Você está na página 1de 230

3

Alexandre Moura Alves de Paula Filho


Pablo Diego Veras Medeiros
(Coordenadores)

DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA:


DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
1ª Edição

Belém-PA

2020
4

https://doi.org/10.46898/rfb.9786558890461

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

D598

Direitos fundamentais e justiça: diálogos interdisciplinares [recurso digi


tal] / Alexandre Moura Alves de Paula Filho, Pablo Diego Veras
Medeiros (Coordenadores). -- 1. ed. -- Belém: RFB Editora, 2020.
6.512 kB; PDF: il.
Inclui Bibliografia.
Modo de acesso: world wide web.

ISBN: 978-65-5889-046-1
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461

1. Direito. 2. Pesquisa. 4. Estudo.


I. Título.

CDD 340.07
5

Copyright © 2020 Edição brasileira.


by RFB Editora.
Copyright © 2020 Texto.
by Autores.

Todo o conteúdo apresentado neste livro, inclusive correção ortográ-


fica e gramatical, é de responsabilidade excluvisa do(s) autor(es).
Obra sob o selo Creative Commons-Atribuição 4.0 Internacional. Esta
licença permite que outros distribuam, remixem, adaptem e criem a
partir do trabalho, mesmo para fins comerciais, desde que lhe atri-
buam o devido crédito pela criação original.

Conselho Editorial:
Prof. Dr. Ednilson Sergio Ramalho de Prof.ª Me. Neuma Teixeira dos Santos -
Souza - UFOPA (Editor-Chefe). UFRA.
Prof.ª Drª. Roberta Modesto Braga - Prof.ª Me. Antônia Edna Silva dos Santos
UFPA. - UEPA.
Prof. Me. Laecio Nobre de Macedo - Prof. Dr. Carlos Erick Brito de Sousa -
UFMA. UFMA.
Prof. Dr. Rodolfo Maduro Almeida - Prof. Dr. Orlando José de Almeida Filho
UFOPA. - UFSJ.
Prof.ª Drª. Ana Angelica Mathias Macedo Prof.ª Drª. Isabella Macário Ferro Caval-
- IFMA. canti - UFPE.
Prof. Me. Francisco Robson Alves da Sil-
va - IFPA.
Prof.ª Drª. Elizabeth Gomes Souza -
UFPA.

Diagramação:
Danilo Wothon Pereira da Silva.
Arte da capa:
Pryscila Rosy Borges de Souza.
Imagens da capa:
https://pixabay.com/pt/
Revisão de texto:
Os autores.

Home Page: www.rfbeditora.com.


E-mail: adm@rfbeditora.com.
Telefone: (91)3085-8403/(91)98885-7730.
CNPJ: 39.242.488/0001-07.
Barão de Igarapé Miri, sn, 66075-971, Belém-PA.
6
7

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................11
Alexandre de Paula Filho,
Pablo Diego Veras Medeiros,

CAPÍTULO 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-A-
MERICANO............................................................................................................................13
Newton Nobel Sobreira Vita
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.1

CAPÍTULO 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL �����35
Rodrigo Ramos Melgaço
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.2

CAPÍTULO 3
O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ORDENA-
MENTO JURÍDICO BRASILEIRO....................................................................................51
Maria Carolina Lemos Russo Cartaxo
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.3

CAPÍTULO 4
ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA, LUTE PELO DIREITO!.........................................57
Alexandre Moura Alves de Paula Filho
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.4

CAPÍTULO 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO..................................................................63
Rodrigo Ramos Melgaço
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.5

CAPÍTULO 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREI-
TO SOCIAL À SAÚDE.........................................................................................................83
Newton Nobel Sobreira Vita
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.6

CAPÍTULO 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS
CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO FEMINI-
NA NA CÂMARA FEDERAL DE 1988 A 2018...............................................................101
Andréa Cangussú André
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.7

CAPÍTULO 8
OS EFEITOS DA GUARDA COMPARTILHADA SOBRE OS FILHOS MENORES
APÓS A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO/UNIÃO ESTÁVEL..............................117
Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira
João Roberto Martins Cardoso
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.8
8

CAPÍTULO 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS.........................................................................................127
Newton Nobel Sobreira Vita
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.9

CAPÍTULO 10
A PRISÃO DOMICILIAR E AS ALTERAÇÕES PROVOCADAS PELA LEI Nº
13.769/18.................................................................................................................................143
João Roberto Martins Cardoso
Maria Maryelle Batista de Souza
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.10

CAPÍTULO 11
ASPECTOS GERAIS ACERCA DA SISTEMÁTICA DO RECOLHIMENTO DO
ICMS SOBRE OS COMBUSTÍVEIS E A IMPORTÂNCIA DO INSTITUTO DA
SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA.......................................................................................151
Silvana Pereira de Albuquerque
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.11

CAPÍTULO 12
A INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALI-
DADE JURÍDICA NAS EXECUÇÕES FISCAIS: UMA DIFÍCIL ADAPTAÇÃO ��161
Natália Pimentel Lopes
Andrea Rose Borges Cartaxo
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.12

CAPÍTULO 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPE-
RIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE À LEI GERAL DE PROTEÇÃO
DE DADOS (LGPD)............................................................................................................167
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.13

CAPÍTULO 14
A PRIMAZIA DO JULGAMENTO DE MÉRITO ANALISADO À LUZ DA TEORIA
DOS PRINCÍPIOS DE HUMBERTO ÁVILA................................................................181
Rodrigo Ramos Melgaço
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.14

CAPÍTULO 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO:
DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES ELEITORAIS.........................197
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.15

CAPÍTULO 16
TRABALHO INFANTIL: A TRISTE REALIDADE QUE PERDURA NO TEMPO ��211
Áurea Maria Nunes Machado Farias
João Roberto Martins Cardoso
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.16
9

CAPÍTULO 17
A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA NO CONTEXTO DA RE-
FORMA TRABALHISTA (LEI º 13.467/17).....................................................................219
Renata Esteves Seabra e Silva
DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.17

ÍNDICE REMISSIVO..........................................................................................................227
10
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
11

APRESENTAÇÃO
A produção acadêmica é fonte de construção e progresso da ciência jurídica. Nes-
se mesmo sentido, a adequação das pesquisas às metodologias contribui para a quali-
dade dos trabalhos apresentados por autores aos leitores.

Por isso, a ideia de produzir uma obra jurídica plural, com pesquisadores preo-
cupados com o progresso da dogmática jurídica e a transformação do espaço em que
estão inseridos. Não à toa, a obra é um esforço coletivo de advogados, magistrados,
gestores públicos, professores, procuradores e assessores jurídicos há algum tempo
engajados em desenvolver seus temas de estudo. Na busca pelo rigor na produção
científica, todos eles participaram de algum dos nossos cursos de metodologia da pes-
quisa, na Escola de Pesquisa em Direito.

Assim, entendemos que não há construção e progresso na ciência sem diálogo.


Diálogo entre fontes, entre instituições, entre métodos diferentes. Agentes de polos
distintos, como juízes e advogados, ao divergirem, eventualmente, sobre a melhor for-
ma de se administrar a justiça, proporcionam subsídios para o desenvolvimento do
sistema em prol do bem comum. Eis o que nos motivou a organizar este livro.

Nesta obra coletiva, temas atuais e de diversas frentes serão abordados pelos
autores: Alexandre de Paula Filho, Andrea Cangussú André, Andrea Borges Cartaxo,
Áurea Maria Nunes Machado Farias, Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto, João Ro-
berto Martins Cardoso, Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira, Natalia Pimentel Lopes,
Newton Nobel Sobreira Vita, Maria Carolina Lemos Russo Cartaxo, Maria Maryelle
Batista de Souza, Renata Esteves Seabra e Silva, Rodrigo Ramos Melgaço e Silvana
Pereira de Albuquerque.

Alexandre de Paula Filho,


Pablo Diego Veras Medeiros,
Os coordenadores.
12
CAPÍTULO 1

A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO


CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO

Newton Nobel Sobreira Vita1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.1

1  Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pós-graduado em Direito Civil e Processual
Civil pela Universidade Gama Filho e em Gestão Pública pela Faculdade Getúlio Vargas (FGV). Procurador-Chefe da
Assembleia Legislativa da Paraíba.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
14

RESUMO

O presente artigo trata sobre o contexto da crítica decolonial e o Novo Consti-


tucionalismo Latino Americano. Sendo assim, apresenta a crítica decolonial
consubstanciada nas contradições quanto à definição de modernidade no sentido Eu-
ropeu, tratando acerca do reconhecimento dos processos de exclusão de grupos sociais
que permanecem vulnerabilizados até a atualidade. Por conseguinte, ressalta as parti-
cularidades do Constitucionalismo, Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalis-
mo Latino-Americano, com ênfase nos marcos constitucionais elaborados a partir do
Novo Constitucionalismo Latino-Americano, quais sejam: as Constituições da Colôm-
bia, Venezuela, Equador e Bolívia. Por fim, relata o fato de a Constituição Brasileira de
1988 não ser aceita como pertencente ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano.
A problemática a ser abordada está em delinear a mudança nas perspectivas do direito
constitucional quanto à inclusão dos povos excluídos como sujeito de direitos, diante
das suas peculiariadades, constituindo um Estado plurinacional. Por meio da pesquisa
bibliográfica e da utilização do método indutivo, buscou-se analisar algumas defini-
ções, além de demonstrar essa inovação do Direito Constitucional.
Palavras-chave: Decolonidade. Constitucionalismo. Novo Constitucionalismo Latino-
-Americano.

1.1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho relata a crítica decolonial, sobretudo ao que é conhecido


por modernidade, a partir dos ideais do Novo Constitucionalismo Latino-Americano.
Nesse interím, inicialmente apresenta a crítica decolonial consubstanciada nas con-
tradições quanto à definição de modernidade no sentido Europeu, tratando acerca do
reconhecimento dos processos de exclusão de grupos sociais que permanecem vulne-
rabilizados até a atualidade. Por conseguinte, ressaltam as particularidades do Cons-
titucionalismo, Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo Latino-Americano,
com ênfase nos marcos constitucionais, elaborados a partir do Novo Constitucionalis-
mo Latino-Americano, quais sejam: as Constituições da Colômbia, Venezuela, Equa-
dor e Bolívia. Por fim, relata o fato de a Constituição Brasileira de 1988 não ser aceita
como pertencente ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano, conforme Viciano
Pastor e Martinez Dalmau.

A abordagem da pesquisa apresenta dois motivos: o primeiro se consubstancia


na crítica ao entendimento de modernidade à luz do eurocentrismo. O segundo, a
exclusão de povos que não se enquadravam no perfil de homem branco europeu ca-
pitalista, sobretudo dos povos originários, indígenas, na construção do Estado pós-co-
lonialismo.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
15

No que tange ao primeiro motivo, o fato de que a modernidade surgiu a partir


do ideal realizado pela Europa em se colocar como centro de uma História Mundial.
Contudo, o processo de modernização se trata de uma violenta expulsão e invasão,
que coincide com a criação dos Estados Nacionais, que no continente americano se
deu com a sua invasão pelo europeu e a dominação dos povos originários e exploração
gratuita do trabalho e dos corpos indígenas, e, em seguida, o tráfico e escravização dos
negros advindos do continente africano.

No segundo caso, o processo de restruturação da sociedade após o colonialis-


mo não representou mudanças substanciais, uma vez que apenas o perfil europeu se
enquadrava como centro do sujeito de direitos, e participante da política do Estado,
excluindo o grupo dos povos originários (índios) e negros, que não possuíam acesso à
vida política do Estado.

Apenas a partir do ideal do Novo Constitucionalismo Latino-Americano as


Constituições desses países passaram a buscar a proteção dos grupos sociais, vítimas
de discriminação social, como mulheres, portadores de deficiência, idoso, jovens e ín-
dios, com o objetivo de assegurar uma ampla proteção a esses grupos vulneráveis, de
modo que a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos também
demonstra a preocupação com proteção desses grupos discriminados.

1.2 TEORIA DECOLONIAL


1.2.1 Breve introdutório sobre a decolonidade

A decolonidade está amparada no Projeto Modernidade/Colonialidade (M/C),


a qual surgiu a partir de um crítico pensamento coletivo de acadêmicos e ativistas
da América Latina. No período do surgimento do referido pensamento crítico, houve
uma série de reuniões nos Estados Unidos e na América Latina, a fim de debater a teo-
ria de Análise dos Sistemas-Mundo de Immanuel Wallerstein, formulada na metade
do século XX, a qual contou com a pesquisa interdisciplinar de nomes como Walter
Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, María Lugones, Edgardo Lander, Catherine
Walsh, Arturo Escobar, e outros1.

A Teoria do Sistemas-Mundo de Immanuel Wallerstein se consubstancia em


um teoria pós marxista de relações internacionais, economia política internacional e
geoeconomia que está centrada no estudo do sistema social e suas interrelações com o
avanço do capitalismo mundial como forças determinantes entres os diferentes países
para o seu desenvolvimento.

1 CONTRAMARE.NET. Modernidade/Colonialidade: Decolonialidade. 2015. Disponível em: <http://www.contramare.net/


site/pt/modernitycoloniality-decoloniality/>. Acesso em: 22 jul. 2018.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
16

Como amplo projeto que se envolve criticamente com a dialética M/C, a Deco-
lonidade objetiva o rompimento com a universalidade do conhecimento que o colo-
nialismo trouxe ao mundo. Com isso, realizando uma análise sobre a colonialidade
presente na modernidade, os pensadores decoloniais exibem as marcas deixadas pelo
colonialismo na sociedade contemporânea, desenvolvendo a pluralidade de muitos
conhecimentos2.

De modo geral, as teorias pós-coloniais se disseminaram, em comum, questio-


nando a narrativa ocidental a respeito da modernidade e, a partir de suas margens,
revelam o subalterno como parte constitutiva dessa experiência histórica. Em confor-
midade com as referidas teorias, a narrativa hegemônica da modernidade garantiu à
Europa um privilegiado lócus de enunciação, que, mesmo após o fim do período colo-
nial, continuou favorecendo os aspectos da cultura europeia em detrimento de outras
referências de vida (LEDA, 2015).

Diante disso, a crítica ao eurocentrismo tem como configuração mais recente o


projeto do grupo latino-americano Modernidade/Colonialidade, o qual foi sendo pau-
latinamente estruturado por vários seminários, diálogos paralelos e publicações. Essa
associação começou a se constituir em 1998, após o desmembramento do Grupo de
Estudos Subalternos, o qual foi formado em 1992, e que havia realizado a tentativa de
organizar um debate interdisciplinar acerca da historiografia e das perspectivas subal-
ternas pela primeira vez (LEDA, 2015).

Amparado em cânones ocidentais do pós-estruturalismo e pós-modernismo –


Foucault e Derrida – o grupo do projeto Modernidade/Colonialidade dividiu-se entre
aqueles que consideravam a subalternidade como parte ou continuidade dessas abor-
dagens e aqueles que reivindicavam maior radicalidade da crítica anti-eurocêntrica e,
por conseguinte, uma ruptura com o esquema epistêmico ocidental. (GROSFOGUEL,
2008).

Em razão dessas divergências, houve a ruptura do grupo, originando o projeto


da decolonialidade, e o grupo arquitetou-se a partir dos diálogos e publicações de in-
telectuais de vários países da América Latina, dentre os quais se encontram Immanuel
Wallerstein, Walter Mignolo, Edgardo Lander, Anibal Quijano e Enrique Dussel, como
dito (LEDA, 2015).

Os referidos teóricos da decolonialidade adotaram como centro de sua argumen-


tação, o ideal de que subalternidade e colonialidade são fenômenos intrinsecamente
associados, sendo parte constitutiva do Sistema-Mundo moderno (MIGNOLO, 2001).

2 CONTRAMARE.NET. Modernidade/Colonialidade: Decolonialidade. 2015. Disponível em: <http://www.contramare.net/


site/pt/modernitycoloniality-decoloniality/>. Acesso em: 22 jul. 2018.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
17

Colonialidade e descolonialidade introduzem uma fratura entre a pós-modernida-


de e a pós-colonialidade como projetos no meio do caminho entre o pensamento
pós-moderno francês de Michel Foucault, Jacques Lacan e Jacques Derrida e quem
é reconhecido como a base do cânone pós-colonial: Edward Said, Gayatri Spivak e
Hommi Bhabba. A descolonialidade – em contrapartida – arranca de outras fontes.
Desde a marca descolonial implícita na Nueva Crónica y Buen Gobierno de Guamán
Poma de Ayala; no tratado político de Ottobah Cugoano; no ativismo e crítica deco-
lonial de Mahatma Ghandi; na fratura do Marxismo em seu encontro com o legado-
colonial nos Andes, no trabalho de José Carlos Mariátegui; na política radical, o giro
epistemológico de Amilcar Cabral, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Rigoberta Menchú
Gloria Anzaldúa, entre outros. (MIGNOLO, 2010, p. 14-15, tradução livre)

Em síntese, a corrente de pensamento denominada decolonização assume uma


perspectiva de crítica ao colonialismo, tendo como ponto de referência a própria Amé-
rica Latina, a qual apresenta uma teoria a partir do que foi herdado do período colonial
do Império espanhol e português nas Américas, sobretudo, abrangendo um espaço
temporal compreendido entre o século XVI até o século XXI. Ademais, as reflexões
dessa teoria tratam principalmente acerca de conhecimento de larga duração que fo-
ram transmitidas ao continente americano por intermédio do processo de colonização,
com influência do eurocentrismo, e que se estendem até a teoria social contemporânea,
a qual foi denominada de modernidade.

Portanto, os pensadores decoloniais entendem que o direito moderno ociden-


tal, de maneira geral, não traduz as realidades sociais latino-americanas, onde foram
impostos os ideais eurocentristas na América Latina, o que é criticado pelos teoristas
decoloniais.

1.2.2 A crítica decolonial

O convencionado conhecimento acerca da modernidade se coaduna em um refe-


rencial universalista da razão. “Esse paradigma de modernidade, racionalista, univer-
salista e individualista, pretende, a partir da ampliação dos espaços da razão em escala
universal, oferecer emancipação e felicidade a partir do desenvolvimento humano e
social”. (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, p. 1115). Nesse sentido, sob o ponto de vista
institucional, é asseverado que a formação do Estado e do constitucionalismo é fruto
deste imaginário.

A modernidade surgiu a partir do ideal realizado pela Europa em se colocar


como centro de uma História Mundial. Na realidade o processo de modernização se
trata de uma violenta expulsão e invasão, que coincide com a criação dos Estados Na-
cionais.

No continente europeu esse processo aconteceu com a expulsão do mulçumano


da Espanha e construção da idéia de Estado Nacional consubstanciado na uniformida-

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
18

de e centralidade de poder que possibilitou o desenvolvimento do modo de produção


capitalista.

Já no continente americano se deu com a sua invasão pelo europeu e a dominação


dos povos originários e exploração gratuita do trabalho e dos corpos indígenas, e, em
seguida, o tráfico e escravização dos negros advindos do continente africano, chama-
do por Dussel como primeiro holocausto do mito violento da modernidade, que toma
por marco o ano de 1492, ano em que ocorreu a invasão das Américas e expulsão dos
mulçumanos de Granada (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, apud DUSSEL, 1993, p. 1115).

Diante disso, a formação dos Estados Nacionais na era moderna aconteceu a par-
tir de processos violentos de “en-cobrimento” do indivíduo considerado diferente,
que no caso dos espanhóis eram os mulçumanos, e no caso americano eram os povos
originários, denominados de índios, os quais deveriam ser civilizados conforme enten-
dimento dos europeus.

Conforme asseverado por Barbosa e Teixeira, a América Latina esteve sob o con-
trole da península Ibéria desde o século XIV até se impulsionar a um processo de
emancipação que se iniciou no século XVIII, se estendendo até as primeiras décadas
do século XIX.

A formação dos Estados latino-americanos foi impulsionada pelas lutas que ob-
jetivaram a independência, liderados pela elite crioula (descendentes europeus), com
intensa exclusão dos povos originários (índios) e africanos, e a construção de uma
burocracia destinada a assegurar interesses que mantiveram o mesmo modelo de ex-
ploração humana (escrava e indígena), voltados aos interesses econômicos europeus,
sobretudo da Inglaterra que ambicionava os insumos e mercados para expandir os
efeitos de sua revolução industrial.
Assim, a independência e formação de Estados Nacionais Latino Americanos conti-
nuaram respaldadas em interesses eurocêntricos e baseada na importação de insti-
tutos do direito moderno europeu, como a própria noção de Estado Nacional numa
perspectiva uniformizante da linguagem, crenças, valores, moeda, direito e do uso
legitimo da violência pelo Estado e do modo de produção capitalista, reproduzindo
majoritariamente os compromissos fundamentais de uma democracia liberal-bur-
guesa. (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, p. 1116).

Em consonância com os autores do chamado giro decolonial, a modernidade é


marcada pelo colonialismo eurocêntrico, que pode ser entendido como o domínio eu-
ropeu de outros continentes do mundo, sendo o colonialismo um padrão de domina-
ção e exploração em que o controle da autoridade política, do trabalho de populações
determinadas e dos recursos de produção, possui uma diferente identidade de suas
sedes centrais.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
19

Barbosa (2015) esclarece que diversos fatores conjuntamente motivaram a eman-


cipação política das colônias, haja vista que na Europa a fragilidade Espanhola e Portu-
guesa por ocasião das invasões francesas diminuíram o poderio da dominação política
e enfraqueceram as metrópoles dominadoras. Diante disso, houve nas colônias reivin-
dicações de livre comércio e da expansão dos setores produtivos que eram apoiadas
pela Inglaterra, a qual a partir do século XVII já havia iniciado a revolução industrial,
tendo amplo interesse na quebra do monopólio Espanhol nas Américas, favorecendo
o movimento de emancipação.

Todavia, acrescenta Barbosa (2015), a independência não chegou a representar


uma quebra com o modelo de estratificação social, tampouco político institucional.
Logo, a América Latina manteve as mesmas estruturas de poder e relações econômicas
de dominação.

Percebe-se que não houve uma modificação do poderio europeu a partir da inde-
pendência, tendo em vista que os descendentes dos europeus que nasceram na Améri-
ca Latina, conhecidos como criollos, comandavam todos os aspectos da vida colonial.

Os criollos defendiam o livre comércio e a expansão dos setores produtivos, em


contrapartida, os chapetones, que eram os brancos nascidos da Espanha, eram a favor
da continuação do controle espanhol sobre a Colônia. Acontece que era de interesse da
classe que dominava a Colônia a liberdade de comércio, além da direção dos negócios
sem submissão à metrópole Espanhola, que somadas aos interesses econômicos e as
ideias de independência oriundas das colônias inglesas da América do Norte, favore-
ceram ao brotamento dos movimentos de independência das colônias latino-america-
nas.

A emancipação das colônias hispano-americanas não representou uma mudança


substancial na estrutura colonial, uma vez que as classes dominantes das antigas colô-
nias ocuparam o poder e constituíram Estados Nacionais, os quais garantiram o afas-
tamento, acerca das decisões políticas, da população trabalhadora, camponesa, negra
e indígena.

Houve a manutenção da estrutura colonial com a ruptura política em face da co-


lônia, pois, a população camponesa e indígena continuou sob a exploração e o domínio
dos seus antigos senhores, as propriedades de terras continuaram em poder da elite
(chapetones e criollos) e a Inglaterra teve mais espaço para comercializar no continen-
te.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
20

De acordo com Barbosa e Teixeira (2017) a compreensão da existência e perma-


nência da colonialidade proporciona o reconhecimento dos processos de exclusão de
grupos sociais que permanecem vulnerabilizados até a atualidade.
O extermínio indígena, a discriminação da mulher, o encarceramento da população
negra, a intolerância religiosa com as crenças de matriz africana, o desrespeito à
diversidade sexual, as posturas xenófocas em relação aos imigrantes e refugiados,
atestam, como aponta Bragato, que o projeto de modernidade colonial venceu. Con-
tinuamos vivendo “sob a égide da matriz colonial de poder que denota que embora
o colonialismo tenha chegado ao fim, é a colonialidade que marca as relações de po-
der contemporâneas” (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, p. 1117-1118 apud BRAGATO,
2016).

Por conseguinte, o direito reflete o contexto de colonialidade, uma vez que é um


sistema social, criando direitos que representam a visão de mundo de uma sociedade.
Diante disso, na visão consagrada pela Modernidade, o constitucionalismo represen-
tou os padrões eurocêntricos e valores liberais burgueses, deixando de fora grupos e
sujeitos que não se encaixam no padrão de homem branco europeu capitalista, como
negros e indígenas.

Portanto, é manifesta a dominação do ideal europeu sobre a formação Latino-


-Americana, que culminou na marginalização de grupos que não se encaixavam no
perfil europeu, invisibilizando os negros, mestiços e indígenas, os quais não tiveram a
possibilidade de participar da política de independência das colônias, posto que foram
escanteados.

Essa marginalização é plenamente perceptível nos dias atuais, tendo em vista


que o grupo segregado, apenas recentemente, através do Novo Constituticionalismo
Latino-Americano, passou a ser visto como um sujeito de direitos, de modo que os
povos originários puderam resgatar os seus valores sociais, econômicos, culturais e
ambientais.

1.3 O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO


1.3.1 O Constitucionalismo

O constitucionalismo constitui parte de normas fundamentais de um ordena-


mento jurídico de um Estado, localizadas no topo da pirâmide normativa, ou seja,
sua Constituição, a qual se constitui em um conjunto de normas que regulamentam o
Estado, instituindo e impondo limites aos poderes e funções de uma entidade política.

A denominação de constitucionalismo foi atribuída pelo movimento político-


-jurídico-social, que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, o qual culminou na
adoção de constituições pela maior parte dos Estados, principalmente concernente a
Constituição escrita.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
21

Este modelo surgiu a partir da equivalência: um Estado corresponde a um terri-


tório, que corresponde a uma nação, que corresponde a uma língua nacional, tendo se
originado em virtude da constituição do fator de integridade, qual seja, organização
do Poder, bem como em virtude do fator de integração, que se consubstancia na orga-
nização de direitos.

O ideal de constitucionalismo está ligado à garantia de direitos, separação de


poderes e princípios de governo limitado, se contrapondo ao absolutismo medieval, a
fim de combater o poder ilimitado que era assegurado ao Estado e garantindo partici-
pação política do cidadão.

De maneira geral, o constitucionalismo surgiu a partir de movimentos de grupos


sociais que idealizavam a limitação do exercício do poder político, configurando-se
independente da existência de normas escritas. De outro modo, o constitucionalismo
está ligado ao desenvolvimento histórico dos conceitos de constituição (BERNARDES,
2012).

O constitucionalismo moderno se constitui no movimento político-jurídico-so-


cial que resultou na organização do Estado, através da determinação de direitos e ga-
rantias fundamentais, escritos em uma Constituição, com o objetivo de limitar o poder
estatal absolutista e arbitrário do final do séxulo XVIII, que reinava entre os monarcas.

O constitucionalismo europeu se originou a partir da revolta burguesa, que de-


tinha poder econômico, contra o absoluto poder das monarquias, que concentrava
todo poder político. Os burgueses, inspirados em pensadores contratualistas como Lo-
cke, Hobes e Rousseau e nos ideais de Estado de Montesquieu, passaram a pressionar
a monarquia, resultando na Revolução Francesa e proclamação da Nova Constituição
Francesa, a qual apresentava os direitos de primeira geração, perdurando até o final
do século XX, época pós-segunda guerra mundial, quando as constituições passaram
a seguir os modelos das constituições do México de 1917 e da Alemanha (Weimar) de
1919, que asseguravam os direitos de segunda geração, quais sejam, os direitos sociais,
econômicos e culturais.

O surgimento do constitucionalismo latino-americano (constitucionalismo


criollo) foi compreendido por acordos políticos entre conservadores e liberais, os quais
não objetivavam ampliar direitos de participação ou direitos sociais aos demais mem-
bros da população. Desse modo, afirma Barbosa e Teixeira (2017) que “o período fun-
dacional do constitucionalismo não representou conquistas populares dos diversos
grupos étnicos, raciais e de gênero que compõem essas sociedades, ao contrário, man-
teve-se a estrutura exploratória”, mais intensa.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
22

De acordo com os autores, o constitucionalismo é compreendido como a reunião


de narrativas sobre o papel da Constituição, o conjunto das diversas perspectivas para
configuração das formas de exercício do poder, e organização do reconhecimento das
liberdades. Diante disso, a Constituição exerce duplo papel, o primeiro, seria o fator
integridade, elemento fundamental para a organização do poder, e o segundo, o fator
integração, elemento de organização dos direitos fundamentais e das liberdades.

1.3.2 O Neoconstitucionalismo

O neoconstitucionalismo se coaduna em um movimento teórico, que surgiu a


partir da segunda metade do século XX e que objetiva o revaloramento do direito
constitucional, a partir de uma nova abordagem do papel da Constituição no sistema
jurídico. Assim, o neoconstitucionalismo objetiva a renovação do Direito Constitucio-
nal, com base em novos princípios, como a difusão e o desenvolvimento da teoria dos
direitos fundamentais e a força normativa da Constituição, a fim de transformar um
Estado Legal em Estado Constitucional.

Esse movimento foi iniciado em resposta aos regimes autoritários e totalitários,


possuindo um papel diferenciado para as Constituições e para a Jurisdição Consti-
tucional, reconhecendo-as como inteprete dos direitos fundamentais assegurados às
pessoas.

O neoconstitucionalismo é embasado na necessidade de se impor a Constituição


como norma, sendo garantida pelo Poder Judiciário, uma vez que produz uma im-
pregnação de todo o ordenamento jurídico pelas normas da Constituição. Isso porque,
o debate sobre o controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário, pressupõe a ne-
cessidade de afirmações de direitos, independentemente do teor das decisões judiciais,
ainda que majoritárias (SANTOS, 2011).

O referido movimento na Europa representou a relevância do direito à dignidade


da pessoa humana, pois é inspirado na compreensão de que as Constituições represen-
tam valores que asseguram um direito previsto na norma jurídica, referente à condição
humana.

Nesse sentido, cumpre elucidar que a dignidade constitui um atributo humano,


sendo uma qualidade intríseca e inseparável de todo indivíduo, de modo que, em ra-
zão de sua condição humana, independente de qualquer outro fator, é o ser humano
titular de direitos que devem ser respeitados por todos, sobretudo o Estado, o qual
deve garantir esses direitos.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
23

Diante disso, é possível afirmar que o neoconstitucionalismo é uma inovação na


maneira de se interpretar o direito, partindo da valorização dos direitos humanos, os
quais possuem como expressão máxima, os direitos fundamentais das Constituições.

De acordo com Barbosa e Teixeira (2017), o neoconstitucionalismo possui como


objetivo central a transformação do Estado de Direito em Estado Constitucional de Di-
reito, permitindo que a Constituição invada todos os demais ramos do direito, consti-
tuindo o fenômeno demoninado constitucionalização dos direitos, representando uma
teoria do poder, na medida em que confere ao interprete da Constituição a função
criadora do direito.
O neoconstitucionalismo oferece um conjunto de mecanismos de interpretação e
aplicação do direito que introduz critérios materiais quanto à aferição da validade
do direito. Nesse horizonte, questões ético-morais, relegadas pela tradição liberal
clássica a um segundo plano, assumem status diferenciado, orientando e conduzin-
do a compreensão do direito enquanto ordem normativa especificamente voltada à
realização dos direitos fundamentais.
São características do neoconstitucionalismo europeu: a) reconhecimento de um am-
plo catálogo de direitos fundamentais; b) afirmação da força normativa da Consti-
tuição; c) ampliação do poder jurisdicional sobre o poder legislativo; c) afirmação de
técnicas ponderativas voltadas para a interpretação e aplicação do direito; d) afir-
mação do direito em uma dimensão principiológica (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017,
p. 1120).

A partir do neoconsitucionalismo é possível garantir à Constituição a perca do


caráter de fonte indireta para ser fonte direta de direito, possuindo plena eficácia, uma
vez que, ainda que as normas infraconstitucionais não tratem sobre determinado tema,
os direitos, regras e princípios previstos na Constituição serão efetivados e assegura-
dos (SOBRINHO, 2012).

Ainda, infere-se do neoconstitucionalismo a força normativa dos princípios cons-


titucionais, os quais, quando oriundos da Constituição, adquirem a qualificação de
norma das normas, postos no ponto mais alto da escala normativa, constituindo-se em
normas, os quais são utilizados como delimitadores para análise dos demais conteú-
dos normativistas.

Além do mais, é possível inferir a ampliação da jurisdição constitucional, con-


substanciado na nova maneira de interpretar o direito, posto que, a partir de então, o
ordenamento jurídico será analisado à luz dos dispositivos constitucionais.

1.3.3 O Novo Constitucionalismo nos países da América Latina

O Novo Constitucionalismo Latino-Americano consitui um novo conceito de Es-


tado, reconhecido como plurinacional, em que os povos originários puderam resgatar
os seus valores sociais, econômicos, culuturais e ambientais, havendo uma democracia

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
24

para todos e respeitando os povos e classes esquecidas, bem como as suas peculiari-
dades.

Nesse norte, surge como novo conceito de nação, em que as questões de ordem
plurietnica, intercultural e ambiental estejam representadas, sendo fundado a partir de
experiências constitucionais de países latino-americanos, os quais passaram a reanali-
sar o teor do constitucionalismo europeu tradicionalmente utilizado na região, a partir
de um novo olhar sobre os direitos fundamentais, bem como sobre a organização dos
Estados.

Os fatores que fizeram surgir o Novo Constitucionalismo Latino-Americano foi a


preocupação com a legitimidade do povo, sobretudo as minorias, construção de uma
democracia, com verdadeira participação popular, bem como um novo olhar jurídico
em favor das populações historicamente excluídas das necessidades fundamentais.

Nesse ínterim, essas novas Constituições foram elaboradas diante da necessidade


de concretização de políticas eficazes para assegurarem as necessidades fundamentais
do indivíduo. Desse modo, o movimento do Novo Constitucionalismo Latino-Ameri-
cano objetiva (re)fundar as instituições políticas e jurídicas com o ideal diverso do mo-
delo liberal-individualista de matriz eurocêntrica. “Esse constitucionalismo tem como
aporte a riqueza cultural diversificada, observadas as tradições das comunidades, su-
peração do modelo de política exclusivista, o qual esta a serviço das elites dominantes
e do capital estrangeiro.” (LANGOSKI, Deisemara Turatti; BRAUN apud DALMAU,
2009)

No entendimento de Barbosa (2015), o elemento fundador do Novo Constitucio-


nalismo é a participação do cidadão na ativação do poder constituinte, incluindo nos
textos constitucionais os direitos conquistados politicamente. Sendo que, o elemento
democrático dos textos constitucionais é resultado de um conflito antagônico presente
na América Latina, cujo continente foi marcado pela colonização, escravidão e exclu-
são dos povos que foram “conquistados”. Ressaltando, ainda, a referida autora, que
alguns doutrinadores entendem “que a maior inovação do movimento foi a inserção e
o reconhecimento de elementos das culturas indígenas nos processos constitucionais,
o que caracterizou essa experiência como pós-colonial” (BARBOSA, 2015).

Em conformidade com a autora, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano,


por não se tratar de um fenômeno puramente jurídico, mas também social, “não possui
um marco temporal definido, nem se trata de fenômeno pronto e acabado no tempo.
Pode-se dizer que se iniciou a partir da construção de textos constitucionais que tive-
ram origem participativa, sendo democraticamente construídos” (BARBOSA, 2015).

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
25

No século XXI, os países da América Latina, especialmente Venezuela, Bolívia


e Equador, se destacaram na era do Novo Constitucionalismo, no que diz respeito a
nova visão do direito constitucional, sobretudo o protagonismo popular no processo
constituinte, diferenciando-o do constitucionalismo tradicial (LANGOSKI; BRAUN,
2014).

A América Latina resistiu à receita neoliberal e, desse modo, procurou fazer uma
Refundação da Teoria Constitucional, garantindo uma maior participação da popula-
ção, que no novo modelo constitucional passa a ter assegurados direitos e garantias,
sobretudo aos indivíduos excluídos, marginalizados e que não possuíam voz nem di-
reitos.
São características do Novo Constitucionalismo Latino Americano: a) ênfase na par-
ticipação popular na elaboração e interpretação constitucionais, o que o caracteri-
za por um forte elemento legitimador; b) adoção de um modelo de “bem viver”
fundado na percepção de que o ser humano é parte integrante de um cosmos; c)
re-articulação entre Estado e Mercado a partir da reestruturação do modelo produ-
tivo; d) rejeição do monoculturalismo e afirmação de pautas pluralistas de justiça e
direito; e) inclusão de linguagem de gênero nos textos constitucionais; f) garantia
de participação e reconhecimento de todas as etnias formadoras das nações latino-
-americanas, inclusive com reconhecimento das línguas originárias e a existência
de Cortes Constitucionais com participação indígena; g) são textos constitucionais
preocupados com a superação das desigualdades sociais e econômicas; h) procla-
mam o caráter normativo e superior da Constituição frente ao ordenamento jurídico
(BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, apud BARBOSA, 2015, p. 1128).

Ademais, a partir de uma nova análise fundada no Novo Constitucionalismo,


as Constituições precisavam proteger as liberdades individuais e os direitos sociais.
Desse modo, existia uma expectativa de redemocratização, de modo que era neces-
sária a elaboração de textos constitucionais garantindo a salvaguarda de direitos e
comprometidos com ideais democráticos, ainda que simbolicamente. Essa linha de
pensamento, após os regimes militares e autoritários dos anos 80, se identificou com o
momento europeu pós-guerra, adotando padrões teórios semelhantes ao constitucio-
nalismo europeu e se coadunavam na estabilidade democrática e fortalecimento dos
direitos humanos (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017).

Em conformidade com Alves (2012), o Novo Constitucionalismo Latino-Ame-


ricano é fruto de reindindicações da população historicamente exluída nesses países,
sobretudo os indígenas, que eram povos originários, os quais foram “colonizados”
pelos europeus

As Constituições do Novo Constitucionalismo apresentam como elemento for-


mal a legitimidade, tendo em vista que foram formuladas a partir da ativa participação
dos cidadãos quando à instituição do Poder Constituinte, os quais são os reais deten-
tores da soberania.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
26

Ademais, as Constituições Latino-Americanas buscam a proteção dos grupos so-


ciais, vítimas de discriminação social, como mulheres, portadores de deficiência, ido-
so, jovens e índios, com o objetivo de assegurar uma ampla proteção a esses grupos
vulneráveis, de modo que a incorporação dos tratados internacionais de direitos hu-
manos também demonstra a preocupação com proteção desses grupos discriminados
(BARBOSA, 2015).

É possível perceber que os movimentos do Neoconstitucionalismo e do Novo


Constitucionalismo Latino-Americano são modelos articulados na jurisdição constitu-
cional em prol da defesa dos direitos humando, constituindo uma ideia de integrida-
de, enquanto elemento fundamental para a organização de poder e ideia de integra-
ção, enquanto elemento de organização dos direitos fundamentais e das liberdades
reconhecidas. O Novo Constitucionalismo absolve alguns comandos do Neoconstitu-
cionalismo, notadamente, a infiltração da Constituição no ordenamento jurídico, além
da preocupação com a soberania, a particiação política e os direitos fundamentais,
inclusive os sociais e econômicos.

Em contrapartida, o Neocontitucionalismo foi erguido como centro da efetivação


da Constituição, equanto que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano prioriza a
participação popular. O modelo europeu apresenta um compromisso com a proteção
à dignidade da pessoa humana e o novo modelo latino-americano aponta uma con-
cepção do bem-viver, com o abandono das propostas totalizantes e uniformizadoras
típicas – racionalidade e individualismo – para modelos novos caracterizados pela
multiplicidade e pelo pluralismo. Há também, com o Novo Constitucionalismo Lati-
no-Americano, novos olhares sobre os direitos fundamentais dos indíviduos e novas
relações entre democracia representativa e participativa, além de novos rumos, numa
tentativa descolonial e intercultural, bem como um novo pensamento sobre a territo-
rialidade.

De acordo com Barbosa (2015), Martinez e Viciano Pastor diferenciam o Novo


Constitucionalismo do Neoconstitucionalismo da seguinte maneira: “enquanto o neo-
constitucionalismo é uma teoria do direito, o Novo Constitucionalismo é uma teoria
da Constituição, resgatando a soberania popular para ativação e reforma da Consti-
tuição”. Nesse sentido, a preocupação predominante do Novo Constitucionalismo é a
legitimidade democrática da Constituição, garantindo ampla participação da popula-
ção.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
27

1.4 CICLOS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-


AMERICANO
1.4.1 Etapas do Novo Constitucionalismo Latino-Americano

Após o longo período de 500 anos de colonização, pós-colonização ou neocolo-


nização, a América Latina passou a valorizar os indívuos originários, como indígena e
negros, sendo que desse novo modelo constitucional, “conforme as palavras de Vieira
(2012) – é possível afirmar que se trata de um constitucionalismo a partir de uma ra-
cionalidade indígena e campesina, dando azo a uma nova conformação sociopolítica
para o Estado” (SILVA; KROHLING, 2015), uma vez que busca o resgate e proteção da
cultura, garantindo direitos a esses povos originários, os quais foram escanteados ao
longo da colonização e pós-colonização. Ademais, os novos processos constitucionais
abriram a possibilidade de repensar a diversidade étnica, cultural, política e epistêmi-
ca dos indíviduos em geral.

Desse modo, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, fundado na diversi-


dade, é fruto de vários ciclos de debates dos seus pensadores, destacando-se três ciclos
quanto ao constitucionalismo pluralista contemporâneo da América Latina. O primei-
ro ciclo é o constitucionalismo multicultura, representado por uma diversidade cultu-
ral e o reconhecimento de uma pluralidade de linguas oficiais, sendo composto pelas
Constituições da Guatemala de 1985 e de Nicarágua de 1987. O segundo ciclo é reco-
nhecido como o constitucionalismo pluricultural, com reconhecimento de tradições e
práticas indígenas como modelo de Estado, sendo representada pelas Constituições da
Colômbia de 1991, do México de 1992, do Equador de 1999 e da Venezuela de 1999. Já o
terceiro ciclo se consubstancia no constitucionalismo plurinacional, com ampla partici-
pação popular na formulação de pautas políticas vinculantes e positivação de direitos
indígenas, inaugurado com o surgimento das Constituições do Equador de 2008 e da
Bolívia de 2009 (SILVA; KROHLING, 2015).

O ciclo do constitucionalismo multicultural apresenta Constituições trazem a in-


drodução do conceito de diversidade cultural, o reconhecimento de uma configuração
multicultura e multilíngue, além do direito à identidade cultural e direitos indígenas.
Nesse ciclo não há uma explicitação do reconhecimento do pluralismo jurídico, en-
tranto, em alguns países onde não havia o direito Constitucional prevendo o plura-
lismo jurídico, haviam normas secundárias, aliviadas pelo Convênio 107 da OIT, que
reconheciam a justiça indígena.

No ciclo pluricultural, as Constituições reafirmam o direito à identidade e diver-


sidade cultural, já assegurados no primeiro ciclo, passando a desenvolver conceitos de

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
28

nação multicultural e Estado plurinacional, classificando a natureza da população e


garantindo avanços em direção a uma redefinição do caráter do Estado.

O pluralismo e diversidade cultural se transformam em princípios constitucio-


nais, permitindo a instauração de direitos dos indígenas, afrodescendentes e outros
grupos. Além do mais, os direitos consagrados com essas Constituições incluem a ofi-
cialização dos idiomas indígenas, a educação bilíngue intercultural, além do direito
sobre a terra. Essas Constituições reconhecem as autoridades indígenas, bem como as
suas normas e procedimentos, com seu direito consuetudinário e funções jurisdicio-
nais ou de justiça.

No terceiro ciclo, as Constituições propõem uma refundação do Estado, partin-


do de um reconhecimento das raízes dos indígenas, os quais foram ignorados após a
fundação da republicana. Os povos indígenas passaram a atuar como agentes políticos
com direito a definir seu destino, se auto-governar autonomamente e participar dos
novos pactos estatais.

Por conseguinte, têm-se a seguinte assertiva de Silva (2017):


Sobre os ciclos de formação do novo constitucionalismo latino-americano é impor-
tante ressaltar as palavras de Wolkmer e Fagundes (2011, p. 403) para quem esse
novo cenário foi construído em três momentos, ou seja, “(...) um primeiro ciclo social
e descentralizador das Constituições Brasileira (1988) e Colombiana (1991). (...) um
segundo ciclo (...) participativo popular e pluralista, em que a representação nuclear
desse processo constitucional passa pela Constituição Venezuelana de 1999”. E um
terceiro ciclo – plurinacional comunitário – “passa a ser representado pelas recentes
e vanguardistas Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009)” (SILVA, 2017,
p. 260).

Desse modo, conforme Barbosa e Teixeira (2017), é possível sintetizar que os ins-
trumentos de democracia direta incluídos nas Constituições do Novo Constitucionalis-
mo Latino-Americano, quais sejam: pebliscito, referendo, iniciativa popular legislativa
e de emendas constitucionais e revogatória de mantos, evidenciam a intensificação dos
mecanismos de participação democrática dos cidadãos, garantindo o seu empodera-
mento.

1.4.2 Modelos constituintes: Colômbia, Venezuela, Equador e Bolívia


1.4.2.1 Constituição da Colômbia de 1991

A Constituição da Colômbia promulgada em 1991 é um exemplo de Constituição


do ciclo do constitucionalismo pluricultural, cujo texto constitucional marcou o perío-
do marcado pelo reconhecimento das minorias, como o caso dos indígenas, além do
surgimento de importante direitos coletivos. O seu artigo 7º contempla uma novida-
de, consubstanciada na consagração de uma nação “pluriétnica e pluricultural”, além

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
29

da instituição de diversas línguas, como o idioma dos povos originários, como sendo
dialeto oficial do país.

Esses direitos previstos na Constituição colombiana de 1991 são resultados dos


esforços e reivindicações de grupo invisibilizados, como os trabalhadores e campone-
ses, em um contexto de desigualdade e pobreza no país. Deste modo, a Constituição da
Colômbia de 1991 pode ser considera como uma inovação em razão de sua proposta
de ruptura e reformulação da ordem política, através da ativação direta do poder cons-
tituinte, o que se repetiu na Venezuela, Bolívia e Equador (LOURENÇO, 2016).

Além do mais, a Constituição da Colômbia assegura um Estado democrático e


pluralista, ampliando mecanismos de participação política. Esta Constituição incluiu
em seu texto, no artigo 103, mecanismos importante de participação direta, como a
iniciativa popular, os referendos para a aprovação de leis e o recall, ou a revogação
dos mandatos.
A Constituição colombiana é, certamente, bastante abrangente no que diz respeito e
a proteção legada aos grupos étnicos e na introdução de mecanismos de participação
direta. Vejamos, pois, como seu texto abre caminho para a discussão da fundação de
um Estado multicultural e plurinacional, em países como o Equador. Este movimen-
to é basilar para que se compreenda o propósito do que se convencionou chamar de
neoconstitucionalismo latino-americano. (LOURENÇO, 2016, p. 7).

Cumpre destacar o caso de colombiano que retrata a garantia de direito ao grupo


das minorias, quando duas jovens são impedidas de entrar em boate de bairro de clas-
se média alta por serem negras. “A Corte Constitucional entende ser caso de racismo
e, pois, de violação do direito à igualdade e à não-discriminação racial e determina
arbitramento de indenização, em virtude da humilhação e da afronta a seus direitos”
(BALDI, 2009).

Ressalta-se, também: a) o direito à saúde garantido a todos, pois as sentenças in-


dividuais se estendem a toda a população afetada e não somente as partes proponen-
tes, mediante a fixação de políticas públicas definidas com a participação da sociedade
civil em audiências públicas, além do b) direito das minorias estendido a todo o grupo,
uma vez que a Corte Constitucional vem guardando simetrias e projeta simetricamen-
te a outros grupos étnicos normas que garantam direitos coletivos para os indígenas.

1.4.2.2 Constituição da Venezuela de 1999

O primeiro processo constitucional de acordo com os postulados do Novo Cons-


titucionalismo Latino-Americano ocorreu na Constituição da Venezuela de 1999, tra-
zendo o referendo ativador do processo constituinte, o referendo de aprovação do tex-
to constitucional, além da rigidez para a reforma constitucional, de modo que o poder
constituinte derivado não possa reformar a Constituição da Venezuela.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
30

A Constituição da Venezuela de 1999 teve o poder constituinte ativado pelos


cidadãos por meio de consulta popular e, posteriormente, estabelecido o texto consti-
tucional pela assembleia constituinte e referendado pela população. Nesse sentido, as
emendas constitucionais posteriores seguiram a lógica da ratificação popular (BAR-
BOSA, 2015).

De acordo com Barbosa (2015), é possível identificar duas formas de participação,


através do texto constitucional venezuelano de 1999, sendo a participação de represen-
tantes eleitos pelos cidadãos e a participação direta dos cidadãos. Quanto ao primeiro,
a Constituição prevê a eleição de representantes em processos eleitorais entre partidos
políticos e a eleição de representantes eleitos entre organizações distintas dos partidos
políticos. Quanto ao segundo, a Constituição prevê a participação direta dos cidadãos
na tomada de decisões políticas, econômicas e sociais da sua nação, constituindo uma
inovação da Constituição de 1999.

Essa Constituição merece destaque com relação ao Novo Constitucionalismo La-


tino-Americano, tendo em vista a participação popular que foi determinante no pro-
cesso de ruptura com o constitucionalismo “puntofijista” para instauração da Cons-
tituição, além dos debates realizados tanto ao longo do processo como na ratificação
final do texto constitucional.

1.4.2.3 Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009

As constituições do Equador e da Bolívia também romperam com o modelo tra-


dicional e efetivamente incorporaram cosmovisões indígenas e de luta descolonial.

A Constituição equatoriana de 2008 foi aprovada através de referendo, sendo a


vigésima Constituição do Equador, considerada uma das mais avançadas para o país.
Esta Constituição contempla temas como “economia solidária, plurinacionalidade,
preocupação socioambiental, instrumentos de democracia direta e participativa, ati-
vação do poder constituinte pelos cidadãos equatorianos, dentre outros” (BARBOSA,
2015).

As modificações primordiais são frutos de intensas mobilizações e luta dos po-


vos indígenas, como o seu senso coletivo de identidade, representando significativos
avanços do texto constitucional. Essa Constituição afirmou a soberania popular, tanto
no processo de sua construção, em aspectos formais, como em seu conteúdo democrá-
tico e inclusivo.

Houve uma enorme inovação dos textos constitucionais de Equador e Bolívia


quanto a afirmação e o reconhecimento da cultura e direitos das comunidades indí-
genas, junto com os brancos e os negros. Inclusive, o texto constitucional equatoriano
Newton Nobel Sobreira Vita
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
31

possui uma clara intenção intercultural e descolonial, buscando romper com o consti-
tucionalismo eurocêntrico tradicional. Nesse sentido, esclarece a autora Barbosa (2015):
O preâmbulo do texto constitucional equatoriano anuncia uma nova maneira de con-
viver harmonicamente com a natureza para alcançar o Sumak Kawsay (kichawas)
ou Suma Qumña (aymaras), para alcançar o equilíbrio ou a plenitude. O “buen Vi-
vir” é previsto no art. 14 da constituição, que reconhece o direito de todos a viver
em um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado. A noção de “buen
vivir” pretende refundar o Estado a partir de uma perspectiva de coordenação e de
consenso, sem excluir aspectos das culturas europeia ou africana. É uma perspectiva
que visa o interesse geral em detrimento do interesse particular em nome do bem
viver. O Estado se arvora no dever e a competência de executar politicas públicas e
serviços públicos orientados de maneira a efetivar o “buen vivir” no artigo 85.1 da
constituição. (BARBOSA, 2015, p. 99-100).

Do mesmo modo, a Constituição da Bolívia traz inovação ao se denominar Es-


tado Plurinacional da Bolívia, de modo que o pluralismo é a sua principal novidade,
buscando contemplar toda a diversidade étnica, econômica e política da sociedade
(BARBOSA, 2015). Esse Estado Plurinacional da Bolívia objetiva a descolonização do
poder, partindo de uma ruptura com o modelo constitucional anterior excludente,
contemplando a diversidade e subjetividade de seus povos empoderando os cidadãos
para distribuir o exercício do poder.

É evidenciada a característica de diversidade no texto constitucional boliviano,


pois contempla as diversas línguas nacionais, com o intuito de reconhecimento dos
direitos previstos aos povos do país, com a inclusão da esfera simbólico-linguística dos
diversos povos e nações na dimensão ética de legitimação política do Estado.

1.5 NOVO CONSTITUCIONALISMO NO BRASIL

Em que pesem alguns autores exemplificarem a Constituição Brasileira de 1988


como Novo Constitucionalismo Latino-Americano, o processo constituinte brasileiro
que originou a Constituição de 1988 não cumpriu os requisitos exigidos por deter-
minados autores para se enquadrar no Novo-constitucionalismo Latino-Americano,
sobretudo, em razão da ausência de consulta popular para ativação do Poder Consti-
tuinte brasileiro, bem como a ausência de ratificação popular do projeto final da Cons-
tituição do Brasil de 1988.

De acordo com Viciano e Dalmau (2011), o Processo Constituinte Brasileiro que


originou a Constituição de 1988 não cumpriu os requisitos que caracterizam o Novo
Constitucionalismo Latino-americano, uma vez que houve a participação de represen-
tantes da didatura militar que macularam a instauração do Poder Constituinte, diante
da ausência de consulta popular, bem como a ausência de ratificação popular do seu
projeto final.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
32

Por esas dos razones, no creemos que pueda considerarse un ejemplo del nuevo
constitucionalismo latinoamericano a la Constitución brasileña de 1988, a pesar de
que presenta rasgos específicos que anuncian lo que serán las apuestas centrales de
ese nuevo paradigma constitucional. (VICIANO PASTOR; MARTINEZ DALMAU,
2011, p. 318).

Ademais, é importante elucidar o posicionamento do STF, decidindo sobre a ter-


ra indígena Raposa Serra do Sol, delimitando que apenas são terras indígenas as ocu-
padas por índios na data da promulgação da Constituição e a proibição de expandir
as áreas demarcadas e a determinação de que os direitos dos povos indígenas não
se sobrepõem a questões de segurança nacional. Além disso, consignou que apenas
as ações de controle concentrado de constitucionalidade e súmulas vinculantes têm
efeitos para além das partes em litígio. As demais aplicam-se apenas aos casos con-
cretos. Por conseguinte, as salvaguardas de maior polêmica foram as de proibição de
ampliar a área demarcada e a de escolher a promulgação da Constituição como marco
temporal para declarar um pedaço de terra como indigena.

Destarte, ainda é importante ressaltar o julgamento do STF, acerca da posse de


terras às comunidades quilombolas. O partido DEM contestou o decreto 4.887/2003,
editado em 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que regulamentou a
concessão de terras para comunidades negras tradicionais que vivem em áreas conhe-
cidas pela resistência à escravidão no passado. Em 2012, quando a análise teve início
na Corte, o relator, ministro Cezar Peluso, votou a favor da anulação total do decreto,
por entender que cabia somente ao Congresso estabelecer as regras. Mas prevaleceu o
entendimento de Rosa Weber, apresentado em 2015, que declarou a validade do De-
creto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanes-
centes das comunidades quilombolas.

1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Novo Constitucionalismo Latino-Americano está intimamente ligado ao tema


pluralismo, trilhando caminho distinto do constitucionalismo tradicional europeu,
uma vez que reconhece a necessidade de reformular as Constituições a partir da expe-
riência latino-americana e enaltecendo a singularidade da história do continente andi-
no, buscando uma sociedade mais democrática, multicultural e intercultural, além de
incentivar um caráter descolonizador, experimental e diverso das práticas constitucio-
nais tradicionais.

Esta nova concepção de constitucionalismo promoveu a inclusão dos povos que


estavam esquecidos após a colonização, uma vez que o processo de independências
dos países latino americanos representaram poucas mudanças quanto à colonização,

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
33

pois estava centrada no modelo europeu tradicional, assegurando direitos apenas a


homens brancos capitalistas.

Diante disso, a partir do Novo Constitucionalismo Latino-Americano foi possível


assegurar direitos e garantias aos grupos excluídos da sociedade, sobretudo os indíge-
nas, povos originários que tiveram as suas terras tomadas pelos europeus.

Além do mais, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano possibilitou a ma-


nifestação de vontade popular, abrangendo toda a pluralidade de composição, diver-
samente do que acontecia anteriormente à esse pensamento constitucional, quando a
participação popular era restrita a uma fraca e imprecisa representação.

Nesse sentido, o Novo Constitucionalismo da América Latina propõe um Esta-


do plurinacional, representando a nação e assegurando os mais diversos direitos dos
cidadãos, tendo em vista que o Estado é composto por diversidade de interesses e cul-
tura. Assim, pode-se dizer que o Novo Constitucionalismo é o Estado plurinacional,
que reconhece a pluralidade social e jurídica, respeitando e assegurando os direitos de
todas as camadas sociais.

REFERÊNCIAS
BALDI, César Augusto. Direito constitucional e colonialismo interno. MPF. 2009.
Disponível em: < http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-
-publicacoes/artigos/docs/artigos/docs_artigos/constitucionalismocolonial.pdf>.
Acesso em: 28 jul. 2018.

BARBOSA, Maria Lúcia. Democracia direta e participativa: um diálogo entre a demo-


cracia no Brasil e o novo constitucionalismo latino americano. 2015. 218 f. Tese (Douto-
rado em Direito), Universidade Federal da Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2015.

BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Neoconstitucionalismo e Novo


Constitucionalismo Latino Americano: dois olhares sobre igualdade, diferença e parti-
cipação. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, v. 08, n. 2, p. 1113-1142, jan. 2017.

BERNARDES, Juliano Taveira. Constitucionalismo, direito constitucional e Consti-


tuição. Jus Brasil. 2012. Disponível em: <https://julianobernardes.jusbrasil.com.br/
artigos/121934252/constitucionalismo-direito-constitucional-e-constituicao>. Acesso
em: 24 jul. 2018.

CONTRAMARE.NET. Modernidade/Colonialidade: Decolonialidade. 2015. Dispo-


nível em: <http://www.contramare.net/site/pt/modernitycoloniality-decoloniali-
ty/>. Acesso em: 22 jul. 2018.

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estu-


dos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade glo-
bal”. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 80, p. 115-147, mar. 2008.

Capítulo 1
A CRÍTICA DECOLONIAL E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
34

LANGOSKI, Deisemara Turatti; BRAUN, Helenice da Aparecida Dambrós. Novo


Constitucionalismo Latino-Americano: O Pluralismo Jurídico e a Perspectiva Inter-
cultural dos Direitos Humanos. Florianópolis, Anais do XXIII Encontro Nacional do
CONPEDI. 2014. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?co-
d=8d566a338d7758ba>. Acesso em: 26 jul. 2018.

LEDA, Manuela Correa. Teorias Pós-Coloniais e Decoloniais: para repensar a sociolo-


gia da modernidade. Temáticas, Campinas, v. 23, n. 45/46, p. 101-126, fev./dez. 2015.
Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/tematicas/article/
view/2317/1729>. Acesso em: 22 jul. 2018.

LOURENÇO, Joyce Louback. O Constitucionalismo e as experiências democratizan-


tes na América Latina: um estudo comparativo entre as Constituições do Brasil, Co-
lômbia e Equador. Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América
Latina. 2016. Disponível em: <https://sites.usp.br/prolam/wp-content/uploads/si-
tes/35/2016/12/Joyce_Lourenco_II-Simposio-Internacional-Pensar-e-Repensar-a-A-
merica-Latina.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2018.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subal-


ternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

________. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonia-


lidad y gramática de la descolonialidad. Argentina: Ediciones del signo, 2010.

SANTOS, Gustavo Ferreira. Neoconstitucionalismo, poder judiciário e direitos fun-


damentais. Cutitiba: Juruá, 2011.

SILVA, Heleno Florindo da. O Novo Constitucionalismo democrático e plural Lati-


noamericano e a busca pelo Buen Vivir: O Direito à Diversidade e seu debate contem-
porâneo na América Latina. Conpedi. 2017. Disponível em: <https://www.conpedi.
org.br/publicacoes/qu1qisf8/1j3ng77c/JMpx5232Unz9SBSj.pdf>. Acesso em: 27 jul.
2018.

SILVA, Heleno Florindo da; KROHLING, Aloísio. O Novo Constitucionalismo La-


tino-Americano: por uma epistemologia do ser a partir da América-Latina (Sul). De-
recho y Cambio Social. 2015. Disponível em: <https://www.derechoycambiosocial.
com/revista042/O_NOVO_CONSTITUCIONALISMO_LATINO-AMERICANO.
pdf>. Acesso em: 27 jul. 2018.

SOBRINHO, Emílio Gutierrez. Aspectos teóricos do movimento neoconstitucional. Re-


vista Jus Navigandi, Teresina, ano.17, n. 3319, ago. 2012. Disponível em: <https://jus.
com.br/artigos/22345/aspectos-teoricos-do-movimento-neoconstitucional>. Acesso
em: 25 jul. 2018.

VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Fundamentos teóricos


y prácticos del nuevoo constitucionalismo latinoamericano. In: Gaceta Constitucio-
nal, nº 48, p. 307-328, 2011.

Newton Nobel Sobreira Vita


CAPÍTULO 2

DO PROTAGONISMO JUDICIAL E
FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL

Rodrigo Ramos Melgaço1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.2

1 Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pós-graduado em direito público na
Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Juiz de direito no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
36

RESUMO

A expansão global do Poder Judiciário conferiu uma acepção protagonista em


ascensão antes mesmo do constitucionalismo contemporâneo, que apenas
qualificou a recepção do art. 5º, XXXV da CF, que passou a ser visto como uma válvula
de liberalidade, flexibilização jurisdicional em seu proceder, formal e material, sobre-
tudo diante da indeterminabilidade da linguagem, levando-se, então, a uma perda de
integridade do direito, afinal, flexibilidade chama flexibilidade.
Palavras-chave: Protagonismo judicial; Formalismo processual; Integridade do direi-
to; Flexibilização.

2.1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal não pode ser tida como mais uma manifestação de poder,
existente apenas pela necessidade da exteriorização de força e autoridade que lhe é
ínsita originariamente, do contrário acaba sendo mass um ato despido de efetividade,
causando um arrefecimento não apenas de seus comandos, como também da auto-
nomia da ordem jurídica, onde o escopo principal é a exteriorização para o controle
do poder com seu poder em si, não sendo diferente com o importante e questionado
tema do protagonismo judicial e do formalismo processual, que vem acarretando efei-
tos transcendentes, com reflexos econômicos, políticos e sociais, que de forma alguma
podem obstar a incidência da inafastabilidade da jurisdição prevista em seu art. 5º,
XXXV, da Constituição Federal.

Muito se falou e se fala até os dias atuais sobre formalismo no processo civil, den-
tro do qual se encontram como vetores antagônicos a rigidez e a flexibilização, sendo
que incidentalmente se fala sobre o tema protagonismo, sobretudo o judicial, tema
pouco abordado em termos de doutrina processual civil, ao menos de forma profunda,
temática sempre abordada quando se questiona a atuação jurisdicional em concreto,
ao menos tempo que quase nunca é tratado quando há consonância subjetiva com o
comando judicial prolatado.

Sobre a crescente onde da flexibilização formalista e do protagonismo judicial se


denota sua consonância sobre o manto neoconstitucionalista, sob um viés valorativo,
ao passo que esses movimentos se alteram de acordo com o momento, afinal, estamos
num instante, como em outros pretéritos, em que se questiona o empoderamento con-
ferido a algum dos sujeitos do processo, no caso aos juízes, ainda que já tenha sido
diversa essa onda, e, certamente não será a última, mas apenas e tão somente mais
uma fase circular, ainda mais quando se tem em mente a liberdade e a autonomia da
vontade.

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
37

Reflexo disso pode se ver nas reformas legislativas dos últimos tempos, dentre
das quais se incluem não apenas a lei de abuso de autoridade e o pacote anticrime,
mas também o Código de Processo Civil, ao qual não dão tanta ênfase neste aspecto ao
menos, pois acarreta em reflexos de pouco holofote pelo caráter preponderantemente
privado das relações, por isso, pouco se fala que não na atuação dos nosso tribunais
superiores, que tem sua relevância e grandeza, porém, que reflete apenas uma peque-
na parcela do Poder Judiciário em âmbito nacional.

É nítido que hodiernamente se questionam sobremaneira a atuação da parte dos


juízes, evidentemente sempre pelo lado dos prejudicados ou dos meios de comunica-
ção, afinal, sempre há os dois lados, e, portanto, aqueles que comemoram de um lado
não são os mesmo que o questionam, e, às vezes até estes questionam, trazendo à baila
uma insatisfação com o Poder Judiciário.

Diante de tudo isso, e da concatenação sucessiva do tema formalismo e protago-


nismo é que tratarei dos assuntos de forma sucessiva e interligada, atentando-se que
se fala muito atualmente sobre afastar o protagonismo judicial, apenas sendo ignorado
que em contraposição se aponta por demais que o Poder Judiciário não pode fechar
os olhos para a atuação ativa ou passiva muitas dos demais poderes, onde entram
questões como judicialização da política ou da megapolítica e outras vertentes, todas
ou quase todas decorrente da transição a uma juristocracia, identificada por alguns
como teoria do protagonismo (COSTA NETO, 2017, p.162) da parte é claro do Poder
Judiciário, eis a relevância do tema, ainda mais quando se trata de matéria pautada no
afastamento da conduta defensiva da partes dos juízes no processo civil.

2.2 PROTAGONISMO JUDICIAL

Aos que sustentam a legitimidade do protagonismo judicial o classificam como


Sánchez-Cruzat, ou seja, como revalorização da independência judicial (COSTA
NETO, 2017, p. 135).

É inegável que a evolução de diversos movimentos foram importantes para o


estágio atual, desde a inércia praticamente indene de dúvidas dos magistrados, como
também ao empoderamento judicial crescente, ainda mais quando se aprofunda os
motivos ensejadores dos momentos, que demandaram o que se chama de progresso
do sistema, e como em todos os demais momentos advém a necessidade de revisão da
temática, sejam pelos questionamentos, como também pela necessidade constante de
aperfeiçoamento, e, claro, pela complexidade das pessoas que não atrofia, pelo contrá-
rio, eis o principal fator ensejador do movimento circular de empoderamento.

Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
38

O tema protagonismo não é recente, muito menos adstrito ao judicial, e ao mes-


mo tempo jamais deixa de ser atual, pelo próprio fato da ciência do direito, não por
outra razão jamais se alcançou a determinabilidade essencial para se falar em previsi-
bilidade, tal almejada e simultaneamente reprimida pelo próprios passos classificados
como avanços.

Não são outras as palavras do professor Leonardo Brandelli ao apresentar o tra-


balho “protagonismo judicial”, quando afirmou que “Direito e lei não necessariamente
coincidem, embora geralmente sim. Da mesma forma, o aplicador da lei não está ads-
trito à sua interpretação literal (...)”(COSTA NETO, 2017, p. 15), sendo este um ponto
relevante, pois há vasta discussão sobre aplicação e interpretação e sua cisão ou não. 

É inequívoco que no século XX houve avanços no tocante aos direito de segun-


da dimensão, com a otimização dos direitos sociais como resposta ao capitalismo em
meio à revolução industrial do século XIX, pautado nos ideias liberais, advindo daí a
necessidade de se interferir nas relações entre sociedade e economia, para dar um con-
trapeso ao capitalismo e à não intervenção, advindo, então, regulamentações, numa
verdadeira aposta legislativa para com o bem estar social. 

Já a partir da segunda metade do século XX e com o aumento da complexidade


surgiu a necessidade de outras modalidade de direitos, sendo que os individuais e os
sociais não mais bastavam, sendo então desenvolvimento direitos de terceira dimen-
são, que se pautou em interesses coletivos, trazendo reflexos sobre o direito proces-
sual civil, não necessariamente na expansão de poderes processuais, e sim pela maior
judicialização das matérias e consequente margem ao criativismo judicial, afinal, se
estaria diante da insuficiência da subsunção, o que acabou na visão de juristas renoma-
dos como Mauro Cappelletti defendendo a concessão de margem para a criatividade
judicial, a partir de um maior grau de discricionariedade, sobretudo considerando as
normas programáticas, alterando-se de Estado legislativo em Estado Administrativo,
além da insuficiência do Poder Legislativo e Executivo, como dois gigantes, e, via de
consequência trouxe papel de destaque ao Poder Judiciário, com ênfase na responsabi-
lidade jurídico política (HERZL, 2017, p. 51-53).

Esse movimento centrípeto aos juízes tiveram como ponto de partido o ideal de
que as decisões judiciais seriam a única fonte do direito, como alguns até hoje susten-
tam, pois apenas sua atuação poderia conferir concretude jurídica às regras legais, e a
este movimento se classificou de realismo jurídico. 

De outra parte inequivocamente houve o movimento de constitucionalização de


direitos, conferindo ao judiciário função bem além da mera subsunção, elevando a
função dos princípios e valores, fomentando a criação de diversas teorias da argumen-
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
39

tação jurídica em prol da interpretação constitucional, e, processualmente desenvol-


veu-se a instrumentalismo processual, sob o argumento de que o processo não seria
um fim em si mesmo, assim, segundo Mauro Cappelletti o direito e a técnica proces-
sual deveriam servir ao direito material, seu objeto (HERZL, 2017, p. 57-58). 

Eis então o prisma pautado no protagonismo judicial, a partir da segunda metade


do século XX, que alguns entendem como algo inato à própria atuação judicial, e que
seriam os juízes protagonistas do Direito tão somente pelo fato de serem juízes, logo,
não caberia escolha àquilo que se impõe, mesmo diante de um positivismo jurídico ou
codificação, senão sua figura como agente estatal seria redundante e reducionista se
exercida de forma passiva, que seria contrária à imposição do próprio Direito (COSTA
NETO, 2017, p. 09).

Como se pode ver, há vozes sustentando que a noção de ativismo, em especial


a atrelada à atuação do juiz no processo vai cedendo espaço para um atuação jurisdi-
cional ainda mais incisiva e qualificada, que não ficaria adstrito ao campo apenas do
processo, para atingir também o direito material, com a finalidade de se alcançar a jus-
tiça, do justo concreto, pautado na concepção publicista do processo (COSTA NETO,
2017, p. 134).

Portanto, a sustentação é no sentido de que seria melhor aceitar a prática e tra-


balhar em estabelecer limites, diante de uma inequívoca responsabilidade política e
participação social dos juízes, na condição de fenômeno recente, visto que até a metade
dos anos 1970 não se via necessidade de criação judicial do Direito, até o advento do
Estado de Bem-Estar Social, quando então passou a se ver juízes legisladores, se de-
bruçando sob o manto da incapacidade dos demais Poderes e nas lacunas da ordem
jurídica (COSTA NETO, 2017, p. 136).

No direito processual civil a conjuntura não é diversa, assim, é crescente a ques-


tão da flexibilização ao formalismo, atualmente até positivado em algumas passagens
do Código de Processo Civil, embora em outros momento ainda venha sendo decor-
rência do protagonismo judicial, que processualmente é mais bem rememorado sob
a classificação da instrumentalização do processo, a partir de Candido Rangel Dina-
marco, discípulo de Enrico Tullio Liebman, que encontra consonância até mesmo no
o jurista Italiano Mauro Cappelletti, ao trabalhar com a publicização do processo e
afastamento ao protagonismo das partes na relação processual.

2.3 FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL

Quando se fala em formalismo logo vem em mente a questão envolvendo a for-


ma, embora aquele não se confunda com esta.

Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
40

Por formalismo processual tem-se uma inequívoca ferramenta de controle do Esta-


do, mitigando a atuação deste nas relações privadas através de rígidas fixações legais,
que eivam ou eivavam a depender do ponto de vista a um processo extremamente
rígido, ao menos sob o prisma formal, assegurando-se às partes o protagonismo do
processo, assim como concedendo-lhes o controle de excessos da parte do julgador
(FARIA, 2016, p. 121).

Por sua vez, a forma em sentido estrito nada mais é, nas palavras de Carlos Al-
berto Alvaro de Oliveira (2003, p. 5) “o invólucro do ato processual, a maneira como
deve este se exteriorizar; cuida-se portanto do conjunto de signos pelos quais a vonta-
de se manifesta e dos requisitos a serem observados na sua celebração. De outra parte
é importante também a abordagem da acepção formalidades, que são as condições não
intrínsecas ao ato, equivalendo à forma em sentido amplo, de forma a “implicar a to-
talidade formal do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas
especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos proces-
suais” (OLIVEIRA, 2003, p. 6).

Destarte, forma em sentido amplo seriam os lindes entre o início, desenvolver e o


fim do processo, ordenando e fixando os limites de atuação dos sujeitos, seja da parte
do Estado, como das partes, resguardando-se uma aparente igualmente.

Como já dizia Enrico Tullio Liebman, “as formas processuais correspondem a


uma necessidade de ordem, certeza e eficiência” enquanto que “o formalismo é ne-
cessário no processo, muito mais que nas outras atividades jurídicas. Por outro lado
é necessário evitar, tanto quanto possível, que as formas sejam um embaraço e um
obstáculo à plena consecução do escopo do processo; é necessário impedir que a cega
observância da forma sufoque a substância do direito” (LIEBMAN, 1980, p. 290). 

Nunca é demais lembrar ainda as sábias palavras de José Carlos Barbosa Morei-
ra, quando afirmou algo que parece óbvio, porém, que não é tido como tal no dia a dia
forense, ou seja, “não há fórmulas mágicas” (MOREIRA, 2000), e, tamanha a sapiência
desta colocação que foi ela alocada, insculpida na exposição de motivos do Código de
Processo Civil pátrio atualmente em vigor.

Como não poderia ser diferente, a busca por um processo imbuído de celeridade
e efetividade tem sido um foco constante pelas reformas legislativas, sejam em paí-
ses de tradição romano-germânica, como também nos de origem anglo-saxã, havendo
nitidamente um avanço não apenas quantitativo, mas também qualitativo da litigio-
sidade, fator que acabou demandando respostas à resolução da necessidade crescen-
te, chamando atenção, então, a uma necessidade por uma flexibilização ao rigorismo
procedimental, com a finalidade de concatenação do direito material ao direito proces-
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
41

sual, já sendo evidente que excesso de rigidez é contraproducente, sem desconsiderar


a importância da evolução e acompanhamento da crescente complexidade social.

Essa nova era enfatiza apenas a atenção ao conteúdo em detrimento da forma,


que alguns chamam de adaptabilidade abstrata para uma adaptabilidade concreta, ou
mesmo modelo da pluralidade das formas, segundo Calamandrei, para uma adapta-
bilidade in concreto (OLIVEIRA, 2018, p. 20).

A rigidez processual teve sua razão de ser em face do risco de abusos, conferin-
do, então, segurança às partes, o que não é o contexto atual, ou melhor, se alterou o
âmbito de risco, em virtude da insuficiência da rigidez, que em sede do projeto do Có-
digo de Processo Civil italiano enalteceu os poderes do juízes na condução do processo
e como resguardador de interesses sociais em detrimento dos individuais, porém, sem
aumentar a indeterminação do poder, ou mesmo concedendo-lhe poder discricioná-
rio, denegando a transferência do poder de  criação aos juízes de regras processuais,
enquanto Chiovenda já defendia um modelo processual orientado pela informalidade
e concentração de atos,  com o projeto do Código italiano prevendo um procedimento
adaptável ao caso concreto. (OLIVEIRA, 2018, p. 20). 

É importante ter em mente a compreensão do que justifica a temática formalismo


na atividade processual, sendo que a atenção com a forma assim como a morosidade
da tramitação dos processos chamam atenção à história processual, sobretudo pela
interligação direta e dependência do reconhecimento de direitos tido como subjetivos,
que se dá a partir da tutela jurisdicional realizada a partir do processo, este eivado
de autonomia e abstratismo, ao contrário da fase concretista, ultrapassada em nosso
sistema.

Como se pode ver, o formalismo processual passou pela fase da indiferença ou


irrelevância da função individual do juiz a partir da centralização do princípio dispo-
sitivo, ainda centrado na desconfiança da atuação estatal, até o momento em que se
atentou que isso corresponderia a cotejar o formalismo como inviabilizador do alcance
do direito subjetivo, que poderia perecer diante da atenção especial a ritos (FARIA,
2016, p. 113-114).

Assim, passou-se a permitir que o juiz investigasse de ofício os elementos de


fato alegados pelas partes, sendo que tal permissão deu-se em virtude do intento de
mitigar a atuação dos advogados e pelas condições pouco satisfatórias da justiça civil,
quando então concedeu-se mais poderes aos juízes, sendo que o Estado Liberal teve
influência direta do constitucionalismo, que, concedeu supremacia ao indivíduo em
contraposição à necessidade de limitação do poder do Estado, permitindo-se, assim,

Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
42

que os indivíduos pudessem influenciar diretamente na estruturação do Estado em


prol dos próprios interesses (FARIA, 2016, p. 115).

A atenção, então, estava voltada para conceder a igualdade das pessoas perante
a lei, sob um viés eminentemente formal, sendo esse o prisma do liberalismo, ou seja,
sob um enfoque ao menos abstrato de igualdade, nem sempre visto no plano fático,
afinal o Estado estaria eivado de abstenção, que para o processo se refletiria numa
perspectiva de imparcialidade e postura passiva do julgador, ainda mais sendo o pro-
cesso tido como coisa das partes, portanto, o protagonismo seria das partes, incumbin-
do a estas até mesmo o impulso processual.

Eis a relevância da liberdade, que nas palavras de Ricardo Alexandre da Silva


(SILVA, 2018, p. 40) é o “elemento central da dignidade humana”, sendo o processo
um “instrumento de proteção da liberdade”, prosseguindo ao enfatizar que “a liber-
dade não é apenas um possível objeto da tutela jurisdicional, mas também um dos
elementos atuantes no âmbito do processo”, afinal, demandam a provocação.

Em termos literais, o indivíduo apenas é livre quando for possível escolher en-
tre opções e condutas das mais variadas com o intuito de que seus objetivos sejam
alcançados, sendo que poderá haver limitação pelo Estado apenas com a finalidade
do atingimento ao bem comum, não sendo outra a função do Direito, na condição de
poder, ou seja, a delimitação da atuação de cada um, de forma a não vulnerar a liber-
dade, e, portanto, o direito de outrem, sempre observadas as limitações constitucionais
que pudesse acarretar limitação da liberdade em seus vieses rígidos, como é o caso de
liberdade religiosa. 

A liberdade resta bem delineada em dois princípios basilares do processo civil,


previstos inclusive no Código de Processo Civil em seu artigo 2º, ou seja, o princípio
da demanda e o princípio dispositivo, sendo que do primeiro se tem a liberalidade da
pessoa de provocar o judiciário, para que este valore sua pretensão, enquanto que o
princípio dispositivo nas palavras de Fritzsche significa que o juiz não pode agir clan-
destinamente, assim,  seria ele apenas o homem a quem se teria conferida a honra de
decidir as relações entre cidadãos livres e suas relações litigiosas, destarte, o fato de
pedir tutela ao Estado não acarretaria renúncia ao benefício que lhe concede a própria
relação, logo, o juiz não seria autorizado a se intrometer nas relações, portanto, para
se ter um conceito correto de liberdade do cidadão cumpre antes de mais nada que
se deixe este dirigir-se sozinho, com dispositividade de seus assuntos jurídicos priva-
dos(FARIA, 2016, p. 119).

Dessa forma, já houve a relevância de um processo dominado pelas partes, com


o juiz sendo um expectador imparcial. Contudo o caráter liberal apresentou-se insufi-
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
43

ciente aos anseios, sobretudo quando se trata de agilidade e barateamento, sendo que
a finalidade primordial é que as partes permaneçam dentro dos limites da lei, portan-
to, sob este prisma os equívocos da persecução não poderiam ser atribuídos ao juiz,
pois o poder judicial estaria limitado pela lei (TROLLER, 2009, p. 46).

Neste contexto, restava a liberdade do Estado mitigada, principalmente em se


tratando de casos de interesse puramente pessoais, respeitando-se, portanto, as reivin-
dicações liberais dos indivíduos, redundando, então, numa restrição de ingerência do
Estado na vida privada, e, consequentemente, no processo, tido neste momento como
coisa das partes.

Enquanto coisa das parte, o processo precisa ser visto em confronto ao viés pri-
vatista, e, partindo-se da autonomia privada na condição de poder, que estaria sendo re-
conquistado diante de um exagero do publicismo estatista, para retirar do Estado essa
condição de protagonista na estruturação do processo, para que assim seja substituída
por procedimentos que permitam aos indivíduo regular seus interesses, assim, o pro-
cesso deixaria de ser coisa das partes, muito menos coisa do juiz, e sim, coisa para as
partes (RAATZ, 2019, p. 178-179).

Uma indagação que acarretou em se tornar o liberalismo processual um sistema


degenerado foi a maior facilidade de se tornar o processo um jogo, acarretando em
uma crise a partir do momento em que a liberdade individual das partes não estava
sendo capaz de atingir o escopo de pacificação social, o que justificou o restabeleci-
mento da autoridade estatal a ser manifestada pelo Estado-Juiz, situação que se acen-
tuou já no curso do século XIX.

O declínio do liberalismo processual teve início com a Ordenança Processual Ci-


vil alemã de 1877, sendo que a superação do formalismo veio com a introdução da
oralidade e com o livre convencimento do juiz no processo, aquela por demais comedi-
da, em face da rigidez ainda impregnada, então, apenas eram tidos como atos orais os
praticados em audiência, enquanto que a soberania do juiz não trouxe o resultado que
se esperava em termos de agilização, diante do que adveio o afastamento das fórmulas
supérfluas (FARIA, 2016, p. 125).

De qualquer forma, como foi visto, nem mesmo a concessão de mais poder ao
juiz bastou ao desiderato almejado, portanto, adveio a reforma de Bellot, na primeira
década do século XIX, conferindo ao juiz um papel ativo no processo, incluindo pode-
res até mesmo para investigar fatos, não se atentando para a morosidade processual,
mas sim para uma forte condução do processo pelo magistrado, com o juiz passando a
condição de colaborador, sendo que estaria transgredindo seu dever de juiz se restas-

Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
44

se passivo mesmo com a deficiência da situação fática que pudesse causar injustiça à
parte desfavorecida pela situação (TROLLER, 2009, p. 56).

Outra das inúmeras inovações foi o fim da prova legal, tida como teoria da prova
formal, ampliando-se, então, a liberdade de apreciação das provas.

Assim, a expansão do Poder Judiciário não é decorrência de voluntariedade de


seus membros, sendo fator fixado a partir da evolução instituto jurídico processo e seus
sistemas, assim como em face do movimento constitucionalista demandando mais que
abstração, não se podendo vislumbrar um Estado constitucional sem segurança jurí-
dica e sem equidade diante do direito, pois o Estado de direito é caracterizado pela
forma constitucional, em um ciclo de participação no processo que reflita os direitos
fundamentais (WELSCH, 2016, p. 84). 

Portanto, se denota a insustentabilidade de ideais liberais e do formalismo pro-


cessual como cernes do controle da atuação estatal no âmbito processual na esfera pri-
vada, deixando claro, então que não soaria adequada a acepção processo como coisa
das partes, ao mesmo tempo que é preciso mitigar uma publicização em demasia, sob
pena de afastar o maior bem das pessoas, qual seja, a liberdade, sem que permita, ain-
da a instauração de jogos entre as partes, o que apenas é possível se houver uma pre-
visibilidade, que é uma questão das mais criticadas no âmbito jurídico e extrajurídico,
eis então a necessidade de se trabalhar com a indeterminabilidade do Direito.

2.4 INDETERMINABILIDADE DO DIREITO E RESPOSTA


ADEQUADA

É aspiração de longa data por uma previsibilidade, sem que se suplique eviden-
temente o retorno ao domínio da classe burguesa da França e seu modelo de Estado
liberal monopolizado normativamente. Contudo, o anseio por uma previsibilidade ou
determinabilidade do Direito é premente, seja para atender a primas sociais, como
também econômicos.

 A indeterminabilidade do Direito desde sempre levantou indagações, que vão


desde a existência da possibilidade ou não de se encontrar uma resposta adequada ao
um caso, e até mesmo a quem competiria suprir o espaço de vagueza, ou de incerteza
como prefere Lenio Luiz Streck, que defende uma incidência filosófica no direito, e
não uma filosofia do direito,  o que ficaria ainda mais latente com a superação de um
modelo de regras, diante da qual surgem teorias jurídicas em prol das respostas sobre
a indeterminabilidade do direito (2017, p. 360). 

Assim, a partir de uma hermenêutica filosófica seria possível no entendimento


de Streck alcançar um resposta adequada à Constituição Federal do ponto de vista
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
45

hermenêutico, questionando posicionamentos que possam levar a múltiplas respostas,


o que poderia e acabaria levando a uma discricionariedade, arbitrariedade ou mesmo
decisionismo, dando ênfase, então à situação concreta, conteudista.

Em contraposição  é o sustentado por Habermas, para quem a resposta correta


seria aferida contrafaticamente a partir da legitimidade da atuação estatal pautado
na normatização das experiências, logo, demonstrando que seria conclusão contrária
à conteudista, afinal, não seria relevante a qualidade dos argumentos e sim a estru-
tura do processo argumentativo, assim, foi que Streck questiona a solução única que
Habermas defende, sustentando isso em nos próprios apontamento de Habermas, o
que levou Streck a apontar que um ideal pela norma perfeita seria metafísico. 

É neste momento que torna importante rememorar manifestações diversas, as


quais nem demandam aprofundamento, bastando analisar a questão da ampliação da
difusão da aplicação de valores e a elevação do Poder Judiciário como centralizador
das expectativas do Direito a partir do protagonismo e criatividade judicial, de onde
adveio até mesmo o instrumentalismo processual, a partir da construção de mecanis-
mos processuais em prol do atingimentos dos escopos processuais, ou seja, vias de
suprimento da indeterminabilidade do direito a partir da publicização e socialização
do processo.

A indeterminabilidade do Direito levanta até hoje a indagação de quem seria o


responsável pelo suprimento das lacunas sob uma perspectiva democrática, e, a partir
dessa questão é que alguns sustentam conferir esse poder e dever aos juízes, tratando
o protagonismo judicial como algo inato à própria atuação judicial, e que seriam os
juízes protagonistas do Direito tão somente pelo fato de serem juízes, logo, não caberia
escolha àquilo que se impõe, mesmo diante de um positivismo jurídico ou codificação,
pois mesmo que o direito fosse adstrito à lei, desta demandariam interpretações possí-
veis, portanto, a menção do juiz “boca da lei” seria mais que ser o juiz apenas portador
da vontade do legislador, pois teria ele o dever de interpretar de forma ativa, sendo
verdadeiro aplicador da lei, do contrário seria reducionista a atuação passiva dos juí-
zes, que seria contrária à imposição do próprio Direito (COSTA NETO, 2017, p. 9).

Continua ainda o Professor Leonardo Brandelli ao afirmar que “Direito e lei não
necessariamente coincidem, embora geralmente sim. Da mesma forma, o aplicador da
lei não está adstrito à sua interpretação literal” (COSTA NETO, 2017, p. 15).

Todas as variantes até aqui levantadas apenas enfatizam a necessidade de uma


caráter conteudista para se chegar a uma resposta ao que for levado a conhecimento
do Estado, a partir do Estado-Juiz, para que seja então mitigada as variantes inter-
pretativas viáveis, e para tanto é preciso que seja devidamente valorada a facticidade
Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
46

levada ao conhecimento do juiz em sede processual, para que o devido processo legal
faça as vezes naquilo que lhe é inerente.

Direcionamento diverso soaria isolador o fato do direito, e, também se estaria


ignorando questões substantivas, para que desse margem para a hipostasiação dos
elementos procedurais, que não passariam de uma aposta na discricionariedade, pois
se estaria separando “fato” e “direito” (STRECK, 2017, p. 364-365). 

É inquestionável a insuficiência do positivismo jurídico tradicional, e nem mes-


mo bastaria a aplicação dos princípios para resolver a indagação, pois acarretaria na
concessão de liberdade interpretativa em favor de quem estivesse responsável pela
decisão no processual judicial, ou seja, com os juízes, que estariam adstritos à factua-
lidade levada a valoração em forma de contraditório, enquanto que os defensores da
discricionariedade encontram a resposta na superação do positivismo clássico, aquele
tido como exegético, pautando-se no argumento da era do pós-positivismo, enquanto
que vozes consistentes apontam exatamente o contrário, ou seja, a insubsistência para
a discricionariedade, que não poderia estar configurada nem mesmo com o giro lin-
guístico, afinal, que a lei não daria conta de tudo já era conclusão de Kelsen.

Eis o questionamento de Streck, enfatizando que as indagações de Kelsen, que se


circunscreviam neste prisma na cisão do “ser” e do “dever ser”, dividindo-se a lingua-
gem objeto e a metalinguagem, assim, parte dos juristas passaram a compreender que
o juiz seria o responsável no momento da aplicação a curar os males do Direito, a partir
de um ato de vontade e não de conhecimento (NERY, 2014, p. 12-13).

Como se pode ver, há vasta discussão até mesmo sobre a evolução do positivis-
mo ou mesmo sobre sua superação, pois para muitos a ultrapassagem do positivismo
exegético já bastaria para configurar a discricionariedade sob um viés pós-positivista,
como se isto fosse a superação do exegetismo, sobretudo pelo fato de que até mesmo
na era do exegetismo existir discricionariedade, ao menos em alguma variante, porém
o voluntarismo estaria imbuído na “mens legis”, sendo daí que o constitucionalismo
vai de encontro de forma ambivalente, ou seja, suplantando a ideia do absolutismo
do que fora legislado, e, simultaneamente, estar-se-ia criando freios ao voluntarismo
judicial (NERY, 2014, p. 14).

Portanto, tal como sustenta Streck, “o problema do positivismo não é o fato de a


lei ser igual ao direito ou de o direito ser igual à lei, mas sim de o sujeito cognoscente
se apoderar da “sacada kelseniana” de separar entre interpretação como ato de conhe-
cimento e interpretação como ato de vontade”.

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
47

É nesse contexto, que a questão da indeterminabilidade do direito sob o prisma


da possibilidade de diversas respostas seria decorrência da separação da interpretação
e aplicação, que Streck sustenta pela impossibilidade de cisão da fundamentação da
aplicação a partir de uma hermenêutica filosófica, pois na aplicação já estaria presen-
te a fundamentação, sendo um mesmo espectro de ambas as searas, pois operam de
um mesmo lugar, ou seja, do modo de ser do mundo, o que todavia não se sustenta-
ria se fosse substituída a razão prática pela razão comunicativa, esta que se operaria
de forma procedimental, portanto, o constitucionalismo contemporâneo  demandaria
conjunturas conteudista, logo, “as teorias procedurais mostram-se insuficientes para
as demandas paradigmáticas no campo jurídico de um país como o Brasil” (STRECK,
2017, p. 367-368). 

Nem mesmo da constitucionalização de direito se pode conferir e propugnar por


um movimento criativo da parte dos juízes, ou ao menos não deveria, pois como já se
viu não se pode confundir o pós-positivismo com a discricionariedade, esta que vem
sendo compreendida como próxima fase do ativismo, que apenas é reflexo da separa-
ção do texto da norma, ou mesmo de conferir à interpretação margens abertas, afinal,
a tarefa daquele que interpreta é a demonstração do limite onde a interpretação iria de
encontro com os limites da produção de sentido (STRECK, 2017, p. 368-369).

Como se pode ver é preciso sopesar os sentidos para compreender a limitação,


pois entre texto e sentido do texto, ou seja, a norma, não há separação (STRECK, 2017,
p. 368), da mesma forma que não se tem entre texto e norma uma identificação precisa,
ainda mais se analisada em termos temporais, pois os sentidos podem ser alterados,
logo, a diferença é ontológica, da mesma forma que não cabe ao interpreta extrair sen-
tidos que não estejam no texto.

Desta impossibilidade, ou ao menos do dever de não se extrair sentidos aleatoria-


mente, é que se pode dizer que é preciso que o texto seja compreendido na norma, ao
mesmo tempo que a norma só será compreendida a partir do seu texto, mesmo porque
não há textos sem coisa, logo, conclusão diversa seria o mesmo que dizer que a lei é
um fetiche.

Portanto, de duas uma, ou o ordenamento jurídico deveria ser tratado como or-
dem exegética ou seria uma carta em branco para um utilitarismo judicial, assim, en-
tende-se que não deve prosperar a manifestação de Mauro Cappelletti, defensor notó-
rio da discricionariedade judicial, ao defender a criatividade judicial ampla e irrestrita
dos juízes (HERZT, 2017, p. 54), pois isso seria negar valor ao sentido.

Para encerrar a questão da indeterminabilidade é preciso que a atribuição de


sentido não se confunda com extração de sentido, assim como que seja realizada a
Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
48

atribuição a partir da relação do fato com o direito, com um viés conteudista e não
procedural, sendo o texto mais que mero enunciado linguístico.

Daí é que se evidencia a integridade do Direito, sendo que o texto para se mostrar
sólido para sopesá-lo como norma deve dizer respeito a algo, e é neste algo que deve
ser atribuído sentido, e, não sendo o processo coisa das partes, mas para as partes é
que apenas a facticidade ou factualidade deve ser capaz de atribuição de sentido, eis
então uma limitação manifesta ao protagonismo judicial de forma a coteja-lo com a
liberdade, autonomia da vontade das partes.

2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretensão por um processo que traga efetividade e demonstre a integridade


do Direito é uma aspiração de todos aqueles que fazem parte de uma relação proces-
sual, seja de uma parte ou da outra, onde não deve ser permitido que da autonomia
da vontade seja extraído um jogo, ainda mais tendo o Estado a responsabilidade de
conceder resposta ao objeto, litigioso ou não, assim, considerando a inexistência de um
fórmula mágica de resolução de situações jurídicas é preciso que os juízes confiram
integridade ao Direito e não que o tornem flexibilizado, que é diferente de flexibiliza-
ção procedimental, onde ainda assim se vê integridade na aplicação do Direito, sem
que a tanto seja preciso o arrefecimento do sistema jurídico ou mesmo que se busque
solução na vontade do julgador, para que seja alcançada a resposta no âmbito de seu
conhecimento.  

REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 3ª Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2019. 
BARROSO, Luís Roberto. O Constitucionalismo Democrático no Brasil: Crônica de
um sucesso imprevisto.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, 2ª Ed. São Paulo: Re-


vista dos Tribunais, 2011.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen, 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2019

COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. Protagonismo judicial: novo ativismo e
teoria geral da função jurisdicional. – 1ª Ed.- São Paulo: Editora Leud, 2017.

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de


Direito, 3ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.

FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional


de processo, Salvador: Ed.Jus Podivm, 2016.

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
49

FELLET, André Luiz Fernandes. PAULA, Daniel Giotti de. NOVELINO, Marcelo No-
velino. As novas faces do Ativismo Judicial, Salvador: Ed.Jus Podivm, 2011.

HERZL, Ricardo Augusto. Crítica Hermenêutica do Direito Processual Civil, Belo


Horizonte: Ed.Fórum, 2017.  

HIRSCHL, Ran. The Judicialization of Mega-Politics and the Rise of Political Court,
Ann. Ver. Polit. Sci. 2008.11:93-118.

LEITE, George Leite. LEITE, Glauco Salomão. STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucio-
nalismo Avanços e Retrocessos, Belo Horizonte: Ed.Fórum, 2017. 

LEITE, Glauco Salomão. Juristocracia e constitucionalismo democrático, Rio de Janei-


ro: Lumen Juris, 2017.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil, 3ª Edição, São Paulo,
Ed. Malheiros, 1980, traduzida por Cândido Rangel Dinamarco.

NERY, Carmen Lígia. Decisão Judicial e Discricionariedade, São Paulo, Ed. Revista
dos Tribunais, 2014.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil, São Paulo:
Ed. Saraiva, 2003.

OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Segurança Jurídica e Processo, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2018. 

PULIDO, Carlos Libardo Bernal. Direitos fundamentais. Juristocracia constitucional e


hiperpresidencialismo na América Latina. Revista Jurídica da Presidência. Brasília.
V.17, nº 111. Fev./Maio 2015, p. 15-34.

RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo, Salvador: Ed. Jus Podivm, 2019.

SILVA, Ricardo Alexandre da. A nova dimensão da coisa julgada, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2018. 

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica, 2ª Ed., Belo Horizonte: Letramen-


to: Casa do Direito, 2020. 

WELSCH, Gisele Mazzoni. Legitimação democrática do Poder Judiciário no novo


CPC, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Capítulo 2
DO PROTAGONISMO JUDICIAL E FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL
50
CAPÍTULO 3

O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO


FUNDAMENTAL NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO

Maria Carolina Lemos Russo Cartaxo1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.3

1  Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Analista Judiciário no
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
52

RESUMO

C om a consagração da dignidade da pessoa humana como um dos pilares da


Constituição da República, o Estado brasileiro elevou à categoria de direito
fundamental o direito à educação. Assim, o presente artigo analisa dogmaticamente
o direito à educação no ordenamento brasileiro e a necessidade de efetivação deste
direito ante a salvaguarda do mínimo existencial.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana. Educação. Mínimo existencial.

3.1 DA EDUCAÇÃO COMO ATRIBUTO DA DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA

Antigamente, o conceito de dignidade era utilizado para estabelecer uma hie-


rarquia entre os indivíduos. Hoje, todavia, é empregado em discurso transnacional
no sentido de negar que haja hierarquias entre os indivíduos, coibindo violações aos
direitos humanos, tais como as praticadas pela Alemanha nazista (FRIAS e LOPES,
2015, p. 667). Com o fim da 2ª guerra mundial, verificou-se a necessidade de proteção à
dignidade da pessoa humana, de maneira que em 1948, na Assembleia Geral da ONU
– Organização das Nações Unidas- foi constituída a Declaração Universal dos Direitos
Humanos.

Nele estão reconhecidos formalmente os atributos de dignidade da pessoa hu-


mana, e dentre eles, no artigo 26, encontra-se o direito à instrução. Ainda no item 2
do referido artigo está preconizado que a instrução deverá ser “no sentido do pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos di-
reitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais” (ORGANIZAÇÃO DAS NA-
ÇÕES UNIDAS, 1948).

Por ser a mais eficiente ferramenta para crescimento do ser humano, a educação
assume o status de direito humano, sendo parte integrante da dignidade humana, ao
passo que contribui para sua ampliação. Ademais, trata-se de um direito multifaceta-
do, sendo de característica: social, econômica e cultural, pois promove o pleno desen-
volvimento da personalidade humana dentro da comunidade, favorece a autossufi-
ciência econômica pois possibilita o trabalho, e possibilita a construção de uma cultura
universal de direitos humanos. Ou seja, a educação é pré-requisito fundamental para
que o indivíduo possa ter plena vivência como ser humano na contemporaneidade
(CLAUDE, 2005, p. 37).

Desta feita, a educação como atributo da dignidade da pessoa humana deve ser
uma educação para a afirmação de valores que lhe são inerentes, como a solidarieda-
de, a justiça e a ética, bem como deve trazer uma “perspectiva intercultural orientada

Maria Carolina Lemos Russo Cartaxo


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
53

à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de


igualdade com políticas de identidade” (CANDAU, 2008 p. 52).

Como visto, a Dignidade da Pessoa Humana não é direito concedido pelo Orde-
namento, mas é atributo de qualquer ser humano, independentemente de origem, cor,
raça ou sexo. Sua positivação faz com que ela deixe de ser apenas um valor moral para
assumir também um valor jurídico, com eficácia jurídica e caráter normativo, apta a
suscitar importantes consequências no ordenamento jurídico (CAMARGO, 2006, p.52)

3.2 DA CONSAGRAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO PLANO


NORMATIVO BRASILEIRO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E
DA NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO

Na Constituição da República, a dignidade da pessoa humana foi consagrada


como fundamento do Estado Brasileiro, de maneira que deve permear todo o orde-
namento jurídico pátrio. Nesse sentido é que os direitos fundamentais vão além de
meras faculdades jurídico-subjetivas conferidas constitucionalmente a um indivíduo
para que as exerça contra o Estado, mas devem ser encarados como valores sociais que
necessitam da interferência do Poder Público para assegurar a sua integridade. (HA-
CHEM, 2013, p.641)

Neste sentido, vale dizer que a consagração do direito à educação no plano nor-
mativo constitucional como direito fundamental (arts. 6º e 205 da Constituição da Re-
pública) implica na responsabilidade que o Estado assumiu para protegê-lo, através
de criação e a consequente aplicação de normas sancionadoras contra os que atentem
contra a sua integridade e bem assim o dever de promovê-lo através de prestações
materiais positivas para sua efetivação (CAMARGO, 2006, p. 52). Ou seja, a educação
passa a ser um fim a ser perquirido pelo Poder Público, de maneira que deve apare-
lhar-se para efetivá-lo (PIACENTIN, 2013, p. 55).

Por outro lado, à luz da doutrina alemã do pós-guerra, que visou a construção
de um mínimo para reconhecer um direito fundamental a um mínimo vital (KRELL,
2002, p. 60), passou-se a reconhecer no Brasil o chamado mínimo existencial e por con-
seguinte a teoria da reserva do possível.

Se o mínimo existencial parte da premissa que os direitos fundamentais sociais


se destinam a prover o ser humano de meios de subsistência, seja por demonstrar o
grau de democracia do Estado (CUNHA JUNIOR, 2006, p. 263), a teoria da reserva do
possível pretende delimitar a atuação do Estado sob o aspecto financeiro, como se esta
barreira fosse suficiente para impedir a atuação do Estado para garantir tais direitos.
Mas não se pode concordar com tal argumentação, posto que sempre haverá um meio

Capítulo 3
O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
54

de remanejar os recursos disponíveis retirando das áreas em que não são essenciais
para o ser humano, quanto o são o direito à vida, à saúde e à educação. (CUNHA JU-
NIOR, 2006, p. 270).

Não se pode admitir que num Estado em que o povo não possui um padrão míni-
mo de prestações essenciais para sua sobrevivência, os direitos sociais não podem ser
reféns de condicionamentos como os orçamentários da teoria da Reserva do Possível.

De origem alemã, a reserva do possível é resultado de um contexto jurídico so-


cial completamente diverso da realidade brasileira. Não variam apenas as questões
sociais, as lutas, conquistas e realização dos direitos, mas também os paradigmas a que
estão submetidos.

Enquanto a Alemanha é reconhecidamente um país central, o Brasil é um país


periférico, em que os indivíduos permanecem em luta para ver efetivado um direito
previamente garantido. Neste sentido, a inaplicabilidade da Reserva do Possível no
contexto não se trata de negar a necessidade dos recursos para a realização das pres-
tações positivas necessárias à efetivação dos direitos fundamentais, mas de ser per-
mitido ao Judiciário, quando do controle das omissões do Poder Público redistribuir
a alocação dos recursos em favor dos socialmente excluídos, para permitir a garantia
desses direitos (CUNHA JUNIOR, 2006, p. 287).

A bem da verdade, não é função essencial do Poder Judiciário interferir na rea-


lização de políticas públicas. Todavia, sendo consagrado como Direito Fundamental,
o direito à educação deve ser garantido pelo Estado através de sua atuação positiva, e
sua omissão poderá ser cobrada pela população através do Judiciário para garantir a
sua efetividade. (KRELL, 2002, p. 109)

Essa interferência do Judiciário para a efetivação dos direitos sociais e dentre eles
o direito à educação é legítima, visto que é obrigado a agir quando os demais poderes
são omissos para garantir o mínimo existencial (KRELL, 2002, p.109)

3.3 CONCLUSÃO

A dignidade da pessoa humana tal qual o conceito que se conhece hoje insere o
direito à educação como um de seus atributos que demonstram a composição de um
mínimo existencial.

O ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, ao atribuir a dignidade da pessoa


humana como um de seus fundamentos, conferiu abrangência aos direitos que a com-
põem, dentre eles o direito à educação, no sentido de que todos devam concorrer para
a sua efetivação, mormente o Estado.

Maria Carolina Lemos Russo Cartaxo


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
55

Neste diapasão, para garantir a efetividade de um de seus fundamentos constitu-


cionais não pode o Estado brasileiro se eximir de promover políticas públicas, utilizan-
do-se de argumentos diversos da sua realidade social e jurídica, devendo agir de modo
a efetivar a execução desses direitos, como o é o direito à educação.

Caso o poder público não cumpra com o seu dever, seja o poder executivo e/ou
o poder legislativo, caberá ao poder judiciário, caso acionado, solucionar a omissão.

REFERÊNCIAS
CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). O Conteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa
Humana. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras Complementares de Di-
reito Constitucional: direitos fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2006. p. 45-65.

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões


entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, [S.L.], v. 13, n. 37, p. 45-
56, abr. 2008.

CLAUDE, Richard Pierre. Direito à educação e educação para os direitos humanos.


Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, [S.L.], v. 2, n. 2, p. 36-63, 2005.

CUNHA JUNIOR, Dirley da. A Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais e a Re-
serva do Possível. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras Complementa-
res de Direito Constitucional: direitos fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2006, p.
247-292.

FRIAS, Lincoln; LOPES, Nairo. Considerações sobre o conceito de dignidade humana.


Revista Direito Gv, [S.L.], v. 11, n. 2, p. 649-670, dez. 2015.

HACHEM, Daniel Wunder. A dupla titularidade (individual e transindividual) dos


direitos fundamentais econômicos, sociais, culturais e ambientais. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 142, n. 14, p. 618-688, 2013.

KRELL, Andreas Joachin. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alema-


nha: os (des)caminhos de um DIreito Constitucional “ comparado”. Porto Alegre: S.A.
Fabris, 2002. 120 p.

PIACENTIN, Antonio Isidoro. O direito à educação na Constituição Democrática de


1988. In: PINTO, Daniella Basso Batista; CINTRA, Rodrigo Suzuki (org.). Direito à
educação: reflexões críticas para uma perspectiva interdisciplinar. São Paulo: Sarai-
va, 2013. p. 49-68.

Capítulo 3
O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
56
CAPÍTULO 4

ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA, LUTE PELO


DIREITO!

Alexandre Moura Alves de Paula Filho1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.4

1  Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco, pós-graduado em direito médico e da saúde pelo
Instituto dos Magistrados de Pernambuco. Advogado.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
58

RESUMO

E ste artigo apresenta uma reanálise de um célebre jargão proclamado na aca-


demia jurídica: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares
o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”. O entrelaçamento entre direito
e justiça é mais complexo do que parece, não sendo conveniente que o operador do
dirieto lute por justiça em superação ao próprio direito. Essa dicotomia é aprofundada
à luz das garantias processuais e de problemáticas atinentes ao ativismo e ao volunta-
rismo judicial.
Palavras-chave: direito; justiça; processo; garantismo.

4.1 MOTIVAÇÃO: UM JARGÃO AINDA FORTE NA ACADEMIA

Normalmente, os juristas começam a trajetória acadêmica impulsionados pelo


sentimento de fazer justiça e contribuir efetivamente com o bem-estar social. Esse no-
bre sentimento - que não deve ser perdido com o passar do tempo e com a convivência
com as instituições jurídicas - é traduzido por um dos mais célebres jargões da área,
que diz que “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito
com a Justiça, luta pela Justiça”, de Eduardo Juan Couture. Assim, passa-se a discutir e
aplicar o direito com base no sentimento de justiça. Afinal, de que adiantaria a Consti-
tuição e as leis se não for para serem justas?

Contudo, a experiência vai nos mostrando que a equação que envolve direito e
justiça nem sempre é exata ou decorre de lógica simples... A aplicação da norma jurí-
dica, muitas vezes, desperta em nós um angustiante sentimento de injustiça.

4.2 DIREITO X JUSTIÇA

Apesar de a justiça ser um valor nobre e necessário à vida no Estado Demo-


crático, não é por toda e qualquer justiça que devemos lutar - sob pena de malferir a
própria democracia! A justiça que devemos buscar, sobretudo na aplicação do direito,
é a justiça que decorre da Constituição Federal, nossa lei maior, e da legislação a ela
subordinada. Não a que as precedem. Caso contrário, inevitavelmente, estaremos tão
somente atuando com base num senso pessoal. E nossas opiniões, sentimentos, dese-
jos, concepções, não podem prevalecer sobre a ordem jurídica pré-estabelecida pelos
Poderes institucionalmente constituídos - lembrando que, via de regra, o poder de
criar o direito é exercido mediante representantes escolhidos de modo livre e universal
pelo povo, nas urnas.

Tema que, vira e mexe, ganha manchete de jornais e passa a ser alvo de discus-
sões é o do linchamento - tortura ou execução pública de pessoas. Trata-se de uma
prática vedada pela Constituição, ao dispor, em seu rol de direitos fundamentais que
Alexandre Moura Alves de Paula Filho
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
59

“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art.


5º, III). A prática viola nossa Carta Magna ainda que o linchado tenha, efetivamente,
cometido um crime, e ainda que, no âmago do sentimento de justiça de muitos, essa
seja a melhor solução para punir um delito.

Outra situação tem se observado sobremaneira com a Reforma Trabalhista e


aprovação do Novo Código de Processo Civil, na qual, alguns juízes, simplesmente
por discordar das novas normas, deixam de aplicá-las.

4.3 FALANDO DE PROCESSO...

Falando de processo civil, inclusive, dediquei minha dissertação de mestrado,


no PPGD da Universidade Católica de Pernambuco, ao estudo das razões que vinham
levando juízos de varas cíveis de minha cidade, Recife-PE, a não designarem as au-
diências previstas no art. 334 do CPC, mesmo não sendo o caso de nenhuma hipótese
de exceção prevista em nosso ordenamento (dispensa da audiência por ambas as par-
tes, direito insuscetível de autocomposição, realização de negócio jurídico processual
prévio – ou “cláusula opt-out” –, incompatibilidade do ato, que eventualmente ocorre
diante de alguns procedimentos especiais, dentre outras)1. A pesquisa, de natureza
quantitativa, cujos números serão divulgados na ocasião de sua publicação, identifi-
cou alguns fatores que influenciam na não marcação da audiência, a exemplo de valor
da causa mais elevado e da presença de um litigante habitual no polo passivo.

Isso revela o que estamos discutindo aqui: um “drible hermenêutico”2 na norma


jurídica para, no fim das contas, utilizar um rito processual já revogado (afinal, era o
CPC/73 que previa que, “Estando em termos a petição inicial, o juiz a despachará,
ordenando a citação do réu, para responder”).

Ainda na seara processual, tocamos em outro tema, este muito caro a nós, da
ABDPRO: o garantismo processual. De acordo com essa corrente, o processo é, sem de-
magogias ou relativizações, verdadeira instituição de garantia, ou, “contrapoder” de
todo indivíduo face a função jurisdicional do Estado3. O garantismo milita, sobretudo,
contra a ideia de que o processo é um instrumento a serviço da jurisdição para realizar,
a todo custo, o direito material, ou ainda “fazer justiça”, ideais defendidos pela corren-
te instrumentalista, que pode ser bem expressada na passagem de seu maior precursor
no Brasil, Cândido Rangel Dinamarco, com grifos nossos:
Examinar as provas, intuir o correto enquadramento jurídico e interpretar de modo
correto os textos legais à luz dos grandes princípios e das exigências sociais do tempo
1  Recomendamos, neste ponto, a abordagem de Marco Paulo Di Spirito, acerca dessas e de outras hipóteses de dispensa da
referida audiência (DI SPIRITO, 2016).
2  Expressão alcunhada por Lenio Streck situações em que o judiciário dá a “volta” em um dispositivo legal válido, violando o que
é elementar no direito: “uma lei ou dispositivo vigente e válido não pode ser contornada ou desviada” (STRECK, 2016
3  Garantia é muito bem explicada por Eduardo Costa, como sendo “toda e qualquer situação jurídica ativa, simples ou complexa,
atribuída aos cidadãos por norma constitucional, cujo exercício tende a prevenir ou eliminar os efeitos nocivos do abuso de poder
cometido pelo Estado, ou por quem lhe faça as vezes” (COSTA, 2018).

Capítulo 4
ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA, LUTE PELO DIREITO!
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
60

–, eis a grande tarefa do juiz, ao sentenciar. Entram aí as convicções sócio-políticas do


juiz, que hão de refletir as aspirações da própria sociedade (DINAMARCO, 1987, p. 274).

E o perigo desse modus operandi é que, aos poucos, vai-se abrindo espaço para o
ativismo judicial.
Em caso de formar-se um valo entre o texto da lei e os sentimentos da nação, muito
profundo e insuperável, perde legitimidade a lei e isso cria clima para a legitimação
das sentenças que se afastem do que ela em sua criação veio ditar. (DINAMARCO,
1987, p. 274).

Também se tem discutido sobre os perigos de uma outra modalidade de ativismo


judicial, o voluntarismo:
O voluntarismo traz um plus ao ativismo judicial. Ele permite ao julgador a aniqui-
lação das regras pelo simples fato delas serem ruins, de não servirem ao seu propó-
sito, de não serem “justas” ou “adequadas” o bastante. Realiza-se um gerenciamento
sanitário-legal, a partir da lente do julgador, desprezando a lei “imprestável” (CAR-
VALHO FILHO; CARVALHO, 2019, p. 91).

Nesse ponto, recordo-me da fala do professor Bianor Arruda, que também é ma-
gistrado, num seminário no PPGD da Unicap, em 2019, no qual, com muito bom hu-
mor, falou que um juiz que nunca voltou triste para casa, após uma decisão que teve
de proferir, provavelmente é um juiz voluntarista. Justifica: o ofício de julgar conforme
a Constituição e as leis pode gerar (como já mencionado) um sentimento de injustiça
ou de que poderia, de algum outro modo, ajudar uma pessoa de boa intenção. No en-
tanto, não é permitido ao juiz colocar seus valore e sentimentos à frente das normas às
quais está vinculado.

É preciso lembrar que, apesar de defender que o termo sentença vem do verbo
latino sentire (do português sentir), nenhuma obra de cunho instrumentalista procurou
enfrentar objetivamente questões como: “que sentimento é esse?” ou, “qual o parâ-
metro de justiça imbuído em termos como “devido processo justo”?”. Dividimos, a
propósito, o incômodo expressado por Abboud e Lunelli (2015, p. 31): “a qual justiça
os instrumentalistas se referem? Se a aposta está na discricionariedade de quem julga,
muitas serão as justiças…”.

4.4 CONCLUSÕES

Por fim, não é possível defender uma posição, sob o mantra de que “a lei é in-
justa”, para afastar o cumprimento da própria lei. Trata-se de uma intentada que não
compete aos juristas.

Mas lembremos, embora tenha de prevalecer - quando em conflito com a justiça


- o direito pode sucumbir para o próprio direito. Isto é, tantas vezes a estrita aplicação
de um direito fere outro, que deve prevalecer naquele caso. Aqui, não se trata de lutar
pela justiça em detrimento do direito, mas pela melhor aplicação do próprio direito. E o
Alexandre Moura Alves de Paula Filho
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
61

nosso ordenamento jurídico traz diversas soluções para esses impasses, como a decla-
ração de inconstitucionalidade (permitida, inclusive, aos juízes de primeira instância),
declaração de nulidade parcial, resolução por antinomia (a regra de que prevalece a lei
superior/específica/mais recente), ou simplesmente, a interpretação da norma confor-
me a Constituição Federal4.

Precisamos urgente conscientizar os operadores do direito do perigo de apre-


sentar jargões mal refletidos (que chegam a tornar-se lema de turmas de formatura),
apresentando o direito como ele é - ou deveria ser - e onde, ao menos no Brasil ele está
inserido: numa democracia constitucional. Mas essa missão precisa ser sobretudo as-
sumida desde a base, isto é, no início da jornada acadêmica!

REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. LUNULLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do
processo. Revista de Processo (Repro), v. 242, p. 21-47, abr. 2015.

CARREIRA, Guilherme Sarri. ABDPRO #119 - Por que continuo tendo medo do STJ.
Empório do Direito (online).04/03/2020. Disponível em https://emporiododireito.
com.br/leitura/abdpro-119-por-que-continuo-tendo-medo-do-stj. acesso em 15 mar.
2020.

CARVALHO FILHO, Antônio; CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Recuperação


judicial e o voluntarismo judicial. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro.
Belo Horizonte, ano 27, n. 106, p. 83-95, abr./jun. 2019.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPRO #40 - Notas para um Garantística. Empó-
rio do Direito (online). 04/07/2018. Disponível em: https://emporiododireito.com.
br/leitura/abdpro-40-notas-para-uma-garantistica. Acesso em 14 mar. 2020.

DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. Hipóteses objetivas de dispensa da audiência de


conciliação e mediação. Empório do Direito (online). 23/07/2016. Disponível em: ht-
tps://emporiododireito.com.br/leitura/hipoteses-objetivas-de-dispensa-da-audien-
cia-de-conciliacao-e-mediacao. Acesso em 11 fev. 2020

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Ed.


RT, 1987.

STRECK, Lenio Luiz. Uma ADC contra a decisão no HC 126.292 — sinuca de bico para
o STF! Consultor Jurídico. 29 fev. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2016-fev-29/streck-adc-decisao-hc-126292-sinuca-stf. Acesso em: 11 dez. 2019.

4  Sugiro ao leitor o texto de Guilherme Sarri Carreira, publicado na coluna da ABDPRO no Empório do Direito, que enfrenta de
modo magistral a questão, intitulado “Por que continuo tendo medo do STJ?” (CARREIRA, 2020).

Capítulo 4
ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA, LUTE PELO DIREITO!
62
CAPÍTULO 5

REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO

Rodrigo Ramos Melgaço1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.5

1 Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pós-graduado em direito público na
Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Juiz de direito no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
64

RESUMO

O objeto do processo como gênero tem a teoria do objeto litigioso como um


dos dogmas estudados, não seguido estritamente entre nós, adeptos da teo-
ria da ação, outro dogma, enquanto que a essência do direito não deve ser pautado em
acepções fechadas, tomadas como verdades absolutas, daí a necessidade do abandono
de dogmas em prol do conteúdo em prol de atos de conhecimento e não de vontade
jurisdicional.
Palavras-chave: Objeto do processo; dogmas e abandono; delimitação do mérito; Pre-
visibilidade.

5.1 INTRODUÇÃO

Para o cotejo e revisitação do objeto do processo é importante sopesar algumas


considerações gerais, assim como tecer breves referências sobre o processo como ciên-
cia autônoma, por mais que atualmente muitos questionamentos e reformar legislati-
vas estejam até mesmo ressuscitando o sincretismo, desde o início do século XXI. 

Não é recente questionamentos a respeito do acesso ao judiciário, que a partir da


constitucionalização de direitos passou a ser tratado como um elemento do acesso à
justiça diante de um espectro multiportas,  e que a partir da jurisdição constitucional
teve elevada a atenção à doutrina do resultado, também conhecida como a doutrina
da efetividade, que não passaria de um direito fundamental das pessoas de auferirem
uma resposta, um resultado final do processo (CÂMARA, 2015, p. 42), eis então, o viés
do magistrado do século XXI, como membro garantidor de uma decisão de mérito
exauriente.

A despeito deste escopo, não é demais salientar o desenvolvimento do processo


antes da publicização, quando passou por períodos tidos como privatistas, onde o
formalismo era extremo, e, por mais que hodiernamente tenham sido desenvolvidos
e venham sendo fixados meios de flexibilização, é fato que continua havendo um vas-
to número de decisões obstaculizando o exame do mérito das pretensões postas em
juízo, sejam, elas em sede de cognitiva, como também em sede recursal, o que ficou
notoriamente conhecido como “jurisprudência defensiva” (CÂMARA, 2015, p. 43), e
que mesmo com o advento do Código de Processo Civil de 2015 continuam sendo
reiteradas, em detrimento de diversos comandos positivados, situações que podem
ser classificadas como uma função contrafática do direito e do CPC/15, afinal, não é
concebível que se tolere um processo judicial não dialógico e cooptado tão somente
por imperativo de máxima produtividade em detrimento da qualidade da prestação
jurisdicional (NUNES, 2015).

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
65

Não é em vão esta atenção conferida pelo ordenamento processual civil, pois do
processo não se pode vislumbrar apenas e tão somente a resolução de casos concretos,
ainda que aprioristicamente seja essa a finalidade mais proeminente, sendo também
uma contribuição relevante para fixação de marcos jurídicos, que servem de orientação
social, e, para tal desiderato é essencial a previsibilidade das consequências jurídicas
dos múltiplos atos praticados na vida em sociedade, por isso, a relevância do direito
ser previsível, exatamente para que possa refletir previsibilidade, e também para não
se permitir a perpetuação do discurso jurídico, para que assim o direito seja protegido
(SILVA, 2018, p. 13-14), e consequentemente o jurisdicionado, como destinatário final
de qualquer provimento do Poder Judiciário.

Portanto, não se pode dizer que o direito ser previsível seria um dogma a ser
abandonado, tema trabalhado pelo jurista português Miguel Teixeira de Sousa, que
aborda exatamente a necessidade do abando dos dogmas, então, entende-se que essa
visão não é aplicável ao direito sob o manto da segurança que se espera que dele se ex-
teriorize, do contrário, a substitutividade e definitividade de uma decisão jurisdicional
estariam eivadas de falibilidade.

 A importância do direito, da previsibilidade e do mérito não é decorrente da au-


tonomia do direito processual, pois antes mesmo do autonomismo já se dava atenção
a importância da finalidade do processo, mesmo que fosse integrante de um mesmo
sistema jurídico, ainda na fase sincretista.

Desta forma, e considerando o direito processual civil como ciência desde mea-
dos do século XIX, como ramo do direito público, autônomo, é que se torna relevante
o desenvolvimento da matéria sob um prisma processual, visto que a corrente mate-
rialista advinda do imanentismo já foi superada há tempos, embora sempre se tente
revigorá-la, não por outro motivo que Araken de Assis (1998, p. 114-115) enfatizou a
importância de se preservar o direito à tutela jurídica do autor, independentemente da
relação material afirmada, a qual não pode ser confundida com a “ação”, onde eviden-
temente é preciso que se traduzam todos os elementos necessários ao pronunciamento
jurisdicional, e nem por isso supera a essência do objeto litigioso.

Partindo dessa revolução e transformação em ciência do processo civil alemão,


para que o processo comum passasse à condição de direito processual civil, tendo
como norte o surgimento do conceito de relação jurídica processual, independente da
relação jurídica material, tal como desenvolvido por Oskar Von Bülow (2005, p. 11), a
partir de quando houve a dissolução da actio em pretensão, tal como foi a polêmica da
actio entre Windscheid e Muther, até que adveio a promulgação da Zivilprozessordung
federal  em 1877.

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
66

O direito processual civil, então, é ramo do direito público e não de direito pri-
vado, regulando a constituição e os pressupostos da jurisdição civil, os modos e as
formas, assim como os efeitos da tutela, o processo e a outorgaria a tutela, portanto, o
direito processual não fixa quem tem ou não razão, regulamentando a forma, o modo
com que se pede a tutela jurídica ao Poder Judiciário, com a qual se concede ou se nega
à luz do direito material àquele que estivesse amparado pelo direito aplicado (BENE-
DUZI, 2018, p. 64).

Com a autonomia do direito processual muitos questionamentos passaram a ser


levantados no âmbito processual, desde o século XIX, enquanto que no século XX, e
sob a perspectiva de resultados é que erigiu-se o instrumentalismo, subsequente ao pe-
ríodo formalista puro, passando assim a ter o processo como um mero meio a um fim,
assim, houve aprofundamentos nos estudos e desenvolvimento de mecanismos que
pudesse trazer ao mundo real a efetividade como anseio, ao que se classificou como
fase do processo com foco em resultado, e não apenas numa sucessão de atos formais,
portanto, pode-se inferir disto que não se estaria apenas almejando uma autonomia
do processo se dele não fosse concebível se vislumbrar um mérito apreciado, diante
do que adveio a atenção ao afastamento do formalismo excessivo para preponderar,
priorizar o mérito sobre a forma, e não esta sobre aquele. 

Ademais, inúmeras questões foram e são levantadas, como flexibilização da for-


ma em detrimento de qualquer sistema rígido, e, para esse estudo é importante a aten-
ção não apenas ao desenvolvimento do formalismo, como também ao objeto do pro-
cesso, ainda que em nosso sistema e ordenamento jurídico seja este último tratado de
forma lateral, em face da primazia do estudo da “ação” e outros institutos, todos eles
que são colocados até em risco em face do tamanho anseio pela flexibilização constan-
te, como se fosse o cerne dos problemas.

Então, embora não seja um tema nacionalmente tão estudado, nem mesmo abor-
dado em nosso ordenamento jurídico, assim como a carência doutrinária a respeito,
temos como fundamental o devido desenvolvido do objeto litigioso e suas teorias, so-
bretudo a partir do momento em que tanto a legislação e consequentemente a doutrina
pátria priorizam alguns institutos jurídicos tido como fundamentais, logo, inevitavel-
mente estes acabam sendo a fonte de estudos e incursões, não por outro motivo que
os estudos clássicos fixaram aqueles que seriam os institutos fundamentais do direito
processual civil.

Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 302) aponta o sistema processual como uma
estrutura com suas próprias vigas mestras, para que internamente tenha não apenas
corpo, mas também sustentação, tudo convergindo de forma centrípeta a abranger o

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
67

necessário daquilo que seria o espectro externo, ou seja, os fundamentos constitucio-


nais. 

Dentre os institutos fundamentais processuais que estão insculpidos nas normas


processuais estão: a jurisdição, a ação, a defesa e o processo, sendo perceptível que
tudo aquilo que as normas processuais desenvolveram acabam por enquadrar-se em
algum daqueles institutos, isolada ou cumulativamente, o que Dinamarco afirma cor-
responder ao objeto material da ciência processual, que seria exatamente onde ocorre-
riam as investidas científicas.

No mesmo sentido é a manifestação de Araken de Assis (1998, p. 102), quando


trata da preferência  pela ideia de “ação”, sendo utilizados os três elementos tradi-
cionais (partes, causa de pedir e pedido) para se alcançar a coisa julgada, e a litispen-
dência, havendo entre nós descaminhos conceituais sobre a “ação”, da mesma forma
que no direito alemão há incongruências em torno do objeto litigioso, portanto, aqui
a compreensão do objeto litigioso fica paralela à noção a respeito da “ação”, enquanto
que alguns entendem como matéria fundamental a ser valorada, ainda que em atenção
à “ação” e seus elementos, assim como de sua eventual modificação (RODRIGUES,
2014, p. 5).

Embora ainda seja cedo demais para tecer qualquer conclusão a respeito da di-
cotomia acima, a respeito da necessidade ou não do estudo do objeto litigioso, uma
questão prática, que inclusive foi um dos motivos da escolha do tema deste trabalho,
e que denota a essencial e necessidade do aprofundamento do tema, pois é comum
no dia a dia uma decisão final em demandas jurisdicionais não observarem os termos
exatos do pedido e da causa de pedir expressamente apresentadas na petição inicial, e
esta consideração trago à baila não apenas pela atividade cotidiana, como também por
questionamentos arguidos em sede doutrinária (RODRIGUES, 2014, p. 5). 

As fases metodológicas do processo e seu desenvolvimento histórico acabam por


priorizar alguns institutos em detrimento de outros tidos como fundamentais, entre-
tanto, nem mesmo eles podem ser tidos como um fim em si mesmos a ponto de guiar
substancialmente as nuanças epistemológicas da ciência processual, o que é difícil de
se vislumbrar entre nós, porém é identificável na Alemanha, que não tem apego com
qualquer dos institutos referidos acima.

Comumente se vê na atualidade a preocupação com a dinamicidade, que é pre-


ciso se vislumbrar da aplicação do direito na vida em sociedade, com atenção focada
em instrumentalização do direito material no âmbito processual como alternativa do
insucesso de institutos tidos como fundamentais, de onde partem questionamentos se
a questão central do problema não seria a preocupação com a autonomia do processo,
Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
68

não por outro motivo partiu-se a uma realocação dos institutos a partir de uma visão
crítica, o que levou a estudos dos mais diversos institutos, como é o caso da pretensão
já tão discutida quando da teoria da actio e a polêmica que se instaurou na época, até
que os alemães retomaram os estudos sobre o objeto litigioso, com a finalidade de de-
limitar o mérito no processo civil, o que é essencial para fixação de consequências em
diversos institutos.

Assim, a até então preocupação de elencar a ação como sinônimo de objeto do


processo é deixada de lado para que o objeto litigioso seja estudado de forma indepen-
dente e profunda, sem ignorar a importância dos elementos objetivos da demanda,
como a causa de pedir e o pedido, de forma a se permitir alcançar o objeto litigioso
sobre o qual o juiz deverá se manifestar em algum momento.

Dinamarco, assim como outros juristas foram até mesmo no encalço da origem
da expressão “objeto”, que seria algo que se põe perante uma pessoa, ou mesmo como
decorrência de uma atividade (2010, p. 305).

Daqueles elementos objetivos de identificação da demanda adveio o Código de


Processo Alemão em 1879, de onde surgiu a questão a respeito do conteúdo mínimo da
demanda, surgindo daí duas teorias, a da substanciação e a da individuação (TUCCI,
1993, p. 90).

Pela teoria da individuação bastaria a alegação da relação jurídica existente para


se vislumbrar a consequência suplicada, independentemente de qualquer individua-
ção fática do que efetivamente tivesse se passado. 

Já pela teoria da substanciação, como o nome indica, seria necessário a especifi-


cação do fato constitutivo do direito apontado por quem vindica, logo, com os fatos
sendo incluídos no fundamento da demanda.

Dentre os maiores defensores da individuação estavam aqueles que defenderam


a ação como direito concreto, como foi o caso de Adolf Wach e Giuseppe Chiovenda,
e, como consequência prática da adoção pela individuação estaria a possibilidade de
haver alteração dos fatos apontados durante o tramite do processo, o que não alteraria
para esta corrente em nada a demanda, perspectiva insubsistente aos defensores da
substanciação (CORRÊA, 2009, p. 60-61).

O questionamento da individuação veio a partir de Marco Tullio Zanzucchi, que


entendeu que partindo-se de uma variante de que a afirmação daquele que pretende
algo não subsiste por si só para conferir-lhe o direito apontado como violado, assim,
seria sim indispensável a revelação da situação de fato em concreto (CORRÊA, 2009,
p. 61).
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
69

Desde essa época já se observava a importância da natureza do instituto em de-


trimento do “nomen”, que atualmente vem sendo muito desprestigiado a partir da ale-
gada técnica do conteúdo em detrimento da técnica do direito, racionalidades manifes-
tamente distintas, embora não fosse preciso tamanha dicotomia ao desiderato único,
que reflete como escopo jurídico, que na visão de Cândido Rangel Dinamarco (TUCCI,
1993, p. 139) seria a atuação da vontade concreta do direito, seguindo linha diversa de
pensamento de Chiovenda que entendia pela vontade concreta da lei, diversamente
também da visão de Carnelutti, a quem seria indispensável a justa composição da lide
a partir do momento em que o direito material seria incapaz de chegar a composição
da lide.

Por sua vez, as indagações sobre as teorias dos elementos da demanda chegou a
um desfecho, ao menos na doutrina italiana, concluindo que ambas as teorias seriam
complementares entre si, o que teria sido suscitado por Elio Fazzalari, para quem o
objeto do processo é a situação substancial, enquanto que o objeto litigioso seria a cir-
cunstância concreta apresentada em juízo “in status assertionis” (TUCCI, 1993, p. 131 e
273), apresentando contraponto ao desenvolvido pelos alemães, apontando que estes
almejariam evitar a inter-relação entre as esferas processual e material com a única
finalidade de resguardar a autonomia do processo.

De qualquer forma, a manifestação de Fazzalari não esgota o desenvolvido pe-


los alemães, mas apenas parte do que os juristas lá desenvolveram, atingindo apenas
aqueles que compreendem o objeto litigioso adstrito ao pedido, o que será melhor
desenvolvido no aprofundamento das teorias sobre o objeto litigioso, sobretudo pela
perspectiva de alcançar um conceito único de objeto litigioso (SILVA, 2018, p. 193)
aplicável tanto ao direito material como ao processual.

Antes de passar às teorias do objeto litigioso é preciso apenas realizar uma dife-
renciação sobre o que seria o objeto do processo, para que então se eleve ao aprofunda-
mento da litigiosidade do objeto, que são acepções distintas, tal como sustenta Sidney
Sanches e Daniel Mitidiero (SILVA, 2018, p. 133).

5.2 REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO 

O conceito do que é o objeto do processo não é nada pacífico quando se foca em


um estudo doutrinário ou mesmo dogmático, sendo que pode ser conceituado a partir
de uma acepção material ou intelectual, respectivamente tratando de seu conteúdo, ou
de sua função, sob um viés imaterial.

Fazzalari, como já foi mencionado anteriormente, trata o objeto do processo como


a situação substancial apresentada pela parte. 

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
70

Para Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 305; 2017, p. 209) objeto do processo é
o que ordinariamente se chama de mérito, existindo em qualquer espécie de processo,
se confundindo com a pretensão trazida pela parte requerente ao juiz, em prol da solu-
ção ou mesmo satisfação, não passando do material sobre o qual se aterá a atuação ju-
risdicional, incluindo não apenas o apresentado pelo demandante, como também pelo
demandado, apontando que a pretensão seria a aspiração preexistente ao processo,
portanto, seria um fato e não uma situação jurídica, afinal, não passa de uma exigência
decorrente de uma crise jurídica.

Ainda que Dinamarco não tenha trazido um sentido unívoco sobre o que seria
o objeto do processo tal como foi mencionado acima, em outra passagem do mesmo
capítulo (DINAMARCO, 2017, p. 215) doutrinário, ao retomar o tema, passou a indicar
que o objeto do processo seria exclusivamente o pedido, onde residiria a pretensão
com o objetivo de construir um raciocínio lógico jurídico, de onde se pode aferir que
houveram duas observações distintas, uma seria o objeto do processo e a outra seria o
objetivo deste, ou seja, a obtenção da solução prática mediante o eventual acolhimento
do pedido.

Já apontando para um conceito imaterial, ou funcional do objeto do processo,


este seria abstratamente tudo aquilo que se projeta e é levada à apreciação na atividade
jurisdicional, seria então a res in iudicium deducta, ou seja, todo o complexo de coisas
abstratas a que o julgador precisará se debruçar para a solução concreta das diversas
questões ali levantadas (RODRIGUES, 2014, p. 6).

José Rogério Cruz e Tucci (1993, p. 126) segue a linha da acepção material, defen-
dendo que o fato ou fatos são essenciais para configurar o objeto do processo, sendo
este que constituem a causa de pedir, que seria aquela que tem o cunho de delimitar a
pretensão, mesmo porque para se vislumbrar uma resposta por meio de uma sentença
é essencial que seja levado ao judiciário determinados acontecimentos dos quais se
aponte uma ou mais consequências jurídicas.

Há grande controvérsia em torno do que integra o objeto do processo, seja no


direito pátrio, como no direito comparado, sendo que a fixação do objeto do processo
é indispensável para valoração sobre diversos institutos processuais, divergências que
surgem até mesmo dentro do direito Alemão, pois os relatores da ZPO viveram no
tempo em que o direito de ação seria pautado no sentido material, vinculando-se o fato
com o direito material, assim, a violação deste direito construiria o objeto da ação e o
litígio (SOBRINHO, 2008, p. 9-10), como aliás até os dias atuais consta no Código Civil
Brasileiro de 2002, no art.189.

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
71

Assim, da superação da teoria imanentista da ação, e com a separação da relação


jurídica de direito material, da relação processual, esta que leva ao judiciário o co-
nhecimento daquela relação, portanto, diante desta ambivalência é preciso delimitar
o espectro sobre o qual o julgador se ancorará, pois haveria diferenciação sobre os
sujeitos e objeto, portanto, é possível apenas pela autonomia se vislumbrar a relevân-
cia pela identificação, para se poder vislumbrar as nuanças da demanda, ou mesmo a
especificação do objeto do processo, e, tendo em vista a necessária digressão é preciso
que seja cotejado o direito Romano, seja pelo sistema que adotamos, no caso o roma-
no-germânico (civil law), pois como já foi levantado anteriormente, os próprios teóricos
alemães trouxeram visões diferentes da processualística italiana, e nem por isso se
pode concluir que os italianos influenciados por Chiovenda e Liebman se afastaram do
estudo do objeto litigioso, ou mesmo da pretensão processual, do mesmo modo que os
alemães quando da ZPO utilizaram termos diferentes para designar institutos diver-
sos, como é o caso da expressão pretensão e objeto litigioso. (SOBRINHO, 2008, p. 10) 

Como se pode ver, não é apenas do ordenamento jurídico pátrio os equívocos


quanto aos termos utilizados, como se depreender do Código de Processo Civil de
1973, quando o “mérito” não se confundia com a pretensão levada ao conhecimento
do poder judiciário, sendo sinônimo de “lide”, tal como se depreende da exposição de
motivos de modo expresso, sendo a expressão afastada parcialmente com o Código
vigente desde de 2015.

Continuando com a análise da dicotomia acima, “lide”, tida como mérito até cer-
ta passagem, já era tratada pelo italiano Francesco Carnelutti como um conflito de
interesses qualificada pela pretensão resistida (SILVA, 2018, p. 126), logo, não seria
condizente com o objeto do processo, mesmo porque nem sempre o processo, assim
como o exercício da jurisdição dependeria necessariamente da existência de uma lide
na acepção conflito de interesses.

Diante do que já foi tratado sobre o objeto do processo, é importante ser realizada
uma diferenciação, pois embora possa parecer que o objeto do processo tem o mesmo
significado de objetivo deste, enquanto que são acepções distintas, duas feições incon-
fundíveis, sendo que a própria doutrina utiliza a expressão para designações de coisas
bem distintas, e tal como já foi mencionado anteriormente, a partir de Dinamarco,
para quem o objetivo do processo nada mais é do que a obtenção da solução práti-
ca mediante o eventual acolhimento do pedido, sendo o escopo social. Já para James
Goldschmidt o objetivo do processo seria unicamente uma pretensão de tutela jurídica
da parte do autor, sem que fosse possível que o requerido correspondesse a essa pre-
tensão por meio de tutela jurídica independente (GOLDCHMIDT, 2016, p. 13).

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
72

Apesar das divergências, sobretudo pelos marcos metodológicos entre o proces-


so a partir do prisma do direito italiano, paralelamente ao direito alemão, é importante
ter em mente que houve a junção dos sistemas jurídicos com foco nas codificações, por
sinal sendo o sistema adotado no Brasil, afeto ao sistema romano-germânico como já
foi tratado, eis o motivo pelo qual se faz necessário o estudo sob os pilares do direito
italiano quando se trata do objeto litigioso, ainda que norteado pela teoria da actio, que
por sinal é de grande recepção entre nós até os dias atuais.

5.3 OBJETO DO PROCESSO NO DIREITO ITALIANO

A demonstração da importância do objeto do processo se infere não apenas por


uma definição no direito contemporaneidade pátrio, e sim por sua análise a partir dos
sistemas  existentes no direito contemporâneo, de onde se identifica que sempre há o
questionamento sobre o objeto, isto nos mais diversos sistemas jurídicos, sobretudo a
partir do advento do processualismo advindo de Oskar Von Bülow, com os processua-
listas lançando-se na missão de construir a ciência processual, a partir principalmente
de conceitos, onde tinha como centro o conceito de ação, como sendo o verdadeiro
polo metodológico da nova ciência, tendo o processualismo sido fruto da doutrina e
do racionalismo que tomavam conta da academia (MITIDIERO, 2005, p. 68).

 O doutrinarismo passando a ser reflexo do racionalismo jurídico, e com o pro-


cesso passando a ser relação processual abstrata e autônoma que liga os sujeitos que
a compõe, com a ação passando a ser o centro da polêmica, para que fosse possível
alcançar a inter-relação existente entre o direito material e o processo civil, com a ju-
risdição sendo manifestação do poder estatal, ao passo que o direito processual civil
seria o exercício desse poder, e do processualismo surge a relação do direito subjetivo
e o direito à ação, estreitando-se os planos do direito processual e material, planos in-
dependentes entre si dada a autonomia de cada ramo, afinal, o processo civil deixou
de ser uma continuação do direito material, o que levantou questionamentos, princi-
palmente pelos valores constitucionais, até que houve o desenvolvimento da teoria da
relação circular, quando então se sustentou que o processo recebe o direito material
e devolve esse mesmo direito, porém, já sob o manto da atividade jurisdicional, por-
tanto, disto se sustentou a existência de uma interdependência funcional dos planos,
logo, a importância do direito processual estaria na existência de efetividade do direito
material (MITIDIERO, 2005, p. 68-72). 

Portanto, a família romano-germânica seria aquela advinda do grupo de países


em que a ciência do direito se formou a partir dos pilares do direito romano, sendo
as regras do direito tidas como regras de conduta, havendo interligação e atenção do
direito e da moral, para se determinar quais deveriam ser as regras, que é a tarefa
essencial da ciência do direito, sendo que a partir do século XIX essa família atribuiu
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
73

papel importante à lei, com os países que a compõe passando a adotar códigos (DA-
VID, 2002, p.23).

Em face dos pilares advindos do direito romano é que se faz necessária a análise
do objeto do processo a partir da processualística na acepção italiana, e apenas e tão
somente para demonstrar a importância do objeto do processo, para não sair da fina-
lidade do presente estudo.

5.4 FASES DA PROCESSUALÍSTICA ITALIANA

Da processualística italiana e seu desenvolvimento foi que historicamente o pro-


cesso civil na Itália se dividia em três fase distintas, não havendo precisão a respeito de
quando se encerrava uma para o início ou continuidade da outra, convivendo entre si
todas elas (RODRIGUES, 2014, p. 7).

Houve neste desenvolvimento uma crescente expansão de intervenção estatal


na administração dos serviço da justiça, isso porque as fases se tripartiam em: 1ª- legis
actiones; 2ª- per formula; e, por fim, a 3ª fase, classificada como a fase da extraordinaria
cognitio, tripartição realizada por José Rogério Cruz e Tucci e por Luiz Carlos de Aze-
vedo (RODRIGUES, 2014, p. 7; TUCCI, 1993, p. 22-35), sendo que havia uma prepon-
derância do caráter privado e do formalismo exacerbado nas duas primeiras fases,
abrangidas pela ordo iudiciorum privatorum.

Por sua vez, estudos apontam para a divisão dessa expansão da intenvenção es-
tatal entre a ordo iudiciorum privatorum e extraordinaria cognitio, que deixaria de ser uma
fase do processo civil romano para ser um gênero, exatamente pelo caráter público em
expansão (ROMANO, 2017). 

Na fase da legis actiones ou ações da lei, pelo fato de estarem ações previamente
estabelecidas e delineadas na lei para a tutela de direito individualizados na lei, sendo
fase em que se caracterizava uma forma rígida de processo, estando taxativamente
previstas de forma exaustiva, seja em suas obrigações, como em suas consequentes
ações, taxatividade que exigia peremptoriamente uma correspondência, logo, nesta
fase não eram mencionados os fatos que o provocavam.

No direito romano não se dizia que uma pessoa teria um direito, e sim que ela
teria uma ação, portanto, não seria titular da actio qualquer cidadão que lograsse de-
monstrar certos requisitos, e sim aquele que conseguisse se enquadrar em esquemas
preestabelecidos que evidenciasse uma situação de direito material realmente existen-
te, assim, ficava nítido que apenas teria direito a ação aquele que demonstrasse que
tinha razão (TUCCI, 1993, p. 23).

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
74

Houve nesta primeira fase a bipartição em duas etapas ou subfases, que seria
in iure e a apud iudicem ou in iudicio (GOLDSCHMIDT, 2016, p. 18), aquela subfase
desenvolvida perante um magistrado, normalmente o pretor, perante o qual as par-
tes compareciam, onde eram as ambas parte ouvidas, momento em que se debateria
formalmente a ação proposta, marcando-se então pela oralidade, onde se verificaria a
possibilidade ou não se submeter a causa ao juiz.

Nada era decidido em termos da pretensão levada ao conhecimento, e, por ser o


agente jurisdicional, a ele competiria ouvir as partes, para que se concedida a actio se
alcançasse a celebração da litis contestatio, fixando-se os elementos da controvérsia, um
procedimento in iure, onde eram praticados atos solenes, com as partes aceitando levar
o conflito ao iudex, arbitro privado que poderia ser indicado pelas partes ou por meio
de sorteio ou indicação do magistrado/pretor. (RODRIGUES, 2014, p. 08)

Nesta fase o contraditório entre as partes se dava entre a causa em que se funda-
va a vindicação (TUCCI, 1993, p. 25), e não observando-se o que se pretendia, o que
traria à evidência a importância do objeto do processo a partir da causa de pedir para
se poder delimitar a pretensão.

É importante observar que nesta fase ocorria a delimitação do objeto, das ques-
tões a serem decididas, assim como a indicação do pretor/magistrado, sendo que da
formação da litis contestatio advinha o fim da fase in iure, para dar início à etapa apud
iudicem ou in iudicio, na qual o demandante já com o objeto delimitado viria então ex-
por suas razões e produzia as provas necessárias perante o iudex/juiz, para que enfim
fosse proferida uma sentença sem fundamentação, inviabilizando qualquer possibili-
dade de nova demanda vir a ser proposta, qualquer que fosse o resultado alcançado
(RODRIGUES, 2014, p. 08, refletindo de imperium e a iurisdictio, aquela visando manter
a ordem, resguardando-se o interesse público e o privado, podendo advir uma decreta
ou um interdicta, respectivamente um fazer e uma abstenção, ou não fazer. Já a iurisdic-
tio ou o poder, poderia ser exercido de forma voluntária ou contenciosa, neste último
caso quando então seria necessária a manifestação do tribunal, enquanto que na vo-
luntária, ou graciosa não seria preciso essa manifestação do tribunal, podendo ocorrer
em qualquer dia e lugar (ROMANO, 2017). 

Já na fase do processo formular, já alterando-se a fase anterior, onde preponde-


rava a oralidade, forma afastada no período formular, sendo necessária manifestação
escrita (GOLDSCHMIDT, 2016, p. 19) nos termos da que era fixado nas ações da lei,
onde teria também a prolação de sentença sem fundamentação.

Com as fórmulas escritas já houve certa transformação, dando lugar a regras de


procedimento menos rígidas e mais adaptadas aos anseios da comunidade na época.
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
75

Nessa fase se verifica o afastamento da oralidade e do formalismo exacerbado,


passando a viger a forma escrita, esta que seria apresentada ao iudex/juiz, havendo
a mesma bipartição da fase da legis actiones entre o pretor/magistrado e o iudex/juiz,
assim, iniciar-se-ia o procedimento in iure a partir da postulação escrita ao pretor/ma-
gistrado, sendo ainda indispensável uma formalidade extrajudicial, que era a apresen-
tação da causa através de comunicação direta e antecedente ao réu pelo autor, sem que
fosse possível o uso de qualquer força a tanto desiderato, o que segundo Max Kaser
seria flexibilizável pela própria lei das XXI Tábuas (RODRIGUES, 2014, p. 09).

Após a propositura da ação ocorria a citação do demandado, momento a partir


do qual ambos compareceriam perante o pretor/magistrado com a apresentação en-
fim da pretensão formalmente, especificando a formula que entendia ser a adequada,
para que em seguida fosse permitida a apresentação da defesa. Por sua vez, se não
houvesse a apresentação da fórmula era realizada sessão preparatória, para que se
vislumbrasse a possibilidade ou não da actio postulada, que poderia acarretar até em
denegação caso inexistente a ação adequada. Contudo, se com a postulação houvesse a
confissão desde logo se daria início a execução, ao passo que se houvesse a denegação
de sua parte a causa teria tramitação normal, até que o pretor eventual concedesse a
fórmula (RODRIGUES, 2014, p. 09).

Assim, fica bem clara a importância e o espectro da forma, assim como do con-
teúdo da causa que seria levada ao conhecimento do juiz, e, apesar disso era admitidas
flexibilizações seja da parte de quem pede, ou mesmo em face de quem se pede, esta
última que se manifestaria através da exceptio (GOLDSCHMIDT, 2016, p. 20), e o pró-
ximo passo seria a nomeação de um julgador, sendo elaborada a fórmula com a parti-
cipação das partes, que redundaria na litis contestatio, com o comprometimento dos en-
volvidos sobre os limites do ato formular, para que na próxima etapa do procedimento
fossem realizadas as colheitas das provas e proferida enfim a sentença, esta limitada
pela fórmula e questões de fato e de direito ali fixadas, com um diferencial substancial
aos dias atuais, ou seja, era possível que na hipótese de não se chegar ao convenci-
mento sobre os fatos não fosse proferida qualquer sentença, quando então ocorreria
a nomeação de outro pretor/magistrado (GOLDSCHMIDT, 2016, p. 10), o que não é
admissível nos dias atuais, por mais que se questione por demais, e até se afirme, que
o judiciário não deve julgar todas as matérias, o que mais adiante será abordado, so-
bretudo diante do preceito fixado no art.5º, XXXV da Constituição Federal.

Realizadas as devidas pontuações sobre as duas primeiras fases do processo no


direito romano é até dedutível que haja a litis contestatio no período das legis actiones,
porém, é na fase formular que a funcionalidade transcende, encarrando a primeira eta-
pa do processo, classificada como a fase in iure, momento no qual não eram praticadas

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
76

medidas solenes, como é o caso de oitiva solene de testemunhas, ao contrário da fase


legis actiones. Portanto, a litis contestatio para a fase formular seria o instante em que se
realizaria uma fiscalização da fase postulatória, para que não houvesse alteração dos
limites da controvérsia, seja da parte do demandante como do demandado, sendo um
ato de consenso das partes para que fosse possível passar à fase seguinte (GOLDSCH-
MIDT, 2016, p. 11).

Logo, mais uma vez fica clara a importância e a atenção de longa data quanto
à ideia de delimitar a res iudicium deducta, pois da fórmula se depreende o objeto do
processo, parametrizando, assim, a matéria litigiosa desde o momento in iure, haven-
do o compromisso da submissão às consequências da decisão, que aprioristicamente
definia os limites da análise da demanda pelo juiz/iudex.

É preciso fazer uma diferenciação da litis contestatio para com a contestação em


nosso ordenamento jurídico processual, pois, enquanto na contestação haveria mani-
festação de natureza defensiva, ao passo que na litis contestatio o que se sopesaria seria
o comportamento das partes, fixando os limites da demanda, jungida do compromisso
de obediência à decisão, diante do que se instituíram efeitos desta última, que seriam
os efeitos 1-conservativos; 2-extintivos e 3-novatório.

O primeiro que tinha por escopo a estabilização da demanda, obstando alteração


da causa de pedir ou do pedido, portanto, seria o efeito ensejador da inalterabilidade
do daquilo que estaria sendo discutido no litigioso, alteráveis apenas excepcionalmen-
te. Já do efeito extintivo acarretaria a impossibilidade de reapresentação da mesma
demanda idêntica, por mais que nessa época fosse realizada distinção pela natureza
da ação, entre direitos absolutos e direitos pessoais, naquele caso afastando-se o efeito
extintivo, ao passo que na última não seria mais possível qualquer medida. 

Por derradeiro, do efeito extintivo se depreendeu um outro efeito decorrente,


pois da extinção da obrigação antecedente adviria uma nova relação jurídica, destarte,
acarretaria em inequívoca novação, evidentemente limitada pela litis contestatio (RO-
DRIGUES, 2014, p. 13-14), que delimitaria o conteúdo da sentença em sua efetividade
e eficácia, que residiria da exclusão da possibilidade de uma segunda ação, deixando
implícito o efeito consuntivo da litiscontestação (GOLDSCHMIDT, 2016, p. 21).

Além disso, e observando-se o efeito extintivo, surgiu uma indagação, ou seja,


quando se poderia considerar a existência de identidade de ações para que fosse viável
concluir quando seria vedada nova propositura de ação idêntica, quando então ga-
nhou relevo o estudo de quais seriam os elementos constitutivos da ação, surgindo daí
a tríplice identidade, ou seja, a existência de demanda entre as mesmas partes, causa
de pedir e pedido, ainda que houvesse na épocas certos questionamentos e exceções,
Rodrigo Ramos Melgaço
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
77

como é o caso daquelas demandas que envolviam direito pessoal e nas que abrangiam
direito real, e, como se pode ver, desde o direito italiano se vislumbrava importância
nos elementos da ação para delimitação da ação e do objeto do processo, onde havia
rigidez na estabilização da demanda, como consequência da litis contestatio (RODRI-
GUES, 2014, p. 16).

Por fim, se vislumbra a fase da extraordinaria cognitio, também conhecida por


cognitio extra ordinem, momento a partir do qual não havia mais divisão do rito perante
agentes distintos, com o processo assumindo feição pública, integralmente realizado
perante um agente estatal, com atribuição até mesmo de prolatar a decisão final, não
sendo mais relevante a vontade das partes, assim, proposta a ação perante o juiz havia
a citação do requerido, com o autor devendo apresentar sua pretensão, não mais ads-
trita a uma fórmula, sendo que a causa de pedir era pautada em fatos, independente-
mente de se conferir nome à ação, em virtude do blocardo latino iura novit curia, com a
petição do autor sendo o marco da delimitação sobre o que ficaria imutável pela coisa
jugada (RODRIGUES, 2014, p. 17).

Segundo José Rogério Cruz e Tucci, a principal mudança na estrutura do proces-


so privado for a unificação de instâncias, afastando o bipartismo, para que fosse con-
ferida a uma única autoridade estatal tanto a admissão como o julgamento da causa
(TUCCI, 1993, p. 34).   

Nesta fase ganha relevo a teoria da prova formal, com o que aumenta a interven-
ção judicial no processo (GOLDSCHMIDT, 2016, p. 23), pois a partir do instante em
que eram apresentadas formulações por escrito, desde questões jurídicas a pedido das
partes, se estava então transmitindo ao juiz a investigação da questão de fato (GOLDS-
CHMIDT, 2016, p. 22).

Já nesta fase da extraordinaria cognitio a litis contestatio ocorria na primeira audiên-


cia e somente estabelecia o momento da fixação do matéria a ser analisada, seja quanto
a alegações do autor, como também do réu, acarretando na perda de muitos dos efei-
tos, inclusive o extintiva, permitindo, assim, nova propositura de ação após a prolação
da sentença, passando esta a ser comando estatal cogente, variando a definitividade
a partir da identificação sobre o julgamento ter abrangido toda a pretensão, fazendo
coisa julgada apenas entre as partes do processo (RODRIGUES, 2014, p. 17).

Nesta fase os juízes passaram a ser públicos, não mais se portando como jurados
leigos, proferindo decisão não em nome do povo romano e sim como representantes
do poder imperial, havendo aqui um rompimento com o sistema da ordo iudiciorum
privatorum, pois o processo tornou-se público, com a causa de pedir devendo ser tra-
zida com base em fatos, onde apenas com autorização do juiz seria possível a altera-
Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
78

ção, onde passou a ser prescindível se atribuir um nomen iuris à ação, pois se estaria
concedendo ao julgamento a ingerência a partir da máxima iura novit curia, ganhando
ainda importância o princípio dispositivo, pois os limites da demanda seriam fixados
apenas e tão somente pelo demandantes quando da apresentação deste limites a partir
da petição inicia (TUCCI, 1993, p. 34).  

As parte então debatiam em um contraditório, onde a ingerência do magistrado


foi elevada, assim como o formalismo foi minorado, sendo também admitido reexame
da decisão em sede de recurso.

Portanto, como foi mencionado no início do tratamento fosse essa terceira fase,
a litis contetatio teve remodelada sua formação, desde de aspectos burocráticos e for-
mais, como em termos do momento de formação, o que ficou muito claro na época ou
período de Justiniano, onde a litis denuntiatio foi substituída pela libellus conventionis,
sendo este o documento apresentado dirigido ao juiz que apontava sucintamente a
pretensão do autor e seus fundamentos, que, após o exame sumário do magistrado se-
ria remetido ao requerido, tendo este por sua vez a oportunidade de se opor ao pleitos
apresentado na pretensão, apresentando, então a libellus contradictionis, para que mais
adiante em audiência pública se alcançasse a litis contestatio, agora não passando de
um momento processual apenas, sem a relevância existentes na fase privatista, sendo
o instante de definição da controvérsia sobre a qual o órgão julgador deveria se pro-
nunciar (TUCCI, 1993, p. 35).

5.5 A NECESSIDADE DO ABANDONO DO DOGMA DOS


ELEMENTOS DA AÇÃO

É possível depreender que algumas questões foram e são reiteradamente trata-


das antes mesmo da autonomia do processo como ciência, tal como o formalismo e sua
flexibilização com o passar dos tempos, a atribuição de poderes ao juiz e a expansão
de sua atuação, assim como a essencialidade do objeto do processo e sua delimitação.

Dessa forma, não se deve ficar adstrito a dogmas que terminam por engessar a
análise do processo como se todo o desenvolvimento do processo antes e pós autono-
mia tivesse advindo da perspectiva da actio romana, sobretudo ponderando que ine-
xoravelmente houve a junção de vieses romanos e germânicos, tanto, que atualmente
tem-se como um dos sistemas jurídicos tradicionais, o sistema romano-germânico, um
fato, assim, é preciso acompanhar o olhar do desenvolvimento histórico para alcançar
avanços e não estabilização científica.

Não por outro motivo foi que Araken de Assis (1998, p. 101) afirmou que “o
estudo do objeto litigioso se tornou um pólo fundamental do processo e instituto cen-

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
79

tralizador das soluções cabíveis aos temas principais da ciência, incluindo, por óbvio,
o cúmulo de ações. Ele representa “verdadeiro centro ao qual converge a disciplina de
inúmeros institutos processuais” (DINAMARCO).

Apesar disto, entre nós há tempos se valora com preponderância a temática sob
o viés da “ação”, tanto que os conceitos de coisa julgada e litispendência em nosso or-
denamento estão parametrizados pelos elementos tradicionais da ação (parte, pedido
e causa de pedir), assim, a ação constitui o objeto do processo, ao passo que o direito
alemão carece muito em face da imprecisão conceitual do objeto litigioso e da Anspru-
ch (pretensão em alemão).

Portanto, havendo descaminhos conceituais à “ação”, adviria, então, a necessida-


de de uma adequada compreensão do objeto litigioso, pois há um paralelo desta noção
no que tange ao desenvolvimento do instituto da “ação” (ASSIS, 1998, p. 102), enquan-
to que ambos institutos tem uma única finalidade, que é o trabalho sob o prisma da
segurança jurídica advinda de um pronunciamento jurisdicional e sua extensão, seja
proferida ou não uma sentença de mérito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível verificar neste estudo sobre o objeto do processo, e sua rele-
vância ao atingimento dos escopos do processo, sendo um deles exatamente a resposta
àquilo que se levou ao Poder Judiciário, ou seja, a busca por uma sentença de mérito, à
qual é indispensável a exata delimitação não apenas dos elementos da ação, como tam-
bém o âmbito do objeto do processo, para que assim seja o estudo mais aprofundado
a partir do instituto do objeto litigioso, quando então será preciso toda uma incursão
sobretudo à causa de pedir e sua relevância, que foi notada mesmo antes da autonomia
do processo como ciência.

Desta forma, a importância do objeto do processo é antecedente mesmo às codi-


ficações, o que diria então a partir destas e da elevação da lei como um dos núcleos do
direito, pautando-se na imperiosa previsibilidade e na análise do mérito como exterio-
rização da segurança jurídica.

Assim, a importância do objeto do processo se dá exatamente para o início da


fixação do mérito, digo início pelas divergências existentes a partir da temática, e que
até a presente data não encontra-se exaurida, sobretudo pela necessidade do abando-
no do dogma do tratamento do objeto do processo apenas e tão somente pela pers-
pectiva da actio, ou mesmo por um viés pautado apenas na flexibilização da forma e
formalismo, como se disto fosse conferir deferência à segurança jurídica, enquanto em
verdade pode acarretar numa manifesta insegurança se não houver consequencialida-

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
80

de imediata aos provimentos, mesmo que sem julgamento de mérito, em vez de sem-
pre rogar por uma flexibilização como um dogma a ser sopesado e talvez abandonado,
ao menos de forma descriteriosa, sob pena de cada vez mais afastar-se do primado da
segurança, social e jurídica.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken de. Cumulação de ações, 3ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribu-
nais, 1998.

BÜLOW, Oskar Von. A teoria das exceções e dos pressupostos processuais, 2ª Edição.
Campinas. Traduzido por Ricardo Rodrigues Gama, Ed. LZN, 2005.

BENEDUZI, Renato. Introdução ao Processo Civil Alemão, 2ª Edição. Salvador. Ed.


Juspodivm, 2018.

BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do código de processo civil. Mini Vade Me-
cum Civil e Empresarial, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da primazia da resolução do mérito e o


novo Código de Processo Civil, R. EMERJ, Rio de Janeiro, v.18, n.70, p.42-50, set-
-out.2015.

CORRÊA, Fábio Peixinho Gomes. O objeto litigioso no processo civil. São Paulo: Ed.
Quartier Latin, 2009. 

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Ed. Mar-
tins Fontes, 2002.

DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. Fundamen-


tos do processo civil moderno, t.I, 6ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.299-348.

DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de direito processual civil, Vol. I, 6ªEd.


São Paulo: Malheiros, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de direito processual civil, Vol. II, 7ªEd.
São Paulo: Malheiros, 2017.

GOLDSCHMIDT, James. Direito Processual Civil. 1ª Ed. 4ª Reimpressão, Traduzido


por Ricardo Rodrigues Gama, Curitiba: Ed. Jaruá, 2016.

LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, Belo Horizonto: Ed.


Mandamentos, 2008.

MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para um teoria contemporânea do proces-


so civil brasileiro. Porto Alegre: Ed. Livraria do advogado, 2005.

NUNES, Dierle. A função contra- fática do direito e o Novo CPC. https://www.


academia.edu/10431262/A_fun%C3%A7%C3%A3o_contra-f%C3%A1tica_do_direi-
to_e_o_Novo_CPC, 25.08.2019.

Rodrigo Ramos Melgaço


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
81

RODRIGUES, Marcos Antonio dos Santos. A modificação do pedido e da causa de


pedir no processo civil, 1ª Ed. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico Ed. GZ, 2014.

ROMANO, Rogério Tadeu. O desenvolvimento do processo civil Romano. 5.2017. 


https://jus.com.br/artigos/57766/o-desenvolvimento-do-processo-civil-romano,
25.08.2019.

SILVA, Ricardo Alexandre. A nova dimensão da coisa julgada. São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 2018.

SOBRINHO, Elicio de Cresci. Objeto litigioso no processo civil. Porto Alegre: Ed.
Sergio Antonio Fabris, 2008.

TUCCI, José Rogério Cruz. A causa petendi no processo civil. São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 1993.

Capítulo 5
REVISITANDO O OBJETO DO PROCESSO
82
CAPÍTULO 6

EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS


NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À
SAÚDE

Newton Nobel Sobreira Vita1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.6

1  Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pós-graduado em Direito Civil e Processual
Civil pela Universidade Gama Filho e em Gestão Pública pela Faculdade Getúlio Vargas (FGV). Procurador-Chefe da
Assembleia Legislativa da Paraíba.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
84

RESUMO

O presente estudo teve como objetivo analisar a efetividade das Organizações


Sociais na perspectiva do direito social à saúde. Sendo assim, apresenta o
Direito Social à Saúde que deve ser garantido pelo Estado, no cenário da sociedade
pós-moderna, apresentando as suas peculiaridades. Por conseguinte, retrata o concei-
to e particularidades das Organizações Sociais e do contrato de gestão, como alterna-
tiva para efetivo desempenho, com qualidade e eficiência, de atividades que devem
ser disponibilizadas pelo Estado, salientando a necessidade de controle pela Adminis-
tração Púbica. Nesse contexto, faz-se necessário estudar a possibilidade de garantir a
efetividade da saúde, direito social a ser assegurado pelo Estado, pelas Organizações
Sociais. A problemática a ser abordada está em estudar a viabilidade do contrato de
gestão entre as Organizações Sociais e o Estado para garantir a efetividade do Direito
Social à Saúde. Metodologicamente, vale-se de revisão e organização pela pesquisa
bibliográfica e da utilização do método dedutivo, a fim de compreender as garantias
constitucionais do Direito Social, com a efetividade de sua aplicação por intermédio
das Organizações Sociais. A partir da pesquisa, concluiu-se que é o modelo de gestão
da saúde pública por meio das Organizações Sociais de Saúde (OSS) que possibilita
maior efetividade da prestação do serviço público para a população, oferecendo meios
que assegurem o direito social à saúde.
Palavras-chave: Efetividade. Organizações Sociais. Saúde.

6.1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata sobre o contexto da Efetividade das Organizações So-


ciais na perspectiva do Direito Social à Saúde. Sendo assim, apresenta o Direito Social
à Saúde, que é uma garantia constitucional, devendo ser assegurada pelo Estado, no
cenário da Sociedade Pós-Moderna, evidenciando as suas peculiaridades, como a rela-
ção dos direitos sociais, bem como o conceito e os elementos que compõem a proteção
do Direito Social à Saúde.

Por conseguinte, retrata o conceito e particularidades das Organizações Sociais


e do contrato de gestão, como alternativa para efetivo desempenho, com qualidade e
eficiência, de atividades que devem ser disponibilizadas pelo Estado, elucidando as
disposições da Lei Federal nº. 9.637, de 15 de maio de 1998, que dispõe sobre a quali-
ficação de entidades como Organizações Sociais, a criação do Programa Nacional de
Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas
atividades por Organizações Sociais.

Por fim, apresenta a possibilidade de garantir a efetividade da saúde pelas Orga-


nizações Sociais, retratando os aspectos conceituais de eficiência, eficácia e efetividade,
Newton Nobel Sobreira Vita
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
85

além da abordagem de exemplos práticos da aplicação das OS no direito à Saúde, des-


tacando-se os casos de São Paulo, Pernambuco e Paraíba, apresentando-se uma visão
crítica.

A abordagem da pesquisa apresenta dois motivos: o primeiro se consubstancia


no dever do Estado de prover o serviço público de saúde e seus meios de proteção; e o
segundo, na dificuldade em garantir a efetividade da prestação desse serviço.

Diante disso, a problemática a ser abordada no presente trabalho se refere ao


estudo da viabilidade do contrato de gestão entre as Organizações Sociais e o Estado
para garantir a efetividade do Direito Social à Saúde, a partir de exemplos práticos.

Ademais, medotologicamente, por meio da pesquisa bibliográfica e da utilização


do método dedutivo, buscou-se analisar as garantias constitucionais do Direito Social,
com a efetividade de sua aplicação por intermédio das Organizações Socias

O modelo de gestão da saúde pública por meio das Organizações Sociais de Saú-
de (OSS) possibilita maior efetividade da prestação do serviço público para a popula-
ção, oferecendo meios que assegurem o direito social à saúde, uma vez que compete a
este setor privado, sem fins lucrativos, desempenhar com qualidade e eficiência o ser-
viço público de saúde, com fiscalização e acompanhamento da Administração Pública.

6.2 DIREITO SOCIAL À SAÚDE COMO GARANTIA DO ESTADO


NA SOCIEDADE PÓS MODERNA

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil estabeleceu um modelo


de Estado Social que visa garantir direitos por ela consagrados, tais como os previstos
no seu art. 6º, dentre os quais: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a mora-
dia, o transporte, o lazer, observando os seus princípios fundamentais que orientam
toda administração estatal, jurisdicional e política, visando a efetividade dos direitos e
garantias previstos nas normas legais.

Os postulados normativos, constitucionais e legais, estabelecem o tratamento


dado a cada direito social, buscando a sua efetivação prática, em especial, o direito à
saúde, uma vez que o direito social pode ter sua fonte na coletividade organizada, na
confiança e na participação de indivíduos que compõe grupos igualitários em colabo-
ração (WOLKMER, 2001).

Diante disso, a norma constitucional garante a proteção à saúde, abrangendo os


seguintes elementos:
(i) o direito individual de não sofrer violação por parte de terceiros (direito de de-
fesa), e

Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
86

(ii) o direito social de obter ações e serviços voltados à prevenção de doenças e à


promoção, proteção e recuperação da saúde (direito a prestação em sentido estrito).
Nessa segunda hipótese, como se percebe, respeitar o direito à saúde implica rea-
lizar o direito à saúde, dentre outras atividades, por meio da prestação de serviços
públicos. (LOUREIRO, 2006, p. 674 apud MÂNICA, 2012, p. 26)

No mesmo sentido, tratando acerca da conceituação da saúde, Correia (2010, p.


38) elucida que:
A compreensão do que seja saúde implica sua conceituação a partir da ótica de uma
política destinada à prevenção e ao tratamento dos males que afligem o corpo e a
mente humanos, com a criação inclusive de um sistema organizado que atenda aos
doentes.

Nesse ínterim, constata-se que a saúde está diretamente ligada ao estado físico,
mental e social. Além do mais, o conceito envolve o tratamento de moléstias, o forneci-
mento de medicamentos, medidas de prevenção, entre outras políticas públicas.

Por conseguinte, é imperioso destacar que o direito à saúde não está limitado ao
descrito no art. 6º da Constituição Federal, mas também ao longo do seu texto, como
o caso do art. 194, que trata da seguridade social, situando os objetivos da seguridade
social, que se destina a assegurar os direitos relativos à saúde, bem como a previsão do
art. 196, determinando que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e garantindo
um acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.

A prestação do serviço da saúde pode ser efetuada de forma direta, pelo Poder
Público, ou indireta, através de terceiro, por pessoa física ou jurídica de direito priva-
do, como também, conforme previsto no art. 227 da Carta Magna, é admitida a partici-
pação de entidades não governamentais por meio de políticas públicas.

A Constituição Federal de 1988 estabelece o direito à saúde como um direito e um


dever, exigindo uma performance prática, com eficiência e, principalmente, efetivida-
de, uma vez que visa a “a concretização da sadia qualidade de vida. Uma vida com
dignidade” (ROCHA, 2011, p. 43).

A norma legal também estabelece que a saúde é um direito fundamental, a qual


deve ser garantida pelo Estado, conforme preceitua o caput, do art. 2º, da Lei 8.080, de
19 de setembro 1990, estabelecendo que “a saúde é um direito fundamental do ser hu-
mano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”
(BRASIL, 1990).

A saúde qualificada como serviço público “remete ao plano da concepção de


Estado sobre o seu papel. É o plano da escolha política, que pode ser fixada na Cons-

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
87

tituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado tempo


histórico” (GROTTI, 2003, p. 87).

Ao qualificar a saúde como prestação de serviço público por parte do Estado, a


Administração Pública deve prestar o serviço de forma adequada e com qualidade,
bem como, de acordo com Dirley da Cunha (2012, p. 1305), “por constituir um direi-
to fundamental, o Estado tem a obrigação constitucional de disponibilizar as ações e
prestar todos os serviços necessários para garantir a saúde de todos, notadamente dos
hipossuficientes”.

Em razão da concentração da obrigação estatal de promover e garantir os direitos


à população, sobretudo, os contidos na Carta Magna, nos anos 90, o Brasil passou por
uma crise financeira, acarretando diversos prejuízos para os direitos sociais implanta-
dos pelo Estado, sobretudo a educação e a saúde.

O Estado observou que não poderia continuar nesse modelo de prestação de ser-
viços públicos, necessitando de uma reforma administrativa, que ocorreu no período
dos anos 90, chamada de Reforma Gerencial do Estado, a qual incentivou a criação e
implementação de entidades não estatais que teriam a responsabilidade de executar os
serviços públicos, de gerir recursos e atividades tipicamente públicas.

Nessa perspectiva, houve a implementação das Organizações Sociais de Saúde,


que foi a alternativa encontrada pelo Estado, adotando modelos neoliberais de Admi-
nistração Pública, existentes nos Estados Unidos e na Inglaterra, nos anos 80 (BORGES
et al, 2012).

A partir desse pensamento neoliberal, surgiram novas formas de prestação de


serviços públicos, fundamentadas na descentralização do aparelho estatal e da publi-
cização das funções públicas.

Em razão dessa reforma, o Estado buscou repensar os seus conceitos normativos


de prestação de serviço para se adequar às novas demandas da sociedade, adotando
um entendimento pós-moderno dos direitos sociais.

Inclusive, Dantas (2009) adverte que a Constitução contemporânea deve, neces-


sariamente, estar centrada nas mudanças da sociedade, com foco na nova estrutura
social, sob o risco de se ter a lei máxima do país que não se adequa a realidade para a
qual está destinada. Ainda, acrescenta que:
Vale ressaltar que neste caso, ao passar o tempo, este divórcio entre a Constituição
escrita e a realidade, provocará um Hiato Constituconal e, em conseqüência, a ne-
cessidade de convocação de uma Assembléia Constituinte, a qual, no exercício do
Poder Constituinte elaborará novo texto, agora representativo dos valores sociais
existentes (DANTAS, 2009, p. 1).

Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
88

Nesse sentido, a pós-modernidade do direito buscou analisar os novos modelos


e a sua transição uma vez que esta “produz rupturas e introduz novas definições axio-
lógicas, das quais os primeiros benefícios diretos se podem colher para os sistemas
jurídicos contemporâneos” (BITTAR, 2008, p. 142).

Sendo assim, é possível afirmar que o fim da modernidade é a ocasião de refletir


sobre a experiência oriunda deste período, o qual já se encerrou, e a pós-modernidade
se concentra neste estado de reflexão, conforme esclarece Kumar (2006).

Em razão dessa nova perspectiva, o Estado deixa de executar diretamente as ati-


vidades tidas como não exclusiva, como o caso da saúde, para ser prestada pelo setor
público e não estatal, dentre as quais se apresentam as Organizações Sociais.

6.3 AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E O CONTRATO DE GESTÃO

Conforme mencionado, no final do século XX, surgiu a imperativa necessidade


de reforma do aparelho estatal. No Brasil, tal reforma aconteceu em razão da ocorrên-
cia da crise fiscal, acrescida à emergência de uma economia globalizada, culminando
em uma nova estruturação institucional do sistema político, econômico e social, até
então capitaneada pelo modelo administrativo burocrático tradicional.

A Reforma Administrativa objetivou a instrumentalização da Administração Pú-


blica burocrática, rígida e ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno,
em uma Administração Pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendi-
mento do cidadão.

Assim, através do modelo gerencial, o Estado buscou alcançar a eficiência da


Administração Pública, restringindo custos e aumentando a qualidade dos serviços.
Nessa diretriz, a Reforma do Estado se orienta em valores de eficiência e qualidade
na prestação de serviços públicos e no desenvolvimento de uma cultura gerencial nas
organizações (PEREIRA; MONTEIRO, 2017).

Com a reforma gerencial, surgiu o projeto de reestruturação institucional, a par-


tir da qual o Estado almeja deixar de executar atividades relacionadas com os direitos
sociais, como saúde e educação, bem como atividades com pesquisa científica, desen-
volvimento tecnológico, desporto, cultura, dentre outras atividades de utilidade pú-
blica, tornando-se um de seus financiadores, sem, contudo, deixar de atuar no controle
finalístico dessas atividades (NÓBREGA, 2002).

De acordo com a doutrinadora, o Estado pretendeu transferir os serviços para


o setor público não estatal, por intermédio de um contrato de gestão, o qual conterá
a discriminação dos termos firmados entre o Estado e a entidade sem fins lucrativos,

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
89

como as Organizações Sociais (OS), desde que atendidos os requisitos consignados na


lei.

6.3.1 As Organizações Sociais

Diante do cenário exposto, em que o Estado busca a sua reforma gerencial, a Lei
nº. 9.637, de 15 de maio de 1998, foi decisiva para concretização da política de colabo-
ração entre o setor público e o setor privado, dispondo sobre a qualificação das Orga-
nizações Sociais e a criação do Programa Nacional de Publicização, estabelecendo, em
seu artigo 1º, que:
Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurí-
dicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao en-
sino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação
do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.
(BRASIL, 1998).

Nesse norte, infere-se que a Organização Social é a qualificação assegurada pelo


Poder Público à pessoa jurídica de direito privado, que não possua finalidade lucrativa
e desenvolva atividades relacionadas à saúde, cultura, esporte, atendimento ou pro-
moção dos direitos das pessoas com deficiência, atendimento ou promoção dos direi-
tos de crianças e adolescentes, proteção e conservação do meio ambiente e promoção
de investimentos, de competitividade e de desenvolvimento.

DI PIETRO (2019, p. 1.001), conceitua as Organizações Sociais como:


qualificação jurídica dada a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos,
instituída por iniciativa de particulares, e que recebe delegação do Poder Público,
mediante contrato de gestão, para desempenhar serviço público de natureza social.

No mesmo sentido, a autora Nóbrega (2002) descreve que as Organizações So-


ciais são pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, que se dedicam à ges-
tão de atividades com natureza social, desde que preencham os requisitos dispostos
na lei, firmando contrato de gestão com o Poder Público, em regime de parceria, para
alcançar os fins estabelecidos.

Adverte a doutrinadora que as Organizações Sociais não integram o sistema for-


mal da Administração Pública, mas apenas prestam os serviços de utilidade pública,
objetivando alcançar o fim para o qual foram criadas, sendo subsidiadas e controladas
pelo Poder Público.

Assim, essas entidades são organizações particulares que não estão inseridas
como parte da estrutura governamental, mas sim, com a quais o Poder Público man-
tém parcerias, a fim de que sejam desenvolvidas atividades essenciais à coletividade,
desde que seja possível a atuação da iniciativa privada, embora algumas delas, quando
exercidas pelo Estado, se constituam em serviços públicos (SCHIMITT, 2006).
Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
90

Nesse norte, estas entidades privadas são enquadradas no denominado terceiro


setor, compreendido por entidades da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos,
o qual coexiste com o primeiro setor, que é o Estado, e com o segundo setor, que é o
mercado.

De acordo com DI PIETRO (2019), no âmbito federal, podem-se destacar como


características das Organizações Sociais: a) que estas possuem natureza de pessoa ju-
rídica sem fins lucrativos; b) que as OS são criadas por particulares, sendo imperiosa a
sua habilitação perante a Administração Pública para obter a sua qualificação, sendo
declarada pela Lei nº 9.637/98, em seu art. 11, como entidade de interesse social e uti-
lidade pública; c) que as OS podem atuar nas áreas de ensino, desenvolvimento tecno-
lógico, pesquisa científica, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde;
d) que deve haver representantes do Poder Público e membrosa da comunidade, com
notória capacidade profissional e idoneidade moral, no órgão de deliberação superior
das OS; dentre outros.

É importante esclarecer que os serviços prestados pelas Organizações Sociais não


são privativos do Estado, de modo que não se tratam de concessão ou permissão de
serviços públicos, já que se constituem num dever de o Estado prestá-los diretamente,
não podendo a Administração Pública eximir-se totalmente de desempenhá-los.

Contudo, o Estado não logra êxito em prestar satisfatoriamente as atividades.


Assim, surge a necessidade de repassar a prestação dos serviços aos particulares, ob-
jetivando a garantia de acesso da população a serviços efetivos, eficientes e de boa
qualidade.

6.3.2 Os contratos de gestão

Consoante exposto ao discorrer sobre as Organizações Sociais, estas necessitam


firmar contrato de gestão com o Poder Público, o qual, nos termos da Lei nº 9.637/98,
consubstancia-se no “instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualifi-
cada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para
fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º” (BRASIL,
1998).

Nesse passo, a referida Lei federal estabelece que o contrato de gestão discrimi-
nará as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da OS, devendo
especificar o programa de trabalho proposto, as fixações das metas a serem atingindas,
os prazos de execução, bem como os critérios objetivos de avaliação de desempenho,
mediante indicadores de qualidade e produtividade.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
91

Além disso, o contrato deve prever os limites e critérios para despesa com remu-
neração e vantagens a serem percebidas pelos dirigentes e empregados da OS, além de
outras cláusulas julgadas convenientes pelo Poder Público.

DI PIETRO (2019) elucida que o desempenho do contrato de gestão será monito-


rado pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à ativida-
de fomentada. Ademais, este controle é de resultado, sendo realizado mediante análi-
se por comissão de avaliação indicada pela autoridade supervisora, por intermédio de
relatório apresentado periodicamente pela entidade, contendo comparativo específi-
co das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado da prestação de
contas correspondente ao exercício financeiro.

Sendo assim, a eficácia do contrato de gestão se dá, justamente, na possibilidade


do exercício do controle de desempenho, uma vez que há indicadores objetivos de
qualidade e produtividade, metas a serem alcançada e prazo para a sua execução, pos-
sibilitando ao Poder Público o acompanhamento dos trabalhos da entidade privada e a
verificação da atuação dos seus dirigentes, a fim de, caso necessário, adotar as medidas
cabíveis, que pode se dar na substituição dos diretores ou até mesmo na cassação do
título de Organização Social.

De tal modo, é de competência da Administração Pública a fiscalização do cum-


primento das metas acordadas no contrato de gestão, além da verificação da execução
do contrato, cujo controle deve ser focado nos resultados, que são as metas atingidas
pela Organização Social, e nos meios, que são as formalidade previstas na lei e no con-
trato (CUNHA, 2016).

Nesse contexto, caso haja irregularidade na utilização de recursos públicos, o


órgão ou entidade supervisora deve dar ciência, ao Tribunal de Contas da União, sob
pena da incidência de responsabilidade solidária. Por conseguinte, havendo indícios
fundados de malversação de bens ou recursos de origem pública, o Órgão de Fiscali-
zação deve representar ao Ministério Público, à Advocacia da União ou à Procuradoria
da entidade para que requeira em juízo a indisponibilidade de bens da entidade e o
sequestro de bens dos seus dirigentes, bem como de agente público ou terceiro, que
possam ter enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público, confor-
me dispõe o art. 10 da Lei mencionada.

Conforme relatado, a Administração Pública pode proceder com a desqualifica-


ção da Organização Social, desde que precedida por prévio procedimento adminis-
trativo, sendo-lhe assegurada o contraditório e a ampla defesa. Caso haja a desquali-
ficação da OS, haverá a rescisão do contrato, além da reversão dos bens cedidos por
permissão de uso e dos valores entregues à entidade.
Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
92

Portanto, infere-se que as Organizações Sociais são pessoas jurídicas de direito


privado, sem fins lucrativos, que objetivam desempenhar serviços sociais que não se-
jam exclusivos do Estado, com incentivo e fiscalização pelo Poder Público, mediante
vínculo jurídico instituído pelo contrato de gestão, o qual foi criado pelo legislador
para definir as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e das Or-
ganizações Sociais.

6.4 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS ATUANDO DE FORMA


COMPLEMENTAR NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE
SAÚDE

O regramento constitucional, em seu art. 199, estipulou a participação da iniciati-


va privada na assistência à saúde, nos moldes das diretrizes do Sistema Único de Saú-
de, por meio de contrato ou convênio, tendo preferência pelas entidades filantrópicas
e as entidades sem fins lucrativos, como as Organizações Sociais.

Nesse sentido, é válido explanar os elementos avaliadores da prestação de ser-


viço público, necessários para observar o cumprimento das normas, princípios e ob-
jetivos estipulados no regramento do direito público, tais como: a eficiência, eficácia e
efetividade.

6.4.1 Eficiência, eficácia e efetividade na Administração Pública

O princípio da eficiência foi inserido no artigo 37, caput, da Constituição Federal,


como princípio constitucional da Administração Pública, através da Emenda Constitu-
cional nº. 19, de 04 de junho de 1998, proveniente da reforma administrativa que cul-
minou na transição da administração pública burocrática para administração pública
gerencial.

Em atendimento a este princípio, o administrador público tem o dever de efi-


ciência, consistente no uso adequado dos recursos financeiros e na apreciação entre o
custo e o benefício, com a finalidade de atingir o máximo do resultado. Desse modo, a
Administração Pública possui a obrigação de ter o elevado padrão de qualidade, com
atividade célere, menor custo e perfeição técnica.

A eficácia, por sua vez, possui relação com os meios e instrumentos que a Admi-
nistração Pública irá empregar, para consecução dos seus objetivos. Sendo assim, a efi-
cácia se coaduna com a intermediação entre os objetivos pretendidos, a fim de alcançar
os resultados, compreendendo o ambiente, necessidades e desafios (MAXIMILIANO,
2000).

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
93

A literatura moderna acrescentou, ainda, um terceiro conceito válido para a Ad-


ministração Pública: a efetividade, que, na Administração Pública, se preocupa com a
aferição da medida dos resultados, consubstanciando-se nos benefícios que determi-
nada ação estatal poderá trazer para a população. Sendo assim, a efetividade é mais
abrangente que a eficácia, uma vez que a segunda indica se o objetivo foi atingindo,
enquanto que a primeira demonstra as melhorias que o objetivo trouxe para a popula-
ção beneficiada (CASTRO, 2006).

Nesse norte, a Administração Pública, através da análise da efetividade de seus


atos, poderá concluir quais os benefícios que suas ações trouxeram para a população
que fora beneficiada com as ações públicas, no sentido das melhorias que ocasionaram
aos indivíduos.

Nas precisas palavras de TORRES (2004, p. 175):


Efetividade: é o mais complexo dos três conceitos, em que a preocupação central é
averiguar a real necessidade e oportunidade de determinadas ações estatais, deixan-
do claro que setores são beneficiados em detrimento de que outros atores sociais.
Essa averiguação da necessidade e oportunidade deve ser a mais democrática, trans-
parente e responsável possível, buscando sintonizar e sensibilizar a população para
a implementação das políticas públicas.

No mesmo sentido, é importante esclarecer a diferença entre eficácia e efetivi-


dade, ressaltando que ambos não são considerados eficiência, contida nos moldes da
Carta Magna. Isso porque, a eficácia é o atingimento das metas traçadas pela Admi-
nistração Pública, ao passo que a efetividade consagra a importância dos resultados
planejados. Já a eficiência, é a relação existente entre o custo versus beneficio, ou uso
adequado dos recursos públicos para alcançar os melhores resultados com o mínimo
de custo.

Nesse contexto, infere-se que a eficiência, eficácia e efetividade não se confun-


dem, pois cada uma tem um sentido próprio. A eficiência se relaciona com o desempe-
nho da atividade administrativa, a eficácia tem relação como os meios e instrumentos
empregados na Administração e, enfim, a efetividade é direcionada para os resultados
almejados pela Administração Pública.

Ocorre que, a prestação do serviço social à saúde por parte do Estado apresen-
ta-se de maneira crítica e deficitária, sobretudo em razão da ineficaz gestão adminis-
trativa, culminando em uma má prestação de assistência à população, principalmente
àquela que vive em regiões periféricas e de difícil acesso.

Diante disso, a realização de parcerias entre o setor público e as Organizações


Sociais para prestação de serviços destinados à saúde podem figurar uma melhoria

Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
94

no acesso desse direito social à população, garantindo um serviço eficiente, eficaz e,


inclusive, efetivo.

6.4.2 A atuação das Organizações Sociais na prestação da saúde

A partir da Reforma gerencial do Estado, pretendendo torná-lo mais eficiente e


efetivo, a Administração Pública passou a delegar atividades não exclusivas a entida-
des sociais sem fins lucrativos, por intermédio do contrato de gestão, o qual estabelece
metas, indicadores, relatórios de prestação de contas, dentre outros, constituindo uma
alternativa para a expansão de hospitais e melhoria da qualidade do serviço público
de saúde.

Contudo, Travagin (2017), lançando um olhar crítico às OSS, adverte que a trans-
ferência de atividades do setor público para as entidades do terceiro setor, se trata de
uma decisão política, contida em um contexto capitalista, e não apenas um arranjo
administrativo.

De acordo com a autora, a gestão por meio de OS é uma forma de transferência


de serviços do setor público para o setor privado, constituindo-se em uma privati-
zação disfarçada de parceria e expansão do setor privado de saúde respaldada pelo
próprio Estado brasileiro, aduzindo, ainda, que o mecanismo de gestão da saúde por
OSS dificulta a implantação plena do SUS no Brasil, eximindo o Estado da responsabi-
lidade de garantir a assistência à saúde.

Entretanto, é possível aferir que as Organizações Sociais de Saúde (OSS) podem


ser responsáveis pela administração dos hospitais, visando o atendimento da popula-
ção, bem como o uso apropriado dos recursos públicos, garantindo uma melhor pres-
tação do serviço.

Diante do contexto da Reforma da máquina administrativa estatal, O Estado de


São Paulo optou por delegar a administração da saúde a Organizações Sociais de Saú-
de por meio de uma lei estadual que exige uma comprovação de assistência à saúde e
à cultura, com um período superior a cinco anos, para que as entidades privadas sejam
qualificadas como organização social.

Essa lei foi regulamentada através da Lei Complementar nº 846/98, que permitia
a parceria do Estado de São Paulo com entidades privadas sem fins lucrativos para o
exercício de atividade não exclusiva do Estado.

Além disso, a lei regulamentou sobre o instrumento legal dessa parceria, por
meio do contrato de gestão que estabelece as metas e resultados, o modelo de assistên-
cia à saúde e transparência das transferências dos recursos públicos repassados a essas

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
95

entidades, exercendo um acompanhamento e fiscalização desses serviços (Estado de


São Paulo, 1998).

Essas organizações prestaram os seus serviços inicialmente a quinze hospitais,


sendo estes localizados em regiões do Estado com vulnerabilidade social e desprovi-
dos de atendimentos médicos públicos, tendo a finalidade de garantir o acesso público
à saúde, principalmente à população carente e hipossuficiente.

Diante disso, o relatório expedido pela Secretária do Estado de São Paulo de-
monstrou um comparativo entre a execução da administração hospitalar realizada
pela Administração Direta e por meio das Organizações Sociais (ADRIANO, 2016).

Nesse estudo, houve uma pesquisa de satisfação dos usuários no ano de 2015,
demonstrando um resultado positivo na prestação do serviço. Além disso, o relatório
destaca que os hospitais administrados pelas Organizações Sociais atingiram grau de
excelência, possuindo inclusive certificação máxima de qualidade, atingindo a eficiên-
cia e efetividade na prestação de serviço público de saúde. Ressaltando, ainda, que os
nove melhores hospitais públicos de excelência no Brasil são geridos por OSS, sendo
um situado no estado do Pará e os demais no estado de São Paulo.

Em razão disso, a conclusão do relatório foi no sentido de que nas unidades


hospitalares atendidas pelas Organizações Sociais, o gasto por paciente-dia foi de R$
1.245,90, enquanto os administrados pelo Estado o valor foi de R$ 1.616,92, gerando
uma diferença de 23% (vinte e três por cento), como também concluiu que houve uma
economia de 15% (quinze por cento), uma vez que o gasto por saída foi de R$ 10.997,12
para os Estados e de R$ 7.435,66 para as Organizações Sociais de Saúde

No Estado de Pernambuco, as Organizações Sociais foram regulamentadas atra-


vés do Decreto nº 11.743/2001, sendo implementado somente a partir de 2009, tendo
a sua regulamentação realizada por meio daL Estadual nº 15.210, de 19 de dezembro
de 2013, a qual dispõe sobre as Organizações Sociais de Saúde no âmbito do Estado de
Pernambuco.

O Hospital Miguel Arraes foi implantado nesse modelo de gestão, sendo o pri-
meiro a assinar o contrato de administração do hospital através das Organizações So-
ciais, possuindo 180 leitos, 977 profissionais, e tornou-se referência estadual em en-
doscopia digestiva e traumato-ortopedia (PERNAMBUCO, 2013). Além do mais, em
2014, a administração estadual informou que houve assinatura do contrato de gestão
de mais oito hospitais, sob a gestão das Organizações Sociais (PERNAMBUCO, 2014).

No entanto, a administração dos hospitais apresenta algumas problemáticas que


estão relacionadas aos empregados que criticam a falta de um plano de trabalho, salá-
Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
96

rios baixos e alta rotatividade, bem como não há uma política de recrutamento, avalia-
ção e de desenvolvimento dos servidores.

O Estado da Paraíba possui contratos firmados com as Organizações Sociais des-


de 2011, com o objetivo de alcançar agilidade e flexibilidade na gestão estadual. No to-
tal, 10 unidades de Saúde, de diferentes perfis e regiões, são geridas por OS na Paraíba.
Estes contratos são regulamentados pela Lei Estadual nº 9454, de 06 de novembro de
2011, que instituiu o Programa Gestão Compatuada, bem como pela Lei Estadual nº
11.232, de 11 de dezembro de 2018, a qual criou a Superintendência de Coordenação e
Supervisão de Contratos de Gestão.

Entretanto, diversamente do exemplo apresentado de gestão das OSS no Estado


de São Paulo, no Estado da Paraíba tal adoção de gestão não resultou em benefícios
para a população e a Administração Pública. Na palestra conduzida pelo conselheiro
do Tribunal de Contas da Paraíba, Dr. Nominando Diniz, no encontro denominado “A
fiscalização das Organizações Sociais pelos órgãos de controle externo, realizado no
último dia 19, no MPDF”, em 2016, foi demonstrado, através da análise da economici-
dade, que as OSS estavam causando prejuízo para o Estado.

Sob a perspectiva na economicidade, restou evidenciado que o Hospital de Trau-


ma de João Pessoa (OS) possuía o total de 148 leitos, sendo-lhe pago o total de R$
118.128.199,76, enquanto que o Hospital de Trauma de Campina Grande (GE-SS) apre-
sentava 220 leitos, sendo pago o montante de R$ 33.943.878,65. Igualmente, confron-
tando-se os resultados entre o Hospital Regional de Patos (GE-SS) e a Maternidade de
Patos (OS), percebeu-se a imensa discrepância entre os recursos públicos aplicados.
O primeiro apresentava 115 leitos, sendo paga a importância de R$ 8.272.332,70, já o
segundo apresentava apenas 94 leitos, sendo investido o valor de R$ 32.153.653,45.

A partir desse estudo, verificou-se que a implantação das OSS no Estado da Pa-
raíba não atingiu um propósito econômico para o poder público, uma vez que os hos-
pitais geridos por OSS apresentavam menor número de leitos, e, em contrapartida,
demandava maior investimento financeiro por parte do Estado. Sendo assim, a admi-
nistração dos hospitais pelas Organizações Sociais no Estado da Paraíba não ocorreu
nos moldes propostos na lei e no contrato de gestão relativo a esse modelo de gestão
administrativa.

Devido a isso, o Ministério Público da Paraíba e o Estado da Paraíba celebraram


um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) visando regulamentar a contratação
dessas organizações, objetivando estipular os procedimentos de qualificação, seleção,
contratação de organizações sociais, contratação de terceiros e seleção de pessoal por
parte das organizações contratadas pelo Estado.
Newton Nobel Sobreira Vita
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
97

Em razão desse Termo de Ajustamento, o governo estadual não pode iniciar e


nem dar seguimento a qualquer qualificação, seleção e contratação de Organizações
Sociais enquanto não for cumprido os requisitos assinados no Termo de Ajustamento
de Conduta, além disso, houve a suspensão temporária das contratações já efetuadas.

Em razão do exposto, percebe-se que a aplicação das OSS podem ser efetivas
para o setor de saúde, desde que haja, por parte do Estado, a devida fiscalização e
acompanhamento dos resultados pretendidos, eis que tal competência lhe é atribuída.

6.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal brasileira de 1988 constituiu o modelo de Estado Social,


assegurando garantias que devem ser efetivadas pelo Estado, destacando-se a presta-
ção de serviços à saúde, a qual pode ser desempenhada tanto diretamente pela Admi-
nistração Pública, quanto por intermédio da participação de entidades não governa-
mentais, objetivando a execução de políticas públicas.

No final do século XX, surgiu a necessidade de reforma do aparelho estatal, deno-


minada reforma gerencial, estabelecendo uma reestruturação institucional, por meio
da qual o Poder Público deixou de executar, diretamente, atividades não exclusivas
relacionadas com os direitos sociais, como saúde e educação, passando a gestão dessas
atividades para as Organizações Sociais, que são pessoas jurídicas de direito privado,
sem fins lucrativos, por intermédio do contrato de gestão, o qual estabelece as atribui-
ções, responsabilidades e obrigações do Poder Público e dessas entidades privadas.

Diante desse cenário, as Organizações Sociais passaram a gerir os hospitais pú-


blicos, sendo denominadas de Organizações Sociais de Saúde, com a finalidade de
prestar um serviço público de saúde com presteza, qualidade e eficiência, destacan-
do-se que no Estado de São de Paulo pôde-se constatar um bom desempenho dessas
OSS, como também no Estado de Pernambuco, entretanto, o mesmo resultado não foi
obitido no Estado da Paraíba.

Ocorre que é papel do Estado efetuar a fiscalização e acompanhamento dos re-


sultados e as metas pretendidas com essa parceria, que são delimitados no contrato de
gestão, a fim de averiguar o desempenho das OSS, a prestação de contas, bem como as
melhorias prestadas à população através da atuação dessas entidades privadas.

Portanto, conclui-se que é possível alcançar a efetividade dos serviços sociais


de saúde por intermédio das parcerias entre o setor público e o terceiro setor, através
das OSS, conforme restou averiguado nos hospitais de São Paulo geridos pelas OSS,
os quais ocupam os primeiros lugares como hospitais de excelência no Brasil, desde

Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
98

que o Estado cumpra com a sua obrigação de fiscalizar e acompanhar o desempenho


dessas gestões.

REFERÊNCIAS
ADRIANO, E. R. Organizações Sociais de Saúde (OSS). Secretaria de Esta-
do da Saúde de São Paulo. 2016. Disponível em: <https://ses.sp.bvs.br/wp-con-
tent/uploads/2017/05/CGCSS-CCTIES_apresentado-na-reuni%C3%A3o-Holan-
da-201016_Dr.-Eduardo.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2019.

BITTAR, E. C. O direito na pós-modernidade. Revista Sequência. n. 57. dezembro,


2008. 131-152.

BORGES FT, et al. Anatomia da privatização neoliberal do Sistema Único de Saúde:


o papel das Organizações Sociais de Saúde. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

CASTRO, R. B. Eficácia, Eficiência e Efetividade na Administração Pública. 2006.


Enanpad 2006. 30º encontro da Anpad. 23 a 27 set. 2006. Salvador, BA. Disponível
em: <http://www.anpad.org.br/enanpad/2006/dwn/enanpad2006-apsa-1840.pdf>.
Acesso em 10 jul. 2019.

CORREIA, M. O. G.; CORREIA, É. P. B. Curso de Direito da Seguridade Social. 5. ed.


São Paulo: Saraiva, 2010.

CUNHA, A. C. N. M. F. da C. As Organizações Sociais de Saúde na cidade de São


Paulo e a efetivação do Direito Fundamental à Saúde. 2016. 280 f. Dissertação (Me-
strado em Direito), Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, 2016.

CUNHA, D. da. Curso de direito constitucional. 6ª ed. Bahia: Ed. JusPodium, 2012.

DANTAS, I. A pós-modernidade como novo paradigma e a teoria constitucional do


processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2234, 13 ago.
2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/13310>. Acesso em: 27 jul. 2019.

DI PIETRO, M. S. Z. Direito Administrativo. 32 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

GROTTI, D.A. M. O serviço público e a Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros,


2003.

KUMAR, K. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mun-


do contemporâneo. Tradução de Ruy Jungmann, tradução do capítulo I de Carlos Al-
berto Medeiros. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006

MÂNICA, F. B. Saúde: um direito fundamental social individual. Revista Brasileira


de Direito da Saúde. v. 1. jul./dez. 2011. Brasília: CMB, 2012, p. 21-34.

NÓBREGA, T. C. de A. As organizações sociais: uma tentavida de mudança do para-


digma de gesão pública social no Brasil. 2002. 103 f. Dissertação (Mestrado em Direito),
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2002.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
99

PEREIRA, M. M. F.; MONTEIRO, J. D. F. As Parcerias Público-Privadas: viabilidade


de aplicação no sistema prisional brasileiro. Cognitio Juris, v. VII, p. 170-200, 2017.

PERNAMBUCO. Secretaria Estadual de Saúde. 2014. Organizações Sociais de Saúde


em Pernambuco: mais uma alternativa para consolidação do SUS. Recife, 2014. Dis-
ponível em <https://www.scielosp.org/article/sdeb/2017.v41n112/122-132/pt/>.
Acesso em: 28 de jul. 2019.

PERNAMBUCO. Secretaria Estadual de Saúde. 2013. Hospital Metropolitano Nor-


te-Miguel Arraes de Alencar. 2013. Disponível em: <http://portal.saude.pe.gov.br/
hospitais/hospital-metropolitano-norte-%E2%80%93-miguel-arraes-de-alencar/>.
Acesso em: 28 de jul. 2019.

ROCHA, J. C. de S. Direito da Saúde: Direito Sanitário na Perspectiva. 2. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2011.

SCHIMITT, A. V. O Programa Nacional de Publicização (PNP). Revista Jus Navigan-


di, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1187, 1 out. 2006. Disponível em: <https://jus.
com.br/artigos/8994>. Acesso em: 27 jul. 2019.

TORRES, M. D. de F. Estado, democracia e administração pública no Brasil. Rio de


Janeiro: Editora FGV, 2004.

TRAVAGIN, L. B. O avanço do capital na saúde: um olhar crítico às Organizações So-


ciais de Saúde. 2017. Saúde debate. Rio de Janeiro. v. 41, n. 115, p. 995-1006, out-dez.
2017.

WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito.


São Paulo: Alfa-omega, 2001.

Capítulo 6
EFETIVIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
100
CAPÍTULO 7

INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER


NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS
CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA
FEDERAL DE 1988 A 2018

Andréa Cangussú André1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.7

1 Assessora Parlamentar do Bloco Democracia e Luta na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Graduada em
Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF e em Administração Pública pela Universidade Presidente
Antônio Carlos (2004).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
102

RESUMO

A presenta uma análise quantitativa da representação feminina na Câmara


Federal, no período pós Constituição de 1988 até as eleições de 2018. O ar-
tigo tem como principal assunto analisar as mudanças constitucionais e na legislação
infraconstitucional que impactaram os processos eleitorais nesse período no que tan-
ge a representação de gênero na Câmara Federal. A tabelas apresentadas no artigo
demonstram o percentual de candidaturas, o percentual de preenchimento das cotas
de gênero, quantitativo de deputadas federais eleitas e o percentual de financiamen-
tos privados e público de campanhas femininas. O artigo demonstra que além dos
fatores culturais e históricos, outros fatores incidem diretamente sobre as causas da
baixa representatividade de gênero no Parlamento brasileiro, como a combinação do
ordenamento jurídico-político que articulava sistema proporcional com lista aberta e
financiamento privado de campanha, a reserva de vagas sem obrigatoriedade ou coa-
ção legal para os partidos e coligações que não cumprissem as cotas.
Palavras-chave: Mulheres, Política, Representação, Cotas de Gênero, Câmara Federal.

7.1 INTRODUÇÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988 e as mudanças no ordenamen-


to político-jurídico brasileiro ocorridas nas últimas décadas, tais como a inclusão das
cotas de gênero, a promoção e difusão da participação feminina interna nos partidos
políticos com garantia de 5% do fundo partidário e o financiamento público de campa-
nhas com a garantia de cota mínima de 30% para as mulheres, podemos observar um
crescimento na representação de gênero na Câmara Federal. Este artigo propõe uma
análise quantitativa da representação de gênero na Câmara Federal após a promulga-
ção da Constituição Federal de 1998, bem como das mudanças ocorridas no ordena-
mento político-jurídico vigente nos pleitos eleitorais.

7.2 REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO ENTRE 1990-2006 E A BAIXA


EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NO
PARLAMENTO

O atual ordenamento jurídico brasileiro foi consagrado na aprovação da Cons-


tituição de 1988, no período de redemocratização do Brasil pós ditadura militar. Foi
carinhosamente chamada pelo então presidente da Câmara, Deputado Ulysses Gui-
marães, de “Constituição Cidadã”. Sua elaboração e promulgação, contou com inten-
sa participação da sociedade. Os movimentos de mulheres e feministas conseguiram
incluir na Carta Magna importantes reivindicações de suas lutas históricas, sendo as
principais: a igualdade entre homens e mulheres e igualdade de deveres e direitos na
sociedade conjugal entre homens e mulheres. Tais dispositivos, não deixam dúvidas

Andréa Cangussú André


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
103

quanto à importância que a Constituição confere ao princípio da igualdade, tão ampla


quanto possível, entre homens e mulheres.

O histórico da representação das mulheres na Câmara Federal tem clara corre-


lação direta, entre outros fatores, com o regime democrático, especialmente após o
início do processo de redemocratização brasileiro pós-ditadura militar dos anos 1980
(FOLHA DE SÃO PAULO, 1994). Até as Eleições regionais de 1982, a representação
de gênero na Câmara Federal foi marcada pela baixíssima e inexpressiva representa-
ção, exceto em 1966. A partir do processo de abertura política, nas Eleições de 1982,
foram eleitas oito mulheres, em 1986, para o Congresso Nacional Constituinte, foram
26. O número de mulheres vem aumentando paulatinamente Eleição após Eleição,
exceto em 1998. Não é preciso teorizar muito para entender que, num regime onde os
indivíduos e as organizações da sociedade civil e os movimentos sociais possuem li-
berdades básicas de opinião, direito a organizar e participar politicamente, segundo as
identidades e as bandeiras sociais que melhor convier, sem dúvida alguma favorecem
a ampliação da participação de segmentos historicamente excluídos da representa-
ção, como as mulheres. Outros fatores também aqui já discutido contribuíram, como a
obrigatoriedade do voto feminino instituída pelo Código Eleitoral de 1965 e ratificada
pela Constituição de 1988, a permissão dos votos para analfabetos também segundo a
CF 1988.

Entre as Eleições de 1994 e 1998, duas importantes mudanças legislativas acon-


teceram em favor da representação gênero: em consequência da realização da IV Con-
ferência Mundial da Mulher em Pequim, da qual o Brasil foi signatário, que estabele-
cia, entre outros compromissos, a adoção de medidas para ampliar a representação,
o Parlamento brasileiro aprovou a inclusão do dispositivo da política de cotas de gê-
nero de 20% das candidaturas para o legislativo municipal em 1996, por meio da Lei
9.100/1995. Mas como nos lembra Martins (2007), o que o Parlamento teria “concedi-
do” com umas das mãos, ele retiraria com a outra. “No entanto, a negociação para a
aprovação da cota resultou também em um aumento do número de candidatos que os
partidos/coligações pudessem lançar em cada pleito, de 100% (cem por cento) como
era anteriormente, para 120% (cento e vinte por cento) do número de lugares a serem
preenchidos.” (MARTINS, 2007, p. 19).

A aprovação da chamada Lei das Eleições 9.504/97 também estendeu as cotas


para as eleições proporcionais estaduais e federais, aumentando a cota de 20% para
30% (com a cota transitória de 25% para as Eleições de 1998), mas por outro lado, au-
mento o número total de candidaturas de um determinado partido ou coligação para
150% do total de vagas para à respectiva Assembleia Legislativa ou para a Câmara dos
Federal. Mas a inclusão do dispositivo de cotas deixou claro toda sorte de dificuldades

Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
104

e lutas que serão necessárias travar em favor da promoção da representação de gênero


no Legislativo Federal. Como outra vez, nos revela Martins (2007).
Porém, o objetivo maior das cotas de representação, viabilizar o aumento da partici-
pação política institucional, depende da sua capacidade em deslocar atores mascu-
linos em favor das mulheres, que são sub-representadas. Parece incoerente declarar
que uma política que busca o equilíbrio de poder entre os gêneros possa atentar
contra o princípio da igualdade. Além disso, a preocupação com a paridade, para
que nenhum dos gêneros tenha superioridade sobre o outro na representação, não é
convincente. Parece surreal o legislador acreditar que a mulher, até então sub-repre-
sentada em todas as instâncias de poder, venha a superar o homem nas eleições por
causa das cotas. Todas as evidências demonstram que os homens não necessitam de
proteção especial da lei para garantir os seus direitos de acesso aos cargos eletivos,
em resumo não fazem parte de um grupo vulnerável ou minoria, como as mulheres.
(MARTINS, 2007, p. 21).

Já na primeira Eleição com a vigência da cota, em 1998, ficou claro seus limites,
brechas e falhas. Mesmo com a existência de uma Lei que orientava a necessidade
de um contingente mínimo de candidaturas femininas, os partidos e coligações não
indicaram sequer metade do mínimo estabelecido de 25%. Isso se deu em função da
ausência de qualquer mecanismo ou constrangimento legal para aqueles que não cum-
prissem o estipulado em lei. E a Lei incidia apenas sobre a lista potencial não sobre
a efetiva; a Lei determinava a reserva, não o preenchimento efetivo. A ampliação do
número total de candidaturas ofereceu aos partidos a chance de manter e acomodar
todos os candidatos do gênero masculino tradicionalmente privilegiados. Com o au-
mento do número total de candidaturas, não foi necessário retirar uma única vaga de
candidatura masculina, em favor da inclusão das mulheres. Novamente como ressalta
Martins (2007, p. 24), “os partidos aproveitaram a brecha da legislação que determina-
va apenas a reserva, mas não o preenchimento, e não completaram as vagas, deixan-
do-as no todo ou em parte vazias.”.

As Eleições de 2002 a representação das mulheres cresceu 48% em comparação


ao pleito de 1998, passando de 29 eleitas para um total de 42 eleitas para 52ª Legisla-
tura. Esse expressivo salto não está mais relacionado à conjuntura política de 2002, do
que as mudanças no ordenamento político-jurídico. A ampliação da representação de
gênero se deu entre os partidos de esquerda, como releva matéria publicada no portal
da Câmara Federal. Nas Eleições 2006, não houve nenhum fator legislativo ou conjun-
tural que refletisse positivamente na elevação mais substantiva do total de representa-
ção das mulheres na Câmara Federal.

A tabela 1 apresenta o número absoluto de mulheres eleitas para à Câmara Fede-


ral no período de 1990-2006 e a tabela 2 o percentual total de candidaturas de mulheres
para à Câmara Federal.

Andréa Cangussú André


Eleição Nº total de Candidaturas % Candidaturas
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES Candidaturas Mulheres em termos
105
absolutos
1990 3.827 de Mulheres Eleitas
Tabela 1 - Número x Percentual 229entre 1990-2006 para Câmara
5,98 dos Deputados
1994 19901 3.008 1994 185
1998 2002 6,15 2006
1998 3.417 353 10,3
2002
Candida Núme 4.289
% Núme % 490
Númer % Núme 11,4
% Núme %
2006 ro 4961 ro o
630 ro 12,7 ro
tas
Eleita 5,7 Eleita 6,4 Eleitas 4, Eleita 8,18 Eleita 8,9
Eleitas s 6 Fonte:
s Eneida
3 Martins
29 (2007)
09 s s 6
Deputa 29 32 42 46

da
Federal

1Para a 49ª Legislatura (1991-1995), a composição da Câmara dos Deputados passou de 495 para 503
parlamentares, em função da transformação dos antigos territórios federais do Amapá e de Roraima
em Estados, garantindo-lhes oito cadeiras. Posteriormente, a Lei Complementar 78/93 aumentou a
representação de São Paulo de 60 para 70 cadeiras. Totalizando assim os atuais 513 assentos da
Câmara Federal.
Fonte: Eneida Martins (2007)

Tabela 2 – Percentual Total de candidaturas de Mulheres para à Câmara Federal 1990-2006

Eleição Nº total de Candidaturas % Candidaturas


Candidaturas Mulheres em termos
absolutos
1990 3.827 229 5,98
1994 3.008 185 6,15
1998 3.417 353 10,3
2002 4.289 490 11,4
2006 4961 630 12,7

Fonte: Eneida Martins (2007)

Conforme Vogel (2019, p. 41), a Lei 12.034/2009 introduziu três alterações na po-
lítica de ação afirmativa relativa às candidaturas de mulheres. A primeira delas, a subs-
tituição da expressão “deverá reservar” por “preencherá”, na redação do § 3º do art.
10 da Lei 9.504/97, que estabelece o percentual mínimo para o registro dos candidatos
de cada gênero. A segunda estabeleceu percentual mínimo de 5% do total de recursos
recebidos do Fundo Partidário para a destinação, criação e manutenção de programas
para incentivo à participação política das mulheres. E terceiro, a reserva de mínimo de
1
Para a 49ª Legislatura (1991-1995), a composição da Câmara dos Deputados passou de 495 para 503
10% do tempoem
parlamentares, defunção
propaganda partidária
da transformação gratuita
dos antigos de rádio
territórios e TV
federais dopara também
Amapá promo-
e de Roraima em
Estados, garantindo-lhes oito cadeiras. Posteriormente, a Lei Complementar 78/93 aumentou a representação
çãodeeSão
difusão da participação feminina. Essa última medida foi prejudicada, em razão
Paulo de 60 para 70 cadeiras. Totalizando assim os atuais 513 assentos da Câmara Federal.
Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
106

das alterações da legislação de 2017 que, entre outras coisas, extingui a propaganda
obrigatória para os partidos nos veículos de comunicação de massa gratuitos.

A tabela 3 demonstra o impacto da efetividade da Lei 12.034/2009 para o cumpri-


mento da cota de candidaturas de gênero nas Eleições 2010, 2014 e 2018.

Tabela 3 - Cumprimento da Cota de candidaturas de Gênero nas Eleições 2010, 2014 e 2018

Eleição 2010 2014 2018


Número Percentu Número Percentu Número Percentu
absoluto al absoluto al absoluto al
do cargo do cargo do cargo
Candidatas 934 19,07% 1.724 29,35% 2.426 31,64%
Deputada
federal

Fonte: Backes, Vogel e Costa (2019)

Conforme dados de Eneida Martins (2007), nas Eleições de 2006, última antes da
vigência da nova lei foram candidatas à Câmara Federal 630 mulheres, o que corres-
pondia à 12,7%, mas já em 2010 esse número saltou para 934, 19, 07%; em 2014 foram
1724 candidatas, com 29,35% total; e em 2018, 2.426 candidatas e 31,64% do total. Ou
seja, foram necessários 20 anos e 5 Eleições para a política de ação afirmativa de gê-
nero, nas candidaturas à Câmara Federal serem efetivamente cumpridas. Apesar do
aumento significativo de candidaturas de mulheres para à Câmara Federal, não houve
aumento automático do número de eleitas. Essas alterações, como demonstrado a se-
guir, só se efetivará em 2018.

7.3 OS IMPACTOS DAS MUDANÇAS DA LEGISLAÇÃO POLÍTICO-


ELEITORAL SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO NAS
ELEIÇÕES 2018.

As mudanças no ordenamento jurídico-político que regeram as eleições gerais


de 2018 começaram a ser gestadas no ano de 2013 em razão de dois grandes eventos
políticos e sociais que pressionaram por mudanças nas instituições representativas. O
primeiro fator foram as chamadas manifestações sociais em 2013 realizadas durante
o período da Copa das Confederações da FIFA, em sua maioria jovens urbanos, es-
colarizados e de classe média sem organização ou liderança de organizações da so-
ciedade civil ocuparam as ruas das capitais e grandes cidades do país com dezenas
de pautas difusas, mas muitas delas convergiam para reivindicações de melhorias a
direitos sociais como saúde, educação, transporte coletivo e também pautas que pres-
sionavam por mudança na representação política e contra a corrupção. Outro fator que

Andréa Cangussú André


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
107

pressionou as mudanças no ordenamento jurídico-político foram as revelações de um


esquema de financiamento de campanha e enriquecimento ilícito por parte de agente
públicos e privados tendo como ponto focal nomeações e contratos milionários de em-
presas públicas, dando origem a operação jurídico-policial conhecida como Lava-Jato.

O Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, em um trecho de seu voto


como Relator na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.650/DF, aborda so-
bre esse descontentamento de parte da população em relação à classe política do país:
De fato, não é incomum ouvir que houve um descolamento entre a classe política e a
sociedade civil. Existe verdadeiramente uma crise de representatividade no país, co-
locando em lados opostos os cidadãos, que a cada dia se tornam mais céticos em re-
lação aos agentes eleitos, e os membros da classe política, que, não raro, privilegiam
interesses particulares em detrimento do interesse público. E tal distanciamento
compromete, com o passar do tempo, o adequado funcionamento das instituições.
Enquanto governo “do povo, pelo povo e para o povo”, a democracia não pode
prescindir de uma atividade política intensa e preocupada com tutela dos valores re-
publicanos. É preciso, assim, construir uma relação sinérgica entre os representantes
do povo e a sociedade civil, resgatando, neste particular, a confiança e a credibilida-
de da população em geral no sistema político (BRASIL, 2015).

A ADI nº 4.650/DF foi ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil (OAB) contra dispositivos da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) e da Lei
dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995), que versavam sobre o financiamento privado
de campanhas eleitorais por parte de pessoas jurídicas e fundamentando o pedido da
inicial na ofensa no princípio democrático, no princípio republicano e no princípio da
igualdade. O Ministro Luiz Fux, em um trecho de seu voto como Relator na Ação Di-
reta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.650/DF, destacou que a excessiva penetração
do poder econômico nas eleições pode trazer o desequilíbrio à disputa eleitoral pri-
vilegiando o candidato que tem mais relação com as grandes corporações que fazem
doações à sua campanha, além do fato dessas empresas terem interesses de financiar
os candidatos mais competitivos na disputa eleitoral, de forma a manter relações com
o candidato que for eleito.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.650 foi julgada parcialmente


procedente para assentar apenas e tão somente a inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto do art. 31 da Lei nº 9.096/95, na parte em que autoriza, a contrário
sensu, a realização de doações por pessoas jurídicas a partidos políticos, e pela decla-
ração de inconstitucionalidade das expressões “ou pessoa jurídica”, constante no art.
38, inciso III, e “e jurídicas”, inserta no art. 39, caput e § 5º, todos os preceitos da Lei
nº 9.096/95. Isso significou a retirada do financiamento privado empresarial do rol de
doações às campanhas partidárias eleitorais, ou seja, a partir das eleições de 2016, os
candidatos e candidatas não poderiam mais receber doações privadas de pessoas ju-

Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
108

rídicas, podendo receber apenas de pessoas físicas, nos termos e limites estabelecidos
por lei.

As tabelas 4 e 5 demonstram o peso que o financiamento privado exercia sobre


todas as candidaturas de ambos os gêneros até 2014. Nas Eleições para a Câmara Fede-
ral, em 2014, um total de 96,94% dos recursos utilizados pelos candidatos e candidatas
tiveram origem na iniciativa privada. Já em 2018, mais de 76% dos recursos utilizados
oficialmente vieram do poder público por meio dos Fundos Partidários e Eleitoral.

Tabela 4 – Comparação percentual Financiamento Público2 x Privado 2014 e 2018

Cargo Fonte 2014 2018

Privada 96,94% 23,50%


Deputada Federal Público 3,06% 76,50%
Receitas públicas de campanha envolve a soma dos valores relativos ao Fundo Partidário e Fundo
2

Eleitoral.

Fonte: Backes, Vogel e Costa (2019)

Tabela 5 – Comparativo distribuição financiamento privado segundo Gênero nas Eleições 2014 e
2018

2014 2018
Homens Mulheres Homens Mulheres
Cargo Fonte Proporção Proporção Proporção Proporção
da receita da receita da receita da receita
do Gênero do Gênero do Gênero do Gênero
relativa à relativa à relativa à relativa à
fonte fonte fonte fonte
Deputado(a) Privado 97,06% 95,80% 26,63% 12,52%
Federal Público 2,94% 4,20% 73,37% 87,48%

Fonte: Backes, Vogel e Costa (2019)

A concentração dos recursos privados nos candidatos homens, mesmo depois do


julgamento da ação 4650/DF, ainda continua bastante desigual. A proibição da doação
de recursos financeiros por empresas para campanhas eleitorais atingiu, do ponto de
vista das relações de gêneros, os homens. Por outro lado, as mulheres estão muito mais
dependentes do financiamento público percentualmente que os homens, apesar de
eles ainda angariarem a maior fatia do orçamento público destinados às campanhas.

A segunda mudança no ordenamento jurídico-político que impactou nas eleições


gerais de 2018 estava expressa na chamada Minirreforma Eleitoral de 2015, intuída

Andréa Cangussú André


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
109

pela Lei nº 13.165 de 30 de setembro de 2015, que alterou a Lei nº 9.504/1997, chamada
Lei das Eleições e a Lei nº 9.096/1995, chamada Lei dos Partidos Políticos, e o Códi-
go Eleitoral - Lei nº 4.737/1965. O legislador brasileiro pretendia com as mudanças
propostas na Minirreforma Eleitoral pretendia promover a redução dos custos das
campanhas eleitorais, a simplificação da administração das agremiações partidárias
e o incentivo à participação feminina na política, mas o que se demonstrou ao longo
dos anos seguintes é que efetivamente essas mudanças na legislação eleitoral seriam
capazes de surtir o efeito pretendido.

No que tange à proposta da Minirreforma Eleitoral para o incentivo à participa-


ção feminina na política, as mudanças que se pretendiam inovadoras na destinação dos
recursos do Fundo Partidário, na verdade eram claramente sexistas e discriminatórias
em relação às mulheres, pois estabelecia um piso de 5% e, sobretudo, um teto de 15%
para a destinação, pelos partidos políticos, dos recursos do Fundo Partidário para as
campanhas eleitorais de mulheres, independentemente do percentual de candidatas.

Até então, a Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos) estabelecia, de maneira gené-
rica, que os recursos do Fundo Partidário poderiam ser utilizados para as campanhas
eleitorais, sem definir critérios de gênero para a sua distribuição. A Lei dos Partidos
Políticos previa, a partir da Reforma Eleitoral de 2009 (Lei nº 12.034/2009), o percen-
tual mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário para a “criação e manutenção
de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e
mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a se-
cretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política”
(inciso V do art. 44).

A iniciativa do legislador em estabelecer o teto de 15% dos recursos do Fundo


Partidário para financiamento das campanhas eleitorais das candidatas dos partidos
políticos caminhava no sentido contrário ao que as modificações na Lei das Eleições,
introduzidas pela Lei 12.034/2009, oito anos antes havia estabelecido de quota mínima
de 30% para gênero nas chapas para as eleições proporcionais. Além disso, a iniciativa
feriu claramente o princípio constitucional da igualdade ente homens e mulheres. Essa
contradição e inconstitucionalidade do artigo 9° da Lei 13.165/15 foram questionadas
na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.617/DF.

Assim chegamos a terceira grande mudança no ordenamento jurídico-político


que impactou nas eleições de 2018, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5617/
DF, impetrada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), em outubro de 2016, que
impugnou a constitucionalidade do disposto no artigo 9º da Lei 13.165, de 29 de se-

Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
110

tembro de 2015, e, por arrastamento, o § 5º, o § 5º-A, o § 6º e o § 7º do art. 44 da Lei


9.096/95.

O Ministro Edson Fachin, o Relator da ADI 5617/DF, ao iniciar sua fala com a
frase “Nunca haverá paz no mundo enquanto as mulheres não ajudarem a criá-la” (Bertha
Lutz) já dava o tom de seu voto, que seria posteriormente seguindo pela maioria dos
ministros do STF, levando à procedência da ADI 5617/DF. O Relator votou pela in-
constitucionalidade dos citados dispositivos legais, fundamentado no direito à digni-
dade (art. 1º, III, da CRFB), no pluralismo político (art. 1º, V, da CRFB), no objetivo de
se construir uma sociedade livre, justa e solidária, no direito à igualdade (art. 5º, caput,
da CRFB), na autonomia partidária (art. 17, § 1º, da CRFB) e no direito à igualdade sem
discriminações (art. 2º, 3º, 5º e 7º da Convenção para Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher).

Com base nesses princípios, o Ministro Fachin argumentou que “as ações afirma-
tivas prestigiam o direito à igualdade”, que “é incompatível com o direito à igualdade
a distribuição de recursos públicos orientados apenas pela discriminação em relação
ao sexo da pessoa” e que a “a igualdade entre homens e mulheres exige não apenas
que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades, mas também que sejam elas
empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultados”.
Considerando que as ações afirmativas visam, de forma temporária, beneficiar grupos
que se encontram em situação menos favorecida, de modo a “corrigir injustiças histó-
ricas que levaram à formação de minorias com menos recursos, capacidades ou bem-
-estar”, o teto estabelecido pelo artigo pelo artigo 9º da Lei 13.165/15 representa uma
inversão da lógica que fundamenta as políticas de ação afirmativa ao produzir “mais
desigualdade e menor pluralismo na definição de gênero na política – em vez de mais
igualdade, como seria esperado”.

Ao destinar 30% das vagas das chapas eleitorais para candidaturas do mesmo
gênero (entende-se aqui candidaturas femininas) e, ao mesmo tempo, limitar em 15% a
utilização dos recursos do Fundo Partidário para essas mesmas candidaturas, significa
que do outro lado os homens ocupariam 70% das vagas e podendo utilizar 85% destes
mesmos recursos do Fundo Partidário, a legislação viola o princípio constitucional da
igualdade de sexo e gênero na política.

No dia 15 março de 2018, o STF decidiu, por maioria dos votos, a “equiparação
do patamar mínimo de 30% de candidaturas femininas ao mínimo de recursos do Fun-
do Partidário a lhes serem destinados”, além de definir que havendo percentual maior
de candidatas nas eleições proporcionais os recursos deverão ser alocados na mesma
proporção. A consequência mais importante da ADI 5617/DF foi que as alterações nos

Andréa Cangussú André


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
111

critérios distribuição de recursos públicos para as campanhas eleitorais não se restrin-


giram às regras do Fundo Partidário, alcançando também o percentual dos recursos do
Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), criado em 2017, e do tempo
Horário Eleitoral Gratuito (HEG) para as campanhas das candidatas.

A quarta mudança no ordenamento jurídico-político que impactou nas eleições


de 2018 ocorreu antes dessa Decisão do STF, já no segundo semestre de 2017, com a
publicação da Lei nº 13.487/2017, que instituiu o Fundo Especial de Financiamento de
Campanha (FEFC) e extinguiu a propaganda partidária no rádio e na televisão, e da
Lei nº 13.488/2017, alterou as Leis n º 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Elei-
ções), 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleito-
ral), e revogou dispositivos da Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015 (Minirreforma
Eleitoral de 2015), com o fim de promover reforma no ordenamento político-eleitoral.

Segundo dados TSE, o Fundo Especial de Financiamento de Campanha para a


eleição geral de 2018 foi calculado em R$ 1.716.209.431,00 (um bilhão, setecentos e
dezesseis milhões, duzentos e nove mil e quatrocentos e trinta e um reais), disponibi-
lizados pelo Tesouro Nacional ao TSE, em conta especial no Banco do Brasil, no dia
1º de junho de 2018. Os valores das cotas individuais de cada partido foram apurados
de acordo com os critérios fixados na Lei nº 9.504/1997, art. 16-D e aprovados pelo
Plenário do TSE, sendo 2% divididos igualitariamente entre todos os partidos com
estatutos registrados no TSE; 35% divididos entre os partidos que tenham pelo menos
um representante na Câmara dos Federal, na proporção do percentual de votos por
eles obtidos na última eleição geral para a Câmara Federal; 48% divididos entre os par-
tidos, na proporção do número de representantes na Câmara Federal, consideradas as
legendas dos titulares; e 15% divididos entre os partidos, na proporção do número de
representantes no Senado Federal, consideradas as legendas dos titulares.

O legislador condicionou o repasse dos recursos do FEFC para os partidos po-


líticos à apresentação de propostas de critérios de distribuição do referido fundo aos
seus candidatos e candidatas. Tal proposta deve ser deliberada pela Comissão Exe-
cutiva Nacional da agremiação partidária, mediante aprovação pela maioria absoluta
dos membros do órgão de direção executiva nacional do partido, bem como o partido
deverá promover amplamente a divulgação dos critérios de distribuição do FEFC aos
seus candidatos e candidatas. A definição dos critérios de distribuição do FEFC aos
candidatos do partido é uma decisão interna corporis das agremiações partidárias, o
que não enseja uma análise de mérito do TSE quanto aos critérios fixados, à exceção
do destaque da cota de gênero, fixada pela Consulta TSE nº 0600252-18, julgada em 22
de maio de 2018.

Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
112

Assim chegamos à última e grande mudança no ordenamento jurídico-político


que impactou nas eleições de 2018, a Consulta ao TSE nº 0600252-18, elaborada por um
grupo de 14 parlamentares (8 Senadoras e 6 Deputadas), que buscava esclarecer se a
regra dos 30% dos recursos do Fundo Partidário para as campanhas das candidatas,
estabelecida pela resposta afirmativa à ADI 5.617, também não se aplicaria à distribui-
ção do FEFC e do tempo do HEG (blocos e inserções). Respondendo afirmativamen-
te, em 22/5/2018, o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu que cada partido deveria
destinar 30% dos recursos recebidos do FFCE e do tempo do HEG para as campanhas
das candidatas, segundo a redação do §1º do art. 6º da Resolução (TSE) nº 23.568, de
24/5/2018.

De fato, o que explica efetivamente a ampliação expressiva no total de represen-


tação de mulheres na Câmara Federal em 2018 com crescimento de 50,98% em relação
à 2014, atingindo um total de 77 mulheres eleitas para à Câmara Federal, contra 51 em
2014. Houve também uma ampla variação no total de votos recebido pelas candidatas
não apenas para à Câmara Federal, mas também nas Assembleias estaduais/distri-
tais. Em 2014, as candidatas à deputada federal receberam 8.547.271 milhões de votos,
contra 14.794.290 milhões de votos em 2018, com variação positiva de 73,09%. Nos
respectivos legislativos estaduais, o salto foi de 10.476.654 milhões de votos, em 2014,
para 16.799.370 milhões de votos, em 2018, ou aumento de 60,35%.

Essas ações em conjunto tiveram impacto positivo em dois aspectos centrais para
mensurar o sucesso dessas medidas: o aumento do expressivo no quantitativo de su-
frágios recebidas por candidatas aos legislativos estaduais e federal, além do aumento
também significativo do percentual de receitas financeiras recebidas por elas. Haven-
do, portanto, uma clara e óbvia vinculação entre financiamento e número de mulheres
eleitas para à Câmara Federal. As tabelas 6 e 7 demonstram os impactos em termos de
vagas e votos obtidos pelas mulheres após as mudanças aqui explicitadas.

Andréa Cangussú André


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
113

Tabela 6 - Número de Eleitas X Percentual x Variação 2014-2018

Variação
Eleição 2010 2014 2018 % entre
2014-
2018
Número % Número % Número %
Eleitas sobre Eleitas sobre Eleitas sobre
o o Total o
Total Total
Candidatas 45 8,77% 51 9,94% 77 15,01 50,98%
a deputada
federal

Fonte: Backes, Vogel e Costa (2019)

Tabela 7 – Comparativo total de votos candidatas Câmara Federal 2014 e 2018

2014 2018 Variação %


Deputada 10.476.654 16.799.370 60,35%
Estadual/distrital
Deputada Federal 8.547.271 14.794.290 73,09%

Fonte: Backes, Vogel e Costa (2019)

7.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise que fizemos sobre o Brasil e as desigualdades e assimetrias de repre-


sentação das mulheres na Câmara Federal demonstrou que, além dos fatores culturais
e históricos, outros fatores incidem diretamente sobre as causas da baixa representati-
vidade de gênero no Parlamento. Dentre esses fatores, destacamos o regime político,
quanto maior o grau de liberdade de opinião e de expressão política, mais favorável
para a participação política das mulheres.

As pressões da sociedade sobre as ações dos Poderes Legislativo e Judiciário em


favor da diminuição das desigualdades de representação política no Brasil, foram res-
pondidas com novas legislações, acórdãos, resoluções e interpretações sobre o orde-
namento jurídico-político brasileiro. Ação do Legislador brasileiro para enfrentar as
desigualdades de gênero e representação foi consagrada na instituição de Política de
Cotas de Gênero já em 1996, depois estendida aos legislativos regionais e nacional por
Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
114

meio da aprovação das Lei dos Partidos 9.096/95, Lei das Eleições 9.504/97, e nas mu-
danças e ajustes, com as Leis 12.034/2009, 13.165/2015, 13.487/2017 e 13.488/2017. Já
ação do Judiciário se deu em três momentos: no julgamento da ADI 4650/DF, da ADI
5617/DF e na Consulta Pública nº 0600252-18.2018.6.00.0000.

Apesar de alguns avanços legais e da ampliação da representação de gênero, des-


de a promulgação da Constituição Federal em 1988 até a eleição das 77 mulheres em
2018 para a Câmara Federal, ainda estamos muito distantes de mudar efetivamente o
quadro de grandes e graves assimetrias representativas entre homens e mulheres no
Legislativo brasileiro. Essas distorções são consequências de uma correlação de for-
ças bastante desigual (mais intra corporis do Parlamento brasileiro ainda tomado por
homens brancos de média idade). Mas, cada vez mais ideias e bandeiras contrárias à
cultura machista e patriarcal ganham adesões, militância e organização política, como
a histórica Marcha que reuniu milhões de mulheres nas médias e grandes cidades
entorno do lema “ELE NÃO”, realizado uma semana antes do primeiro turno das
Eleições de 2018.

Também são causas dessas assimetrias na representação e acesso das mulheres


ao Legislativo brasileiro, a perversa combinação do ordenamento jurídico-político que
articulava sistema proporcional com lista aberta e financiamento privado de campa-
nha, mas com reserva de vagas sem obrigatoriedade ou coação legal para os partidos
e coligações que não cumprissem o dispositivo. Dessas distorções duas foram objetos
de ação: a primeira, o aumento do rigor e seriedade no cumprimento das cotas de can-
didaturas a partir de modificações legislativas no ordenamento político-eleitoral. Cer-
tamente por isso, a cota de candidaturas de gênero de 30% só foi oficialmente atingida
em 2018 após cinco eleições nacionais, desde o início de sua vigência. A segunda, o fim
do financiamento empresarial de campanhas (que favorecia plenamente os homens), e
a destinação de 30% das receitas do Fundo Especial de Financiamento Eleitoral para as
mulheres. Essa medida é o início da correção de uma das grandes causas de distorção
da representação de gênero.

REFERÊNCIAS
BACKES, Ana Luiza; VOGEL, Luiz Henrique; AFONSO COSTA, João Carlos; CHE-
VITARESE ALVES, Marcus Vinícius. Breve análise dos dados sobre candidaturas de
Mulheres nas Eleições de 2018. Brasília: Câmara dos Deputados, abr, 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650/


DF. Direito Constitucional e Eleitoral. Modelo Normativo Vigente de Financiamento
de Campanhas Eleitorais. Lei das Eleições, Arts. 23, §1º, Incisos I E Ii, 24 E 81, Caput
E § 1º. Lei Orgânica dos partidos políticos, arts. 31, 38, inciso iii, e 39, caput e §5º. Cri-
térios de doações para pessoas jurídicas e naturais e para o uso de recursos próprios
pelos candidatos. Preliminares. Impossibilidade jurídica do pedido. Rejeição. Pedi-

Andréa Cangussú André


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
115

dos de declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto (itens e.1.e


e.2). Sentença de perfil aditivo (item e.5). Técnica de decisão amplamente utilizada
por cortes constitucionais. Relator: Ministro Luiz Fux, 17 set 2015. Brasília: STF, 2016.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=10329542. Acesso em 10 dez. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.617.


Ação Direta de Inconstitucionalidade. Direito Constitucional e Eleitoral. Art. 9º Da Lei
13.165/2015. Fixação de Piso (5%) e de Teto (15%) do Montante do Fundo Partidário
Destinado ao Financiamento das Campanhas Eleitorais para a Aplicação nas Campa-
nhas de Candidatas. Preliminar de Impossibilidade Jurídica do Pedido. Rejeição. In-
constitucionalidade. Ofensa à Igualdade e à Não-Discriminação. Procedência da Ação.
Relator: Ministro Edson Fachin, 15 mar 2018. STF, 2018. Disponível em: http://redir.
stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748354101. Acesso em 10
dez. 2020.

FOLHA DE SÃO PAULO. Bancada de mulheres cresce no Congresso. São Pau-


lo, 18 dez. 1994. Caderno Brasil. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
fsp/1994/10/18/brasil/21.html. Acesso em 14 dez. 2020.

MARTINS, Eneida Valarini. A Política de Cotas e a Representação Feminina na Câ-


mara dos Deputados. 2007. Monografia. (Especialização em Instituições e Processos
Políticos do Legislativo) Programa de Pós-Graduação do CEFOR - Centro de Forma-
ção da Câmara dos Deputados, Brasília, 2007.

VOGEL, Luiz Henrique. A histórica sub-representação das mulheres na Câmara dos


Deputados: desigualdades e hierarquias sociais nas eleições de 2014. Brasília: Câmara
dos Deputados, mar. 2019.

Capítulo 7
INSERÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO BRASIL CONTEMPORÂNEO PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM ESTUDO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CÂMARA FEDERAL de 1988 a 2018.
116
CAPÍTULO 8

OS EFEITOS DA GUARDA COMPARTILHADA


SOBRE OS FILHOS MENORES APÓS A
DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO/UNIÃO
ESTÁVEL

Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira1


João Roberto Martins Cardoso2

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.8

1  Pós-graduanda em direito do trabalho e previdenciário pela Escola Superior de Advocacia - OAB/PE. Advogada.
2  Professor de Direito do Trabalho e Empresarial na FACET - Faculdade de Ciências de Timbaúba/PE. Pós-graduado
em direito civil e empresarial pela faculdade Damásio de Jesus. Pós-graduado em Poder Judiciário e Magistratura do
Trabalho pela Esmatra (TRT6). Advogado.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
118

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo fundamental abordar os efeitos da


guarda compartilhada sobre os filhos menores após a dissolução do casa-
mento/união estável dos pais, para tanto, será levado em consideração na pesquisa,
as novas possibilidades existentes no sistema juírido, que possibilitem o enfrentamen-
to do problema, principalmente pelo fato de possuir além de seu aspecto jurídico, o
seu vies sociológico, e que no contexto, teve seu agravamento em face dos avanços
ocorridos na sociedade ao longo dos últimos tempos, proporcionando uma mudança
significativa sobre o aspceto relacionado ao Poder Familiar. Portanto, tem como obje-
tivo primordial demosntrar a realidade dos casais, das crianças e dos adolescentes, no
contexto da vida familiar e suas repercussões para o convivo em sociedade, em virtude
do processo de divórcio ou dissolução da união estável. Realidade esta que consiste
em problemas tais como a alienação parental.
Palavras-chave: Poder Familiar; Separação dos Pais; Alienação Parental e Guarda
Compartilhada.

8.1 INTRODUÇÃO

Ao longo do tempo a sociedade vem passando por inúmeras mudanças e com


isso a família também passa por diversas mutações. Isso faz com que a família ideal no
século passado não seja o modelo mais adequado para os dias atuais, gerando assim
uma crise de identidade nas famílias modernas.

Este trabalho tratará inicialmente do poder familiar que teve uma roupagem di-
ferente ao passar do tempo. No Código Civil de 1916, o poder familiar era tido como
pátrio poder, onde a figura do pai era muito forte e ele era o verdadeiro chefe, tendo
totais poderes sobre a esposa e os filhos.

Com o avanço da sociedade, houve a necessidade de modificar o ordenamento


jurídico. Sendo assim, segundo a Constituição e 1988, o Código Civil de 2002 e o Esta-
tuto da Criança e Adolescente cabe a ambos os pais zelarem por seus filhos e guia-los
sempre no caminho do bem norteados por princípios como a dignidade da pessoa hu-
mana, o respeito, a solidariedade, dar-lhes educação, entre outros. Esses deveres dos
pais para com os filhos em conjunto são inerentes ao exercício do poder familiar, que
diferentemente do pátrio poder que era exercido apenas pelo pai, o poder familiar tem
como titularidade ambos os pais.

A guarda é um dever do poder familiar, e de acordo com o artigo 33 do ECA, a


guarda significa ter o filho em seu poder, com o direito de opor-se a terceiros e com o
dever de prestar-lhe toda assistência. Ao contrário das famílias do século XIX que só

Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira


João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
119

poderiam ser constituídas através do casamento e dissolvidas com a morte de um dos


cônjuges, as famílias modernas podem ser constituídas com o casamento ou ate mes-
mo uma união estável (formalizada ou não) e dissolvidas través do divórcio (judicial
ou extrajudicial) e ate mesmo o encerramento da união estável.

Após estabelecer algumas reflexões acerca do poder familiar, serão abordados os


reflexos da separação dos pais sobre os filhos, trabalhando com conceitos de divórcio
e suas modalidades judicial e extrajudicial, onde depende principalmente de presen-
ça ou não de litígio e filhos menores ou incapazes. Um dos reflexos da separação é
a possibilidade de haver alienação parental - também analisada neste artigo - cujo
conceito está disposto no art. 2.º da Lei 12.318 de 2010, qual seja, o ato de interferência
na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por
um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua
autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

Na guarda compartilhada o que se partilha é justamente o exercício do poder


familiar, não necessariamente a guarda em si da prole. Na guarda unilateral, as deci-
sões relativas aos filhos são tomadas unicamente por aquele que detém a guarda, já na
guarda compartilhada, mesmo que o filho passe a maior arte do tempo apenas com a
mãe, qualquer decisão relativa aos filhos que for tomada deverá ser tomada de forma
conjunta, respeitando sempre o princípio do melhor interesse do menor e o princípio
da dignidade da pessoa humana.

8.2 PODER FAMILIAR

É fato, que a família moderna, tem passado por uma enorme mutação em seu
conceito tradicional, condição que remonta para uma profunda crise de identidade,
com perca de referências a muito identificadas pelos novos padrões sociais, fruto de
uma sociedade atrelada ao fenômeno da modernidade. “Para alguns juristas, esta crise
seria mais aparente que real, “pois o que se observa é a mutação dos conceitos básicos,
estruturando o organismo familiar à moda do tempo, que forçosamente há de deferir
da conceptualística das idades” (CAHALI, 2000, p. 19).

Devido as mudanças ocorridas ao longo do tempo, houve a necessidade de reger


as famílias por novos princípios diferentes daqueles que regiam as famílias em 1916,
por exemplo. Princípios estes que são: o princípio da “ratio” do matrimônio e da união
estável onde o que prevalece na relação conjugal é a afeição entre os cônjuges e a ne-
cessidade que permaneça a comunhão de vida; princípio da igualdade jurídica dos
cônjuges e dos companheiros onde desaparece o poder apenas do homem de tomar as
decisões como chefe de família e é substituído por decisões tomadas em comum acor-

Capítulo 8
OS EFEITOS DA GUARDA COMPARTILHADA SOBRE OS FILHOS MENORES APÓS A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO/
UNIÃO ESTÁVEL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
120

do entre os cônjuges; princípio da igualdade jurídica de todos os filhos, onde não há


distinção entre filhos adotivos ou filhos naturais, no que diz respeito a sucessões por
exemplo (DINIZ, 2009, p. 22).

Também o princípio do pluralismo familiar, onde há o reconhecimento da famí-


lia matrimonial e de entidades familiares como a união estável e a família monoparen-
tal, que é quando apenas um dos pais assume a responsabilidade relativa aos filhos,
que segundo dados 26% de brasileiros vivem a realidade de uma família monoparen-
tal; princípio da consagração do poder familiar, onde desapareceu a figura do pátrio
poder e deu origem a nomenclatura poder familiar, que o poder- dever de dirigir a
família é exercido em conjunto por ambos os genitores; Já o princípio da liberdade,
este princípio pode ser visto sob várias formas como a liberdade de formar uma vida
em comum, a liberdade de planejar uma família, a liberdade sobre a escolha do regime
de bens, a liberdade de aquisição e administração do patrimônio da família, e a liber-
dade de criação da prole, seja na forma de educar, a religião, a cultura, entre outros
aspectos; princípio do respeito da dignidade da pessoa humana, que está presente na
Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, onde garante os membros da família
o pleno desenvolvimento e realização, principalmente da criança e do adolescente (DI-
NIZ, 2009, p. 23).

8.3 SEPARAÇÃO DOS PAIS E SEUS REFLEXOS NA PROLE

De acordo com o que já foi apresentado neste trabalho, a família é a base da


sociedade e vem passando por várias mudanças. Atualmente várias famílias que se
formaram muitas vezes por impulso ou por conveniência, não conseguem seguir fir-
me diante as adversidades e chegam à separação e/ou divorcio que podem ser fruto
de vários fatores como questões sócias, políticas, religiosas, entre outras (FERREIRA,
2014, p. 16).

A maioria dos divórcios ou separações são litígios, onde deve-se sempre levam
em conta o interesse dos menores. No revogado Código Civil de 1916, a regra era que
a guarda da prole ficaria com o cônjuge “inocente”. Já no código Civil de 2002 segue
o princípio de melhor interesse do menor e com isso se estabelece a guarda de acordo
com o caso e sempre que possível um regime em que o menor conviva com ambos os
pais, seja através de visitas ou até mesmo da guarda compartilhada, podendo ser re-
visto a qualquer tempo (RODRIGUES, 2004, p. 28).

Os jugados em conformidade com o Código Civil de 1916 eram extremamente


rígidos, onde o simples fato de a mulher separada passar a ter uma nova união estável,
era motivo suficiente para a perda da guarda dos filhos que poderia ser pleiteada pelo
ex marido. Atualmente um novo casamento ou união estável do cônjuge não retira o

Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira


João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
121

direito à guarda, exceto se comprovado que o filho não vem sendo bem tratado por
este.

Muitas vezes por conflitos pessoais entre os cônjuges, o que detém a guarda uni-
lateral impossibilita as visitas do outro cônjuge. Desrespeitando o princípio do melhor
interesse do menor. Tendo em vista esse tipo de comportamento que há vários julga-
dos como:
TJ-RS - Apelação Cível AC 70075878983 RS (TJ-RS)Data de publicação:
05/03/2018Ementa: REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. PREVALÊNCIA DO ME-
LHOR INTERESSE DA CRIANÇA. 1. A regulamentação de visitas materializa o
direito do filho de conviver com o genitor não-guardião, assegurando o desenvolvi-
mento de um vínculo afetivo saudável entre ambos. 2. Não merece reparo a fixação
das visitas quando observa a rotina de vida do filho e resguarda o melhor interesse
da criança, que está acima da conveniência dos genitores, não havendo prova al-
guma de que o genitor não tenha condições plenas de exercer a visitação ao filho.
Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70075878983, Sétima Câmara Cível, Tribu-
nal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em
28/02/2018).

Os direitos dos filhos menores são assegurados tanto no casamento quanto na


união estável, a sua dissolução não causa prejuízo algum para estes. Direitos como
visitas periódicas, alimentos, guarda, entre outros podem ser pleiteados em caso de
dissolução da união estável na via judicial, sendo assistidos por advogados.

8.4 ALIENAÇÃO PARENTAL

O pioneiro a identificar este tema foi o professor Richard Gardner, em 1985, que
por muitas vezes, nas disputas judiciais de divórcio, o maior interesse dos ex-cônjuges
era afasta-lo da convivência com os filhos, como forma de penaliza-lo, sem levar em
conta o dano psicológico causado aos filhos (FREITAS, 2015, p. 36).

Em suas pesquisas, Gardner pode perceber várias situações onde os pais tentam
opor seus filhos em face do outro genitor, como por exemplo: Síndrome de SAID,
Síndrome da Mãe Maliciosa, Síndrome da Interferência Grave e Síndrome de Medeia.
Toda essa pesquisa e descoberta de “síndromes”, serviu como base para o desenvol-
vimento da Síndrome da Alienação Parental, onde se enquadram todas as caracterís-
ticas das síndromes anteriores e onde tal nomenclatura foi adotada pelo Brasil (FREI-
TAS,2015, p. 37).

No Brasil, esse fenômeno passou a ser aceito pelos tribunais a partir do ano de
2003, onde houveram as primeiras decisões usando tal nomenclatura. Este fenômeno
foi mais eficaz através da participação de equipes interdisciplinares nos processos de
familia e também por ser objeto de pesquisa de institutos como a APASE – Associação
dos Pais e Mães Separados, IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, entre
outros (SOUZA, 2007, p. 5).
Capítulo 8
OS EFEITOS DA GUARDA COMPARTILHADA SOBRE OS FILHOS MENORES APÓS A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO/
UNIÃO ESTÁVEL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
122

A Síndrome de Alienação Parental tem seu conceito disposto no art. 2.º da Lei
12.318, de 2010, no qual é definido:
Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da
criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós
ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vi-
gilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este.

O ato de afastar a prole de um dos progenitores utilizando-se de meios ardilosos


para o rompimento do laço afetivo, buscando apenas uma forma de castigar o ex-con-
juge, para obter êxito nessa empreitada, não se importa com o dano que irá causar na
vida de uma criança, onde esta ainda encontra-se em desenvolvimento mental e não
tem discernimento suficiente para saber o que é certo ou errado, baseando sua confian-
ça em alegações infundadas de seu responsável.

Assim, entende-se por alienação parental a atuação irresponsável de um sujeito,


denominado alienador, na prática de atos que envolvam uma forma depreciativa de
se lidar com um dos genitores. Trata-se, portanto, de atuação do alienador que busca
turbar a formação da percepção social da criança ou do adolescente.

A Síndrome da Alienação Parental, geralmente está associada a uma ruptura fa-


miliar, seja ela o divórcio ou uma dissolução de uma união estável, levando sempre
a buscar culpados, por parte de um cônjuge em face do outro e com isso a busca por
penalizá-lo, usando por muitas vezes os próprios filhos para isso. As características
da alienação parental estão presentes na lei 12.318/2010, em seu artigo 2°, parágrafo
único:
Art. 2.º [...] Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além
dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados direta-
mente ou com auxílio de terceiros: I – realizar campanha de desqualificação da con-
duta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II – dificultar o exer-
cício da autoridade parental; III – dificultar contato de criança ou adolescente com
genitor; IV – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V – omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a crian-
ça ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI – apre-
sentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para
obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII – mudar
o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência
da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.

O ideal seria que para cada decisão que fosse tomada em relação aos filhos, o
outro genitor fosse não apenas comunicado, mas consultado para atender melhor o
interesse da prole. No entanto o que mais acontece são os cônjuges alienadores agindo
de forma inconsequente, tomando decisões importantes, sem consultar o outro cônju-
ge apenas para penalizá-lo. Com isso, infelizmente,
os filhos são cruelmente penalizados pela imaturidade dos pais quando estes não
sabem separar a morte conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos

Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira


João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
123

filhos ao tipo de relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura
(SOUZA, 2007, p. 7).

Em 2010 foi sancionada no Brasil a Lei nº 12.318, que dispõe sobre a alienação
parental e assim como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente
e o Código Civil, tem o objetivo de proteger a criança e o adolescente e seus direitos
fundamentais.

8.5 GUARDA COMPARTILHADA

Tradicionalmente, após o divórcio ou dissolução da união estável, os filhos meno-


res e ou incapazes, ficarão sobre aos cuidados de um dos pais. Essa espécie de guarda
unilateral está presente no ordenamento jurídico desde o Código Civil de 1916, onde
geralmente o detentor da guarda era aquele que não deu causa a separação, tendo um
viés punitivo, a fim de penalizar o cônjuge culpado.

Com a promulgação da Constituição Cidadã em 1988, como também com apro-


vação do Estatuto da Criança e Adolescente em 1990 e também com o Novo Código
Civil de 2002, foi concedido aos filhos o direito de ter uma convivência familiar, onde
não mais importa a culpa de quem levou ao término do relacionamento, levando em
conta o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à proteção integral, sem-
pre dando prioridade ao superior interesse de crianças e adolescentes (FERREIRA;
MACEDO, 2016, p. 83).

A guarda dos filhos agora assume uma postura coletiva, onde mesmo com a
guarda unilateral, a responsabilidade não recai apenas sobre um dos pais, mas sobre
ambos, onde as decisões em relação aos filhos devem ser tomadas em conjunto, obede-
cendo sempre o melhor interesse da criança e do adolescente.

Com os avanços da sociedade, as mulheres de hoje assumiram um papel indis-


pensável, onde essas guerreiras, principalmente nas camadas sociais de baixa renda,
são quem trabalham para sustentar suas famílias, que algumas das vezes tem o mode-
lo de família monoparental. Em contra partida, os homens passaram a ter um relacio-
namento mais estreito com seus filhos, pois muitos deles desempregados, cuidam das
crianças enquanto que as mulheres estão na labuta para conseguir o pão de cada dia.
Havendo portando uma reorganização no modelo familiar.

A responsabilidade na criação e educação dos filhos antes de qualquer outra pes-


soa ou organismo social é de ambos os pais, de forma igualitária, sem que haja so-
brecarga apenas de um. Ou seja, o divórcio ou dissolução da união estável em nada
muda este dever e haverá apenas uma reorganização da relação parental. Em caso de

Capítulo 8
OS EFEITOS DA GUARDA COMPARTILHADA SOBRE OS FILHOS MENORES APÓS A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO/
UNIÃO ESTÁVEL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
124

divórcio ou dissolução da união estável, deverá ser fixada a guarda dos filhos menores
ou dos incapazes.

Em agosto de 2008 entrou em vigor no Brasil a Lei 11.698/08, a Lei da Guarda


Compartilhada, onde modificou os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil Brasileiro, que
veio a introduzir juridicamente o instituto da Guarda Compartilhada no ordenamento
jurídico, a fim de sanar a lacuna legal utilizada muitas vezes para que os juízes inde-
ferissem os pedidos de guarda compartilhada, com a justificativa de que este instituto
não estava presente no ordenamento jurídico brasileiro (FONTES, 2008, p. 19).

A guarda compartilhada pode ser conceituada como um sistema em que ambos


os pais têm autoridade equivalente diante de seus filhos. O intuito da guarda compar-
tilhada é de combater as limitações presentes na guarda unilateral e seu sistema de
visitas e com isso reestabelecer um relacionamento mais harmonioso entre ais e filhos.

Nesse sentido, Karen Ribeiro Nioac de Salles assevera que:


A modalidade compartilhada atribuída à guarda dá uma nova e inédita conotação
ao instituto do pátrio poder, já que tem por finalidade romper com a ideia de poder
e veicula a perspectiva da responsabilidade do cuidado das crianças e do convívio
familiar. A partir deste novo conceito, é retirada da guarda a conotação de posse,
privilegiando-se a ideia de estar com, de compartilhar, sempre voltada para o me-
lhor interesse das crianças e consequentemente dos pais (SALLES, 2001. p. 29).

A autora traz a nova tendência da guarda que é retirar a ideia de posse e implan-
tar a ideia de estar, fazer-se presente, de compartilhar as fases da vida da criança e do
adolescente, mesmo após o divórcio ou dissolução do casamento, pois o que se desfez
foi a relação afetiva, mas nunca a relação entre pais e filhos, e levando sempre em conta
o melhor interesse das crianças e adolescentes e como resultado também interesse dos
pais em ver o bem estar de seus filhos.

Nesse contexto, os filhos passaram de objetos para o papel de protagonistas das


relações familiares, com direitos próprios a serem respeitados. Tais direitos estão pre-
sentes nos artigos 15 e 16 do ECA. Os menores devem ser respeitados em seus valores
e crenças; por serem pessoas e, principalmente, por estarem em processo de desenvol-
vimento. Eles devem também ter direito a liberdade, como trás os incisos do artigo 16
do ECA, e trazendo para o lado da guarda compartilhada, os incisos II, onde fala da
liberdade de expressão, os filhos não devem ser vistos apenas como objetos e sim como
protagonistas da sua própria história como foi dito e eles devem ter voz sim, devem
ser ouvidos ao tomar as decisões, observando sempre o que é melhor para seu bem
estar.

Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira


João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
125

8.6 CONCLUSÃO

A guarda compartilhada ainda é uma ótima opção tanto para os filhos, quanto
para os genitores. Assim ambos terão participação ativa na vida dos filhos e os genito-
res por sua vez não sofrerão tanto com o término da relação afetiva de seus pais e terão
ambos por perto sempre que possível.

Este instituto tem sido uma opção muito usada em casos nos quais ambos os pais
querem a guarda, mas não entram em acordo. No entanto, cada caso concreto deve ser
analisado e observado as regras onde não são indicadas a aplicação da guarda com-
partilhada, como por exemplo, em casos onde os filhos não se sentem à vontade com
a presença do cônjuge não guardião, seja por maus tratos e até mesmo por suspeita de
abuso. Essas hipóteses, entre outras a lei veda a aplicação desse tipo de guarda, sendo
mais aconselhada a guarda unilateral.

No caso de haver descumprimento das regras inerentes ao poder familiar, que na


guarda compartilhada são titulares desses deveres para com os filhos ambos os pais,
a lei dispõe sobre sanções aplicáveis para que não volte a cometer tais erros e acima
de qualquer coisa proteger os filhos, utilizando sempre do princípio da dignidade da
pessoa humana e o maior interesse do menor.

A guarda compartilhada reflete positivamente na vida dos filhos menores pós a


dissolução do casamento/união estável, visto que diminui a lacuna causada pelo fim
do relacionamento entre os pais. A segurança passada por ambos os pais, aos filhos
deve ultrapassar a barreira da mágoa e do desejo de vingança que um tem pelo outro.

Com o propósito de a guarda compartilhada seja aplicada e tenha seu escopo al-
mejado, os pais devem ter a maturidade para entender o que está em jogo é o bem estar
dos filhos, e que eles devem ser a principal preocupação naquele momento e que para
isso devem deixar todas as diferenças pessoais de lado e sempre lembrar que existe
ex-maridos e ex-esposas, mas que os laços com os filhos são eternos.

REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Divórcio e Separação. São Paulo: RT, 2000.

FERREIRA, Leandro Marinho. A dissolução do casamento guarda compartilha-


da dos filhos. Jus Navigandi, maio, 2014. Disponível em: https://jus.com.br/arti-
gos/28962/a-dissolucao-do-casamento-e-a-guarda-compartilhada-dos-filhos. Acesso
em: 16 set. 2018.

FERREIRA, Verônica A. da Motta; MACEDO, Rosa Maria Stefanini de. Guarda com-
partilhada: uma visão psicojurídica [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Artmed, 2016.

Capítulo 8
OS EFEITOS DA GUARDA COMPARTILHADA SOBRE OS FILHOS MENORES APÓS A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO/
UNIÃO ESTÁVEL
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
126

FONTES, Simone Roberta. Lei nº. 11.698 /08: a guarda compartilhada. JusBrasil, set.
2008. Disponível em: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/108727/lei-n-11698-08-a-
-guarda-compartilhada-simone-roberta-fontes. Acesso em: 21 nov. 2018.

FREITAS, Douglas Phillips. Alienação parental: comentários à Lei 12.318/2010 – 4. ed.


Rio de Janeiro: Forense, 2015.

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito de Família, 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

RODRIGUES, Silvio Direito civil: direito de família - volume 6. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004.

SALLES, Karen Ribeiro Pacheco Nioac de. Guarda Compartilhada. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001.

SOUZA, Raquel Pacheco Ribeiro de. A tirania do guardião. In: APASE – Associação
de Pais e Mães Separados (Org.). Síndrome da alienação parental e a tirania do guar-
dião: aspectos psicológicos, sociais e jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2007.

Laryssa Rhaphaella da Silva Oliveira


João Roberto Martins Cardoso
CAPÍTULO 9

JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE


DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS
TRIBUNAIS PÁTRIOS

Newton Nobel Sobreira Vita1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.9

1  Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pós-graduado em Direito Civil e Processual
Civil pela Universidade Gama Filho e em Gestão Pública pela Faculdade Getúlio Vargas (FGV). Procurador-Chefe da
Assembleia Legislativa da Paraíba.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
128

RESUMO

N o cenário atual, os modelos tradicionais aplicados para lidar com a crimi-


nalidade são questionados pelos mais diversos setores da sociedade, tendo
em vista que o atual sistema de justiça retributivo (que prevê aplicação da pena como
resposta a ordem violada) não satisfaz totalmente, nem a vítima, nem a sociedade,
tampouco o infrator da lei. Neste viés, impende trazer ao presente estudo a Justiça
Restaurativa que possui como um de seus diferenciais o da participação de todos os
interessados no procedimento, sejam estes, a vítima, o infrator, a família, a comuni-
dade, ou seja, todos aqueles que têm interesse no restabelecimento da ordem violada.
Em virtude do surgimento desse modelo de justiça e tendo em vista a sua natureza
integrativa e o retorno que esta pode trazer a sociedade, este trabalho analisa a aplica-
bilidade da Justiça Restaurativa pelos tribunais pátrios, objetivando demonstrar como,
através dos aspectos essenciais deste modelo, os indivíduos envolvidos em um confli-
to passam a ser tratados de forma mais digna, de modo que os conflitos são soluciona-
dos sob uma ótica mais humanista, com a participação de todos os envolvidos, a fim
de alcançar justiça e paz social.
Palavras-chave: Decisões, Justiça, Justiça Restaurativa.

9.1 INTRODUÇÃO

Justiça é uma palavra abstrata que permeia diversas áreas do conhecimento hu-
mano, que de alguma forma lidam com interações sociais, como o direito, a filosofia,
a ética, a moral e a religião. As concepções e tipologias da justiça variam conforme o
contexto social e é alvo de controvérsias entre doutrinadores, filósofos e demais estu-
diosos.

Aristóteles (2006) já reconhecia a imprecisão do conceito de justiça e o fato de que


o entendimento do que é justo, muitas vezes, depende do entendimento daquilo que
se considera ser injusto, evidenciando que a subjetividade é um fator que interfere na
elaboração e na aplicação das decisões baseadas nos fundamentos da justiça. Corrobo-
rando esta ideia, Kelsen (1986) enxerga a justiça como sendo um julgamento subjetivo
de valor, que não pode ser analisado cientificamente.

Nas lições de PAROSKI (2006) para se alcançar a justiça é necessário, além do


mero acesso aos tribunais, que o indivíduo emanado da “razão”, alcance também a
tutela jurisdicional que se pretende naquela ocasião.

A partir dessas breves linhas traçadas, faz-se importante mencionar que no Bra-
sil, hodiernamente, o sistema de Justiça Criminal, vem passando, nas últimas décadas,
por uma longa e grave crise.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
129

No cenário atual, os modelos tradicionais aplicados para lidar com a criminali-


dade são questionados pelos mais diversos setores da sociedade, tendo em vista que
o atual sistema de justiça retributivo (que prevê aplicação da pena como resposta a
ordem violada) não satisfaz totalmente, nem a vítima, nem a sociedade, tampouco o
infrator da lei. Este insucesso está refletido na crescente violência, no constante desres-
peito ao princípio da dignidade humana, na superlotação carcerária, fazendo com que
o indivíduo enquanto componente da sociedade questione-se se do atual sistema vi-
gente (retributivo) tem emanado decisões justas que atendam e contemplem de forma
satisfeita e valorativa a sociedade, a vítima e o infrator, que muitas vezes é “produto/
vítima” do meio em que está inserido.

Neste viés, impende trazer ao presente estudo a Justiça Restaurativa que possui
como um de seus diferenciais o da participação de todos os interessados no procedi-
mento, sejam estes, a vítima, o infrator, a família, a comunidade, ou seja, todos aqueles
que têm interesse no restabelecimento da ordem violada. Em virtude do surgimento
desse modelo de justiça e tendo em vista a sua natureza integrativa e o retorno que esta
pode trazer a sociedade, este trabalho analisa a possibilidade de aplicação complemen-
tar da Justiça Restaurativa pelos Tribunais Pátrios ao modelo de justiça tradicional.

Por conseguinte, formulou-se a hipótese de que a possibilidade de aplicação da


Justiça Restaurativa pelos tribunais pátrios (através do encaminhamento dos envolvi-
dos em um conflito para participação de práticas restaurativas) pode contribuir posi-
tivamente para a resolução de situações de forma mais equânime e justa, que satisfaça
tanto as partes, quanto a sociedade.

O objetivo do trabalho, portanto, é realizar um estudo teórico, acerca do posicio-


namento de doutrinadores sobre Justiça em sua essência, bem como sobre Justiça Res-
taurativa, características e sua aplicação. Através desta discussão pretende-se demons-
trar por meio dos aspectos essenciais deste modelo, que o magistrado ao analisar o
caso concreto pode encaminhar as partes para participarem de práticas restaurativas.

O método de abordagem utilizado foi o dedutivo, partindo de uma análise geral


do tema para uma apreciação particular, realizando um estudo acerca do posiciona-
mento dos doutrinadores sobre a utilização dos projetos de Justiça Restaurativa. Para
tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, usando como fonte secundária livros,
artigos, periódicos, notícias, reportagens, legislações, além do uso das ferramentas de
buscas da Internet, bibliotecas virtuais e revistas especializadas, que possam ajudar na
fundamentação sobre a possibilidade de inclusão complementar da Justiça Restaurati-
va ao modelo de Justiça Retributiva, propiciando, assim, a solução de conflitos de uma
forma mais satisfatória e justa para as partes.

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
130

9.2 CONCEITO DE JUSTIÇA

Conceituar justiça tem sido um grande desafio para muitos estudiosos, doutrina-
dores e/ou juristas. A palavra tem origem latina Iustitia, contudo mesmo sendo objeto
de estudo há séculos, ainda não foi possível chegar a um consenso sobre o seu concei-
to. Na Grécia e em Roma a Justiça era personificada por deusas que eram utilizadas
para representar um equilíbrio entre o abstrato e o concreto.

O jurista Ulpiano (1985) ao refletir sobre o tema chegou a conclusão de que “Jus-
titia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi”, que numa tradução livre
seria Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu.

Em “Oração aos Moços”, Rui Barbosa (1999, p.26) traz à concepção de que “A
regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na
medida em que se desigualam.” Para ele, o contrário disso seria uma “desigualdade
flagrante”. Assim sendo, por mais que o conceito de justiça transite entre uma e outra
coisa, o cerne daquele está ligado à questão da igualdade e valores.

Paulo Nader (Nader, 2007, p. 106) afirma que a justiça seria a composição de
valores éticos. Para ele, “praticar a justiça é praticar o bem nas relações sociais.” Mais
adiante, o autor complementa, ainda, que para a ordem jurídica ser legitimada é essen-
cial que ela seja a verdadeira “expressão da justiça”.

Do mesmo modo, Dinamarco (1990) pondera que:


Mesmo não sendo o juiz equiparado ao legislador, o seu momento de decisão é um
momento valorativo e, por isso, é preciso que ele valore situações e fatos trazidos
a julgamento de acordo com os reais sentimento de justiça correntes na sociedade
de que faz parte e dos quais ele é legítimo canal de comunicação com as situações
concretas deduzidas em juízo. (...) é dever do juiz optar pela que melhor satisfaça ao
sentimento social de justiça, do qual é portador (...) (DINARMARCO, 1990).

De acordo com o autor (DINAMARCO, 1990) o juiz não deve cumprir apenas
a função de dirimir litígios sem aplicar os critérios de justiça, posto que isso poderia
levar a uma “sucessão de brutalidades arbitrárias, que em vez de apagar os estados
anímicos de insatisfação, acabaria por acumular decepções definitivas no seio da so-
ciedade.”

Na obra “Introdução à Filosofia do Direito” Radbruch (2000), em termos gerais,


sopesa que a essência da justiça seria a igualdade e que a universalidade seria sua
forma. O doutrinador acrescenta também que a justiça seria uma idéia formal enten-
dida como “tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais”, contudo levanta o
seguinte questionamento: Se, por exemplo, dois agentes do mesmo delito deveriam
receber o mesmo tipo de punição em virtude de terem cometido o mesmo ato delitivo

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
131

ou se deveriam ser tratados de forma diferente em função de alguns fatores como an-
tecedentes e periculosidade.

Assim, até mesmo em casos concretos parecidos, cada situação exige do magis-
trado um posicionamento diferente, uma vez que ele não pode ficar “engessado” a
uma determinada decisão, de modo a aplicá-la a todos os casos que considere “seme-
lhantes”. Isso ocorre, porque cada caso concreto possui nuances diferentes, exigindo
do juiz, posicionamentos menos acomodados. Assim, além da aplicação da lei, ele de-
ver trazer valores à decisão, a fim de proferir uma decisão mais justa em casa situação
que lhe é apresentada.

Deste modo, para que uma decisão proferida seja justa, é necessário que o jul-
gador além das leis, observe também princípios valorativos, a fim de aferir a real e
premente necessidade das partes e, somente assim, após detidamente sopesar toda a
situação, decidir da forma mais justa possível, com vistas a satisfazer as partes envol-
vidas em um litígio judicial.

9.3 A “JUSTIÇA” APLICADA AO CASO CONCRETO

Ao tratar sobre justiça e sua aferição pelo juiz no caso concreto, impende trazer à
baila posicionamentos de alguns magistrados sobre quais são as funções de um julga-
dor e como este deve se portar ao emitir juízo, a fim de proferir uma decisão conside-
ravelmente justa.

Sobre as funções do magistrado, o Eminente Ministro do Supremo Tribunal de


Justiça Sálvio de Figueiredo Teixeira, no Recurso Especial n.º 299/RJ (STJ, 1989), desta-
cou que a lei não é um mero instrumento para apenas se conferir, posto que nas mãos
do aplicador, deve ser um “instrumento de realização do bem social”.
O magistrado não é amanuense da lei, com mera função de conferir fatos com dis-
posições legais, aplicando textos com a insensibilidade das máquinas. A própria lei
confere função singular ao magistrado, quando estabelece que, na sua aplicação, o
juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum. Em outras palavras, a
lei deve ser, nas mãos de seu aplicador, um instrumento de realização do bem so-
cial, porque o rigorismo da interpretação dos textos legais pode, muitas vezes, nos
conduzir ao descompasso com a realidade, o que significaria o primeiro passo para
uma injustiça (STJ,1989, p.1.559).

Em seu voto, o Ministro cita ainda Piragibe da Fonseca, destacando que este afir-
mava que a melhor interpretação não é o enquadramento frio de fatos a conceitos pre-
fixados, mas, sim, aquela que se preocupa com a solução mais justa.

Em síntese, o juiz como estudioso e aplicador da lei deve manejá-la cuidadosa-


mente para que não incida no “erro” de proferir uma decisão destoante e injusta, que
não cumpra fidedignamente a sua função social, senão, de que valeria sua aplicação?

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
132

Outrossim, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 111.787-GO


(STF, 1991), o Relator Ministro Marco Aurélio, pronunciou-se no sentido de que ao ser
confrontado por uma controvérsia de um caso judicial, o aplicador da lei deve buscar
a solução que considera mais justa, conforme se extrai do excerto abaixo:
...toda vez que o magistrado se defronta com uma controvérsia, com um interesse
resistido, deve idealizar a solução mais justa para o caso concreto. Ele deve partir
para a fixação do desiderato, inicialmente, de acordo com a formação humanística
que possui e, somente após, já fixado o desiderato desejável para o caso, partir para
a dogmática, o apoio para a conclusão a que chegou inicialmente. Encontrando esse
apoio, como quer o direito, torna translúcido o direito no provimento judicial (STF,
1991).

Moreira (2000) ao retratar sua experiência pessoal, enquanto julgador por 15


(quinze) anos, relata que as vezes se defrontava entre escolher uma solução injusta ou
uma solução ilegal para aplicar a determinado caso concreto. Contudo, chegou a con-
clusão de que, na verdade, ele é que não estava interpretando a lei corretamente e/ou
equacionando corretamente a questão.
Minha experiência pessoal de julgador, por quinze anos, no Tribunal de Justiça des-
se Estado, persuadiu-me de que, quando supunha defrontar-me com a angustiosa
necessidade de escolher entre solução injusta e solução ilegal, a raiz do problema
quase nunca se situava na realidade, mas em meu próprio espírito. Era eu que não
estava sabendo dar à lei a interpretação correta, nem, portanto, equacionar devida-
mente a questão. Refazendo os passos do raciocínio, não se tornava difícil, em regra,
achar a saída que me livrasse daquela terrível opção. (MOREIRA, 2000, p. 109).

Assim, vale salientar que não basta existir um processo que atenda aos princípios
e ditames constitucionais, é necessário também, que o magistrado dê uma interpreta-
ção adequada à legislação, para assim prolatar a decisão definitiva mais adequada e
justa.

Aliás, o art. 6º da Lei 9.0099/95 (BRASIL, 1995), que cria os juizados especiais,
determina que o juiz deve emitir uma decisão justa e equânime, buscando atender
aos fins socais da lei: “O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e
equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.”

O Ministro João Otávio de Noronha (Noronha, 2019) do STJ, lembrou que o tribu-
nal completa 30 anos e que durante esses anos tem buscado acompanhar as mudanças
do direito, das tecnologias e da sociedade. Entrementes, em que pese tais mudanças,
destacou que o indivíduo, enquanto ser humano, deve ser a preocupação central do
aplicador da lei. Em síntese afirmou: “O que nenhum de nós, julgadores, pode deixar
de considerar é que lá na ponta existe uma pessoa.” De acordo com o Ministro, no iní-
cio e no fim do processo existe um ser humano que tem pressa e que justiça que chega
tarde não é efetiva.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
133

Desse modo, é patente a função do juiz, de sorte que este não deve cumprir um
papel de mero executor/aplicador da lei sem, contudo, considerar a necessidade pau-
tável de aplicar uma solução mais justa a cada lide que lhe é apresentada, caso con-
trário a satisfação das partes não será alcançada, o que desvirtuaria a ideia de justiça
e igualdade.

Consoante o exposto, é necessário que o julgador, enquanto aplicador da lei,


atente para todas essas questões que o permeiam, dando a legislação uma interpre-
tação correta e adequada, a fim de alcançar uma decisão justa e, por conseguinte, sa-
tisfatória para todas as partes envolvidas, inclusive para a sociedade. Visando a ideal
interpretação da justiça, impende destacar o modelo de Justiça Restaurativa que, como
será discutido mais a frente, tem grande potencial para promover soluções mais justas
através do diálogo entre as partes.

9.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA: ASPECTOS CONCEITUAIS,


OBJETIVOS E CARACTERÍSTICAS
9.4.1 Aspectos conceituais

É cediço que a justiça restaurativa surgiu em razão das duras críticas formuladas
ao sistema retributivo. Acerca do conceito de Justiça Restaurativa impende registrar
que, assim como o conceito de justiça em sua essência, o conceito de justiça restau-
rativa ainda não está fundamentalmente determinado. Segundo Pallamolla (2009) a
justiça restaurativa possui um conceito que vem se transformando e renovando-se ao
longo dos anos, a medida que vão ocorrendo estudos e experimentos.

Jaccoud (2005), depois de aprofundado estudo, definiu a justiça restaurativa


como uma forma de aproximação que objetiva corrigir as implicações vivenciadas por
um ato de infração e solucionar conflitos ou reconciliar as partes que estão ligadas ao
conflito.

Pinto (2007) descreve a Justiça Restaurativa como um processo voluntário, que


deve ser realizado em espaços comunitários, no qual mediadores ou facilitadores tra-
balham intervindo, podendo se utilizarem, para tanto, de técnicas de mediação, con-
ciliação e transação, com objetivo maior de suprir necessidades individuais e coletivas
das partes envolvidas, bem como reintegrar socialmente as partes.

Diferentemente da Justiça Retributiva que é regida por regras sistemáticas e que


define o crime como uma violação ao Estado, a Justiça Restaurativa vê o crime por ou-
tra ótica, ele seria uma violação às relações pessoais, de modo que necessitaria ocorrer
reparação de erros, através de uma aproximação dialógica entre a vítima, o ofensor

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
134

e a comunidade, com o fito de reparar, reconciliar e restabelecer a segurança (ZEHR,


2008).

Conforme extrai-se, a definição de Justiça Restaurativa ainda está em construção,


tanto é que Prudente (2014) aduz que ainda não surgiu uma definição única e consen-
sual acerca do tema, enfatizando que o que na verdade se pode esperar é que a justiça
restaurativa, “restaure” efetivamente, minimizando os danos ao máximo.

9.4.2 Objetivos e caracteríticas

O objetivo central da justiça restaurativa é o de reparar os danos, sejam eles de


ordem material, moral e/ou emocional. Também, permite ao infrator, ora causador do
dano, passar pelo processo de reflexão, conscientização, responsabilização e reparação
pelo malefício por ele causado.Logo, todo esse trabalho desenvolvido com as partes
gera reflexos na sociedade, que também é interessada no processo restaurativo.

Assim, a justiça restaurativa objetiva retornar ao status anterior ao dano, busca


restaurar a paz social, recuperando o senso de justiça, através da relação de diálogo
consensual e voluntária estabelecida entre vítima, ofensor e comunidade, identifican-
do as necessidades das partes, ressocializando o ofensor por meio de uma política
humanista.

A prática restaurativa caracteriza-se em geral por ter um viés voluntário, rela-


tivamente informal, de encontro das partes envolvidas, no qual se busca presenciar
um diálogo efetivo, ressaltando-se, contudo, que para que se estabeleça essa relação
dialógica é necessário ser incontroverso que uma das partes envolvidas, reconheça que
cometeu um crime.

9.5 CASOS DE INCLUSÃO NO MODELO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA


NO BRASIL

Antes de apresentar alguns casos de inclusão da justiça restaurativa no Brasil, é


importante destacar que um ator importantíssimo para disseminação da Justiça res-
taurativa pelo mundo foi a ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU, que
através do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), criou a Resolução 12/2012 e di-
vulgou e ampliou os projetos de justiça restaurativa entre seus Estados-Membros, no
qual emitiu resoluções, tendo como objetivo fomentar e regulamentar as práticas de
justiça restaurativa. Tais resoluções constituem referências para os países signatários
da ONU.

No Brasil, contribuições importantes foram dadas pelo CNJ, através da RESO-


LUÇÃO N.º225/2016 do CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ, que dispõe

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
135

sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. A


referida resolução é fruto de reuniões e debates e objetiva incentivar os Tribunais pro-
mover cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento dos facilitadores, bem
como acompanhar o desenvolvimento e a execução dos projetos de Justiça Restaurati-
va, considerando as peculiaridades de cada região.

Aliás, no Brasil, já existem diversos exemplos que em paralelo à justiça tradicional


aplicam-se iniciativas que dão ao ofensor a possibilidade de reabilitação e reinserção
social, muitas vezes, através de liberdade assistida, trabalho comunitário e até mesmo
capacitação profissional. Tal inovação ao modelo de justiça é uma proposta válida,
inclusive, para desafogar o sistema prisional, pois de acordo com o DEPEN (2017) até
junho/2016, a população prisional no Brasil era de 726.712 pessoas, constatando-se,
aliás, déficit de vagas.

Assim sendo, a crise do sistema de Justiça Criminal nas últimas décadas, faz
surgir a necessidade de se fazer uma reestruturação no sistema criminal. Neste viés, a
Justiça Restaurativa em contraposição à Justiça Retributiva, possui como um de seus
diferenciais a participação de todos os interessados no procedimento, sejam estes, a
vítima, o infrator, a família, a comunidade, ou seja, todos aqueles que têm interesse
no reestabelecimento da ordem violada. Desse modo, urge fazer referência a alguns
exemplos onde a implementação de ações reabilitantes surtiu efeito no que tange a
inclusão do infrator como membro produtivo da sociedade, bem como, aos benefícios
resultantes destes trabalhos.

9.5.1 Caso da APAC- Paracatu – MG

A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) é uma enti-


dade civil, sem fins lucrativos, que se dedica à recuperação e reintegração social dos
condenados a penas privativas de liberdade, bem como socorrer a vítima e proteger a
sociedade e tem como objetivo gerar a humanização das prisões, sem deixar de lado a
finalidade punitiva da pena. Sua finalidade é evitar a reincidência no crime e propor-
cionar condições para que o condenado se recupere e consiga a reintegração social.

A instituição opera, assim, como uma entidade auxiliar do Poder Judiciário e


Executivo, respectivamente na execução penal e na administração do cumprimento
das penas privativas de liberdade. Sua filosofia é ‘Matar o criminoso e Salvar o ho-
mem’, a partir de uma disciplina rígida, caracterizada por respeito, ordem, trabalho e
o envolvimento da família do sentenciado (FARIA, 2011).

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
136

9.5.2 Caso de duas Unidades Prisionais do Rio Grande do Sul

Trata-se de 34 (trinta e quatro) detentos de duas unidades prisionais do Rio Gran-


de do Sul que encontraram a reinserção social através da fabricação de pufes. Neste
caso, os apenados têm suas penas reduzidas (em um a cada três dias trabalhados),
aprendem uma profissão e senso de responsabilidade e são remunerados pelo traba-
lho que desempenham.

De acordo com matéria veiculada pelo CNJ (2018) “A iniciativa vai ao encon-
tro dos princípios do Programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), que busca conscientizar a sociedade sobre a importância do acesso de detentos
e ex-detentos ao estudo e trabalho para prevenção da reincidência criminal”.

O Programa “Começar de Novo” dá aos Tribunais de Justiça dos Estados a atri-


buição de buscar parceiros públicos e privados dispostos a contribuir com a reinserção
social de detentos e egressos do sistema carcerário. Vale salientar que inúmeras parce-
rias foram celebradas em todas as regiões brasileiras e têm possibilitado que pessoas
condenadas reconstruam a vida com trabalho e longe da criminalidade.

9.5.3 Penitenciária Central – Unidade de Progressão, Curitiba- PR

Em Curitiba, no ano de 2016, foi inaugurada no Complexo penitenciário de Pira-


quara, um presídio modelo visando a reabilitação do preso. Resultado de uma parce-
ria entre o governo do Paraná e o Tribunal de Justiça do estado (TJ-PR), a Penitenciária
Central do Estado – Unidade de Progressão (PCE-UP) visa atender o que está previsto
na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), que compreende o acesso a saúde, alimen-
tação adequada, estudo e trabalho, tendo direito de ser tratado com dignidade e hoje é
considerado um exemplo deste modelo de sistema prisional no país (MARONI, 2018).

9.5.4 Programa OPUD-Oficina de Prevenção ao Uso de Drogas

No artigo “Boas Práticas Restaurativas” (ERLICH, 2015) a autora cita a execução


do Programa OPUD-Oficina de Prevenção ao Uso de Drogas, ela relata que o progra-
ma consiste no atendimento especializado ao adolescente usuário de drogas, no âmbi-
to da prevenção secundária, a fim de evitar a progressão do consumo e minimizar os
prejuízos relacionados ao uso de entorpecente.

Como resultado obtido através da implantação e aplicação do programa a au-


tora cita que desde a aplicação do programa que começou no início do ano de 2014,
106 adolescentes foram encaminhados, dos quais 69 concluíram a oficina e receberam
certificados. Dos que concluíram a oficina, 13 adolescentes reiteraram a prática infra-
cional (18,84%). “Conclui-se, por um resultado positivo, com baixa reincidência.

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
137

9.6 EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM


ALGUNS JULGADOS PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS BRASILEIROS

Conforme tem se visto, a aplicação da Justiça Restaurativa vem crescendo no


Brasil. Por ocasião da realização de programas, oficinas, entre outros, o que vem gra-
dualmente causando mudanças significativas no modo de lidar e solucionar confli-
tos. Desse modo, a Justiça Restaurativa tem sido citada, também em julgados, através
do qual os magistrados analisam cada situação que lhe é apresentada e verificam se
aquele determinado caso configura hipótese de aplicação da justiça resturativa. Caso
entenda nesse sentido, o magistrado encaminha as partes para participarem de proce-
dimentos restaurativos.

A respeito do que ora se afirma, traz-se uma decisão do Tribunal de Justiça do


Distrito Federal, contida no bojo do Processo n.º 0007687-70.2016.8.07.0010 TJ-DF, em
que no julgamento de uma Apelação Criminal, a 1ª Turma Recursal daquele Tribunal
decidiu por suspender o julgamento, a fim de que as partes fossem encaminhadas
para participar nos encontros e procedimentos restaurativos realizados pelo Centro
Judiciário de Justiça Restaurativa do Gama e de Santa Maria - CEJURES-GAM-SMA,
conforme Ementa abaixo:
APELAÇÃO CRIMINAL. EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES.
POSSE. IMÓVEL. CONFLITOS FAMILIARES. JUSTIÇA RESTAURATIVA. JULGA-
MENTO SUSPENSO. 1. Recurso próprio, regular e tempestivo. 2. Apelação Crimi-
nal interposta contra a sentença que julgou procedente a pretensão punitiva para
condenar os querelados pela prática do crime de exercício arbitrário das próprias
razões, previsto no artigo 345 do Código Penal, uma vez que impediram a entrada
das querelantes em imóvel que ocupavam com anuência dos querelados. 3. Os fa-
tos criminosos em apuração advieram de conflitos familiares e envolvem a disputa
pela posse de imóvel onde residiam as partes, o que lhes trouxe diversos prejuízos
emocionais. 4. O Programa Justiça Restaurativa do TJDFT reúne pessoas envolvidas
e afetadas por um fato delituoso para dialogarem sobre as suas causas e consequên-
cias, buscando a reparação de prejuízos emocionais, morais e materiais. 5. A situação
fática vivenciada pelas partes configura hipótese de atuação da Justiça Restaurativa,
visando à efetiva resolução do conflito. 6. JULGAMENTO SUSPENSO. Partes enca-
minhadas para participação nos encontros e procedimentos restaurativos, que serão
realizados pelo Centro Judiciário de Justiça Restaurativa do Gama e de Santa Maria
- CEJURES-GAM-SMA (TJ-DF, 2018).

Conforme se extrai, o Magistrado destacou que, o programa da Justiça Restaura-


tiva do TJDFT objetiva reunir pessoas relacionadas com um fato delituoso para dialo-
garem sobre as suas causas e consequências, buscando a reparação de prejuízos.

Aliás, no mesmo sentido que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal decidiu,


o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) assim se pronunciou na COR
70076790682:
CORREIÇÃO PARCIAL. DECISÃO QUE DETERMINA A REMESSA DOS AUTOS,
DE OFÍCIO, AO CEJUSC, PARA APLICAÇÃO DE METODOLOGIAS DA JUSTI-

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
138

ÇA RESTAURATIVA. INEXISTÊNCIA DE ERROR IN PROCEDENDO OU ERROR


IN JUDICANDO. MEDIDA AUTORIZADA PELA RESOLUÇÃO Nº 225 DO CNJ.
DECISÃO MANTIDA. O Juízo a quo, ao receber a exordial acusatória, determinou
a remessa do feito ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, nota-
damente para tentativa de resolução da quaestio pela via restaurativa. Inexiste erro
ou abuso na decisão judicial, que não importou na inversão tumultuária de atos e
fórmulas legais, tampouco na paralisação injustificada do feito. Isso porque a Re-
solução nº 225 do Conselho Nacional de Justiça evidencia que o magistrado, em
qualquer fase de tramitação do procedimento ou processo judicial, poderá reme-
ter, de ofício, os autos para atendimento restaurativo judicial. In casu, a solução
dada pelo juízo coaduna-se com projeto aprovado pelo Conselho da Magistratu-
ra, que visa à implementação do método alternativo no âmbito do primeiro grau
de jurisdição, inclusive no ramo do Direito Penal. Ademais, a natureza do fato
denunciado constitui matéria propícia ao implemento da Justiça Restaurativa, es-
pecialmente considerando a criança supostamente vítima do abandono material, a
quem se... deve garantir proteção integral, zelando pelo adequado desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social. Portanto, inexistente error in procedendo ou
error in judicando, impende julgar improcedente, de plano, a presente medida cor-
reicional. CORREIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. DECISÃO MONOCRÁTICA
(TJ-RS, 2018).

Do exposto, tem-se visto que a Justiça Restaurativa tem potencial para contribuir
com a consolidação da pacificação social, uma vez que prioriza restaurar as relações.
É possível solucionar conflitos através da aplicação das práticas restaurativas, que po-
dem atuar na redução dos índices de reincidência, na reparação de danos e pacificação
social.

9.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do estudo é possível enxergar que a sociedade e as partes envolvidas


em uma situação conflituosa não tem obtido um resultado satisfatório, principalmente
no que tange à sensação de justiça social. Para se alcançar satisfação das partes, paz
e justiça social é necessário que haja uma mudança de paradigma; é preciso que seja
dado um novo olhar para a relação conflituosa e seus envolvidos, para que assim os
conflitos sejam dirimidos de forma mais justa.

Nesse diapasão, em virtude das características do modelo de justiça restaurativa


que, ainda, que timidamente já vem sendo aplicado em alguns países e, mais recente-
mente no Brasil (neste último, ainda que timidamente, tem avançado), é possível ex-
trair que se trata de um modelo mais equânime na resolução de conflitos, dialogador,
restaurador e ressocializador.

Sobre a justiça restaurativa sabe-se que ainda há muito a ser feito e desenvolvido,
porém pode-se perceber que tal aplicação complementar ao sistema retributivo, ain-
da que recente no Brasil, vem aos poucos surtindo efeitos. As maiores contribuições
têm se dado na área penal, na seara cível, nas escolas públicas e privadas e onde mais
for necessário, trazendo uma nova forma de enxergar, (re) pensar, acompanhando as

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
139

transformações socais e atendendo, principalmente, os desfavorecidos, as minorias e


de quem mais necessite recorrer à Justiça Restaurativa.

Assim, através da justiça restaurativa tem se buscado voluntariamente restaurar


às relações interpessoais, reparar danos de diversa natureza e ressocializar o ofensor,
fazendo com que através do diálogo realmente haja justiça, paz e transformação social.

Por fim, pelo que se aufere, em razão de suas características, bem como das ex-
periências obtidas, o modelo de justiça restaurativa aparenta ser aquele que melhor
satisfaz o sentimento social de justiça, podendo ser aplicado de forma complementar e
não excludente ao sistema de justiça retributiva. Portanto, em razão de ser uma justiça
colaborativa, de escuta, o modelo restaurativo é aquele que melhor se apresenta como
a proposta mais justa de tratamento adequado dos conflitos, inclusive, tendo o poten-
cial de alcançar a pacificação das relações sociais de forma mais efetiva.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco (Livro V). São Paulo: Martin Claret, 2011.

BARBOSA, Rui; MÓDOLO, Marcelo. Oração aos moços. 5ª Edição, Casa Rui Barbosa.
Rio de Janeiro: 1999, p.26.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Detentos do RS são contratados por fábrica


de estofados. 2013. Disponível em: < http://cnj.jus.br/noticias/cnj/59670-detentos-
-do-rs-sao-contratados-por-fabrica-de-estofados> Acesso em: 28 jul. 2018.

DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Infor-


mações Penitenciárias: INFOPEN Atualização 2016. Brasília: Ministério da Justiça e
Segurança Pública / Departamento Penitenciário Nacional, 2017.

DINARMARCO, CANDIDO RANGEL. A Instrumentalidade do Processo. Edição re-


vista e atualizada Cândido R. Dinamarco. 1ª edição, 1987 – 2ª edição, 1990.

ECCOSOC RESOLUSION 2002/12. Basic principles on the use of restorative justice


programmes in criminal matters. Disponível em: <http://www.un.org/en/ecosoc/
docs/2002/resolution%202002-12.pdf> Acesso em 22 jul. 2019.

ERLICH, V. H. P. Boas Práticas Restaurativas: processuais e extraprocessuais. Revis-


ta Igualdade Especial: 25 anos do ECA - CAOPCAE/MPPR. 2015. Disponível em:
<http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1814.html>. Acesso em: 08 jul. 2019.

FARIA, Ana Paula. APAC: Um modelo de humanização do sistema penitenciário. Âm-


bito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 87, 2011.

JACCOUD, Millène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça


Restaurativa.Slakmon, CR de Vitto e R. Gomes Pinto, org. Justiça Restaurativa, Bra-
sília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
– PNUD. 2005.

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
140

MARONI, João Rodrigo. Prisão onde 100% dos detentos trabalham e estudam? Exis-
te, e fica no Brasil. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/justica/pri-
sao-onde-100-dos-detentos-trabalham-e-estudam-existe-e-fica-no-brasil-0h3sil0asli-
z2bgm0tuzrtnf2. Acesso em: 28 ago. 2018.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O juiz e a cultura da transgressão. Temas de Direito


Processual. Revista da Emerj, v.3, n.º9, 2000.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Forense, 2007, p.106.

NORONHA, J. O. Apresentação. Revista Panorama STJ- 30 anos, 30 histórias. Superior


Tribunal de Justiça. Distrito Federal, p. 4. 2019.

PALLAMOLLA, R. P. Justiça restaurativa: da teoria à prática. -1.ed. - São Paulo: IBC-


CRIM, 2009.

PAROSKI, M. V. Do direito fundamental de acesso à justiça. Scientia Iuris, Londrina,


v.10, p. 225-242. 2006.

PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil. O im-


pacto no sistema de Justiça criminal.  Revista Jus Navigandi, Teresina, n. 1432, ano
12, 3jun. 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9878>. Acesso em: 21 jul.
2018.

PRUDENTE, Neemias Moretti; Justiça Restaurativa: A Construção de um outro para-


digma. Revista Jurídica da Universidade de Santa Catarina, Maringá/PR. 2014.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à Filosofia do Direito. 2000.p. 25.

RESOLUÇÃO 225/2016 CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/atos_


normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf> Acesso em: 9
jul. 2019.

STJ- Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Resp. n.299/RJ, rel. Min. SÁLVIO DE
FIGUEIREDO TEIXEIRA, j.28.8.89,v.u .,in Revistado Superior Tribunal de Justiça
4(1989),p.1.559.

STF- Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma, RExt n.º 111.787/GO, rel. Min. Marco Au-
rélio de Melo, j. 16.4.91, in Revista Trimestral de Jurisprudência 136 (1991).

TJ-DF. Apelação Criminal 20161010076874 DF 0007687-70.2016.8.07.0010, Re-


lator: FABRÍCIO FONTOURA BEZERRA, Data de Julgamento: 07/12/2017,
1ª TURMA RECURSAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 09/02/2018
. Pág.: 385/390. Disponível em: < https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurispruden-
cia/548854000/20161010076874-df-0007687-7020168070010?ref=serp>Acesso em: 17
jul.2019

TJ-RS Correição parcial 70076790682 RS, Relator: Ícaro Carvalho de Bem Osório, Data
de Julgamento: 17/04/2018, Sexta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da
Justiça do dia 19/04/2018. Disponível em: < https://tj rs.jusbrasil.com.br/jurispru-
dencia/569361736/correicao-parcial-cor-70076790682-rs?ref=serp > Acesso em: 17
jul.2019

Newton Nobel Sobreira Vita


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
141

ULPIANO, L. 10, tit. dejustitia et de jure. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.p. 526.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad.
Tônia Van Acker- São Paulo: Palas Athena, 2008.

Capítulo 9
JUSTIÇA NAS DECISÕES: APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS
142
CAPÍTULO 10

A PRISÃO DOMICILIAR E AS ALTERAÇÕES


PROVOCADAS PELA LEI Nº 13.769/18

João Roberto Martins Cardoso1


Maria Maryelle Batista de Souza2

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.10

1  Professor de Direito do Trabalho e Empresarial na FACET - Faculdade de Ciências de Timbaúba/PE. Pós-graduado


em direito civil e empresarial pela faculdade Damásio de Jesus. Pós-graduado em Poder Judiciário e Magistratura do
Trabalho pela Esmatra (TRT6). Advogado.
2  Advogada. Graduada em direito pela FACET - Faculdade de Ciências de Timbaúba/PE.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
144

RESUMO

É sabido que temos diferentes tipos de prisões: prisão em flagrante, a prisão


temporária e a prisão preventiva, dentro da qual, a possibilidade de mudan-
ça pela prisão domiciliar. A forma como se aplica a prisão domiciliar vem passando ao
longo dos anos por várias alterações. Hoje, desenvolveu-se uma larga possibilidade da
concessão da prisão domiciliar. O tema fora escolhido para mostrar a relevância social
e jurídica sobre as alterações na prisão domiciliar provocadas pelas Leis nº 13.257/2016
e nº 13.769/2018, e consequentemente na vida de quem passou a ter o direito a conces-
são deste benefício após tais mudanças
Palavras-chave: Prisões cautelares. Prisão domiciliar. Mulheres. Crianças.

10.1 INTRODUÇÃO.

O presente artigo versa sobre a prisão domiciliar, introduzida no ordenamento


jurídico brasileiro pela Lei 12.403, de maio de 2011. Porém, antes de abordar o assunto
da prisão domiciliar, será realizada uma breve abordagem em relação aos tipos de pri-
sões cautelares existentes no Processo Penal Brasileiro.

A Lei que concede o benefício da prisão domiciliar já existe desde o ano de 2011.
(Lei nº 12.403/11). Entretanto, com a Lei 13.257/2016, a prisão domiciliar a passa a ter
a possibilidade de ser concedida às mulheres gestantes e também à qualquer pessoa
que seja a única responsável por crianças de até 12 anos incompletos.

Neste trabalho, serão especificadas as alterações provocadas com o advento da


Lei 13.769/2018, que consolidam a prisão domiciliar como instituto cautelar no pro-
cesso penal brasileiro. Isso ocorre com a exceção trazida nos incisos dos artigos 318-A
e 318-B.

10.2 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA X PRISÕES


CAUTELARES

De acordo com os termos do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal: “nin-
guém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condena-
tória”, configurando assim, o princípio da presunção da inocência, que de uma forma
geral dispõe que ninguém é considerado culpado até a sua condenação não poder ser
mais recorrida (MENDONÇA, 2016).

O in dubio pro reo (em dúvida para o acusado) está expresso no artigo 386 do Có-
digo de Processo Penal e possui uma forte ligação com o princípio constitucional da
presunção de inocência, que pressiona o juiz no momento de prolatar a sentença, que
em caso de dúvidas da autoria do crime, absolva o réu por insuficiência de provas. Ou

João Roberto Martins Cardoso


Maria Maryelle Batista de Souza
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
145

seja, se não houver certeza da autoria do crime, o juiz, de acordo com o princípio da
presunção de inocência ou da não culpabilidade, deve absolver o acusado. De acordo
com o que foi exposto acima percebe-se que o princípio do in dubio pro reo e o da pre-
sunção de inocência possui uma relação de causa e efeito. E por último e não menos
importante, o terceiro efeito, é que o Estado não pode, enquanto houver possibilidade
de uma reanálise da sentença, impor uma antecipação de pena (MENDONÇA, 2016,
p. 36).
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde
que reconheça:
I - estar provada a inexistência do fato;
II - não haver prova da existência do fato;
III - não constituir o fato infração penal;
IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; (Redação
dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; (Redação
dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20,
21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada
dúvida sobre sua existência; (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
VII – não existir prova suficiente para a condenação. (Incluído pela Lei nº 11.690,
de 2008)
Parágrafo único. Na sentença absolutória, o juiz:
I - mandará, se for o caso, pôr o réu em liberdade;
II – ordenará a cessação das medidas cautelares e provisoriamente aplicadas; (Re-
dação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
III - aplicará medida de segurança, se cabível. (DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE
OUTUBRO DE 1941).

Atente-se para os incisos II e VII do artigo 386 do Código de Proces-


so Penal, que expressa que se não houver provas suficientes para a condena-
ção ou até mesmo se não houver provas da materialidade do fato, deve-se ab-
solver o acusado, de acordo com os princípios da presunção de inocência e do in
dubio pro reo, que como já foi explicado acima, são intimamente ligados um ao outro.
No trâmite processual penal brasileiro, existem diferentes tipos de prisões: prisão tem-
porária, prisão preventiva, prisão em flagrante, prisão preventiva para fins de extradi-
ção, prisão para execução da pena e a prisão domiciliar. Dentre essas, destaca-se as pri-
sões que podem ser executadas antes da sentença penal transitada em julgado.
Adentrando nesse assunto, devemos ter em mente que a liberdade é a regra e a
prisão é uma exceção. Ana Cristina Mendonça (2016, p. 262) explica que ainda que no
ordenamento jurídico brasileiro exista o princípio da presunção da inocência, há casos
em que, o juiz pode decretar prisão de alguém sem a sentença condenatória transitada
em julgado.

Capítulo 10
A PRISÃO DOMICILIAR E AS ALTERAÇÕES PROVOCADAS PELA LEI Nº 13.769/18
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
146

10.3 AS PRISÕES CAUTELARES NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Uma das prisões cautelares, é a prisão em flagrante e de acordo com as palavras


de Leonardo Castro (2015), a prisão em flagrante é mais do que apenas uma “voz de
prisão”, é um ato que visa tirar a liberdade de alguém momentaneamente que foi pego
praticando um ato de infração penal, a fim de evitar a consumação do ato ou para evi-
tar a fuga do criminoso, ou até mesmo para garantir o bem estar físico daquela pessoa
que foi autuada.

A fim de facilitar o entendimento, a doutrina classifica a prisão em flagrante em:


flagrante facultativo e flagrante obrigatório, flagrante próprio ou perfeito, flagrante
impróprio ou imperfeito, flagrante presumido, flagrante preparado ou provocado, fla-
grante forjado, flagrante esperado, flagrante diferido ou retardado, flagrante nos cri-
mes permanentes e habituais (NUCCI, 2013).

De acordo com a linha de raciocínio de Nucci, o flagrante facultativo, como o


nome já diz, é quando por exemplo: se qualquer pessoa do povo presenciar um fla-
grante, essa pessoa não possui a obrigatoriedade de dar voz de prisão, pois, qualquer
pessoa do povo não possui o estrito cumprimento do dever legal e se ela omitir-se para
o acontecimento, nada incorrerá para ela, tendo em vista que ela não possui o dever de
obrigação. Já o flagrante obrigatório é voltado às autoridades policiais e seus agentes
(Polícia Civil e Polícia Militar) por possuírem o dever de efetivar o flagrante, sob pena
de responder na esfera penal e até mesmo dentro da função. (NUCCI, 2013, p. 603).

A prisão preventiva está expressa no Código de Processo Penal nos artigos 311 e
seguintes, que esclarecem como pode ser decretada a prisão e em quais circunstâncias
a mesma torna-se cabível. De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 617), a
prisão em flagrante é uma das espécies de medidas cautelares de cerceamento de liber-
dade, por razões que se façam necessárias e respeitando os requisitos expressos em lei.

Este tipo de medida cautelar pode apenas ser decretado por um juiz ou tribunal
que seja competente, com fundamentos, a partir de requerimento do Ministério Públi-
co ou mediante representação da autoridade policial (LOPES JR., 2014, p. 654).

Vale ressaltar que o leitor pode ser induzido a erro ao ler o artigo 311 do Código
de Processo Penal, quando ele retrata que uma das formas da prisão preventiva ser
decretada pelo juiz, é a requerimento do querelante. Vale ressaltar que quando há
requerimento do querelante, trata-se de ação penal privada. Entretanto, encaixando o
que está disposto no artigo 313 do Código de Processo Penal, não caberá a decretação
da prisão preventiva em crimes os quais a pena é igual ou inferior a 04 (quatro) anos,

João Roberto Martins Cardoso


Maria Maryelle Batista de Souza
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
147

que aplicando-se agora os dois artigos, são justamente os crimes de ação penal priva-
da. (LOPES JR., 2014, p. 654).

Para a decretação da prisão preventiva, é necessário que o juiz fundamente sua


decisão e apresente suas razões, como está previsto no artigo 315 do Código de Proces-
so Penal, para evitar posteriores nulidades ou constrangimentos é imprescindível que
a fundamentação seja concisa. (NUCCI, 2013, p. 625).

Abordando a Lei 7.960 de 1989, pode-se perceber que esta trata das formas e
de todo o trâmite a ser seguido a respeito da Prisão Temporária. Sendo assim, a dita
prisão também está encaixada dentro das prisões cautelares, ou seja, é uma espécie de
prisão que pode ser decretada antes da sentença penal condenatória.

O artigo 1º da Lei 7.960/89 traz em seus termos incisos que dispõe quando cabe a
decretação da prisão temporária e no inciso III, traz um extenso rol taxativo dos crimes
que cabe a mencionada prisão. A decretação desta prisão se dá pelo Juiz, se houver
requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público. De acordo com o artigo
2º da dita Lei, a prisão temporária terá prazo máximo de 05 (cinco) dias, sendo pror-
rogável por mais 05 (cinco) dias e podendos ser prorrogável apenas uma única vez,
sendo devidamente fundamentada.

A Lei é clara ao dispor das formalidades a serem seguidas, por exemplo, no pa-
rágrafo primeiro do artigo 2º, a prisão temporária se for requerida pela autoridade
policial, o Juiz antes de decidir pela decretação ou não da prisão do sujeito, deve antes
ouvir o Parquet. Como é de praxe, o despacho em que for decretado a prisão temporá-
ria do sujeito, deve ser bem fundamentada a prolatada em até 24 horas após o recebi-
mento da representação ou do requerimento.

Deverão ser expedidos dois mandados de prisão temporária, para que uma das
cópias fique com a pessoa que esteja com sua liberdade cerceada servindo como nota
de culpa. Após o decurso dos 05 (cinco) dias e se o prazo não for prorrogado e nem a
prisão temporária tiver sido convertida em preventiva, o indiciado deverá ser posto
em liberdade imediatamente. Além disso, os presos temporários deverão serem man-
tidos em local diferente dos demais presos, nos termos da Lei 7.960/89.

10.4 A PRISÃO DOMICILIAR E AS ALTERAÇÕES PROVOCADAS


PELA LEI Nº 16.769/2018

A prisão domiciliar foi regulamentada pela Lei 12.403/2011, que previu, em fase
processual, hipóteses de cumprimento de preventiva em residência, a citada prisão
tem como característica a detenção da pessoa do acusado em sua residência, não po-
dendo dela sair para nada, salvo seja avisado com antecedência ao juízo competente.
Capítulo 10
A PRISÃO DOMICILIAR E AS ALTERAÇÕES PROVOCADAS PELA LEI Nº 13.769/18
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
148

A regra do cumprimento de pena é que seja em cárcere fechado, mas como toda re-
gra há exceção, temos a prisão domiciliar que atende aos casos excepcionais, seja por
questão de enfermidade quando a cadeia não dispõe de local apropriado para atender
as necessidades do acusado ou até mesmo por motivos específicos trazidos no rol do
artigo 117 da Lei de Execuções Penais. E nos artigos 318, 318-A e 318-B do Código de
Processo Penal.

Tendo em vista que a prisão domiciliar não é considerada uma medida cautelar,
e sim uma forma de cumprimento preventivo tido como uma exceção à regra, que
normalmente, a pena é cumprida em presídio, somado com a precariedade do sistema
penitenciário brasileiro, considera-se privilegiado a pessoa que é concedido o benefí-
cio da prisão domiciliar. Quando o benefício de ficar em casa é concedido, o apenado
recebe uma tornozeleira eletrônica.

A tornozeleira eletrônica é uma forma de monitoramento eletrônico que permite


controlar a localização dos apenados a fim de que não haja descumprimento da pena
alternativa à prisão, que no caso, é a prisão domiciliar.

De acordo com o levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça, até 2014,
das 711 mil pessoas que estavam submetidas a algum tipo de prisão no Brasil, cerca de
20% cumpriam regime de prisão domiciliar (BRASIL, 2014).

A prisão domiciliar sofreu algumas alterações com o surgimento da Lei nº


13.769/2018, provocando uma mudança ao conceder o benefício da prisão domiciliar
para presas gestantes e mães ou responsáveis por crianças ou por pessoas com defi-
ciência.

Essa mudança ocorreu em fevereiro de 2018, mais precisamente no dia 20 do cita-


do mês. A 2ª (segunda) Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus
coletivo (HC 143.641/SP, j. 20/02/2018) em que compuseram como pacientes: “todas
as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional” que esti-
vessem na “condição de gestantes, estado puerperal ou de mães com crianças com até
12 anos de idade sob sua responsabilidade”, além das próprias crianças que por acaso
estivessem em companhia das mães (CUNHA, 2018).

Ressalte-se também que a referida lei alterou o artigo 318 do Código de Processo
Penal e incluiu os artigos 318-A e 318-B, para que houvesse a substituição da prisão
preventiva pela prisão domiciliar, concedendo essa benesse, como já foi mencionado
acima, para mulheres gestantes, lactantes ou até com crianças de 12 anos incompletos
(CUNHA, 2018).

João Roberto Martins Cardoso


Maria Maryelle Batista de Souza
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
149

É importante observar que pode ser concedido à prisão domiciliar no aspecto


em relação às crianças, mas também pode ser concedido tal benefício ao homem ou a
qualquer pessoa que seja responsável pela criança, tendo em vista que o propósito do
HC é a proteção dos vulneráveis para a sociedade, então nada mais justo do que o be-
nefício ser estendido ao pai ou a qualquer outra pessoa na ausência da mãe ou quando
não tiver nem uma outra responsável pelo menor.

10.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi exposto nesta pesquisa, a liberdade de uma pessoa é a regra, sendo as-
sim, o encarceramento, a exceção. Para fundamentar isso, temos o chamado princípio
constitucional: presunção da inocência. O dito princípio fala que a pessoa do acusado
só pode ser considerada culpado após o trânsito em julgado de sentença penal conde-
natória. Como exceção, temos as chamadas prisões cautelares que ocorrem, de manei-
ra geral durante o trâmite do processo.

As prisões cautelares são classificadas em três tipos: prisão em flagrante, prisão


temporária e a prisão preventiva. Essas prisões têm como objetivo, fazer com que o
acusado não atrapalhe de qualquer forma o curso do processo, ou seja uma medida
de proteção à vítima de algum caso específico ou também seja alguém que seja visto
cometendo o crime naquela hora.

Acontece que, dentro dessas classificações feitas acima, tratando-se da prisão


preventiva, é possível que seja dado à pessoa do acusado um certo “benefício” chama-
do prisão domiciliar, que possui como conceito quando a pessoa do preso cumpre a
prisão em sua residência, não podendo sair dela para nada, a não ser em casos excep-
cionais.

Com o passar dos anos, a prisão domiciliar foi recebendo algumas alterações, uma
delas foi com o advento da Lei nº 13.257/2016, sendo o principal alvo dessa mudança,
as mulheres gestantes ou a que estejam em estado puerperal ou ainda que possuem
filhos até 12 anos incompletos e que sejam a única pessoa responsável pela criança, que
passou a ter a possibilidade da concessão da prisão domiciliar. Claro que a prisão só
pode ser concedida, claro tudo isso seja claramente comprovado.

Outra mudança na citada prisão foi em 2018, com o advento da Lei n° 13.769/2018,
quando incluiu no Código de Processo Penal os artigos 318-A e 318-B (encontrados na
pág. 34 desta pesquisa) quando o caput dispõe que a prisão domiciliar será imposta
às mulheres que estiverem em prisão preventiva, desde que as mesmas não tiverem
cometido crimes mediante violência ou grave ameaça, ou ainda crimes contra seus
descendentes (filhos ou enteados).

Capítulo 10
A PRISÃO DOMICILIAR E AS ALTERAÇÕES PROVOCADAS PELA LEI Nº 13.769/18
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
150

A partir daí, foi concedido um Habeas Corpus coletivo à todas as mulheres que
se encontravam na situação de, como já explicado, em gestação, pós parto ou a úni-
ca responsável pelo menor de até 12 anos incompleto. Pode-se concluir que, o julga-
do 143.641, só foi concedido em 2018 porque a Lei de 2016 trazia a possibilidade e a
de 2018 trouxe a imposição. Note-se a mudança das palavras nos referidos artigos:
“pode” para “será”.

Conclui-se também que o legislador e o Supremo Tribunal Federal, priorizaram


o bem estar da mãe gestante e em estado puerperal e, consequentemente, o bem estar
da criança, para que possuíssem as mínimas condições de saúde e higiene, coisas que
são inexistentes nos presídios brasileiros. E em se tratando da única responsável pela
criança com 12 anos incompletos, é notório que, mais uma vez, a criança deve ser a
prioridade no caso concreto. Isso acontece para evitar que crianças sejam abandonadas
e sejam criadas sem educação, saúde, moradia e todos os direitos e garantias indivi-
duais e sociais asseguradas na Constituição Federal.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Novo diagnóstico de pessoas presas no Bra-
sil. CNJ: Brasília/DF, junho de 2014. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-con-
tent/uploads/2014/06/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf. Acesso em: 08
dez. 2020.

CASTRO, Leonardo. Prisão em Flagrante, Prisão Preventiva e Prisão Temporária -


Distinções. JusBrasil, 2015. Disponível em: https://leonardocastro2.jusbrasil.com.br/
artigos/313428773/prisao-em-flagrante-prisao-preventiva-e-prisao-temporaria-dis-
tincoes. Acesso em 12 dez. 2020.

CUNHA, Rogério Sanches. Breves comentários. Lei 13.769/2018 – A prisão domiciliar


e a progressão de regime para presas gestantes e mães ou responsáveis por crian-
ças ou pessoas com deficiência. Salvador: JusPodivm, 2018. Disponível em: https://
www.editorajuspodivm.com.br/cdn/arquivos/416cc1c6a6b29df0ad327918a8502593.
pdf. Acesso em 12 dez. 2020.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MENDONÇA, Ana Cristina. Coleção Descomplicando: Processo Penal. 1. ed. Ed. Ar-
mador, Recife, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de processo penal e execução penal, 10. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

João Roberto Martins Cardoso


Maria Maryelle Batista de Souza
CAPÍTULO 11

ASPECTOS GERAIS ACERCA DA


SISTEMÁTICA DO RECOLHIMENTO
DO ICMS SOBRE OS COMBUSTÍVEIS E
A IMPORTÂNCIA DO INSTITUTO DA
SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA

Silvana Pereira de Albuquerque1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.11

1  Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco; Advogada.


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
152

RESUMO

A Constituição Federal de 1988, estabelece como fatos geradores do ICMS,


incidente sobre operações com combustíveis líquidos derivados de petró-
leo, a produção, importação, circulação, distribuição ou o consumo destes produtos.
No entanto, a existência do instituto da substituição tributária sobre os combustíveis,
muda completamente a sua sistemática de recolhimento, à medida que este dever ser
realizado antes mesmo da existência de um fato gerador propriamente dito.
Palavras-chave: ICMS; Substituição tributária; Fato gerador.

11.1 INTRODUÇÃO

O ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Pres-


tação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação),
nos moldes atuais, surgiu na Constituição Federal de 1988, sendo previsto no art. 155,
II.

É válido ressaltar que este imposto possui hipóteses de incidência e base de cál-
culo diversas. Além disso, embora a configuração da hipótese de incidência do ICMS
dependa, em regra, da efetiva realização da operação de circulação de mercadorias, a
Constituição Federal passou a autorizar o instituto da Substituição Tributária.

Deste modo, este artigo visa esclarecer aspectos gerais da Substituição Tributária
e como há diversas particularidades em sua aplicabilidade, quando relacionado aos
combustíveis.

11.2 BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DO ICMS

A primeira Constituição a tratar acerca de um imposto incidente sobre a circula-


ção de bens, foi a de 1891. No entanto, esta vedava que a União e os Estados criassem
impostos sobre a circulação de produtos que viessem do estrangeiro ou que circulasse
entre os estados.

A Constituição Federal de 1934, por sua vez, passou a prever o instituto do Im-
posto sobre o Consumo, o qual era de competência da União. Ocorre que, antes de ser
previsto no texto constitucional de 1934, o Imposto sobre o Consumo já havia apareci-
do no ordenamento jurídico brasileiro, incidindo de forma específica sobre determina-
dos produtos, como por exemplo, o “imposto sobre o consumo de fumo” e o “imposto
sobre o consumo de álcool”.

A separação do Imposto de Consumo entre um imposto de competência da União


e outro dos Estados, apenas ocorreu na Constituição de 1967 (FREITAS, 2011).

Silvana Pereira de Albuquerque


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
153

A Emenda Constitucional nº 18, de 1965, dividiu o Imposto sobre o Consumo em


dois impostos competentes1 à União, qual sejam, o Imposto sobre Produtos Industriali-
zados – IPI e o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias – ICM.
No entanto, a Constituição Federal de 1988 incorporou a um único imposto, outros im-
postos regidos por legislações esparsas. Sendo assim, foram inclusos ao ICM, além da
própria “circulação de mercadorias”, o Imposto Único sobre Minerais; Imposto Único
sobre Combustíveis Líquidos e Gasosos; Imposto Único sobre Energia Elétrica; Impos-
to sobre Transportes; Imposto sobre Comunicações.

O ICMS surge na Constituição Federal de 1988, sendo previsto em seu art. 155, II,
o qual preconiza que:
“Art. 155. [...]
II - Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: operações
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as pres-
tações se iniciem no exterior.”

A partir do texto constitucional é possível concluir que o ICMS é um imposto de


competência estadual e distrital e apenas estes entes podem instituí-lo ou sobre ele
dispor, mediante lei ordinária.

A sigla “ICMS” alberga pelo menos cinco impostos diferentes, isto porque, estes
institutos possuem hipóteses de incidência e base de cálculo diversas, são eles: a) o
imposto sobre operações mercantis (operações relativas à circulação de mercadorias);
b) o imposto sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal; c) o imposto
sobre serviços de comunicação; d) o imposto sobre produção, importação, circulação,
distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos e de ener-
gia elétrica; e e) o imposto sobre a extração, circulação, distribuição ou consumo de
minerais (CARRAZA, 2011).

Vale salientar desde já que, o ICMS respeita o princípio da não cumulatividade,


isto é, o montante devido, a título de ICMS, em uma das operações realizadas, deve ser
compensado com o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou por outro Estado
ou até pelo Distrito Federal. A não cumulatividade leva em conta o ciclo econômico
de produção e circulação como um todo e visa distribuir equanimente a carga tributá-
ria, de modo que cada contribuinte suporte apenas a fração que lhe cabe (MARTINS,
2009).

1  Uma das justificativas ofertadas à época com o intuito de justificar a competência da União sobre o ICM, circundava a ideia do
medo que, Estados e Municípios, por meio de uma tributação discricionária, prejudicassem à expansão das indústrias no país.

Capítulo 11
ASPECTOS GERAIS ACERCA DA SISTEMÁTICA DO RECOLHIMENTO DO ICMS SOBRE OS COMBUSTÍVEIS E A IMPOR-
TÂNCIA DO INSTITUTO DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
154

11.3 O ICMS SOBRE PRODUÇÃO, IMPORTAÇÃO, CIRCULAÇÃO


DISTRIBUIÇÃO OU CONSUMO DE LUBRIFICANTES E
COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS

Um dos fatos da vida comum, sobre o qual incide o ICMS, são justamente, aque-
les relacionados a operações que envolvem produção, importação, circulação, distri-
buição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos2, conforme dis-
ciplinado no art. 155, §3º, da CF.

Nos termos do texto constitucional, este tributo tem por hipótese de incidência
possível a condição de uma pessoa produzir, importar, fazer circular, distribuir ou
consumir lubrificantes ou combustíveis líquidos e gasosos.

De acordo com a Carta Magna, a base de cálculo do ICMS sobre operações rea-
lizadas com estes produtos, é o valor de sua produção, importação, circulação, distri-
buição ou consumo.

Conforme encontra-se disciplinado na legislação, a base de cálculo deste tributo


é o preço máximo de venda (ou único de venda) a varejo, fixado pelo fabricante, im-
portador ou pela autoridade competente. Se este preço for ausente, será considerado
o valor da operação de varejo praticada, incluídos os valores correspondentes a frete,
carrego, seguro, impostos e outros encargos transferíveis ao varejista, acrescido do va-
lor resultante da aplicação de percentual de margem de lucro fixado pela lei, em cada
caso.

Neste ínterim, é valido ressaltar que a alíquota máxima é estabelecida pelo Sena-
do Federal.

11.4 SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA

Embora a configuração da hipótese de incidência do ICMS dependa, em regra,


da efetiva realização da operação de circulação de mercadorias, a Constituição Federal
passou a autorizar o instituto da Substituição Tributária.

Em linhas gerais, a substituição tributária é o recolhimento antecipado de um tri-


buto. “Faz-se de conta” que ocorreu um fato jurídico capaz de deflagrar o nascimento
de um tributo, antes da ocorrência do seu fato gerador.

Neste diapasão, em determinados casos, os fornecedores encontram-se obriga-


dos a recolherem o ICMS pelo valor final da mercadoria, compreendendo-se neste, o
valor de revenda, o valor agregado, além daquele estimado para o consumidor final

2  Estes são considerados mercadorias.

Silvana Pereira de Albuquerque


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
155

(DENARI, 2009). O contribuinte substituto tributário, antecipa o tributo que apenas de-
veria ser pago na última etapa do processo circulatório.

A regulamentação deste novo instituto jurídico deu-se através da edição da


Emenda Constitucional nº 3, a qual acrescentou ao art. 150, da Constituição Federal o
parágrafo 7º, permitindo ao legislador:
“Atribuir ao sujeito passivo a condição de responsável pelo pagamento do imposto
cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial
restituição da quantia paga, caso não realize o fato gerador presumido.”

Mais tarde, a Lei Complementar Nº 87, de 13 de Setembro de 1996, disciplinou


o instituto da substituição tributária entre os artigos 5º e 10º. No entanto, o Código
Tributário Nacional (CTN) não albergou este instituto com esta denominação, embora
compreenda-se que ela está compreendida na figura do responsável tributário, disci-
plinada no art. 128, CTN.

Alfredo Augusto Becker (BECKER, 2007) conceitua a substituição tributária:


“[...] O sujeito passivo da relação jurídica tributária, normalmente, deveria ser aque-
la determinada pessoa de cuja renda ou capital a hipótese de incidência é um fato-
-signo presuntivo. Entretanto, frequentemente, colocar esta pessoa no polo negativo
da relação jurídica tributária é impraticável ou simplesmente criará maiores ou me-
nores dificuldades para nascimento, vida e extinção destas relações. Por isto, nestas
oportunidades, o legislador como solução emprega uma outra pessoa em lugar da-
quela, e toda a vez que utiliza está outra pessoa, cria o substituto legal tributário.”

Para José Juan Ferreiro Lapatza (2006), a real função da substituição tributária
no sistema jurídico tributário brasileiro, tem o fim primordial de facilitar e assegurar o
cumprimento do tributo. De acordo com ele, o nosso ordenamento jurídico conheceu
e conhece diversas técnicas que, em geral, interpõem entre a Fazenda Pública e as pes-
soas que a lei pretende expressamente gravar com o tributo, um terceiro sujeito, o qual
fica obrigado a pagar as importâncias que ele pode ou deve cobrar daquelas pessoas,
geralmente um grupo numeroso de pessoas, que têm com o sujeito interposto uma
determinada relação (TROCCOLI JUNIOR, 2001).

Com isso, segundo Lapatza (2006), o número de pessoas a quem a Fazenda deve
se dirigir para cobrar o tributo se reduz de forma bastante significativa. Se a isto so-
marmos o fato de que os sujeitos interpostos quase sempre são mais facilmente iden-
tificáveis e, também, são em termos econômicos, mais significativos, entenderemos
com facilidade que as técnicas de interposição não apenas facilitam a gestão do tributo
como também assegura sua cobrança, isto é, sua efetiva aplicação (TROCCOLI JU-
NIOR, 2001).

Sendo assim, a substituição tributária é uma técnica de tributação, necessaria-


mente instituída por lei, por imperativo do princípio da legalidade, segundo a qual,
Capítulo 11
ASPECTOS GERAIS ACERCA DA SISTEMÁTICA DO RECOLHIMENTO DO ICMS SOBRE OS COMBUSTÍVEIS E A IMPOR-
TÂNCIA DO INSTITUTO DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
156

no momento da criação da obrigação tributária, o legislador retira do contribuinte a


responsabilidade total ou parcial pelo pagamento do tributo, inserindo o terceiro no
vínculo jurídico tributário, autorizando que este se reembolse do contribuinte pelo
tributo alheio que recolheu.

Sacha Calmon (1996), defende que a substituição tributária possui fundamento


no princípio da praticabilidade da tributação, isto é, torna mais prática a fiscalização e
a arrecadação dos tributos devidos em toda a cadeia.

A substituição tributária pode ser regressiva (para trás) ou progressiva (para


frente), esta leva em consideração os fatos geradores que ainda não ocorreram, mas
que ocorrerão.

Neste interim, vale salientar que de acordo com o art. 8º da lei 87/96, a base de
cálculo para fins de substituição tributária relativa às operações subsequentes deve
considerar, além do valor agregador da operação ou prestação própria e dos valores
de seguro, de frete e de outros encargos cobrados ou transferíveis aos adquirentes, a
margem do valor agregado, inclusive lucro, relativa às operações ou prestações sub-
sequentes.

Essa margem será estabelecida com base em preços usualmente praticados no


mercado considerado, obtidos por levantamento, ainda que por amostragem ou atra-
vés de informações e outros elementos fornecidos por entidades representativas dos
respectivos setores, adotando-se a média ponderada dos preços coletados, devendo os
critérios para sua fixação serem previstos em lei (MARTINS, 2009).

Alternativamente a esta forma de definição do critério material do imposto es-


tadual, a base de cálculo em relação às operações ou prestações subsequentes poderá
ser o preço a consumidor final usualmente praticado no mercado, considerado relati-
vamente ao serviço, à mercadoria ou sua similar, em condições de livre concorrência,
adotando-se para sua apuração as regras mencionadas acima, referentes à definição da
margem de valor agregado (MARTINS, 2009).

Em outras palavras, existem basicamente dois tratamentos que podem ser utili-
zados pelo legislador estadual para fins de fixação de base de cálculo do ICMS-ST: a) o
resultado do somatório dos valores da operação própria, do seguro, frete e outros en-
cargos e da margem de valor agregado; ou b) o preço a consumidor final usualmente
praticado no mercado considerado.

Infere-se, portanto, que a única alternativa à sistemática regular que o legislador


complementar confere ao legislador estadual para fins de definição da base de cálculo
do ICMS-ST é aquela lastreada nos valores efetivamente praticados no mercado. Dife-
Silvana Pereira de Albuquerque
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
157

rente disso, descambaríamos para a prática da pauta fiscal, recordando-se que é ilegal
a cobrança do ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta
fiscal (MARTINS, 2009).

É razoável que seja assim, uma vez que a autorização para cobrança do ICMS
antes de ocorrido o seu fato gerador é voltada tão somente a propiciar melhores condi-
ções de fiscalização e cobrança do imposto, concentrando em um só contribuinte a exi-
gência que de outra forma seria diluída em dezenas, centenas de outros contribuintes.

Deste modo, resta nítido que a substituição tributária foi pensada para dificultar
a sonegação fiscal e reduzir o universo de contribuintes sujeitos a fiscalização. A ga-
solina e o óleo diesel, por exemplo, são fornecidos aos revendedores sob o regime da
substituição tributária, figurando o distribuidor como substituído tributário, encarregado de
recolher, por antecipação, o ICMS relativo as operações subsequentes. A base de cálculo do
tributo é o preço final do produto destinado ao consumidor, estando incluso a margem
de lucro do revendedor.

Sendo assim, os postos de combustíveis participam da relação jurídica tributária


também como operadores econômicos substituídos, no entanto, são dispensados pelo
legislador de recolher o ICMS incidente das operações de venda de combustível, pelo
fato do tributo ter sido recolhido na etapa anterior.

Vale salientar que a Constituição Federal não permite um abandono total do fato
gerador subsequente, como se poderia apressadamente pensar, ponderando que, em-
bora seja escolhido um novo fato gerador, qual seja, a saída da mercadoria na fase ini-
cial do ciclo econômico, o ponto de referência para o dimensionamento da obrigação
tributária com substituição continua sendo o fato gerador que presumidamente vai
ocorrer em fase subsequente do ciclo econômico.

Não há autorização para que se adote qualquer base de cálculo para obrigação
com substituição, mas apenas aquela cuja grandeza corresponda ao fato que deva
ocorrer posteriormente, do contrário, estaria se permitindo o arbítrio tributário.

11.5 DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA DOS COMBUSTÍVEIS

De acordo com o art. 155, §2º, X, b, CF:


“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: 
[...]§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: 
[...] X - não incidirá:
[...] b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrifican-
tes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;”

Capítulo 11
ASPECTOS GERAIS ACERCA DA SISTEMÁTICA DO RECOLHIMENTO DO ICMS SOBRE OS COMBUSTÍVEIS E A IMPOR-
TÂNCIA DO INSTITUTO DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
158

Verifica-se, pois, que, nos termos da Constituição Federal, independentemente


da destinação do lubrificante (uso próprio, revenda, utilização no processo de indus-
trialização, etc.), não há incidência de ICMS nas operações de saída de lubrificantes
para outro Estado.

O imposto deverá ser recolhido integralmente ao Estado onde ocorrer o consu-


mo, nos expressos termos do art. 155, § 4º, I, da CF:
“§ 4º Na hipótese do inciso XII, h, observar-se-á o seguinte:
I - nas operações com os lubrificantes e combustíveis derivados de petróleo, o im-
posto caberá ao Estado onde ocorrer o consumo; “

No mesmo sentido, prescreve o art. 2º, §1º, III, da Lei 87/96:


“Art. 2° O imposto incide sobre:
[...]§ 1º O imposto incide também:
[...] III - sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive
lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétri-
ca, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de
operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o
adquirente.”

Sendo assim, o art. 155, §2º, X, b, CF não é uma imunidade propriamente dita,
mas uma genuína hipótese de não incidência do tributo, restrita ao Estado de origem,
não abrangendo o Estado de destino. Na saída da mercadoria, a alíquota é zero, para
que este imposto seja todo ele arrecadado no Estado de entrada (HARADA, 2011).

O regime de substituição tributária nas operações interestaduais depende de


acordo entre os Estados-membros interessados, conforme prescreve o art. 9º da Lei
87/96. O §1º, inciso I, desse artigo permite expressamente, como visto, o regime da
substituição tributária nas operações interestaduais com petróleo, inclusive lubrifican-
tes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, em relação as operações subse-
quentes.

Essas mercadorias, quando destinadas a consumidor final, ensejam o recolhi-


mento do ICMS a favor do Estado onde se localiza o adquirente:
Art. 9º A adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais
dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados.
§ 1º A responsabilidade a que se refere o art. 6º poderá ser atribuída:
I - ao contribuinte que realizar operação interestadual com petróleo, inclusive lubri-
ficantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, em relação às operações
subsequentes;
II - às empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, nas operações in-
ternas e interestaduais, na condição de contribuinte ou de substituto tributário, pelo
pagamento do imposto, desde a produção ou importação até a última operação,
sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na operação final, assegurado
seu recolhimento ao Estado onde deva ocorrer essa operação.

Silvana Pereira de Albuquerque


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
159

§ 2º Nas operações interestaduais com as mercadorias de que tratam os incisos I e II do pará-


grafo anterior, que tenham como destinatário consumidor final, o imposto incidente na ope-
ração será devido ao Estado onde estiver localizado o adquirente e será pago pelo remetente.

Sendo assim, na saída de combustíveis para outro Estado não há incidência de


ICMS. O imposto deverá ser recolhido integralmente pelo destinatário (adquirente de
combustíveis no Estado de consumo). Entretanto, para facilitar a operacionalização,
poderá a legislação do Estado destinatário prescrever a substituição tributária a fim de
que o remetente do combustível do Estado de origem fique com a obrigação de reter o
imposto na condição de substituto, repassando integralmente ao Estado destinatário.

11.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, em linhas gerais, a substituição tributária é o recolhimento antecipa-


do de um tributo. “Faz-se de conta” que ocorreu um fato jurídico capaz de deflagrar o
nascimento de um tributo, antes da ocorrência do seu fato gerador.

O art. 9º da Lei 87/96, em seu §1º, inciso I, expressamente permite o regime da


substituição tributária nas operações interestaduais com petróleo, inclusive lubrifican-
tes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, em relação as operações subse-
quentes.

Sendo assim, a real função da substituição tributária no sistema jurídico tributá-


rio brasileiro é ser um facilitador e assegurar o cumprimento do tributo. O fato é que
este instituto torna mais prática a fiscalização e a arrecadação dos tributos devidos em
toda a cadeia, garantindo que a Fazenda Pública assegure o efetivo recolhimento do
tributo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses,
2007.

CARRAZA, Roque Antônio. ICMS. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

COSTA, Regina Helena; DERZI, Mizabel Abreu Machado; COELHO, Sacha Calmon
Navarro. Base de cálculo do ICMS no regime de substituição tributária para frente
– Exclusão dos descontos incondicionais. Revista do Direito Tributário, São Paulo:
Malheiros, n. 72, p. 63, 1996.

DENARI, Zelmo. Reflexões acerca da Substituição Tributária. Revista Dialética de Di-


reito Tributário, São Paulo, v. 162, n. 162, p.70-75, mar. 2009. Mensal.

FREITAS, Rinaldo Maciel de. ICMS Do Imposto Sobre o Consumo à Guerra Fiscal.
Barueri: FISCOSoft, 2011.

Capítulo 11
ASPECTOS GERAIS ACERCA DA SISTEMÁTICA DO RECOLHIMENTO DO ICMS SOBRE OS COMBUSTÍVEIS E A IMPOR-
TÂNCIA DO INSTITUTO DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
160

HARADA, Kioshi. ICMS: Substituição Tributária na Operação Interestadual. Revista


de Estudos Tributários, São Paulo, v. 81, n. 14, p.64-73, set. 2011. Bimestral.

LAPATZA, José Juan Ferreiro. Direito Tributário: teoria geral do tributo. Barueri/SP:
Manoele; Espanha/ES, 2006.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Substitui-


ção Tributária por Antecipação do Futuro Fato Gerador do ICMS: Responsabilidade
Exclusiva do Substituto. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, v. 170, n.
170, p.160-168, nov. 2009.

Silvana Pereira de Albuquerque


CAPÍTULO 12

A INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NAS EXECUÇÕES FISCAIS: UMA
DIFÍCIL ADAPTAÇÃO

Natália Pimentel Lopes1


Andrea Rose Borges Cartaxo2

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.12

1 Pós-Graduada pelo Curso de Especialização em Direito Civil e Empresarial, pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Advogada e Vice-Presidente da Subcomissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB/PE.
2  Pós-graduada em direito processual civil pela Escola Superior do Ministério Público da Paraíba. Juíza titular da 4ª
vara de sucessões e registros públicos de Recife.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
162

RESUMO

O Código de Processo Civil trata sobre a desconsideração da personalidade


jurídica, com o intuito de proteger a segurança jurídica nas execuções fis-
cais. No entanto, não raras as vezes, dito preceito costuma ser relativizado, atingindo
o patrimônio de terceiro de maneira desordenada. O Artigo visa demonstrar a neces-
sidade de assegurar a aplicação correta do Artigo 133 e ss. do CPC.
Palavras-chave: Desconsideração da personalidade Jurídica. Execução fiscal. Patrimô-
nio de terceiro. Segurança jurídica.

A idealização do sistema criado pelos arts. 133 e seguintes do Código de Processo


Civil – o incidente de desconsideração da personalidade jurídica - encontra raiz, como
bem asseverado na exposição de motivos de seu anteprojeto, na necessidade de pro-
porcionar segurança jurídica ao processo civil como um todo:
O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole
constitucional, pois que se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e
visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas (BRASIL, 2015, p. 28).

A criação de uma disciplina específica com previsão exata dos ritos necessários
à responsabilização patrimonial de terceiro, notadamente em processos executórios,
parecia suficiente para o mister idealizado pelo novo diploma processual.

Em que se pese a retidão do intuito, a condução prática do tema na rotina forense,


notadamente nas execuções fiscais, tem mostrado o tortuoso caminho de adequação
ao que dispõe o código sobre a matéria. Não bastasse a atual resistência de aplicação
do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) às execuções fiscais1,
a ausência de um entendimento uniforme do instituto tem feito nascer, inclusive nas
varas de execução fiscal da Justiça Federal de Pernambuco, entendimentos que pouco
se coadunam com a intenção do legislador.

É crescente o número de casos em que tais juízos, defrontando-se com pedidos


da Fazenda Nacional para a responsabilização patrimonial de terceiros em execução
fiscal, quase sempre, sob a genérica tese de formação de grupo econômico de fato, têm
aceitado processar o IDPJ, mas não sem antes da intimação do terceiro determinar
cautelarmente o arresto de seu patrimônio pelos sistemas eletrônicos de constrição.

Tal providência é aplicada ora com base no que dispõe o art. 8542 do CPC, ora
como simples pedido de tutela provisória de natureza cautelar. Em ambos os casos,
há indevida equiparação do terceiro à condição de executado, antes de ato judicial
1  Destacamos a série de decisões proferidas no Tribunal Regional Federal da 2ª Região pela sua 8ª Turma especializada, notadamente
em processos sob a relatoria da Exma. Sra. Desembargadora Helena Elias Pinto, a exemplo do AG 00100425720164020000,
HELENA ELIAS PINTO, TRF2 - 8ª TURMA ESPECIALIZADA.
2  Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar
ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade
supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado,
limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução.

Natália Pimentel Lopes


Andrea Rose Borges Cartaxo
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
163

decisório devidamente fundamentado e precedido de contraditório, declarando sua


responsabilidade.

Para o Professor Paulo César Conrado, Juiz Federal titular da 12ª Vara de Exe-
cuções Fiscais da Seção Judiciária de São Paulo, a inobservância do instrumento ade-
quado, com as formalidades que lhe são próprias, coloca o responsável sob a condição
de terceiro estranho à lide – e não de terceiro ali regularmente introduzido, via inter-
venção -, apresentando-se espúria, por conseguinte, a constrição que o desfavorece
(CONRADO, 2017, p. 66).

A incerteza sobre a aplicação do IDPJ aos feitos executivos fiscais frente ao vulto-
so número de casos sensíveis ao tema, sobretudo na Justiça Federal na 5ª Região, levou
o respectivo Tribunal Regional Federal a admitir incidente de resolução de demandas
repetitivas, utilizando como principais fundamentos i) a então inexistência, no STJ e
STF, de recurso afetado à sistemática de repercussão geral ou do regime de recursos
repetitivos e ii) a “efetiva repetição de processos que discutem a aplicabilidade do
incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) nas execuções fiscais
(BRASIL, 2018).

Parece clara a necessidade do regramento definitivo da matéria nas Cortes Re-


gionais e, finalmente, no Superior Tribunal de Justiça, com os olhos voltados para a
dogmática processual civil e para a busca pela segurança jurídica na prática processual
(AZEVEDO, 2018, p. 21).

A segurança jurídica, direito fundamental com previsão no Artigo 5º, inciso XXX-
VI, da Constituição Federal, tem como desiderato, abrigar a estabilidade das relações
jurídicas, além de manter conservada a Democracia:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garan-
tindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada;

Dita garantia, portanto, protege, não só as decisões tomadas, como também os


Direitos conquistados.

A coisa julgada, ademais, comporta exceção à sua proteção:


Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção
do juiz;
II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;

Capítulo 12
A INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS EXECUÇÕES FISCAIS:
UMA DIFÍCIL ADAPTAÇÃO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
164

III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida


ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar manifestamente norma jurídica;
VI - for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal
ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII - obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja exis-
tência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar
pronunciamento favorável;
VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
§ 1º Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quan-
do considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em am-
bos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deve-
ria ter se pronunciado.
§ 2º Nas hipóteses previstas nos incisos do caput , será rescindível a decisão transi-
tada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça:
I - nova propositura da demanda; ou
II - admissibilidade do recurso correspondente.
§ 3º A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um) capítulo da decisão.
§ 4º Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros parti-
cipantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios
praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei.
§ 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra
decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de
casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão
discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. (Incluído
pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
§ 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao
autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação
particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a
impor outra solução jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)

O caput do Artigo 966 do Código de Processo Civil disciplina quando uma deci-
são de mérito pode ser rescindida e, seus incisos e parágrafos, revelam o instrumento
legal para a sua obtenção, qual seja, a ação rescisória.

Finalmente, é inconteste a necessidade de estabilização do tema, com uma in-


terpretação uniforme, o retorno a seu regramento original no enunciado dos arts. 133
e seguintes da Lei Processual Civil, impondo-se um limite aos criativos expedientes
inaugurados nas execuções fiscais, sempre em prejuízo do terceiro que se pretende
responsabilizar a qualquer custo.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Gustavo. Reclamação constitucional no direito processual civil. 1. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2018.

Natália Pimentel Lopes


Andrea Rose Borges Cartaxo
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
165

BRASIL, Senado Federal. Código de processo civil e normas correlatas. 7. ed., Brasília:
Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015.

BRASIL, Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Pleno. Incidente de Resolução de


Demandas Repetitivas nº 0001978-74.2016.4.05.0000, Relator Desembargador Rogério
Fialho Moreira. Disponibilizado eletronicamente em 04 jul. 2018.

CONRADO, Paulo César. Execução Fiscal. 3 ed. São Paulo: Noeses, 2017.

Capítulo 12
A INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS EXECUÇÕES FISCAIS:
UMA DIFÍCIL ADAPTAÇÃO
166
CAPÍTULO 13

PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA


CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA
PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE À LEI
GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.13

1  Pós-graduando em Direito Digital pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Direito Eleitoral pela
Uninassau. Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
168

RESUMO

E ste artigo tem como tema analisar uma plataforma de saúde que viabiliza um
consultório digital, fazendo uma experiência prática acerca da aplicabilidade
da Lei Geral de proteção de dados. Foi utilizado um fluxograma para auxiliar os pro-
fissionais, na ausência da Autoridade Nacional de Proteção de dados.
Palavras-chave: Lei Geral de Proteção de Dados. Consultório Digital. Plataforma de
Saude. Processo de Conformidade.

13.1 INTRODUÇÃO

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), após uma trajetória de grande in-
definição com relação ao termo inicial de sua vigência, entrou em vigor no mês de
setembro de 2020, tendo repercutido no fomento do mercado de prestação de serviços
advocatícios especializados, bem como no tocante aos serviços de ordem técnica, prin-
cipalmente referentes a segurança de informação.

Por se tratar de uma legislação “híbrida”, ou seja, que congrega conceitos jurídi-
cos e técnicos, o processo de adequação e conformidade com a LGPD demanda, quase
que organicamente, uma equipe multidisciplinar formada por profissionais da área
jurídica e de tecnologia da informação, essa última predominantemente com enfoque
em segurança da informação.

Partindo dessa concepção híbrida da LGPD, a qual é concebida por muitos pro-
fissionais de diversas áreas, compreende-se que, com a integração de uma equipe legal
e técnica é possível dar início ao processo de adequação de empresas atuantes nos mais
variados seguimentos de atividades econômicas.

No entanto, dentre elas, a que será objeto deste estudo de caso é uma platafor-
ma digital que viabiliza a criação de uma clínica digital para o profissional de saúde,
possibilitando, além do próprio agendamento de consulta ou atendimento por tele-
consulta, a organização financeira, administrativa e fiscal dos profissionais mediante
o pagamento de um ticket mensal. Na prática, o profissional de saúde passa a possuir
uma verdadeira clínica ou consultório virtual, permitindo sua adaptação a esse ce-
nário de transformação que vivenciamos, o que pode ser traduzido de forma muito
precisa nas sábias palavras do cientista Sílvio Meira (2020), o qual afirma que todos os
futuros são FIGITAIS, ou seja, articulações do físico, aumentado pelo digital, sendo os
dois orquestrados pelo social.

A pesquisa do presente trabalho é realizada com base numa experiência pessoal


do autor, contratado por uma empresa que viabiliza consultórios e clínicas digitais a
profissionais de saúde. Por motivos de cumprimento de contrato de confidencialida-
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
169

de, não será apresentado detalhes e descrições explícitas dos dados da empresa, bem
como de peculiaridades do serviço prestado e em vigência até outubro de 2021. Toda-
via, as experiências aqui apresentadas refletem o desenvolvimento do estudo aprofun-
dado da Lei Geral de Proteção de Dados e doutrinas especializadas no assunto, o que
viabilizou que fosse criado um modelo autoral de conformidade.

Portanto, o objeto desse trabalho é expor de forma prática o método adotado pela
equipe de profissionais no processo de conformidade da plataforma em comento, es-
pecificando o trabalho inicial de treinamento e conscientização e o estudo do ambiente
para fins de subsídio para ao desenvolvimento das fases subsequentes.

13.2 A PLATAFORMA
13.2.1Crescimento exponencial em tempos de Covid-19

A plataforma está em operação desde o ano de 2017 com a existência, na época,


de algumas centenas de usuários profissionais de saúde. No entanto, com a pande-
mia do COVID-19 formalmente reconhecida pelo governo brasileiro em março do ano
corrente, surgiu a necessidade dos profissionais da área de saúde se adaptarem ao
período de isolamento social da sociedade, de modo que tivessem possibilidade de
prestarem seus serviços de forma remota.

Tal circunstância se tornou um marco de mudanças disruptivas nos mais diver-


sos setores e operações da área de tecnologia da informação, o que não foi diferente
no caso da plataforma de saúde que se viu num contexto de oportunidade única de
reforçar sua infraestrutura tecnológica e viabilizar obrigatoriamente um upgrade para
realização de teleconsulta entre paciente e profissional da área de saúde.

Desde março do ano corrente a plataforma passou a crescer em progressão geo-


métrica, fato que repercute diretamente nos desafios no processo de sua adequação a
LGPD, posto que, além do aumento diário de dados pessoais e sensíveis, o número
de operadores de dados, na condição de fornecedores de serviços, cresce também de
forma vertiginosa.

13.2.2 Necessidade de adequação à LGPD como requisito se estabelecer


no mercado

Nesse contexto de crescimento, a plataforma passou a ter visibilidade nacional e,


naturalmente, possíveis parceiros ou sócios começaram a questioná-la acerca de sua
conformidade com a LGPD, circunstância que passou a ser crucial para evolução de
qualquer tipo de negociação envolvendo investimento externo (nacional ou interna-
cional).

Capítulo 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
170

Além disso, por ser uma plataforma que trata dados pessoais sensíveis, bem
como de crianças e de adolescentes, tornou-se impreterível o início do processo de sua
conformidade a LGPD.

13.3 DA CONTRATAÇÃO DA EQUIPE RESPONSÁVEL


13.3.1Da exigência do contratante

Diante disso, houve a contratação de uma equipe multidisciplinar para prestação


de serviços de adequação da plataforma a Lei Geral de Proteção de Dados, mediante
a exigência de um encarregado de dados na condição de prestador de serviço externo,
posto que não apenas houve interesse pela adequação legislativa, mas também pela
existência, mediante contrato por prazo determinado, de um profissional que pudesse
suprir eventuais demandas e/ou questionamentos dos titulares de dados ou da pró-
pria Autoridade Nacional de Proteção de Dados no tocante ao cumprimento da lei.

13.3.2 Da percepção dos contratados

De início, foi verificado que empresas que lidam com grandes volumes de dados,
dentre eles de caráter sensível e/ou de informações sobre crianças e adolescentes, bem
como as que possuem elevado número de titulares de dados, tem se preocupado em
atuar em consonância ao estabelecido na legislação nacional de proteção de dados.
Estas empresas dão preferência a contratação de encarregado de dados interno, o qual,
na prática, esse profissional terá a responsabilidade de implementar um novo processo
interno de adequação legal a LGPD, assim como atender as solicitações dos titulares
de dados e entidades de fiscalização para fins de cumprimento legal, ao menos du-
rante um prazo pré-determinado, o que, no caso em apreço, foi de 12 (doze) meses a
contar do início de outubro de 2020.

13.4 DO ENCARREGADO DE DADOS


13.4.1 Do encarregado de dados na LGPD e algumas ponderações

Dispõe a LGPD (2018) que o encarregado de dados é uma pessoa indicada pelo
controlador e operador para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os
titulares de dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, sendo sua identi-
dade e informações de contato divulgadas publicamente, preferencialmente no site do
controlador, cabendo ao mesmo, além do citado anteriormente, realizar a orientação
de funcionários e colaboradores contratados no tocante as boas práticas para a prote-
ção de dados pessoais, bem como executar as demais atribuições determinadas pelo
controlador ou em normas complementares.

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
171

A primeira ponderação que cabe é no tocante a previsão de exposição da identi-


dade do encarregado de dados para o público. A sociedade atual é totalmente conecta-
da pela internet onde é possível verificar inúmeros dados e informações pessoais, seja
em buscadores online, seja em redes sociais, por meio de acesso a um único dado de
uma pessoa. Se a lei fez referência a identidade, significa que no sentido literal a legis-
lação obriga a identificação do encarregado, seja por nome ou qualquer outro meio, ou
seja, alguma informação que possa se relacionar diretamente a sua pessoa, o que, por
presunção, pode ser o nome, sendo completo ou não.

Desnecessária a previsão literal da forma que consta na legislação, tendo em vista


que o encarregado de dados passa a ser exposto a possíveis situações, sendo o mais
provável a sua perseguição em redes sociais não profissionais, por exemplo. A citação
dos dados do contato seria suficiente, a exemplo do e-mail, para fins de exercício dos
direitos do titular. Ou, utilizando-se do conceito do legal design (PINHÃO E KOIF-
FMAN ADVOGADOS, 2019), a empresa poderia possibilitar acesso intuitivo e didá-
tico no próprio site da empresa, sendo desnecessário o envio de e-mail, a exemplo do
que acontece na rede de farmácias Drogasil (DROGRASIL, 2020).

Uma segunda ponderação a ser realizada diz respeito a previsão legal de que o
encarregado de dados deve executar “as demais atribuições determinadas pelo con-
trolador” (BRASIL, 2018), sendo necessária a especificação dessas atribuições, posto
que tal subjetividade pode dar azo a inúmeras interpretações, a exemplo do próprio
controlador determinar que o encarregado de dados pratique suas atribuições de de-
terminado modo que seja contrário as suas crenças profissionais.

A função de encarregado de dados, seja como colaborador interno ou externo,


merece grau de autonomia suficiente para, inclusive, fiscalizar e advertir o próprio
controlador. Afinal de contas, a depender do tipo de contrato estabelecido entre o con-
trolador e o encarregado de dados, previsões de responsabilidade em face de eventual
falha na prestação do serviço ou no cumprimento de prazos em decorrência da atitude
ou omissão do controlador, podem ser prejudiciais ao encarregado de dados.

Por isso que é de suma importância a existência de um contrato que preveja o


método de repasse das informações mediante utilização de processos que possam con-
firmar os recebimentos das orientações para o controlador por parte do encarregado, a
fim de que o mesmo não seja responsabilizado por atitude omissiva diante das diver-
sas peculiaridades verificadas na empresa contratante.

Capítulo 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
172

13.4.2Do encarregado de dados externo

O encarregado de dados, seja como funcionário, colaborador interno ou presta-


dor de serviço externo, tem atribuições bem mais abrangentes do que as previstas na
legislação, ao menos sob o ponto de vista prático, pois dele sempre serão, presumivel-
mente, exigidas iniciativas que demandam um grau mínimo de conhecimento legal,
técnico e prático acerca da adequação da empresa a LGPD, bem como, principalmente,
a manutenção da governança da privacidade e proteção de dados durante a atividade
empresarial, estando ela sempre passível de adaptações a depender do crescimento da
empresa ou das diversas formatações e iniciativas empresariais que poderão advir, a
exemplo de fusões, aquisições, incorporações, cisões ou joint ventures.

Rony Vainzof (2020) afirma que, a depender da natureza e do porte da organi-


zação, do volume e da criticidade das operações de tratamento de dados, bem como
da avaliação do cumprimento das melhores práticas, a utilização de serviços externos
de encarregado de dados se apresenta como uma solução satisfatória para implemen-
tação da governança em privacidade, tendo ele facultado a contratação de diversos
formatos de encarregado externo, podendo ser para apoio a estruturação e contratação
do encarregado interno; para a contratação de um encarregado como serviço, propria-
mente; na contratação de empresa para apoio técnico a rotina do encarregado interno
ou, até mesmo, em se tratando de empresas que possuem comitês de privacidade, a
contratação de um conselheiro externo para auxiliar a empresa na tomada de decisões
e na condução das discussões.

Cada um desses tipos de contratações externas possui suas peculiaridades espe-


cíficas no tocante ao objeto do serviço. No entanto, independentemente do tipo esco-
lhido, é possível que essas terceirizações possam funcionar de forma temporária, de
modo a oferecer iniciativa e provocação positiva a determinado setor interno da em-
presa que ficará responsável pela manutenção da governança em proteção de dados,
ao menos até que a organização consiga seguir seus propósitos sem ajuda externa.

13.5 DO PROCESSO DE CONFORMIDADE


13.5.1 Da importância de o contratante visualizar o serviço como essencial
à sua atividade

O processo de adequação legal a LGPD possui várias fases. De início, uma reu-
nião para compreensão do modelo de negócio da empresa é fundamental para o enten-
dimento, mesmo que superficialmente, da rotina da atividade econômica contratante.

Nesse momento, é importantíssimo que o superior hierárquico da empresa en-


tenda a importância do projeto e que, uma vez contratado o serviço, informe por meio
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
173

de comunicado formal aos seus colaboradores e funcionários internos que a empresa


iniciará os procedimentos relativos à sua adequação legal e que é de suma importância
que todos os envolvidos colaborem da melhor forma possível com relação aos traba-
lhos a serem desenvolvidos pela equipe externa.

É preferível que a visualização do serviço seja recepcionada pelo contratante


como um projeto que visa a implementação de um processo de qualidade interno e
não exclusivamente para evitar a imputação de sanções legais dos órgãos fiscalizado-
res ou condenações em face de possíveis ações judiciais de terceiros prejudicados, a
exemplo dos próprios titulares de dados.

A percepção do serviço de conformidade como um projeto que visa, primordial-


mente, a transparência com os titulares e a segurança dessas informações, acaba por
ser um diferencial para os próprios consultores externos, pois empresas que tem o
perfil de prévia implementação de políticas de qualidade, independentemente de pre-
visões legais, geralmente podem propiciar informações mais claras e objetivas, além
de possuírem um modelo de processo interno que facilita o mapeamento dos dados
pessoais tratados. Isso reflete, indubitavelmente, num grande diferencial no mercado,
fato que não foi diferente para o caso da plataforma de saúde em comento.

13.5.2 Do fluxograma de implementação

Tendo em vista a ausência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)


para regulamentar algumas questões importantes da legislação, como por exemplo, as
definições quanto a função do encarregado de dados, o prazo para comunicação de in-
cidente aos titulares e a ANPD, peculiaridades referentes a aplicação da base legal do
legítimo interesse, situações referentes a responsabilidade dos agentes de tratamento
(objetiva ou subjetiva, a depender de cada caso) ou até mesmo quanto a obrigato-
riedade de microempresas ou startups (com a conceituação do que isso seria) de se
adequarem à legislação, cabe aos consultores auxiliares do processo de conformidade
a realização do serviço tendo por base os fundamentos e os princípios previstos na le-
gislação. Com base nisso, sugere-se a adoção de um fluxograma de conformidade legal
com base no seguinte padrão:

Capítulo 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
174

(Fonte: elaboração do autor)

O fluxograma acima traduz um formato objetivo para adequação das corpora-


ções a LGPD, sendo certo que cada uma das fases descritas é de fundamental impor-
tância para que o projeto de conformidade tenha eficácia.

13.5.3 Das fases de implementação


13.5.3.1 Primeira etapa: Conscientização

A primeira etapa faz referência a necessidade da equipe de gestores e principais


líderes serem treinados e conscientizados acerca de conceitos da legislação, sua impor-
tância, reflexos e objetivos, expostos sob um prisma multidisciplinar por um profissio-
nal da área jurídica e um profissional da área de segurança da informação.

Nessa fase inicial é realizada uma abordagem literalmente customizada e aplica-


da a realidade do modelo do negócio do contratante. Para tanto, será necessária uma
reunião com os líderes de cada departamento para que seja realizada uma análise pre-
liminar e superficial do mapeamento, fluxo e o inventário de dados tratados pela cor-
poração desde a origem do(s) dado(s) até o seu destino final, considerando, inclusive, a
existência de eventuais operadores (fornecedores de serviços/produtos, por exemplo)
que manuseiam ou acessam os dados mediante compartilhamento e/ou transferência.

A abordagem da conscientização foca na apresentação de conteúdo que agrega


conhecimento multidisciplinar (Legal + Segurança da Informação) sobre a LGPD, bem
como na sua aplicação prática a realidade do contratante, circunstância em que é apre-
sentada durante o treinamento de conscientização mediante exposição de fluxograma
com o mapeamento superficial dos dados tratados pela contratante com o detalhamen-
to dos departamentos e eventuais compartilhamentos e transferências.
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
175

Essa fase de conscientização é fundamental, pois os consultores abordam a im-


portância da legislação e do seu cumprimento, bem como a importância do engajamen-
to de todos os funcionários, líderes e colaboradores no processo de implementação de
adequação legal e, antes mesmo que seja iniciada, a corporação contratante deve publi-
car aos seus clientes e fornecedores uma aviso formal de início de adequação a LGPD
e a importância de que todos estejam envolvidos e empenhados no exercício do seu di-
reito e na sua adequação interna individual, o que termina refletindo numa reação em
cadeia de início de adequação, pois os fornecedores ficam naturalmente receosos de
eventual preterição no mercado em face de eventual omissão com relação ao assunto.

13.5.3.2 Segunda etapa: Entendimento do ambiente

A segunda etapa é primordial para que seja possível entender em grau de deta-
lhes o processo interno atual de tratamento de dados para que uma mudança cultural
seja implementada. Mudança exige conhecimento do estado atual. É justamente nessa
fase que será feito, em grau de detalhes, o mapeamento dos dados com a especificação
do fluxo e inventário dos dados pessoais tratados, bem como uma análise profun-
da dos artefatos jurídicos existentes, a exemplo de políticas de privacidade, cláusulas
contratuais com titulares, encarregados, operadores ou outro controlador, bases legais
aplicadas em cada tipo de tratamento e eventual remodelação, existência ou não de
consentimento em casos em que inevitavelmente deve ser aplicado, design do marke-
ting interno ou externo, além de verificação ampla da vertente relacionada a segurança
da informação na corporação contratante, como identificação dos pontos que podem
refletir em incidentes de segurança, políticas e procedimentos internos basilares e pre-
vistos na ISO 27001, etc.

Todos esses detalhes têm como finalidade o registro das vulnerabilidades e pon-
tos de risco sob o aspecto legal e técnico da segurança da informação. Durante essa
fase é elaborada uma minuta preliminar e sugerida para que a contratada publique em
seu site eletrônico, posto que nessa fase de mapeamento detalhado, mediante acesso a
muita informação, os consultores terão possibilidade de minutarem um modelo inicial
de política e sua respectiva publicação aos usuários.

13.5.3.3 Terceira etapa: Relatórios

A terceira etapa será subsidiada pelas informações coletadas na etapa antece-


dente, de modo que será possível formatar o registro do As Is1, elaboração do plano
de ação para conformidade e planejamento para prestação de contas a interessados e
a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, bem como início de elaboração do re-

1  Segundo Mello (2018) o As Is é: “É o trabalho de levantamento e documentação da situação atual do processo, comumente
chamado de AS IS, a qual é representada em fluxo ou diagrama. Nesta mesma oportunidade levantam-se também os problemas
ou fragilidades, bem como as oportunidades de melhoria do processo”.

Capítulo 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
176

latório de impacto a proteção de dados pessoais baseado no template disponibilizado


pelo Escritório do Comissário de Informações do Reino Unido que é disponibilizado
pela International Association of Privacy Professionals (IAPP) em seu site, tudo feito
com a utilização de técnicas ágeis de gerenciamento de projeto dividido em etapas, de-
nominados sprints, como metas menores realizadas em períodos mais curtos e metas
maiores realizadas em até 08 (oito) semanas, inspirados na técnica de gerenciamento
de projetos denominada Scrum.

13.5.3.4 Quarta etapa: Recomendações

A quarta etapa é o fornecimento de projeto técnico final de avaliação multidis-


ciplinar de todos os pontos de risco e de atenção identificados, fornecimento de re-
comendações e sugestões sob o ponto de vista legal e técnico, sugestão da adoção de
artefatos, modelos e iniciativas para cada tipo de processamento de dados em cada
departamento da corporação contratante e/ou para utilização com agentes de trata-
mento externos, bem como entrega final do relatório de impacto a proteção de dados
pessoais, sendo facultado a contratação de um serviço para adequação prática com
autonomia para realização de todas as mudanças sugeridas. (ASSAF, 2020)

13.6 DA APLICAÇÃO DO FLUXOGRAMA DE CONFORMIDADE NA


PLATAFORMA DE SAÚDE
13.6.1 Da conscientização e do entendimento do ambiente da plataforma
de saúde

Após entender a operação da empresa, verifica-se que existem duas plataformas


para download disponibilizadas pela plataforma de saúde, sendo uma exclusiva para
atuais ou futuros pacientes e outra para profissionais de saúde. Dessa forma, a depen-
der do modelo de sistema utilizado, a TI Saúde seria controladora ou operadora.

Na vertente de plataforma disponibilizada aos profissionais de saúde, ou seja,


aqueles que efetivamente contratam o serviço e pagam por ele, a plataforma de saúde
seria a controladora dos dados dos referidos profissionais. No tocante aos dados pes-
soais e sensíveis dos pacientes nesse tipo de formato, especificamente quando os mé-
dicos, após a efetiva contratação, transferem a sua base de dados digitais de pacientes
para a plataforma de saúde em estudo, essa seria a operadora desses referidos dados,
pois trataria os dados em nome dos profissionais de saúde controladores, sendo esses
os competentes por decidirem a forma do tratamento dos dados pessoais dos seus pa-
cientes (BRASIL, 2018, online).

No entanto, como foi dito anteriormente, existe a plataforma disponibilizada


para download dos usuários pacientes que não possuem nenhuma vinculação com

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
177

profissionais já integrantes da plataforma, no qual esses têm a faculdade de baixar o


sistema em seu smartphone e buscar serviços de saúde, inclusive mediante escolha de
profissionais e especialidades disponíveis na plataforma em qualquer lugar do Brasil,
de acordo com a sua necessidade e preferência. Nesse tipo de situação, ou seja, quan-
do o paciente disponibiliza seus dados na plataforma sem estar vinculado a qualquer
médico já integrante da plataforma, a plataforma de saúde se encontra na posição de
controladora dos dados dos usuários pacientes.

Portanto, essa percepção inicial é importantíssima para fins de elaboração da


apresentação de conscientização e treinamento da equipe. A apresentação tem dura-
ção de 120 (cento e vinte) minutos e é focada na apresentação da lei em aspectos jurí-
dico, técnico (segurança da informação) e, por fim, prático e customizada a realidade
da plataforma de saúde, de modo que os diretores e integrantes da equipe possam
entender a aplicação da lei em sua rotina de trabalho.

Já com uma noção do modelo de operação da plataforma de saúde, bem como


acerca de seu organograma, tendo em vista que tais informações foram importantes
para a realização da primeira etapa de conformidade, foi iniciado os trabalhos referen-
tes a segunda etapa, qual seja, do entendimento do ambiente de forma mais detalhada
através do mapeamento mediante registro dos fluxos e inventário dos dados tratados
em cada formato de processamento, fase que demanda um trabalho minucioso de en-
trevistas com líderes de cada setor, utilização de templates para facilitação do serviço,
bem como, se tiver possibilidade, de auxílio de plataformas tecnológicas que viabili-
zam o data mapping2.

No entanto, considerando que a identificação dos dados e o seu mapeamento é


algo que exige um grau de minúcia razoável, será sempre necessário o trabalho ma-
nual com identificação de um template que atenda as expectativas do consultor.

Na presente pesquisa, a segunda etapa foi iniciada no início de outubro de 2020


pelo setor de marketing e, na sequência, o comercial, os quais são os departamentos
considerados destinatários de vários dados pessoais que são tratados pela plataforma
de saúde. Posteriormente, os trabalhos continuaram, respectivamente, com os depar-
tamentos de experiência do cliente, produto, financeiro, administrativo, recursos hu-
manos e, por fim, o setor jurídico.

As anotações e registros em planilha do Excel são relevantes para o mapeamento,


mas, em se tratando de fluxos, é mais didático a utilização de plataformas que viabili-
zam a montagem de fluxogramas, de modo que você possa especificar a jornada dos

2  Em computação e gerenciamento de dados, o mapeamento de dados é o processo de criação de mapeamentos de elementos


de dados entre dois modelos de dados distintos. O mapeamento de dados é usado como uma primeira etapa para uma ampla
variedade de tarefas de integração de dados. (SHAHBAZ, 2015).

Capítulo 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
178

dados na plataforma, bem como eventuais compartilhamentos e transferências até se


identificar o destino final do dado.

13.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até o presente momento, foi realizada a primeira e segunda etapas do fluxogra-


ma apresentado neste trabalho no tocante a plataforma de saúde, pelo que se encontra
em vias da elaboração dos relatórios que serão fundamentais no processo de confor-
midade, pois registrarão todas as circunstâncias que precisão ser objeto de mudança
de cultura de modelo, seja sob o aspecto legal, seja sob o aspecto da segurança da
informação.

O fluxograma de adequação adotado para promover a conformidade da plata-


forma de saúde naturalmente sofrerá acréscimos a depender do tipo de operação eco-
nômica da empresa. No entanto, diante de ausência de regulamentações ou diretrizes
da Autoridade Nacional de Proteção de Dados com relação ao processo de adequação
prática a lei, se torna desafio dos consultores implementarem modelos que possam
suprir as necessidades da empresa e, por consequência, promover a conformidade das
corporações.

Atualmente, é comum que os consultores utilizem templates de documentos dis-


poníveis em sites de autoridades de proteção de dados dos países da União Europeia,
a exemplo do Relatório de Impacto a Proteção de Dados Pessoais (art. 5º, XVII, da Lei
13.709/2018), instrumento importantíssimo para fins de prestação de contas as autori-
dades de fiscalização no tocante ao cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados.

Some-se a isso a necessidade de pesquisa dos julgados das autoridades de pro-


teção de dados existentes na União Europeia para fins de parâmetro no tocante aos
casos de descumprimento ao Regulamento Geral de Proteção de Dados lá vigente e as
respectivas sanções aplicadas.

Por fim, a consultoria para adequação da plataforma de saúde a LGPD exige pes-
quisa de conteúdo estrangeiro diante de ausência de diretrizes da Autoridade Nacional
de Proteção de Dados brasileira e o modelo de implementação baseado no fluxograma
apresentado tem demonstrado grande eficiência para diversos setores empresarias,
inclusive para a própria plataforma de saúde objeto deste estudo.

REFERÊNCIAS
ASSAF.  O guia descomplicado da LGPD. Disponível em: https://d335luupugsy2.
cloudfront.net/cms/files/97331/1600464053eBook_LGPD_Assaf_6edicao.pdf. Aces-
so em: 20 nov. 2020.

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
179

DROGASIL. Conheça aqui nossa política de privacidade e como protegemos as in-


formações que você compartilha com a gente. Disponível em: https://www.drogasil.
com.br/politica-de-privacidade. Acesso em: 22 nov. 2020.

INFORMATION COMMISSIONER’S OFFICE. Guide to Data Protection. Disponível


em: https://ico.org.uk/for-organisations/guide-to-data-protection/. Acesso em: 20
nov. 2020.

MEIRA, Silvio. Todos os futuros são FIGITAIS: articulações do físico, aumentado


pelo digital, os dois orquestrados pelo social, é isso que rola na @tdscompany. Insta-
gram: @silvio_meira (09/10/2020). Disponível em: https://www.instagram.com/p/
CGIc9bjhcFc/. Acesso em: 20 nov. 2020.

MELLO, Pedro. Mapeamento AS IS – 20. 2018. Dêgrau 10. Disponível em: https://
degrau10.com.br/mapeamento-as-is/. Acesso em: 18 nov. 2020.

PINHÃO E KOIFFMAN ADVOGADOS. Legal Design: o que é? e como ele pode aju-
dar a sua empresa?. 2019. Disponível em: https://direitoparatecnologia.com.br/legal-
-design-o-que-e-e-como-ele-pode-ajudar-a-sua-empresa/. Acesso em: 19 nov. 2020.

SHAHBAZ, Q. Data Mapping for Data Warehouse Design. Elsevier, 2015.

VAINZOF, Rony. Terceirização do encarregado: muito além do dpo as a service. Muito


além do DPO as a service. 2020. Migalhas Jurídicas. Disponível em: https://migalhas.
uol.com.br/depeso/319100/terceirizacao-do-encarregado---muito-alem-do-dpo-as-a-
-service. Acesso em: 18 nov. 2020.

Capítulo 13
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
180
CAPÍTULO 14

A PRIMAZIA DO JULGAMENTO DE MÉRITO


ANALISADO À LUZ DA TEORIA DOS
PRINCÍPIOS DE HUMBERTO ÁVILA

Rodrigo Ramos Melgaço1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.14

1 Mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pós-graduado em direito público na
Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Juiz de direito no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
182

RESUMO

A primazia do mérito é mais que um anseio, é uma necessidade, e ainda assim


é tratada como uma liberalidade principiológica, um estado ideal apenas,
conferindo margem a vasta discricionariedade, e não é mais essa a acepção dogmática
a ser conferida ao tema, sobretudo pela maximização dos direitos fundamentais e da
autocontenção jurisdicional em seu proceder, afastando-se atos de vontade.
Palavras-chave: Primazia do mérito; vieses normativos; regra; proceder.

14.1 INTRODUÇÃO

É uma constante desde o movimento constitucionalista contemporâneo se dizer


que esse ou aquele instituto jurídico é um princípio, antes mesmo de um aprofun-
damento da temática, sobretudo partindo-se de uma historicidade constitucional de
onde se depreende um movimento de contenção do poder, além do caráter normativo
conferido aos princípios, e nem por isso se permite dizer que sempre estamos diante
de um princípio, que é diferente de ser decorrente de um princípio, ainda mais diante
dos vieses normativos que podem ser trabalhados.

A opção por fazer a análise a partir da teoria de Ávila se deu por ter sido o prisma
tomado como ponto de partida de estudo específico sobre a primazia do mérito reali-
zada por Artur Orlando Lins.

Muito se falou antes mesmo da aprovação do projeto de lei que redundou na lei
nº 13.105/2015, como sendo a codificada legislação processual civil atualmente em
vigor, que veio a revogar o Código de Buzaid, idealizador do ordenamento processual
civil de 1973, e que dentre os diversos focos teve a primazia do julgamento de mérito
como uma de suas bandeiras.

Além disso, é inegável que o atual ordenamento processual trouxe foco não ape-
nas ao aspecto formal, como também ao espectro material, por isso, em si já distin-
guindo-se das legislações processuais civis que até então vigoraram, atentando-se não
apenas à estrutura, como também ao conteúdo, trazendo algo antes não visto entre
nós, ou seja, trouxe as chamadas normas fundamentais do processo civil, dando en-
sejo até mesmo a se argumentar pela existência de uma nova metodologia condizente
ao pensamento jurídico contemporâneo (LINS, 2019, p.36.), enquanto que parcela da
doutrina a classificou com uma nova fase metodológica ou cultural do processo (JO-
BIM, 2018, p.103), agregando-se às metodologias já trabalhadas em sua evolução pela
ciência processual.

Artur Orlando Lins, que escreveu especificamente sobre a primazia do julgamen-


to de mérito ressaltou a importância das normas fundamentais do processual civil,
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
183

enfatizando que algumas delas de cunho principiológico e ainda hermenêutico, salien-


tando a inclusão dentre elas o princípio da primazia da resolução de mérito prevista
no art.4º do ordenamento processual civil, com a mesma compreensão de Alexandre
Freitas Câmara (2015, p.42-50) , reconhecendo Lins que dentre as disposições constante
do art.1º ao 12º do CPC, sejam aferíveis também regras, como é o caso do art.12, ao fi-
xar a ordem cronológica de conclusão para tramitação de processos, sem que se possa
argumentar pela exclusividade apenas entre esses dispositivos sobre serem normas
fundamentais.

Das normas fundamentais é possível depreender um reencontro do processo


com as demais disciplinas do direito, sendo inegável uma aproximação, uma relação
necessária do direito processual ao direito material.

Ao lado das disposições constitucionais processuais, também não se pode perder


de vistas as disposições de índole material, sendo que um deles é o direito fundamen-
tal à liberdade, que extrapola o aspecto físico para alcançar o respeito à autonomia da
vontade a partir das escolhas que se pode fazer, remontando o princípio dispositivo,
ao qual não se deve conferir carga normativa, o que vale também a outros “princípios”
constantemente utilizados no direito processual, aos quais se costuma empregar uma
acepção de técnica processual (RAATZ, 2019 p.146 e 150), em detrimento de sua essên-
cia pautada na autocontenção jurisdicional.

A partir da manifestação em estudo específico sobre a primazia do julgamento de


mérito a partir de Artur Orlando Lins, no sentido de se tratar de um princípio, surgiu a
necessidade de abordar a premissa, sem se questionar de forma alguma a necessidade
de enaltecimento do julgamento de mérito, para um aproveitamento ao máximo dos
atos processuais, sobretudo sendo notória uma feição formalista que sempre se alme-
jou superar, discordando-se, contudo, daqueles que sustentam ser o formalismo sem
propósito puro e simples e sem qualquer benefício, tal como sustenta Artur Orlando
Lins (LINS, 2019, p. 37), e diversos outros juristas, sobretudo os defensores da instru-
mentalidade do processo, de onde se depreende forte tendência pela flexibilização
processual e material, tese sustentada por Cândido Rangel Dinamarco, José Roberto
dos Santos Bedaque, dentre inúmeros outros.

Resta inequívoco também que o CPC trouxe diversas regras em seu texto de
cunho contrafático, com um viés de se permitir mais balizas para fiscalização de con-
dutas não condizentes, um primeiro argumento para não compreender tão simples-
mente a primazia do mérito como um princípio, acepção contrafática que não passou
despercebida por Lins, trabalhado por Dierle Nunes, ao apontar em trabalho especí-
fico sobre a função contrafática do direito, sobretudo o processual, para se combater

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
184

a jurisprudência defensiva, e também para se impingir, obstar uma atuação pautada


apenas pela produtividade em detrimento da qualidade, que seria no entender de Nu-
nes uma acepção do ordenamento processual civil em vigor (NUNES, 2019, p. 3 e 6).

Ainda que adepto em classificar a primazia do mérito como princípio, Lins sa-
lienta em passagem doutrinária que atentando-se para a perspectiva heurística de
Humberto Ávida seria possível se vislumbrar aquela primazia ora como princípio e
ora como regra no caso concreto (ÁVILA, 2019, 09-11) (JOBIM, 2018, p. 94), sobretu-
do por estar expressa numa norma jurídica, situando-se num contexto de dever-ser,
sem configurar um valor, sendo que, ainda assim, reafirma Lins não haver maiores
discussões sobre ser o art.4º do CPC uma norma-princípio, afirmando ser justificável
a criação de uma norma-princípio, não podendo ser concebida como uma “regra” por
não estabelecer diretamente as condutas aos seus destinatários, que seriam deduzidas
indireta e regressivamente do estado ideal advindo do princípio (LINS, 2019, p.38),
como se fosse possível alcançar um estado ideal por via diversa que não pela autono-
mia da vontade em vez da perspectiva da jurisdição como instrumental.

De toda forma, esta corrente sustentada por Câmara e Lins encontra muitos
adeptos, como é o caso de Virgílio Afonso da Silva, que entende ser tarefa do intérpre-
te definir se a norma será uma regra ou um princípio após o processo interpretativo
do texto (JOBIM, 2018, p. 84), sobretudo por ser a norma um texto interpretado contex-
tualmente e não sinônimos.

Em nosso ver a conclusão acima estaria um tanto quanto no campo da zetética


jurídica (FERRAZ JR., 2019, p. 22), estando com foco de investigação bastante amplo,
em ramos não especificamente jurídicos, como é o caso da sociologia, antropologia
etc., saindo, assim, da alçada da dogmática jurídica, como ciência que considera certas
premissas e de questões finitas, assim como da não negação do pontos de partida de
Luhmann (FERRAZ JR., 2019, p. 25), que é o espectro tratado por Lins, sem que de
forma alguma se esteja valorando princípios como fora do âmbito da normatividade,
apenas para deixar claro.

Entende-se que não se pode utilizar a “vontade”, “entendimento como justificá-


vel” como ponto de partida para se criar norma-princípio, pois princípios são frutos da
história institucional de uma dada comunidade, motivo pelo qual não pode depender
da “vontade inventiva”, onde apenas novas regras não bastariam para servirem como
“norma-princípio”, além do que, vislumbrando-se como se realmente fosse uma nor-
ma-princípio, não se pode argumentar pela ausência de estabelecimento de condutas
aos destinatário, afinal, a fixação pela priorização já fala por si só, sem estar aqui a afas-
tar que há certa função para a extinção sem mérito, porém, como exceção e decorrente

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
185

sobretudo da autonomia da vontade, o que diria então quando Lins apontou a acepção
principiológica por um estado ideal, de cunho eminentemente subjetivo, discricioná-
rio, diversamente de um proceder, tal como propugna o garantismo processual.

Fez, contudo, Lins, a ressalva da posição em contrário, daqueles que negam o


caráter principiológico, como é o caso de Dierle Nunes e Flávio Pedron (NUNES; PE-
DRON, 2015), argumentando pela desnecessidade de criação de princípio advindo
do plano dogmático-positivo, e que a primazia do mérito seria advinda do devido
processo legal e da duração razoável do processo, que bastariam para entenderem que
se trata de norma-regra, além da colocação no sentido de que criar novos princípios
processuais demandaria um olhar crítico, para que estes não se tornem princípio sem
força normativa, abrindo margem para uma discricionariedade judicial que tanto se
questiona. (NUNES; PEDRON, 2015)

Não se está aqui a questionar a possibilidade de utilização de mais de um princí-


pio (ÁVILA, 2019, p. 154-155) para a resolução de conflitos normativos (LINS, 2019, p.
38), o que não justifica a criação voluntária de normas-princípios, mesmo que justificá-
veis ao fim, e ainda que relacionados aos princípios constitucionais (devido processo
legal e duração razoável do processo), pois estar-se-ia adentrando no campo teleológi-
co, o que não deve ser o foco da análise de um instituto jurídico como o é o mérito ou o
sub-rogado da prova (CARNELUTTI, 2019, p. 123-124), que já passou pela dupla visão
salientada por José Joaquim Calmon de Passos quando trata da ausência de critérios
técnicos no desenvolvimento de uma norma-regra, ao não passar pela dupla resposta
(“o prioritário é saber o porquê e para que”) (PASSOS, 2000, p. 09), para que a posteriori
seja preciso ser convolada a regra em norma-princípio sob alegação de ser justificável. 

Entende-se, assim, que não prospera o entendimento de Lins em sede de reafir-


mação de se tratar de norma-princípio ao argumento de que seria mais simples uma
justificativa pragmática para se extrair uma regra de um princípio infraconstitucional
pautado em sobreprincípios constitucionais (LINS, 2019, p. 39-40), ou princípios pam-
processuais (SILVA, 2019, p. 107, 132 e 217), mesmo que diversos sejam os dispositivos
legais no Código de Processo Civil que tratam o tema, além do art.4º do CPC.

14.2 Vieses da primazia do mérito

Para ir adiante no tema é preciso individualizar os vieses possíveis de enqua-


dramentos à primazia do mérito, sendo preciso realizar uma dissociação entre as es-
pécies normativas quando abordadas para fins de um processo aplicativo, sendo que
da significação frontal pode-se inferir os primeiros pilares, e assim é que Humberto
Ávila trata daquilo que entende como os três vieses, que seriam as regras, princípios e

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
186

postulados, que seriam respectivamente e em síntese dimensões imediatamente com-


portamental, finalística, e/ou metódica. (ÁVILA, 2019, p. 227)

Ademais, há também o entendimento pela possibilidade de haver uma quadri-


partição, mesmo que o CPC tenha classificado o capítulo I como “das normas proces-
suais civis”, pois dos textos ou dispositivos normativos constantes dos artigos pode-se
aferir em seu objeto desde normas-princípio, como normas-regras, normas-postulados
ou qualquer outra fonte autorizada pela via interpretativa, que se classificam como
“valores”, apesar da maioria da doutrina sustentar a existência apenas dos princípios
e regras (JOBIM, 2018, p. 86), tal como sustenta Daniel Marques de Camargo e Levi
Rosa Tomé, enquanto que há ainda o entendimento de que somente haveriam princí-
pios no âmbito do capítulo I, no livro I do CPC, como é o caso de Misael Montenegro
Filho (JOBIM, 2018, p. 94), tema tamanhamente debatido que já foi objeto até mesmo
de enunciados (nº 369 e 370) no Fórum Permanente de Processo Civil.

Seguindo então as diretrizes traçadas por Humberto Ávila, como paralelo ao em-
pregado por Lins para chegar à conclusão de tratar a primazia do mérito como princí-
pio, sendo que para Ávila as regras são tidas como “normas imediatamente descritivas,
primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para
cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade
que lhe dá suporte e nos princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes” (ÁVI-
LA, 2019, p. 227), sendo preciso fazer um paralelo segundo Ávila entre a construção
conceitual da descrição normativa e a construção dos fatos.

Do caráter descritivo tem-se a destinação de regular condutas humanas, e, ao


descumprimento há de se encontrar consequência, como estrutura lógico-deôntica de-
corrente da descrição hipotética em termos fáticos à previsibilidade das consequên-
cias, seja em caso de violação ou mesmo para cientificação aos destinatários desta pre-
visibilidade, não importando, a princípio, as razões para fins da consequencialidade,
que vista do aspecto do direito material seria a consequência ao jurisdicionado, e no
aspecto da validade e infracional no trato do âmbito processual e funcional, sendo
que Ávila defende que as regras possam passar por ponderação a partir do momento
que possam colidir entre si, enquanto que Virgílio Afonso da Silva entende que não se
estaria diante de uma ponderação e sim de uma exceção à aplicação da regra. É assim
que Marco Félix Jobim afirma que “a definição da regra como norma descritiva de uma
hipótese fática cuja previsibilidade de consequência já está anunciada no caso de sua
violação” (JOBIM, 2018, p. 95-97).

No mesmo sentido é a colocação de Lins, para quem, contudo, se vislumbra que


da descrição das condutas se almejaria a concretização do princípio legitimador, de-

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
187

limitando-se os comportamentos, ao passo que das normas-regras se depreenderia a


partir da exclusão das demais regras, conferindo-se um caráter de exclusividade ou
decidibilidade, enquanto que se tratar o art. 4º do CPC como princípio não se teria
como valorá-lo sem considerar as demais normas-princípios, a partir do devido pro-
cesso legal. (LINS, 2019, p. 41)

Entende-se, contudo, de forma diversa da conclusão de Lins, nesta parte, pois da


afirmação da legitimação a partir do princípio não é preciso a extração de princípios,
nem mesmo a primazia do mérito, pois sua decorrência adviria do constituinte origi-
nário ao fixar o devido processo legal expressamente, assim como a inafastabilidade
da jurisdição e mais adiante da duração razoável do processo, portanto, um comporta-
mento incito do próprio texto constitucional, depreendendo-se, assim, que a partir da
Constituição Federal de 1988 a primazia do mérito já era uma decorrente da liberdade
constante como um dos objetivos fundamentais da república federativa do Brasil em
seu art.3º, I da Constituição Federal, independentemente de qualquer princípio adicio-
nal, o que diria então advindos de criação, vontade do interprete, não por outra razão
há trabalho desenvolvido por Maria Cristina Barros Gutiérrez Slaibi, onde sustentou
antes mesmo da aprovação do Código de Processo Civil, que fosse fixada a primazia
do mérito “de lege ferenda” e erigida a um dever judicial (SLAIBI, 2013, p. 123).

Para complementar o cotejo sobre o apontamento de Lins, entende-se que tam-


bém não é condizente a colocação de que uma norma-regra excluiria outra norma-re-
gra, sendo que tal como os princípios constitucionais explícitos, as regras, ou normas-
-regras comportam sim exame sem exclusividade, portanto, perfeitamente suscetível
de valoração em conjunto com outras regras de regência, evidentemente paritárias
entre si, o que é premissa até mesmo da comunhão de princípios, do contrário restaria
averiguar inequívoco conflito normativo em ambos os casos, de onde adviria a neces-
sidade de analisar as normas de integração, complementação, onde se incluiriam os
princípios gerais de direito a partir da lei de introdução às normas do direito brasileiro
por expressa disposição, ao contrário do que afirmou Lins, ao retirar os princípios des-
ta finalidade (LINS, 2019, p. 40).

Para abordar todos os pontos mencionados por Lins, é importante tratar do argu-
mento no sentido de que as regras teriam feição de decidibilidade, enquanto os prin-
cípios não, sendo importante sopesar que quando se realiza o tratamento a partir da
ciência dogmática do direito, não se tem como afastar até mesmo dos princípios o con-
dão pela decidibilidade, afinal, a ciência do direito tem como ponto central o próprio
ser humano, portanto, as normas, sejam estas princípios ou regras são estereótipos
para decidibilidade, por isso é que a ciência jurídica se articula em diferentes modelos,
determináveis segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior conforme o modo como se en-

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
188

care a questão da decidibilidade, tendo sempre o ser humano como centro, eis então
a divisão dos modelos, em analítico, hermenêutico e empírico, respectivamente abor-
dando a relação hipotética entre conflito e decisão, as condições de possibilidade e, a
última, ou seja, a empírica, da qual se vislumbraria a partir da teoria da norma, teoria
da interpretação e teoria da decisão, que se inter-relacionam por não serem estanques,
sendo neste inter-relacionamento o espectro para se alcançar a unidade sistêmica do
saber dogmático. (FERRAZ JR. 2019, p.64-65)

Por sua vez, os princípios, para Ávila, seriam analisados e valorados a partir da
acepção normativa como sendo “normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja
aplicação demandam uma avaliação da correlação entre estado de coisas a ser pro-
movido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”
(ÁVILA, 2019, p.227), assim sem pretensão de exclusividade ou decidibilidade, como
ocorreria segundo Lins com a regra, que segundo ele não se aplicaria complementar-
mente a outra regra, ao contrário dos princípios (LINS, 2019, p. 41).

Não é de agora a controvérsia sobre o prisma dos princípios, sendo que a única
concordância na visão de Jobim da parte da doutrina é o fato de os princípios serem
normas indeterminadas, sendo que este fator não bastaria para diferenciá-los das re-
gras, afinal, não menos atual e permanente é a indagação sobre a vagueza das regras, o
que, assim, deixa mais inquestionável ainda que princípio são normas. (JOBIM, 2018,
p. 97-98)

Indicada acima a premissa de Ávila,  preceitos que Lins reconheceu ter seguido
de forma explícita,  ressaltando Lins que os princípios como normas de direito posi-
tivos e não como fonte de integração de lacunas na ordem jurídica acabam por admi-
tir que sejam extraídas normas de qualquer espécie de enunciado normativo, sempre
com pretensão de complementariedade, e tal como foi mencionado, nas palavras de
Lins, os princípios possuem estrutura deôntico-teleológica, por não fixarem direta-
mente comportamentos a serem seguidos quando da aplicação do direito, sendo que
os comportamentos ou condutas esperadas não configurariam mera recomendação ao
destinatário, já que sem conteúdo valorativo, e sim corresponderiam a imposição do
princípio jurídico, portanto, se o comportamento for adequado para o estado ideal de
coisas deve ser considerado, do contrário será indevido, salientando que os comporta-
mentos aos fins seriam inferidos indireta e regressivamente pelo aplicador do direito.
(LINS, 2019, p. 40)

Ao que parece, a conclusão de Lins está dissonante do entendimento de Ávila,


pois não identifiquei nenhuma passagem em que Ávila indicou que do princípio se

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
189

teria uma imposição, sendo que Ávila em mais de uma passagem salienta que “os
princípios não determinam diretamente (por isso prima facie) a conduta a ser seguida,
apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização depende mais
intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comporta-
mento necessário à promoção do fim” (ÁVILA, 2019,p. 87), o que mais à frente será no-
vamente trabalhado quando do desenvolvimento do tema em suas demais variantes,
observando-se as premissas de Ávila, tal como o fez Artur Orlando Lins.

Outro argumento de Ávila utilizado por Lins para tentar embasar o enquadra-
mento principiológico da primazia do mérito foi a alegação da eficácia interna e externa,
sendo que da eficácia interna poderia se vislumbrar em seus aspectos direto e indireto.
(LINS, 2019, p.42-43)

Quanto à eficácia interna e direta do princípio, decorreria da não dependência da


intermediação de outras normas, sejam, subprincípios ou regras, sob o argumento de
que seu conteúdo eficacial já deter eficácia integrativa, logo, seria norma jurídica de
aplicabilidade imediata e cogente (ROCHA, 2019, p. 74) a todos os sujeitos processuais,
ainda que não houvesse regra específica sobre a prioridade de julgamento de mérito,
salientando em seguida uma eficácia indireta pela função definidora e interpretativa.
Já a eficácia externa seria tratada sob dois vieses, ou seja, seletiva e argumentativa,
aquela no sentido de caber ao juiz relacioná-lo ao caso em concreto para conferir ou
não concretude, enquanto que o viés argumentativo seria conferir deferência à funda-
mentação, o que é dever do magistrado, para dar mais ênfase ainda à importância no
trato do tema pragmaticamente.

Sopesando os fundamentos apontados por Lins entende-se que o tratamento


como princípio não teria fundamento para o regramento da primazia do mérito desde
o instante que adveio da Constituição Federal o dever de julgar a partir do devido pro-
cesso legal, portanto, não se precisou jamais de um princípio infraconstitucional a tal
finalidade. Contudo, a partir do momento que o legislador entendeu pela necessidade
de fixar literalmente sobre a primazia se vislumbrou a eficácia interna direta e indireta,
porém, não como princípio e sim como regra reguladora de condutas, o que a princí-
pio pareceu desnecessário, porém, que a história demonstrou o contrário, sobretudo
a partir do CNJ, criando e acompanhando a produtividade dos juízes, sem que fosse
contudo fixada a necessidade de empenho para atenção ao mérito em detrimento da
forma, tal como se vê do justiça em números anualmente publicado, que se atenta a
números apenas.

Por sua vez, quanto à eficácia externa entende-se pela consonância das coloca-
ções de Lins, exceto quando aponta que se trata a primazia do mérito como princípio,

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE À
LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
190

afinal, ao magistrado compete valorar o caso concreto para verificar a possibilidade ou


não da correição da incidência da primazia do mérito, assim como justificar em um ou
noutro sentido, principalmente considerando que em diversos casos é perfeitamente
possível que a primazia do mérito possa colocar a parte em sujeição dos profissionais
que estão responsáveis pela causa, que podem não cumprir escorreitamente seu de-
siderato, tema, contudo que enseja o trato do tema abuso processual, aqui apontado
apenas como uma inquietude provocativa, assim como pelo paternalismo jurisdicio-
nal que não colabora em nada ao aperfeiçoamento.

Já se tratou da menção de Lins sobre o estado ideal de coisas que estaria a perse-
guir a primazia do mérito. Contudo, esta acepção apenas pode ser alcançada como o
próprio Lins reconhece, a partir de uma feição de “maleabilidade” (LINS, 2019, p. 43)
dos princípios, confrontada por exemplo com a complexidade social constante, que
traz à baila valores, assim a apontada maleabilidade está em torno de um dos pontos
mais questionados hoje no estudo, não apenas da processualística em termos formais,
como também para o alcance da aplicação do direito material e suas discussões em
torno da “iura novit curia”, ou seja, em torno da flexibilidade e atenção à autonomia da
vontade em sentido amplo.

Portanto, longe de afastar a importância da primazia do mérito, e dos efeitos


deletérios das extinções sem mérito e sua contraproducênia financeira e social, sem
desconsiderar que essa modalidade de crise nem sempre é desprovida de conotação,
demandando apenas a devida fixação de efeitos para não ser um mero estereótipo de
questionamentos. 

É assim, que entende-se escorreita a colocação de Artur Orlando Lins no trato da


importância do conteúdo (LINS, 2019, p. 47), a despeito de insistir na acepção princi-
piológica, primeiro porque a busca pelo conteúdo vem antes mesmo da parte positi-
vada, ou seja, vem desde a exposição de motivos do CPC, pois a busca pelo conteúdo
sobressai e antecede à primazia do mérito em nosso entender, eis aqui, então, o que
poder-se-ia compreender como estado ideal, como a busca pelo conteúdo, e nem por
isso se pode elevá-lo a princípio, já bastando o devido processo legal a tanto. 

Findo o diálogo imediato com Lins, urge agora prosseguir ao desfecho da inda-
gação.

Assim, para se permitir um desfecho do sopesar no trato da “regra” e “princípio”


em torno da primazia do mérito, tem-se a partir de Ávila três núcleos (ÁVILA, 2019,
p. 226-227) diferenciais entre regras e princípio como polos comuns ou praticamente
comuns, da normatividade: 

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
191

1º) quanto ao modo de prescrever o comportamento- enquanto as regras são des-


crições de condutas, comportamentos a serem cumpridos, fixando obrigações, permis-
sões e proibições, os princípios são normas finalísticas que fixam um estado de coisa a
depender dos efeitos decorrente de dado comportamento, contendo uma finalidade
em si relevante, ao invés de prever um comportamento; 2º) quanto à justificação que
exigem- nas regras exige uma correspondência do que consta na norma para com o
que foi praticado, relacionando-se à finalidade que lhe embasa, ao passo que nos prin-
cípios é preciso uma correspondência entre o estado de coisas como fim, e os efeitos da
conduta necessária; e 3º) quanto ao modo como contribuem para a decisão- das regras
depreende-se normas decisivas, com pretensão abrangente no que for relevante para
a tomada da decisão, visando uma solução específica para o conflito existente entre
seguir uma variante ou outra. De outra parte dos princípios tem-se normas primaria-
mente complementares e a princípio parciais, abrangendo apenas parte dos aspectos
relevantes para a tomada de decisão. 

Realizada a diferenciação entre regras e princípios, cumpre prosseguir ao tra-


to da individualização dos vieses, analisando-se o último viés a partir de Ávila, que
seriam os postulados normativos, pela correlação indicada inicialmente para fins de
enquadramento da primazia do mérito.

Por postulados normativos se identificam “normas imediatamente metódicas,


que estruturam a interpretação e aplicação de princípios e regras mediante a exigência,
mais ou menos específica, de relação entre elementos com base em critérios” (ÁVILA,
2019, p. 228), postulados que recebem ainda a classificação como metanormas ou me-
tacritérios (JOBIM, 2018, p. 90), como normas de segundo grau à aplicação de outras
normas voltadas ao intérprete, diferenciando-se das regras e princípios a partir do mo-
mento em que aquelas são normas de aplicação e os princípios normas de orientação à
aplicação de outra norma, não estando, assim, no mesmo nível normativo das regras e
princípios (JOBIM, 2018, p. 99).

Realizada a análise pontual das fontes normativas, urge investigar a finalidade


daquelas, e é sob esse contexto que Ávila conceituou a segurança jurídica como sendo
um binômio (ordem e previsibilidade), concluindo em trabalho específico que “o prin-
cípio da segurança jurídica é um princípio-condição, garantidor, de um lado, de um
estado de respeitabilidade dos direitos fundamentais do cidadão-contribuinte e, de
outro, de um ideal de moderação da atuação estatal” (ÁVILA, 2019, p. 742), afirmando
que assim se permite que o direito “deixe de ser um Direito centrado do exercício do
poder estatal, para ser, sobretudo, um direito jusfundamentalmente comprometido”
(ÁVILA, 2019, p. 743), acepção que esclarece a primeira passagem sobre o binômio da
ordem e previsibilidade. 

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
192

Segurança jurídica então é inerente à definição de Direito, sendo uma condição


incita à estrutura de qualquer ordenamento jurídico, seja como estado de fato para re-
ferir-se à realidade passível de constatação, sem se remeter a um comportamento a ser
adotado como estado ideal, sendo realidade fática, e ao mesmo tempo um estado de-
sejável por diversos valores, não necessariamente por imposição normativa, de onde
se tem que seria a segurança jurídica um juízo axiológico que se julga bom a partir de
certos valores, pautando-se Ávila para a essência de um ordenamento previsível, e
assim é que a segurança jurídica deve ser tratada, como um juízo prescritivo a respei-
to daquilo que deve ser buscado a partir de certo ordenamento jurídico, portanto, na
condição de norma-princípio não significa a possibilidade de prever as consequências
de fatos ou comportamentos, e sim a prescritibilidade para que se adotem comporta-
mentos que aumente o grau de previsibilidade, sendo então norma de direito posto,
eis então a diferenciação da segurança jurídica em suas vertentes “fato”, “valor”, e
“norma” (ÁVILA, 2019, p. 124-128). 

É assim que afirma Ávila que a segurança jurídica é examinada primordialmente


como norma jurídica da espécie princípio, ou seja, como prescrição, em prol de uma
confiabilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico, por meio da cognoscibilida-
de, e, como estado de fato, diferenciam-se das “regras”, estas que descrevem o permi-
tido, proibido e obrigatório, correspondendo a hipóteses (suposto ou antecedente), a
que se conjuga uma mandamento, uma consequência, portanto, a dada conduta deve
ser aplicada a consequência (ÁVILA, 2019, p. 130). 

Sob o manto da segurança jurídica tem-se originariamente o devido processo le-


gal (art.5º, LIV, da CF), que dispensa apresentação e topologia, sendo classificado como
sobreprincípio ou superprincípio constitucional-processual, conglobante de todos os
demais princípios fundamentais de processo, e em sua condição dispensa a interme-
diação de outras regras constantes da legislação, portanto, latente de uma eficácia di-
reta, deixando a eficácia indireta ao subprincípios ou regras, enquanto que o devido
processo legal como sobreprincípio congloba todas as funções essenciais processuais,
incluindo as normas fundamentais constante no art.1º ao 12º do CPC (SILVA, 2019, p.
132 e 134), portanto, tais valores e normas antes de processuais são fundamentais.

Finda a abordagem sintética sobre o tratamento do vieses normativos da pri-


mazia do mérito, cumulado à abordagem da segurança jurídica e do devido processo
legal como vetor originário constitucional, chega o momento de manifestar sobre os
pontos abordados, e seu cotejo ao direito positivo, para a partir da dogmática respon-
der se estar-se-á mesmo diante de um princípio quando se fala em primazia do julga-
mento de mérito, tal como propugnado por Artur Orlando Lins a partir das premissas

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
193

de Humberto Ávila, mesmo parâmetro empregado por Lins, a despeito de já se ter


questionado as premissas arguidas por Lins.

Entende-se, assim, que a primazia do mérito já foi um princípio, isso desde a


Constituição Federal de 1988 ao fixar o devido processo legal e a inafastabilidade da
jurisdição como suprimento da proibição do non liquet, mesmo sem fixar o dever de
julgar o mérito em si, mais adiante sendo agregado com a duração razoável do proces-
so advindo da Emenda Constitucional nº 45, com inequívoco cunho normativo enfa-
tizador de um começo, um meio e um fim, portanto, não instituidor, quando então se
estaria ainda sob um prisma principiológico, sem a fixação de critérios, conferindo-se
margem à filosofia da consciência em detrimento da linguagem. Mostrando-se ainda
assim insuficiente, e a despeito da já existência de disposições legais para se afastar um
formalismo demasiado desde o CPC/73, reiterado a partir do sistema de invalidades
pautado no aproveitamento e ausência de prejuízo, foi que adveio o Código de Proces-
so Civil de 2015, conferindo atenção então ao conteúdo desde a exposição de motivos,
para adentrar também no corpo de seus dispositivos legais, quando então trouxe dis-
posições legais sobre a primazia do mérito, para se afastar margem de escolha, opção
da parte do magistrado, o que se depreende dos artigos 488 e 489 do CPC, por sua
literalidade e proceder.

Das disposições legais se pode até transparecer o enquadramento da primazia


do mérito como um postulado normativo, porém, não passa em nosso sentir de apa-
rência, que não se supre com critérios extrínsecos, e sim intrínsecos a partir do objeto
do processo e do devido processo legal, embora inequivocamente possa se vislumbrar
certo condão de orientação, que porém não sobressai ao dever descritivo e criterioso
da lei, pautado em um verdadeiro proceder, tal como se depreende do art.488 do CPC,
ao fixar que “Desde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for
favorável à parte a quem aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art.
485.”, portanto, não há como afastar o caráter descritivo da lei, sobretudo com seu
cotejo complementar ao art.489 do CPC, com um cunho descritivo e não meramente
prescritivo como o seria se estivéssemos abordando um princípio.

Do art. 489 e §§ se identificam critérios em forma descritiva de um proceder, com-


plementar ao caráter finalístico constitucional, do contrário se abriria margem para
atos de vontade a partir de uma percepção de um estado ideal, onde se confundiria
com um valor, que segundo Lenio Streck se colocaria sobre os objetos do mundo para
além do direito (STRECK, 2020, p. 442), que dispensam qualquer ordem de flexibiliza-
ção à base da segurança jurídica, havendo ainda consequencialidade para a não obser-
vação do proceder, ainda que não seja levada a sério, ainda ao menos, como tantas si-
tuações que transcendem efetividade apenas após certa situação ainda não alcançada.

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
194

Diferentemente seria se os arts. 4º e 6º do CPC fossem as únicas previsões legais


no ordenamento processual civil a fazer menção à primazia do mérito, pois até aí ape-
nas se teriam exortações, em referência à Constituição Federal, assim, se poderia dizer
que estando as disposições legais mencionadas apenas dentre as normas fundamen-
tais do processo civil que estaríamos diante de um princípio e não de regra(s), porém,
não é isso que se vislumbra do Código de Processo Civil, o que diria então se analisado
sob o prisma da busca pelo conteúdo tomado a partir do objeto do processo, feição ine-
rente da autonomia da vontade do jurisdicionado, que não se confunde com qualquer
ato de vontade da jurisdição.

Ademais, os atos de vontade dificultam, para não se dizer, já dizendo, que im-
possibilitam a fiscalização e apuração de abusos processuais, pois ao tratá-lo como
princípio não se teria como observá-los de forma objetiva, pela impossibilidade de
objetividade no trato com os princípios, sempre caracterizados pelo seu subjetivismo,
do contrário deixam de ser princípios (ÁVILA, 2019, p. 131-132), enquanto que nosso
ordenamento possui critérios objetivos no art.489 do Código de Processo Civil para o
reconhecimento de um proceder, mesmo que menosprezados pelo anseio na manu-
tenção do entendimento sufragado na jurisprudência pela desnecessidade de esgotar
a matéria levada à valoração e que bastaria a racionalidade do julgado, uma verten-
te subjetiva, lamentavelmente, tal como foi o julgado do STJ já após a vigência do
CPC/15, no Recurso Especial nº 1.765.579 - SP (2017/0295361-7) ao tratar sobre o tema,
onde apenas se ignorou que estamos diante de uma nova ordem jurídica, se é que se
pode falar em nova, mesmo que nada inovando em termos constitucionais, apenas es-
pecificando o proceder, legislação confeccionada em prol do conteúdo, desde que não
sujeita à liberalidade de quem a aplique em detrimento da disponibilidade e liberdade
sim do jurisdicionado. 

14.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, tem-se que a primazia do mérito evidencia hoje verdadeira regra, ver-
dadeiro proceder, e não princípio, afinal, a partir do momento onde se demandam
escolhas, ou que se faz uso da vontade para alcançar o viés termina-se perdendo a
premissa essencial do que se tem como segurança jurídica a partir da dogmática, e
como salientado por Ávila, de um princípio jurídico se adviria um estado ideal que
estaria relacionado a um comportamento, envolvendo um fim e meios, portanto, seria
preciso extrair a acepção ‘escolha’, ‘vontade’, o que ultrapassa o caráter contrafático do
positivismo em termos do proceder da jurisdição, sem qualquer prejuízo ao pós-posi-
tivismo decorrente do conteúdo e não da consciência para o julgamento do mérito em
si, fase subsequente a um proceder eminentemente garantista, de contenção de abuso
de poder e observância da autonomia da vontade.

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
195

REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica, 5ª Ed., ver., atual. e ampl.- São Pau-
lo: Malheiros, 2019.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à ampliação dos princípios


jurídicos, 19 ª Ed. rev e atual. – São Paulo: Malheiros, 2019.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da primazia da resolução do mérito e o


novo Código de Processo Civil, R. EMERJ, Rio de Janeiro, v.18, n.70, p.42-50, set-
-out.2015. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edi-
coes/revista70/revista70_42.pdf Acesso 25.03.2019.

CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo; tradução Jeremy Lugros. – 1ª


Ed. -  São Paulo: R.B.E. Editora, 2019.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, domi-
nação, 11ª Ed. – São Paulo: Atlas, 2019.

JOBIM, Marco Félix. As funções da eficiência no processo civil brasileiro. – São Pau-
lo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

LINS, Artur Orlando. A Primazia do julgamento de mérito no Processo Civil, Salva-


dor: Ed. JusPodivm, 2019.

NUNES, Dierle. PEDRON, Flávio. Doutrina deve ter prudência e rigor ao definir
princípios do Novo CPC https://www.conjur.com.br/2015-abr-19/doutrina-pru-
dencia-definir-principios-cpc , Acesso 10.05.2020.

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo: Julgando os que
nos julgam, Rio de Janeiro: Forense, 2000.

RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo, Salvador: Ed.JusPodivm, 2019.

ROCHA, Márcio Oliveira. Sobre a Ordem Pública Processual, essa desconhecida,


Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.

SILVA, Augusto Vinícius Fonseca e. Princípios Pamprocessuais ou Metaprocessuais.


Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.

SLAIBI, Maria Cristina Barros Gutiérrez. Dever judicial de julgamento de mérito, 2ª


Ed. – Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013.

STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da


teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito, 2ª Ed. – Belo Horizonte (MG):
Letramento: Casa do Direito, 2020.

Capítulo 14
PLATAFORMA DE SAÚDE QUE VIABILIZA CONSULTÓRIO DIGITAL: EXPERIÊNCIA PRÁTICA NA SUA CONFORMIDADE
À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)
196
CAPÍTULO 15

SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA


ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS
CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.15

1  Pós-graduando em Direito Digital pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Direito Eleitoral pela
Uninassau. Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
198

RESUMO

O presente capítulo tem como tema a competência penal e como objeto a com-
petência da Justiça Eleitoral para julgar crimes conexos a crimes eleitorais.
Metodologicamente, trata-se de um estudo de caso, no qual se analisou o julgado do
STF no Inquérito n. 4435, que reafirmou a jurisprudência da corte no sentido de que o
cometimento de crimes comuns conexos a crimes eleitorais atraem a competência da
referida justiça especializada para processar e julgar a todos, por força do art. 35, inc.
II do Código Eleitoral (Lei 4.737/65).
Palavras-chave: Conexão; Crimes eleitorais; Justiça Eleitoral; Justiça Comum.

15.1 JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA

A palavra jurisdição vem da expressão latina iuris dictio, que significa dizer o
direito. Trata-se de um direito-garantia fundamental dos cidadãos previsto no art. 5º,
inc. XXXV, da Constituição Federal (CRFB/88). A jurisdição não é apenas o poder do
Estado de impor a norma jurídica na solução dos conflitos intersubjetivos, pois tam-
bém um dever, visto que ao negar o direito à justiça privada, ele toma para si a obriga-
ção de prestar a tutela jurisdicional (THEODORO JUNIOR, 2020). Em outras palavras,
os particulares depositam no Poder Judiciário - através de seus órgãos imparciais en-
carregados de proferir julgamentos que adquirem, na quase totalidade das situações,
a imutabilidade (coisa julgada) – a expectativa da obtenção de um pronunciamento
adequado, que atenda às suas necessidades (ROCHA, 1993).

Sintetizando o exposto, Didier Jr. (2017, p. 173) conceitua jurisdição como


função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b)
e criativo (reconstrutivo) (c), reconhecendo / efetivando / protegendo situações ju-
rídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo
(f) e com aptidão para tornar-se indiscutível.

Justamente por ser elemento constituinte da ideia de Estado Moderno, a jurisdi-


ção é tida como una, trata-se de um atributo de soberania e função privativa do Poder
Judiciário no Estado de Direito. Na prática, seu exercício exige a divisão em vários
órgãos, que são identificados a partir da competência, o critério de distribuição das
funções relativas ao desempenho da jurisdição. Tal organização é estabelecida pela
CRFB/88, conforme seu art. 5º, inc. LIII, segundo o qual “ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente” (PACELLI, 2018).

Para Aury Lopes Jr. (2018, p. 161), a competência 


é um conjunto de regras que asseguram a eficácia da garantia da jurisdição e, espe-
cialmente, do juiz natural. Delimitando a jurisdição, condiciona seu exercício. Como
regra, um juiz ou tribunal somente pode julgar um caso penal quando for competen-
te em razão da matéria, pessoa e lugar.

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
199

O princípio do juiz natural é o direito que cada cidadão tem de saber, previamen-
te, a autoridade que irá processar e julgá-lo. Conforme lição de Renato Brasileiro de
Lima (2017, p. 330), “juiz natural, ou juiz legal, dentre outras denominações, é aquele
constituído antes do fato delituoso a ser julgado, mediante regras taxativas de compe-
tência estabelecidas pela lei”.

A competência pode ser classificada quanto à matéria, a pessoa ou o lugar. As


competências em razão da matéria e pessoa são absolutas, não se convalidam jamais,
isto é, “não há preclusão ou prorrogação de competência e pode ser reconhecida de
ofício pelo juiz ou tribunal, em qualquer fase do processo” (LOPES JR, 2018, p. 161).
Para doutrina majoritária, a competência em razão do lugar é relativa. Portanto, se
não for alegada pelo interessado em sua primeira manifestação escrita, considera-se
prorrogada, “sendo válido o julgamento pelo juízo que, em princípio, não tinha com-
petência territorial” (GONÇALVES, REIS, 2018. p. 132). 

A competência em razão da pessoa se refere ao foro por prerrogativa de função,


ou seja, é determinada pela característica funcional do agente. A Constituição Federal
estabelece o esquema desse critério de competência penal. Nos seus termos, há com-
petência privativa dos Tribunais de Justiça (TJ) para julgar os juízes estaduais e do
Distrito Federal (DF) e Territórios, bem como os membros do Ministério Público (MP),
nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleito-
ral (JE) (at. 96, inc. III da CF).

Ademais, a Constituição define a competência do Supremo Tribunal Federal (STF)


para processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns e nos crimes de
responsabilidade, os Ministros de Estado, os membros dos Tribunais Superiores, os
do Tribunal de Contas da União (TCU) e os chefes de missão diplomática de caráter
permanente, além dos Comandantes das Forças Armadas, ressalvada a competência
do Senado para processar e julgar o Presidente da República e seu Vice nos crimes de
responsabilidade e os Ministros de Estado e os Comandantes das Forças Armadas nos
crimes da mesma natureza conexos com aqueles (art. 102, inc. I, alínea c da CRFB/88).      

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) detém competência pri-


vativa para processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, os Governadores
dos Estados e do DF e, nestes e nos crimes de responsabilidade, os desembargadores
dos TJs dos Estados e do DF, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados (TCE)
e do DF, os dos Tribunais Regionais Federais (TRF), dos Tribunais Regionais Eleitorais
(TRE) e do Trabalho (TRT), os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios (TCM) e os do Ministério Público da União (MPU) que oficiem perante
tribunais (art. 105, I, a da CRFB/88).

Capítulo 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
200

Também possui foro por prerrogativa de função os juízes federais da área de sua
jurisdição, incluídos os da Justiça Militar (JM) e da Justiça do Trabalho (JT), nos crimes
comuns e de responsabilidade, e os membros do MPU, os quais devem ser julgados
pelos respectivos TRFs, ressalvada a competência da JE (art. 108, inc. I, alínea a da
CRFB/88). 

Vale destacar que, ante o Princípio da Isonomia, o foro por prerrogativa de fun-
ção só se justifica quanto aos crimes cometidos e diretamente relacionados às ativida-
des do agente. Nesse sentido é a jurisprudência do STF, leia-se:
DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM
EM AÇÃO PENAL. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
AOS CRIMES PRATICADOS NO CARGO E EM RAZÃO DELE. ESTABELECI-
MENTO DE MARCO TEMPORAL DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCJA. [ ... ] Quanto
ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função,
ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo STF, alcança todos os
crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, 1, b e e da
Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não
guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. impõe-se, todavia, a alteração des-
ta linha de entendimento para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados
no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente
princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república por impedir,
em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes
de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal,
nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a mo-
ralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu
papel constitucional de garantir o livre exercício das funções - e não ao fim ilegítimo
de assegurar impunidade - é indispensável que haja relação de causalidade entre o
crime imputado e o exercício do cargo. (Questão de Ordem no Ação Penal n. 937-RJ,
Rel. Min. Roberto Barroso. STF. Plenário. Julgado em 3.5.2018. publicado no DJ em
11.12.2018) -g.n.

A competência em razão da matéria é indicada pela natureza da infração penal


perpetrada, que irá determinar se a competência é da justiça comum ou da justiça es-
pecial. No Brasil, quanto à especialidade, o Poder Judiciário divide-se em JT, JM, JE e
Justiça Comum, esta última pode ser Justiça Federal (JF) ou Justiça Estadual. Vale dizer
que a JT não tem jurisdição penal (PACELLI, 2018, p. 218). Ademais, a competência
penal das justiças especializadas é expressa e a competência da Justiça comum é resi-
dual, isto é, “a jurisdição estadual somente terá lugar quando previamente afastadas
as demais competências (militar, eleitoral e federal)” (PACELLI, 2018, p. 175).

De acordo com o art. 109 da CRFB/88, é competência da JF o julgamento de cri-


mes políticos ou não praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União
ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e
ressalvada a competência da JM e da JE; os crimes previstos em tratado ou convenção
internacional, quando, iniciada a execução no Brasil, o resultado tenha ou devesse ter
ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; os crimes contra a organização do traba-
lho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econô-
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
201

mico-financeira; os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a


competência da JM e os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro.

À JM, por sua vez, compete processar e julgar os crimes militares definidos em
lei (art. 104 da CRFB/88). A Emenda Constitucional nº 45/04 acrescentou ao art. 125 os
§§§ 3º, 4º e 5º da CRFB/88, a fim de estruturar as Justiças Militares estaduais (JME). O
§4º do mesmo dispositivo reafirma a competência à Justiça Militar estadual processar e
julgar os militares dos Estados, mas ressalva a competência do Tribunal do Júri quan-
do a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e
da patente dos oficiais e da graduação das praças. O §5º do art. 125 da cRFB/88 defere
aos Juízes de Direito da JM a competência para processar e julgar, singularmente, os
crimes militares cometidos contra civil, cabendo ao Conselho de Justiça (órgão colegia-
do) o processo e julgamento dos demais crimes militares. 

A Justiça Militar da União, por sua vez, julga tanto civis como militares, nos
crimes militares cometidos por integrantes das Forças Armadas ou por civis que aten-
tem contra a Administração Militar federal. Cabe ressalvar que a Lei nº 13.491/2017,
alterando o disposto no art. 9º do Código Penal Militar, previu a competência da Jus-
tiça Comum (federal ou estadual) para o julgamento de crimes dolosos contra a vida
praticados por militar contra civil, estando ou não em serviço, salvo se praticados no
cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da Repúbli-
ca ou pelo Ministro de Estado da Defesa; no curso de ação que envolva a segurança
de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou durante
atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de
atribuição subsidiária.

Quanto à jurisdição penal da Justiça Eleitoral, nota-se que a Constituição expres-


samente a previu, ao proceder as ressalvas quanto ao processamento de crimes come-
tidos por agentes públicos dotados de prerrogativa de função nos arts. 96, inc. III; 108,
inc. I, alínea a e 109, inc. IV; todos da CRFB/88. Ademais, o legislador constituinte
também deferiu a possibilidade de Lei Complementar definir a organização e compe-
tência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais, bem como a previsão
de crimes eleitorais a serem processados pela JE.

Tal competência foi firmada através da Lei Complementar 4737/95, que instituiu
o Código Eleitoral (CE). Nesse diapasão, o seu art. 22 dispõe que é de competência do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), processar e julgar originariamente os crimes eleito-
rais e os comuns que lhes forem conexos cometidos pelos seus próprios juízes e pelos
juízes dos Tribunais Regionais. Já o art. 29, inc. I, alínea a, do CE estabelece a compe-
tência dos Tribunais Regionais, atribuindo-lhes a missão de processar e julgar origina-

Capítulo 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
202

riamente, os crimes eleitorais cometidos pelos juizes eleitorais. Por fim, o art. 35, inc.
II do CE define a competência dos juízes eleitorais para processar e julgar os crimes
eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do
TSE e dos Tribunais Regionais. 

Por fim, quanto aos tipos de competência, vale ressaltar que a competência em
razão do lugar está fixada no art. 70 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o
qual “a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a
infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de
execução”. O art. 69 do CPP complementa a norma, indica os critérios de competên-
cia jurisdicional penal: a) o lugar da infração; b) o domicílio ou residência do réu; c)
a natureza da infração; d) a distribuição; e) a conexão ou continência; f) a prevenção;
g) a prerrogativa de função. Nota-se que referido dispositivo não elenca a ordem de
observação dos critérios para fixação da competência, o que ficou a cargo da doutrina.

Nesse sentido, Victor Gonçalves (2018, p. 152) ensina que primeiro fixa-se a de-
terminação do foro competente a partir do local da infração ou do domicílio do réu;
depois fixa-se a justiça competente, considerando a natureza da infração; e, por fim,
determina-se a vara competente pela prevenção ou pela distribuição. 

De forma distinta, Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 349) entende que, primeiro
analisa-se a competência em razão da matéria para identificar a Justiça competente, se
é: a) Justiça Militar (da União e dos Estados); b) Justiça Eleitoral; c) Justiça Política (cri-
me de responsabilidade); d) Justiça Federal ou e)Justiça comum; então, averígua-se a
competência em razão da pessoa, isto é, se há foro por prerrogativa de função que fixe
a competência originária; depois, observa-se a competência em razão do lugar, portan-
to, qual o foro competente, no caso da JE a comarca, da JF a Seção e subseção, da JM a
circunscrição e no caso da JE a zona eleitoral competente; feito isso, o próximo passo
é definir a competência de juízo, que se faz mediante distribuição ou pela prevenção. 

15.2 DO CRIME ELEITORAL E DO CRIME CONEXO

O crime eleitoral é toda infração penal disposta em lei e tida como ofensiva à
liberdade do voto direto e secreto enquanto exercício da soberania popular. Portan-
to, são atos antijurídicos que afetam tão grave e diretamente o interesse público, por
impedir ou turbar o escorreito curso do processo eleitoral, que ensejam a intervenção
penal. Conforme lição de Gomes (2015, p. 3),
o crime eleitoral é apenas uma especificação do crime em geral, com a particularida-
de de objetivar a proteção de bens e valores político-eleitorais caros à vida coletiva.
Tais bens são eminentemente públicos, indisponíveis e inderrogáveis pela autono-
mia privada. São bens necessários à configuração da legítima ocupação dos cargos
político- eletivos e, portanto, do regular funcionamento do regime democrático.

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
203

Os crimes eleitorais estão previstos em leis penais, tanto no CE, quanto em legis-
lações esparsas que estabeleçam regras penais em matéria de eleição, quais sejam: Lei
nº 6.091/1974; Lei nº 6.996,/1982; Lei nº 7.021/1982; Lei Complementar nº 64/1990; e,
finalmente, a Lei nº 9.504/1997 (“Lei das Eleições”).

Até 1932, com a edição do primeiro CE, o Estado Brasileiro protegia penalmente
apenas os direitos políticos. Essa primeira previsão data do Código Criminal do Impé-
rio do Brazil de 1830, Título III (art. 100 a art. 106), que estabeleceu os crimes contra o
livre gozo e exercício dos Direitos Políticos dos cidadãos. Com a República, o Governo
Provisório e seu Ministério dos Negócios da Justiça criou um o novo Código Penal
dos Estados Unidos do Brasil de 1890, mas tratou pouco dos direitos políticos, cuja
proteção penal foi prevista no Cap. III, dos crimes contra o livre exercício dos poderes
políticos, embora nada trata-se de crimes eleitorais, conduta que se repetiu na Conso-
lidação das Leis Penais de 1932.

Na tradição legislativa brasileira, os crimes eleitorais são tratados em leis espe-


ciais, tendo sido a primeira o CE de 1932, que estabeleceu tais crimes nos arts. 107 a
109, o que se repetiu nos demais Códigos Eleitorais, quais sejam: o de 1935 (arts. 183
e 184), de 1945 (art. 123 e 124), de 1950 (art. 175 a 184) e o de 1965 (arts. 289 a 364). Por
isso, o Código Penal (CP) de 1940 tratou dos crimes contra a Administração Pública
sem abordar a referida matéria, o que não se alterou com a reforma do Código Penal,
de 1984.

A justificativa é a autonomia legislativa, quer dizer, é a lei geral sobre eleições


que deve tratar sobre delitos dessa espécie, tendo em vista os princípios e conceitos
específicos do Direito Eleitoral e do procedimento eleitoral. Para Fávila Ribeiro (2000),
esta é a maneira adequada de locar os delitos eleitorais, seja em virtude da facilidade
do seu manuseio e interpretação, seja porque constituem infrações ao Código Eleito-
ral, uma vez que garante a sistematização da questão eleitoral dentro de um mesmo
quadro normativo homogêneo, de modo a permitir as figuras delitivas à problemática
eleitoral. 

Esta conclusão pode ser alicerçada no art. 287 do CE, segundo o qual “aplicam-
-se aos fatos incriminados nesta lei as regras gerais do Código Penal”. Trata-se da
consagração do principal geral do direito lex specialis derrogat legem generalem, a fim de
solucionar o concurso aparente de normas penais que obteve consagração legislativa.
Nesse sentido, as regras gerais do CP somente se aplicam aos fatos incriminados por
lei especial, se esta não dispuser de modo contrário, isto é, o CP tem aplicação subsi-
diária e supletiva ao CE.

Capítulo 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
204

Pela exposição das regras de competência e com a definição de crimes eleitorais,


resta bastante claro que estes crimes devem ser julgados pela JE. No entanto, a proble-
mática surge na situação de haver conexão entre crimes eleitorais e crimes cuja compe-
tência deva ser apreciada por justiça distinta.

A conexão é a dependência recíproca entre dois ou mais fatos delituosos, de


modo que o julgamento dos mesmos devam ser reunidos no em igual processo penal,
perante o mesmo órgão jurisdicional, a fim de que os fatos sejam julgados com base
nas mesmas provas e juízo, evitando-se o surgimento de decisões conflitantes (TOURI-
NHO FILHO, 2013). Assim, como “a reunião de ações penais em um mesmo processo
e a prorrogação de competência” (CAPEZ, 2018, p. 287) são efeitos da conexão, pode-
-se afirmar ela é uma causa de modificação da competência relativa.

No art. 76 do CP estão previstas as regras para fixação da competência a partir da


conexão. Leia-se:
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão: I - se, ocorrendo duas ou
mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reu-
nidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou
por várias pessoas, umas contra as outras; II - se, no mesmo caso, houverem sido
umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade
ou vantagem em relação a qualquer delas; III - quando a prova de uma infração ou
de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

A partir desse dispositivo, a conexão pode ser classificada em intersubjetiva por


simultaneidade, por concurso ou por reciprocidade; objetiva; e instrumental ou pro-
batória. A conexão intersubjetiva ocorre quando duas ou mais infrações interligadas
forem praticadas por duas ou mais pessoas.

 A conexão intersubjetiva será subjetiva por simultaneidade se duas ou mais


infrações forem praticadas ao mesmo tempo, por diversas pessoas ocasionalmente
reunidas (sem intenção de reunião), aproveitando-se das mesmas circunstâncias de
tempo e de local. É o caso, p.e., de depredação de patrimônio por torcedores ou saque
simultâneo a uma loja em meio a protestos. A Conexão intersubjetiva por concurso
se dá quando duas ou mais infrações são cometidas por várias pessoas em concurso,
ainda que em tempo e local diversos. Ex.: com o objetivo de roubar um banco, uma
pessoa furta um veículo para fuga, outra adquirir armas e outra ingressar efetivamen-
te no banco. Já a conexão intersubjetiva por reciprocidade ocorre quando duas ou mais
infrações são cometidas por diferentes sujeitos uns contra os outros, como no caso de
briga envolvendo várias pessoas e com lesões corporais recíprocas.

A conexão objetiva é disposta no inc. II do art. 76 do CPP, ocorre quando um cri-


me ocorre para facilitar a execução do outro, já a conexão Instrumental ou probatória
está elencada no inciso seguinte do mesmo dispositivo e ocorre quando a prova de
Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
205

um crime influenciar na existência do outro, independentemente da relação de tempo


e espaço entre os delitos, p.e., quando a prova do crime de furto auxiliar na prova do
delito de receptação.

No caso de conexão entre crimes comuns e crimes eleitorais, o CE estabeleceu,


no seu art. 364, que “o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que
lhe forem conexos assim como nos recursos e na execução que lhes digam respeito,
aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o CPP”. Por sua vez, O CPP dispõe, no
seu art. 78, inc. IV, que na conexão entre a jurisdição comum e a especial, prevalece a
jurisdição especial. 

Assim, não há objeção quanto à competência da Justiça Eleitoral para processar


e julgar o ilícito penal eleitoral praticado em conexão com ilícito penal de natureza
comum. Contudo, como a competência da Justiça Eleitoral não está prevista na Cons-
tituição Federal, mas no CE, o problema surge quando há competência em razão da
pessoa ou da matéria atribuída a determinado justiça especializada pela CRFB/88 e
tal competência é modificada por regra infraconstitucional. Diversas são as situações,
mas, para melhor ilustrar, pode-se imaginar este conflito no caso de um crime doloso
contra a vida, de competência é do Tribunal do Júri (Art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF/88),
ser praticado em conexão com um crime eleitoral, cuja competência é da Justiça Eleito-
ral, definida pelo CE. No caso ora estudado, a questão surge quando há competência
para processar determinado crime atribuída à JF e este crime é conexo a uma infração
penal eleitoral, de competência da JE. Diante disso, o próximo tópico adentra na ques-
tão central do problema levantado ao analisar a decisão tomada pelo Plenário do STF
no julgamento do Inquérito n. 4435.

15.3 DO JULGAMENTO DO QUARTO AGRAVO REGIMENTAL NO


INQUÉRITO 4.435 

O Agravo, nos termos do art. 1.021 do Código de Processo Civil, é o recurso ca-
bível para impugnar decisões tomadas individualmente pelo relator de um recurso. 

No caso em análise, o recurso foi oposta por Pedro Paulo Carvalho Teixeira e
Eduardo da Costas Paes contra decisão do Relator do Inquérito 4.435 (Ministro (Min)
Marco Aurélio), que declinou da competência do STF para a primeira instância da Jus-
tiça do Estado do Rio de Janeiro, afirmando que os delitos imputados aos investigados
– previstos nos art. 317 e 333 do CP; em concurso com os crimes previstos no  art. 1º,
inc. V da Lei nº 9.613/1998 e no art. 22 da Lei nº 7.492/1986 – teriam sido cometidos
parte em 2010, durante o tempo em que exerceu mandato de deputado estadual, e
parte em 2014. O Relator destacou que, nesse último caso, apesar de os crimes supos-
tamente praticados terem ocorrido quando Pedro Teixeira já era deputado federal, não

Capítulo 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
206

têm relação com o cargo, motivo pelo qual o STF não seria competente para julgar o
feito, e sim a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro (JERJ).

Os investigados tentaram reverter a decisão alegando que a suposta doação ile-


gal, realizada em 2014, diz respeito à campanha para a reeleição de Pedro Teixeira ao
cargo de deputado federal, e não à campanha para prefeito de Eduardo Paes, o que
justificaria o foro privilegiado de Teixeira, cujo processo deveria tramitar perante o
STF, uma vez que ele era deputado federal desde 2011. Reforçam o foro privilegiado
pelo caráter eleitoral dos delitos imputados, que estariam vinculados à atividade par-
lamentar de Pedro Teixeira. Assim, requereram que o processo permanecesse sendo
processado no STF e, subsidiariamente, que fosse processado pela JERJ e não pelo Tri-
bunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).

O PGR, em sua manifestação, destacou que os fatos investigados ocorreram nos


anos de 2010, 2012 e 2014. A reputada ação delituosa ocorrida em 2010 foi o recebimen-
to de R$ 3.000.000,00 do Grupo Odebrecht por Pedro Teixeira, facilitado por Eduardo
Paes, para campanha eleitoral daquele investigado ao cargo de deputado federal. Na
época, Teixeira era deputado estadual do Rio de Janeiro (RJ). Nesse caso, propugnou
o Ministério Público que o processo tramitasse no TERJ, uma vez que Pedro Teixeira
não gozava de foro privilegiado no STF e a conduta em questão é conexa ao tipo penal
previsto no art. 350 do CE (omitir, em documento público ou particular, declaração
que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da
que devia ser escrita, para fins eleitorais).

Quanto aos crimes do ano de 2012, trata-se do recebimento, por Eduardo Paes,
da quantia aproximada de R$ 15.000.000,00 pagos pela Odebrecht, a pretexto da sua
campanha eleitoral para reeleição à prefeitura do Rio de Janeiro. Como Eduardo Paes
era prefeito do Rio de Janeiro à época, há imputação nos crimes de corrupção ativa
e passiva. Tal recebimento ilegal teria sido intermediado por Teixeira, coordenador
da campanha, que operacionaliza os pagamentos inclusive mediante transações rea-
lizadas no exterior. O Parquet destacou, ainda, a existência de indícios reveladores da
prática dos crimes dos art. 350 do CE, 317 e 333 do CP, 22 da Lei nº 7.492/1986 e 1º
da Lei nº 9.613/1998, de modo que o STF seria incompetente para processar o feito, e
defendeu a cisão do processo para que o crime eleitoral fosse julgado pelo TERJ e os
demais crimes pela JF do Rio de Janeiro (JFRJ).

Em 2014, o suposto crime ocorreu pela solicitação e recebimento de aproximada-


mente R$ 300.000,00 do Grupo Odebrecht, a título de doação ilegal vinculada à cam-
panha para a reeleição de Pedro Paulo, então deputado federal. A “doação” ilegal teria
sido intermediada por Eduardo Paes, conforme delação de Benedicto Júnior, diretor

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
207

da Odebrecht. Assim, estaria caracterizado o crime do art.  350 do CE. Ao final, pro-
pugnou que este delito deveria permanecer no STF e em razão do foro privilegiado de
Pedro Teixeira.

 Diante desse quadro fático, o STF decidiu, nos termos do voto do Relator, acom-
panhado pelos Ministros Alexandre de Moraes, Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso
de Mello e Dias Toffoli (Presidente), manteve sua jurisprudência e deu parcial provi-
mento ao agravo interposto pelos investigados para: i) no tocante ao fato ocorrido em
2014, assentar a competência do STF; e ii) quanto aos delitos supostamente cometidos
em 2010 e 2012, declinar da competência para a TERJ.

Os fundamentos para tal decisão foram que


tendo em vista o suposto cometimento de crime eleitoral e delitos comuns conexos,
considerado o princípio da especialidade, tem-se caracterizada a competência da
Justiça especializada, no que, nos termos dos artigos 35, inciso II, do CE e 78, inciso
IV, do CPP, por prevalecer sobre as demais, alcança os delitos de competência da
Justiça comum. Observem que a Constituição Federal, no artigo 109, inciso IV, ao es-
tipular a competência criminal da Justiça Federal, ressalva, expressamente, os casos
da competência da Eleitoral.

O relator fundamentou, ainda, alegando a ressalva prevista no artigo 109, inciso


IV da CRFB/88 em uma interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais,
que indica a impossibilidade do desmembramento das investigações no tocante aos
delitos comuns e eleitoral, pois a competência da Justiça comum, federal ou estadual,
é residual quanto à Justiça especializada – seja eleitoral ou militar.

Em sede doutrinário, sustentam a posição do relator no sentido de que a regra


infraconstitucional de conexão deva ser aplicada indistintamente, mesmo em casos en-
volvendo competências com sede constitucional, defendem Suzana de Camargo Go-
mes (2010) e de Guilherme de Souza Nucci (2016), além do precedente do STF firmado
no julgamento do Conflito de Competência nº 7.033, no qual se firmou que 
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. JU-
RISDIÇÃO. COMPETÊNCIA. CONFLITO. JUSTIÇA ELEITORAL. JUSTIÇA FEDE-
RAL. CRIME ELEITORAL E CRIMES CONEXOS. ILÍCITOS ELEITORAIS: APURA-
ÇÃO PARA DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE (ART. 22, INC. XIV, DA LEI
COMPLEMENTAR Nº 64, de 18.05.1990). CONFLITO INEXISTENTE. “HABEAS
CORPUS” DE OFÍCIO. 1. Não há conflito de jurisdição ou de competência entre
o Tribunal Superior Eleitoral, de um lado, e o Tribunal Regional Federal, de outro,
se, no primeiro, está em andamento Recurso Especial contra acórdão de Tribunal
Regional Eleitoral, que determinou investigação judicial para apuração de ilícitos
eleitorais previstos no art. 22 da Lei de Inelegibilidades; e, no segundo, isto é, no
T.R.F., foi proferido acórdão denegatório de “Habeas Corpus” e confirmatório da
competência da Justiça Federal, para processar ação penal por crimes eleitorais e
conexos. 2. Sobretudo, em se verificando que tais julgados trataram de questões, de
partes e de finalidades inteiramente distintas. 3. É caso, pois, de não se conhecer do
Conflito, por inexistente. 4. Em se verificando, porém, que há processo penal, em
andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de
se conceder “Habeas Corpus”, de ofício, para sua anulação, a partir da denúncia
Capítulo 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
208

oferecida pelo Ministério Público federal, e encaminhamento dos autos respectivos à


Justiça Eleitoral de 1ª instância, a fim de que o Ministério Público, oficiando perante
esta, requeira o que lhe parecer de direito. 5. Conflito de Competência não conheci-
do. “Habeas Corpus” concedido de ofício, para tais fins. Tudo nos termos do voto do
Relator. Decisão unânime do Plenário do S.T.F. (CC 7033, Relator(a): SYDNEY SAN-
CHES, Tribunal Pleno, julgado em 02/10/1996, DJ 29-11-1996 PP-47156  EMENT
VOL-01852-01 PP-00116)

Os demais ministros, que divergiram, fundamentaram suas reflexões no Art. 79,


inc. I do CP, segundo o qual a conexão e a continência importarão unidade de processo
e julgamento, salvo o concurso entre a jurisdição comum e a militar. Para tanto, utili-
zou-se o método histórico de interpretação para afirmar que, quando editado o CPP, a
Constituição então vigente não previa a Justiça Eleitoral direta e especificamente como
órgão do Poder Judiciário, tão somente a Justiça Militar. Caso já fosse prevista a JE na
Constituição, a regra aplicável à JM seria a ela estendida. 

Outro ponto suscitado é que a competência da JF é prevista diretamente pela


CRFB/88, enquanto a competência da JE e as regras de conexão são dispostas em legis-
lação infraconstitucional. Ademais, quanto aos crimes políticos e as infrações penais
praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades
autárquicas ou empresas públicas, o inc. IV do art. 109 da CRFB/88 prevê a ressalva da
Competência da JE, mas isto não ocorre no caso da competência para processamento
e julgamento dos crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira,
prevista no inc. VI do art. 109 da Constituição Federal.

Por concluírem que não houve relação dos ilícitos ao mandato de deputado fe-
deral de Pedro Teixeira e afastando o foro por prerrogativa de função, os ministros di-
vergentes requereram a cisão do processamento dos crimes, devendo a JERJ processar
e julgar apenas as apurações relacionadas aos crimes de falsidade ideológica eleitoral,
sendo os demais delitos (crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de
capitais e evasão de divisas)  direcionados a uma das varas criminais da Seção Judi-
ciária da JF do Rio de Janeiro. Os demais crimes comuns (crimes de corrupção ativa,
corrupção passiva ) seriam atraídos para a Justiça Federal  porque conexos aos crimes
contra o Sistema Financeiro (evasão de divisas), em atenção à regra de prorrogação de
competência do art. 78, inciso IV, do CPP, segundo o qual, “no concurso entre a juris-
dição comum e a especial, prevalecerá esta”.

Doutrinariamente, adotam essa posição os seguintes autores: Gustavo Henrique


Badaró (2016), Renato Brasileiro de Lima (2016), Fernando Capez e Rodrigo Conalgo
(2015) e Marco Antonio Marques da Silve e Jayme Walmer de Freitas (2012). Também
é possível notar esse raciocínio na seguinte jurisprudência do STF: 
(…) 4. Competência da Justiça Federal definida na Constituição, não cabendo a lei
ordinária e, menos ainda, a medida provisória sobre ela dispor. Deferida a liminar

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
209

quanto ao art. 24. (…) (ADI 2473 MC, Rel. Min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, DJ
de 7.11.2003); (...) somente regra expressa da Lei Magna da República, prevendo foro
especial por prerrogativa de função, para autoridade estadual, nos crimes comuns e
de responsabilidade, pode afastar a incidência do art. 5º, XXXVIII, d, da CF, quanto
à competência do júri. Em se tratando, portanto, de crimes dolosos contra a vida, os
procuradores do Estado da Paraíba hão de ser processados e julgados pelo júri. (HC
78.168, Rel. Min. Néri da Silveira, 1ª Turma, DJ de 29.8.2003)

15.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, nota-se que principal divergência entre a prorrogação de


competência da JE para julgamento de crimes comuns quando praticados em conexão
a crimes eleitorais encontra óbice quando a Constituição Federal prevê competência
específica para outra justiça diante da prática de crimes específicos, como a competên-
cia do Tribunal do Júri para julgamento de crime doloso contra a vida, a competência
da JM para processar e julgar crimes militares ou mesmo a competência da JF para
julgar determinados tipos de crimes que a CRFB/88 não ressalvou, expressamente, a
competência para seu processamento pela JE.

A solução vencedora se justifica por uma interpretação sistemática das normas


constitucionais, que deixam explícitas a intenção do legislador constituinte quanto à
força do princípio da especialidade para atração do processamento e julgamento de
crimes de qualidades diversas. Assim, o STF firmou entendimento de que, havendo
crimes eleitorais conexos com crimes comuns, mesmo que estes sejam de competência
da JF, caberá a JE processá-los e julgá-los, com base no art. 35, II, do CE c/c art. 76 do
CPP, uma vez que a própria CRFB/88 delegou à Lei Complementar a fixação da com-
petência da JE.

REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016

CAPEZ, Fernando; CONALGO, Rodrigo. Código de Processo Penal comentado. São


Paulo: Saraiva, 2015.

DIDIER JR., Fredie; Curso de direito processual civil. 7. ed. rev., ampl. e atual. Salva-
dor: Ed. JusPodivm. 2017. 

GOMES, José Jairo. Crimes e processo penal eleitorais. São Paulo: Atlas, 2015.

GOMES, Suzana de Camargo. Crimes eleitorais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. REIS, Alexandre Cebrian Araújo Reis. Direito
processual penal esquematizado. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

Capítulo 15
SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA JULGAMENTO: DOS CRIMES COMUNS CONEXOS AOS CRIMES
ELEITORAIS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
210

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4ª ed. Salva-
dor: JusPodivm, 2016.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação,
2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Pena Comentado. 15ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O direito constitucional à jurisdição. In: TEIXEI-


RA, Sálvio de Figueiredo. As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993.

SILVA, Marco Antonio Marques da; FREITAS, Jayme Walmer de. Código de Processo
Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2012.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 61ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2020.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva,
2013. 

BRASIL. STF. Questão de Ordem no Ação Penal n. 937-RJ. Rel. Min. Roberto Barroso.
STF. Plenário. Julgado em 3.5.2018. publicado no DJ em 11.12.2018.

Gabriel de Oliveira Cavalcanti Neto


CAPÍTULO 16

TRABALHO INFANTIL: A TRISTE REALIDADE


QUE PERDURA NO TEMPO

Áurea Maria Nunes Machado Farias1


João Roberto Martins Cardoso2

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.16

1 Pós-Graduada em Direito, Judiciário e Magistratura do Trabalho pela ESMATRA-6, e em Didática em Ensino


Superior, também pela ESMATRA-6. Advogada.
2  Professor de Direito do Trabalho e Empresarial na FACET - Faculdade de Ciências de Timbaúba/PE. Pós-graduado
em direito civil e empresarial pela faculdade Damásio de Jesus. Pós-graduado em Poder Judiciário e Magistratura do
Trabalho pela Esmatra (TRT6). Advogado.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
212

RESUMO

O trabalho em análise tem como escopo principal trazer à baila a triste reali-
dade que por décadas estar presente no Brasil apesar das relevantes mu-
danças socioeconômicas. Essa mazela se desenvolve nos setores domésticos, artístico,
agrícola e na exploração sexual que, hoje, sustenta a prosperidade econômica no país.
Para isso, fez-se necessário um breve introito na história do Brasil apontando que des-
de os tempos remotos o país já era maculado com essa prática repugnante, em seguida,
foi realizado o estudo da legislação que proíbe esse tipo de trabalho, porém apesar de
possuir leis severas para quem explora esse tipo de trabalho não existe punição. Em
continuidade, adentramos nos direitos e garantias fundamentais da criança fazendo
uma correlação com o trabalho do menor mostrando suas diferenças, peculiaridades,
enfim, fazendo um paralelo entre o trabalho infantil e o trabalho do menor. Por fim, faz
a distinção entre criança e adolescente trazendo à discussão o instituto da capacidade
laboral e dos direitos humanos. Conclui-se afirmando que a educação é a solução para
dirimir a questão do trabalho infantil, além disso, o respeito à dignidade da pessoa, o
respeito e a fiel aplicação à legislação que trata do instituto e da sua sanção para aquele
que infringe tal dispositivo, ou seja, tem que haver uma conscientização daqueles que
faz uso de mão de obra humana deixar de valorar ganhos matérias em detrimento da
exploração das crianças, pois aquele que se utiliza do trabalho infantil sabe que está
infringindo a lei além de macular um ser em desenvolvimento educacional, cultural,
emocional.
Palavras-Chaves: Trabalho Infantil. Exploração. Direitos Humanos. Legislação.

16.1 INTRODUÇÃO: A DESCOBERTA DO BRASIL

O Brasil foi descoberto na fase das grandes navegações portuguesas que esses
vinham em busca de explorar novas terras em busca de riquezas.

Daremos ênfase ao trabalho escravo que a princípio a mão de obra era extraída do
trabalho indígena, pois eles já haviam colaborado com a extração do pau-brasil, logo,
o colonizador julgava que isso poderia se repetir com o trabalho agrícola. Entretanto,
os índios não se submeteram facilmente às condições exigidas pela nova atividade,
uma vez que, a extração do pau-brasil podia ser realizada de forma esporádica e livre
e, o mesmo não acontecia no setor agrícola, que exigia trabalho sistemático, disciplina,
organização.

Nesse contexto, começou a escravização dos índios, porém por uma série de cir-
cunstâncias, a escravidão africana acabou se impondo como solução para o problema
da mão-de-obra. O escravo era considerado por muitos como simples mercadoria. Eles
eram submetidos a trabalhos duros e castigos severos motivo pelo qual a vida útil de
Áurea Maria Nunes Machado Farias
João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
213

um escravo adulto nas plantações era de no máximo 10 (dez) anos o que ensejava a
substituição desde cedo de seus filhos muitos ainda em idade de desenvolvimento.

Hoje, a triste realidade não é muito diferente dos tempos de outrora, pois temos
crianças livres, porém presas por um sistema político onde as riquezas são designadas
única e exclusivamente nas mãos daqueles que já as possuem, são presas pelas desi-
gualdades sociais bastante visíveis por qualquer cidadão que se permita olhar para o
lado e vê o quão gritante é a situação, pois ela clama por mudanças e não precisa ter
sensibilidade para ouvir seu clamor.
Crianças e jovens são obrigados a trabalhar por várias razões, sendo a pobreza a
principal delas. Muitos governos, ao enfrentar crises econômicas, não dão priorida-
de às áreas que poderiam ajudar a aliviar as dificuldades enfrentadas por famílias
de baixa renda: não priorizam saúde, educação, moradia, saneamento básico, pro-
gramas de geração de renda, treinamento profissional, entre outros. Para essas fa-
mílias, a vida se torna uma luta diária pela sobrevivência. As crianças são forçadas a
assumir responsabilidades, ajudando em casa para que os pais possam trabalhar, ou
indo elas mesmas trabalhar para ganhar dinheiro e complementar a renda familiar
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2007, p. 11).

Frise-se que o trabalho infantil não é um problema da invenção do mundo mo-


derno, Com certeza as revoluções burguesas e tecnológicas, os descobrimentos, deram
proporção gigantesca ao aumento desenfreado na procura dessa mão-de-obra.

16.2 LEGISLAÇÃO INIBIDORA DA CONTRATAÇÃO: SERÁ EFICAZ


OU APENAS UMA LEI MORTA?

No desenvolvimento dessa missiva, se busca demonstrar que a efetiva erradi-


cação do trabalho infantil é uma tarefa espinhosa e, aparentemente, distante para o
Estado e para a sociedade, sem políticas públicas efetivas nesse sentido. Historicamen-
te, o Brasil, desde a constituição de 1934, proíbe a execução do trabalho de parte de
menores. Todas as constituições seguem a tendência de manutenção dessa regra. No
Brasil há o mito, principalmente da classe mais pobre, de que o trabalho infantil serve
para evitar a ociosidade e que isso evitaria a marginalização de meninos e meninas
(CUSTÓDIO, 2002, p. 34). Considera-se trabalho infantil, toda atividade útil, executa-
da regularmente, por crianças e adolescentes menores de 16 anos, normalmente com
salário e remuneração, salvo a condição de aprendiz. Assim é o que dispõe o artigo 403
da Consolidação das Leis Trabalhistas, vejamos:
É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condi-
ção de aprendiz, a partir dos quatorze anos.

A Constituição de 1988 estabelece em seu artigo 7ª, inciso XXXIII que:


São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melho-
ria de sua condição social:

Capítulo 16
TRABALHO INFANTIL: A TRISTE REALIDADE QUE PERDURA NO TEMPO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
214

Proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de


qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a
partir de quatorze anos.

Com o fiel cumprimento desses dispositivos não estaríamos nas infelizes estatís-
ticas que só fazem macular ainda mais o cenário do país, não estaríamos contaminados
com essa cólera que tira o quão mais precioso que a criança carrega: sua inocência.
Corroborando, ainda, com os artigos já mencionados temos o art. 405 da CLT que traz
em seu bojo várias restrições ao trabalho do menor.
O conceito de trabalho infantil (precoce) é o que melhor expressa a proibição do
trabalho infanto-juvenil entendido como todo trabalho realizado por criança ou
adolescente com idades inferiores aos determinados pela legislação (CUSTÓDIO,
VERONESE, 2007, p. 125).

Conforme legislação obreira do menor verificamos que o legislador se ateve não


só a fixação do trabalho desenvolvido pelo menor, note que esses trabalhos “permiti-
dos” são para aqueles com idade entre quatorze e dezoito anos (estabelecido na CLT),
ou seja, abaixo de quatorze anos qualquer trabalho é terminantemente vedado. Bem,
o legislador preocupou-se com a formação moral do menor, logo, esses trabalhos são
permitidos, desde que não afetem sua moralidade não corrompa sua dignidade não
prejudique seu desenvolvimento intelectual e, inclusive seu desenvolvimento físico.

O problema é muito mais profundo, pois estamos enfaticamente falando do me-


nor com idade abaixo de quatorze anos, ou seja, daquele menor não amparado pela
Consolidação das Leis Trabalhistas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) es-
tatui em seu art. 2°, como criança, “... toda pessoa de zero aos 12 anos de idade incom-
pletos e, adolescente aquela pessoa de 12 até 18 anos de idade...”, proibindo qualquer
forma de trabalho às crianças com menos de 14 anos.

O uso da mão de obra infantil não é considerado uma “novidade” como já de-
monstrado, pois crianças trabalhavam para ajudar suas famílias a fim de se evitar ao
menos a fome.

Com efeito, o Código Penal em seu artigo 149 pune aquele que reduz alguém a
condição análoga à de escravo, vejamos:
Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-a a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-a a condições degradantes de tra-
balho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto.”
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.

Áurea Maria Nunes Machado Farias


João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
215

Nesse mesmo artigo em seu parágrafo 2º inciso I impõe um aumento de pena


para aquele que comete tal crime contra criança ou adolescente, assim dispõe que a
pena é aumentada de ½ (metade), se o crime é cometido contra criança ou adolescente.

Percebemos, não obstante o disposto na Constituição Federal e na legislação es-


pecífica, milhares de crianças e adolescentes são explorados todos os dias, nas mais
diversas localidades do País. Logo, apesar de existir toda uma coletânea de leis que
são capazes de proteger as crianças contra todo e qualquer tipo de abuso não é comum
vermos nos noticiários que alguém está sendo punido por tal prática, isso é revoltante.
Os movimentos sociais inscreveram a particularidade do infanto-juvenil desde as
lutas da classe operária inglesa pela regulamentação da jornada de trabalho (Marx,
1991; Thompson, 1987), passando pelas convenções da Organização Internacional
do Trabalho (OIT). No Brasil, o marco conceitual e jurídico ‘sujeito de direitos’ sin-
tetiza essa trajetória. Na concretude da vida, entretanto, a impunidade ou a precária
consistência das estratégias punitivas constituem mostra inconteste da força do ca-
pital sobre o marco regulatório (FONSECA, 2010).

Em vista de todo elencado, percebemos o quão as leis estão um tanto mortas, pois
sua existência não transcende de simples transcrições nos papéis. A legislação não tem
eficácia esperada ao caso concreto, ou seja, não atende ao objetivo pelo qual foi criada.

16.3 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA

Inicialmente, acerca da terminologia das faixas etárias das pessoas que não atin-
giram a maior idade, temos que:
a utilização do termo criança e adolescente não decorre do mero acaso ou adesão à
terminologia internacionalmente empregada. A conotação dada à palavra “menor”
como “menor de rua”, “menor abandonado”, “menor carente”, revelou a chamada
“menorização”, que se quer justamente combater, outorgando-se a todas as pessoas
em desenvolvimento físico e mental, independentemente de sua condição social, a
proteção integral, sem desconsiderar seus anseios e perspectivas de atuação para
satisfazê-los. (FONSECA, 1995, p. 93).

A criança possui todos os direitos sociais, todos direitos inerentes à dignidade da


pessoa humana. É dever do Estado, da sociedade, dos pais e/ou representantes legais
assegurar-lhes todas as oportunidades e facilidades para que a criança se desenvolva
de maneira sadia, harmoniosa, prazerosa, enfim, para que seja um adulto de boa for-
mação. Vejamos o que dispõe o artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e o artigo 3º
do Estatuto da Criança e Adolescente, respectivamente.
Art. 6º, CF/88: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 3º, ECA: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais ine-
rentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, as-
segurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidade e facilidades,
a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade.

Capítulo 16
TRABALHO INFANTIL: A TRISTE REALIDADE QUE PERDURA NO TEMPO
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
216

Detentores do saber dos direitos e garantias da criança adentraremos de modo


mais minucioso acerca do trabalho do menor. Longo foi o caminho percorrido para se
chegar à legislação tutelar a respeito do menor cujas razões para sua implementação
são de cunho higiênico e fisiológico. A ação internacional foi de grande influência para
a legislação do menor, pois a OIT vem adotando desde suas primeiras atuações sejam
em assembleias, convenções, medidas sobre o trabalho do menor incorporando à legis-
lação interna dos Estados-membros.

16.4 CONCLUSÃO

O trabalho infantil é, ainda, uma triste realidade. Onde, primeiramente, para mu-
dar essa dura realidade precisa-se de uma forte reforma política, moral e cultural.

Importante é diferenciar o trabalho do menor do trabalho infantil. Trabalho In-


fantil é crime e não traz nenhum benefício à criança ao contrário traz prejuízos carrega-
dos por toda a vida. O trabalho do menor veio através da flexibilização constitucional
cujo objetivo foi tutelar essa mão-de-obra trazendo a baila noções de moralidade, hi-
giene, lazer, educação, proteção. Logo, incontroverso é o dano causado às crianças que
são submetidas ao trabalho sem qualquer respeito à dignidade da criança que todos
dizem ser “o futuro da nação”, são submetidas a condições degradantes, a condição
impossível de se imaginar ser suportado por uma criança.

Percebemos, por fim, que só existirá uma mudança se primeiro existir absolu-
tamente o animus de mudar e para que isso aconteça tem-se que abdicar de legados
deixados por nossos antecedentes históricos, abdicar de uma cultura maculada pela
ostentação de bens materiais, enfim por todo tipo mazelas social. Nossas crianças só
deixarão de serem exploradas se cada um de nós como seres integrantes de uma so-
ciedade der sua contribuição com o único objetivo de sanar o mal dos séculos e assim
partiremos para pensar numa ideologia de vida.

REFERÊNCIAIS
CUSTÓDIO, André Viana. O trabalho da criança e do adolescente no Brasil: uma
análise de sua dimensão sócio-jurídica. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso
de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2002.

CUSTÓDIO, André Viana; VERONESE, Josiane Rose Petry. Trabalho Infantil: a ne-
gação de ser criança e adolescente no Brasil. Santa Catarina: OAB/SC Editora, 2007.

FONSECA, Laura Souza. Trabalho infanto-juvenil e formação humana: limites na po-


tência ontológica e banalização do sujeito de direitos. Trab. educ. saúde, v. 8 n.1, Rio
de Janeiro, mar./jun. 2010.

Áurea Maria Nunes Machado Farias


João Roberto Martins Cardoso
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
217

FONSECA, Ricardo Tadeu. A proteção ao trabalho da criança e do adolescente no


Brasil: o direito à profissionalização. Dissertação (Mestrado em Direito). São Paulo:
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1995, 247 f.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Secretaria Internacional do


Trabalho. Piores formas de trabalho Infantil. Um guia para jornalistas. Brasília: OIT,
Agência de Notícias dos Direitos da Infância – ANDI, 2007, 120 p.

Capítulo 16
TRABALHO INFANTIL: A TRISTE REALIDADE QUE PERDURA NO TEMPO
218
CAPÍTULO 17

A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE


CRÍTICA NO CONTEXTO DA REFORMA
TRABALHISTA (LEI º 13.467/17)

Renata Esteves Seabra e Silva1

DOI: 10.46898/rfb.9786558890461.17

1 Gestora educacional na UNOPAR, Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Estácio
em parceria com CERS. Pós-graduanda em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal de Pernambuco.
Advogada.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
220

RESUMO

A terceirização cresceu ao longo dos anos de forma desenfreada na sociedade


e fez surgir a necessidade de um acompanhamento da legislação, dessa for-
ma faz-se importante seu estudo. Este capítulo tem por escopo analisar as novas pers-
pectivas da Terceirização após o advento da reforma trabalhista, Lei n. 13.467/2017,
trazendo a evolução histórica e identificar as principais mudanças após sua regulação.
Por fim, é necessária a reflexão dos benefícios e malefícios desta lei.
Palavras-chave: Terceirização; Origem; Crescimento; Legislação; Pejotização.

17.1 INTRODUÇÃO

A terceirização surgiu na Segunda Guerra Mundial, momento em que as em-


presas dos Estados Unidos precisaram concentrar-se na produção de armamentos
para atender a demanda existente. Com este intuito, passaram a focar na atividade
principal e delegaram as atividades secundárias a empresas prestadoras de serviço,
como parte de melhoria do processo e técnica de gestão administrativa e operacio-
nal das empresas. Neste sentido, os resultados ficam mais evidentes sendo conhecido
como outsourcing, ou terceirização.

Ademais, em 1980 com a internacionalização das empresas multinacionais, o


conceito passou a ser difundido, trazendo mudança nas empresas. Pois, cada vez mais,
os clientes se tornavam o centro das atenções exigindo que as empresas conhecessem
seu perfil.

Outrossim, no Brasil o processo de terceirização não foi diferente, foi implantado


de forma gradativa devido à vinda das primeiras empresas de grande porte e multi-
nacionais. Preliminarmente, a prática era conhecida como contratação de serviços de
terceiros com o objetivo de reduzir o custo de mão-de-obra, contratar terceiros para
trabalhar e ter acréscimo de qualidade, eficiência, especialização, eficácia e produtivi-
dade da atividade principal da empresa e os itens acessórios ficariam para por conta
da empresa terceirizada.

Logo, a terceirização pode ser entendida como transferência de certas atividades


periféricas do tomador de serviços, passando a ser exercidas por empresas distintas e
especializadas.

17.2 A TERCEIRIZAÇÃO E AS MODIFICAÇÕES NAS RELAÇÕES DE


TRABALHO

Na ótica do direito do trabalho verifica-se o trabalhador prestando serviços ao


tomador, mas possuindo relação jurídica distinta do vínculo trabalhista. E, assim, a

Renata Esteves Seabra e Silva


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
221

relação passa a ser triangular ou trilateral, posto que na terceirização o empregado da


empresa prestadora executa serviços para o tomador.

Segundo Antonio J. Capuzzi e Joice Souza Bezerra:


O instituto de terceirização permite que se transfira a terceiro, atividades reconhe-
cidamente genéricas, secundárias, acessórias ou de suporte ao empreendimento,
de forma a permitir que a empresa envide esforços e concentre atenção naquelas
atividades centrais ou principais vertidas em seu objetivo social. O trabalhador é
inserido na linha produtiva daquele que se estendam a ele os laços trabalhistas que
o vinculam à entidade que age como interveniente. (BEZERRA, p. 9, 2017)

De acordo com Raphael Miziara e Iuri Pinheiro, após a Segunda Guerra Mundial
ocorreu uma expansão econômica que ficou conhecida como o boom econômico ou
Era de Ouro do capitalismo. Esse período foi marcado pela prosperidade econômica
em meados do século XX e as economias dos países capitalistas industrializados se
deram perfeitamente bem, porque pela primeira vez passava a existir uma economia
de consumo de massas. Nessa época também ocorreu um furor lucrativo até então ra-
ramente visto, era natural que a indústria das multinacionais se transferisse para locais
de mão de obra barata (PINHEIRO, 2017).

Porém, o otimismo diminuiu na década de 1970, pois a Era do Ouro começa a dar
sinais de desordem. Devido ao chamado ‘’superaquecimento da economia’’. Logo, ela
termina com o colapso, produzindo uma imensa recessão. Nesse momento, o neolibe-
ralismo começa a se instaurar.

Conforme lembra Eric Hobsbawn, a Era de Ouro perdeu o seu brilho, uma era
chegava ao fim (HOBSBAWM, 1995). Enquanto isso, o mundo ocidental voltou suas
atenções para os elevados índices de produtividade que vinham sendo conquistados
pelo Japão com uma nova organização da produção, e começou a buscar cada vez mais
alternativas em relação ao modelo então predominante, o taylorista-fordista. Surge a
linha de montagem, produção em série.

Segundo Gustavo Filipe Barbosa Garcia e Rúbia Zanotelli de Alvarenga o fordis-


mo fundava-se em padrão verticalizado de produção, valendo dizer, a maior parte das
atividades necessárias para obtenção do produto final era realizada dentro da própria
empresa (ALVARENGA, 1992).

Enquanto que o toyotismo adotou padrão horizontal de produção, ou seja, as


empresas deixaram de lado os detalhes de produção em relação às matérias-primas ou
itens utilizados, transferindo tais atividades aos seus fornecedores. Por conseguinte,
criou-se uma rede de produtores e fornecedores, mediante delegação a terceiros da
responsabilidade pela produção de um ou mais itens necessários à obtenção do pro-
duto final.
Capítulo 17
A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA NO CONTEXTO DA REFORMA TRABALHISTA (LEI º 13.467/17)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
222

Essa nova realidade, provocou questionamentos acerca das formas de adminis-


tração empresarial até então existentes, cenário em que a terceirização surge como
maneira de compartilhar a eficácia econômica, com novos métodos de gestão de mão
de obra, combinadas com as inúmeras inovações tecnológicas.

É importante destacar desde logo a importância atual do mercado de trabalho


da Europa, destacando-se, ainda, que, estudos publicados pela Organização Interna-
cional do Trabalho, revelam que a tendência mundial atual aponta para um menor
número de empregos fixos.

17.3 MODIFICAÇÕES LEGISLATIVAS E TERCEIRIZAÇÃO NO


BRASIL

Nessa vereda, o Poder Executivo no dia 19 de março de 1998, então chefiado pelo
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, apresentou na Câmara dos Deputados, à
época presidida por Michel Temer, o PL n.4302 de 1998 com objetivo de modificar a
Lei n. 6019/74 que dispõe sobre o Trabalho Temporário nas Empresas Urbanas, e dá
outras Providências bem como dispor sobre as relações de trabalho na empresa de
prestação de serviços a terceiros.

A Lei n. 6019/74 foi o primeiro ensaio de Terceirização no Brasil, atualmente não


mais em vigor, a qual autorizava a contratação apenas por parte dos bancos da figura
do segurança, através de uma empresa de vigilância. Criou o chamado de trabalho
temporário, foi o primeiro instrumento legal no Brasil a autorizar a terceirização, mas,
somente em duas hipóteses: acréscimo extraordinário de serviço ou em casos de subs-
tituição de um colaborador regular e permanente.

Após certo período de tramitação foi apresenta pelo então Presidente Luís Iná-
cio Lula da Silva, a mensagem n. 389, cujo objeto era a retirada de pauta do Projeto de
Lei em referência.

A despeito disso, a tramitação do Projeto de Lei foi retomada em 26.11.2016 e, em


22.03.2017, culminou em sua aprovação no Plenário da Câmara dos Deputados com
seu consequente envio à sanção.

Dessa forma, a terceirização no Brasil ganha contornos legislativos mais espe-


cíficos, pois, até então, assunto era disciplinado basicamente pela Súmula nº 311 do C.
Tribunal Superior do Trabalho.

O TST é claro ao diferenciar a terceirização da atividade fim da terceirização da


atividade meio, na súmula nº 331. De acordo com o seu entendimento, a terceirização
da atividade fim é ilegal. Entendeu o TST, através do item III da súmula em questão,

Renata Esteves Seabra e Silva


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
223

que é possível a terceirização das atividades meio, chamadas também de acessórias,


complementares ou secundárias (vigilância, limpeza, portaria, conservação, recepção,
etc.).

Ainda sobre a súmula nº 331, no caso de terceirização lícita (de atividade meio ou
trabalho temporário), se o tomador de serviços ou cliente for uma empresa particular
responderá de forma subsidiária. Enquanto que se o tomador de serviço ou cliente for
a administração pública responderá de forma subsidiária se ficar demonstrada a sua
culpa.

Em outras palavras, toda a relação trabalhista de trabalhadores terceirizados está


determinada tão somente por uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho, de nº
331. Na prática, a súmula carrega consigo muita força, uma vez que é comum que
juízes da vara do Trabalho e os tribunais regionais do Trabalho seguirem o entendi-
mento do TST. A partir de então, todos os órgãos de proteção ao Trabalho passaram a
trabalhar incansavelmente evitando a precarização das relações do Trabalho através
de terceirizações abusivas.

Em 1994, é proposto o Projeto de Lei nº 4430 que só foi aprovada pela Câmara dos
Deputados dez anos depois. A principal diferença entre o projeto de lei de 1994 para
a súmula nº 331 consiste na possibilidade de terceirização de qualquer atividade da
contratante, sem diferenciação entre atividade meio e fim. Infelizmente, vivemos em
um país com a maior carga tributária do mundo e, por isso, para muitas empresas esse
projeto de lei surge como uma possibilidade de reduzir os custos.

Durante a tramitação da PEC na Câmera dos Deputados, foi questionada a pos-


sibilidade da terceirização irrestrita também ser aplicada na Administração Pública.
Após uma votação acirrada na Câmara, a redação final afirma que “As disposições
desta Lei não se aplicam aos contratos de terceirização no âmbito da administração
pública direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios”.

Principalmente aos que se preparam para concursos públicos, a decisão foi um


ganho. Vale salientar que no texto não foi citada a Administração Pública indireta. O
que quer dizer que, se o Senado mantiver essa redação e houver a sanção presidencial,
será autorizada a terceirização na Administração Pública indireta, que envolve as em-
presas públicas e sociedades de economia mista. Isso entrará em choque com a regra
constitucional do artigo 37, inciso II da Constituição Federal, a qual afirma que as em-
presas públicas e sociedades de economia mista não estão livres de prestar concurso
público, além de favorecer a corrupção.

Capítulo 17
A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA NO CONTEXTO DA REFORMA TRABALHISTA (LEI º 13.467/17)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
224

Observa-se que as causas do aumento da terceirização no Brasil e no mundo têm


relação com a diminuição dos custos com funcionários. Afinal, para as empresas, sai
mais barato que parte de sua mão de obra seja contratada por terceiros, em vez de
mantê-los sob a sua tutela, o que eleva os gastos com direitos trabalhistas e eventuais
problemas de segurança do trabalho, como indenizações e outras questões.

O objetivo é gerar ganhos de eficiência que reduzam custos de produção. Isto é


possível porque a nova empresa, aquela que se dedica exclusivamente ao serviço ter-
ceirizado, torna-se mais eficiente e pode atender novos clientes com funcionários que
antes ficavam parcialmente ociosos. Especialização e escala geram eficiência e desen-
volvimento.

O propósito principal da medida é claramente contribuir para redução de custos


com a força de trabalho e a descaracterização e externalização das relações e conflitos
trabalhistas e previdenciários no âmbito legal.

Entretanto, conforme analisa Gustavo Filipe Barbosa Garcia e Rúbia Zanotelli


de Alvarenga a finalidade primordial da terceirização não reside apenas na busca da
redução de custos de produção, mas, na possibilidade de tornar a empresa flexível e
competitiva no mercado, transferindo-se para terceiros a execução de atividades se-
cundárias ou acessórias e permitindo que a empresa passasse a concentrar todos os
seus esforços no desenvolvimento de sua atividade principal com o objetivo de colher
melhores resultados (ALVARENGA, 2017).

A terceirização que se expressou, em 1993, na revisão do Enunciado 256 pela


Súmula 331. Desta forma, é de fundamental importância a análise de todos os seus
elementos extrínsecos e intrínsecos.

O referido instrumento normativo assim estabelece:


I. A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o
vínculo diretamente com o tomador de serviços salvo no caso de trabalho temporá-
rio (Lei n. 6.019, de 3.1.1974).
II. A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera
vínculo de emprego com os Órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou
Fundacional (art. 37, II, da Constituição da República).
III. Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vi-
gilância (Lei 7.102, de 20.6.1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços
especializados ligados à atividade – meio do tomador dos serviços, desde que ine-
xista a pessoalidade e a subordinação direta.
IV. O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, impli-
ca na responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, quanto àquelas obriga-
ções, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fun-
dações públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado
da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei
8.666/93). (Alterado pela Res. N. 96, de 11.9.2000, DJ 29.9.2000)

Renata Esteves Seabra e Silva


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
225

Por conseguinte, surge a Lei nº 13.429/2017 que trouxe algumas modificações,


agora a atividade fim pode ser terceirizada. Terá os mesmos direitos do trabalhador,
diferença que não haverá uma equiparação com a empresa, por exemplo, um hospital
o quadro de funcionários fixo tem um plano de saúde a terceirizada que entrar não
terá esse direito extensivo, ou seja, os terceirizados não tem os mesmos benefícios do
contrato direto.

Nesse sentido, a empresa contratante não tem os gastos de admissão e demissão


ela paga um preço fixo pelo trabalho. O terceirizado pode ser sindicalizado, mas em
um único sindicato chamado prestador de serviços.

Ao analisar comparativamente a Súmula 331 do TST e a Lei nº 13.429/2017, se-


gundo Antônio J. Capuzzi e Joice Souza Bezerra, observa-se a alteração dos disposi-
tivos e, o mais grave, acrescenta dispositivos danosos ao labor acerca das relações de
trabalho nas empresas de prestação de serviços a terceiros (BEZERRA, 2017).

Por outro lado, há a possibilidade de aumentar o emprego, pois como a empre-


sa terceirizada tem responsabilidade sobre os trabalhadores muitos estabelecimentos
preferem contratar os terceirizados.

Sendo assim, o trabalhador é pessoa física contratada pelo regime da CLT pela
empresa de trabalho temporário que deve ser pessoa jurídica. Essa empresa contrata
pessoal para deixá-los à disposição das empresas tomadoras de serviços, que podem
ser tanto pessoas físicas quanto pessoa jurídicas.

Ademais, algumas mudanças como terceirizado poder ser contratado para ati-
vidade fim e não apenas atividade meio como antes, outrossim, trabalho temporário
mudou de 60 dias para 180 dias com a possibilidade de prorrogação de mais 90 dias.
Responsabilidade subsidiária (complementar), empresa contratante é acionada. INSS
mantida retenção de 11% para garantir o recolhimento do INSS. Higiene, salubridade
e segurança no trabalho.

17.4 CONCLUSÕES

É notório que há impacto econômico e social da Nova Lei de terceirização. Desa-


parece, por exemplo, a obrigação de que a empresa que encomende trabalho terceiri-
zado fiscalize regularmente se a firma que contratou está cumprindo obrigações tra-
balhistas e previdenciárias. Desaparecem também, restrições à chamada pejotização,
que é a mudança da contratação direta, com carteira assinada, pela contratação de um
empregado nos moldes da contratação de uma empresa (pessoa jurídica) prestadora
de serviços.

Capítulo 17
A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA NO CONTEXTO DA REFORMA TRABALHISTA (LEI º 13.467/17)
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
226

Essa nova lei de terceirização trouxe mudanças que impactaram a Justiça Tra-
balhista, críticos apontam que terceirizados trabalham em média três horas a mais
por semana que os contratados diretos, ao mesmo tempo em que ganham salários
em média 25% menores, segundo ratifica o estudo feito pela CUT (Central Única dos
Trabalhadores) e o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioe-
conômicos).

Todavia, o deputado Laércio Oliveira (SD-SE), relator da proposta na Câmara,


contesta o argumento de que a terceirização promove uma precarização das condições
de trabalho. Segundo ele, o objetivo dela é permitir que companhias contratem servi-
ços de empresas especializadas em determinadas atividades, aumentando a eficiência
da produção. Isso, segundo ele, vai melhorar o desempenho delas, possibilitando a
geração de mais empregos. Terceirização não é precarização, é eficiência. Precarização
é falta de emprego. Situação que o país vive hoje por uma legislação ultrapassada. Isso
que é precarização, afirma Oliveira (1996).

Ante o exposto, observa-se a origem histórica e toda a evolução da terceirização


na esfera legislativa até o presente. É importante fazer essa análise para constatar os
benefícios e malefícios dessas mudanças e se de fato ocorreu uma precarização o que
pode ser feito para melhorar o quadro atual.

REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Gustavo Filipe Barbosa Garcia e Rúbia Zanotelli de. Terceirização de
serviços e direitos sociais trabalhistas. São Paulo: Ltr, 2017.

BEZERRA, Antonio J Capuzzi e Joice de Souza. Terceirização: breves comentários so-


bre a reforma :a era da instabilidade. São Paulo: Spessotto Bauru, 2017.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991) [livro eletrônico].
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

OLIVEIRA, Paulo Antônio Fuck de. Terceirização como estratégica. Curitiba: Bate
byte, 1996.

PINHEIRO, Raphael Miziara e Iuri. A Regulamentação da Terceirização e o Novo


Regime do Trabalho Temporário:: comentários analíticos à lei n. 6.019/74. São Paulo:
Ltr, 2017.

Renata Esteves Seabra e Silva


DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
227

ÍNDICE REMISSIVO
A Fins 5

Adolescentes 89, 118, 123, 124, 136, 170, 213, 215 Fundamentais 4, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 34, 44,
49, 52, 53, 54, 55, 58, 66, 67, 85, 123, 178, 182,
Autonomia 36, 41, 43, 48, 65, 66, 67, 69, 71, 72, 78, 183, 187, 191, 192, 194, 195, 212, 215
79, 110, 171, 176, 183, 184, 185, 190, 194, 202,
203 G

B Gestão 13, 83, 96, 127

Brasil 7, 9, 86, 89, 90, 101, 103, 105, 107, 109, 111, I
113, 114, 115, 132, 148, 150, 162, 163, 165,
171, 176, 210, 219, 221, 223, 225 Idéia 17, 130
Indígenas 14, 15, 18, 20, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 32,
C
33
Caso 15, 18, 28, 29, 36, 41, 42, 44, 55, 59, 60, 68, 71, Interdisciplinares 4, 121
74, 75, 76, 77, 86, 87, 88, 91, 120, 121, 123,
125, 129, 131, 132, 133, 136, 137, 144, 145, J
148, 149, 150, 154, 155, 168, 169, 170, 173,
183, 184, 185, 186, 189, 190, 198, 202, 204, Jurídica 11, 22, 33, 36, 38, 39, 44, 53, 55, 58, 59, 65,
205, 206, 207, 208, 215, 223, 224 66, 68, 70, 71, 76, 79, 80, 86, 89, 90, 107, 114,
119, 120, 130, 144, 155, 157, 162, 163, 164,
Cidadãos 25, 28, 30, 31, 33, 42, 59, 107, 198, 203 168, 174, 184, 187, 188, 189, 191, 192, 193,
Civil 29, 36, 37, 38, 39, 41, 42, 49, 59, 65, 66, 68, 71, 194, 198, 216, 220, 225
72, 73, 80, 81, 90, 103, 106, 107, 117, 126, 135, Justiça 35, 51, 58, 63, 121, 128, 129, 130, 131, 132,
143, 161, 162, 163, 164, 165, 182, 183, 184, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 148,
194, 195, 201, 209, 210, 211 150, 162, 163, 181, 195, 198, 199, 200, 201,
Competência 31, 91, 97, 152, 153, 198, 199, 200, 202, 203, 205, 206, 207, 208, 226
201, 202, 204, 205, 207, 208, 209 Justiça 3, 7, 8, 57, 59, 61, 127, 129, 131, 133, 134,
Constitucionalismo 14, 15, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 135, 137, 139, 141, 197, 199, 201, 203, 205,
28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 48 207, 209
Constituição 14, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 29, 30, L
31, 32, 33, 36, 44, 52, 53, 55, 58, 60, 61, 75, 85,
86, 87, 92, 97, 98, 102, 103, 114, 118, 120, 123, Lei 84, 86, 89, 90, 91, 94, 96, 103, 104, 105, 106,
144, 150, 152, 153, 154, 155, 157, 158, 163, 107, 109, 110, 111, 114, 115, 119, 122, 123,
187, 189, 193, 194, 198, 199, 200, 201, 205, 124, 126, 132, 136, 144, 145, 147, 148, 149,
207, 208, 209, 213, 215, 223, 224 150, 155, 158, 159, 164, 168, 169, 170, 178,
198, 201, 203, 205, 206, 207, 209, 215, 220,
D 222, 223, 224, 225
Diálogos 4, 16 Lucrativos 85, 88, 89, 90, 92, 94, 97, 135
Dignidade 22, 26, 42, 52, 53, 54, 55, 86, 110, 118, M
119, 120, 123, 125, 129, 136, 212, 214, 215,
216 Mérito 8, 181
Direito 7, 51, 53, 55, 57, 59, 61, 83, 85, 87, 89, 91, Mulheres 15, 26, 102, 103, 104, 105, 106, 108, 109,
93, 95, 97, 99, 200, 207 110, 112, 113, 114, 115, 123, 144, 148, 149,
150
E
N
Educação 28, 52, 53, 54, 55, 85, 87, 88, 97, 106, 109,
118, 123, 150, 212, 213, 215, 216 Neoconstitucionalismo 14, 22, 26, 33, 34, 48, 49
F O
Federal 33, 36, 44, 51, 58, 61, 75, 84, 85, 86, 92, 97, Objeto 39, 42, 46, 48, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71,
98, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 111, 72, 73, 74, 76, 77, 78, 79, 80, 121, 130, 164,
112, 113, 114, 115, 120, 123, 137, 140, 144, 168, 169, 172, 178, 186, 193, 194, 198, 222
148, 150, 152, 153, 154, 155, 157, 158, 161,
162, 163, 165, 187, 189, 193, 194, 198, 199, Ordenamento 20, 22, 23, 25, 26, 47, 52, 53, 54, 59,
200, 202, 205, 207, 208, 209, 215, 216, 219, 61, 65, 66, 71, 76, 79, 102, 104, 106, 107, 108,
223 109, 111, 112, 113, 114, 118, 123, 124, 144,
DIREITOS FUNDAMENTAIS E JUSTIÇA: DIÁLOGOS INTER-
DISCIPLINARES
228

145, 152, 155, 182, 183, 184, 192, 194


Organizações 30, 88, 89, 95, 96, 98, 103, 106

Pessoa 22, 26, 42, 52, 53, 54, 60, 68, 73, 86, 89, 90,
107, 110, 118, 119, 120, 123, 125, 132, 144,
146, 147, 148, 149, 154, 155, 170, 171, 198,
199, 202, 204, 205, 212, 214, 215, 225
Poder 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 29, 30, 31, 34,
36, 41, 42, 43, 45, 55, 58, 59, 71, 72, 74, 77,
96, 104, 107, 108, 118, 119, 120, 124, 125, 144,
182, 190, 191, 194, 198, 225
Política 15, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 26, 27, 29, 31, 33,
37, 38, 39, 85, 86, 89, 94, 96, 103, 104, 105,
106, 107, 109, 110, 113, 114, 134, 175, 179,
216
Princípio 41, 42, 78, 80, 92, 103, 104, 107, 109, 110,
119, 120, 121, 123, 125, 129, 144, 145, 149,
153, 155, 156, 162, 182, 183, 184, 185, 186,
187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195,
199, 207, 209, 212
Prisão 8, 143, 145, 147, 149
Processo 7, 35, 37, 39, 41, 43, 45, 47, 49, 63, 65, 67,
69, 71, 73, 75, 77, 79, 81
Público 35, 55, 63, 65, 66, 73, 74, 77, 84, 85, 86, 87,
88, 89, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 102, 107,
108, 171, 181, 202, 206, 223

Regras 23, 32, 38, 41, 44, 60, 72, 74, 111, 125, 133,
156, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190,
191, 192, 198, 199, 203, 204, 208

Saúde 7, 8, 83, 85, 87, 89, 91, 93, 95, 97, 99, 167,
169, 171, 173, 175, 177, 179, 183, 185, 187,
189, 191, 193, 195
Serviços 31, 86, 87, 88, 89, 90, 92, 93, 94, 95, 97,
153, 168, 169, 170, 172, 174, 177, 200, 208,
220, 221, 222, 223, 224, 225, 226
Sociedade 15, 16, 20, 29, 31, 32, 33, 38, 53, 60, 65,
67, 84, 85, 87, 90, 98, 102, 103, 106, 107, 110,
113, 118, 119, 120, 123, 128, 129, 130, 132,
133, 134, 135, 136, 138, 149, 169, 171, 213,
215, 216, 220

Vida 15, 16, 19, 43, 54, 58, 65, 67, 86, 118, 119, 120,
121, 122, 124, 125, 136, 144, 154, 155, 163,
201, 202, 205, 209, 212, 213, 215, 216

Você também pode gostar