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VOL.

CIÊNCIAS HUMANAS
E SOCIAIS
tópicos atuais em pesquisa

científica digital
EDITORA CIENTÍFICA DIGITAL LTDA
Guarujá - São Paulo - Brasil
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Diagramação e Arte Edição © 2023 Editora Científica Digital


Equipe Editorial Texto © 2023 Os Autores
Imagens da Capa 1a Edição - 2023
Adobe Stock - 2023 Acesso Livre - Open Access
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


C569 Ciências humanas e sociais: tópicos atuais em pesquisa: volume 2 / Organizadores
Marcelo da Fonseca Ferreira da Silva, Flávio Aparecido de Almeida. – Guarujá-SP:
ACESSO LIVRE ON LINE - IMPRESSÃO PROIBIDA

Científica Digital, 2023.


E-BOOK
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui Bibliografia
ISBN 978-65-5360-457-5
DOI 10.37885/978-65-5360-457-5

1. Ciências humanas. 2. Ciências sociais. I. Silva, Marcelo da Fonseca Ferreira da


(Organizador). II. Almeida, Flávio Aparecido de (Organizador). III. Título.
CDD 101

Elaborado por Janaina Ramos – CRB-8/9166

Índice para catálogo sistemático:


I. Ciências humanas
2023
Marcelo da Fonseca Ferreira da Silva
Flávio Aparecido de Almeida
(Orgs.)

Ciências Humanas e Sociais: tópicos


atuais em pesquisa

Volume 2

1ª EDIÇÃO

científica digital

2023 - GUARUJÁ - SP
CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Humberto Costa
Prof. Dr. Joachin Melo Azevedo Neto
Prof. Dr. Jónata Ferreira de Moura
Prof. Dr. André Cutrim Carvalho Prof. Dr. José Aderval Aragão
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Prof. Dr. Carlos Alberto Martins Cordeiro Prof. Dr. Luiz Gonzaga Lapa Junior
Prof. Dr. Carlos Alexandre Oelke Prof. Me. Marcelo da Fonseca Ferreira da Silva
Profª. Dra. Caroline Nóbrega de Almeida Profª. Dra. Maria Cristina Zago
Profª. Dra. Clara Mockdece Neves Profª. Dra. Maria Otília Zangão
Profª. Dra. Claudia Maria Rinhel-Silva Prof. Dr. Mário Henrique Gomes
Profª. Dra. Clecia Simone Gonçalves Rosa Pacheco Prof. Dr. Nelson J. Almeida
Prof. Dr. Cristiano Marins Prof. Dr. Octávio Barbosa Neto
Profª. Dra. Cristina Berger Fadel Prof. Dr. Pedro Afonso Cortez
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Prof. Dr. Diogo da Silva Cardoso Prof. Dr. Rogério de Melo Grillo
Prof. Dr. Ernane Rosa Martins Profª. Dra. Rosenery Pimentel Nascimento
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Prof. Dr. Fabricio Gomes Gonçalves Prof. Me. Silvio Almeida Junior
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Prof. Dr. Flávio Aparecido de Almeida Prof. Dr. Wescley Viana Evangelista
Profª. Dra. Francine Náthalie Ferraresi Queluz Prof. Dr. Willian Carboni Viana
Profª. Dra. Geuciane Felipe Guerim Fernandes Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme

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Nota: Esta obra é uma produção colaborativa, tornando-se uma coletânea


com reservas de direitos autorais para os autores. Alguns capítulos podem ser
derivados de outros trabalhos já apresentados em eventos acadêmicos, todavia,
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APRESENTAÇÃO

Esta obra constituiu-se a partir de um processo colaborativo entre professores,


estudantes e pesquisadores que se destacaram e qualificaram as discussões
neste espaço formativo. Resulta, também, de movimentos interinstitucionais e
de ações de incentivo à pesquisa que congregam pesquisadores das mais
diversas áreas do conhecimento e de diferentes Instituições de Educação
Superior públicas e privadas de abrangência nacional e internacional. Tem como
objetivo integrar ações interinstitucionais nacionais e internacionais com redes
de pesquisa que tenham a finalidade de fomentar a formação continuada dos
profissionais da educação, por meio da produção e socialização de conheci-
mentos das diversas áreas do Saberes.
Agradecemos aos autores pelo empenho, disponibilidade e dedicação para
o desenvolvimento e conclusão dessa obra. Esperamos também que esta obra
sirva de instrumento didático-pedagógico para estudantes, professores dos
diversos níveis de ensino em seus trabalhos e demais interessados pela temática.

Marcelo da Fonseca Ferreira da Silva


Flávio Aparecido de Almeida
SUMÁRIO
Capítulo 01
A COLABORAÇÃO INTÉRPRETE COMPOSITOR NA ELABORAÇÃO DA OBRA
“UMA LÁGRIMA” DE ARTHUR RINALDI
Augusto Alves de Morais
10.37885/230914329 ...................................................................................................................................... 9

Capítulo 02

A ECONOMIA POLÍTICA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO BRASIL: ESCOPO,


TRAJETÓRIA E PERFIL DOS ARTIGOS
Marcus Ianoni; Alexandre Queiroz Guimarães; Felipe Maruf Quintas
10.37885/230814044..................................................................................................................................... 18

Capítulo 03

A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NOS ANAIS


DOS CONGRESSOS BRASILEIROS DE ASSISTENTES SOCIAIS DE 2016 E
2019
Lumihá Cristina Teixeira da Silva; Alfredo Aparecido Batista
10.37885/230713779...................................................................................................................................... 55

Capítulo 04

FORMAS E TEMPERAMENTOS DA “ESCRAVA ANASTÁCIA”, SANTA AFRO-


BRASILEIRA
Paul Christopher Johnson
10.37885/231014668...................................................................................................................................... 74

Capítulo 05

LA OBRA DE PABLO NERUDA A PARTIR DE LA PELÍCULA ‘NERUDA’ (2016)


Y SUS CASAS-MUSEOS EN CHILE
João Eduardo Hidalgo
10.37885/230914420 ....................................................................................................................................130

Capítulo 06

MICHEL FOUCAULT: IMAGENS E TRANSGRESSÕES AMAZÔNICAS


Paulo Henrique Pinheiro da Costa
10.37885/230713612 .....................................................................................................................................146
SUMÁRIO

Capítulo 07

O CONFLITO CHECHENO E O PAPEL RUSSO NO ORIENTE MÉDIO: UMA


ANÁLISE DO POTENCIAL FOMENTO AO FUNDAMENTALISMO ATRAVÉS DA
INGERÊNCIA ESTRANGEIRA NA REGIÃO
Felipe Vidal Benvenuto Alberto
10.37885/231014607 .....................................................................................................................................162

Capítulo 08

O “NOVO” EM VELHAS PRÁTICAS: UMA ANÁLISE SOBRE A NOÇÃO DE


“NOVÍSSIMOS” MOVIMENTOS SOCIAIS E COLETIVOS
Breno Augusto de Oliveira Santos
10.37885/230914534 ................................................................................................................................... 180

Capítulo 09

O PAPEL DA ADAPTAÇÃO CULTURAL EM PROCESSOS DE MOBILIDADE


INTERNACIONAL DE PROFISSIONAIS
Felipe Gouvêa Pena
10.37885/230713760 ....................................................................................................................................201

Capítulo 10

O PIONEIRISMO DO FILME O AUTO DA COMPADECIDA (2000) DE GUEL


ARRAES: A CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA ENTRE A TELEVISÃO E CINEMA
Ana Lívia Lourenço Ferreira
10.37885/230914297 .................................................................................................................................... 211

Capítulo 11

PRIMO LEVI, O CONTAR/OUVIR NAS OBRAS É ISTO UM HOMEM? (1947), A


TRÉGUA (1960) E OS AFOGADOS E OS SOBREVIVENTES (1986)
Átila Fernandes dos Santos
10.37885/230914343 ................................................................................................................................... 225

Capítulo 12

PSICOEDUCAÇÃO E ORIENTAÇÃO DE PAIS EM GRUPO EM UM DISPOSITIVO


DE SAÚDE PÚBLICA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Maria Vanessa Freitas Holanda; Valéria Regina de Freitas Holanda
10.37885/230914319.................................................................................................................................... 242
SUMÁRIO

Capítulo 13

TEKOPORÃ: A PEDAGOGIA GUARANI DAS BELAS PALAVRAS


Isael da Silva Pinheiro
10.37885/231014616..................................................................................................................................... 255

Capítulo 14

THE ROLE OF THE UNITED STATES OF AMERICA IN THE NADIR OF THE


INTERNATIONAL LIBERAL ORDER
André Mendes Pini; Guilherme Fenício Alves Macedo
10.37885/231014610 .....................................................................................................................................277

SOBRE OS ORGANIZADORES .................................................................................................298


ÍNDICE REMISSIVO................................................................................................................................ 299
01

A COLABORAÇÃO INTÉRPRETE
COMPOSITOR NA ELABORAÇÃO DA
OBRA “UMA LÁGRIMA” DE ARTHUR
RINALDI

Augusto Alves de Morais


Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Artigo original publicado em: 2014 - XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
Oferecimento de obra científica e/ou literária com autorização do(s) autor(es) conforme Art. 5, inc. I da Lei de Direitos Autorais -
Lei 9610/98.

10.37885/230914329
RESUMO

Este artigo apresenta um relato detalhado do processo de colaboração viven-


ciado pelo intérprete Augusto Moralez com o compositor Arthur Rinaldi durante
a criação da obra “Uma Lágrima” para vibrafone solo. Durante este processo, o
intérprete pôde contribuir em diversas etapas, desde a encomenda, concepção,
composição e notação, até a estreia e gravação da obra, demonstrando como a
participação do intérprete pode ser ativa e contributiva neste processo. Neste
relato estão contidas informações sobre o surgimento da obra e suas sonori-
dades, além de questões de cunho técnico- interpretativas que auxiliaram a
moldar o formato definitivo desta obra.

Palavras-chave: Colaboração, Intérprete-Compositor, Percussão,


Performance Musical.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


10
“UMA LÁGRIMA” DE ARTHUR RINALDI

“Uma Lágrima” é uma obra para vibrafone solo do compositor paulistano


Arthur Rinaldi com duração de onze minutos aproximadamente, na qual diversos
aspectos característicos da técnica do instrumento são explorados, como abafa-
mentos e sonoridades produzidas por meio da técnica estendida, potencializando
as ressonâncias e dissonâncias criadas por intervalos de segundas (maiores e
menores). A sonoridade geral da obra remete à música folclórica japonesa, por
meio de uma escrita altamente ornamentada por apojaturas duplas, triplas e
quadruplas que são apresentadas afim de criar diferentes percepções de suas
velocidades. Além de sua estética e sonoridade harmônica peculiar, a obra utiliza
alguns recursos de técnica estendida, como o uso de arcos para produzir notas
longas, além de pequenos glissandos em teclas individuais.

A COLABORAÇÃO INTÉRPRETE-COMPOSITOR EM “UMA


LÁGRIMA”

“Uma Lágrima” foi composta em 2011, atendendo à minha encomenda.


Ela faz parte de um conjunto de obras inéditas para vibrafone solo idealizado
em 2010, que se tornou um projeto apresentado e contemplado pelo edital
PROAC (Programa de Ação Cultural) da Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo. O projeto chamado: “Amerifone - Música Latino-Americana para Vibra-
fone” consistiu em encomendas e gravações de obras inéditas para vibrafone
solo de compositores latino-americanos, e os compositores convidados foram:
Edmundo Villani-Côrtes, Roberto Victório, Rodrigo Hyppólito, Ivan Chiarelli,
Jorge Vidales, Samuel Peruzzolo e Arthur Rinaldi. O resultado deste conjunto
de colaborações foi lançado em CD no ano de 2012.
Ao longo do processo de composição das obras deste projeto houve
uma relação de proximidade na colaboração intérprete-compositor. Entretanto,
o trabalho com Arthur Rinaldi foi o mais singular entre todos eles, devido à
participação ativa exercida pelo intérprete em diversas etapas de criação
da obra, contribuindo em decisões relacionadas às suas sonoridades e em
questões técnicas que permitiram algumas de suas ideias composicionais se
tornarem exequíveis.

ISBN 978-65-5360-457-5 - Vol. 2 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


11
Os encontros com o compositor ocorreram com frequência irregular
entre os meses de agosto de 2010 (período em que o projeto “Amerifone” foi
postulado junto à Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo) e dezem-
bro de 2011 (durante a seção de gravação desta obra), sempre atendendo às
necessidades específicas presentes em determinadas etapas do processo
composicional, e com durações que compreendiam o tempo necessário para
sanar tais dificuldades, o que poderia ocorrer em alguns minutos ou após horas
de discussões. Os locais de encontro foram os mais variados: desde rápidas
conversas ao telefone ou breves discussões nos corredores do Instituto de Artes
da UNESP, a longos encontros onde trechos musicais ou seções inteiras eram
repetidos exaustivamente, até a solução de determinadas problemáticas serem
encontradas. Durante estes encontros, foram debatidas questões concernentes
à soluções técnica e sonoridades do instrumento, além de questões referentes
à estética composicional desta obra, estando o compositor sempre aberto a
discutir ideias musicais e a ouvir sugestões do intérprete, que pôde contribuir
em diversas etapas da composição.
Rinaldi havia recém estreado uma música para o instrumento tradicional
japonês koto, chamada “Flor de Jabuticabeira” (2008), obra com uma sonoridade
particular dentro de sua estética composicional. Por considerar satisfatório o
resultado musical obtido, lhe sugeri a composição de uma obra para vibrafone
solo com sonoridades semelhantes.
E assim foi feito. A sonoridade geral da obra é modal lembrando a música
folclórica japonesa, como descrita pelo compositor:

A peça, como outras de minha autoria, tem como ponto de partida


elementos musicais provenientes da música tradicional japonesa
(gagaku), os quais são incorporados num pensamento musical
contemporâneo. A partir desta combinação, cria-se na peça
uma atmosfera rica em cores e timbres, de uma fluidez melódica
muito peculiar, formada por gestos súbitos e expressivos que
se contraem e se expandem criando a linha condutora da peça.
(RINALDI apud MORAIS: 2012).

Em março de 2011, Arthur Rinaldi solicitou um encontro para experi-


mentar alguns extratos que viriam a integrar “Uma Lágrima”. Foi apresentado
o trecho musical abaixo, que na versão final, se tornariam os compassos 115 e

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


12
116, e que segundo o compositor, seriam a base temática e o principal gesto
musical desta obra:.

Exemplo 1: Compassos 111 a 115, principal gesto musical da música “Uma Lágrima”

Arthur Rinaldi se preocupava quanto à exequibilidade e o nível técnico


exigido para interpretar o excerto da figura presente no exemplo 1, por ser uma
estilização de um maneirismo do koto, e que originalmente é executado com
um simples movimento de ir e vir da palheta sobre as cordas, mas que ao ser
transposto para o vibrafone, pode se transformar em algo muito mais complexo.
Sua preocupação quanto à dificuldade técnica de sua obra se justificava
pelo seu desejo de ter sua música executada pelo maior número de pessoas
possíveis, por meio de uma escritura idiomática e tecnicamente acessível. De fato,
observamos que esta é uma preocupação presente em boa parte de sua obra
onde músicas são escritas propositadamente com muito cuidado idiomático e
sem muitas exigências técnicas. Porém, mesmo com a ajuda de um consultor
especialista no instrumento, Rinaldi não logrou êxito em seu objetivo. “Uma
Lágrima” é uma música que exige experiência e domínio técnico do vibrafone.
Outros gestos musicais muito usados na música escrita para koto e que
são transcritos para esta obra são os arpejos e os glissandos chamados de
hiki ou hikiiro. No vibrafone, essa é uma técnica utilizada em algumas obras
do repertório como “Morning Dove Sonnet” (1983) de Christopher Deane, e no
“Concerto para Vibrafone e Orquestra de Cordas” (1999) de Emmanuel Séjourné,
e discutida em detalhes por Fernando Chaib (CHAIB, 2012: p.56). Ela funciona
de maneira muito curiosa: usa-se uma baqueta dura de baquelite, borracha
ou nylon que, ao ser deslizada pela tecla em vibração, do seu nó em direção
ao centro da tecla, cria uma oscilação descendente de altura de até meio tom,
glissando este que é comumente conhecido pelo seu nome em inglês....,.

ISBN 978-65-5360-457-5 - Vol. 2 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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BAQUETAS E ARCOS

Para a execução de “Uma Lágrima”, é necessário o uso de quatorze


baquetas e três arcos, que são revezadas dezenove vezes ao longo da perfor-
mance. As baquetas e os arcos usados são:

4 baquetas muito duras de vibrafone;

4 baquetas médias de vibrafone;

4 baquetas macias de marimba;

2 baquetas médias de xilofone;

2 arcos de contrabaixo;

1 arco pequeno de violino;

Como é de costume no repertório para vibrafone, bem como de marimba


ou percussão-múltipla, não constam na partitura onde e como o intérprete deve
posicionar as baquetas e arcos. A solução encontrada pelo intérprete foi posi-
cioná-los em duas mesas, dispostas uma a cada lado do vibrafone. A escolha
do número de baquetas a serem utilizadas e a necessidade da mesa lateral
para posicioná-las foram determinadas em encontros com o compositor. Estas
soluções técnicas também foram determinantes para a manutenção do texto
musical original.
A escolha destes tipos de baquetas foi determinada durante nossos
encontros, onde trechos da obra tinham suas sonoridades indicadas verbal-
mente por Rinaldi, que em seguida eram experimentadas ao vibrafone com o uso
de diversas baquetas diferentes, até ser encontrada a baqueta de preferência
do compositor. Todas as decisões foram notadas, e aparecem como tipos de
baquetas na bula, ou em indicações na própria partitura. Em uma nota expli-
cativa, o compositor esclarece que “As indicações de baquetas (duras, médias
e macias) são uma referência geral para as sonoridades desejadas, podendo
o intérprete fazer adaptações (e mesmo uma gradação com mais opções de
baquetas) conforme suas principais escolhas.” (RINALDI, 2011: p.2).
Trocas de baquetas podem ser momentos críticos na execução de uma obra
para percussão, dependendo do contexto em que se inserem. Em determinados

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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momentos, a fluidez do discurso musical e a qualidade da interpretação dependem
muito da agilidade e discrição destas trocas, e por isso evitá-las ou criar artifícios
especiais para sua execução faz parte do metier do percussionista. Quando não
são feitas com rigor, estas trocas de baqueta podem até criar rupturas entre
ideias musicais, dando nova significação à obra. A complexidade destas trocas
também ajudam a determinar o nível técnico exigido pela obra. Quando e como
fazer estas trocas, além de onde e como posicionar estes implementos, foram
assuntos recorrentes durante os encontros com o compositor, e as soluções
encontradas foram essenciais para moldar o resultado final da obra, pois são
questões que também podem determinar a exeqüibilidade ou inviabilidade
de um trecho musical. Por compreender a importância destas questões, foi
adicionada pelo compositor a seguinte nota presente na bula da partitura, que
trata deste assunto:

A troca e distribuição (em termos de posicionamento nas mãos)


das baquetas requer um estudo cuidadoso, no qual o intérprete
pese alternativas e escolha as melhores opções (aquelas que
causem o mínimo possível de interferências nas durações rítmicas
indicadas na partitura). (RINALDI, 2011: p.1)

A quantidade de baquetas de xilofone necessárias para fazer o efeito


bend não é indicada pelo compositor. Porém, para tornar possível a execução
da obra optou-se por posicionar uma baqueta em cada mesa lateral, criando
acessos mais rápidos a estas.
A quantidade de arcos também não é determinada na partitura, que
apenas indica o uso deste recurso. Mas para viabilizar a execução da obra,
se fez necessário a seguinte quantidade: dois arcos de contrabaixo e um arco
pequeno de violino.
O uso de um arco de contrabaixo em cada mão, ou um arco em uma
mão e baquetas na outra, são recursos extensamente utilizados em obras para
vibrafone. Porém, existem trechos desta obra onde é necessário tocar sequên-
cias rápidas de notas, possíveis apenas com o uso das duas mãos, intercaladas
com notas executadas com o arco. A solução apresentada ao compositor para
tornar o trecho exequível foi usar um arco pequeno que possa ser segurado

ISBN 978-65-5360-457-5 - Vol. 2 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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na mão junto a uma baqueta de vibrafone, tornando possível a execução dos
trechos a seguir dos compassos 132 à 135.

Exemplo x: pequeno arco de violino e baqueta sendo segurados por uma mão, possibilitando a
execução dos compasso 77 à 81.

Exemplo x: compassos 132 à 135, trecho onde faz-se necessário o uso de baquetas nas duas mãos
e arco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com o papel de destaque que a percussão desempenha na


música ocidental desde a primeira metade do século XX, ainda nota-se que
colaborações entre percussionistas e compositores se fazem necessárias, se
tornando não apenas uma opção dentro das várias formas de se compor uma
obra, mas servindo como ferramenta para suprir a falta de informações sobre
estes instrumentos e suas reais possibilidades. Durante este trabalho, foi pos-
sível observar como a presença de um consultor-percussionista foi decisiva
para a criação de uma obra em que uma gama maior de possibilidades do
vibrafone fosse explorada, além de contribuir na manutenção de ideias musicais
que seriam excluídas devido ao desconhecimento por parte do compositor de
algumas soluções técnicas existentes.
A maneira como a colaboração se deu no processo de criação da obra
“Uma Lágrima” não é algo inédito. Muitos são os casos de percussionistas que

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


16
encontraram na encomenda de novas obras e no trabalho ativo durante seus
processos de composição pontos estruturais de suas carreiras. Procurou-se
demonstrar com este trabalho que continuam existindo intérpretes interes-
sados em contribuir para o desenvolvimento de seus instrumentos por meio
da criação de um repertório inédito, cuja contribuição pode ser percebida no
resultado auditivo da obra.
O processo colaborativo, porém, não ocorreu em apenas uma dire-
ção. O compositor em muito contribuiu com o intérprete com sugestões de
interpretação da obra e durante as preparações para a primeira performance em
público, ajudando na escolha de baquetas e em ajustes necessários à adaptação
das ressonâncias a sala de concerto, demonstrando que, assim como o intérprete
interfere ativamente em questões normalmente entendidas como do âmbito do
compositor, este também age ativamente em questões de performance, que
normalmente são entendidas como sendo do domínio do intérprete.
Conclui-se, portanto que compartilhar o trabalho de criação de uma nova
obra com o intérprete pode contribuir em muito para a obtenção de um resultado
musical favorável, não só aos anseios estéticos do compositor, mas também ao
instrumentista, responsável por transformar em sons ideias grafadas em papel.

REFERÊNCIAS
CHAIB, Fernando. Vibrafone: uma fonte de coloridos sonoros. Per Musi, Belo Horizonte,n. 25, p. 57-
72, 2012.

MORAIS, Augusto Alves. Amerifone – música latino-americana para vibrafone. Edmundo Villani-
Côrtes, Roberto Victório, Rodrigo Hyppólito, Ivan Chiarelli, Jorge Vidales, Samuel Peruzzolo e Arthur
Rinaldi (compositores). Augusto Moralez (intérprete, vibrafone). São Paulo: produção independente.
Compact Disc. 2012

RINALDI, Arthur. Uma Lágrima. São Paulo: 2011. Partitura manuscrita

RINALDI, Arthur. Flor de Jabuticabeira. São Paulo:2008. Partitura manuscrita.

DEANE, Christopher. Morning Dove Sonnet. Nova Iorque: Dean Music, 1983. Partitura

SÉJOURNÉ, Emmanuel. Concerto para Vibrafone e Orquestra de Cordas.Paris: Alphonce Production,


1999. Partitura

ISBN 978-65-5360-457-5 - Vol. 2 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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02

A ECONOMIA POLÍTICA NAS CIÊNCIAS


SOCIAIS NO BRASIL: ESCOPO,
TRAJETÓRIA E PERFIL DOS ARTIGOS

Marcus Ianoni
Univervidade Federal Fluminense (UFF)

Alexandre Queiroz Guimarães


Fundação João Pinheiro (FJP)

Felipe Maruf Quintas


Univervidade Federal Fluminense (UFF)

10.37885/230814044
RESUMO

Introdução: O artigo resgata a trajetória da Economia Política, para definir essa


área e disciplina. Em seguida, analisa a produção de artigos acadêmicos, no
decênio 2009-2018, na subárea de Economia Política nas Ciências Sociais no
Brasil. Busca evidenciar o relativo enfraquecimento dessa subárea nas últimas
décadas. Os objetivos foram definir critérios de inclusão dos artigos na área de
economia política; identificar os temas específicos que têm sido pesquisados e
os recursos metodológicos adotados; avaliar os resultados encontrados e sugerir
caminhos institucionais e de pesquisa para o desenvolvimento da Economia
Política nas Ciências Sociais. Materiais e Métodos: A metodologia identifica,
quantifica e distingue os conteúdos de artigos de Economia Política publicados
em nove periódicos nacionais A1, A2 e B1, conforme a classificação em vigor do
Qualis Periódicos da Capes para a Ciência Política e Relações Internacionais.
Resultados: Conclui que os economistas lideram a produção, especialmente
das temáticas do desenvolvimento e da macroeconomia. Na economia política
internacional, há uma distribuição equilibrada de artigos entre o periódico
diretamente vinculado à subárea analisada e as revistas mais próximas das
ciências sociais stricto sensu, nas quais, por outro lado, predominam conteúdos
das políticas sociais e das instituições políticas. Discussão: O desenvolvimento
da subárea passa pela construção de pontes teórico-metodológicas e redes
institucionais entre a economia e a política.

Palavras-chave: Economia Política, Ciências Sociais, Ciência Política,


Artigos, Brasil.

ISBN 978-65-5360-457-5 - Vol. 2 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


19
INTRODUÇÃO

Em 2015, a ciência política completou seis décadas de institucionalização


no Brasil. Na ocasião, a efeméride ensejou eventos e publicações para avaliar
a trajetória dessa subárea das ciências humanas. Em uma delas, uma coletâ-
nea pluralista na abordagem e na temática, organizada por Avritzer, Milani e
Braga (2016), todos então diretores da Associação Brasileira de Ciência Política
(ABCP), principal entidade acadêmica dos politólogos no país, não há nenhum
capítulo especificamente dedicado à área temática Política e Economia (ATPE)
ou à Economia Política (EP).
No início da década passada, a Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), principal organização acadêmica
das Ciências Sociais (CS), também havia publicado uma obra panorâmica do
campo da ciência política (Martins & Lessa, 2010). Nela, a mesma ausência da
temática Política e Economia/Economia Política só não se deu por completo por
um dos artigos da coletânea abordar as relações entre democracia e Estado de
bem-estar social no Brasil, subtema que, nas instituições das ciências sociais,
especialmente na Ciência política, transita entre a área de políticas públicas e
a interface aqui abordada.
Um rápido exame do percurso institucional da Economia Política nos
grupos de trabalho da ANPOCS e da ABCP pode ampliar a evidência de que,
desde meados dos anos 2010, ela parece perder importância para outras áreas
temáticas. Infelizmente, não temos dados completos sobre os Encontros da
ABCP, uma vez que essa entidade não arquivou informações sobre os sete
primeiros encontros, apenas dos quatro últimos (8º ao 11º), ocorridos entre 2012
e 2018. Sabemos que a área de Política e Economia existe desde a fundação
dessa associação, tendo sido liderada por Eduardo Kugelmas até 2006, mas,
nos últimos anos, aparenta ter importância institucional relativamente menor
do que já teve no passado.
A ANPOCS foi criada em 1977. Em seu 2º Encontro Anual (1978), já houve o
Grupo de Trabalho (GT) Elites Políticas, que, até meados dos anos 1990, abrigou
trabalhos e pesquisadores da ATPE, embora seu temário também contemplasse
instituições e partidos. Esse GT foi liderado pelos seguintes pesquisadores:
Aspásia Camargo (UERJ), Eli Diniz (UFRJ), Maria Antonieta Leopoldi (UFF),

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


20
Renato Lessa (UFF) e Sergio Micelli (USP). De modo paralelo, mas também
com algumas seções conjuntas e circulação de pesquisadores entre um e outro
grupo, funcionou, de 1982 a 2000, o GT Política e Economia, liderado por Bra-
sílio Sallum Junior (FESP-SP e USP), Eduardo Kugelmas (USP), José Luiz Fiori
(UFRJ) e Lourdes Sola (USP). Após o ano 2000, esse GT passou por sucessivas
mudanças de denominação, até desaparecer em 2016: Empresariado e Ação
Coletiva (2002-2003, Eli Diniz e Otávio Dulci); Desenvolvimento, Democracia e
Instituições (2005-2006, Eli Diniz, Jorge Tápia [UNICAMP] e Maria Antonieta Leo-
poldi); Desafios e Dimensões Contemporâneas do Desenvolvimento (2008-2009,
Eduardo Condé [UFJF] e Wagner Pralon Mancuso [USP]); Desenvolvimento em
Perspectiva – Teorias, Desenvolvimentos e Projetos Políticos (2011-2012, Eduardo
Condé e Francisco Fonseca [FGV-SP]); Desenvolvimento: Debate Contemporâneo,
Experiências e Projetos (2013, Eduardo Condé e Francisco Fonseca); Desenvol-
vimento: Caminhos e Descaminhos de um Debate Contemporâneo (2014-2015,
Eduardo Condé e Francisco Fonseca). Ou seja, na ANPOCS, a trajetória da ATPE
parte, por assim dizer, de uma supersafra (anos 1980 até meados de 1990), para
uma safra normal, desde o final dos anos 1990 até a primeira década desse
século, até entrar em decadência e desaparecer na segunda década. Por outro
lado, constatamos que, desde 1980, temas de EP também aparecem em uma
miríade de GTs e STs, como os que tratam de políticas públicas, de sociologia
econômica e de trabalho.
Na década atual, no entanto, houve considerável expansão da pós-gra-
duação em Ciência Política e Relações Internacionais no Brasil (Marenco, 2016).
Esse mesmo autor fez um levantamento da produção de artigos da revista Dados
por áreas temáticas, desde seu surgimento, em 1966, até 2014. Na década de
1960 (1966-1969), a Economia Política (EP) ocupava a primeira posição (26,8%
das publicações), secundada por Atores e Ação Coletiva (AT) e por Instituições
Políticas (IP), ambas com 19,5%. Na década de 1970, IP passou à liderança, com
23,5%; EP caiu para a segunda posição, com 21%, vindo logo em seguida a área
AT, com 20,2% dos artigos. Nos anos 1980, EP seguiu em queda, descendo
para a terceira posição, com 13,8%. Recuperou o segundo posto nos anos 1990,
com 17,9%, quando Políticas Públicas (PP) passou a liderar (19,3%). A queda

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da EP prosseguiu nos anos 2000, alcançando o piso de 8,4%. O último registro
fornecido por Marenco é de 2010, quando a EP estava em quinto lugar, com 11,4%.1
A expansão do Sistema Nacional de Pós-Graduação tem a ver com as
políticas públicas executadas pelo Ministério da Educação entre 2003 e 2016,
nas administrações federais encabeçadas pelo PT, visando ampliar o acesso
às universidades públicas, melhorar a qualificação dos docentes e aproximar
pesquisa científica e setor produtivo.2 O objetivo governamental com a expansão
da pós-graduação foi servir ao desenvolvimento, um tema simultaneamente de
política e de economia, um tema de Economia Política. Nesse período, também
emergiu, acoplada à perspectiva do desenvolvimento, a questão da justiça social,
do combate às desigualdades, que ensejou uma safra inédita de políticas sociais e
de direitos, bem como de pesquisas acadêmicas. Apesar da área de EP nas CS ter
navegado nessa temática ampliada do desenvolvimento, parece não tê-lo feito
com o impacto necessário à sua maior expansão institucional, com exceção do
que se passa na economia acadêmica, nos seus cursos, centros de pesquisa e
periódicos. A despeito da emergência de uma onda de novos trabalhos relacio-
nando desenvolvimento e Estado, instituições políticas, burocracia e políticas
públicas (sobretudo as econômicas e sociais), tal produção, em certa medida,
fragmentou-se na ANPOCS e na ABCP.
Essas informações evocam um balanço amplo da área de EP nas CS bra-
sileiras. Quais as causas de seu enfraquecimento? Os rumos teóricos e institu-
cionais da especialização ocorrida nas CS e na Ciência política em particular,
que têm relação, entre outros, com a influência acadêmica externa, explicam
as suas tendências temáticas e metodológicas? Aparentemente, sim. Qual é a
influência das exigências das instituições de fomento? Embora essa abordagem
do problema seja essencial, ela não será explorada aqui.
Nossa proposta é dar uma contribuição modesta ao referido balanço,
analisando a produção recente de EP nas CS no Brasil, com especial foco na
Ciência política, na Sociologia e, naturalmente, nos trabalhos de economia

1 Apesar do título da tabela de Marenco (2016) referir-se ao período 1966-2014, o último dado fornecido é de
2010.
2 Consultar Capes (2010).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


22
situados nessa interface. O procedimento metodológico aqui usado para alavancar
essa contribuição ao referido balanço envolve a identificação, a quantificação
e a classificação temática de artigos de EP publicados por pesquisadores bra-
sileiros em nove periódicos nacionais de classificação A1, A2 e B1, segundo o
Qualis Periódicos da Plataforma Sucupira da Capes correspondente à Ciência
Política e Relações Internacionais.3 O período selecionado é o decênio 2009-
2018, quando temas de EP, em diversas perspectivas teóricas, estiveram no
centro do debate público brasileiro (e. g. Lara Resende, 2017; Bresser-Pereira,
2018). Os A1 são: Revista Dados, Revista de Economia Política, Revista Opinião
Pública e Revista de Sociologia Política; A2: Revista Lua Nova, Revista Novos
Estudos, Revista Brasileira de Ciências Sociais e Brazilian Political Science Review;
por fim, o periódico B1 é a Revista Brasileira de Ciência Política.
Além desta introdução, o artigo está dividido da seguinte forma. Na seção
II, delimitamos a área e estabelecemos critérios para a inclusão dos artigos sele-
cionados na referida AT. Na seção III, identificamos tanto os temas específicos
que têm sido objeto de pesquisa como os recursos metodológicos utilizados.
Por fim, na seção IV, avaliamos, em termos gerais, os resultados encontrados
e sugerimos alguns caminhos institucionais e de pesquisa visando ao desen-
volvimento da EP no Brasil.

A ECONOMIA POLÍTICA COMO DISCIPLINA E CAMPO DE


ESTUDOS

II.1 Introdução: do surgimento da economia política à cisão metodológica


do século XIX

Esta seção faz uma incursão na trajetória da EP, narrando as abordagens


que emergiram. Visamos mostrar que, embora a ruptura operada pela revolu-
ção marginalista, na segunda metade do século XIX, tenha implicado em que a
abordagem original da disciplina passasse a ser uma entre outras perspectivas,

3 Escolhemos periódicos A1, A2 e B1, pois, pertencendo aos extratos superiores do Qualis, têm especial importân-
cia na avaliação da produção científica dos programas de pós-graduação realizada pela Capes.

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ela persistiu e preservou sua relevância com a abertura de novos campos de
pesquisa ao longo do século XX.4 Isso se explica por que, ao lidar com a inter-
seção da economia e da política, ela investiga questões que a especialização
disciplinar e apartada uma da outra, não dá conta de fazê-lo. As instituições
interligam-se aos processos políticos e econômicos, constituindo uma totalidade,
o que justifica seu tratamento inter-relacionado. Mencionaremos aqui diferentes
paradigmas teóricos marcantes na EP, para delimitar seu conceito e, na seção
seguinte, identificar e classificar os conteúdos temáticos da produção de artigos
acadêmicos nessa subárea no Brasil.
O surgimento da EP remonta à obra de Adam Smith, que apresentou,
de modo sistêmico, integrado e claro, vários dos temas que constituíam, há
alguns séculos, o debate sobre economia. Smith mobilizou amplo conhecimento
histórico para abordar conceitos e temas fundamentais, incluindo divisão do
trabalho, produtividade, capital, moeda, valor, preço, distribuição e comércio.
Ele concebe a EP “como um ramo da ciência de um estadista ou legislador” e
seus dois objetivos são propiciar “uma renda ou subsistência abundante para
o povo”, além de “fornecer ao Estado ou à comunidade uma receita suficiente
para os serviços públicos”.5
Em sua obra máxima, Smith dialoga com um conjunto de pensadores,
aos quais denomina mercantilistas, que haviam escrito sobre questões práticas,
como comércio, tarifas, proteção, moedas e juros. Não compunham uma escola
de pensamento. Havia diferenças entre eles, mas todos se preocupavam com o
fortalecimento econômico e a riqueza dos reinos, países, nações e, para tanto,
propunham intervenção estatal, criação de fábricas e políticas para garantir
uma balança comercial positiva (Magnusson, 2003).
Por sua vez, Smith enfatiza que a indústria e o trabalho são a base da
riqueza. Concebe a divisão do trabalho como essencial para explicar a diferença
de riqueza entre as nações, uma vez que, propiciando a produção mais eficiente

4 No processo da revolução marginalista, a disciplina passou a ser chamada de economics (ciência da economia).
5 Os autores traduziram as citações, que estão em bit.ly/2TNchIi. Acesso: 13 jan. 2019.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


24
e barata de bens, torna-os acessíveis às diversas classes sociais. Por isso, um
trabalhador inglês vive melhor que um príncipe africano.6
Influenciado pela física, Smith argumenta que as fontes da prosperidade
estão no universo econômico, regido pelo interesse, pelo empreendedorismo e
pela divisão do trabalho.7 Giannetti (1993) enfatiza que a principal contribuição
de Smith foi argumentar que a interação das atividades de um grande número
de indivíduos e empresas, cada qual buscando defender seu próprio interesse,
conduz à formação de uma ordem espontânea, que, ao alocar eficientemente
os recursos produtivos (terra, capital e trabalho), gera prosperidade. Cabe ao
poder público preservar e, com algumas ações complementares, aperfeiçoar o
funcionamento dessa ordem.
Há em Smith uma junção entre a moral e a economia. Rosanvallon (1979)
avalia que o pai da economia política apreende a esfera econômica como a fonte
explicativa da ordem social estável, questão cara aos pensadores modernos
desde Thomas Hobbes. A economia é uma esfera espontânea e de sociabili-
dade, pela qual as pessoas alcançam a prosperidade e o bem-estar material.
Segundo Cerqueira (2004), tal concepção foi a condição para esta área do
conhecimento emancipar-se da moral e da ciência do Estado. A orientação
das ações econômicas para o bem fornece uma consistente justificativa para
a autonomia disciplinar da economia.
Para Gamble (1995), o mérito de Smith foi menos ofertar teorias novas do
que combinar, com inovação, três diferentes discursos que passarão a consti-
tuir o campo da EP. Um discurso científico visando entender o funcionamento
do sistema social e econômico. Havia muitos estudos sobre moeda, comércio,
fontes da riqueza, mas nenhum aproximou-se da sistematização existente na
obra do pensador escocês. Outro discurso de Smith foca nas políticas práticas
e reflete sobre o melhor modo de regular e promover a riqueza e de aumentar

6 A divisão do trabalho põe em primeiro plano a produtividade, considerada essencial, dois séculos depois, pelos
modelos de explicação do crescimento econômico.
7 Segundo Domingues (1991), ao buscar entender os princípios responsáveis pelo bom funcionamento do sistema
econômico, Smith influenciou-se pelo modelo de ciência de Isaac Newton. Se este encontrou a gravitação
universal, Smith viu no interesse individual a força de caução do sistema econômico.

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a arrecadação. Enfim, há o discurso normativo das formas exitosas do sistema
social e da relação entre o Estado e o mercado.
A reflexão de Smith delimitou uma linguagem, ideias, conceitos e obje-
tivos para economistas de toda a Europa, estimulando o debate ao longo do
século XIX (Screpanti & Zamagni, 2005). A EP clássica era abordada a partir
das relações socioeconômicas entre os homens e conservava o diálogo entre
os três discursos: o entendimento das leis de funcionamento da economia, a
identificação dos processos e políticas que tornam os países mais ricos e pro-
movem o bem geral e os contornos que o sistema social deveria ter.
Outro economista clássico importante foi David Ricardo, sendo sua teoria
das vantagens comparativas uma das mais conhecidas e influentes em toda a
história da ciência econômica. Ela teve grande impacto no acirrado processo
decisório de extinção, em 1846, dos protecionismos comerciais das Corn Laws,
vigentes desde 1815. O primeiro ministro Robert Peel, do Partido Conservador,
assim como o industrial Richard Cobden, de orientação liberal, fizeram explí-
citas referências a Smith e Ricardo em sua campanha política pela revogação
dessa legislação (Irwin, 1989). Esse capítulo da história do Reino Unido, que
envolveu debate de ideias, conflitos de interesses e decisões do Estado, ilustra
a interdependência da relação entre a economia e a política.
Mas abre-se na década de 1870 um processo de inflexão na ciência eco-
nômica. A economia política clássica, que encontrara seu auge com John Stuart
Mill, perde força como paradigma de pesquisa (Deane, 1980). O cenário crítico
não garantia que o paradigma seria automaticamente substituído por outro e
tampouco antecipava o que sucederia. Entretanto, diversos fatores confluíram
para a ascensão do pensamento marginalista, que trazia em seus fundamentos
o repúdio à teoria clássica e a defesa de uma abordagem subjetiva do valor.
A revolução marginalista destaca-se principalmente pelo método e pela
nova forma de se fazer ciência. Edifica-se uma visão diferente da ciência eco-
nômica, fundada em uma teoria da escolha e no conceito de equilíbrio, tomado
emprestado da física. A economia é abordada a partir do comportamento
maximizador dos agentes, vistos como sujeitos inseridos em contextos de
restrições. Isso ensejará a sistematização (expressão) das questões em termos
matemáticos. A economia torna-se a mecânica da utilidade e do interesse indi-
vidual, para usar a expressão de Jevons; abstrai as classes e foca nas relações

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


26
psicológicas entre atores e bens (Deane, 1980). Torna-se uma ciência abstrata,
que dispensa a história; conflitos de classe e diferenças institucionais são vistos
como exógenos e relacionados a disciplinas como a História e a Sociologia
econômicas. O centro da investigação é também voltado ao equilíbrio parcial
e a economia torna-se essencialmente microeconômica. Apenas com Keynes
a macroeconomia emergirá e somente no pós-guerra a estática jevoniana será
substituída pela economia do crescimento, também alavancada pelos princí-
pios neoclássicos.
Mesmo abrindo mão de questões-chave, o marginalismo promoveu
um avanço considerável na ciência econômica. Ofereceu uma análise estática
que, nas palavras de Marshall (1997), garantiu melhor fixidez às ideias e melhor
compreeensão de certas relações ou objetos, sendo um primeiro passo para
a compreensão de realidades mais complexas. Mostrou-se também muito útil
à formação de profissionais para as empresas que se fortaleciam e forneceu a
base teórica nos cursos emergentes de Economia. A nova abordagem tratava de
questões com apelo prático; por meio dessa ciência, profissionais dos negócios
dialogavam com problemas que desafiavam sua própria empresa (Deane, 1980).
A compreensão da particularidade da abordagem neoclássica margina-
lista e de sua influência no curso da ciência econômica é muito bem ilustrada
pelo contraste com outro paradigma, também presente na segunda metade do
século XIX, a Escola histórica alemã. Ela possuía uma abordagem metodológica
muito diferente, crítica da ciência econômica britânica e da tríade utilitarismo,
individualismo, liberalismo. Em contraposição, defendia o historicismo, o insti-
tucionalismo, o intervencionismo, o pragmatismo e criticava teorias abstratas.
Apoiando-se na história, buscava constatar regularidades, mas atribuía grande
importância às instituições existentes, uma vez que também valorizava o con-
texto. O adequado à Inglaterra poderia não sê-lo à Alemanha. Os alemães dessa
escola discordavam da ordem natural harmônica e espontânea imaginada pelo
liberalismo inglês. Viam a intervenção estatal como essencial para complementar
a economia de mercado e promover o desenvolvimento. Colocavam os homens
e suas necessidades no centro da teoria. Seu objetivo normativo central era
ampliar a produção e o emprego. Para tanto, rejeitavam as teorias abstratas,

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como a do livre comércio. Propunham políticas para fomentar a indústria local
e ampliar a produção de bens de maior valor agregado (Fonseca, 2000).8
O ponto-chave do argumento é que a revolução marginalista causou uma
cisão metodológica na disciplina entre uma abordagem mais dedutiva e abs-
trata, que se tornou dominante; e outra mais histórica e institucional. O termo
economia política perdurou até a revolução marginalista. Marshall usa-o para se
referir à disciplina. Mas, desde então, ele ganha outro significado, sendo visto
como arte e relacionado à política econômica. O nome associa-se a questões
aplicadas, ao protecionismo, ao planejamento e às políticas em geral, sendo
adotado também por Schumpeter (1986) em sua história da análise econô-
mica. Em síntese, o termo economia política sobrevive, mas restrito a contextos
específicos (Almeida, 2018).
A economia mais abstrata ganhou espaço e tornou-se dominante, ocu-
pando os principais departamentos de economia nos Estados Unidos e em outros
países desenvolvidos. Passou a se desinteressar pela tradição clássica e por
sua abordagem integrada entre análise científica e prescrições normativas. Mas
a abordagem histórico-institucionalista resistiu, assim como outras, apoiadas
em paradigmas que rejeitam a cisão metodológica mencionada acima. Enfim,
consolidaram-se abordagens distintas, com pouco diálogo entre si, baseadas
em concepções intelectuais adotadas nos distintos departamentos de pesquisa.
Schumpeter, autor com formação ortodoxa, mas que também conhecia
e dialogava com outras disciplinas das CS, tentou superar essa cisão.9 Ele via
a economia como uma ciência social inseparável da Sociologia e da Ciência
política. A teoria econômica não deveria ignorar as condições sociais, políticas
e históricas, pelo contrário. Schumpeter também contribuiu para a discussão
metodológica da economia, enfatizando a impropriedade de direcionar políti-
cas extraídas de análises abstratas.10 Não obstante, as disciplinas continuaram

8 Marginalistas (dedutivistas) e históricos (indutivistas) chegaram a travar grande contenda metodológica no final
do século XIX, da qual participaram Carl Menger, Max Weber, Gustav Schmoller etc
9 Schumpeter foi, inclusive, uma referência para teorias de cunho heterodoxo na ciência econômica.
10 Schumpeter cunhou o termo vício ricardiano em referência às exortações de políticas traçadas por David
Ricardo a partir de tratamentos extremamente abstratos da teoria das vantagens comparativas. Apesar da
importância dos modelos abstratos, a defesa de direções políticas deveria incluir diversas mediações, incluindo
as relacionadas às condições específicas dos respectivos países (Silveira, 1991).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


28
separadas. A principal contribuição desse autor foi tornar a Ciência política
mais econômica, e não o contrário (Gamble, 1995; Schumpeter, 1986).

Mudanças no capitalismo e o retorno da economia política

Apesar dos rumos seguidos pela ciência econômica, a necessidade de uma


disciplina que tratasse das interações entre a economia e a política e que também
fosse científica e normativa sobreviveu. Essa demanda intelectual aumentou
com a ampliação do papel econômico do Estado, a partir da Grande Depressão
e das transformações ocorridas nos anos 1930. A imensa crise econômica, o
desemprego e os riscos que ameaçavam a democracia induziram à ampliação
do envolvimento do Estado com a economia, regulando o sistema financeiro,
adotando políticas contra o desemprego, propiciando seguridade social etc.11
Essa inovadora postura econômica do Estado é indissociável da obra
teórica máxima de Keynes (1936) e da defesa do gerenciamento das economias
nacionais. Esse autor revolucionou o pensamento econômico do século XX. Fun-
dou a macroeconomia, enfatizou o caráter monetário da economia moderna e
criticou a formulação ortodoxa do equilíbrio de longo prazo. A demanda agregada,
influenciada pelas políticas monetária e fiscal, foi considerada decisiva para a
determinação do nível de emprego e do produto e para o enfrentamento das
crises. Keynes também tirou o foco no indivíduo, dirigindo-o às macrovariáveis,
e relativizou a racionalidade dos agentes ao incluir as ideias de incerteza e de
espírito animal.
Formado na tradição ortodoxa, Keynes foi decisivo por formular ideias
que consolidaram uma vertente crítica e alternativa ao mainstream, mas, apesar
de atribuir um papel fundamental ao Estado e às politicas econômicas, não
desafiou a separação entre economia e política. Devido ao grande impacto
de sua teoria, os neoclássicos incorporaram-na, mas subordinando-a aos
princípios do marginalismo. Daí resultou a síntese neoclássica, produzida pelo

11 As novas configurações do capitalismo foram respostas à crise de 1930. Um exemplo político importante é a
coalizão do New Deal, constituída a partir de Roosevelt (Gourevitch, 1986).

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neokeynesianismo e profundamente influente nos estudos de macroeconomia.12
Nela, a abordagem de Keynes foi enquadrada como uma condição particular
em uma situação mais geral de equilíbrio.
Já os keynesianos críticos da ortodoxia neoclássica abrigam-se no
pós-keynesianismo. Empenham-se em problemas teóricos como a demanda
efetiva, o papel das convenções e o potencial de instabilidade dos mercados.
Segundo Oreiro (2012), essa escola é bastante forte e ativa no Brasil; influen-
cia as duas principais correntes de pensamento desenvolvimentistas atuais: o
novo-desenvolvimentismo, corrente teórica liderada por Luiz Carlos Bresser
Pereira, e o social-desenvolvimentismo, aparentemente menos desenvolvido
teoricamente, no qual a perspectiva distributivista e a influência marxista estão
mais presentes. Prado (2001) avaliou haver um grande equilíbrio de orientação
teórica na pós-graduação em economia no Brasil, entre, de um lado, os neo-
clássicos e, de outro, os estruturalistas cepalinos, os marxistas, os heterodoxos
keynesianos etc.13
Retomando, a economia e a política continuavam a ser tratadas por dis-
ciplinas distintas e abordagens relativamente dissociadas. O termo EP passou
a referir-se principalmente a paradigmas alternativos, que rejeitava a separação
das duas disciplinas. No entanto, as transformações ocorridas nos países e no
mundo desde os anos 1970 e a consolidação da crítica à hegemonia keynesiana
e social-democrata, ensejarão a emersão de abordagens que combinam os
diferentes discursos originalmente presentes no campo da EP.
É interessante notar que o resgate da abordagem integrada foi em parte
efetuado por autores ortodoxos, que, mesmo compartilhando o método neo-
clássico, incomodavam-se com a incapacidade da teoria econômica prover um
tratamento endógeno para a política. Discordavam dos modelos que concebiam
o Estado como exógeno e benevolente, pronto para sanar as dificuldades do
sistema econômico. Defendiam assim a necessidade de tratar a política como
parte do problema econômico (Almeida, 2018).

12 Nos anos de 1970, despontaria uma nova geração neokeynesiana, com formulações que, fundadas na micro-
economia, incorporaram noções como expectativas racionais, falhas de mercado e competição imperfeita,
visando aprimorar o mainstream.
13 Consultar Oreiro (2012), Ferrari Filho & Fonseca (2013) e Prado (2001).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


30
Durante a hegemonia keynesiana e a vigência do compromisso histórico
do pós-guerra, as críticas liberais perderam força, mas nunca desapareceram
(Gamble, 1988). Em muitos países, os partidos conservadores também incorpo-
raram os avanços liderados pelos partidos social-democratas ou afins, afastan-
do-se das direções liberais prevalecentes antes de 1930. No pós-guerra, houve
uma combinação única entre crescimento econômico, expansão do comércio
internacional, aumento da produtividade e dos salários, fortalecimento da
democracia e expansão das políticas de bem-estar social (Judt, 2005). Esses
resultados positivos marcaram uma fase rara na história do capitalismo. Mas
tudo começaria a ruir no final dos anos 1960, pela combinação, entre outros,
de efeitos internos às economias nacionais e de fatores ligados à regulação do
sistema monetário e financeiro internacional (Gamble, 1988). A desaceleração
econômica dificultaria que os governos nacionais administrassem os substan-
ciais e crescentes estados de bem-estar social, ao passo que mudanças inter-
nacionais, destacando-se a desregulamentação dos fluxos de capital financeiro,
desafiariam as políticas econômicas dos países, particularmente as que visavam
propiciar o pleno emprego.
As dificuldades enfrentadas pelos governos social-democratas favoreceram
a emergência de um discurso crítico ao keynesianismo e à intervenção estatal, que
resgatou traços aparentemente submersos do Liberalismo. Uma particularidade
desse discurso foi a combinação, até então incomum, da defesa da economia de
mercado e de um Estado forte, considerado necessário para enfrentar, segundo
essa abordagem, os grupos de interesse que teriam se apropriado do Estado.
Consolidaria-se um discurso alternativo bem articulado, batizado de the new
right, que fornecerá a dois partidos conservadores fundamentais, na Inglaterra
e nos EUA, os Tories e os Republicanos, uma base ideológico-argumentativa
para empreender, exitosamente, um ataque ao consenso social-democrata do
pós-guerra, com impacto internacional.
A emersão com força da New Right é explicável por ela oferecer uma
direção de políticas que atendiam interesses-chave insatisfeitos com o referido
consenso, começando pelos empresariais (Blaug, 2003). Mas essa força deve-
-se também à forma como a nova direita combinou, com sucesso, discursos
diferentes. A New Right incorporava uma teoria do funcionamento da economia,
enraizada no monetarismo e em concepções do supply side economics. Havia

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nela também uma teoria do funcionamento do Estado e da determinação das
políticas públicas, apoiada na aplicação da teoria microeconômica à Ciência
política: era a teoria da escolha pública, que visava compreender as decisões
coletivas e o sistema político a partir do individualismo metodológico e do mer-
cado econômico. Por fim, a New Right possuía avaliações e prescrições sobre
o sistema social e as melhores instituições, que exaltavam o mercado, inclusive
em bases morais. Concebia os políticos e os burocratas como agentes motiva-
dos por seus próprios interesses e a democracia como um sistema em que os
grupos de interesse influenciavam as decisões públicas, causando ineficiência.14
Assim, a New Right retoma as três dimensões dos discursos que acom-
panharam o nascimento da disciplina EP. Aplicando modelos econômicos aos
fenômenos políticos, a teoria da escolha pública, sobretudo, reintroduziu no
debate uma versão abrangente e conservadora de EP, que embutia uma teoria
de Ciência econômica, um regime alternativo de políticas públicas e um ideal
normativo para organizar a economia, fundado na primazia dos mercados
desregulados e na limitada intervenção estatal.15

International Political Economy

O resgate da economia política, chamada por muitos de Nova Economia


Política (NEP), não se restringiu ao campo da ortodoxia. É importante enfatizar
que o debate sobre as políticas econômicas e as teorias macroeconômicas
(keynesianismo versus monetarismo) foi muito influenciado pelo contexto inter-
nacional. O keynesianismo funcionou na vigência do sistema de Bretton Woods,
que provia grande autonomia para os Estados praticarem políticas de pleno
emprego. Mas o colapso desse sistema, o fim do regime de taxas de câmbio

14 O pensamento conservador da New Right também combinava o resgate do nacionalismo, a proteção contra o
comunismo e a preservação dos valores da família tradicional contra certas mudanças relacionadas às transfor-
mações do Pós-Guerra.
15 O discurso neoliberal penetrou também no debate do desenvolvimento econômico. No pós-guerra, uma
geração de economistas defendeu o planejamento e a intervenção do Estado para suprir os limites do mercado.
Desde os anos 1970, consolida-se uma nova geração, que crítica a intervenção estatal e retoma a defesa dos
mercados desregulados. Na teoria da escolha pública, as falhas do Estado são consideradas mais graves que as
de mercado (Meier, 2001).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


32
fixas e a desregulamentação financeira trouxeram novos constrangimentos aos
governos nacionais. A resposta aos efeitos desestabilizadores da volatilidade
do capital, que amplificava os riscos de crise no balanço de pagamentos, foi o
estabelecimento do controle da inflação como o objetivo essencial da política
monetária e macroeconômica em geral, em prejuízo da promoção de políticas de
pleno emprego. Esse quadro evoca a necessidade de análises mais abrangentes,
que combinem não apenas a política e a economia, mas também aspectos liga-
dos à organização do sistema econômico internacional (Eichengreen, 2008).16
Com a maior integração econômica e financeira, a dimensão internacional
ganhou relevância, ampliando-se o interesse por teorias da ordem econômica
global, sobre sua evolução, características e impactos nas economias nacio-
nais. É necessário tanto entender as razões do bom desempenho internacional
durante o período da Pax Americana, como os desequilíbrios e desafios inerentes
à nova ordem global.
As teorias anteriores, inclusive no campo das relações internacionais,
eram muito centradas no papel de Estados relativamente autônomos. Desta-
cava-se o paradigma realista, que enfatizava os cálculos de Estados soberanos
visando poder e segurança. O aprofundamento de uma economia global que
reduz a margem de autonomia decisória dos Estados fortalece abordagens
mais centradas na estrutura, para entender os constrangimentos impostos pelo
funcionamento da economia mundial unificada.
Emerge, então, a International Political Economy (IPE), elaborando análises
voltadas às interações entre Estado, mercado e relações internacionais, mas
que buscam evitar determinismos, como o que marcou algumas abordagens
da teoria da dependência.17 A IPE desenvolve teorias que consideram tanto a
estrutura como a agência, mas sem submeter uma dimensão à outra. Apesar
de o Estado continuar central, é visto como um ator fragmentado, influenciado
pelos grupos internos de poder e pelas estruturas de investimento, finanças,

16 Em outras palavras, a globalização econômica e financeira complicou a chance de Estados soberanos, relativa-
mente insulados, regularem a economia e perseguirem políticas de promoção do pleno emprego.
17 Na medida em que essa teoria considerava a sorte dos países em desenvolvimento em grande parte determi-
nada pela estrutura e organização da economia internacional, algumas de suas formulações deixaram pouco
espaço para a autonomia nacional.

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33
produção, inovação e comércio (Gamble, 1995). Incorporam-se outros atores,
destacando-se as empresas multinacionais e os agentes do sistema financeiro
internacional, e valoriza-se o papel das ideias para a consolidação de uma eco-
nomia global.18 Ao invés de tratar a economia internacional como uma arena
de trocas entre Estados soberanos e maximizadores, a IPE a concebe como
um sistema global de empresas controlado pelas corporações internacionais
e busca compreender o contexto de sua internacionalização, suas decisões e
seus impactos nas economias nacionais, bem como a atuação dos Estados
nesse ambiente complexo de atores e interesses.

Economia política comparada: neoinstitucionalismo histórico e variedades


de capitalismo

Nas últimas décadas, fortaleceram-se também análises comparadas da


organização institucional dos países. Elas, em geral, investigam a relação entre
Estados ou governos e indústria, recuperando a história das instituições e de
políticas específicas. Um importante predecessor é a abordagem institucional
pioneira de Thorstein Veblen, o velho institucionalismo, do início do século XX nos
EUA, que destacou os aspectos culturais e históricos da evolução da economia.19
Outro predecessor são as análises de história econômica das diferenças nos
modelos de industrialização (Gershenrkon, 1989). No pós-guerra, tais análises
foram aprofundadas, buscando explicar os melhores resultados obtidos por
países que contaram com um Estado mais forte e com sistemas de planeja-
mento (Shonfield, 1968). A partir de autores como Barrington Moore, Charles
Tilly e Theda Skocpol, o institucionalismo histórico renovou-se, tornou-se menos
preocupado com as instituições formais e menos normativo, configurando o
neoinstitucionalismo histórico. Essa abordagem busca entender por que há
variações na configuração de diferentes economias nacionais, nos setores de
atividade e nas políticas públicas e quais são suas principais implicações.

18 A IPE incorpora o impacto das formas de organização da economia-mundo sobre os Estados nacionais
(Wallerstein, 1979), mas deixa também campo aberto para entender o papel das ideias na consolidação de uma
hegemonia global.
19 O estudo das legislações, desenvolvido por John R. Commons foi uma das contribuições dessa escola.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


34
Aplicado à economia, o neoinstitucionalismo histórico busca responder a
duas questões: por que países reagem diferentemente a desafios econômicos
relativamente similares? E por que há padrões nacionais de política econô-
mica? A política econômica não é apenas uma resposta técnica a problemas
específicos. Geralmente, as políticas públicas são muito influenciadas por variá-
veis políticas, incluindo o contexto e o legado institucional do país (Hall, 1986).
Essa abordagem dedica-se à explicação de diferenças na política econômica,
considerando também aspectos destacados por outras teorias, como as ideias,
os grupos de interesse e o grau de autonomia do Estado. Enfatizam, no entanto,
que tais variáveis são influenciadas e filtradas por elementos institucionais
consolidados na trajetória histórica de cada país. As instituições resultam de
acordos, competições, conflitos e decisões do passado. Ao se estabilizarem,
balizam o curso dos eventos, inclusive a capacidade dos grupos influenciarem
a política econômica.
Duas conclusões são essenciais: a política é mais que uma resultante das
variadas pressões dos grupos sociais e há consistências estruturais por trás da
persistência de padrões nacionais de política econômica. É, pois, fundamental
entender o contexto institucional que infuencia o poder de ação dos grupos e
de suas preferências. Definido por Hall de forma ampla, esse ambiente estru-
tural, diz respeito, por um lado, à configuração organizacional da sociedade,
com destaque para a organização do capital (empresarial e financeiro) e dos
trabalhadores (sindicatos). Por outro lado, está também ligado à organização
do Estado, ao conflito inter-burocrático e aos instrumentos de promoção das
políticas públicas. Por fim, diz respeito aos canais de relação e interação entre
Estado e sociedade, destacando-se a natureza e a organização do sistema
político e o conjunto dos mecanismos e canais de acesso dos grupos sociais
ao poder público. Tal quadro institucional é também muito influenciado pela
posição do país na ordem internacional, o que abre o diálogo com as teorias
das relações internacionais.
Em Hall, o neoinstitucionalismo histórico explora a interação entre a
economia e a política e reocupa-se com o entendimento dos resultados das
políticas econômicas, considerados essenciais para explicar a persistência ou
não de certa trajetória. Preocupa-se também em entender os determinantes
políticos e institucionais de certas políticas. Não raramente, o desenvolvimento

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35
não ocorre devido às decisões serem criticamente influenciadas pelas forças
e instituições em interação.
Na chave do neoinstitucionalismo histórico, desenvolveu-se a abordagem
das variedades de capitalismo (Varieties of Capitalism – VoC). Ela ocupa-se da
estrutura regulatória e institucional dos países, que constrange e influencia a
ação dos atores econômicos. E enfatiza bastante o papel das empresas, vistas
como organizações que estabelecem padrões variáveis de coordenação com
os atores-chave para o seu desempenho: trabalhadores, fornecedores, clientes,
outras firmas, financiadores e governo. Parte considerável dessas relações
ocorre no mercado, na compra de produtos e serviços pelo melhor preço. Mas
a coordenação se dá também por meio de hierarquias, como ilustrado pela
produção em fábricas ou pela organização das corporações multidivisionais
(Coase, 1937; Williamson, 1975). Esse ponto foi muito explorado pela vertente
do institucionalismo econômico, fonte teórica de certos conceitos-chave, como
custo de transação, direitos de propriedade, racionalidade limitada, informação
assimétrica. Um intuito dessa literatura foi mostrar que significativos avanços
organizacionais ocorreram no sentido de reduzir não apenas os custos de pro-
dução, mas também as incertezas e os custos de transação.
A rigor, a nova economia institucional é uma linha de pesquisa impor-
tante da nova economia política, que usa métodos afins à teoria econômica,
incluindo a teoria dos jogos, para investigar a história e a política econômicas.
Ela apreende o Estado como o campo de batalha para influenciar o processo
de policy making. Instituições que garantem direitos de propriedade e reduzem
os custos de transação são vistas como suficientes para promover o desen-
volvimento econômico (Almeida, 2018). Essa abordagem influencia bastante a
economia política positiva e o neoinstitucionalismo da escolha racional, que é
forte na Ciência política dos EUA e do Brasil.20
Uma contribuição central da abordagem das VoC foi evidenciar que, além
dos tipos de coordenação pelo mercado e o hierárquico, há também o modelo
de networks, com relações baseadas em redes de cooperação, que podem

20 Consultar Hall & Taylor, 2003; Alt & Alesina, 1996; Weingast & Wittman, 2006; Limongi, 1994.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


36
conduzir a resultados positivos. Assim, a concessão de canais de participação
aos trabalhadores pode estimular seu engajamento em práticas de treinamento
e aumento da produtividade, enquanto a participação dos bancos nos conse-
lhos de decisão das firmas tende a favorecer a oferta de capital mais paciente,
disposto à maturação de longo prazo do investimento. Na mesma direção, o
fortalecimento de relações de temporalidade estável com os fornecedores tende
a favorecer projetos de produção em parceria de peças e componentes e certas
interações com outras empresas e com o governo podem estimular práticas
conjuntas de inovação e desenvolvimento do produto.
Um ponto central da abordagem é apontar as diferenças entre os países,
pois as decisões tendem a ser condicionadas pela estrutura institucional de cada
economia, destacando-se a organização do sistema financeiro, a governança
corporativa, as relações de trabalho e as práticas educacionais e de treinamento.
Esse enfoque comparativo conclui que prevalecem em alguns países formas de
coordenação centradas em processos de mercados e em hierarquias, que são
qualificadas como economias de mercado liberais. Em outros países, predominam
economias de mercado coordenadas, onde, além das estruturas institucionais
típicas da coordenação de mercado, há mecanismos de governança por net-
works (Guimarães et al., 2016).
A abordagem das VoC também mostra que há complementaridades
entre as instituições. Países que possuem um sistema financeiro mais centrado
no mercado de capitais tendem, por exemplo, a ter estruturas de governança
corporativa que dão grande autonomia aos gerentes e relações de trabalho
menos regulamentadas. Em contraposição, tende também a haver correlação
entre sistemas financeiros mais baseados nos empréstimos bancários e uma
governança corporativa mais centrada em mecanismos de cooperação e em
relações de trabalho com maior regulamentação e direitos (Hall & Soskice,
2001). A perspectiva das VoC explora também a relevância dessas relações para
explicar questões como as fontes de vantagens comparativas, as diferenças nas
políticas sociais e o posicionamento dos países em negociações internacionais.
Essa abordagem mostrou-se profícua para explicar o comportamento dos
países na ordem internacional dos Trinta Gloriosos (1945-1975), quando havia
protecionismo, regulação dos fluxos de capital, insulamento das instituições e
maior autonomia dos Estados nacionais. Parte das diferenças institucionais, no

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entanto, diluiu-se com a intensificação da globalização produtiva, financeira e
comercial e da integração regional (União Europeia etc). Mas as diferenças ins-
titucionais continuam relevantes; alguns países ainda mantêm parte importante
de suas formas de coordenação na governança por networks.
Em anos recentes, a VoC se viu desafiada em duas direções. Uma delas
veio da International Political Economy, que destaca como a constituição
de uma economia global tende a diminuir as diferenças institucionais entre
os países. A outra é a teoria das policy networks, que desagrega o Estado e
enfatiza que as diferenças institucionais e em capacidades estatais ocorrem
principalmente em nível setorial (Smith, 1993). Apesar dessas considerações,
a abordagem das VoC mostrou-se fértil, formulando tipos ideais que, usados
com cautela, serviram como ferramentas analíticas importantes.
Enfim, outra abordagem similar é a dos diferentes modelos de welfare
state, que também capta semelhanças e regularidades entre tipos de países,
resultantes de diferentes condições políticas e de processos distintos de nation
building (Esping-Andersen, 1990). Destacam-se também análises comparativas
que exploram, por exemplo, a maior capacidade do Estado para guiar programas
bem-sucedidos de desenvolvimento (Amsden, 1989; Evans, 1995; Chang, 2002).

O campo da economia política: distintos paradigmas e a abordagem do


artigo

No percurso aqui resgatado, a EP passou por diferentes fases e abor-


dagens, exibindo uma pluralidade de perspectivas teóricas e metodológicas
(indução, dedução, comparação, estatística etc). Nós a abordamos como área de
estudos interdisciplinar e de interseção entre economia e política, que examina
a influência da política e da sociedade na economia e a influência da economia
e da sociedade na política.
Uma dificuldade apontada por Almeida (2018) é que a NEP, usando o
termo desse autor, pode significar várias coisas. Devido ao grande número de
referências cruzadas entre as duas disciplinas, ela possui diferentes nomes e
definições. Algumas abordagens surgiram visando endogeneizar o político e
adotaram, para tanto, a abordagem utilitarista do pensamento marginalista. O refe-
rido autor vê a NEP como uma síntese imperfeita de vários approaches, que

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


38
usam a metodologia da economia para a análise do comportamento político e
das instituições. Como destacado nesse artigo, essa definição, apesar de reunir
várias e importantes linhas de estudos, não esgota o campo da Economia Política.
Assim, na delimitação do campo da EP aqui proposta, não adotamos uma
concepção exclusivamente metodológica, que a define como “the methodology
of economics applied to the analysis of political behavior and institutions” (Wein-
gast & Wittman, 2006, p. 3). Nosso critério de delimitação é temático, abarca
trabalhos com diferentes perspectivas teóricas e métodos, que abordam temas
de interseção entre a economia e a política, incluindo o enfoque sociológico.
Compreendemos então EP como uma área interdisciplinar com dois
vetores focais, que abarcam tanto a economia da política quanto a política da
economia. A EP estuda relações entre, por um lado, a produção e a distribuição
e, por outro lado, o Estado ou o governo, as leis, os interesses e os costumes. Por
implicarem em alocação de recursos nos setores privados e público mediante
mecanismos não exclusivamente de mercado e por interferirem nos resultados
da ordem social competitiva, as decisões do Estado sobre política econômica
e outras áreas de política mobilizam um complexo jogo de interesses e visões
ideológicas, cuja análise é um dos principais objetos da EP.
Nessa direção, Gamble (1995) aborda algumas possibilidades abertas por
esses distintos paradigmas. Destaca, por exemplo, o potencial do neokeynesia-
nismo, que, para entender as políticas, incorpora aos modelos econômicos as
assimetrias de informação. Esse paradigma pode fazer pontes com a econo-
mia institucional, com a teoria dos jogos e com a literatura sobre cooperação
entre governos e relações industriais .21 Tudo isso reforça a importância de um
programa de pesquisa interdisciplinar de EP, que mobilize as CS, para evitar o
tratamento fragmentado de uma totalidade multidimensional.
Gamble destaca também a relevância que a teoria da escolha pública pode
ter para a EP, por contribuir para esclarecer a agência. Ela oferece microfunda-
mentos que outras abordagens da EP não possuem. Mas, para isso, essa teoria

21 A teoria dos jogos estuda os diferentes resultados das escolhas, institucionalmente mediadas, dos agentes
econômicos em interação nos mercados, conforme suas preferências (utilidades).

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precisaria liberar-se da rigidez do laissez faire; em outras palavras, o método da
escolha racional pode ser útil, ainda que seus pressupostos devam ser revistos.
Em síntese, a EP permite pensar conceitos e processos pertinentes à
interação entre Estado e mercado, reflexão que a especialização em disciplinas
isoladas não pode dar conta. Um grande potencial é sua diversidade metodológica,
que inclui análises mais micro e centradas no agente, como a escolha racional, e
análises mais gerais, centradas nas instituições nacionais ou nos impactos que
a economia global tende a ter sobre os governos e as economias. Combinando
a análise histórica e institucionalista da estrutura à análise racional da agência,
a EP talvez possa superar as velhas disputas metodológicas. Paradigmas como
a international political economy, as teorias do Estado, o neomarxismo, as aná-
lises comparativas dos governos e das relações industriais e a escolha pública
podem não ser excludentes, mas combinarem-se, quando necessário e de modo
apropriado, para a construção de análises mais abrangentes e fidedignas.
A seção seguinte identifica, mensura e classifica o temário de artigos
acadêmicos sobre EP publicados no Brasil,no último decênio, por cientistas
sociais (incluindo economistas).

Artigos de Economia Política nas ciências sociais no Brasil

De 2009 a 2018, publicaram-se 2541 artigos nos nove periódicos seleciona-


dos (Tabela 1). Desse total, consideramos 332 (13%) como trabalhos de Economia
Política, sendo que 45,5% (151) estão na REP, periódico mais importante dessa
área temática. Apesar desses artigos da REP terem sido escritos por pesquisa-
dores de várias áreas das CS, predomina a autoria dos economistas, que lideram
a publicação acadêmica de EP no universo das revistas selecionadas, todas
representativas e qualificadas. O predomínio da REP manifesta-se, também,
na proporção de seus artigos na amostra: 35% são de EP. Ela é secundada à
distância pela BPSR (19,8%).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


40
Tabela 1. Total de artigos da amostra, artigos de Economia Política por periódico e metodologia
utilizada (2009-2018).
Artigos Quali-
Periódicos Total Porcentual Porcentual Quali Porcentual
de EP Quanti
1. BPSR 151 30 19,8 16 53,3 14 46,7
2. DADOS 300 17 5,6 9 53 8 47
3. LUA NOVA 248 20 8 11 55 9 45
4. NOVOS ESTUDOS 283 40 14,1 24 60 16 40
5. OPINIÃO PÚBLICA 219 9 4,1 7 77,7 2 22,2
6. RBCPI I 251 9 3,5 2 22,2 7 77,7
7. REP 431 151 35 108 71,5 43 28,5
8. RSP 351 37 11,1 18 48,6 19 51,4
9. RBCS 307 19 6,1 14 73,7 5 26,3
Total 2.541 332 13 209 63 123 37
I Entre 2009 e 2016, as edições da RBCP foram temáticas, trataram de teoria política atual, gênero e política,
partidos políticos, ações afirmativas etc. Esse direcionamento desfavoreceu a publicação de conteúdos de EP,
conforme mostram os dados apresentados.
Fonte: elaborada pelos autores.

O dado mais relevante é que apenas 13% das publicações são de


EP. Se excluíssemos a REP da amostra, por não ser uma publicação das CS no
stricto sensu, teríamos, em um universo de 2110 artigos, apenas 181 (8,6%) perti-
nentes à EP. Esse dado confirma a percepção, abordada na introdução, de que
essa área tem perdido fôlego entre os cientistas políticos e sociólogos. Vimos,
por exemplo, que, nos anos 1960, 26,8% das publicações da Dados eram de EP.
Por fim, em relação à metodologia utilizada, 63% dos artigos são Quali-Quanti
(Qualitativos e Quantitativos) e 37%, exclusivamente qualitativos. O critério
quali-quanti aqui adotado é bem elástico. Consideramos como quantitativos
artigos que recorrem minimamente a dados quantitativos, sem levar em conta
a sofisticação do tratamento desses dados.
A Tabela 2 é um esforço de identificação e classificação intratemática
dos objetos de pesquisa em EP no decênio analisado. Usamos o termo esforço
devido ao inelutável empenho de contraposição à fragmentação, único meio de
propiciar, ao preço de alguma agregação excessiva, a visualização, no ecossis-
tema da EP, de suas principais temáticas, as vegetações arbóreas basilares da
floresta. A metodologia usada para a classificação envolveu dois grandes pas-
sos: a leitura dos títulos, resumos e da conclusão dos 2541 artigos e, em vários
casos, também de trechos do corpo dos trabalhos, visando sanar dúvidas; e a

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indexação de duas palavras-chave, em regra, para cada artigo.22 Ademais, em
várias situações, o procedimento contra a fragmentação implicou em sacrificar
a indexação dos artigos com múltiplas palavras-chave possíveis, para que, no
máximo, duas prevalecessem para a definição do conteúdo temático.

Tabela 2. Temas de Economia Política Definidos por Palavras-chave.


Grupos Temáticos REP NE RSP BPSR RBCS LN DAD OP RBCP TOT. %

1. Desenvolvimento/ Política Industrial/


Industrialização/ Política de P&D/ Desen- 86 21 16 7 5 1 8 0 0 144 23,8
volvimento Regional

2. Política Macroeconômica/ Política


Econômica/ Política Cambial/ Política
65 8 7 1 3 1 0 0 0 85 14,1
Monetária/ Economia Pública/ Política
Financeira/ Crise Econômica

3. Economia Política Internacional/ Rela-


ções Internacionais/ Política Comercial/ 41 2 4 23 1 3 4 0 2 80 13,2
Crise Financeira Internacional

4. Instituições Políticas/ Direito e Eco-


nomia/ Estado Nacional/ Capacidades
Estatais/ Federalismo/ Partidos/ Refor-
15 6 17 10 8 7 1 5 4 73 12,1
ma Administrativa/ Instituições Partici-
pativas/ Participação Política/ Política
Regulatória

5. Políticas Sociais/ Desigualdade/ Es-


tado de Bem-Estar Social/ Economia 11 14 7 10 6 6 8 2 5 69 11,4
Solidária/ Distribuição de Renda/

6. Competição Política; Coalizões; Elites/


Movimentos Sociais/ Interesses/ Sindica- 5 7 3 2 4 6 2 6 0 35 5,8
lismo/ Protestos de Rua

7. Modelos de Capitalismo/ Modelos de


10 0 11 2 2 0 3 0 0 28 4,6
Desenvolvimento/ Neoliberalismo

8. História do Pensamento Econômico/


Pensamento Econômico/ Teoria Econô-
15 0 0 0 1 0 0 0 1 17 2,8
mica / Filosofia da Economia Política/
Teoria do Estado

Fonte: elaborada pelos autores.

22 Quando isso não foi possível, atribuiu-se ao menos uma palavra-chave.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


42
Assim, definimos 12 subtemas, aos quais, para fins didáticos e generaliza-
dores, nos referiremos agora com base na primeira palavra-chave mencionada
na coluna um (1) da tabela em análise e em ordem decrescente de freqüência
na amostra: 1) Desenvolvimento; 2) Política Macroeconômica; 3) Economia Polí-
tica Internacional; 4) Instituições Políticas; 5) Políticas Sociais; 6) Competição
Política; 7) Modelos de Capitalismo; 8) História do Pensamento Econômico; 9)
História Econômica; 10) Opinião Pública; 11) Relações Trabalhistas; 12) Outros.
Faremos um breve comentário sobre cada um desses grupos temáticos.
O temário mais freqüente, o de desenvolvimento, envolve a política indus-
trial, a industrialização, as políticas de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) e o
desenvolvimento regional. O carro-chefe é a palavra-chave desenvolvimento, que
foi atribuída em 110 casos, em um total de 144, correspondendo a 73,4%. As outras
duas palavras-chave mais freqüentes foram política de P&D (16) e política
industrial (15), seguidas por desenvolvimento regional (2) e industrialização (1).
Quanto à distribuição desse temário nos periódicos selecionados, secundados
à distância pela prevalência da REP (86), estão a NE (21) e a RSP (16). 59,7%
desse temário foram publicados na REP.
O segundo grupo temático, capitaneado pela palavra-chave política
macroeconômica, totalizou 85 atribuições, das quais 65 (76,4%) estão na
REP. O fato desse temário ser mais tecnicamente dependente de conhecimento
de ciência econômica explica essa distribuição concentrada na REP, pouco
presente nos demais periódicos.
O temário sobre economia política internacional (EPI) apresenta um equi-
líbrio distributivo menos desfavorável às publicações mais afins às CS stricto
sensu. Do total de 80 palavras-chave relacionadas à EPI, 41 situam-se na REP e 39
nas demais publicações, destacando-se a BPSR, onde elas aparecem em 23 casos.
O temário quatro é o das instituições políticas, conteúdo caro às CS no
sentido estrito, nas quais tem havido nas últimas décadas, sobretudo na Ciência
política, uma presença crescente das abordagens neoinstitucionalistas, que
focam nas instituições com visões lastreadas nas três variantes do neoinsti-
tucionalismo: o da escolha racional, o histórico e o sociológico (Hall e Taylor,
2003). A palavra-chave instituições políticas aparece 58 vezes em um total de
73. As demais palavras-chave desse temário – Federalismo (2), Direito e Eco-
nomia (1), Estado Nacional (1), Capacidades Estatais (1), Partidos (1), Reforma

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Administrativa (1), Instituições Participativas (1) e Política Regulatória (1) – foram
atribuídas, no máximo, em dois casos, com exceção de Participação Política
(5). Quando se considera o total de palavras-chave desse grupo temático, a
REP abriga apenas 20,5% delas, expressando a maior importância relativa
das instituições políticas no temário das CS stricto sensu, presente nos demais
periódicos pesquisados. Ademais, a distribuição desse tema no conjunto dos
periódicos é menos díspare, mais equilibrada.
Uma proporção e uma distribuição semelhantes também ocorrem no
temário cinco, sobre as políticas sociais, palavra-chave que, isoladamente, aparece
43 vezes e que foi agrupada junto com desigualdade (12), Estado de bem-estar
social (8), economia solidária (4) e distribuição de renda (2). Somadas, alcançam
69 menções, sendo que apenas 11 delas (16%) situam-se na REP. Nos demais
periódicos, as palavras-chave desse temário destacam-se na NE (20,3%) e na
BPSR (14,5%). Isso expressa a importância das políticas sociais nas pesquisas
das CS stricto sensu, destacando-se a área de políticas públicas, que, conforme
mencionado na introdução, vem crescendo desde os anos 1990 (Marenco, 2016;
Marques & Souza, 2016).
O grupo temático seis, capitaneado pela palavra-chave Competição
Política (10), abrange um conteúdo que, na classificação do temário da Ciência
Política brasileira presente em Marenco (op. cit.), denomina-se Atores e Ação
Coletiva. As demais palavras-chave que formulamos e incluímos nesse grupo
foram: Elites (8), Coalizões (6), Movimentos sociais (4), Interesses (3), Sindi-
calismo (3) e Protestos de Rua (1). Com exceção da RBCP (ver nota 22), onde
esse temário não apareceu em nenhum artigo, sua distribuição nos periódicos
também foi equilibrada.
O temário sete aborda os Modelos de Capitalismo e de Desenvolvimento,
assunto que emergiu em reação às reformas do Consenso de Washington,
ensejando abordagens institucional-comparativas críticas ao modelo neoli-
beral e nas quais a perspectiva histórica é importante (Evans, 2004). Das 28
palavras-chave sobre esse tema, modelos de capitalismo,10 estão na REP e 11
na RSP (totalizando três quartos da temática), certamente por essas revistas
aderirem mais que as outras ao temário clássico da EP.
Os temas oito e nove, respectivamente liderados pelas palavras-chave
história do pensamento econômico e história econômica, apareceram quase que

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


44
exclusivamente na REP. Já o tema 10, encabeçado pela palavra-chave opinião
pública, não consta na REP, predominando, como esperado, na revista OP, espe-
cializada nesse conteúdo. O temário 11, encimado pela palavra-chave relações
trabalhistas, totaliza, tal como o anterior, apenas 12 ocorrências. É curioso que
um conteúdo tão central para a EP ocupe espaço tão limitado nos periódicos
selecionados, sobretudo considerando o período histórico de precarização das
condições de trabalho vigente na economia internacional.
Por fim, o temário 12, que denominamos “Outros”, agrupa uma miscelânea
de palavras-chave, totalizando 33 ocorrências, entre elas, políticas urbanas (9),
política de infraestrutura (3), política microeconômica (3), estrutura fundiária (3),
teoria social (3), teoria da modernidade/modernidade (2) etc. Apesar de agregar
temas com frequência minoritária, essa categoria reforça o caráter diversificado
dos objetos de pesquisa no campo da EP no Brasil e a complexidade interdis-
ciplinar da área.
O uso do software Iramuteq como recurso metodológico para analisar
conteúdo, discurso e produzir lexicometria evidenciou que as palavras mais
destacadas em segmentos de texto dos resumos dos artigos amostrais (Figura 1)
remetem aos assuntos e vocabulário clássicos da EP, como “política(o), econô-
mico/economia, desenvolvimento, governo, público, social, internacional, cresci-
mento, mercado, instituição”, entre outros. Tais termos aludem à preocupação da
obra originária da EP clássica, A riqueza das nações, que delimitou a disciplina.

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Figura 1. Nuvem de palavras de todos os resumos amostrais.

Fonte: elaborado pelos autores.

Por outro lado, desagregando os resumos da REP dos demais e formando


duas nuvens distintas (Figura 2 e Figura 3), alcança-se um maior detalhamento
analítico sobre as distintas especificidades da produção, por um lado, de artigos
de EP nesse periódico, mais organicamente vinculado à ciência econômica, e,
por outro lado, nos oito periódicos restantes, todos eles mais afins às demais CS.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


46
Figura 2. Nuvem amostral da REP.

Fonte: elaborado pelos autores.

Na Figura 2, que retrata segmentos de texto dos resumos amonstrais da


REP, destacam-se palavras como econômico/economia, política(o), desenvol-
vimento/crescimento e Brasil(eiro). Na Figura 3, correspondente aos demais
periódicos, as palavras sobressalentes são política(o), Estado/Governo, Bra-
sil(eiro) e Econômico/Economia.

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47
Figura 3. Nuvem amostral sem a REP.

Fonte: elaborado pelos autores.

A Tabela 3 permite comparar a ênfase distinta contida nesses dois agre-


gados, elucidando as diferentes especificidades temáticas. Obtivemos os índices
calculando a razão entre a incidência das palavras sobressalentes nas nuvens
e o número de resumos do agregado em questão. Nota-se que, no agregado
dos periódicos das CS stricto sensu, a presença de segmentos de texto onde
há palavras caras à Ciência política, como Política(o), Estado/Governo, Social
e Instituição, é maior que na REP. Por outro lado, a REP lidera os segmentos
de texto mais consagrados no campo acadêmico da economia, a começar pelo
tema Desenvolvimento/Crescimento, conforme já havia sido observado.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


48
Tabela 3. Índices de palavras predominantes em dois agregados amostrais de resumos.
Temas Rep(1) Todos Menos Rep(2) Relação (1)/(2)
Política(o) 188/151 = 1,24 380/181 = 2,1 59%
Estado/Governo 112/151 = 0,74 249/181 = 1,38 53,6%
Desenvolvimento/Crescimento 159/151 = 1,05 119/181 = 0,65 161,5%
Econômico/Economia 206/151 = 1,36 182/181 = 1,0 136%
Brasil(eiro) 136/151 = 0,9 212/181 = 1,17 76,9%
Social 42/151 = 0,28 129/181 = 0,71 39,4%
Instituição 34/151 = 0,22 50/181 = 0,27 81,5%
Fonte: elaborada pelos autores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do relativo desprestígio da Economia Política nas organizações


acadêmicas (ANPOCS e ABCP) e publicações das CS, em comparação com
os trinta anos de 1960 a 1990, o principal objetivo desse artigo foi, mirando no
esforço de construção institucional dessa subárea temática, avaliar a sua pro-
dução em nove periódicos nacionais no decênio 2009-2018.
Nesse sentido, procuramos identificar e delimitar o campo de estudos da
EP, explorando momentos importantes de sua trajetória, desde Adam Smith, e
as diferentes abordagens surgidas. Trata-se de uma disciplina cuja existência
se explica e justifica pela interdependência do fenômeno econômico-político
e cuja apreensão extrapola os limites das disciplinas mais especializadas que
constituíram as CS desde o século XIX. Argumentamos que a EP é uma área de
estudos pluralista, com várias teorias e metodologias; seu temário desenrola-se
na interseção entre a economia e a política e mobiliza conceitos, processos
e argumentos pertinentes ao entendimento da interação entre Estado, mer-
cado e sociedade.
Uma primeira constatação é que, em relação ao passado das CS no
Brasil, conforme evidencia Lynch (2016), aumentou a concentração da produ-
ção da EP no campo acadêmico dos economistas, pois, como evidenciado, ela
perdeu espaço, fragmentou-se e diluiu-se no temário geral da Ciência Política
e da Sociologia. Isso indica que a contribuição do conjunto das CS para o pro-
cesso de desenvolvimento, apreendido amplamente, ou seja, nas dimensões
econômica, social, política e de sustentabilidade, retrai-se e especializa-se
regressivamente. A segmentação do conhecimento e o déficit em abordagens

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49
que lidem mais prontamente com fenômenos de dimensões simultaneamente
políticas, econômicas e sociológicas, tal como o olhar da economia política
busca abarcar, tende a limitar a pesquisa sobre questões e temas-chave das CS.
Tal tendência contrasta com o ocorrido nas décadas de 1960 e 1970,
quando a modernização industrial do Brasil era significativa, mesmo tendo sido
acompanhada da concentração de renda, fato, contudo, identificado, analisado
e criticado por cientistas sociais de então. Naquela época, a temática do desen-
volvimento impactava com mais consistência as CS como um todo. A trajetória
neoinstitucionalista da ciência política, que, em parte, a afasta da sociologia e da
economia, parece relacionar-se com sua mudança temática. Como é possível
escapar de determinismos, admitir a esfera de autonomia da política, mas sem
apartá-la das demais ciências sociais (Almeida et al., 2016)? Já mencionamos
na introdução que essa investigação é necessária.
A especialização regressiva, à custa da apreensão interdisciplinar das
CS, expressa-se no amplo predomínio da REP sobre os temas do desenvolvi-
mento e da política macroeconômica, que são essenciais para a compreensão
das relações entre Estado, economia e interesses em geral, particularmente no
Brasil, onde os fatos, processos e conflitos políticos dos últimos anos revelam
a centralidade dessas áreas decisórias na realidade nacional.
Observamos também que a presença relativa das políticas sociais é maior
nos oito periódicos de CS stricto sensu do que na REP. Essa aparente divisão
do trabalho entre, de um lado, o desenvolvimento econômico e, de outro, o
desenvolvimento social é problemática. Na medida em que os cientistas sociais
stricto sensu especializam-se em políticas sociais e nas instituições do Estado
por elas responsáveis, tendem a isolá-las da produção material, que, no limite,
fornece a sustentabilidade intertemporal da redistribuição de renda pelo poder
público. Por outro lado, o predomínio da abordagem do desenvolvimento pelos
economistas implica, na perspectiva do mainstream, em limitar esse processo
fundamental a um fenômeno de mercado, desconsiderando a dinâmica política
e social que lhe é inerente, e/ou em atribuir a causa dos insucessos ao Estado

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


50
e à classe política. Mas cabe enfatizar que a maioria da produção de EP na REP
diverge da ortodoxia de raiz neoclássica.23
Por outro lado, em relação à EPI, a distribuição mais igualitária entre a
produção desse conteúdo na REP e nos demais periódicos parece explicar-se
pelo atual processo de fortalecimento acadêmico das relações internacionais
na ciência brasileira.24
A opção metodológica aqui adotada poderá ser complementada com
avaliações da área de EP que incorporem outros dados e fontes das CS, como
teses, dissertações, livros, financiamento, instituições de pesquisa, perfis dos
pesquisadores, um período de tempo mais amplo etc.
Por fim, o desenvolvimento da pesquisa em EP no Brasil requer o empenho
das organizações acadêmicas, grupos de pesquisa e pesquisadores das CS lato
sensu na construção de pontes teórico-metodológicas e redes institucionais
entre a economia e a política, ou seja, entre, de um lado, as instituições e os
processos sociais e econômicos e, de outro, as instituições e processos políti-
cos. Essa aproximação já ocorre nos EUA há algumas décadas, mas em uma
perspectiva de subordinação da Ciência política aos pressupostos do individua-
lismo metodológico e do homo economicus, que tem restringido a expansão de
abordagens alternativas. Quanto às referidas pontes e redes, as pós-graduações,
organizações e eventos acadêmicos precisariam apostar em renovação temá-
tica, curricular e bibliogrática, parcerias e diálogos interdisciplinares, grupos e
projetos de pesquisa, publicações, enfim.

23 Selecionamos esse periódico por ele possuir um padrão editorial afim à tradição interdisciplinar da EP, tanto
que abre espaço para autores não economistas. As principais revistas nacionais do mainstream neoclássico
são: Estudos Econômicos (FEA-USP), Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE-IPEA) e a Revista Brasileira de
Economia (FGV-RJ).
24 Não levantamos dados sobre a economia política na Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

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Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


54
03

A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA


CRIANÇAS E ADOLESCENTES NOS ANAIS
DOS CONGRESSOS BRASILEIROS DE
ASSISTENTES SOCIAIS DE 2016 E 2019

Lumihá Cristina Teixeira da Silva


Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Alfredo Aparecido Batista


Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Artigo original publicado em: 2022 - Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.62 , p.<92-110>.
Oferecimento de obra científica e/ou literária com autorização do(s) autor(es) conforme Art. 5, inc. I da Lei de Direitos Autorais -
Lei 9610/98.

10.37885/230713779
RESUMO

O presente estudo tem por objetivo analisar o estado de conhecimento dos


profissionais de Serviço Social acerca da temática que envolve a violência
sexual contra crianças e adolescentes nas produções acadêmicas dos anais do
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais nos anos de 2016 e 2019. A partir
de pesquisa bibliográfica, e por meio do estado da arte, pesquisa de caráter
exploratório, fundamentou-se o debate dessa violência na categoria trabalho;
identificou-se o papel da família, proteção social e Serviço Social no enfrenta-
mento a essa violência; e discorreu-se sobre quantitativos e focos nas produções
acadêmicas sobre tal violência. Para tanto, o estudo se apoia nas concepções
de Faleiros (2000), Gabel (1997) e Marx (2004). Conclui-se que a maior parte
dos profissionais apresentam soluções punitivas e repressivas aos agressores,
a família é dicotômica sendo espaço de proteção e possível violação onde há o
maior número de incidência de violência sexual contra criança e adolescente,
sendo as maiores vítimas crianças do sexo feminino, e os profissionais não
têm debatido tal violência a partir da categoria trabalho, para assim superá-la,
somente seguindo atendimentos burocratizados que operacionalizam políticas
sociais contribuindo com a manutenção da ordem.

Palavras-chave: Violência Sexual, Crianças e Adolescentes, Serviço Social.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


56
INTRODUÇÃO

O intuito deste artigo é expor os dados levantados em pesquisa de


dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, com objetivo de
analisar o estado de conhecimento dos profissionais de Serviço Social acerca
da violência sexual contra crianças e adolescentes, a partir das produções
acadêmicas nos anais do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais - CBAS
nos anos de 2016 e 2019. Partimos do entendimento que a partir da pandemia
pelo covid-19, despontou-se uma preocupação dos órgãos de controle acerca
de uma possível subnotificação desse tipo de violação devido a quarentena que
encerrava crianças e adolescentes em suas casas e retirava-as do convívio social
nas escolas que servia como instrumento catalisador de denúncias.
Nesse sentido, nossa proposição foi analisar o processo de produção
e reprodução da violência sexual contra crianças e adolescentes a partir de
elementos históricos, políticos e sociais construídos na lógica do modo de pro-
dução capitalista que explora e expropria a classe trabalhadora. O fenômeno
da violência sexual contra crianças e adolescentes é manifesto ao longo dos
séculos, perpetrado na sociedade que não o vislumbra como uma possível
consequência da disputa de forças de classes antagônicas, mas sim como uma
questão individualizada. A pesquisa se deu a partir de uma perspectiva crítica
e ontológica que analisa tal fenômeno em seu movimento dentro da totalidade,
evidenciando que as sociabilidades se fundamentam em estruturas políticas,
sociais e econômicas que se transformam ao longo do tempo. Sabendo que o
processo de intervenção profissional pressupõe reconhecer a complexidade da
demanda numa perspectiva de totalidade e o terreno contraditório sobre o qual
as ações profissionais se desenvolvem, buscamos agregar em conhecimento
aos estudantes e no fazer profissional de assistentes sociais do país.
Para tratarmos sobre a compreensão teórico-prática do Serviço Social
referente a violência sexual contra crianças e adolescentes sistematizamos os
trabalhos apresentados nas edições 15º e 16º do CBAS. Ressaltando que tal
evento é de âmbito nacional, da categoria profissional de assistentes sociais,
de cunho democrático e ocorre a cada três anos, acolhendo e contando
com às produções de pesquisas de docentes, discentes da graduação e da

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pós-graduação, pesquisadores e profissionais da área que atuam na execução
de políticas sociais em todo o país.
A pesquisa traz como recorte temporal o período compreendido entre 2015
a 2020, onde a escolha das edições a partir do ano de 2015 ocorreu devido ao
acervo virtual do CBAS se iniciar no 15º Congresso, tendo seu armazenamento
de edições anteriores sistematizadas apenas em cd-rom.
A pesquisa foi iniciada a partir dos trabalhos publicados nos anais do
15º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado na cidade de Olinda
localizada no estado de Pernambuco no Brasil, no período compreendido entre
5 a 9 de setembro de 2016, com o tema “80 anos do Serviço Social no Brasil: a
certeza na frente, a história na mão”. Em um universo total de 1426 trabalhos
publicados foram filtrados 16 trabalhos, a partir dos títulos, com as seguintes
palavras-chaves: violência, violência sexual, abuso sexual, exploração sexual e
criança e adolescente e de leitura dos resumos e leitura flutuante dos textos. E, nos
anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado na capital
do país na cidade de Brasília - Distrito Federal, no período compreendido entre
30 de outubro a 3 de novembro de 2019, com o tema “40 anos da virada”, em
um universo total de 1741 trabalhos publicados, filtramos, da mesma forma, 16
trabalhos. Assim, englobando os dois congressos pesquisados em um universo
total de 3167 trabalhos publicados, a análise se deu em um total de 32 trabalhos
acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes.

ANÁLISE QUANTITATIVA DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS

No que diz respeito a região de realização da produção acadêmica, veri-


ficamos que na edição de 2016 do Congresso, 6 trabalhos foram realizados na
região Nordeste do país, 4 na região Sul, 4 na região Sudeste, 1 na região Norte
e 1 na região Centro-oeste. Enquanto na edição de 2019, 10 trabalhos foram rea-
lizados na região Sudeste, 2 na região Norte, 2 na região Nordeste, 1 na região
Sul e 1 na região Centro-oeste. No universo dos trabalhos publicados a região
Sudeste tem o maior número de trabalhos dos últimos cinco anos no total de 14,
enquanto a região Centro-oeste tem o menor número de trabalhos publicados, 2.
Quanto à origem institucional dos autores das produções, constatamos
que tanto na edição de 2016 quanto na edição de 2019 do Congresso tivemos

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


58
13 trabalhos em que seus autores estão alocados ou pesquisaram em institui-
ções públicas, identificando que, em sua maioria, a participação de estudantes
e pesquisadores de universidades públicas ou de pesquisas realizadas em
variados CREAS do território nacional. E, 3 trabalhos em que seus autores estão
alocados ou pesquisaram em instituições privadas, em sua maioria estudantes
de universidades privadas ou pesquisas realizadas em organizações sem fins
lucrativos. Assim, em sua imensa maioria a pesquisa gira em torno da esfera
pública, com total de 26 trabalhos.
Em se tratando do tipo de pesquisa realizada, identificamos que a edição
de 2016 do Congresso evidencia a presença de 6 pesquisas documentais, 5 pes-
quisas de campo, 4 pesquisas bibliográficas e 1 relato de experiência, enquanto
na edição de 2019 temos, 6 pesquisas bibliográficas, 4 pesquisas documentais,
4 pesquisas de campo e 2 relatos de experiência. No universo total de trabalhos
temos a prevalência das pesquisas documentais e bibliográficas nos últimos cinco
anos, com total de 10 trabalhos cada, logo após seguidos pelas pesquisas de
campo com 9 trabalhos, enquanto os relatos de experiência, apenas 3 trabalhos.
Para melhor qualificação dos autores mais referenciados em nosso
universo de pesquisa dos trabalhos publicados nos CBAS 2016 e 2019, fizemos
uma busca manual por meio de saturação nos referenciais bibliográficos dos
textos. Para essa composição utilizamos os autores que tiveram suas obras
listadas mais de dez vezes no total dos trabalhos levantados. Constatamos
que o autor mais utilizado para embasar as discussões foi Vicente de Paula
Faleiros despontando 34,6% das vezes nas referências, seguido por Viviane
Nogueira de Azevedo Guerra listada 17,28% das vezes, continuada por Maria
Amélia Azevedo com 14,81%. E, os autores que dão sequência, se igualando em
um percentual de 11,11%, destacam-se a presença de Marilda Vilela Iamamoto,
Maria Lúcia Pinto Leal e Maria Cecília de Souza Minayo.
Por fim, realizou-se o levantamento manual das categorias de análise
por meio de saturação de palavras nos 32 trabalhos. A busca foi efetuada em
um total de 87 palavras (conceitos e/ou categorias) e logo após filtradas as que
apareciam mais de cem vezes nos trabalhos para assim obtermos o percentual
com as quatro principais categorias abordadas. A categoria violência apareceu
em um percentual de 14% e se somada as suas variações temos violência sexual
em 11% das vezes, abuso sexual em 7% das vezes e exploração sexual em 4%

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das vezes, num total de 36%. A segunda categoria que despontou foi crianças
e adolescentes em um total de 12%, a terceira categoria foi direitos com um
total de 9% e a quarta categoria foi família com um total de 5% de registros.

DADOS ESTATÍSTICOS DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS E DO


DISQUE 100 EM 2020 E 2021

Segundo Pimenta e Siqueira (2016), em seu trabalho, mostram-nos que,


os dados do ano de 2012 referentes ao número de denúncias registradas de
violações contra criança e adolescente no Disque 100, atingiram 130.000 casos,
equivalente ao total de 77% das denúncias recebidas naquele ano. No mapa da
violência estudado por eles, a violência sexual contra crianças e adolescentes
no Brasil é a segunda forma de violência mais recorrente, totalizando 19,9% dos
atendimentos acontecidos em 2011, segundo dados do Ministério da Saúde, e
crianças de até nove anos de idade representam o maior número de vítimas,
com 14.625 notificações, 35% dos casos registrados.
Busch et al (2016) registraram em seu trabalho, 6.101 casos de violência
doméstica, sexual e outras violências na Cidade do Rio de Janeiro, em 2015, onde
o maior percentual de notificações ocorreram na fase adulta com 51,9%, seguido
dos adolescentes (23,5%), crianças (17,7%) e idosos 7,1%. Sendo a prevalência
dos casos contra o sexo feminino, representando 76,60% dos casos notificados
na área de planejamento em saúde (AP 1.0) no município.
Monteiro e Silva (2016) registraram em seu trabalho que, a Bahia no ano
de 2012 ocupou o primeiro lugar no ranking nacional de denúncias anônimas
de violência sexual, com 4.480 casos, o número ultrapassou o de outros estados
como São Paulo (3.749) e Rio de Janeiro (3.514). As maiores vítimas de violência
sexual foram crianças e adolescentes do sexo feminino, o número de denúncias
para este gênero saltou de 92.286, em 2011, para 167.822 em 2012, sendo as ado-
lescentes o maior número de vítimas, segundo dados da Secretaria de Direitos
Humanos. E no que se refere aos agressores, todos eram do sexo masculino e
93,7% eram conhecidos das vítimas.
Rodrigues, Cardoso e Reis (2019) registraram em sua pesquisa que, o
Disque 100, no ano de 2017, recebeu mais de 84 mil denúncias de violação de

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


60
direitos de crianças e adolescentes, sendo mais de 24% dessas ocorrências sobre
violência sexual. E que, 67,7% das vítimas são meninas e 16, 52% são meninos.
Segundo nosso levantamento realizado nos dados do Disque 100, dispo-
nibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no
ano de 2020, foram registradas um total de 349.851 denúncias, sendo 95.247
contra criança e adolescente, que compõem 27,2% dos casos, sendo o grupo
vulnerável mais afetado. Outro dado determinante é que 167.084 dos casos
totais ocorreram na casa onde residia a vítima e o suspeito, representando o
maior índice de cenário da violação e com 25.065 denúncias de violência sexual
dos casos totais. Por fim, os dados do painel interativo também mostram que, a
maioria das denúncias contra violação de crianças e adolescente são do sexo
feminino com 20.976 dos casos e 13.757 do sexo masculino, com predominância
de vítimas na fase da infância em ambos os casos.
Referente ao primeiro semestre de 2021, os dados levantados no painel
interativo do referido Ministério, até o presente momento, mostram que foram
registradas um total de 185.350 denúncias, sendo 59.513 contra criança e
adolescente, que compõem 32,1% dos casos, sendo o grupo vulnerável mais
afetado. Outro dado expressivo é que 93.003 dos casos totais ocorreram na casa
onde residia a vítima e o suspeito, representando o maior índice de cenário da
violação e com 16.460 denúncias de violência sexual dos casos totais. Por fim,
os dados do painel interativo também mostram que, a maioria das denúncias
contra violação de crianças e adolescente são do sexo feminino com 27.930
dos casos e 19.895 do sexo masculino, com predominância de vítimas na fase
da infância em ambos os casos.
No entanto, ressaltamos que até a finalização da pesquisa, não havia sido
divulgado o relatório de denúncias referente ao segundo semestre de 2021 pelo
referido ministério. Ainda assim, constatamos nesses dados preliminares o que
tem sido relatado em cada trabalho apresentado nos CBAS nos últimos cinco
anos, que crianças e adolescentes são o grupo mais vulnerável à violações de
direitos, que um número importante dessas violações ocorrem no âmbito familiar
e que a maior parte das vítimas são crianças do sexo feminino.

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ANÁLISE QUALITATIVA DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS

Ao analisarmos nossa primeira categoria central, a família, observamos de


acordo com Oliveira (2016) que, o conceito de família é construído e reconstruído
ao longo dos anos com as mudanças geracionais, o que podemos é defini-la
como a composição de indivíduos que compartilham experiências históricas,
culturais, sociais, econômicas e afetivas, ela tanto é uma unidade receptora,
como é uma unidade emissora de influências, possuindo comunicação e
dinâmica próprias. Nesse espaço de troca, os adultos transmitem conceitos e
pré-conceitos socioculturais do meio em que vivem e se formam, reproduzindo
valores, direitos, deveres e condutas para seus infantes e jovens. Para Oliveira
(2016), a família contemporânea ultrapassou sua antiga fórmula de pai, mãe
e filhos, agora incluindo pares homoafetivos, filhos adotivos, enteados, entre
outros, se apresentando em pluralidade de modelos.
Socialmente a família é compreendida como um espaço privado e invio-
lável de intimidade e refúgio, responsável pela produção e manutenção de
cuidados e afetos aos seus integrantes (TOLEDO; ZARNEK, 2019). Apesar de
compreendermos que laços de união deveriam ser fundados no afeto, a família
também é capaz de descumprir seu papel protetor de ambiente mais adequado
ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, transformando-se em um
espaço de violações de direitos, que reproduz a violência (OLIVEIRA, 2016).
Observamos o muro do silêncio estabelecido na violência sexual intra-
familiar, violência essa cometida no âmbito doméstico, e por isso, difícil de ser
combatida. Esse fenômeno torna os infanto-juvenis vitimados alvo de violações
frequentes que causam sequelas orgânicas, psicológicas e sociais para toda
vida (MEDEIROS; AZEVEDO, 2016). A proximidade entre agressor e vítima pro-
picia uma dinâmica perigosa e destrutiva, pois a vítima por nutrir sentimentos
antagônicos por seu abusador tem dificuldade em denunciar e os membros da
família em acreditar, há uma clara dificuldade de comunicação nesses cenários
familiares, o que dificulta a intervenção profissional (MONTEIRO; SILVA, 2016;
CARVALHO, 2019).
Nascimento, Silva e Costa (2019) trouxeram a autoproteção como estra-
tégia de prevenção contra a violência sexual. A autoproteção consiste em
informar crianças e adolescentes sobre seu corpo para que eles identifiquem

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


62
situações de risco e consigam desenvolver uma postura auto protetiva. Ela eleva
a autoestima e a autoimagem de crianças e adolescentes auxiliando para que
as mesmas diferenciem carinho de abuso e estabeleçam uma relação de con-
fiança em si. Os autores destacam também que esse assunto deve ser debatido,
metodologicamente, em escolas, creches, conselhos e ser o foco central nas
políticas públicas de prevenção contra a violência sexual.
Com o ensinamento sobre corpo, sexualidade e direitos estabelecidos
nessa estratégia é possível que o público infanto-juvenil reconheça quando passar
por uma violência sexual e se torne confiante para denunciá-la. É imprescindível
que crianças e adolescentes aprendam a como reagir em situações de perigo, a
como pedir ajuda, a dizer não pois elas não estarão vinte e quatro horas por dia
acompanhadas de um adulto de confiança. Por meio do aprendizado sobre si, a
autoproteção viabiliza a compreensão da realidade social e a conscientização
sobre seus direitos (NASCIMENTO; SILVA; COSTA, 2019).
Em nossa segunda categoria, crianças e adolescentes, Batista, Silva e
Siqueira (2016) utilizam o termo adultocentrismo para compreender o poder
que o adulto exerce sobre a criança ou adolescente. O adultocentrismo é uma
prática social que encara crianças e adolescentes como seres incompletos
e despreparados para viver em sociedade com as relações de poder que as
permeiam. É como se por se enquadrarem como seres em desenvolvimento as
crianças e adolescentes devessem ter menos liberdade de escolha e por isso
submeter-se a adultos. Outra parcela de estudiosos que defendem os direitos
da criança e do adolescente entendem que o adultocentrismo é uma forma
de discriminação contra os mesmos, e que a participação e perspectiva deles
na construção social importa e deve ser estimulada e não podada. Os autores
citados declaram também que a cultura do patriarcado reforça essa prática em
que o homem adulto é o provedor, protetor, mantenedor e dono de tudo que
está sob sua posse.
A cultura machista (historicamente determinada) em que estamos inseridos
também tende a culpabilizar a vítima do sexo feminino, por vezes não impor-
tando a idade, acusando-a de seduzir o homem violentador sexual. A questão
do consentimento ou não da criança ou adolescente, principalmente do sexo
feminino, violentadas sexualmente é uma das mais discutidas, controvertidas
e sujeita a preconceitos, inclusive dos pontos de vista policial, legal, jurídico e

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de opinião pública (PIMENTA, SIQUEIRA, 2016). Inclusive, a privação da vítima
de voltar ao convívio familiar, sem que ocorra intervenção junto ao autor da
violência e demais membros da família, pode acarretar sentimento de culpa na
vítima pela violência sofrida, o que é mais um reforço para incutir a culpa nas
próprias vítimas (ROQUE et al, 2019).
Em nosso terceiro eixo categórico, violência sexual, Carvalho (2019)
fundamentado em Faleiros (2000) caracteriza a violência sexual como aquela
onde uma pessoa por meio do poder, obriga ou intimida a outra a realizar
práticas sexuais contra a vontade, não se reduzindo a consumação do ato,
podendo ou não ter a utilização da força física. A gravidade dessa violência
depende do grau de conhecimento e intimidade, dos papéis de autoridade e
de responsabilidade de proteção do agressor em relação à vítima, da gravidade
de violência física utilizada (estupro, ferimentos, tortura, assassinato) e de suas
consequências (aborto, gravidez, maternidade incestuosa, sequelas físicas e
psicológicas, morte). A violência sexual contra crianças e adolescentes adquire
particularidades que a torna mais complexa e grave, devido ao processo de
desenvolvimento e formação psicossocial das mesmas. Pimenta e Siqueira
(2016) fundamentados em Paiva (2012) destacam que, a relação de confiança
existente entre agressor e vítima é uma das características mais marcantes na
violência sexual, o que permite que a mesma seja praticada, geralmente, por
alguém do convívio da vítima.
Oliveira (2016) elucida que, o abuso sexual se configura a partir do
momento em que crianças ou adolescentes são usados para a satisfação sexual
do adulto ou adolescente, tendo ocorrido carícias, manipulação da genitália,
mama ou ânus, além de masturbação, sexo oral, tortura, surras, penetração
(vagina ou ânus) e tentativa de relações sexuais, concomitantemente ou não.
Silveira e Barreto (2016) fundamentados em Gabel (1997) desenvolvem que, o
abuso sexual envolve três aspectos importantes: o poder exercido pelo forte
sobre o fraco; a confiança que o pequeno tem no grande; e o uso delinquente
da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que todo indivíduo tem de pro-
priedade sobre seu corpo. Do ponto de vista sociológico e antropológico, é uma
violência que envolve duas desigualdades básicas: a ordem patriarcal de gênero
e de geração. Faleiros e Faleiros (2007, p. 38) destacam: “O poder arbitrário do

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


64
adulto agressor sobre as crianças e adolescentes desestrutura a identidade
da pessoa vitimada, caracterizando-se como um comportamento perverso”.
Os tipos de abuso sexual são: extrafamiliar desconhecido: ocorre uma
vez; é abrupto, vem, geralmente, seguido de força física; não há a proteção do
agressor, o que facilita a quebra do silêncio e a denúncia; há subjugação, sem
sedução; extrafamiliar conhecido: é mantido no complô do silêncio e; intrafami-
liar conhecido: com maior resistência para quebra do silêncio, podendo ocorrer
no universo da família nuclear (pai, mãe, filhos, irmãos) ou extensa (avôs, tios,
primos e outros parentes próximos, consanguíneos ou por afinidade). O abuso
sexual é transgeracional, isto é, o histórico se repete nas gerações anterio-
res recorrentemente, o que contribui para a sua naturalização e banalização
(TOLEDO; ZARNEK, 2019).
Marx (2004, p.23) afirma que o trabalho no sistema capitalista faz o
homem “[...] negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de
bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas, mas
ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido”. Podemos refletir que
essa fadiga contribui na alienação e naturalização referente as expressões da
questão. A naturalização da violência, intrínseca à sociedade capitalista, nos
afasta da busca pela essência da violação de direitos contra esse segmento da
população, pois, assim como o trabalho se torna alienado, a violência infantil é
naturalizada (BEZERRA; PIANA, 2019).
A exploração sexual é manifesta quando há apropriação comercial do
corpo de outrem, coercitivamente ou persuasivamente, ou seja, quando esse
é colocado na condição de mercadoria para proporcionar lucro ao agente
explorador, sendo identificada em todo o mundo com base na relação sexual
mercantilizada e de poder (BIDARRA; CESCONETO, 2016). Medeiros e Azevedo
(2016) determinam as quatro modalidades de exploração sexual, quais sejam:
prostituição infantil, turismo sexual, pornografia e tráfico para fins sexuais. Muitas
crianças e adolescentes se encontram nesse contexto para contribuir com o
sustento familiar (CARVALHO, 2019).
As relações sociais são definidas pela base econômica e pelas relações de
produção determinantes à estrutura e funcionamento da sociedade. Os indivíduos
têm seu comportamento moldado pelos imperativos econômicos existentes em
dado momento histórico. Se há exploração sexual infanto-juvenil é porque há

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procura, como uma lei de mercado, a qual essas vítimas se submetem a esta
prática, principalmente pela situação de miséria (CHABAN; ARRUDA, 2019).
Silveira e Barreto (2016) trazem a questão de gênero, com conteúdo
rigoroso, implicitamente interligada com a cultura da violência, levando em
conta que a sociedade ocidental contemporânea tem nas suas raízes a herança
do colonizador homem branco e burguês exercendo controle e poder sobre o
feminino e a moral. Monteiro e Silva (2016) concordam afirmando que pesquisas
apontam como principal alvo da violência intrafamiliar as mulheres e crianças
do sexo feminino.
Por fim, em nossa última categoria, no que diz respeito aos direitos, obvia-
mente, o ECA desponta enquanto marco divisor do olhar brasileiro à infância
e adolescência, que retirou-os da condição de objeto, perpetuada pelo antigo
Código de Menores, levantando-os a condição de pessoas em desenvolvimento,
garantindo todos direitos previstos na Constituição Federal de 1988, como a
convivência familiar e comunitária, emergindo a doutrina da proteção integral
e do melhor interesse da criança e do adolescente (SILVEIRA; BARRETO, 2016;
CAMPOS; ROCHA; MENDES, 2019; SILVA; RESENDE, 2019).
A ênfase no trabalho em rede e nas ações preventivas referente às crianças,
adolescentes e suas famílias, também surgiram nos trabalhos como exemplos
de iniciativas em curso que, embora exijam ampliação e aperfeiçoamento, pro-
vocam um impacto positivo nos dados sobre a situação da infância no Brasil
(MONTEIRO; SILVA, 2016). As instituições que constituem a rede de atenção à
infância e adolescência têm um papel importante na prevenção, identificação e
notificação dos casos de violência sexual. Ações isoladas devem ser ultrapas-
sadas, pois é necessário uma articulação vertical e horizontal, ou seja, entre os
poderes municipal, estadual, regional, interestadual e interregionais, com ações
integradas para construção de diretrizes, planos, programas e estratégias para
se estabelecer uma gestão direcionada para o enfrentamento da violência sexual
infanto-juvenil (OLIVEIRA, 2016; MEDEIROS; AZEVEDO, 2016).
O Sistema de Garantia de Direitos enquanto estrutura de política de
atendimento à infância e adolescência no Brasil, é um conjunto de instituições,
organizações, entidades, programas e serviços a esse público e suas famílias,
atuando de forma articulada e integrada, para implementação da doutrina de
proteção integral por meio da política nacional de atendimento infanto-juvenil.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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Esse sistema é constituído por três eixos, quais sejam: promoção, defesa e
mobilização e controle social. No primeiro eixo há o desenvolvimento de polí-
ticas de promoção e proteção, que devem compreender os direitos em sua
natureza transversal e intersetorial. O segundo eixo representa o acesso à justiça
e aos recursos jurídicos para a proteção da criança e do adolescente. E, por
fim, o terceiro e último eixo traz a participação social como foco. O Sistema de
Garantia de Direitos da criança e adolescente, precisa garantir a segurança e
apoio emocional à vítima e ao cuidador não-abusivo responsável pela criança e
adolescente, assim como também, desenvolver intervenção com toda a família
envolvida, incluindo o suposto abusador (SILVEIRA; BARRETTO, 2016; OLIVEIRA,
2016; CARVALHO, 2019).
A política de saúde tem seu destaque nas agendas de trabalho e programas
com suas propostas, estando articulada com outros setores governamentais e
da sociedade em geral. Há um entendimento de que a política de saúde é capaz
de fortalecer o sistema de proteção para a garantia dos direitos de crianças e
adolescentes em situação de violência sexual, bem como responder melhor à
complexidade das demandas trazidas por esse fenômeno (LIMA, 2016). A rede
de saúde foi considerada um campo privilegiado para identificação, acolhimento,
atendimento, notificação, acompanhamento, cuidado e proteção às pessoas
em situação de violência, além de orientações às famílias (BUSCH et al, 2016).
Bezerra e Piana (2019) ressaltam a importância do Disque 100 enquanto
canal de denúncias de violações de direitos humanos contra diversos segmen-
tos da população brasileira, que encaminha os casos aos órgãos responsáveis.
Inicialmente esse canal recebia apenas denúncias de violações contra crianças
e adolescentes, sendo aprimorado sob responsabilidade do Governo Federal
desde o ano de 2003. O referido canal funciona 24 horas e a ligação é gratuita
e anônima, o que auxilia que qualquer pessoa com recurso ou não consiga
abstrair do medo de realizar uma denúncia.
Os CREAS também são citados como responsáveis pela garantia e pro-
teção aos direitos das crianças e adolescentes, amparados pela Constituição
Federal de 1988, eles buscam oferecer um atendimento humanizado para que
as vítimas de violência superem a condição vivenciada. Por meio de um serviço
especializado e multidisciplinar que visa restabelecer os direitos de crianças
e adolescentes com a reconstituição ou fortalecimento dos laços familiares

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afetivos, os CREAS contextualizam seus atendimentos em uma rede integrada
e articulada (MEDEIROS; AZEVEDO, 2016; TOLEDO; ZARNEK, 2019).
Outra dimensão favorável à resolubilidade é a presença do Conselho Tutelar
na comunidade, que possibilita uma abertura para a recepção de denúncias,
para implementar a justiça de proximidade. O encaminhamento ao Conselho
Tutelar é preponderante para aplicação de medidas protetivas de acordo com
cada caso (MORAES; FALEIROS, 2016; PEREIRA et al., 2019).
No que se refere à prática profissional do assistente social, temos a
importância do preparo na formação profissional quanto a acolhida e escuta
dos usuários para propiciar um clima de confiança que permita a verbalização
do fato para uma decisão em conjunto quanto aos procedimentos e acompa-
nhamentos pertinentes em cada caso. Se assim não for, corre-se o risco de se
realizar uma ação profissional desorientada e sem efetividade na realidade do
usuário (CARVALHO, 2016). Assistentes sociais entrevistados (as) por Rodrigues,
Cardoso e Reis (2019) relataram que a falta de capacitação profissional implica
no resultado da questão apresentada, pois a mudança constante nas legislações
reforça a necessidade incessante de atualização por parte profissional já que
atuar sem conhecer o cenário dificulta a intervenção.
Alguns dos desafios profissionais colocados no enfrentamento do fenô-
meno foram o trabalho fragmentado apenas com realização de encaminha-
mentos, a escassez de propostas de intervenções específicas no domínio da
violência sexual, o incentivo a capacitação profissional, a articulação e integração
do trabalho em rede interinstitucional, a quantidade reduzida de profissionais
para o volume de demanda, e a falta de humanização nos atendimentos com
intervenções meramente técnicas, afinal o usuário é uma vítima, mas também
um sujeito de direitos (ROQUE et al., 2019; RODRIGUES; CARDOSO; REIS,
2019). A precariedade de ações especializadas para o enfrentamento desta
violência tende a revitimizar e a impossibilitar o gozo do direito “à liberdade, ao
respeito e à dignidade” (BRASIL, 1990) (BIDARRA; CESCONETO, 2016).
Em nível de prevenção, considera-se importante que os profissionais
incentivem e avancem no debate da sexualidade com os infantes, adolescentes
e suas famílias, o diálogo com respeito, dentro de atendimentos individuais,
grupais ou visitas domiciliares são um avanço para a prevenção e que podem
abrir espaço para a palavra, para a retira de dúvidas do que é compreendido

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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como desagradável e superar barreiras de terror e proibições (CARVALHO,
2019). Em nível de proteção, considera-se importante que os profissionais estejam
atentos ao comportamento demonstrado pela criança, pelo adolescente e pelas
respectivas famílias, com fim de realizar intervenções técnicas que garantam o
rompimento do ciclo de violência (CARVALHO, 2019).
Assim sendo, as categorias teóricas expressam a compreensão do fenô-
meno a partir do seu método de análise, pois é preciso considerar todos os
aspectos implicados na questão. Concordamos com tais escritos que corroboram
entre si acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes enquanto
parte de uma cultura baseada em concepções de infância, adolescência e
sexualidade imbricadas nas relações estabelecidas em nossa sociedade em
suas dimensões econômicas, políticas e sociais. Por isso, acreditamos que a
compreensão desse tipo de violência pelo Serviço Social não pode acontecer
sem que haja contextualização da mesma acerca da relação capital-trabalho,
com os conflitos entre classes antagônicas e exploração e expropriação da
classe trabalhadora. A luta de classes e seus desdobramentos apontados por
Marx trazem o impacto que a condição econômica de cada sujeito causa na sua
trajetória de vida, desde a sua formação até a velhice, na qualidade de vida, e
na diferença de oportunidades que o meio oferece a cada um em sua escalada
social. Essa pesquisa corrobora com tais literários que trazem a extrapolação
do poder adulto e a naturalização da violência que a torna tão corriqueira e de
difícil enfrentamento, e também, por vezes, de difícil tratamento em termos de
categorias específicas.
Para finalizarmos, deixamos nossa posição teórica de que conflitos sociais
são o motor das mudanças sociais e o mundo é administrado por uma classe
dominante que possui seus artifícios para se manter no domínio e, a partir daí,
as relações de poder se ramificam em todas as relações sociais vigentes na
sociedade. Cabe a nós descobrir cotidianamente o mundo que queremos con-
quistar, pautado nos fundamentos da emancipação humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa compreensão, ao longo de todo esse trabalho evidencia que, a


violência sexual contra criança e adolescente é compreendida em seu aspecto

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histórico-social com profundas raízes culturais que se perpetuam com o passar do
tempo, e não apenas como ato individual do agressor. A punição do responsável
poderá ser substanciosa para o desfecho de determinado caso, mas não para
encerrar o ciclo de reprodução de violência. Por isso, qualquer medida tomada
referente ao crime não esgota o fenômeno, afinal apenas apreendendo sua
essência conseguimos incorrer em alguma resolubilidade do fenômeno. É pre-
ciso ultrapassar a concepções de solução repressiva e punitiva que entende o
processo como finalizado após sua sentença, afinal as consequências dessa
reverberam de forma permanente na realidade de suas vítimas. Porém, ao longo
dos trabalhos analisados pouquíssimos fizeram alguma referência a importância
do atendimento ao agressor para rompimento do ciclo, o que observamos da
maioria dos profissionais foram discursos punitivos que cumprem o contrato
social mas não alteram a realidade social.
Ao longo das produções acadêmicas pesquisadas, constatamos que a
maior incidência de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre no
cenário em que ela mais levanta questionamentos e assombros, no contexto
intrafamiliar, e, por isso, a categoria família se levantou como alicerce ao longo
dessa escrita. O que conseguimos observar foi que, apesar de sua relevância,
a categoria cêntrica família não foi apropriada com substância científica, o que
nos causou espanto devido à dicotomia transparente que há hoje nessa insti-
tuição. A família é entendida pela sociedade como espaço de proteção, todavia
ela também pode se apresentar como espaço de violação, e, na atualidade,
com a sobrecarga que o Estado coloca nesse grupo, desresponsabilizando-se,
estamos retomando o familismo. Um projeto verdadeiramente voltado à prote-
ção da família deve ser desfamiliarizante, deve oferecer serviços universais, em
quantidade e qualidade, de maneira continuada, que garanta direitos e incentive
a autonomia dos membros, democratizando as relações familiares até ao nível
do membro mais frágil e independente da hierarquia familiar.
Ao iniciarmos nossa sistematização de dados, nosso foco principal era
compreender se o trabalho profissional tem estado desconectado da reflexão
teórica realizada em toda graduação. Que ao nos encontrarmos envoltos no
cotidiano profissional passamos por um processo de naturalização das demandas,
não nos exasperamos como antes, um novo caso de violência pode se tornar
tão somente mais um caso. Quando naturalizamos as expressões da questão

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


70
social com as quais convivemos isso reflete em um exercício profissional pobre
em sua intervenção, onde os usuários são nomes nas fichas e as realidades não
são mais absorvidas, ouvidas, entendidas. Assim, devemos dizer que nos traba-
lhos pesquisados nos CBAS dos anos de 2016 e 2019, não encontramos escritas
que relacionassem de modo aprofundado o exercício profissional com a teoria
histórico-crítica ou debatessem a partir da categoria trabalho tal expressão da
questão social. Como será possível levantar possibilidades de enfrentamento
e superação dessa expressão da questão social sem retomarmos sua origem a
todo momento? A operacionalização de políticas sociais é um bom band-aid,
mas não o conteúdo de solução da contradição. Obviamente, não pretendemos
com isso levantar alguma possibilidade de que a culpa dessa falta de profundi-
dade no movimento de reflexão seja do profissional, pois bem sabemos que os
vínculos empregatícios a que eles estão submetidos são precários e também
algumas formações podem não ter sido de acordo com o esperado devido ao
aumento do ensino a distância que precariza o processo de ensino-aprendiza-
gem. Sabemos que esse é um outro assunto complexo com material suficiente
para uma nova dissertação, por isso deixamos aqui apenas a semente para
uma nova discussão.
O que verificamos nas produções acadêmicas foram atendimentos buro-
cratizados e idealizados para serem executados por meio da rede de serviços e
políticas intersetoriais de saúde, educação, assistência, entre outras, e também
por organizações não-governamentais que atuem na área. Essa idealização prevê
o acesso a políticas sociais e o cumprimento de determinações de defesa de
direitos e de responsabilização. Desse modo, o foco de atenção são as vítimas
e quais instrumentais podem ser empregados naquela violação. Lembrando
que, até mesmo afastar a vítima do convívio familiar, de maneira abrupta, pode
fazê-la sentir-se culpada pela violência sofrida.
Nesse sentido, acreditamos que os profissionais atuantes nesse campo
devem buscar realizar intervenções conscientes acerca dos atores sociais que
envolvem tal problemática, os violados, os violadores e os familiares. Uma inter-
venção robótica e focalizada tem tendência a se encaminhar para um dos lados
das classes em disputa, e dificilmente, será o lado do trabalhador. O exercício
constante de voltar o exame para além das demandas imediatas é fundamen-
tal para abalar a estrutura social que nos enraíza diariamente em conceitos

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moralistas esvaziados de historicidade. Nesse contexto, entendemos que, a
intervenção no ciclo de violência deve ultrapassar o atendimento ao violado,
a vítima, para melhor se compreender a situação que se apresenta é preciso
superar sociabilidades históricas que resguardam a violência sexual. O Serviço
Social conseguirá, por meio de seu exame atento à realidade e as dimensões
da vida social e questões históricas, abarcar a totalidade para o atendimento
de todas pessoas envolvidas.
Verificamos também nessas produções acadêmicas que, alguns pro-
fissionais não conseguem lidar bem com a violência sexual contra crianças e
adolescentes, vitimizando duplamente o usuário, pela violação e pela indiferença
profissional. A violência sexual contra o público infanto-juvenil é um grande tabu
social e por isso profissionais não sabem como lidar, a violência intrafamiliar,
com o incesto, desperta raiva e desconforto nos próprios especialistas, a capa-
citação pra lidar com a temática é mais do que necessária. Assim, a formação
continuada é uma das estratégias de qualificação para que os profissionais se
sintam preparados para as exigências na implementação de políticas públicas
de assistência social. A reflexão sobre a prática profissional é um caminho para
a análise crítica dos limites e desafios, e para indicar as formas de superação
por meio de novas propostas de intervenção, com elementos apresentados, e
com saberes adquiridos.
Por fim, compreendemos que a ética profissional não é isenta dos processos
de alienação, ela é parte da práxis, que exige consciência e comprometimento
éticos. Porém, todas as ações reproduzem valores, pois na vida cotidiana o
indivíduo incorpora valores e costumes através da socialização, adquirindo
determinado grau de discernimento ético-moral que começa a orientar seu com-
portamento social. Se favorecida por motivações coletivas, a ética profissional
pode ser direcionada a uma intervenção consciente realizadora de direitos que
respondam às necessidades dos usuários. Intervenção esta que se articula, em
termos de projeto social, a uma práxis política motivada pela ultrapassagem
dos limites à plena expansão da liberdade.

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72
REFERÊNCIAS
CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES. 05 de setembro a 09 de setembro de 2016, Olinda,
PE. Anais... Olinda, PE: [s.n], 2016.

CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES. 30 de outubro a 03 de novembro de 2019, Brasília,


DF. Anais... Brasília/DF: [s.n], 2019.

FALEIROS, E. T. S. Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e


adolescentes. Brasília: Thesaurus, 2000.

FALEIROS, V.P.; FALEIROS, E.T.S. Escola que protege: Enfrentando a violência contra crianças e
adolescentes. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade, 2007.

GABEL, M. Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus Editorial, 1997. MARX, K. Manuscritos
Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

PAIVA, L. Violência sexual – conceitos. Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento


da Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro – PAIR; Material Didático. UFMS, 2012.

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FORMAS E TEMPERAMENTOS DA
“ESCRAVA ANASTÁCIA”, SANTA
AFRO-BRASILEIRA

Paul Christopher Johnson


Universidade de Michigan, EUA

10.37885/231014668
RESUMO

A agência ativada por meio de trocas com os santos não está simplesmente
presente ou ausente, mas se manifesta de acordo com a forma das configu-
rações materiais e sociais dos santos e do temperamento evocado pela mani-
festação de determinado santo. Neste ensaio, retomo a história de uma santa
afro-brasileira, conhecida como Escrava Anastácia, e a forma como diferentes
grupos étnico-raciais a representam, de acordo com diferentes efeitos sociais.
Abordo a forma como os santos se manifestam e assumem determinado
estado. O temperamento é inseparável da “presença” das entidades intangí-
veis. Neste ensaio, aproveito essas disjunções radicais entre as formas pelas
quais um mesmo santo se manifesta - Anastácia como mártir sofredora, como
companheira serena, como objeto erótico - para reconsiderar a manifestação
dos santos na intersecção entre forma e temperamento. Enfocando os santos e
sua personalidade, retomo termos conhecidos, como vontade e agência. Pensar
por meio do temperamento nos remete a conjunturas materiais e reverberações
emocionais cuja agência é difusa, mas, não obstante, gera predisposições para
agir de certas maneiras.

Palavras-chave: Santos, Brasil, Agência, Escravidão.

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INTRODUÇÃO

Enquanto nas Américas os afro-descendentes produziam símbolos gigan-


tescos de resistência, astúcia ou vingança - no Brasil, líderes de assentamentos
de escravos fugitivos, como Zumbi; orixás (deuses iorubá e candomblé), como
Ogum, Xangô ou Iansã; inquices (nkisi, poderes do Congo e suas figuras mate-
riais), como Matamba ou Nkosi; ou malandros folclóricos, como Zé Malandro,
flâneurs boêmios que desdenham do trabalho, mas sempre dão um jeito - tam-
bém encontramos exemplos de vítimas desumanizadas, corpos escravizados
que se tornaram objetos de devoção. Suas imagens e ícones suscitam não
apenas compaixão ou repulsa, mas também reverência e afeição. Alguns foram
personagens históricos de carne e osso, como a Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz, do século 18, que, após 25 anos de trabalho escravo, abuso e prostituição
forçada, servindo como “escrava de ganho”, começou a ter visões místicas e a
relatar essas visões com riqueza de detalhes (Mott, 1993). Inicialmente açoitada
e submetida a exorcismo, acusada de estar possuída por demônios, ela mais
tarde foi reconhecida por seu poder visionário genuíno, e suas visões místicas
foram comprovadas. Passou, então, a ser reverenciada como santa, e as pessoas
comuns a procuravam para alcançar milagres1.
Outros santos não originaram de personalidades “históricas” específicas,
de pessoas de carne e osso, mas são híbridos que nasceram da imaginação
coletiva. Um exemplo é a Escrava Anastácia, que alcançou status elevado e
santo no Brasil, no século XX. Santos católicos populares, mas não reconhecidos
oficialmente, como Rosa Egipcíaca, Escrava Anastácia, Santo Expedito e outros
que simbolizam fusões multirraciais, como Maria Lionza na Venezuela (Canals,
2017), ou o malandro maia Maximón na Guatemala e em Honduras, ilustram a
criatividade dos catolicismos de influência africana adaptados à cultura local.
Entre essa ampla gama de personagens, os santos preferidos dos
afro-brasileiros foram duramente reprimidos durante grande parte de sua

1 Para Mott (1993), Rosa possivelmente foi a primeira autora nascida na África que publicou no Brasil. A produção
sobre suas visões foi tão vasta que acabou chamando a atenção das autoridades. Em uma dessas visões, ela
teria sido torturada e depois teria amamentado Jesus. Em 1765, foi acusada pelo Gabinete da Inquisição e
julgada em Lisboa. Seu destino depois disso é desconhecido.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


76
história. As autoridades da igreja eram, em sua maioria, hostis às práticas afri-
canas e afro-americanas, pelo menos até meados do século XX. Ainda assim,
dadas as possibilidades criativas viabilizadas pela vasta categoria de “santos”,
não foi e não é tarefa fácil controlar sua fecunda produção. Roger Sansi, por
exemplo, descreveu uma família italiana de escultores de imagens de santos,
residente em Salvador, na Bahia, em processo de “lançamento” de uma nova
santa, a Nossa Senhora Desatadora dos Nós - que consiste na Virgem desfazendo
um nó - que, de repente, conquistou devotos (Sansi, 2007, p. 37). No norte do
Brasil, até mesmo bandidos e assassinos de beira de estrada se tornaram semi
santos, ou “santos em construção”, depois de serem executados (Freitas, 2000,
p. 198). Eliane Freitas afirma que tais “santos precários” - precários em razão de
seu status moral ambivalente que deu origem à fama - podem ser considerados
bastante convenientes, não só por sua violência incomum seguida de morte
igualmente dramática e dolorosa, mas também por seu status marginal. Presos
em um limbo no purgatório, eles se esforçam o tempo todo para “ganhar pon-
tos” com atitudes benevolentes e, assim, alcançar o céu. Isso os torna bastante
motivados, dispostos e apropriados (ibid.).
Como a Nossa Senhora Desatadora dos Nós ou o “Bandido da Estrada
Sagrada”2, os santos precários costumam ser ativados por caminhos extra oficiais
e improváveis. A Escrava Anastácia surgiu como uma força encarnada a partir
do esboço de um viajante francês do século XIX. Muito mais tarde, a partir de
1971, ela se tornou santa e fenômeno da mídia de massa. Desde então, aparece
em inúmeros santuários e em múltiplas formas, atraindo um fluxo constante
de peregrinos e pesquisas em sites da internet. Santinhos de oração, novenas
em santuários, sites, personagens de novelas e estampas de biquíni são dedi-
cados a ela. Paradoxalmente, visto que sua imagem é de violenta escravidão e
silenciamento, ela circula e “fala” por toda parte. Por meio da figura da Escrava
Anastácia, interpreto a atração ritual pelo corpo-vítima desumanizado como
forma de associar os santos à fonte de poder, vontade ou agência.

2 N.T.: Tradução livre do original “holy highway bandit”.

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O tipo de agência ativada por meio das trocas com os santos não está
simplesmente presente ou ausente, não obstante os esforços de “purificação”
de certas tradições religiosas para fortalecer ou enfraquecer a presença dos
santos (Keane, 2007, p. 54). Ao contrário, essa agência emerge dependendo
da forma das configurações materiais e sociais dos santos e do temperamento
evocado pela forma como se manifesta. A Escrava Anastácia, por exemplo, é
interpretada de diversas formas, e tem efeitos sociais distintos, para diferentes
grupos etnorraciais (Burdick, 1998; Wood, 2011). A pesquisa de John Burdick
(1998) se aprofunda nesse aspecto. De acordo com o pesquisador, as mulheres
brancas de classe média se apegam à Escrava Anastácia como forma de con-
trastar a imensa diferença entre elas, enfatizando a pele escura e a benevolência
e solicitude da santa, como uma forma de troca mais ou menos patrono-cliente
(ou senhor-escravo). Em contrapartida, o envolvimento das mulheres negras
ou mestiças com a Anastácia, quando existe - já que muitos ativistas negros
rechaçam a Escrava Anastácia, que representaria a glorificação perniciosa da
submissão - tem como premissa a proximidade e a semelhança - “ela sofreu da
mesma forma que eu sofro”3 (Burdick, 1998, p. 154); ou o foco é na patologia dos
brancos que causaram o sofrimento, não no sofrimento em si (Wood, 2011, p. 133).
Neste ensaio, aproveito essas disjunções radicais entre as personificações
de um mesmo santo para reavaliar como os santos atuam na intersecção da
forma e personalidade. Com especial atenção aos santos e ao temperamento,
debruço-me sobre os termos mais comuns, como vontade e agência. Afinal, a
“agência histórica” dos atores humanos baseia-se na ideia de que o estado do
presente é o resultado das ações passadas dos indivíduos livres; essa afirmação
parece ser tanto uma invenção do Atlântico Norte quanto uma ideologia liberal
entendida como universal antropológico viável (Chakrabarty, 2000; Keane,
2007, p. 4, 49; Palmié, 2014, p. 231). Essa invenção se torna convenientemente
complexa devido à “agência de intangíveis ‘’ (Espírito Santo, Blanes, 2013, p. 1),
que investiga a atuação de entidades, em sua maioria invisíveis, por meio de
seus efeitos no mundo, incluindo a forma como afetam os chamados indivíduos

3 N.T.: No original, “she suffered in ways like I suffer”.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


78
livres. Como forma de aproximar essas formulações de agência - a forma como
os humanos “agem” de acordo com seus compromissos com deuses, espíritos
ou ancestrais, por um lado, e a maneira como os humanos são levados a agir
de acordo com a ação de intangíveis, de outro - considero como os santos se
manifestam de determinada maneira e induzem um determinado tempera-
mento. O temperamento é inseparável da “presença” das entidades intangíveis.
Ele molda a presença intangível em um ‘pacote’ emocional e material especí-
fico. Tanya Luhrmann (2004) usa o termo metacinesia para descrever como
determinada comunidade aprende a ler corpos (e materiais) como expressões
de certo valor emocional. Por meio da metacinese, os cristãos evangélicos que
ela analisou configuram a presença de Deus em um estado de espírito - Deus
como “um amigo, um confidente, o namorado ideal” (ibid., p. 519); ou, podemos
supor, como rei, juiz, super-herói, delegado ou outro de muitos scripts e estilos
antropomórficos possíveis. O temperamento e o gênero de dada conjuntura
ritual entre humanos e outras agências moldam as disposições, os hábitos e
os imaginários futuros dos devotos.
Webb Keane (2013) observa que as conversões de forma envolvidas na
materialização de forças imateriais (ou desmaterialização de coisas materiais)
e as mudanças de uma forma para outra, que ele denomina “transdução”, são
fundamentais para que os espíritos regressem; ou, em referência ao presente
estudo, o que torna os santos legivelmente presentes. As mudanças na forma
provocam transformações na experiência ou no sentimento humano (ibid., p. 1,
7). Mas pode-se dizer que, mesmo antes das experiências dos humanos com
eles, os santos por si só carregam e transmitem um temperamento, não apenas
em sua figura como ex-atores humanos negociando conflitos sociais reconhe-
cíveis, muitas vezes até convencionais; mas também em sua capacidade de
extrair respostas emocionais e posturas éticas em atores humanos vivos (por
exemplo, Keane, 2016, p. 245). Estar na presença de santos implica não apenas
ver, mas também “ser visto” (Gell, 1998, p. 117; Morgan,, 2012, p. 21). Meu ponto
é que precisamos de formas alternativas de pensar entre a agência humana e
aquela de seu entorno não humano. Pensar de acordo com o “temperamento”
nos aponta para conjunturas materiais e ressonâncias emocionais cuja “agência”
é difusa, mas mesmo assim pode indicar uma direção, ou uma predisposição
para agir de determinada maneira.

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Talvez isso não surpreenda. Afinal, temperamento4 foi usado como verbo,
“to mood upon”, em inglês. Uma carta de Sir John Duckworth a bordo do Levia-
than nas proximidades de Santo Domingo, durante a Revolução Haitiana, diz:
“Voltamos a Porto Príncipe para nos animarmos com nosso plano absurdo e
indigesto” (8 de maio de 1796; apud Markham, 1904, p. 81)5. O neologismo de
Duckworth sugere algo como encharcar-se com uma série de acontecimentos.
Aponta para o fato de que o temperamento não exclui as questões de vontade
individual; antes, as coloca em um agrupamento de relações, incluindo, pelo
menos, pessoas, espíritos, coisas, lugares, sentidos e situações que, em conjunto,
evocam uma sensibilidade de presença santa, neste caso. Eu entendo o tempe-
ramento em seu sentido primeiro, amplo, que conjuga, segundo o Oxford English
Dictionary, “mente, coração, pensamento, sentimento”; ou “estado de espírito ou
estado de sentimentos; o humor, temperamento ou disposição em determinado
momento”.6 O que os santos “fazem”, da perspectiva do temperamento, é ajudar
a edificar um estado benevolente ou generoso, uma combinação e conjuntura
que geram possibilidades e disposições prósperas. A primeira seção explora a
categoria dos santos. A segunda seção relata a conjuntura material específica
que deu origem à Escrava Anastácia. A terceira seção considera três formas
diferentes que produzem três temperamentos distintos nos quais e por meio
dos quais nasce um santo. A conclusão apresenta razões para as mudanças de
humor e a variação nos grupos sociais que se unem em cada situação.

Os santos e os temperamentos

Phillipe Descola (2013) considera a representação como a única qua-


lidade compartilhada entre os fenômenos reconhecidos como “religiosos”: a
representação é

4 N. T.: No original, “mood”.


5 N.T.: Tradução livre do original, “We returned to Port au Prince to mood upon our absurd indigested and blunde-
ring plan”
6 N.T.: No original, “mind, heart, thought, feeling”; or “frame of mind or state of feelings; one’s humor, temper, or
disposition at a particular time.” Oxford English Dictionary, 2nd edition, https://quod.lib.umich.edu/cgi/o/oed/
oed-idx?type=entry&byte=268125694, consulted November 22, 2016.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


80
a instauração pública de uma qualidade invisível por meio de um
ato de fala ou de uma imagem. Sob todas as formas escolhidas
para representá-la, a religião incorpora, a religião encarna, a
religião materializa nas manifestações visíveis e tangíveis as várias
alterações do ser, as múltiplas expressões do não-eu, e as forças
que contêm todos os seus atos7 (Descola, 2013, p. 37).

Se a variedade de seres representados em contextos religiosos pode ser


agrupada em uma ampla classe chamada “encarnados”, quais são as carac-
terísticas específicas do subgênero de encarnados denominados “santos”?
Primeiro, os santos são bastante difundidos. Uma série de tradições
religiosas reconhece certas pessoas como fontes de poder especial e as rotula
como intercessoras. Na maioria dos casos, os santos existem sem legitima-
ção formal ou sanção de uma hierarquia superior. Eles surgem de processos
informais consensuais, da reputação e de uma combinação de sentimentos
de medo, atração e admiração. No Islã, por exemplo, os santos (wali) percor-
rem caminhos diversos para conquistarem autoridade - “santos sóbrios” são
modelos de extrema piedade e atenção escrupulosa à lei; “Santos extáticos”,
em contrapartida, às vezes excedem a lei; eles são possuídos (majdhub) ou
arrebatados (Grehan, 2016, p. 64). Os santos podem ser escolhidos como tais
devido à extraordinária erudição, ou por terem desempenhado papéis históricos
fundamentais. Em Java, as peregrinações focam nove importantes santuários.
Entre estes, estão os santuários dos primeiros muçulmanos missionários. O trá-
fego para as tumbas dos santos é tão intenso que gerou um novo Ministério
administrativo que supervisiona o “turismo religioso” (wisata religi) (Alatas,
2016, p. 611). Em geral, os santos são entendidos como herdeiros do Profeta,
em termos de descendência, e, assim como o Profeta, eles voltam para ajudar
o mundo material, apesar do status elevado (Ho, 2006, p. 41).
O clima de imediatismo gerado em torno dos santos normalmente trans-
põe fronteiras religiosas. No século XIX, muçulmanos e cristãos buscavam em

7 N.T.: Tradução livre do original, “the public instauration of an invisible quality through a speech act or an image.
Under all guises chosen to consider it, religion embodies, religion incarnates, religion renders present in visible
and tangible manifestations the various alterations of being, the manifold expressions of non-self, and the
potencies which contain all their acts.”

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Trípoli bênçãos e relíquias de santos, tanto de “sua própria” tradição quanto
de “outras”. A explicação é simples: os santos foram, e são, “convenientes” de
diversas formas (Grehan, 2016, p. 63). No Brasil, os santos também transpõem
tradições. Praticantes de religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a
umbanda (um híbrido de candomblé e espiritismo), costumam se referir a seus
deuses como “santos”, e associá-los com os santos católicos, baseando-se em
lógicas de similaridade simbólica ou funcional. O Deus iorubá do ferro, guerra e
tecnologia, Ogun, carrega um facão de ferro; em geral, ele é identificado com o
católico São Jorge, que, em cromolitografia típica, é retratado como um cavaleiro
segurando uma lança de ferro e uma espada. A noção de santo une e associa
as práticas católicas e afro-brasileiras. Muitos brasileiros se relacionam com os
dois gêneros de santo. Eles os veem como semelhantes, como duas faces da
mesma entidade, ou representantes de uma “semelhança familiar”, nos termos
de Wittgenstein (1953, p. 33).8
No Sul da Ásia também existe, há muito tempo, uma classe de santos
composta por heróis do passado e homens sagrados ou gurus contemporâneos.
Conforme descrito por June McDaniel (1989), essas figuras são caracterizadas
especialmente por suas visões e transes inusitados. E, claro, a tradição cató-
lica compreende um vasto panteão de santos, oficiais ou não, muitas vezes
exaltados por terem testemunhado experiências de Cristo como Deus, e, por
isso, sofrido bastante9. Os santos ganham autoridade mediante as histórias de
experiências de deuses, que permitem que eles sirvam como intermediários
entre seres humanos e divindades. A importância social dos santos depende de
como sua experiência extraordinária pode ser compartilhada com as pessoas em
geral. O “público” dos santos, então, consiste naqueles que percebem a falta de

8 A noção de Wittgenstein de “semelhança de família”, Familienähnlichkeit, postulou que as coisas podem ser rela-
cionadas por uma série de semelhanças sobrepostas, em vez de um único termo de relação. Em Investigações
filosóficas, 1953.
9 Talvez aqui seja necessário começar pelo reconhecimento da importância comparativa do sofrimento como uma
tecnologia ritual em muitas tradições. Para o povo dacota, por exemplo, certos membros heróicos da tribo são
martirizados durante a Dança do Sol para despertar a piedade e benevolência de Wakantanka, pelo bem da
comunidade. Ou se pensa na figura do bodhisattva no Budismo Maaiana, que, pelo menos em algumas versões,
renuncia ao estado de Buda e pratica o ascetismo radical a fim de salvar os outros do samsara, o ciclo da morte,
renascimento e sofrimento. Poderíamos mencionar vários exemplos comparativos. O sofrimento como forma
de acumular benefícios e, por meio de várias técnicas, transmiti-los através do tempo e do espaço para outros
corpos é um tropo típico de muitas religiões, embora essa prática deva ser questionada.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


82
uma experiência imediata dos deuses, desejam ou valorizam tais experiências,
ou, pelo menos, o ganho que essa experiência traz, e aqueles que consideram
os santos como transmissores de tal imediatismo.
Isso significa que os santos são mediadores, pessoas vivas ou mortas
conhecidas como transmissoras de presença extra-humana. Nas tradições
católicas e afro-católicas, essa transmissão exige um trabalho semiótico subs-
tancial, uma vez que os santos oficiais são por definição “ex” humanos, os
mortos especiais, ao contrário do Islã ou das tradições hinduístas. Os santos
católicos dependem de tecnologias visuais e materiais para se transformar da
condição de falecidos a agentes presentes; para se re-apresentar, fazendo com
que um favor especial seja percebido como ao alcance, em algumas circuns-
tâncias (Engelke, 2007, p. 28; Morgan, 2012; Keane, 2007, 2013). É necessário
um trabalho ontológico e econômico para mostrar como o mérito acumulado
no passado por um corpo ganha crédito e, em seguida, é transferido para as
atuais circunstâncias de muitos corpos. Conseguir essa transferência de crédito
exige técnicas adequadas de discernimento ou “olhar apurado”, de forma que
a bênção ou a graça dos santos - uma “assinatura do santo” (de la Cruz, 2015,
p. 138) - confirme que algo foi conquistado (Wirtz, 2014)10.
Enquanto a maioria dos santos e seus santuários se estabelecem local-
mente, certos santos tornam-se poderes trans-locais e transtemporais, e
atingem até mesmo alcance global, ativado de forma virtual. Nas Filipinas, por
exemplo, de acordo com Deirdre de la Cruz (2015, p. 11-14), Maria e Marianismo
constituem uma forma de unir aparições locais a circuitos globais - Mãe Maria
não é apenas um produto da mídia de massa; ela ajudou a criar a mediação de
massa, como forma e canal de comunicação em escala local e global. A natu-
reza híbrida de um santo que é, ao mesmo tempo, uma pessoa histórica, uma
presença viva, uma coisa material localizada e uma forma de fluxo nacional ou
global é importante porque indica que os santos vivem várias vidas por meio
de múltiplas dimensões, reproduzidas de formas diversas para circular até

10 Kristina Wirtz revive um termo antiquado, “perspicience”, para nomear esse tipo particular de conhecimento; no
contexto afro-cubano, também pode ser denominado “conocimiento ou claridad” (2014, p. 124).

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mesmo séculos depois de seu “nascimento” (como santos) de diversas formas
e em diferentes redes.
A questão da articulação de um santo depende, em parte, da maté-
ria. Os santos dependem de materiais para se mover, existir e se comuni-
car. Na qualidade de forças atuais, os santos existem em e através de corpos,
coisas, imagens e sons. Se poucos devotos estão interessados no esquema
ontológico que embasa a conversão transtemporal e trans-corpórea de crédito,
quase todos são investidos em materiais adequados para que essas conversões
funcionem. Para acessar o poder dos santos, os devotos fazem uso criativo das
coisas e símbolos para estimular os sentidos e evocar as percepções da presença
santa: cerâmicas, velas acesas, flores, notas escritas e fotografias, genuflexões,
mãos pressionadas contra o vidro. Consumar a morte de um santo requer um
esforço igualmente material11. Muitas formas de fazer contato com os santos
imitam o toque e a fala entre humanos (Morgan, 2012). Afinal, os santos são
poderes sobre-humanos, mas também corpos totalmente humanos - tipicamente
distantes e, na tradição católica, ao contrário de outras, sempre fisicamente
moribundos - apresentados em forma tridimensional ou gráfica. Por sua natureza
visual e material, eles existem como formas semelhantes às humanas, dotadas
de muitas das qualidades de corpos de carne e osso: forma, textura, certo grau
de permeabilidade, e são vulneráveis à deterioração pelo tempo. Os santos têm
características visuais, mas também táteis, auditivas e até olfativas.
A presença de determinado santo está materialmente entrelaçada com
os meios pelos quais ele se manifesta, ainda que as pessoas não tenham
consciência disso. Os meios costumam ficar apartados da experiência religiosa
mesmo quando geram a experiência (Eisenlohr, 2011). Birgit Meyer denomina
fenômeno de “desaparecimento dos meios” (2011, p. 32): a forma física, que é
parte integrante da presença do santo, seu quadro material, não é reconhecida;
ao contrário, desaparece ou retrocede para permitir que a experiência do santo
emerja por si só. Ou se reconfigura como espiritual, como uma tecnologia que
impulsiona a tradição ou um acelerador de espírito (Johnson, 2007, p. 182).

11 Ver Zubrzycki, 2016.

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Alguns meios transmitem e amplificam o imediatismo, e muitos rituais não
podem acontecer sem os amplificadores sensoriais, tipicamente sonoros ou
visuais (Meyer, 2011; de Abreu, 2013)12.
Outra característica dos santos é que suas intervenções são miméti-
cas. Os santos são representações iterativas, reconhecíveis pela familiaridade
com atuações anteriores. Reconhecer um santo católico pelo que ele sofreu
espelha e re-instancia o sofrimento do sacrifício de Cristo, bem como de uma
série de outros santos. É por isso que eles geram sensibilidades “históricas” e sua
forma se repete através do tempo, aproximando o presente do passado. Em certo
sentido, para religiosos praticantes a repetição do rito é compreendida como
expressão da continuidade tradicional, mas não é experienciada como mimética
ou redutora, como o enfraquecimento do original. Da perspectiva fenomenológica,
os encarnados sempre se manifestam com força total. Isso tudo leva a enigmas
etnográficos convincentes: no caso da Escrava Anastácia, por exemplo, vemos
um homem/mulher preso(a) a grilhões, presente principalmente em gravura,
vídeo e estátua produzidos em massa - todas essas formas originadas de um
esboço de um diário de viagens de um francês -, mas ainda assim “sentida”
como vividamente presente dentro e através do corpo. A tensão entre mimetismo
iterativo e presença aurática é, talvez, parte do que impulsiona a motivação para
o rito. A eficácia e a autenticidade ideais são sempre incertas e demandam mais
investigação (Wirtz, 2007, p. 130-135).
As considerações acima levantam a seguinte questão: o que, de fato, os
santos mediam através dos materiais? Como imagem e coisa, os santos trans-
mitem a presença de outro lugar e outro tempo - na tradição cristã, costumam
comprovar as personalidades históricas que testemunharam ou experimentaram
diretamente a presença viva de Cristo como Deus, e que por isso foram martiri-
zadas. (E de fato, mártir, que em grego significa “testemunha”, é um título oficial

12 Charles Hirschkind sugere que a ideia de que a religião é “essencialmente” midiática, o que pode exigir pres-
suposições teológicas do tipo protestante de essência interior, então externalizada, de modo redutor. Mas, ele
argumenta, o Alcorão não é mediador das tradições do Islã, muito menos uma expressão redutora; antes, é a
tradição; mesmo que uma bola de futebol não seja mediadora do jogo de futebol, ela é constitutiva dele (Hirs-
chkind 2011, p. 93).

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preliminar que antecede a santificação13). Os santos podem ser usados para
ativar e transformar muitos passados possíveis em projetos ideológicos atuais,
como veremos. No entanto, eles também existem em e através de um “aqui e
agora” empirista, como objetos que atraem devotos, prendem a atenção, atraem
recompensas financeiras, ocupam espaço em um nicho, nártex, santuário ou
oratório, e emanam um temperamento14.
Isso me leva a um quinto ponto sobre as características marcantes dos
santos como encarnados. O mesmo santo pode ser mediado e materializado de
forma semelhante, mas encarnar de formas completamente diferentes. Determi-
nado santo é identificado com determinado grupo de objetos ou coisas, mas essas
coisas, e suas ramificações, podem evocar temperamentos distintos. Um santo
também é sempre uma composição (por exemplo, Latour, 2005), uma sutura
ou uma “junção do somático e do normativo” (Santner, 2015, p. 244) que reúne
diferentes temperamentos e induz as pessoas a certas disposições e formas de
agir. Enfatizo como tais suturas - santo como composição - resultam em expe-
riências diferenciadas, e constituem grupos sociais e características distintas.
Finalmente, os santos têm e inspiram diferentes temperamentos. Talvez
isso não seja tão óbvio quanto parece. Os santos católicos no Brasil ficam irri-
tados quando negligenciados: Charles Wagley descreveu a história de um navio
a vapor que quase afundou pelo crime de guardar São Benedito no porão como
se fosse mera bagagem (1964, p. 22). No sul da Ásia, June McDaniel percebeu
como as visões santas eram acompanhadas por determinado temperamento:
“Os santos descreviam visões de divindades, lugares ou situações específicas,
enquanto em transe, eles eram dominados por certo sentimento ou estado de
espírito” (1989, p. 261)15. Às vezes o clima era de intensa aversão; outras vezes,

13 Sanctorum Mater (Rome 2007), Parte I, “Causes of Beatification and Canonization”, ver Título II, Artigo 4, http://
www.vatican.va/roman_curia/congregations/csaints/documents/rc_con_csaints_doc_20070517_sanctorum-
-mater_en.html - Reputation_of_Holiness_or_of_Martyrdom_and_of_Intercessory_Power, acesso em: 06 abr.
2018.
14 Optamos por “objeto” em vez de “coisa.” Bill Brown, como citado em Engelke (2007, p. 27), definiu “coisa”
como um material perigoso que não “funciona” para nós, pois está vazia de presença ou poder. No entanto,
ainda assim muitas entidades oscilam entre o status de “objeto” e “coisa”. Como será mostrado adiante, não há
consenso se a Escrava é imagem ou ícone, “coisa” ou “objeto”.
15 N.T.: Tradução livre do original, “In visions they saw specific deities, places, or situations while in trance they
would be overcome by a feeling or mood”

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


86
de amor erótico (ibid., p. 91, 97). O temperamento evocado na comunhão dos
santos com determinada divindade pode mudar dependendo do espaço e dos
materiais - em determinado cômodo, Kali não apresentava o temperamento que
em outro espaço (ibid., p. 126). Da mesma forma, Peter Brown, no clássico “The
cult of the saints”, registrou a forma como a presença da relíquia de um santo
no final da cristandade clássica poderia inspirar “um clima de solidariedade”,
“as alegrias da proximidade”, “a sensação da misericórdia de Deus” e “estado
de confiança social” (Brown, 1981, p. 44, 87, 92). As formas de presença dos
santos transmitem certo temperamento, embora não de forma ordenada ou
consistente: o ascetismo de um iogue pode estar ligado a pânico, ternura ou
paixão (Doniger, 1981, p. 252-253).
A noção de “ser-lançado ao mundo”, de Heidegger, descreve a forma como
a existência sempre caminha lado a lado com o temperamento; “ser” sempre
encarna por meio de um prisma emocional (Heidegger, 2010, p. 132, 325). Já os
santos não são “lançados”, no sentido que Heidegger afirma sobre os humanos,
incitados a se relacionar como parte integrante da consciência. Ao contrário,
os santos são intimados em certa situação, tempo, dilema, valência, em suma,
uma “perspectiva” sobre o mundo que confere determinado temperamento, e
cujo estado de ânimo é potencialmente alterado em virtude da convocação e
da presença do santo. Em geral, essa “sintonização” (ibid., p. 130) passa des-
percebida: Walter Benjamin descreveu como, no ato de alcançar um isqueiro
ou uma colher, “dificilmente sabemos o que realmente se passa entre a mão e
o metal, sem contar como isso oscila de acordo com nosso temperamento”16
(1968, p. 237). Possibilitar a encarnação de um santo também demanda um
temperamento que ligue mão a metal, plástico, papel, vidro, argila, gesso -, pois
o santo é tocado através do material que o compõe.
Assim como o ritual de invocar encarnados é uma “forma” de ser-com,
o “temperamento” dá o contorno que liga o conhecido e o enigmático, a rea-
lidade e a expectativa (Lewis, 2014, p. 53). O “estar-com” é influenciado pelo
temperamento: culpa, amor, alienação, esperança. Ou seja, a presença nunca

16 N.T.: Tradução livre do original, “we hardly know what really goes on between hand and metal, not to mention
how this fluctuates with our moods.”

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é simples estar-ali, nunca é inerte. A presença sempre tem direção, movimento
“em direção a” (Heidegger, 2010, p. 133). Descola (2013, p. 47) também enfatiza
direção e movimento, ao afirmar que “um encarnado em geral é inteiramente
definido pelo próprio movimento de se tornar (visível, audível, tangível, eficiente,
representável, adorável, péssimo...)”.17 Observe como ele agrupa, na definição,
movimento, forma e temperamento.
Os santos são lançados em situações (entre outras razões, por se tornarem
visíveis ou audíveis) e permeados pelo temperamento (por exemplo, adorável
ou temido). Além disso, os santos, como outros encarnados, são representa-
dos e narrados de acordo com seu temperamento. É notória a descrição de
Hayden White dos variados temperamentos nas histórias do século XIX - a
ironia singela em Tocqueville (1975, p. 196), a perversidade de Gobineau (ibid.,
p. 196), o otimismo em Ranke (ibid., p. 28), o trágico em Spengler (ibid., p. 27).
White observou que determinado drama histórico é sempre lançado com uma
“matiz” emocional (ibid., P. 144), que carrega inevitáveis implicações ideológicas,
dependendo de qual “revelação” é atribuída a determinado drama social (ibid.,
p. 10, 18). Além disso, as histórias são inspiradas em outras representações que,
por sua vez, também carregam temperamentos - daí a admiração de Burckhardt
pelas pinturas de São Francisco de Giotto (ver Imagem 1), e como elas evocam
certa cena (ibid., p. 253-254).
A questão é que as materializações de santos - como a de Giotto - trans-
mitem um temperamento e essas materializações, por sua vez, se incorporam
às narrativas que também têm tom, valência, cor e direção. Isso influencia a
disposição para agir, que pode decorrer da presença de qualquer encarna-
ção. No caso da Escrava Anastácia, eu investigo as múltiplas formas de presença
que atuam sobre os sujeitos para evocar temperamentos distintos e, por meio
deles, reúnem constituintes sociais específicos.

17 N.T.: No original, “an incarnate in general is entirely defined by its very movement of becoming (visible, audible,
tangible, efficient, representable, lovable, horrific…).”

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Imagem 1: Giotto, “Lenda de São Francisco: o Sermão dos Pássaros,” Igreja Superior, Assis. Jacob
Burckhardt declarou Giotto um virtuoso por representar materialmente uma cena histórica, e através
do espaço arquitetônico restrito do mural de uma igreja (2005, p. 99).

Uma história material de não-existência

Primordial para gerar santos católicos oficiais é a transformação textual


desses santos em uma série de registros testemunhais e catequizantes, que
atestam sua existência física real e beatificação. Já no caso da Escrava Anas-
tácia, sua existência se resume ao nascimento gráfico, ao contrário da maioria
dos santos, que iniciaram a trajetória em corpos reais. Anastácia nasceu em
um desenho do século XIX que representava um escravo anônimo no Rio de
Janeiro18. Embora o desenho fosse comum, abordava um tópico importante - a

18 Ressalto que vários dos santos católicos mais celebrados também carecem de existência “histórica”, incluindo
vários que permeiam a história da Escrava Anastácia, como São Jorge e São Miguel. Agradeço a Richard
Reinhardt pela observação.

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brutalidade das sociedades escravistas nas Américas - e segue impressio-
nando pela representação brutal do sofrimento. O escravo é cingido por uma
algema de ferro em volta do pescoço, e uma focinheira ou elmo (conhecida
como “máscara de Flandres”) cobrindo a boca. Foi só depois de mais de um
século que o desenho foi re-contextualizado, re-imaginado e representado
como uma santa. A vitimização muda de Anastácia se assemelha e, em parte,
replica o sacrifício de Cristo. No entanto, Anastácia representa de forma par-
ticularmente contundente uma total impotência e passividade. Muitos santos
católicos seguem o exemplo de Cristo, voluntariamente submetido à dor em prol
de uma causa maior. Mas parte de seu heroísmo advém da ideia de que eles
poderiam ter resistido ou se acomodado, se quisessem, mas “escolheram” não
fazê-lo19. A história de Anastácia deixa pouco espaço para a vontade própria.
Isso ajuda a explicar por que sua resignação a tornou uma santa non grata
para muitos membros do Movimento Negro no Brasil. Vejamos como tal figura
trágica - na verdade, a figuração de uma figuração -, uma pessoa sem atitude
ou vontade própria, ainda assim se tornou uma santa.20

Tornando-se

A história da Escrava Anastácia está bem documentada. Esta pesquisa se


desenvolve a partir de outras21. A Escrava Anastácia nasceu de uma improvável
convergência material entre tradição, desenho, construção e a circunstância
que os uniu. Primeiro eu descrevo brevemente a tradição do afro-catolicismo,
depois a edificação, um desenho e o livro em que apareceu. Por último, explico
a circunstância que levou ao surgimento da Escrava Anastácia como santa.

19 Aqui, também, há exceções, como o “santo de Auschwitz” Maximilian Kolbe, morto pelos nazistas em 14 de
agosto de 1941. Agradeço a Richard Reinhardt por apontar uma comparação entre santos “sem vontade”.
20 O que chama a atenção no caso da encarnada, a santa chamada Escrava Anastácia, é que “ela”, na verdade,
era uma imagem - um desenho -, que “encarnou” a história da escravidão no Brasil. Para mais detalhes sobre
a Anastácia como representante ou composto de histórias de mulheres reais escravizadas, ver Mary Karasch
(1986).
21 Ver Karasch, 1986; Sheriff, 1996; Burdick, 1998; Dias de Souza, 2007; Handler e Hayes, 2009; Wood, 2011; Paiva,
2014.

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Primeiro, uma tradição. Um ponto da sua origem deriva da tradição de
irmandades afro-católicas das Américas. Como em outras partes das Américas,
no Brasil os africanos formaram confrarias (Mulvey, 1980; Kiddy, 2005; Soa-
res, 2011). Embora os escravos fossem barrados da maioria das organizações
sociais, eram estimulados a participar de irmandades católicas. Com o apoio
do Papa e do rei português, em 1552, os Jesuítas em Pernambuco iniciaram
uma confraria especificamente para escravos (Mulvey, 1980, p. 254), uma vez
que africanos e afro-brasileiros eram impedidos de participar de irmandades
brancas. As mulheres também puderam aderir e assim o fizeram em números
expressivos. Ao fundar as próprias confrarias leigas, os africanos e seus des-
cendentes criaram expressões próprias de devoção afro-católica, ainda que
tenham se tornado “brasileiros” em parte devido à participação nas cerimô-
nias das irmandades. A mais famosa entre as irmandades afro-brasileiras foi
a Nossa Senhora do Rosário, tanto na Bahia como no Rio. Na Bahia, a ordem
inicialmente aceitava apenas angolanos, mas depois passou a aceitar também
escravos e homens livres nascidos no Brasil e, posteriormente, no século XIX,
chegou a ser dominada por jejes falantes de gbe, ou daomeanos (Reis, 1993, p.
151). Outras ordens e igrejas foram associadas aos nagôs falantes de iorubá -
como a Nossa Senhora da Boa Morte, exclusiva para escravos e libertos que se
identificavam com a cidade-estado iorubá de Ketu -, e outras recebiam apenas
pardos, membros de etnias mistas.
Enquanto algumas comunidades não tinham mais do que vinte parti-
cipantes, outras chegavam a ter mais de 500 em cidades com alta densidade
populacional de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Mulvey,
1980, p. 268). A grande maioria dos afrodescendentes participava dessas irman-
dades. Cerca de 80% dos africanos e afro-brasileiros na colônia ingressaram
em confrarias, muitas vezes aderindo a vários grupos ao mesmo tempo (Reis,
2003, p. 45). As confrarias acabaram criando tanto afinidades quanto diferenças
sociais. As irmandades brancas foram divididas por classe, guildas de comer-
ciantes e artesãos, e posse de propriedades. As irmandades negras também
segmentaram a população de várias maneiras, segregando os afro-brasileiros
de acordo com idioma e etnia - e inicialmente formando o complexo afro-brasi-
leiro de “nação” - e, às vezes, por “raça”, distinguindo os nascidos na África de
crioulos negros, e distinguindo mulatos desses dois (Bastide, 1960, p. 156; Reis,

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2003, p. 44). Ainda assim, apesar das estratificações, as irmandades católicas
serviram como raros espaços de humanização compartilhada em uma sociedade
escravocrata brutal. Nas irmandades, africanos e afro-brasileiros conquistaram
posições de mérito e respeito, encontraram a garantia de sepultamento digno
para seus familiares e, o mais importante, coletaram fundos com vistas à ajuda
mútua e à alforria.
Central para a vida social das confrarias era cultivar e honrar o santo
padroeiro específico do grupo, embora o grupo de confrarias produzisse um
panteão coletivo de santos - seus ícones, lugares, procissões, tendências, cores
e datas. Não por acaso, a criação de uma “religião afro-brasileira” também
dependia da criação de instituições que sustentassem uma rede de intercessão
de “santos”, ou deuses (orixás, voduns, inquices), que nos fornece insumos
para compreender a ligação entre os rituais católicos e, posteriormente, os
afro-brasileiros. Em alguns casos, os afro-brasileiros não apenas reforçaram a
importância dos santos já canonizados pela igreja, como também geraram os
próprios santos.
Em segundo lugar, uma edificação. Se a Escrava Anastácia nasceu de
uma tradição de santos afro-católicos, ela surgiu em uma edificação espe-
cífica: a Igreja do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, no Rio de
Janeiro. A Igreja do Rosário começou com a doação de terras em uma parte
central da cidade em agosto de 1701. Em 2 de fevereiro de 1708, o terreno foi
abençoado e a primeira pedra colocada. Concluída em 1710, a Igreja do Rosário
foi construída por escravos. A irmandade que abrigava foi fundada antes, em
1640. Como prova da importância política da Igreja, ela foi a primeira que a Corte
portuguesa visitou quando chegou, em 1808, fugindo da invasão de Napoleão a
Lisboa. De 1710 a 1825, o Senado se reunia na câmara do consistório da Igreja,
e foi da Igreja do Rosário que o Senado conspirou sobre a independência do
Brasil em 1822, quando Dom Pedro I permaneceu no país contra a vontade de
sua família, após seu pai regressar a Portugal.
Em uma tradição e uma edificação adentrou um desenho. Entre 1817 e
1820, um escravo anônimo foi retratado no Rio pelo desenhista francês Jacques
Étienne Victor Arago (Handler e Hayes, 2009, p. 27). O desenho do escravo apa-
receu com a legenda “Châtiment des esclaves, Brésil” (Punição dos Escravos,
Brasil) e foi publicado em “Souvenir d’un aveugle. Voyage autour du monde”,

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


92
em 1839, conforme mostrado na Imagem 2. No Capítulo 6 do livro, um dos três
capítulos sobre o Rio de Janeiro, Arago descreveu detalhadamente o mercado
de escravos e o tratamento dispensado aos escravos, entre as narrativas sobre
a biblioteca e a qualidade do teatro.
Arago descreveu o Brasil como a sociedade escravista mais cruel que ele
já testemunhara e, nesse contexto, e na esteira da Revolução Haitiana, ele se
surpreendeu com a passividade dos escravos. “Santo Domingo, Martinica, Ilha
de França e Bourbon presenciaram muitos dias de revolta, ira e matança. Só no
Brasil os escravos se calam, imobilizados pelo açoite” (1839, p. 119)22.

Imagem 2: Jacques Arago, “Châtiment des esclaves, Brésil,” Souvenir d’un aveugle. Voyage autour
du monde, 1839.

Arago presumiu que a revolta estivesse a caminho, mas enquanto isso (en
attendant) apresentou seu relato de testemunha ocular de tortura: “Enquanto

22 “… Au Brésil seul les esclaves se taisent, immobiles, sous la noueuse chicote.”

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esperamos [pela revolta inevitável], veja aquele homem passando, com um
colar de ferro ao qual foi adaptada uma faca vertical, bem apertada em torno
do pescoço; é um escravo que tentou fugir e agora foi marcado por seu senhor
como vagabundo” (ibid.)23. Então Arago descreveu um segundo escravo de
máscara: “E aqui está outro, com o rosto totalmente coberto por uma máscara
de ferro, com dois orifícios para os olhos, e fechada na parte de trás da cabeça
com uma corrente apertada. Este sofria terrivelmente: comia terra e cascalho
para que as chicotadas cessassem; o chicote o ajudaria a se arrepender do
crime de tentativa de suicídio ”(ibid.)24.
Essas são as duas únicas descrições de instrumentos de escravidão
e tortura que aparecem no texto e que correspondem, ao menos em alguns
aspectos, ao desenho. Vale ressaltar que ambas as descrições textuais são de
escravos do sexo masculino, ao passo que a imagem que se tornou objeto de
devoção e reverência é do sexo feminino. Também não há referência à cor dos
olhos. O desenho original, em preto e branco, contradiz a aquisição posterior
de olhos azuis penetrantes25.
O desenho que se tornou a imagem da Anastácia foi registrado no
contexto do diário de viagem. A literatura de viagens do século XIX retratava o
mundo de uma maneira peculiar. Os relatos de viagens “ao redor do mundo”
proliferaram com autores como Arago, Mark Twain, Charles Darwin, Andrew
Carnegie ou, na ficção, com Júlio Verne. (Arago morreu no Rio de Janeiro, e foi
o mentor e a inspiração de Júlio Verne). Como outros exemplos do emergente
gênero ‘viagens pelo mundo’, os diários de Arago mapearam o planeta de forma
dualística, sobrepondo a própria mobilidade com práticas que posicionavam

23 “… voyez cet homme qui passe là, avec un anneau de fer auquel est adaptée verticalement une épée du meme
metal, le tout serrant assez fortement le cou ; c’est un esclave qui a tenté de s’échapper, et que son maître signale
ainsi comme un vagabond…”
24 “En voici un autre dont le visage est entièrement couvert d’un masque de fer, où l’on a pratiqué deux trous
pour les yeux, et qui est fermé derrière la tête avec un fort cadenas. Le misérable se sentait trop malheureux,
il mangeait de la terre et du gravier pour en inir avec le fouet ; il expiera sous le fouet sa criminelle tentative de
suicide.”
25 É importante observar que a descrição textual de uma máscara de ferro com orifícios para os olhos não corres-
ponde à máscara representada, que apenas impede de comer e talvez falar. Além disso, os dois instrumentos
de tortura, que aparem separados no texto de Arago, viram um só na imagem. Assim, pode ser um equívoco
presumir que Arago pretendesse que o texto escrito correspondesse ao desenho. Ele pode tê-los visto como
representações distintas.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


94
sujeitos brasileiros nos lugares. O desenho de Arago, que mais tarde deu origem
à escrava-santa Anastácia, indica exatamente esse confronto entre mobilidade
e imobilidade, e entre a Europa e as Américas. Por exemplo, Arago descrevia
escravos desempenhando atividades repetitivas, acorrentados e privados até
mesmo da capacidade de conduzir o próprio corpo. Eram humanos represen-
tados como máquinas sem vontade própria, humanos forçados a uma forma
de vida meramente mecânica. Arago era tudo menos indiferente à situação dos
escravos. Apesar de se surpreender com a falta de uma insurreição armada,
suas descrições apresentam alguns como heróis de resistência e caráter. Um foi
o escravo que, depois de chicotadas brutais que rasgaram sua carne, sorriu,
bocejou, se espreguiçou e falou para a multidão que assistia: “Pela minha fé,
eu não consegui dormir” (1839, p. 120); outro sobreviveu à longa contagem de
chicotadas e pediu que fosse feito tudo de novo, só para demonstrar o desdém
pela tortura e pelo torturador (ibid.).
Arago encerra o capítulo sobre a escravidão enfatizando a inteligência
superior dos africanos e afro-brasileiros, contrastando-a com a crueldade pregui-
çosa da classe dominante branca. Estes são os verdadeiros escravos, escreveu
o autor. Com duras críticas às procissões religiosas superlotadas e ao fanatismo
dos católicos, ele encerrou o capítulo insistindo: “Ignorância e superstição só
produzem escravos” (1839, p. 135). Sem dúvida, Arago ficaria atônito ao ver seu
desenho se tornar ao mesmo tempo objeto de devoção religiosa - “ignorância
e superstição” - e fonte de resistência afro-brasileira.
Uma tradição, uma edificação, um desenho, uma “situação”. Posterior-
mente, Anastácia se materializou em uma confluência específica de acontecimen-
tos. Mais de um século depois, como resultado de uma convergência material
improvável, o desenho de Arago reapareceu de repente na Igreja do Rosário. Nos
anos que antecederam a abolição, a Igreja do Rosário foi o ponto de encontro
de ativistas políticos influentes, incluindo Luís Gama, José do Patrocínio, André
Rebouças, Ferrer de Araújo e, talvez, até mesmo a própria princesa Isabel.
Em virtude de sua história política associada com escravos e ex-escravos,
a Igreja também estava ligada ao movimento operário e à esquerda política.
Uma lanchonete frequentada pela classe trabalhadora funcionava do lado de
fora. Administrado pela irmandade, um “Museu do Negro” funcionava em um
canto do segundo andar. Após o golpe de 1964, foi foco de resistência ao regime

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ditatorial e palco de reuniões clandestinas. Vários membros da irmandade me
contaram que o fogo que quase destruiu a Igreja em 1967 provavelmente foi cau-
sado por incêndio criminoso iniciado por agentes do regime ditatorial. A pouco
investigada causa do incêndio nunca foi esclarecida. Grande parte da Igreja,
assim como a maioria dos artefatos e registros do museu, foi destruída.
O destino do desenho de Arago e da Igreja do Rosário convergiu em 1968.
Naquele ano, após a reconstrução da Igreja, Yolando Guerra, o então Diretor
do Museu, retirou a imagem de um exemplar do quase desconhecido diário
de viagem de Arago e pendurou-o na parede do Museu do Negro, no anexo
do andar de cima. A ocasião foi o 80º aniversário da Abolição, proclamada em
1888. Possivelmente, a ideia de retirar a página do livro de Arago e pendurá-la
na parede foi provavelmente motivada pela necessidade de substituir objetos
perdidos no incêndio por coisas e imagens novas, que poderiam contar a mesma
história ou uma história semelhante. Guerra considerou o desenho uma imagem
pedagógica instrutiva sobre a tortura cotidiana durante a escravidão. Ainda que
alguns visitantes possam ter notado o esboço, ele permaneceu relativamente
despercebido até 1971. Mas naquele ano, os restos mortais da Princesa Isabel -
que assinou a lei áurea em 1888 - foram exibidos no museu por duas semanas
no final de julho, antes da transferência de seu corpo do Rio de Janeiro para
Petrópolis, a antiga residência real na região serrana do Rio de Janeiro. Como
parte das cerimônias póstumas, a urna foi exibida em desfile pelo centro da
cidade, acompanhada pela confraria da Igreja do Rosário, conforme ilustrado na
Imagem 3, abaixo. Vestidos com trajes solenes, os membros a carregaram para
a Igreja, a primeira e mais antiga Igreja para negros da antiga capital do país.
O corpo de Isabel ficou exposto por duas semanas, próximo ao desenho
de Arago. Durante esse tempo, milhares de pessoas visitaram o museu e, nes-
sas visitas, se depararam com o desenho de Arago. No final dos anos 1970, a
Igreja ficou ainda mais associada à história da escravidão e, consequentemente,
à Escrava Anastácia quando, durante o processo de construção da linha do
metrô nas proximidades, foram descobertas ossadas, provavelmente de ex-es-
cravos. A devoção às “almas” ganhou força na Igreja e, em particular, às almas
dos Cativos, tidas como portadoras da força dos mártires.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


96
Imagem 3: A irmandade acompanhando a chegada do corpo da Princesa Isabel à Igreja do Rosário,
Rio de Janeiro, 1971 (foto do acervo do Museu do Negro).

O culto à Escrava Anastácia iniciou com um conjunto de acontecimentos,


movimentos políticos e boatos. Incluiu relatos orais de milagres após a exposi-
ção da Princesa Isabel no museu, folhetos populares sobre a suposta história
de vida de Anastácia que imprimiram a ela uma narrativa convincente e sua
incorporação em um crescente movimento de consciência negra dos anos
1970. O Movimento Negro foi construído a partir de décadas de movimentos
anteriores, como a Frente Negra dos anos 1930. Esse projeto brasileiro de direitos
civis colocou a religião, a música e a performance cultural em primeiro plano,
ainda que favorecesse certas representações da negritude em detrimento de
outras (Alberto, 2011). Em 1984, dois irmãos que participaram do movimento
dos anos 1970, Nilton Santos e Ubirajara Rodrigues Santos, patrocinaram uma
tentativa de beatificação, ou mesmo canonização, da Escrava Anastácia como
santa oficial. Os documentos solicitando sua beatificação foram redigidos às
pressas em 17 de maio de 1984, e apresentados a João Paulo II em 22 de junho
de 1984 (ver Imagem 4). A rejeição foi igualmente rápida, enviada da mesa do
cardeal D. Eugenio de Araujo Sales, prelado-chefe do Rio, no dia 3 de agosto.

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Imagem 4: Os irmãos Nilton Santos e Ubirajara Rodrigues Santos durante o processo de pedido
de canonização. Artigo do jornal Última Hora, 25 de junho de 1984 (acervo do Museu do Negro, Rio
de Janeiro).

O julgamento de uma santa precária

O pedido e sua rejeição abordavam diretamente a historicidade e a


existência material da santa escrava. A petição pela santidade preconizava
que Anastácia representava e personificava uma terrível “lacuna na história
do Brasil”. Ela teria nascido “entre 1770 e 1813”, provavelmente na Bahia. Foi
punida e torturada com os instrumentos retratados no desenho de Arago, mas
conseguiu chegar ao Rio de Janeiro - “com a ajuda de filantropos” - e suas feri-
das foram tratadas na Igreja do Rosário. Portanto, Anastácia seria uma pessoa
histórica em carne e osso. Em segundo lugar, a petição afirmava que Anastácia
gozava de enorme devoção “do povo”; que ela seria, de fato, “Mais venerada do
que os verdadeiros santos”. É celebrada nas missas pelas Almas dos Cativos e
representada pela única efígie negra da Igreja. Anastácia é, por direito, então,
um bálsamo “legítimo” para o sofrimento das pessoas, semelhante às Virgens
nacionais, como Salete, Lourdes e Fátima. Em seguida, a petição invocou os

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


98
milagres atribuídos à Anastácia. Para tanto, o pedido de canonização reuniu
um conjunto de testemunhos pessoais escritos à mão sobre seu poder de cura.
Uma das cartas dizia o seguinte:

Cara Escrava Anastácia,


Estou escrevendo para agradecê-la por todas as bênçãos que recebi
por ter fé na senhora. Principalmente sobre a doença da minha
mãe, graças a Deus e a você ela está bem e peço que continue
cuidando dela e de todos nós. Obrigado também por ajudar com
o trabalho do meu marido. Ultimamente estou enfrentando alguns
problemas com os negócios e peço que me ilumine para escolher
o caminho certo. Eu a visitei lá em seu templo em Madureira e eu
tenho muita fé na senhora e peço que continue zelando pela minha
família. Com amor, Marisa

O pedido enfatizou o histórico exemplar de Anastácia, apesar da impre-


cisão quanto às datas de seu nascimento e morte, e também dos detalhes de
sua vida. Em todo caso, no todo, sua existência foi mais importante do que sua
existência biológica. Na verdade, a falta de existência física pode ter impulsionado
seu poder de servir como representação “coletiva” do sofrimento compartilhado.
Apesar de tais argumentos e testemunhos, a igreja rejeitou o pedido, sem
grandes explicações26. A carta do Arcebispo dizia que não parecia haver “qual-
quer possibilidade” de canonização porque não havia “documentos sólidos” que
evidenciassem a verdadeira existência histórica dessa pessoa, seja na vida ou na
morte. “O rigor histórico é o primeiro e indispensável requisito legal”, repreendeu.
Além disso, conforme expressava a carta, não havia respaldo do direito canô-
nico para o tipo de devoção pública concedida a essa pessoa. Na verdade - e
de forma mais ameaçadora - tais práticas deveriam ser banidas pela diocese.
“Arquidiocese do Rio de Janeiro não deixará, em conjunto com a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos e o Capelão da
Igreja, de alertar os féis para a observância das normas eclesiásticas”. Solicitou
a colaboração dos peticionários para atenuar a santidade da Escrava Anastácia:
“Para isso espera também contar com a cooperação inteligente de ambos os

26 A petição e as cartas solicitando a canonização, bem como a rejeição do arcebispo, estão arquivados no Museu
do Negro. Agradeço ao Diretor do Museu Ricardo Passos por ajudar a localizá-las.

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signatários.”. A carta concluía negando aos peticionários a autoridade de fazer
reivindicações à Igreja: “Outrossim, informo ser inadequada a utilização do
termo, “agente de pastoral social.”.
O passo seguinte da negação da santidade de Anastácia ocorreu no
tribunal da opinião pública. Um comunicado oficial da diocese do Rio anunciou
em 26 de agosto de 1987 que “foi determinado e transmitido aos sacerdotes que
se abstenham de aceitar missas em agradecimento, ou qualquer outro motivo,
para a Escrava Anastácia. Essa determinação teve pouco efeito para impedir os
pedidos de realização de missas pelas almas dos escravos”27 (Dias de Souza,
2007, p. 39). O cardeal tomou outras medidas, nomeando um arquivista da
Igreja, Monsenhor Guilherme Schubert, para investigar a origem da ascensão
da santa. Schubert apresentou um relatório devastador, resumido em editorial
da imprensa em 15 de setembro de 1987. O editorial afirmava sem rodeios que
1) Anastácia nunca existiu; 2) a imagem é derivada de um desenho do escritor
francês Jacques Arago; 3) Arago tinha de fato desenhado um homem que ele
testemunhara e combinou, no desenho, dois castigos corporais e instrumentos
de tortura; 4) a ideia da Escrava Anastácia como uma santa mulher de olhos
azuis - a partir de um desenho executado em preto e branco - foi uma invenção
do Diretor do Museu do Negro, Yolando Guerra (falecido em 30 de novembro
de 1983); e 5) considerar essa santa como uma “deusa”, como seus seguidores
às vezes pareciam fazer, contrariava a noção de santidade da Igreja. Cito a
conclusão contundente de Schubert na íntegra:

Assim, devemos chegar à conclusão de que, por mais justo que


seja compadecer-se com o sofrimento dos escravos negros, não
podemos aceitar o culto litúrgico duma figura que não existiu,
baseando-nos numa gravura que não apresenta uma mulher, mas
um homen (melhor: dois homens). Um movimento popular surgiu
pela fantasia inventera do sr. Yolando Guerra. Esta fantasia pode
servir para um romance, um filme se quiser. Se a Umbanda aceita
isso, não sabemos. A Igreja Católica não aceita.” (Jornal do Brasil,
September 9, 1987, p. 11.)

27 De acordo com Dias de Souza, o comunicado da Diocese foi redigido por Dom Romeu Brigenti. A legitimidade
de “almas dos escravos” é uma das razões pelas quais a Escrava Anastácia é apresentada como integrante
desse grupo na Igreja do Rosário da Bahia. Isso permite que sua presença seja tolerada nos limites do espaço
da Igreja.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


100
Na verdade, “a religião da umbanda” aceitava a santa. Os umbandistas
incorporaram facilmente a Escrava Anastácia em seu repertório de entidades
espirituais por meio da semelhança familiar. A Escrava Anastácia tinha paren-
tesco com a família dos pretos velhos, espíritos de escravos e ex-escravos que
aconselham a partir de conhecimento e sabedoria adquiridos com a humildade
e a perseverança. Assim como os espíritos do preto velho, Anastácia era vista
como ancestral, e especialmente reverenciada às segundas-feiras, dia das
almas benditas, e em maio, mês do aniversário da Abolição (Silva, 2007, p. 8).
Por meio da umbanda e do catolicismo popular, e a despeito da campa-
nha da igreja, a devoção à Escrava Anastácia continuou a crescer durante os
preparativos para o centenário da Abolição, em 1988. Diante de uma crise, outros
agentes da Igreja foram chamados para pressionar a opinião pública contra
Anastácia. Em 25 de março de 1988, Dom Marcos Barbosa reiterou a posição:
Anastácia “simplesmente não existiu”28. Em 12 de maio de 1988, o cardeal Eugênio
Salles também argumentou que Anastácia nunca existiu e, portanto, não poderia
ser beatificada ou tratada como objeto de devoção legítima. Não tem nada a
ver com política ou racismo, ele insistiu, mas sim com a necessidade de “não
fomentar a crendice popular”. Contudo, não conseguiram conter o culto popular,
como atestam os milhares que se reuniram na Igreja do Rosário, e esperaram
horas na fila para reverenciar Anastácia. Um ano depois, com a aproximação
de 12 de maio de 1989, as esculturas de Anastácia foram retiradas da Igreja
pela cúria metropolitana e, como lembram os atuais membros da irmandade,
um padre explicou e reforçou a inexistência da Escrava Anastácia como santa
durante a homilia da missa (Paiva, 2014, p. 68).
No entanto, apesar das tentativas de desmerecer e, por assim dizer,
“coisificar”29 Anastácia, o culto a ela rapidamente ganhou força, fora da vigi-
lância oficial da Igreja. Em 1981, um busto da Escrava Anastácia foi erguido em
praça pública - a Praça Padre Souza - no bairro de Benfica, tornando-se um
local movimentado para o culto à Anastácia. Foi erguido com o empenho de
uma devota em especial, Dona Marieta, que arrecadou doações de amigos e

28 Jornal do Brasil, March 25, 1988, Caderno B, p. 2.


29 “Coisificação” deriva do termo criado por Marx “Verdinglichung”.

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vizinhos (Dias de Souza, 2007, p. 39). Enquanto isso, Nilton da Silva inaugurou
um “Templo do Escravo” em Madureira, na zona operária no norte do Rio, e lá
dirigiu a “Ordem Universal da Escrava Anastácia”. Em 1985, o templo foi visitado
por milhares de pessoas com a aproximação do dia da santa e da abolição, 13
de maio. As ruas ao redor foram decoradas com serpentinas e ficaram lotadas
de peregrinos. Em 1985, todos os principais jornais cobriram o dia: Os eventos
começaram com toques de clarim às 5h da manhã e terminaram com fogos de
artifício à noite. As Missas pela Escrava Anastácia foram celebradas por dois
padres da Igreja Ortodoxa Síria, Geraldo dos Santos e Agostinho José Mario;
Nilton da Silva em pessoa conduziu o evento mais popular de todos: uma gigan-
tesca corrente de “mentalização”. O exercício mostrou uma nova extensão da
Escrava Anastácia à Umbanda em relação à classe de espíritos do preto velho
(ver Imagem 5). Mais dois templos dedicados à Anastácia foram abertos em
Olaria e em Vaz Lobo, subúrbios do Rio, com cultos liderados pelo clero da
Igreja Católica do Brasil, e não pela Igreja Católica Romana.

Imagem 5: O ícone de Anastácia posicionado em relação às figuras dos espíritos do preto velho
(foto do autor).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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Fotos da Escrava Anastácia foram divulgadas em publicações importantes
como O Jornal, especialmente por volta de 13 de maio30. Em 1980, eram frequentes
anúncios pessoais em jornais divulgando bênçãos e graças alcançadas com
promessas à Anastácia. Uma favela recebeu seu nome31. Vários jogadores de
futebol, dirigentes e clubes a reivindicaram como padroeira32. Famosas escolas
de samba, como a Unidos de Vila Isabel, elevaram a Escrava Anastácia a um
papel principal nos desfiles de carnaval, transmitidos pela televisão em todo o
país. Toda essa eflorescência se deu em um cenário jurídico em evolução, no
qual a história negra estava sendo instituída no país como um todo - por meio
do dia nacional da consciência negra, por exemplo, e da inserção da história dos
afro-brasileiros no currículo das escolas públicas (Dias de Souza, 2007, p. 15).
Na própria Igreja do Rosário os devotos fizeram vigília no Museu do Negro
para ver a imagem da Escrava Anastácia, assim como de outras entidades, como
o Escravo Desconhecido33. A devoção à Anastácia expandiu-se no contexto
do movimento da Consciência Negra e dos preparativos para o centenário da
Abolição em 1988 e seus desdobramentos.
Surgidas do nada, histórias míticas inéditas contadas em detalhes emer-
giram da biografia de Anastácia. Algumas continuam a circular hoje em dia,
até mesmo em verbetes de enciclopédia. “Pelas poucas evidências históricas
registradas, pode-se dizer que essa grande mártir foi um dos muitos exemplos de
resistência afro-brasileira... seu martírio começou em 9 de abril de 1740”. O ver-
bete segue detalhando sua chegada em um navio específico do Congo, sua bela
mãe chamada Delmira, que foi comprada e estuprada, o posterior nascimento
de Anastácia em Pompeu, Minas Gerais, em 12 de maio, a mesma violência
perpetrada contra Anastácia apesar de sua resistência heróica (Santos, 2008,

30 Ver O Jornal, 13 de maio de 1973.


31 Localizada na Rua General Caldwell, na saída da Avenida Presidente Vargas, próxima ao centro da cidade.
32 Exemplos incluem o time do Bangu durante a direção de Marinho (Mário dos José dos Reis Emiliano), em 1987,
e o jogador Maurício (de Oliveira Anastácio), do América, e depois Botafogo, que declarou: “Em todo caso, eu
saio da cama com o pé direito e rezo bastante pra São Judas Tadeu, pra Nossa Senhora Aparecida e pra Escrava
Anastácia” (Jornal do Brasil, 14 de outubro de 1989, p. 21; trans. mine).
33 Andrea Paiva relata que a escultura do Escravo Desconhecido é de autoria de um argentino, Humberto Cozzo,
e data de 1970. Visitantes sussurram no ouvido do Escravo Desconhecido, tocam seu rosto e deixam oferendas,
como bitucas (guimbas) de cigarro, balas de revólver e bilhetes (2014, p. 56).

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p. 85-86). Outras versões a colocam como uma ex-princesa iorubá e avatar da
deusa Oxum. As histórias se multiplicaram e se espalharam.
Aqui seria prudente resumir as semelhanças e diferenças da Escrava
Anastácia e de outros santos. Como outros santos católicos populares no
Brasil, ela é reconhecida tanto no contexto católico ortodoxo quanto no culto
afro-brasileiro, embora à margem de ambos. Também como outros santos, ela
é conhecida por ter sofrido no passado por uma causa justa, e o sofrimento que
ela suportou a torna capaz de abençoar outras pessoas. Para alcançar essas
graças, é necessário que haja um modo de transmissão ou troca - por meio de
contato, mimese, pedido por escrito e oferendas materiais ou financeiras e ora-
ção. Ao contrário das narrativas de outros santos, contudo, as de Anastácia não
a definem necessariamente como cristã. Ela serve como mediadora, assim como
outros santos, mas não da verdadeira presença viva de Cristo. Ao contrário, seu
martírio não atesta a experiência ou realidade de Cristo como Deus, mas sim a
dor da escravidão e da agressão sexual, tanto dela quanto de sua mãe, como
seus olhos azuis - que indicam a miscigenação - anunciam de forma dramática.
A Escrava Anastácia também é caracterizada por uma personalidade que
foi reduzida à força. Enquanto muitos santos se caracterizam por atos heroicos
de vontade própria, pela recusa desafiadora de renunciar, a fama de Anastá-
cia reside na resistência à vontade subtraída - muda, amarrada, estuprada,
amordaçada e confinada com metais. Ela se move apenas dentro de limites
restritos. Ela vê, mas não consegue falar. Ela cura, mas não pode experimen-
tar. Ao contrário de muitos santos afro-brasileiros, que dançam em corpos de
humanos vivos, Anastácia não se “manifesta” e, portanto, fica imóvel. Ela tem
uma identidade sexual, mas expressa sem agência ou vontade. Ela é uma santa
híbrida metal-carne; seu santo heroísmo consiste em ser capaz de sinalizar
uma personalidade persistente, mesmo dentro e através da cela que a confina.
Diante disso, observamos uma sobreposição estrutural primordial para
resumir a posição exata que Anastácia ocupa: enquanto os santos reconhecidos
foram humanos de carne e osso que testemunharam um ser e uma narrativa
mito-histórico, Anastácia é o inverso - um ser mítico que testemunhou a história
da escravidão que realmente existiu no Brasil.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


104
Formas e temperamentos da presença

Apesar de ser rejeitada como santa de boa fé, Anastácia passa a existir
normalmente - isto é, ela “é” mesmo que, segundo a Igreja, nunca “tenha exis-
tido”. Por exemplo, embora ninguém com quem falei a tenha visto incorporada
em um corpo vivo, um informante explicou com detalhes que a possessão é
relativa. Alguns santos, disse ele, não “possuem”, mas mesmo assim “encos-
tam” em corpos vivos. Possessão como incorporação é uma questão de grau,
continuou ele, um grau de chegar perto de um corpo humano. Para a Escrava
Anastácia, como uma quase santa que nunca existiu de fato, mas sempre esteve
presente, - intersticial em todos os sentidos - as formas possíveis de aparição
permaneceram em aberto. E como a presença é alcançada e com quais formas
e temperamentos? Aqui, considero três diferentes formas e locais de aparição.

A forma histórica e o temperamento de trauma

O lar da Escrava Anastácia, e também seu local de nascimento, é a


Nossa Senhora do Rosário, no centro do Rio, Igreja que recebe um tráfego
incomum. Há um fluxo constante durante o horário comercial, com 20 a 50
pessoas sentadas no santuário a todo momento, e centenas de fiéis para as
missas populares do meio-dia às segundas e quintas-feiras. A Igreja é o centro da
história afro-católica do Rio de Janeiro; foi ali que a escrava Anastácia apareceu
pela primeira vez, ou emergiu como santa, e é ali que ela aparece hoje em dia,
de várias formas. Embora a fama da Igreja se dê principalmente por causa de
Anastácia, seus ícones não estão expostos na entrada ou no santuário. Nesses
lugares, encontram-se os ícones de São Jorge e São Benedito. Os bilhetes dei-
xados aos pés de Anastácia pedem sua ajuda para passar em exames; para ter
paz no lar; para curar problemas de saúde. Muitos bilhetes são apenas listas
de nomes. Uma lojinha na entrada vende imagens de São Jorge, São Benedito
e de muitos outros santos, inclusive da “não reconhecida” Escrava Anastácia.
No anexo da Igreja, no segundo andar, Anastácia desempenha um papel
muito maior. Com 17 ícones ou instanciações diferentes, lá ela fica bem visível
(mesmo porque o visitante está sempre em seu campo de visão), muitas vezes
acomodada em conjuntos ou coleções de elementos afro-brasileiros: escravidão,

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carnaval, candomblé, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Mesmo
dentro do eclético leque de exposições, Anastácia é claramente o foco. Uma
de suas manifestações é como figura pedagógica representando a história da
escravidão no Brasil. Nas instalações do Museu do Negro, o diretor do Museu,
Ricardo Passos, a posicionou estrategicamente, conforme mostra a Imagem 6.

Imagem 6: Escrava Anastácia no Museu do Negro em maio de 2016, em espaço que serve como
santuário e local de exposição de sua história (foto do autor).

Devotos e visitantes do museu contemplam suas imagens centralizadas em


um armário grande. Uma caixa discreta para pedidos ou oferendas em dinheiro
é colocada na base do móvel. No topo fica uma pilha de orações mimeografadas
com instruções para alcançar uma graça de Anastácia. Os administradores
do museu estão sempre atentos à linha divisória entre a representação de
Anastácia como “exibição” e como “santa”. A Igreja quase foi fechada devido
à presença de Anastácia, e o museu ficou fechado por uma década, de 2001
a 2011, pelo mesmo motivo. A razão é uma só: a necessidade de restringir sua
presença, e ao mesmo tempo atentar para o fato de que é por causa dela que
muitos paroquianos frequentam a Igreja. A linha que divide “dentro” de “fora”
da Igreja é crucial.
Para evitar possíveis conflitos com a diocese, e deixar claro que o museu
está “fora” do espaço de rito da Igreja - embora ocupe a mesma estrutura

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


106
física - a mostra inclui instrumentos de tortura não identificados posicionados
acima das figuras de Anastácia, incluindo algemas, grilhões, correntes e argo-
las de ferro. O diretor explicou que essa disposição permite que os visitantes
interpretem as coleções de duas formas diferentes: como um santuário onde
vive Anastácia, ou como uma “exposição”. Manter essa ambiguidade estraté-
gica requer um trabalho diário de curadoria: a equipe tem o cuidado de retirar
oferendas em dinheiro, flores e bilhetes e depositá-los no velário, no andar de
baixo, onde a exibição material de Anastácia se dá exclusivamente para fins
de ritual, e não pedagógicos. No entanto, há evidências claras de que até a
“exposição” da Anastácia no museu é usada como altar e local de troca, visto
que flores, bilhetes e dinheiro são deixados diariamente abaixo de sua cabeça.
Essas oferendas aumentam em certas épocas do ano. O altar/exposição tem
vida própria - se ajusta, expande, contrai, desafia e demanda reação. Quando
saí do Rio no ano passado, o Ricardo tirou um ícone de Anastácia da prateleira
do armário e me deu. Eu protestei, por entender que fosse um “objeto sagrado”
que deve ser preservado. Mas Ricardo simplesmente o colocou no lugar e me
deu um diferente, menor, de outra parte do museu. “As pessoas sempre con-
tribuem”, trazendo novas réplicas de Anastácia, disse. Até os meus textos vão
“ajudar a construir seu altar”. Amontoados na fronteira que separa a história e
a prática religiosa, os altares da Escrava Anastácia estão, talvez mais do que
a maioria dos altares, sempre se ajustando, podendo expandir ou encolher,
adotando novos meios de extensão ou recusando-os.
No museu, a presença de Anastácia expande bastante em maio e novembro,
respectivamente, o mês da Abolição e do Dia Nacional da Consciência Negra
(em 20 de novembro34). Nessas ocasiões, explicou Ricardo, o número de visitan-
tes do museu aumenta dez vezes, de cerca de 50 para 500 por dia. Anastácia
é, ao mesmo tempo, símbolo político e interlocutora religiosa; no museu, esse
hibridismo aparece na forma gráfica. Um pôster apresenta simultaneamente
narrativa histórica e oração: “Deusa-escrava, escrava-princesa, princesa-deusa…
dai-nos tua força para lutarmos e nunca sermos escravas”35.

34 A data foi instituída como feriado escolar em 2003, e como feriado nacional em 2011.
35 É importante observar o tom informal e íntimo de se dirigir a ela (tua força), incomum em orações para outros

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Mesmo no velário (ver Imagem 7), Anastácia permanece ambígua e
ligeiramente escondida. Sua imagem fica ao lado de uma muito maior, de São
Miguel Arcanjo. Assim como Anastácia, o Arcanjo Miguel se preocupa com a
justiça. São Miguel é considerado o cruzeiro das almas e o protetor dos mortos.
Acredita-se que sob a Igreja do Rosário estejam os ossos de escravos falecidos,
descobertos quando cavaram os túneis para a linha de metrô nas proximidades.
Nesse sentido, os papéis de São Miguel Arcanjo e da Escrava Anastácia se
unem como protetores das almas dos escravos. E apesar de a imagem de São
Miguel preencher a vitrine, as de Anastácia são mais numerosas, e a grande
maioria dos bilhetes com pedidos são dirigidos a ela. Esse local recebe muito
mais visitantes do que o museu anexo. A qualquer momento do dia, de uma a
três pessoas estão por ali, e geralmente permanecem por cinco a dez minutos,
tempo suficiente para acender uma vela, aproximar-se, tocar a vitrine da santa
e passar um breve período contemplando ou orando. Calculo que mais de 100
pessoas visitem essa imagem de Anastácia diariamente durante a semana,
e muito mais às segundas e quintas-feiras, quando se reúnem os fiéis para a
missa do meio-dia.

santos.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


108
Imagem 7: Escrava Anastácia exposta ao lado de São Miguel Arcanjo no velário da Igreja do Rosário,
Rio de Janeiro (foto do autor).

Do lado de fora do velário, e tecnicamente fora das paredes da Igreja,


três diferentes mães de santo praticam seu ofício. A mais procurada, a Tia Rita,
que aparece na Imagem 8, tem fila constante, e cobra de R$50,00 a R$100,00
por consulta. O trabalho sendo feito com Anastácia naquele momento estava
menos relacionado à história da escravidão e do racismo estrutural no Brasil, e
mais à solução de problemas imediatos do cotidiano. Isso não significa que Tia
Rita e sua clientela não tenham preocupações políticas. Como escreveu John
Burdick, a devoção à Escrava Anastácia nesse tipo de espaço

ajuda as negras com coisas pequenas e cotidianas para se


valorizarem fisicamente, desafiarem os valores estéticos dominantes,
enfrentarem o abuso conjugal e imaginarem possibilidades de
reparação racial baseada na fusão de experiências reais com
esperança utópica (Burdick 1998, p. 149)36.

36 N.T.: Tradução livre do original “helps negras in small, everyday ways to value themselves physically, challenge
dominant aesthetic values, cope with spousal abuse, and imagine possibilities of racial healing based upon a
fusion of real experiences with utopian hope.”

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Embora os clientes de Tia Rita não sejam exclusivamente negros, longe
disso, é pertinente o argumento de Burdick sobre como a Escrava Anastácia é
invocada para suportar as formas cotidianas de violência.
Vestida de baiana, Rita também é membro da irmandade da Igreja. Ela
me contou sobre algumas “funções” da Anastácia em sua prática. A Escrava
Anastácia é invocada para tratar de questões jurídicas, e de questões de amor,
“porque sofreu muitas injustiças”. Mas ela também é procurada para ajudar
com problemas físicos, como dor de garganta, provavelmente por causa das
dolorosas correntes de ferro em volta do pescoço. Tia Rita explicou que quem
procura ajuda de Anastácia pode precisar retribuir com mais do que velas,
dinheiro ou frutas: “Se você pedir uma graça, deve ficar três dias sem falar,
fazendo o pedido de forma silenciosa”. Se reproduzir sua mudez, o fiel fortalece
essa qualidade e Anastácia se manifesta. Do outro lado da Igreja, a mãe de Rita
também pratica sua fé, lendo cartas e jogando búzios. Um busto da Escrava
Anastácia fica sobre a mesa. Ela me alertou sobre o mau-olhado, a inveja de
um rival. O trabalho dos videntes muitas vezes inclui aconselhar os clientes
a visitarem a Escrava Anastácia dentro da igreja, onde esses clientes devem
realizar tarefas, fazer promessas ou agradecer por ter emprego, saldar dívidas
ou se curar de doenças ou vícios (Paiva, 2014, p. 56-57).

Imagem 8: A vidente e mãe de santo, Tia Rita, trabalhando do lado de fora da igreja. Sua tenda fica
no fundo do velário (foto do autor).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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Videntes como Tia Rita são conhecidas como mães de santo, pois, no
candomblé e na umbanda, presenciam o “nascimento” de recém iniciados,
que aprendem a carregar na cabeça os deuses e santos. Cada nova iniciação
acarreta não apenas o nascimento de um iniciado, mas também o nascimento
de uma nova versão do deus. Esse nascimento duplo - fazer o iniciado, fazer
o deus - é chamado de “fazer a cabeça” (ver, entre outros, Johnson, 2002, p.
108-123). Parte desse processo de fazer a cabeça inclui uma peregrinação à
Igreja Católica, para vincular corporalmente o orixá patrono ao complexo da
santidade católica e, implicitamente, à história da conversão forçada e da “dupla
participação” (Parés, 2013, p. 76-77). Os santos e mães de santo atuam como
encruzilhadas onde as práticas e identificações católicas e afro-brasileiras se
cruzam e muitas vezes se unem, inclusive material e socialmente. Eles também
são lugares onde surge o atrito. A tenda de Tia Rita fica ao lado da Igreja, mas
na parede externa. Ela própria faz parte da irmandade, mas não são poucos na
irmandade que negam a legitimidade do seu trabalho e a eficácia da própria
Escrava Anastácia. Existe um equilíbrio entre os chamados “conservadores” e
outro subgrupo dentro da irmandade que frequenta comunidades religiosas
afro-brasileiras e tratam Anastácia mais ou menos como uma forma de espí-
rito de umbanda ou orixá de candomblé. A presença física de Tia Rita naquele
espaço imprime um elo social entre o candomblé e a Igreja do Rosário, já que
ela conhece a maioria dos padres e das sacerdotisas do candomblé, e eles
costumam parar para visitá-la quando vão ao centro da cidade. De certa forma,
ela funciona como porta de acesso para os praticantes do candomblé na Igreja,
os santos católicos e formas de evocar sua presença e benevolência durante os
rituais. O contrário também é verdadeiro, já que os praticantes católicos podem
aprender com ela sobre o candomblé, a umbanda e Anastácia.
Dentro das paredes da Igreja, no velário, o contato mais frequente com
a Anastácia se dá por meio da visita a sua imagem, quando os fiéis tocam o
estojo de vidro que a protege. Durante esse contato físico, os visitantes incli-
nam ligeiramente a cabeça, em sinal de respeito e súplica, enquanto sussurram
orações. É preciso sempre “pedir com fé” (Paiva, 2014, p. 57).
Se Anastácia, como todos os santos, manifesta-se com mais força em
certos lugares, ela também expande-se para outros locais com forma e tempera-
mento semelhantes. Do Rio ela se transportou para a Bahia, onde também tem

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um santuário na Igreja mais associada à história afro-brasileira em Salvador, a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, como mostrado na Imagem 9.
Seu papel lá, como no Museu do Negro na Igreja do Rosário do Rio, combina
funções didáticas e rituais. A importante Igreja histórica em uma das partes
mais visitadas de Salvador recebe turistas e paroquianos. Os diferentes santos
negros são identificados por placas, em que se esclarecem as várias razões
para seu culto: santos negros renomados e reconhecidos, como São Benedito
e Santa Ifigênia, são exemplos de martírio; outros, como Santa Bárbara, ofere-
cem ligações sincréticas entre o catolicismo e religiões afro-brasileiras, como o
candomblé (Santa Bárbara na Bahia também é conhecida como a orixá Iansã)37.
Anastácia não se enquadra em nenhuma dessas categorias. Ou melhor, ela
serve de ponte entre conceitos católicos de “almas dos mortos” e santos, e os
conceitos afro-brasileiros de santos, orixás e ancestrais. A placa diz,

além disso, observamos no Brasil a crença de que os mártires de


cativeiro e de escravidão intercedem adequadamente as promessas,
e atuam como intermediários das graças recebidas. Em troca desses
favores, os pagadores de promessas encomendam missas pelas
suas almas, fazem doação em dinheiro, levam flores e acendem
velas ao redor de seus túmulos e imagens. É nesse sentido que
se encaixa a devoção à Escrava Anastácia nessa irmandade38.

Devido ao seu status ambíguo, parece-nos importante justificar e explicar


a presença da imagem de Anastácia no seio da Igreja, em virtude de seu vínculo
com uma categoria propriamente católica, as almas dos mortos.

37 Aqui, o termo ‘sincretismo’ é usado com certa relutância por indicar imprecisão e remeter a implicações vagas
de tradições puras em contraste com tradições mistas. Pode ser mais produtivo falar de afiliações sobrepostas;
de práticas multirreligiosas, “arenas em movimento” (Sweet, 2003, p. 114, 203), e culto estratégico de “paralelis-
mos” e “dupla participação” (Parés, 2013, p. 76-77) dentro de ecologias religiosas mais abrangentes e heterogê-
neas. Sobre as genealogias do sincretismo, ver, entre outros, Johnson 2016.
38 Declaração da Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmos (Irmandade dos
Homens Pretos).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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Imagem 9: Anastácia exposta de forma didática, com etiquetas e explicações na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Negros, Salvador da Bahia (foto do autor).

A forma de adoração, o temperamento sereno

No Santuário Católico da Anastácia, no bairro de Oswaldo Cruz, a


escrava se sobrepõe a São Miguel e a São Jorge, outro defensor da justiça.
Mas aí acabam as semelhanças entre a Igreja do Rosário e o Santuário Católico
da Anastácia. As missas são realizadas no Santuário da Anastácia três vezes
por semana, celebradas por um padre da Igreja Católica Apostólica Brasileira.
Essa denominação foi fundada como uma parte dissidente da Igreja Católica
Romana em 1945 e acolhe a Escrava Anastácia como uma santa de boa fé,
além de reconhecer a legitimidade de muitas outras formas de prática popular

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brasileira39. O Santuário da Anastácia foi aberto pela dona da casa há uma década,
após ela ter alcançado a graça de recuperar o carro que lhe fora roubado. Neste
templo, as imagens da Anastácia às vezes ficam junto às imagens de pretos
velhos, da umbanda40. Existem vários espaços para os fiéis deixarem bilhetes e
acenderem velas - alguns estão abertos ao público, e outros são reservados à
devoção dos membros da casa. Em um dos bilhetes, que se encontrava aberto,
alguém implorava à Anastácia que desse “lúcida consciência” para determinada
pessoa, que a livrasse de doenças e de todo o mal, para que seguisse feliz o
“caminho” de sua vida. Outra pedia emprego para o marido. Outros bilhetes
apenas listam nomes. A escuridão e a tortura de Anastácia são claramente
contrastadas com um espaço de imagens de santos e intercessores brancos,
inclusive Cristo.
O Santuário mantém uma página no Facebook onde os visitantes deixam
avaliações (“5 estrelas!”) e comentários - “É aqui que recarrego minhas ener-
gias… Muito abençoada e com imensa Fé… as Missas são maravilhosas”; “Acho
que é lindo e uma bênção de Jesus. Todos deveriam saber disso. Você sente
paz no coração”41. As paredes internas do Santuário são pintadas com murais
coloridos que retratam cenas da natureza - uma cachoeira, flores, nuvens, mon-
tanhas, o sol - e sorridentes figuras de Jesus de pele branca, Maria, e os santos,
conforme ilustrado na Imagem 10. Arranjos de flores de plástico são colocados
ao redor dos bancos e nos cantos. O Santuário está equipado com microfones,
alto-falantes e um teclado. Antes e durante as missas, música clássica suave sai
dos alto-falantes. A atmosfera é de reverência e organizada com cuidado para

39 A Igreja Católica Brasileira foi fundada em 1945 por um dissidente católico romano, o Padre Carlos Duarte
Costa, que se opôs à estreita relação entre o regime ditatorial do presidente Getúlio Vargas e da Igreja Católica
Romana. Costa acusou a Igreja Católica Romana de simpatizar com o nazismo, e também se opôs à infalibili-
dade papal, o celibato do sacerdócio e outras questões. Padres da (independente) Igreja Católica Brasileira há
muito apoiam rituais sincréticos populares, incluindo os da Umbanda, por isso não admira que também tenham
apoiado a devoção à Escrava Anastácia. De acordo com Roger Bastide, “Or il sufit de lire le journal de ce parti,
Luta, pour voir ses prêtres assister à from 1945 aux séances du spiritisme de Umbanda, bénir les statues de
Vierges identiiées avec Yémanja, dires des messes dans les sanctuaires des macoumbas, acheter des terrenos
pour que les nègres puissent y célebrer leurs fêtes si ‘nationalement brésiliennes ’et que l’Église romaine a
pourtant interdites” (1960, p. 324).
40 Embora o proprietário tenha insistido que essas imagens representavam “escravas” assim como a Anastácia, e
nada tenham a ver com os pretos velhos da umbanda.
41 https://www.facebook.com/pg/EscravaAnastacia/reviews/, acesso em 25 de janeiro de 2016.

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comunicar e criar um clima de tranquilidade. Por exemplo, a música de fundo
muda durante as missas. Às vezes, é ativada a função de bateria do teclado e são
entoadas músicas animadas com palmas e palavras entusiasmadas. A homilia
do padre retoma temas de conciliação e aceitação. Ele tranquiliza: “A Escrava
Anastácia suportou e foi abençoada, e você também será”.

Imagem 10: Santuário Católico da Anastácia, Oswaldo Cruz, subúrbio da região norte do Rio (foto
do autor).

O clima de serenidade não indica apenas a falta de envolvimento corpo-


ral. Na missa de quarta-feira à noite em homenagem à Escrava Anastácia e a
São Jorge, das 18 às 19 horas, havia dezoito pessoas, sendo seis homens e doze
mulheres. Apesar de o grupo ser pequeno, o padre Fábio usava microfone e
apresentava um estilo informal e coloquial, sem palavras em latim. A Eucaristia
foi oferecida; após receberem o sacramento, três mulheres se ajoelharam diante
de uma imagem em tamanho real da Escrava Anastácia. Todos se reuniram
em volta da Anastácia para recitar e orar. Seguiram-se leituras e orações a
São Jorge. Os homens fizeram fila para que o padre Fábio colocasse a capa de
São Jorge nos seus ombros, enquanto o padre orava, pedindo ao santo que os

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transformasse em defensores e protetores, como o próprio santo. Os homens
então erguiam a capa, enquanto as mulheres andavam por baixo dela, esten-
dendo a mão para tocá-la quando passavam. Se Anastácia e São Jorge são
aliados em sua sede de justiça, aqui sua sobreposição também revela grandes
diferenças de gênero. O ritual associava os homens a São Jorge e à vocação de
defensores, e as mulheres à Anastácia. Os homens defendem as mulheres, que,
por sua vez, sofrem por todos. O clima de serenidade conciliatória foi alcançado
por meio da atuação corporal ativa.
Não muito longe do Santuário fica o Mercadão de Madureira, principal
ponto comercial do Rio de Janeiro para a compra de materiais religiosos -
estatuetas, ervas, apetrechos, roupas e até os animais vivos, essenciais para a
prática do sacrifício no candomblé. Aqui se encontra uma gama de entidades,
incluindo agentes não humanos de tradições afro-brasileiras em um amplo
espectro, do espiritismo à umbanda e ao candomblé. O mercado é enorme,
formado por centenas de vendedores e multidões de compradores. Estão à
venda estátuas de todos os espíritos, orixá, exu, preto-velho, pomba-gira ou anjo.
Feitas de gesso e pintadas, as imagens são produzidas em série, assim como
as estátuas de outros santos, e ficam sempre disponíveis a preços de fábrica,
tanto para venda online quanto física, para que sejam revendidas com lucro
adequado. O mercado vende de tudo, ao que parece, menos talvez a Escrava
Anastácia, que é difícil de encontrar (ver Imagem 11).
Na minha última visita, perguntei em dezenas de barracas e lojas, mas
localizei apenas três pequenas imagens. A quase ausência de Anastácia surpreen-
deu. Algumas empresas explicaram que “tinham algumas”, mas se esgotaram
por volta de 12 a 13 de maio, o aniversário da Abolição. Muitos lojistas disseram
que nunca estocaram imagens. Alguns me disseram com todas as letras que eu
estava perdendo meu tempo, cometendo um erro de categoria: “A Anastácia
pende demais para o lado católico”, disse um vendedor, portanto, não perten-
ceria ao gênero de produtos das religiões afro-brasileiras propriamente dito, e,
portanto, na maior parte do ano, disse um funcionário. Acrescentou que ela é
muito menos comercializável do que as imagens de pretos velhos, caboclos e
ciganas. Porém, se descesse o quarteirão, saindo do mercado e atravessando
para a loja católica (Bazar Padre Normand de artigos católicos), “com certeza”
encontraria muitas Anastácias. Mas naquela loja também me olharam com

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desconfiança - mais uma vez, um erro de categoria - e me disseram que Anastácia
não era “realmente católica”. Mas apesar dessa resistência, havia um produto
à venda: pendurado em um gancho, um rosário da Anastácia com contas de
plástico, visto na Imagem 12.
Com essa breve descrição dos mercados de materiais religiosos, tão
cruciais para as práticas afro-brasileiras e católicas populares, chamo a atenção
para o fato que a Escrava Anastácia estava presente, mas de forma periférica,
em cada local. Para o mercado das religiões afro-brasileiras, ela era “muito
católica”, apesar de aparecer em épocas de grande procura; para a loja católica,
ela era muito afro-brasileira, mas, apesar de quase inexistente, estava presente
na forma de um modelo específico de contas de rosário de plástico.

Imagem 11: Escrava Anastácia praticamente escondida entre outras imagens no Mercadão de
Madureira (foto do autor).

Em qualquer templo de umbanda, entretanto, Anastácia assume um papel


menos intersticial e mais interseccional, convidando à devoção de todos. Para
cumprir esse apelo em massa, Anastácia ganha um tom ainda mais metafísico do
que o do Santuário para imprimir um estado de aceitação serena. Um exemplo é

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o site de um centro de umbanda localizado a aproximadamente 960 km a oeste
do Rio de Janeiro, no Paraná, o Centro Pai João de Angola:

O espírito da Anastácia é dotado de LUZ intensa e EQUILÍBRIO,


com o coração singelo e iluminado que distribui perdão e amor pelo
criador. Ela destina bênçãos até mesmo aos corações aprisionados
pelo egoísmo e pela cegueira espiritual. Ela se liberta dos grilhões
da ilusão e, como estrela solitária e inesgotável, ilumina os caminhos
de quem busca a emancipação, em nome de Jesus. Humildade e
uma aura de amor são as marcas de sua presença42.

Imagem 12: Rosário à venda na loja católica, Bazar Padre Normand, Madureira (foto do autor).

O modo de mediação de massa e o mercado; o temperamento erótico

A minissérie que lançou a Escrava Anastácia ao estrelato transformou,


em primeiro lugar, a imagem em realeza iorubá e filha de Oxum, uma divindade
popular iorubá e afro-brasileira e, em segundo lugar, enfatizou seu fascínio sen-
sual. A minissérie foi ao ar em 1990 e é facilmente encontrada no YouTube, onde
foi vista milhões de vezes (Wood, 2011, p. 129). O enredo partiu de uma obra de

42 No website, http://centropaijoaodeangola.com/escrava-anastácia.php

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ficção da espírita Maria Salomé, marcando a história de Anastácia como uma
nobre africana, e sua extraordinária evitação. Ela é apresentada à imagem e
semelhança de Cristo e precedida por uma anunciação. O mesmo vale para o
programa de TV, em que Anastácia é interpretada por Angela Corrêa, também
declarada espírita. No primeiro episódio, um babalawo (divindade iorubá) conta
aos pais, rei e rainha, que vai nascer uma criança de olhos azuis, filha de Oxum,
divindade iorubá e afro-brasileira (ibid., p. 132, 134). Mais adiante, na história, ela
ressuscita o filho de um senhor de escravos, e depois disso ela morre e sobe ao
céu como uma pomba branca, uma versão feminina do Cristo africano.
Enquanto outros relatos retratam Anastácia como “bantu” ou escrava
vinda em um navio negreiro do Congo, a série de televisão, programada para
ser lançada mais ou menos na época de sua homenagem (estreou em 15 de
maio de 1990), a descreveu como originária da região mais conhecida e “segura”
da África (embora também fosse aquela que, vale ressaltar, não incluísse a
maior parte do tráfico de escravos para o Brasil até o século XIX). A produção
destacou especialmente a fidelidade histórica, embora fictícia. De acordo com
uma notícia no jornal, “a investigação das origens e a consequente fidelidade
à reconstrução do passado fica evidente em todos os detalhes”43. O diretor,
Paulo César Coutinho, comentou: “O que mais me fascinou foi a possibilidade
da reconstrução histórica de um dos períodos mais instigantes do nosso pas-
sado” Mas para além da questão da historicidade, foi o apelo sexual de Angela
Corrêa/Anastácia que ganhou destaque na imprensa: Uma edição dizia que
ela “podia tornar-se a ‘diva Ébano’ da televisão brasileira”. Isso se confirma
nas cenas em que ela aparece nua, em um cenário deslumbrante de sua “lua
de mel” em uma cachoeira. Corpo perfeito e expressões impressionantes” (O
Estado de Minas Gerais, 18 de maio de 1990). O jornal O Correio (22 de maio de
1990) foi igualmente provocador: “A lenda da Escrava Anastácia, santificada pela
crença popular, desenvolve-se, no entanto, num contexto de tortura humana e
de perversões sexuais e morais”.

43 “A nova superprodução da Manchete”, em Correio Braziliense, 15 de maio de 1990, Caderno 2.

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Mas nada disso surpreende. Como Marcus Wood descreveu, na década
de 1990, Anastácia ocupava espaço em salões de cabeleireiro, cafés, shopping
centers, isqueiros, chaveiros, camisetas e trajes de banho, até mesmo em sites
de práticas BDSM e de “bonecas eróticas” (Wood, 2011, p. 137). Uma loja de
biquínis em Copacabana chamada “Anastácia” também fazia uma provocação,
jogando com o sofrimento da abnegação e o fascínio erótico. Nesse paradoxo,
Wood observou que Anastácia está “congelada para toda a eternidade em seu
terrível mecanismo”, e reduzida à condição de “animal mudo” (ibid., p. 125, 141).
Devemos nos lembrar das possíveis excitações sadomasoquistas presentes
nas aparições comerciais da Anastácia, embora elas geralmente permaneçam
ocultas, nas entrelinhas.
Mas essas representações ficaram bem visíveis durante a São Paulo
Fashion Week em junho de 2012, quando a estilista Adriana Degreas lançou
uma nova linha de moda praia com destaque para a Escrava Anastácia em uma
peça drapeada no corpo da supermodelo loira Shirley Mallmann, como mostra
a Imagem 13. A “focinheira” de Anastácia também foi exposta na passarela,
como um discreto acessório de biquíni, cobrindo o umbigo, em vez da boca.

Imagem 13: Do site de moda http://espacoricardowanderley.blogspot.com/2012/06/cada-lookque-


entrava-na-passarela.html, acesso em 1º de dezembro de 2016.

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Jorraram críticas de moda. Lilian Pacce, apresentadora do programa
semanal GNT Fashion, apresentou uma avaliação detalhada:

Tudo isso com temperos da Bahia: um brocado barroco aqui,


uma renda ali, cores de orixás, estampas pra Iemanjá e até a
máscara de ferro dos escravos. Liberta de qualquer algoz, essas
“escravas” flutuam com longos de seda ou com duas-peças com
bojo pontudo, criando uma silhueta bem anos 50. Nas estampas,
imagens fortes de Anastácia (a escrava-santa), Nega Fulô e muitas
margaridas. Cada look contém declinações singelas dessa Bahia
de Todos os Santos, numa das coleções mais fortes e consistentes
da estilista. A sensação é de que Adriana está completamente à
vontade tanto pra tomar um banho de sol quanto para flanar pelo
barco e – mais ainda – se desnudar com calcinhas brancas de
babadinhos (“bunda rica“, no Nordeste), totalmente transparentes,
que como ela lembra, revelam a cor do pecado: a das negras que
enlouqueciam os senhores brancos. Força que qualquer mulher
vai sentir usando esta coleção44.

Nem todos os espectadores ficaram tão animados. No final de setembro


de 2015, de Londres, Tanya Allison, britânica de ascendência africana, iniciou
uma campanha de moção em change.org:

A estilista Adriana Degreas exibiu, na passarela, um vestido


estampado com uma escrava negra na frente com uma engenhoca
cobrindo o rosto e a boca, que a impediam de falar. Isso não é
moda, é fetichizar e mercantilizar o abuso racial. Precisamos pôr
um fim nisso. Em pleno ano de 2015, ainda estamos sujeitos a essa
forma de racismo e imagens. Não é aceitável adornar um vestido
com uma vítima do Holocausto e não aceitaremos essa forma de
desrespeito aos nossos ancestrais.

Em poucas semanas, a moção obteve 1.733 assinaturas o setor de design


de Adriana Degreas respondeu:

A marca Adriana Degreas não promove, endossa ou aceita qualquer


prática racista ou qualquer outra prática discriminatória ou

44 http://www.lilianpacce.com.br/desile/adriana-degreas-primavera-verao-201213/, Acesso em 4 de junho de


2018.

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tendenciosa em relação a gênero, raça ou crença religiosa. A Coleção
foi criada em homenagem ao estado da Bahia, principalmente
para homenagear a cultura das baianas. A imagem específica
que causou sofrimento (somente fora do Brasil) é a de uma Santa
chamada Escrava Anastácia, uma figura religiosa muito importante
no Brasil, tanto para católicos como para praticantes de umbanda
(religião afro-brasileira). A figura da Escrava Anastácia é sempre
representada dessa forma (com a horrível focinheira de metal)
e ela é conhecida no Brasil como símbolo de força, resiliência e
luta pela liberdade das mulheres. Como muitos outros santos do
catolicismo, ela é retratada em uma situação de martírio45.

Esse desfile levantou diversas questões e as discussões que desencadeou


demandam atenção: vemos, mais uma vez, o tropo da hipersexualidade da Escrava
Anastácia e, por conseguinte, a das “baianas”, isto é, das mulheres negras e
pardas. Aparece disfarçado de homenagem à Bahia, à força das mulheres e ao
martírio católico - três ênfases que revelam um alto grau de tensão entre si.
Ainda assim, o contraste entre os adeptos brancos da imagem (como modelos,
clientes ou objetos masculinos de sedução), por um lado, e uma mártir negra e
uma moção de autoria negra contra tais usos, por outro, mostra perguntas sem
respostas. A “saída” que a empresa de design encontrou foi dizer que todos os
brasileiros reconhecem a homenagem e só os afro-descendentes estrangeiros
se opõem. A acusação de racismo é absorvida pela diferença da cultura nacional.
Apesar de suas evasivas de interesse próprio, havia alguma base para
tal argumento. A Escrava Anastácia era, de fato, um ícone famoso e estrela de
TV, além de uma santa afro-católica. Além disso, os santos católicos oficiais,
assim como os orixás do candomblé e os espíritos da umbanda, costumam
estampar tecidos e outras formas gráficas. No entanto, a resistência à Escrava
Anastácia entre os ativistas do Movimento Negro no Brasil indicam que eles,
como Tanya Allison, consideram a santa-escrava, no mínimo, como portadora
de valor heurístico limitado por trazer a história da escravidão ao conhecimento
do público (especialmente quando vestida por modelos brancas); e, na pior das
hipóteses, uma perigosa fantasia de servidão sexual negra. Argumentam que

45 marketing@adrianadegreas.com.br

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a representação de Anastácia, seja como estampa de tecido, estrela de novela
ou ficção histórica, não deve ser tão facilmente desvinculada do local, da forma
e do temperamento que deram origem a ela.

CONCLUSÃO: FORMA, TEMPERAMENTO E MATERIAIS


Descrevi três formas (modes) e temperamentos (mood) pelos quais a
encarnada Escrava Anastácia ganha vida e é convocada a existir, apesar da
insistência da Igreja Católica em anulá-la: primeiro, a forma como é ativada
no Museu do Negro, como uma mártir cujo sofrimento aponta para a história
atual da escravidão no Brasil, que ela tanto incorpora quanto santifica. A forma
é histórica e às vezes pedagógica, apontando, embora de maneiras criativas,
para corpos reais na história. O temperamento é o trauma.
Em segundo lugar, descrevi como a santa é ativada em seu santuário, onde
Anastácia é uma santa católica e um espírito de umbanda. Naquele espaço, em
que dono, padre e congregação são multirraciais, mas em sua maioria brancos,
a história da escravidão mais ou menos desaparece. O sofrimento de Anastácia
está protegido por vidro, disponível para visita e troca, e associado a outros
santos, como São Jorge, mas desvinculado de contextos políticos históricos ou
contemporâneos. Ela é etérea, mas limitada ao papel de atender às demandas
pessoais e às missas realizadas em seu nome. A forma é serenamente espiri-
tual - santimonial e pessoal, restrita às abordagens individuais. Nesse espaço,
o temperamento da Anastácia é de serenidade tolerante e indiferente.
Terceiro, ela se torna presente no mercado, na televisão, na moda e na
internet. Nesse espaço mais amplo de circulação, seus desdobramentos e sig-
nificados são tão variados quanto seus espaços de uso - um motorista de táxi
coloca uma imagem de Anastácia no espelho retrovisor para proteção, outro a
carrega na carteira para pagar uma promessa que pedia cura. Nos domínios mais
públicos de sua transmissão, porém, um tema predominante é sua sexualidade
limitada e ilimitada, combinando fantasias de dominação - incluindo a incapa-
cidade de falar - e o direito à contaminação violenta e transgressiva46. A forma

46 Como escreveu Georges Bataille, tais atos de forma alguma violam os impulsos genuinamente “sagrados”; ao
contrário (por exemplo, 1986, p. 90).

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é mecânica, em que um corpo-como-máquina é infinitamente reproduzido em
downloads, estampas têxteis, reprises, mimeógrafos e atos sexuais involuntários,
também copiáveis. O temperamento é de submissão erótica.
Para fins heurísticos, também chamei a atenção para três diferentes
espaços e locais materiais que são emblemáticos desses tipos. Claro, nenhum
local específico apresenta uma manifestação “pura” de qualquer uma dessas
formas ou temperamentos - os tipos são combinados de várias maneiras em
qualquer aparência real da encarnada chamada Escrava Anastácia. No entanto,
qualquer local ou situação que encarnar a Escrava Anastácia ficará mais perto
de um ou de outro, como uma posição dominante de atração (Whitehouse,
2004, p. 147). O que importa neste ensaio é que cada aliança ou posição de
atração forma-estado atrai e ativa uma característica diferente do ser material
de Anastácia: em primeiro lugar, os instrumentos de tortura ganham destaque
- a máscara de flandres e a argola de ferro no pescoço. Em segundo, chamam
a atenção os olhos azuis, imaginados como cheios de empatia e compreensão,
até pelos opressores. Em terceiro, seu corpo ganha destaque, especialmente o
abdômen nu. As diferentes formas de encarnar os temperamentos de Anastácia
chamam a atenção para as diferentes características físicas da santa. Essas
formas materiais sempre reforçam o temperamento da santa e a capacidade de
estruturar grupos sociais e suas predisposições para agir de formas distintas.
Por que uma forma da santa predomina e se encaixa em determinado
espaço, enquanto outra é quase totalmente ignorada - digamos, a santa na saída
de praia da Igreja do Rosário, ou a imagem de corpo inteiro da Escrava Anastácia
espiritual entre os ossos no velário rústico? Obviamente, existem restrições impos-
tas por regras e normas, como aquelas catequizadoras da Igreja Católica sobre
santidade, entre outras. Mas mais importante é que cada versão materializada
da santa emite e é revestida de temperamentos. Existe um ajuste. Esse “ajuste”
tem muitos componentes, incluindo resíduos históricos que aderem ao encar-
nado e moldam sua forma. Até a cor da pele nas representações de Anastácia
está correlacionada socialmente a esse ajuste. Marcus Wood observou como
as várias gravuras reproduzidas de Anastácia aparecem em diferentes tons de
negritude - mulata, pele escura -, de modo que todo mundo pode se identificar
na imagem da santa (2011, p. 143). Contudo, os resíduos são mais espessos e se
fixam mais em certos locais do que em outros, e não são facilmente apagados

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ou refeitos. Certas formas de manifestação da Escrava Anastácia fazem com
que a história da escravidão que realmente existiu seja amplificada, enquanto
outros enunciados a enfraquecem. Como um devoto declarou: «Sou devoto
da Escrava porque ela era escrava, entendeu?» (Paiva, 2014, p. 61). O templo
católico brasileiro em Oswaldo Cruz, os centros de umbanda e espírita e a
passarela da moda paulista apresentam exemplos de sua racionalização e seu
desligamento ou desvinculação da forma histórica. Na forma histórica, o sofri-
mento da Anastácia é redentor porque apresenta possibilidades para o presente.
Como Robin Sheriff (1996) propôs, a Escrava Anastácia simboliza ou expressa
a experiência real aqui-e-agora de afro-brasileiros amordaçados. Ela amplia a
história da escravidão de uma forma que expõe a desigualdade de gênero e o
fato de que a escravidão pesava sobre os corpos femininos de forma diferente
daquela vivenciada pelos homens.
Talvez possamos dizer que quanto mais permeável e adaptável a Escrava
Anastácia se torna, mais se distancia de seu local de origem acidental, a Igreja
do Rosário e de São Benedito dos Negros - se distancia das ossadas dos escra-
vos, do lugar onde os restos mortais da abolicionista Princesa Isabel ficaram
expostos, das salas onde os abolicionistas conspiravam e das cinzas do incêndio
provocado pelos autocratas -, mais permeável e indefinível “ela” se torna. Ela
se pixelizou e diluiu, e agora pode se tornar mãe servil, espírito frágil, princesa
iorubá, fantasia de um navio de cruzeiro; caricaturas ironicamente mais próximas
de seu lar material e local de surgimento.
Rituais de aproximações com santos-escravos, como a Anastácia, ocorrem
durante um temperamento específico que compreende o santo e a pessoa que
o invocou. Ou seja, o temperamento não existe necessariamente nas pinturas
vivas (tableux vivant) ou nas encenações materiais do santo, nem no estado
emocional do ser humano vivo. O “temperamento” une as duas entidades e
nasce e se sustenta no encontro e na troca. Procurei apontar ao menos três
alianças de formas e temperamentos, embora não haja mais dúvidas. Em todos
os seus vários disfarces, a presença da Escrava Anastácia evidencia contras-
tes que normalmente ficariam escondidos e os torna palpáveis: entre preto
e branco, mulheres e homens, mito e história, liberdade e escravidão, voz e
silêncio forçado, integridade e violação do corpo, vivacidade e morte. A forma
e o temperamento que ativam sua presença ajudam a moldar a configuração

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desses contrastes e, por meio deles, as disposições, as esperanças, as histórias
e os futuros imaginados de seus devotos.

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05

LA OBRA DE PABLO NERUDA A PARTIR


DE LA PELÍCULA ‘NERUDA’ (2016) Y SUS
CASAS-MUSEOS EN CHILE

João Eduardo Hidalgo


Universidade Estadual Paulista (Unesp)

10.37885/230914420
RESUMEN

El encuentro en América entre el conquistador español y los pueblos autóctonos


fue profundamente traumático para el segundo grupo. En este artículo se habla
de la colonización en la América del Sur, a través de los argumentos creados
por Tzvetan Todorov, de la obra poética de Pablo Neruda y de la película exitosa
hecha por el director chileno Pablo Larraín, en 2016. Los resultados de la coloni-
zación, la lucha pela democracia, que viene cuando Neruda todavía vive, están
representados en sus poemas y en la magistral película que aquí se comenta,
de una realidad social muy específica de Chile.

Palabras-clave: Neruda, Chile, Dictadura, Allende, Larraín.

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131
1.INTRODUCCIÓN

El proceso de colonización de América Latina es el de una empresa, hecha


para sacar lucro, lo más grande posible de esta tierra, de su pueblo y de sus
recursos. En este artículo hablaremos de la colonización en la América del Sur,
a través de los argumentos creados por Tzvetan Todorov, que habla de cómo el
europeo vio, o no, el otro, el indio, los pueblos originarios. Este acercamiento se
hace a partir de la obra poética de Pablo Neruda, unos de los grandes poetas
del Siglo XX, discutimos algunas de sus poesías y la película exitosa hecha por
el director chileno Pablo Larraín, que ya tiene una carrera internacional conso-
lidada hace algunos años. Su película Neruda, del año de 2016, muestra la vida
adulta de Neruda, su período de político actuante y su posterior huida del país,
por el cambio político, todo valorado por los cincuenta años recorridos desde
el golpe militar de 1973, que cambió para siempre la vida de Neruda y de Chile.
Para empezar a pensar el territorio de Chile conquistado, su pueblo
sometido y asesinado, veamos lo que escribe Neruda en ‘Canto General’, de
1950, que fue publicado en México, mientras Neruda estaba en el exilio:

Ya de la Araucanía los penachos


fueron desbaratados por el vino,
raídos por la pulpería,
ennegrecidos por los abogados
al servicio del robo de su reino, (…)
Así perdió sin ver, así invisible
fue para el indio el desmoronamiento
de su heredad: no vio los estandartes,
no echó a rodar la flecha ensangrentada,
sino que lo royeron, poco a poco,
magistrados, rateros, hacendados,
todos tomaron su imperial dulzura,
todos se le enredaron en la manta
hasta que lo tiraron desangrándose
a las últimas ciénagas de América.
(Neruda, 2013, p. 178).

Sobre la biografía de Neruda hablaremos enseguida, en 1923 publica sus


primeros libros de poemas, en 1927 entra para el servicio diplomático de Chile,
viaja para Europa y retorna en 1939, en 1945 se elige diputado por el Partido

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


132
Comunista Chileno, en 1948, hay un cambio político, el Partido Comunista es
disuelto y Neruda tiene su prisión decretada, huye para Europa en 1949. Por
esa razón publica esta obra fundamental gestada durante estos años de lucha,
sufrimiento y aprendizaje cuando está fuera de Chile. Neruda queda el período
de la Guerra Civil Española y el comienzo de la Segunda Guerra Mundial en
Madrid, ahí presencia la muerte de Federico García Lorca, su amigo poeta, que
fue fusilado y ayuda a muchos españoles y extranjeros a venir a vivir en Chile,
para salvar a sus vidas. En 1943 vuelve a vivir en Santiago, con su segunda mujer,
vuelve su atención para la vida de los trabajadores de Chile, para los que no
‘tienen zapatos, ni escuela’. Para su sorpresa al juntarse al Partido Socialista es
elegido Senador, con un apoyo enorme de los campesinos y trabajadores del país.

Esta gente sin escuela y sin zapatos me eligió senador de la república


el 4 de marzo de 1945. Llevaré siempre con orgullo el hecho de que
votaran por mí millares de chilenos de la región más dura de Chile,
región de la gran minería, cobres y salitre. (Neruda, 1974, p. 231)

Chile es un país complejo, nace en el polo sur y se alarga hasta el desierto,


con sus salares y lagunas donde no llueve hace más de siglo, en el sur lo que
más hay es lluvia y humedad. Para Pablo representar estos hombres sufridos
en el Parlamento fue lo más importante de su vida. Él que venía de una tierra
de árboles, ganadería, lluvia, tuvo que entender y caminar por el silencio del
desierto y de las cordilleras. Pena que duró poco. En 1949 el presidente Gonzáles
Videla declara ilegal el Partido Comunista, Neruda es declarado fugitivo y se
esconde primero en Chile, después cruza la frontera por los Andes y se refugia
en Europa, de esta etapa trata la película ‘Neruda’.
En los versos aquí destacados Neruda escribe la poesía ‘Los indios’,
dentro del ‘Canto general’. En ella está representada de la Araucanía, o la tierra
de los Araucanos, también llamados Mapuches, pueblo originario de Chile, que
ocuparon todo el extremo sur de América del Sur. Tenían como cultivo produc-
tos que el colonizador no conocía, maíz y patata principalmente, acordarnos
que hoy solo por freír la patata (original de América) se le nombra ‘French fries’
papas francesas, lo que no lo son, una colonización estética. Los Araucanos,
así como los obreros pobres, los mestizos entre las razas, sufren la exploración
de los terratenientes, magistrados, hacendados, rateros que les sacan todo.

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Debemos acordarnos de que el árbol Araucaria, típica de la región, que lleva
el nombre del pueblo, y que por paralelismo nombra la región donde vivían
los Araucanos, es un árbol muy antiguo como los Mapuches o Araucanos, y
que es el árbol símbolo de Chile. Neruda muestra de forma estética como los
colonizadores destruyen estos pueblos, con sus ‘pulperías’, un tipo de bar o
tienda, donde se vende de todo, pero principalmente la bebida, que aplasta a
estos pueblos, que a ella recuren para olvidar sus penas cotidianas. Al final del
poema están los Araucanos, machacados y alejados de sus territorios originales
y desterrados para el más extremo sur, donde no hay nada más de ciénagas,
pantanos y charcos.
Cuando Neruda tiene que huir para supervivir, tiene que ir a la Frontera,
a la Araucanía. La Frontera era la región límite de la Capitanía General de Chile
y después de la República de Chile, defendida por los Araucanos, hasta que se
les vencieron, de la manera que describe Neruda en su poema.

PABLO NERUDA

Cuando Ricardo Eliecer Reyes Basoalto, quien eligió llamarse Pablo


Neruda, para escapar de la persecución de su padre contra su don de escribir
poesía, murió el 11 de septiembre de 1973 en una clínica de Santiago de Chile,
una vida dedicada al amor, a la lucha política y a la diplomacia llegó a su fin.
Las mujeres, la valorización del pueblo campesino trabajador oprimido de Chile,
además de su vida política por el Partido Comunista, por el cual fue senador
(revocado) y candidato a la Presidencia de Chile, cargo al que renunció en
favor de su aliado Salvador Allende (1908-1973), - quien ganó las elecciones,
fueron los puntos fuertes de su biografía. Neruda murió de cáncer de próstata
apenas doce días después de que su amigo Salvador Allende también muriera,
o fuera asesinado, dentro del Palacio de La Moneda, bombardeado por el ejér-
cito comandado por el traidor Augusto Pinochet. Tras su muerte, el cuerpo fue
sepultado en Santiago, en una tumba prestada, en 1974 fue desenterrado para
poder cambiar la tumba por otra, ahora propiedad de su última esposa Matilde
Urrutia (1912-1985). En 1992, luego de 17 años de dictadura militar, la democracia
conquistada por un plebiscito popular insistió en trasladar el cuerpo de Neruda
a su casa en Isla Negra, deseo que él había expresado en su poesía.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


134
Pablo Neruda nació el 12 de julio de 1904 en el sur de Chile, en El Parral,
Provincia del Maulle, a 350 kilómetros de Santiago. Hijo de un trabajador ferro-
viario y de una maestra. El entorno del centro-sur del país, sus bosques y el mar
omnipresente en Chile serán elementos constantes de su obra. Sus palabras son:

Comenzaré diciendo, sobre los días y años de mi niñez, que el


único personaje inolvidable fue la lluvia. La gran lluvia austral que
cae como cascada desde el Polo, desde Cabo de Hornos, hasta la
frontera. En esta lejana frontera de mi patria nací para la vida, para
la tierra, para la poesía y para la lluvia. Palabras de la ‘Autobiografía
Confieso que he vivió’ (Neruda, 1974, p. 13)

Este libro es la principal referencia para entender la obra y vida de Neruda,


editada en 1962 bajo el título ‘Las vidas del poeta’, que luego de su muerte fue
reeditada bajo el título de ‘Confieso que he vivido’, en 1974. En ella Neruda se
presenta como un gran cronista de su tiempo y habla con cariño y detalle de
sus amigos como Federico García Lorca, Rafael Albertí, de sus amores, de sus
enemigos, de las persecuciones políticas, de golpes, elecciones. En un capí-
tulo habla de la infancia y vida de los campesinos: “La vida era dura para los
pequeños agricultores del centro del país. Mi abuelo, don José Ángel Reyes, tenía
poca tierra y muchos hijos. Los nombres de mis tíos me parecían nombres de
príncipes de los reinos lejanos’. Este artículo se basa en esta autobiografía y en
la premiada película Neruda, dirigida por Pablo Larraín, de 2016.

Camaradas, entiérrenme en Isla Negra,


frente al mar lo sé, cada área áspera
de piedras y olas que mis ojos perdidos
no volverán a ver. (Neruda, 2003, p. 125)

Hablo aquí de la muerte por pura casualidad, en Chile en septiembre de


2016, en plena primavera en la Casa de Isla Negra, una de las tres casas museos
de Pablo Neruda, mantenidas por la Fundación Neruda, había un cartel de
protesta que estaba pegado al lado de la tumba de Neruda y Matilde, que está
en la ladera de la gran parcela donde se ubica esta casa. El cuerpo de Neruda
fue desenterrado por tercera vez el 8 de abril de 2013, para comprobar la posi-
bilidad de envenenamiento del poeta, hecho que hubiera acelerado su muerte
inminente. La investigación quedó inconclusa, y así estuvo hasta 2016, cuando

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la fundación exigió la devolución de los restos de Neruda, quien fue enterrado
una vez más, en 26 de abril de 2016, donde soñó estar.

Foto 1. Tumba de Neruda y de Matilde, La isla negra, 2016, Chile (Autor).

Chile respira a Neruda por doquier, en la capital Santiago sus versos se


estampaban en las ventanas y puertas del metro, se anuncian representaciones
de sus poemas en el periódico, en varios teatros de Santiago, un patrimonio
inmaterial de la sociedad chilena. Comparado a Gabriela Mistral (1889-1957),
primera premio nobel de Chile (1945), que no tiene ese respeto conmemorativo.
Neruda construyó estas tres casas, cada una de las cuales tiene un
nombre dado por él y una historia de construcción física y poética que apa-
rece en sus versos. En la playa de Quisco (Valparaíso) Casa de La Isla negra,
en Valparaíso La Sebastiana y en Santiago La Chascona. La Fundación Pablo
Neruda fue creada en 1986, un año después de la muerte de Matilde Urrutia, la
tercera esposa de Neruda, quien dejó en su testamento que todos los bienes
y derechos de autor revertieran para esta institución, que cuidaría la memoria
de la obra de Neruda.

¿Por qué el nombre de Neruda?

¿Muchos se preguntan por qué Neruda? Durante la segunda guerra, con


Pablo Neruda en México, en una reunión de intelectuales, el humorista y escritor
checo Egon Erwin Kish quiso saber el origen del apellido, que él reconocía como

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136
siendo de su país natal. Pablo hizo misterio y solo lo reveló años después en sus
memorias. A los 14 años escribía poesía, cosa que a su padre le desagradaba
mucho, por lo que copió el apellido de un escritor checoslovaco, Jan Neruda,
del que no tenía ninguna información, además qué él también era un poeta.

Foto 2. La playa que se llama Isla Negra, cerca de Valparaíso, aquí frente a la Casa Neruda, 2016,
Chile. (Autor).

Isla Negra

Saliendo del sur, de la distancia y de la pobreza Neruda publicó su primer


libro ‘Crepusculario’ en 1923, que fue muy elogiado por la crítica y le animó a
publicar otro al año siguiente, ‘Veinte poemas de amor y una Canción deses-
perada’, que fue éxito mundial. En 1926 publicó su única novela ‘El habitante y
su esperanza’. Después inició la carrera diplomática y se fue a Oriente, en Java
conoció a la bella holandesa Maryka Antonieta Hagennar Vogelzanz, con quien
se casó en 1930 y con ella quedó hasta 1942. Durante la Guerra Civil Española
(1936-1939) Neruda era Cónsul en Madrid, vivía en el barrio de Argüelles y
conoció a la artista plástica argentina Delia Del Carril, él tenía 32 años ella 52
(increíblemente ella muere 15 años después de Neruda). Neruda regresó a Chile
en 1939 y compró su primera y más importante casa, la de Isla Negra:

Empecé a trabajar en mi Canto General. Para esto necesitaba un


lugar de trabajo. Encontré una casa de piedra frente al mar, en un
lugar desconocido para todos, llamado Isla Negra (en realidad se
llamaba Las Gaviotas, Neruda le dio el nombre que fue definitivo).
El dueño, un viejo socialista español, capitán de navío, Don Eladio

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Sobrino, lo estaba construyendo para su familia, pero decidió
vendérmelo. ¿Cómo comprarlo? Ofrecí el proyecto de mi libro
Canto General, pero fue rechazado por la Editorial Ercilla, que
estaba publicando mis libros en ese momento. Con la ayuda de
otros editores, que pagaban directamente al propietario, finalmente
pude comprar mi casa de trabajo en Isla Negra en 1939. (Neruda,
1974, p. 191)

Para visitarse la Casa de Isla Negra de Valparaíso se puede ir en bus, o


en coche, hasta Quisco, todos saben dónde está, por qué van los extranjeros allí,
el pasaje en bus costa seis mil pesos, algo así como 30 reales por el viaje de ida
y otros 7 mil (40 reales) por la entrada a la Casa Museo. La bajada a la casa es
corta, con señales discretas. El final del camino se hace por una pequeña vereda
de tierra, ya que la casa se encuentra en la ladera de un cerro sobre la playa.
Inmediatamente entendí el nombre de Isla Negra, la playa tiene una pared de
rocas que salen del mar y tienen un color azul petróleo, los guijarros y piedras
cuando están mojados brillan con un tono azul muy oscuro (foto).
De las tres casas de Neruda, la más antigua es Isla Negra, la segunda
de ellas es La Chascona, llamada así por el rebelde pelo de su tercera y última
esposa, Matilde, con quien comienza a construirla a partir de 1951 y la última
es La Sebastiana que adquirió en 1959. Neruda fue un gran coleccionista de
objetos poéticos y amuletos, y los abrigó por todas sus tres casas.

Foto 3. La Chascona, flota sobre la cumbre de unos de los famosos cerros de Valparaíso, Chile,
2016 (Autor).

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Cuando llegué a Santiago, en 2016, el guía Antonio me dijo que, a Neruda,
a pesar de ser comunista, le gustaba la buena vida, la buena comida, las muje-
res hermosas y las casas grandes para su deleite, crítica que muchos chilenos
hacen al comportamiento burgués de Neruda. Es un tipo de afirmación común
en Chile, me parece una apreciación un poco equivocada, ya que él compró
estas casas con los derechos de autor de su obra. Esta actitud dudosa frente a
la figura y obra de Neruda resultó ser común en las conversaciones con algunos
chilenos. En la película de Larraín, ‘Neruda’ (2016) aparece el comportamiento
de nuevo, cuando una campesina pregunta si la vida para ellos será como la
de ella o la que lleva Neruda- él contesta, será como la tuya (de la campesina),
una crítica dura, hecha por la voz en off del comisario que lo persigue, y claro
por el director de la película.

Foto 4. Casa de Isla Negra de Neruda desde la playa, Chile, 2016 (Autor).

LA COLONIZACIÓN DE AMÉRICA, TERRITORIO E IMAGINARIO


INVADIDOS

El encuentro, en América, entre el conquistador español y los pueblos


autóctonos fue profundamente traumático para el segundo grupo. El conquistador,
que en Europa ciertamente tenía que relacionarse con otros pueblos, italianos,
portugueses, franceses, alemanes, no se dio cuenta, o no quiso darse cuenta,
de que estaba delante una cultura y un pueblo bastante desarrollados, en este
caso los araucanos o mapuches, que tenían un lenguaje y una organización

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propia. El afán de conquistar y explotar el oro y los productos que podían ven-
derse en Europa hizo que el colonizador actuara como un verdadero saqueador
de las riquezas de estas tierras. Tzvetan Todorov escribe sobre el contacto/
choque de estas culturas, en su libro ‘La conquista de América, el problema
del otro’, destacamos aquí el subtítulo, donde el otro: mapuche, inca, maya es
el que no se percibe.

Al leer los escritos de Colón (diarios, cartas, informes), se podría


tener la impresión de que su móvil esencial es el deseo de hacerse
rico… (Todorov, 1998, p. 18).

En este artículo hablamos de los araucanos (o mapuches), pero yo hice


una investigación de maestría, sobre la obra literaria de José María Arguedas
(1911-1969) en la Universidad de São Paulo y en 1997 visité a Perú, donde realicé
un trabajo de campo en Cuzco, Machu Picchu y Valle Sagrado de los Incas,
donde encontré la misma situación. El enfrentamiento de culturas, puesto que
el español nunca consideró la lengua y cultura inca, como algo a respetarse.
Escribe el escritor y antropólogo peruano Arguedas:

La unidad política y cultural realizada por los incas en una inmensa


población y territorio, diverso en lo humano y lo geográfico, dio tal
poder a esta unidad que su supervivencia en los siglos venideros
estaba asegurada. Es sabido como para organizar el imperio,
los incas aprovecharon con extraordinario acierto lo que había
de común entre los múltiples pueblos conquistados, pueblos
que a través de un larguísimo proceso habían alcanzado un alto
desarrollo cultural y, por tanto, una configuración y personalidad
muy definidas. Sin esta unidad tan sabiamente forjada, la cultura
antigua peruana no habría podido lograr la tenaz supervivencia
a que nos hemos referido. La cultura de un imperio de este modo
sustentada, en lo humano y en el medio geográfico, no podía ser
totalmente destruida por ninguna contingencia, por grave que
fuera. (Arguedas, 1989, pág. 1)

La literatura y la vida de Arguedas fueron dedicadas a entender y ava-


lorar la cultura ancestral inca, así como Neruda la metaforiza en sus poemas,
Arguedas la transformaba en materia poética de sus novelas, cuentos y escritos
antropológicos, los paralelismos son bastante aclaradores. Antes de Arguedas
hubo un cronista clásico de las atrocidades de los españoles, fue Felipe Guamán

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Poma de Ayala (1535-1615), un mestizo que recibió el nombre cristiano de Felipe,
como el Rey de España, Felipe II. Guamán escribió su ‘Nueva coronica y buen
gobierno’, recorriendo todo el territorio del actual Perú, registrando en sus más
de mil páginas e ilustraciones, la historia de los Incas y su destino en las manos
de los conquistadores españoles. Neruda se inscribe en este grupo de grandes
escritores que eternizan la historia y cultura de los pueblos originarios de América.
Los ambientes de la Araucanía, La frontera hacen parte de la infancia
de Neruda, están representada en sus versos, y los campesinos, que muchas
veces son descendientes de los pueblos originarios, son el eje central de la
obra de Pablo Neruda.

Foto 5. Machu Picchu (montaña nueva en quechua), en primer plan, en oposición a Huayna Pichu
(montaña vieja), al fondo, entre las nubes, 1997, Perú. (Autor).

NERUDA EN LA PELÍCULA DIRIGIDA POR PABLO LARRAÍN

En esta película Pablo Neruda aparece en sus años más importantes,


cuando ya era un escritor famoso, un diplomático, casado con una grabadora
argentina de prestigio. La película se inicia en el año 1948, cuando el parlamento

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y el presidente deciden perseguir a los movimientos de izquierda. Neruda pierde
su pasaporte y es declarado enemigo de la nación, tiene que marcharse, intenta
irse a Argentina, pero no sin papeles. Durante estos años de huida y dificultades
políticas escribe (como ya fue dicho) una obra prima, ‘Canto general’, una obra
que reconstruye poéticamente episodios históricos de Chile y de América. De las
limitaciones de irse de un sitio a otro, nace una visión que abarca mucho más
que los mismos paisajes, procura entender el todo de Chile, es un canto de
amor a su tierra y su pueblo.
La narrativa de la película se realiza a través de un narrador en off, que
es el comisario de policía que intenta llevar Neruda a la cárcel, sin conseguir,
y que teje comentarios siempre muy críticos al poeta. Causa un extrañamiento
cuando realizamos que la voz que conduce no es la de Neruda y sí la de su
verdugo, en la película el comisario llamado Óscar Peluchonneau, un personaje
metafórico y que establece un juego de imaginación con Neruda, si este dice
su nombre él será eterno, como Neruda por su obra publicada. Delia del Carril
(1883-1989), que en un momento de la película dice- soy literatura ahora, soy
eterna, pues fue retratada por su marido poeta.
El film se inicia con Neruda caminando por los pasillos del Congreso
Nacional de Chile, recibiendo reprimendas de sus colegas por su defensa del
comunismo, por sus críticas al presidente del país, Gabriel González Videla
(1898-1980), del Partido Radical, que en 1948 promulgaría la llamada ‘Ley Mal-
dita’, quitando la legalidad del Partido Comunista, relegando sus componentes
al exilio y a las sombras.
El director utiliza en la película una estrategia, durante algunos diálogos
los personajes cambian de escenario, varias veces y vuelven al del inicio, pese
que el diálogo esté encadenado por el sentido. Lo que sería un error audiovisual
de continuidad es utilizado como una manera de mostrar las diferentes fases
de una idea, conflicto, persona y su multiplicidad. Las mismas estrategias de
lenguaje que Neruda utiliza en sus poemas, de ver los factos, personas de varios
ángulos y perspectivas, Larraín usa en su película, es un juego de lenguaje que
une la película a los poemas, y principalmente a la estética de los poemas de
Neruda. Y no olvidar que la extrañeza de las escenas crea una tensión en la
narrativa audiovisual.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


142
La segunda secuencia de la película nos trasporta a la famosa Casa de la
Isla Negra, que pese a su nombre queda en una playa, cerca de Valparaíso en
Chile. Como ya fue dicho, Neruda construye tres casas en diferentes épocas, la de
la Isla Negra, La Chascona (en Santiago) y La Sebastiana (en Valparaíso), todas
actualmente monumentos nacionales, visitadas por personas de todo el mundo.

Una película puede ir a cualquier lugar en el tiempo y el espacio, en


cualquier momento. De esta manera, una historia puede retroceder
repentinamente en el tiempo o dar la vuelta al mundo; puede
acelerar una escena o hacer que parezca más pequeña. El tiempo y
el espacio pueden ser reales o imaginarios, ampliados o reducidos,
separados o unidos. (Mascelli, 2010, p. 80).

En esta casa de la Isla Negra está ocurriendo una gran fiesta (en la película),
la guerra termino hace tres años, Neruda se disfraza de Lawrence de Arabia, el
guerrero del desierto, cuando aparece declama con su conocida (y registrada
en audio e imagen para siempre, solo con buscar en internet) voz, ‘puedo decir
los versos más tristes esta noche’, la mitología Neruda está puesta en escena.
Cuando Neruda vuelve al Senado para ver lo que ocurre, va hasta la
casa de un político de las elites chilenas Arturo Alessandri Palma (1868-1950),
el narrador en off nos informa que Alessandri tiene un cajón en su escritorio,
donde se pone ‘Chile’, o sea, todos los chilenos son sus siervos. El juego de
diálogo entre los dos es uno de los puntos altos de la película, Alessandri le
pregunta cómo quieren, los de izquierda, gobernar, Neruda dice que con una
estructura como la de los soviets rusos. Alessandri infiere irónico, los pasillos
estarán llenos de cascara de maní, las leyes serán escritas con faltas de orto-
grafía, Neruda contesta, -pero los cementerios no estarán llenos de cadáveres
de los oponentes políticos.
Neruda es vivido por el gran actor Luis Gnecco y Delia por Mercedes
Morán, el comisario Óscar Peluchonneau por el internacional y muy talentoso
Gael García Bernal. Pablo Larraín hace una adaptación de las memorias de
Neruda, ‘Confieso que he vivido’, el director ya había hecho una película sobre
la muerte de Salvador Allende, ‘Post Mortem’ de 2010, donde los personajes se
enfrentan, para definir si a Allende le han matado o él se suicidó, el 2011 se publicó
que un examen en el cadáver comprobó el suicidio. En 2016 también dirigió la
película ‘Jackie’, sobre la vida de la primera dama estadounidense, después de

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la muerte de su marido. En 2021 hizo el más débil de sus películas, la sobre la
vida de Diana Spencer, llamado Spencer. Neruda y Post Mortem son documen-
tos audiovisuales para entenderse la historia de Chile. Ahora en 2023 dirigió
‘El Conde’, una historia de horror, donde el general golpista Augusto Pinochet
(1915-2006) es retratado como un vampiro de doscientos cincuenta años, que
huyó de la revolución francesa y se estableció en Chile, con su ironía particular
Larraín destroza Pinochet y su familia, que son retratados como parásitos que
solo beben la sangre del pueblo y roban su riqueza. La sorpresa es la voz en off
que narra la fábula esperpéntica, que solo se revela al final, y que también hace
una crítica a una figura política internacional bastante polémica.
Pablo Neruda como escritor de fama mundial, dejó una obra inmensa,
poesía, novela, memoria. Su vida está registrada en fotografía, en película y
principalmente en grabaciones de sus poemas leídos por el mismo, con una voz
impostada y ligeramente monótona, que caracterizaba sus charlas y tertulias
literarias. Hoy día el ambiente virtual, el ciberespacio agranda a la obra Neruda.
Pasados 50 años de su muerte Neruda está más vivo que nunca en las platafor-
mas digitales, en Youtube se puede ver a Gabriel García Márquez entrevistando
a Neruda; y también una recreación visual de la entrevista de Clarice Lispector
con el poeta; y muchas más lecturas del propio Neruda de sus poemas. Él podría
decir de su calma tumba de la isla negra, ahora soy virtual, soy más que eterno,
soy líquido y múltiple para siempre. Los resultados de la colonización, la lucha
pela democracia, que viene desde cuando él todavía vivía, están representados
en sus poemas y en la magistral película que aquí se comentó.

REFERENCIAS
ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México, Siglo Veintiuno, 1989.

BRISELANCE, Marie-France; MORIN, Jean-Claude. Gramática do cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.

CARMONA Ramón. Cómo se comenta un texto fílmico. Ed. Cátedra, 2020.

HIDALGO, João Eduardo. A cultura quéchua na obra do antropólogo e escritor José María Arguedas
e na atualidade peruana. 1999. 208 páginas. Dissertação (Mestrado em Integração da América Latina),
Prolam, Universidade de São Paulo, 1999.

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144
MASCELLI, Joseph V. Os cinco Cs da cinematografia. Técnicas de filmagem. São Paulo: Summus
Editorial, 2010.

NERUDA, Pablo. Antología poética. Ediciones del Sur, 2003.

NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido. Ed. Losada, 1974.

REYES, Bernado. Casas de Neruda. Ed.Pehuén, 2013.

TODOROV, Tzvetan. La conquista de América. El problema del otro. España: Siglo Veintiuno, 1998.

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MICHEL FOUCAULT: IMAGENS E


TRANSGRESSÕES AMAZÔNICAS

Paulo Henrique Pinheiro da Costa


Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPRR)

10.37885/230713612
RESUMO

No breve texto intitulado “A pintura de Manet”, que consiste na transcrição de


uma conferência proferida por Michel Foucault na Tunísia em 1971, o filósofo
analisa algumas obras do artista Édouard Manet, considerando-as como repre-
sentações de uma “ruptura profunda”. Essa ruptura, de acordo com Foucault,
é momentaneamente necessária para suas reflexões, pois ele se interessa pela
“materialidade” da pintura, ou seja, pelo movimento dos elementos na tela por
meio de novas técnicas pictóricas. Nesse contexto, o filósofo adentra, por meio da
pintura, o campo dos conhecimentos relacionados à arte pictórica, explorando as
transformações históricas da pintura que se afastam das meras representações
e das estruturas da episteme moderna, antecipando assim irrupções, desconti-
nuidades e novas formas de visão. A partir dessa perspectiva, o presente texto
tem como objetivo demonstrar que o interesse do filósofo por Manet vai além
da “fisicalidade” das pinturas, especialmente na década de 1980, quando a vida
e a arte assumem dimensões transgressoras em sua filosofia. Para destacar
o caráter transgressor das telas, exploraremos o pensamento de Foucault em
relação aos desenvolvimentos regionais do modernismo brasileiro.

Palavras-chave: Arte, Imagens, Pintura, Transgressão.

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INTRODUÇÃO

No pequeno texto A pintura de Manet, transcrição de uma conferência


proferida na Tunísia, em 1971, Michel Foucault comenta algumas telas do artista
Édouard Manet. Nele, o filósofo adverte inicialmente sobre a sua pouca expe-
riência com as artes plásticas, sobretudo com as pinturas do impressionista
francês: “Eu gostaria também de me desculpar por falar de Manet, pois não sou,
evidentemente, especialista em Manet; não sou especialista em pintura, sendo,
portanto, como não iniciado que eu falarei de Manet.” (2011, p.259). Porém, a
essência historicamente transgressora do pintor se faz inevitável no pensamento
do filósofo: “Manet figura [...] como aquele, evidentemente, que modificou as
técnicas e os modos de representação pictórica, de maneira tal que ele tornou
possível esse movimento do impressionismo que ocupou a frente da cena da
história da arte durante quase toda a segunda metade do século XIX.” (Idem.).
Ele representa a “ruptura profunda”, por um instante necessária, às reflexões
do filósofo, que se interessa pela “materialidade” da pintura, pelo movimentar
dos elementos na tela através de novas técnicas picturais. Conforme Stefano
Catucci, o filósofo entra, através da pintura, no campo dos saberes pictóricos,
das transformações históricas da pintura que se distanciam das meras repre-
sentações, das ordens da episteme moderna, anunciando irrupções, desconti-
nuidades, novas modalidades do olhar. (2014, p. 125).
Partindo dessa perspectiva, o presente texto objetiva mostrar que o inte-
resse do filósofo por Manet vai além da “fisicalidade” das pinturas, em especial
na década de 1980, quando vida e arte ganham dimensões transgressoras em
sua filosofia. Para melhor revelar o caráter transgressor das telas, recepciona-
remos seu pensamento através dos desdobramentos regionais do modernismo
brasileiro, como em Belém do Pará, visitada pelo filósofo na década de 1970,
onde pintores como Antonieta Santos Feio retrataram não só a elite e as pai-
sagens amazônicas, mas também figuras esquecidas da sociedade paraense,
como na tela Mendiga, de 1951.

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148
PINTURAS, CINÍSMOS E TRANSGRESSÕES

No texto Prefácio à transgressão, grande homenagem à obra de Geor-


ges Bataille, Michel Foucault exalta a importância dessa noção, que passa
pela sexualidade, para também problematizar o sujeito. Segundo o filósofo, a
sexualidade teve a sua “expressão de felicidade” no mundo cristão “dos corpos
decaídos e do pecado”, onde “as formas contínuas de desejo, da embriaguez,
da penetração, do êxtase” se moviam como forma de extravasamento para
o divino como o “último manancial” (Cf. 2001, p.28). Porém, em sua leitura, a
noção de sexualidade moderna, desprendida de uma essencialidade cristã, deve
ser pensada como resultado de uma desnaturalização elevada ao patamar do
chamado “limite”: “lançada em um espaço vazio onde ela só encontra a forma
tênue do limite, e onde ela não tem para além nem prolongamento a não ser
no frenesi que a rompe.” (Idem.). Um vazio que passa a ser preenchido pelo
limite da nossa consciência, linguagem, leis e interditos que são a elevação ao
sagrado, mas que não é mais divino, anunciando assim, segundo o filósofo, a
morte de Deus, que nada mais é do que um novo espaço de experiência, “o
reino do ilimitado do limite” (Idem.). É justamente o gesto relativo ao limite que
é chamado de transgressão, que está na “tênue espessura da linha”, o fulgor
de passagem que pode ser origem, espaço e totalidade. Mas que é também,
segundo ele, um jogo de ultrapassagens e retornos:

O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma


obstinação simples; a transgressão transpõe e não cessa de
recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente
se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando
então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo
vai além de colocar em ação tais elementos; ele os situa em uma
incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento
rapidamente se embaraça por querer apreendê-las. (Idem. p. 32).

Mas não é um jogo de opostos como “o preto e o branco”, na verdade o


limite e a transgressão estão conectados, segundo o filósofo, como uma espiral
constante que não se extingui. O tema da transgressão ressurge em seu pen-
samento no curso Le courage de la vérité, de 1984, através da figura do cínico
da antiguidade, na relação entre “ética de si”, “dizer verdadeiro” e o “escândalo

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da verdade” que desmascara, desnuda. Momento em que as artes também
reaparecem, sobretudo Édouard Manet. Desse modo, seria a arte o lugar do
escândalo, da verdade cínica na modernidade? E mais, poderíamos encontrar
esse aspecto no modernismo brasileiro?
Segundo Foucault, o cínico aparece como figura anedótica na filosofia,
ou mesmo execrável, como lembra Onfray parafraseando Teofrasto: “é um
homem que amaldiçoa e tem a reputação deplorável. Ele está sujo, bêbado, e
nunca está alimentado.” (1990, p.31). Claro, essa é a imagem vulgar do cínico da
antiguidade que não representa de fato o cinismo como escola filosófica, mas
que se reproduz e Foucault elenca algumas razões para isso: desqualificação
considerável do cinismo diante da filosofia instituída e institucionalizada na
antiguidade; o fato das filosofias antigas terem transmitido mais o pensamento
ligado às doutrinas platônicas e aristotélicas; e também a escassez de textos
cínicos, que poderiam melhorar a perspectiva sobre essa corrente filosófica.
Porém, o filósofo cria a hipótese de que o cinismo conseguiu se transmitir ao
longo da história por meio das atitudes, maneiras de ser. Sendo assim, segundo
ele, é possível considerar um modo de vida cínica ainda hoje (2009, p.163). Ora,
é justamente a partir dessa hipótese que podemos pensar a arte como lugar de
verdade cínica na modernidade.
Para o filósofo, entretanto, pensar a relação entre cinismo antigo e
moderno não é tarefa fácil, mas que podemos encontrar algumas referências,
como por exemplo o texto de Tillich, Der Mut zum Sein (a coragem de ser, ou a
coragem em relação ao ser), de 1960, no qual o pesquisador distingui os termos
Kynismus e Zynismus, em que o primeiro representa o cinismo antigo e a sua
crítica à própria realidade, e o segundo que representa o cinismo contemporâ-
neo, que diz respeito à coragem de ser o seu próprio criador. Outro texto seria
Parmenides und Jona, escrito por Heinrich, em 1966, que retoma esta distinção,
porém de maneira mais esclarecedora. Segundo este autor, o Kynismus seria
uma resposta à destruição da cidade, da comunidade política. Uma forma de
afirmar a si mesmo, de indexação à animalidade diante da impossibilidade da
vida de outrora. Já o Zynismus contemporâneo também seria uma afirmação de
si, porém sem a indexação à animalidade, mas que se efetivaria “em relação ao
absurdo e à ausência universal de significação.” (2009, p.164).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


150
Segundo o filósofo, são nas transformações e reverberações do cinismo
ao longo dos tempos, passando pela cultura cristã e pelas práticas políticas
através da “militância” e de um “estilo de existência”, que a arte se vincula à
cultura europeia através do modo de vida como escândalo da verdade. (Idem.).
Para ele, é na arte moderna que de fato a questão do cinismo torna-se
“singularmente importante”. É o veículo do “modo de ser cínico”, na medida
em que relaciona “estilo de vida” e “manifestação da verdade”. (Idem, p.172).
Nessa perspectiva, o filósofo sugere que podemos falar de uma “vida artista”
já entre os séculos XVIII e XIX da cultura europeia, por meio da singularidade
da vida do artista, que não se reduz “às dimensões e às normas ordinárias.”
(Idem.). O filósofo cita, como exemplo, Georgio Vasari, por meio da obra Vida
dos Pintores 1, na qual o artista rememora, de forma densa, a vida e a obra dos
pintores europeus da renascença.
Jacob Burckhardt, no seu livro A cultura do renascimento na Itália, destaca,
de modo significativo, que o homem se torna, no renascimento italiano, em rup-
tura com a idade média, um indivíduo reconhecendo a si, sua individualidade:

Na idade média, ambas as faces da consciência – aquela voltada


para o mundo exterior e a outra, para o interior do próprio homem
– jaziam, sonhando [...] como que em voltas por um véu comum
[...] o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, […] Na
Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento […]. Ergue-
se, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se
um indivíduo espiritual e se reconhece como tal. (2009, p.145).

Nesse período, via-se na trajetória dos homens ditos “singulares”, a erupção


de um novo ideal, que levava à noção de um homem único. Aqui, o pesquisador
retoma a ideia de “individualismo” como representante da cultura renascentista,
que poderia ter um alcance até mesmo ético e político através desse modo de
ser, dessa liberdade, nitidamente presente no artista, na sua vida e obra. Bunker
lembra que naquele período já se prefaciava as obras dos literatos com suas
biografias, revelando que a vida de uma personalidade estava ligada com a sua
obra. (1997, p.85). Do mesmo modo, em Vasari está pressuposto de que um

1 Foucault se refere à obra Le vite de’piú eccellenti pittori, scultori e architettori, de Giorgio Vasari.

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grande artista era, na verdade, uma grande personalidade, diferente do homem
comum. Ora, a relação vida e arte se desdobram no século XIX e evidenciam
agora a capacidade da própria arte, enquanto produto da vida singular, de dar
à existência novas formas, rupturas, uma vida outra, como Foucault sugere
através da arte moderna, em especial através de Manet.
Em A pintura de Manet, o filósofo vai se deter na postura técnica do pintor,
na medida em que isso possibilitou toda a arte posterior. As novas técnicas de
cor, utilização de cores puras, certas formas de iluminação, luminosidade, eram
pouco conhecidas até então. De modo significativo, depois do Renascimento,
como do quattrocento2, foi inaugurado pelo pintor francês o uso do interior dos
quadros, as propriedades do espaço material. Havia na tradição pictórica a
necessidade de tentar mascarar ao máximo a superfície retangular na qual a
pintura era feita. Poderia ser um afresco, ou mesmo um pedaço de papel, numa
superfície que tinha apenas duas dimensões. Para isso, buscavam as grandes
linhas oblíquas e espirais objetivando negar, ou mesmo burlar, a pintura inscrita
no retângulo, fugindo das linhas retas, dos ângulos retos. Do mesmo modo, a
iluminação tentava fugir desse enquadramento. Iluminações exteriores, vindas
do fundo, da direita, da esquerda, objetivando negar a superfície retangular.
Escapavam da iluminação reta que incidia sobre o retângulo. “um jogo de esquiva,
ilusão e elisão”. O que Manet faz de extraordinário é trazer a importância dessas
qualidades outras na pintura. (2011, p. 262).
De forma técnica, Manet valorizava a superfície retangular, os eixos e linhas
horizontais e verticais, a importância da iluminação real da tela, a valorização
do espectador que, diferente de outrora, onde tinha um lugar determinado de
apreciação, é estimulado a movimentar-se diante da tela. O artista coloca na
história da tradição pictórica a importância do “quadro-objeto”, como “mate-
rialidade”, como “matéria”, como “coisa colorida”, que a luz externa ilumina,
diante da qual o espectador ganha mais protagonismo com relação à própria
obra. Por outro lado, há a questão de como relacionar essas propriedades
com a ideia de uma arte cínica que rompe, desmascara e desnuda. Para isso,

2 Referência ao século XV, período de ouro do Renascimento.

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é importante analisar a ideia de “vida verdadeira” (Alethès bíos), fundamental
para os cínicos e para Foucault.
De ponta a ponta o cinismo aparece como uma maneira de manifestar a
verdade, de praticar aleturgia, produção de verdade que se dá na própria forma
de vida. É aí que Foucault encontra um tema importante na filosofia antiga, na
espiritualidade cristão, e mesmo na ética e na política do século XIX. O tema da
“verdadeira vida”. (2009, p.200).
De forma objetiva, essa verdade é definida em alethéia: a verdade, e
alethès: verdadeiro. Esquematicamente o filósofo nos fala sobre o que é verda-
deiro. Ele elenca quatro significados para essa ideia de verdadeiro, alethès: o
que não é oculto, dissimulado; aquilo que não é misturado, não sofrendo adição
ou suplemento; o que é reto (euthús: direto); o que existe e se mantém além de
toda a mudança, na “identidade, imutabilidade, incorruptibilidade” (Idem. pp.
201-202). Essas formas, ou noções de verdade, podem ser aplicadas às maneiras
de ser, de fazer, de conduzir, em formas de ação. Segundo Foucault, podem se
aplicar ao próprio logos, não como enunciados, mas maneiras de falar. (logos
alethès). É a mesma ideia que tem importância fundamental na cultura ocidental
através do tema do amor verdadeiro (alethès eros), no qual também pode ser
aplicada essas formas de verdade. (Idem.).
A noção de vida verdadeira pode ser observada também, no contexto
da bíos, em alguns diálogos de Platão. A verdade como vida não dissimulada,
que se apresenta à vista de todos, podemos ver em Hípias menor, o famoso
paralelo entre Ulisses e Aquiles. Com referência ao Canto X, da Ilíada, Sócrates
lembra que Aquiles, se dirigindo a Ulisses, diz: “Tenho de te dizer as minhas
intenções, sem nenhum rodeio, tais como as realizarei, tais como sei que elas
se consumarão. Detesto tanto quanto as portas do Hades aquele que esconde
uma coisa em seu espírito e diz outra”. Aquiles é de fato esse homem de ver-
dade, sem rodeios: Sócrates: “eis um homem haplaústatos kaì alethèstatos”, o
simples, direto, verdadeiro, sem rodeios. (Idem. p.204). Levando em consideração
que Alethès é também o que não se mistura, o filósofo toma como exemplo o
final de Crítias, quando a virtude dos atlantes começou a fraquejar, quando se
misturou a porção divina com a humana: “Quando a porção divina começou a
se extinguir, diluída excessivamente e com demasiada frequência na mistura
mortal, passando a natureza humana a predominar […] comportaram-se de forma

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indigna, tornaram-se claramente infames”. (Burton, 2013, p.231). A decadência de
Atlântida se deu dessa mistura, a partir da qual a vida deixou de ser verdadeira.
Ora, essas perspectivas nos levam a pensar o modo de como o cinismo jogou
com essa questão da verdade.
Foucault recorda de que na vida de Diógenes há alusões significativas que
nos mostram um pouco do que seria essa alethès bíos para o cinismo. E a mais
significativa história para ilustrar essa perspectiva é a narrativa da “moeda”, de
trocar o valor da moeda. Diógenes era filho de um banqueiro que manipulava
moedas, uma espécie de cambista que trocava moedas. Acusado de falsificação,
ambos foram expulsos de Sinope, e Diógenes foi buscar conselhos em Delfos,
ao deus Apolo, do qual recebeu a tarefa de “falsificar a moeda, ou alterar o
seu valor”. Por um lado, podemos pensar, fazer um paralelo, entre a atitude de
Diógenes e Sócrates de se direcionar ao deus Apolo e de receber uma missão
para a vida. Mas também, por outro, podemos pensar o que seria propriamente
alterar o valor da moeda. Segundo Foucault, ao redor do tema “alterar”, ou
“mudar” a moeda, há uma relação entre a palavra moeda, com costumes, leis.
Nomisma é moeda, Nómos é lei. Ou seja, mudar o valor seria, na verdade, mudar
as ações diante de certas regras estabelecidas. Mas mais importante, mudar
esse valor, segundo o filósofo, não é simplesmente desvalorizar a moeda, mas
se utilizando do mesmo metal, da mesma moldura, modificar apenas a efígie,
para que circule com o seu “verdadeiro valor”. Não enganar com outro valor,
mas adequá-lo ao valor que lhe compete e lhe cabe. (Idem. p.209).
Foucault nos fala que esta analogia representa, de modo singular, o que
os cínicos poderiam entender e expressar como verdadeira vida. Pegando a
moeda da vida, ou então do que se entendia por vida verdadeira, modificando
a sua efígie, careteando a vida:

O ponto que se trata no cinismo […] pegar a moeda da alethès bíos,


pegá-la de volta o mais rente possível do significado tradicional
que ela recebeu. Desse ponto de vista os cínicos não mudam
o metal dessa moeda. Mas eles vão modificar a efigie, a partir
desses mesmos princípios da vida verdadeira – que deve ser não
dissimulada, não misturada, reta, incorruptível […] pegar a moeda
de volta, mudar a efígie, e fazer, de certo modo, o tema da vida
caretear. (Idem. p.210).

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A filosofia cínica é vista como uma filosofia de “ruptura”, de “passagem
do limite”, “extrapolação”, ao invés de exterioridade. É como se fosse mais uma
continuidade escandalosa, carnavalesca, da vida verdadeira, do que propriamente
uma ruptura com toda filosofia instituída. Desse modo, temos, por um lado, a
noção do cinismo que representa o reinventar sob toda uma existência primeira,
mas também, a capacidade, prática e ação de “desnudar-se” e “desvelar-se”
de todas as formas de vida até então instituída.
Foucault nos lembra também da importância do personagem Demétrio
com relação ao pensamento e a vida cínica. Esse personagem, pobre e des-
pojado, é admirado por Sêneca. Tanto que em uma de suas cartas, ele afirma:
“Demétrio é a própria virtude: eu o levo em toda a parte comigo e, deixando os
que se vestem de púrpura para lá, converso com esse seminu”. O mesmo Demé-
trio que, segundo Sêneca, em De beneficcis (livro VII), recusara, violentamente,
uma grande quantia oferecida por Calígula, e não seria diferente se o oferecesse
todo o império. (2009, p.179). Assim, parece que a ideia de nudez se apresenta
como negação a toda forma instituída de vida, uma nudez que se apoia em
formas outras de existência, a partir de uma indiferença, como o negar fortunas
e impérios. Pierre Hadot lembra justamente essa ideia de “indiferença” como
um dos traços marcantes desse Escola Helênica. Citando Pirro, sugere que essa
“indiferença” pode ser um “desvencilhar inteiramente da debilidade humana”,
o filósofo ultrapassa toda a sua limitação do humano, demasiado humano,
“eleva-se a uma visão superior, que eleva à nudez da existência.” (2004, p.167).
Essa nudez também traz a ideia da máscara, ou melhor de desmascara-
mento, na medida em que corresponde a uma forma alegórica de se representar
a vida, como podemos recordar da tragédia grega. A máscara, anteriormente à
tragédia, tinha um sentido mais ritualístico, porém ganha na tragédia um papel
mais estético, como elemento que ocupava a cena trágica, precisamente o coro
da personagem trágica. A tragédia surge em determinado momento histórico
grego de confronto entre o pensamento mítico e jurídico, no qual não há uma
delimitação entre os domínios do religioso é jurídico, momento que traduz o
sentimento de mudança e contradição no homem. (Cf. VERNANT, 1999). Esse
momento de transição do homem é que, de certa maneira, representa a atitude
cínica, como coloca Onfray: “Hoje é fundamental que apareçam novos cínicos:

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eles teriam a tarefa de arrancar as máscaras [...] de quebrar em pedacinhos a
realidade gerada e protegida pela sociedade. Figuras de resistência.” (1990, p.31).
Ora, como poderíamos pensar o desnudamento, desmascaramento, ou
mesmo, a “redução violenta ao elementar da existência” (2011, p.165) por meio
das artes, ou simplesmente tentar entender as ações ou práticas artísticas como
cínicas? Do mesmo modo, o modernismo brasileiro teria essa capacidade de
arrancar as máscaras de uma realidade social?
Pois bem, dando continuidade ao seu curso na Tunísia, o filósofo vai nos
mostrar de como Manet representa a noção de espaço em suas produções.
Falando de cores, composições, iluminação, formas e profundidades, o filósofo
analisa telas como La Musique aux Tuileries (1861), L’Exécution de Maximilien
(1867), dentre outras, mostrando as novas técnicas que romperam com um
saber pictural até então instituído. No entanto, aparece um quadro significativo,
e aí sim talvez podemos ver de fato a questão desse desnudamento, desmas-
caramento, possibilitado pelas artes. É a obra Olympia, de 1865, que causou
bastante alvoroço durante a sua exposição, um verdadeiro escândalo na época,
e que foi necessário retirá-la do salão de Paris: “Nunca uma pintura suscitou
tanto riso, zombaria e vaias quanto essa Olympia. No domingo em particular, a
multidão era tão grande que não era possível chegar perto do quadro [...] Todo
mundo se espantava com o fato de o júri ter admitido [o quadro] de monsieur
Manet” (CLARK, 2004, p.134). Para o filósofo, a luz sobre a tela foi determinante
na causa de tanta comoção.
Para alguns historiadores o escândalo foi estético, mas Foucault prefere
atribuir todo o alvoroço à questão de iluminação, à materialidade da pintura.
Para sustentar sua hipótese, o filósofo compara Olympia com a Vênus de Ticiano,
no contexto das vênus nuas. Na nudes da personagem de Ticiano temos fontes
luminosas que acariciam a personagem docemente. Rosto, ceio, pele, tudo
docemente acariciados. Uma fonte luminosa que indica uma perspectiva ao
espectador. Uma luz que acaricia e um espectador que vê essa nudez de modo
sensível. Em Olympia de Manet, há uma luz que ilumina a personagem, mas
que, diferente da musa, incide de maneira violenta, atingindo-a em cheio. Uma
luz frontal, que surge do espaço da frente da tela, direto dos olhos do especta-
dor criando três elementos singelos: “A nudez, a iluminação e o nós”, que nos
surpreendemos com o jogo de nudez. Há uma luz que incide do mesmo lugar

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


156
que nós estamos, e nosso olhar, desnuda Olympia, nós desnudamos Olympia.
Somos nós que nos evidenciamos, os nossos pudores, a nossa moral. Nós somos
responsáveis por essa visibilidade e nudez, e ao desnudarmos Olympia, nos
desnudamos, nos desmascaramos, evidenciamos a nossa existência, marcada
por efígies de morais, costumes e pudores. Como nos diz Foucault: “e vocês
veem como uma transformação estética pode, em um caso como este, provocar
o escândalo moral.” (2011, p.283).
No cinismo podemos encontrar uma forma de verdade, do dizer corajoso,
que se inscreve na existência daquele que se propõe à vida cínica. Considerando
que esse modo de existência perpassa as barreiras do tempo e se manifesta em
diversos espaços, como o religioso e o político, podemos vê-lo, também, em sua
forma crítica, nas artes. Nelas, as expressões de uma vida cínica se mostram em
diversos aspectos. Tanto na vida como na própria materialidade da arte. Na vida
do artista, não comum, e na arte, por meio de técnicas, abordagens, jogos com
a materialidade da pintura, como vemos em Manet. Pois bem, e a pintura no
modernismo brasileiro, poderíamos falar de um jogo de desmascaramento, de
desnudamento através de técnicas e abordagens?
No Brasil, o movimento modernista surgiu posteriormente às vanguardas
europeias do final do século XIX. Aqui, o período decisivo para sua consolida-
ção foi a década de 1920, com a Semana de Arte Moderna, através de figuras
como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, dentre outros. O aspecto que poderíamos
destacar no registro brasileiro são as temáticas fortemente regionalistas presentes
nas telas dos artistas. Em Belém não foi diferente. Segundo Aldrin Figueredo, o
crescimento econômico do conhecido ciclo da borracha – no final do século XIX
e início do século XX – possibilitou um significativo desenvolvimento cultural na
região, sobretudo o culto à pintura, ligado ao “mecenato” e o “colecionismo”,
práticas europeias importadas pela elite, que ao lado das paisagens amazôni-
cas, também eram retratados pelos pintores paraenses, eram os mecenas dos
artistas, como o ilustríssimo Theodoro Braga, principal e mais influente pintor
modernista paraense:

Theodoro Braga, [...] firmou-se como o nome mais influente da


pintura paraense, nas duas primeiras décadas do século XX.
Apadrinhado pelo intendente municipal Antônio Lemos, o artista
transformou a pintura em assunto de governo e o tema da história

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pátria em matéria de interesse popular. [...] Theodoro Braga se
dedicou a costurar um novo momento nas artes plásticas do
Pará, com iniciativas de aproximação entre artistas, literatos e
autoridades do governo local em torno do debate do nacionalismo,
da identidade regional e da história pátria. Sua atividade como
pintor se enredou cada vez mais nos estudos genéricos, sem uma
linha temática definida, para o universo urbano de Belém [...] o
artista passou a se dedicar cada vez mais aos motivos e paisagens
locais ou ainda temas da história da Amazônia e do Brasil (Cf.
Aldrin Figueredo, 2008).

Antonieta Santos Feio (1897-1980) foi uma pintora paraense, nascida


em Belém, que trouxe ao circuito de arte regional muitas obras com temáticas
regionalistas, dando destaque aos sujeitos com menor visibilidade social.3 Ela
promoveu um deslocamento significativo em que a temática se sobressaiu
fortemente com relação às cores e estilo moderno, através da visibilidade
concedida a figuras apagadas da capital paraense, agora retratadas ao lado
da elite e das paisagens amazônicas. Segundo Caroline Fernandes, “em suas
telas, congregou o realismo das cores e das formas com soluções temáticas, por
assim dizer, modernas, estabelecendo diálogos entre elementos da tradição e
questões pertinentes ao debate do modernismo do Brasil de sua época.” (2009,
p. 17). Além de retratar figuras importantes da cidade, como o prefeito Rodolfo
da Silva Santos Chermont (1950), ela também pintou indivíduos de pouca visi-
bilidade como nos quadros Vendedora de cheiro (1947), Vendedora de Tacacá
(1937) e a tão emblemática Mendiga (1951).
Mendiga é um retrato diferente dos habituais, a personagem do quadro é
uma pessoa comum, negra, idosa, andarilha da capital paraense. Seus cabelos
envelhecidos, retratam, pelo contexto, uma lida longa. De testa franzida, sobran-
celhas erguidas, de olhar entristecido, sofrido, sem esperança, de cabeça baixa,
parece pedir clemencia. Nas vestimentas, blusa simples, surrada e com chapéu
de palha na mão. Outros diversos elementos identitários estão presentes na
pintura, como uma corrente no pescoço de um grande pingente, que parece

3 Outros artistas também pintaram sujeitos de pouca visibilidade em Belém como Waldemar da Costa e Armando
Balloni.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


158
ser a Nossa Senhora de Nazaré. Ela revela também a condição do negro e a
religiosidade do século passado, segundo Paes:

consegue revelar a condição social do negro no início da segunda


metade do século XX, cuja realidade ainda era marcada por muitas
escravizações que o tempo não se encarregou de emancipar. Além
disso, o grande mérito de Antonieta foi a capacidade de envolver
seus personagens no universo cultural e religioso. Aqui merece
destaque o esforço da artista em mostrar a matriz africana e ao
mesmo tempo os desdobramentos das imposições da matriz
transcendental – catolicismo, por meio do universo do simbólico.
(2014, p.91).

Mendiga está cheia de intencionalidades que invertem temáticas e


promovem novas experiências estéticas que “desnudam” os salões de arte de
Belém do Pará. A artista altera o valor da moeda de Diógenes que falávamos
anteriormente. A moeda, Nomisma, seria a materialidade de seus quadros
que confronta o Nómos, as leis e os costumes da arte e da vida belenense.
Mudando a temática da pintura, ela dá visibilidade aos que viviam antes pelas
sombras da cidade. Utilizando o mesmo metal da moeda, no caso a mesma
moldura, o quadro, as técnicas, o pincel, ela muda a efígie da moeda, o perso-
nagem, colocando como central a mulher negra, sofrida, no lugar do burguês
belenense. Dá o verdadeiro valor à cidade e àqueles que também pertence à
realidade belenense, como um fato, uma questão que deve ser refletida pela
sociedade através da experiencia estética.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas atitudes estéticas, podemos encontrar uma voz contemporânea que


ecoa através do filósofo Michel Onfray, que nos faz refletir sobre os chamados
“novos cínicos”. Esses indivíduos não se destacam mais pela sua escandalosi-
dade, mas sim pela sua capacidade de “desmascarar” e “desvelar”, rompendo
com a realidade protegida pela sociedade. Essa abordagem artística e cultural
pode ser comparada ao que alguns pintores modernistas realizaram na cidade
de Belém. Os novos cínicos de Onfray são representantes de uma nova pos-
tura diante do mundo, uma postura que questiona as convenções sociais e as
verdades estabelecidas. Eles se recusam a aceitar passivamente as normas e

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estruturas que definem nossa realidade, preferindo desafiar e desestabilizar os
sistemas de poder e controle. Em suas obras e ações, eles buscam revelar as
contradições, hipocrisias e ilusões que permeiam a sociedade contemporânea.
Assim como os pintores modernistas de Belém, que romperam com
os estilos acadêmicos e tradicionais, os novos cínicos também buscam uma
ruptura estética. Eles se utilizam de diversas formas de expressão, como a arte
de rua, performances provocativas e manifestações artísticas, para chamar a
atenção e questionar as estruturas vigentes. Esses artistas contemporâneos
compartilham a intenção de quebrar a barreira entre a arte e a vida cotidiana,
buscando impactar e transformar a realidade de maneira direta.
Ao desmascarar a realidade protegida pela sociedade, os novos cínicos
nos confrontam com verdades incômodas e nos forçam a refletir sobre as
estruturas de poder e as injustiças presentes em nosso mundo. Eles desafiam
a ideia de uma realidade consensual e nos instigam a questionar os discursos
e as narrativas dominantes, estimulando-nos a buscar uma compreensão mais
ampla e crítica da sociedade em que vivemos.
Nesse contexto, a cidade de Belém torna-se um exemplo simbólico do
que os pintores modernistas e os novos cínicos representam. Assim como os
artistas da época desafiaram as normas estéticas e as convenções acadêmicas,
os novos cínicos desafiam as estruturas sociais e políticas estabelecidas. Eles
buscam romper com a falsa realidade construída e promover uma visão mais
autêntica e transformadora do mundo.
Em suma, as atitudes estéticas dos novos cínicos, em sintonia com os
movimentos dos pintores modernistas em Belém, trazem à tona a necessidade
de questionar e desafiar as normas e estruturas que moldam nossa realidade.
Eles nos convidam a olhar para além da superfície e a confrontar as contra-
dições e injustiças presentes na sociedade contemporânea, vislumbrando a
possibilidade de uma transformação genuína.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


160
REFERÊNCIAS
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São Paulo: Cultrix, 2013.

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Trad. Pedro de Souza e Jonas Tenfen. São Paulo: Rafael Copetti, 2014. Editor. p. 136.

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Geraldo Couto, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p 134).

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1898-1908. Dez. 2008. Trabalho inédito.

FOUCAULT, Michel. Le courage de la vérité. Cours au Collège de France, 1983 – 1984. Paris: Gallimard/
Seuil. 2009.

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ONFRAY, Michel. Cynismes: Portrait du philosophe en chien. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1990.

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PAES, F. A. L. Paul Tillich e a pintura amazônica de Antonieta Santos Feio: Interfaces entre arte e
religião na tela Mendiga (1951). 13, n. 26 - dezembro de 2014

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07

O CONFLITO CHECHENO E O PAPEL


RUSSO NO ORIENTE MÉDIO: UMA
ANÁLISE DO POTENCIAL FOMENTO AO
FUNDAMENTALISMO ATRAVÉS DA
INGERÊNCIA ESTRANGEIRA NA REGIÃO

Felipe Vidal Benvenuto Alberto


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI/UERJ)

10.37885/231014607
RESUMO

Este artigo analisa a interconexão entre o conflito na Chechênia e o papel


desempenhado pela Rússia no Oriente Médio, destacando a possível influência
desestabilizadora da intervenção estrangeira nessa região instável. Começamos
por examinar a intervenção russa na Chechênia, que historicamente buscava
reprimir grupos separatistas e, frequentemente, alegava ligações com organiza-
ções terroristas. Essa intervenção assumiu várias formas ao longo das décadas,
desde operações militares em grande escala até medidas de contraterrorismo.
Uma das conclusões-chave deste estudo é a complexidade do impacto da
intervenção russa na região do Oriente Médio. A repressão russa na Chechênia
resultou em uma escalada do conflito, que incluiu violações de direitos huma-
nos e uma resposta frequentemente brutal aos movimentos separatistas e à
resistência local. Essas ações de repressão podem ter alimentado o ressenti-
mento entre os chechenos, potencialmente contribuindo para o surgimento de
uma forma de fundamentalismo islâmico. Essa radicalização é particularmente
preocupante, dado que a região do Cáucaso do Norte, onde a Chechênia está
localizada, serve como ponto de trânsito entre a Europa e o Oriente Médio,
facilitando a disseminação de ideologias radicais. Isso levanta questões sobre
a gestão de conflitos regionais com implicações globais e a importância de
adotar uma abordagem cuidadosa e equilibrada para lidar com tais situações.
Além disso, ressalta a necessidade de considerar o impacto de longo prazo das
intervenções estrangeiras em regiões sensíveis, como o Oriente Médio, para
evitar inadvertidamente o fomento do fundamentalismo e da instabilidade na
região. Em última análise, este estudo serve como um lembrete da complexidade
das dinâmicas internacionais e das consequências imprevisíveis que podem
resultar das ações de atores externos em conflitos regionais.

Palavras-chave: Chechênia, Fundamentalismo, Oriente Médio, Rússia.

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163
INTRODUÇÃO

A Rússia pós-soviética travou sua primeira guerra — a Primeira Guerra


da Chechênia — entre 1994 e 1996. Surpreendentemente, perdeu e uma nação
com 147 milhões de habitantes foi obrigada a reconhecer a autonomia efetiva
da Chechênia, um país com um centésimo de seu tamanho e com menos de um
centésimo de sua população. Uma mistura de guerrilha brilhante e terrorismo
implacável foi capaz de humilhar os remanescentes decadentes da máquina
de guerra soviética da Rússia.
Todavia, essa era uma luta que já durava séculos. A Rússia reuniu seus
cacos e concentrou suas forças para uma revanche, invadindo novamente o
território em 1999 e, em 2009, declarando vencida a posteriormente chamada
de Segunda-Guerra da Chechênia. No entanto, isso não significou paz na
Chechênia, onde um movimento guerrilheiro ainda sobrevive na contempo-
raneidade, muito menos na região mais ampla da Ciscaucásia, que parece ter
sido infectada pela insurreição. Também vale a pena questionar o quanto isso
realmente foi uma vitória para Moscou, dado que seu preço foi a instalação de
Ramzan Kadyrov, um errático “warlord” que se tornou presidente que, de muitas
maneiras, administra a Chechênia como seu próprio reino particular, além de
ter para fornecer enormes quantias de financiamento federal para reconstruir
a república e subornar Kadyrov e seus aliados, a fim de manter viva a lealdade.
Tais questionamentos tornam relevante entender qual o papel da insur-
gência chechena na política de defesa russa, bem como em sua postura frente
ao Grande Oriente Médio e países imediatamente vizinhos de maioria muçul-
mana (TOAL, 2017). O objetivo deste estudo é, portanto, identificar em que
grau a construção histórica das relações da Rússia com o islã e com o Oriente
Médio influenciam a realidade contemporânea ainda tensionada nas regiões
da Chechênia e do Cáucaso do Norte.
Para atingir este objetivo, o trabalho está dividido em três seções, para
além desta introdução: i) o contexto do movimento checheno e a relevância
religiosa da questão, onde é apresentado o contexto histórico de surgimento dos
movimentos de insurreição na região e são detalhados os laços deste fenômeno
com o fator religioso, mais precisamente com o islã; ii) a intensa presença da
Rússia no Oriente Médio e sua ingerência nos conflitos locais, seção em que

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


164
as relações entre o Kremlin e determinados governos controversos do Grande
Oriente Médio são mais bem detalhadas, em especial através das intervenções
realizadas nos conflitos locais e/ou regionais; iii) os potenciais reflexos da
atuação russa no estrangeiro dentro de seu próprio território, trazendo os des-
membramentos para as problemáticas internas ao território russo que possuem
influência direta da robusta presença do país no Oriente Médio; e, por fim, as
considerações finais, sintetizando os resultados do presente trabalho e, sob um
olhar contemporâneo, apontando perspectivas futuras da problemática estudada.

O CONTEXTO DO MOVIMENTO CHECHENO E A RELEVÂNCIA


RELIGIOSA DA QUESTÃO

As reações no mundo islâmico aos conflitos da Rússia na região da


Chechênia, de 1994 até os mitigados movimentos presentes, não foram tão
fortes quanto a alegação de “solidariedade islâmica” poderia sugerir. A título de
exemplo, o Irã xiita teocrático não foi exceção. Comentários céticos de algumas
autoridades iranianas foram imediatamente suavizados por ponderações que
colocam a Chechênia como um “assunto interno” da Rússia, cuja integridade
territorial o Irã certamente continuaria a respeitar. O caso do país localizado no
Grande Oriente Médio é digno de destaque pois, no início da Segunda Guerra
Russo-Chechena, em 1999, o Irã presidia a Organização da Conferência Islâmica
e fez esforços robustos para manter no menor nível possível seu papel de crítico
ao governo de Moscou. À época, o presidente russo, Vladimir Putin, mostrou-se
pouco familiarizado com questões relativas ao islã internacional ou mesmo
aquele praticado em território russo. Em muitas ocasiões, ele fez comentários
de apoio ao islã, curiosamente sem provocar uma forte reação, seja positiva ou
negativa, do Irã ou de outros Estados e organizações islâmicas (MALEK, 2008).
Em 1999, o chefe democraticamente eleito da República da Chechênia,
Aslan Maskhadov, pediu ajuda ao Kremlin para reprimir várias formações mili-
tantes wahabitas1 baseadas nas montanhas do sudeste da região. Longe de

1 Vertente sunita da prática muçulmana, o wahabismo tem fortes marcas de ortodoxia, conservadorismo e funda-
mentalismo, pregando um retorno de retórica puritana ao que seria o islamismo original.

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ajudar o sitiado presidente moderado da Chechênia a expulsar comandantes
de campo muçulmanos radicais, como o líder jihadista2 de origem saudita Ibn
al-Khattab, os russos trabalharam para minar o governo secularista nacional de
Maskhadov ao lado do fundamentalismo muçulmano (BILENKY, 2012). De maneira
controversa, quando a Brigada Islâmica de Ibn al-Khattab afrontou a liderança
de Maskhadov ao invadir a vizinha República Russa do Daguestão, o Kremlin
decidiu por acusar o líder político eleito de estar por trás da invasão. Indepen-
dentemente dos fatos, e tendo recebido um pretexto para invadir a Chechênia,
Vladimir Putin posteriormente lançou uma invasão em grande escala ao suposto
“estado terrorista” e desencadeou a Segunda Guerra Russo-Chechena.
O separatismo checheno, a partir de 1991, não foi motivado pelo islã,
nem mesmo pelo fundamentalismo islâmico, mas se desenvolveu em uma base
puramente secular de protesto sociocultural e político. Na verdade, o islã não foi
mencionado na constituição separatista da Chechênia de 1992. Em vez disso,
o primeiro parágrafo do artigo 43, aquele que versa sobre assuntos religiosos,
diz que “(...) a liberdade de consciência é garantida. Os cidadãos da República
da Chechênia têm o direito de professar qualquer religião ou não professar
nenhuma, de realizar cerimônias religiosas e de realizar qualquer outra atividade
religiosa que não contradiga a lei” (KNYSH, 2012)
Quando o exército russo se retirou da Chechênia, em 1992, deixou para
trás um considerável arsenal de armas. Em 1994, o presidente russo Boris Yeltsin
enviou forças para a Chechênia, antecipando o que acreditava que seria uma
guerra em pequena escala e uma vitória tranquila. No entanto, a resistência
chechena revelou-se muito mais forte do que o esperado e, em agosto de 1996,
guerrilheiros liderados por Aslan Maskhadov conseguiram reconquistar a capi-
tal Grozny e no início de 1997 as tropas russas haviam se retirado (GALEOTTI,
2014). O que ficaria posteriormente conhecido como Segunda Guerra Russo-
-Chechena seria deflagrada no final do verão de 1999, quando Yeltsin e seu novo

2 Frequentemente confundido com sinônimos de guerra, a jihad se refere, originalmente, ao esforço dos fiéis
muçulmanos pelo próprio bem e pelo bem coletivo, sendo um dever também a defesa da própria fé islâmica. No
entanto, correntes mais fundamentalista associam essa defesa diretamente à uma luta literal contra os supostos
infiéis.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


166
primeiro-ministro, Vladimir Putin, decidiram por negligenciar o apoio pedido
Maskhadov frente o extremismo wahhabita, conforme mencionado anteriormente.
Especialmente no início desse segundo período conflitivo, críticas foram
feitas por parte do Irã, sabidamente uma liderança mundial para o islamismo
xiita. Por exemplo, o Aiatolá Abdollah Javadi-Amoli disse, em janeiro de 2000,
que a Rússia seria “destruída e desgraçada” se continuasse com a matança de
muçulmanos inocentes na Chechênia. À época, o diplomata russo Grigory Karasin
disse que a continuação da guerra na Chechênia seria inaceitável para o mundo
islâmico e acrescentou sua preocupação com a imagem da Rússia para a região
do Oriente Médio e o mundo muçulmano, bem como para o relacionamento
bilateral oficial para com o Irã. Ainda no início de 2000, o presidente iraniano
Mohammad Khatami parabenizou Putin por assumir o cargo homólogo, ainda
que provisório, e expressou esperança de intensificar ainda mais os contatos
com Moscou (WILLIAMS, 2003).
Também mais tarde, críticas iranianas à política da Rússia na Chechênia
foram ocasionalmente expressas, como por exemplo aquelas vindas de um
veículo de mídia leal ao líder espiritual do Irã, Aiatolá Ali Khamenei, na ocasião
de um sequestro com reféns em um teatro musical de Moscou. A imprensa
russa moderada reagiu a isso com manchetes que acusavam os aiatolás de
apoiar os terroristas. No entanto, ao fim e ao cabo, nem para o Irã e nem para
qualquer outro país muçulmano o reconhecimento da independência auto-
proclamada da Chechênia, ocorrida em 1991, chegou a ser um ponto sério de
discussão (WOOD, 2007).
Com a eclosão da segunda Guerra Russo-Chechena em outubro de
1999, os militantes wahabitas formaram vários pelotões que operavam sob os
comandos de Ibn al-Khattab, que liderava o que ficou conhecido coletivamente
como o braço checheno da Brigada Islâmica Internacional. Esses grupos foram
encarregados de algumas das tarefas militares mais difíceis, ou quase suicidas,
na defesa de Grozny, a capital da Chechênia, e muitos dos recrutados tiveram
“funerais” realizados antes mesmo de entrar em combate, pois já se conside-
ravam mártires por Alá (WILLIAMS, 2015). Analistas militares estimam que o

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número total de mujahidin3 árabes lutando na Chechênia não passou de 200 a
300, mas, em determinado momento, eles contavam com armamentos signi-
ficativos e financiamento informal advindo de instituições da mesma vertente
religiosa localizadas no Golfo Pérsico (FALKOWSKI, 2003).
O Departamento de Estado dos EUA afirma que até 100 milhões de dóla-
res foram canalizados do Oriente Médio para os combatentes da resistência
chechena. Houve ainda número chamativo de indivíduos de outras partes do
mundo que subornavam o policiamento de fronteiras para entrar na Chechênia,
mesmo com o grande risco, aos moldes do que posteriormente ocorreria no
autoproclamado Estado Islâmico. Eles frequentemente combinavam o ideário
romantizado de defender um povo oprimido, a exemplo de legiões estrangeiras,
com noções de confrontamento da jihad perpétua (HUGHES, 2013) defendida
por combatentes árabes da Al-Qaeda, no norte do Afeganistão. No mesmo
caminho, foram frequentes as referências à Rússia como um império de infiéis,
pelos braços mais radicalizados do islã (POKALOVA, 2015).
Vídeos e outros estímulos visuais enviados de volta à Europa por esses
combatentes foram distribuídos por todo o Oriente Médio, onde serviram como
divulgações de recrutamento para a jihad contra os russos. Há diversos relatos
também de verdadeiras peregrinações de grupos muçulmanos, não necessaria-
mente fundamentalistas, pelo Oriente Médio a fim de coletar dinheiro e enviar à
Chechênia para fins humanitários, parte do qual certamente cai nas mãos dos
militantes que controlam o fluxo de caixa para a região.
Com a misteriosa morte por envenenamento de Ibn al-Khattab, em 2002,
cujas façanhas foram repercutidas e valorizadas por correligionários árabes em
todo o Oriente Médio, a ideia mais aceita é de que o fluxo de dinheiro para os
wahabitas organizados em milícias que operavam nas regiões montanhosas da
Chechênia acabou interrompido, ao menos temporariamente (SHLAPENTOKH,
2008). Isso se daria até o braço direito de al-Khattab, outro saudita chamado
Abu al-Walid, se tornar comandante direto daqueles que estavam órfão de
uma liderança. De acordo com o Centro de Observação Islâmica, com sede

3 O termo mujahidin é o plural da palavra mujahid, que pode ser traduzido literalmente como combatente, mas
como possui frequente viés religioso, ganha a conotação de soldado em uma suposta guerra santa.

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em Londres, al-Walid nem mesmo teria esse nome de batismo, sendo na ver-
dade um cidadão saudita de 34 anos chamado Abd al-Aziz al-Ghaamidi. Como
seu antecessor e mestre, Abu al-Walid recebeu sua educação nos campos de
batalha do Afeganistão e se tornou um combatente na Chechênia por meio da
jihad em Zenica, na ocasião da Guerra da Bósnia, e então teria participado de
uma emboscada filmada e propagandeada por al-Khattab, assim como de um
massacre a tropas russas em abril de 1996.
Na Segunda Guerra Russo-Chechena, al-Walid foi nomeado comandante
da frente oriental por Maskhadov em um conselho de guerra, realizado em 2001,
e suas forças ganharam as manchetes quando abateram e capturaram a tripula-
ção de um caça russo. Após o atentado de 27 de dezembro de 2002, em Grozny,
o governo russo acusou al-Walid do crime e de ser apoiado pela Irmandade
Muçulmana (SCHAEFER, 2010). Esta acusação nunca foi confirmada e pode ser
interpretada hoje como uma tentativa, por parte do Kremlin, de associar aquele
movimento a algo mais estruturado e que pudesse ser combatido politicamente,
a fim de dar uma resposta mais satisfatória ao sistema internacional. É digno de
nota, no entanto, que a Irmandade Muçulmana não se trata de uma organização
jihadista militante do tipo da Al-Qaeda ou do Estado Islâmico. Apesar de uma
série de controversas que envolvem o nome da organização com omissões a
casos de fundamentalismo, é reconhecida como um legítimo grupo de oposição
formado por médicos, advogados, professores e outras profissões convencionais,
em especial no Egito e na Jordânia (GARNER, 2013).
Independentemente da fonte de seu financiamento, Abu al-Walid demons-
trou que a contínua brutalidade da Rússia na região continuaria a tornar a
Chechênia um ímã para patrocinadores financeiros wahabitas e muçulmanos
radicalizados, em geral, por todo o mundo e que viam os crimes humanitários da
Rússia na Chechênia como crimes contra a Ummah4 muçulmana (AYDIN, 2017).

4 Segundo a concepção da fé muçulmana, existe uma comunidade mundial que engloba todos aqueles que
professam essa fé ao redor do mundo, sendo essa comunidade espiritual chamada de Ummah. O conceito
se difere de Mundo Muçulmano por não possuir conotação política. Um brasileiro convertido ao islã passa
a pertencer à Ummah citada no Alcorão, mas não faz parte do Mundo Muçulmano, em termos geopolíticos
(AYDIN, 2017).

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A posição exercida por al-Walid era sabidamente tão ingrata que, den-
tro de um prazo muito curto, outros três indivíduos ainda o assumiriam por
ocasião da morte de seu antecessor. O próprio al-Walid morreria em 2004,
sendo seguido por Abu Hafs al-Urduni, que também morreria em 2006 e dei-
xaria o legado para Melfi Al Hussaini Al Harbi, popularmente conhecido como
Muhannad, desta vez durando até 2011, quando o movimento já dava sinais de
esgarçamento e contaria com uma última liderança de algumas semanas até
o vácuo de poder aos interessados em seguir com uma resistência armada na
região (SHLAPENTOKH, 2010).

A INTENSA PRESENÇA DA RÚSSIA NO ORIENTE MÉDIO E SUA


INGERÊNCIA NOS CONFLITOS LOCAIS

Em geral, a política no Oriente Médio da Rússia czarista baseava-se


nas relações deste império com o Irã e o Império Otomano. Em relação ao Irã,
a política da Rússia czarista consistia na participação iraniana na contenção
do Império Otomano e na tentativa de alcançar o alto mar do Golfo Pérsico e
do Oceano Índico através daquele país. Era também um plano para manter e
fortalecer a presença e influência da Rússia no mercado iraniano. No entanto,
no âmbito da competição conhecida como o “Grande Jogo” entre a Rússia e
a Grã-Bretanha, não foi possível para a Rússia atingir o alto mar do sul do Irã
e dominar todo o mercado local. Assim, o Irã era uma arena de competição
entre essas duas grandes potências e o acordo de 1907 para dividir o Irã em
três esferas de influência: da Rússia no norte; da Grã-Bretanha no sul; e uma
região central independente foi um claro reflexo dessa disputa (PLOKHY, 2017).
Quanto ao Império Otomano, a Rússia czarista o considerava um rival no
Cáucaso, no Mediterrâneo e nos Bálcãs. A derrota da Rússia para os otomanos
na Guerra da Crimeia, em meados do século XIX, é considerada um dos eventos
mais catastróficos da história russa até hoje. Em geral, a Rússia czarista e o
Império Otomano, como duas grandes potências, não tinham laços favoráveis
entre si, e sua relação foi complicada e com muitos conflitos. Além disso, o Irã
xiita, que se considerava um rival do Império Otomano sunita, poderia ser útil
para a Rússia na contenção dos rivais, como mencionado anteriormente.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


170
Com a queda do império czarista na Rússia e a formação da União
Soviética, bem como o colapso do Império Otomano após a Primeira Guerra
Mundial, a política externa da Rússia mudou. Enquanto as questões geopolíti-
cas estavam no centro da política externa da Rússia czarista, a política externa
soviética baseava-se na ideologia do marxismo-leninismo. Nesse sentido, a
União Soviética, ao contrário do czarismo que se concentrava principalmente
nas questões geopolíticas de seu entorno e na manutenção do equilíbrio de
poder entre as grandes potências internacionais, adotou uma política externa
globalista, de maneira mais acentuada especialmente após a Segunda Guerra
Mundial. Além disso, é relevante notar que o confronto com o Ocidente como
portador e agente do discurso capitalista em qualquer parte do mundo constava
como prioridade na agenda da política externa soviética.
Foi sobre essa base sólida que a União Soviética começou a apoiar os
movimentos de esquerda em todo o mundo. O Oriente Médio foi, sem dúvida,
uma das regiões de resistência contra a América e seus aliados. O apoio sovié-
tico a regimes e movimentos inclinados a ideias de esquerda, inclusive no Egito,
Iraque, Síria, Palestina e partes do Iêmen e Omã foi buscado nesse contexto.
No contexto da competição da Guerra Fria entre os blocos ocidental e
oriental, quando refletida no conflito entre Israel e os árabes, a União Soviética
apoiou os últimos, embora a União Soviética tenha sido o primeiro país do
mundo a reconhecer Israel. Foi fornecido amplo apoio soviético aos regimes e
movimentos árabes, especialmente no campo das armas. Tal apoio foi também
extenso pelo bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos a atores como
Israel, Irã, Turquia, Arábia Saudita e Paquistão, a fim de conter o avanço do
comunismo. Com a revolução islâmica no Irã, a União Soviética demonstrou
alegria e preocupação. A primeira reação pois um dos pilares do equilíbrio de
poder na região, que estava no quadro do bloco ocidental até então, através doo
regime do Xá, havia sido derrubado e preocupado que a ideologia da Revolução
Islâmica poderia causar problemas para a União Soviética, que possuía parte
significativa de sua população adepta do islamismo (KHRESTIN; ELLIOTT, 2007).
Vale lembrar que o bloco soviético englobava uma série de repúblicas da Ásia
Central e ainda havia a Chechênia dentro da própria Rússia.
Em tal situação, a União Soviética forneceu grande apoio, especialmente
em termos de armas militares ao Iraque durante a guerra imposta contra a

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República Islâmica do Irã (TABATABAI; SAMUEL, 2017). Após o colapso da
União Soviética, na década de 1990, a Federação Russa não dedicou muita
atenção ao Oriente Médio devido à retórica do governo Yeltsin, à instabilidade
política e econômica da Rússia e ao foco do governo em questões domésticas
e desafios correlatos. A situação mudaria levemente com a troca de chance-
laria na segunda metade da década, quando o equilíbrio de relações entre
Ocidente e Oriente foi colocado na agenda de maneira mais clara. Mas foi
definitivamente nos anos 2000, quando Putin chegou ao poder, que a situação
mudou. A Federação Russa saiu da turbulência dos anos 1990 e, aos poucos,
o desejo de desempenhar novamente o papel de grande potência no sistema
internacional começou a crescer. O governo de Putin aumentou a dedicação
ao Oriente e ao Oriente Médio especificamente, chegando a viajar para muitos
países da região já como presidente da Rússia. Muitas dessas viagens foram
feitas pela primeira vez na história ou, ao menos, pela primeira vez durante a
Federação Russa (NIAKOOEE; RAHDAR, 2021).
Embora durante os dois primeiros mandatos da presidência de Putin,
a Rússia ainda olhasse mais para o Ocidente, a importância do Oriente na
política externa do país estava aumentando gradativamente. Na década de
2010, a situação mudou completamente e a Rússia desejava estar presente e
desempenhar um papel maior no Oriente Médio. Pode-se adotar como ponto de
virada a intervenção militar na crise síria em favor de Bashar al-Assad (ALLISON,
2013). Na última década, as relações da Rússia com os atores estatais e não
estatais do Oriente Médio se expandiram de forma sem precedentes. Ao que
tudo indica, o tensionamento com as potências ocidentais, que foi colhido
como consequência direta da anexação de territórios ucranianos, a Rússia não
teve escolha a não ser fortalecer seus laços com o Oriente Médio para reduzir
o impacto das pressões e sanções políticas e econômicas vindas do lado do
lado oposto do mapa.
Sendo assim, apesar de os componentes de segurança sempre terem
representado a maior fatia da participação política de Moscou para o Oriente
Médio, considerando seu importantíssimo papel no mercado energético mundial
e a necessidade da Rússia para o das exportações de energia, esta região tor-
nou-se muito mais importante do que antes. Além disso, para reduzir as sanções
econômicas do Ocidente e seus custos de trânsito comercial, a Rússia encontrou

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


172
uma forte necessidade de trânsito e rotas comerciais no Oriente Médio. Portanto,
espera-se que o Extremo Oriente e o Oriente Médio se tornem cada vez mais
importantes para os russos, à medida que a prioridade do Ocidente na política
externa da Rússia está em processo de derretimento acelerado.

OS POTENCIAIS REFLEXOS DA ATUAÇÃO RUSSA NO


ESTRANGEIRO DENTRO DE SEU PRÓPRIO TERRITÓRIO

Houve muitas discussões polêmicas sobre a política da Rússia no Oriente


Médio nos últimos anos, especialmente após sua intervenção na crise síria
(ALLISON, 2013) e também, de forma mais limitada, na Líbia. Uma questão
importante sobre a abordagem da Rússia para o Oriente Médio é se Moscou
tem uma macroestratégia específica em relação ao Oriente Médio. Aqueles
que respondem negativamente a esse questionamento acreditam que a atitude
da Rússia em relação ao Oriente Médio é de curto prazo e oportunista, não se
baseando em uma macroestratégia clara. Por outro lado, um número significa-
tivo de analistas acredita que, embora a atitude e o comportamento da Rússia
em relação ao Oriente Médio sejam pragmáticos, pode-se reconhecer sim uma
espécie de macroestratégia. Há também uma terceira abordagem, mais calei-
doscópica, de que a Rússia teria uma estratégia para o Oriente Médio e essa
estratégia seria exatamente o oportunismo. O último ponto de vista pode ser
mais bem explicado na esteira da argumentação de que embora as políticas
da Rússia sejam baseadas no oportunismo e não em uma estratégia macro,
poderiam ser compreendidas e analisadas na conjuntura da estratégia deste
país em restaurar a posição de uma grande potência mundial. Em outras pala-
vras, não seria exatamente uma estratégia para a região, mas estaria inserido
em um plano maior e não pertenceria ao acaso.
Outra questão importante sobre a abordagem da Rússia para o Oriente
Médio é acerca de quais objetivos e interesses Moscou persegue nesta região,
independendo do nível de alcance traçado. Um dos objetivos mais importantes
é a tentativa da Rússia de mudar a ordem mundial e restaurar a posição de
grande potência, como supracitado. A Rússia estaria buscando mudar a ordem
internacional baseada na hegemonia americana para uma ordem multipolar em
que a própria Rússia é um desses polos, e outras questões como lidar com o

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terrorismo acabam sendo colocadas em segundo patamar de importância. Já a
intervenção da Rússia na Síria deve ser entendida dentro da estratégia geopo-
lítica mais ampla deste país em relação ao Ocidente e ao sistema internacio-
nal. O Kremlin encara a intervenção na Síria e na Líbia como um sinal factível
de vitória nas suas disputas com o Ocidente e na recuperação da sua posição
de relevância no sistema internacional (ALLISON, 2013).
É largamente defendido também que a visão da Rússia sobre o Oriente
Médio não teria nada a ver com esta região em si e suas questões particulares,
mas sim com sua visão da ordem mundial e a competição de grandes potências
para definir e reorganizar esse ordenamento. Outro ponto consonante com o
argumentado até então é que a política externa da Rússia para o Oriente Médio,
ainda no contexto de sua tentativa de restaurar sua posição global e papel como
grande potência, exerce pressão sobre o Ocidente para aceitar tal posição,
umas vez que haveria um bloco de países também relevantes ao outro lado
interessados em manter relações de alto nível com o Kremlin (HERPEN, 2016).
É ainda possível afirmar que o objetivo da política externa da Rússia no
Oriente Médio é lidar com o isolamento e criar diversidade na política externa,
com o objetivo de compensar as perdas econômicas causadas pelas sanções
ocidentais. Seria razoável argumentar também que a política externa da Rússia
para o Oriente Médio não se trata exatamente de pressionar os ocidentais e
forçá-los a interagir e cooperar com o governo Putin, mas expandir as conexões
de Moscou com outros atores regionais a fim de evitar o isolamento.
Especialistas em política externa russa também acreditam que a política
do país para o Oriente Médio visa reequilibrar as relações externas do país
para reduzir a dependência do Ocidente e fazer parceria mais duradoura do
que aquelas até então traçadas com os Estados do Oriente Médio e Norte da
África, que representam um mercado significativo para a venda de armas e
usinas nucleares, importações de tecnologia, investimento estrangeiro direto e
acordos que são vitais para controlar o preço da energia. É razoável dizer que,
por meio da interação com potências regionais e da intervenção em conflitos, a
Rússia pode readquirir a posição de grande potência sem nem mesmo precisar
ser reconhecida como uma grande potência pelo Ocidente.
Alguns consideram as questões e preocupações internas da Rússia e o
papel dos atuais políticos da alta cúpula do país, especialmente Putin, como o

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


174
principal condutor da política do país para o Oriente Médio. A Rússia demonstra
crescente preocupação com a possibilidade de o extremismo e o terrorismo
se espalharem para suas regiões muçulmanas na Ciscaucásia, especialmente
porque pessoas desta região e de países da Ásia Central se juntaram em massa
ao autoproclamado Estado Islâmico e outros grupos extremistas e terroristas na
Síria nos últimos anos. Sendo assim, Moscou tem sérias e constantes preocupa-
ções com seu retorno às atividades. Além disso, considerando os protestos na
Rússia por volta de 2011 e 2012, após os desenvolvimentos da Primavera Árabe
ou despertar islâmico, é razoável acreditar que Moscou estava preocupada
com a disseminação desses desenvolvimentos para o território russo e seus
arredores imediatos, uma vez que teve experiências desagradáveis acerca das
chamadas revoluções coloridas5 em seu entorno (TOAL, 2017).
Uma das hipóteses mais aceitas é de que a intervenção da Rússia na Síria
visava encobrir problemas internos e mobilizar a opinião pública em torno da
bandeira defendida (MOVAHEDI; GHADBEIBY, 2022). Esse argumento ganha
força quando se entende que o efeito mobilizador da anexação da Crimeia estava
enfraquecendo (GRIGAS, 2016) e a economia russa não se encontrava em uma
situação favorável. Com base nisso, no que tange a intervenção da Rússia na
Síria, o papel das questões domésticas tem sido mais proeminente do que as
questões geopolíticas. Em outras palavras, a presença na Síria ajudou Putin a
fortalecer seu apoio doméstico. Não podemos deixar de lado também os fatores
ideológicos que desempenharam um papel proeminente na formação da política
russa para o Oriente Médio. Esses fatores, que se manifestam na ideia russa
gerida diretamente por Putin (MCFAUL, 2020) e girando em torno de conceitos
como estabilidade autoritária, oposição ao intervencionismo ocidental, combater
o terrorismo e uma forma de tradicionalismo tolerante com outras religiões e
sociedades são atraentes para muitos líderes políticos e até mesmo uma parte
do povo do Oriente Médio (KOLSTØ; BLACKKISRUD, 2016).

5 Sendo assim denominados aqueles movimentos que visaram sucessivas derrubadas de governos considera-
dos desalinhados com as tendências globais de multilateralismo, pode-se destacar nos entornos da Rússia a
Revolução Bulldozer, ocorrida na Iugoslávia e resultando na queda de Slobodan Milošević , a Revolução Laranja,
ocorrida na Ucrânia em 2004, e a Revolução das Tulipas, que teve palco no Quirguistão, sendo a última aquela
mais violentamente reprimida.

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Os eventos da última década no Oriente Médio, especialmente a crise
síria, aumentaram a presença e o foco da Rússia no Oriente Médio. Antes da
chamada Primavera Árabe, o Oriente Médio tinha baixa prioridade na política
externa russa, mas a crise síria e a Guerra Civil no local fizeram do Kremlin um
dos atores extrarregionais mais ativos e envolvidos nesta região. A questão
ainda é entender quais são os componentes da dessa relação Rússia-Oriente
Médio e como essa política pode ser compreendida.
A ameaça de extremismo de algumas partes da Rússia, que constituem
uma parte notável da população do país, é outro componente importante que
molda a política da Rússia para o Oriente Médio. Como supracitado, na década
de 1990, a Rússia esteve envolvida em duas guerras civis na Chechênia e a vio-
lência e a brutalidade usadas pelo governo russo contra os grupos insurgentes
causaram o crescimento de ideias fundamentalistas e extremistas no norte do
Cáucaso. Embora hoje o líder checheno Ramzan Kadyrov seja um aliado próximo
de Putin, a questão é vista como a calmaria antes da tempestade e conside-
rada até hoje uma das maiores ameaças à segurança nacional da Federação
Russa. Putin já chegou a afirmar que considera isso uma ameaça existencial
para a Rússia com, por exemplo, quando mencionou que a existência de uma
suposta ameaça à integridade da Federação Russa na forma da “Iugoslavização
da Rússia” e complementou dizendo que estava convencido de que se uma
ação imediata não fosse tomada para deter o extremismo na Chechênia, uma
segunda Iugoslávia poderia se alastrar por todo o território russo (KUZIO, 2022).
Em tal situação, os russos sempre temem a possibilidade de o radica-
lismo explodir em suas regiões com alguma tendência a isso e, por esse motivo,
temem e são sensíveis a desenvolvimentos revolucionários, fundamentalistas e
extremistas em países islâmicos que possam engatilhar novamente os grupos
adormecidos na Chechênia e Ciscaucásia. Trazendo um exemplo mais vívido,
no início de 2011 alguns altos líderes russos enxergaram a Primavera Árabe
como uma forte possibilidade de incitar os rebeldes muçulmanos na Rússia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, foram conflitos selvagens que combinaram em diferentes momen-


tos as características de uma conquista imperial, uma guerra civil e uma

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


176
campanha terrorista. O impacto na própria Chechênia foi devastador: cidades
em escombros, populações fugiram para campos de refugiados, uma economia
destruída, comunidades dilaceradas pela guerra e pelo medo. Para vencer os
rebeldes, Moscou criou um novo regime que as organizações internacionais de
Direitos Humanos costumam descrever como violento e ditatorial (RUSSELL,
2007). Enquanto isso, a jihad e o extremismo islâmico violento entraram no Cáu-
caso do Norte, ao passo que a luta e a propaganda que a cercava contribuíram
para um clima de paranoia e xenofobia no restante da Rússia (WOLFF, 2006).
Akhmad Kadyrov e, mais especificamente, seu filho Ramzan Kadyrov foram
instrumentos cruciais para o sucesso de Putin na Chechênia. Ao instalar um
governo checheno, e dois presidentes que lutaram contra os russos na Primeira
Guerra Chechena, Moscou pode reivindicar um certo grau de legitimidade,
mesmo que as avaliações internacionais sejam de que as eleições realizadas
para elevar os dois Kadyrov não foram livres nem justas. Mais precisamente,
ao regionalizar a guerra e passar a maior parte das operações de limpeza para
as forças locais, o Kremlin poderia minimizar as baixas russas e contornar os
problemas evidentes com a preparação física, o treinamento e o moral de muitas
de suas próprias tropas. Os Kadyrovtsy e as forças chechenas semelhantes,
provenientes em grande parte de ex-rebeldes, conheciam a terra e as táticas e
esconderijos de seus inimigos. Eles também forneceram uma válvula de escape,
um meio pelo qual os rebeldes e especialmente aqueles da vertente nacionalista
da velha escola que se cansaram da luta, ou se desencantaram com o deslize
para o terrorismo e o jihadismo, poderiam desertar com segurança e honra.
Em suma, pode-se dizer que a região segue um campo minado para o
governo russo, ainda que haja um cão de guarda aparentemente controlado
por Putin, mas não se pode negligenciar a relevância do papel internacional
desempenhado pela Rússia na manutenção da estabilidade por ali. Os Kadyro-
vtsy serviram, por exemplo, ao lado de tropas russas na anexação de territórios
ucranianos e isso pode ser interpretado sob dois vieses: maior integração à
sociedade russa, que seria um ponto positivo; mas retorno desses indivíduos aos
campos de combate, reacendendo possíveis aspirações autonomistas futuras.

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179
08

O “NOVO” EM VELHAS PRÁTICAS: UMA


ANÁLISE SOBRE A NOÇÃO DE
“NOVÍSSIMOS” MOVIMENTOS SOCIAIS E
COLETIVOS

Breno Augusto de Oliveira Santos

10.37885/230914534
RESUMO

O capítulo propõe refletir sobre a noção de “novíssimos” movimentos e coletivos


a partir da literatura que os caracterizam como novidade em razão do uso das
redes sociais, da não vinculação partidária, da horizontalidade e da noção de
autonomia dessas organizações. Indagamos se as características dos “novís-
simos” movimentos e os coletivos como novidade não se assemelham às de
outros movimentos e grupos políticos em diferentes tempos históricos. Apre-
sentaremos, dessa forma, um breve debate sobre os movimentos autônomos
e a noção de autonomia a partir de eventos como Maio de 68 na França e Itália
para analisar como alguns dos “novíssimos” movimentos e coletivos herdaram
velhas práticas.

Palavras-chave: Novíssimo, Autonomismo, Maio de 68.

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181
INTRODUÇÃO

Este artigo parte de uma questão em evidência entre alguns cientistas


sociais, a noção dos “novíssimos” movimentos e coletivos como novidade a
partir das manifestações de junho de 2013. Noções como “novos” ou “novíssi-
mos” demarcam as lutas sociais contemporâneas, diferenciando-as a partir de
características identificadas no interior de suas organizações. Nossa premissa é
a de que as características de alguns desses “novíssimos” movimentos e coleti-
vos assemelham-se com outros movimentos na história. Por isso, retomaremos
as reflexões sobre as lutas populares dos anos 1960, produtoras dos “novos”
sujeitos e dos “novos” movimentos, colocando em xeque os grandes sistemas
teóricos como o marxismo e o funcionalismo (Alonso, 2009).
Assim, se o ano de 1968 foi um marco para as ciências sociais, em razão
dos acontecimentos como o Maio Francês, acompanhado pelas greves na Itá-
lia, os levantes estudantis na Alemanha, a insurgência de jovens na América
do Sul, o auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, aquele mesmo
ano também marcava as lutas dos movimentos autônomos desvinculados de
sindicatos e partidos.
As novas práticas encontradas em alguns dos “novíssimos” movimentos
também estavam nos movimentos dos anos de 1960 e 1970, período marcado
pelas agitações estudantis, como na Universidade da Califórnia em Berkeley
em 1964, no Egito e Polônia em 1968, a invasão da polícia na Universidade de
Madri, as passeatas estudantis, as greves em Osasco e Contagem, o assassi-
nato de Martin Luther King nos Estados Unidos, as manifestações na Alemanha
contra a morte do líder da Liga dos Estudantes Socialistas Alemães (SDS), a
Primavera de Praga, o conflito estudantil em Nanterre e a invasão policial na
Sorbonne (Cardoso, 2018); em suma, a sequência de acontecimentos que ocor-
reram nos anos 60 e desembocaram com a explosão juvenil em 68 demarcam
o tempo e o espaço.
Por isso, dividimos este artigo em duas partes: à primeira, coube a
problematização da noção de “novíssimos” movimentos e coletivos como em
relação às formas de organização e práticas históricas, retomando a categoria
experiência de E. P. Thompson como a forma que homens e mulheres vivenciam
o cotidiano e herdam cultura, valores e práticas de outras gerações. Em seguida,

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


182
apresentaremos um breve debate sobre a autonomia em diferentes correntes
teóricas com o propósito de demonstrar que movimentos não vinculados a
partidos, horizontais e autônomos não são novos, e suas práticas já estavam
presentes em organizações daquelas décadas. Por fim, as notas conclusivas.

PROBLEMATIZAÇÃO DO NOVO

Junho de 2013 parece ser um corte temporal para alguns cientistas sociais,
os quais captaram algo novo nos movimentos sociais e suas práticas políticas.
Pequenos grupos com organização horizontal, aparentemente destituídos
de lideranças formais e utilizando-se das redes sociais para sua organização
e ação política passaram a ganhar maior destaque nas análises e reflexões
sociológicas. Em meio ao complexo contexto de manifestações e a pluralização
de organizações, encontravam-se presentes os diversos partidos de esquerda,
organizações de movimentos sociais já estruturados, mas também novas
experiências organizacionais, como o Movimento Passe Livre (MPL), que não
se vincularia a nenhuma dessas outras organizações civis. Maria Glória Gohn
(2017) o caracterizou como “novíssimo”.
Criado em 2005 em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial1, o
MPL esteve vinculado ao movimento estudantil e com a pauta baseada na
mobilidade urbana dos estudantes. Em 2013, organizou atos contra o aumento
da tarifa do transporte público na cidade de São Paulo, mobilizando centenas
de estudantes universitários e secundaristas pelas redes sociais, o que resultou
em grandes manifestações e repressão violenta por parte da Polícia Militar.
Estudiosos que se debruçam sobre movimentos sociais caracterizaram o
MPL como um “novíssimo” movimento devido à sua forma apartidária, horizon-
tal, autônoma e a desvinculação, e mesmo recusa, de partidos políticos (Gohn,

1 Importante anotar a existência de experiências anteriores que, segundo o próprio MPL, influenciaram a
formação do movimento: “O MPL foi batizado na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em janeiro de 2005, em
Porto Alegre, mas antes disso, há seis anos, já existia a Campanha pelo Passe Livre em Florianópolis. Fatos
históricos importantes na origem e na atuação do MPL são a Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e as Revoltas da
Catraca (Florianópolis, 2004 e 2005)”. [Acesso: https://www.mpl.org.br/]

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2017). Outros, incluem localidades2 e o ciberativismo como característica central
(Perez; Souza, 2017).
Para Gohn, a novidade do MPL foi a cultura política. Novidades foram
apresentadas em suas estratégias de luta, sua pauta de mobilidade urbana, bem
como a forma artística das manifestações, com música e fanfarras, com o apoio
do movimento Autônomo Libertário, compostos por jovens cuja organização
coletiva baseia-se no consenso de conselho3. Tais elementos são paridos do
ambiente cultural do movimento estudantil, já que integrantes do próprio MPL
vinculam-se aos estudantes do ensino superior. Estes elementos, segundo
Gohn, nos colocam diante de novos sujeitos, os quais:

[...] disputam e ressignificam interpretações existentes sobre as


questões em tela, ressignificando, portanto, com isso a cultura
política vigente, criando novos discursos, novas práticas, novas
representações e imaginários sobre o fato sociopolítico, econômico
ou cultural em questão (2017:14).

O ano de 2013 colocou movimentos e/ou coletivos da juventude em


evidência, transformando o cenário político e promovendo na produção cien-
tífica a noção de novidade. Maia (2013) elucida que os movimentos e coletivos
contemporâneos estariam na vanguarda das novas formas associativas, com
o uso das redes sociais e organização horizontal. Santiago (2016), por sua vez,
coloca o ambiente virtual como características dos “novíssimos”. Ademais, os
“novíssimos” “são absolutamente autônomos aos partidos políticos, sindicatos
e sequer possuem uma liderança formalmente eleita” (Santiago, 2016:41).
Para Santiago (2016), o “novíssimo” inclui como eixo central o uso da
internet e as ocupações do espaço urbano. Entretanto, esses elementos que
podem ser caracterizados como eixo que norteia a novidade podem ser relati-
vizados quando se observa as experiências no espaço-tempo. As ferramentas

2 Entende-se por localidade os espaços de criação organização e atuação dos movimentos sociais e coletivos.
3 Debruçaremos no decorrer do artigo referências teóricas em defesa dos conselhos, cuja alusão parte das formas
de organizações históricas de conselhos operários e populares vistos em contextos históricos específicos (os
conselhos populares na França de 1871, os sovietes na Rússia em 1917, os conselhos populares na Revolução
Alemã de 1918-1919, e as organizações estudantis na França em 1968) cuja organização horizontal promoveram
decisões não hierarquizadas e a partir do consenso entre seus integrantes.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


184
de comunicação, por exemplo, são condicionantes para a existência dos movi-
mentos sociais, sejam eles tradicionais, novos ou “novíssimos”, nesse sentido,
corrobora-se a afirmação de Santiago ao citar Castells: “Historicamente, os
movimentos sociais dependem da existência de mecanismos de comunicação
específicos: boatos, sermões, panfletos, e manifestos passados de pessoa a
pessoa, a partir do púlpito, da imprensa, ou por qualquer meio de comunicação
disponível. Em nossa época, as redes digitais, multimodais, de comunicação
horizontal, são os veículos mais rápidos e mais autônomos, interativos, repro-
gramáveis e amplificadores de toda história” (2013:19 apud Santiago, 2016:42).
Reafirma-se que cada geração herda as formas e lutas do passado e utiliza-se
das ferramentas do seu tempo.
Assim, o que distinguiria as diferenças entre os movimentos tradicionais
e os “novíssimos” movimentos, seriam o uso das tecnologias digitais, a ausência
de lideranças e a horizontalidade (Thibes et al., 2020). Segundo a pesquisa de
Thibes et al. (2020), os estudos sobre as novas formas de organização desses
movimentos e coletivos se dividem em três correntes interpretativas: aqueles
que entendem as redes como elemento central e que influenciam as formas
de organização; outros que entendem que, apesar do uso intensivo das redes
sociais, ainda haveria a presença de uma verticalidade; por fim, a horizontalidade
como característica central dessas organizações. A diferença entre as velhas
e novas formas podem ser, dessa forma, apresentadas da seguinte maneira:

Diferentemente da ação coletiva convencional, que normalmente


demandaria de seus participantes tomadas de decisões mais difíceis
e a adoção de identidades sociais e coletivas mais “trabalhosas”,
que por sua vez exigem mais educação, pressão, socialização e um
maior nível de formalização e utilização de recursos, as redes de
ação conectiva são conjuntos de processos mais individualizados
e organizados tecnologicamente que resultam em ações sem a
necessidade da criação de identidades coletivas ou de níveis e
esforços organizacionais robustos para responder a determinadas
oportunidades políticas. (Valiengo; Oliveira, 2020:88-89).

Já os coletivos identificados como novos protagonistas na cena política,


podem ser destacados da seguinte forma:

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Em um contexto de crítica à “política tradicional”, esta distinção
ocorre porque, como veremos na próxima seção, os ativistas, por
um lado, comumente percebem as organizações de movimentos
sociais, as ONGs e mesmos as organizações de movimentos
sociais como estruturas organizacionais estáticas, partidárias e
hierarquizadas, e, por outro, autoconstroem a imagem dos coletivos
como espaços dinâmicos, como mecanismos cotidianos de ação
política pautados na autonomia e na horizontalidade (Marques;
Max, 2020:13).

O “olhar para o novo” é um exercício comum nos estudos sobre movi-


mentos sociais. Na década de 1980, Eder Sader (1988) também denominava
como “novos sujeitos” aqueles cuja ação política não poderia ser caracterizada a
partir do modelo tradicional, vinculados às organizações sindicais e partidárias,
e localizados no ambiente fabril. Ao contrário destes, seriam as experiências
cotidianas e as práticas políticas desses sujeitos que os determinariam como
“novos”4. A noção de sujeito estaria associada à possibilidade de autonomia,
não de forma voluntarista e livre de todas as determinações externas, mas
sendo aquele capaz de realizar ações de acordo com as interações sociais
vivenciadas. A noção de “novos sujeitos coletivos” expressaria sua coletividade
e na construção identitária e, ao mesmo tempo, seus interesses e lutas em
diferentes “lugares”.
É provável que explicações castoriadianas da autonomia do sujeito, e
thompsonianas das experiências e consciências populares, tenham estado em
leituras de cientistas sociais na década de 1980 (Santos, 2018; Perruso, 2008)5.
Decerto, a produção intelectual daquela década foi marcada por uma releitura
dos conflitos sociais. Essa releitura ocorreu concomitantemente ao processo
de introdução de autores críticos ao marxismo ortodoxo, ao estruturalismo e ao
funcionalismo, os quais indicavam que tais teorias eliminariam a autonomia dos
sujeitos6. A introdução de teses que evidenciam essa autonomia dos sujeitos em

4 Dessa maneira, Sader incluiu entre os “novos sujeitos” aqueles que se articulavam e formulavam suas reivindi-
cações a partir de espaços sociais para além da fábrica, nos bairros, no campo, nas igrejas e as universidades,
ou seja, os clubes de mães, os grupos comunitários, as comissões de moradores, as comunidades de base da
Igreja etc.
5 A recepção de Thompson e seus usos pode ser encontrado em Mattos (2012) e Santos (2018).
6 Referimos a recepção das obras de E.P. Thompson e Castoriadis em trabalhos acadêmicos que dialogaram
com outras como as de Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Sobre as recepções nas Ciências Sociais ler Perruso
(2008) e Santos (2018).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


186
relação à estrutura parece ser uma influência que sucedeu a partir de Maio de
1968 na França. As novas teorias que valorizavam a heterogeneidade, a cultura,
as tradições e experiências cotidianas e possibilitavam reflexões sobre práticas
sociais e costumes, passaram a ser referenciadas em pesquisas acadêmicas
nos cursos de Ciências Sociais (Santos, 2018; Perruso, 2008).
Entende-se, portanto, que a busca do “novo” não é uma novidade entre
os cientistas sociais. A noção de “novos sujeitos”, na década de 1980, por exem-
plo, teve uma significativa importância em diversas pesquisas7, destacando os
processos de luta durante o período de abertura política e de consolidação da
Constituinte de 1988. Mas qual é a implicação da noção do “novo” ou “novíssimo”?
Em 1975, Castoriadis questionava a noção de novidade diante da tentativa
de se construir novas denominações institucionais na Rússia revolucionária.
Para ele o “novo” estaria carregado de um simbolismo de linguagem, pois a
noção carrega a dimensão da novidade, mas verifica-se também uma presença
de traços históricos permanentes, herdados de tradições anteriores. O filósofo
grego remete como a linguagem do “novo” apresenta-se no imaginário em dife-
rentes contextos; é o caso dos bolcheviques após a Revolução Russa de 1917,
que acreditavam estar criando uma nova linguagem e novas instituições, e por
isso novos simbolismos. Mas havia algo realmente novo? Castoriadis conta-nos
que quando os bolcheviques formaram um governo havia a necessidade de
um nome, pois o “conselho de ministro” aludia às velhas estruturas, desagra-
dando até mesmo Lênin, que, no entanto, se satisfez quando o termo colocado
foi “comissários do povo”. Contudo, o funcionamento institucional continuaria
parecido com os velhos aparelhos: “um aparelho administrativo distinto dos
administrados – nesse nível, ficava-se de fato nos ministros, tomava-se a forma
já criada pelos reis da Europa Ocidental desde o fim da Idade Média” (1982:147).
Se retomarmos um pouco mais, nos anos de 1960, veremos que a literatura
após a explosão das lutas estudantis de Maio de 68 indicavam o surgimento
dos “novos”. A percepção era de que no campo da cultura se formariam as
principais contestações, e que os “novos”, diferente dos “velhos”, são de uma

7 Sobre um conjunto de pesquisas que enfatizariam o “novo” e os “novos sujeitos” encontram-se em Perruso
(2008) e Santos (2018).

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sociedade que se responsabiliza por si mesma, autônoma, menos centralizadora
e invocando sempre a participação democrática. Assim, Touraine, parafraseando
Marx, descreve que: “hoje como ontem os homens fazem sua história, mas agora
sabem que a fazem” (apud Scherer-Warren, 1983:56).
Os coletivos e movimentos “novos”, já na década de 1960, ou os “novís-
simos”, aparentemente um fenômeno percebido pela literatura, que assim os
consideram como inerentes ao tempo presente, na verdade carregam tradições,
culturas e experiências anteriores; algo que já observara E. P. Thompson (1987;
2001) ao abordar os motins da plebe no século XVIII e a luta dos trabalhadores
no século XIX, indicando que os sujeitos adquirem e compartilham suas expe-
riências com a cultura, costumes e tradições.
A fluidez, horizontalidade e autonomia dos coletivos identificados por Perez
(2019) ou mesmo a sua não institucionalização às organizações estruturadas,
podem ser identificadas em experiências dos anos de 1960 e 1970. Organiza-
ções identificadas como “coletivos” podem ser encontradas na década de 1970
nos Estados Unidos, como o Coletivo Combate River formado por um grupo de
militantes negras e lésbicas (Haider, 2019). Na Itália, coletivos conhecidos como
désirante, cuja tendência libertária, inspirada pela filosofia de Félix Guattari, são
identificados no final dos anos de 1970 (Schifres, 2008). A literatura levantada por
Perez e Silva Filho (2017) indica a existência de coletivos feministas na década
de 1960 no interior da “nova-esquerda”, assim como Marques e Marx (2019)
em que destacam autores que já abordavam em suas pesquisas os coletivos
feministas em décadas anteriores ao fenômeno da novidade8. O protagonismo,
autonomia e horizontalidade dessas organizações apresentaram-se em diferentes
sociedades e conjunturas políticas específicas no último século.
Quando os cientistas sociais observam os “novos” ou “novíssimos”
movimentos, indaga-se quais heranças históricas estão presentes nessas
organizações? Os elementos novos detectados caracterizam-se por rupturas
ou adaptações, inovações, incrementos geracionais às condições determinadas

8 Marques e Marx (2019) entendem que a novidade está na ressignificação de repertórios herdados do passado,
e a própria Gohn (2014) relembra que “Do anarquismo e do socialismo libertário, grupos ressuscitam e renovam
leituras sobre a solidariedade, a liberdade dos indivíduos, a autogestão, e a esquecida fraternidade, retomada
nas ações de enfrentamento à repressão policial” (2014:432).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


188
pelo contexto histórico (acesso às novas tecnologias, internet, redes sociais,
expansão da educação básica e superior)? E se ressignificam, seria suficiente
para pensarmos em “novíssimas” experiências? Em termos analíticos, quais
são os avanços?
Passado e presente estão incutidos em cada geração. O que dizer então
sobre os coletivos de militantes negras nos anos 70 nos Estados Unidos? Ou os
grupos autônomos presentes em Maio de 68 na França e os movimentos autô-
nomos na Itália e Alemanha nos anos de 1960 e 1970? Os levantes iniciados
por jovens universitários e greves operárias de maio e junho de 68 em França
caracterizavam-se pela defesa da autonomia, pela contestação da tecnocracia
burocrática, da via parlamentar, e o centralismo partidário; distinguiam-se pelo
espontaneísmo e pela presença marcante situacionista.
Movimentos como o 22 de Março, que surgiu em Nanterre (Corrêa;
Mhereb, 2018), demarcavam as lutas autônomas em 1968 e que tomaram as
ruas da capital francesa, sem a direção e organização dos partidos políticos de
esquerda, como o PCF (Partido Comunista Francês). Ademais, buscavam uma
autonomia frente à classe burguesa, às relações de dominação e à estrutura
burocrática de Estado. A noção de “autonomia” era entendida como valorização
do sujeito diante das instituições sociais, o controle burocrático e determinismos
teóricos (Castoriadis, 1985).
São notáveis também os movimentos autônomos na Itália, cuja partici-
pação de intelectuais e militantes que se engajaram com as experiências das
greves operárias dos anos de 1960 e 1970 é notória. Destaque para o Operaísmo,
uma corrente política que incorporou intelectuais, trabalhadores e ativistas
políticos, promoveu a crítica ao marxismo ortodoxo e o reformismo do PCI
(Partido Comunista Italiano) e do PSI (Partido Socialista Italiano) (Pizzolato,
2017) e influenciou os movimentos autônomos italianos nos anos 1960 e 1970.
Uma das características desse movimento foi a negação dos partidos e dos
sindicatos. Antonio Negri participou diretamente desses movimentos e buscou
em sua produção intelectual a subjetividade operária e o caminho à autonomia,
promovendo uma releitura do marxismo.
A releitura de um marxismo nos anos de 1960 e 1970 presente entre inte-
lectuais e militantes nos grupos autônomos não foi homogêneo, havia diferentes
tendências, como anarquismo, neomarxismo, trotskismo, luxemburguismo,

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conselhismo e situacionismo. O autonomismo italiano diversificava em suas
tendências, podendo ser “social-democrata para os anarquistas, demasiado
anarquista para os marxistas-leninistas e demasiado ambas as coisas para a
Nova Esquerda (...)” (Tari, 2013:7). Tal diversificação de tendências é encontrada
também entre os ativistas de movimentos sociais contemporâneos, como o MPL.
A diversidade de tendências no núcleo desses grupos foi uma de suas
características, mas com elementos comuns em todas elas, destacavam-se a
ausência de uma direção centralizada e uma significativa oposição ao controle
dos aparelhos partidários e de instituições burocráticas (Corrêa; Mhereb, 2018).
Também nesse sentido, de acordo Jean Tible (2018), os movimentos de Maio
de 68 expressaram as várias faces da autonomia dos diversos movimentos, os
quais defendiam a ação direta, o reconhecimento da diversidade e o direito a
fala sem intermediários e representantes; foi o momento da autogestão: “1968
marca o início do nosso mundo contemporâneo. Uma fenda no sistema de
domínio, que provocou uma reação profunda, tanto política quanto econômica
(...)” (Tible, 2018:14). Essas podem ser percebidas como heranças de repertórios
que Maio de 68 proporcionou às lutas populares, e que têm sido retomadas e
ressignificadas nas experiências organizacionais e de ação de coletivos con-
temporâneos; eis a novidade.
Em suma, as faces do tempo histórico indicam outras formas horizontais
e autônomas das lutas populares, experiências do tempo e espaço que se modi-
ficaram ao longo do tempo de acordo com as condições históricas específicas.
Experiências sociais e históricas, como nos ensina E. P. Thompson, são herdadas
e compartilhadas no decurso histórico. O “novo” ou “novíssimo”, como categoria
analítica ou noção que marca o entendimento das ações populares, nascente
em determinada conjuntura social, econômica e política, na verdade herda toda
a produção humana anterior, incluindo suas formas de organização e de lutas.

A VELHA AUTONOMIA COMO TEORIA E A NOVIDADE COMO


RESSIGNIFICAÇÃO

Sabe-se que existe toda uma produção acadêmica sobre os novos


movimentos e coletivos políticos, e não é a nossa pretensão fazer uma análise
detalhada de sua literatura, mas refletir sobre o uso de noções como “novíssimo”

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


190
diante das heranças de experiências marcadas pelo tempo e espaço. Seguindo
o que discutimos anteriormente, nosso objetivo, nesta seção, é compreender
que as experiências coletivas não desaparecem no tempo, elas estão incutidas,
sofrem mutações, circulam entre os sujeitos9 e suas significações simbólicas
são transmitidas entre as gerações. Assim, quando remetemos aos aconteci-
mentos de Maio de 1968 na França e as ocupações operárias na Itália em 1973,
é porque entendemos que os sujeitos em sua coletividade e em contextos histó-
ricos específicos se utilizam de ferramentas do seu tempo, comunicam-se e se
organizam com os instrumentos disponíveis, do mesmo modo, ressignificam as
práticas culturais frente às experiências herdadas e compartilhadas, heranças
geracionais que transitam entre as gerações e instituições.
Esse entendimento não é novo. Se os historiadores da intitulada His-
tória Social privilegiavam as ações coletivas, aspectos culturais, o cotidiano,
as experiências e ressignificações, os estudos sociológicos da ação coletiva
corroboram quando se trata das heranças do passado. Tarrow (2009) ao tratar
do conceito tillyano de repertório, indica que ele é ao mesmo tempo estrutural
e cultural, pois as formas e meios utilizados pelos agentes em suas lutas não
desaparecem repentinamente e nem outro nasceria pronto, mas se transforma,
ou seja, “muda com o tempo, mas só lentamente. As mudanças fundamentais
dependem de flutuações maiores nos interesses, oportunidades e organização”
(2009, p.51). O conceito de repertório ajudaria, dessa maneira, a entender o uso
de diferentes recursos em determinados contextos. Segundo Alonso (2012), o
conceito procura contemplar um leque de maneiras de fazer política em dife-
rentes períodos históricos.

9 A noção de ressignificação e circularidade cultural está também presente em Carlos Ginzburg em O Queijo e
os Vermes (2006), apresentadas em seu personagem Menocchio no século XVI, uma releitura do cristianismo a
partir de um imaginário de um ambiente católico com a expansão protestante, a cultura ressignifica diante sua
mobilidade e as diferentes realidades, possibilitando uma relação recíproca entre o popular e o erudito.

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O conceito ressaltava a temporalidade lenta das estruturas
culturais, mas dava espaço aos agentes, pois que a lógica volátil
das conjunturas políticas os obrigaria a escolhas contínuas,
conforme oportunidades e ameaças cambiantes – em contextos
democráticos, passeatas são mais seguras que guerrilhas; em
contextos repressivos, pode bem ser o contrário (2012:22).

A inovação de Tilly foi a conexão da pesquisa sociológica com a história,


sobretudo, entre a proposta da História Social e a noção de longa duração de
Fernand Braudel. Não desconsidera as mudanças no tempo, as peculiaridades
culturais e geográficas, assim como as ressignificações culturais herdadas do
passado. A ideia de longa duração teve como finalidade a percepção de um
processo histórico mais amplo e capaz de evidenciar as transformações histó-
ricas (Melo Jr., 2010) e considera que as heranças culturais e formas herdadas
do passado podem ser combinadas e difundidas com outras que estão surgindo
(Tarrow, 2009)10.
Desse modo, heranças do passado, tais como: formas de organização, de
lutas, práticas cotidianas, de comunicação e de ação, além de herdadas também
sofrem transformações ao longo do tempo. Se considerarmos os acontecimentos
dos anos de 1960, como as manifestações estudantis e operárias na França,
Itália e na Alemanha, o movimento Hippie e os Panteras Negras nos Estados
Unidos, a juventude armada na América do Sul, as experiências vividas em tem-
pos de Ditaduras Militares nos anos 60 e 70, as guerras de libertação na África
e a Revolução Cultural na China (1966-1969), a Guerra do Vietnã, eventos que
marcaram diacronicamente em curto espaço de tempo, podemos compreen-
der que, nesse período, intelectuais, trabalhadores, estudantes universitários
ressignificaram também os espaços sociais e experiências coletivas. E foi nesse
contexto que alguns intelectuais valorizaram a noção de autonomia como uma
proposta de emancipação humana e a coletividade como potencial criativo;

10 Numa referência à difusão entre velhas e novas formas, Tarrow (2009, p. 64-65) descreve que: “Muitas das
futuras mudanças no repertório do confronto apareceram pela primeira vez nesses grandes eventos, como a
tomada da Bastilha ou os Dias de Fevereiro em Paris. Mas seus fundamentos foram desenvolvidos nos inters-
tícios da prática cotidiana de confronto: como a petição de massa, que teve origem numa prosaica prática de
negócios na Inglaterra; a barricada que foi usada pela primeira vez para defender as vizinhanças de Paris dos
ladrões; e a insurreição urbana usada pela primeira vez para exigir trabalho em Grenoble antes de se tornar
instrumento de revolução na Bastilha”.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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dessa maneira, afirmavam que seriam os sujeitos, e não as instituições, que
promoveriam uma sociedade autônoma, e a partir deles que se desenvolveria
radicalmente a liberdade, a igualdade e a justiça social (Amorim, 2014).
A proposta de autonomia, como se apresenta em teses dos “novíssi-
mos” movimentos, aparecia nos anos 70 e 80 como teoria e projeto político em
oposição à heteronomia, à burocracia e ao mecanicismo teórico do marxismo
ortodoxo. Em tese, a intelligentsia daquele período procurou romper com o devir
histórico, o vanguardismo e a sujeição ao Estado sobre os sujeitos, cuja própria
ação autônoma dirige-se a si mesma, consciente de si e dos seus objetivos
(Castoriadis, 1985).
O “novo sujeito” substituiria a noção estrutural de classes, ele não é a
princípio o indivíduo, mas aquele que junto à coletividade e diante das instituições
determina suas vontades. As barricadas de Paris em 1968 demonstravam-se
espontâneas e autônomas, “marcadas pela recusa de qualquer organização nos
moldes tradicionais e profundamente críticas do burocratismo, da hierarquia
e da cisão que costuma ser gerada na relação entre dirigentes e dirigidos”
(Ridenti, 2000:144).
Diante do imaginário de época, o autonomismo passou a marcar diferen-
tes campos, seja entre os grupos denominados Conselhistas de esquerda, seja
entre os Situacionistas de Guy Debord11 ou autonomismo operaísta de Mario
Tronti e Antonio Negri, ou a autonomia de Castoriadis, campos que se diferem
de acordo com suas correntes teóricas. Entretanto, as diferentes correntes
destacaram a “autonomia política” a partir do espaço de ação, a resistência
diante das formas de subsunção dos sujeitos às estruturas produtivas, às formas
centralistas de subordinação de políticas partidárias e sindicais, e às condições
de trabalho e de vida.
Para Mario Tronti (2012), outro autor que também se volta para o período,
havia uma revolução cultural naquele momento, provocando a emergência de
figuras significativas, que colocou em pauta a autonomia e a cultura política
em primeiro plano, emergindo o “novo sujeito social” ante às antigas formas.

11 Guy Debord foi um dos principais nomes do movimento situacionista, destacado pela obra A Sociedade do
Espetáculo.

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Tronti trata o autonomismo nessa esfera, diferenciando a vivência das gerações
operárias que viveram o início dos anos de 1960 e que participaram dos eventos
de 1977, cuja auto-organização e a autonomia se viam presentes12. Esse autono-
mismo, o qual vislumbrou a noção do “novo sujeito”, pode ser entendido tanto
na busca de independência dos trabalhadores diante dos sindicatos e partidos,
quanto na extensão da fábrica na sociedade (Altamira, 2008).
Já em Castoriadis, o sujeito autônomo “é aquele que sabe ter boas
razões para concluir: isso é bem verdadeiro, e: isso é bem meu desejo” (1982,
p. 126). A autonomia do pensamento só se torna oposição à heteronomia e às
formas de alienação quando a partir da superação dos instintos e pulsões (Id)
pela consciência e vontade (Ego). Entender que nas relações cotidianas das
instituições, o sujeito é “dominado por um imaginário vivido como mais real que
o real (...)” (Idem:124). Assim, a proposta de Castoriadis para um imaginário
radical, de um projeto de autonomia cuja criatividade é um eixo sócio-histórico,
é uma sociedade que se autocria e que se desenvolve a partir de um fluxo de
significações sociais. Essa criatividade não é exclusiva ao indivíduo, mas ao
coletivo, ela intensifica as atividades psíquicas e que compõem o social. É nesse
imaginário radical que aparecem a autonomia do pensamento e do agir, oposição
à heteronomia, em que “o sujeito precisa aparecer como uma subjetividade capaz
de deliberar e exercer vontade em contextos democráticos – mas não qualquer
vontade, daí a autonomia ter um enfoque mais coletivo” (Prates, 2016:88)13.
A autonomia é para Castoriadis um projeto histórico-social, e o projeto de
uma sociedade autônoma passa por indivíduos reflexivos numa relação em que
“os outros estão sempre presentes como alteridade e como ipseidade do sujeito

12 Os operaístas como Tronti e Negri acreditavam que o operário no capitalismo moderno se estendeu para além
da fábrica, introduzindo, assim, a noção de operário social a qual incorporava as demais lutas urbanas.
13 Prates sintetizou a proposta de autonomia em Castoriadis em três pontos: “o ideal de autonomia subentende
ainda uma mudança radical do sujeito em pelo menos três outros sentidos: 1) como não existe sociedade sem
lei, a lei existe para ser obedecida; mas ela pode e deve ser também questionada, debatida, numa sociedade
autônoma, composta por sujeitos autônomos; 2) se isso implica numa maior participação individual, por outro
lado não elimina por completo a resistência e o peso de muitas significações imaginárias sociais – sedimenta-
das na moral, na tradição, nos consensos, nos costumes, etc. –, o que evidencia ainda mais a dispare correlação
de forças existentes na vida social; 3) a autonomia visa transformar ainda a relação do sujeito com este outro
desconhecido que está inconscientemente internalizado em cada um de nós – e é por isso que ela não pode
alimentar a realização de todos os desejos do sujeito, mas deve surgir a partir do conhecimento do sujeito sobre
ele mesmo e do controle dos impulsos e manifestações de seus próprios desejos” (Prates, 2016:89).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


194
(...)” (1982:130)14. A autonomia é “a união e a tensão da sociedade instituinte e
da sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo” (Idem:131).
Já no movimento situacionista, o qual se tornou umas das grandes
influências aos movimentos de Maio de 68, o sentido autônomo aparece como
crítica às formas de espetacularização das imagens, do fetiche da mercadoria
e do consumo. Organizado a partir da formação da Internacional Situacionista
(IS), grupos e coletivos de artistas e letristas, entre os quais, Guy Debord, pro-
puseram nos anos de 1950 as grandes cidades como objeto para a realização
da arte total, uma revolução que “pudesse unir a vida cotidiana (...) à prática
artística humana de maneira indissociável (Monte, 2015:12).
Procuravam, assim, refletir sobre a emancipação humana, a liberdade
criativa do sujeito, a disponibilização do tempo aprisionado em diferentes
formas do domínio capitalista. Para alguns membros da IS a tecnologia, apro-
priada completamente pelos homens, poderia possibilitar a dispersão do tempo
humano, uma emancipação do homem para a criatividade artística, ou seja,
“(...) não haverá mais trabalho no sentido tradicional e não haverá mais tempo
“pós-trabalho”, mas um tempo livre para liberar energias antieconômicas” (1959
apud Monte, 2015:21.)15. Para que a autonomia seja contemplada, os situacio-
nistas corroboravam com a ideia de uma sociedade organizada por conselhos,
noção compartilhada entre os comunistas de conselho e o grupo Socialismo
ou Barbárie de Claude Lefort e Cornelius Castoriadis.
A noção de autonomia, como tratamos até o momento, está carregada de
significados, tal como independência de classe, autonomia política, autogestão,
espontaneísmo e horizontalidade. Essa noção carregou no imaginário o reino da
liberdade, a qual Marx e Engels (2005:59) aludem ao dizer que “o livre desen-
volvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.
Em suma, o discurso da autonomia envolve o não-autônomo. Isso nos
ajuda a compreender as experiências contemporâneas, a autoidentificação
como autônomo em relação às experiências organizacionais discursivamente

14 Castoriadis (1982) compreende a noção de autonomia numa relação que se pressupõe também o “eu” e o
“outro”, ipseidade e alteridade.
15 Retirada de Giuseppe Pinot-Gallizio. Discurso Pintura Industrial e uma Arte Aplicável Unitária, Internationale
Situationniste N. 3 (dezembro de 1959).

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percebidas como não-autônomas ou que não permitem autonomia da ação
dos sujeitos. Essa busca pela autonomia frente às instituições marcaram as
experiências organizacionais e de lutas de diferentes movimentos sociais na
história. Se as velhas práticas permanecem no tempo e estão incutidas em lutas
contemporâneas, o “novo” ou “novíssimo” é somente uma novidade teórica,
mas não da prática social.

NOTAS CONCLUSIVAS

A proposta reflexiva deste artigo foi retomar como eixo as experiências


históricas e suas heranças permanentes no tempo. Com isso, buscamos inda-
gar a noção de “novo” ou “novíssimo” diante de práticas organizacionais que,
senão similares às gerações passadas, são ressignificações no tempo presente,
fazendo-se novidade. Mas toda nova noção que identifica um fenômeno social
pode, e talvez deva passar pelo crivo da crítica. O artigo publicado por Uclés,
em 1989, afirmava que as categorias “novos” e “tradicionais” proporciona-
ram mais obscuridade do que clareza para as análises sobre os movimentos
sociais. O “novíssimo” parece dar o mesmo sentido.
Para Perez e Souza (2017), o termo “novíssimos” foi adotado por Gohn
para distinguir as experiências coletivas contemporâneas, de início do século
XXI, dos demais movimentos sociais, sejam eles identitários, sejam aqueles
que lutam por melhores condições de vida. O termo nomearia a novidade do
milênio. As características como a horizontalidade de suas organizações, auto-
nomismo, suas pautas e o uso das novas tecnologias de informação e comu-
nicação se diferenciariam de outras organizações. No entanto, como vimos ao
longo do artigo, movimentos da década de 1960 já evidenciavam características
heterogêneas, horizontais e autônomas. A comunicação “alternativa” também
já era uma realidade. Os grupos autônomos, por exemplo, utilizavam-se de fer-
ramentas de comunicação do seu tempo, como jornais, panfletos, pichações,
entres outras formas. A novidade, hoje, é a velocidade da comunicação e a
pluralização dessas e de novas experiências promovidas e/ou potencializadas
pela internet e suas novas tecnologias.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


196
Assim, concordamos com Perez e Souza (2017) sobre o argumento
de que os movimentos são heterogêneos e coexistentes com heranças do
passado, por isso,

[...] não é possível afirmar que as práticas de hoje são substancialmente


diferentes das do passado. Pelo contrário, orientações distintas
coexistem por vezes dentro do mesmo movimento. Conforme esse
argumento os velhos, os novos ou os novíssimos movimentos
sociais sempre conviveram em um mesmo espaço temporal. O que
muda é a seleção feita pelo pesquisador e a forma de interpretá-
los (Perez; Souza, 2017:10).

Não podemos analisar as “novas experiências” fora de suas relações


contextualmente inscritas, isto é, sem considerar o contexto histórico, político,
cultural e social do seu tempo. Ao mesmo tempo, devemos analisar as perma-
nências históricas dessas organizações e talvez a pergunta inicial deva ser:
quais as motivações que têm levado os sujeitos a buscarem novas experiências
organizacionais, a resgatarem “velhos” valores e princípios de ação e organização
coletiva? Entender esses elementos pode ser um bom ponto de partida para
compreendermos os fenômenos emergentes. O passo seguinte seria a reflexão
teórico-analítica sobre esses elementos: será mesmo que são suficientes para
pensarmos um “corte” temporal, teórico e analítico?
Em suma, alguns dos “novíssimos” movimentos carregam velhas formas
de organização e de luta. Parece-nos que as Ciências Sociais, ao se deparar
com os eventos históricos do seu tempo, deixa ou desconsidera as experiências
humanas do passado e suas permanências no tempo presente. Relembrando E. P.
Thompson (1981) e sua crítica a Althusser, em que a História não poderia ser
uma manufatura da grande e pequena teoria, nem um laboratório experimental,
pois ela teria como objetivo reconstituir, explicar e compreender as ações de
homens e mulheres reais, cujas lutas são expressões de experiências políticas
históricas e não constituídas de imediato. Assim, também relembramos que até
mesmo a intelligentsia contemporânea é herdeira dos fantasmas do passado.

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Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


200
09

O PAPEL DA ADAPTAÇÃO CULTURAL EM


PROCESSOS DE MOBILIDADE
INTERNACIONAL DE PROFISSIONAIS

Felipe Gouvêa Pena


Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH)

10.37885/230713760
RESUMO

O presente ensaio teórico teve como objetivo analisar como o aspecto da


adaptação cultural pode representar o sucesso ou o fracasso da mobilidade
internacional de profissionais. Para tanto, delimitou-se um conjunto de trabalhos
relacionados ao tema para tentar avançar a análise da questão. Os diálogos com
a literatura, nacional e internacional, evidenciaram que as interações sociais ten-
dem a simbolizar o desempenho da designação profissional no exterior. Há uma
lacuna sobre a temática nas políticas e práticas das multinacionais, indicando
um possível descolamento entre os discursos a partir de posições etnocêntricas
dos atores. Espera-se que o trabalho sirva de estímulo para novas investigações
no campo da Gestão Internacional de Recursos Humanos.

Palavras-chave: Adaptação Cultural, Mobilidade Internacional, Profissionais.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


202
INTRODUÇÃO

Migrar é algo complexo, demanda sensibilidade e análises sistêmicas.


Quando se fala em mobilidade de pessoas, discute-se um fenômeno global mar-
cado por matizes econômicas, sociais, culturais, políticas e jurídicas. Há muitas
fronteiras envolvidas, não apenas do ponto de vista espacial. Logo, as disparidades
em termos de desenvolvimento e as diferentes capacidades de apropriação dos
espaços, seja por indivíduos ou organizações, demonstram como há muito o que
se observar quando se discute a guerra por talentos globais (HAJRO et al., 2021).
A luta por bons profissionais se intensifica na medida em que se obser-
vam o envelhecimento de uma parcela considerável da população mundial,
o crescimento dos níveis educacionais em países emergentes e a gestão das
fronteiras, movimentadas a partir de interesses e disputas regionais. Ademais,
é possível afirmar que existe um consenso entre os agentes institucionais, com
destaque para os criadores de políticas e práticas, de que empresas e países
competitivos são aqueles que desenvolvem e consolidam uma mentalidade global,
moldada por uma visão multicultural. Nesses termos, a mobilidade internacional
de profissionais de alto potencial se apresenta como uma ferramenta capaz de
promover rupturas e estimular desenvolvimentos. Como desdobramento natural,
tais avanços tendem a simbolizar uma nova etapa na configuração das equipes.
Aquelas chamadas de multiculturais agora estarão em maioria, ressignificando
a ideia de diversidade e abrindo espaço para a integração entre diversas cultu-
ras, algo tão evocado em dinâmicas de mobilidade internacional (TUNG, 2016).
A partir desse contexto, o multiculturalismo, que delimita e ao mesmo
tempo potencializa a sociedade contemporânea, permitiu que as empresas
internacionalizadas buscassem profissionais em diferentes partes do mundo.
Tais profissionais seriam estimulados pela possibilidade de uma carreira
internacional, capaz de adicioná-los a um fluxo de trocas e aprendizados fun-
damentais a seu amadurecimento. Para tanto, a organização aproveitar-se-ia
da diversidade cultural para fazer uso de diferentes visões e percepções do
negócio (PINTAR; MARTINS; BERNIK, 2017), a partir de um posicionamento
mais estratégico e competitivo.
Contudo, sabe-se que o aproveitamento dos diferentes potenciais culturais
dependerá da quebra de posições etnocêntricas, reconhecendo a importância

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da adaptação cultural dos membros aos diferentes aspectos comportamen-
tais e técnicos do país de destino. Portanto, com o intuito de compreender as
implicações e dificuldades desse processo, o presente ensaio teórico teve como
objetivo analisar como o aspecto da adaptação cultural pode representar o
sucesso ou o fracasso da mobilidade internacional de profissionais. Buscou-se
estabelecer um diálogo com a literatura especializada no assunto, considerando
publicações nacionais e internacionais.

DESENVOLVIMENTO

Em um cenário global dinâmico e integrado, é notório que a análise da


convivência intercultural tenha ganhado espaço de destaque no processo de
compreensão da vida social e organizacional, transformando-se em uma vanta-
gem competitiva para as corporações que souberam fazer uso de suas poten-
cialidades. Tal convivência permite uma maior aproximação e apropriação dos
mercados, favorecendo as empresas em diferentes frentes como a maximização
de processos produtivos e decisões mais estruturadas. Como essas interações
acontecem sob os olhares plurais de profissionais de diferentes nacionalidades,
as organizações souberam ler as macrotendências e produzir respostas ade-
quadas aos seus projetos de desenvolvimento e expansão ao redor do mundo.
Destarte, tornaram-se objeto de investigação os encontros culturais que passa-
ram a fazer parte do cotidiano empresarial (FREITAS, 2008). Todavia, antes de
adentrar aos diálogos sobre interculturalidade, faz-se necessário compreender
a noção de cultura que alicerça toda a problematização.
Hofstede (1991) pontua que a cultura de qualquer país é a combinação
de suas crenças, valores normativos e pressupostos, considerando os múltiplos
campos de influência e os processos formativos que retratam os diferentes
grupos sociais. Isso posto, fica evidente que todo processo decisório estará
perpassado pelas diferentes essências culturais que alicerçam as práticas e
as atitudes cotidianas dos profissionais espalhados por várias localidades ao
redor do mundo. Logo, torna-se basilar compreender as demandas contempo-
râneas que posicionam indivíduos, grupos e organizações em um cenário de
transações internacionais.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


204
Cabe notar que as instituições estão cada vez mais percebendo o quão
vantajosa pode ser a diversidade cultural no que diz respeito aos processos pro-
dutivos de trabalho. A harmonização do tópico tem sido visualizada como uma
possível desencadeadora da inovação, capaz de elevar os ganhos institucionais
e os processos de aprendizagem. Para as organizações que atuam em cenários
internacionais, parece ser relevante adicionar a diversidade cultural como uma
competência estratégica, capaz de construir novos arranjos e condutas com
foco no crescimento organizacional sustentável (BANISKI; CIESLAK, 2018).
Na era do conhecimento, as economias tendem a se comportar de modo
específico, buscando atrair e reter os melhores talentos com o intuito de se
provarem competitivas e inovadoras. No Brasil, por exemplo, promoveram-se,
ao longo dos anos, inúmeras transações de bens, serviços e capitais com o
intuito de se construir uma imagem de que o país seria um player interessante
no tabuleiro de trocas globais (BARAKAT et al., 2015). Assim sendo, observa-se
que, no âmbito internacional, as organizações estarão cada vez mais obrigadas
a engendrar configurações estratégicas para a área de Recursos Humanos a
partir de análises robustas sobre as diferenças culturais que representam cada
unidade e cada grupo de funcionários. Portanto, o desenvolvimento de políticas
e práticas cada vez mais estará perpassado por subjetividades locais, mesmo
diante de um clamoroso esforço institucional por homogeneizações. Será preciso
compreender as dinâmicas culturais que contemplam as relações estabelecidas
dentro e fora das empresas nos diferentes países, considerando o imperativo
intercultural que marcará as mobilidades (MOREIRA; OGASAVARA, 2018).
Nota-se que há um esforço coletivo crescente por parte das instituições
para tentar mobilizar a diversidade cultural a seu favor, sem que, com isso,
percam suas características centrais. As corporações passaram a dar maior
ênfase às questões interculturais na medida em que perceberam as vantagens
de produzir e reproduzir análises contextuais de suas unidades espalhadas pelo
mundo, o que corroborou as compreensões de que haveria contextos sociais
específicos entre os sujeitos organizacionais. Assim, as manifestações des-
sas identidades poderiam estar atreladas às questões religiosas, ideológicas,
históricas ou mesmo culturais, na essência do termo. Em vista disso, quando
as relações humanas passaram a dar o tom dos diálogos, percebeu-se um
maior esforço no desenvolvimento de sensibilidades, tolerâncias e respeito aos

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205
modos de vida dos profissionais em mobilidade e de suas famílias (FREITAS,
2008; FREITAS, 2009).
O olhar para as diferenças culturais permitiu que as organizações ganhas-
sem fôlego para lidar com as demandas contemporâneas, abrindo-se espaço
para as articulações teóricas sobre interculturalidade. O gerenciamento de tal
contexto tomou como base as diferenças para produzir potenciais formas de
organizar a coexistência entre os indivíduos, reconhecendo as preocupações
sobre choques culturais e estereótipos no cotidiano das operações no exte-
rior. A possível construção de estereótipos tende a ser associada à demarcação
de características específicas de um determinado grupo, como se elas o sim-
bolizassem. Ao mesmo tempo, os prováveis choques culturais são observados
como esperados dentro da dinâmica de mobilidade. Como forma de lidar com
essas e outras questões, a gestão intercultural passou a ser vista como um
caminho possível para diminuir os embates entre os profissionais de diferentes
nacionalidades a partir da exposição dos potenciais de cada uma das culturas
(CRAIDE; SILVA, 2012), sem menosprezar a relevância dos choques culturais
para além dos muros empresariais.
Já foi demarcado amplamente pela literatura que, em dinâmicas de mobi-
lidade internacional de profissionais, o tópico da adaptação cultural sempre
será mencionado como um fator decisivo para o sucesso da designação, seja
sob a ótica da empresa, do empregado ou dos membros de sua família que
o acompanham. Para tanto, será demandado um ajustamento cultural cons-
tante em função das variáveis contingenciais do novo país (PEDROSA et al.,
2016). Segundo Barakat et al. (2015), nesses contextos, os indivíduos deverão
desenvolver a inteligência cultural, caracterizada como a capacidade de com-
preender diferentes sistemas de valores e se adequar ao meio, sem que, com
isso, percam a sua própria essência. Os autores mencionam que, no âmbito das
mobilidades, os executivos tendem a ter maior sucesso quando conseguem
aplicar tal inteligência em suas novas atividades laborais, bem como em suas
novas interações grupais. No entanto, é preciso ponderar que essa análise pode
negligenciar o fato de que boa parte das políticas e práticas organizacionais,
com foco na adaptação cultural, tendem a desconsiderar ou amenizar os pos-
síveis choques culturais que os cônjuges e os filhos podem passar ao longo da
designação internacional.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


206
Correlacionar-se com uma cultura diferente da sua demanda ressignifi-
cações constantes, que vão desde questões mais técnicas, como a linguagem,
até eixos mais complexos, como crenças e modos de vida. O que se nota nesse
contexto é que os profissionais que foram designados a trabalho tendem a se
ajustar de uma forma mais natural, considerando o fato de que poderão ter
uma rotina mais definida e relações interpessoais mais facilitadas em função do
trabalho. Reconhecendo que as políticas de expatriação privilegiam homens em
detrimento de mulheres em função de premissas mais amplas de uma sociedade
fundada no patriarcado, nota-se que as esposas tendem a ter maiores dificuldades
para se ajustar ao novo ambiente, pois recebem estímulos diferentes daqueles
recebidos por seus maridos em função dos espaços ocupados no contexto
público (BEZERRA; VIEIRA, 2013; COTA et al., 2015). Os discursos produzidos
por mulheres, que acompanharam seus maridos em mobilidades internacio-
nais, evidenciam que faltam políticas e práticas organizacionais que consigam
sobrepujar os desafios impostos no que diz respeito à adaptação cultural. Já foi
destacado na literatura que as dificuldades enfrentadas pela unidade familiar
tendem a contribuir para um retorno prematuro ao país de origem, revelando a
falta de gestão e sensibilidade organizacional para entender o papel decisivo do
cônjuge e dos filhos na missão do executivo (Bezerra; Vieira, 2013; Lima; Braga,
2010). Corroborando, Caligiuri e Bonache (2015) afirmam que a dificuldade de
adaptação do cônjuge em relação à dimensão trabalho deve ser observada com
cuidado, considerando a centralidade que o trabalho possui na vida dos sujeitos
contemporâneos (Moura; Oliveira-Silva, 2019). Como muitos países possuem uma
limitação em termos de vistos e oportunidades laborais, muitas vezes a esposa
do executivo acaba tendo que dar uma pausa na carreira. A indisponibilidade de
trabalho, conjugada com as mudanças identitárias, tende a se configurar como
um impeditivo para o ajuste integral da parceira ao novo país. Ademais, ela terá
ainda, como complicadores, um conjunto de exigências parentais e sociais que
se relacionam à manutenção do status do executivo, como a gestão de eventos
sociais para os colegas de trabalho, as cobranças por apoio na carreira do marido
e as demandas domésticas (Caligiuri; Bonache, 2015). Atender a tais questões
pode ser visto como um requisito básico para a adaptação aos moldes culturais
do país anfitrião, demandando múltiplos esforços.

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O fato é que a adaptação cultural é um problema de ordem multidimen-
sional, estando correlacionado a ajustes laborais, espaciais e cotidianos no que
diz respeito à vida social. As organizações precisam compreender a urgência
do debate de modo efetivo, garantindo a recomposição de políticas e práticas
institucionais ao longo de todo o ciclo. O fortalecimento dos treinamentos
interculturais pode ser um caminho interessante para a gestão responsável
da experiência internacional (Pintar; Martins; Bernick, 2017). A mobilidade tor-
nar-se-á exitosa quando a adaptação cultural passar a ser reconhecida como
eixo basilar do ciclo.
Por fim, cabe salientar que todas essas discussões estarão amparadas
na ideia de ajustamento. Tal processo exige um engajamento contínuo de todos
os atores envolvidos com a mobilidade, pois há uma ligação direta entre esse
ajuste e os condicionantes estressores que assolam a vida do profissional e
de sua família — agrupamento de pessoas que compartilham histórias e pro-
jetam futuros em conjunto, considerando as múltiplas variações que podem
ser visualizadas em tal configuração. Destarte, quando as tensões diárias são
ignoradas, abre-se espaço para uma complexa e correlacional série de proble-
mas cotidianos. A dificuldade do cônjuge para trabalhar legalmente, as even-
tuais incompatibilidades das crianças nos colégios, a dificuldade com a língua
estrangeira, as questões de alimentação e o convívio entre pares são apenas
algumas das questões que podem ser percebidas. Logo, para uma compreensão
integral do processo de adaptação dos indivíduos mencionados, será preciso
um olhar para contratempos causados pelas instituições culturais do país, com
destaque para a própria empresa, as escolas, igrejas e comunidades. Fala-se,
então, de olhar para as dimensões sociopolíticas que delimitam a experiência
no exterior (McNULTY, 2015).
À vista disso, torna-se possível falar em ajustamento intercultural quando
se percebe que os indivíduos estão psicologicamente confortáveis com as con-
dições ambientais, refletindo posturas equilibradas diante das configurações
da vida cotidiana. Dessa forma, há um diálogo sobre estabilidade emocional
e a capacidade de adquirir competências transculturais relevantes durante a
permanência no país anfitrião e no retorno ao país de origem. Isso posto, as
organizações precisam fomentar políticas e práticas capazes de desenvolver
executivos ágeis do ponto de vista do ajustamento cultural, sem que, com isso,

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


208
negligenciem o processo de adaptação dos membros da família aos novos
valores culturais impostos pelo ambiente (Caligiuri; Bonache, 2015). É preciso
desmistificar a ideia de que políticas e práticas com foco no ajuste cultural são
desnecessárias e ao mesmo tempo onerosas (Fee; Michailova, 2019), pois essa
compreensão impede que as organizações avancem em termos de desenvolvi-
mento e melhorem as suas ações direcionadas à experiência do executivo em
mobilidade e de sua unidade familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas discussões apresentadas, percebe-se que as políticas e


práticas de adaptação cultural podem ser vistas como um caminho natural para
a manutenção do bem-estar e a gestão da boa experiência dos profissionais
em designação internacional, bem como de suas famílias. Quando o processo
de adaptação é negligenciado em alguma instância do ciclo, abre-se espaço
para grandes desequilíbrios e quadros de estresse que podem prejudicar e
até mesmo inviabilizar o sucesso da missão. As ações empreendidas devem
abarcar a análise das diferenças culturais entre o país de origem e o de des-
tino, sensibilizando todos os envolvidos para as dinâmicas de compreensão
e relação com o outro de modo não etnocêntrico. Por conseguinte, torna-se
primordial perceber a necessidade de um plano de ação completo por parte das
organizações, capaz de diminuir o chamado choque cultural. Mesmo sabendo
da relevância dessas ações para o cumprimento da estratégia corporativa, é
preciso reconhecer o descompasso entre o discurso e a prática de muitas ins-
tituições contemporâneas (Fucks; Lima, 2021). Espera-se que o trabalho sirva
de estímulo para novas investigações nesse campo de estudos.

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Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


210
10

O PIONEIRISMO DO FILME O AUTO DA


COMPADECIDA (2000) DE GUEL ARRAES:
A CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA ENTRE
A TELEVISÃO E CINEMA

Ana Lívia Lourenço Ferreira


Universidade Federal de Goiás (UFG)

10.37885/230914297
RESUMO

O objetivo deste trabalho é pensar como o filme O Auto da Compadecida (2000),


uma obra brasileira dirigida por Guel Arraes e produzido pela Rede Globo de
Televisão e Globo Filmes, se constitui enquanto um dos pioneiros do projeto de
conversão tecnológica no Brasil, haja vista que inicialmente se apresenta na forma
de uma minissérie exibida em 1999. O artigo desenvolve a análise da articulação
entre a televisão e o cinema no Brasil, buscando compreender o aparecimento
e atuação do Grupo Globo nesse processo. O Auto da Compadecida reflete as
mazelas do Nordeste e do Brasil, o que ainda poderia ser citado como a fórmula
de seu diferencial perante outros filmes da mesma época. Dessa forma, é por
meio do conteúdo e da forma que a obra adquire que se consegue elaborar e,
consequentemente, transmitir empatia com o telespectador.

Palavras-chave: Cinema Brasileiro, Convergência Tecnológica,


Auto da Compadecida.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


212
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Duas das maiores invenções contemporâneas são a televisão e o cinema,


veículos de comunicação que cada vez mais passaram a integrar parte da
rotina de diversas sociedades, como por exemplo a brasileira. O Brasil, a partir
do meio do século XX, buscou aprimorar cada vez mais suas técnicas de pro-
dução, conteúdos e divulgação dos meios audiovisuais, o que ocorre muitas
vezes em parcerias com o Estado. Exemplo disso é a criação da Rede Globo
de Televisão em pleno período ditatorial brasileiro, se valendo de apoio do
governo. Tal empresa, com o passar dos anos, acaba se fortalecendo como a
maior emissora televisiva do Brasil e da América Latina, divulgando uma gama
extensa de conteúdo e programação para todos os públicos.
O cinema também conta com apoio estatal, como a criação da Empresa
Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme), também em contexto da Ditadura Militar.
Entretanto, teve sua extinção realizada em 1990 pelo então presidente Fer-
nando Collor. Seu vice-presidente, a partir de 1992, acabou promovendo leis
que incentivassem o cinema, mas que só tiveram resultado efetivo a partir de
1995, com Fernando Henrique Cardoso na presidência, constituindo o período
cinematográfico brasileiro entendido como Cinema de Retomada.
Com a experiência de retomada nas produções de filmes no Brasil, passa
a ocorrer o interesse de empresas privadas sobre o cinema. Assim, em 1998, é
criada a Globo Filmes, que, em pouco tempo, passou a inovar nas produções
audiovisuais e se tornar pioneira no que ficaria conhecido como conversão
tecnológica. Em 1999, vai ao ar a minissérie O Auto da Compadecida, de direção
de Guel Arraes, e que, em 2000, acaba sendo transformada em um filme de
longa-metragem, levando assim a estética televisiva para as telas de diversos
cinemas do Brasil e do mundo. O filme global acaba sendo um sucesso de
público, trazendo a adaptação de um clássico da literatura do país escrito por
Ariano Suassuna, que, por meio do protagonista João Grilo, acaba conquistando
diversos públicos.
Nosso trabalho se constitui no aspecto de análise dos processos que
envolvem O Auto da Compadecida enquanto um dos precursores da conver-
são tecnológica no Brasil, entendendo as relações entre televisão e cinema, a

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presença do Grupo Globo na articulação desses veículos de comunicação, e
como o público recebe a obra fílmica.

CINEMA DE RETOMADA NO BRASIL E A INSERÇÃO DO GRUPO


GLOBO

Buscando ir de encontro ao nosso objeto de análise, é preciso compreender


a Rede Globo de Televisão, que foi inaugurada em 1965 pelo jornalista Roberto
Marinho, que já era detentor de uma emissora de rádio e jornal impresso com
o mesmo nome. Alencar (2004), em sua obra, traz exemplos para explicar o
sucesso meteórico atingido pela TV Globo após sua criação, como já possuir
a tecnologia do videoteipe, parcerias regionais em todo o Brasil, programação
visando atingir determinado público-alvo, parcerias publicitárias e boa gestão.
No ano de 1980, o Brasil passou a contar com uma grande produção
cinematográfica devido à criação de empresas vinculadas ao Estado, como a
Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme) e o Conselho Nacional de Cinema
(Concine). A Embrafilme foi criada em 1969, no período da ditadura militar, o
que consequentemente demonstrava que o Estado exercia forte influência na
produção cinematográfica do país, mesmo tendo a característica conservadora.
Marson (2006) aponta que tal empresa atendia aos interesses dos cineastas
que reivindicavam a atuação do Estado no incentivo ao cinema. Podemos citar,
por exemplo, a atuação de integrantes da esquerda em cargos de chefia da
Embrafilme, como o cineasta Roberto Farias, ligado ao grupo do Cinema Novo
e diretor da Embrafilme entre 1974 e 1979.
Borges (2007) afirma que, por intermédio dessas empresas, foi possível
que o cinema brasileiro tivesse uma base de produção, o que permitiu que, entre
os anos de 1981 e 1986, os cinemas brasileiros tivessem pelo menos 75 estreias
nacionais por ano. Vale a pena mencionar que, embora a Embrafilme fosse a
maior produtora nacional, havia também alguns produtores independentes, o
que fez com que, na década de 1970, ocorresse uma grande produção do que se
entenderia como pornochanchadas e, depois, em 1980, os filmes pornográficos.
Para nosso trabalho, daremos enfoque ao que se denomina Cinema de
Retomada, geralmente compreendido entre 1995 e 2002, período de presidên-
cia de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, para Marson (2006), é preciso

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


214
retroceder ao Governo de Fernando Collor e Itamar Franco para observarmos
as origens dessa fase.
Em 1990, Fernando Collor extinguiu a Embrafilme e a Concine. É importante
considerar que a comunidade cinematográfica já tecia críticas há algum tempo
aos modos como tais empresas estavam ditando o cinema nacional. Em 1991,
Collor, por meio da Lei nº 8.313, conhecida como Lei Rouanet, tentou minimizar
os problemas no setor audiovisual. A lei tinha o objetivo de financiar empresas
ou pessoas físicas em projetos culturais. Porém, o fim de tais empresas e a não
criação de uma nova empresa que fundamentasse o cinema no Brasil representou
uma crise para a produção cinematográfica nacional no início da década de 1990.
O vice Itamar Franco, substituindo o afastado Fernando Collor, aprovou,
em 1993, a Lei nº 8.685, Lei do Audiovisual. A lei consistia em renúncia fiscal e
passou a ser utilizada muitas vezes conjuntamente com a Lei Rouanet. Porém,
os efeitos dessas leis, segundo aponta Borges (2007), só passaram a ser per-
cebidos a partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso e a estabilização
da economia através do Plano Real. Assim se iniciou o que profissionais da
área denominariam de período de retomada, o que significava a “reconquista
do mercado interno e do reconhecimento internacional do cinema brasileiro a
partir de 1995” (BORGES, 2007, p. 11). Pensando em exemplos de obras que se
enquadrariam nesse período, podemos citar produções como Carlota Joaquina
(Carla Camurati, 1995), O Quatrilho (Fábio Barreto, 1996) e Central do Brasil
(Walter Salles, 1998), filmes esses que ganharam destaque e prêmios interna-
cionais, o que chamou a atenção da sociedade e do Estado.
Com o cinema, a partir de 1995, passando a se tornar uma mercadoria
rentável e de sucesso, isso acabou por despertar os interesses de empresas
privadas. À exemplo, a maior rede de comunicação televisiva do país, a Rede
Globo de Produções, que, em 1998, criou a Globo Filmes. Sobre o Grupo Globo,
a medida dos anos e de novas criações, a mesma viria a ser entendida como
conglomerado global. É preciso ter em mente que a Rede Globo entrou no
mercado de cinema somente após a aprovação de incentivos fiscais para esse
mercado e consequente estímulo do mesmo. Ou seja, tendo em mente o retorno
financeiro das mercadorias produzidas e podendo aproveitar seu sucesso de
conteúdo, atores e visibilidade no ramo televisivo e podendo incorporar isso às
telas de cinema. A partir disso, a Globo Filmes vai se desenvolvendo enquanto

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quase que única empresa detentora do tripé cinematográfico: produção, dis-
tribuição e exibição.
Champangnatte (2015) afirma que a Rede Globo de Televisão e a Globo
Filmes passam a exercer práticas hegemônicas no cenário comunicativo brasileiro,
atuando não apenas na cultura e/ou entretenimento, mas também na política,
economia e sociedade, ditando assim seus interesses ideológicos e econômicos.
No Período de Retomada, surgem diversos filmes com variadas temáti-
cas, porém dois gêneros se sobressaem: as comédias com estilo televisivo ou
reflexões acerca da identidade nacional. A partir disso, temos os sucessos de
público produzidos pela Globo Filmes: O Auto da Compadecida (Guel Arraes,
2000), com mais de 2 milhões de espectadores, e o drama Cidade de Deus (Fer-
nando Meirelles e Kátia Lund, 2002), que ultrapassou 3 milhões de espectadores.
Observamos, então, que, a partir do momento em que entra no mercado
cinematográfico, o Grupo Globo é responsável por fundir elementos da estética
televisiva ao cinema. Marson (2006) afirma a “incorporação de padrões estéticos,
técnicos e de linguagem da televisão e da publicidade no Cinema da Retomada,
graças à entrada de profissionais, emissoras e produtoras destes campos no
campo cinematográfico” (MARSON, 2006, p. 91).
Filmes como O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000) e Caramuru
– A invenção do Brasil (Jorge Furtado, 2001), na análise de Marson (2006),
compõem o que se entende por produções “híbridas”. Elas não incorporam a
estética televisiva para o cinema, mas, ao contrário, são elaboradas desde sua
concepção com todos os meandros visuais da TV. De modo que, “foram feitos
em meio digital (HDTV) e depois passados para película; estrearam primeiro na
televisão, no formato de micro-série, para depois serem remontadas e chegarem
ao circuito exibidor cinematográfico” (MARSON, 2006, p. 159).

A CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA A PARTIR DE O AUTO DA


COMPADECIDA

Ao pensarmos no Cinema de Retomada no Brasil, a criação da Globo Filmes


e sua intrínseca relação com a Rede Globo de Televisão nos trazem à mente o
que se tornaria um clássico do cinema nacional. Em janeiro de 1999, vai ao ar na
televisão a minissérie O Auto da Compadecida, de direção de Guel Arraes, sendo

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


216
que a captação foi feita em película e a direção já tinha em mente o flerte com
o cinema, o que ocorre no ano seguinte, em 2000, momento em que a duração
da minissérie é reduzida para a elaboração de um filme de longa-metragem.
Pensando sobre a estrutura narrativa adotada pelo Conglomerado Globo,
não podemos perder de vista que as obras estéticas se inserem em uma lógica de
mercado, ou seja, os produtos Globo são feitos tendo por referência uma “visão
de mercado”. Santos e Cardoso (2011) apontam que tal empresa se insere no
ramo dos filmes a partir de 1998, tendo por referência um cinema de retomada
no Brasil, de modo que o cinema, que antes influenciou na estética televisiva
na década de 1970, passa agora a buscar nas obras televisivas as referências
estéticas, técnicas e linguísticas. Sobre isso, Rossini (2014) diz que,

Afinal, se fazer um cineminha foi a forma de melhorar a qualidade


estética da TV brasileira e garantir de vez o público para os produtos
audiovisuais ficcionais televisivos, nos anos 70, talvez inverter a
moeda seja a forma atual de revisar a linguagem do cinema nacional
e, assim, reaproximá-lo daquele público que o Padrão Globo de
Qualidade pedia: a classe média brasileira, sempre conservadora
em sua moral e gosto estético. (ROSSINI, 2014, p. 32-33)

As aproximações e conversões entre meios audiovisuais recebem o nome


de convergência tecnológica. Por definição de convergência, Jenkins (2009) se
refere ao conjunto de conteúdos de diversos aparatos midiáticos, à cooperação
entre variados mercados da mídia e à ação migratória dos públicos dos meios
de comunicação. Para a autora, o termo convergência consegue expressar
as transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais. Jenkins
(2009) pensa que o debate a respeito da convergência remonta já à década de
1980, quando, em 1983, é lançada a obra Technologies of Freedom, de Ithiel de
Sola Pool, tido como o “profeta da convergência” dos meios de comunicação.
Nessa obra, o autor tinha a intenção de definir o conceito de convergência como
transformador das indústrias midiáticas.
Toda mercadoria produzida deve ser vendida, todo consumidor buscado!
Esse processo é entendido pela autora como uma transformação cultural, pois
incentiva que o público busque novos meios, é o receptor interagindo cons-
tantemente. Jenkins (2009) aponta que, no cenário norte-americano, em 2003,
houve uma conferência chamada New Orleans Media Experience, contando com

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a presença de grandes empresas midiáticas e também com o grande público
que teria acesso às informações. O resultado é que, ao fim do evento, ao invés
de respostas, o que mais se tinha eram dúvidas acerca da convergência e seus
efeitos e modos de se fazer. O ponto chave dessa dificuldade é que tudo se altera
constantemente e é isso que faz com que não se tenha respostas fechadas, mas
sim constantes movimentos e reflexões.
Pensando as primeiras articulações entre a televisão e o cinema reali-
zadas no Brasil, Rossini (2012) aponta que, antes dos anos 2000, pouco houve
interação, sendo que algumas tentativas foram realizadas por cineastas que
produziram documentários para a TV e, no final da década de 1970, quando
a Embrafilme buscou meios para que cineastas desenvolvessem minisséries
televisivas, projeto esse que não obteve grandes êxitos. Stam (2009) já pensava
como o cinema contemporâneo passa a ser entendido como um continuum da
televisão. A partir disso, podemos pensar como as obras da Rede Globo e Globo
Filmes acabam entrelaçando suas narrativas, fatores esses condicionados, por
exemplo, à uma ótica mercadológica.
Segundo Santos e Cardoso (2011), as obras midiáticas globais ao longo
dos anos 1970 passaram a desenvolver estratégias de produção e divulgação
dos seus produtos, criando assim o slogan “Padrão de Qualidade Globo”. É pre-
ciso ter em mente que todo o discurso de qualidade de produtos visa um único
e claro objetivo: conquistar o público com sua mercadoria e garantir retorno
financeiro. Como já dito, afim de atingir mais campos midiáticos, a partir de
1998, o Grupo Globo se aventura no cenário cinematográfico, iniciativa que se
amadurece no decorrer dos primeiros anos de 2000. Nesse processo, uma das
grandes opções dessas empresas é a convergência de conteúdo televisivo e
cinematográfico, como ocorre em O Auto da Compadecida.
O Auto da Compadecida é uma peça teatral em forma de auto e escrita
por Ariano Suassuna em 1955 1. Características dessa obra são seus diálogos
com o teatro circense, o medievalismo, aspectos religiosos e da cultura popular,

1 A obra foi adaptada para o meio áudio visual em: A Compadecida (1969), direção George Jonas (filme); Os
Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), direção Roberto Farias (filme); O Auto da Compadecida (1999),
direção Guel Arraes (microssérie de TV); O Auto da Compadecida (2000), direção Guel Arraes (filme).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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a figura de um anti-herói contada com uma linguagem simples e bem-humo-
rada. Com o diretor Guel Arraes se apropriando da obra literária, em 1999, vai
ao ar a minissérie inspirada em O Auto da Compadecida e em outros textos de
cordel de Suassuna: O Enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro
e O castigo da soberba. O texto televisivo foi roteirizado por Guel Arraes, Adriana
Falcão e João Falcão.
O Auto da Compadecida contou com 40% de cenas externas feitas em
Cabaceiras, na Paraíba, e 60% de interiores realizadas na Central Globo de
Produção (Projac), estúdios sediados no Rio de Janeiro. O resultado foi uma
minissérie de 2 horas e 37 minutos divididos em 4 episódios, exibidos de 5 a 8
de janeiro de 1999, no horário das 22 às 23 horas. 2 Segundo Orofino (2006), o
custo da obra na época de realização foi de R$ 1,4 milhão. A produção conta com
a atuação de grandes estrelas globais, tendo no elenco: Matheus Nachtergaele
(João Grilo), Selton Mello (Chico), Denise Fraga (Dora), Diogo Vilela (Eurico),
Rogério Cardoso (Padre João), Lima Duarte (Bispo), Marco Nanini (Cangaceiro
Severino), Paulo Goulart (Major Antônio Moraes), Fernanda Montenegro (Com-
padecida), Luiz Melo (Diabo), Maurício Gonçalves (Jesus), Virgínia Cavendish
(Rosinha), Bruno Garcia (Vicente), Aramis Trindade (Cabo Setenta) e Enrique
Diaz (Comparsa de Severino).
Buscando pensar o caso da convergência tecnológica, Rossini (2012)
analisa que a relação entre televisão e cinema não é obrigatória, mas ocorre
com produtos de maior apelo de público ou com temáticas diferenciadas. Com
relação a estratégias de como fazer esse processo de conversão, Rossini (2012)

2 A divisão dos capítulos foi a seguinte: 1) testamento da cachorra, que narra o episódio da mulher do padeiro
(Dora – interpretada por Denise Fraga) que deseja enterrar sua cachorra em latim e João Grilo (Matheus Nach-
tergaele), para convencer o padre (Rogério Cardoso) a realizar a vontade de sua patroa, inventa que o animal
fez um testamento deixando uma quantia para a igreja; 2) O gato que descome dinheiro, episódio em que João
Grilo, com a ajuda de Chicó, na tentativa de ganhar algum dinheiro, vende para sua patroa, Dora, um gato “muito
lucrativo”, que defeca dinheiro; 3) A peleja de Chicó contra os dois ferrabrás, capítulo em que se desenrola a
paixão de Chicó (Selton Mello) por Rosinha (Virgínia Cavendish), filha do Major Antônio Moraes (Paulo Goulart).
João Grilo trama o casamento de Chicó com Rosinha, fazendo com que o amigo covarde derrote os dois
valentes da cidade, Vicentão (Bruno Garcia) e Cabo Setenta (Aramis Trindade), que também são apaixonados
pela moça; 4) O dia em que João Grilo se encontrou com o Diabo, o último episódio retrata o juízo final de João
Grilo e dos outros personagens mortos durante um ataque dos cangaceiros à cidade. Todos esses capítulos,
com exceção do terceiro, são baseados no enredo original da peça. O romance entre Rosinha e Chicó foi
inspirado em outros dois textos de Suassuna: O Santo e a Porca e Torturas de um Coração. (MASCARENHAS,
2006, p. 53)

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pontua que o Grupo Globo, desde fins do século XX, busca diferentes modos
de aproximar cinema e televisão. Esses modos podem ser pensados em três
categorias: “produção de produtos dois em um; coprodução com empresas
cinematográficas independentes; e produção cinematográfica a partir da grade
televisiva” (ROSSINI, 2012, p. 1327).
A obra dirigida por Guel Arraes em 1999 foi toda filmada em película de
35mm, fator que já demarca o início de seu hibridismo e convergência. Essa era
uma estratégia que já ocorria em países como os Estados Unidos, e que já tinha
um precursor na Rede Globo de Televisão: Daniel Filho, que captava produtos
televisivos em formato de película. A respeito de Daniel Filho, Rossini (2014)
afirma que o intitulado pela Carta Capital (2006), “domador de público”, soube
realizar a união entre cinema e televisão, conferindo assim o devido Padrão
Globo de Qualidade em termos técnico-estéticos, e visando atingir toda uma
classe média como consumidora. A partir disso, Daniel Filho atua na produção
de O Auto da Compadecida em parceria com Guel Arraes, entendendo que
ambos sujeitos tinham interesses comuns.
A partir da exibição em janeiro, ocorre um processo de remontagem
visando a elaboração de um longa-metragem, o qual é lançado nacionalmente
em 10 de setembro de 2000. Com relação à narrativa do filme remontado por
Arraes, Mascarenhas (2006) salienta que,

[...] o processo de remontagem não desencadeou uma representação


da estrutura técnica (representação dentro de outra) distinta da
microssérie. Observamos, portanto, que os cortes feitos tiveram
como propósito apenas compactar a narrativa de modo a adequá-la
aos padrões cinematográficos. Desta maneira, percebemos que o
filme, assim como a microssérie, estabelece, mesmo que numa nova
perspectiva, o diálogo entre gêneros e linguagens característico
dos textos de Arraes. (MASCARENHAS, 2006, p. 138)

O segundo filme que passou pelo mesmo processo de convergência


global da televisão para o cinema foi Caramuru (2001), mas, em quesito de
números, não obteve o mesmo retorno financeiro. Mas afinal, o que haveria
de diferente em O Auto da Compadecida que o tornaria um sucesso em dife-
rentes aspectos? Em entrevista concedida, o diretor Guel Arraes afirma que o
pioneirismo e sucesso do filme se devem ao fato de que ele “é baseado num

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


220
clássico da literatura brasileira, porque ele tem um grande elenco. Então ele é
realmente um filme de oportunidade! É um filme que pode concorrer de igual
para igual com outros filmes.” (OROFINO, 2006, p. 160). Aqui devemos pensar
em aspectos do Cinema de Retomada, como o desenvolvimento de narrativas
que pensassem o aspecto popular. Pensando no aspecto de diferencial entre as
obras, Rossini (2012) aponta os motivos de que é preciso pensar previamente
a convergência desde a roteirização e considerando o fato de a obra já ter sido
exibida em TV aberta.
Refletindo acerca dos aspectos da cultura popular e da identidade do
sujeito construídos em torno de O Auto da Compadecida, o primeiro a se pensar
é a escolha da base do texto de construção do roteiro global, a peça teatral de
Ariano Suassuna, que vai pesar as questões sociais do sujeito nordestino. Sobre
isso, Santos e Fontes (2014) afirmam que,

O jeito simples do sertanejo João Grilo pode ser associado ao


próprio brasileiro desprovido das máscaras que camuflam a
realidade, os sonhos, os fatos e faz do ser humano um hipócrita.
João Grilo é exatamente contrário a hipocrisia social, mas utiliza-
se da mentira, quando necessário em situações especificas. Ele
se redime, ou grita, luta conforme sua necessidade. A fé, o jeito
franco, espontâneo, astuto de João Grilo, assim como a imaginação
fértil de Chicó, os fazem superar a dor da fome, da pobreza, do
abandono, enfim, de todo o seu sofrimento. E essa situação não
foi escolhida ou provocada por eles, simplesmente é originada
de sua própria história e da história da humanidade, que não se
desfaz ou apaga. Mas se refaz, se reconstrói, conservando as
raízes. (SANTOS e FONTES, 2014, p. 335-336)

Aqui surge a questão do sujeito castigado pelas pobrezas do Nordeste


se confundir com o indivíduo nacional brasileiro, desenvolvendo a cultura do
jeitinho brasileiro.
O Auto da Compadecida, assim como outras obras, reflete sobre as maze-
las do Brasil. O que ainda poderia ser citado como a fórmula de seu diferencial
perante outros filmes? Além dos pontos de convergência já apontados, como a
elaboração do roteiro, que se baseia em um texto literário que já funde aspectos
de auto e teatro circense, e que posteriormente ainda se transmuta de um produto
de estética televisiva para o cinema, também podemos pensar no aspecto da

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novidade. Algo que desperta a curiosidade do público em assistir como o popular
teria sua representação a partir da mistura de tantos aspectos. É preciso levar
em consideração que tudo isso é estimulado por meio da estrutura do Grupo
Globo, que, por meio de matérias de bastidores no decorrer da produção, entre-
vistas com atores e diretores veiculadas na programação televisiva e constantes
propagandas, visa estimular o consumo por parte do público.
Rossini (2012) aponta que, a partir dos projetos iniciais empreendidos
pelo Núcleo Guel Arraes, foi possível observar que era mais difícil a conversão
televisão-cinema do que ao contrário. Com isso, os empreendimentos poste-
riores se realizaram do cinema-televisão, pois levariam para a televisão o que já
havia tido boa recepção no cinema. A respeito do Núcleo Guel Arraes, Duarte
(2013) afirma que ele alcança patamares de grife de qualidade da Globo, o que
faz com que seus métodos e estilo fossem disseminados em outros núcleos
globais televisivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordar a cultura popular brasileira em obras midiáticas não era algo novo,
mas em O Auto da Compadecida temos algo inovador. São múltiplos aspectos
que levam esse filme a se consagrar no cenário fílmico do Brasil. A adaptação
de Guel Arraes de um dos grandes clássicos da literatura do país, escrito por
Ariano Suassuna, e sua sensibilidade de incorporar outros textos de cordel,
soube ser empática e atingir o público. Este foi levado a se identificar com as
mazelas nordestinas a que os personagens estavam expostos, ultrapassando
a fronteira do regional e atingindo uma perspectiva de identidade nacional.
Junta-se a isso uma pitada de humor e sarcasmo, que deram à narrativa um
tom mais leve, apesar de todo o drama recorrente com João Grilo e os demais.
Com um roteiro e conteúdo bem amarrados, e atores de altíssima qualidade,
o diretor e sua equipe ainda tinham o diferencial de estarem trabalhando na
maior empresa de comunicação midiática do país e da América Latina, o Grupo
Globo. A partir de uma união entre modos de trabalho e interesses entre Rede
Globo de Televisão e Globo Filmes, nasceu a obra fílmica gravada no interior
nordestino em película, o que refletia o interesse de conversão tecnológica de
tal produto. A minissérie, exibida em 1999, foi um sucesso em horário nobre da

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


222
televisão brasileira, com altos índices de audiência. Assim, com um bom retorno
de público, Guel Arraes teve todas as possibilidades de, em 2000, realizar a
transferência da obra para as grandes telas dos cinemas.
Não podemos perder de vista que qualquer produto feito por uma emissora
privada é uma mercadoria, com o objetivo de lucro. O Auto da Compadecida
consegue explorar suas possibilidades de rentabilidade de diversas maneiras,
consagrando a união que já vinha tendo experiências desde a década de 1970, a
parceria entre a estética televisiva e cinematográfica. Apesar do aspecto finan-
ceiro ser de muita importância, não podemos reduzir esse filme a esse aspecto.
Ele demonstra inúmeros potenciais que o diferenciam de obras posteriores que
tentaram a mesma estratégia de convergência.
O pioneirismo do diálogo entre a televisão e o cinema, realizado por O Auto
da Compadecida, dita novas possibilidades no Grupo Globo. E demonstra, com
seu sucesso de crítica e recepção, que é possível uma temática tida como comum
ser abordada de uma forma diferenciada, por meio de uma narrativa de alta
qualidade e da junção de estratégias e estética da TV e do cinema.

REFERÊNCIAS
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Senac-Rio, 2004.

ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. Minissérie da TV Globo. Brasil, 1999. 157 min.

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BORGES, Danielle dos Santos. A retomada do cinema brasileiro: uma análise da indústria
cinematográfica nacional de 1995 a 2005. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação), Universidade
Autônoma de Barcelona, Barcelona, 2007.

CHAMPANGNATTE, Dostoiewski Mariatt de Oliveira. Tv Globo e Globo Filmes: práticas econômicas e


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DUARTE, Elizabeth Bastos. Como caracterizar qualidade em relação à produção da Rede Globo de
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JENKINS, Henry. Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de comunicação.
Tradução Susana Alexandria. – 2a ed. – São Paulo: Aleph, 2009.

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223
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MASCARENHAS, Renata de Oliveira. O Auto da Compadecida em transmutação: a relação entre os


gêneros circo e auto traduzida para o sistema audiovisual. Dissertação (Mestrado Acadêmico em
Linguística Aplicada), Universidade Estadual do Ceará, Ceará, 2006.

OROFINO, Maria Isabel. Mediações na produção de TV: um estudo sobre O Auto da Compadecida.
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ROSSINI, Miriam de Souza. Para um estudo das narrativas entre meios: escrevendo para cinema e
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ROSSINI, Miriam de Souza. As marcas televisivas na atual produção cinematográfica brasileira. Revista
Geminis, v.1, ano 5, n. 1, p. 19-33, Jan./Jun., 2014.

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STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


224
11

PRIMO LEVI, O CONTAR/OUVIR NAS


OBRAS É ISTO UM HOMEM? (1947), A
TRÉGUA (1960) E OS AFOGADOS E OS
SOBREVIVENTES (1986)

Átila Fernandes dos Santos


Universidade Federal de Goiás (UFG)

10.37885/230914343
RESUMO

O artigo aborda a perspectiva entre a história e a psicanálise diante da literatura


do trauma, em especial a partir dos livros de Primo Levi. As obras escolhidas
são: É isto um homem? (1947-1958), A trégua (1960) e Os afogados e os sobre-
viventes (1986), que correspondem ao trabalho de testemunho de Primo Levi.
Nosso artigo se detém em refletir sobre como Levi estabelece estratégias que
articulam relações simbólicas, para se comunicar e possibilitar uma legibilidade
de sua narrativa. As imagens simbólicas escolhidas para a análise são as formas
de narrar através do sonho, do deserto e da casa. Compreendemos que essas
figuras permitem uma reflexão sobre o passado testemunhado pelo sobrevivente,
por meio de problemas como a dificuldade de comunicação a respeito de um
sofrimento experienciado, que ressurge através de imagens simbólicas. Desse
modo o artigo objetiva para além da neurose e o trauma, pensar as formas e as
relações simbólicas organizadas e enunciadas pela testemunha.

Palavras-chave: Testemunho, Trauma, Narrativa.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


226
INTRODUÇÃO

Para pensar a experiência dos campos de concentração iremos utilizar


três obras de Primo Levi, que produziu uma vasta literatura abordando diver-
sos gêneros, tais como a não-ficção, o romance, a ficção científica, poesia e
contos. Ao sobreviver ao campo de concentração de Auschwitz, Levi conse-
guiu voltar para sua cidade natal, Turim, e escrever alguns livros de memórias.
Entre eles, iremos nos concentrar em três obras específicas: É isto um homem?
(1947), A Trégua (1963) e Os afogados e os sobreviventes (1986). Essas obras
abordam temas diferentes, É isto um homem? pode ser compreendida como um
relato da experiência dos campos de concentração. A trégua pode ser lida como
uma odisseia, uma viagem que atravessa a paisagem invernal de Auschwitz
até chegar na região montanhosa piemontesa de Turim. Em Os afogados e os
sobreviventes os temas pensados nos livros anteriores são retomados como
fio condutor de sua narrativa. Adotando uma perspectiva mais distanciada do
acontecimento do extermínio nazista. Diante de um tempo totalmente diferente,
(haja vista que se passaram quase 40 anos desde sua primeira obra), Levi nar-
rou o que foram os campos nazistas para uma geração que só conheceu esse
evento por meio de livros e, principalmente, através de filmes a fim de apontar
que essa catástrofe não foi superada na contemporaneidade.
Almejando compreender os desafios da contemporaneidade com as
narrativas de sobreviventes dos campos de concentração, o historiador Didi-
-Huberman realizou uma análise das imagens registradas na abertura dos
campos de concentração nazistas. O autor focou-se em um registro fílmico, do
então soldado Samuel Fuller (futuro diretor Hollywoodiano), em um pequeno
campo de concentração de Falkernau. Didi-Huberman, ao escolher esse registro,
salientou o problema analítico de uma imagem que irrompe em um determi-
nado momento crítico para dar legibilidade a uma imagem do tempo passado
esquecido. Portanto o tempo presente surge como elemento de ruptura e de
construção de novos sentidos para o passado.
O historiador reinvocou essa película para dar luz aos aspectos subal-
ternizados da história da Shoah. Segundo o autor, os estudos dos campos de
concentração e dessa experiência trágica da Segunda Guerra Mundial cada vez
mais se afastam da reflexão sobre o acontecimento de “Auschwitz”. Assim, o

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uso discursivo do inimaginável não apenas recorda a limitação da imaginação
incapaz de compreender o acontecimento limite, mas interdita a possibilidade
de refletir os desafios que tal evento colocou para a sociedade contemporânea.
Didi-Huberman tem razão ao apontar um “virar de costas” teórico ao pensar
essas narrativas e as imagens dos campos como impossíveis. Dessa maneira, o
fato que se chama de “Auschwitz”, se desdobra como uma memória saturada,
impedindo o debate e, por outro lado, revela um problema da impossibilidade
de abordar o absurdo, o inexplicável, o inenarrável, que certamente configuram
a densidade das narrativas e das imagens dos campos de concentração.
A escrita narrativa de Levi pode oferecer caminhos de análise para
uma legibilidade que problematize o inenarrável na história dos campos de
concentração. Nesse artigo, iremos oferecer sugestões para a observação das
estratégias discursivas que permitem que o leitor de Levi construa legibilidade
sob as ruínas da história do trauma da Shoah.

O estranhamento em Primo Levi: entre as montanhas e o deserto

É isto um homem? é a obra mais traduzida e mais estudada dentre os


livros de Primo Levi. Além de ser a primeira obra desse gênero publicada em
1947, se trata de um exame da condição humana partindo do ponto referencial
da catástrofe da Shoah: ‘‘Esse livro não foi escrito com o objetivo de formular
novas acusações; poderá, antes, fornecer documentos para um estudo tranquilo
de alguns aspectos da alma humana’’ (LEVI, 2011, p.9). A narração não procura
apontar culpados, nem mesmo lamentar a tragédia, mas aponta alguns aspectos
da alma humana com referência à experiência concentracionária.
A escrita de Levi pode ser entendida em termos mais gerais como um alerta
perene aos perigos que o nazismo perpetrou contra a humanidade. Em seus
termos uma ‘‘história dos campos de destruição devem servir para todos com-
preender o sinistro sinal de perigo’’ (LEVI, 2011, p.9). Desse modo, logo nas
primeiras páginas do prefacio, Levi aponta a urgência e a importância desse
tema para o seu leitor. Levi faz uma relação clara entre o perigo que esses
sinais podem ter à alma humana. O autor não procura meios para refletir sobre
a sua própria experiência subjetiva e traumática, mas seu scopo (objetivo, fim)
é apresentar os sinais de identificação do ‘‘sinistro’’ para o seu leitor.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


228
Primo Levi nasceu no ano de 1919, na região de Piemonte na província
de Turim que fica entre os Alpes e o mar mediterrâneo à oeste de Milão. Região
reconhecida pelas ricas áreas verdejantes, não chamando tanta atenção para sua
arquitetura, os vinhedos decoram as regiões montanhosas de Piemonte. Na juven-
tude, antes de decidir ser químico, Levi alimentava um entusiasmo pelo mon-
tanhismo amador, pensava em ser um montanhista profissional.
As paisagens reconhecidas por Levi têm um impacto na projeção de sím-
bolos da semelhança e da diferença, entre as montanhas e as planícies. E isso
é um ponto interessante para abordar A trégua (1963), as comparações do
narrador na obra servem para compartilhar uma experiência com os leitores
que podem se identificar com essas relações. A partir da imaginação sua nar-
rativa permite estabelecer uma conexão com o leitor (BERADT, 2017). A trégua
descreve a viagem de Auschwitz para Turim. O narrador nos apresenta uma
odisseia de percalços em cada capítulo, sendo elas: a fome, o frio, a dor, a solidão
e o desejo de voltar para casa em Turim. E descreve as peculiaridades radicais
sentidas pelo personagem (Levi) ao se confrontar com culturas, geografias e
línguas diferentes.
A viagem desvelou diversas surpresas que não seguiam um plano linear,
seguindo um caminho espontâneo. Saiu da Polônia para o oeste do continente
soviético e, em seguida, foi para o norte da Bielorrússia. Só depois retraçou seu
itinerário para Turim. Os contrastes e os estranhamentos são oportunidades
para o compartilhamento de experiências e histórias pelo narrador. Na tentativa
de conectar o autor Levi àqueles que o leem. As suas referências podem ser
contrapostas entre as montanhas piemontesas e as planícies russas deser-
tas. As imagens narrativas são elaboradas de maneira que seu leitor pode
acompanhar suas adversidades:

Passamos em Slutsk uns dez dias. Eram dias vazios, sem


encontros, sem acontecimentos para ancorar a memória. Certa
feita, experimentamos sair do retângulo das casernas e caminhar
pela planície, recolhendo ervas comestíveis: mas, passada meia
hora de caminhada, parecia que estávamos no mar, no centro do
horizonte, sem árvore, colina, ou casa para escolher como meta.
Para nós, italianos, habituados às montanhas, às colinas e à planície
cheia de presenças humanas, o espaço russo imenso, heroico, dava
vertigem e sobrecarregava o coração de lembranças dolorosas.
Tentamos, depois, cozinhar as ervas que recolhêramos, mas os
resultados foram escassos. (LEVI, 2010, p. 126-127)

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Os símbolos construídos por Levi relacionam diversos elementos ao
seu estilo de escrita testemunhal. Consideremos, a viagem diante do trajeto
de Auschwitz à Turim, sendo uma conexão entre o desejo de voltar para casa
que se torna uma expressão de desprazer e sofrimento; ‘‘que sobrecarregava o
coração’’ de lembranças dolorosas. A dor carrega um duplo fator, o desprazer
da lembrança das ‘‘montanhas’’ italianas que vem à tona devido a realidade
apresentar planícies desertas e extensas, sendo exatamente opostas ao desejo
apresentado pelo narrador. E o segundo fator é a denegação e estranhamento
que Slutsk causa no narrador, ‘‘eram dias vazios [...] nenhum acontecimento para
ancorar a memória’’, através da escrita, o narrador nega experienciar algo. Isso se
deve ao desconforto que atinge Levi, pela radical diferença da estepe do leste da
Europa que se contrasta com as memórias do mediterrâneo (WEINRICH, 2001).
Ao considerar essa dupla negação, vem à tona vários elementos que
refletem a condição de viajante surpreendido pelas paisagens, que busca nas
analogias alcançar o leitor com seu estranhamento. O narrador nos apresenta
uma imagem; ‘‘parecia que estávamos no mar’’, essa narrativa permite o
acesso imaginativo para compreender as experiências que o personagem sen-
tia. O narrador subverte a imensidão desértica a elementos conhecidos, como
a extensão e imensidão do mar mediterrâneo (WEINRICH, 2001). E outro ponto
destacável, foi o elemento ambivalente que reflete essa condição conflitiva do
autor; ‘‘Para nós, italianos, habituados às montanhas, às colinas e à planície
cheia de presenças humanas, o espaço russo imenso, heroico, dava vertigem
e sobrecarregava o coração de lembranças dolorosas.’’ (LEVI, 2010, p. 126-127).
Essa vertigem se contrapõe à noção de pertencimento que o narrador abarca
em ‘‘Para nós, italianos’’. O pronome ‘‘nós’’(noi) ao ser utilizado pelo narrador
para compartilhar em sua língua materna, aos italianos, que conhecem as
montanhas – não somente, Levi, que na juventude era apaixonado pelo mon-
tanhismo – e o mar. Essas imagens associativas foram mais uma das maneiras
que o autor utilizou estrategicamente para se comunicar, ser compreendido e
compreender o evento traumático.
Em A trégua entre o final de janeiro e até a primeira metade de outubro
de 1945, somos apresentados a uma dimensão conflitiva da viagem, que segue
um trajeto não linear ao discutir a condição de pertencimento e não-pertenci-
mento. A trégua pode ser entendido como uma continuação de seu primeiro livro,

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


230
pois começa sua narrativa onde termina É isto um homem?. É diante de É isto um
homem?, que conhecemos Primo Levi como persona non grata, judeu e rebelde,
que foi sequestrado e mandado para o campo de Fóssoli perto de Módena e
depois enviado para Auschwitz. Assim, estabelecemos um fio condutor que
conectiu essas narrativas entre o sequestro, o envio para Auschwitz e a viagem
de volta para casa.
O narrador apresenta a ‘‘dolorosa’’ condição de estrangeiro em A trégua
diante dessas experiências – a dimensão dessa interpretação não é depen-
dente de uma obra para outra obra, mas é ampliada. E dessa forma podemos
ter uma leitura de A trégua entre os conflitos, onde o narrador apresenta como
sobreviveu a tentativa de ser demolido em suas camadas de existência. É dessa
forma que o narrador expressa em É isto um homem?: ‘‘Pela primeira vez, então,
nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta
ofensa, a aniquilação de um homem.’’ (LEVI, 2013, p.32).
O Levi personificado em A trégua foi aquele que não estava na Itália que
derrubou o fascismo e nem em sua casa com seus familiares, foi o sujeito que
estava em uma terra de cultura, língua e geografia desconhecidas, temas centrais
nesse livro. É nesse jogo que pela ausência revela a dupla negação, no título do
primeiro capítulo, Degelo, apresenta no leste da Europa um sujeito que começa a
ser exposto a um mundo desconhecido do norte bielo-russo. No último capítulo
intitulado Despertar, um sujeito que desperta e busca subverter sua situação
numa realização cultural que não se remete apenas ao acordar, mas que permite
contar e buscar tornar legível por imagens narrativas o testemunho dos campos.

A operação de renovar o ponto crítico dos sonhos

Ao pensar as associações e as imagens narradas de Primo Levi, não se


trata de abarcar os excessos incomensuráveis do sublime da Shoah, mas de
voltar para casa e narrar para os seus próximos, ser ouvido, poder transmitir, é
um valor ético que estabelece a forma da escrita e a tentativa do narrador de
utilizar maneiras de serem compreensíveis. Primo Levi nos ‘‘obriga a meditar’’.
Nessa medida, a partir da perspectiva de Didi-Huberman, que lê a dialética
benjaminiana, precisamos enxergar ‘‘o outrora’’ encontrando ‘‘o agora’’, o ponto
crítico desse enlace estabelece uma legibilidade diante das singularidades e as

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marcas dos escritos de Levi. É nesse encontro que na constelação da escrita
de Levi identificamos a imagem dialética do sonho da volta para a casa, que
aparece nos seus três livros. Em É isto um homem?:

Aqui estão minha irmã, algum amigo que não consigo identificar,
e muitas outras pessoas. Todos estão me escutando, e eu estou
contando precisamente: O apito em três notas, a cama dura, do
meu vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho
receio de acordá-lo porque é mais forte do que eu. Conto também
amplamente da nossa fome, e do controle de piolhos, e do Kapo
que me deu um soco no nariz e depois me mandou para lavar-me
porque sangrava. É com prazer intenso, físico, inexprimível, estar
em minha casa, entre as pessoas amigas, e ter tanta coisa para
contar: mas não me dou conta que os meus ouvintes não estão
me ouvindo (acompanhando, seguindo). Na verdade, todos eles
estão indiferentes: falam confusamente entre si, como se eu não
estivesse ali. A minha irmã me olha, se levanta e sai sem dizer uma
palavra. (LEVI, 2011, p.53)

Contar e ouvir são elementos centrais no sonho que o narrador nos


apresenta (CALDAS, 2016). Devemos destacar algumas coisas, o sonho é o
momento em que o inconsciente ultrapassa as barreiras repressoras e vem à
tona. Entretanto são lembranças reprimidas no inconsciente, que são marcadas
por energias de desprazer e traumas, o que o sujeito consegue compreender do
sonho é apenas uma dimensão fragmentária, distorcida, contudo, valiosa, que
explora pulsões, desejos, vontades, medos, horrores que impactam o sujeito
em suas experiências.
Ao representar esse mundo onírico, nos deparamos com um imaginário
que permite compreender as relações simbólicas e culturais. Levi ao ser seguido,
acompanhado, ouvido, estabelece uma teia narrativa para contar sua história
na forma da escrita marcada pela relação de um contar/ouvir que se repete
diversas vezes de maneiras distintas. Seu relato foi marcado por uma figura ativa,
ou seja, um personagem que contando (raccontando) – o gerúndio ‘‘ando’’de
raccontando, implica ao verbo uma ação em curso, um movimento – tenta inces-
santemente compartilhar uma história. E essa é a forma da escrita dos campos.
No sonho da casa, os familiares e os amigos são os primeiros ouvintes, o
sonho ganha tons de pesadelo quando o narrador não é ouvido: ‘‘Na verdade,
todos eles estão indiferentes: falam confusamente entre si, como se eu não

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


232
estivesse ali. A minha irmã me olha, se levanta e sai sem dizer uma palavra.
(LEVI, 2011, p.53)’’. A descrença figurada nos familiares se aproxima de uma
imagem bíblica, de José contando aos seus irmãos o seu sonho, ‘‘Teve José um
sonho e o relatou a seus irmãos; por isso, o odiaram ainda mais.’’ (GÊNISIS,
37:5). A semelhança entre o sonho de Levi com a passagem bíblica toca no ima-
ginário judaico como uma referência narrativa possível, que permite identificação
de uma cultura, de um povo. Tais elementos podem ter sido inconscientes, mas
tanto os sonhos na cultura judaica como os sonhos na literatura testemunhal têm
força imprescindível para a construção de narrativas dialéticas de legibilidade
e de conhecimento compreensível.
Em A trégua, de 1963, temos uma narração semelhante:

É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único


na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no
trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido
e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas,
mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação
definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o
sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma
diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário,
as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais
precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um
nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e
sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e
nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves,
o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor,
a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e
no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz,
bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve
e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma
palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, “Wstavach”.
(LEVI, 1997, p. 212-213).

Um sonho semelhante ao de É isto um homem? é apresentado duas vezes


em , a primeira vez como epígrafe, um poema que abre o livro e a segunda
A trégua

vez é apresentado em prosa no último parágrafo do livro. O sonho 10 leitura de


prova abre e fecha a narrativa de A trégua. Esse sonho dentro de outro sonho,
é uma imagem de confusão e de perdição enunciada pelo narrador, é fragmen-
tada e estranha colocando Levi em uma área cinzenta, em meio ao conflito de

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pulsões e vontades. No subtítulo anterior que discutimos A trégua, falamos do
não reconhecimento, e desse modo, o não-familiar, o estranhamento também
faz presente. Segundo Seligmann-Silva esse sonho dentro do sonho é uma
experiência de morte e sua hiper-realidade faz reelaborar uma volta para os
campos, que é inacreditável e inimaginável (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 93-95).
Esses sonhos revelam zonas contrastantes, o sonho interno; ‘‘a família, a
natureza em flor, a casa’’ e do outro lado o sonho externo; ‘‘nada fora verdadeiro
fora do Lager’’. E o narrador aqui tem importância decisiva para interpretar dia-
leticamente esse sonho, opondo a diferença radical entre a ‘‘casa’’ e o ‘‘Lager’’.
Portanto, é um recurso de imaginação do narrador que o leitor pode reconhecer
na escrita de Levi.
O conflito entre externo/interno desvela uma relação de pertencimento
e exílio, fazendo referência à Odisseia e ao Êxodo. Levi ao ser expulso da visão
da ‘‘mesa’’, ‘‘da família’’, ‘‘dos amigos’’ é recolocado novamente em Ausch-
witz. O ‘‘centro de um nada turvo’’ é um campo que demole aquilo que o nar-
rador dá tanto valor, ser identificado como sujeito, como pertencente ao grupo
dos seres humanos.
A figura da ‘‘casa’’ está em todos os sonhos, porque seu símbolo per-
passa a identidade, o reconhecimento e a imagem judaica da volta à terra
prometida. O estrangeiro sem casa é a figura mais usada em A trégua. A longa
viagem de volta a Turim que demora quase um ano se espelha na passagem
do deserto de Moisés pelo povo judeu – como o deserto que é figurado nas
dunas e planícies vazias e frias do território soviético. Assim como Moisés não
entrou na terra prometida somente a viu de longe, o sonho põe dúvidas sobre
a realidade e o retorno autentico para casa. Ao sonhar que está de volta à sua
casa, o sonho lança o sujeito novamente no campo.
Essa figura pode ser entendida como a representação do fato de os judeus
não terem um lar. Após a destruição de Jerusalém, os judeus viajaram por toda
Europa, tendo uma relação ambígua entre assimilações, perseguições e expul-
sões. Isso se refletiu na formação dos pogromas do século XIX, que infestaram
o leste europeu, com a perseguição e sequestros dos judeus.
Diferente de seu pai Cesare, Primo Levi, afirmou em Os afogados e os
sobreviventes que não se sentia um judeu, não professava a fé judaica, mas
se identificava como italiano. Somente após a perseguição, o movimento de

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


234
resistência e os campos de concentração passou a se reconhecer na condição
de um pária na sociedade ítalo-fascista, isto é, um judeu. E esse sentimento
confuso entre o familiar e não-familiar era refletido em suas obras pela busca
da identificação. Em Os afogados e os sobreviventes, diz:

Curiosamente, esse mesmo pensamento (se mesmo que


contássemos, não seremos acreditados) aflora sob forma de
sonho noturno, do desespero dos prisioneiros. Quase todos os
sobreviventes pela voz ou nas suas memórias escritas, recordam
de um sonho que recorrente mesmo nas noites de cativeiro, variado
nos particulares mas único na substância: de ter retornado a
casa, de contar com paixão e alívio e seus sofrimentos passados,
dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não ser acreditado, pelo
contrário, nem sequer ser escutado. Na forma mais típica (e mais
cruel), o interlocutor se virava e partia em silêncio. Este é o tema
em que retornaremos, mas desde agora é importante salientar
como ambas as partes, as vítimas e os opressores, terem vivo
na consciência a enormidade e, então, da não credibilidade do
que acontecia nos Lager, e, podemos acrescentar aqui, não só o
Lager, mas os guetos, na retaguarda do fronte oriental, nos postos
de polícia, nos asilos para deficientes mentais. (LEVI, 2017, p.3)

O narrador nos resume o seu sonho, porém, conta mais coisas. Levi era
um estudioso dos testemunhos, conhecia e pesquisava a respeito dos sobrevi-
ventes e dedicava sua atenção aos sonhos. Em Os afogados e os sobreviventes, a
preocupação de Levi não era entender o sonho, mas sim transmitir, compartilhar
e meditar sobre a condição humana. Nesse fragmento, temos uma tentativa de
compreender “o virar as costas”. Após 40 anos a publicação de seu primeiro
livro, o desafio do narrador é demonstrar como o distanciamento temporal e
espacial de Auschwitz atingia as pessoas. Essa busca por narrar, contar, “por
meio de suas vozes ou memórias escritas”, confronta o distanciamento das
gerações do presente dessa experiência do passado.
O absurdo não se tratava de Primo Levi buscar narrar aos seus leitores
sua experiência, mas analisar o espaço do testemunho diante daqueles que não
querem ouvir. Por que ouvir é considerado arrasador. Essa imagem construída
pelo narrador retratava o comportamento das vítimas e dos algozes que sabiam
que esse passado seria e foi tratado como insuportável e incomensurável por
aqueles que não experienciaram os campos. Ao ouvirem sobre Auschwitz,

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iriam virar as costas. O assombro dessa imagem também atingiu Levi. Os seus
sonhos carregavam essa ambivalência do questionamento da existência das
atrocidades cometidas nos campos.
Em comparação com as outras obras, Levi não estava mais falando numa
perspectiva de reconstituir o sonho para o leitor, mas fez uso de recursos de
distinção para projetar um lugar dessa narrativa. Ele descreveu os sobreviven-
tes que narram: “Quase todos os sobreviventes, por meio de suas vozes ou
memórias escritas, recordam de um sonho [...] variado nos particulares, mas
único na substância” (LEVI, 2017, p. 10). Essa frase guarda semelhança com a
de A trégua: “É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único
na substância” (LEVI, 2010, p. 212). Contudo, a diferença é a não imersão ao
sonho. Enquanto o parágrafo de É isto um homem? e A trégua são sobretudo
acerca dos detalhes do sonho, em Os afogados e os sobreviventes temos um
uso narrativo distanciado, o sonho está em segundo plano.
A imersão narrada por Levi desse modo foi apenas o sonho. Em uma
outra passagem, logo no primeiro parágrafo do livro, foi descrito o extermínio
nazista no regime concentracionário:

Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores,


mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas junto
com vocês. [...] as pessoas dirão que os fatos narrados são tão
monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros
da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo,
e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager (LEVI,
2016, p.7).

As pessoas afirmariam que os fatos narrados eram tão monstruosos que


não dariam créditos. Portanto, éramos apresentados novamente a uma dupla
negação. A primeira, onde o autor narrava com precisão a extrema crueldade
nazista do extermínio, para acabar com as ‘‘peças’’ e qualquer prova dos cam-
pos. A segunda, mesmo que sobrevivessem, ninguém acreditaria nessa mons-
truosidade. Assim, o sonho ganhava tons diferentes daqueles que já haviam sido
discutidos nas obras anteriores. Esse esquecimento duplo, entre extermínio e
descrença, ampliava o horizonte do debate. Assim, abria portas para o narrador
exprimir, colocar para fora, subtrair ou mesmo extinguir na escrita aquilo que
não havia sido superado nos Lager.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


236
Levi enfatizou o esquecimento, a falta de crédito, que atingiu o autor e
os outros sobreviventes, criando uma atmosfera narrativa que ambientava o
afastamento temporal da Shoah e a dificuldade de transmitir essas memórias
às novas gerações. A tentativa de ser ouvido acompanhava toda sua trajetória
literária de Primo Levi e nesse livro ganhou maturidade ao dedicar capítulos
específicos para discutir essa necessidade, como em Comunicar (Comunicare)
e Estereótipos (Estereotipi) e Cartas de alemães (Lettere Di Tedeschi). Sua
necessidade de compreender e compartilhar essa experiência entre gerações
era acompanhada do dilema da distância espacial e temporal entre as gera-
ções: ‘‘[...] faz parte de uma dificuldade nossa ou incapacidade para perceber as
experiências são distantes das nossas no tempo, no espaço ou na qualidade’’
(LEVI, 2016, p.128).

O impedimento de representar a Shoah e a possibilidade da legibilidade


pela psicanálise de Freud

Didi-Huberman, em sintonia fina com o tema dos campos de concentra-


ção, captou com sensibilidade na atmosfera contemporânea um afastamento da
experiência dos campos. No ensaio Cascas, um ensaio singular e autobiográfico
em certa medida, analisou imagens registradas por ele mesmo no campo de
Auschwitz, como as cascas das bétulas de Birkenau. Nesse ensaio, Didi-Hu-
berman buscou dar uma legibilidade para algumas imagens que registravam a
memória de um lugar da cultura que tinha ocupado o lugar da barbárie. Ao falar
dos galpões do campo de concentração, Didi-Huberman constatou que eles
tinham sido transformados:

Sensação dolorosa, ver os galpões do campo – os galpões 13 a


21 – transformados em ‘‘pavilhões nacionais’’, como na Bienal de
Veneza, realizada justamente no momento em que atravesso o
logradouro. Aqui, mais que em outros pontos, as paredes mentem:
uma vez dentro do galpão, não vejo mais nenhum galpão, tendo sido
‘‘remanejado’’ como espaço de exposição [...] o pavilhão francês,
com seu ‘‘roteiro’’ assinado por Annette Wierviorka, sua ‘‘cenografia’’
e seu ‘‘grafismo’’, seus rostos de sombras desenhados na parede,
sua instalação imitando uma obra de Christian Boltanski e um
cartaz do filme Shoah, de Claude Lanzmann. [...] Todos os centros
culturais – bibliotecas, salas de cinema, museus –, desnecessário

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dizer, podem contribuir no mundo inteiro para construir uma
memória de Auschwitz. Mas o que dizer quando Auschwitz deve
ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um
lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz? (DIDI-HUBERMAN,
2017, p.24-25)

Estabelecendo um paralelo, Didi-Huberman, diante da análise do teste-


munho do sobrevivente Robert Antelme, narrou sobre os soldados americanos
descobrindo os campos, e ao ver os horrores que foram perpetrados, resumiu
como algo impossível, inexorável, inimaginável:

E Antelme concluí sua narrativa com a facilidade que oferecia – já


– a palavra inimaginável àqueles que acabavam de abrir provação,
isto é, que ainda não conseguiam, por falta de tempo, encontrar um
legibilidade para a experiência daqueles que, no entanto, estavam
sob seus olhos, aqueles que em vão já tentavam contar-lhes a
experiência [...] (DIDI-HUBERMAN, 2018, p.37)

Para Antelme, o inimaginável era o ato de se tranquilizar ao negar a possi-


bilidade de imaginar os horrores do campo, salvando-se desses pesadelos. E por
esse caminho, a construção da memória de Auschwitz, para Didi-Huberman, se
tornou um afastamento da temporalidade e da experiência concentracionária.
Paralelo relevante em relação à Primo Levi, que, em Os afogados e os sobrevi-
ventes, traçou a distância arrasadora posta às novas gerações de sujeitos alheios
aos campos e aos sobreviventes: ‘‘[...] faz parte de uma dificuldade nossa ou
incapacidade para perceber as experiências são distantes das nossas no tempo,
no espaço ou na qualidade’’ (LEVI, 2016, p.128)
A falta de orientação do sujeito era descrita pela dificuldade de compreen-
der a língua falada nos Lager: “[...] falam uma língua que não parece ser deste
mundo; alemão, em todo caso, não é; um pouco de alemão eu já entendo” (LEVI,
2011, p.20). Nessa passagem, existia um duplo movimento: ao tentar demonstrar
essa ausência de comunicação, Levi buscava preencher espaços e transmitir
uma imagem imaginativa para seu leitor. No caso, a expressão “fora desse
mundo” era uma expressão que permitia o leitor pensar um distanciamento
das experiências do mundo.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


238
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo abordou a perspectiva entre a história e a psicanálise diante


da literatura do trauma através dos livros de Primo Levi. A análise das obras
escolhidas, “É isto um homem?”, “A trégua” e “Os afogados e os sobreviventes”,
revelou que Levi estabelece estratégias que articulam relações simbólicas para
se comunicar e possibilitar uma legibilidade de sua narrativa.
As imagens simbólicas escolhidas para a análise, contar e ouvir, o deserto
e os sonhos, revelam a busca de Levi por um sentido para a experiência trau-
mática. O ato de contar e ouvir é uma forma de reconstrução da memória e do
trauma, enquanto o deserto representa o espaço de isolamento e de perda da
identidade. Os sonhos, por sua vez, são uma forma de acesso ao inconsciente
e ao mundo dos mortos.
Ao analisar essas imagens simbólicas, o artigo contribui para uma leitura
crítica da literatura do trauma. A psicanálise é um importante instrumento para
compreender as formas e as relações simbólicas organizadas e enunciadas pela
testemunha. No entanto, é importante ressaltar que a literatura do trauma não
é apenas uma expressão de neurose, mas também uma forma de resistência
e de testemunho.
Seguindo os passos de Didi-Huberman, neste trabalho procuramos uma
ruptura, um ponto radical no texto de Levi para entender uma legibilidade. Ou seja,
uma leitura imanente da literatura do trauma é possível e necessária para valori-
zar questões que Freud já havia colocado. Ao apontarmos esse “ponto radical”,
estamos dizendo que não pensamos em recuperar a integralidade do sonho,
nem em mistificá-lo. A condição fragmentária do sonho possibilita pensá-lo
como uma chave que, ao ser girada, conecta relações simbólicas que permitem
estabelecer um fio narrativo, para além do absurdo e do impossível, para além
do que é visível e imaginável. E desse modo concordamos com Didi-Huber-
man ao considerar que o tema se tornou irrepresentável diante de uma norma
imperativa que se recusa a pensar, figurar e imaginar. No entanto, neste curto
artigo, não respondemos completamente as questões ligadas à memória e ao
esquecimento. Somente identificamos algumas estratégias de escritas habilita-
das pelo narrador para pensar o contar/ouvir. Buscamos pensar o sonho para
além de um credo psicanalítico. Assim, retomamos Didi-Huberman ao ressaltar

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como Freud analisava o objeto da imagem e da obra de arte. Nosso objetivo foi
pensar a literatura em suas especificidades: “para deixá-los entregues a sua
potência própria, procurando compreender, ainda que parcialmente, suas forças
inconscientes” (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 66).

REFERÊNCIAS
BASEVI, Anna. Trajetórias e paisagens de exílio na narrativa de Primo Levi. Caligrama, Belo Horizonte,
v. 23, n. 1, p. 21-38, 2018.

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Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri – São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. O Espelho deformante: um estudo sobre É isto um homem? De
Primo Levi. In: CHARBEL, Felipe; Gusmão, Henrique; MELLO, Luiza. As Formas do Romance. Rio de
Janeiro: Ponteio, 2016, p.177-198.

CHAVES, Ernani. Prefácio o paradigma estético de Freud. In: FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os
artistas: Obras incompletas de Freud. Tradução de Ernani Chaves. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: O olho da história II. Tradução de Márcia
Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

DUNKER, Christian. O sonho como ficção e o despertar do pesadelo. In: BERADT, Charlotte. Sonhos
no Terceiro Reich. São Paulo: Três Estrelas, 2017, p.8-27.

EDSON Luiz André de Sousa. Posfácio faróis e enigmas: arte e psicanálise à luz de Sigmund Freud.
In: FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os artistas: Obras incompletas de Freud. Tradução de Ernani
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FELDMAN, Ilana. Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação,


de Shoah a O filho de Saul. ARS (São Paulo) [online]. 2016, vol.14, n.28, pp.134-153.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras completas - História de uma neurose infantil
(“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 14

FREUD, Sigmund. O Moisés de Michelangelo (1914). In: FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os artistas:
Obras incompletas de Freud. Tradução de Ernani Chaves. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015.

LEVI, P. A trégua. Tradução de Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LEVI, Primo. É isto um homem?. tradução Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

LEVI, Primo. I sommersi e i salvati. Torino: Giulio Einaudi editore, 2017.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3º ed. São Paulo/
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


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LEVI, Primo. Se questo è um uomo?. Torino: Giulio Einaudi editore, 2011.

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e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p.93-95.

SOUSA, Edson Luiz André. Posfácio faróis e enigmas: arte e psicanálise à luz de Sigmund Freud.
In: FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os artistas: Obras incompletas de Freud. Tradução de Ernani
Chaves. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015.

WEINRICH, Heinrich. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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12

PSICOEDUCAÇÃO E ORIENTAÇÃO DE
PAIS EM GRUPO EM UM DISPOSITIVO DE
SAÚDE PÚBLICA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA

Maria Vanessa Freitas Holanda


Universidade Potiguar (UnP)

Valéria Regina de Freitas Holanda


Universidade Potiguar (UnP)

10.37885/230914319
RESUMO

o presente artigo tem por objetivo descrever a experiência de trabalho da psico-


logia em grupos de Psicoeducação e orientação de pais dentro do contexto de
um dispositivo de saúde pública. A experiência com TCCG – Terapia Cognitivo
Comportamental em Grupos envolveu pais de crianças com transtorno do neu-
rodesenvolvimento – Transtorno do Espectro Autista (TEA) e TDAH – Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade, que estivessem sendo acompanhadas
pelo dispositivo. O grupo ocorreu ao longo de cinco meses com encontros com
duração entre uma e uma hora e meia. Com os encontros foi possível identificar
que aqueles pais que frequentaram assiduamente aos encontros desenvolve-
ram uma relação de aliança sólida e comunicação sincera com a psicóloga que
conduzia o grupo, bem como relatavam com maior abertura as dificuldades e
angustias sobre o transtorno dos filhos, além disso foi possível identificar que
os pais mais instruídos também conseguiam ajudar os filhos com mais eficácia
na aquisição de habilidades importantes para o seu desenvolvimento.

Palavras-chave: Terapia Cognitivo-Comportamental em Grupos;,


Orientação e Psicoeducação de Pais, Atenção Básica, Práticas Parentais,
Desenvolvimento Infantil.

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INTRODUÇÃO

Os grupos com foco terapêuticos não apresentam início claro e bem


delimitado na Psicologia, ao contrário, não se sabe como começou. Contudo,
alguns autores são considerados pioneiros na prática dos grupos com finalidades
terapêuticas. A primeira intervenção grupal da qual se tem notícia foi proposta
pelo Médico Pratt, pois o mesmo acreditava que o contexto do grupo poderia
auxiliar indivíduos doentes a melhorarem, especialmente pelo suporte de ajuda
mútua entre os participantes (NEUFELD; RANGÉ, 2017).
Além desse, outro autor que é ainda nos dias atuais considerado um
importante percursor de grupos é Moreno. Esse desenvolveu o seu trabalho
fora dos estabelecimentos de saúde, realizando-o em praças e outros lugares
públicos, reunindo pessoas que encenavam papéis não ensaiados, prática essa
que ele denominou de teatro da espontaneidade. Tais autores, percursos dos
grupos com finalidades terapêuticas, concordavam em um aspecto importante:
o elemento social do grupo é o grande diferencial para produzir nos sujeitos a
melhora em seus aspectos emocionais (NEUFELD; RANGÉ, 2017).
Desde o seu início até os dias atuais, diversas modalidades de grupo foram
desenvolvidas baseadas nas mais diversas abordagens teóricas. A modalidade
escolhida e que serviu de base para a construção do trabalho a ser descrito foi
o grupo de Psicoeducação e Orientação embasado teoricamente na TCCG –
Teoria Cognitivo-Comportamental em Grupo.
A Teoria Cognitiva-Comportamental (TCC) é uma abordagem teórica
criada por Aaron Back em 1960 - inicialmente chamada somente de Terapia
Cognitiva (BECK, 2013). Alford e Beck (1997) afirmam que a forma como pro-
cessamos informações interferem em nossos comportamentos, podendo eles
serem negativos ou positivos para o sujeito, sendo essa a premissa básica
da TCC. Essa abordagem pode ser adaptada a diversos pacientes de rendas,
escolaridades, culturas e idades diferentes, podendo ser amplamente utilizada
no contexto individual e grupal (BECK, 2013).
Além disso, a mesma apresenta mais de 350 estudos científicos rela-
cionados a desfechos de transtornos mentais que indicam a sua eficácia.
Não diferentemente, está a TCC aplicada à terapia de grupo (BIELING;
MCCABE; ANTONY, 2008).

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


244
No entanto, a Teoria Cognitivo-Comportamental em Grupos, para garantir
seu bom funcionamento, deverá seguir alguns aspectos técnicos, tais quais:
homogeneidade, o grupo deverá ser homogêneo tanto no que se pretende
trabalhar (um transtorno específico, por exemplo), bem como a faixa etária dos
participantes, que deverá ser próxima; além disso, em sua composição deverá
privilegiar o grupo fechado, definindo os critérios de inclusão e exclusão, as
regras de funcionamentos e etc; outro aspecto importante é a garantia da con-
fidencialidade, ou seja, o sigilo profissional (NEUFELD; RANGÉ, 2017).

REFERENCIAL TEÓRICO

A família é o primeiro modelo social que a criança possui, sendo um


importante contexto para o desenvolvimento humano. A forma que os pais
utilizam para educar seus filhos são compreendidas como práticas parentais,
ou seja, comportamentos ou procedimentos relativamente estáveis que os
pais utilizam na relação com os filhos (COELHO; MURTA, 2007). As práticas
parentais poderão, portanto, influenciar diretamente nas habilidades que a
criança irá ou não desenvolver. Para isso, alguns aspectos são preditores para
a efetividade da prática parental, tais quais: diálogo, expressão de sentimen-
tos de agrado e desagrado; expressão de opiniões e a solicitação adequada
de mudança de comportamento; cumprir promessas; entendimento do casal
quanto à educação do filho e à participação de ambos os pais na divisão de
tarefas educativas (GOMIDE, 2004).
Em concordância, Gusmão; Almeida, (2022), dizem que o aproveitamento
do potencial dos pais tem sido cada vez mais estudado, tendo em vista que são
agentes centrais na transformação dos filhos. Os mesmos autores apontam que
fatores como o estilo parental, estrutura familiar e a criação dos filhos possuem
efeito duradouro no desenvolvimento infantil, ou seja, a depender de como
ocorre a dinâmica e o estilo utilizado pelos cuidadores para educar as crianças,
poderá impactar diretamente em como as mesmas irão se desenvolver, podendo
tanto desenvolver crenças positivas em relação a si mesmo e aos outros, bem
como comportamentos adaptativos. Todavia, o contrário também é verdadeiro.
As pesquisas em torno do Treinamento de Pais - TP, principalmente
com crianças com transtornos, têm mostrado avanços tanto em mudanças no

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estilo parental, pois os cuidadores passam a ter as ferramentas adequadas e
possuem mais instrução para adequar a sua prática nos cuidados diários, assim
como, é possível identificar mudanças significativas no comportamento infantil
(GUSMÃO; ALMEIDA, 2022).
O Treinamento de Pais pode envolver abordagens que investem em
estratégias comportamentais, visando reforçar, diminuir ou extinguir compor-
tamentos. Há também outras que utilizam do aspecto cognitivo, essas buscam
investigar o estilo atributivo dos pais, do que imaginam ser o seu papel. Outro
aspecto importante é avaliar o que eles entendem sobre frustrar as crianças, já
que é muito comum equiparar a frustração infantil com algo ruim.
Contudo, embora as famílias sejam primordiais na educação e desen-
volvimento dos seus filhos, estas recebem pouca instrução do que fazer, sendo
o estilo parental desenvolvido por meio de tentativa e erro. Compreende-se,
então, que a falta de habilidades parentais podem ser instrumentos, pelo
menos parcialmente, de mau comportamento dos filhos e interação familiar
difícil (GOMIDE, 2004).
Dessa forma, é importante que os pais tenham acesso a conhecimento de
qualidade, não com o intuito de se tornarem Psicólogos ou Terapeutas de seus
filhos, mas que em seu lugar – de pais – possam educar de maneira a desenvolver
habilidades e ter um relacionamento familiar harmonioso, que permita à criança
a construção de crenças positivas sobre quem é. Nesse sentido, destaca-se:

será necessário treinar pais ou qualquer outro adulto significativo do


contexto familiar que possa contribuir para manter o comportamento
desadaptativo da criança ou do adolescente. Esses adultos, além de
poderem intervir no momento preciso (por terem acesso imediato
ao comportamento-problema), geralmente controlam reforçadores
muito poderosos e significativos para a criança e para o adolescente,
tais como atenção e afeto. Por essas razões, os pais são, usualmente,
o principal agente de mudança no processo terapêutico, atuando
como mediadores entre a orientação profissional e a implementação
de contingências favoráveis à mudança da criança em seu ambiente
natural (COELHO; MURTA, 2007, p.334).

Nessa perspectiva, considerando a importância de orientar e psicoeducar


pais para que estes possam desenvolver estilos parentais que consigam ajudar
os filhos a avançarem em seu desenvolvimento, o presente artigo descreve a

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


246
experiência da intervenção para pais de crianças com transtornos do neurode-
senvolvimento em um dispositivo de saúde pública: o Núcleo de Apoio à Saúde
da Família (NASF).
A ideia do grupo se deu em virtude de a maioria dos atendimentos no
dispositivo serem voltados para o público infantil. Além disso, a maior parte é com-
posta por crianças com TEA – Transtorno do Espectro Autista. As crianças com
autismo, para que possam avançar, necessitam de uma equipe multiprofissional
trabalhando em conjunto para alcançar os objetivos terapêuticos necessários
para o bom desenvolvimento. Além disso, atualmente se tem clareza de que
o tratamento deverá ser intensivo (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION,
2014). Em virtude desse quadro, é importante considerar que o NASF não é o
dispositivo adequado para ofertar esse tipo de atendimento, no entanto, a maioria
das pessoas que o buscam não possuem recursos financeiros para procurar a
terapia adequada para o quadro da criança, tendo o Núcleo de Apoio à Saúde
da Família como única alternativa para o tratamento.
Pensando nisso, o grupo teve o objetivo de possibilitar aos pais conheci-
mentos com relação ao transtorno dos filhos, prognóstico, tratamento, benefícios
e orientá-los em como poderiam desenvolver habilidades para que as crianças,
especialmente as com Transtorno do Espectro Autista, progredissem em seu
desenvolvimento.
Dessa forma, para trabalhar visando atingir o objetivo proposto, escolheu
a modalidade de grupo de Psicoeducação e Orientação. Os grupos de Psi-
coeducação possuem a proposta de oferecer aos participantes conhecimento
e informações sobre seus sintomas, prognóstico, tratamentos disponíveis
e etc. A indicação é a de que seja um grupo fechado com encontros sema-
nais. Os grupos de orientação, por sua vez, possuem estrutura parecida com
os grupos psicoeducativos, contudo, as orientações dadas envolvem provo-
car mudanças em aspectos cognitivos, comportamentais ou emocionais dos
participantes, usando para isso os planos de ação ou tarefas de casa (NEU-
FELD; RANGÉ, 2017).
A proposta para o grupo de pais foi reunir a metodologia dos grupos
psicoeducativos, bem como dos grupos de orientação, pois além de possibilitar
aos pais conhecimento e informações, buscou-se desenvolver neles práticas de
ensino com o intuito de estimular e ajudarem os filhos a adquirirem habilidades

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para o seu desenvolvimento. Os esclarecimentos do trabalho em conjunto entre
família e terapeutas poderão produzir impactos positivos sobre o tratamento.

METODOLOGIA

LOCAL

O grupo foi desenvolvido na sede da equipe multiprofissional única do


Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) da Prefeitura Municipal do município
de Severiano Melo, localizado no interior do Rio Grande do Norte. O município
fica na região oeste do estado, com população estimada de 5.752 habitantes.

PARTICIPANTES

Participaram do grupo pais de crianças com transtornos do neurode-


senvolvimento, sendo a maioria deles com Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Os critérios
de inclusão para o grupo era o de que a criança estivesse sendo acompanhada
pela equipe multiprofissional do NASF e que apresentasse diagnóstico fechado
para TDAH ou TEA.
Para incluir os participantes não houve nenhum critério de recrutamento,
pois o objetivo primeiro era o de realizar um trabalho conjunto com os pais,
concomitante aos atendimentos individuais com as crianças.
O grupo possuía as seguintes características: fechado, de psicoeduca-
ção e orientação, para pais de crianças com transtornos e que estivessem em
acompanhamento psicológico no NASF.

MATERIAIS

Os encontros aconteceram no Núcleo de Apoio à Saúde da Família do


município de Severiano Melo/RN. Foram utilizadas: a sala da fisioterapia (por
ser mais ampla) e/ou o espaço da recepção, materiais de papelaria, recursos
lúdicos, vídeos, imagens e dinâmicas.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


248
CARACTERÍSTICAS E MODALIDADE DO GRUPO

Trata-se de um grupo de Orientação e Psicoeducação de pais, fechado,


com encontros mensais, com participantes entre 25 e 50 anos. Os encontros
possuíam duração que variavam de uma hora e uma hora e meia, tendo até
o momento presente cinco encontros (o grupo ainda se encontra em funcio-
namento). O mesmo apresenta temáticas previamente estabelecidas que vão
desde a psicoeducação sobre o transtorno e seus sintomas até os benefícios
dos direitos das crianças, bem como treinamentos para estimular as habilidades
da criança em casa.

DISCUSSÕES

O grupo de Psicoeducação e orientação de pais teve pontos positivos


e em alguns aspectos teve os seus objetivos alcançados, mas também apre-
sentou grandes dificuldades, principalmente no que se refere a presença dos
participantes e o compromisso dos pais com os encontros.
É primordial esclarecer que, por ser tratar de um grupo em um dispo-
sitivo de saúde pública, as dificuldades enfrentadas envolvem ligação com a
construção histórica com a qual a Psicologia se fundamentou.

A Psicologia institucionalizou-se enquanto profissão voltada de


um lado servindo às elites, e de outro com uma atuação biomédica,
centrada no sujeito e seus sintomas. Embora seja uma ciência
relativamente recente, sendo reconhecida enquanto profissão
apenas em 1962, os conceitos que a constituíram se fizeram
presente desde o período do Brasil colônia, sendo estas ideias de
controle, higienização e categorização do sujeito (BOCK; 2009).
Nesse sentido, não é difícil pensar que os princípios nos quais
consagraram a psicologia enquanto ciência e profissão tenham
repercutido de forma significativa também em sua inserção no
campo da saúde pública. Sobre isso:

A Psicologia se constitui e se institui na sociedade como uma profis-


são corretiva, a qual deve ser utilizada apenas quando desvios ou patologias
estejam instalados. Caso tudo esteja bem, é sinal de que a natureza faz seu
trabalho e não há necessidade da psicologia. A Psicologia ficou assim associada
a patologias, desvios, doenças, conflitos, desequilíbrios e desajustes. Não foi

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possível desenvolver uma profissão que contribuísse para a qualidade de vida,
promovendo saúde. (BOCK, 2009, p.22).
Embora tenhamos conseguido expandir nossa atuação, esse fato não
representou modificação de nossa práxis. A inserção da psicologia se dá em
meio a diversas limitações tanto teóricas quanto práticas que a distancia de
um fazer efetivo nesse campo. Ao invés de questionamentos sobre a forma de
atuação, se tem uma transposição de técnicas, que antes aplicadas ao setor
privado, passam agora para o setor público, processo que torna sua contribui-
ção pouco clara e definida. Essa conjuntura é consequência de como e para
quem a atuação da ciência psicológica esteve pautada, pois até recentemente
seu campo de atuação restringia-se a duas dimensões: a primeira, as ativida-
des exercidas nas clínicas particulares, focada nos sintomas; a segunda, em
hospitais, mas ligadas as concepções médicas, em especial a psiquiatria, com
enfoque no controle e adaptação do sujeito, sendo a medicalização a principal
ferramenta (SPINK; 2013).
Assim, o trabalho produzido no setor público de saúde passa a ser consi-
derado como o fracasso dos profissionais no setor de atuação dos consultórios
particulares, da área organizacional ou escolar sendo muitas vezes considerado
inferior ao serviço produzido nos espaços privados (SOBROSA et al., 2014).
No que tange o papel desse profissional no contexto da atenção básica à
saúde duas premissas essências precisam ser ressaltadas: promoção e preven-
ção. A prevenção diz respeito a uma prática que possui o cuidado em evitar o
surgimento de agravos e de doenças; a promoção, por sua vez, visa o bem estar
e qualidade de vida, fatores que envolvem dimensões amplas de cuidado, pois a
compreensão de qualidade de vida e saúde são singulares. Com isso, a proposta
é pensar formas de trabalho em que as equipes de saúde atuem antes mesmo
do surgimento de doenças ou do agravo de alguma condição, se faz necessário
produzir e ofertar o cuidado. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).
Ao compreender as premissas citadas, o psicólogo se insere no contexto
da atenção básica com um papel mais ativo com toda população adscrita em
um território, não agindo somente quando a demanda surge. Assumir esse com-
promisso é sair do lugar de retaguarda, de quem abre a porta somente quando
alguém o procura. Portanto, a postura do profissional da psicologia é de quem
faz acontecer, ao invés daquele que espera que aconteça, que surja, que apareça,

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


250
que se torne claro para poder intervir, é tornando o seu olhar presente antes
mesmo de ter encontrado com a família ou pessoa que está sendo pensada em
suas necessidades de saúde (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).
Assim, quando o profissional se insere no contexto público comete-se o
erro de apenas transferir o que foi aprendido. Não há reflexão, não há modifica-
ção de práticas e menos ainda se faz referência ao contexto em que o usuário
do serviço está. Nesse sentido, Sobrosa, et al (2014, p.7) afirma:

(...) espera-se que o Psicólogo, no contexto da saúde, desenvolva


uma reflexão mais aprofundada sobre a condição global em que
se dá a atuação profissional, considerando as representações do
processo saúde/doença; a configuração dos serviços de saúde e das
profissões que aí atuam; e as políticas setoriais e suas implicações
para os usuários. Além disso, espera-se que o Psicólogo passe a
se ocupar mais com práticas de promoção de saúde e prevenção
de doenças, do que com a recuperação como frequentemente
ocorre na clínica.

De acordo com Oliveira et al. (2011), em pesquisa sobre atuação do psi-


cólogo no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) da região metro-
politana de Natal, contatou-se que os atendimentos individuais, de psicoterapia,
são ainda foco entre os profissionais, mesmo havendo clareza que não é uma
atividade prevista para o setor. De acordo com os autores a justificativa dada
pelos psicólogos é a de que é uma atividade que os confere um lugar, uma
identidade profissional. Sobre isso:

embora faça grupos variados e dinâmicas, essas ações podem


ser realizadas por qualquer profissional, inclusive em parcerias,
ou, mesmo, por um assistente social. Não é o conhecimento
psicológico que capacita para esse tipo de trabalho. O atendimento
psicológico é o único diferenciador da função do psicólogo e, ao
mesmo tempo, lhe confere um “lugar” na equipe (OLIVEIRA et
al, 2011, p.146).

Do mesmo modo, é possível observar percepção parecida na atuação da


psicologia no grupo de pais. O psicólogo é visto como o profissional da sala com
as portas fechadas para o atendimento individual. Esse é o lugar que garante ao
profissional da psicologia identidade. As pessoas não dão credibilidade quando

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o atendimento é realizado em grupo, a ideia é a de que não é possível dispor
da mesma qualidade, caso realizasse o mesmo trabalho de forma individual.
Além dessa dificuldade, há ainda outra, os pais de crianças com transtornos
– os que estavam sendo acompanhados pelo grupo – apresentava a crença de
que o melhor para o desenvolvimento da criança seria o atendimento individual
com o psicólogo, pouco compreendiam que ao usar o potencial que possuem
poderiam impactar positivamente na vida das crianças. Podemos supor, com
base na vivência do grupo, que isso se deve a dois fatores importantes. O primeiro
deles, os genitores não entendem que o lugar de pais no tratamento dos filhos
é de protagonista e não de retaguarda; segundo, pode ser que eles entendam o
quão grandioso é o seu papel, contudo, terceirizar essa função unicamente ao
profissional os levam a um lugar de conforto, que talvez seja muito difícil sair.
Quanto aos benefícios para aqueles pais que permaneceram e frequen-
taram assiduamente aos encontros do grupo foi possível instruir quanto ao
tratamento dos filhos, aos direitos da criança, ao prognostico e etc. Ademais,
o grupo permitiu uma relação de troca e de comunicação sincera, os pais
sentiam-se próximos da profissional para questionar, tirar dúvidas, falar o que
estava ou não funcionando em relação ao tratamento com as crianças. O diá-
logo aberto possibilitou acesso fácil ao profissional o tirando do lugar de saber
que o distancia do público, mas o colocando no lugar de quem estava ali para
trabalhar em conjunto.
Outro movimento percebido no grupo era de o espaço ser utilizado para
trocas entre os próprios pais, contudo, sob a coordenação da psicóloga, pois
o que acontece é de os pais trocarem informações erradas sobre diagnóstico,
transtorno do filho, sintomas e tratamento o que os deixavam, em sua maioria,
muito ansiosos. Com a presença da profissional, a troca existente entre eles era
intermediada, sendo repassadas as informações corretas, retirando as dúvidas
existentes, possibilitando diálogo aberto para desmistificar os mitos e verdades.
Ademais, foi possível perceber que os pais mais instruídos também eram
aqueles que conseguiam melhor ajudar aos filhos na aquisição de habilidades
importantes para o seu desenvolvimento. Com os conhecimentos repassados
no grupo, os cuidadores sentiam-se abertos para perguntar, questionar e pedir
dicas de como poderiam ajudar aos filhos, o grupo provocou a curiosidade dos
pais. Os mesmos perguntavam sobre brinquedos educativos, questionavam

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


252
como usar, no retorno ao neuropediatra anotavam as dúvidas repassadas
pela profissional.
Além do momento em grupo, sempre que se realizava o atendimento com
a criança, nos dez ou cinco minutos finais chamava-se o pai ou mãe na sala
para que eles vissem como a criança estava sendo estimulada e assim pudes-
sem aprender como fazer, demonstrava como trabalhar habilidades básicas,
tais quais: contato visual, atender comandos, imitação, linguagem receptiva e
expressiva. Nesse momento, dava a eles a oportunidade de aprender na prática
como realizar as estimulações.
O grupo foi finalizado com um encontro em que houve a participação de
um advogado que também é uma pessoa com autismo, para instalar nos pais
esperança, assim como tirar as dúvidas sobre benefícios, direitos da criança e
etc. Outrossim, houve um treinamento sob a coordenação de duas psicólogas,
as mesmas simulavam como estimular habilidades em crianças com TEA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível identificar que inúmeros são os desafios para o trabalho em


grupo no contexto da Psicologia. Falta ainda clareza do profissional em relação
ao seu papel para poder estar seguro o suficiente e, assim, psicoeducar os pais
sobre a eficácia do atendimento em grupos. Além disso, a modalidade de grupo
de Psicoeducação e Orientação de pais traz ainda outras questões a serem
desmistificadas, tais quais: o grupo possui tanto potencial terapêutico quanto o
tratamento individual; é uma forma de abrir espaço para troca de informações,
possibilidade de acolhimento e dar espaço a voz de pais que muitas vezes são
silenciadas quando buscam os direitos dos filhos.
Contudo, é plausível compreender que o elemento social da modalidade
grupal foi capaz de promover trocas significativas entre os pais e profissionais
e entre os próprios pais, cada um com suas vivências e singularidades.
Apesar dos desafios enfrentados, foi notável que a vivência proporcio-
nada a eles foi de suma importância, dando aos cuidadores espaço para serem
protagonistas na vida de seus filhos. Para mais, o que se buscou alerta-los
foi a ideia de que o conhecimento gera autonomia e que com as ferramentas
corretas eles são capazes de provocar mudanças significativas na vida de suas

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crianças. Instalar esperança nos pacientes é uma das premissas básicas da TCC,
assim orientar aos pais e possibilitar instalar neles a esperança de que com as
ferramentas adequadas, com o tratamento conjunto, a comunicação sincera é
possível a criança avançar.

REFERÊNCIAS
American Psychiatric Association (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais:
DSM-5.. 5 Porto Alegre: Artmed, 2014,

BOCK, A.M.B. (org.). Psicologia e o Compromisso Social. 2 ed. São Paulo, Cortez, 2009.

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BECK, Judith S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3. ed. [S. l.]: Artmed, 2021.

BIELING, Peter J.; MCCABE, Randi E.; ANTONY, Martin M.. Terapia Cognitivo-Comportamental em
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COELHO, Marilia Velasco; MURTA, Sheila Giardini. Treinamento de pais em grupo: um relato de
experiência. Estudos de Psicologia. Campinas, v. 24, p. 333-341, 2007.

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básica à saúde. Brasília, 2019.

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Prette (Orgs.), Habilidades sociais, desenvolvimento e aprendizagem (pp.21- 60). Campinas: Alínea

GUSMÃO, Marina; CAMINHA, Renato M. Intervenções e Treinamento de Pais na Clínica Infantil. 2.


ed. Novo Hamburgo: Sinopsys, 2022.

NEUFELD, Carmem Beatriz; RANGÉ, Bernard P. Terapia Cognitivo-Comportamental em Grupos das


evidências à Prática. Porto Alegre: Artmed, 2017.

OLIVEIRA, Isabel Fernandes et al. A prática psicológica na proteção social básica do suas. Psicologia
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SOBROSA, G.M.R et al. O Desenvolvimento da Psicologia da Saúde a Partir da Construção da Saúde


Pública no Brasil. Revista de Psicologia da IMED, [s. l.], v. 6, n. 1, p. 4-9, 2014.

SPINK, M. J. P. (2003). Psicologia da saúde: A estruturação de um novo campo de saber. In M. J. P.


Spink. (Ed.). Psicologia social e saúde: Práticas, saberes e sentidos (pp. 29-39). Petrópolis, RJ: Vozes.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


254
13

TEKOPORÃ: A PEDAGOGIA GUARANI DAS


BELAS PALAVRAS

Isael da Silva Pinheiro


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

10.37885/231014616
RESUMO

O presente capítulo aborda a educação tradicional guarani por meio das belas
palavras, considerada uma pedagogia própria. O trabalho é fruto de um conviver
com os guarani Nhandewa da região norte do Paraná, da escuta e do registro
das narrativas dos tudjás (sábios e sábias). O objetivo é construir subsídios
epistemológicos e metodológicos para a compreensão e sistematização dos
princípios e dos fundamentos da pedagogia guarani. A pesquisa, que é parte de
um doutorado em Educação, envolve uma metodologia colaborativa, ressignifi-
cada nos fundamentos da reciprocidade e da complementariedade, baseada na
cosmologia guarani. Trata-se de uma metodologia própria, articulando diferentes
fontes para compor uma narrativa sobre o modo de ser guarani e, neste sentido,
destaca-se a roda de conversa como ferramenta fundamental na construção
colaborativa, envolvendo os tudjás no fortalecimento dos conhecimentos e da
cultura guarani. Com isto, foi possível apresentar e refletir sobre o conceito de
tekoha (local onde se dão as condições do modo de ser guarani), bem como
compreender os aspectos da educação tradicional, da organização social e das
práticas de ensino aprendizagem.

Palavras-chave: Educação Tradicional, Guarani Nhandewa, Narrativas Sagradas.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


256
INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é contribuir com as reflexões acerca da educação


escolar indígena, a partir dos aportes da educação tradicional Guarani Nhan-
dewa, cujos saberes se pautam principalmente nas narrativas orais dos tudjás
(sábios e sábias), considerados os guardiões dos conhecimentos originários,
transmitidos de geração para geração. O trabalho faz parte da pesquisa de
doutorado em andamento, intitulada Arandu: a Pedagogia Guarani das Belas
Palavras, realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul. Esta inserção no mundo acadêmico resulta
de questionamentos que brotaram na minha trajetória escolar, como estudante
e professor indígena.
Meu interesse pelas Belas Palavras surgiu ainda na infância, quando
participava das primeiras rodas de conversa com os tudjas e com eles fui apren-
dendo aspectos importantes da cultura tradicional, da língua e da espiritualidade
Guarani Nhandewa. Como professor e agora pesquisador, compreendo que há
nas palavras dos tudjas uma sabedoria que pode ser caracterizada como uma
pedagogia própria.
A pesquisa que ora desenvolvo é fruto de um conviver com os Guarani
Nhandewa que vivem na região norte do estado do Paraná. Esta convivência
inspira e fundamenta a reflexão que apresento aqui sobre o mundo guarani,
seus conhecimentos e saberes tradicionais, tendo como interlocutores os mais
velhos, os tudjas. Com eles aprendermos as Belas Palavras, que são palavras
sagradas para nós, verdadeiras revelações de um mundo, diferente daquele
que conhecemos a partir dos fundamentos eurocêntricos e cristãos. Trata-se
de um mundo permeado de mistérios, desejos, alegria e sonhos.
Inspirado por essas Belas Palavras apresento aqui algumas reflexões
da minha caminhada como pesquisador Guarani Nhandewa, mostrando um
pouco do nosso modo de ser, ou seja, o Tekoporã que é sustentado por um
conhecimento originário, um saber ontológico do nosso próprio povo, uma
filosofia milenar que fundamenta concepções e práticas culturais. Igualmente,
busco preencher uma lacuna epistemológica que existe nas pesquisas envol-
vendo os povos indígenas na relação com as demais ciências, defendendo
que a ciência guarani, seus intelectuais, seus sábios e sábias sejam tratados

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de forma respeitosa e recíproca e não apenas sejam considerados objetos de
pesquisa. Para isso, é importante reconhecer teorias e metodologias próprias,
que se encontram presentes em nossas práticas culturais.
A metodologia de pesquisa está sendo construída a partir dos próprios
guarani e aqui assim as denomino: convivência, conversa recíproca, autobiografia
e roda de conversa. Sobre a roda de conversa, Bruno Ferreira, importante inte-
lectual pertencente ao povo Kaingang, mostra que esta permite criar diálogos
entre pessoas de épocas diferentes, traz lembranças, memórias, conhecimentos
e sabedoria milenar. Ela também é recíproca, pois “[...] viajar pela memória das
pessoas mais velhas é a mais bela e pura construção de conhecimento que um
povo tem” (FERREIRA, 2014, p.34).
Para nós guarani, a roda de conversa possibilita a troca de experiência,
contribui para a produção e transmissão de conhecimentos assentados na
oralidade. Trata-se de uma metodologia de fala e escuta, que molda caminhos,
produz dados e informações para o envolvimento de uma pesquisa. Diferente
da concepção ocidental, a roda de conversa aqui desenvolvida revela que o
pesquisador não deve se inserir como sujeito/objeto de pesquisa; sua partici-
pação deve ter pouca interferência no processo de fala/escuta. Para os tudjas, o
silêncio é uma forma de participação/observação e é muito praticado, tanto por
eles que são os detentores principais das Belas Palavras, como por nós, geração
mais jovem que aprende a escutar e a compreender também o silêncio. Além do
silêncio, também existe o vazio, que é o lugar onde ocorre a reflexão espiritual.
A roda de conversa aqui apresentada possui procedimentos próprios,
tais como: oralidade, cantos, danças, reciprocidade, conhecer, ouvir, aprender
e descrever, considerando que para nós guarani, os momentos de escuta são
mais importantes do que os da fala. Bruno Ferreira (2020) diz que a roda de
conversa é uma ferramenta de pesquisa que permite o uso da língua materna,
pois para nós indígena a oralidade é o condutor das reflexões e dos conheci-
mentos. Segundo o autor, “[...] as conversas acontecem em grupos ou de forma
individual, nunca com tempo e hora predeterminada, mas de forma organizada
em momentos de eventos como festas, reuniões tradicionais e no tempo espaço
familiar (FERREIRA, 2020, p.16).
Para nós Guarani, a roda de conversa também se faz no cotidiano, nas
vivências culturais, em que o objetivo é buscar compreender as concepções de

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


258
tempo e espaço dos tudjás. Aproximando de concepções acadêmicas, podemos
dizer que a roda de conversa possibilita história oral1 como metodologia, assim
como a utilização de metodologias colaborativas2: ambas contribuem para a
ressignificação da relação cosmológica guarani com processos de aprendiza-
gem. O princípio destas metodologias é reconstruir a história vivida, registrar,
perpetuar impressões, vivências, lembranças daqueles que se dispõem a com-
partilhar suas memórias com a coletividade, permitindo um conhecimento do
vívido muito mais rico, dinâmico e florido. Como diz Bruno Ferreira (2020, p. 16),
“os participantes das rodas de conversas, além de contribuírem na construção
dos conhecimentos, podem participar do redirecionamento da formatação
final da pesquisa”.

OS GUARANI NHANDEWA

No estado do Paraná são aproximadamente 24 terras indígenas, nas


quais vivem em torno de 26 mil indígenas de três etnias: Kaingang, Guarani e
Xetá. Os Guarani Nhandewa vivem em três terras indígenas, compondo uma
Territorialidade Guarani-Nhandewa: Terra Indígena Ywy Porã (Posto Velho),
localizada no município de Abatiá-PR; Terra Indígena Laranjinha, município de
Santa Amélia; Terra Indígena Pinhalzinho, município de Tomazina.
Os relatos aqui apresentados foram reunidos em 2018, quando fui profes-
sor formador do SIE, Saberes Indígenas na Escola3 - Núcleo UEM, contemplado

1 Segundo Medeiros (2020, p. 33), “história oral está contida na tradição oral”. Nas palavras da autora, que, que
refere Cavender Wilson, “as experiências pessoais, informações, eventos, incidentes podem se tornar tradição
oral no momento que acontecem ou que são contados, desde que a pessoa relatando a memória seja parte
de uma tradição oral” (idem, ibidem). Portanto, trago aqui o entendimento de história oral como relatos que
vão passado de geração para geração e que, frequentemente, essa história é incorporada pelas pessoas que a
narram.
2 Bruno Ferreira, em sua tese de doutorado diz que “a pesquisa colaborativa está fundada nas relações sociais
kaingang. [...] pesquisar dentro da organização indígena é basicamente um produto das relações entre colabo-
radores e atores étnicos que constroem sua metodologia para pesquisar juntos” (2020, p. 15). O autor defende
que a pesquisa colaborativa propicia o diálogo entre os conhecimentos acadêmicos e os métodos tradicionais
dos povos indígenas.
3 Saberes Indígenas na Escola é um programa de abrangência nacional do Ministério da Educação, executado
por universidades públicas desde 2013, que vem dando importante contribuição à formação continuada dos
professores indígenas a partir dos sábios e sábias e dos saberes próprios. Desenvolvido com um forte protago-
nismo dos professores e das professoras de cada povo, o programa associa a construção de materiais didáticos
à pesquisa, contribuindo para qualificar as escolas indígenas no Brasil.

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com uma bolsa tive a possibilidade de conhecer várias terras indígenas do
estado do Paraná. Uma das minhas caminhadas se fez pelo norte do Paraná,
territórios vividos intensamente, pois a maior parte da minha formação cultural
se deu através das narrativas contadas pelos Guarani Nhandewa que nasce-
ram e cresceram na região que também é a minha. Parte considerável destas
narrativas resulta das observações e dos registros que fiz durante as rodas de
conversa que compunham o trabalho da Ação Saberes Indígenas na Escola e
contemplam aspectos significativas da cultura própria.
Os guarani que vivem nesta região se organizam em três parcialidades:
Nhandewa, Kaiowa e Mbya. A relação com os outros grupos é vista como
centros interétnicos, termo relativo às relações e trocas entre diferentes etnias.

TERRITÓRIO GUARANI NHANDEWA

Para os povos indígenas, o conceito de território se apresenta em quatro


vertentes integradas: política, social, religiosa e econômica. Antes de tudo, é
importante advertir que as concepções próprias muitas vezes não são reconhe-
cidas pela sociedade nacional, nem, tampouco, são valorizadas e respeitadas.
Para nós Guarani, a terra - Ywy é sagrada, é o elemento mais importante da nossa
vida biológica e espiritual. Nós Guarani somos conhecidos pela íntima relação
que temos com a natureza, com a terra, pela espiritualidade, pelas histórias e
narrativas também denominadas Belas Palavras. Para nós o território é com-
preendido por tekoha, é o local onde se dão as condições para ser e praticar o
modo de ser guarani.
Quando se fala em território, é preciso compreender que este não é um
conceito unidimensional, pois é possuidor de várias concepções, e claro, está
presente na vida de vários povos indígenas do Brasil. Cada povo reconhece o
seu território e demarca-o simbolicamente. Os territórios indígenas no Brasil
só foram reconhecidos com a Constituição Federal de 1988, que garantiu legal-
mente seus direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, considerando
também seus modos de usar, seus costumes e as tradições culturais.
Dessa forma, entender a diferença entre terra e território é de suma
importância para a vida física e cultural dos povos indígenas. A noção de Terra
Indígena, diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


260
Estado, enquanto a de território remete à construção e à vivência, culturalmente
variáveis, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial
(GALLOIS, 2023).
O conceito de território não é próprio das populações indígenas, faz
parte das estratégias de poder e de controle político do Estado, que configura
as terras indígenas em áreas demarcadas por limites e fronteiras. Esse poder
aparece nos processos demarcatórios destas terras. A noção de território é
polissêmica e possui vários significados. Para nós Guarani, a terra é muito mais
do que um meio de subsistência. Ela é o alicerce da origem e da existência de
todos os seres que compõe a vida.
Acerca da compreensão de território, pude participar de uma roda de
conversa com Sebastião (Tião), Guarani Nhandewa, ex-cacique da Terra Indí-
gena Pinhalzinho. Sebastião, que infelizmente faleceu em 2022, relatou-me
que o território guarani não pode ser tratado apenas como objeto de pesquisa,
pois é criado a partir de relações circulares, envolvendo todos os princípios da
vida Guarani. O território, na concepção Guarani, é um ser e um bem coletivo,
destinado a produzir e satisfazer as necessidades de todos os membros do
grupo. Dessa forma, o conceito de território define a territorialidade que é muito
significativo para as populações indígenas. A territorialidade é necessária para
a construção de um território, ligada ao simbólico e à identidade.
Portanto, territorialidade tem a ver com as formas de cada povo, que
(re)elabora suas práticas culturais na interação com a natureza. É um pro-
cesso que extrapola a noção física de terra, remete outras dimensões, como a
cosmologia espiritual, simbólica e mítica. Urquiza e Nascimento (2013, p. 59)
defendem que, “[...] diferentemente da tradição capitalista ocidental, a relação
dos povos indígenas com a terra, é mediada pela territorialidade, ou seja, não
é uma relação de exploração, mas sim, de interdependência e, por isso mesmo,
de respeito e harmonia”.
Segundo Sebastião, antigamente havia muitas riquezas naturais nos
tekoha guarani, como plantas, caças e muitos peixes:

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[...] tem vez que falo para os meus filhos: olha, nós tínhamos nossas
coisas boas, nossas riquezas, nós tínhamos à nossa mandioca,
nossa cultura, nossa reza, nossas kaagwy, nossos pássaros, nossas
bananas, nosso pomar no meio, nós tínhamos tudo, tínhamos
nossos pira, nossas águas tratadas pela natureza. Nhanderu
cuidavam de nós, tudo isso nós tínhamos. E, todas essas coisas
foram contaminadas com aquilo que não presta, contaminaram
tudo com o dinheiro, contaminaram tudo com as coisas que vem
de fora, tudo com veneno, mataram nossos rios e vem destruindo
o nosso modo de viver (Sebastião, T.I. Pinhalzinho, 2018).

O tekoha possui um valor simbólico, mas também material. Ele é recí-


proco, mítico e não é visto como uma propriedade privada, sujeita à compra,
venda ou troca. Não é apenas um espaço físico, ou um simples território, é um
território com características específicas e que possibilita a realização do teko,
que é o modo de ser guarani. O tekoha não está ligado unicamente ao território,
mas estabelece relação com a estrutura social e política do povo guarani, ou
seja, a territorialidade. Os guarani sempre constituíram um território farto, isso
antes da chegada dos colonizadores. Após séculos de massacres, submetidos
a doenças, a violentos processos civilizatórios colonizadores e expulsos de suas
terras, buscaram por muitos anos encontrar uma nova terra onde pudessem
praticar o tekoporã.
É importante destacar que os conhecimentos sobre o tekoha são de muita
importância para a vida coletiva entre os guarani. Sebastião fala que o teko (modo
de ser Guarani) deseja ser livre, ser natural, estar na terra, que significa usá-la
de acordo com suas leis. Os problemas enfrentados atualmente pelos Guarani
Nhandewa que vivem no norte do Paraná não estão relacionados apenas às
exiguidades dos tekoha, mas também pela rápida e violenta “modernização” do
campo. O capitalismo exacerbado tornou-se o causador de vários problemas
para nós guarani. Com o avanço do capital sobre os tekoha, vieram também
mudanças significativas no modo de ser guarani. O sistema capitalista, através
da globalização, não atingiu positivamente todos os povos indígenas. É um sis-
tema que favorece os ricos em detrimento dos mais pobres. Os povos indígenas
possuem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e
são as principais vítimas desse sistema.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


262
Para nós Guarani Nhandewa, as concepções de espaço, lugar, natureza
e território, se constituem de forma holística. Dessa forma, as lembranças são
constantes e não podem ser esquecidas.

Eu me lembro que uma vez eu e meu pai, acredito que eu tinha


uns sete anos ou mais - fomos até a aldeia do Posto Velho, e era
cheia de kaagwy, cheia de frutas tudinho até na beira do rio. Nós
fazíamos armadilhas até na beira do rio, aquela vida era gostosa,
nós víamos que no kaagwy você não passava fome. Lá na cidade
você pode ganhar o que for, mas se você não se cuidar passa e
até morre de fome. O mais difícil é quando morre pela violência
(Sebastião, T.I. Pinhalzinho, 2018).

A construção da identidade guarani passa também pela questão territo-


rial, e pela história. Portanto, negar os saberes tradicionais guarani é negar sua
identidade. Conhecer as dimensões do tekoha fazem parte do tekoporã. A terra
na concepção guarani é vista como o lugar da morada e da passagem. Dela se
tira apenas o necessário para sobreviver.

[...] sabemos que com cinco minutinhos aqui você planta um pé


de mandioca, você vai lá carpe um pedacinho de terra e já cabe
dois pés dela. Amanhã ou depois você pôde falar: eu plantei um
pé de mandioca. E depois você planta mais dez, e já planta uma
carreira de mamão no meio, e de repente está com um pomar
muito bom (Sebastião, T.I. Pinhalzinho, 2018).

Na cosmologia guarani também existe à yvy marãey, uma terra sem fim,
onde nada tem fim, é a terra perfeita onde tudo é bom; o lugar de Nhanderu e de
sua comunidade celestial. A busca pela yvy marãey é para ter melhores condições
de vida, seguir os elementos renovadores e para estar mais perto da possibilidade
de atingir a imortalidade. Dessa forma, para nós Guarani Nhandewa, o tekoha
supera o conceito de território, pois está associado a uma noção de mundo, um
lugar mítico, um mundo celestial, uma terra sem males.
O conceito de território para os guarani difere em muitos aspectos do
conceito ocidental. Ninguém se considera dono da terra e nem daquilo que nela
vive. A terra é uma dádiva recebida de Nhanderu, por isso, a consideram por
direito e dela usufruem de forma respeitosa, equilibrada e limitada. No tekoha
se pratica a reciprocidade, que é uma das mais importantes virtudes da vida

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guarani. A reciprocidade se distância da acumulação material, pois na cultura
guarani tudo é produzido e compartilhado de forma coletiva. Mesmo vivendo
em áreas exíguas ela é praticada e fortalecida pelos por meio do uso coletivo
dos recursos naturais disponíveis.
O canto é outro elemento importante num tekoha e para a língua tradi-
cional guarani tem um papel fundamental, pois traz força espiritual e corporal,
além de ajudar na comunicação com as divindades. Como atualmente há poucos
falantes da língua originária em alguns tekoha a presença de uma opy (casa de
reza) contribuí para a sua revitalização.
Sem a dança e o canto, a vida guarani neste mundo estaria em risco. Muitos
pesquisadores reconhecem que os guarani são muito religiosos e conhecedores
de muitas práticas espirituais. Infelizmente, com a entrada de outras experiências
religiosas nas comunidades guarani, muitos se converteram e mudaram suas
práticas culturais que eram realizadas na opy. As cerimónias que aconteciam
com frequência tem sido cada vez menor. Antigamente, dependendo da situa-
ção e das circunstâncias (falta ou excesso de chuva, durante a coleta de frutas,
etc.), os rituais eram realizados cotidianamente, na maioria das vezes no início
da noite até o amanhecer.
Quando se fala em terra sem males, pensa-se nas migrações feitas pelos
guarani ao longo do século XX. Essas migrações foram narradas por vários
antropólogos e etnólogos. Ladeira (2000) mostra que esse é um dos temas mais
debatidos entre os pesquisadores e estudiosos não indígenas. E, de fato, existem
vários estudos que buscam definir yvy marãey, seja em trabalhos antigos ou
recentes. Atualmente, os trabalhos de Ladeira (1992; 2000) têm ganhado noto-
riedade. Em seus estudos, Ladeira fala da terra perfeita, o lugar de Nhanderu
e de sua comunidade celeste, “situada na direção de nhade renondére nossa
frente, onde nasce o sol” (LADEIRA, 2000, p. 84, grifo meu).
A busca pela yvy marãey também está presente na obra de Nimuendaju
(1987), As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da reli-
gião dos Apapocúva-Guarani. Neste clássico trabalho etnográfico, Nimuendaju
mostra que a busca pela terra sem males se deu por uma concepção mítica
e religiosa. Segundo ele, os guarani temiam a destruição do mundo e a única
esperança seria ingressar na terra sem males, devendo migrar em direção ao
leste, rumo ao mar, buscando alcançar à yvy marãey.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


264
Vários fatores impossibilitaram os guarani de alcançarem à terra sem
males: o rápido crescimento da população brasileira; a expansão da indústria; o
avanço da agricultura (agronegócio); a origem das grandes cidades e os modos
de relação com a população não indígena. Esses fatores também mudaram à
concepção de yvy marãey. Segundo Nimuendaju, os guarani estavam conven-
cidos de que não poderiam mais alcançá-la, como fizeram seus antigos. Então,
“explicam sua limitação, argumentado que seu corpo adquiriu um peso inven-
cível devido ao consumo de alimentos [...] (sal, carne de animais domésticos,
cachaça, etc.), bem como pelo uso de vestimentas” (NIMUENDAJU, 1987, p. 104).
Portanto, a terra sagrada é a yvy marãey, terra perfeita yvyju miri e para
nela chegar é preciso atravessar a grande água. Dessa forma, acredito que
a nossa concepção de yvy marãey deve ser concebida em dois planos: 1) no
plano terrenal, o território, espaço onde estão inseridos os guarani; 2) o plano
mental, simbólico, espiritual, que compreende a terra perfeita yvyju miri, yvyju
porã. Os tudjás contam que a terra sem males também pode ser alcançada em
vida, através de um empenho coletivo.
A pesquisa de Bartomeu Melià (1990) mostra haver uma ligação entre
a vivência religiosa com a base ecológica da terra sem mal. Este renomado
pesquisador afirmava que a terra sem mal era certamente elemento essencial
para a construção do modo de ser guarani. A terra, segundo ele, é identificada
como tekoha, que corre menos pelo lado da produção econômica que pelo
lado de produção da cultura. O teko é o modo de ser, modo de estar, sistema,
lei, cultura, comportamento, hábito, condição e costume. Dessa forma, o “[...]
tekoha é o lugar onde se dão as condições de possibilidade do modo de ser
guarani (Melià, 1990, p. 36).
Em uma outra roda de conversa tive a oportunidade de ouvir as narrati-
vas de Dercílio, Guarani Nhandewa, uma liderança religiosa que vive na Terra
Indígena Laranjinha. Ele contou como deve ser a vida em um tekoha:

[...] para entrar no mato, primeiramente, deve pedir licença, não é


só ir entrando, cortando e derrubando tudo. Tudo tem um dono,
as minas d’água Yy Yy têm um dono, e ele está no céu aryrei.
Então, todos nós temos que pedir licença, porque existe um
espírito bom que nos alerta, e se existe um espírito bom, existirá
também um do maligno. Essa é a dinâmica da natureza (Dercílio,
T.I. Laranjinha, 2018).

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Para Dercílio à Ywy (terra) não pode ser vista como bem econômico. Para
nós, Ywy é sagrada e possuí os elementos que reforçam as crenças que são
fundamentais para a construção do modo de ser guarani. Para muitos grupos
guarani já não se pode mais alcançar a tão sonhada yvy marãey nesta terra, e
sabem que é difícil cultivar o bom modo de ser guarani como o de antigamente.
Por isso, veem mantendo as relações míticas com à terra sem males e com o
tekoha. Por mais que não haja recursos necessários para a conservação do teko,
buscam através da reciprocidade novas formas de manter viva a cultura e a
espiritualidade tradicional.
Infelizmente, devido a redução das terras e casamentos com não indíge-
nas cada vez mais frequentes, muitos tudjás, que são os detentores das Belas
Palavras, fecharam-se em suas aldeias, guardando apenas para si os segredos
do bom modo de ser guarani.
Em sua obra A fala sagrada mitos e cantos sagrados dos índios Guarani,
Pierre Clastres (1990) afirmava que se os guarani perdessem a religião tradicional
toda a sociedade se desmoronaria. O desmoronar não é a extinção da sociedade
guarani, mas é a perda da espiritualidade e da cultura devido a misturas entre
indígenas e não indígenas, movimento precursor dos seus enfraquecimentos.
Sobre a religião tradicional Guarani, que é a nossa espiritualidade, Dercílio narra
que antigamente só existia opy, explicando que “no passado não existia essa
cruz que tem hoje nas igrejas. A cruz é das igrejas dos ‘brancos’ que entraram
nas aldeias”. Para ele, era estratégias dos jesuítas e dos padres para amansar
os “índios” por meio das coisas dos brancos.
Sobre a existência da opy no seu tekoha, narra que havia dois rezadores
que ficavam de dois a três dias comendo alimentos naturais para realizar as
cerimônias espirituais. As falas de Dercílio revelam a forte influência das igrejas
ocidentais sobre a cultura tradicional guarani. No entanto, seu posicionamento
crítico mostra uma relação profunda com a opy, pois ele guarda os saberes e
as práticas da cultura tradicional, afirmando que ela, a opy, deve ser protegida.
Sobre o papel do rezador, que quando esse queria receber algo de txeru, ficava
de dois a três dias na comunhão, fazendo resguardo numa rede feita com
folhas de coqueiros. A comida do rezador era composta de peixes assados na
brasa e bebia apenas ei mel de eiru abelha com Yy. Dercílio conta que depois

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


266
do resguardo do rezador, todos se deslocavam para a opy, que ficava cheia de
crianças, jovens, adultos e velhos.
Sobre o comportamento na opy, conta que esteve em duas aldeias perto
de São Paulo, onde não deixavam fotografar as cerimônias que eram realizadas
nela. De acordo com a concepção de Dercílio, não pode-se deixar um wyporu
(branco) tirar fotos na opy, porque podem ridicularizar a cultura Guarani. Segundo
ele “o mundo está cheio de sujeiras, não podemos trazer para dentro da aldeia”.
Quando alguém ficava doente era levado até o rezador que, com reve-
lações, fazia várias orações para curá-lo. Para os guarani, tratava-se de uma
manifestação espiritual, e todos os que mantivessem o pensamento firme nas
manifestações de Nhanderu poderiam receber o dom da cura. Mas, segundo
Dercílio, todos devem usar e cultivar os remédios oferecidos pela mãe natureza.
Acerca da experiência espiritual de Dercílio, apresento nas suas próprias palavras:

Eu gosto muito de rezar e de conversar com txeru. Olha, vou dizer


uma coisa para você, esse ano vai ser difícil, vai acontecer muitas
coisas ruins e temos que segurar firme com txeru e com Nhanderu.
Sabe aquele passarinho que faz quéu, quéu, quéu! Então, ele foi
um rapaz, e o tatu também foi, e são muitas histórias e lendas que
Nhanderu deixou. Os mais velhos diziam assim para mim: “olha
meu neto, vai chegar um tempo que tudo no mundo vai ser julgado,
tanto o pobre como o rico, todos vão ser julgados, haverá um tempo
meu filho, que terá só pranto, o sogro matará a nora e ninguém irá
se dar bem com ninguém, nem o filho com a mãe, nem mãe com
os filhos, será uma contenda terrível em cima dessa terra e vocês
verão”. E tudo isso já está acontecendo mesmo, e tudo o que eles
falaram para mim são coisas sagradas, e está acontecendo de
tudo hoje. Agora, têm muitas igrejas que estão pregando mentiras,
e tem pastores ficando ricos nas costas dos pobres, e eles não
possuem conhecimentos sagrados marãey nenhum, pois na nossa
opy, lá no mato, nunca precisou de dinheiro, lá nós vivíamos era
pela fé em Nhanderu. Eu posso dizer para você que até hoje eu
sou rezador do mato (Dercílio, T.I. Laranjinha, 2018).

Vários grupos guarani ao longo de séculos de contatos resistiram e


conseguiram sobreviver com suas crenças, porque criaram formas próprias de
superação, de combate, e resistência dos efeitos maléficos da sociedade atual.
Através da cultura e da religião tradicional criaram mecanismos próprios de

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resistência. Pierre Clastres (1990, p. 12) já afirmava que “o desejo de abandonar
um mundo imperfeito jamais deixou os guarani”.
Ainda acerca da relação com à Ywy e com a preservação do modo de
ser guarani, é importante refletir sobre o que nos diz Melià (2004, p. 18-20): “a
tierra no fue nunca un simple médio de producción económica. [...] no son sim-
plemente económicos, sino também sociopolíticos y religiosos”. A terra, neste
aspecto, aparece como uma terra viva, um processo contínuo de planificação
da reciprocidade. Melià compreende o tekoha como território tradicional gua-
rani concebida em três espaços distintos: a mata, a roça e a aldeia. Segundo
registrou este autor, a mata (grossa ou rala) é o espaço da caça, da pesca e da
coleta; a roça, o lugar do cultivo; a aldeia, o local das moradias, das festas, das
cerimônias e das reuniões (MELIÀ, 2004).
O tekoporã é outro conceito importante para a cultura guarani e pode
ser entendido também como bem viver. Considero este conceito como a busca
por condições melhores de vida, que busca ser recíproca com a natureza e com
a espiritualidade. Porém, a tekoporã é contrariada pelo modo de vida atual de
vários povos indígenas que vivem confinados em pequenas porções de terras,
sem condições concretas para viver seu bem viver.
Certamente, o viver bem está relacionado com o território e com os
processos de territorialidade e territorialização. Os guarani lutam por espaços
propícios para praticar suas culturas milenares. Viver bem é estar em constante
relação com o meio, com o território e com o lugar. Por exemplo, na kaagwy, as
árvores produzem frutos e lenha, lá estão os seres vivos desde os animais até os
espirituais. Na kaagwy tudo é maraey, tudo é sagrado. Ela é cheia de animais de
caça, de pequeno e de grande porte. É a base da vida, da sobrevivência material
e cultural. Os rios são fontes de vida, pois fornecem o alimento e trazem vida
para a comunidade.
Sobre o modo de viver no tekoha, tive a alegria de ouvir as narrativas de
Maria de Lurdes, Guarani Nhandewa de oitenta e quatro anos que, infelizmente
veio a falecer em 2019. Lurdes foi casada com o senhor Dercílio da Silva, Guarani
Nhandewa, considerado em seu tekoha como txamói (rezador). Lurdes nasceu
e cresceu no tekoha Laranjinha, narrando que na época de sua meninice (se
referindo a sua juventude), conhecera entre os indígenas quatro mulheres bem
velhinhas, e uma por nome de Raisi, tinha como costume colocar cestos (balaios)

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


268
bem grandes na cabeça4. Lurdes narra, que num certo dia bem chuvoso, Raisi
foi até seu pai pedir para que acompanhasse na colheita de pindoí (coquinho)
para fazer a bebida indígena. Segundo ela, quando encontravam o coqueiro,
subiam para cortá-lo.

[...] quando chegávamos em casa, três índias pegavam àquele


coquinho e lavava bem lavadinho. Depois tinha um pilão bem
grande de madeira, e as três começavam a socar os coquinhos
que era para fazer a “bebida do índio”. Tinha umas talhas bem
grandes que eram feitas de barro, colocavam eles ali e deixavam
dois dias guardados. Somente depois podíamos tomar. Esta era
bebida do índio, em português eu não sei o nome, mas em Guarani
Nhandewa é djaya. Meu pai dizia ser a bebida que eles tomavam, e
agora no português deve ser isso mesmo. E se tomássemos muito,
ficava bem atordoada, isso acontecia porque ela era fermentada,
era quase igual aiwa (Lurdes, T.I. Laranjinha, 2018).

Outra passagem importante narrada por dona Lurdes foi sobre a ali-
mentação tradicional. Ela conta que consumiam alimentos tirados da própria
mata, que segundo ela ajudava no desenvolvimento físico e cultural. Da mata
retiravam o ei (mel) de eiru (abelha). Servindo-se também, das caças, pescas e
frutos. Sobre o uso do fogo, contou-me como este era feito:

[...] tirávamos o fogo da pedra mesmo, mas não era qualquer tipo de
pedra; era uma pedra que tinha pelos menos uns buraquinhos, aí
pegava uma pedra como se fosse um lápis, fazia no chão, e colocava
a pedra no chão, e daí ponha aquele pau no buraquinho da pedra e
rodava ele com a mão no buraquinho, e saia o fogo, se fazia também
batendo com a outra pedra. Mas não é qualquer pedra, tem que
ser uma pedra do rio, ela parece uma lousa, e, então, você bate
uma na outra e sai faísca de fogo, aí você colocava o capim seco
assim (abaixa as mãos) e chegava perto para passar as faíscas e
fazer o fogo. Saía bastante fumaça. (Lurdes, T.I. Laranjinha, 2018).

O bem viver guarani está cada vez mais ameaçado, e estão cientes
que as terras desmatadas e desprovidas das virtudes gerativas são fracas,

4 Carregar um cesto, suspendido com uma tira na cabeça é um modo tradicional dos Guarani. Preserva a saúde
do corpo, trata-se de uma prática ligada à cosmologia e à coletividade.

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tornaram-se improdutivas para o modo de vida próprio. Segundo Dercílio,
antigamente tudo era cultivado manualmente, praticava-se a agricultura de
forma tradicional. Segundo ele, “primeiro limpava uma área do tekoha, sendo
aos poucos, tipo um ‘salaminho’ de terra, medindo uns vinte e cinco por doze
e meio de terra”. E continua dizendo que:

hoje às pessoas só falam em alqueires, dizem que possuem dez,


outros dizem ter cem alqueires. Assim falam porque são gulosos
de terra. Hoje o povo é egoísta demais, no meu tempo meu sogro
plantava usando apenas um “pauzinho”, onde amarrava uma
sacolinha na cintura e fazia uma cestinha onde eram colocadas às
sementes de arroi, kumanda e avati. Depois iam com um pauzinho
cavando e jogando as sementes, levando até uma semana para
plantar tudo (Dercílio, T.I. Laranjinha, 2018).

O teko transforma-se a partir da mudança no tekoha. Hoje, com à escassez


dos recursos naturais, com as exiguidades das áreas, das invasões dos territórios,
com a presença constante dos elementos que dificultam as práticas culturais,
econômicas, sociais, geraram alterações no modo de viver guarani. Se antes
o bem viver era estar em processo constante de harmonia e de reciprocidade
com o tekoha, atualmente tornou-se um elemento de luta e (re)existência.
Dessa forma, os guarani buscam fortalecer o tekoporã, se relacionando
com o modo de vida atual, moderno, mas, lutam para que esse modo não seja
a única via possível. Por isso, continuam reagindo contra as mudanças trazidas
pela modernização e pelo avanço do capitalismo atual, que subtraiu o bem
fundamental, a terra.
Dessa forma, também entendem que a busca pela terra sem mal yvy
marãey, e da terra perfeita yvyju miri, passou a significar outras concepções
a partir do contato constante com o mundo não indígena e com a exiguidade
das áreas que atualmente ocupam. Como anteriormente mostrado, à terra sem
mal yvy marãey é relativamente comum na bibliografia guarani, e muitos são
os clássicos que tratam do tema. Porém, essa concepção exige cuidado, pois
vivemos em um mundo de várias transformações e precisamos ressignificar
para resistir e (re)existir.

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270
A PEDAGOGIA DAS BELAS PALAVRAS

A pedagogia das belas palavras são narrativas da nossa cultura Guarani


Nhandewa, dos costumes, da espiritualidade, do nosso tekoporã. São considera-
das Belas Palavras e tratam do bom modo de ser, da educação tradicional. São
palavras narradas pelos tudjás, txamói e nandecy. As ñe’ë porã, Belas Palavras
permanecem vivas, algumas na forma escrita, outras estão no coração. Profe-
ridas, tornam-se agradáveis aos ouvidos, reestruturam o espírito. Como já dizia
Pierre Clastres (1990, p. 9), “[é a] embriaguez de sua grandeza no coração dos
homens e das mulheres que os escutam”. As Belas Palavras também são falas
sagradas, transmitidas pela oralidade e há nelas uma teoria que precisa ser
trabalhada e divulgada em nossa educação escolar.
A oralidade é um campo amplo e não está ligada apenas ao desenvol-
vimento da linguagem, ou por meio do cérebro quando pensamos, ou a boca
pela qual falamos. Essa forma de ver a oralidade é superficial. Existe a oralidade
sagrada, a linguagem dos deuses, assim como existe a linguagem de todos os
seres naturais.
O nosso corpo está povoado de linguagens, é um turbilhão de significados,
controladas por um sistema de emoções. Sentimos as emoções por meio da
vivência com os outros seres, é algo mais exterior. A oralidade surge em nosso
interior, no coração e no todo do organismo. Por isso pensamos com o coração
e sentimos com a cabeça, com o intelecto. Pensar, neste sentido, exige decifrar
e chegar onde estão as Belas Palavras.
Esta pedagogia considera a existência de uma epistemologia própria.
Possibilita refletir sobre os saberes e métodos presentes na educação tradi-
cional guarani, reconhecendo que temos muito o que aprender com os mais
velhos e com a natureza.
A busca pelas Belas Palavras exige reciprocidade, um valor que existe
por meio da espiritualidade e da crença de alcançar à terra sem males — yvy
marãey, uma terra sem dor, sem fome e sofrimento. Como já mencionando
anteriormente, cresci ouvindo que para alcançá-la seria preciso caminhar pelo
nhandé rovai (nossa frente), rumo ao sol nascente. Essa direção aponta um
lugar perfeito, onde tudo se produz com abundância.

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Para alcançar essa terra sem males seria preciso caminhar com retidão,
respeitar a natureza e saber ouvir os conselhos dos mais velhos, pois são os
conhecedores e os guardiões das belas palavras. Aprendi desde criança que na
nossa cultura Guarani Nhadewa ninguém nasce pronto, inclusive os rezadores;
não se aprende nada sozinho, e não se alcança as Belas Palavras sem ter um
guia espiritual.
As Belas Palavras não são dirigidas apenas às divindades; são também
dirigidas à educação das crianças e dos jovens. Elas me foram reveladas ainda
criança, quando aprendi os cantos, as danças, as profecias de origem e destrui-
ção do mundo. Eram verdadeiros testemunhos de uma espiritualidade vivida
intensamente. Para mim, é a nossa educação tradicional, é da nossa riquíssima
Pedagogia Guarani. Uma educação que ensina aprender e reaprender; um
sistema próprio de ensino aprendizagem. Ouvir os mais velhos é de extrema
fecundidade, suas belas palavras e testemunhos são como feto que se formou
e exige acabamento. E, de fato não há um acabamento, pois somos herdeiros,
e o nosso dever enquanto guarani é mantê-las vivas.
É uma pedagogia que aponta caminhos, que busca encontrar espaços
entre os discursos que se dizem únicos. Ter isso em conta é importante para
lutarmos contra uma única forma de pensar, contra o dito saber universal, que
se considera superior ou o racional. Isso porque temos os nossos próprios
modos de pensar, agir e sentir, ou seja, o jeito guarani de ser, de produzir, de
aprender e ensinar, de viver.
Tive a alegria de ouvir as narrativas de Maria de Lurdes sobre a educação
Guarani Nhandewa. Seu ry (pai) era Kaingang, e sua isy (mãe) Guarani Nhan-
dewa. Como não havia planejado um questionário com perguntas específicas,
busquei escutar desde uma perspectiva guarani e fui surpreendido por várias
narrativas. Lurdes começou falando sobre sua infância e como foi sua experiência
na ninboeaty, expressão da nossa língua que denomina a escola. Segundo ela,
a educação tradicional Guarani Nhandewa passava dos pais para os filhos, e
todos eram ensinados no modo de vida ancestral. Se um filho fosse menino,
era levado para pescar e caçar, aprendia a fazer o mondéo e outras armadilhas.
Dercílio da Silva, esposo de dona Lurdes, narrando sobre a educação
tradicional, explicou-me que os pais educavam seus filhos da seguinte forma:

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


272
quando os índios mais velhos estavam conversando, as crianças
e os jovens que estavam brincando não podiam passar correndo
no meio dos mais velhos. Se isso acontecesse, os pais só davam
uma olhadinha, e as crianças já não passavam mais, isso era um
respeito que existia no meio de nós Guarani, mas hoje em dia não
é mais assim (Dercílio, T.I. Laranjinha, 2018).

A educação Guarani Nhandewa é praticada em todos os momentos da


vida e em todos os espaços de um tekoha. Ela vai além do ensino das técnicas
do conhecimento escolar, visto que é cultural e espiritual. Sobre a mudança na
educação tradicional Guarani Nhandewa, Dercílio comenta que:

não adianta o jovem dizer: eu tenho estudo, eu fiz uma faculdade,


eu estudei para ser doutor e para ser médico, e não ter educação
com os mais velhos. Antigamente não era assim, era pouco estudo,
mas tínhamos muita educação. Eu mesmo só fiz a primeira série e
não sei nada do branco até hoje. Eu já estou com setenta e cinco
anos, mas graças à Nhanderu eu me sinto com um grande respeito
e com amor pelos outros, hoje eu sou avô de quarenta e um netos
mearirõ e vários bisnetos (Dercílio, T.I. Laranjinha, 2018).

A educação tradicional mostrada por Dercílio é uma prática que acon-


tece no cotidiano. Sobre a educação tradicional Guarani, Sebastião, fez o
seguinte relato:

A minha vida hoje é ensinar essas crianças, pois minha vida é fazer
isso aí. Eu falo para essas crianças como que surge um cacique, eu
falo não é assim, eu quero ser um cacique, quem vai ver se você
serve para ser um cacique, não é a liderança. Eu comentei com
as crianças esses dias sobre as meninas que nós temos aqui, e
disse: [...] olha, você tem sua irmã, tem sua irmãzinha né? Então,
acredito que nenhum de vocês quer que alguém faça mal para ela,
então vocês têm que ter respeito com essas meninas e também
na sua casa com sua família e com todos [...]. Assim começa um
líder, um líder começa aqui, ele não é aquele que tem a razão em
tudo que fala - comentei muito com eles. O cacique ou um líder
indígena tem que ter muita responsabilidade, ele pode errar e
nem entender, mas conforme o tempo, se ele for um líder desde
criança, aí ele vai entender bem durante os quarenta ou cinquenta
anos, vamos dizer que ele ficou com aquilo dali guardado e fizeram
uma briga, e um dos dois chega aqui primeiro e diz: “Tião aquele
fez isso para mim”, eu pergunto por qual motivo? Então, eu digo

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para ele: “olha aqui! Isso aconteceu por minha causa”. Então eles
jogam a culpa em mim e daqui a pouco vem o outro lá e diz: “não
Tião, não foi assim não, aí eu digo — já falei para ele que o culpado
sou eu e vocês dois não tem nada não, e não quero que vocês dois
briguem, o culpado de tudo sou eu e amanhã eu vou conversar
com vocês por que fizeram isso”. Assim aquele momento de raiva
acaba. Agora se eu chegar e disser vamos acertar com vocês dois,
eu vi que você foi o errado, talvez ele esteja certo, aí o outro vai
falar — me livrei, esse outro vai ficar nervoso e irá brigar de novo, e
de repente a família dele ficará contra mim, e vão dizer não, àquele
está errado, e se eu de uma paulada nele, ainda que não estejam
certos vão querer descontar. Tudo que acontece aqui, muitas vezes
é por falha da autoridade, culpa minha. Eu sempre falo para eles
que o cacique nunca pode deixar de ser organizado, para ser um
cacique devemos fazer assim (Sebastião, T.I. Pinhalzinho, 2018).

Ser Guarani nos dias de hoje é um desafio, pois a modernidade trouxe


muitos problemas, como mudanças na economia, na sociedade e nas relações
sociais, atingindo também a educação tradicional. Por isso as lideranças mais
velhas da comunidade buscam na história, nos preceitos culturais, na ances-
tralidade, os valores da educação. São eles os conhecedores da pedagogia
guarani, que tem inspiração nas belas palavras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Pedagogia das Belas Palavras tem como compromisso produzir conhe-


cimentos, que tem como suporte as epistemes indígenas (neste caso do povo
Guarani Nhandewa), colaborando na construção de metodologias que valorizem
as diversas formas de se produzir conhecimentos, originados e desenvolvidos
em culturas e cosmovisões outras. Seu objetivo, como foi visto, é descolonizar o
pensamento idealizado sobre o modo de ser dos povos indígenas; desconstruir
o pensamento genérico e estereotipado para compreender as singularidades
de suas culturas e dos processos próprios de ensino aprendizagem, de seus
contextos, e de suas tradições ressignificadas.
Desse modo, podemos contribuir para a construção de subsídios teóricos
que ajudem a compreender a educação tradicional guarani e a organização de
suas escolas de acordo com seus contextos, bem como construir pedagogias
específicas e diferenciadas. É importante ressaltar, que compreender os processos

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


274
próprios de ensino e aprendizagem, aproxima o diálogo com os conhecimentos
tradicionais (BENITES, 2014).
A pedagogia das Belas Palavras, é uma pedagogia própria Guarani Nhan-
dewa, é o jeito de educar e produzir conhecimento a partir dos seus processos
próprios de aprendizagem, das visões de mundo, linguagens, espiritualidade,
a relação com os elementos da natureza, o respeito pelos tudjás. São concep-
ções que dialogam com a oralidade dos tudjás, fundamental para a educação
tradicional e a educação escolar guarani.
A metodologia colaborativa e a roda de conversa usada na produção de
conhecimento da Pedagogia das Belas palavras, ressignifica a nossa relação
com o verdadeiro modo de ser Guarani. Traz, através das narrativas dos tudjás,
aspectos da nossa cultura, da nossa língua e da nossa espiritualidade, que
são palavras sagradas, verdadeiras, que revelam um mundo diferente do qual
conhecemos. A Pedagogia das Belas Palavras aflora na medida que vamos
ouvindo os mais velhos (BENITES, 2014). Dessa forma, é uma pedagogia que
propõe uma teoria que seja, em simultâneo, uma epistemologia decolonial, para
que todos possam participar ativamente do diálogo intercultural.
É valido dizer que o primeiro contato que os não indígenas têm com a
educação guarani tem se dado através de autores não indígenas, que mostram
uma pequena parte dos nossos saberes, dos nossos conhecimentos, da nossa
ontologia e filosofia. Pouco se discute sobre as potencialidades que estes sabe-
res e conhecimentos oferecem diante dos problemas e desafios desse mundo
voraz, que vem impondo sobre os espíritos uma cultura de destruição (SANTOS,
2011). Dessa forma, sua compreensão é necessária, pois negar à existência dos
povos indígenas com suas culturas e com os seus conhecimentos, é ter uma
visão limitada e colonizadora do mundo e da sociedade.
Nesse sentido, é de suma importância desencobrir essa dimensão de
mundo encoberta pelas teorias ocidentais e desenvolver metodologias que
permitam apresentar um novo olhar para a nossa ciência, a ciência guarani,
percebendo-a como parte do processo próprio de produção de conhecimento.
Além disso, faz-se necessário avançar para além das fronteiras do conheci-
mento canonizado pela escola, pois a ambição da Pedagogia das Belas Pala-
vras é desenvolver estudos sobre temas correlatos ao Tekoporã, para serem
trabalhados em nossas escolas. Contudo, é importante dizer que ainda somos

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275
subalternizados pelas teorias de dominação e colonização, pois há um conhe-
cimento hegemônico/eurocêntrico que pouco dialoga com as outras formas de
produção de conhecimento. A proposta é o diálogo que considere diferentes
conhecimentos e diferentes pedagogias para fortalecer e enriquecer as pes-
quisas, as compreensões e as práticas de Educação.

REFERÊNCIAS
BENITES, Eliel. Oguata pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção
da educação escolar indígena da reserva indígena Te’ýikue. Dissertação de Mestrado em Educação.
Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2014.

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2013, p. 53-71.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


276
14

THE ROLE OF THE UNITED STATES OF


AMERICA IN THE NADIR OF THE
INTERNATIONAL LIBERAL ORDER

André Mendes Pini


Universidade de Brasília (UNB)

Guilherme Fenício Alves Macedo


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

10.37885/231014610
ABSTRACT

The International Liberal Order (ILO) is the subject of an ongoing debate on


whether it is likely to collapse or endure. This article identifies gaps in this debate
and makes the case that U.S. foreign policy played a significant role in under-
mining the ILO. Therefore, based on postcolonialism perspective, we intend to
study this narrative construction with particular focus on three main issues: first,
the failure in Doha Development Agenda (DDA); secondly, the Global War on
Terror (GWT); and the Kyoto Protocol refusal. We conclude that, over the past
decades, ILO maintenance has relied on northern hegemony over the global
south, which can be observed through the United States foreign policy beha-
vior in multilateral trade, security and global environmental agendas. It argues
that the establishment of legitimized practices that dented core ILO values
and institutions.

Keywords: International Liberal Order, Global War on Terror, International


Institutions, Human Rights, Democracy.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


278
INTRODUCTION

From Westphalia to the Cold War, International Orders have risen and
fallen and with the birth and reinvention of rules, institutions, actors and power.
Over the last century, and in special after the II World War there is an expansion
of a International Liberal Order built based on “open and rule-based relations
among states” (IKENBERRY, 2011, p. 11). The construction of this order has largely
been shaped and influenced by the United States (U.S.).
As a dominant superpower, the U.S devised the international order as
a mirror of its own liberal values, which Ikenberry (2011, p. 04) defines as “not
just a collection of liberal democratic states but an international mutual-aid
society — a sort of global political club that provides members with tools for
economic and political advancement”. Hence, the principles, norms and rules
which settled the path for States and other international agents to interact with
each other in an orderly fashion were established by the ILO.
Daniel Deudney and John Ikenberry (1999) defined the major structures,
institutions and practices of what they conceptualized as the International Libe-
ral Order (DEUDNEY; IKENBERRY, 1999). Thus, the ILO is the set of collective
norms, rules and institutions regarding international security, trade and political
arrangements, which represents the “great American accomplishment of the
twentieth century” (IKENBERRY, 2017, p. 03) and the real possibility of engaging
international trade, economy and security in a collective sense in the aftermath
of the Second World War.
The International Monetary Fund (IMF), World Bank, World Trade Orga-
nization (as an enhancement from the GATT), the Organization for Economic
Co-operation and Development (OECD), the United Nation (UN) and the European
Union (EU) comprise a “loose array of multilateral institutions” (NYE JR, 2017,
p.03), which are the material manifestation of the ILO and which John Ruggie
(1982) would define as “embedded liberalism”.
Brands Hal (2016, p. 03) defines the International Liberal Order as “the
body of rules, norms, and institutions which govern relations among the key
players in the international environment”. According to Brands (2016), the
ILO can be broadly characterized by liberal norms and values, which includes
economic liberalism – represented by free trade and open markets – political

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liberalism – in the form of representative government and human rights – and
liberal concepts, such as self-determination, nonaggression, peaceful settlement
of disputes and the rule of law.
According to Deudney and Ikenberry (1999), “Distinctive features mark
postwar liberal order: co-binding security institutions, penetrated American
hegemony, semi-sovereign great powers, economic openness, and civic iden-
tity” (DEUDNEY & IKENBERRY, 1999, p. 179). They defined these “multifaceted
and interlocking features” as the main drivers of the liberal international order
durability and significance. Nye Jr (2017, p. 04) suggests the ILO became indeed
a cornerstone of the U.S. foreign policy by asserting “that defending, deepening,
and extending this system has been and continues to be the central task of U.S.
foreign policy” as it demonstrated success in securing and stabilizing the world.
As the ILO is deeply rooted in Washington’s foreign policy, there are those
who associate Trump’s unwillingness in maintaining the U.S. as the champion
of the ILO with the demise of the entire liberal order. In this sense, those who
agree with this idea advocate the rise of non-liberal and non-Western countries
as prone to undermine the ILO. Moreover, academics and pundits are also
concerned about the rise of populism and nationalism in the core of the ILO as
a key aspect of its nadir as well. On the other hand, there are those who argue
the ILO is deeply entrenched in the international environment being likely to
resist the ongoing crisis. Nevertheless, few people associate a possible demise
of the ILO as being related to American foreign policy itself prior to the Trump
administration.
This article identifies gaps in this debate and makes the case that U.S.
foreign policy played a significant role in undermining the ILO. Therefore, based
on postcolonialism theory, we intend to study this narrative construction with
particular focus on three main issues: first, the failure in Doha Development
Agenda (DDA); secondly, the Global War on Terror (GWT); and the Kyoto Pro-
tocol refusal. Those agendas represent the core of the ILO due to the extensive
impact that poses in the world order and international development.
The first part of this article presents a short evolution of the international
economic agreements under the ILO from the General Agreement on Tariffs
and Trade (GATT) to the Doha negotiations. Also presents the hegemonic
influence exerted by the U.S. and the effects in the underdeveloped countries.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


280
The second part highlights the fundamental changes in the ILO after the Global
War on Terror with emphasis in the fundamental shifts between presidential
administrations. The last part of this article highlights the refusal of the Kyoto
protocol and the lost opportunity of the U.S. to continue as an hegemonic lider
in the promotion of the ILO.

THE DOHA DEVELOPMENT AGENDA (DDA)

Since the advent of the GATT, the multilateral trading system evolution has
been closely related to the U.S. spread of the International Liberal Order (ILO)
during the bipolar dynamics (IKENBERRY, 2011). Thus, in light of this dichotomy
setting between the predominant socioeconomic models, Washington’s initiati-
ves in the economic and commercial fields with the purpose of safeguarding its
influence area through ILO’s values (SARAIVA, 2001). In the meantime, its new
doctrines, plans and institutions have supposed that underdeveloped countries
should abandon their protectionist politics in specific trade sectors in order to
condition themselves to trade liberalization (RÊGO, 1996).
After the eight negotiation rounds between the contracting parties in GATT,
the World Trade Organization (WTO) emergence has opened a new stage for
global interdependence, it corresponds to a framework of expanding countries’
rights and duties in international trade (KEOHANE, MILNER, 1996). In this regard,
after Uruguay Round, it has been stated that numerous concessions have been
taken in terms of access and market conditions through the reduction of tariff
barriers and the suspension of non-tariff barriers (RÊGO, 1996). In this view,
the commitments made by developed and underdeveloped countries have
been characterised by their different degrees of adaptation to the new rules of
international trade (QUIJANO, 2002).
During the period of commercial expansion in the 1990’s, the U.S.’ approach
has been predicated on narrative construction of trade protectionism. This nar-
rative has been closely tied to the reduction of the welfare of national political
communities, as an example the episodes of trade wars that have preceded,
increased and reflected the effects caused by international conflicts (CERVO,
2000). In reference to this narrative construction, the liberal stance sustained by
the U.S. may be perceived as dissonant behavior when it faces the protectionist

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principles and values that have structured the development model throughout
its own economic history (KRUGMAN, OBSTFELD, 2005).
Despite eight years of negotiations, the Uruguay Round was concluded
prematurely in 1994 even in the light of outstanding issues and barriers bet-
ween developed and developing countries (BHANDARI, KLAPHAKE, 2011).
Hence, the reconditioning of the multilateral trading system has undeniably
involved the re-adaptation of states’ trade practices, which have reflected later
in political-institutional (in)convergence between domestic actors towards the
internationalization of issues related to specific sectoral interests (LIMA, MEN-
DONÇA, 2013). For this, the greater predictability of international trade shocks
and variations has resulted, particularly, in a reduction in national governments’
degree of freedom to formulate protectionist policies (KEOHANE, MILNER, 1996).
Afterward, the WTO’s new ministerial conference took place in Doha in
February 2001 and inaugurated a new round of negotiations on issues of trade
in goods, services and intellectual property rights. Thereby, in respect of U.S.
behaviour during the Bush administration, the negotiations on the agenda have
not achieved joint decisions as expected by the Executive. It corresponds to
its set of exemptions clauses and derrogations. Hence, according to Bhandari
and Klaphake (2011, p. 82), Washington’s main objectives have been (i) to pro-
vide strong global leadership in international trade and investment; (ii) create
new opportunities for U.S. farmers, ranchers, manufacturers,service providers,
workers, and consumers; (iii) and exponentially expand its exports through the
trade liberalization conditions of other states.
In the light of these objectives, after the approval of the congress for its
Trade Promotion Authority (TPA),

The Bush administration led efforts throughout the Doha Round


Negotiations to achieve an ambitious, comprehensive, and balanced
agreement. However, at the same time, the Bush administration
engaged in expanding bilateral trading regimes, securing 17 Free
Trade Area Agreements (FTAs) in force, up from 3 FTAs when
President Bush had come into power (BHANDARI, KLAPHAKE,
2011, p. 82).

In spite of this, Chang (2004) argues that the U.S. idea of free trade as
fair trade is underpinned by the goal of expanding its degree of commercial

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


282
penetration among the structural and competitive inequalities of the Southern
Global states. In addition to this perception, Molineaux (2001) says that the
success of U.S. foreign economic policy throughout the 20th century is also
associated with the convergence and broad consensus periods between Con-
gress and the Executive, allowing the government to figure as a global leader in
the multilateral trading system. The congressional-executive agreements have
conferred benefits on American prominence, even though there have also been
political and institutional obstacles to Washington’s stance on the trade agenda
over the late decades of the 20th century, such as the

absence of serious discussions for a WTO Millennium Round, no


incorporation of Chile into the NAFTA, no Free Trade Agreement
of the Americas (FTAA) nor any credible negotiations within
Asia Pacific Economic Cooperation (APEC). As the failure of the
OECD Shipbuilding Subsidies Agreement has proved all too well
(MOLINEAUX, 2001, p. 37).

As Molineaux (2001) states, the evolution of the multilateral trade system


has been concurrent with the shades of U.S. economic foreign policy, which
have been based on unfair trade mechanisms as crucial standards of this widely
agreed trade system over the 1930’s and 1970’s. Subsequently, after Uruguay
Round, the division of power within the federalism sphere has reacted to broad
globalization through political parties, also in support of greater accountability
in policy trade decisions (BURTLESS, LAWRENCE, LITAN, SHAPIRO, 2010).
Throughout the Obama’s administration, some major trade agreements
have been revised because they also relate to job losses and the undercutting
of specific national products. After the 2008 crisis, the trade policy assumed the
notion that international trade should “strengthen the American economy” and
create more jobs nationally. As result of this perception, the trade policy (2009)
began to consider the effects of agreements on labor and environmental issues
and took a more assertive stance at the WTO’s negotiations due to the unfair
conditions for promoting exports by underdeveloped countries (BHANDARI,
KLAPHAKE, 2011).
Washington’s new trade policy affected the course of the Doha Round
negotiations, which has reflected the abandonment of the vision of fair trade
outside the values of free trade that integrate the ILO. As a consequence, this

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283
change has meant that U.S. trade policy no longer relies solely on expanding
domestic exports. Due to this neo-protectionist revision, the new U.S.’ narrative
in the multilateral trading system has engaged in the defense of the three mea-
sures of fair trade: social, environmental and political accountability (BHANDARI,
KLAPHAKE, 2011).
The shift in U.S. trade policy stance between Bush and Obama has shown
the breakdown of the trade liberalization narrative to be worsening, which has
been sustained as a vector of expansion of Washington’s bargaining power
since the advent of the multilateral trading system (LIMA, MENDONÇA, 2013).
Concerning the ILO’s decline in the trade agenda, Obama’s administration

has introduced new concepts that were more U.S. centric than
facilitating the rules based international trading system. For example,
it introduced a policy to help small and medium-sized U.S. firms
respond to competitive imports from across the globe and help
them to become effective exporters. Trade Policy 2009 observes
that trade would be more beneficial for the world, and fairer for
everyone, if it would respect the basic rights of workers. For that
reason, the TP 2009 aims to incorporate labor provisions in trade
agreements (BHANDARI, KLAPHAKE, 2011, p. 75).

By virtue of the course of fair trade discourse and China’s rise in the
multilateral system, WTO negotiations under the Trump government have
been marked by an openly mercantilist stance towards the adverse effects of
“hyperglobalization”. Therefore, the assertiveness of the socioeconomic agents
and of an expressive part of the Congress has been in line with the restoration
of Executive’s protective policies, in view of the narrative of the asymmetrical
distribution that has been generated by international competition. Regarding the
integration in the global economy, the “new” U.S.’ trade policy in DDA has been
based on the realistic perspective of International Political Economy (IPE), which
is diametrically opposed to the ILO’s trade agenda perception (MENDONÇA,
THOMAZ, LIMA, VIGEVANI, 2019). This perception assumes that the dynamics
of International Trade presupposes the eminence of

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


284
zero sum games, interdependence as vulnerability, national industrial
production as power attribute. Thus, free trade and liberalization
agreements only matter as long as they bring advantages, in the
present case, improve the trade balance of manufacturing, and
guarantee a strategic accumulation with immediate repercussions
in terms of maintaining supremacy in the areas of technology and
security. (MENDONÇA, THOMAZ, LIMA, VIGEVANI, 2019, p. 109).

According to Mendonça, Thomaz, Lima and Vigevani (2019), Trump’s


trade policy should not be considered a complete disruption in the multilateral
system. However, the current U.S. framework may be considered as a period
of softening ILO values and standards in the trade agenda. Furthermore, the
reinforcement of neo-protectionism in U.S. trade policy discourse

seeks to reform commercial relations and the distribution of gains,


and intends to recover the economic losses, especially the strategic
leadership, which they claim to have lost at some point in the past.
This argument may seem counterintuitive. After all, one cannot
ignore the new government’s harsh discourse against the United
States’ trade deficit, the “multilateral trade rules,” which would
not be compatible with U.S. authority and unfair trade status..
(MENDONÇA, THOMAZ, LIMA, VIGEVANI, 2019, p. 109)

In reference to trade wars’ effect on DDA, Destler (2005) he argues that


the U.S.’ assertive unilateralism is consistent with the use of trade policy as a
tool for disseminating the heterodox norms and principles of its external policy.
Accordingly, the current U.S.’ stance in trade agenda can also be perceived
as a reflection of the interests of specific political coalitions, economic groups
and sectors at the domestic level, which claim to have been highly affected by
external competition ; MOLINEAUX, 2001).
Through Destler’s (2005) perspective, the decline of ILO values and prin-
ciples in U.S.’ trade policy may also be noticed through the distribution of power
among the bureaucracies that make up the Executive, as well as its relations with
Congress on the WTO negotiations. Therefore, this disruption may be noticed
through the institutional reforms adopted during Trump’s administration, as
well as the neo protectionism and mercantilism bias of policy makers inherent
in the decision making process (SOLOMON, 2018).

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285
THE GLOBAL WAR ON TERROR

The United States consistently supported the ILO over the past seven
decades, which led to the continuous growth and advance of it. As the Second
World War came to an end, the U.S. and its allies devised a political, economic,
and strategic order overtly conceived as a solution to the systemic conundrum
which led to the catastrophic early twentieth century (DEUDNEY; IKENBERRY,
1999). The U.S. championed the liberal project worldwide and engaged it in the
core of its interests both domestically and abroad, thus “Washington has made
the creation and advancement of a liberal international order the core, overriding
objective of its statecraft” (BRANDS, 2016, p. 05).
As Ikenberry (2011, p. 03) notes, “the United States engaged in the most
ambitious and far-reaching liberal order building the world had yet seen”. Although
American policy makers engaged themselves in distinct levels of commitment
to promoting the ILO, a slight consensus became clear during the past seven
decades that American interests and agendas were best served by an inter-
national environment compliant with its domestic ideals. Monten (2005, p. 08)
adds, “U.S. nationalism has historically been defined in terms of both adherence
to a set of liberal, universal political ideals and a perceived obligation to spread
those norms internationally”.
Over the Cold War period, the global agenda shifted periodically, but the
security of the West and its allies has always been the main subject of concern
in Washington. U.S. foreign policy relied on deterrence strategies to deal with
the threat the USSR posed not only to its existence as a nation but also to the
incipient liberal order. The demise of the USSR and the end of the Cold War
thereafter consolidated the American project as the sole possibility of engage-
ment in international affairs.
The relative stability in the second half of the twentieth century has
been credited to the spill-over effect of the ILO, which provided the incentives
for the former Soviet Republics as well as the Popular Republic of China and
most of other potential illiberal States to accommodate themselves to the ILO
as well. Nevertheless, Deudney and Ikenberry (1999) suggests it was only until
the demise of the USSR that the ILO became truly embedded worldwide, even
though the U.S championed it since the 50s.

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


286
The era of liberal dominance had been under way for roughly a decade when
George W. Bush took office (BRANDS, 2016). Since the end of the Cold War, U.S.
grand strategy focused in dissuading the rise of a hostile rival and denying the
so-called rogue states access to mass destructive weapons. Moreover, it focused
as well on reinforcing the ILO cornerstones, such as democracy, globalization,
market capitalism and free trade (BIDDLE, FEAVER, 2015). Nevertheless, the
Bush administration faced a severe challenge when confronted with the events
of September 11, which deeply altered the rationale of the U.S. government.
Terrorism indeed proved to be a main concern after September 11 and
policy makers elevated it as a top priority as they grafted it onto U.S. grand stra-
tegy. The terrorist menace suddenly became an existential threat to Washington,
elevating it not only as a geopolitical clash, but rather as “a dialectic struggle
between good and evil” (LINDSAY, 2011). Thus, in the immediate aftermath of
September 11, George W. Bush displayed the so-called “Global War on Terror”
as the U.S. response to those events, which would become the most profound
conflict the U.S. would engage since the Cold War (JACKSON, 2015).
At first glance, the GWT seemed to reinforce Washington’s international
liberal principles, as the 2002 National Security Strategy displayed:

“In the twenty-first century, only nations that share a commitment


to protecting basic human rights and guaranteeing political and
economic freedom will be able to unleash the potential of their
people and assure their future prosperity. […]We will defend the
peace by fighting terrorists and tyrants. We will extend the peace
by encouraging free and open societies on every continent. […]
U.S. power is the sole pillar upholding a liberal world order that is
conducive to the principles we believe in.” (WHITE HOUSE, 2002).

Nevertheless, a further read of the document published by the White


House demonstrated the means Bush would seek to reinforce the liberal order
would be fundamentally through its hard power. Bush’s enterprise rested on
the assumption that America’s global military dominance was the sole option
available to fight terrorism in a global scale, and anyone but the U.S. had the
ability to take that fight overseas (Lindsay, 2011).
Through a carefully built narrative, Washington successfully devised a
newsocial reality in which terrorism figured as the evilest entity the West ever

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faced and the only reasonable response to it would be the GWT. Through this
discourse, the U.S. legitimized the counter-terrorist approach they chose and
empowered their authorities to pursue any means necessary to achieve their
goal of winning an alleged “just war” (JACKSON, 2005).
Although the GWT seemed to be incorporated without the need of down-
grading any of the prior issues of Washington’s grand strategy, eventually it
became clear it significantly contradicted some of its previous concepts. Moreo-
ver, Bush’s project aimed at developing a “New World Order”, which was clearly
meant to substitute the set of rules and values related with the traditional ILO.
During the Obama administration, the International Liberal Order seemed
to be brought back to the core of U.S. engagement with the world. Obama’s
progressive agenda set the U.S back on the track of the liberal order as he
managed to rebuild the U.S. image as the champion of the Western world, which
was explicit in his 2015 National Security Strategy commitment with U.S.’s obli-
gations to reinforce “the rules, norms and institutions that are the foundation
for peace, security and prosperity”. However, during his tenure as President, the
GWT remained a high priority in the U.S. agenda, and the state of exception it
generated kept its influence.
When Obama took office, he inherited the U.S. public disillusionment
over Bush’s worldview as the U.S. was swamped in two everlasting wars in Iraq
and Afghanistan. Accordingly, the U.S. foreign policy under the Democrat’s rule
focused on renewing American leadership by establishing partnerships through
diplomatic engagement, and the GWT was key in succeeding on this strategy.
While the Obama administration pledged to reintroduce international liberal
principles in the U.S. set of priorities, the GWT remained important, although
it shifted on its methods and tactics. After Obama’s tenure was over, pundits
demonstrated skepticism about how much he had altered the Bush adminis-
tration’s policies on countering terrorism (AMERICAN CIVIL RIGHTS UNION,
2011). The GWT under Obama indeed became less robust, but it still played a
significant role in undermining liberal principles. Nonetheless, the ILO seemed
to be thriving under the Democrats rule, not only until the victory of Donald
Trump, which exposed the resentment of American citizens with liberal principles.
The Trump administration seems willing to amend on their own terms
the ILO. Mead (2017 p. 04) addresses a key argument on the impact of Trump’s

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


288
election in terms of the United States’ political conjecture by stating “For the first
time in 70 years, the American people have elected a president who disparages
the policies, ideas, and institutions at the heart of postwar US foreign policy”.
One could argue that the maintenance of the ILO does not depend solely
on US policies. Ikenberry (2011, p. 04), for instance, writes, “[…] as wealth and
power become less concentrated in the United States’ hands, the country will
be less able to shape world politics”. Likewise, Buzan (2012, p. 06) points out:
“Continued US leadership is neither necessary nor, arguably, desirable to keep
the world order from falling into 1930s-style imperial competition”. This is extre-
mely meaningful when one adds to the equation economic factors. Brands (2016,
p. 04) points out that the share of wealth represented by the US and its liberal
partners has meaningfully receded since 2004, “raising additional concerns
about whether the supporters of the liberal order still possess the vigor nee-
ded to sustain and advance that order”. Even though the United States played
a key role in developing and molding international institutions, according to
their principles and traditions, a new guideline is leading the US on the way to
an introverted stance before international commitments, which poses a clear
threat to the continuity of the liberal order itself.
Differently from Bush, though, who shifted U.S. priorities towards revo-
king liberal principles as a reaction to the events of September 11 and gathered
popular support among the general climate of resentment and astonishment,
Trump won the election by promising to resort to illiberal measures and alle-
gedly “Make America Great Again”. Washington’s historic traditions outlining
the promotion of concepts such as human rights, the rule of law and free trade,
are under the scrutiny of the American population, whose disappointment is
leading the US towards revisionism (MEAD, 2017). As Buzan (2012) stated, “It is
interesting to note how many commentators on US politics make the point that
the US is more likely to be driven out of its superpower status by the unwillingness
of its citizens to support the role than by the rise of any external challenger”.
As Donald Trump has argued that the costs of maintaining the global
order outweigh its benefits, his foreign policy tends to resort to parochialism.
Accordingly, one can conclude that Trump’s policies bear the potential of
tarnishing the liberal world order and jeopardizing positive outcomes from
the ILO, while it seems to have the support of a substantial percentage of the

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American population. However, the key argument here is that the permanent
exceptionalism underpinned by Bush and carried along by Obama through the
GWT is fundamentally incompatible with liberal principles. Therefore, despite
contemporary discussion that the ILO may be dented in the wake of Trump’s
election, the conclusion presented in this article is that the U.S. foreign policy
bears responsibility in undermining the ILO prior to the election of Donald Trump.

THE KYOTO PROTOCOL REFUSAL

Based on the writings of Ikenberry (2011) concerning interdependence


and functional cooperation at the ILO, the international climate change regime
has been an important point for the analysis of the United States’ role in inter-
national institutions. Hence, as Turner, Pearce and Bateman (1993) argues, the
environmental movements emerged in the mid-19th century due to the abrupt
effects of the industrial revolution. Subsequently, these movements have expan-
ded due to the environmental damage intensified by the advent of world wars
(HOPPE, ALVIM, KETZER, SOUSA, 2011).
Over the period 1960-1970s, the growing domestic pressures have urged
the United States to gradually adapt to the crucial issues on the environmental
agenda. This gradual adaptation has also been associated with the efforts of
the scientific community on environmental issues, especially U.S’ universities,
following the example of studies on alternative development conditions. In this
sense, the creation and diffusion of norms, rules, behaviors and decision-making
procedures in environmental issues became even more necessary in the face
of the adverse effects of the traditional economic growth model: demographic
boom, unbridled pollution and depletion of the natural resources (MEADOWS,
MEADOWS, BEHRENS, RANDERS 1974).
Accordingly, the creation of the United Nations Environment Programme
(UNEP) at the Stockholm Conference, in 1972, has marked the direction the envi-
ronmental agenda had taken at the ILO, thus resulting in the set of fundamental
principles and international commitment recently adopted by the U.S’. Moreover,
the effects of the oil shocks in this time have resulted in the unprecedented
desire of the northern capitalist countries for new forms of technology with the
objective of diversifying their energy matrices. Hence, the new international

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


290
regime has also provided guidelines for technical and financial cooperation
between developed and developing countries for the management of environ-
mental resources (HOPPE, ALVIM, KETZER, SOUSA, 2011).

The new U.S. narrative construction has been based on the idea
of environmental resources as global public goods through a
transnational view, which has assumed such political and strategic
value over the Cold War (GRASSO, 2013). On account of that,
The U.S. has taken a decisive stance in terms of promoting and
expanding the international climate change regime in the 1980s,
especially since the Vienna Convention in 1985. For this reason,
the debate on the environment has been shaped from a human
safety perspective of prevention as a consequence of the harmful
effects related to the increasing industrial competitiveness of
developing countries, as well as due to environmental accidents
in second and third world countries (GRASSO, 2013).

According to Viola (2002, p. 04),


The United States, under Bush’s new presidency, has taken a leading role
in the negotiations that led to the formation of the Intergovernmental Panel on
Climate Change (IPCC) and the convening of UNCED in 1989. During the 1988
election campaign, Bush had distanced himself from Reagan, claiming that
global warming would be one of his government’s top priorities. There was an
internal dispute between two factions of the government: the globalists, led
by William Reilly, director of the Environmental Protection Agency (equivalent
to the post of minister of the environment), and the conservatives, led by John
Sununu, head of the Civil House. From mid-1988 (the hottest summer of the
century in the country) to July 1990, the issue of global warming occupied a
prominent position in all public opinion polls.
In the first mid-1990s, the new directions of international politics have
focused on the demand for more concrete and effective international commit-
ments on the issue of climate change (HOPPE, ALVIM, KETZER, SOUSA, 2011).
Thereby, The following part of President W. Bush’s speech at the 46th session
of the United Nations General Assembly presents constructions of meaning that
are close to the new U.S.’ perception of the environmental agenda in ILO conso-
lidation: “global and local environmental threats that demand that sustainable

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development become a part of the lives of people all around the world (UNITED
NATIONS, 1992, p. 07).
Therefore, in 1992, the United Nations Conference on Environment and
Development (ECO-92) reconfigured the vision of States on specific topics of
the environmental agenda, such as the protection of biodiversity, sustainable
development, pollution of the waters and, above all, the emission of greenhouse
gases — carbon dioxide (CO2), methane (CH4), nitrous oxide (N2O) and chlo-
rofluorocarbon (CFC) (ANDRADE, COSTA, 2008). After the Second Conference
of the Parties (COP-2), the international climate change regime has remained
in line with other ILO core pillars, which reflected the growing participation of
civil society and the expansion of political engagement in international forums
(HOPPE, ALVIM, KETZER, SOUSA, 2001).
After the collapse of the Soviet Union, the United States’ stance has
adapted to the new international system configuration, which has also been
characterized by the framework of hemispheric dependence (NYE, 2002).
Then, even in the 1990s, the UN negotiations emphasized the importance of
sustainable development indicators for the global economy in terms of adap-
ting to the standards expected from the trend of trade liberalization and social
welfare. Therefore, in 1997, the International Community signature of the Kyoto
Protocol — including the United States — has set new environmental agenda
targets on the commitment to reduce the emission of greenhouse gases by an
average of 5.2% in the period 2008-2012, in comparison to the 1990’s emission
levels (ANDRADE, COSTA, 2008).
The Congress’s non-ratification of the agreement might be seen as an
indication of the pressures and domestic strategies in ILO’s conduction after the,
despite the U.S.’ prerogative to create joint flexibilization mechanisms and the
proposition of carbon credits and trading (MASON, 2013). Because of internal
pressures about the abdications of specific sectors of the domestic industry, the
new U.S. statement over the Kyoto Protocol negotiations has openly undertaken
total opposite reaction to the adoption of specific terms, which can be observed
through the following president Bush’s (2001) discourse:

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


292
As you know, I oppose the Kyoto Protocol because it exempts 80
percent of the world, including major population centers such as
China and India, from compliance, and would cause serious harm
to the U.S. economy. The Senate’s vote, 95-0, shows that there is a
clear consensus that the Kyoto Protocol is an unfair and ineffective
means of addressing global climate change concerns.

According to the Intergovernmental Panel On Climate Change (2005),


Washington’s dissonant decision would not coincide with sensitivity to the
effects of global warming on the socio economic framework, due to the risk of
natural adversities to the growth of agricultural production during the 2000s.
Through collective action theory, Diniz (2007) argues that the U.S.’s
non-ratification of the agreement has resulted in the undermining of the Cli-
mate Convention’s goal. Accordingly, this trend has been reflected not only in
Washington’s stance on the international climate change regime, but also is
associated with the gaps in compliance with the Kyoto Protocol terms by the
other major pieces of international chess in relation to industrial production,
especially China (ANDRADE, COSTA, 2008). In accordance with Krasner’s (1983)
liberal institutionalist perspective , this scenario has meant the weakening of
the referred international regime due to practices inconsistent to the principles,
norms, rules and procedures of decision making.
In addition, as the Kyoto Protocol issue has worsened domestic pressures
on the subject, some political groups with remarkable representativeness have
increasingly caught up with the institutional conditioning and approval needed
for the implementation and ratification of international agreements (ANDRADE,
COSTA, 2008; JAMALI, REJEB, 2014).
According to the view that the costs of implementing the decisions have
motivated the non-ratification of the Kyoto Protocol (ARATANGY, 2007), Lom-
borg (2001, p. 318) discourses:

We need to be very careful in our willingness to act on global


warming. Basically, global warming will be expensive ($ 5 trillion)
and there is very little good we can do about it. Even if we were
to handle global warming optimally which would mean cutting
emissions a little fairly far in the future, we can only cut the cost
very little (about $ 0.3 trillion). However, if we choose to enact Kyoto
or even more ambitious programmes, the world will lose. And
this conclusion does not just come from the output from a single

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model. Almost all the major computer models agree that even when
chaotic consequences have been taken into consideration “it is
striking that the optimal policy involves little emissions reduction
below uncontrolled rates until the middle of the [twenty-first]
century at the earliest.

Regarding the U.S.’ stance in this period, Jamali and Rejeb (2014) say
that the marginalization of the international climate change regime represents
a unilateral notion of prevention costs as unquestionably superior to the repair
costs of economic sectors sensitive to the effects of climate change. This moment
of government transition in the environmental agenda implies the rupture of
Washington’s foreign policy with the narrative undertaken during previous
administrations.

CONCLUSION

The last seventy years the U.S. has served as a hegemonic superpower
and influenced the construction of the International Liberal Order. Over the
years as the global economy, societies and interest grew new actors gained
influence and power too. The debate on the collapse or endurance of the ILO
is yet to be defined, however it is clear that the U.S. is no longer the soly soldier
in a liberal project.
In that sense, the emergence of a multilateral trading system and in
consequence a globalized world was the cornerstone simultaneously to the ILO
and the influence of the U.S.. However, throughout presidential administrations,
Washington has shifted interests and largely impacted the economic develop-
ment of underdeveloped and in development countries. During the 1990’s and
2000’s, the U.S. was the key promoter of the multilateral system with the free
trade system being promoted as Fair trade. After the 2008 election, the Trump
administration has shifted to a much more ortodox and protectionist system.
This shift alongside with the emergence of new actors, such as China, created
the space for possible changes in the ILO.
History shows that wars, economic crisis, and social disruptions are gene-
rally the cause for changes in the International Orders. No different, although
arguably less dramatic the Global War on Terror also presents a fundamental

Ciências Humanas e Sociais: tópicos atuais em pesquisa


294
change in the narrative construction of the ILO by the U.S.. In that sense, the
conclusion of this article is that the foreing policies conducted by Bush, Obama
and Trump might be fundamentally different but essentially the same in the
regard of undermining the ILO and the U.S. influence over the world.
At last, the refusal of the Kyoto Protocol represents not only a rupture
with the U.S. historical posture, but also a lost opportunity to strengthen the
ILO. While on an international level, especially to the global-south, there was
coercion for a sustainable “clean” development. In that sense the non-ratification
represents the gap in the ILO agenda.
Nevertheless, this article recognizes that the ILO is composed of a
complex array of actors, institutions and rules. Overall we conclude that the
undermininding of the ILO agenda was a multifaceted construction over time
and mined by the paradoxical narrative construction between the domestic and
foreign policies of the U.S.

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SOBRE OS ORGANIZADORES
Marcelo da Fonseca Ferreira da Silva
Licenciatura plena em Matemática pela Escola de Ensino Superior Fabra, Graduado em
Tecnólogo em Gestão Pública pela Universidade Anhanguera - Uniderp, Graduado em
Pedagogia pela UNAR. Mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local da Escola
Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (EMESCAM). Especialista em
Gestão de Trânsito (FACULDADE FACEC), Especialista em Direito, Educação e Segurança no
Trânsito (FACULDADE LUSO CAPIXABA), Especialista em Inteligência Policial (FACULDADE
FACUMINAS), Especialista em Gestão Prisional (FACULDADE ÚNICA). Especialista em
Educação. Técnico em segurança do trabalho, Técnico em transações imobiliárias - corretor
de imóvel. Perito e Avaliador de imóvel. Atualmente sou servidor Publico do Governo do
Estado do Espírito Santo, professor de pós-graduação, docente da cadeira de legislação
de trânsito e política da ASSINTRAN. Docente da Escola Técnica Grau técnico. Diretor
de ensino e geral de Cfc. Consultoria e Assessoria: Em Mobilidade Urbana e Consultor
Político. Membro do corpo editorial, dentro do Conselho Técnico Científico da Editora
Atenas. Membro do conselho editorial da Editora Científica Digital, Editor Chefe da Revista
Digital Urbanismo de Mercado e Escritor.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8256025812096945

Flávio Aparecido de Almeida


Graduado em Psicologia (UNIFAMINAS), História (UEMG), Pedagogia (FINOM), Educação
Especial (UNIFAVENI), Sociologia (UNIFAVENI), Filosofia (FAERP -UNIETEP) e Ciências
da Religião (UNICV). Especialista em: Educação Inclusiva, Especial e Políticas de Inclusão
(UCAM), Psicopedagogia Clínica e Institucional (UCAM), Gestão em Saúde Mental (UCAM),
Ensino Religioso (FINOM), Gestão de Processos Educativos: Supervisão e Inspeção
Escolar (UEMG), Psicologia Social (INTERVALE), Psicologia Comportamental e Cognitiva
(FAVENI), Psicologia Escolar e Educacional (FAVENI), Psicologia Existencial Humanista e
Fenomenológica (FANENI), AEE - Atendimento Educacional Especializado (IBRA), Ética,
Filosofia e Sociologia (IBRA), ABA - Análise do Comportamento Aplicada (IBRA), Autismo
(FCE), Psicologia Clínica (IBRA), Neuropsicologia (UCAM), História do Brasil (UCAM),
Psicomotricidade Aplicada à Educação Especial (IBRA), Ética e Filosofia Política (INTERVALE),
Docência do Ensino Superior (UCAM), Gestão Escolar (Administração, Supervisão, Orientação
e Inspeção) (FAVENI), Antropologia (FAVENI) e Neuropsicopedagogia (UCAM). Mestre
em Ciências das Religiões (UNIDA) e Doutor em Ciências da Educação (UML). Como
psicólogo clínico atua com terapias focadas em crianças autistas, com Deficiência Intelectual,
Transtornos de Aprendizagens e Psicoterapia com adultos. Atualmente tem dedicado as
suas pesquisas em Atendimento Educacional Especializado, Dificuldades e Transtornos de
Aprendizagem, Educação Especial e Inclusiva, Espiritualidade e Psicologia Clínica, Autismo,
Ensino Religioso Escolar, Educação, Diversidade e Inclusão. Pesquisa também sobre os
Direitos Humanos, a Educação Popular e libertadora e vulnerabilidades que permeiam a
comunidade LGBTQIAPN+. Membro do Conselho Editorial da Editora Científica Digital
desde 2020.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2192204324890376
89, 90, 92, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105,
ÍNDICE 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117,
118, 119, 120, 122, 123, 124, 125, 127, 128

REMISSIVO Escravidão: 75, 77, 90, 94, 95, 96, 104, 105, 106,
109, 112, 122, 123, 125

A F
Atenção Básica: 243, 250, 254 Fundamentalismo: 162, 163, 165, 166, 169
Auto da Compadecida: 211, 212, 213, 216, 218, G
219, 220, 221, 222, 223, 224
Guarani Nhandewa: 256, 257, 259, 260, 261,
Autonomismo: 181, 190, 193, 194, 196 262, 263, 265, 268, 269, 271, 272, 273, 274, 275
B I
Brasil: 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 30, 36, 40, 45, 47, Imagem: 77, 81, 85, 86, 88, 89, 90, 93, 94, 96, 97,
49, 50, 51, 52, 53, 54, 58, 60, 66, 68, 75, 76, 77, 82, 98, 100, 102, 103, 106, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114,
86, 90, 91, 92, 93, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 106, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 122, 123, 124, 150, 167, 186,
109, 112, 119, 122, 123, 128, 157, 158, 198, 200, 205, 205, 227, 230, 232, 233, 234, 235, 236, 238, 240
209, 210, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 221, 222,
223, 224, 240, 249, 254, 259, 260, 297 International Liberal Order: 277, 278, 279, 281,
288, 294
C Intérprete-Compositor: 10, 11
Catolicismo Popular: 101
L
Chechênia: 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 171,
176, 177 Larraín: 131, 132, 135, 139, 141, 142, 143, 144

Chile: 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, M
139, 142, 143, 144, 283
Mobilidade Internacional: 201, 202, 203, 204,
Ciência Política: 19, 20, 21, 22, 23, 28, 29, 32, 36, 206
43, 44, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54
Movimentos Sociais: 42, 44, 180, 183, 184, 185,
Ciências Sociais: 18, 19, 20, 23, 40, 50, 54, 127, 186, 190, 196, 197, 199, 200
182, 186, 187, 197, 199, 223, 297
Cinema Brasileiro: 212, 214, 215, 223
N
Narrativa: 97, 104, 107, 142, 154, 217, 220, 222,
Colaboração: 9, 10, 11, 16, 99
223, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 236,
Coletivos: 180, 181, 182, 184, 185, 186, 188, 189, 237, 238, 239, 240, 256
190, 195, 198, 199, 200
Narrativas Sagradas: 256
Convergência Tecnológica: 211, 212, 216, 217,
Neruda: 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138,
219
139, 140, 141, 142, 143, 144, 145
Crianças e Adolescentes: 55, 56, 57, 58, 60, 61,
62, 63, 64, 65, 67, 69, 70, 72, 73 O
Orientação e Psicoeducação de Pais: 243,
D 249
Desenvolvimento Infantil: 243, 245
Oriente Médio: 162, 163, 164, 165, 167, 168, 170,
Dictadura: 131, 134 171, 172, 173, 174, 175, 176

E P
Economia Política: 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, Percussão: 10, 14, 16
28, 29, 32, 34, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 49, 50,
Performance Musical: 10
51, 52
Pintura: 147, 148, 152, 156, 157, 158, 159, 161, 195
Educação Tradicional: 256, 257, 271, 272, 273,
274, 275 Práticas Parentais: 243, 245
Escrava Anastácia: 74, 75, 76, 77, 78, 80, 85, 88, Profissionais: 27, 56, 57, 58, 68, 69, 70, 71, 72,
201, 202, 203, 204, 206, 207, 209, 215, 216, 250,
251, 253

R
Religiões Afro-Brasileiras: 82, 112, 116, 117
Ritual: 77, 79, 82, 87, 107, 116, 128, 129
Rússia: 163, 164, 165, 167, 168, 169, 170, 171, 172,
173, 174, 175, 176, 177, 184, 187

S
Serviço Social: 56, 57, 58, 69, 72

T
Temperamentos: 74, 80, 86, 88, 105, 123, 124,
125
Terapia Cognitivo-Comportamental em
Grupos: 243, 254
Testemunho: 226, 231, 235, 238, 239
Trauma: 105, 123, 226, 228, 239, 241

V
Violência Sexual: 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62,
63, 64, 66, 67, 68, 69, 70, 72, 73
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