant ou de Lanjuinais? Revue françai-
se de droit constitutionnel, Presses Universitaires de France, ano 1, n. 89, p. 1-40, 2012. Disponível
em: https://www.cairn.info/revue-francaise-de-droit-constitutionnel-2012-1-page-1.htm. Acesso em:
22 nov. 2022.

GRECO, Rogério. O STF e seus inquéritos ilegais. In: PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA,
Milton Gustavo Vasconcelos (org.). Supremos erros: decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre:
Fundação Fênix, 2020. [E-book]. p. 237-253.
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado ... |251

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018. [E-book].

LORENZETTO, Bruno Meneses; PEREIRA, Ricardo dos Reis. O Supremo soberano no Estado de exce-
ção: a (des)aplicação do direito pelo STF no âmbito do Inquérito das “Fake News” (Inquérito n. 4.781).
Sequência, Florianópolis, v. 41, n. 85, p. 173-203, ago. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc.
br/index.php/sequencia/article/view/71524/44594. Acesso em: 30 ago. 2022.

LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de Poder
Moderador no Brasil (1822-1824). Dados Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, p.
611-654, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/dados/v48n3/a06v48n3.pdf. Acesso em:
30 out. 2022.

LYNCH, Christian Edward Cyril. Ascensão, fastígio e declínio da “Revolução Judiciarista”. Insight
Inteligência, ano XX, n. 79, p. 158-168, out./dez. 2017. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/5862497/mod_resource/content/1/LYNCH.%20A%20revolu%C3%A7%C3%A3o%20ju-
diciarista%20%28editado%29.pdf. Acesso em: 02 ago. 2022.

MALISKA, Marcos Augusto. Populism, democracy and the rule of law in today´s Brazil. In: KIRSTE,
Stephan; PAULO, Norbert (org.). Populism: perspectives from legal philosophie. Stuttgart: Franz
Steiner Verlag, 2021. v. 167. p. 233-245.

MAQUINÉ, Dillings Barbosa; LARA, Paulo César. O socialismo do século XXI, a Revolução Bolivariana
e os direitos humanos na Venezuela. In: BOTTEGA, Clarissa et al. (org.). Reflexões sobre direitos
fundamentais. Deerfield Beach, FL: Pembroke Collins, 2022. p. 349-366.

MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na


“sociedade órfã. Tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos CEBRAP, São
Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2000. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.
php?id=4722888. Acesso em: 10 mar. 2023.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos; (org.). Supremos erros:
decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. [E-book].

PIOVEZAN, Cláudia R. de Morais (org.). Inquérito do fim do mundo: o apagar das luzes do Direito
brasileiro. Londrina: E.D.A. - Educação, Direito e Alta Cultura, 2020.

PROJETO de Pacheco para regular impeachment detalha regras processuais. Agência Senado, 24
mar. 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/03/24/projeto-de-
-pacheco-de-nova-lei-do-impeachment-detalha-regras-processuais. Acesso em: 20 abr. 2023.

SILVA, Diogo Bacha e. Os contornos do ativismo judicial no Brasil: o fetiche do Judiciário brasileiro
pelo controle dos demais poderes. Revista de Informação Legislativa, ano 50, n. 199, p. 163-178, jul./
set. 2013. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/50/199/ril_v50_n199_p163.pdf.
Acesso em: 20 nov. 2022.
252| Dillings Barbosa Maquiné - Paulo César de Lara

SCHÜLLER, Fernando. O Supremo é o editor da sociedade? Folha de São Paulo, 29 jul. 2020.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernando-schuler/2020/07/o-supremo-e-o-e-
ditor-da-sociedade.shtml. Acesso em: 20 jan. 2023.

STRECK, Lênio Luiz. No populismo de nosso tempo, importa um futuro que resista ao canto das se-
reias. In: PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos; (org.). Supremos
erros: decisões inconstitucionais do STF. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2020. [E-book]. p. 117-125.

SULTANY, Nimer. The state of progressive constitutional theory: the paradox of constitutional democra-
cy and the project of political justification. Harvard Civil Rights – Civil Liberties Law Review, v. 47, n.
2, p. 371-455, 2012. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2132397. Acesso em: 20 nov. 2022.

WEB-TV Rede Colmeia. Palestra do Ministro do Supremo Tribunal Federal Exmo. Senhor Doutor
Alexandre de Moraes - Ao vivo. YouTube, 03.09.2018. Disponível em: https://www.youtube.com/wat-
ch?v=hQpu--CfauU. Acesso em: 20 mar. 2023.
MATERIALIZAÇÃO DO PLURALISMO
CONSTITUCIONAL, UM CAMINHO PARA
A INCLUSÃO RACIAL NO BRASIL

Gabriela Ganho1
Derick Davidson Cordeiro2

Sumário: 1. Introdução. 2. Exclusão racial no Brasil. 3. Pluralismo. 4. Constitucionalismo


negro. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente artigo tem por objetivo analisar a exclusão racial na sociedade Brasileira que
se reflete no sistema jurídico como consequência da manutenção do privilégio dos grupos
hegemônicos. Parte-se do pressuposto de que embora a Constituição Federal de 1988
seja pluralista, uma vez que consagra direitos de diversos grupos, a materialização desses
direitos, em especial da população negra que sofre segregação, nem sempre é efetivada.
A partir dessa análise conclui-se pela necessidade de um constitucionalismo sensível à
questão racial.

Palavras-chave: Exclusão racial. Pluralismo. Constitucionalismo negro.

1 INTRODUÇÃO
A perspectiva do direito na questão racial está inserida no contexto histórico da dí-
vida que a sociedade brasileira possui com a população negra, dívida essa que vem desde
a abolição da escravatura, uma vez que os escravos foram libertos sem a implantação de
qualquer política de inclusão.

1
Mestra em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Advogada.
E-mail: gabriela.ganho@gmail.com
2
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Bolsista Capes/Prosup. Especialista em Direito Imobiliário e Notarial e Direito e Processo do Trabalho pela
Universidade Cândido Mendes. Especialista em Direito e Processo Civil pela Fundação de Estudos Sociais do
Paraná. Advogado. E-mail: ddcordeiro.adv@gmail.com
254| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

A postura indiferente do Estado em relação a essa população fez com que os liber-
tos ocupassem as periferias das cidades, em especial, porque havia a dificuldade dessas
pessoas encontrarem emprego, uma vez que seus antigos proprietários não tinham interes-
se em remunerá-las, pois ainda os viam como propriedade.

Esses fatores históricos, aliados a dificuldade de a sociedade brasileira reconhecer


a existência de racismo, fizeram com que a própria estrutura da sociedade se organizasse
de modo excludente.

Com isso, analisa-se a questão a partir da efetividade do texto constitucional pauta-


do no pluralismo e da importância de um olhar para diversidade, de modo que os institutos
jurídicos possam promover a igualdade, respeitando as diferenças, a fim de romper com um
sistema jurídico que é instrumentalizado para manutenção da desigualdade racial no país.

A presente pesquisa está dividida em três capítulos, no primeiro apresenta-se um


breve contexto da exclusão racial no Brasil, no segundo apresenta-se o conceito de plura-
lismo e o impacto que essa teoria provoca nas constituições, em especial nas latino-ame-
ricanas, e por fim trata-se do constitucionalismo negro e da importância de dar visibilidade
para pessoas historicamente excluídas.

2 EXCLUSÃO RACIAL NO BRASIL


O Brasil possui a maior população negra fora do território Africano, e a maioria da
sua população é negra, contudo, essas pessoas estão fora dos espaços de poder3. Essa
afirmação corrobora com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)4,
que aponta que 56,2% das pessoas do país se autodeclaram pretas ou pardas.

Apesar de ser maioria a população negra enfrenta exclusão, em especial, nos es-
paços de poder. Para analisar as questões que implicam nessa realidade, é essencial a
compreensão do conceito de raça e também de racismo, são inúmeras as pesquisas que
abordam a questão e plurais os conceitos e as abordagens adotadas em cada definição.

O termo “raça” foi, no transcurso da história, utilizado de diversas formas, e a ele foi
incorporado diferentes significados, ganhando novo sentido com o surgimento do movimen-
to negro que passou a utilizar o termo como símbolo de orgulho e resgate da dignidade5.

3
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [E-book].
4
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conheça o Brasil – população. Cor ou raça.
[S.d.]. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html.
Acesso em: 21 de ago. 2022.
5
GURGEL, Argemiro Eloy. Origem do racismo em relação ao negro no Brasil. São João Del Rei: Universidade
Federal de São João Del-Rei, 2020. (Série Caminhos de Cidadania). Disponível em: https://ufsj.edu.br/portal-
2-repositorio/File/fortim/cartilha%20racismo%20web%20(2).pdf. Acesso em: 24 ago. 2022.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |255

Em relação ao racismo, o professor Sílvio Almeida entende que “é uma forma siste-
mática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de
práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagem ou privilégios para
indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”6.

Questões complexas como o racismo, segundo Jessé Souza7, precisam ser de-
batidas de forma correta, para que se alcance uma definição cada vez mais precisa, ainda
mais porque o estudo sobre o tema tem crescido no país, contudo, não há uma precisão
ou esclarecimento quanto ao que realmente é o racismo brasileiro.

Ao abordar o tema, Djamila Ribeiro em sua obra Pequeno Manual Antirracista,


afirma que “o racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não um
simples ato da vontade de um indivíduo” e conclui destacando que “a prática antirracista
é urgente”8.

A narrativa histórica Brasileira, conforme ensinamento do professor Jessé Souza


em sua obra A ralé brasileira: quem é e como vive, apresenta o que ele denomina de “mito
da brasilidade” essa ideia de brasileiro cordial, caloroso, amistoso e acolhedor que vai sus-
tentar uma identidade nacional criada, que impõe entraves para se poder debater problemas
sociais graves9.

Outro fenômeno observado no Brasil é a negação da existência do racismo, o que,


dentre tantas outras questões problemáticas, dificulta a superação da desigualdade por
ele provocada.

Para ser possível abrir caminhos para superação do racismo é imprescindível o


reconhecimento de sua existência. O combate ao racismo encontra entraves nas estruturas
da sociedade, fenômeno conhecido como racismo estrutural.

Os reflexos do racismo estrutural estão presentes e podem ser identificados tanto


nas instituições públicas como nas privadas, as práticas racistas nas organizações se ma-
nifestam de forma velada e silenciosa como parte da política organizacional que vai manter
os privilégios dos grupos hegemônicos, como reflexo do sistema social que oprime, cria
óbice, impede e dificulta a ascensão de pessoas pertencentes aos grupos vulneráveis10.

6
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020. p. 32.
7
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 364.
8
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [E-book].
9
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 39.
10
HIRSCH, Fábio Periandro de Almeida; HIRSCH, Carla Conchita Pacheco Bouças; MONTEIRO, Maria Carolina
Barroso Bastos. Políticas públicas versus racismo estrutural e necropolítica no Brasil. Revista de Direito,
Viçosa, v. 13, n. 3, p. 01-17, 2021. DOI: doi.org/10.32361/2021130311663. p. 4. Disponível em: https://
dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8080723. Acesso em: 29 jan. 2022.
256| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

O racismo se perpetua de forma velada e institucionalizada, criando e mantendo o


privilégio dos brancos ao mesmo tempo que excluí e cria óbices aos negros. Esses óbices
podem ocorrer de maneira explícita, o que fica evidenciado em casos de violência contra
pessoas ou grupos, ou ainda de forma velada, que ocorre em especial quando se ignora a
existência da desigualdade, sem a criação de políticas de superação dessas diferenças. Nas
palavras de Silvio Almeida, “as instituições são racistas porque a sociedade é racista”11.

As pessoas negras encontram diversas barreiras, produto da discriminação, que


por vezes é velada e faz parte da estrutura da sociedade e da organização onde essas
pessoas estão inseridas12.

Segundo Resende e Tostes o Brasil possui uma dívida de reparação histórica com
sua população negra e parda13. O sistema jurídico é reflexo do que acontece nos demais
âmbitos da sociedade. Apenas a título exemplificativo, dados em relação ao encarcera-
mento no Brasil demonstram a diferença de tratamento recebida pelas pessoas negras, que
correspondem à 63,7% da população carcerária14.

Ainda, comparativamente, os negros enfrentam um maior rigor da justiça, uma vez


que 49,4% dos brancos detidos permanecem presos e 41% receberam liberdade provisória
com cautelar, em relação aos negros 55,5% permanecem presos ao passo que apenas
35,2% obtêm liberdade provisória com cautelar15.

A questão que emerge da análise da realidade das pessoas negras do país é que
igualdade não é para todos, e isso impacta diretamente a vida das pessoas, em especial
negras, que embora tenham seus direitos consagrados na constituição, muitas das vezes
não os veem efetivados.

11
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020. p. 47
12
AZEVEDO, Amilton Magno; SILVA, Adriana Maria de Souza da; CONCEIÇÃO, Elaine Barbosa da. Reflexões
sobre o racismo: desigualdade, raça e gênero no mundo do trabalho. In: CAMILO, Juliana; FORTIM, Ivelise;
AGUERRE, Pedro (org.). Gestão de pessoas: prática de gestão de diversidade nas organizações. São Paulo:
Editora Senac, 2019. p. 111-126. p. 118.
13
RESENDE, Débora Penido; TOSTES, Laura Ferreira Diamantino. A discriminação racial, o caso “magalu” e o
dever das empresas de promover os direitos humanos. Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 24, n. 2,
p. 213-223, 2020. p. 217. Disponível em: https://revista.trt10.jus.br/index.php/revista10/article/view/426/338.
Acesso em: 30 jan. 2022.
14
ANDRADE, Paula. O encarceramento tem cor, diz especialista. Agência CNJ de Notícias, 09 jul. 2020.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/. Acesso em: 29 jan. 2023.
15
MARTINS, Helena. Lei de drogas tem impulsionado encarceramento no Brasil. Agência Brasil – EBC, Brasília,
08 jun. 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/lei-de-drogas-tem-impul-
sionado-encarceramento-no-brasil. Acesso em: 29 jan. 2023.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |257

3 PLURALISMO
O pluralismo está intimamente ligado ao reconhecimento da diversidade e ao rom-
pimento com a ideia de formação homogênea da sociedade. Essa questão é essencial para
o caminho de superação do racismo no Brasil, em especial para se dar visibilidade para as
pessoas negras no sistema jurídico constitucional do país.

Segundo Maliska,

Pluralismo é uma palavra intrínseca à noção de constitucionalismo democrático.


Com exceção do período inicial do desenvolvimento das Constituições, assentado
em estruturas sociais homogêneas que procuravam negar as diferenças, o consti-
tucionalismo atual é essencialmente pluralista. Talvez se possa dizer que a noção
de pluralismo já estava presente no primeiro momento do constitucionalismo, mas
como pluralismo essencialmente partidário, assentado na ideia de divergências de
opiniões em um ambiente de amplo consenso. As revoluções burguesas foram,
essencialmente, revoluções que mexeram nas estruturas econômica e social do
mundo existente, sem alterar o mundo da cultura enquanto ambiente de reprodução
de uma sociedade assentada ainda na desigualdade de gênero, no preconceito ra-
cial, no caráter seletivo da natureza quanto à legitimidade dos mais aptos (exclusão
dos deficientes) e no papel social da família patriarcal. A revolução dos costumes se
deu no século XX e é uma realidade do constitucionalismo do século XXI. [...] o plu-
ralismo que aqui se aborda é o resultado dessa revolução cultural, que mexeu com
as estruturas de uma sociedade ainda muito desigual sob o ponto de vista de sua
estrutura social, não obstante, bastante liberal quanto às questões econômicas16.

Assim, temos que o Constitucionalismo atual é por essência pluralista. Não se pode
ignorar que a revolução burguesa que provocou profundas modificações nas estruturas
econômicas e sociais, não alterou o ambiente cultural, cujas mudanças só foram sentidas
no século XX influenciando o constitucionalismo do século XXI.

Desse modo, “é no contexto dessa realidade do século XX que o princípio do plu-


ralismo político, elencado no art. 1º, inciso V, da Constituição Federal de 1988, deve ser
lido e interpretado”17.

16
MALISKA, Marcos Augusto. Dignidade humana e pluralismo constitucional. Limites e possibilidades de dois
princípios constitucionais em tempos de profundo dissenso político. Revista da Ajuris – Associação dos Juízes
Do Rio Grande Do Sul, v. 45, n. 144, p. 373-390, 2018. p. 381. Disponível em: http://revistadaajuris.ajuris.org.
br/index.php/REVAJURIS/article/view/916/Ajuris-144-DT%2013.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
17
MALISKA, Marcos Augusto. Dignidade humana e pluralismo constitucional. Limites e possibilidades de dois
princípios constitucionais em tempos de profundo dissenso político. Revista da Ajuris – Associação dos Juízes
Do Rio Grande Do Sul, v. 45, n. 144, p. 373-390, 2018. p. 381. Disponível em: http://revistadaajuris.ajuris.org.
br/index.php/REVAJURIS/article/view/916/Ajuris-144-DT%2013.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
258| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

Mesmo fortemente influenciadas pelo pluralismo, as constituições do século XXI,


em especial a brasileira, ainda não superaram as fortes raízes racistas presentes nas so-
ciedades, embora seja possível observar importantes avanços.

A ideia de pluralismo, na esfera do direito constitucional, está situada no contexto


da abertura da Constituição para dentro18, uma vez que a definição de abertura, não só
está relacionada com a internacionalização da ordem constitucional, em especial, ao que
se refere a proteção dos direitos humanos, mas também em caracterizar as constituições
das sociedades pluralistas19. Assim, segundo Maliska “a Constituição se abre para dentro,
para a sua própria sociedade, reconhecendo direitos de uma sociedade plural”20.

Ao reconhecerem o pluralismo as constituições se desligam do princípio da homoge-


neidade, uma vez que reconhecem as diferenças e dão subsídio para a promoção de políticas
públicas que promovam a diversidade por meio da busca da igualdade de oportunidades21.

Quanto a relação entre pluralismo e Constituição, destaca Maliska:

Assim a chamada relação entre pluralismo e Constituição deve ser pautada pela
mediação de que não há pluralismo sem Constituição. A tensão constante entre o
“singular” e o “plural” se apresenta aqui na relação entre Constituição e pluralismo.
A existência da unidade, do singular, no entanto, implica um mínimo comum, capaz
de promover o vínculo com o plural. Nesse aspecto, os princípios que orientam a
ordem constitucional possuem importância central na condição de referência para
a unidade. De igual forma como na abertura para fora, em que há a necessidade
de uma comunhão de premissas para se falar em ordens constitucionais abertas,
a ordem constitucional no plano interno também necessita de elementos comuns
dessa sociedade pluralista22.

18
“O conceito de abertura, além de indicar um elemento fundamental da existência da ordem constitucional no
contexto de uma rede de constituições, também serve para caracterizar as constituições das sociedades plura-
listas. Assim, a ordem constitucional se abre para dentro, para sua própria sociedade, no sentido de que, além
de garantir o pluralismo, a ordem constitucional de abre para ele” (MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos
da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá, 2013. p. 36).
19
MALISKA, Marcos Augusto. Dignidade humana e pluralismo constitucional. Limites e possibilidades de dois
princípios constitucionais em tempos de profundo dissenso político. Revista da Ajuris – Associação dos Juízes
Do Rio Grande Do Sul, v. 45, n. 144, p. 373-390, 2018. p. 382. Disponível em: http://revistadaajuris.ajuris.org.
br/index.php/REVAJURIS/article/view/916/Ajuris-144-DT%2013.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
20
MALISKA, Marcos Augusto. Dignidade humana e pluralismo constitucional. Limites e possibilidades de dois
princípios constitucionais em tempos de profundo dissenso político. Revista da Ajuris – Associação dos Juízes
Do Rio Grande Do Sul, v. 45, n. 144, p. 373-390, 2018. Disponível em: http://revistadaajuris.ajuris.org.br/
index.php/REVAJURIS/article/view/916/Ajuris-144-DT%2013.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
21
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 46.
22
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |259

Com a abertura democrática e a estreita relação entre processo de constitucionaliza-


ção do sistema jurídico e a redemocratização, ampliando o catálogo de direitos fundamentais
e o encaminhamento no sentido de efetivar as garantias e promover a justiça constitucio-
nal23, observa-se “uma nova fase da história constitucional e política na América Latina, que
passou a ser caracterizada por sistemas orientados à tutela dos direitos fundamentais”24.

Nesse ponto, cumpre destacar que a influência do movimento pluralista impactou


diversos países na América Latina, portanto, teve especial relevância em suas constituições,
ademais, não são pequenas as influências e semelhanças entre os países da América Latina.

Dentre as tendências e inovações introduzidas pelas recentes constituições lati-


no-americanas, uma das mais significativas é o pluralismo que aponta para uma
reapropriação do Estado Constitucional, revisitando de forma crítica e criativa suas
promessas não cumpridas e premissas não consideradas25.

O constitucionalismo latino-americano contemporâneo apresenta como uma de suas


tendências a tutela e o reconhecimento da diversidade e do pluralismo, como componente
de sociedades heterogêneas, o que Melo denomina “exemplos de Estados plurinacionais”26.

Ainda, o referido autor destaca o reconhecimento da herança africana pelo Estado


brasileiro, o que tem especial relevância para a presente pesquisa:

Em alguns países, como no Brasil, por exemplo, é reconhecida também a herança


africana, mas os efeitos jurídicos dessa afirmação constitucional concernem predo-
minantemente à valorização e à proteção do patrimônio cultural que lhe deriva. Essa
proteção do pluralismo cultural se insere, assim, nas normas relativas à proteção
dos bens culturais, que são asseguradas por previsões constitucionais27.

23
MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. p. 140. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
24
MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. p. 140. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
25
MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. p. 140. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
26
MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. p. 145. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
27
MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. p. 140. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
260| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

Esse reconhecimento da cultura africana vem no sentido de reparar o apagamento


dessa cultura que se estendeu por décadas, como produto de uma sociedade escravocrata
e excludente.

Convém destacar que o pluralismo latino-americano em muitos pontos se distingue


do pluralismo constitucional europeu.

O pluralismo previsto nos textos constitucionais latino-americanos envolve, portan-


to, novos significados se comparados ao pluralismo proclamado no constituciona-
lismo europeu, que é predominantemente considerado como pluralismo de ideias e
posições políticas, protegido em prol da democracia representativa, da qual se en-
contra excluída a maioria dos estrangeiros que vivem nos países da União Europeia
e que, no entanto, representam parte significativa da população e da cadeia de pro-
dução – uma população marginalizada e que se alarga exponencialmente à medida
que crescem os conflitos sociopolíticos, econômicos e ecológicos que induzem os
fluxos migratórios na trilha dos processos de globalização28.

Questão basilar na diferença entre o pluralismo constitucional americano, europeu


e o latino-americano reside no fato de “as concepções culturais e sociais que existem na
Europa e na América do Norte não permitem contemplar a pluralidade social e as diferen-
ças que existem, logo, muitos [...] grupos ficaram por bastante tempo fora da participação
política e jurídica”29.

De se destacar que

A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políti-
cos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado
momento histórico do desenvolvimento da sociedade. Enquanto pacto político que
expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se legitima pela con-
vivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas. Assim,
toda sociedade política tem sua própria constituição, corporalizando suas tradições,
costumes e práticas que ordenam a tramitação do poder30.

28
MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. p. 140. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
29
SANTOS, Fernando B. dos; RIBEIRO, Luiz Gustavo G. O neoconstitucionalismo e a absorção cultural dos povos
originários para proteção da floresta amazônica. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25,
n. 2, p. 195-227, 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i21581. Disponível em: https://revistaeletro-
nicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1581. Acesso em: 29 set. 2022.
30
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, IX, v. I, 2010, Curitiba. Anais [...]. Curitiba: ABDConst, 2010. p.
143-155. p. 143. Disponível em: https://www.abdconst.com.br/revista3/antoniowolkmer.pdf. Acesso em: 25
set. 2022.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |261

Desse modo, as constituições refletem os diferentes interesses de uma sociedade


e tentam conciliar pontos de vistas e necessidades por vezes antagônicas, esse olhar plura-
lista que consagra as diversidades e propõe garantias que permitam salvaguarda diferentes
direitos é essencial na busca pela igualdade racial.

Wolkmer destaca que

Ainda que de forma limitada e pouco satisfatória, a Carta Política Brasileira de 1988
contribui para superar uma tradição publicista liberal-individualista e social-interven-
cionista, transformando-se num importante instrumento diretivo propulsor para um
novo constitucionalismo, de tipo pluralista e multicultural, com grandes avanços por
contemplar e destacar questões como a dos povos originários (população indíge-
na), e dos direitos aos bens comuns naturais, sociais e culturais31.

A partir da perspectiva pluralista é possível refletir sobre a efetivação dos direitos


da população negra, de modo a criar mecanismos capazes de romper com o preconceito
existente na sociedade brasileira, ao que nos parece, passa pelo constitucionalismo negro,
na busca da visibilidade dessa população por tanto tempo excluída dos espaços de poder
e decisões da sociedade.

4 CONSTITUCIONALISMO NEGRO
A Constituição Federal de 1988 é denominada de “Carta Cidadã”, uma vez que aco-
lheu distintos grupos sociais no seu processo de formação. O que se observa, no entanto,
é que esses acolhimentos e garantias, em relação à luta antirracista, se dá no âmbito teóri-
co32. “Dessa maneira, quase sempre, ela é mais referenciada quando se objetiva destacar
a criminalização do racismo frente à sua utilização como uma diretriz de interpretação e de
ação contra a estrutura racial brasileira”33.

31
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, IX, v. I, 2010, Curitiba. Anais [...]. Curitiba: ABDConst, 2010. p.
143-155. p. 152. Disponível em: https://www.abdconst.com.br/revista3/antoniowolkmer.pdf. Acesso em: 25
set. 2022.
32
RABELO, Danilo dos Santos; SPOSATO, Karyna Batista. A importância do constitucionalismo latino-americano
na formação de uma hermenêutica jurídica antirracista. In: MASSAÚ, Guilherme Camargo; COSTA, Victor
Ribeiro da (org.). Direitos fundamentais sociais: teoria e prática. 1. ed. Pelotas: UfPel, 2022. v. 1. p. 33-60. p.
34. Disponível em: https://guaiaca.ufpel.edu.br/bitstream/handle/prefix/8166/Direitos_Fundamentais_Sociais_
Digital.pdf?sequence=1. Acesso em: 14 ago. 2023.
33
RABELO, Danilo dos Santos; SPOSATO, Karyna Batista. A importância do constitucionalismo latino-americano
na formação de uma hermenêutica jurídica antirracista. In: MASSAÚ, Guilherme Camargo; COSTA, Victor
Ribeiro da (org.). Direitos fundamentais sociais: teoria e prática. 1. ed. Pelotas: UfPel, 2022. v. 1. p. 33-60.
Disponível em: https://guaiaca.ufpel.edu.br/bitstream/handle/prefix/8166/Direitos_Fundamentais_Sociais_
Digital.pdf?sequence=1. Acesso em: 14 ago. 2023.
262| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

Em relação a representatividade e a ocupação de espaços de decisão:

Os povos indígenas, não apenas, os negros também, têm sido menosprezados


quanto ao desenvolvimento de mecanismos para ampliar a sua representação polí-
tica. A Constituição garante a demarcação de terras indígenas e quilombolas, inter-
pretada em conjunto com a Convenção n. 169 da OIT autoriza processos autonômi-
cos. Entretanto, os direitos dos índios, formado pelo campo discursivo indianista,
têm sofrido constantes ataques das bancadas anti-indígenas devido os interesses
de setores sociais ávidos pela exploração dos recursos naturais em sua posse e
usufruto. Permanece a tensão discursiva entre dois campos de produção de sen-
tidos sobre as terras indígenas e as formas que os índios usufruem dos recursos
naturais e bem viver34.

Ainda, não se pode ignorar as obrigações do Estado em relação à promoção dos


direitos fundamentais:

A partir da vinculação das atividades estatais do Legislativo, Executivo e Judiciário


aos direitos fundamentais, surgem não somente obrigações para o Estado de abs-
ter-se de ingerências no âmbito do que eles protegem, como também obrigações de
praticar tudo aquilo que servir à realização dos direitos fundamentais, independente-
mente da configuração de posições fundamentais jurídicas definitivas35.

A solução passa pela adoção de políticas efetivas por parte do Estado, não basta que
haja positivação constitucional e infraconstitucional garantindo igualdade e propondo puni-
ção a comportamentos racistas, é fundamental recontar a história de forma a apresentar o
protagonismo negro, apagado por um discurso eurocêntrico, elitista e, em especial, branco.

Os constantes silenciamentos das experiências negras na história constitucional,


somados ao arcabouço normativo racista e ao apagamento da raça na teoria e prá-
tica jurídica brasileira, têm forte influência nas disputas constitucionais do presente

34
ALBUQUERQUE, Antonio Armando U. do L. Princípio constitucional da ecodignidade pluralista: breve intro�-
dução aos caracteres do processo de etnodemocratização. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 24, n. 1, p. 91-125, jan./abr. 2019. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v24i11427. p. 92.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1427. Acesso em: 29
set. 2022.
35
GAVIÃO FILHO, Anízio Pires; FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais estatuídos não diretamente
ou implícitos? Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 3, p. 232-257, set./dez.
2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i31630. p. 234. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.
unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1630/676. Acesso em: 20 set. 2022.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |263

– uma disputa do agora que se refere à forma como condicionamos a afirmação e


negação dos direitos36.

A problematização que propõe refere-se ao pluralismo para dar visibilidade a cultura


afro-americana, apagada da história em razão de uma narrativa eurocêntrica, e analisar
como essa invisibilidade corrobora para manutenção das desigualdades, visto que as insti-
tuições reproduzem as estruturas racistas das sociedades em que estão inseridas.

Nessa linha, entende Galvão que “o jurídico como uma das tecnologias seculares do
racismo é algo espetacular pelo fato de até hoje ainda condenar as pessoas pela sua raça”37.

Na América Latina, essas minorias são excluídas e discriminadas, política, social e


economicamente pelo próprio Estado, não há neutralidade. Por isso mesmo, tais mi-
norias reivindicam constantemente não apenas o devido reconhecimento e respeito
à sua diversidade cultural, mas, principalmente, a participação no planejamento es-
tratégico de políticas públicas diferenciadas38.

Ao abordar a necessidade de um constitucionalismo feminista, a professora


Estefânia Barboza enfatiza a importância de revisitar temas clássicos do constituciona-
lismo, para ser possível modificar o enfoque dos debates e discussões constitucionais39.

Para além disso, ressalta a importância de se ter um direito constitucional com a


análise feminista e de gênero. O direito constitucional é fundacional e fundamental
para a maior parte dos sistemas legais do mundo contemporâneo, o que, por sua
vez, implica que é pelas constituições que se desenha compromissos fundamentais
que dizem respeito à cidadania, direitos e deveres40.

36
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. 20, p. 131-155,
maio/ago. 2021. p. 133. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/48702/30437.
Acesso em: 30 jan. 2022.
37
BRITO, Thiago Henrique Borges. Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro: o progresso sob cabresto à brasilei�-
ra. HHMaganize Humanidades em rede, UFOP, 04 nov. 2020. p. 14. Disponível em: https://hhmagazine.com.br/
se-a-farinha-e-pouca-meu-pirao-primeiro-o-progresso-sob-cabresto-a-brasileira/. Acesso em: 28 jan. 2022.
38
ALBUQUERQUE, Antonio Armando U. do L. Princípio constitucional da ecodignidade pluralista: breve intro�-
dução aos caracteres do processo de etnodemocratização. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 24, n. 1, p. 91-125, jan./abr. 2019. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v24i11427. p. 94.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1427. Acesso em: 29
set. 2022.
39
BARBOZA, Estefâinia M. de Q.; DEMETRIO, André. Quando o gênero bate à porta do STF: a busca por um
constitucionalismo feminista. Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 3, e1930, 2019. p. 12. Disponível em:
https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/139222. Acesso em: 14 ago. 2023.
40
BARBOZA, Estefâinia M. de Q.; DEMETRIO, André. Quando o gênero bate à porta do STF: a busca por um
constitucionalismo feminista. Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 3, e1930, 2019. Disponível em: https://
bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/139222. Acesso em: 14 ago. 2023.
264| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

A mesma lógica aplica-se à um constitucionalismo negro, visto que a população


negra também pertence a um grupo representativamente minoritário, cujas necessidades e
demandas foram, por séculos, deixadas a margem do ordenamento jurídico, mais que isso,
a estrutura jurídica foi instrumentalizada para corroborar com a exclusão e manutenção das
desigualdades raciais.

A racialização indexada nessas terras republicanas viria por meio da proposta cultura-
lista do início do XX, já comentado, popularmente conhecida como democracia racial.
Sendo assim, o que veremos é a comunidade preta sendo tratada com diversos
estereótipos e como aquela parte das pessoas que alimentam a identidade nacional
no que compete a feijoada, ao samba, as artes que se misturam com a mítica religio-
sidade. Veja. Esse dado é muito importante. Precisamos compreender isso. No que
tange ao Brasil a comunidade preta não foi invisibilizada, mas sim criado um cabresto
ontológico sob a mesma. Ou mesmo um regime racializado de representação41.

O que se constata é que no Brasil ocorreu o que podemos denominar de invisibi-


lidade seletiva, pois houve uma miscigenação que reconhece a influência cultural africada
em alguns aspectos, o que fundamenta os argumentos de inexistência de preconceito no
país, mas faz um reconhecimento pontual, dado que a população negra não alcança essa
visibilidade em espaços de poder.

As culturas não são puras. Isso fornece às tradições um conteúdo sincrético, em


que se pode observar a incorporação de outros valores culturais e a manutenção
de aspectos vinculados às origens étnico-raciais. O autor destaca que um dos le-
gados do império é a migração dos povos colonizados para as metrópoles. Esses
movimentos inscrevem transformações nas tradições dos povos colonizados e dos
colonizadores. Seguindo os fluxos desses movimentos, a metrópole transforma-se
em uma referência de dominação política, econômica e cultural42.

Exemplo disso são as religiões afro-brasileiras que possuem uma identidade cul-
tural e religiosa multicultural43. Mas, isso não exclui as estigmatizações e o preconceito.

41
BRITO, Thiago Henrique Borges. Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro: o progresso sob cabresto à brasilei�-
ra. HHMaganize Humanidades em rede, UFOP, 04 nov. 2020. p. 06. Disponível em: https://hhmagazine.com.br/
se-a-farinha-e-pouca-meu-pirao-primeiro-o-progresso-sob-cabresto-a-brasileira/. Acesso em: 28 jan. 2022.
42
RODRIGUES, Ricardo Santos. Entre o passado e o agora: diáspora negra e identidade cultural. Revista EPOS,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. p. 3. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S2178-700X2012000200008. Acesso em: 01 fev. 2022.
43
RODRIGUES, Ricardo Santos. Entre o passado e o agora: diáspora negra e identidade cultural. Revista EPOS,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. p. 4. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S2178-700X2012000200008. Acesso em: 01 fev. 2022.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |265

O anseio de produzir uma única narrativa e cultura da nação sempre mobilizou ex-
trema violência, seja para abafar as ações de contestação à segregação racial e
negação de direitos, ou na edificação de uma imagem nacional – mais evidente
na transição do século XIX para o XX – da democracia racial com as políticas de
apagamento da raça como marcador da desigualdade44.

Demandar uma matriz constitucional baseada nas experiências da diáspora sig-


nifica almejar que seja reconhecido o protagonismo negro no seio do constitucionalismo
moderno45, de modo que se permita “enxertar a narrativa constitucional de eventos e
movimentos contracoloniais fundamentais para a releitura do conteúdo constitucional com
a história da diáspora africana”46.

A questão é revisitar a história constitucional brasileira de modo a não excluir da


narrativa o contexto colonial-escravista, apresentar o papel dos quilombos que não pode
ser resumida aos vestígios da escravidão, uma vez que são fontes da história jurídica de
disputas e negociações por direitos como liberdade, igualdade e propriedade47.

A problemática está atrelada “ao negacionismo presente nos pressupostos epistê-


micos, teóricos e metodológicos da tradição jurídica liberal, que, no Brasil, instrumentalizou
os signos racistas em favor da manutenção das desigualdades raciais”48.

Em que pese a problemática da neutralidade da cultura do Estado liberal, não se


pode negar os avanços relacionados liberdade de expressão, igualdade formal, dentre tan-
tos outros49.

44
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. 20, p. 131-155,
maio/ago. 2021. p. 139. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/48702/30437.
Acesso em: 30 jan. 2022.
45
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. 20, p. 131-155,
maio/ago. 2021. p. 140. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/48702/30437.
Acesso em: 30 jan. 2022.
46
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. 20, p. 131-155,
maio/ago. 2021. p. 139. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/48702/30437.
Acesso em: 30 jan. 2022.
47
GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. 20, p.
131-155, maio/ago. 2021. p. 141-143. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/
view/48702/30437. Acesso em: 30 jan. 2022.
48
GOMES, Rodrigo Portela. Cultura jurídica e diáspora negra: diálogos entre Direito e relações raciais e a te�-
oria crítica da raça. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 1203-1241, abr./jun. 2021. p. 1209.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/NFJR7sgzKmzc78Z5Q87JYGK/abstract/?lang=pt. Acesso em:
12 set. 2022.
49
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo
Horizonte: UFMG, 2003.
266| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

Entretanto, a neutralidade do Estado funciona apenas quando se pressupõe uma


homogeneidade cultural ampla entre os governados. Essa presunção fundamentou
as democracias liberais ocidentais até recentemente. Sob as novas condições mul-
ticulturais, entretanto, essa premissa parece cada vez menos válida. [...] “A questão
multicultural tem ajudado a desconstruir algumas outras incoerências do Estado
constitucional liberal. Acredita-se que a “neutralidade” do Estado liberal (isto é, o
fato de que este é representado como se não buscasse na esfera pública nenhuma
noção particular do “bem”) garante a autonomia pessoal e a liberdade do indivíduo
de buscar sua própria concepção do “bem”, contanto que isso seja feito no domínio
privado. A ordem legal eticamente neutra do Estado liberal depende, assim, da estri-
ta separação entre as esferas pública e privada50.

Desse modo, não se pode permitir que o Estado se olvide de promover políticas
e ações sob o argumento da neutralidade, em especial frente as substâncias diferenças
existentes entre a população.

Por fim, cumpre destacar que no contexto nacional é necessário que se debata o
constitucionalismo da perspectiva da diáspora negra de modo a revisitar a narrativas mul-
ticulturais para serem um fator agregador e não discriminatório.

Os reflexos dessa abordagem no Brasil precisam levar em conta as características


do sistema jurídico adotado aqui, qual seja, a tradição do civil law. Dessa maneira,
os esforços são concentrados sobre o processo legislativo, admitido como meio
legitimo e válido para elaboração das regras. Neste sistema, as leis são a principal
fonte do direito, indicativo de que as litigâncias se voltaram à legislação, especial-
mente na sua forma de política pública. Desse modo, a mediação política tem im-
portante significado quando articulada ao conteúdo legal, expressa na racialização
legislativa. Já que a lei que ocupa a função diretiva da interpretação judicial, atuação
administrativa e dos comportamentos na comunidade política. Aqui alcanço outro
ponto desta interação, a compreensão que esses movimentos estabelecem sobre
a relação entre direito e política. Na problematização do “silêncio dos juristas”, a
interação entre ideologias racistas e o caráter positivo-liberal das normas jurídi-
cas - abstração, generalidade e universalidade - recalcavam os atributos raciais. Ou
seja, não estando aparente o dispositivo racial, permitia-se o manejo dos discursos
de igualdade, harmonia e democracia racial em descompasso com uma realidade
profundamente desigual51.

50
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo
Horizonte: UFMG, 2003. p. 79-78
51
GOMES, Rodrigo Portela. Cultura jurídica e diáspora negra: diálogos entre Direito e relações raciais e a te�-
oria crítica da raça. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 1203-1241, abr./jun. 2021. p. 1226.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/NFJR7sgzKmzc78Z5Q87JYGK/abstract/?lang=pt. Acesso em:
12 set. 2022.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |267

Assim, ao reconhecer a pluralidade e a diversidade é necessário que se olhe para


todo o sistema jurídico constitucional, de modo que os instrumentos sejam utilizados para
promover a visibilidade e a igualdade para população negra, respeitada sua cultura e dife-
renças, e jamais para instrumentalizar a exclusão.

5 CONCLUSÃO
Para ser possível abrir caminhos para superação do racismo é imprescindível o
reconhecimento de sua existência e com isso repensar o sistema jurídico para que seja
instrumentalizado na luta antirracista.

Nessa seara, o pluralismo está intimamente ligado ao reconhecimento da diversida-


de e ao rompimento com a ideia de formação homogênea das sociedades, contudo, mais
do que reconhecer a diversidade é preciso que o texto constitucional seja instrumentalizado
para a superação das desigualdades raciais no país, que passa, necessariamente por revi-
sitar a história da população negra e apresentar a narrativa que valorize o seu protagonismo
removido da história.

Assim, entendemos que a materialização do pluralismo constitucional para via-


bilizar a superação da exclusão racial no Brasil e efetivar os direitos da população negra,
passa pelo reconhecimento de sua história, condição necessária para dar a visibilidade às
pessoas negras no sistema jurídico constitucional brasileiro.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Antonio Armando U. do L. Princípio constitucional da ecodignidade pluralista: bre-
ve introdução aos caracteres do processo de etnodemocratização. Revista Direitos Fundamentais
& Democracia, Curitiba, v. 24, n. 1, p. 91-125, jan./abr. 2019. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.
rdfd.v24i11427. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/1427. Acesso em: 29 set. 2022.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020.

ANDRADE, Paula. O encarceramento tem cor, diz especialista. Agência CNJ de Notícias, 09 jul. 2020.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/. Acesso em: 29
jan. 2023.

AZEVEDO, Amilton Magno; SILVA, Adriana Maria de Souza da; CONCEIÇÃO, Elaine Barbosa da.
Reflexões sobre o racismo: desigualdade, raça e gênero no mundo do trabalho. In: CAMILO, Juliana;
FORTIM, Ivelise; AGUERRE, Pedro (org.). Gestão de pessoas: prática de gestão de diversidade nas
organizações. São Paulo: Editora Senac, 2019. p. 111-126.
268| Gabriela Ganho - Derick Davidson Cordeiro

BARBOZA, Estefâinia M. de Q.; DEMETRIO, André. Quando o gênero bate à porta do STF: a busca por
um constitucionalismo feminista. Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 3, e1930, 2019. Disponível
em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/139222. Acesso em: 14 ago. 2023.

BRITO, Thiago Henrique Borges. Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro: o progresso sob cabresto à
brasileira. HHMaganize Humanidades em rede, UFOP, 04 nov. 2020. Disponível em: https://hhmagazi-
ne.com.br/se-a-farinha-e-pouca-meu-pirao-primeiro-o-progresso-sob-cabresto-a-brasileira/. Acesso
em: 28 ago. 2022.

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. A inserção da popu-


lação negra e o mercado de trabalho. [S.l.]: Dieese, 2021. Disponível em: https://www.dieese.org.br/
outraspublicacoes/2021/graficosPopulacaoNegra2021.html. Acesso em: 29 ago. 2021.

GAVIÃO FILHO, Anízio Pires; FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais estatuídos não
diretamente ou implícitos? Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 3, p.
232-257, set./dez. 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i31630. Disponível em: https://re-
vistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1630/676. Acesso em: 20 set. 2022.

GOMES, Rodrigo Portela. Cultura jurídica e diáspora negra: diálogos entre Direito e relações raciais
e a teoria crítica da raça. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 1203-1241, abr./jun.
2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/NFJR7sgzKmzc78Z5Q87JYGK/abstract/?lang=pt.
Acesso em: 12 set. 2022.

GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos. Revista Culturas Jurídicas, v. 8, n. 20,


p. 131-155, maio/ago. 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/
view/48702/30437. Acesso em: 30 jan. 2022.

GURGEL, Argemiro Eloy. Origem do racismo em relação ao negro no Brasil. São João Del Rei:
Universidade Federal de São João Del-Rei, 2020. (Série Caminhos de Cidadania). Disponível em: ht-
tps://ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/fortim/cartilha%20racismo%20web%20(2).pdf. Acesso em:
24 ago. 2022.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia


Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

HIRSCH, Fábio Periandro de Almeida; HIRSCH, Carla Conchita Pacheco Bouças; MONTEIRO, Maria
Carolina Barroso Bastos. Políticas públicas versus racismo estrutural e necropolítica no Brasil. Revista
de Direito, Viçosa, v. 13, n. 3, p. 01-17, 2021. DOI: doi.org/10.32361/2021130311663. Disponível
em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8080723. Acesso em: 29 jan. 2022.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades sociais por cor ou


raça no Brasil. Estudos e pesquisas: informação demográfica e socioeconômica. v. 41. Rio de Janeiro:
IBGE, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=deta-
lhes&id=2101681. Acesso em: 27 ago. 2022.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conheça o Brasil – população. Cor ou


raça. [S.d.]. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-
-ou-raca.html. Acesso em: 21 de ago. 2022.
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial... |269

MALISKA, Marcos Augusto. Dignidade humana e pluralismo constitucional. Limites e possibilida-


des de dois princípios constitucionais em tempos de profundo dissenso político. Revista da Ajuris
– Associação dos Juízes Do Rio Grande Do Sul, v. 45, n. 144, p. 373-390, 2018. Disponível em:
http://revistadaajuris.ajuris.org.br/index.php/REVAJURIS/article/view/916/Ajuris-144-DT%2013.pdf.
Acesso em: 14 ago. 2023.

MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração.


Curitiba: Juruá, 2013.

MARTINS, Helena. Lei de drogas tem impulsionado encarceramento no Brasil. Agência Brasil – EBC,
Brasília, 08 jun. 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/lei-de-
-drogas-tem-impulsionado-encarceramento-no-brasil. Acesso em: 29 jan. 2023.

MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América Latina.


Revista Anistia Política e Justiça de Transição, v. 4, p. 140-155, 2011. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/tablas/r29981.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.

RABELO, Danilo dos Santos; SPOSATO, Karyna Batista. A importância do constitucionalismo latino-a-
mericano na formação de uma hermenêutica jurídica antirracista. In: MASSAÚ, Guilherme Camargo;
COSTA, Victor Ribeiro da (org.). Direitos fundamentais sociais: teoria e prática. 1. ed. Pelotas: UfPel,
2022. v. 1. p. 33-60. Disponível em: https://guaiaca.ufpel.edu.br/bitstream/handle/prefix/8166/
Direitos_Fundamentais_Sociais_Digital.pdf?sequence=1. Acesso em: 14 ago. 2023.

RESENDE, Débora Penido; TOSTES, Laura Ferreira Diamantino. A discriminação racial, o caso “ma-
galu” e o dever das empresas de promover os direitos humanos. Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região,
Brasília, v. 24, n. 2, p. 213-223, 2020. Disponível em: https://revista.trt10.jus.br/index.php/revista10/
article/view/426/338. Acesso em: 30 jan. 2022.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [E-book].

RODRIGUES, Ricardo Santos. Entre o passado e o agora: diáspora negra e identidade cultural. Revista
EPOS, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul./dez 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S2178-700X2012000200008. Acesso em: 01 fev. 2022.

SANTOS, Fernando B. dos; RIBEIRO, Luiz Gustavo G. O neoconstitucionalismo e a absorção cul-


tural dos povos originários para proteção da floresta amazônica. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 25, n. 2, p. 195-227, 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i21581.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1581.
Acesso em: 29 set. 2022.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In:


SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, IX, v. I, 2010, Curitiba. Anais [...]. Curitiba:
ABDConst, 2010. p. 143-155. Disponível em: https://www.abdconst.com.br/revista3/antoniowolkmer.
pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
A VIOLÊNCIA NO FUTEBOL E O PAPEL
DA FIFA SUBORDINANDO-SE AOS
DIREITOS HUMANOS PARA
DIMINUIR AS ATROCIDADES

Eduardo Tourinho Gomes1

Sumário: 1. Introdução. 2. Direitos humanos – e o seu papel o tempo todo em todo o


lugar. 3. A FIFA e seu papel nos direitos humanos. 4. A violência no futebol brasileiro.
5. Conclusão: é possível uma solução?. Referências.

Resumo
O presente artigo visa discutir acerca da proteção que os direitos humanos deviam ter na
sociedade e sua relação com o futebol. Não há dúvidas de que na sociedade diversas são
as formas de violência, entretanto, recentemente a violência no futebol tem se elevado ex-
ponencialmente, fazendo com que os episódios de graves tragédias serem cada vez mais
comum, não somente no Brasil, mas pelo mundo a fora. O presente artigo tem o intuito
de fazer uma relação com a proteção que a FIFA, entidade máxima do futebol mundial
tem dado para os direitos humanos em uma tentativa de maior proteção e efetividade aos
mesmos em todo o globo.

Palavras-chave: Direitos humanos. Futebol. Violência. FIFA. Brigas de torcida.

1 INTRODUÇÃO
Os direitos humanos são fundamentais para a garantia da dignidade humana, da justi-
ça e da igualdade. Infelizmente, a violência no futebol é uma questão que viola esses direitos,
tanto para jogadores quanto para torcedores, mas além, para diversas pessoas que também
estão envolvidas no espetáculo, muitas vezes até mesmo fora das praças desportivas.

Não diferente, ultimamente cada vez mais frequente vemos episódios graves envol-
vendo brigar entre torcidas, jogadores, dirigentes e muitas vezes inclusive até com mortes.

1
Doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Advogado. E-mail: eduardo@tlg.adv.br
272| Eduardo Tourinho Gomes

A selvageria no futebol pode ocorrer em diversas formas, desde agressões físicas


entre jogadores, até confrontos violentos entre torcidas organizadas, com o uso de armas e
vandalismo. Essa violência pode ter consequências graves, incluindo lesões graves, morte
e danos materiais.

Essa inumanidade também pode afetar diretamente os direitos humanos dos jo-
gadores e torcedores, como o direito à vida, à liberdade de expressão e à segurança.
Jogadores e torcedores podem ser agredidos fisicamente ou verbalmente, além de terem
sua integridade física e emocional ameaçadas.

Por isso, é fundamental que as autoridades, os clubes, as federações e os próprios


torcedores atuem para prevenir e combater a violência no futebol, por meio de medidas
como a educação e conscientização dos torcedores, a melhoria da segurança nos estádios
e a punição rigorosa de infratores. Somente dessa forma, será possível garantir que os
direitos humanos de jogadores e torcedores sejam respeitados e protegidos

No presente artigo pretende-se fazer uma relação entre o futebol, direitos humanos
e algumas recomendações e práticas que a FIFA, Federação Internacional de Futebol, vem
tomando a partir da realização dos eventos de futebol para garantia uma melhor efetivação
dos direitos humanos na prática desportiva.

2 DIREITOS HUMANOS – E O SEU PAPEL O TEMPO TODO


EM TODO O LUGAR
Antes de ingressar na discussão acerca do que do papel da FIFA na tentativa de
diminuição da violência no futebol, importante trazer alguns conceitos de direitos humanos,
na tentativa de dar uma maior efetividade ao mesmo.

Não há dúvidas de que os direitos humanos devem ter uma perspectiva crítica
da filosofia do direito, sendo ele o motriz para toda a sociedade, devendo ser os direitos
humanos que parte da sociedade para concretização dos direito. Não há dúvida que deve
ter um protagonismo para criar e atualizar permanentemente os movimentos sociais por
condições dignas de vida na sociedade contemporânea2.

Ainda é necessário a busca na própria sociedade as concretizações dos direitos


humanos, assumindo um caráter instituído e instituinte3, ou seja, os direitos humanos
devem estar voltados para a sociedade, a fim de refletir os próprios anseios.

2
COSTA, Alexandre Bernardino. Prefacio. In: SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de
Janeiros: Lumen Juris, 2022.
3
COSTA, Alexandre Bernardino. Prefacio. In: SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de
Janeiros: Lumen Juris, 2022.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |273

Não diferente os direitos humanos, possuem também um viés de direito internacio-


nal, a tradição jus naturalista ao direito internacional consiste, portanto, na humanização
desde a qual denota a transição de um direito internacional de base contratual para um
direito de base objetiva4.

Assim pelo Brasil estar inserido em uma comunidade internacional, não poderia
despeitar as decisões dos comitês de direitos humanos no plano exterior5 sendo possível,
portanto o respeito as decisões exaradas pela FIFA, que apesar de não ser um órgão como
a ONU, trata-se de um ente internacional que goza de prestígio internacional.

Eis que a efetivação dos direitos humanos deve ser em um caráter pré-violatório,
multigarantista, interescalar e multiespacial, sendo esse o grande desafio da democracia6
sendo portanto possível que o direitos humanos se fundam com os organismos internacio-
nais, a fim de buscar em todos os planos esses substratos para uma concretização prévia
deles, respeitando também a individualidade de cada ser.

A conquista da possibilidade de toda pessoa poder reagir frente ao contexto de


relações em que se encontra a partir do seu próprio critério de dignidade humana, que tem
um significado e um desenvolvimento específico de acordo com cada contexto cultural,
ético, social e político7.

Direitos humanos devem ser em tempo integral e em todo o lugar como dito por
Helio Gallardo8 assim, temos, infelizmente que ressaltar que os direitos humanos também
devem ser respeitado nos estádios de futebol, nos fins de semana, nas horas de lazer, não
é possível entender como lazer o desrespeito aos direitos humanos.

Na construção de um fundamento para os direitos humanos, deve-se levar em


conta cinco elementos, conforme entendimento de Helio Gallardo9: luta social, reflexão
filosófica, reconhecimento jurídico positivo, eficácia e efetividade jurídica e sensibilidade
sociocultural e popular. A luta social, seria sempre a análise dos direitos humanos na so-

4
LAUTERPACHT, Hersch. The function of law in the international community. Oxford: Clarendon Press, 1933. p. 421.
5
SQUEFF, Tatiana Cardoso. Os limites das decisões de comitês de tratados de direitos humanos. In: GOMES,
Eduardo Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.);
SALLES, Letícia Maria R.; LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal e o direito
internacional. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2020. p. 196.
6
COSTA, Alexandre Bernardino. Prefacio. In: SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de
Janeiros: Lumen Juris, 2022.
7
GALLARDO, Helio. Teoria critica: matriz y posibilidad de derechos humanos, Madrid: Los Livros de Lara
Catarata, 2005.
8
GALLARDO, Helio. Teoria critica: matriz y posibilidad de derechos humanos, Madrid: Los Livros de Lara
Catarata, 2005.
9
GALLARDO, Helio. Derechos humanos como movimiento social. Bogotá: Ediciones desde abajo, 2006.
274| Eduardo Tourinho Gomes

ciedade, no caso a “paixão” pelo futebol, a reflexão filosófica pode ser dita como a análise
de como o futebol interage e participa ativamente na vida das pessoas, o reconhecido
legal, pode ser visto como uma luz pelas atuais novas resoluções trazidas pela FIFA e por
fim chegaria se há a efetividade dessa legislação e uma sensibilidade do público à mesma.

Importante ressaltar ainda, que os conceitos de direitos humanos não podem ser
tão fixos, e devem partir da sociedade, o preceito ontológico que é o costume que os ju-
ristas têm de essencializar seus conceitos, reiterado o caráter historicizado e crendo que
eles têm vida própria sem serem afetados pelo tempo e pela contingências humana, não se
aplica aos direitos humanos10 ou seja, muitas vezes aquilo que antigamente era possível,
ou melhor, tolerável, hoje não é mais. Assim não é possível reduzir o aspecto plural dos
direitos humanos para um ato simplista.

Herrera Flores, alude que a dignidade humana, seria a implantação do potencial


humano para construir os meios e as condições necessárias que possibilitem a capacidade
humana genérica11.

Falar em proteção aos direitos humanos é compreender todo o sistema que o cerca
exige que se remonte ao final do segundo pós-guerra e toda a construção normativa e
jurisprudencial que ali se origina12.

Não há dúvidas de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a criação


das Nações Unidas são os dois pilares centrais para o início do sistema de proteção. Após
também se desenvolve uma série de convenções internacionais a fim de tornar o direito
internacional dos direitos humanos um corpo autônomo, a declaração e a ONU tiveram o
surgimento no pós-guerra, tornando-se um marco na tentativa de proteção internacional
humana13. Na qual o mundo estava voltado à temática humanitária, em razão das diversas
vidas ceifadas pela consequência da Guerra14.

10
ORESTANO, Riccardo. Introducción al estúdio del derecho romano. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 1998.
p. 417-418.
11
FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos como productos culturales. Sevilla: Aconcagua, 2005. p.
18, 57, 60 e 89.
12
GUERRA, Sidney; TONETTO, Fernanda F. Direitos humanos dos encarcerados: a responsabilidade dos esta-
dos a partir de uma leitura de decisões da corte europeia, da corte interamericana de direitos humanos e do
Supremo Tribunal Federal brasileiro. In: GOMES, Eduardo Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald
Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.); SALLES, Letícia Maria R.; LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos
do Supremo Tribunal Federal e o direito internacional. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2020. p. 159.
13
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Documentos. [S.d.]. Disponível em: https://www.un.org/es/
our-work/documents. Acesso em: 14 ago. 2023.
14
SALVO, Katia de Almeida. Notas sobre a inteligência artificial à luz dos direitos humanos. In: PASSIG, Andressa;
JAYME, Camila Soares Cavassin; PIRES, Joyce Finato (org.). Direitos fundamentais e novas tecnologias:
estudos em homenagem ao Prof. Marco Berberi. 1. ed. Curitiba: Íthala, 2023. p. 146.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |275

Os debates da dignidade da pessoa humanos e de seu reconhecimento, tornaram-


-se intensos, com a anotação feita no preambulo da declaração de 1948 no sentido de que
o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo15.

Assim direitos humanos e violência no futebol são temas que percorrem uma rea-
lidade complexa.

A sensação de insegurança que se multiplicou na sociedade brasileira é fruto, em


certa medida, de um evidente e gradativo aumento da violência e da criminalidade, espe-
cialmente a partir da década de 198016.

No âmbito da convivência humana, e no estágio de futebol há convivência acirrada,


e em cada espaço relacional, constroem-se e respeitam-se direitos humanos de acordo
com as espécies de relações humanas que são desenvolvidas17.

O poder se exerce entre sujeitos considerados superiores e humanos tratados


como objetos inferiores, manipuláveis, prescindíveis que se pode manipular18, em um es-
tádio de futebol é muito comum verificar essas citações, em especial em falas racistas,
homofobias e preconceituosas.

São muitas as discriminações, violências, marginalizações, explorações e exclu-


sões que fazem com que os outros sejam tratados como objetos e visibilizados por razões
raciais, sexuais e de gênero, de classe, etárias, étnicas culturas ou por deficiências mentais
ou físicas19.

Portanto, não há dúvidas que o campo do esporte deve ser, sim, um dos planos
interescalar e multiespacial citado por David Sánchez Rubio20 a fim de convocar, testemu-
nhar, estender, sensibilidade e promover relações humanas inclusivas de reconhecimento
mútuo, reciprocidade e solidariedade.

15
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração universal dos direitos humanos. Assembléia Geral
das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Brasília: Unesco no Brasil, 1998. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.
16
GUERRA, Sidney; TONETTO, Fernanda F. Direitos humanos dos encarcerados: a responsabilidade dos esta�-
dos a partir de uma leitura de decisões da corte europeia, da corte interamericana de direitos humanos e do
Supremo Tribunal Federal brasileiro. In: GOMES, Eduardo Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald
Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.); SALLES, Letícia Maria R.; LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos
do Supremo Tribunal Federal e o direito internacional. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2020. p. 177
17
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 50.
18
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 50.
19
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 50.
20
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 53.
276| Eduardo Tourinho Gomes

São nas nossas relações e práticas, nos arranjos sociais, tanto jurídico como não
jurídico que fazemos ou não os direitos humanos21, ou seja, deve-se levar em conta que os
direitos humanos devem estar presentes em todo o tempo, inclusive nos momentos de lazer.

É preciso verificar se realmente estamos contribuindo para que os direitos huma-


nos existam ou não em nosso cotidiano22, e não somente praticando de maneira imagina-
ria e ideal, e na prática do dia a dia, deixado de lado.

É necessário sair da noção de anestesia que e estamos submersos para que nos-
sos sentidos atuem 24 horas por dia, 7 dias por semanas, a fim de praticar essencialmente
os direitos humanos23.

Deve-se lembrar que não temos um único sistema de garantias dos direitos huma-
nos, mas múltiplos sistema. Uma cultura multigarantista deve articular de maneira comple-
mentar para diversos caminhos de proteção.24 Inclusive nos campos de futebol.

A busca de mais pessoas ativas e efetivas numa dimensão multiescalar e tendo como
referência a construção de uma cultura de direitos humanos a todo tempo e em todo lugar25.

Utilizar-se de instrumentos jurídicos e aparelhos judiciais para superar o 1% de


eficácia para que possamos evoluir a cultura relacional. Quando mais multigarantista e
interescalar em termos de direitos humanos, menores serão as demandas que deverá pas-
sar pelos tribunais e maiores serão as instâncias de efetivo reconhecimento nos setores
econômico, político social26 e porque indo além do reconhecido por David Sanchez Rubio
também no campo da diversão.

Promover uma cultura de direitos humanos global, integral e que enfatize a dimen-
são pré-violatória a partir da qual se constroem/se destroem ou se articulam/se articulam
os direitos porque na realidade todos nós seres humanos por onde quer que nos movamos,
participamos dos processos de construção ou destruição de direitos humanos.

Destaca-se a importância do papel do juiz (e aqui não somente ao juiz togado mas
também ao juiz dos tribunais desportivos) neste contexto, sob o prisma do princípio da dig-
nidade da pessoa humana, de forma a ser alcançado o respeito aos direitos humanos27, nos

21
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 53.
22
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 53.
23
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 53.
24
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 57.
25
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 61.
26
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 61.
27
MARQUES, Allana Campos. Uma análise crítica do juízo de censura penal. 2001. 122f. Dissertação (Mestrado)
– Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/han-
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |277

casos em que se faz a necessária intervenção do auditor, esse também deverá aplicar os di-
reitos humanos a fim de garantir a esfera administrativa também a prevalência desses direitos.

Além disso, a pobreza, que nos permite entender os demais níveis de exclusão
acima citados: de moradia, do mercado de trabalho, de acesso a bens e serviços, enfim,
dos direitos humanos em geral28, e sendo o futebol um esporte que atinge todas as classes
sociais, seria possível, ou talvez utópico, imaginar que seria uma ótima forma de garantia
dos direitos humanos.

Para os direitos humanos,


(i) não há raça superior;
(ii) não deve haver discriminação;
(iii) para os direitos humanos, tolerância é um conceito chave para se viver em
sociedade;
(iv) para os direitos humanos, todos devem ter os mesmos direitos, deveres e
oportunidades29.
Devendo ser respeitados tais direitos independente de que o outro é rival, oponente
tão somente no campo desportivo.

Apesar de reconhecer que a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial signi-
ficou a vitória dos Direitos Humanos, um conceito que até então não existia no mundo do
direito e da política, também é Imprescindível aceitar que o Estado, nos moldes em que é
conhecido, é insuficiente para a proteção dos Direitos Humanos violados30.

A manutenção de estruturas que possibilitam a assimetria nas relações de visibi-


lidade fragiliza o regime democrático e coloca em risco os Direitos Humanos31, devendo

dle/1884/75817/D%20-%20D%20-%20ALLANA%20CAMPOS%20MARQUES.pdf?sequence=1&isAllowe-
d=y. Acesso em: 14 ago. 2023.
28
MARQUES, Allana Campos. Uma análise crítica do juízo de censura penal. 2001. 122f. Dissertação (Mestrado)
– Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/han-
dle/1884/75817/D%20-%20D%20-%20ALLANA%20CAMPOS%20MARQUES.pdf?sequence=1&isAllowe-
d=y. Acesso em: 14 ago. 2023.
29
MALISKA, Marcos Augusto. O papel da jurisdição constitucional no Estado constitucional cooperativo. Revista
da Advocacia Pública Federal, p. 198-211, 2021. Disponível em: https://seer.anafenacional.org.br/index.php/
revista/article/view/137/111. Acesso em: 14 ago. 2023.
30
MENEZES NETO, Elias Jacob de; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. A fragilização do estado-nação na proteção
dos direitos humanos violados pelas tecnologias da informação e comunicação. Revista Direitos Fundamentais
& Democracia, Curitiba, v. 23, n. 3, p. 231-257, 2018. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v23i31135.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1135. Acesso em: 14
ago. 2023.
31
MENEZES NETO, Elias Jacob de; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. A fragilização do estado-nação na proteção
dos direitos humanos violados pelas tecnologias da informação e comunicação. Revista Direitos Fundamentais
278| Eduardo Tourinho Gomes

ser pensado em novas estruturas, novas formas, e até novos atores no cenário nacional
e internacional para dar mais efetividade aos direitos humanos e de fato transformar em
pré-violatório.

Como resultado da multiplicidade dos atores envolvidos (sem uma força espe-
cífica), há a fragilização das tradicionais estruturas de proteção dos Direitos Humanos e
da democracia32.

Raciocinar conjuntamente pela necessidade de mudança da base material da so-


ciedade brasileira, a fim de possibilitar a construção de um novo projeto de sociedade, mais
igualitário e onde haja a efetivação dos direitos humanos33 é possível, desde que pensando
de forma que os direitos humanos são para todos, e o tempo todo.

3 A FIFA E SEU PAPEL NOS DIREITOS HUMANOS


A defesa dos direitos humanos não pode ter efeitos paliativos e pontuais, deve-
-se sair do bloqueio de 1% do sucesso para partir para consequências transformadoras.34
Portanto devem os Estados, buscarem meios mais efetivos para concretizarem esses di-
reitos além do esperado.

Também não há dúvidas de que Estado Constitucional Cooperativo é o Estado


Constitucional dos Direitos Humanos, do reconhecimento da validade dos Direitos
Fundamentais aquém e além do Estado Nacional35.

& Democracia, Curitiba, v. 23, n. 3, p. 231-257, 2018. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v23i31135.


Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1135. Acesso em: 14
ago. 2023.
32
MENEZES NETO, Elias Jacob de; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. A fragilização do estado-nação na proteção
dos direitos humanos violados pelas tecnologias da informação e comunicação. Revista Direitos Fundamentais
& Democracia, Curitiba, v. 23, n. 3, p. 231-257, 2018. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v23i31135.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1135. Acesso em: 14
ago. 2023.
33
TERTO NETO, Ulisses. Do domínio autoritário militar para a democracia constitucional: uma visão geral
das políticas de direitos humanos através da redemocratização brasileira. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 22, n. 3, p. 215-252, 2017. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v22i3832. Disponível
em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/832. Acesso em: 14 ago. 2023.
34
SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022. p. 52.
35
MALISKA, Marcos Augusto. O papel da jurisdição constitucional no Estado constitucional cooperativo. Revista
da Advocacia Pública Federal, p. 198-211, 2021. Disponível em: https://seer.anafenacional.org.br/index.php/
revista/article/view/137/111. Acesso em: 14 ago. 2023.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |279

Existem normas que não se baseiam única e exclusivamente na vontade dos


Estados, admite que existem outras normativas que impões obrigações aos Estados, in-
dependentemente de seu consentimento, como são os direitos humanos na atualidade36.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre considerou os tratos internacio-


nais – mesmo os que versam sobre os direitos humanos – como normas infraconstitucionais37.

Os estados devem tomar todas as medidas necessárias para conferir eficácia a


referidos tratados internacionais, sejam ditas medidas políticas, administrativas ou legisla-
tivas, de acordo com o princípio da boa-fé e com o dever de devida diligências38.

Importante ressaltar ainda o instituto da primazia da regra mais favorável à proteção


efetiva do ser humano39, assim mesmo que eventualmente o trato internacional sobre os
direitos humanos, não tenho sido aprovado nos termos da Constituição Federal, deve-se
utilizar o critério da primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano,
podendo valer-se tanto do tratado internacional, quanto da Constituição40.

Não há dúvidas de que a FIFA é uma organização não-governamental internacional


esportiva, que atua na promoção dos direitos humanos através de seu principal megaeven-
to, a Copa do Mundo de futebol, no território dos países que o sediam, os direitos humanos
e as organizações não-governamentais internacionais esportivas, têm reforçado o com-
prometimento com a promoção dos direitos humanos na realização de seus megaeventos.

A promoção de direitos humanos atinge um nível que vai além da regulação do


esporte em si. Dessa forma, existe relevância no estudo do impacto da FIFA como entidade
capaz de promover os direitos humanos em territórios que, devido ao megaevento, poderia
não ter a oportunidade de receber melhorias nestas importantes questões pela falta de
comprometimento de seus governos com as normas e costumes de direitos humanos,

36
GUGGENHEIM, Paulo. Ler príncipes de droit international public. Collected Courses of the Hague Academy of
International Law, v 80, y, ii, 1952. p. 31.
37
RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Os tratados internacionais sobre direitos humanos e a prisão ci�-
vil do depositário infiel à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: GOMES, Eduardo Biacchi;
GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.); SALLES, Letícia Maria R.;
LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal e o direito internacional. 1. ed. Curitiba:
Instituto Memória, 2020. p. 41-58. p. 41.
38
SQUEFF, Tatiana Cardoso. Os limites das decisões de comitês de tratados de direitos humanos. In: GOMES,
Eduardo Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.);
SALLES, Letícia Maria R.; LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal e o direito
internacional. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2020. p. 194.
39
BRASIL. Superior Tribunal Federal. RMS-Agr 32732/DF. Relator: Min. Celso de Melo, Segunda Turma. Julgado
em 03.06.2014.
40
MAZZZUILO, Valério de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo:
Saraiva, 2020. p. 229-230.
280| Eduardo Tourinho Gomes

até mesmo negligenciando acordos do direito internacional que assinaram, e as normas


imperativas internacionalmente reconhecidas.41

A prática esportiva é um direito humano42, eis que a prática de lazer foi consa-
grada na Declaração Universal de Direitos Humanos43, não diferente o direto de participar
livremente da vida cultural da comunidade44, todos esses sendo praticamente o papel do
futebol no Estado brasileiro.

Não diferente, no plano interno o legislador constitucional também incluiu na


Constituição Federal Brasileira, como exemplo, em seu capítulo III (Da educação, da cultura
e do desporto), no artigo 217, atribui ao Estado o dever de fomentar práticas desportivas
formais e não formais, incentivando o lazer como forma de promoção social45.

Dentro desse panorama, cabe ressaltar que a Copa do Mundo teve cada vez mais
espaço e relevância no cenário mundial, no século XX, impulsionados pelos avanços tec-
nológicos de difusão das mídias de comunicação e pela intensificação da globalização, os

41
SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A atuação da FIFA na promoção dos direitos humanos no território dos
países sede das Copas do Mundo de Futebol. 2021. 65f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021. Disponível em: https://
repositorio.ufrn.br/handle/123456789/45297. Acesso em: 14 ago. 2023.
42
“O Esporte, como prática humana, é um direito de quarta-geração. Esporte é um direito; este deveria ser o
ponto inicial da educação esportiva […] o esporte é, primeiramente, movimento, corpo e jogo. Sua natureza
implica na dimensão corporal conectada com saúde e bem-estar, assim como a dimensão biológica e psíq-
uico-social de todo indivíduo” (ISIDORI, Emanuele; BENETTON, Mirca. Sport as education: between dignity
and human rights. Procedia – Social and Behavioral Sciences, v. 197, p. 686-693, jul. 2015. Disponível em:
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877042815040549. Acesso em: 14 ago. 2023. p. 690.
Tradução nossa).
43
Artigo 24: “Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres [...]” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS –
ONU. Declaração universal dos direitos humanos. Assembléia Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Brasília:
Unesco no Brasil, 1998. p. 5. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf.
Acesso em: 10 ago. 2023).
44
Artigo 27º: “1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de
fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam” (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração universal dos direitos humanos. Assembléia Geral das Nações
Unidas, 10 dez. 1948. Brasília: Unesco no Brasil, 1998. p. 5. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/imag-
es/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023).
45
“Art. 217º (caput). É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de
cada um [...] Inciso II: a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional
e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; [...]
§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social” (BRASIL. [Constituição (1988)].
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 27 ago.
2022).
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |281

megaeventos se tornaram festivais globais46, marcados por grandes demonstrações de


“Soft-Power”47 por parte dos Estados, utilizando a influência do esporte para apresentar a
sua força política, poder econômico e capacidade de vencer48.

Ao passo em que o esporte formal se tornou um grande negócio (e muito lucrati-


vo), inserido na política internacional e vital para a sociedade, como uma grande fonte de
lazer e entretenimento, a sua importância para o desenvolvimento dos direitos humanos (e
como uma maneira para fiscalizar o cumprimento dele) cresceu em conformidade49.

O esporte passa a relacionar-se cada vez mais com a política, se tornando uma
fonte de expressão cultural, social e política dos povos e, impulsionados pela revolução
digital, um meio de difusão de valores50.

46
“O Esporte tem uma capacidade ponderosa de tocar indivíduos e sociedades ao redor do mundo, de maneira
que as práticas tradicionais de diplomacia e os diplomatas raramente conseguem, em particular as praticadas
pelos Estados. As competições esportivas sempre carregam mensagens políticas e sociais para suas audiên-
cias. […] desse modo, as tecnologias modernas de comunicação e informação tem papel fundamental no
esporte contemporâneo” (ROFE, J. Simon. Sport and diplomacy: a global diplomacy framework. Diplomacy &
Statecraft, v. 27, n. 2, p. 212-230, 2016. p. 13-14. Tradução nossa).
47
Soft Power é a habilidade de afetar outros para obter os resultados que um deseja, através de atração, ao invés
de coerção ou pagamento. O Soft Power de um país reside em seus recursos culturais, valores e políticas”
(NYE JR., Joseph S. Public diplomacy and soft power. Annals of the American Academy of Political and Social
Science, v. 616, n. 1, p. 94-109, 2008. DOI: 10.1177/0002716207311699. p. 94. Tradução nossa).
48
“A história da ciência política mundial retrata momentos marcantes que ocorreram durante megaeventos es�-
portivos. Durante a Guerra Fria, nas olimpíadas após a segunda-guerra mundial, Estados Unidos e União
Soviética utilizaram o torneio como um meio de propaganda política, e a vitória nos jogos se tornaram símbolo
de desenvolvimento nacional, uma clássica demonstração de Soft Power. A própria participação da União
Soviética na competição, simbolizou a reaproximação do país da comunidade internacional (uma mudança
de política, em relação a época de Stálin, que retirou a URSS do megaevento). As olimpíadas se tornaram
parte da guerra fria, gerando disputa por influência política, como um “caminho para concretizar o status da
União Soviética como uma superpotência, capaz de desafiar os Estados Unidos não apenas militarmente,
mas também em cultura e moral, propondo paz, liberdade e cooperação internacional” (PARKS, Jenifer. Red
sport, red tape: the olympic games, the soviet sports bureaucracy, and the cold war, 1952-1980. 2009. 421f.
Dissertação (Doutorado em História) – Departamento de História, University of North Carolina, Estado Unidos,
2009. Disponível em: https://cdr.lib.unc.edu/concern/dissertations/0r9674344. Acesso em: 14 ago. 2023.p.
85. Tradução nossa).
49
Esportes e Direitos Humanos são dois universais e extensos fenômenos, em interseção em três pontos par�-
ticulares. Primeiro, o esporte é uma categoria de Direito Humanos. Segundo, o esporte é uma área na qual
as normas de e padrões de Direitos Humanos deveriam ser aplicados. Terceiro, o esporte pode ser usado
como ferramenta para o desenvolvimento de Direitos Humanos” (SAGHEZCHI, Shafagh M.; NAINI, Manuchehr
Tavassoli. A legal approach to the interaction between sports and human rights. Mediterranean Journal of
Social Sciences, v. 7, n. 3, p. 196-205, may 2016. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/8768/
11d61e8b64a593a3e3c2ad1d489b1a9f13ca.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023. Tradução nossa).
50
SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A atuação da FIFA na promoção dos direitos humanos no território dos
países sede das Copas do Mundo de Futebol. 2021. 65f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021. Disponível em: https://
repositorio.ufrn.br/handle/123456789/45297. Acesso em: 14 ago. 2023.
282| Eduardo Tourinho Gomes

Dentre as modalidades esportivas, o futebol tornou-se a mais popular do mundo, e


seguindo a tendência socioeconômica da valorização do entretenimento esportivo, passou
a ser um negócio bilionário, desenvolvendo novos mercados e enraizando-se na cultura
global, apoiado na difusão impulsionada pelas tecnologias e pela globalização51.

A FIFA tem natureza jurídica de organização não-governamental internacional


(ONGI)52, é uma instituição privada, desvinculada da gerência estatal e que age com in-
terdependência e governança global53 e por tal razão possui poder e capacidade de exigir
demandas e utilizar o futebol e a Copa do Mundo para agir no território de Estados, existindo
grande potencial para contribuir com o desenvolvimento social e a garantia e respeito aos
Direitos Humanos.

As práticas de direitos humanos podem não ser realizadas de forma plena apenas
pela atuação dos Estados, que apresentam violações frequentes dentro de seus territórios54
tornando relevante a atuação de organizações internacionais e entidades privadas, abrindo
espaço para atuação da FIFA nesses países.

Por meio de cooperação e ativismo, essas entidades promovem a difusão de prá-


ticas institucionais, expandindo as garantias de direitos humanos. Tais práticas podem ser
adotadas dentro dos territórios das nações nas quais essas organizações exercem influên-
cia ou atuam diretamente55.

As normas dos documentos citados abrangem diversas matérias e princípios rela-


cionados aos direitos humanos, tutelando princípios fundamentais, como a dignidade hu-
mana, segurança pessoal, liberdade, igualdade plena, previsões de devido processo legal e
proibição de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes56.

51
MEIER, Henk-Erik; GARCÍA, Borja García. The power of FIFA over national governments: a new actor in
world politics? Conference contribution. Loughborough University, 2014. Disponível em: https://hdl.handle.
net/2134/15885. Acesso em: 14 ago. 2023. p. 8.
52
Organização Não-Governamental Internacional, atraindo as associações de futebol de 211 nações, que estão
inseridas como afiliadas, número superior à Organização das Nações Unidas (ONU), que conta com 193
Estados-membros, além das confederações continentais - A lista completa de associações-membros da FIFA,
no site oficial da Organização. FIFA. Member association. [S.d.]. Disponível em: https://www.fifa.com/about-fi-
fa/associations. Acesso em: 14 ago. 2023.
53
RAMOS, Pedro de Oliveira. Por que a FIFA funciona? Uma análise da organização internacional que controla
o futebol no mundo. 2011. 70f. Monografa (Especialização) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011. p. 14.
Disponível em: https://www.bdm.unb.br/handle/10483/2446. Acesso em: 14 ago. 2023.
54
HAFNER-BURTON, Emilie M.; TSUTSUI, Kiyoteru. Human rights practices in a globalizing world: the paradox of
empty promises. American Journal of Sociology, v. 110, n. 5, p. 1373-1411, mar. 2005. p. 1377.
55
FINNEMORE, Martha. National interest in international society. New York: Cornell University Press, 1996. (Serie
Cornell Studies in Political Economy). p. 1377.
56
Arts. 1, 2, 3, 5 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração universal dos direitos humanos.
Assembléia Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Brasília: Unesco no Brasil, 1998. Disponível em: http://
unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023).
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |283

As ONGIs têm, historicamente, um papel de ativismo social relacionado aos direitos


humanos, utilizando sua influência e posição para mobilizar a opinião popular e estimular os
governos nacionais a internalizarem normas e costumes da sociedade internacional, contri-
buindo para o desenvolvimento de normas de direitos humanos57 e a difusão e promoção
dos princípios de direitos humanos globalmente58.

ONGIs voltadas integralmente ao ativismo na proteção dos direitos humanos, tais


como a Amnesty International e a Human Rights Watch, tem papel fundamental nesse con-
texto, pressionando as nações por meio de exposição midiática das violações que ocorrem
em seus territórios59.

A falta de comprometimento com a garantia de normas de Direitos Humanos afeta


a imagem dos Estados, considerando a importância conquistada no direito internacional
de tais normas60.

O desafio se torna maior em nações com uma taxa elevada de casos de violações
dos direitos humanos, historicamente menos democráticas ou com governos repressivos61.

Dessa forma, apesar de estarem em posição privilegiada, de status transnacional,


imunes à responsabilidade direta por violações de normas e tratados internacionais, as
ONGIs se tornaram parte do sistema político internacional62.

Além de se comportarem como ativistas, com cooperação para promover práticas


de direitos humanos, influenciando os Estados, principalmente aqueles nos quais atuam
de forma direta, as organizações não-governamentais internacionais, na forma de atores
internacionais com papel importante, devem também respeitar e garantir, dentro de suas

57
KOH, Harold Hongju. How is international human rights law enforced? Indiana Law Journal, v. 74, n. 4, p. 1397-
1417, Fall 1999. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/ilj/vol74/iss4/9/. Acesso em: 14 ago.
2023. p. 1409-1410.
58
“As ONGIs, tais como a Amnesty International e a HRW, têm sido particularmente ativas na divulgação de vio�-
lações dos Direitos Humanos para pressionar governos repressivos. Os grupos domésticos também buscam
atores externos para divulgar as violações em seu Estado” (TSUTSUI, Kiyoteru. Global civil society and ethnic
social movements in the contemporary world. Sociological Forum, v. 19, p. 63-88, 2004 apud HAFNER-
BURTON, Emilie M.; TSUTSUI, Kiyoteru. Human rights practices in a globalizing world: the paradox of empty
promises. American Journal of Sociology, v. 110, n. 5, p. 1373-1411, mar. 2005. p. 1385.
59
HAFNER-BURTON, Emilie M.; TSUTSUI, Kiyoteru. Human rights practices in a globalizing world: the paradox of
empty promises. American Journal of Sociology, v. 110, n. 5, p. 1373-1411, mar. 2005. p. 1385.
60
HAFNER-BURTON, Emilie M.; TSUTSUI, Kiyoteru. Human rights practices in a globalizing world: the paradox of
empty promises. American Journal of Sociology, v. 110, n. 5, p. 1373-1411, mar. 2005. p. 1385.
61
HAFNER-BURTON, Emilie M.; TSUTSUI, Kiyoteru. Human rights practices in a globalizing world: the paradox of
empty promises. American Journal of Sociology, v. 110, n. 5, p. 1373-1411, mar. 2005. p. 1386.
62
CHARNEY, Jonathan I. Transnational corporations and developing public international law. Duke Law Journal, p.
748-788, 1983. Disponível em: https://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2848&contex-
t=dlj. Acesso em: 14 ago. 2023. p. 767.
284| Eduardo Tourinho Gomes

atuações específicas na sociedade internacional, os princípios, costumes e normas de


direitos humanos consagrados no direito internacional, tutelados com primazia.

E justamente ai que a FIFA deve agir para barrar a violência no futebol. Deve se levar
em conta as normas, princípios e costumes de garantia e proteção dos direitos humanos,
com responsabilidade de respeitá-las junto aos Estados, na organização e realização de
todos seus megaeventos, inclusive no processo de escolha da sede63.

O comprometimento da FIFA com os direitos humanos remete à sua natureza de


ONGI e vai além do seu estatuto. A responsabilidade se intensifica durante a Copa do
Mundo, especialmente quando esta ocorre em países nos quais existem frequentes viola-
ções de direitos humanos.

Para os atores privados, o documento da ONU atribui a responsabilidade para res-


peitar os direitos humanos em qualquer localidade em que atuem, de forma independente e
além da atuação dos Estados – ou seja, partindo de sua governança autônoma. Para essas
entidades, o impacto adverso aos direitos humanos deve ser prevenido, mitigado e quando
apropriado, remediado, por meio de medidas adequadas64, preventivo aqui no mesmo
sentido de Sanchez Rubio, no que tange ao caráter pré-violatório.

A responsabilidade de agir conforme as normas internacionais de direitos humanos


sempre existiu, no entanto, essas entidades reforçaram a institucionalização incorporando
o compromisso com os direitos humanos em suas regras, estatutos e políticas65.

A Union of European Football Associations (UEFA), confederação filiada à FIFA,


incluiu, de forma inédita, requisitos envolvendo a proteção de Direitos Humanos para a
escolha da sede de seu principal megaevento de seleções de futebol, a Euro de 2026, asse-

63
SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A atuação da FIFA na promoção dos direitos humanos no território dos
países sede das Copas do Mundo de Futebol. 2021. 65f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021. Disponível em: https://
repositorio.ufrn.br/handle/123456789/45297. Acesso em: 14 ago. 2023.
64
“Estes princípios orientadores devem ser entendidos como um todo coerente e devem ser lidos, individual e
coletivamente, em termos de seu objetivo de aprimorar os padrões e práticas em relação aos negócios e aos
Direitos Humanos, apenas para alcançar resultados tangíveis para os indivíduos e comunidades afetados e, as-
sim, também contribuindo para a globalização socialmente sustentável” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
– ONU. Guiding principles on business and human rights. New YOtk; Geneva: United Nations, 2011. Disponível
em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/Publications/GuidingPrinciplesBusinessHR_EN.pdf.
Acesso em: 14 ago. 2023. Tradução nossa).
65
SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A atuação da FIFA na promoção dos direitos humanos no território dos
países sede das Copas do Mundo de Futebol. 2021. 65f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021. Disponível em: https://
repositorio.ufrn.br/handle/123456789/45297. Acesso em: 14 ago. 2023.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |285

gurando que os países candidatos devem ter a obrigação de respeitar e proteger os direitos
humanos e as liberdades fundamentais, ressaltando o direito trabalhista e das crianças66.

UEFA ainda conceitua os direitos humanos como direitos e liberdades inerentes a


todos os seres humanos, de forma isonômica, sendo eles interrelacionados, interdepen-
dentes e indivisíveis, aproximando-se do conceito de jus cogens e vinculando-o legalmente
ao país que será sede do megaevento67.

O papel positivo da FIFA em reconhecer e utilizar essas regras como guia para esta-
belecer uma governança voltada para a proteção dos direitos humanos68, para isso, utiliza
de uma a adoção de uma política de direitos humanos transparente e coerente, aplicada
em toda sua estrutura interna e nas relações com suas associações-membro, parceiros de
negócios e outros terceiros relevantes, com vínculo explícito da FIFA com princípios de di-
reitos humanos internacionalmente reconhecidos, inclusive em países com menor previsão
na proteção destes direitos.

A FIFA ainda elaborou um documento que recomenda o acesso à remediação,


como preceito fundamental para a garantia e proteção de direitos humanos85, incentivando
um papel ativo da FIFA na reparação de danos que tenha causado, ou cooperando e faci-
litando danos causados por seus parceiros, e no contexto dos megaeventos, utilizando os
princípios de efetividade de mecanismo de remediação ditados nas UNGPS86, sendo desen-
volvidos e funcionando efetivamente no processo de preparação e realização dos torneios,
junto aos órgãos organizadores do país-sede69.

A FIFA não é uma ONGI voltada diretamente para o ativismo de direitos humanos, no
entanto, a transformação social e as causas voltadas para os direitos humanos, devendo

66
SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A atuação da FIFA na promoção dos direitos humanos no território dos
países sede das Copas do Mundo de Futebol. 2021. 65f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021. Disponível em: https://
repositorio.ufrn.br/handle/123456789/45297. Acesso em: 14 ago. 2023.
67
“Direitos Humanos refere-se ao conjunto de direitos e liberdades aos quais todo os seres humanos são con�-
siderados titulares, independentemente de sua nacionalidade, local de residência, sexo, orientação sexual,
nacionalidade ou origem étnica, cor, religião, idioma, idade ou qualquer outro status. Esses direitos são to-
dos inter-relacionados, interdependentes e indivisíveis” (UEFA. UEFA Euro 2024: tournament requirements.
Switzerland: UEFA, 2017. p. 5. Disponível em: https://www.uefa.com/multimediafiles/download/officialdocu-
ment/uefaorg/regulations/02/46/30/61/2463061_download.pdf. Acesso em: 14 abr. 2023.
68
RUGGIE, John C. “For the game. For the World”. FIFA and human rights. Corporate responsibility initiative
report n. 68. Cambridge, MA: Harvard
Kennedy School, 2016. p. 10. Disponível em: https://www.hks.harvard.edu/sites/default/files/centers/mrcbg/
programs/cri/files/Ruggie_humanrightsFIFA_reportApril2016.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
69
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Guiding principles on business and human rights. New
YOtk; Geneva: United Nations, 2011. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/
Publications/GuidingPrinciplesBusinessHR_EN.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
286| Eduardo Tourinho Gomes

utilizar-se de toda sua estrutura para uma melhor representação e busca de efetividade dos
direitos humanos.

A entidade sempre levou em conta seu papel social, ainda que superficialmente,
com campanhas e publicidade a favor de causas, como a luta contra o racismo, a igualdade
social etc.70.

FIFA inseriu em seu Estatuto, o documento basilar da entidade, com seus princípios
e regras, o artigo 3, sobre os direitos humanos: “A FIFA se compromete a respeitar todos
os direitos humanos reconhecidos internacionalmente e deve se empenhar para promover
a promoção de tais direitos”71 agora, falta a FIFA utilizar desse preceito para também fazer
com que as Confederações ao redor do mundo também passem a respeitar e exigir o cum-
primento dessas obrigações.

4 A VIOLÊNCIA NO FUTEBOL BRASILEIRO


Importante ainda para o presente artigo passar por alguns, e aqui somente alguns
pontuais, eis que ocorrerem novos casos a toda semana entre torcedores, jogadores, diri-
gentes, etc., escolhendo portanto um pequeno período para análise.

Só entre janeiro e março de 2022, foram 15 casos de invasões de campo, brigas


entre torcidas e ônibus atacados, ou seja um episódio a cada quatro dias72.

No dia 24 de fevereiro de 2022, o ônibus do Esporte Clube Bahia foi atacado com
uma bomba enquanto o time se dirigia para a Arena Fonte Nova, em Salvador, para partida
contra o Sampaio Corrêa pela Copa do Nordeste73.

70
FIFA tem programas sociais de destaque: Football for Hope, em atuação desde 2005, focado no auxílio a
jovens ao redor do mundo; Football for the Planet, que tem programas ambientais, desde 2006. Além de
campanhas que divulga através de seus megaeventos, por exemplo as que defendem o Fair Play, a campanha
“Say no to Racism”, além de defender publicamente a diversidade e ser contra a discriminação (PRATES,
Raphael Vieira da Cunha. Organizações internacionais: a FIFA e a atuação do Comitê de Disciplina. 2016.
58f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Centro Socioeconômico, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/174626. Acesso
em: 14 ago. 2023).
71
FIFA. FIFA Statutes. Zurich: FIFA, 2020. Artigo 3. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/
m/4b2bac74655c7c13/original/viz2gmyb5x0pd24qrhrx-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
72
FUTEBOL brasileiro tem um episódio de violência a cada quatro dias. Correio do Povo, R7, 08 mar. 2022.
Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/esportes/futebol-brasileiro-tem-um-epis%C3%B3dio-de-
-viol%C3%AAncia-a-cada-quatro-dias-1.784786. Acesso em: 14 abr. 2023.
73
TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil, 07 mar.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-o-futebol-nas-ul-
timas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |287

Também no dia 24 de fevereiro de 2022, a van que transportava a delegação do


Náutico após chegarem ao Aeroporto Internacional Gilberto Freyre, em Recife, foi atingida
por objetos, que quebraram a janela do veículo e “por pouco não machucando algum pas-
sageiro de forma grave”74.

Em 26 de fevereiro de 2022, em Porto alegre, a delegação do Grêmio foi atacada


por pedras enquanto. O meio-campista Matías Villasanti foi atingido na cabeça e sofreu
traumatismo craniano e concussão cerebral. Ele chegou a ser internado, mas recebeu alta
no dia seguinte75.

Também no dia 26 de fevereiro de 2022, o Paraná Clube foi rebaixado no campeo-


nato paranaense. O time amarga também um recente rebaixamento para a série D do cam-
peonato brasileiro. Na data, após a partida que sacramentou a queda, torcedores invadiram
o campo e tentaram agredir os jogadores da equipe76.

No dia 25 de fevereiro de 2022, torcedores de Atlas e Querétaro, do México, prota-


gonizaram uma briga generalizada durante partida válida pelo campeonato mexicano. Pelo
menos 26 pessoas se feriram durante os confrontos no estádio Corregidora, sendo que três
estão internadas em estado grave. A mídia local chegou a noticiar que pessoas morreram,
mas a informação não foi confirmada por órgãos governamentais77.

No clássico mineiro entre Cruzeiro e Atlético-MG no dia 06 de março de 2022 pelo


menos três brigas entre torcedores das duas equipes resultaram em duas pessoas bale-
adas. Uma delas tinha 25 anos e não resistiu aos ferimentos, falecendo no mesmo dia. A
outra vítima, de 30 anos, não teve estado de saúde divulgado78.

Ocorre que apesar de nos últimos anos, esses fatores de brigas terem se maximi-
zados, já existiam episódios brasileiros há mais de 30 anos.

74
TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil, 07 mar.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-o-futebol-nas-ul-
timas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.
75
TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil, 07 mar.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-o-futebol-nas-ul-
timas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.
76
TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil, 07 mar.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-o-futebol-nas-ul-
timas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.
77
TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil, 07 mar.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-o-futebol-nas-ul-
timas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.
78
TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil, 07 mar.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-o-futebol-nas-ul-
timas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.
288| Eduardo Tourinho Gomes

Os anos 90 foram marcados por violentas brigas de torcidas organizadas no Estado


de São Paulo. Em 1995, ocorreu um dos episódios de violência mais marcantes da história
do Brasil. Palmeiras e São Paulo disputavam a final da Super Copa SP de Juniores no es-
tádio do Pacaembu. Após o apito final, a Mancha Verde (torcida organizada do Palmeiras)
entrou em campo para comemorar a vitória sobre o rival. Os integrantes da Independente
(torcida organizada do São Paulo) também invadiram o gramado e as torcidas entraram em
confronto. Na época, uma reforma estava sendo feita no Pacaembu e pedras e pedaços de
paus foram encontrados pela torcida Tricolor e usados como armas no confronto. A briga
deixou mais de 100 feridos e um torcedor alviverde foi morto com pauladas na cabeça por
um são-paulino, que foi condenado a 12 anos de prisão79.

Em 2016, Palmeiras e Corinthians se enfrentaram no Pacaembu, mas o que ficou


marcado foram as brigas entre as organizadas antes e depois da partida, na zona leste de
São Paulo. Um torcedor foi morto no confronto e 57 foram detidos. Entretanto, todos os
detidos foram liberados após prestar depoimento80.

A fim de tentar diminuir tais episódios, e na linha da própria FIFA, a Assembleia


Geral Extraordinária que ratificou as mudanças feitas no estatuto da CBF também serviu
para os cartolas iniciarem – ainda que timidamente – uma movimentação contra a violência
nos estádios.

Houve a criação de um grupo de estudos e convocar representantes de diferentes


segmentos da sociedade para debater o tema. Por ora, essa é a medida mais efetiva to-
mada pela entidade máxima do futebol brasileiro para tentar diminuir as cenas de barbárie
vistas neste início de temporada81.

5 CONCLUSÃO: É POSSÍVEL UMA SOLUÇÃO?


A FIFA não é uma ONGI voltada diretamente para o ativismo de Direitos Humanos,
no entanto, a transformação social e as causas voltadas para os Direitos Humanos, deven-

79
AMARAL, Luca do. Violência entre torcidas: Problema assombra o futebol brasileiro desde a década de 90.
UOL: Esporte, 01 ago. 2022. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/esporte/noticias/2022/08/01/3887_
violencia-entre-torcidas-problema-assombra-o-futebol-brasileiro-desde-a-decada-de-90.html. Acesso em: 14
abr. 2023.
80
AMARAL, Luca do. Violência entre torcidas: Problema assombra o futebol brasileiro desde a década de 90.
UOL: Esporte, 01 ago. 2022. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/esporte/noticias/2022/08/01/3887_
violencia-entre-torcidas-problema-assombra-o-futebol-brasileiro-desde-a-decada-de-90.html. Acesso em: 14
abr. 2023.
81
FUTEBOL brasileiro tem um episódio de violência a cada quatro dias. Correio do Povo, R7, 08 mar. 2022.
Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/esportes/futebol-brasileiro-tem-um-epis%C3%B3dio-de-
-viol%C3%AAncia-a-cada-quatro-dias-1.784786. Acesso em: 14 abr. 2023.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |289

do utilizar-se de toda sua estrutura para uma melhor representação e busca de efetividade
dos direitos humanos.

A entidade sempre levou em conta seu papel social, ainda que superficialmente,
com campanhas e publicidade a favor de causas, como a luta contra o racismo, a igualdade
social etc.82

FIFA inseriu em seu Estatuto, o documento basilar da entidade, com seus princípios
e regras, o artigo 3, sobre os direitos humanos: “A FIFA se compromete a respeitar todos
os Direitos Humanos reconhecidos internacionalmente e deve se empenhar para promover
a promoção de tais direitos”

A FIFA passa a reconhecer seu papel como ator responsável pela promoção e res-
peito de diretos humanos com abrangência ampla, de todas as normas reconhecidas in-
ternacionalmente – o estatuto deixa em aberto quais são estes direitos reconhecidos, mas
deve ser levada em conta a noção de jus cogens, além dos documentos indicados nas
UNGPS: ou seja, a Declaração Universal de Direitos Humanos, a declaração da OIT, além
do costume internacional de proteção aos Direitos Humanos.

Para reforçar seu compromisso com os direitos humanos, a FIFA publicou o do-
cumento “FIFA´s Human Rights Policy”, complementando o artigo 3 de seu estatuto,
aprofundando-se em seu conteúdo e apresentando sua política de maneira detalhada. No
documento, a FIFA declara seus valores sociais e admite que possui responsabilidade em
promover os Direitos Humanos dos indivíduos afetados por suas atividades

A FIFA se compromete a acolher as normas de Direitos Humanos internacionalmen-


te conhecidas, incluindo as da Declaração Universal de Direitos Humanos, a Declaração de
Princípios e Direitos do Trabalho, da OIT, e outros padrões e princípios de direitos humanos,
destacando os direitos das minorias e respeitando o direito humanitário internacional.

É possível ainda verificar que a FIFA através do novo sistema dela de proteção de
direitos humanos conseguiu proteger alguns casos, como por exemplo:

82
FIFA tem programas sociais de destaque: Football for Hope, em atuação desde 2005, focado no auxílio a
jovens ao redor do mundo; Football for the Planet, que tem programas ambientais, desde 2006. Além de
campanhas que divulga através de seus megaeventos, por exemplo as que defendem o Fair Play, a campanha
“Say no to Racism”, além de defender publicamente a diversidade e ser contra a discriminação. PRATES,
Raphael Vieira da Cunha. Organizações internacionais: a FIFA e a atuação do Comitê de Disciplina. 2016.
58f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Centro Socioeconômico, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/174626. Acesso
em: 14 ago. 2023..
290| Eduardo Tourinho Gomes

A situação dos trabalhadores imigrantes das obras para a Copa do Mundo de


2022 , onde os imigrantes não podem se organizar em sindicatos e sofrem o risco de
83

serem presos e deportados caso saiam de seus trabalhos sem autorização dos patroci-
nadores84, com mais de 1.000 mortes registradas, porém sem informações das causas
específicas, pela falta de investigação das autoridades locais85.

Sobre a pressão de organizações internacionais, como a OIT86, e com atuação


importante do Soft Power da FIFA, em 2020, o Catar promoveu a flexibilização do sistema
Kafala, com reformas legislativas, permitindo os trabalhadores imigrantes a trocarem de
emprego sem a necessidade de autorização dos patrocinadores, foi permitido aos traba-
lhadores saírem do país sem a autorização dos empregadores87, aqui estamos diante do
típico exemplo de Sanchez Rubio dos 1%88.

Na Copa do Mundo do Brasil não foi diferente. Na qual houve violação ao direito de
moradia da população com o objetivo de construção das obras de infraestrutura voltadas
para o megaevento89, foi estimado que um número entre 250.000 e 1.5 milhão de pessoas
tiveram que abandonar forçadamente suas casas ou foram alvo de evicção, com poucos
recebendo assistência adequada para relocação ou compensação financeira90.

83
REGUEIRO, Raquel. Shared responsibility and human rights abuse: the 2022 World Cup in Catar. Tilburg Law
Review, v. 25, n. 1, p. 27-39, 2020. p. 29. Disponível em: https://tilburglawreview.com/articles/10.5334/
tilr.191. Acesso em: 14 ago. 2023.
84
Lei n. 18, de 2020, no Catar, promoveu as mudanças, reformando algumas normas da legislação trabalhista
vigente, Lei n. 14, de 2004 (QATAR. Law n. 18 of 2020 amending certain provisions of Labour Law n. 14 of
2004. Qatar: 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---arabstates/---ro-beirut/do-
cuments/legaldocument/wcms_754882.pdf. Acesso em: 14 abr. 2023.
85
Beryl. FIFA, Catar, Kalafa: Can the World Cup create a better world of work?. International Labor Rights Case
Law. V4. 2018, p.137.
86
A OIT apresentou reclamação ao Catar, ressaltando a falta de observação do país com a convenção de traba�-
lho forçado e a convenção de inspeção de trabalho. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT.
Governing Body: agenda and programme. Geneva, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/
public/@ed_norm/@relconf/documents/meetingdocument/wcms_563316.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
87
HUMAN RIGHTS WATCH. World Report 2019: events of 2018. United States of America: Human Rights
Watch, 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/world_report_download/hrw_world_re�-
port_2019.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
88
HUMAN RIGHTS WATCH. World Report 2019: events of 2018. United States of America: Human Rights
Watch, 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/world_report_download/hrw_world_re�-
port_2019.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
89
Registro de casos em que moradores da região de Itaquera foram removidos de suas casas sem compensação
financeira do Estado. VICO, Roberto Paolo; UVINHA, Ricard Ricci; NUNO, Gustavo. Sports mega-events in the e
perception of the local community: the case of Itaquera region in São Paulo at the 2014 FIFA World Cup Brazil.
Soccer & Society, v. 20, n. 6, p. 810-823, jan. 2018.
90
VICO, Roberto Paolo; UVINHA, Ricard Ricci; NUNO, Gustavo. Sports mega-events in the e perception of the
local community: the case of Itaquera region in São Paulo at the 2014 FIFA World Cup Brazil. Soccer & Society,
v. 20, n. 6, p. 810-823, jan. 2018. p. 823.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |291

Na Copa do Mundo da África do Sul, foi estabelecido tribunal de exceção para julgar
determinados crimes relacionados ao megaevento, sem respeitar o devido processo legal
penal, com acusação, instrução e sentença em poucas horas, foram relatados 75 casos e
mais de 30 sentenças, com penas severas chegando ao máximo de 3 anos de prisão por
revenda de ingressos91, os casos eram julgados sem a razoabilidade do tempo de duração
do processo, com a acusação e a sentença ocorrendo no curto espaço de um dia92.

Os casos de discriminação e preconceito foram alarmantes na Rússia93. Na Copa


de 2018, na Rússia, descabida força policial contra jornalistas que cobriam o megaeven-
to.94 Além disso na Rússia ainda grupos de ativistas em Direitos Humanos alarmavam
para os problemas relacionados à caça de grupos de ativistas de Direitos Humanos e do
movimento LGBT na região russa da Chechênia95, a FIFA atuou ativamente na defesa de
Semyon Simonov, ativista detido pela polícia russa, antes do megaevento, e demonstrou
a capacidade de utilizar sua influência para tornar-se um ator de destaque nas causas de
Direitos Humanos nos territórios dos Estados-sede96.

Ou seja, a FIFA já atuou em questões de trabalho, moradia, venda de ingressos


irregulares, preconceito etc. O que falta para uma atuação mais drástica na violência?

O que falta para que a FIFA crie protocolos de proteção de direitos humanos pré-vio-
latório, para que impeça a violência nos estádios de futebol.

91
ROSA, Alexandre Morais da. Tribunais de exceção da Copa só interessam à FIFA. Consultor Jurídico, 09 nov.
2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-nov-09/diario-classe-tribunais-excecao-copa-interes-
sam-fifa. Acesso em: 14 ago. 2023.
92
ROSA, Alexandre Morais da. Tribunais de exceção da Copa só interessam à FIFA. Consultor Jurídico, 09 nov.
2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-nov-09/diario-classe-tribunais-excecao-copa-interes-
sam-fifa. Acesso em: 14 ago. 2023.
93
“Ambas as nações são consideradas igualmente inadequadas para a responsabilidade de garantir que ne-
nhuma violação dos Direitos Humanos ocorra em relação aos megaeventos mundiais que sediam” (tradução
nossa), em: ASHRAF, Iram. Emerging Issues: FIFA World Cup 2022: Enjoying the Game at the Suffering of
Migrant Workers. University of Baltimore journal of International Law. V. 4. Ed 2. 2016, p. 140
94
RUSSIA 2018: Why human rights matter at the world cup. Amnesty International UK, 21 jun. 2018. Disponível
em: https://www.amnesty.org.uk/russia-2018-why-human-rights-matter-world-cup. Acesso em: 14 ago. 2023.
95
“As preocupações com os Direitos Humanos na Rússia também afetaram a Copa do Mundo de 2018. A mídia
publicou perseguições contínuas de grupos LGBT, ilustradas por casos como as histórias de sequestro e tor-
tura de homossexuais em áreas da Chechênia” (ROCHA, Claudio; WYSE, Fiona. Host country brand image and
political consumerism: the case of Russia 2018 FIFA World Cup. Sport Marketing Quaterly, v. 29, n. 1, p. 62-
76, 2020. Disponível em: https://dspace.stir.ac.uk/bitstream/1893/30463/1/2020_Rocha.Wyse_Russia%20
2018%20FWC%20and%20political%20consumerism.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023. p. 65. Tradução nossa)
96
FIFA. Second Report by the FIFA Human Rights Advisory Board. Set. 2018b. Disponível em: https://digitalhub.
fifa.com/m/2a867e7d8b72463e/original/hwl34aljrosubxevkwvh-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023. p. 12.
292| Eduardo Tourinho Gomes

É preciso utilizar-se dos conceitos de direitos humanos em todos lugar e em todo


o tempo, em todos os níveis a fim de que possamos atingir percentuais satisfatórios, sem
violência nos estádios e com que de fato seja respeitado o direito ao esporte, lazer, cultura,
etc. que também foram consagrados como direitos humanos.

Em conclusão, a violência no futebol é uma questão grave que viola os direitos


humanos de jogadores e torcedores, e é preciso tomar medidas para prevenir e combater
esse problema. A FIFA, como órgão regulador do futebol mundial, tem papel importante
nessa questão, promovendo campanhas de conscientização e aplicando sanções aos clu-
bes e jogadores envolvidos em atos de violência.

Em resumo, a violência no futebol é uma questão que afeta os direitos humanos e


deve ser enfrentada de forma enérgica por todos os envolvidos, para garantir que o esporte
seja um ambiente seguro e saudável para jogadores e torcedores.

A FIFA e outras organizações esportivas têm um papel importante nesse sentido,


mas é preciso que as autoridades e a sociedade em geral também se envolvam ativamente
nessa luta, para que o futebol continue a ser um esporte seguro e saudável para todos.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Luca do. Violência entre torcidas: Problema assombra o futebol brasileiro desde a dé-
cada de 90. UOL: Esporte, 01 ago. 2022. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/esporte/noti-
cias/2022/08/01/3887_violencia-entre-torcidas-problema-assombra-o-futebol-brasileiro-desde-a-
-decada-de-90.html. Acesso em: 14 abr. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. RMS-Agr 32732/DF. Relator: Min. Celso de Melo, Segunda Turma.
Julgado em 03.06.2014.

CHARNEY, Jonathan I. Transnational corporations and developing public international law. Duke Law
Journal, p. 748-788, 1983. Disponível em: https://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?arti-
cle=2848&context=dlj. Acesso em: 14 ago. 2023.

COSTA, Alexandre Bernardino. Prefacio. In: SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio
de Janeiros: Lumen Juris, 2022.

FIFA. FIFA´s human rights policy. Zurich: FIFA, 2017. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/1a-
876c66a3f0498d/original/kr05dqyhwr1uhqy2lh6r-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

FIFA. FIFA regulations: for the selection of the venue for the final competition of the 2026 FIFA World
Cup. 2017. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/4ab6dd02a42e838d/original/stwvxqphxp3o-
96jxwqor-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

FIFA. FIFA Statutes. Zurich: FIFA, 2020. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/


m/4b2bac74655c7c13/original/viz2gmyb5x0pd24qrhrx-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |293

FIFA. Fifth report by the FIFA human rights advisory board. Feb. 2021. Disponível em: https://media.
business-humanrights.org/media/documents/vforeieiz1fh06ld4a36.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

FIFA. Fourth report by the FIFA human rights advisory board. Jan. 2020. Disponível em: https://digi-
talhub.fifa.com/m/25237da419e1f62f/original/pyume2cahuue2szxgjwq-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago.
2023.

FIFA. Media and marketing regulations for the final competition of the 2018 FIFA World Cup Russia.
2018a. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/6b4e33701cd639fc/original/dbibgs0syrpkdbzb-
gbxr-pdf.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

FIFA. Member association. [S.d.]. Disponível em: https://www.fifa.com/about-fifa/associations.


Acesso em: 14 ago. 2023.

FIFA. Second Report by the FIFA Human Rights Advisory Board. Sep. 2018b. Disponível em: https://
digitalhub.fifa.com/m/2a867e7d8b72463e/original/hwl34aljrosubxevkwvh-pdf.pdf. Acesso em: 14
ago. 2023.

FINNEMORE, Martha. National interest in international society. New York: Cornell University Press,
1996. (Serie Cornell Studies in Political Economy).

FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos como productos culturales. Sevilla: Aconcagua,
2005.

FUTEBOL brasileiro tem um episódio de violência a cada quatro dias. Correio do Povo, R7, 08 mar.
2022. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/esportes/futebol-brasileiro-tem-um-epis%-
C3%B3dio-de-viol%C3%AAncia-a-cada-quatro-dias-1.784786. Acesso em: 14 abr. 2023.

GALLARDO, Helio. Derechos humanos como movimiento social. Bogotá: Ediciones desde abajo,
2006.

GALLARDO, Helio. Teoria critica: matriz y posibilidad de derechos humanos, Madrid: Los Livros de
Lara Catarata, 2005.

GUGGENHEIM, Paulo. Ler príncipes de droit international public. Collected Courses of the Hague
Academy of International Law, v 80, y, ii, 1952.

GUERRA, Sidney; TONETTO, Fernanda F. Direitos humanos dos encarcerados: a responsabilidade dos
estados a partir de uma leitura de decisões da corte europeia, da corte interamericana de direitos hu-
manos e do Supremo Tribunal Federal brasileiro. In: GOMES, Eduardo Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.);
ALMEIDA, Ronald Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.); SALLES, Letícia Maria R.; LEAHY, Érika
(org.). Grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal e o direito internacional. 1. ed. Curitiba:
Instituto Memória, 2020.

HAFNER-BURTON, Emilie M.; TSUTSUI, Kiyoteru. Human rights practices in a globalizing world: the
paradox of empty promises. American Journal of Sociology, v. 110, n. 5, p. 1373-1411, mar. 2005.

HUMAN RIGHTS WATCH. World Report 2019: events of 2018. United States of America: Human
Rights Watch, 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/world_report_download/
hrw_world_report_2019.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
294| Eduardo Tourinho Gomes

ISIDORI, Emanuele; BENETTON, Mirca. Sport as education: between dignity and human rights.
Procedia – Social and Behavioral Sciences, v. 197, p. 686-693, jul. 2015. Disponível em: https://
www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877042815040549. Acesso em: 14 ago. 2023.

KOH, Harold Hongju. How is international human rights law enforced? Indiana Law Journal, v. 74, n.
4, p. 1397-1417, Fall 1999. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/ilj/vol74/iss4/9/.
Acesso em: 14 ago. 2023.

LAUTERPACHT, Hersch. The function of law in the international community. Oxford: Clarendon Press,
1933.

MALISKA, Marcos Augusto. O papel da jurisdição constitucional no Estado constitucional cooperativo.


Revista da Advocacia Pública Federal, p. 198-211, 2021. Disponível em: https://seer.anafenacional.
org.br/index.php/revista/article/view/137/111. Acesso em: 14 ago. 2023.

MARQUES, Allana Campos. Uma análise crítica do juízo de censura penal. 2001. 122f. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001. Disponível em: https://acervodigital.
ufpr.br/bitstream/handle/1884/75817/D%20-%20D%20-%20ALLANA%20CAMPOS%20MARQUES.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 14 ago. 2023.

MAZZZUILO, Valério de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São
Paulo: Saraiva, 2020.

MEIER, Henk-Erik; GARCÍA, Borja García. The power of FIFA over national governments: a new actor
in world politics? Conference contribution. Loughborough University, 2014. Disponível em: https://hdl.
handle.net/2134/15885. Acesso em: 14 ago. 2023.

MENEZES NETO, Elias Jacob de; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. A fragilização do estado-nação na pro-
teção dos direitos humanos violados pelas tecnologias da informação e comunicação. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 23, n. 3, p. 231-257, 2018. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.
rdfd.v23i31135. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/1135. Acesso em: 14 ago. 2023.

NYE JR., Joseph S. Public diplomacy and soft power. Annals of the American Academy of Political and
Social Science, v. 616, n. 1, p. 94-109, 2008. DOI: 10.1177/0002716207311699.

ORESTANO, Riccardo. Introducción al estudio del derecho romano. Madrid: Boletín Oficial del Estado,
1998.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Governing Body: agenda and programme.


Geneva, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@ed_norm/@relconf/do-
cuments/meetingdocument/wcms_563316.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração universal dos direitos humanos. Assembléia
Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Brasília: Unesco no Brasil, 1998. Disponível em: http://unes-
doc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Documentos. [S.d.]. Disponível em: https://www.
un.org/es/our-work/documents. Acesso em: 14 ago. 2023.
A violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos... |295

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Guiding principles on business and human rights.
New York; Geneva: United Nations, 2011. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/
Documents/Publications/GuidingPrinciplesBusinessHR_EN.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

PARKS, Jenifer. Red sport, red tape: the olympic games, the soviet sports bureaucracy, and the cold
war, 1952-1980. 2009. 421f. Dissertação (Doutorado em História) – Departamento de História,
University of North Carolina, Estado Unidos, 2009. Disponível em: https://cdr.lib.unc.edu/concern/
dissertations/0r9674344. Acesso em: 14 ago. 2023.

PRATES, Raphael Vieira da Cunha. Organizações internacionais: a FIFA e a atuação do Comitê de


Disciplina. 2016. 58f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Centro Socioeconômico,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufsc.
br/handle/123456789/174626. Acesso em: 14 ago. 2023.

QATAR. Law n. 18 of 2020 amending certain provisions of Labour Law n. 14 of 2004. Qatar:
2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---arabstates/---ro-beirut/docu-
ments/legaldocument/wcms_754882.pdf. Acesso em: 14 abr. 2023.

RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Os tratados internacionais sobre direitos humanos e a pri-
são civil do depositário infiel à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: GOMES, Eduardo
Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald Silka de; BRANDALISE, Ane Elise (coord.); SALLES,
Letícia Maria R.; LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal e o direito
internacional. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2020. p. 41-58.

RAMOS, Pedro de Oliveira. Por que a FIFA funciona? Uma análise da organização internacional que
controla o futebol no mundo. 2011. 70f. Monografa (Especialização) – Universidade de Brasília,
Brasília, 2011. Disponível em: https://www.bdm.unb.br/handle/10483/2446. Acesso em: 14 ago.
2023.

REGUEIRO, Raquel. Shared responsibility and human rights abuse: the 2022 World Cup in Catar.
Tilburg Law Review, v. 25, n. 1, p. 27-39, 2020. Disponível em: https://tilburglawreview.com/arti-
cles/10.5334/tilr.191. Acesso em: 14 ago. 2023.

ROCHA, Claudio; WYSE, Fiona. Host country brand image and political consumerism: the case of
Russia 2018 FIFA World Cup. Sport Marketing Quaterly, v. 29, n. 1, p. 62-76, 2020. Disponível em:
https://dspace.stir.ac.uk/bitstream/1893/30463/1/2020_Rocha.Wyse_Russia%202018%20FWC%20
and%20political%20consumerism.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

ROFE, J. Simon. Sport and diplomacy: a global diplomacy framework. Diplomacy & Statecraft, v. 27,
n. 2, p. 212-230, 2016.

ROSA, Alexandre Morais da. Tribunais de exceção da Copa só interessam à FIFA. Consultor Jurídico,
09 nov. 2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-nov-09/diario-classe-tribunais-exce-
cao-copa-interessam-fifa. Acesso em: 14 ago. 2023.

RUGGIE, John C. “For the game. For the World”. FIFA and human rights. Corporate responsibility
initiative report n. 68. Cambridge, MA: Harvard
296| Eduardo Tourinho Gomes

Kennedy School, 2016. Disponível em: https://www.hks.harvard.edu/sites/default/files/centers/mr-


cbg/programs/cri/files/Ruggie_humanrightsFIFA_reportApril2016.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

RUSSIA 2018: Why human rights matter at the world cup. Amnesty International UK, 21 jun. 2018.
Disponível em: https://www.amnesty.org.uk/russia-2018-why-human-rights-matter-world-cup.
Acesso em: 14 ago. 2023.

SALVO, Katia de Almeida. Notas sobre a inteligência artificial à luz dos direitos humanos. In: PASSIG,
Andressa; JAYME, Camila Soares Cavassin; PIRES, Joyce Finato (org.). Direitos fundamentais e novas
tecnologias: estudos em homenagem ao Prof. Marco Berberi. 1. ed. Curitiba: Íthala, 2023.

SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A atuação da FIFA na promoção dos direitos humanos no territó-
rio dos países sede das Copas do Mundo de Futebol. 2021. 65f. Monografia (Graduação em Direito)
– Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021.
Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/45297. Acesso em: 14 ago. 2023.

SANCHEZ, Rubio David. Direitos humanos instituintes. Rio de Janeiros: Lumen Juris, 2022.

SAGHEZCHI, Shafagh M.; NAINI, Manuchehr Tavassoli. A legal approach to the interaction between
sports and human rights. Mediterranean Journal of Social Sciences, v. 7, n. 3, p. 196-205, may 2016.
Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/8768/11d61e8b64a593a3e3c2ad1d489b1a9f13ca.
pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

SQUEFF, Tatiana Cardoso. Os limites das decisões de comitês de tratados de direitos humanos. In:
GOMES, Eduardo Biacchi; GUERRA, Sidney (dir.); ALMEIDA, Ronald Silka de; BRANDALISE, Ane Elise
(coord.); SALLES, Letícia Maria R.; LEAHY, Érika (org.). Grandes julgamentos do Supremo Tribunal
Federal e o direito internacional. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2020.

TERTO NETO, Ulisses. Do domínio autoritário militar para a democracia constitucional: uma visão
geral das políticas de direitos humanos através da redemocratização brasileira. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 22, n. 3, p. 215-252, 2017. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.
rdfd.v22i3832. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/832. Acesso em: 14 ago. 2023.

TORTELLA, Tiago. Casos de violência marcaram o futebol nas últimas semanas; relembre. CNN Brasil,
07 mar. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/casos-de-violencia-marcaram-
-o-futebol-nas-ultimas-semanas-relembre/. Acesso em: 14 abr. 2023.

UEFA. UEFA Euro 2024: tournament requirements. Switzerland: UEFA, 2017. Disponível em: https://www.
uefa.com/multimediafiles/download/officialdocument/uefaorg/regulations/02/46/30/61/2463061_
download.pdf. Acesso em: 14 abr. 2023.

VICO, Roberto Paolo; UVINHA, Ricard Ricci; NUNO, Gustavo. Sports mega-events in the e perception
of the local community: the case of Itaquera region in São Paulo at the 2014 FIFA World Cup Brazil.
Soccer & Society, v. 20, n. 6, p. 810-823, jan. 2018.
A AUTONOMIA DOS ENTES FEDERATIVOS
NO COMBATE À PANDEMIA DA COVID-19:
UMA ANÁLISE A PARTIR DA AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
N. 6.341

Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana 1


Stanlei Ernesto Prause Fontana2
Marcelo Fonseca Gurniski3

Sumário: 1. Introdução. 2. Os entes da federação e a proteção aos direitos fundamentais.


3. A pandemia da Covid-19 e o enfrentamento pelos entes federativos brasileiros.
4. A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341 e a garantia do direito à saúde no
contexto da pandemia da Covid-19. 5. Conclusão. Referências.

Resumo
O presente artigo tem o escopo de analisar de que maneira a crise causada pela pandemia
da Covid-19 afetou de forma significativa o modelo federativo brasileiro. Nesse sentido, es-
tuda-se o papel do Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade
n. 6.341, na qual se questionou se o estabelecimento de medidas de enfrentamento à
pandemia pela União afetaria a autonomia dos Estados, Municípios e Distrito Federal. De

1
Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Bolsista Prosup/Capes. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em
Direito Processual Civil pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Especialista em Direito Previdenciário
pelo Instituto de Estudos Previdenciários, Advogada. E-mail: cassiacirino@yahoo.com.br
2
Doutorando em Direito pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Mestre em Direito pelo Centro
Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura
do Estado do Paraná (Emap). Graduado em Direito pela União de Ensino do Sudoeste do Paraná. Advogado
militante em Curitiba/PR. E-mail: stanlei.fontana@gmail.com
3
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário
Autônomo do Brasil (UniBrasil), linha de pesquisa: Jurisdição e Democracia. Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Direitos Fundamentais e Democracia pelo UniBrasil, linha de pesquisa: Jurisdição e Democracia.
Membro do Grupo de Pesquisa Jurisdição e Democracia do PPGD do UniBrasil. E-mail: marcelo@ng.adv.br
298| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

característica cooperativa, a federação brasileira demonstrou estar vivendo uma crise no


trato da pandemia, quando a União pouco ou nada fez para conter os problemas sanitá-
rios e econômicos. Nesse cenário, a autonomia dos Estados e Municípios passou a ser
discutida, uma vez que foi necessária a ação destes entes federados para a preservação
de direitos fundamentais como a vida e a liberdade, bem como a dignidade da pessoa
humana. Nasce um dever por parte dos Estados e Municípios de agirem, seja na compra
das vacinas, seja no estabelecimento de medidas de abertura e fechamento do comér-
cio. A autonomia dos entes federados no combate à pandemia foi objeto da Ação Direta
de Inconstitucionalidade n. 6.341, em que se sustentou a inconstitucionalidade formal e
material da Medida Provisória n. 926, de 20 de março de 2020, neste último ponto porque
afastou a exclusividade da União na adoção de medidas de isolamento, quarentena, restri-
ção de locomoção e interdição de atividades. A inconstitucionalidade foi afastada e o que
se observou foi, ao contrário, uma maior autonomia dos entes federados, verificando-se
um atípico caso de descentralização federativa.

Palavras-chave: Federalismo dual. Federalismo cooperativo. Pandemia da Covid-19.


Direito à saúde. Direito à vida.

1 INTRODUÇÃO
A pandemia da Covid-19 gerou uma crise global, não de ordem apenas sanitária
e econômica, mas sobretudo uma crise política. No Brasil, especificamente, essa crise
pode ser observada na forma da condução das políticas públicas de enfrentamento da
pandemia. Com uma série de decisões divergentes tomadas por Estados, Municípios e
União, observou-se uma verdadeira descentralização, provocada pela omissão do go-
verno federal.

A tutela do direito à vida e à saúde é de competência comum aos entes federados,


mas a ausência de decisões rápidas e de caráter geral, que o momento exigia, tais como
a compra e a obrigatoriedade das vacinas, a construção de leitos de unidades de terapia
intensiva, a compra de respiradores, a determinação da obrigatoriedade do uso de másca-
ras, o fechamento de comércio e a determinação do isolamento social, para citar algumas
dessas medidas, que seriam tipicamente da esfera de competência da União, geraram a
necessidade de regulamentação por parte de Estados e Municípios.

A postura da União parece ter motivado a descentralização das medidas de en-


frentamento à pandemia, tendo em vista a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação
Declaratória de Inconstitucionalidade n. 6.341.A pandemia demonstrou a existência de uma
descentralização e as decisões divergentes tomadas por Estados, Municípios e União, leva-
ram a população a um cenário de desconfiança sobre as vacinas e medidas de isolamento
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |299

social. Por outro lado, verificou-se também a ampliação da descentralização do Sistema


Único de Saúde.

Indaga-se, portanto, de que modo a crise causada pela pandemia da Covid-19 afe-
tou, de maneira significativa, o modelo federativo brasileiro. Para responder a tal pergunta,
no primeiro capítulo deste trabalho, estuda-se o papel dos entes federados e como cada
um atua para a proteção dos direitos fundamentais, a partir do conceito de federação e do
modelo adotado no Brasil.

Em seguida, trata-se da autonomia administrativa e legislativa dos entes federa-


dos e como deve ser a atuação destes no modelo de federalismo cooperativo. Analisa-
se por que o arranjo institucional, incluindo o presidencialismo de coalizão e a maior
arrecadação de tributos pela União, estimulam a competição e comprometem o combate
às desigualdades regionais. Mostra-se, pois, como o federalismo cooperativo pode tor-
nar-se predatório.

Adiante, ainda no segundo capítulo, trata-se da pandemia da Covid-19 e como a


inércia da União tornou necessária a atuação de alguns Estados e Municípios de forma au-
tônoma e até mesmo antagônica ao estabelecerem as regras sobre medidas de isolamento
e lockdown. A omissão do governo federal foi objeto de várias ações no Supremo Tribunal
Federal, incluindo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 672, na qual
se reforçou o papel dos demais entes da federação, no âmbito da competência comum,
na qual à União cabe a edição de normas gerais, sem que se afaste a competência dos
demais, bem como não há qualquer hierarquia entre estes.

Para a resolução de conflitos, trata-se ao final do capítulo, sobre o papel do


Supremo Tribunal Federal na guarda da Constituição de 1988 e na criação de uma base
sólida para a tomada de decisões pelo Poder Executivo.

Por fim, no capítulo terceiro, trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.


6.341 e o papel do Poder Judiciário no controle de determinadas condutas estatais que afe-
tam diretamente o direito fundamental à vida e à saúde. Questionou-se se a determinação
pela União de adoção de determinados comportamentos para enfrentamento da pandemia
poderia afetar a autonomia dos demais entes federados. No entanto, além de o federalismo
exigir a cooperação entre os entes, desde que estes exerçam suas competências, determi-
nadas pela Constituição Federal, as suas autonomias saíram ilesas.

Escolheu-se o método dedutivo para tratar da pandemia e sua repercussão sobre o


federalismo cooperativo brasileiro.
300| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

2 OS ENTES DA FEDERAÇÃO E A PROTEÇÃO AOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS
O presente trabalho parte da noção de federalismo como pacto4. Daniel Elazar
atribui a origens bíblicas a ideia de pacto, representado pela aliança entre Deus e o homem,
que dará origem à aliança entre as pessoas, formando um corpo político5.

O termo federação nasce dessa ideia de pacto. Do latim: foedus ou foederis, a palavra
significa união6. Em quaisquer de seus modelos, observa-se que a ideia original de federação é
preservada, seja quando o poder é descentralizado, seja quando o poder dos Estados-membros
é centralizado na figura da União, só é possível imaginar um sistema federativo quando se tem um
conjunto(pacto) de entes, quando há mais de um centro de decisões políticas e administrativas.

Além do pacto, a federação se justifica quando contém seus fundamentos em uma


Constituição7. Nesse sentido, a República Federativa do Brasil, conforme dispõe o artigo
1º da Constituição Federal, é definida como a “união indissolúvel dos Estados e Municípios
e Distrito Federal”.

No federalismo brasileiro, a divisão de competências material e administrativa re-


serva à União um papel central para os interesses de ordem geral, cabendo aos Estados
e Municípios predominantemente um papel secundário, de execução de serviços públicos
e prestações sociais, o que caracteriza para alguns como uma “crise de identidade”, uma
vez que os estados e municípios acabam sendo meras entidades autárquicas da União8.

Por outro lado, na interpretação conferida ao artigo 1º da Carta Magna, o Supremo


Tribunal Federal destacou a ênfase dada à autonomia municipal, juntamente com a do
Distrito Federal, sobretudo por possuir as seguintes características: autoadministração,
com capacidade de decisão sobre matéria de interesse local e autogoverno, com a possi-
bilidade de eleição de membros do Poder Executivo e Legislativo9.

4
Para uma análise das demais teorias do federalismo, ver a tese de doutorado de: FRANZESE, Cibele.
Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas públicas. 2010. 210f.
Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo,
2010. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219. Acesso em: 14 ago. 2023.
5
ELAZAR, Daniel J. Exploring federalism. Alabama: The University of Alabama Press, 1987. p. 5.
6
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 59.
7
ELAZAR, Daniel J. Exploring federalism. Alabama: The University of Alabama Press, 1987. p. 34.
8
FRANCO FILHO, Alberto de M. A radiografia do Estado Brasileiro a partir do artigo 1º da Constituição Federal.
Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 4, n. 4, p. 1-25, 2008. p. 12. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/44. Acesso em: 14 ago. 2023.
9
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Plenário. Relator: Ministro
Gilmar Mendes. Julgamento em 6/03/2013. DJe: 16/9/2013. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/proces-
sos/detalhe.asp?incidente=1714588. Acesso em: 07 set. 2022.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |301

A participação de cada ente da federação, sobretudo dos Estados, já foi objeto de


questionamento na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 815, ajuizada pelo Governador
do Estado do Rio Grande do Sul, ao alegar uma possível inconstitucionalidade da norma
constitucional que fixa como mínimo o número de oito e como máximo o número de se-
tenta deputados federais por Estado. Não obstante tal ação tenha sido extinta pela impos-
sibilidade jurídica do pedido, é importante observá-la na análise do federalismo brasileiro.
O autor considerava desarrazoado tal dispositivo, pois os Estados do Sul e Sudeste, que
representam a grande maioria do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, acabam tendo o
direito ao mesmo número de deputados federais do que os Estados que contribuíam menos
para a economia nacional10.

No federalismo cooperativo, modelo derivado do federalismo como pacto11, os


votos “se pesam, não se contam”, para que se preserve a igualdade de representação, o
que se verifica no Congresso, quando a proporcionalidade é aplicada12. Assim, a partici-
pação dos entes federados no Legislativo deve ocorrer de forma proporcional à população
dos Estados, o que não se mostra desigual, ao contrário, essa proporcionalidade permite a
concretização da igualdade entre eles.

Observa-se da mesma maneira a busca pela igualdade entre os entes da Federação


na repartição das receitas tributárias. Nesse sentido, a Constituição da República de 1988
criou um mecanismo de distribuição das receitas que assegura que os Municípios, Estados
e Distrito Federal recebam parte importante do valor arrecadado pela União13. Sendo a
União a maior arrecadadora, a participação dos Estados e Municípios na destinação dessas
receitas revela a intenção do constituinte em buscar um equilíbrio financeiro entre os entes
da federação, tratando os entes desiguais de forma diferenciada14.

10
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 815. Plenário. Relator: Ministro
Moreira Alves. Julgamento em 28/3/1996. DJ: 10/5/1996. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/
detalhe.asp?incidente=1553954. Acesso em: 07 set 2022.
11
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 37. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
12
MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração. Curitiba: Juruá,
2013. p. 65.
13
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 14. ed. atual. até 31.12.2006, que inclui a
Emenda Constitucional n. 53, de 19/12/2006. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 11.
14
PAIXÃO, Vívian Nigri Q. D.; CORREIO, Fernanda Lopez. M. da S. Fontes de financiamento das políticas públicas:
repartição das receitas tributárias e a evolução dos Municípios. Caderno de Direito e Políticas Públicas, v. 1, n.
2, p. 139-163, jun./dez. 2019. p. 147. Disponível em: http://seer.unirio.br/cdpp/article/view/9341. Acesso em:
05 ago. 2022.
302| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

A federação brasileira, sobretudo no período posterior à Constituição Federal de


1988, mostra-se cooperativa, na qual não obstante as divisões internas de competência
e a autonomia de cada ente federativo, são frequentes os acordos entre os governos
visando a financiamentos, auxílios, subvenções e programas para ajuda mútua e tomada
de decisões coordenadas15.

Contudo, há quem considere que o federalismo brasileiro, embora indique um mo-


delo cooperativo, não o é efetivamente. Isso se deve ao fato de a Constituição Federal de
1988 garantir uma maior autonomia municipal, bem como prever uma maior descentraliza-
ção das receitas tributárias. Tais fatores servem para aproximar a federação de um modelo
dual, segundo aponta Cibele Franzese16, ao menos em uma primeira análise.

Destarte, observou-se um reflexo desse modelo federativo nas políticas públi-


cas, que passaram por uma municipalização17, sobretudo na tutela do direito à saúde.
Posteriormente, na segunda metade da década de 1990, o federalismo brasileiro trans-
formou-se em um modelo mais cooperativo18, ainda que não o realize adequadamente19.

Registre-se que as 27 unidades que formam a República Federativa do Brasil são


marcadas por imensas diferenças econômicas e sociais e possuem dentro da divisão
de atribuições materiais e legislativas, competência para a proteção dos direitos funda-
mentais, a qual deve ser compreendida também como um dever indeclinável e bastante

15
PEREIRA, Larissa Alcântara. Âmbitos de atuação estatal em prol da efetivação dos direitos humanos e fun�-
damentais: Estado Constitucional Cooperativo e federalismo cooperativo. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 5, n. 5, p. 1-8, 2009. p. 3. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.
br/index.php/rdfd/article/view/224. Acesso em: 14 ago. 2023.
16
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 94-95. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
17
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 96. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
18
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 100. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
19
Nesse sentido: FISCHER, Octavio Campos; MACHADO, Luciano Marlon Ribas. Pacto federativo em crise: uma
análise na visão dos municípios da segurança jurídica e da dignidade humana. Revista Jurídica Unicuritiba,
Curitiba, v. 04, n. 53, p. 233-254, 2018. p. 248. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/
RevJur/article/view/3217/371371734. Acesso em: 14 ago. 2023.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |303

amplo 20.A cooperação nesse modelo federativo decorre do princípio da solidariedade


e, nas matérias de competência comum, do artigo 23, da Constituição Federal, possui
natureza obrigatória21, uma vez que prescinde da lei complementar para regulamentá-la.

Contudo, o termo cooperação representa a forma como os entes federativos devem


interagir, decorrente da própria estrutura federativa, o que não significa necessariamente uma
relação amigável entre eles22. O federalismo cooperativo pode resultar, ora no predomínio da
força federal sobre os demais entes, ora no fortalecimento de governos estaduais23.

20
A amplitude dos deveres de tutela dos direitos fundamentais deve-se a vários fatores. Um deles consiste no
fato de que os direitos fundamentais não estão limitados ao rol do artigo quinto da Carta Magna, é preciso reco-
nhecer a abertura do catálogo, não somente para abranger direitos não contidos no rol do referido artigo, mas
também para compreender outros instrumentos normativos. Nesse cenário, a dignidade da pessoa humana,
que é extremamente relacionada com a liberdade e se concretiza em direitos jusfundamentais. (NAKAMURA,
Luis Antonio Corona. Los Derechos Humanos, sus principios e interpretación. Revista Direitos Fundamentais
& Democracia, Curitiba, v. 23, n. 1, p. 259-274, 2018. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v23i11281. p.
262. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1281. Acesso
em: 14 ago. 2023). Além disso, a dignidade parece ter papel importante como elemento identificador desses
direitos fundamentais extravagantes ou atípicos, assim considerados os previstos fora do catálogo específico
da Constituição de 1988 (SANTOS, Cássia Camila Cirino dos; FONTANA, Stanlei Ernesto Prause. Dignidade
da pessoa humana, abertura do catálogo dos direitos fundamentais e integridade: um novo desafio? Anais
da VII Jornada de Direitos Fundamentais, Fortaleza: Unifor, v. 1, 2020. Disponível em: https://www.unifor.
br/documents/392178/3101527/Cassia+Camila+Cirino+dos+Santos+Fontana+e+Stanlei+Ernesto.pd-
f/958f6844-ffe1-5f64-1f78-8d02e9d087f7. Acesso em: 14 ago. 2023). A abertura do catálogo também é
importante para que um ordenamento jurídico permita um mínimo para a proteção dos direitos humanos,
no âmbito internacional (MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e
integração. Curitiba: Juruá, 2013. p. 22). Deve-se compreender que os direitos humanos – em grande medida
idênticos aos direitos fundamentais - não nascem prontos, eles são consequência de processos de luta por
respeito aos bens imprescindíveis para a vida. A razão pela qual se luta por esses direitos está na resposta
trazida por Joaquin Herrera Flores ao tratar do tema que afirma que além de imprescindíveis, tais bens não
“caem do céu”, razão pela qual são obtidos mediante processos, razão pela qual são obtidos mediante pro-
cessos (FLORES, Joaquín Herrera. A (re) invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2009. p. 30). Os direitos fundamentais apresentam relação íntima com os “avatares históricos do pensamento
humanista” (PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1988. p. 30).
21
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora Ministra Rosa Weber. Julgamento
em 13/10/2020. DJe: 27/10/2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?inciden-
te=5437155. Acesso em: 07 set. 2022.
22
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 38. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
23
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 41. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
304| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

O modelo de federação impacta diretamente na forma pela qual o Estado organiza


e executa assuas políticas públicas. Do passado, a experiência brasileira herdou o cliente-
lismo, patrimonialismo, a prevalência de interesses individuais e o oportunismo24, fatores
que, sem dúvida, prejudicaram as ações coordenadas que deveriam ser colocadas em
prática pelos entes da federação ou subverteram o propósito emancipador das políticas
públicas por eles prestadas.

No entanto, a cooperação deve estar presente no agir conjunto na busca por uma
efetiva proteção dos direitos fundamentais, que abranja o mínimo para uma vida digna, o
que pode ser bem definido pelo princípio da proibição do défice ou proibição da insuficiên-
cia, mas que também não vá além da proteção e acabe violando o que for constitucional-
mente proibido25.

Vale ressaltar que a proteção dos direitos fundamentais deve ser analisada sob dife-
rentes perspectivas. Sob o aspecto da sua dimensão objetiva, é possível fazer um controle
sobre a atuação estatal, uma vez que tais direitos devem ser protegidos e independem da
percepção que seus titulares deles fazem26.

A propósito, alguns reflexos do federalismo cooperativo no Brasil são notados na


área da educação, direito fundamental que ainda não atingiu os níveis de efetividade ide-
ais. Nesse sentido, o Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério (FUNDEF), que foi complementado pelo Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(FUNDEB), além de contribuírem muito para o ensino por meio da distribuição de recursos
para os entes federados, representaram o exercício de um federalismo cooperativo, com a
preservação da autonomia dos estados e municípios27.

No âmbito da saúde, o federalismo cooperativo pode ser verificado através do


Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição Federal, como um sistema único
e descentralizado, nos termos do artigo 198 da Carta Magna. A adesão às diretrizes gerais
do sistema não se deu de forma automática, mas foi incentivada pela transferência de

24
BITENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas: diagnósti-
cos, diretrizes e propostas. Curitiba: Íthala, 2021. p. 97.
25
NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes do Estado de Direito. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2019. p. 177-179.
26
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed., rev., atual. e ampl. São
Paulo: Atlas, 2014. p. 117.
27
CAMPOS, Nelma Lima Silva; SIMÕES, Sandro Alex de S. Federalismo cooperativo e política nacional de edu�-
cação: mito ou realidade? In: DIAS, Jean Carlos; BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de; ARAÚJO, José
Henrique Mouta (org.). Direito e desenvolvimento da Amazônia. 1. ed. Santa Catarina: Qualis, 2021. v. 3. p.
335-397. p. 343.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |305

recursos. Além disso, a descentralização foi orientada por padrões gerais, estabelecidos
de forma nacional28.

A Constituição Federal de 1988 reconhece o direito à saúde como um direito funda-


mental, o que possui no sentido material, o direito de proteção relacionado à manutenção
da própria vida com dignidade e como pressuposto para a fruição dos demais direitos29.Ao
mesmo tempo em que um direito fundamental é reconhecido, há, por outro lado, deveres
fundamentais e políticos, os quais consistem na adequada prestação pelo Estado30, bem
como na destinação de verba orçamentária para a saúde, políticas de implementação do
SUS, dentre outros deveres31.

Tais deveres estatais se renovam com frequência, pois os direitos fundamentais


nunca se tornam prontos e acabados, mas se reconstroem segundo as necessidades hu-
manas. Até mesmo no direito à saúde, pode-se fazer uso de um tratamento médico e mes-
mo que este finalize, será possível ao titular do direito usufruir novamente do tratamento,
quando ficar doente32.

Esses deveres fundamentais demonstram a realização do princípio da solidarie-


dade, o qual não se torna visível somente no ramo do Direito Ambiental, pois dentro do
federalismo cooperativo diz respeito à atuação de cada ente na proteção, concretização e
realização do direito à saúde, a chamada “responsabilidade compartilhada para as presen-
tes e futuras gerações”33.

28
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas
públicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação
Getúlio Vargas, São Paulo, 2010. p. 119; 122. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/hand-
le/10438/8219. Acesso em: 14 ago. 2023.
29
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. O direito fundamental à proteção e promoção da saú�-
de na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre o sistema (público e privado de saúde no Brasil).
Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 2, n. 4, p. 3183-3255, 2013. p. 3191. Disponível em: https://
meriva.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11334/2/O_direito_fundamental_a_protecao_e_promocao_da_sau-
de_na_ordem_juridico_constitucional_uma_visao_geral_sobre_o_sistema.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
30
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 226 et seq.
31
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. O direito fundamental à proteção e promoção da
saúde na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre o sistema (público e privado de saúde no
Brasil). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 2, n. 4, p. 3183-3255, 2013. p. 3193-3194. Disponível
em: https://meriva.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11334/2/O_direito_fundamental_a_protecao_e_promo-
cao_da_saude_na_ordem_juridico_constitucional_uma_visao_geral_sobre_o_sistema.pdf. Acesso em: 14
ago. 2023.
32
BITENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas: diagnósti-
cos, diretrizes e propostas. Curitiba: Íthala, 2021. p. 84.
33
Expressão adotada por Canotilho. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito ao ambiente como direito subjetivo.
In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 178.
306| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

3 A PANDEMIA DA COVID-19 E O ENFRENTAMENTO PELOS


ENTES FEDERATIVOS BRASILEIROS
Como tratado anteriormente, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios
possuem autonomia administrativa e legislativa e, ao menos teoricamente, deveriam atuar de
forma cooperativa uns com os outros, dentro do modelo de federação adotado pelo Brasil.

A despeito das exigências de cooperação, o desenho institucional dos entes polí-


ticos suscita algumas dificuldades. O regime presidencialista por si só, gera conflitos e o
arranjo institucional força o presidente da República a formar coalizões para se manter no
poder. Igualmente, ao Poder Executivo foram destinadas muitas competências, sobretudo
para definir políticas públicas. A coalizão torna-se necessária para que se tenha uma har-
monia entre o Poder Executivo e Poder Legislativo, bem como se garanta a estabilidade do
governo34, o que pode se refletir na definição das políticas públicas.

Na mesma linha, a Constituição Federal de 1988 destina à União uma maior arreca-
dação, pois percebe o maior percentual dos tributos, o que faz com que o governo central
reste enfraquecido porque precisa fazer negociações com as lideranças locais e regio-
nais35, o que estimula a competição e compromete o combate o alcance dos objetivos da
República, entre eles o de diminuir e eliminar as desigualdades entre os entes federativos.

Por essas e outras razões, o federalismo cooperativo tem se mostrado, muitas


vezes, predatório, pois dentro desse modelo de presidencialismo e na estrutura de dis-
tribuição de competências, fortalecem-se as negociações entre os prefeitos e governo
federal, em troca de apoio político às candidaturas locais, fortalecendo as disputas entre
os Estados36.

Portanto, a cooperação acaba se tornando reveladora de uma disputa interna entre


os entes federados, sobretudo pelas seguintes características: patrimonialismo, clientelis-

34
SCHIER, Paulo Ricardo. Presidencialismo de coalizão: contexto, formação e elementos na democracia brasi-
leira. Curitiba: Juruá, 2017. Passim.
35
BITENCOURT, Caroline Müller; FRIEDERICH, Denise Bittencourt. A dinâmica do federalismo brasileiro no tema
das políticas públicas, controle social e a Covid-19. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v.
25, n. 3, p. 49-77, 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i32058. Disponível em: https://revistaeletro-
nicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2058. Acesso em: 14 ago. 2023.
36
BITENCOURT, Caroline Müller; FRIEDERICH, Denise Bittencourt. A dinâmica do federalismo brasileiro no tema
das políticas públicas, controle social e a Covid-19. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba,
v. 25, n. 3, p. 49-77, 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i32058. p. 59. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2058. Acesso em: 14 ago. 2023.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |307

mo, predominância do interesse individual e favorecimento de acordos informais em prol


da governabilidade37.

No ano de 2020, a pandemia da Covid-19 e as medidas de enfrentamento adotadas


por diversos países colocaram em xeque muitas formas de governo e de administração pú-
blica, inclusive o modelo federativo brasileiro. A inércia da União no trato especificamente
da compra de vacinas fez com que alguns Estados tomassem a frente nessa busca, como
fez o Estado de São Paulo. Enquanto o Governo Federal ainda se mostrava hostil à compra
das vacinas, o governo de São Paulo ofereceu uma proposta de 90 milhões de dólares para
a aquisição de 46 milhões de doses da Sinovac e se comprometeu a transferir a tecnologia
para a fabricação das vacinas pelo Instituto Butantan38.

A conduta dos Estados foi de extrema importância enquanto a pandemia avançava


e o governo federal permanecia inerte, uma vez que as regras sobre lockdown foram to-
madas pelos Estados39, que se viam na dicotomia entre garantia da saúde e proteção do
emprego e economia.

Nesse aspecto, é importante esclarecer que a economia já padecia antes mesmo


da pandemia, pois o Brasil já passava no ano de 2019 por dificuldades de crescimento e
por uma taxa de desemprego elevada, que já estava em 11,9%. Com a pandemia, houve
uma diminuição no PIB e o desemprego atingiu o percentual de 13,5%. Além disso, a pan-
demia aumentou os níveis de desigualdade social que já eram alarmantes 40.

As regras de lockdown adotadas pelos Estados foram muito criticadas pelo Governo
Federal, representadas pelo slogan “#Brasilnãopodeparar”41, as quais rumaram para um
cenário de insegurança, o qual só foi paralisado pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição
de Descumprimento Fundamental n. 672, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil.

Nessa ADPF, questionou-se a omissão do governo federal no enfrentamento da


pandemia, bem como algumas condutas comissivas e o papel dos demais entes federados.

37
BITENCOURT, Caroline Müller; FRIEDERICH, Denise Bittencourt. A dinâmica do federalismo brasileiro no tema
das políticas públicas, controle social e a Covid-19. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba,
v. 25, n. 3, p. 49-77, 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i32058. p. 60. Disponível em: https://
revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2058. Acesso em: 14 ago. 2023.
38
TOOZE, Adam. Como a Covid abalou a economia. São Paulo: Todavia, 2021. p. 199.
39
TOOZE, Adam. Como a Covid abalou a economia. São Paulo: Todavia, 2021. p. 199.
40
SARLET, Ingo Wolfgang; BARBOSA, Jeferson Ferreira. Desafios da Covid-19 à seguridade social brasilei-
ra. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 27, n. 2, p. 128-157, 2022. DOI: 10.25192/
issn.1982-0496.rdfd.v27i2426. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/
article/view/2426. Acesso em: 14 ago. 2023. Passim.
41
TOOZE, Adam. Como a Covid abalou a economia. São Paulo: Todavia, 2021. p. 116.
308| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

A ação foi julgada parcialmente procedente, para garantir aos Estados a competência para a
adoção de medidas de combate e enfretamento à pandemia da Covid-19, reforçando o seu
papel na concretização do direito à saúde e no apoio e manutenção das ações realizadas
pelo Sistema Único de Saúde, considerado como uma garantia institucional fundamental42.

Destacou-se, outrossim, que o direito à saúde pertence ao rol de competência co-


mum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 23, incisos II e IX, da Constituição
Federal) e de competência legislativa concorrente (artigo 24, inciso XII, da Constituição
Federal). Por fim, apontou-se que, embora a União exerça um papel central no planejamento
e coordenação das atividades relacionadas ao direito à saúde, tal posição não possibilita o
afastamento das medidas sanitárias adotadas pelos demais entes de forma isolada, como a
suspensão de atividades, imposição de isolamento ou distanciamento social43.

Dentro da competência comum para cuidar da saúde, cabe à União editar normas
de caráter geral, a exemplo da Lei n. 8.080, de 1990, que versa sobre o Sistema Único
de Saúde. Do mesmo modo, a Lei n. 13.979, de 2020, nunca excluiu a competência dos
demais entes federados, apenas representou a edição de uma norma geral sobre o SUS e
sobre a vigilância epidemiológica.

Todavia, tratando-se de situação excepcional e emergencial, aos governos estadu-


ais, distritais e municipais não caberia assistir às condutas omissivas e comissivas aten-
tatórias ao direito à saúde praticadas pelo Governo Federal e se omitirem aguardando uma
diretriz enquanto milhares de pessoas perdiam as suas vidas. O enfrentamento da pande-
mia passava também pela compreensão de como o modelo federativo brasileiro funciona.

Isso porque, em um modelo cooperativo, as ações devem ser coordenadas, con-


juntas em prol do coletivo. No entanto, na questão específica da pandemia, a omissão
federal, bem como as condutas lesivas e atentatórias ao direito à saúde fizeram com que os
demais entes federados adotassem medidas sanitárias não autorizadas ou regulamentadas
no âmbito geral, com o intuito de evitar que mais vidas fossem ceifadas.

Assim, a decisão pela compra de vacinas pelo Estado de São Paulo, a decretação
de lockdown por parte de alguns Estados enquanto outros mantinham suas atividades, em

42
Expressão adotada por Sarlet e Figueiredo: SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. O di�-
reito fundamental à proteção e promoção da saúde na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre
o sistema (público e privado de saúde no Brasil). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 2, n. 4, p.
3183-3255, 2013. p. 3208. Disponível em: https://meriva.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11334/2/O_di-
reito_fundamental_a_protecao_e_promocao_da_saude_na_ordem_juridico_constitucional_uma_visao_ge-
ral_sobre_o_sistema.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
43
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 672 Medida
Cautelar. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relator Ministro Alexandre de Moraes. Julgamento: 13/10/2020.
Publicação: 29/10/2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5885755.
Acesso em: 07 set. 2022.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |309

uma verdadeira cooperação antagônica44, levou a um cenário de uma aparente inseguran-


ça para a população, que acabou por desconfiar da eficácia das vacinas, da necessidade
de isolamento social, dentre outras medidas sanitárias adotadas pelos estados, municípios
e Distrito Federal.

Em verdade, a pandemia revelou também uma crise de ordem política e institucio-


nal no Brasil45, a título de exemplo, quando o presidente da República declarou sua oposi-
ção aos decretos estaduais e municipais de fechamento do comércio e isolamento social,
o prefeito do Rio de Janeiro reabriu o comércio, no entanto, logo em seguida, o governador
do estado do Rio de Janeiro interferiu e revogou a medida, retomando o fechamento e
isolamento social46.

Essas e outras decisões contraditórias tomadas pelos chefes dos Poderes


Executivos federal e estadual revelam a inexistência ou uma crise no sentido originário
da federação, idealizado pelo constituinte como a união entre os entes47, bem como um
atípico caso de descentralização.

Nesse sentido, não obstante a situação excepcional e inédita da pandemia, o res-


peito à Constituição deve ser buscado, mediante a guarda do Supremo Tribunal Federal, ao
qual garante não uma decisão final, sem prejuízo das decisões com caráter vinculante, mas

44
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 38. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
45
“Nesse contexto, já nos primeiros meses de 2020, o panorama político e a organização federativa foram
marcados por (i.) uma fraca coordenação nacional; (ii.) uma forte liderança dos Estados; (iii.) conflitos entre
o Presidente da República e seu Ministro da Saúde, em especial num primeiro momento; (iv.) conflito entre o
Presidente da República e os governadores dos Estados da Federação; esses focados na proteção da saúde
pública, aquele na proteção da economia (PEREIRA, et al., 2020); (v.) tensões e mesmo conflitos abertos entre
os poderes estatais, especialmente entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Poder Executivo da União; (vi.)
elevação dos níveis de polarização político-ideológica e desinformação, bem como dos apelos de natureza po-
pulista e autoritária” (SARLET, Ingo Wolfgang; BARBOSA, Jeferson Ferreira. Desafios da Covid-19 à seguridade
social brasileira. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 27, n. 2, p. 128-157, 2022. DOI:
10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i2426. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.
php/rdfd/article/view/2426. Acesso em: 14 ago. 2023. p. 130).
46
BRÍGIDO, Carolina. Bolsonaro, Witzel ou Crivella: quem pode mandar reabrir o comércio durante a pandemia
de Coronavírus. O Globo, 25 mar. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/analitico/bolsonaro-witzel-
-ou-crivella-quem-pode-mandar-reabrir-comercio-durante-pandemia-de-coronavirus-24327828. Acesso em:
06 ago. 2022.
47
BONIZZATO, Luigi. The coronavirus pandemic and legal – theoretical reflections on the practical incidence
concerning the protection of the Constitution based on Hans Kelsen and Carl Schmitt theories: conflicting rela-
tionships between institutions and federative degrees in Brazil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 26, n. 3, p. 95-113, 2021. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v26i32176. p. 98. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2176. Acesso em: 14 ago. 2023.
310| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

uma base sólida para a tomada de decisões pelo Poder Executivo nessas emergências48.
A divisão de competências e a existência de uma Corte Constitucional para a defesa da
Constituição, como já dizia Hans Kelsen, não coloca em risco a separação de poderes, ao
contrário, fortalece-a, mediante o sistema de freios e contrapesos49.

Com a pandemia, o federalismo brasileiro enfrentou excepcionalmente uma amplia-


ção da descentralização do Sistema Único de Saúde50, bem como as desigualdades regionais
tornaram-se mais visíveis, sobretudo no acesso aos serviços do SUS, demonstradas pelo co-
lapso enfrentado prematuramente nos Estados do Norte e do Nordeste51. A falta de uma ação
coordenada no âmbito federal fez surgir um cenário de guerra sanitária entre os Estados e de
cooperação horizontal para a aquisição de equipamentos de proteção individual52.

O SUS, que tem por característica a atuação regionalizada, visando à adaptação


das diretrizes gerais às características epidemiológicas locais53,foi muito questionado e
elogiado, fato que reflete as contradições do momento. No entanto, é inegável que a parti-
cipação ativa dos Estados, a qual, embora muito importante no enfrentamento da pandemia

48
BONIZZATO, Luigi. The coronavirus pandemic and legal – theoretical reflections on the practical incidence
concerning the protection of the Constitution based on Hans Kelsen and Carl Schmitt theories: conflicting rela-
tionships between institutions and federative degrees in Brazil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 26, n. 3, p. 95-113, 2021. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v26i32176. p. 100. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2176. Acesso em: 14 ago. 2023.
49
KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Tradução de Alexandre Krug. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007. p. 152.
50
VIEIRA, Fabiola S.; SERVO, Luciana M. S. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da
dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. especial 4,
p. 100-113, dez. 2020. DOI: 10.1590/0103-11042020E406. p. 107. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
sdeb/a/44SVpkjDHB6QcR5x4NtTNwf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 ago. 2023.
51
VIEIRA, Fabiola S.; SERVO, Luciana M. S. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da
dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. especial 4,
p. 100-113, dez. 2020. DOI: 10.1590/0103-11042020E406. p. 107. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
sdeb/a/44SVpkjDHB6QcR5x4NtTNwf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 ago. 2023.
52
VIEIRA, Fabiola S.; SERVO, Luciana M. S. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da
dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. especial 4,
p. 100-113, dez. 2020. DOI: 10.1590/0103-11042020E406. p. 108. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
sdeb/a/44SVpkjDHB6QcR5x4NtTNwf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 ago. 2023.
53
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. O direito fundamental à proteção e promoção da saú�-
de na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre o sistema (público e privado de saúde no Brasil).
Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 2, n. 4, p. 3183-3255, 2013. p. 3210. Disponível em: https://
meriva.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11334/2/O_direito_fundamental_a_protecao_e_promocao_da_sau-
de_na_ordem_juridico_constitucional_uma_visao_geral_sobre_o_sistema.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |311

da Covid-19, também se mostrou negativa ao revelar a deficiência do SUS e a necessidade


de uma coordenação tripartite até então inexpressiva ou inexistente54.

A pandemia, pois, trouxe à tona diversas questões sobre o federalismo, sobre o


direito à saúde e o papel do SUS que, nesse modelo federal, são realmente importantes.
Muitas delas foram objeto de ações judiciais. No presente trabalho, dedica-se especifica-
mente ao estudo de uma delas, o que se passa a explorar no próximo tópico.

4 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 6.341


E A GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DA COVID-19
A forma de enfrentamento da pandemia da Covid-19 pelos Estados revelou a exis-
tência de uma ameaça preocupante ao Estado Democrático de Direito. Governantes omis-
sos ou que aparentemente adotavam medidas fora de sua competência contribuíram para
gerar uma crise ainda maior.

Com a pandemia, são diversas as crises enfrentadas no Brasil, conforme apontam


Caroline Müller Bitencourt e Janriê Reck, sejam de ordem política, com ataques constantes
à democracia, sejam de ordem moral, com o aumento do fundamentalismo religioso e a
intolerância55. Além disso, a separação dos poderes e a autonomia dos entes federados
também se mostraram em perigo. Em meio a inúmeras incertezas, um bombardeio de
notícias falsas se propagou sobre a pandemia, as quais versavam sobre as vacinas, a
utilização de máscaras e o isolamento social e outros assuntos afins.

O Estado que garante a saúde não pode ser compreendido somente na esfera da
União, pois também o Estado-membro, o Município e o Distrito Federal, dentro de suas com-
petências, são corresponsáveis, na forma estabelecida pelo artigo 23 da Constituição Federal.
No âmbito da competência comum, a União legisla em caráter geral, os Estados em caráter
regional e os Municípios em caráter local, segundo o princípio da predominância do interesse.
A emergência internacional, como foi o caso da pandemia da Covid-19, por si só, não autoriza
a tomada de decisões sem qualquer tipo de controle, conforme ressaltado no julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341, objeto de análise neste trabalho.

54
VIEIRA, Fabiola S.; SERVO, Luciana M. S. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da
dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. especial 4,
p. 100-113, dez. 2020. DOI: 10.1590/0103-11042020E406. p. 109. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
sdeb/a/44SVpkjDHB6QcR5x4NtTNwf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 ago. 2023.
55
BITENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas: diagnósti-
cos, diretrizes e propostas. Curitiba: Íthala, 2021. p. 80.
312| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

Quando um ente é omisso, o outro não pode negar a prestação de um direito fun-
damental. Com a pandemia essa situação verificou-se de maneira inequívoca e por essa
razão, destaca-se, no presente trabalho, o enfrentamento da questão pela Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 6.341, sobre a qual se tecem comentários mais aprofundados.
Conforme ressaltou o Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, a ação versa sobre um
dos alicerces do Estado Democrático de Direito, que é o federalismo56.

Segundo constou do voto da ADI n. 6.341, a omissão é o mais grave erro de uma
política pública em uma emergência. A necessidade de agir diante da pandemia, para a tutela
da vida e da saúde, no entanto, não autorizou uma ação descoordenada entre os entes fe-
derativos, pois a própria Constituição Federal estabelece regras para que se estabeleça uma
racionalidade coletiva, para que se tomem decisões razoáveis e coordenadas, ao mesmo
tempo em que se preserve a liberdade individual, nos termos da decisão da ADI n. 6.341.

Destaque-se, nesse sentido, que uma das características da federação é a exis-


tência de uma Corte Suprema para a solução de conflitos entre os entes57, de forma que
ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição e por legitimidade que lhe foi
conferida pela Carta Magna, cabe decidir as situações de conflito e aos agentes públicos
cabe agir de forma transparente, para que as suas condutas sejam justificadas.

Nesse sentido, não se admite que um chefe de Estado recomende um medica-


mento ou que avalie os riscos de contaminação por um vírus sem qualquer expertise ou
aconselhamento efetivamente científico para isso. As declarações que minimizaram ou
desdenharam da gravidade da pandemia influenciaram significativamente as pessoas a
adotarem comportamentos de risco58. Além disso, houve um desrespeito às diretrizes
traçadas pela Organização Mundial da Saúde, de aderência obrigatória aos Estados sig-
natários nos termos do artigo 22 da Constituição da OMS (Decreto n. 26.042, de 17 de
dezembro de 1948).

Nesse contexto, o Tribunal Permanente dos Povos, cujas decisões possuem natu-
reza opinativa, reconheceu as violações aos direitos humanos provocadas pelo presidente

56
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.
jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acordaos&sinonimo=true&plu-
ral=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 13 ago. 2022.
57
FISCHER, Octavio Campos; MACHADO, Luciano Marlon Ribas. Pacto federativo em crise: uma análise na
visão dos municípios da segurança jurídica e da dignidade humana. Revista Jurídica Unicuritiba, Curitiba,
v. 04, n. 53, p. 233-254, 2018. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/
view/3217/371371734. Acesso em: 14 ago. 2023.
58
BRAMATTI, Daniel; MONNERAT, Alessandra; BREMBATTI, Katia. Cloroquina tem Bolsonaro como maior in�-
fluenciador do mundo. Estadão, 06 jun. 2021. Disponível em:https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,-
cloroquina-tem-bolsonaro-como-maior-influenciador-do-mundo,70003738175. Acesso em: 11 set. 2022.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |313

da República e condenou-o pela prática de crimes contra a humanidade, por condutas


como o incentivo à “imunidade de rebanho”, desestímulo do uso de máscaras e isolamento
social, incentivos contrários à vacinação, incentivo ao “tratamento precoce” mediante o
uso de medicamentos sem eficácia comprovada59.

Nesse aspecto, considerando que o federalismo pode ser percebido como uma di-
visão de poderes e de competências, a cooperação esperada e até mesmo a sobrevivência
de tal modelo pode ser percebida com mais facilidade quando se está diante de um regime
democrático. Sem a garantia de que as prerrogativas de cada ente serão respeitadas, o go-
verno central poderá interferir indevidamente no poder das demais unidades da federação,
o que é incompatível com a democracia60.

Tal ação constitucional foi ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista, tendo
como objeto a Medida Provisória n. 926, de 20 de março de 2020, a qual promoveu algu-
mas alterações na Lei n. 13.979, de 2020. Alegou o partido a inconstitucionalidade formal
da Medida Provisória, pois, por se tratar de direito à saúde, que é de competência comum
dos entes da federação, deveria ser tratado por lei complementar, à luz do que dispõe o
parágrafo único do artigo 23 da Carta Magna. Quanto ao aspecto material, sustentou-se a
inconstitucionalidade porque a regulamentação da União quanto ao tema feriria a autono-
mia dos entes federados, bem como a predominância do interesse.

Contudo, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, quando a União regu-


lamenta quais são as atividades essenciais por decreto, por exemplo, não está ferindo a
autonomia dos demais, pois não afastou em nenhum momento a possibilidade de estes
regulamentarem as suas atividades, razão pela qual conferiu interpretação conforme ao
§ 9º do artigo 3º da Lei n. 13.979, no sentido de, preservada a autonomia de cada ente
federativo, pode o presidente da República dispor mediante decreto a respeito das ativida-
des essenciais e dos serviços públicos. Quanto ao aspecto formal, afastou-se a incons-
titucionalidade, pois a Medida Provisória em questão atendia aos requisitos da relevância
e urgência e alterou a Lei n. 13.979, que é de natureza ordinária. A decisão final foi para
conferir interpretação conforme a vários dispositivos da Medida Provisória, uma vez que
a disciplina pelo Presidente da República, mediante decreto, das atividades essenciais no

59
TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS. 50ª sessão: pandemia e autoritarismo. A responsabilidade do governo
Bolsonaro pelas violações sistemáticas dos direitos fundamentais dos povos brasileiros perpetradas através
das políticas impostas na pandemia de Covid-19. São Paulo, 24 e 25 maio 2022. Disponível em: http://perma-
nentpeoplestribunal.org/wp-content/uploads/2022/05/TPP_BOLSONARO_PROGR_PORT.pdf. Acesso em: 14
ago. 2023.
60
FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de políticas pú�-
blicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2010. p. 30. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8219.
Acesso em: 14 ago. 2023.
314| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

contexto da pandemia da Covid-19, não afasta a competência dos demais entes federados,
pois se trata da competência comum61.

Como destacado, sobretudo no voto do Min. Gilmar Mendes, o Sistema Único de


Saúde é o principal exemplo do federalismo cooperativo, uma vez que todos os entes da
federação se unem para prestar o direito à saúde62.Ressaltou-se que o artigo 198 da Carta
Magna, que prevê o funcionamento do sistema de forma regionalizada e hierarquizada, não
representa uma hierarquia entre os entes federados, mas um mesmo comando para cada
um deles.

Além do SUS, também se verifica facilmente o federalismo cooperativo na proteção


do direito à saúde pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Conselho Nacional
de Secretarias Municipais de Saúde e Comissões Inter gestores Tripartites63. Conforme
ressaltado no julgamento da ADI n. 6.341, a competência da União no âmbito do SUS em
nenhum momento restringiu a dos Estados e Municípios, nem poderia, afinal o comando
constitucional é a municipalização desses serviços.

Com a pandemia, a prestação desse serviço mostrou um federalismo ainda despre-


parado e extremamente desorganizado, com ordens de restabelecimento da normalidade
adotadas pelos governadores dos Estados sendo contrariadas por decretos municipais,
que mantiveram as restrições e as medidas de isolamento social, como se pôde verificar
também nos Estados de Mato Grosso e Santa Catarina64.

61
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. p. 147. Disponível em: https://jurispruden-
cia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acordaos&sinonimo=-
true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 13
ago. 2022.
62
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. p. 58. Disponível em: https://jurispruden-
cia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acordaos&sinonimo=-
true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 13
ago. 2022.
63
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. p. 138. Disponível em: https://jurispruden-
cia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acordaos&sinonimo=-
true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 13
ago. 2022.
64
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. p. 58. Disponível em: https://jurispruden-
cia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acordaos&sinonimo=-
true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 13
ago. 2022.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |315

É inevitável esclarecer que uma das causas para essa desorganização federativa
é a forma particular pela qual o governo federal tratou da situação, fator que obrigou os
demais entes da federação a adotarem medidas de enfrentamento da grave crise sanitária.
O federalismo cooperativo, que pressupõe união, cooperação e coordenação entre os entes
da federação, exige, por outro lado, responsabilidade por parte dos gestores65.

No entanto, não se pode negar que o federalismo cooperativo brasileiro está em


crise e a centralização da promoção das políticas públicas pela União acaba tornando os
66

demais entes, Estados e Municípios, muitas vezes, dependentes de repasses federais para
que seja possível a garantia da dignidade da pessoa humana67.

Nesse sentido, o direito à saúde materializa a dignidade da pessoa humana, a qual deixa
de ser uma norma de otimização para ser incorporada tanto infra quanto constitucionalmente68.

Em um país tão desigual quanto o Brasil, é gigantesca a responsabilidade na toma-


da de decisões sobre as medidas que garantam o direito à vida do prefeito de São Paulo,
que possui dez milhões de pessoas se comparado com Municípios com mil habitantes,
como é o caso de Serra da Saudade, em Minas Gerais69.

A administração da pandemia, portanto, gerou uma importante reflexão a respeito


da ordem constitucional e a quem cabe protegê-la quando o caos se instala. Ao Supremo

65
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. p. 135. Disponível em: https://jurispruden-
cia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acordaos&sinonimo=-
true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 13
ago. 2022.
66
Uma das razões apontadas por Luiz Guilherme Arcaro-Conci é justamente o descompasso entre o rol de
competências comuns e a distribuição das receitas no modelo fiscal brasileiro, em que a União é a gran-
de arrecadadora de receitas, o que contribuiu para a existência de conflitos entre os entes federados.
ARCARO-CONCI, Luiz Guilherme. Impacto da pandemia da Covid-19 na federação brasileira: descentra-
lizando a disfuncionalidade. Opin. Jurid., Medellín, v. 19, n. 40, p. 225-242, dec. 2020. DOI: 10.22395/
ojum.v19n40a11. p. 236. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1692-25302020000300225&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 09 set. 2022.
67
FISCHER, Octavio Campos; MACHADO, Luciano Marlon Ribas. Pacto federativo em crise: uma análise na
visão dos municípios da segurança jurídica e da dignidade humana. Revista Jurídica Unicuritiba, Curitiba, v.
04, n. 53, p. 233-254, 2018. p. 249. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/
view/3217/371371734. Acesso em: 14 ago. 2023.
68
SOUZA, Júlio César de; GOMES, Magno Federici. A judicialização na saúde e a fronteira entre o individual e o co�-
letivo: considerações sobre o acesso ao Sistema Único de Saúde Sustentável. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 24, n. 1, p. 216-242, 2019. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v24i11227. p. 231.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1227. Acesso em: 14
ago. 2023.
69
ARAÚJO, Felipe. Cidades mais populosas do Brasil. Infoescola, 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.
infoescola.com/geografia/cidades-mais-populosas-do-brasil/. Acesso em: 15 ago. 2022.
316| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

Tribunal Federal cabe a guarda da Constituição, a quem as normas editadas pelo Poder
Legislativo e Executivo são submetidas e declaradas nulas, caso verificada alguma incons-
titucionalidade, conforme prescreve o artigo 102 da Constituição Federal.

Com efeito, a existência de uma corte constitucional no Brasil serve como uma
garantia louvável contra decretos e atos normativos elaborados pelos chefes do Poder
Executivo70, que se baseiam exclusivamente em critérios políticos, serve como um filtro
importante de que qualquer ato que afronte a Constituição não será tolerado.

Portanto, quando o Supremo Tribunal Federal analisa a decisão tomada por chefes
do Poder Executivo está também cumprindo o seu papel de guardião da Constituição, uma
vez que atos lesivos à saúde e que desrespeitem o mínimo existencial devem ser anulados.

Não se pode falar em ativismo judicial quando o Poder Judiciário acaba sendo a
única garantia de que um poder abusivo ou que é omisso será contido. Quando o Executivo
promove escolhas como as que foram presenciadas, em que se decide quem pode viver e
quem deve morrer71 é na Corte Constitucional que reside a última esperança de um indiví-
duo que aguarda uma vacina ou que aguarda por uma política que lhe garanta a vida. Mais
que isso, a ele cabe a preservação do federalismo cooperativo, no qual os entes cooperam
em prol de algo maior: a tutela dos direitos humanos.

5 CONCLUSÃO
O presente artigo teve o escopo de analisar de que maneira a crise causada pela
pandemia da Covid-19 pode afetar de forma significativa o modelo federativo brasileiro,
a partir das reflexões trazidas no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
6.341, pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se adotou o entendimento de que cabe à
União editar dispor por decreto sobre serviços públicos e atividades essenciais, assim
como aos Estados, Municípios e Distrito Federal, dentro da competência comum atribuída
pela Constituição Federal, sem que se fira a autonomia de cada ente federado.

A pandemia da Covid-19 foi apenas um retrato de uma ferida existente no sistema.


A manutenção de um poder centralizado na União, que disciplina normas de caráter geral
e a atribuição aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal de competências regionais e/

70
BONIZZATO, Luigi. The coronavirus pandemic and legal – theoretical reflections on the practical incidence
concerning the protection of the Constitution based on Hans Kelsen and Carl Schmitt theories: conflicting rela-
tionships between institutions and federative degrees in Brazil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia,
Curitiba, v. 26, n. 3, p. 95-113, 2021. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v26i32176. p. 105-106. Disponível
em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2176. Acesso em: 14 ago. 2023.
71
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1
edições, 2018.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |317

ou locais, aliada ao regime presidencialista de coalizão, tornam o federalismo, que deveria


ser cooperativo, predatório.

As guerras fiscais, disputas por poder e prestígio político aumentam as tensões


entre os entes federados e a intervenção do Poder Judiciário, quando provocado, torna-se
necessária na defesa da Constituição Federal.

Conforme exposto, preserva-se a autonomia dos entes federados sempre que


um ente atue dentro dos limites de sua competência constitucionalmente estabelecida. A
omissão do governo federal, como verificada na pandemia, fez com que os demais entes
legislassem de forma, muitas vezes independente, e por esta razão, verificou-se tempora-
riamente uma atípica descentralização federativa.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Felipe. Cidades mais populosas do Brasil. Infoescola, 21 fev. 2022. Disponível em: https://
www.infoescola.com/geografia/cidades-mais-populosas-do-brasil/. Acesso em: 15 ago. 2022.

ARCARO-CONCI, Luiz Guilherme. Impacto da pandemia da Covid-19 na federação brasileira: des-


centralizando a disfuncionalidade. Opin. Jurid., Medellín, v. 19, n. 40, p. 225-242, dec. 2020. DOI:
10.22395/ojum.v19n40a11. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S1692-25302020000300225&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 09 set. 2022.

BITENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas:
diagnósticos, diretrizes e propostas. Curitiba: Íthala, 2021.

BITENCOURT, Caroline Müller; FRIEDERICH, Denise Bittencourt. A dinâmica do federalismo brasi-


leiro no tema das políticas públicas, controle social e a Covid-19. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, Curitiba, v. 25, n. 3, p. 49-77, 2020. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v25i32058.
Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/2058.
Acesso em: 14 ago. 2023.

BONIZZATO, Luigi. The coronavirus pandemic and legal – theoretical reflections on the practical in-
cidence concerning the protection of the Constitution based on Hans Kelsen and Carl Schmitt theo-
ries: conflicting relationships between institutions and federative degrees in Brazil. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 26, n. 3, p. 95-113, 2021. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.
rdfd.v26i32176. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/2176. Acesso em: 14 ago. 2023.

BRAMATTI, Daniel; MONNERAT, Alessandra; BREMBATTI, Katia. Cloroquina tem Bolsonaro como
maior influenciador do mundo. Estadão, 06 jun. 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.
br/noticias/geral,cloroquina-tem-bolsonaro-como-maior-influenciador-do-mundo,70003738175.
Acesso em: 11 set. 2022.
318| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Plenário. Relator:
Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 6/03/2013. DJe: 16/9/2013. Disponível em: https://portal.stf.
jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1714588. Acesso em: 07 set. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 815. Plenário. Relator:
Ministro Moreira Alves. Julgamento em 28/3/1996. DJ: 10/5/1996. Disponível em: https://portal.stf.
jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1553954. Acesso em: 07 set 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cível Originária n. 3.121. Relatora Ministra Rosa Weber.
Julgamento em 13/10/2020. DJe: 27/10/2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/de-
talhe.asp?incidente=5437155. Acesso em: 07 set. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 672


Medida Cautelar. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relator Ministro Alexandre de Moraes. Julgamento:
13/10/2020. Publicação: 29/10/2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.as-
p?incidente=5885755. Acesso em: 07 set. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341. Tribunal Pleno.
Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 15.04.2020. DJe: 13.11.2020. Disponível em: https://
jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206341%22&base=acor-
daos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvan-
ced=true. Acesso em: 13 ago. 2022.

BRÍGIDO, Carolina. Bolsonaro, Witzel ou Crivella: quem pode mandar reabrir o comércio durante a
pandemia de Coronavírus. O Globo, 25 mar. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/analitico/
bolsonaro-witzel-ou-crivella-quem-pode-mandar-reabrir-comercio-durante-pandemia-de-coronavi-
rus-24327828. Acesso em: 06 ago. 2022.

CAMPOS, Nelma Lima Silva; SIMÕES, Sandro Alex de S. Federalismo cooperativo e política nacional
de educação: mito ou realidade? In: DIAS, Jean Carlos; BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de;
ARAÚJO, José Henrique Mouta (org.). Direito e desenvolvimento da Amazônia. 1. ed. Santa Catarina:
Qualis, 2021. v. 3. p. 335-397.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito ao ambiente como direito subjetivo. In: CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed., rev., atual. e
ampl. São Paulo: Atlas, 2014.

ELAZAR, Daniel J. Exploring federalism. Alabama: The University of Alabama Press, 1987.

FISCHER, Octavio Campos; MACHADO, Luciano Marlon Ribas. Pacto federativo em crise: uma análise
na visão dos municípios da segurança jurídica e da dignidade humana. Revista Jurídica UniCuritiba,
Curitiba, v. 04, n. 53, p. 233-254, 2018. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/
RevJur/article/view/3217/371371734. Acesso em: 14 ago. 2023.

FLORES, Joaquín Herrera. A (re) invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2009.
A autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19... |319

FRANCO FILHO, Alberto de M. A radiografia do Estado Brasileiro a partir do artigo 1º da Constituição


Federal. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 4, n. 4, p. 1-25, 2008. Disponível
em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/44. Acesso em: 14 ago.
2023.

FRANZESE, Cibele. Federalismo cooperativo no Brasil: da Constituição de 1988 aos sistemas de po-
líticas públicas. 2010. 210f. Tese (Doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo,
Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2010. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/han-
dle/10438/8219. Acesso em: 14 ago. 2023.

KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Tradução de Alexandre Krug. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.

MALISKA, Marcos Augusto. Fundamentos da Constituição: abertura, cooperação e integração.


Curitiba: Juruá, 2013.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São
Paulo: n-1 edições, 2018.

NAKAMURA, Luis Antonio Corona. Los Derechos Humanos, sus principios e interpretación. Revista
Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 23, n. 1, p. 259-274, 2018. DOI: 10.25192/
issn.1982-0496.rdfd.v23i11281. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.
php/rdfd/article/view/1281. Acesso em: 14 ago. 2023.

NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes do Estado de Direito. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2019.

PAIXÃO, Vívian Nigri Q. D.; CORREIO, Fernanda Lopez. M. da S. Fontes de financiamento das políti-
cas públicas: repartição das receitas tributárias e a evolução dos Municípios. Caderno de Direito e
Políticas Públicas, v. 1, n. 2, p. 139-163, jun./dez. 2019. Disponível em: http://seer.unirio.br/cdpp/
article/view/9341. Acesso em: 05 ago. 2022.

PEREIRA, Larissa Alcântara. Âmbitos de atuação estatal em prol da efetivação dos direitos huma-
nos e fundamentais: Estado Constitucional Cooperativo e federalismo cooperativo. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 5, n. 5, p. 1-8, 2009. Disponível em: https://revistaeletroni-
cardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/224. Acesso em: 14 ago. 2023.

PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1988.

SANTOS, Cássia Camila Cirino dos; FONTANA, Stanlei Ernesto Prause. Dignidade da pessoa humana,
abertura do catálogo dos direitos fundamentais e integridade: um novo desafio? Anais da VII Jornada
de Direitos Fundamentais, Fortaleza: Unifor, v. 1, 2020. Disponível em: https://www.unifor.br/docu-
ments/392178/3101527/Cassia+Camila+Cirino+dos+Santos+Fontana+e+Stanlei+Ernesto.pdf/
958f6844-ffe1-5f64-1f78-8d02e9d087f7. Acesso em: 14 ago. 2023.

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. O direito fundamental à proteção e promo-
ção da saúde na ordem jurídico-constitucional: uma visão geral sobre o sistema (público e privado
de saúde no Brasil). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 2, n. 4, p. 3183-3255, 2013.
Disponível em: https://meriva.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11334/2/O_direito_fundamental_a_
320| Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana - Stanlei Ernesto Prause Fontana -
Marcelo Fonseca Gurniski

protecao_e_promocao_da_saude_na_ordem_juridico_constitucional_uma_visao_geral_sobre_o_
sistema.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-
mentais na perspectiva constitucional. 10 ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009.

SARLET, Ingo Wolfgang; BARBOSA, Jeferson Ferreira. Desafios da Covid-19 à seguridade social bra-
sileira. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 27, n. 2, p. 128-157, 2022. DOI:
10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i2426. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.
br/index.php/rdfd/article/view/2426. Acesso em: 14 ago. 2023.

SCHIER, Paulo Ricardo. Presidencialismo de coalizão: contexto, formação e elementos na democra-


cia brasileira. Curitiba: Juruá, 2017.

SOUZA, Júlio César de; GOMES, Magno Federici. A judicialização na saúde e a fronteira entre o indi-
vidual e o coletivo: considerações sobre o acesso ao Sistema Único de Saúde Sustentável. Revista
Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 24, n. 1, p. 216-242, 2019. DOI: 10.25192/
issn.1982-0496.rdfd.v24i11227. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.
php/rdfd/article/view/1227. Acesso em: 14 ago. 2023.

TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

TOOZE, Adam. Como a Covid abalou a economia. São Paulo: Todavia, 2021.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 14. ed. atual. até 31.12.2006, que
inclui a Emenda Constitucional n. 53, de 19/12/2006. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS. 50ª sessão: pandemia e autoritarismo. A responsabilida-


de do governo Bolsonaro pelas violações sistemáticas dos direitos fundamentais dos povos bra-
sileiros perpetradas através das políticas impostas na pandemia de Covid-19. São Paulo, 24 e 25
maio 2022. Disponível em: http://permanentpeoplestribunal.org/wp-content/uploads/2022/05/TPP_
BOLSONARO_PROGR_PORT.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023.

VIEIRA, Fabiola S.; SERVO, Luciana M. S. Covid-19 e coordenação federativa no Brasil: consequên-
cias da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n.
especial 4, p. 100-113, dez. 2020. DOI: 10.1590/0103-11042020E406. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/sdeb/a/44SVpkjDHB6QcR5x4NtTNwf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 ago. 2023.
A DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTO
DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL A
PARTIR DA TEORIA DE AMARTYA SEN1

Maxwell Lima Dias2

Sumário: 1. Introdução. 2. A falácia do desenvolvimento como crescimento econômico.


3. Desenvolvimento como liberdade e responsabilidade do Estado em promover as expansão
das liberdades instrumentais. 4. A democracia como condição para o desenvolvimento.
5. Conclusão. Referências.

Resumo:
O desenvolvimento nacional constitui um dos objetivos fundamentais da Constituição
Federal de 1988, da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, são diversas as te-
orias existentes, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, para definir o conceito
de desenvolvimento. Partindo da teoria seniana de “desenvolvimento como liberdade”, o
presente trabalho tem por finalidade o estudo do princípio democrático como fundamento
para a expansão do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, demonstraremos, através
da obra de Amartya Sen, que o desenvolvimento, enquanto um processo de expansão de
capacidades do indivíduo de levar a vida que valoriza, ou tem razão para valorizar, é de
responsabilidade do Estado, mediante implementação de políticas públicas que viabilizem
tais condições a cada indivíduo. Assim, traremos formulações expressas por Amartya Sen
acerca da necessidade de a política desenvolvimentista nacional levar com consideração
não apenas aspectos econômico-financeiros, mas sobretudo aspectos sociais, culturais e
políticos. E, então, com base nesse argumento, buscaremos demonstrar que a teoria senia-
na não defende um Estado mínimo, ou uma responsabilidade subsidiária por parte deste.
Por fim, ao analisarmos a importância da democracia para o processo de desenvolvimento,
verificaremos que a promoção do desenvolvimento nacional, em um Estado Democrático

1
Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na Disciplina ‘Políticas Públicas e Desenvolvimento
Nacional Sustentável, do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, Centro Universitário
Autônomo do Brasil – UniBrasil, Professora Dra. Adriana da Costa Ricardo Schier.
2
Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
Especialista em Direito Tributário Empresarial e Processo Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR). Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1528711136619490. E-mail: maxwelldias_8@hotmail.com
322| Maxwell Lima Dias

de Direito, pressupõe a condição de agente dos indivíduos, de modo a justificar um dever


de solidariedade perante uns aos outros.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Teoria seniana. Expansão de liberdades. Políticas pú-


blicas. Democracia.

1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, determina em seu art. 3º, que
constitui objetivo da República Federativa do Brasil, dentre outros, a garantia ao desen-
volvimento nacional. Acontece que o conceito de desenvolvimento guarda significados
diversos e controvertidos, carregando uma heterogeneidade semântica consentâneo com
a localização que ocupa na formação histórica. Assim, diversas são as teorias existentes,
não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, para definir o conceito e a natureza jurídica
do desenvolvimento.

Nesse sentido, o presente trabalho parte da teoria seniana de “desenvolvimento


como liberdade”, de modo que uma determinada nação é tão mais desenvolvida, à medida
que proporciona aos seus cidadãos uma maior liberdade para levarem a vida que valorizam,
ou que têm razão para valorizar.

Antes de entrarmos no estudo da teoria seniana, buscaremos analisar de forma


breve, a evolução do tema no plano internacional e nacional, sobretudo a analisaremos a
superação da teoria do crescimento econômico. Trata-se de uma visão demasiadamente
restrita do desenvolvimento, limitando-o a fatores puramente econômicos, excluindo do
seu fundamento, os aspectos culturais e sociais. Estes, na verdade, seriam questões a
serem resolvidas em um momento posterior ao crescimento econômico nacional.

Diante, então, da insuficiência da teoria do crescimento econômico para fundamen-


tar o desenvolvimento de países periféricos, é importante analisarmos a teoria seniana,
segundo a qual, determina que a capacidade de um indivíduo de levar a vida conforme
deseja, depende da atuação estatal na garantia e promoção de condições propícias para
tanto, mediante ampliação das liberdades substantivas dos indivíduos.

Ademais, parte-se, aqui, da premissa de que, em um Estado Democrático de


Direito, pautado em valores de terceira dimensão, como o direito ao desenvolvimento na-
cional e deveres de solidariedade e fraternidade, os indivíduos deixam de ser considera-
dos sujeitos-pacientes, e passam a ser considerados sujeitos-agentes, de tal sorte que,
gozando de oportunidades sociais adequadas, passam a ter condições de efetivamente
moldarem o seu próprio destino e ajudarem uns aos outros.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |323

Em virtude disso, buscamos justificar a Democracia como fundamento para o for-


talecimento das liberdades substantivas de um povo, sem as quais, é impossível a garantia
da capacidade daquele povo de alcançar o desenvolvimento nacional.

No desenvolvimento deste estudo foram utilizados diversos instrumentos de pes-


quisa e metodologias, sobretudo o raciocínio lógico-dedutivo, baseando-se na construção
doutrinária, em estudos acerca do tema e no direito comparado, buscou-se atingir os ob-
jetivos gerais e específicos em relação à fundamentação da democracia, como meio de
promoção do desenvolvimento, através do maior acesso de cada indivíduo às deliberações
públicas e de uma maior articulação política do povo.

Divide-se o desenvolvimento do presente estudo em 3 capítulos: no segundo capí-


tulo trataremos brevemente das diferentes teorias acerca do Desenvolvimento, sobretudo
refutando a teoria do crescimento econômico. No terceiro capítulo, abordaremos a pers-
pectiva seniana de desenvolvimento como expansão de liberdades, demonstrando a res-
ponsabilidade do Estado em promover a capacidade dos indivíduos de levarem a vida que
valorizam. No quarto capítulo, demonstraremos a relação entre o desenvolvimento nacional
e a democracia, onde analisaremos o dever de solidariedade entre os indivíduos para uns
com os outros. Por fim, no quinto capítulo traremos as nossas considerações finais.

2 A FALÁCIA DO DESENVOLVIMENTO COMO CRESCIMENTO


ECONÔMICO
O desenvolvimento consiste em um fenômeno com dimensão histórica: cada na-
ção enfrenta problemas que lhe são específicos3, pertinentes às suas peculiaridades his-
tóricas, culturais, econômicas, sociais, políticas.

Especialmente a partir do período do segundo pós-Guerra, a temática do desenvol-


vimento nacional tem sido bastante difundida em todo o mundo. Assim, na segunda metade
do século XX, elaborada no contexto do pós-guerra e impulsionada pelos processos de
descolonização e de emancipação do Terceiro Mundo, bem como pela emergência do sis-
tema das Nações Unidas, surgia a moderna teoria do desenvolvimento4, como uma das
idées-force com vistas à reconstrução econômica e social de países afetados.

Nesse sentido, conforme brilhante lição de Jacobus A. Du Pisani, professor de


História da North-West University, em Potchefstroom, África do Sul, o desenvolvimento
sustentável teria nascido a partir do ideário de progresso – a partir do filósofo iluminista

3
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro. Coimbra:
Coimbra, 2004. p. 14.
4
SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 47.
324| Maxwell Lima Dias

Kant e do filósofo positivista Comte – como um processo evolutivo da sociedade tradicional


para aquela moderna de industrialização e consumo em massa5:

As the Industrial Revolution was unfolding on the world stage from the 18th cen-
tury, irrevocably transforming human societies, human progress was also linked
to economic growth and material advancement. Donald Worster (1993: 178, 179,
180) describes how industrialization caused ‘the greatest revolution in outlook that
has ever taken place’ by leading people to think that it is right for them to dominate
the natural order and radically transform it into consumer goods, that it is neces-
sary and acceptable to ravage the landscape in the pursuit of maximum economic
production, and that only things produced by industry and placed on the market for
sale have value.
The idea of a ‘law of progress’ and its potential benefits took shape in the 19th
century in Auguste Comte’s writings on positive philosophy (Comte 1893). Comte,
Hegel, Marx, Spencer, and others described the inexorable, irreversible, stage by
stage and unstoppable advance of humankind through successive stages toward a
golden age on Earth. There was optimism that scientific and technological progress
could lead to the moral perfection of humankind. Immanuel Kant, who believed
in progress through increased enlightenment, saw as the driving purpose of the
advancement of humankind the attainment of ever more perfect conditions for the
exercise of individual freedom6.

Vê-se, pois, que a ideia de desenvolvimento surge na década de 40, com um conte-
údo eminentemente econômico, sendo que, até meados da década de 80, ainda era comum
identificar o desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico7. Conforme mi-
nucioso estudo desenvolvido pela Adriana Schier, em que cita Jorge Montenegro Gómez8,
a primeira referência ao desenvolvimento como crescimento econômico teria sido realizada
em 1949, em discurso proferido pelo, então presidente dos Estados Unidos da América,
Harry Truman.

5
ROSTOW, Walt W. Etapas do desenvolvimento econômico (um manifesto não comunista). 5. ed. aumentada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1974.
6
DU PISANI, Jacobus A. Sustainable development: historical roots of the concept. Environmental Sciences, v. 3,
n. 2, p. 83-96, jun. 2006. Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/15693430600688831.
Acesso em: 15 ago. 2021.
7
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 14.
8
GÓMEZ, Jorge Montenegro. O “desenvolvimento” como mecanismo de controle social: desdobramentos es�-
calares. Revista Pegada Eletrônica, São Paulo, v. 6, n. 1, jun. 2005. Disponível em: https://revista.fct.unesp.
br/index.php/pegada/article/view/1296. Acesso em: 14 ago. 2023 apud SCHIER, Adriana da Costa Ricardo.
Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento. Curitiba: Íthala, 2019. p. 14.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |325

Cumpre ressaltarmos que neste período, o mundo encontrava-se sob forte influên-
cia do pensamento Keynesiano, para quem não seria possível acreditar que os automatis-
mos de mercado pudessem conduzir a uma solução necessariamente favorável do ponto
de vista social, de modo a fundamentar a expansão da atuação do Estado na economia
como meio de evitar o colapso das economias capitalistas. Pela teoria da demanda agrega-
da, procurou Keynes demonstrar que, nos casos em que a teoria da economia de mercado
se mostrava insuficiente para explicar o fenômeno de recessão, o papel do Estado seria
essencial para, através do aumento dos gastos públicos, e consequentemente, do aumen-
to da demanda agregada, incentivar a produção. Assim, “a expansão da renda derivada
da ação governamental iria dar maior poder aquisitivo à população que demandaria mais
produtos, o que geraria mais emprego e renda e novamente maior demanda e consequen-
temente mais produção”9.

Nesse sentido, considerando a mudança nos pressupostos da teoria econômica,


“vários autores vão se preocupar com as questões ligadas ao crescimento e ao desenvol-
vimento econômicos”10, como por exemplo François Perroux, o qual desenvolveu a teoria
dos polos de desenvolvimento. De acordo com esta teoria, o crescimento não surge em toda
parte ao mesmo tempo, manifesta-se com intensidades variáveis, em polos de crescimento,
caracterizados por conglomerados industriais, propagando-se com efeitos finais (também)
variáveis no conjunto da economia11. Ainda, para Perroux, “l’économie est l’aménagement,
en vue de l’avantage de chacun et de tous, des rapports humains par l’emploi de biens rares
socialement et approximativement quantifiables et comptabilisables”12.

A partir dessa visão restrita de desenvolvimento como crescimento econômico


e acumulação de capital, acreditava-se que o equilíbrio econômico estaria vinculado ao
desenvolvimento social e à democracia política, em uma relação de causa e consequência,
de modo que o incremento social e a democracia somente seria possível, através do cres-
cimento econômico13.

9
MÜLLER, Antônio. Manual de economia básica. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p. 44.
10
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro. Coimbra:
Coimbra, 2004. p. 4.
11
PERROUX, François. L’Economie du XXe Siecle. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1991. p. 177-
189 apud BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro.
Coimbra: Coimbra, 2004. p. 5.
12
PERROUX, François. Pour une philosophie du nouveau développement. Paris: Éd. Aubier-Montaigne, Presses
de l’UNESCO, 1981. p. 36.
13
TRUBEK, David M. O “império do direito’: na ajuda ao desenvolvimento passado, presente e futuro. In:
RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). O novo direito ao desenvolvimento: presente, passado e futuro – textos
selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 187.
326| Maxwell Lima Dias

Por outro lado, aqueles países que não foram capazes de acompanhar o cres-
cimento econômico alcançado pelos países tido como desenvolvidos, em virtude, por
exemplo, da ausência de interdependência e/ou encadeamento das atividades produtivas,
passaram a ser categorizados como países subdesenvolvidos. Criou-se, então, a teoria
do subdesenvolvimento14.

O objetivo por trás da teoria do subdesenvolvimento era fazer com que os países
subdesenvolvidos, reconhecidos por sua capacidade reduzida de acumulação de capital,
alcançassem o nível do sistema econômico dos países considerados desenvolvidos15.

Estabeleceu-se, assim, a premissa, de que o processo de desenvolvimento eco-


nômico que vinha sendo aplicado pelos países que lideraram a revolução industrial, seria
universal, e por isso, como se decorresse de uma fórmula única, pudesse ser repetido
nos países subdesenvolvidos, pretendendo-se que o standard de produtos de consumo da
minoria da humanidade - que vivem nos países altamente industrializados – fosse acessível
às grandes massas populacionais dos países do Terceiro Mundo16.

Trata-se de uma aplicação de modelos desenvolvimentistas traçados para os paí-


ses desenvolvidos (teorias neoclássicas ou keynesianas) em realidades socioeconômicas
completamente distintas, que são aquelas dos países subdesenvolvidos17.

Acontece que, conforme demonstrado por Bercovici, tal premissa estaria equivo-
cada, uma vez que baseia-se na (também equivocada) ideia de que o subdesenvolvimento
seria uma etapa pela qual todos os países, necessariamente, passariam no percurso até o
desenvolvimento, nos moldes da industrialização europeia18.

Para Celso Furtado, o subdesenvolvimento consiste em um processo histórico au-


tônomo, e não uma fase pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que
já alcançaram grau superior de desenvolvimento19. Ou seja, a economia subdesenvolvida
não deve ser considerada de forma isoladamente. A passagem do subdesenvolvimento
para o desenvolvimento somente poderia ocorrer em processo de ruptura com o sistema,

14
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro. Coimbra:
Coimbra, 2004. p. 7.
15
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 14.
16
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
17
HIRSCHMAN, Albert O. La estrategia del desarrollo económico. México: Fondo de Cultura Económica, 1973.
p. 39-43.
18
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro. Coimbra:
Coimbra, 2004. p. 14.
19
FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
p. 197.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |327

já que, em suas raízes, o subdesenvolvimento é um fenômeno de dominação histórica,


cultural e política20.

Nesse sentido, importante relembrarmos, da teoria elaborada pela Cepal (Comissão


Econômica para a América Latina), acerca do subdesenvolvimento, a qual fundamentou a
política desenvolvimentista brasileira durante o período compreendido entre os anos de
1949 e 1964: a concepção do Estado como promotor do desenvolvimento, coordenado por
meio do planejamento e pautado em interpretação autêntica da realidade latino-ameri-
cana, visando o incremento industrial e a reforma social21.

Em análise crítica ao projeto de desenvolvimento adotado no País, conforme bem


preconiza Adriana Schier, valendo-se da lição deixada por Celso Furtado, o Brasil somente
ultrapassaria a condição de subdesenvolvido com a alteração profunda das estruturas so-
ciais. Daí porque defendia a atuação do Estado mediante políticas que garantissem tanto o
desenvolvimento econômico quanto o desenvolvimento social, aspectos interdependentes,
segundo Furtado22.

Assim, valendo-se das ideias elaboradas desde a década de 70, sobretudo a partir
das críticas de Celso Furtado, e objetivando dar coro à voz internacional que roga pela
quebra do paradigma de desenvolvimento como crescimento econômico, Bercovici, já na
virada do milênio, sustenta que “o grande desafio da superação do subdesenvolvimento é
a transformação das estruturas socioeconômicas e institucionais para satisfazer as neces-
sidades da sociedade nacional.

Para a efetivação desse processo desenvolvimentista, Osvaldo Sunkel e Pedro Paz,


preconizam que é fundamental a participação social, política e cultural dos grupos tradicio-
nalmente excluídos, os quais devem tornar-se “agentes” do processo de desenvolvimento:

[…] para ser eficaces y permanentes los reordenamientos de esta naturaleza, sólo
pueden basar-se en la participación social, política y cultural activa de nuevos grupos
sociales antes excluidos o marginados, y esa participación debe hacerse presente
tanto en la formulación de los objetivos de la sociedad como en la tarea de alcanzar-

20
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro. Coimbra:
Coimbra, 2004. p. 14.
21
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro. Coimbra:
Coimbra, 2004. p. 7-9.
22
FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
p. 204 apud SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e
desenvolvimento. Curitiba: Íthala, 2019. p. 34.
328| Maxwell Lima Dias

-los. Se trata, en último término, de procesos en los cuales nuevos grupos sociales,
que fueron “objeto” del desarrollo, pasan a ser “sujeto” de ese proceso23.

Assim, como veremos adiante, em capítulo próprio, a Democracia é um fator es-


sencial para a promoção do desenvolvimento.

Para Juarez Freitas, o desenvolvimento, vinculado à ideia de sustentabilidade, pos-


sui uma natureza multidimensional, e deve considerar sistematicamente todos os aspectos
que constituem a complexidade humana (fatores sociais, econômicos, ambientais, éticos e
jurídico-políticos), no intuito de assegurar as condições favoráveis para o bem-estar. Nesse
sentido, preconiza que é responsabilidade do Estado e da sociedade a concretização soli-
dária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime,
ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente
de modo preventivo e precavido, o direito ao bem-estar das gerações presentes e futuras24.

No Brasil, a ideia multidimensional de desenvolvimento é apenas incorporada ao


ordenamento jurídico com a promulgação da Constituição de 1988, em que adota uma
perspectiva extensiva, especialmente no campo socioambiental, afastando-se, assim, da
tradição economicista até então consolidada25.

O Texto Maior firma o compromisso do Estado brasileiro de atingir patamares de


desenvolvimento, em todas as suas variáveis, noção que deve abranger, a um só tempo, a
perspectiva de desenvolvimento humano, social e econômico. Conforme dispõe o art. 3º
da Constituição, consiste em um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil a promoção do desenvolvimento nacional26.

Para Emerson Gabardo e Augusto César Leite de Resende, o desenvolvimento


como valor positivado em nossa Constituição, deve ser entendido um processo, que “deve
realizar a dignidade da pessoa humana, mediante a promoção da melhoria da qualidade de
vida e do bem-estar da população em ritmo contínuo e automático”27. Para Juarez Freitas,

23
SUNKEL, Osvaldo; PAZ, Pedro. El subdesarrollo latinoamericano y la teoria del desarrollo. 22. ed. México: Siglo
Veintiuno, 1988. p. 37-38.
24
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 147.
25
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 35.
26
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 36.
27
GABARDO, Emerson; RESENDE, Augusto César Leite de. A atividade administrativa de fomento na gestão
integrada de resíduos sólidos em perspectiva com o desenvolvimento sustentável. A&C Revista de Direito
Administrativo & Constitucional, Belo horizonte, ano 13, n. 53, p. 105-131, jul./set. 2013. Disponível em:
https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/125. Acesso em: 14 ago. 2023.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |329

tratar-se-ia de um princípio constitucional vinculado à sustentabilidade28. Eros Roberto


Grau reconhece também o desenvolvimento nacional como princípio constitucional da or-
dem econômica, cujo objetivo é a conformação de um Estado de bem-estar social29.

Para Adriana Schier, valendo-se da cláusula da tipicidade aberta30, o desenvolvi-


mento corresponde a um direito materialmente fundamental fora do catálogo, em face de
sua vinculação à dignidade da pessoa humana e sua relação de fundamentalidade com os
demais princípios fundamentais31.

Para fins do presente trabalho, partindo da perspectiva seniana, consideraremos o


desenvolvimento como um processo de expansão de condições sociais, políticas e econô-
micas de um povo ou de uma nação, conforme trataremos adiante.

3 DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE E RESPONSABI-


LIDADE DO ESTADO EM PROMOVER AS EXPANSÃO DAS
LIBERDADES INSTRUMENTAIS
O economista e filósofo indiano, Amartya Kumar Sen, vencedor do Prêmio Nobel
de Economia em 1998 por sua contribuição às teorias da escolha social e do bem-estar
social, foi um dos idealizadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como critério
de avaliação do grau de desenvolvimento das Nações32.

Em uma de suas principais obras, Desenvolvimento como Liberdade33, afirma o


autor, já na introdução, que o objetivo da obra é buscar demonstrar que o desenvolvimento
consiste em “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”34.

28
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 116.
29
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
p. 256-257.
30
SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo.
A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, n. 20, p. 145-165, abr./jun. 2005.
Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/458. Acesso em: 14 ago. 2023.
31
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 41.
32
Até o surgimento do IDH, na década de 90, o desenvolvimento de uma nação era medido através do Produto
Interno Bruto - PIB per capita, indicador que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento.
ONU. Índice de Desenvolvimento Humano: O que é o IDH? [S.d.]. Disponível em: https://www.br.undp.org/
content/brazil/pt/home/idh0/conceitos/o-que-e-o-idh.html. Acesso em: 22 ago. 2021.
33
Obra é utilizada como marco teórico do presente trabalho, em virtude do seu brilhantismo em relacionar os
ideais de Desenvolvimento, Liberdade, Justiça Social e Democracia.
34
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 16.
330| Maxwell Lima Dias

Conforme instrui o autor, o crescimento do PIB, o aumento de rendas pessoais,


a industrialização e a modernização tecnológica e social, são, com certeza, importantes
meios de expansão das liberdades desfrutadas pelos membros da sociedade. No entanto, a
expansão das liberdades depende também de outros fatores, tão relevantes quanto aque-
les, tais como as disposições sociais e culturais, bem como a participação política35.

Nesse sentido, sustenta Amartya Sen, que, em muitos casos, a pobreza econômi-
ca que assola grande parte dos indivíduos de uma nação está relacionada, diretamente,
à ausência de liberdades substantivas, como a liberdade de saciar a fome, o acesso a
água potável, acesso a tratamentos de saúde, saneamento básico, oportunidades sociais
e políticas, acesso ao Mercado, bem como à carência de serviços e políticas públicas,
assistência social36.

Distingue o autor37 entre duas visões distintas a respeito do processo de desen-


volvimento:
(a) uma visão considera o desenvolvimento como um processo ‘feroz’, a ser con-
quistado com muito ‘sangue, suor e lágrimas’, e que requer que sejam, negligen-
ciadas várias preocupações vistas como ‘frouxas’, como a existência de redes
de segurança social para proteger os mais pobres, o fornecimento de serviços
sociais para a população, a garantia aos direitos políticos e civis e, até, o ‘luxo’ da
democracia. Tais preocupações, a partir dessa atitude agressiva, poderiam vir a ser
solucionadas posteriormente, quando o processo de desenvolvimento já houver
produzido frutos suficientes; e
(b) a segunda visão, considera o desenvolvimento como um processo “amigável”,
cuja aprazibilidade se baseia em trocas mutuamente benéficas, pela atuação de redes
de segurança social, liberdades políticas, oportunidades sociais, de tal sorte que, a
expansão destas liberdades, por si só, acarretariam em um crescimento econômico38.
Cumpre ressaltar, assim, que a teoria desenvolvida por Amartya Sen, do qual utili-
zamos de referência no presente trabalho, parte da visão “amigável” de desenvolvimento,
de modo que o desenvolvimento é resultado de uma comunhão dos fatores econômicos,

35
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 16-17.
36
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 17.
37
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 56.
38
Tal distinção trazida por Amartya Sen relaciona-se com aquele dualismo demonstrado na obra de Juarez
Freitas, o qual também considera duas visões opostas do desenvolvimento: uma visão insaciável e uma vi-
são sustentável, ambas associadas, respectivamente, às perspectivas “feroz” e “amigável”, trazidas por Sen
(FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 138).
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |331

sociais, culturais e políticos de uma Nação (liberdades substanciais), fatores estes que,
quando positivos, geram uma expansão da liberdade dos indivíduos.

A privação da liberdade, por outro lado, é decorrente de fatores negativos, como


pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática,
negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados re-
pressivos, os quais impedem o desenvolvimento nacional.

Ressalta-se que a relação entre desenvolvimento e a expansão de liberdades não


se dá, exclusivamente, de forma reflexa, a partir da contribuição indireta dessas liberdades
para o crescimento econômico. A promoção de liberdades, por si só, é fator direto da
expansão do desenvolvimento39.

Vê-se, assim, a partir do ideal seniano de desenvolvimento como um processo


de expansão de liberdades dos indivíduos, uma ruptura ideológica com a teoria restrita do
desenvolvimento como crescimento econômico, de modo que passam a ser considera-
dos novos elementos constitutivos do desenvolvimento, como por exemplo a liberdade de
participação política, acesso a saúde, oportunidades sociais. Um país rico, cujo PIB seja
reconhecidamente elevado, somente será desenvolvido, se os indivíduos que ali residem
gozem de liberdades substanciais suficientes para que possa levar uma vida que deseje.
Segundo o autor, “mesmo uma pessoa muito rica que seja impedida de se expressar livre-
mente ou de participar de debates e decisões públicas está sendo privada de algo que ela
tem motivos para valorizar”40.

Oportuno mencionarmos, aqui, uma interessante história hindu narrada no texto em


sânscrito, no séc. VIII a.C., Brihadaranyaka Upanishad e trazida por Amartya Sen:

[...] uma mulher chamada Maitreyee e seu marido, Yajnavalkya, logo passam para
uma questão maior do que os caminhos e modos de se tornarem mais ricos: Em
que medida a riqueza os ajudaria a obter o que eles desejavam? Maitreyee quer
saber se, caso ‘o mundo inteiro, repleto de riquezas’, pertencesse só a ela, isso
lhe daria a imortalidade. ‘Não’, responde Yajnavalkya, ‘a sua vida seria como a vida
das pessoas ricas. Não há, no entanto, esperança de imortalidade pela riqueza’.
Maitreyee comenta: ‘De que me serve isso, se não me torna imortal’41.

39
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 57.
40
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 56.
41
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 27.
332| Maxwell Lima Dias

A partir, então, dessa nova perspectiva, tanto mais será desenvolvida uma Nação,
ou todo o planeta, quanto mais os indivíduos gozarem de liberdade para agir no mundo,
conforme valorize. Um povo privado de liberdades é um povo não desenvolvido42. A pri-
vação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a
privação de liberdade social ou política pode, igualmente, gerar a privação de liberdade
econômica43. O grau de desenvolvimento de uma sociedade deve ser avaliado, conforme
as liberdades substantivas que os membros dessa sociedade desfrutam44.

Trata-se de teoria altamente complexa45, onde a conexão entre desenvolvimento e


Liberdade tratada por Amartya não é linear: Não consiste em uma mera relação de causa-
lidade, onde a existência de um é consequência do outro. A expansão da liberdade é, a um
só tempo, o fim primordial e o principal meio do desenvolvimento46, à medida em que
pessoas livres, e que gozam de um maior número de direitos (protegidos pelo Estado), são
“meios”47 necessários para o desenvolvimento48.

Assim, alargando de forma radical a noção tradicional da expressão ‘liberdade’, o


autor inverte o sentido do desenvolvimento, que passa a ser visto como uma consequência

42
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessi�-
dade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p.
63-91, jan./jun. 2014. p. 81.
43
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 23.
44
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 56.
45
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessi�-
dade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p.
63-91, jan./jun. 2014. p. 72.
46
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 55.
47
Importante destacar que a palavra “meio” utilizada para se referir a pessoas livres e titulares de direitos, tem
por objetivo apenas demonstrar que tais qualidades pessoais (livres e titulares de direitos) são condições
essenciais para a expansão do desenvolvimento. Nesse sentido, reforçamos a ideia de Kant, para quem a dig-
nidade consiste em valor intrínseco à existência humana, de modo que “o homem – e, de uma maneira geral,
todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o
são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim” (KANT, Immanuel.
Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo:
Martin Claret, 2004. p. 52). Ora, o ideal seniano, de desenvolvimento como liberdade, preconiza, justamente,
que um povo livre é um povo desenvolvido, e que o desenvolvimento tem por finalidade a realização material
da liberdade dos indivíduos.
48
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessi�-
dade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p.
63-91, jan./jun. 2014. p. 82.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |333

da Liberdade, ao mesmo tempo que reconhece as “liberdades” (no plural) como meios
para o desenvolvimento49. É a partir desse raciocínio, que são elencados cinco espécies
de liberdades (liberdades-meio) – componentes de um gênero “Liberdade” (liberdade-fim)
– chamadas de liberdades instrumentais50: as liberdades políticas (direitos civis, como
liberdade de participação no debate público), as facilidades econômicas (acesso ao mer-
cado, preços acessíveis, políticas econômicas distributivas de capital), as oportunidades
sociais (acesso à saúde, educação etc.) as garantias de transparência (segurança de que
as interações sociais são transparentes, claras e sinceras) e a segurança protetora (rede
de segurança social que impede a miséria)51.

Daí se percebe que o autor, ao ampliar a configuração semântica da expressão liber-


dade, para aí incluir novas espécies de liberdades-meios, foge do tradicionalismo liberal (ou
liberalismo tradicional), não se restringindo as liberdades instrumentais, ao status negativo
das liberdades individuais – como direitos de defesa ou de não intervenção estatal52.

Sob a perspectiva de ampliação do âmbito de proteção das liberdades, entende


Amartya Sen, que, se ao Estado competisse assegurar apenas a liberdade, em seu sentido
mais restrito (como direitos negativos ou de defesa), não seria possível alcançar de forma
efetiva o desenvolvimento, em razão da continuidade das desigualdades sociais53. Isso
porque é inegável, que a liberdade individual, pura e simples não vinculada à busca da efeti-

49
GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista
Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. p. 105. Disponível em: https://www.revistas.usp.
br/rdda/article/view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023.
50
Importante salientar as variações semânticas decorrentes da expressão Liberdade, decorrente, inevitavelmen�-
te, da tradução para o português, da obra Desenvolvimento como Liberdade. Em sua obra original, cujo idioma
é o inglês, o autor engloba as chamadas liberdades substantivas (freedoms), que são as capacidades básicas
do indivíduo, como as condições para se evitar carências como a fome, a subnutrição e a morte prematura,
e as liberdades relacionadas com as aptidões como ler, expressar-se, fazer cálculos e participar da política.
Portanto, o termo liberdade em sua obra adquire conotação extremamente ampla, não se limitando (embora
incluindo) às liberdades formais (liberties), comumente relacionadas aos direitos dos indivíduos de não so-
frerem intervenções restritivas ao exercício dos seus direitos e faculdades legais (HACHEM, Daniel Wunder. A
noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos sobre algumas tendências
do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano
13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 158. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/
article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023).
51
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 25-26.
52
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 164.
53
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 158. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
334| Maxwell Lima Dias

vidade dos mencionados direitos econômicos e sociais, poderá levar a uma sociedade for-
temente inigualitária, mediante a concessão de direitos apenas do ponto de vista formal54.

Assim, a perspectiva seniana de desenvolvimento como liberdade, somente se jus-


tifica, quando estendemos radicalmente a noção de liberdade, nela inserindo garantias que
tradicionalmente não são consideradas como liberdades, isto é, como direitos de defesa
a intervenções estatais. Pelo contrário, para Amartya Sen, a liberdade do povo decorre,
inclusive, de Políticas Públicas voltadas à efetividade dos direitos econômicos e sociais55.

Não obstante a clareza expressa por Amartya Sen, de que o maior êxito do desen-
volvimento é proporcional ao grau do custeio público56 –quando o Estado opera “por meio
de um programa de hábil manutenção social dos serviços de saúde, educação e outras
disposições sociais relevantes”57 –, Emerson Gabardo tece críticas acerca da escolha do
autor pela liberdade como meio e fim do desenvolvimento58.

Nesse sentido, explica Gabardo, que a abordagem de desenvolvimento escolhido


por Sen estabelece uma limitação liberal, à medida em que é reduzido o objeto do de-
senvolvimento à ideia de liberdade, “cuja essência conceitual repousa em um inafastável
aspecto de ‘negatividade’ – afinal, ser livre é não possuir obstáculos à realização das ações
desejadas”59. Para ele, a concepção desenvolvimentista de Sen, corresponde a um fraco
liberalismo, em que o desenvolvimento acaba muito mais ligado à ideia de que os homens
devem possuir ‘condições mínimas de satisfação’ do que ‘condições máximas de satisfa-
ção’, posição essa que ensejaria uma responsabilidade subsidiária por parte do Estado em

54
RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007. p. 130.
55
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 159. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
56
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 26.
57
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 68.
58
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 26.
59
GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista
Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. p. 105. Disponível em: https://www.revistas.usp.
br/rdda/article/view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |335

promover o desenvolvimento nacional60. Aduz, assim, que o desenvolvimento é um direito


de caráter instrumental, um meio para o alcance de um objetivo, a felicidade61.

Ousamos, no entanto, data vênia, discordar do posicionamento esposado por


Gabardo, ao limitar a teoria seniana de desenvolvimento a um mero ideal liberal. A conclu-
são que se extrai, neste trabalho, a partir da análise da teoria seniana, é contrária àquela em
que se defende a subsidiariedade do Estado na garantia e promoção ao desenvolvimento.
Isso porque, embora justifique um desenvolvimento atrelado à liberdade (esta como um
fim, um objetivo), afirma que tal resultado apenas será possível mediante uma atuação
estatal (e aqui deve ser considerada uma atuação não interventivas, mas promotora), que
possa expandir as liberdades instrumentais dos indivíduos62.

Ora, como mencionado acima, Amartya Sen lista cinco diferentes liberdades ins-
trumentais, cuja promoção (de cada uma e de todas) é indispensável ao desenvolvimento
de um povo ou nação. E, aqui, devemos ter a noção de que, para Amartya Sen, não basta
ao Estado garanti-las, mas, expandi-las63. Quão mais livre um povo, quanto maior for o
seu acesso à sistemas de saúde, quanto maior for o seu acesso à educação, quanto maior
for a sua capacidade política, de participar de debates públicos, por exemplo, tão mais
desenvolvido será aquela nação. Essas liberdades aumentam diretamente as capacidades
dos indivíduos, mas também suplementam-se mutuamente e podem, além disso, refor-
çar umas às outras64. Por exemplo65: o maior grau de educação dos indivíduos leva a
uma maior qualificação da mão-de-obra, que, por consequência gera um maior acesso ao
Mercado e melhores condições financeiras, bem como uma maior consciência política nas

60
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 159. Disponível em: https://www.revistaaec.
com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023.
61
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 20.
62
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 21.
63
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 191.
64
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 58-62.
65
Outro relevante exemplo, é aquele trazido por Sen, de que há comprovações empíricas de que a maior qualida�-
de da educação, sobretudo das mulheres, gera uma maior redução das taxas de fecundidade. “Taxas de fecun-
didade elevadas podem ser consideradas, com grande justiça, prejudiciais à qualidade de vida, especialmente
das mulheres jovens, pois gerar e criar filhos recorrentemente pode ser muito danoso para o bem-estar e a
liberdade da jovem mãe” (SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira
Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 192).
336| Maxwell Lima Dias

decisões públicas. Em virtude disso, é importante a noção dessas interações ao deliberar


sobre políticas de desenvolvimento66.

É possível constatarmos que não existe correspondência entre a noção de promo-


ção de direitos sociais, como saúde e educação, e as ideias liberais de não-intervenção.
Políticas de desenvolvimento, na visão de Amartya Sen, dependem, de atuação positiva do
Estado. Considerações sobre a eficiência da política desenvolvimentista suplementam o
argumento em favor da equidade quando se defende a assistência pública na provisão de
educação básica, serviços de saúde e outros bens públicos67.

Ainda, segundo o autor indiano, a expansão dos serviços de educação, saúde e


seguridade social contribui diretamente para a qualidade de vida, havendo evidências, in-
clusive, de que, “mesmo com renda relativamente baixa, um país que garante serviços
de saúde e educação a todos pode efetivamente obter resultados notáveis de duração e
qualidade de vida de toda a população”68.

Não há, portanto, na obra desenvolvida por Amartya Sen, elementos que possam
sustentar uma visão liberal-burguesa acerca do desenvolvimento como liberdade, como
supõe Daniel Wunder Hachem69. Pelo contrário, assim como preconiza Hachem70,
Amartya Sen também defende um modelo de desenvolvimento pautado na redução de
desigualdades, mediante uma justiça distributiva: “Qualquer transferência pura – a redistri-
buição de renda ou provisão gratuita de um serviço público – pode potencialmente ter um
efeito sobre o sistema de incentivos da economia”71.

66
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 58-62.
67
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 170-192.
68
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 191.
69
Para Hachem, reforçando as críticas tecidas por Gabardo, a teoria seniana de desenvolvimento pressupõe que o
Estado desenvolvido será aquele que conseguir oferecer o mínimo necessário para que a sociedade exerça ple-
namente sua liberdade (HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés
econômico – reflexos sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo
& Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 159. Disponível em: https://
www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023).
70
No modelo estatal perfilhado pela Constituição de 1988, é indispensável uma atuação interventiva do Estado
com vistas à distribuição. Trata-se do conceito-chave do Estado Social (HACHEM, Daniel Wunder. A noção
constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico – reflexos sobre algumas tendências do
Direito Público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n.
53, p 133-168, jul./set. 2013. p. 159. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/
view/126/289. Acesso em: 10 ago. 2023).
71
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 173.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |337

Tanto o é, que no decorrer de seu trabalho, Amartya Sen ao justificar a importância


das provisões públicas de serviços de saúde e nutrição, demonstra, a partir de estatísticas
oficiais, que os índices de mortalidade do séc. XX na Grã-Bretanha (então a principal eco-
nomia capitalista do mercado), sofreram uma brusca redução nos períodos das guerras
mundiais, em virtude de programas sociais estratégicos, de custeio público nas áreas de
nutrição, saúde etc., inclusive, políticas de compartilhamento72.

Percebe-se que, apesar do título de sua obra vincular o desenvolvimento com a


liberdade, o autor toma como requisito para a liberdade, a igualdade. “Tanto é assim que o
desenvolvimento, para ele, trata-se de um processo para assegurar condições a todos de
superarem as desigualdades sociais/econômicas e ambientais que impõem exclusões”73.
Esta visão corresponde, inclusive, ao próprio conceito de políticas públicas: instrumentos
de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade com a
finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo por escopo asse-
gurar as condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos74.

Assim, em uma perspectiva mais ampla, considera o desenvolvimento como um fim


primordial, mas também lhe reconhece um papel instrumental, de permitir aos indivíduos
superarem as desigualdades mediante um processo de expansão de suas capacidades75.

E é exatamente esse o sentido de liberdade que pretende exprimir em sua obra:


capacidade. Considerando, assim, através da lógica seniana, as liberdades instrumentais
como elementos constitutivos do desenvolvimento, a liberdade (como fim), deve ser inter-
pretada como a capacidade dos indivíduos de levar a vida da forma que valorizam. Isto é,
um sistema é desenvolvido quando os indivíduos que dele se valem, são livres e capazes
de levar uma vida que valorizam, ou que têm razão para valorizar76.

É possível verificarmos a importância da visão de desenvolvimento a partir da


expansão das capacidades humanas proporciona uma sólida base para a avaliação dos

72
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 72-75.
73
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 23.
74
EMERIQUE, Lilian Balmant. Considerações sobre a orientação das políticas públicas de combate à pobreza
na perspectiva de direitos humanos. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 13, n. 13, p.
198-213, jan./jun. 2013. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
view/347. Acesso em: 14 ago. 2023.
75
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 28-29.
76
SENGUPTA, Arjun. O direito ao desenvolvimento como um direito humano. Revista Social Democracia
Brasileira, n. 68, p. 64-84, mar. 2002. p. 81.
338| Maxwell Lima Dias

padrões e da qualidade de vida, e sugere, além disso, um formato geral em termos do qual
problemas de eficiência e igualdade podem ser discutidos77.

4 A DEMOCRACIA COMO CONDIÇÃO PARA O


DESENVOLVIMENTO
Atenta-se, ainda, para a relação de mão dupla entre as capacidades e as políticas
públicas em prol do desenvolvimento. Essas capacidades (de os indivíduos levarem a vida
que valorizam), podem ser aumentadas pela políticas públicas, mas também, inversamen-
te, a direção das políticas públicas pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades
participativas do povo78.

A promoção do desenvolvimento nacional sustentável depende da capacidade dos


indivíduos de intervirem nas políticas públicas desenvolvimentistas. “O desenvolvimento
sustentável é o desenvolvimento da humanidade”79, e é por isso, que a sociedade deve
participar ativamente no processo e ter as informações necessárias para a escolha de
como prefere se desenvolver. “Cabe ao Poder Público tornar tal princípio efetivo, através
das audiências públicas, da implementação dos conselhos de meio ambiente, do direito de
petição, da ação civil pública e da ação popular”80.

Vê-se, assim, o papel constitutivo que o diálogo público desempenha na expansão


das capacidades de uma nação, através das liberdades de tomar parte em discussões pú-
blicas abertas e de participar de instituições (inclusive partidos de oposição) que exerçam
pressão política sobre os governos. A resposta do governo ao sofrimento frequente do
povo depende, geralmente, da pressão exercida sobre esse governo, por meio dos direitos
civis de votar, criticar e protestar81.

Importante traçarmos, aqui, um diálogo entre a democracia e a importância do


regime democrático para o desenvolvimento. Para o filósofo Habermas, o espaço público

77
SENGUPTA, Arjun. O direito ao desenvolvimento como um direito humano. Revista Social Democracia
Brasileira, n. 68, p. 64-84, mar. 2002.
78
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 33.
79
FERNANDES, Jeferson Nogueira. O direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Revista de Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 1-26, jan./jun. 2008. p. 14. Disponível em: https://revis-
taeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/125. Acesso em: 14 ago. 2023.
80
FERNANDES, Jeferson Nogueira. O direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Revista de Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 1-26, jan./jun. 2008. p. 14. Disponível em: https://revis-
taeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/125. Acesso em: 14 ago. 2023.
81
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 199.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |339

consiste em um fenômeno social elementar, como uma rede adequada para a comunica-
ção de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são
filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em
temas específicos82.

Daí, então, que se defende a essencialidade de um sistema democrático para


a efetividade das políticas desenvolvimentistas83. O “funcionamento da democracia e
dos direitos políticos podem até mesmo ajudar a impedir a ocorrência de fomes coletivas
e outros desastres econômicos”84. E aqui, o autor direciona relevante críticas àqueles que
defendem sistemas políticos mais autoritários, com frequentes negações a direitos civis e
políticos, sob o argumento de que é necessário para um desenvolvimento econômico rápido.

Para Sen, os governantes autoritários, que raramente sofrem os efeitos da pobreza


ou da fome, “tendem a não ter estímulo para tomar previdências preventivas oportunas”,
enquanto os governantes democráticos precisam vencer eleições e enfrentar a crítica pú-
blica, “dois fortes incentivos para que tomem medidas preventivas contra aqueles males”,
como a fome, miséria e desastres econômicos85.

No entanto, alerta Sen, que as instituições democráticas, por si só, não devem
ser vistas como mecanismos infalíveis para o desenvolvimento, mas como algo que de-
pende também do fortalecimento dos valores e prioridades sociais daquela comunidade,
bem como “do uso que fazemos das oportunidades de articulação e participação disponí-
veis”86. Logo, para que o princípio democrático nacional não se limite a um discurso va-
zio, faz-se importante o reforço “da política multipartidária e o dinamismo dos argumentos
morais e da formação de valores”87.

82
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. p. 92.
83
Merece destaque a afirmação de Sen, de que a importância da discussão pública é um tema ocasionado pela
história também de países do mundo não ocidental, não se tratando de uma ideia essencialmente ocidental.
Contudo, reconhece que os conceitos contemporâneos de democracia e discussão pública tenham sido pro-
fundamente influenciados pelas experiências e ideias difundidas nos últimos séculos, na Europa e nos Estados
Unidos. SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 196.
84
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 30.
85
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
86
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 208.
87
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 205.
340| Maxwell Lima Dias

E, nesse ponto, faz-se uma relação com uma visão de extrema relevância levantada
por Amartya Sen: a ideia de desenvolvimento como expansão de liberdade dos indivíduos,
pressupõe a condição destes indivíduos como agentes de mudança e crescimento, e não
meros pacientes. Com oportunidades sociais adequadas e um alto grau de participação
política dos indivíduos no espaço público, com uma reforçada formação de valores, os
indivíduos, na qualidade de agentes, podem efetivamente moldar o seu próprio destino e
ajudar uns aos outros88.

Trata-se de um direito fundamental de participação política, que, por outro lado, corres-
ponde a um dever fundamental e individual de compromisso e proteção ao Estado Democrático
de Direito, bem como no dever fundamental de solidariedade social e fraternidade89.

Isso não significa dizer, no entanto, que, enquanto agentes solidários, os indivíduos
passam a ser responsáveis pelo desenvolvimento social, passando a responsabilidade do
Estado a ser subsidiária. Esse espaço público de debate não coincide com o modelo do
Estado Liberal de Direito burguês, que se limita a garantir condições mínimas aos cidadãos,
garantindo a sua liberdade, e transferindo todas as demais funções para uma sociedade
econômica autorregulada90.

As instituições do Estado de direito devem garantir um exercício efetivo da autono-


mia política de cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de
uma vontade formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em progra-
mas legais, circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da imple-

88
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
89
Reforça-se que essa visão de responsabilidade social e solidariedade do indivíduo, na perspectiva de Amartya
Sen, não corresponde a um ideário liberal, absenteísta, de defesa à intervenção estatal, tampouco pres-
supõe uma responsabilidade subsidiária pelo Estado, como faz parecer Gabardo (GABARDO, Emerson. A
felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista Digital de Direito
Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. p. 105. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdda/article/
view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023). Como já mencionado anteriormente, repousamos nosso
entendimento na esteira da lição trazida por Adriana Schier, a qual defende que “Amartya Sen impõe ao Estado,
assim como à sociedade civil, uma atuação prestacional, de maneira a assegurar as liberdades: condição e
fim do desenvolvimento” (SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos funda-
mentais e desenvolvimento. Curitiba: Íthala, 2019. p. 23).
90
COITINHO, Viviane Teixeira Dotto; COLET, Charlise Paula. O poder local como espaço de articulação da cida�-
dania e construção do direito social: a refundação política do estado democrático pela ação comunicativa de
Jürgen Habermas. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 137-163, jul./dez.
2011. p. 141. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/139.
Acesso em: 14 ago. 2023.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |341

mentação administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração


social através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos91.

Habermas compreende o Estado Democrático de Direito como uma associação de


cidadãos livres e iguais de forma que possam manifestar suas opiniões a partir da ação
comunicativa, que será referência para democracia hodierna92, sendo responsabilidade
do Estado promover, positivamente, os direitos civis e políticos dos indivíduos.

Portanto, em um Estado Democrático de Direito, que tem como objetivo funda-


mental a promoção do desenvolvimento, se cabe por um lado, ao Estado criar políticas
públicas voltadas à expansão de liberdades, inclusive, sociais e políticas, dos indivíduos, é
dever destes também, serem solidários uns aos outros, na busca por uma sociedade justa,
desenvolvida e equilibrada.

5 CONCLUSÃO
A teoria de crescimento econômico, ainda muito utilizada por países tidos como
desenvolvidos, (se algum dia já foi) já não é mais suficiente para explicar o processo de
subdesenvolvimento dos países periféricos, tampouco para fundamentar uma política de
desenvolvimento elaborada através de princípios estritamente econômicos, cuja fórmula
fora aplicada outrora por aquele primeiro grupo de países.

Segundo Amartya Sen, o desenvolvimento nacional deve ser visto como um pro-
cesso de expansão de liberdades, visando o aumento da capacidade dos indivíduos de
viverem uma vida da forma que valorizam, ou têm razão para valorizar. Dessa forma, sob
a perspectiva seniana, um povo ou uma nação é mais desenvolvida, à medida que seus
indivíduos gozem de liberdade suficiente para levarem uma vida do modo que desejam.

Vê-se, pois, uma relação ambígua entre desenvolvimento e liberdade: a liberdade,


na visão seniana, consiste, a um só tempo, em meio e fim do desenvolvimento. Uma polí-
tica desenvolvimentista é eficaz quando tem por fim expandir a liberdade dos indivíduos, a
partir da consolidação das chamadas liberdades instrumentais: as liberdades políticas, as
facilidades econômicas, as oportunidades sociais, as garantias de transparência, e a segu-
rança protetora. Considerando a ampliação do conteúdo material da Liberdade, para incluir

91
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. p. 221.
92
COITINHO, Viviane Teixeira Dotto; COLET, Charlise Paula. O poder local como espaço de articulação da cida�-
dania e construção do direito social: a refundação política do estado democrático pela ação comunicativa de
Jürgen Habermas. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 137-163, jul./dez.
2011. p. 140. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/139.
Acesso em: 14 ago. 2023.
342| Maxwell Lima Dias

em seu âmbito de proteção direitos negativos e positivos, que demandam prestações esta-
tais, é possível verificarmos a responsabilidade do Estado em promover o desenvolvimento
nacional, através de políticas públicas.

O desenvolvimento nacional depende, ainda, da condição de agente dos indivíduos,


e não de pacientes, ou meros beneficiários de políticas assistenciais, de modo que passam
a ser responsáveis também uns pelos outros. É o próprio dever de solidariedade que fun-
damenta o Estado Democrático de Direito. Trata-se, portanto, de uma importante função
das políticas desenvolvimentistas: garantir uma maior liberdade política aos indivíduos,
para que possuam uma maior acesso aos debates sociais e uma maior articulação nas
decisões públicas.

Conclui-se, assim, que as diversas formas de desigualdades existentes não po-


dem ser combatidas tendo o mercado ou o Estado como únicos agentes que determinam
o desenvolvimento, sob pena desses manterem a concentração econômica e acirrar as
desigualdades. As políticas de desenvolvimento devem estar orientadas pelos valores da
democracia e compreender o crescimento econômico a partir do princípio da distribuição
de riqueza. Requer também que as pessoas tenham condições de vida digna e o compro-
misso da sociedade no uso racional e sustentável dos recursos naturais.

REFERÊNCIAS
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro.
Coimbra: Coimbra, 2004.

COITINHO, Viviane Teixeira Dotto; COLET, Charlise Paula. O poder local como espaço de articulação
da cidadania e construção do direito social: a refundação política do estado democrático pela ação
comunicativa de Jürgen Habermas. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10,
n. 10, p. 137-163, jul./dez. 2011. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.
php/rdfd/article/view/139. Acesso em: 14 ago. 2023.

DU PISANI, Jacobus A. Sustainable development: historical roots of the concept. Environmental


Sciences, v. 3, n. 2, p. 83-96, jun. 2006. Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/
pdf/10.1080/15693430600688831. Acesso em: 15 ago. 2021.

EMERIQUE, Lilian Balmant. Considerações sobre a orientação das políticas públicas de combate à po-
breza na perspectiva de direitos humanos. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba,
v. 13, n. 13, p. 198-213, jan./jun. 2013. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/
index.php/rdfd/article/view/347. Acesso em: 14 ago. 2023.

FERNANDES, Jeferson Nogueira. O direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Revista de


Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 1-26, jan./jun. 2008. Disponível em:
https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/125. Acesso em: 14 ago.
2023.
A democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir... |343

FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a


necessidade de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais,
Osasco, n. 1, p. 63-91, jan./jun. 2014.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2000.

GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado


Social. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, 2018. p. 105. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/136849/137642. Acesso em: 13 ago. 2023.

GABARDO, Emerson; RESENDE, Augusto César Leite de. A atividade administrativa de fomento
na gestão integrada de resíduos sólidos em perspectiva com o desenvolvimento sustentável. A&C
Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo horizonte, ano 13, n. 53, p. 105-131, jul./set.
2013. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/125. Acesso em:
14 ago. 2023.

GÓMEZ, Jorge Montenegro. O “desenvolvimento” como mecanismo de controle social: desdobra-


mentos escalares. Revista Pegada Eletrônica, São Paulo, v. 6, n. 1, jun. 2005. Disponível em: https://
revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/view/1296. Acesso em: 14 ago. 2023.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. v. 1. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003.

HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés eco-
nômico – reflexos sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. Revista de Direito
Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 53, p 133-168, jul./set. 2013.
Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/126/289. Acesso em:
10 ago. 2023.

HIRSCHMAN, Albert O. La estrategia del desarrollo económico. México: Fondo de Cultura Económica,
1973.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de


Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

MÜLLER, Antônio. Manual de economia básica. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

ONU. Índice de Desenvolvimento Humano: O que é o IDH? [S.d.]. Disponível em: https://www.br.undp.
org/content/brazil/pt/home/idh0/conceitos/o-que-e-o-idh.html. Acesso em: 22 ago. 2021.

PERROUX, François. Pour une philosophie du nouveau développement. Paris: Éd. Aubier-Montaigne,
Presses de l’UNESCO, 1981.
344| Maxwell Lima Dias

PERROUX, François. L’Economie du XXe Siecle. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1991.

RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências.


Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

ROSTOW, Walt W. Etapas do desenvolvimento econômico (um manifesto não comunista). 5. ed.
aumentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1974.

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamen-
tais na perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.

SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: administração pública, direitos fundamentais e desen-
volvimento. Curitiba: Íthala, 2019.

SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstituciona-


lismo. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, n. 20, p. 145-165, abr./
jun. 2005. Disponível em: https://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/458. Acesso
em: 14 ago. 2023.

SEN, Amartya Kumar. O desenvolvimento como expansão das capacidades. Lua Nova Revista de
Cultura e Política, n. 28/29, p. 313-333, abr. 1993. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/
VJKn7b5cJWQKrnTwGMmSKVM/. Acesso em: 14 ago. 2023.

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

SENGUPTA, Arjun. O direito ao desenvolvimento como um direito humano. Revista Social Democracia
Brasileira, n. 68, p. 64-84, mar. 2002.

SUNKEL, Osvaldo; PAZ, Pedro. El subdesarrollo latinoamericano y la teoria del desarrollo. 22. ed.
México: Siglo Veintiuno, 1988.

TRUBEK, David M. O “império do direito’: na ajuda ao desenvolvimento passado, presente e futuro.


In: RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). O novo direito ao desenvolvimento: presente, passado e futuro
– textos selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009.
ÍNDICE ALFABÉTICO
A
Adira já ao desenvolvimento sustentável....................................................................................... 103
Alteração legislativa.......................................................................................... 18-20, 84, 91, 93-95
Análise da renúncia da receita de IPTU no município de Curitiba................................................... 193
Apontamentos sobre uma adequada interpretação constitucional.................................................... 23
Autonomia dos entes Federativos no combate à pandemia da Covid-19: uma análise a partir da
ação direta de inconstitucionalidade n. 6.341............................................................................... 297
Autoritarismo, poder moderador e a incumbência de defesa do Estado democrático de Direito...... 227
Autoritarismo.....................................................26, 42, 148, 228, 231, 233-235, 238-241, 244, 247
Autoritarismo como marca persistente no passado e no presente da cultura política brasileira....... 229
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.341 e a garantia do direito à saúde no contexto da
pandemia da Covid-19................................................................................................................. 311

B
Brigas de torcida.......................................................................................................................... 288

C
Camila Soares Cavassin Jayme | William Soares Pugliese............................................................... 9
Comparação normativa da Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009 versus Anteprojeto do
Código Brasileiro de Processo Constitucional................................................................................. 17
Concepção do Estado de Direito como um projeto liberal da modernidade e a crítica social........... 164
Conclusão..................... 20, 43, 61, 79, 95, 109, 130, 157, 188, 207, 224, 247, 267, 288, 316, 341
Constitucionalismo democrático................................................................................... 228, 243, 257
Constitucionalismo negro............................................................................................. 254, 261, 264
Construindo precedentes no Brasil............................................................................................... 120
Contraditório e ampla defesa........................................................................................................ 126
Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana | Stanlei Ernesto Prause Fontana | Marcelo Fonseca
Gurniski....................................................................................................................................... 297
Código Brasileiro de Processo Constitucional................................................................................. 11
Código de Processo Constitucional...............................................................................10-13, 17, 20

D
Decisões judiciais.......................................................................................25-26, 43, 118, 124, 126
Defesa do Estado democrático de Direito no sistema constitucional brasileiro............................... 239
Democracia................25-26, 29, 33, 35, 42-43, 48, 61, 67, 75, 100, 105, 107, 110, 137, 140-141,
146-147, 155-158, 163, 166, 171, 173-175, 177-180, 182-188, 210, 213, 223-224, 228-229, 235,
237, 239, 244, 247, 260, 264-266, 273, 278, 311, 313, 323, 325, 328, 330, 338-339, 341-342
Democracia como condição para o desenvolvimento.................................................................... 338
Democracia como fundamento do desenvolvimento nacional a partir da teoria de Amartya Sen.... 321
Democracia deliberativa........................................................137, 141, 157, 163, 178, 180, 184-188
Derick Davidson Cordeiro | Gabriela Ganho.......................................................................... 193, 253
Desafios para cumprimento da Agenda 2030............................................................................... 106
346| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho - Lucas Raphael de Souza Mano -
Maxwell Lima Dias - Orgs.

Desenvolvimento....11, 43, 51, 53, 61, 66, 71, 74-75, 80, 98-99, 101-110, 119, 131, 137, 141-143,
146, 148-158, 162-163, 171-172, 175, 179-180, 186, 194-195, 197-198, 200-207, 211, 213, 257,
260, 262-273, 281-283, 304, 322-342
Desenvolvimento como liberdade e responsabilidade do Estado em promover as expansão das
liberdades instrumentais.............................................................................................................. 329
Desenvolvimento e sustentabilidade: novos fundamentos ao Estado democrático de Direito.......... 146
Desenvolvimento sustentável.... 98, 105-106, 108-110, 137, 146, 148-150, 154-156, 158, 206, 323, 338
Diferença entre interpretar o Direito e decidir com base no voluntarismo......................................... 30
Dillings Barbosa Maquiné | Paulo César de Lara........................................................................... 227
Direito................................................................. 10-18, 24-35, 42-43, 47-62, 66-74, 76-80, 84-86,
88-95, 98-105, 107, 110, 114-119, 122-126, 128, 130, 136-137, 139, 142-149, 151-158, 162-163,
165-182, 184-185, 187-188, 194, 197-198, 202-204, 206-207, 211-213, 216, 218, 220, 223, 228,
235-240, 243, 245, 247, 253, 255-256, 258-259, 261-263, 265-267, 271-292, 298-299, 301-302,
304-305, 308, 311-316, 322-323, 328-330, 332-336, 338-342
Direito administrativo..................................................... 136-137, 142, 144-147, 149, 156-158, 163
Direito ao nome............................................................................................................84-86, 88, 94
Direito fundamental... 48, 51, 53-54, 56, 84-86, 90, 94-95, 98, 105, 154, 169, 299, 304-305, 312, 340
Direito fundamental ao nome e as implicações trazidas pela Lei 14.382/2022 à segurança jurídica..... 83
Direito fundamental ao nome e suas características........................................................................ 85
Direitos da personalidade......................................................................................................... 85, 94
Direitos fundamentais............................................................................................ 11-16, 25, 31, 33,
47, 50, 53-54, 59-61, 66-67, 70-71, 73-74, 76, 78-80, 85, 100-102, 105, 107, 110, 142, 148, 157,
170, 178, 194, 207, 238, 259, 262, 278, 299, 302, 304-305
Direitos humanos...13-14, 53, 56, 58, 88, 101-102, 173, 178, 240, 258, 271-286, 288-289, 291-292,
312, 316
Direitos humanos – e o seu papel o tempo todo em todo o lugar.................................................. 272
Direitos sociais...............................................49-50, 52-53, 58-59, 61-62, 139, 143, 168, 170, 336
Direito tributário........................................................................................................... 66, 69, 71, 76
Direito tributário como mecanismo para a materialização dos direitos fundamentais em face à
crise socioeconômica no Brasil...................................................................................................... 65
Direito à cidade: o direito fundamental good que ‘nóis’ não have..................................................... 99
Direito à moradia...........................................................................................................104, 203-204
Direito à saúde................................................... 47-50, 53, 55, 57-60, 302, 305, 308, 311, 313-315
Direito à vida...................................................................... 48, 56, 58, 139, 157, 168, 272, 298, 315
Duplo grau de jurisdição......................................................................................................... 19, 128

E
Eduardo Tourinho Gomes............................................................................................................. 271
Eficácia.....67, 79-80, 105, 116, 121, 127-128, 148-149, 156, 206, 211, 221, 273, 276, 279, 309, 313
Entre razões e emoções: a construção das decisões no Brasil...................................................... 114
Entre razões e emoções: motivos para o uso de precedentes no Direito Brasileiro......................... 113
Estado constitucional............................................................................. 67, 210, 224, 259, 266, 278
Estado moderno.................................26, 36, 157, 168, 171-173, 179, 182, 188, 210-213, 216, 220
Estado moderno racional.............................................................................................................. 210
Estrangeiros..................................................................................................................... 48, 57, 260
Estado, Democracia e Desenvolvimento: Estudos sobre a eficácia dos |347
Direitos Fundamentais

Exclusão racial..................................................................................................................... 254, 267


Exclusão racial no Brasil............................................................................................................... 254
Expansão de liberdades................................................................................................ 323, 331, 341
Extrafiscalidade............................................................................................................................ 199

F
Falácia do desenvolvimento como crescimento econômico.......................................................... 323
Federalismo cooperativo...............................................................................................306, 314-316
FIFA....................................................................................... 272-274, 279, 282, 284-286, 288-292
FIFA e seu papel nos direitos humanos......................................................................................... 278
Futebol........................................................................... 271-277, 279-280, 282, 284, 288, 291-292

G
Gabriela Ganho | Derick Davidson Cordeiro.......................................................................... 193, 253
Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira | Lucas Raphael de Souza Mano......................................... 97, 113
Gentrificação.......................................................................................................................... 99, 109

H
Hierarquia das cortes................................................................................................................... 130

I
Imigrantes.................................................................................................................................... 290
Imparcialidade e isonomia............................................................................................................ 129
Imutabilidade do nome....................................................................................................... 90, 93, 95
Integração política.........................................................................................................210, 222-224
Internacionalização.......................................................................................................... 53, 60, 258
Internacionalização do direito à saúde...................................................................................... 47, 57
Interpretação.......12, 15, 24, 26, 29-30, 32-35, 39, 42-43, 60, 68, 92, 98, 115, 117, 122, 128, 130,
163, 182-184, 229, 241, 261, 266, 300, 313, 327
Interpretação constitucional............................................................................................................ 35
Introdução....................... 10, 23, 47, 66, 84, 98, 114, 136, 162, 194, 210, 228, 253, 271, 298, 322
IPTU............................................................................................................. 195, 197-199, 201-206
IPTU e o desenvolvimento municipal............................................................................................ 201
Índice alfabético........................................................................................................................... 345
(In)eficiência do Estado em garantir o exercício de direitos fundamentais de caráter tributário......... 76

J
Jocimar Pereira de Souza | Marilaine Moreira de Jesus | Luiza Boff Lorenzon................................ 83
Judicialização da política........................................................................................................ 24, 236
Judiciarismo.........................................................................................................228, 237-238, 248
Judiciarismo como manifestação do autoritarismo do judiciário de cúpula.................................... 235

L
Legitimidade..... 30, 32, 43, 75, 124, 137, 141, 144, 147, 155-157, 163-164, 172, 174-175, 180, 183,
185, 188, 212, 216-218, 232, 245, 257, 312
Lucas Raphael de Souza Mano | Gabriel Victor Zaparoli de Oliveira......................................... 97, 113
Luiza Boff Lorenzon | Jocimar Pereira de Souza | Marilaine Moreira de Jesus................................ 83
Luiza Boff Lorenzon | Marilaine Moreira de Jesus | Ramon Gabriel Conti....................................... 65
348| Derick Davidson Cordeiro - Gabriela Ganho - Lucas Raphael de Souza Mano -
Maxwell Lima Dias - Orgs.

M
Mandado de segurança................................................................................................. 10-11, 13-20
Mandado de segurança e o anteprojeto para um Código Brasileiro de Processo Constitucional.......... 9
Marcelo Fonseca Gurniski | Cássia Camila Cirino dos Santos Fontana | Stanlei Ernesto Prause
Fontana........................................................................................................................................ 297
Marcelo Fonseca Gurniski | William Soares Pugliese...................................................................... 23
Marilaine Moreira de Jesus | Luiza Boff Lorenzon | Jocimar Pereira de Souza................................ 83
Marilaine Moreira de Jesus | Ramon Gabriel Conti | Luiza Boff Lorenzon....................................... 65
Materialização do pluralismo Constitucional, um caminho para a inclusão racial no Brasil............. 253
Maxwell Lima Dias....................................................................................................... 135, 161, 321
Município...............48-49, 61, 104, 109, 195-204, 207, 298-301, 304, 306, 308-309, 311, 314-316
Mínimo Existencial......................................................................................................................... 51

N
Neoconstitucionalismo........................................................................................................... 67, 178

O
Ordem tributária diante da crise socioeconômica no Brasil.............................................................. 71

P
Pandemia da Covid-19............................................... 48, 73, 298-299, 307-308, 310-311, 314, 316
Pandemia da Covid-19 e o enfrentamento pelos entes federativos brasileiros................................ 306
Paulo César de Lara | Dillings Barbosa Maquiné........................................................................... 227
Pluralismo....67, 70, 162-163, 172, 174-177, 180-182, 184-185, 187-188, 210, 254, 257-260, 263, 267
Pluralismo jurídico..........................................................162-164, 172, 180-182, 184-185, 187-188
Pluralismo jurídico como condição de racionalidade ao Estado Democrático de Direito................. 179
Pluralismo jurídico e democracia deliberativa: uma nova racionalidade para o Estado democrático
de Direito a partir da teoria discursiva de Habermas..................................................................... 161
Poder moderador.......................................................................... 228-234, 238, 241-243, 245, 247
Políticas públicas...................................................................................... 31, 49, 51, 54-55, 59, 61,
67, 69, 74, 76, 79, 102-103, 107, 109-110, 131, 136-137, 143, 147-148, 150, 152-155, 157, 164,
223, 237, 258, 263, 298, 302, 304, 306, 315, 330, 334, 337-338, 341-342
Populismo..................................................................................................... 210, 222-224, 235-236
Por que seguir precedentes no Brasil?.......................................................................................... 124
Possibilidade de alteração do nome e a segurança jurídica............................................................. 90
Precedentes.................................................................................. 19, 26, 29-30, 114, 117, 120-131
Problema da legitimação Estado e a transformação do interesse público a partir da democracia:
o leviatã pós-moderno................................................................................................................. 137
Problema da legitimidade do Estado e a teoria discursiva de Habermas: a democracia
deliberativa como racionalidade do Estado Democrático de Direito................................................ 172
Processo constitucional.......................................................................................... 10-14, 17, 19-20

Q
Questões preliminares sobre o município..................................................................................... 195
Estado, Democracia e Desenvolvimento: Estudos sobre a eficácia dos |349
Direitos Fundamentais

R
Ramon Gabriel Conti | Luiza Boff Lorenzon | Marilaine Moreira de Jesus....................................... 65
Referências.................... 20, 44, 62, 80, 95, 110, 131, 158, 188, 207, 224, 248, 267, 292, 317, 342
Reforma sanitarista e a Constituição de 1988................................................................................. 48
Renúncia...............................................................................117, 194-195, 198, 201, 203-207, 218
Respeito à Constituição................................................................................................................ 124
Ressignificação da legitimidade do Estado administrativo: uma teoria da racionalidade
sustentável das políticas públicas................................................................................................. 135
Roda roda vira: a efetivação de cidades sustentáveis ao som de Mamonas Assassinas.................. 97
Saúde........47-50-51, 53-62, 102, 150-152, 154-155, 172, 197, 205, 287, 298-299, 302, 304-305,
307-308, 310-316, 330-331, 333-337

S
Segurança jurídica...................... 11, 70, 84, 90, 93-95, 118-119, 123-125, 127-128, 130, 137, 146
Stanlei Ernesto Prause Fontana | Marcelo Fonseca Gurniski | Cássia Camila Cirino dos Santos
Fontana........................................................................................................................................ 297
Sthephany Patrício da Silva.......................................................................................................... 209
Supremo Tribunal Federal.............10-11, 13, 15, 19-20, 24-25, 57, 86, 92, 115-116, 125, 197, 228,
235-236, 238-239, 241-244, 247, 279, 298-300, 307, 309, 312-313, 316

T
Teoria da integração na racionalidade do Estado moderno e o surgimento do populismo como
meio integrador e meio de ruptura democrática............................................................................ 220
Teoria da racionalidade democrática e sustentável das políticas públicas...................................... 154
Teoria do discurso.................................................. 140-141, 157, 173-174, 178, 184-185, 187, 224
Teoria do Estado moderno Weberiano e a formação do populismo como meio integrador político
ou forma de ruína democrática e institucional............................................................................... 209
Teoria seniana.............................................................................................................. 153, 322, 335
Tipos ideais......................................................................................................... 210, 214, 216, 224
Tipos ideais, dominação carismática e a teoria do discurso como meio de dominação................. 216
Tributo..........................................................................59, 61, 72, 75, 196-202, 204, 206, 299, 306

U
Universalidade e integralidade........................................................................................................ 54

V
Violência.....108, 139, 162, 171, 173, 210-212, 214, 216, 256, 265, 271-272, 275, 284, 288, 291-292
Violência no futebol brasileiro....................................................................................................... 286
Violência no futebol e o papel da FIFA subordinando-se aos Direitos Humanos para diminuir
as atrocidades............................................................................................................................. 271
Visão constitucional do direito tributário......................................................................................... 67
Voluntarismo jurídico e decisão judicial ......................................................................................... 26

W
William Soares Pugliese | Camila Soares Cavassin Jayme............................................................... 9
William Soares Pugliese | Marcelo Fonseca Gurniski...................................................................... 23
Wlademir Junior Lucietti Filho......................................................................................................... 47

Você também pode gostar