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Jónata Ferreira de Moura

(Org.)

DIVERSIDADE SEXUAL
E DE GÊNERO

abordagens multidisciplinares

científica digital
EDITORA CIENTÍFICA DIGITAL LTDA
Guarujá - São Paulo - Brasil
www.editoracientifica.com.br - contato editoracientifica.com.br

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D618 Diversidade sexual e de gênero: abordagens multidisciplinares / Jónata Ferreira de
ACESSO LIVRE ON LINE - IMPRESSÃO PROIBIDA

Moura (Organizador). – Guarujá-SP: Científica Digital, 2023.


E-BOOK
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui Bibliografia
ISBN 978-65-5360-451-3
DOI 10.37885/978-65-5360-451-3

1. Orientação sexual. 2. Identidade de gênero. I. Moura, Jónata Ferreira de (Organizador). II.


Título.
CDD 306.76

Elaborado por Janaina Ramos – CRB-8/9166

Índice para catálogo sistemático:


I. Orientação sexual
2023
Jónata Ferreira de Moura
(Org.)

Diversidade Sexual e de Gênero:


abordagens multidisciplinares

1ª EDIÇÃO

científica digital

2023 - GUARUJÁ - SP
CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Humberto Costa
Prof. Dr. Joachin Melo Azevedo Neto
Prof. Dr. Jónata Ferreira de Moura
Prof. Dr. André Cutrim Carvalho Prof. Dr. José Aderval Aragão
Prof. Dr. Antônio Marcos Mota Miranda Prof. Me. Julianno Pizzano Ayoub
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APRESENTAÇÃO

Esta obra trata de discussões envolvendo a diversidade sexual e de gênero,


expressão usualmente empregada por movimentos LGBTQIA+, docentes e
pesquisadoras/es e formuladoras/es de políticas públicas no intuito não só
de condenar e combater a discriminação e a violência com base em orientação
sexual e identidade de gênero, mas também como tática na promoção de
direitos e na concretização da cidadania de intersexuais, travestis, transexuais,
lésbicas, bissexuais, assexuais, gays e tantas outras identidades.
O livro constituiu-se a partir de um processo colaborativo entre professoras/
es, estudantes e pesquisadoras/es que estudam, pesquisam e discutem se
destacaram e qualificaram as discussões neste espaço formativo.
A temática que perpassa os capítulos desta coletânea aborda demandas
estrutural e institucional da LGBTfobia no Brasil; da inclusão no mundo do
trabalho e do acesso e assistência à saúde pública pela comunidade do
movimento LGBTQIA+; das práticas de formação e atuação docente no espaço
escolar e não-escolar, em especial nas construções históricas, sociais e culturais
de normas e engessamentos que potencializam a naturalização das desigual-
dades de gênero e do preconceito acerca das dissidências sexuais.
Resulta, também, de movimentos interinstitucionais e de ações de incentivo
à pesquisa que congregam pesquisadoras/es das mais diversas áreas do
conhecimento e de diferentes Instituições de Educação Superior públicas e
privadas de abrangência nacional e internacional.
Esta obra reúne estudos que refletem sobre diversidade sexual e de gênero
a partir de abordagens multidisciplinares, assim, conta com o objetivo de
apresentar pesquisas que discutem e problematizam a temática diversidade
sexual e de gênero nos diversos espaços com a finalidade de fomentar a
necessidade da temática na formação inicial e continuada dos mais diversos
profissionais, em especial, da educação.
Agradecemos às/aos autoras/es pelo empenho, disponibilidade e dedicação
para o desenvolvimento e conclusão dessa obra. Esperamos também que este
livro sirva de dispositivo didático-pedagógico para estudantes, docentes dos
diversos níveis de ensino em seus trabalhos e demais interessados pela temática.

Jónata Ferreira de Moura


Docente do Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas
Universidade Federal do Maranhão
SUMÁRIO
Capítulo 01
PERPECTIVAS SOBRE GÊNERO E O INGRESSO DE HOMENS DA COMUNIDADE
LGBTI+ NO CURSO DE PEDAGOGIA
Leandro de Almeida Costa; Jónata Ferreira de Moura
10.37885/231014677 ....................................................................................................................................... 8

Capítulo 02

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA: CORPO, GÊNERO E


SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO FÍSICA
Maurício Almeida; Mauro Lúcio de Oliveira Júnior; Cleonaldo Gonçalves Santos; Priscila Figueiredo
Campos; Reinaldo Oliveira Paizante; Mauricio Nigri Junior; Paulo Márcio Fucci; Naysia Alves
Filgueiras; Guilherme de Andrade Ruela; Mauricio Barcelos de Barros Cruz
10.37885/230814133...................................................................................................................................... 23

Capítulo 03

PESQUISAS NA/EM EDUCAÇÃO DE PESSOAS LGBTIA+: UM ESTADO DA


ARTE DE DISSERTAÇÕES E TESES SOBRE GÊNEROS E SEXUALIDADES
John Jamerson da Silva Brito; Witembergue Gomes Zaparoli
10.37885/230914331...................................................................................................................................... 35

Capítulo 04

LESBOFOBIA, HOMOFOBIA, TRANSFOBIA, RACISMO E ASSÉDIO: REVISÃO


SISTEMÁTICA QUALITATIVA DE LITERATURA
Eva Juliana Rodrigues de Souza; Jonas Costa Rodrigues; Adiel Augusto da Silva Magalhães;
Carlos Alberto Batista Santos
10.37885/230814148...................................................................................................................................... 55

Capítulo 05

GÊNERO, EDUCAÇÃO E GAMIFICAÇÃO: UM REFERENCIAL TEÓRICO


Auricelia de Aguiar Silva; Dimas dos Reis Ribeiro; Paula Milena Magalhães Miranda; Welingthon
dos Santos Silva
10.37885/230914546 ..................................................................................................................................... 66
SUMÁRIO

Capítulo 06

NARRATIVAS DE DOCENTES DA EDUCAÇÃO INFANTIL SOBRE AS RELAÇÕES


DE GÊNEROS E SEXUALIDADES
Susy Kelly Azevedo de Melo; Jónata Ferreira de Moura
10.37885/230914530..................................................................................................................................... 88

Capítulo 07

DO ABORTO VEIO A LUZ: ACUMULAÇÃO PRIMITIVA, PATRIARCADO E CAÇA


ÀS BRUXAS
Clarissa Pepe Ferreira; Mariana Almeida Picanço Rossi
10.37885/231014664...................................................................................................................................... 98

Capítulo 08

A IMERSÃO DO RITUAL FESTIVO E AS REGRAS DO JOGO NAS


PERFORMANCES DE MASCULINIDADES HOMOAFETIVAS: UMA
OBSERVAÇÃO ETNOGRÁFICA EM UM ESPAÇO FREQUENTADO POR HOMENS
NO OESTE PARANAENSE
Deivid Nascimento de Carvalho
10.37885/230814083.................................................................................................................................... 157

Capítulo 09

DESAFIOS AO NÍVEL DA SEXUALIDADE APÓS EVENTO CARDÍACO


Eugénia Mendes; Ana Azevedo; André Novo
10.37885/230713750 .................................................................................................................................... 181

Capítulo 10

FROM EDUCATION FOR HUMAN RIGHTS TO THE ‘GENDER IDEOLOGY’


MOVEMENT: A FOUCALDIAN DISCOURSE ANALYSIS OF THE GENESIS
IDEOLOGY’S TOOL
Danni Conegatti
10.37885/230814158.....................................................................................................................................198

SOBRE O ORGANIZADOR............................................................................................................... 216


ÍNDICE REMISSIVO................................................................................................................................. 217
01

PERPECTIVAS SOBRE GÊNERO E O


INGRESSO DE HOMENS DA
COMUNIDADE LGBTI+ NO CURSO DE
PEDAGOGIA

Leandro de Almeida Costa


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Jónata Ferreira de Moura


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

10.37885/231014677
RESUMO

O presente capítulo integra uma pesquisa de mestrado, em andamento, filiada


no Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas
(PPGFOPRED), ligado à Universidade Federal do Maranhão/Centro de Ciências
de Imperatriz (UFMA/CCIM), desenvolvida pelo primeiro autor e orientada pelo
segundo. O tema da pesquisa é a trajetória de vida e formação de homens da
comunidade LGBTI+ que cursam Pedagogia em uma Universidade Federal do
Nordeste brasileiro, com destaque para o ingresso, permanência e à adesão
à docência. Para a escrita do presente texto, nosso foco está na categoria
ingresso. O objetivo é realizar uma discussão bibliográfica acerca do ingresso
de homens da comunidade LGBTI+ nos cursos de Pedagogia de universidades
federais, para tanto, realiza-se uma revisão bibliográfica. Estabelece-se hipóteses
sobre o limite entre a categoria ingresso e permanência, expondo a importância
do método biográfico como maneira para investigar o que leva a estudantes
homens da comunidade LGBTI+ a ingressarem no curso de Pedagogia.

Palavras-chave: Ingresso, Gênero, Método Biográfico, Curso de Pedagogia.

ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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INTRODUÇÃO

O presente capítulo integra uma investigação de mestrado, em andamento,


filiada no Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas
Educativas (PPGFOPRED), ligado à Universidade Federal do Maranhão/Centro
de Ciências de Imperatriz (UFMA/CCIM), desenvolvida pelo primeiro autor e
orientada pelo segundo. O tema da pesquisa é a trajetória de vida e formação de
homens da comunidade LGBTI+1 que cursam Pedagogia em uma Universidade
Federal do Nordeste brasileiro, com destaque para o ingresso, permanência e
à adesão à docência.
Para a escrita do presente texto, nosso foco está na categoria ingresso
de homens da comunidade LGBTI+ no curso de Pedagogia, pois entendemos
que a universidade é um espaço onde as ideias e sujeitos constroem o saber
científico, por isso as pessoas precisam adentrar ocupar esse espaço e ascen-
derem socialmente.
Temas de pesquisas como o nosso está ligado à muitas possibilidades
investigativas, como o método das histórias de vida e as narrativas de si criados
por pesquisadores europeus, como Franco Ferrarotti, Gaston Penau, Daniel
Bertaux, Marie-Crhistine Josso; e latinos, como Conceição Passeggi, Elizeu
Clementino, Daniel Suarez, problematizam e biografizam o sujeito e sua história
de vida e formação. Esses elementos perpassam suas escolhas e também seu
ingresso em um curso a nível superior, como por exemplo Pedagogia.
Por isso a escolha do método biográfico como suporte teórico-metodo-
lógico, pois, enxergamos nessa maneira de fazer pesquisa a forma pela qual é
possível identificar as marcas e experiências de uma pessoa, via narrativa oral

1 O uso da sigla sintetiza o grupo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis, Transgêneros e
Intersexuais, tendo a presença do + como representação das demais orientações sexuais e de gênero. Por
escolha investigativa tomei a orientação pela não utilização do uso da letra “Q” e “A”, que definem aqueles
que se identificam como Queer e Assexuais. Visto o fato do termo Queer que em tradução livre significaria
“bizarro” ou “estranho” derivar de um movimento de ressignificação e resistência dos grupos que fugiam ao
padrão cisheteronormativo dentro da realidade estadunidense, por isto, Guse, Esquincalha e Moura (2021),
compreendem que no aspecto brasileiro o conceito posto sobre as letras Q e A, poderia ser compreendido
pelo uso do “I+”, ou seja, os intersexuais que neste cenário representariam os sujeitos que naturalmente
desenvolvem traços da sexualidade feminina e masculina e que popularizou-se principalmente a partir do
Estado de São Paulo. Nesta pesquisa optamos pelo uso das siglas LGBTI+, tendo o “+” como compreensão dos
múltiplos grupos que ainda não se sentem representados na sigla.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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ou escrita, e essas marcas e experiências tratam de um saber que segundo
Ferrarotti (2014, p. 18) só é possível ter quando o pesquisador é conduzido “a
reconhecer que ele não sabe, que só pode começar a saber junto com os outros”,
entendendo o outro como um singular-plural.
Outro ponto que justifica nossa escolha é saber que no Censo do Ensino
Superior de 2021 a majoritária presença de mulheres no curso de Pedagogia só
cresce. Isso reforça o que já se sabe pelo processo histórico de feminilização do
magistério, que instituiu no imaginário popular a ideia de uma profissão voltada
às mulheres, pois nasceram para isso. Discurso que elencamos como possível
causa à associação preconceituosa entre o gênero masculino e o questionamento
sobre sua sexualidade quando presente em cursos considerado para mulheres.
Nosso objetivo é realizar uma discussão bibliográfica acerca do ingresso
de homens da comunidade LGBTI+ nos cursos de Pedagogia de universidades
federais, por entender que sua invisibilização nos dados oficiais da educação
superior precisa ser discutida e questionada, possibilitando-o expressividades
aos sujeitos que sempre permaneceram à margem da sociedade por propagarem
sua diversidade contrárias aos padrões cis-heteronormativo.
Para tal feito, realizamos uma revisão bibliográfica, que é um pré-requisito
para a realização de toda e qualquer investigação, buscando alguns clássicos
que discutem relações de gêneros, homens gays da comunidade LGBTI+ no
Ensino Superior, e histórias de vida e o método biográfico. É preciso lembrar que
a revisão bibliográfica não é uma pesquisa bibliográfica, pois esta vai além da
revisão, visto implicar em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por
soluções, atento ao tema de estudo e a questões teórico-metodológica. No pre-
sente capítulo, ficamos na revisão bibliográfica.

HISTÓRIAS DE VIDA E NARRATIVAS DE SI: UMA OUTRA


MANEIRA DE FAZER PESQUISA

As histórias de vida, e o que dela derivou-se enquanto método foram


classificadas em tipos de pesquisa: biográficas, autobiográficas ou (auto)
biográficas, que nascem como dispositivos de estudo na antropologia e logo
associam-se às metodologias sociológicas, ocorrendo a aplicação de técnicas
de escuta (Pineau, 2006).

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Com o passar do tempo o método tomou novos rumos epistemológicos,
compreendendo o tempo como fator importante na exposição das experiências
de um sujeito. Seria inato ao sujeito produzir e contar história, por um viés de
historicidade sobre os fatos descartando uma história única e imutável. O método
biográfico advém de uma perspectiva narrativa que é construída coletivamente
que, segundo Ferrarotti (2014), parte de uma ciência que ver na memória e na
cotidianidade formas de analisar a trajetória do humano.
O que diz Ferrarotti (2014), parte da ideia de que todo indivíduo é marcado
pela presença do outro e constitui parte integrante de sua identidade e da iden-
tidade do outro. Estas marcas são construídas pelas experiências partilhadas
nos diversos espações da sua vida, e por isto as narrativas são importantes para
que se veja quais experiências formaram a trajetória educacional do sujeito.
Neste sentido as narrativas são formas artesanais de se contar histórias,
que por meio da memória relembramo-nos das experiências que nos marcaram
buscando nelas as explicações que façam sentido ao porquê de elas serem
etapas importantes de nossas trajetórias formativas2.
Segundo Moura (2015) as narrativas são compostas em seu núcleo pelo
enredo que a cobre, é a trama nela constituída que possibilita a narrativa criar
um contexto que inclua tempo e espaço em que ocorre, segundo o autor:

[...] o enredo/trama que dá coerência e sentido à narrativa, e


também propicia unidade e inteligibilidade à multiplicidade e à
heterogeneidade de acontecimentos. Esse elemento é central, pois,
ao narrar – ato que se estabelece de acordo com cada indivíduo
–, a pessoa conta uma história que só será compreendida pelo
ouvinte ou pelo leitor caso tenha sentido e coerência. Havendo
esses elementos, um fato histórico, um acontecimento educacional,
um romance, uma peça teatral poderão produzir deslocamentos,
tanto no entrevistador/ouvinte como no entrevistado/narrador.
(Moura, 2015, p. 34).

Confiro a essas discussões a necessidade de que a partir de sua exposi-


ção possamos criar um fio condutor, que é existente em todas as narrativas de

2 Conceito obtido pela ideia de Walter Benjamin (1994) na obra escrita e lida por Moura e Nacarato (2017, p. 16).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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indivíduos que visam explicar suas motivações as escolhas que realiza, é um
ato de entendimento quanto a própria história e que possibilita a quem escuta
perceber o significado destas experiências, por exemplo, os motivos que levam
estudantes homens gays da comunidade LGBTI+ a escolherem o curso de
Pedagogia para estudar no Ensino Superior.
Os fatos históricos, financeiros, meio sociocultural ou experiências na
vida escolar, como no caso do primeiro autor, são elementos que dão margem
as trajetórias acadêmicas que tomaremos na investigação de mestrado. Por tal
divisão e abordando aqui o ingresso que o primeiro autor utiliza de Bourdieu
(1998), apesar da polêmica existente na alusão de que o referido teórico não via
valor no método biográfico, uso este teórico, afim, de apontar a sua contribuição
significativa no processo contextual do sujeito, ou seja, utilizando do campo
sociológico da educação e o entrelaçamento existente entre estes dois polos,
Bourdieu indica a subjetividade que forma o ser humano e nisto estão presentes
os fatores externos representado no campo social, sendo eles, a cultura e os
hábitos que se (re)produzem.
Essa concepção nasce do que o autor intitula por habitus, conceito derivado
das relações sociais e dos produtos derivados destas relações que garantem
a sua reprodução do mesmo vínculo objetivo que o deu origem. Tratamos aqui
da interiorização dos valores, princípios e normas embutidos na sociedade e
que o individuo se adapta a depender da realidade em que se encontre, é uma
visão objetiva e generalizadora de uma sociedade que, para Bourdieu (1998),
é tida conforme a permissão de que o sujeito possa agir/decidir quando julga
necessário tendo apenas o conhecimento prático da sociedade que se apresenta
na sua forma subjetiva.
Falamos então de possibilidades que são fornecidas pelo meio, ou seja,
uma instituição de ensino que promova políticas de acesso aos estudantes e o
contínuo cuidado para com sua permanência, contribui para que este discente
tenha de forma objetiva a sensação inclusiva e justa de uma educação.
Pensando desta forma, podemos refletir no sistema classificatório do
habitus, onde o agente aparentemente ganha total liberdade em sua escolha,
mas, Bourdieu (1998) alerta de que há nisto uma determinação antes à ação,
seriam os esquemas generativos que guiam a ação, é como o poder de escolha
colocada a um sujeito em um leque de cursos que poderia ingressar, mas, que

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independente do caminho que siga estaria marcado elas influências adquiridas
em sua trajetória, estaria ai a objetividade que é interiorizada e que através dos
meios generativos já determinariam a sua escolha.
Recorremos a representatividade da família pela escolha da profissão
docente, e que vemos corroborada nas ideias de Souza (2007) e Moura (2015)
ao se referirem sobre a escolha pela profissão docente, dizendo que a família
tem grande peso, seja pela representatividade na figura de pessoas que segui-
ram a carreira ou indicando ela como uma possibilidade de ascensão social.
Mas, porque recorrer a Bourdieu (2012) quando neste tópico apresen-
tamos algumas ideias sobre as histórias de vida? Para explicarmos isto faz-se
necessário esclarecer o conceito de divisão binária instaurada pelo gênero,
que discutiremos adiante. O gênero é presente como estado objetivado no
mundo social, assim como, nos corpos e habitus dos sujeitos, funcionam como
sistema de repressão e de teia estruturantes que condicionam a percepção do
que discutimos neste trabalho, sobre a personificação de que a educação é um
espaço feminilizado.
Uso do habitus como um propulsor, mas não núcleo, do que seriam as
recordações-referências3 que no seu bojo constituem o coração da natureza
narrativa que é responsável por produzir, rememorar e dar significado ao que foi
experienciado, trazem as referências quanto aos motivos de algumas de nossas
escolhas e atravessam com forte interferência as trajetórias dos indivíduos que
rememoram suas vivências singulares e plurais (Abrahão, 2011).
Essas recordações-referências são objeto importante de discussão nas
histórias de vida, pois, se apresentam em forma de história de luta e resistência
no que diz respeito a comunidade LGBTI+. Nessa história reside um processo
de protagonismo em favor da valorização dos sujeitos que é conseguida quando
este tem a oportunidade para falar se si, como reflete Passeggi (2021) e Ferrarotti

3 Sobre o conceito de recordações-referências Abrahão (2011) utiliza em determinado ponto de seu trabalho a
concepção de Josso (2002) que acreditamos ser a melhor para compreendermos as recordações-referências
por ela trabalhada como parte constituinte das narrativas de formação, que em sua natureza produzem a
rememoração sobre nossas histórias de vida, é uma ação de repensar e ressignificar o que foi experienciado
e através deste processo analisar as motivações de nossas escolhas, as influências que nos são dirigidas e dos
cenários que nos fazem sujeitos singulares e plurais, colocamos o sujeito diante de si mesmo, e este si próprio
continuaria a se transformar a cada nova recordação-referência rememorada.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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(2014). O método das histórias de vida, a biografização possibilitam com que o
indivíduo rememore a redescoberta de si, daquele que o entrevista e da cons-
tituição dos seres sociais e experiências que o formaram.

DISCUTINDO A CATEGORIA GÊNERO

Com relação ao conceito de gênero esbarramos em uma complexidade


quanto sua definição, até mesmo pela passividade de alteração no que concerne
ao próprio desenvolvimento humano e a diversidade a que apresenta, mas ainda
nos arriscando a conceituar este termo, tentamos sair do binarismo, da visão
evolutiva e generalista.
O fator de mudança está conectado ao campo da sexualidade, biologia
e diversidade, visto o processo de desenvolvimento da sociedade e do próprio
seio individual de como se apresenta o indivíduo, tornando a lógica binarista em
todos os níveis ultrapassada, heterossexualidade/homossexualidade, homem/
mulher e dominado/dominante são pares postos ao conflito desnecessário,
classificando e limitando suas possibilidades, Scott (1989), já discutindo esse
papel limitador exercido na codificação das palavras expressa que:

No entanto, “os que se propõem a codificar os sentidos das palavras


lutam por uma causa perdida, porque as palavras, como as ideias e
as coisas que elas significam, têm uma história”, ressalta Joan Scott
(1989, p. 71). O gênero sublinhava também o aspecto relacional
das definições normativas das feminilidades. As que estavam
mais preocupadas com o fato de que a produção dos estudos
femininos centrava-se sobre as mulheres de forma muito estreita
e isolada, utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção
relacional no nosso vocabulário analítico. Segundo esta opinião,
as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos
e nenhuma compreensão de qualquer um poderia existir através
de estudo inteiramente separado. (Scott, 1989, p. 71)

Essa hierarquização entre os gêneros a que a autora se refere nada mais


é do que uma discussão de valores no campo social, a qual Bourdieu (1998),
já havia investigado e apontado sobre grupos que estabelecem posições de
poder e tentam exercer por meio da legitimação social e cultural, neste sentido

ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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não haveria elementos objetivos que pudessem nortear uma hierarquia real de
superioridade ou oposição como nas lógicas binárias.
Para continuar nesse pensamento que perpassa pelo capital cultural defen-
dido por Bourdieu (1998), é importante salientar o destaque feito por Straiotto
(2017) acerca da história da educação no Brasil, que, a princípio as escolhas eram
exclusivas aos educadores do gênero masculino vindo a abrir-se às mulheres
com a criação das escolas de primeiras letras no século XIX, esse ato levou a
um processo de inferiorização quanto ao trabalho docente, tendo em vista a
alegação pelos homens de que as mulheres não exerciam papéis de chefia de
família e por tal razão não precisariam de maiores salários do que o oferecido.
É importante notar este argumento, pois, dele originara-se um dos
principais problemas: a criação do imaginário docente como uma profissão de
segunda linha. Por um lado, os homens buscavam exercer seu poder mantendo
uma diferença salarial entre os gêneros, e por outro, ao passo que as mulheres
ganharam espaço e tiveram a predominância nas fases iniciais de ensino, criaram
a subjetivação de que um homem não conseguiria manter sua família, obter
sucesso profissional e respeito social ao exercer o cargo de professor. Monteiro
e Altman (2013), por este motivo, indicam que aqueles que ainda permaneceram
nas etapas iniciais da educação básica, vivenciaram a discriminação:

[...] a) os “mitos e ideias arraigados sobre masculinidade”, b) a


questão de essa área profissional ser ocupada preferencialmente
por mulheres, c) os baixos salários, d) as condições inadequadas
de emprego, e) o baixo status da profissão, f ) preocupações
relacionadas à possibilidade de abuso contra a criança, em uma
associação da masculinidade à violência. (Monteiro; Altmann,
2013, p. 4)

Straiotto (2017) ainda completa que a abordagem sobre os gêneros é vista


por sua relação de poder que evidência a desigualdade na história ocidental,
colocando o homem no espaço público e a mulher no espaço doméstico, não se
esgotando a necessidade de sua discussão tendo em vista suas transformações
contínuas ao longo de cada sociedade.
É importante ressaltar que, quatro anos após a pesquisa de Monteiro
e Altman (2013), Straiotto (2017) aponto a masculinidade como fator proble-
mático ao ingresso e permanência de homens nos cursos de licenciaturas,

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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especificamente no curso de Pedagogia. A pesquisadora, ao apresentar a voz
de um dos seus entrevistados, mostra como eles sentirem a discriminação em
volto a sua sexualidade: “O P8 era o único homem numa sala de vinte e cinco
mulheres, o que levava as pessoas a ‘pensaram alguma coisa errada sobre ele’,
aludindo à possibilidade dele ser homossexual.” (Straiotto, 2017, p. 106).
Logo em seguida Straiotto (2017, p. 112) cita o entrevistado P19, quando
este levanta um questionamento aludindo a sexualidade que ali estaria exposta:
“[...] e eu pensei: o que estou fazendo aqui?! ... Num vi outros colegas homem
ali dentro daquela sala, [...], meu Deus do céu, será que eu vou conseguir ficar
aqui no meio desse tanto de mulher?!”
Ao ter acesso a estes dados, miramos na ideia da heteronormatividade por
enxergar nela o sentido da inferência dos costumes, ideologias e crenças como
elementos que dispõem de medidas para as relações de troca conectadas na
regra heteronormativa que se coloca como dominante. Isso nos leva a pensar
sobre o conceito de normatividade que Miskolci (2017, p. 48) diz ser um padrão
social que visa limitar o gênero em todas as suas potencialidades, um regime
regulador que permite a alguns privilegiados um mínimo de liberdade social
sobre quem pode ser, mas que devem se pôr o mais próximo possível a “norma”.
Neste sentido acreditamos que o ingresso de grupos LGBTI+ a univer-
sidade possibilitou novas perspectivas dentro da área da educação. O fato
que nos levou a este dado foi o debate sobre a diversidade sexual e de gênero
na década de 1970 nos espaços acadêmicos, isto, como resultado dos grupos
LGBTI+ inspirador no movimento feminista estudado por Scott (1989) que já
protestavam pela invisibilização de suas comunidades e lutas nos programas
curriculares, neta década a teoria feminista foi de suma importância ao propor
a concepção de gênero pela afirmação identitária do sujeito.
Não podemos falar de identidade e não citar Hall (2013) que argumenta
que, a identidade pode ser vista nas representações pautadas por um sistema
classificatório, assim como os processos binários já citados, neste caso a
identidade de gênero, por exemplo, é colocada como um conceito inferior a
normatividade, porque neste sistema classificatório de Hall as identidades são
postas em aspectos de poder tendo identidades superiores as outras excluindo
sujeitos e tornando vazio os espaços ocupados.

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Butler (2013) denuncia a construção das identidades como algo padroni-
zado, em que são apenas reconhecidas e valorizadas ao passo que se encaixem
nos padrões pré-estabelecidos, de forma que aqueles/as que fogem a isso são
considerados/as estranhos/as (queers).

O que pode então significar “identidade”, e o que alicerça a


pressuposição de que as identidades são idênticas a si mesmas,
persistentes ao longo do tempo, unificadas e internamente
coerentes? Mais importante, como essas suposições impregnam o
discurso sobre as “identidades de gênero”? Seria errado supor que a
discussão sobre a “identidade” deva ser anterior À discussão sobre
a identidade de gênero, pela simples razão de que as “pessoas”
só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade
com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero. (Butler,
2013 p. 37, destaques do original).

O fator biológico supera os demais, deixando que os adjacentes se tornem


coadjuvantes na construção da identidade e sexualidade do indivíduo (BUTLER,
2013). Desde pequenos essas concepções são apresentadas, pode se dizer até
mesmo antes de nascer, pois pais e mães já escolhem roupas, decoração e
demais objetos baseados no sexo do/a bebê, por exemplo, como já foi discutido
em Oliveira; Silva Junior; Moura; Silva (2021).
A comunidade LGBTI+, propriamente os homens gays, ao se colocarem
ainda jovens em lugares já arraigados pela ideia da feminilidade sem ao certo
saber o processo histórico a que passou o curso de Pedagogia, se coloca em
posição delicada, pois, o ingresso no ensino superior ao sair do ensino médio é
cercado por muitas mudanças. Coulon (2008) divide esse momento em estra-
nheza ao se ver em um espaço de diversidade de corpos, teorias, pesquisas e
ideias, longe da normatividade familiar, segundo o tempo de aprendizagem como
as incertezas sobre si, o acúmulo parcial dos saberes muitas vezes voltadas ao
próprio objeto das discussões de gênero e sexualidade.

A CATEGORIA INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR


ENTRELAÇADA ÀS DISCUSSÕES DE GÊNERO

Até aqui expusemos a importância do processo biográfico e narrativo para


que se descubra as motivações e desafios que levam a homens da comunidade

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


18
LGBTI+ a escolherem cursos na área da educação, e objetivamente o curso de
pedagogia, e anteriormente apontamos a normatividade de gênero que permeia
histórica e socialmente a educação brasileira.
Neste sentido acreditamos ser oportuno apresentar os dados que cor-
roboram com a problemática apresentada até aqui, acerca da decisão de
homens ingressar na educação, segundo ao preconceito estabelecido de sua
masculinidade por estar em ambientes considerados femininos e por fim, os
traços de invisibilização da presença de pessoas da comunidade LGBTI+ nos
cursos superiores em educação.
Com base nos dados apresentados pelo IBGE, Censo da Educação supe-
rior no Brasil e demais órgãos registrados, compilados e tratados pelo Instituto
Semesp entre os anos de 2020 e 2021 em dados gerais, as matrículas em cursos
presencias no Estado do Maranhão cresceram em 3,3%, tendo queda de 5,5%
para rede privada, todavia o EAD apresentou aumento de 25,0% sendo 26,9% na
rede privada. Em 2021 os números não alteram tanto com relação a modalidade
de preferências, os estudantes migram aos cursos digitais enquanto o número
de ingressantes cai 4, 9% na rede pública e 9,3% nas privadas.
Especificamente nas mesorregiões do estado o ingresso no Oeste Mara-
nhense, que abriga as cidades de Gurupi, Pindaré e Imperatriz em que se encontra
o lócus e objeto desta pesquisa, se tem 17,7% do ingresso de alunos em cursos
presenciais um total de 24.198 alunos e 22,1% de ingressantes na modalidade
EAD correspondente a 15.960, distribuído entre 71 unidades de ensino, tendo
em vista que uma mesma unidade pode a vir ofertar as duas formas de ensino.
Quando voltamos a análise para a distribuição de matrículas por área do
conhecimento no território nacional tendo como olhar apenas o ano de 2021, o
cenário dos cursos em educação é a terceira maior área, com 1.660.095, deste
total, 35,4% estão concentrados dentro das universidades públicas, neste
sentido, o curso de Pedagogia em total geral das estatísticas de 2021 é o curso
com maior número de matrículas considerando os turnos em que são ofertados,
coloca a Pedagogia em primeiro lugar no número de ingressantes tendo o total
de 87.520 matrículas.
Os dados oficiais são ainda construídos pela distribuição de Cor/Raça,
faixa etária por idade, por modalidade, taxa de escolarização, os cursos mais
buscados na internet, bolsas e financiamentos responsáveis, de forma resumida

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são evidenciados também a distribuição de matrículas por gênero de forma
binária e superficial, não considerando as especificidades trazidas no bojo do
que constitui a identidades destes sujeitos.
O dado exposto pelo censo do ensino superior de 2021 apresenta que
72,5% das matrículas na área de licenciatura são representadas por mulheres,
enquanto 27,5% são de homens, dado este que por si só esvazia a representa-
tividade da comunidade LGBTI+ pôr no documento em nenhum momento se
quer mencionar a diversidade dentro dessa generalização exposta nos dados.
Neste sentido levo essa discussão de forma mais aprofundada a futuras
produções, no momento encerro essas reflexões recorrendo ainda a Bourdieu
(1998) e a institucionalização a que já nos referimos, mas, a que é válido retomar
as categorias do capital econômico, social e cultural, o autor considera essas
três áreas essenciais para o sucesso escolar, pego como empréstimo as duas
primeiras categorias para apontar sua possível aplicação também aos ingres-
santes do ensino superior a área da educação.
O capital econômico interferindo diretamente na valorização do curso,
ultrapassando a fronteira conceitual de Bourdieu ao enxergá-lo a partir da
individualização do sujeito e que pode interferir na sua escolha pelo curso do
ensino superior, primeiro por suas possibilidades em estudar na universidade
e segundo na expectativa de ascensão salarial.
Por sua vez o capital social pelas relações de poder que permeiam as
instituições educacionais e a própria consciência do sujeito nas suas escolhas
subjetivas, ou seja, segundo compreensão de Bourdieu as discussões da dimen-
são social sobre os discentes originam as desigualdades objetivas do sistema
educacional e sua dominação, tento com cautela expandir esse pensamento a
produção social da educação como profissão a ser ocupada por aqueles que
performam a feminilidade do cuidado, problematizo que é pela origem social
deste imaginário que o sistema subjetivo de escolha pelos cursos são afetados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos, em síntese, hipóteses estruturadas no contexto social e


histórico, levantando questionamentos acerca do não acesso por meio de bolsas
e financiamento ou ingresso por meio do Exame Nacional do Ensino Médio,

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


20
para desvendar as motivações que levam a estudantes homens da comunidade
LGBTI+ a ingressarem no ensino superior em cursos de Pedagogia.
Levantamos discussões em torno do conceito de gênero e suas relações
com o meio social e cultural, baseando-nos teoricamente em pesquisas com
a de Straiotto (2017) que alude acerca do preconceito vivenciado pelos alunos
homens no curso de Pedagogia, apenas por sua presença em sala de aula e no
curso. As relações de poder que invisibilizam a comunidade LGBTI+ dos espaços
educacionais, dos dados oficiais do ensino superior e que afetam diretamente
o protagonismo da sua presença nesta etapa da educação.
Como apontamos, a teoria de Bourdieu (1998) e as motivações que possam
desencadear a escolha de um curso na universidade, com cautela e levantando
possibilidades argumentamos sobre como somos inconscientemente levados,
segundo a teoria do autor supracitado, o poder simbólico exercido sobre nós,
aponta o capital social e econômico quando apresentamos o contexto histórico
da ocupação das mulheres em sala de aula, que refletem direta ou indiretamente
as trajetórias de vida dos sujeitos que hoje veem na educação uma possibili-
dade de carreira.

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Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


22
02

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E
TECNOLÓGICA: CORPO, GÊNERO E
SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Maurício Almeida
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Mauro Lúcio de Oliveira Júnior


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Cleonaldo Gonçalves Santos


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Priscila Figueiredo Campos


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Reinaldo Oliveira Paizante


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Mauricio Nigri Junior


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Paulo Márcio Fucci


Fundação Universitária Iberoamericana (FUNIBER)

Naysia Alves Filgueiras


Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC)

Guilherme de Andrade Ruela


Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC)

Mauricio Barcelos de Barros Cruz


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

10.37885/230814133
RESUMO

No contexto da educação profissional e tecnológica, a Educação Física é uma


disciplina de salutar importância, pois é responsável pela integração dos estu-
dantes às diversas práticas da cultura corporal. Desse modo, as aulas dessa
disciplina não devem priorizar apenas as técnicas corporais ou considerar o
movimento como um mero comportamento motor, mas sim contribuir para a
formação omnilateral do educando, o que envolve uma infinidade de conteúdos
e possibilidades educativas. Assim, o objetivo do presente capítulo é apresentar
um possível diálogo entre as temáticas corpo, gênero e sexualidade nas aulas
de Educação Física, especialmente no contexto da educação profissional e
tecnológica. Evidencia-se que algumas estratégias podem ser adotadas ao
se trabalhar com essas temáticas nas aulas, destacando-se as seguintes:
(1º) realizar projetos integradores entre a disciplina de Educação Física e as
demais disciplinas propedêuticas e técnico-profissionais; (2º) adotar aulas
mistas, igualando as oportunidades de participação dos meninos e das meni-
nas; (3º) trabalhar práticas da cultura corporal rotuladas como “de meninos” e
“de meninas”, buscando problematizar os estereótipos sociais relacionados à
identidade de gênero. Além disso, para realmente dialogar com as temáticas
de corpo, gênero e sexualidade, os conteúdos devem ser trabalhados em três
categorias, a saber, conceitual, procedimental e atitudinal. Conclui-se que a
Educação Física em uma escola de educação profissional e tecnológica deve
desenvolver todas as práticas da cultura corporal em suas plenas potencialidades,
de modo que todos os alunos, sem distinção de qualquer natureza, desfrutem
dos benefícios físicos, mentais e sociais dessas práticas, tornando-se cidadãos
críticos, reflexivos e atuantes.

Palavras-chave: Educação, Ensino Médio, Gênero, Sexualidade, Educação Física.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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INTRODUÇÃO

A educação profissional e tecnológica (EPT) é uma modalidade edu-


cacional prevista na Lei 9.394/1996, ou seja, na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN; BRASIL, 1996). Ademais, ela abrange: (a) os cursos
de formação inicial e continuada ou qualificação profissional, (b) a educação
profissional técnica de nível médio e a (c) EPT de graduação e pós-graduação
(BRASIL, 2008). Especialmente, a EPT de nível médio tem como objetivo a forma-
ção global do educando, preparando-o para o exercício de profissões técnicas.
Dessa forma, a LDBEN situa essa modalidade educacional na confluência de
dois direitos fundamentais e inalienáveis do cidadão: a educação e o trabalho.
Nesse sentido, a EPT de nível médio poderá ser desenvolvida de maneira
articulada com o ensino médio, ou de modo subsequente em cursos destinados a
quem já tenha concluído o ensino médio (BRASIL, 2008). Por sua vez, o formato
articulado poderá ser desenvolvido de maneira integrada ou concomitante ao
ensino médio (BRASIL, 2008). No caso do formato integrado deve ser realizada
uma matrícula única por aluno para o ensino médio e o curso técnico, sendo os
dois ofertados pela mesma instituição de ensino. Já no formato concomitante,
os cursos técnicos podem ser oferecidos a quem ingresse no ensino médio
ou esteja cursando-o, com matrícula distinta, na qual o curso pode acontecer
na mesma instituição ou em instituições de ensino diferentes (BRASIL, 2008).
No formato integrado ao ensino médio os cursos técnicos devem possuir
um projeto pedagógico unificado, envolvendo as disciplinas propedêuticas
(núcleo comum) e as disciplinas da área técnico-profissional (núcleo específico)
(BRASIL, 2008). Dentre as disciplinas propedêuticas, encontra-se a Educação
Física, que é um componente curricular que, no âmbito escolar, é o responsá-
vel pela apresentação e integração dos estudantes nas mais diversas práticas
corporais, por meio da cultura corporal (SOARES et al., 1992). Desse modo, a
Educação Física não deve priorizar somente as técnicas corporais ou considerar
o movimento como apenas um comportamento motor, mas sim, contribuir com a
formação omnilateral do educando (BOSCATTO et al., 2020). Assim, a Educação
Física deve apresentar um diálogo contínuo e transversal com outras temáticas
emergentes e persistentes no contexto nacional e internacional, fomentando
uma formação ética, política e estética dos estudantes (BRASIL, 2017).

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No trabalho da Educação Física no âmbito da EPT compreende-se uma
infinidade de conteúdos e possibilidades educativas. Ademais, parece que nessa
modalidade educacional a quantidade de problemáticas e desafios demanda-
dos aos professores avolumam-se; pois, ao desafio de produzir conhecimentos
acerca das práticas da cultura corporal, soma-se a necessidade de pensar o
ensino da Educação Física articulada com os demais componentes do currículo,
tanto do núcleo comum, quanto do núcleo técnico-profissional (BOSCATTO
et al., 2020). Assim, o objetivo do presente capítulo foi apresentar um possível
diálogo entre corpo, gênero e sexualidade na Educação Física, em especial, no
contexto da EPT.

DESENVOLVIMENTO

Atualmente, no contexto da Educação Física fala-se muito sobre o “corpo”.


Juntamente com esse substantivo, imprime-se uma série de adjetivos, como:
gordo, magro, bonito, feio, flácido, reprimido, livre, natural, holístico, prazeroso,
repugnante, entre outros (DAOLIO, 2013). Nesse sentido, compreende-se que a
Educação Física trabalha com os seres humanos sobre e através do seu corpo
e lida, por extensão, com os adjetivos impressos no corpo (DAOLIO, 2013).
Essa visão plural e multifacetada do corpo, ou melhor dos “corpos”,
entendendo cada corpo como único, nem sempre foi assim. Por exemplo, no
iluminismo, surge um paradigma conhecido como “newtoniano-cartesiano”,
que nos leva a aplicação de um pensamento fragmentado do que seria o corpo,
propondo a sua divisão em várias facetas (física, mental, social e cultural) para a
compreensão do todo (ALTMANN, 2015). Realmente, na área de Educação Física,
o contexto físico foi predominante em algumas concepções ideológicas, como,
por exemplo, a higienista (eugenista, biologicista) e a militarista (BRACHT, 1999).
Entretanto, com a incorporação de outras ciências aos estudos da Edu-
cação Física, como sociologia, psicologia, filosofia e antropologia, estudiosos
romperam com esse caráter fragmentário e começaram a compreender o corpo
como uma construção cultural (DAOLIO, 2013). Desse modo, é impossível
pensar a natureza humana como puramente biológica (física) e desvinculada
da cultura. Nesse contexto, é possível “discutir o corpo como uma construção,
já que cada sociedade se expressa diferente por meio de corpos diferentes”

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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(DAOLIO, 2013, p. 34). Ademais, por meio do seu corpo, o homem vai assimi-
lando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais, num processo
de incorporação (DAOLIO, 2013).
Nessa perspectiva, “por que é tão importante para a Educação Física
compreender o corpo como um elemento cultural?”. Ter essa compreensão
leva-nos a entender que atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na
qual esse corpo está inserido. Além disso, todas as práticas institucionais
que envolvem o corpo, incluindo a Educação Física, sejam elas educativas,
expressivas, recreativas ou reabilitadoras devem ser pensadas nesse contexto,
evitando seu reducionismo, mas sim, considerando o homem como sujeito da
vida social (DAOLIO, 2013). Desse modo, atualmente, estamos vivenciando
uma transição do então paradigma newtoniano-cartesiano, para um paradigma
holístico, no qual o corpo só pode ser entendido pela junção de suas diversas
facetas (ALTMANN, 2015).
Ao compreender o corpo como uma construção holística, é possível
perceber que ele é composto por diversos elementos, como, por exemplo, a
corporeidade, imagem e esquema corporal, sexualidade, entre outras (ORGA-
NIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE [OMS], 2015). Em especial, a sexualidade
apresenta-se de forma lábil e multifacetada, sendo influenciada pela interação
de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais,
legais, históricos, religiosos e espirituais (OMS, 2015). Realmente, é da natureza
da sexualidade um dinamismo que é inerente à própria vida humana (RAFART,
2020). Desse modo, os conceitos, descrições e elementos aqui discutidos não
podem ser compreendidos e analisados sobre um prisma definitivo e imutável,
pois os elementos que constituem a sexualidade estão em constante movimento.
A sexualidade é um aspecto fulcral da vida dos seres humanos e com-
preende uma série de elementos que estão interligados, como, por exemplo, o
sexo, as identidades, papéis e expressões de gênero, assim como a orientação
afetivo-sexual, o erotismo, o prazer, a intimidade e a reprodução (OMS, 2015).
Não obstante, pode ser vivenciada e expressada por meio de pensamentos,
fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, relacio-
namentos e relações de poder (OMS, 2015). Frente à essa complexidade, autores
tem dividido a sexualidade humana em dimensões, o que facilita a apresentação
didática desse construto (Figura 1) (RAFART, 2020; VITO CIASCA; HERCOWITZ;

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LOPES JUNIOR, 2021). Embora divididas para fins didáticos, essas dimensões
são interligadas e apresentam uma relação de interdependência (COLLING,
2018; RAFART, 2020; VITO CIASCA; HERCOWITZ; LOPES JUNIOR, 2021).

Figura 1. Representação das principais dimensões da sexualidade humana.

Fonte: Elaborada pelos autores (2023).

Assim, antes de compreender o que porventura venha ser o “gênero”,


precisamos compreender um elemento essencial para entendimento desse
construto, o sexo, mais precisamente o sexo biológico. Embora diversos autores
apresentem uma conceituação em relação a esse vocábulo, todos concordam
em afirmar que o sexo está relacionado as características biológicas dos indi-
víduos, em especial, a constituição dos órgãos reprodutivos, programados e
fixados em um corpo orgânico (RAFART, 2020). Na espécie humana, alguns
parâmetros têm sido utilizados para as definições de sexo, destacando-se os
cromossomos, composição hormonal, órgãos genitais e as características sexuais
secundárias (RAFART, 2020). Assim, uma pessoa do sexo masculino apresen-
taria cromossomos XY, níveis adequados de testosterona, pênis e testículos,
distribuição de pelos e gorduras típicos (RAFART, 2020). Em contrapartida, as
pessoas caracterizadas como do sexo feminino apresentariam cromossomos
XX, níveis adequados de estrógeno e progesterona, útero e ovários, presença
de mamas, pelos e gorduras típicos (RAFART, 2020). Não obstante, quando o

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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aparelho sexual não esteja de acordo com o sexo cromossômico, temos uma
terceira classificação, nomeada de intersexo (RAFART, 2020).
Avançando no entendimento desses conceitos, o gênero é a dimensão
social e histórica da construção e do entendimento dos significados de homem e
mulher. Refere-se a papéis, comportamentos, atividades, atributos, responsabili-
dades e oportunidades que uma determinada sociedade considera apropriados
para homens e mulheres (VITO CIASCA; HERCOWITZ; LOPES JUNIOR, 2021).
Assim, o gênero interage com, mas se diferencia do sexo biológico. A identidade
de gênero refere-se à capacidade dos indivíduos de se reconhecer como homem,
mulher, algo entre essas definições ou fora dessa dualidade, o que inclui inúme-
ras possibilidades de subversão à lógica binária homem-mulher na prática da
sexualidade (RAFART, 2020). Por outro lado, a expressão de gênero se refere a
como a apresentação do gênero de cada pessoa se manifesta pela aparência
física, incluindo as roupas, estilo de cabelo, acessórios, cosméticos, maneirismos,
fala, padrões de comportamento, nomes e referências pessoais (RAFART, 2020).
Por fim, a orientação afetivo-sexual refere-se à atração ou desejo, físico,
romântico ou emocional por outras pessoas (RAFART, 2020). Assim, a orientação
afetivo-sexual tem sido classificada como heterossexual (atraído por um gênero
oposto ao seu), homossexual (atraído pelo mesmo gênero), bissexual (atraídas
por mais de um gênero), pansexual (sentem atração independente do gênero),
assexual (não sentem atração em virtude do gênero), além de inúmeras outras
possibilidades (OMS, 2015).
Ao compreender as definições de corpo, sexualidade e gênero, podemos
refletir na seguinte problematização: “como pensar essas temáticas nas aulas
de Educação Física de uma escola de EPT?”. Inicialmente, torna-se importante
compreender que as temáticas relacionadas à sexualidade e ao gênero ainda
são um tabu no contexto escolar, pois são envolvidas num véu de mistérios,
culpas, dúvidas e repressões, de modo que precisam ser trabalhadas e desmis-
tificadas primeiramente junto aos educadores e familiares (DE MATOS, 2021).
Corroborando com essa ideia, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de
1998, reforçam que o gênero e a sexualidade devem ser trabalhados de maneira
transversal, ou seja, essas discussões devem permear todos os conteúdos e dis-
ciplinas, sejam do currículo propedêutico ou técnico-profissional (BRASIL, 1998).

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No contexto de uma escola de EPT, essa interface é possível pelo desen-
volvimento e criação de projetos integradores, que perpassam os mais variados
conteúdos e disciplinas. Não obstante, poderiam ser propostos estudos de caso,
feiras, oficinas, desenvolvimento e criação de portfólios e júris simulados sobre
as questões de gênero e sexualidade na sociedade e nas práticas corporais.
Por exemplo, “como compreender a participação de pessoas transgênero nos
esportes?”. A resposta para essa e outras perguntas poderia envolver uma
interdisciplinaridade entre os conteúdos do ensino médio integrado, como
a história – compreensão do contexto histórico, biologia – como o controle
hormonal é realizado, filosofia e sociologia – refletindo sobre essa participação
nas estruturas sociais e humanas, dentre outras disciplinas e conteúdos. Nesse
caminho, a Educação Física poderia contribuir fomentando discussões acerca
do gênero e da sexualidade nas mais variadas práticas corporais, incluindo os
jogos e brincadeiras, a dança, a ginástica, os esportes, as lutas e as práticas
corporais de aventura, ou seja, todas as práticas que constituem a cultura cor-
poral (BRASIL, 2017).
No contexto das aulas de Educação Física, poderiam ser adotadas aulas
mistas, igualando as oportunidades de participação dos meninos e das meninas
(BRASIL, 1998). Contudo, muitos professores deixam transparecer estereótipos,
que muitas vezes inconscientemente cobram coisas diferentes de meninos e
meninas, principalmente em relação às habilidades motoras e características
físicas (ALTMANN, 2015). De fato, os meninos ocupam espaços mais amplos
do que as meninas no ambiente escolar, por exemplo durante os intervalos,
enquanto os meninos utilizam o ginásio/quadra para jogar futebol, as meninas
utilizam espaços reduzidos para jogar vôlei (ALTMANN, 2015). Além de reforçar
os estereótipos de gênero acerca da dominação do sexo masculino sobre o
feminino, reforçam que certas práticas são de “meninos” e outras de “meninas”.
Desse modo, os professores de Educação Física devem evitar esses compor-
tamentos, incentivando a participação democrática e equitativa de todos os
estudantes durante as aulas (ALTMANN, 2015).
Contrapondo essa ideia, sabe-se que a Educação Física deve trabalhar
com todos os elementos da cultura corporal, incluindo os jogos e brincadeiras,
esportes, dança, lutas, ginástica e práticas corporais de aventura (BRASIL, 2017).
Assim, no âmbito dos jogos e brincadeiras, poderiam ser incentivados a prática

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


30
de jogos e brincadeiras taxados como “de meninos” e “de meninas”, de maneira
mista, buscando problematizar esse estereótipo social (LORO, 2018). Pois, os
jogos também são atividades organizadas por regras livremente estabelecidas e
são possibilidades que cooperam e engrandecem o amadurecimento intelectual,
oportunizando a interação entre companheiros e grupos, reduzindo a discri-
minação (LORO, 2018). Ademais, essas atividades são ótimas ferramentas de
ensino-aprendizagem; pois, permitem uma aprendizagem ativa dos conteúdos
conceituais, procedimentais e atitudinais, centralizando-se, principalmente, na
ludicidade (DOS SANTOS, 2021).
No caso das danças, aqui entendidas em um contexto mais amplo, por
meio das atividades rítmicas e expressivas, pode-se fomentar atividades e
vivências corporais que refuta a ideia de que “dança é coisa de menina/mulher”
ouvida constantemente nas aulas de Educação Física escolar. Assim, trabalhar
a ideia de dança sobre uma perspectiva do gráfico de esforço proposto por
Rudolf Laban pode mostrar aos meninos resistentes a essa prática, devido a
estereótipos previamente construídos, que a dança envolve diversos elementos
que também constituem outras práticas corporais, como as lutas e o esporte,
de modo que essa modalidade não pode ser taxada como “feminina” ou “de
mulher/menina” (RIBEIRO, 2019).
Historicamente, outra modalidade que tem sido taxada como “feminina”
é a ginástica (POMIN, 2020). Desse modo, inserir práticas corporais mistas e
multifacetadas pode ser a melhor estratégia para trabalhar com esse conteúdo,
perpassando não apenas a ginástica artística e rítmica, mas enfatizando ele-
mentos da ginástica geral (ginástica para todos), ginásticas de condicionamento
físico e ginásticas de conscientização corporal (POMIN, 2020). Especialmente,
a ginástica geral pode ser entendida como uma prática enriquecedora para a
Educação Física escolar, a qual contribui para o desenvolvimento omnilateral
dos escolares, rompendo estereótipos técnicos e corporais, além de dirimir as
definições universalizantes de corpos e gêneros (OLIVEIRA et al., 2021).
Por outro lado, esportes que apresentam maior contato físico e as lutas
mostram-se, muitas vezes, como práticas corporais que as meninas têm receio
em participar. Principalmente, por estereótipos de que essas modalidades exi-
gem capacidades físicas, habilidades motoras e técnicas coordenativas que as
meninas/mulheres não apresentam de maneira tão refinada. Contudo, essa ideia

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patriarcal e sexista, tem sido superada nas aulas contemporâneas de Educação
Física (ALTMANN, 2015). Por exemplo, estudo de Mariano et al. (2021) buscou
investigar se a aplicação de uma intervenção baseada nas lutas seria capaz
de reduzir o estigma e preconceito entre alunos do 3º ano do ensino médio do
município de Pinheiro, localizado no estado de Maranhão. Os pesquisadores
aplicaram seis sessões com duração de 140 minutos cada, envolvendo conteú-
dos teóricos e práticos sobre às lutas. Inicialmente, dos 150 alunos incluídos
(100%), 120 consideravam negativa a participação feminina (80%). Ao final da
intervenção, todos os alunos incluídos (100%) consideraram a participação
feminina positiva (MARIANO et al., 2021). Os autores destacaram também que
o conteúdo de lutas é uma importante ferramenta educacional no combate
aos estereótipos e preconceitos associados ao gênero (MARIANO et al., 2021).
Na Educação Física escolar, no que tange à questão de gênero, devem
prevalecer para todos os conteúdos aulas mistas de Educação Física, que
podem dar a oportunidade para que os meninos/homens e meninas/mulheres
convivam, observem-se, descubram-se e possam aprender a ser tolerantes,
não discriminar e a compreender as diferenças, não reproduzindo estereótipos
sociais autoritários (BRASIL, 2017). Assim, pela interação o adolescente terá
contato com a cultura, os valores e os saberes formados pela humanidade,
evitando estereótipos sociais e de gênero (BRASIL, 2017).
Destaca-se que para realmente dialogar com as temáticas de corpo,
gênero e sexualidade, os conteúdos da Educação Física devem ser trabalhados
em três categorias, a saber, conceitual (O que se deve saber? – fatos, princípios
e conceitos), procedimental (o que se deve saber fazer? – ligados ao fazer) e
atitudinal (como deve ser? – normas, valores e atitudes) (BRASIL, 1998). Res-
salta-se que essas categorias devem ser pensadas em conjunto, ou seja, todas
as atividades incluídas no planejamento devem contemplar as três dimensões,
de modo que o processo de ensino-aprendizagem seja realmente significativo
e integrado (BRASIL, 1998).
Não obstante, é importante ressaltar que dentro da EPT podem existir
projetos de extensão destinados ao esporte enquanto participação e rendi-
mento. No caso do esporte participativo, cujo foco é o lazer e a integração,
poderiam ser incentivadas práticas mistas das modalidades. No caso do esporte
enquanto rendimento, os esportes poderiam ser treinados separadamente

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


32
entre os sexos, de acordo com as normas das respectivas federações, visando
a participação em competições esportivas municipais, regionais e nacionais.
Contudo, independente da manifestação esportiva (participativa ou de ren-
dimento), os valores sociais, culturais e éticos dessas práticas corporais não
devem ser abandonados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora existam avanços relacionados às temáticas corpo, sexualidade e


gênero nas aulas de Educação Física escolar, alguns estereótipos ainda marcam
as práticas corporais dessa disciplina. Contudo, toda mudança é um processo
que exige tempo, trabalho e estudo, principalmente em relação a conceitos
que estão profundamente enraizados de maneira equivocada na nossa cultura,
exigindo um profundo esclarecimento e ressignificação para que sejam aceitos.
Desse modo, a educação e informação não somente dos alunos, mas
da comunidade familiar, escolar e de docentes são essenciais para a mudança
desses conceitos no âmbito da EPT. Em especial, a atuação do professor de
Educação Física é essencial, desenvolvendo todas as práticas da cultura corporal
em suas plenas potencialidades, de modo que todos os alunos, independente
do sexo, identidade de gênero e orientação afetivo-sexual desfrutem dos bene-
fícios físicos, mentais e sociais dessas práticas, tornando-se cidadãos críticos,
reflexivos e atuantes.

REFERÊNCIAS
ALTMANN, H. Educação física escolar: relações de gênero em jogo. São Paulo: Cortez, 2015.

BOSCATTO, J. D. et al. A educação física nos Institutos Federais: diagnóstico acerca dos referenciais
curriculares, conteúdos e abordagens metodológicas. Revista Prática Docente, v. 5, n. 3, p. 1627-1645,
2020.

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69-88, 1999.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação


Nacional. Brasília, 1996.

ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


33
BRASIL. Lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional,
Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras
providências. Brasília, 2008.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: Educação Física. Brasília: Ministério da Educação, 1998.

DAOLIO, J. Da cultura do corpo. 17. ed. Campinas: Papirus, 2013.

DE MATOS, T. A. V. Gênero e sexualidade na escola: o paradoxo da in/exclusão. Editora Appris, 2021.

DOS SANTOS, S. P. Jogos e brincadeiras na Educação Física: uma ferramenta pedagógica para
desmitificar a separação por sexo nas aulas contribuindo para o desenvolvimento do educando.
Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Educação Física) – Centro Universitário AGES,
Paripiranga, 2021.

LORO, A. P. Jogos e Brincadeiras: Pluralidades interventivas. Curitiba: InterSaberes, 2018.

MARIANO, E. D. et al. They can get hurted: Struggles to combat gender prejudice in School Physical
Education. Research, Society and Development, v. 10, n.3, e4410312946, 2021.

OLIVEIRA, D. S. et al. Corpo e gênero nas práticas inclusivas de Ginástica Para Todos na Educação
Física Escolar. Educación Física y Ciencia, v. 23, n. 2, e180, 2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Sexual health, human rights and the law. Geneva:
OMS, 2015.

POMIN, F. Ginástica. Curitiba: InterSaberes, 2020.

RAFART, M. Sexualidade Humana. Curitiba, PR: InterSaberes, 2020.

RIBEIRO, S. R. Atividades Rítmicas e Expressivas: a dança na educação física. Curitiba: InterSaberes, 2019.

SOARES, C. L. et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.

VITO CIASCA, S; HERCOWITS, A; LOPES JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+ práticas de cuidado


transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


34
03

PESQUISAS NA/EM EDUCAÇÃO DE


PESSOAS LGBTIA+: UM ESTADO DA ARTE
DE DISSERTAÇÕES E TESES SOBRE
GÊNEROS E SEXUALIDADES

John Jamerson da Silva Brito


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Witembergue Gomes Zaparoli


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

10.37885/230914331
RESUMO

As pesquisas sobre as questões de gêneros e sexualidades, especialmente


no contexto da educação, durante muito tempo limitaram-se unicamente a
ter pessoas LGBTIA+ como sujeitos, mas não como autoras. No entanto, a
partir de um movimento de inclusão e acesso nos espaços acadêmicos, essas
pessoas começaram a participar também do processo de produção e escrita,
compartilhando suas experiências. Portanto, este capítulo tem como objetivo
estabelecer um diálogo sobre as produções acadêmicas de pessoas LGBTIA+
que abordam questões de gêneros e sexualidades no âmbito da educação.
Utiliza-se como metodologia a revisão bibliográfica e a busca em bancos de
dissertações e teses para a construção de um estado da arte. Ao final do trabalho,
compreende-se que os escritos das pessoas LGBTIA+ apresentam semelhanças
em relação às perspectivas teóricas e metodológicas, que emergem a partir de
suas vivências singulares.

Palavras-chave: Gêneros, Sexualidades, Estado da Arte, Currículo,


Práticas Pedagógicas.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


36
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Considero1 que apenas ao me identificar e me reconhecer enquanto um


homem gay eu fui capaz de compreender minha posição no mundo, e como
algumas relações de poder (FOUCAULT, 1979) se estabelecem a partir das ques-
tões de gêneros e sexualidades, ocasionando em subalternizações, exclusões,
mas também transgressões. Somente quando tive esse entendimento é que
consegui falar e assumir minha identidade Gay, viver realmente quem eu sou,
pois anteriormente isso me aprisionou, já que ao imaginar usar a palavra gay
eu amedrontava-me e evitava, nesse interino, é que essa pesquisa nasce, do
meu processo de descoberta e libertação a partir do que Larrosa (2021) aponta
como a experiência que faz parte de nossas trajetórias de vida, trazendo (res)
significações para nossas vivências, atravessadamente ao que nos toca.
Apenas ao me (auto)formar enquanto professor, pedagogo e pesquisa-
dor, foi que eu consegui compreender um pouco da minha trajetória de vida,
e nesse sentido foi através desse entendimento que construí todo meu trilhar
da pesquisa até o presente momento. Esse texto surge da minha pesquisa de
Mestrado, e é gestacionado a partir da minha vida, do meu movimento de luta,
de estar em um espaço privilegiado (a universidade), que por tanto tempo foi
inalcançável para nós pessoas consideradas subalternas2.
Trabalhar então a partir dos gêneros e das sexualidades é importante para
compreender como os discursos (FOUCAULT, 1979) sobre eles são produzidos
nos espaços escolares, e na realidade como esses discursos são perpetuados a
partir de uma ordem de gênero binária homem/mulher (LOURO, 2018). Nesse
sentido, busco trazer narrativas de docentes Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transe-
xuais, Transgêneras, Travestis, Intersexuais, Assexuais e demais denominações
(LGBTIA+3) sobre suas histórias de vida para compreender como elas impactam

1 Esse texto será escrito na primeira pessoa do singular, a partir de uma ideia de escrita (auto)transformadora
(PASSEGGI, 2021), que em dados momentos dialoga com autores/as, tornando-se “nós”, e em outros
momentos um “eu” (coletivo/singular).
2 Conforme Spivak (2010), as pessoas consideradas subalternas são aquelas que estão as margens da sociedade,
e que são tidas como inferiores diante das classes hegemônicas de dominação.
3 Existem diversas formas de se escrever e referir a essa sigla, entretanto optamos por essa ao entender que a
mesma supri nossas necessidades de diálogo e pesquisa a partir de nossos aportes teóricos.

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nas produções de suas práticas pedagógicas (FRANCO, 2015) por meio de minha
dissertação junto ao Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em
Práticas Educativas – PPGFOPRED nível de Mestrado da Universidade Federal
do Maranhão – UFMA, mais especificamente em Imperatriz.
Nesse sentido, esse trabalho objetiva-se realizar um diálogo das produções
acadêmicas de pessoas LGBTIA+ sobre questões de gêneros e sexualidades
que estejam envoltas na educação a partir de um estado da arte, através de
pesquisas realizadas no âmbito de mestrados e doutorados pelo Brasil.
A importância de se construir esse estado da arte, é a de investigar as
produções que nos últimos anos vem permeando e adentrando neste caminho
que estou percorrendo, sendo assim possível comparar e possibilitar reflexões
acerca do que outras pessoas já produziram nesse campo de estudos, e como
essas produções podem contribuir ou dialogar com o campo das pesquisas em
gêneros e sexualidades na/em educação.
O presente capítulo organiza-se com essa primeira seção introdutória,
a vindoura aborda sobre o conceito de Estado da Arte e como as produções
(dissertações e teses) foram escolhidas para esse trabalho, além de trazer
os apontamentos metodológicos, e na penúltima seção é realizado o diálogo
entre essas referidas pesquisas, tendo por fim as considerações (in)conclusivas
desse trabalho.

O QUE É E COMO FAZER UM ESTADO DA ARTE?

Existem algumas regras básicas para se construir um estado da arte, mas


antes disso, eu vou justificar a minha opção nada tradicional, e (in)adequada
para esse tipo de pesquisa. Eu escolhi como critério, ler e dialogar com pesquisas
escritas exclusivamente por pessoas LGBTIA+, independente da base de dados
que a produção se encontra, ou do ano, ou do local geográfico.
Essa minha opção ocorre como uma forma de resistência, de enfren-
tamento a academia branco/cis/heteronormativa4 que por muito tempo só

4 Considero utilizar esse termo, por entender que majoritariamente as produções mais valorizadas e citadas
dentro das Universidades são escritas por homens, brancos e heterossexuais.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


38
valorizou pesquisas produzidas e escritas por pessoas que se encaixam aos
padrões normativos de gêneros e sexualidades, e rejeitou qualquer outro tipo de
escrita que fuja a tradicionalidade e feita por pessoas tidas como subalternas e
inferiores. Então o meu critério de seleção das pesquisas, não são descritores,
ou muito menos bases de dados, mas são pessoas. Pessoas que com certeza
enfrentaram muitos obstáculos para “dar luz” as pesquisas que carregam con-
sigo marcas de resistência e de luta por espaços nessa academia tão normativa.
Nesse movimento, é necessário transgredir aos padrões e regras aca-
dêmicas, mas isso não é um trilhar nada fácil. Confesso que no percurso deste
trabalho pensei em desistir, e realizar esse estado da arte a partir da busca por
meio de descritores em bancos de teses e dissertações. E na verdade eu o fiz,
utilizei “Docentes LGBT” e depois “Professores LGBT” para pesquisar, o que
encontrei foram pouquíssimos resultados acerca disso, em uma dessas buscas
encontrei apenas 19 dissertações, e ao ler seus resumos e introduções, nenhuma
delas havia sido escrita por uma pessoa LGBTIA+. E isto me inquietou bastante!
Será que nós LGBTIA+ não produzimos pesquisas sobre nós mesmos no âmbito
educacional? Ou ainda não alcançamos esse espaço de privilégio? Ou então
nossas produções não são propagadas nesses espaços? Ou mais ainda, nossas
histórias estão sendo contadas por outras pessoas? Essas são algumas das
questões que me motivaram e a realizar esse trabalho da forma como foi feita.
Então simplesmente entrei em contato com professores/as que pesqui-
sam nessa área, comecei a buscar textos que me recordava já ter lido e por
serem escritos por pessoas LGBTIA+, e percebi que produzíamos! Mas que
essas produções em sua grande maioria não carregam em seus títulos esses
descritores ou palavras-chaves “comuns”, e sim trazem subjetividades próprias
de cada pesquisa, sendo assim difíceis de serem localizadas e entrarem por
exemplo, numa pesquisa como a que eu pretendia fazer por meio de descritores
definidos e fechados em bancos de dados.
Optei então por transgredir a essa regra, e ir para além, utilizar de algo
preciosíssimo que temos: “as relações”, e busquei através de pessoas que
pesquisam na área. Então nossa rede de apoio é importante, nós produzimos
juntos/as e compartilhamos nossas pesquisas, e através dela que consegui che-
gar as pesquisas que aqui irei dialogar. Os critérios que utilizei para fechar nas
referidas pesquisas que irei dialogar no decorrer do trabalho, foram: Produções

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de pessoas LGBTIA+ e Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado que
tratem da temática de gêneros e sexualidades ligadas a educação;
O primeiro critério como já pontuei foi escolhido a partir de um movimento
de resistência e de transgressão a certas regras acadêmicas como forma de
valorizar as produções de pessoas LGBTIA+, o segundo optei por conta do
nível em que este trabalho está sendo desenvolvido, tendo a pós-graduação
como lócus, e o último critério por serem afincos com a temática da pesquisa
central de minha dissertação.
Após essas explicitações, chegou o momento de destacar então, o que é
um estado da arte e como um estado da arte é construído, mas você deve estar
se questionando o porquê justifiquei antes de explicar como se constrói, pois
queria logo que você tivesse a leitura desconstruída, para que ao entender o que
é um estado da arte, já não viessem com um pré-julgamento para essa proposta.
O principal objetivo de se produzir um estado da arte é “mapear e de dis-
cutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento”
(FERREIRA, 2002, p. 258), sendo então importante para conhecer diferentes
produções e abordagens sobre determinada temática ou temáticas em uma
área de estudo.
Sendo assim, o estado da arte possibilita a realização de uma espécie de
inventário sobre as produções acadêmicas relacionadas a temática que deseja-
mos escrever e pesquisar, entretanto, não é de uma forma meramente descritiva,
mas trazendo e analisando a partir de categorias que possam proporcionar a
compreensão dessas produções de forma mais analítica, compreendendo deter-
minados fenômenos que são pesquisados nessas produções (FERREIRA, 2002).
A construção desse tipo de produção permite que nós enquanto pesqui-
sadores/as possamos conhecer quais os principais caminhos que estão sendo
adotados na nossa área de pesquisa, e para além disso, quais análises já foram
feitas, compreendidas e quais lacunas ainda existem, e que como nós podemos
contribuir de forma inovadora com nossas pesquisas (ROMANOWSKI; ENS, 2006).
Assim, no campo educacional, o estado da arte traz importantes contri-
buições ao proporcionar a descoberta de experiências exitosas, ou então de
problemáticas e diálogos a partir de perspectivas que talvez não teríamos pensado
pelas limitações acadêmicas que existem, ou então como gosto de dizer, pelas

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


40
“bolhas” que vivemos ao lermos e estudarmos apenas aquilo que está muito
próximo de nosso objeto, no que tange as questões teóricas e metodológicas.
Ademais, é necessário deixar claro, que o meu trabalho com a produção
desse estado da arte não é apenas descrever ou apresentar as produções próximas
a minha temática, mas sim dialogar com essas produções, possibilitando para
mim e para vocês leitores/as entenderem os caminhos que pretendo seguir, e
o que já foi trilhado por outras pessoas que comungam comigo de resistências
e outras formas de luta, corroborando com a ideia de Romanowski e Ens (2006,
p. 39) de que os estados da arte não se “restringem a identificar a produção,
mas analisá-la, categorizá-la e revelar os múltiplos enfoques e perspectivas”,
e sendo assim, são necessárias para o diálogo que pretendo com meus pares.

AS PRODUÇÕES DE PESSOAS LGBTIA+: INTERFACES NA


EDUCAÇÃO

Após realizar pesquisas e leituras em diversos bancos de dissertações


e teses, além de conversar com pessoas que produzem na área, selecionei
07 trabalhos escritos por diferentes pessoas LGBTIA+, de diferentes áreas e
regiões. As produções selecionadas partem de temáticas plurais, perspectivas
teóricas e metodológicas, mas possuem aproximações no que tange as moti-
vações para suas escritas, além de em sua maioria dialogarem com sujeitos/
as que são LGBTIA+, e algumas delas terem até diálogos teóricos/metodoló-
gicos semelhantes.
Elaborei um quadro com algumas informações para melhor identificar as
obras aqui selecionadas, a partir de uma ideia de valorização das regionalidades,
identidades e temáticas trabalhadas.

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Quadro 01. Dissertações e Teses escritas por pessoas LGBTIA+ em ordem crescente por ano
(2010 – 2019) .

IDENTIFICAÇÃO LGBTIA+
AUTOR/A

REGIÃO
TÍTULO

TIPO
ANO
Rompendo a mordaça: repre-
sentações de professores e pro-
Joyce Alves da Silva5 2010 Tese Sul Mulher Trans
fessoras do ensino médio sobre
homossexualidade
Travestis na escola: assujei-
Luma Nogueira
tamento e resistência à ordem 2012 Tese Nordeste Travesti
De Andrade
normativa
Experiência e constituição de
sujeitos docentes: relações de Roney Polato
2014 Tese Sudeste Homem Gay
gênero, sexualidades e formação De Castro
em pedagogia
Por inflexões decoloniais de
corpos e identidades de Gê-
Viviane Vergueiro
nero inconformes: uma análise 2015 Dissertação Nordeste Mulher Trans
Simakawa
autoetnográfica da Cisgenerida-
de como normatividade
O diabo em forma de gente:
(r)existências de gays afemina- Megg Rayara
2017 Tese Sudeste Travesti
dos, viados e bichas pretas na Gomes De Oliveira
educação
Infâncias queer nos entre-
-lugares de um currículo: a João Paulo De
2018 Dissertação Sudeste Homem Gay
invenção de Modos de vida Lorena Silva
transviados
“Por que eu sou é homem?”:
Kauan Santos
O entre-lugar de bichas pretas 2019 Dissertação Nordeste Bicha Preta6
Almeida
na escola
Fonte: Elaborado pelo autor, 2022.

5 Joyce é uma mulher trans que realizou sua transição entre os anos de 2022/2023, sendo assim a sua pesquisa
de doutorado apresenta ainda seu nome morto (nome dado ao nascer, mas ao qual não se identifica atualmen-
te), e como forma de valorização nessa pesquisa, já iremos referenciar com seu nome novo.
6 Utilizar o termo bicha preta, e não homem gay é uma forma de especificar homens homossexuais que são consi-
derados mais femininos e possuem características e trejeitos mais estigmatizados socialmente por conta disso.
(ALMEIDA, 2019)

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


42
As produções trazem diferentes enfoques teórico/metodológicos, dife-
rentes anos, regiões distintas. Selecionei 04 teses e 03 dissertações. Conforme
observa-se no quadro, tentei elencar uma representatividade do grupo LGBTIA+
por meio da presença de autoras/es travestis, transexuais, negros/as e gays.
Das produções escolhidas, três são de programas do nordeste, três do Sudeste
e uma do Sul, tentei encontrar alguma que pudesse representar a região norte e
centro-oeste, mas não obtive êxito. Dessa forma, irei agora apresentar um pouco
das produções, através de breves reflexões dos principais pontos de cada obra,
e em seguida iremos dialogar a partir das perspectivas teórico/metodológicas
entre as pesquisas selecionadas e suas contribuições no campo educacional.
A primeira obra por ordem crescente dos anos, é da professora Joyce
Alves da Silva, com o título “Rompendo a mordaça: representações de professores
e professoras do ensino médio sobre homossexualidade” (2010), a partir desse
título já podemos perceber o movimento de resistência da autora, ao utilizar
uma analogia sobre “romper mordaças” que nos calam diante de práticas dentro
do âmbito escolar, ou seja, formas de silenciamento da população LGBTIA+ e
temáticas que nos envolvam.
Nesta tese, Silva (2010) pesquisa a partir das representações que pro-
fessores e professoras do ensino médio têm sobre a homossexualidade, a
partir de uma pesquisa de campo feito em duas escolas com um questionário
com perguntas semi estruturadas. A autora apresenta ao longo de seu texto
uma contextualização do que é sexo, sexualidade, gênero a partir de diferentes
enfoques como forma de situar o/a leitor/a.
Ainda, a autora apresenta o papel da Educação Sexual como biologizante,
por meio da reprodução dos estereótipos e das desigualdades de gêneros que
são marcantes em nossa sociedade. Nesse movimento ela apresenta como a
homossexualidade foi construída a partir de uma perspectiva sócio-histórico-
-cultural por meio da marginalização e exclusão de pessoas que fogem aos
padrões estabelecidos como normais e naturais.
Sendo assim, a autora utiliza-se e respalda-se nos Estudos Culturais por
meio dos processos de classificações sociais, controle e estigmatização daqueles/
as considerados subalternos. Além disso, “bebe” bastante na fonte da Teoria
Queer, por meio dos estudos de Michel Foucault, Judith Butler e Guacira Lopes
Louro, para compreender sobre as construções da heterossexualidade como

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natural e dada, além de utilizar da Teoria da Representação Social por meio
da Psicologia Social para a compreensão das representações que as pessoas
produzem de si e de “outrem”.
Nesse sentido, a obra de Silva (2010) vai de encontro aos teóricos/as
que pesquisam acerca das perspectivas de professores/as sobre a homosse-
xualidade dentro dos espaços escolares, e para além disso, por meio da Teoria
Queer, proporciona uma compreensão e um movimento de desconstrução das
construções binárias.
Conforme Miskolci (2017) a teoria Queer surge como uma perspectiva de
questionar as normativas de gêneros e sexualidades estabelecidas socialmente,
através das demandas dos movimentos sociais que buscam outras formas de
existência. Nesse sentido, reflete-se sobre as normas sociais que impõe uma
sexualidade inerente ao ser humano, e imutável, compulsória.
Louro (2018) nos diz que a partir da teoria Queer o movimento é de reflexão
e desconstrução dos regimes político-sociais acerca das questões de gêneros
e sexualidades, por meio dos questionamentos do que é dado como certo e
único, proporcionando um processo de análise das posições hierárquicas que
são estabelecidas a partir dessas duas categorias.
A segunda obra é “Travestis na escola: assujeitamento e resistência à
ordem normativa” (2012) de Luma Nogueira De Andrade, visa apresentar como
ocorre a inserção e qual o impacto da presença de travestis na escola. Para
isso, a autora aplicou um questionário em três escolas da rede estadual ao
qual reside, descobriu-se 25 travestis matriculadas. E sendo assim, através das
perguntas deste questionário ela buscou desvendar e entender se as pessoas
transgêneras desses lócus específicos conseguem transgredir as normativas
de gêneros que são impostas nos espaços escolares ou não, e como ocorrem
esses movimentos ou assujeitamentos.
A produção de Andrade (2012) é muito potente ao pensarmos o espaço
e as sujeitas de sua pesquisa, ao passo que historicamente o local e o lócus
que as travestis foram e são vistas estão ligadas a prostituição, como a pró-
pria autora aborda em seu texto, entretanto ao fugir desse padrão, ela nos
desvela determinadas situações e violências que essas sujeitas enfrentam nos
espaços escolares.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


44
Sendo assim, para suporte nesta pesquisa, ela utiliza-se e parte de uma
perspectiva feminista, pautada no pós-estruturalismo e na teoria Queer para
compreensão das identidades de gêneros e das construções normativas que
ocorrem entorno das sexualidades e dos gêneros.
A pesquisa de Andrade (2012) demonstrou o espaço escolar como um
local violento, que não valoriza e na verdade segrega e exclui a presença das
sujeitas travestis. Violências que são citadas nas entrevistas delas: o não res-
peito ao nome social na hora da frequência, a proibição do uso dos banheiros
femininos, ausência do debate sobre diversidade sexual no currículo, falta de
formação escolar para tratamento, a religião fortemente presente como jus-
tificativa e respaldo para a não aceitação e a violência, dentre tantas outras.
E nesse sentido, o discurso por parte dos/as professores/as em sua
maioria são de um assujeitamento e de uma marginalização e subalternização
dessas travestis. Ao olhar para esses resultados de Andrade (2012) corroboro
com minhas ideias e com as pesquisas que venho realizando, ao perceber que
o currículo e o espaço escolar tornam-se um violentador e um reprodutor das
violências sociais (re)produzindo as normativas de gênero.
Pensando então no que Bento (2011, p. 522) no diz “a sexualidade nor-
mal e natural é a heterossexualidade”, e o espaço escolar reproduz essa ideia
provocando violências e assujeitamentos de pessoas que transgridem a essas
normativas tidas como naturais. A educação por vezes acaba se distanciando,
e no caso excluindo essas pessoas por não saber lidar ou conseguir trabalhar
sejam as temáticas, ou simplesmente lidar com a presença dessas pessoas no
espaço escolar (LOURO, 2001).
A terceira obra é “Experiência e constituição de sujeitosdocentes: relações
de gênero, sexualidades e formação em pedagogia” (2014) do Roney Polato de
Castro, na qual o mesmo discorre sobre a experiência de ministrar uma disciplina
na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF sobre gêneros e sexualidades,
e como os/as sujeitosdocentes7 formam-se através da experiência formativa
dessa disciplina.

7 Esse é um termo cunhado pelo autor, para saber mais sobre o mesmo, acessar sua tese de doutorado referen-
ciada ao final desse trabalho.

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Castro (2014) utiliza-se também dos estudos pós-estruturalistas, aliados
aos estudos foucaultianos, e baseia-se no conceito de experiência e nos escritos
de Jorge Larrosa. A pesquisa foi construída a partir da análise dos processos de
formação docente nas universidades por meio de documentos das Licenciaturas
em Pedagogia sobre gêneros e sexualidades, e através de diários de bordos
escritos pelos/as estudantes na disciplina.
Por meio da análise dos diários de bordos, e das discussões e experiên-
cias vividas na disciplina, emergiram temáticas que Castro (2014) em sua tese
dialoga como importantes para a formação docente: as homossexualidades8
atravessadas pela heteronormatividade9 e pela homofobia; o discurso religioso
como instância de assujeitamento; as relações de gênero e o machismo e as
violências contra as mulheres.
O autor parte de uma pesquisaexperiência10, de uma análise dos currícu-
los, de narrativas docentes, através de uma valorização dessas experiências.
Nesse sentido a pesquisa de Castro (2014) é uma das escolhidas deste estado
da arte que mais aproxima-se com minha pesquisa de Mestrado, e, portanto,
contribui para compreender como os processos metodológicos e a perspectiva
pós-estruturalista e queer contribuem para pesquisas que visam problematizar
sobre experiências docentes e trajetórias formativas de pessoas LGBTIA+.
A pesquisa de Castro (2014) é um verdadeiro mar de sentimentos e
experiências formativas que nos permitem compreender como licenciandos/
as em Pedagogia formam-se dentro de uma disciplina que possui um caráter
não obrigatório, mas tão necessário e ao mesmo tempo tão subalternizado e
excluído, sendo essa disciplina vista como não necessária. Dessa forma, a partir
de sua pesquisa entendemos como é necessário que essas temáticas sejam
abordadas na graduação, na formação dos/as docentes para que o impacto seja
sentido e seu reflexo seja visto nas práticas pedagógicas da educação básica.

8 Entendida não apenas como uma forma de expressar homossexualidade, mas como várias e distintas cada qual
atravessada pelas suas interseccionalidades (CASTRO, 2014).
9 A heteronormatividade refere-se ao padrão normativo que controla os gêneros e sexualidades a partir da ideia
de que a heterossexualidade é única e natural (MISKOLCI, 2017).
10 Esse é um termo cunhado pelo autor, para saber mais sobre o mesmo, acessar sua tese de doutorado referen-
ciada ao final desse trabalho.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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Franco (2015) então nos permite compreender que as práticas docentes
só se tornam pedagógicas a partir do momento que há uma intencionalidade,
em que a/o docente tem um determinado propósito para aquilo que está sendo
abordado em sala de aula. Sendo assim é necessário que ocorra uma formação
sobre essa temática para que as/os professoras/es que estão formando-se
tenham acesso e possam transformar suas práticas, a partir dos contextos
e das realidades das pessoas, que por muito tempo foram e são silenciadas
(FRANCO, 2015).
A quarta obra é “Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de
Gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da Cisgeneridade como nor-
matividade” (2015) de Viviane Vergueiro, ao qual a autora traça uma autoetno-
grafia de sua trajetória realizando um processo de reflexão por meio da teoria
Queer e da decolonialidade, permitindo problematizações sobre os processos
de cisnormatividades11 que ocorrem sobre as vidas e corpos que fogem aos
padrões normativos estabelecidos socialmente.
Enquanto uma mulher trans, Vergueiro (2015) traz uma escrita comple-
tamente livre e resistente ao sistema de normatização dos gêneros, ao qual a
autora vai discorrendo sobre a realização da autobiografia e autoetnografia
respaldando-se teoricamente, além de abordar sobre as interseccionalidades
que atravessam as constituições de cada sujeita e sujeito, e de si própria.
Ao longo de seu trabalho, ela aborda sobre o conceito central da cisgene-
ridade e como esse conceito deve ser utilizado e refletido para a desconstrução
e descolonização dos corpos e gêneros. Além disto, a autora trabalha o conceito
dos corpos e gêneros inconformes, ou seja, aqueles/as que fogem aos padrões
tidos como naturais e dados, propondo reflexões sobre as transgressões que
os mesmos provocam nas normatividades.
O trabalho de Vergueiro (2015) parte da sua trajetória, portanto, ela
reúne suas experiências e vai dialogando com as teorias ao longo de toda sua

11 A cisnormatividade refere-se as normas sociais que impõe os gêneros cis como privilegiados e únicos dentro da
sociedade, de forma a nomeá-los como principais e os demais como incorretos e monstruosos (VERGUEIRO,
2015).

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dissertação, como uma forma de propor reflexões sobre os processos cisnor-
mativos que ela enfrentou em sua trajetória de vida.
Vergueiro (2015) ao final de seu trabalho, como os demais que apresentei
até o momento, não busca verdades únicas, mas traz reflexões decolonizadoras,
e para além, propõe que a metodologia da autoetnografia possibilite a contação
e reflexão das vidas de outras pessoas trans que precisam ser visibilizadas, a
partir das suas estratégias de (re)existir.
Nesse movimento, Lugones (2014) pode nos ajudar a compreender como
o gênero foi construído a partir de uma lógica colonial (LUGONES, 2014), que
busca enquadrar e normatizar os corpos a partir da colonialidade12 (QUIJANO,
2010) como forma de repressão e de controle, por meio de uma ideia dicotômica
da existência de apenas dois gêneros, sendo estes como normais e aceitáveis,
e qualquer outro que fuja a esse padrão deverá ser excluído.
A quinta obra traz o título “O diabo em forma de gente: (r)existências
de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação” (2017) de autoria de
Megg Rayara Gomes de Oliveira, ao qual a autora trabalha por meio da análise
das experiências de bichas pretas, viados e gays afeminados que fogem aos
padrões cisheteronormativos, e como a escola por meio da reprodução dessas
normativas impacta nas suas vidas e nos assujeitamentos deles.
Oliveira (2017) utiliza-se da metodologia das autobiografias para a cons-
trução de seu trabalho, por meio da análise a partir do conceito da interseccio-
nalidade. Os protagonistas de sua pesquisa, foram quatro professores negros
dos estados do Paraná e Rio de Janeiro que fogem as normativas padrões da
heteronormatividade.
Por meio de sua pesquisa, a autora compreendeu que “preto/a”, “gay
afeminado”, “viado” e “bicha” tornaram-se categorias, ao estarem presentes nas
histórias de vida de seus interlocutores. Ao longo de seu trabalho, ela apresenta
em determinados momentos uma relação mais formal com os/as autores/as, e
em outros de forma mais livre ela escancara os preconceitos e normatividades

12 Segundo Quijano (2010), a colonialidade é uma forma de poder angular que se utiliza de classificações étnicas
raciais para dominação e controle social, por meio de hierarquizações que possibilitam uma reprodução de
conceitos, planos e dimensões e diversas esferas desses padrões a partir da ideia branca.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


48
impostas enfrentadas tanto por seus sujeitos, quanto por ela própria enquanto
estudante e docente em sua trajetória de vida.
A autora utilizou a técnica de entrevistas semiestruturadas para conseguir
identificar nas trajetórias de vidas, pontos normativos, mas ao mesmo tempo
como ela coloca ao longo do texto, é perceptível que essas vidas são envoltas
em processos de resistência, por meio de transgressões que são produzidas por
seus sujeitos, não apenas a partir de estratégias intencionais, mas de própria
existência em dados espaços.
Então Oliveira (2017) ao trazer suas considerações aponta os processos de
racismo e homofobia como interseccionais, que provocaram diversas violências
nas trajetórias das bichas pretas, não apenas essas sujeitas de sua pesquisa,
mas de todas que em algum momento enfrentaram violências, especialmente
no contexto escolar. Foram essas violências que levaram as bichas pretas de
sua pesquisa a adentrarem no ambiente escolar, e na docência como forma de
resistência. Além disso, a autora aponta que foi por meio da resistência delas, e
do “dar a cara a tapa” que as bichas brancas conseguiram transitar livremente
por diversos espaços.
Os outros sujeitos, ou no caso as outras sujeitas possibilitam a transgressão
e a construção e reconstrução de um novo currículo e em conseguinte a uma
nova educação, sendo assim, Arroyo (2014) me permite refletir que é necessário
ouvir essas vozes, e a partir delas tecer críticas a tudo aquilo que é posto como
natural, aquilo que nos é dado dentro da educação como imutável e verdadeiro,
sendo necessário esse processo de escuta e de valorização das diferenças.
A penúltima obra é “Infâncias queer nos entre-lugares de um currículo: a
invenção de Modos de vida transviados” (2018) de João Paulo de Lorena Silva.
Nessa dissertação ele busca trazer o que o currículo faz com crianças que fogem
aos padrões normativos, aquelas crianças que são consideradas anormais,
monstruosas por apresentarem comportamentos fora das normativas cis. Sendo
assim, ele realiza uma análise do currículo enquanto dispositivo regulador.
A pesquisa foi realizada em uma escola na cidade de Belo Horizonte com
crianças dos anos iniciais de algumas turmas, por meio da presença do autor
utilizando-se da cartografia como metodologia de pesquisa, e em seguida da
análise por meio das perspectivas queer.

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Silva (2018) ao longo de trabalho faz um traçado por meio da cartografia,
apresentando as crianças e como seu encontro com elas impacta e produz
formas outras de se pensar as infâncias e os currículos, a partir de diálogos por
meio das diferenças e das construções dos conceitos de gêneros e sexualidades
dentro das perspectivas Queer.
Em seu texto fica evidente que o currículo e a escola buscam normati-
zar as crianças e na realidade produzir corpos heterossexuais, para que elas
“mudem” e tornem-se outras pessoas que não aquelas que fogem aos padrões
tidos como normais e únicos. Sendo assim, essas crianças fogem, elas bagun-
çam as noções de gêneros que se têm por meio de suas vidas, por meio das
suas simples existências.
Nesse sentido, Silva (2018) aponta que essas crianças produzem uma
terceira via, um entrelugar13 ao qual elas resistem, elas provocam inquietações,
e por meio dessas inquietações vão produzindo outras infâncias e outras formas
de se pensar os gêneros, o seu texto é uma carta-manifesto a todas as crianças
que em suas infâncias foram podadas apenas por serem quem são, é um ato de
resistência ao currículo enquanto opressor e normatizador daquelas que fogem
ao que é tido como normal e natural.
Corroborando nesse sentido, cito Paraíso (2015), que tensiona o pen-
samento a considerarmos que por mais que esse currículo seja um espaço de
normatização e controle, ele também é um espaço produtor de transgressões, de
outras vivências e experiências, possibilitando um questionamento dos processos
sociais normatizantes, provocando inquietações e desconfortos necessários.
A última obra analisada é “‘Por que eu sou é homem?’: O entre-lugar
de bichas pretas na escola” (2019) de Kauan Santos Almeida, ao qual o autor
traça reflexões sobre como o discurso curricular busca normatizar os corpos
de bichas pretas que fogem aos padrões vigentes das masculinidades, a partir
da interseccionalidade de raça e sexualidade.
Almeida (2019) utiliza-se dos Estudos Pós-Críticos em Educação e dos
Estudos Pós-Coloniais para fundamentar sua obra, a partir de uma cartografia

13 Esse é um termo cunhado pelo autor, para saber mais sobre o mesmo, acessar sua dissertação de mestrado,
referenciada ao final desse trabalho.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


50
em uma escola estadual na Bahia, por meio de entrevistas, diário de campo,
conversas informais e oficinas com bichas pretas que transgridem aos padrões.
Ao longo de sua dissertação, o autor apresenta que essas bichas pretas
conseguem produzir formas de resistências que influenciam e impactam no
currículo, produzindo outras experiências e assim outras formas de compreender,
para além, provocam questionamentos e movimentos de resistências nesses
espaços teoricamente normativos.
Ao fim de seu trabalho, Almeida (2019) afirma que tal qual metralhado-
ras, a palavra preta e, portanto, bichas pretas provocam inquietações e assim
traçam outras linhas e outras formas de se ver e entender suas presenças nos
currículos, a partir da ideia de produção das diferenças.
Então, ao compreender o papel do currículo, e por fim o papel que os/as
educadores possuem na vida de todos/as, podemos enfim, traçar um caminho,
ao qual todas as obras aqui citadas levaram, sendo direcionadas para o âmbito
escolar e em diversos momentos para as práticas pedagógicas das/dos docentes.
As produções escolhidas apresentam similaridades teóricas e metodoló-
gicas, porém mais que isso, elas apresentam os/as sujeitos/as como pessoas
que resistem em seus espaços, a partir de uma fuga, transgressão ou até enfren-
tamento aos padrões estabelecidos, de forma que elas não somente existam
nesses lócus, mas possibilitem o “florescer” de novas perspectivas.
Pesquisas em/na educação sobre pessoas LGBTIA+ que visam propor-
cionar reflexões sobre suas vivências e suas experiências são extremamente
necessárias, para compreender os dispositivos e instrumentos normatizantes
utilizados pela sociedade, mas ao mesmo tempo conhecer e perceber as pos-
sibilidades incríveis que são postas, ao superarem e transgredirem diversas
formas de controle e de repressão e exclusão dentro dos espaços educativos
também se faz necessário, através das resistências que por vezes se dá de
maneira mais direta, e outrora indireta.

CONSIDERAÇÕES (IN)CONCLUSIVAS

Devo admitir que não foi nada fácil a produção deste trabalho, seja por
todas as dificuldades de encontrar e selecionar as obras, quanto o processo de
escolha e de valorização das que aqui foram escolhidas. Mas ao mesmo tempo

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fico grato ao perceber que nós LGBTIA+ estamos produzindo obras únicas
e potentes que em sua grande maioria nos trazem enquanto protagonistas,
produtores/as dos conhecimentos, donas/os de nossas vozes que podemos
falar, resistir, brigar e gritar, problematizando a partir de nossas experiências
e múltiplas realidades.
Percebe-se que todas/os as/os autoras/es trazem motivações pessoais
a partir de suas vivências para pesquisar e escrever sobre o que falam em suas
obras, mas para além, seus textos são encarnados, trazem consigo marcas de
vida, cicatrizes que não podem ser esquecidas, mas que são parte de suas vivên-
cias, e que compartilho com elas/eles também de algumas dessas cicatrizes.
Existe um respeito muito grande por parte das/os pesquisadoras/os sobre
suas/seus sujeitas/os, ao passo que são trilhadas e traçadas suas histórias de
(re)existência de forma cuidadosa, empática e única, nos proporcionando um
deleitar sobre as escritas, que além de forma muito potente dialogam majo-
ritariamente com a perspectiva quer e com estudos decoloniais, trazem uma
linguagem mais livre, mais próxima a nós leitoras/es.
Então ao final dessa produção, compreendo que é necessário visibilizar-
mos esses trabalhos, que por muitas vezes são excluídos e não considerados,
por trazerem temáticas, histórias e escritas transgressoras que não são aceitas
por grande parte da comunidade acadêmica que ainda fortemente apresenta
rejeição as sexualidades e gêneros inconformes e dissidentes.
Não quero traçar notas conclusivas aqui, mas notas (in)conclusivas, pois
acredito que este estado da arte não conseguiu chegar nem perto de mensurar a
potência, ou então reunir muitos dos trabalhos belíssimos produzidos por pessoas
LGBTIA+, entretanto é um início para que esse percurso seja traçado por outras
pessoas que pretendam reunir e trabalhar a partir da riqueza que produzimos.
Buscamos nosso espaço dentro de um universo tão heteronormativo e
machista, e aos poucos estamos vencendo pequenas batalhas que nos permi-
tem adentrar nos entrelugares, nos permitem transgredir e valorizar as corpas
e corpos tão subalternizados, inconsistentes e dissidentes.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


52
REFERÊNCIAS DAS TESES E DISSERTAÇÕES ANALISADAS
ALMEIDA, Kauan Santos. “Por que eu sou é homem?”: o entre-lugar das bichas pretas na escola.
2019. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais,
Universidade Federal do Sul da Bahia, Porto Seguro, 2019. Disponível em: https://bityli.com/SkODpv.
Acesso em: 06 abri. 2022.

ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa.
2012. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/7600. Acesso em: 06 abri. 2022.

CASTRO, Roney Polato de. Experiência e constituição de sujeitosdocentes: relações de gênero e


sexualidades e formação em Pedagogia. 2014. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2014. Disponível em: https://repositorio.
ufjf.br/jspui/handle/ufjf/1334. Acesso em: 06 abri. 2022.

SILVA, Joyce Alves da. Rompendo a mordaça: representações de professores e professoras do ensino
médio sobre homossexualidade. 2010. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/
tde-27012011-144716/pt-br.php. Acesso em: 06 abri. 2022.

OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. O diabo em forma de gente: (r) existências de gays afeminados,
viados e bichas pretas na educação. 2017. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.
br/handle/1884/47605. Acesso em: 06 abri. 2022.

SILVA, João Paulo de Lorena. Infâncias queer nos entre-lugares de um currículo: a invenção de modos
de vida transviados. 2018. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.
br/bitstream/1843/BUOS-B5THZ5/1/disserta__o_de_mestrado_joao_paulo_de_lorena_silva.pdf.
Acesso em: 06 abri. 2022.

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes:


uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2016. Dissertação (Mestrado) –
Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/19685. Acesso em: 06 abri. 2022.

REFERÊNCIAS GERAIS
ARROYO, Miguel. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2014

BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Feministas
[online]. 2011, v. 19, n. 2. pp. 549-559. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2011000200016.
Acesso em: 06 abri. 2022.

FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas” estado da arte”. Educação &
sociedade, v. 23, n. 79, p. 257-272, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10857.
pdf. Acesso em: 06 abri. 2022.

FRANCO, Maria Amélia Rosário Santoro. Práticas pedagógicas de ensinar-aprender: por entre
resistências e resignações. Educação e Pesquisa [online]. 2015, v. 41, n. 3, pp. 601-614. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S1517-9702201507140384. Acesso em: 13 dez. 2021.

LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Rev. Estud. Fem.
[online]. 2001, vol.9, n.2, pp.541-553.

ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


53
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e a teoria queer. 3. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2018.

LUGONES, María. “Rumo a um feminismo descolonial”. Revista Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p.


935-952, set./dez., 2014.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Cadernos da Diversidade nº 6,


3 ed. Belo Horizonte, Autêntica Editora, UFOP– Universidade Federal de Ouro Preto, 2017.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Um currículo entre formas e forças. Revista Educação. Porto Alegre, v. 38,
n. 1, p. 49-58, jan.-abr. 2015.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de;
MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo:Cortez, p. 72 – 117, 2010.

ROMANOWSKI, Joana Paulin; ENS, Romilda Teodora. As pesquisas denominadas do tipo “estado da
arte” em educação. Revista diálogo educacional, v. 6, n. 19, p. 37-50, 2006. Disponível em: https://
periodicos.pucpr.br/dialogoeducacional/article/download/24176/22872. Acesso em: 06 abri. 2022.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida;
Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução Cristina Antunes e João Geraldi. 1
ed. 5 reimp. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979.

PASSEGGI, Maria da Conceição. REFLEXIVIDADE NARRATIVA E PODERAUTO(TRANS)FORMADOR.


Práxis Educacional, [S. l.], v. 17, n. 44, p. 93-113, 2021. DOI:10.22481/praxisedu.v17i44.8018. Disponível
em:https://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/view/8018.Acesso em: 23 dez. 2022.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


54
04

LESBOFOBIA, HOMOFOBIA,
TRANSFOBIA, RACISMO E ASSÉDIO:
REVISÃO SISTEMÁTICA QUALITATIVA DE
LITERATURA

Eva Juliana Rodrigues de Souza


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Jonas Costa Rodrigues


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Adiel Augusto da Silva Magalhães


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Carlos Alberto Batista Santos


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

10.37885/230814148
RESUMO

Objetivo: Esta pesquisa teve como objetivo destacar a produção acadêmica da


Universidade do Estado da Bahia em torno dos temas lesbofobia, homofobia,
transfobia, racismo e assédio, além de destacar as ações e políticas institucionais
desenvolvidas ou apoiadas pela Pró-Reitoria de ações afirmativas da UNEB.
Métodos: Este é um trabalho de Revisão Bibliográfica Sistemática Qualitativa
que segue sete passos estruturais: Formulação da pergunta; Localização dos
estudos; Avaliação crítica dos estudos; Coleta de dados; Análise e apresentação
dos dados; Interpretação dos dados e aprimoramento e atualização da revisão.
Resultados: Os resultados apontam ainda para um pequeno número de estu-
dos com foco na discriminação pela orientação sexual e gênero, geradores de
comportamentos racistas e abusivos na nossa sociedade. Conclusão: A difusão
de conhecimentos, auxilia na compreensão do outro, seus sentimentos, e sua
forma de ser e estar no mundo.

Palavras-chave: Preconceito, Racismo Estrutural, Misoginia, Assédio Moral.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


56
INTRODUÇÃO

Ações afirmativas são políticas sociais de combate a discriminações


étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, para promover a participação
de grupos sociais vulneráveis nos processos políticos, no acesso à educação,
saúde, emprego, bens materiais, entre outros.
No Brasil as ações afirmativas têm sido uma temática recorrente, no
entanto, esse tema ainda é desconhecido da maior parte da sociedade onde
predomina o senso comum.
Aqueles que defendem as ações afirmativas ou as criticam ou fazem
objeções a estas, nem sempre respaldam suas argumentações em dados cien-
tíficos o que torna a discussão ineficaz e superficial. Quase sempre reduzida
à questão das cota, as ações afirmativas, têm acendido um debate em que
afloram posições por muitos consideradas ultrapassadas (MEDEIROS, 2004).
Nos debates atuais o termo ação afirmativa tem sido associado prin-
cipalmente a política de cotas ou cotas corretivas e a outros termos como:
discriminação positiva, racismo positivo, medidas positivas, ação ou política
compensatória, políticas corretivas ou de reparação, reservas ou representação
seletivas, indigenização ou nativização em referência às cotas corretivas, política
de gênero ou de paridade, ação positiva, promoção da diversidade, entre outros.
Trabalhar com a palavra discriminação em nossa sociedade é algo bas-
tante complexo devido ao seu uso pejorativo e costume. Neste capítulo, o termo
discriminação é adotado como sinônimo de distinguir, diferençar, variar, discernir,
separar e especificar, termos isentos de um julgamento moral (YINGER, 1968).
Porém, a palavra discriminação é usada em nossa sociedade para esta-
belecer um julgamento moral sendo utilizada para adjetivar uma situação como
sendo injusta carregada de injuria. Dessa forma neste texto adotamos como
significado para o termo discriminação toda ação que gere prejuízo para um
indivíduo ou grupo de indivíduos em razão de alguma característica pessoal, cor
da pele, classe social, convicções religiosas, regiões do país e condição física
seja esta circunstancial ou permanente.
Defendemos também a afirmação que discriminar descritivamente e posi-
tivamente nos leva à prática de atos justos, e não discriminar descritivamente
nos conduzirá a uma injustiça. Discriminação positiva aqui é entendida como

ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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um instrumento para contribuir com a justiça social, cooperando para estabe-
lecer equilíbrio e garantias para pessoas que, historicamente, encontram-se em
grupos excluídos pela sociedade (GLUZ, 2010).
Desta forma discriminar descritivamente em determinadas situações nos
ajuda a construir uma sociedade mais democrática (SILVA, 2008). Para este
autor não discriminar por si só não nos garante a inclusão de um indivíduo ou de
um grupo minoritário socialmente fragilizado, podendo tal atitude excluir ainda
mais determinado indivíduo ou grupo. Não discriminar pode ser tão prejudicial
a uma pessoa ou grupo como discriminar, ou seja, podemos tanto incluir discri-
minando, como excluir não discriminando. Dessa forma a palavra discriminação,
quando utilizada sozinha, estará se referindo a situações arbitrárias e injustas e,
quando apresentada como discriminação positiva, será no sentido de promover
um tratamento justo e igualitário, ou seja, é necessário discriminar.
As ações afirmativas são políticas públicas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário (GOMES, 2003), por determinação e/ou orientação
do Estado e/ou por iniciativas privadas que cumprem uma finalidade pública
decisiva para o projeto democrático, que é a de assegurar a diversidade e a
pluralidade social (PIOVESAN, 2005).
É preciso entender que as políticas públicas são ações praticadas por
instituições do Estado, e as Universidades têm papel fundamental na participação
e implementação dessas políticas, uma vez que, possuem como instrumento
primordial de ação a formação, educação e consequente conscientização para
o despertar da sociedade através da construção/produção de instrumentos de
divulgação/educação/conscientização utilizando-se do conceito de discriminação
positiva como uma ação afirmativa, com foco nos grupos sociais minoritários,
definindo-se aqui minoria como sendo um grupo de pessoas que difere da maioria
dos cidadãos tanto em aparência física, como na cultura (MORSBACH, 1969).
A importância das ações afirmativas, entre estas, as cotas enquanto
instrumento para a equiparação voltada às minorias étnicas raciais, que cor-
respondem à população mais pobre do país, as quais são negros, indígenas,
quilombolas, caiçaras, pescadores artesanais entre outros grupos humanos
alijados das políticas públicas, permitindo-se assim, a construção de políticas,
que repercutam positivamente em grupos discriminados historicamente, eco-
nomicamente e socialmente.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


58
Destacamos a valoração das cotas raciais, pois são conhecidas como
ações afirmativas positivas ou negativas, a valoração depende da interpretação
subjetiva de cada pessoa, que será influenciada pelo meio social e oportunidades
que lhe foram oferecidas.
A Universidade do Estado da Bahia, em 2002 inaugura as discussões sobre
o acesso à Universidade pelos grupos étnicos e publica a Resolução CONSU
196/2002 que prevê o quadro de vagas para afrodescendentes no vestibular,
sendo pioneira no Nordeste a instituir o sistema de cotas, desde então vem apri-
morando através de uma política de ações afirmativas o acesso à universidade
através das Resoluções CONSU: 370/2006 (cotas para indígenas); 468/2007;
605/2008; 710/2009; 711/2009; 804/2010 e 847/2011, culminando com a publi-
cação da atual Resolução CONSU 1339/2018 (Aprova o sistema de reservas de
vagas para negros e sobre vagas para indígenas; quilombolas; ciganos; pessoas
com deficiência transtorno do espectro autista e altas habilidades; transexuais
travestis e transgénero no âmbito da UNEB).
Esta pesquisa tem como objetivo destacar a produção acadêmica da
Universidade do Estado da Bahia em torno dos temas lesbofobia, homofobia,
transfobia, racismo e assédio, além de destacar as ações e políticas institucionais
desenvolvidas ou apoiadas pela Pró-Reitoria de ações afirmativas da UNEB.

MÉTODOS

Para a presente pesquisa utilizou-se a metodologia de Revisão Bibliográ-


fica Sistemática Qualitativa proposta por Botelho, Cunha e Macedo (2011), os
quais citam sete passos a serem seguidos na revisão sistemática: Formulação
da pergunta; Localização dos estudos; Avaliação critica dos estudos; Coleta de
dados; Análise e apresentação dos dados; Interpretação dos dados e aprimo-
ramento e atualização da revisão.

Localização dos Estudos

Foram utilizados como bases de dados o Scielo (https://www.scielo.org/),


Scopus (https://www.scopus.com/); google scholar (https://www.googlescholar.
com/) e o repositório institucional da UNEB, Saber aberto-Portal UNEB (https://

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portal.uneb.br/avisos/saber-aberto/) onde publicações de todos os anos nestas
bases de dados foram consideradas. Empregou-se para cada base de dados
os seguintes descritores: “Lesbofobia”, “Homofobia”, “Transfobia”, “Racismo”
e “Assédio”, combinadas entre si e com a sigla UNEB.

Avaliação crítica dos estudos

Para a seleção dos estudos nas bases de dados foram adotados critérios
de inclusão e exclusão, que delimitaram apenas os artigos que investigaram os
conteúdos sobre lesbofobia, homofobia, transfobia, racismo e assédio. Como
critério de inclusão foram analisados inicialmente o título, resumo e palavras-
-chave, ressaltando que todos os artigos foram analisados, sem temporalizar.
Como critério de exclusão, eliminamos aqueles que não abordavam claramente
os temas da pesquisa.

RESULTADOS

Ao concluir a Revisão Sistemática chegou-se a um número reduzido


de trinta e nove artigos inclusos (Tabela 01), entre os duzentos e cinquenta
artigos selecionados, cujos autores pesquisaram acerca dos temas lesbofobia,
homofobia, transfobia, racismo e assédio, revelando que os temas citados são
discutidos no meio acadêmico, mas que ainda sim se faz necessário intensificar
estudos dessa natureza.

Tabela 01. Número de artigos localizados por base de dados.


Base de dados Encontrados Excluídos Selecionados
Scielo 0 0 0
Saber Aberto 54 45 9
Scholar Google 197 167 30
Total 251 212 39
Fonte: Ao autores (2023).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


60
DISCUSSÃO

As pesquisas e discussões a respeito das dinâmicas de gênero e sexua-


lidade transcendem os âmbitos biológicos, concentrando-se primariamente
nas configurações societais e nas manifestações múltiplas de masculinidades
e feminilidades. Nesse sentido, demandam uma ação nas dinâmicas de poder
que resultam em desigualdades sociais entre indivíduos de gêneros diferentes,
bem como em identidades reprimidas das convencionais. Cruz (2012) alega
que os preconceitos que dizem respeito ao sexo resistem à chegada do século
XXI e, graças à desinformação, ainda se fazem presente, em muitas situações.
Conforme analisado por Goffman (1998), os indivíduos ditos como “nor-
mais” forjam uma ideologia destinada a elucidar a inferioridade das pessoas por
meio da aplicação de um estigma, eventualmente exercendo controle sobre a
ameaça que essas pessoas encontradas representam. Esse processo envolve
a crença e a promoção da ideia de que alguém carregando um estigma carece
da verdadeira humanidade. Portanto, a criação social de pessoas ou conjuntos
socialmente estigmatizados é uma especificidade, moldada por elementos
socioculturais e históricos, cujos indicadores utilizados para estigmatização
oscilaram ao longo de diferentes épocas e entre vários grupos culturais.
De acordo com Silva (2008) é necessário principalmente a conscientização
de que existem maneiras distintas de estruturar a vida e diferentes emoções
que vão além de relações entre pessoas de sexos opostos. A negação dessas
realidades manifesta-se como uma forma de lesbofobia, uma forma de violência
arraigada que se estende por várias esferas da sociedade. Isso resulta em uma
propagação de impactos que afetam a sociedade em geral, perpetrando amea-
ças, agressões e até homicídios contra mulheres, tudo em virtude da interseção
entre questões de gênero, sexualidade não heterossexual e raça. Este tipo de
violência não pode ser categorizado meramente como uma manifestação singular
de homofobia ou violência de gênero, mas sim como uma forma de violência
interconectada. É um ponto de interseção que vincula gênero, sexualidade e
raça, sendo uma especificidade de natureza social.

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61
Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer forma
de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico,
emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por
base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra
determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua
condição de sexo ou orientação sexual (SARDENBERG, 2011, p. 1).

A compreensão da lesbofobia está em sintonia com a perspectiva


delineada por Lorenzo (2012), que enxerga como um sistema político que
perpetua a opressão, a dominação e a subjugação. Nesse arranjo, o cerne é o
sexismo, o que entrelaça elementos como machismo, misoginia e homofobia.
Isso implica que a lesbofobia abarca uma dimensão concreta, uma vez que as
mulheres lésbicas são alvo de discriminação, opressão e subordinação em uma
dualidade de formas.
Conforme articulado por Silva (2017), no contexto das lutas das lésbicas
negras, suas identidades se entrelaçam de maneira interseccional: dentro da
comunidade LGBT, a dimensão de sua negritude se destaca, enquanto na
comunidade negra, sua orientação lésbica é proeminente. A resistência eficaz
não pode ser limitada a combater apenas uma forma de opressão. Para os indi-
víduos pertencentes à comunidade negra, é imperativo enfrentar esse problema,
não apenas devido à influência do patriarcado na configuração das dinâmicas
de poder em níveis pessoais, interpessoais e até mesmo íntimos, mas também
porque o patriarcado se sustenta sobre fundamentos ideológicos semelhantes
aos que sustentam a existência do racismo. Ambos relatam na opinião na domi-
nação edificada através de noções de inferioridade e superioridade (BAIRROS,
1995). O racismo exerce influência sobre as interações individuais, interpessoais,
institucionais e organizacionais, assim como sobre emoções e comportamentos,
independentemente de serem propositados ou não. É crucial considerar que a
interseccionalidade representa um desafio que exige atenção tanto no cenário
diretamente das mulheres lésbicas negras, relegando-as à posição de sujeitos
marginalizados. Essa dinâmica busca efetivamente minar sua capacidade de
se perceberem como agentes políticos conscientes. Dessa forma, as lésbicas
negras afirmam que a luta contra o racismo não garante o enfrentamento à
opressão sexual.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


62
Tem várias formas de se matar alguém, talvez, a mais cruel, é
invisibilizando. Não cabemos mais na família biológica, não somos
dignos de relações afetivas, somos expulsos da escola, do mercado
de trabalho, violentados nos serviços de saúde e seguimos na
cadência sofrida de nos parir diariamente, de construir novas
formas de ser e de amar (MAGNONI; SOUZA. 2016).

As intersecções passam a ser discutidas no movimento feminista, como


raça, orientação sexual, identidade de gênero, anos mais tarde, faz-se necessá-
rio perceber as várias formas de ser mulher. Se uma realidade não é nomeada,
nem sequer será pensada melhorias para esta realidade invisível (RIBEIRO,
2022). E a realidade das pessoas transexuais, nesse caso é invisibilizada. Infe-
lizmente, a lista de vítimas do grupo LGBT+ cresce a cada dia. Como mostra a
pesquisa realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB): no Brasil em 2022 foram
242 homicídios - ou uma morte a cada 34 horas -, além de 14 suicídios. Os gays
são metade das vítimas, com 153 casos (51%); os homossexuais masculinos são,
há quatro décadas, os mais atingidos pela violência, depois, são os travestis e
transexuais com 110 casos (36,7%), lésbicas com 12 ocorrências (4%), bisse-
xuais e homens trans com 4 casos (1,3%). Há ainda uma ocorrência de pessoa
não binária (que não se identifica com o gênero masculino ou feminino) e um
heterossexual, confundido com um gay.
Essas constatações ratificam a necessidade de promover produções
no âmbito acadêmico e da comunicação que aprofundem a percepção das
identidades e da existência dessas pessoas. Nesta pesquisa, defendemos uma
proposta para se refletir sobre a discriminação negativa que existente, visto que,
diante dos padrões impostos e cristalizados da sociedade, especialmente para
essas pessoas, quanto à sexualidade, formas afetivas e raça essa comunidade
encontra-se em um lugar marginalizado. Nesse sentido, trata-se de um tema
que deve ser enxergado a partir de uma lente política e social. Portanto, em
2002, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) foi a primeira instituição a
estabelecer uma Política de Ação Afirmativa voltada para o ingresso de negros
e indígenas nos cursos de Graduação e Pós-graduação. Somente a partir de
2012 é que mais propostas de Ação Afirmativa começaram a surgir nesse nível
de ensino (VENTURINI, 2019).

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Em 2019 a UNEB adotou cotas para estudantes transgêneros, travestis,
transexuais, quilombolas e portadores de deficiência, nos processos seletivos
para os cursos de graduação e pós-graduação. Neste cenário, particularmente
no contexto educacional, são adotadas políticas afirmativas com o propósito de
diminuir os preconceitos culturais e fomentar a equidade de direitos. Isso é alcan-
çado por meio da instituição de medidas de reserva de vagas (AMARAL, 2019).

CONCLUSÃO

É fundamental reconhecer que a sociedade requer a difusão e promoção


de conhecimentos, bem como a absorção reflexiva de conceitos, crenças e
culturas. Isso se deve ao fato de que os indivíduos dentro da sociedade formam
compreensões baseadas em experiências e compartilham vivências. Dentre
essas, merecem destaque significativo aquelas que emergem dos contextos
educacionais frequentados pela grande maioria dos cidadãos.
Este estudo permitiu verificar as ações desenvolvidas pela Universidade
do Estado da Bahia e proporcionou a formação de grupos de discussão sobre
os temas aqui abordados, permitindo aos discentes do curso de agronomia
perceber as diferenças sociais no ambiente da universidade.
Faz-se necessário dar continuidade às discussões hora iniciadas no meio
acadêmico de forma sistematizada, e a divulgação contínua das produções
acadêmicas da UNEB para a sociedade.

Agradecimentos

À Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Pró-Reitoria de Ações


Afirmativas pela concessão das bolsas de estudo do Projeto Afirmativa/UNEB.

REFERÊNCIAS
AMARAL, M. J. O negro e a luta por reconhecimento: as cotas raciais na Universidade. Dissertação
(Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande, FURG, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Rio Grande do sul, RS, 2019.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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BAIRROS, L. Nossos feminismos revisitados. Estudos feministas, v. 3, n. 2, p.459-463, 1995.

BOTELHO, L. L. R.; CUNHA, C. C. A.; ·MACEDO, M. O método da revisão integrativa nos estudos
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CRUZ, R. C. Preconceito social na Internet: a reprodução de preconceitos e desigualdades sociais a


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GLUZ, N. Discriminação positiva. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M. C.; VIEIRA, L. M F. Dicionário:
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Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. p. 13.

GOMES, J. B. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In.: SANTOS, R. E.; LOBATO, F.
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LORENZO, A. A. La construcción cultural de la lesbofobia. Una aproximación desde la antropología


UNAM, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades. Cap. VII, pp. 125-
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Ações afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da educação, Secretaria
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RIBEIRO, N. Educação popular e discurso político nos movimentos sociais: relações de influência
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SARDENBERG, C. M. B. A violência simbólica de gênero e a lei “antibaixaria” na Bahia. Ensaio


apresentado como contribuição aos debates sobre o Projeto de Lei No.19.137/2011, na Comissão da
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SILVA, L. C. G. Políticas de ações afirmativas: a experiência do Projeto Negraeva. Dissertação


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VENTURINI, A. C. Ação afirmativa em programas de pós-graduação no Brasil: padrões de mudança


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65
05

GÊNERO, EDUCAÇÃO E GAMIFICAÇÃO:


UM REFERENCIAL TEÓRICO

Auricelia de Aguiar Silva


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Dimas dos Reis Ribeiro


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Paula Milena Magalhães Miranda


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Welingthon dos Santos Silva


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

10.37885/230914546
RESUMO

O presente artigo traz uma abordagem sobre o percurso da história feminina


e o seu processo educacional, assim como a utilização da gamificação nas
discussões sobre gênero. Nesse sentido, objetivamos refletir sobre a história
feminina e a utilização da gamificação como instrumento para a discussão do
gênero feminino na educação. Este trabalho trata-se de uma pesquisa biblio-
gráfica, em que a fundamentação teórica utilizada pauta-se em autores como
Burke (2002), Carneiro (2019), Bonenfant (2023), Duarte (2003), Foucault (2022),
Gerda (2019), Louro (2014), Mignolo (2023), Soihet (1998), e demais autores
do campo da educação e da história que nos permitem compreender sobre
gênero e a gamificação. Com base na discussão sobre gênero e a gamificação,
percebemos que por meio das experiências e desafios da gamificação, os/as
estudantes participam da construção do conhecimento, desenvolvendo sua
autonomia e assumindo um papel ativo no seu processo de aprendizagem a
partir das discussões de gênero e diversidade.

Palavras-chave: Gênero, Educação, Gamificação, Aprendizagem, Desafios.

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INTRODUÇÃO

O processo de ensino e aprendizagem é um campo, também, de inves-


tigação que abrange múltiplos aspectos da educação, tais como gênero, femi-
nismo, educação popular, etc., e atrelado a isso, o uso da tecnologia por meio
da gamificação. Percebemos, assim, que os debates em torno dessas questões
tornam-se singulares no desenvolvimento do trabalho docente.
Nesse sentido recorremos à história do feminismo e às transformações
da trajetória da mulher com base nos aspectos que incorporam a sua educação,
para assim, discutir gênero, feminismo e sua diversidade histórica em conjunto
com a gamificação no sistema educativo. Nisso, objetivamos, com este trabalho,
refletir sobre a história da mulher e a utilização da gamificação como instrumento
para a discussão de gênero na educação.
A história da mulher, desde os tempos antigos, envolve um processo de
luta por sua identidade, por seu espaço e por seus direitos sociais. Os quais
são concebidos no decorrer dos séculos com limitações e julgamentos as suas
características física, moral, intelectual e educacional. Por isso é importante
lembrarmos que a luta feminina é ensinada e contada na escola em seus dife-
rentes processos sociais, culturais e históricos. É um processo em construção
que perpassa vários caminhos e estratégias de ensino, como a gamificação.
Podemos dizer que a estratégia da gamificação já acontece há algum
tempo em diversas esferas da sociedade, inclusive na educação. A gamificação
não trata apenas da prática do jogo para entreter. Essa estratégia cria espaços
de aprendizagem mediados pelo desafio, pelo prazer e entretenimento, e leva
em consideração a motivação, o sentimento de grupo e a participação ativa das
pessoas que estão envolvidas no processo.
O presente capítulo é fruto de uma revisão bibliográfica que, de acordo
com Gil (2009), nos permite aprimorar o conhecimento por meio do aprofunda-
mento em materiais e publicações realizadas de determinado assunto.
Este texto foi dividido em três partes. Os elementos históricos relativos à
trajetória das mulheres são apresentados na primeira parte, onde, também, traze-
mos reflexões sobre a desigualdade de gênero na educação feminina. Na segunda
parte, discutimos sobre a interdisciplinaridade do conceito de gênero. E, por

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


68
último, na terceira parte, exploramos a gamificação como instrumento para a
discussão de gênero na educação.

PERCURSOS E REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DAS


MULHERES E A DESIGUALDADE DE GÊNERO

Nesse primeiro momento refletiremos sobre o percurso que abrange a


história das mulheres desde a antiguidade até à contemporaneidade a partir
da visão de diferentes autores. Também discutiremos sobre a desigualdade
educacional que perpassou por séculos a trajetória feminina.

O percurso de uma história sobre as mulheres

Os avanços do movimento feminista foram significativos para que a exis-


tência de mulheres nos mais variados espaços pudessem ser validadas. Numa
leitura historiográfica deste processo, as lutas das mulheres emergiram devido
aos ventos de mudança que orientaram a Europa no contexto das primeiras
manifestações sociais, sobretudo, as que denunciavam o abismo existente entre
as relações de gênero. Para tanto, perspectivas de pesquisadoras como Lerner
(1986) foram relevantes para que se pudesse compreender criticamente que
a história da humanidade estava estigmatizada pelas ideias de passividade e
anulação constantemente associadas às figuras femininas.
Havia certa perplexidade ao pensar em investigações cujo objetivo fosse
constituir uma história sobre as mulheres. Para Burke (2002), tal interesse não
existira antes porque fora negligenciada, sobretudo, por historiadores, posta a
insistência em analisar documentos relacionados à dominância e à operação de
poderes existentes na esfera masculina. Desse modo, a tendência patriarcal em
que se constituiu o pensamento e a razão ocidental testemunha que a discus-
são de gênero não era atrativa para os cientistas homens tidos como clássicos.
Neste ponto, mais valia investigar os papéis masculinos desempenhados no
seio da Igreja medieval, no que tange as punições severas dadas às “feiticeiras”
nos primórdios modernos, que compreender as motivações para tal eliminação.
Por muito tempo as ciências pertenceram de maneira centralizadora ao
pensamento patriarcal. Conforme Mignolo (2008), as grades iluministas das

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teorias inferiorizaram e continuam a limitar todos aos quais o agenciamento
epistêmico fora negado, tendendo a perpetuar a universalidade em que conti-
nua pautada. Em concordância com Scott (1992), Rachel Soihet (1998) discute
que raça, etnia e sexualidade são acentuadores das efervescências existentes
nos movimentos em busca de maior visibilidade feminina nos anos de 1970 e
1980, visto que:

[...] O enfoque na diferença desnudou a contradição flagrante


da história das mulheres com os pressupostos da corrente
historiográfica polarizada para um sujeito humano universal.
Assim, as especificidades reveladas pelo estudo histórico desses
segmentos demonstravam que o sujeito da história não era uma
figura universal. Dessa forma, os estudos sobre as mulheres dão
lugar à derrocada daqueles pressupostos que norteavam as
ciências humanas no passado. (Scott, 1992, p.81-88).

A “mulher como objeto da história”, expressão versada por Soihet (1998),


discute as posturas críticas frente a incompatibilidade entre o biológico e o social.
Assim, na ausência de documentos explícitos, cartas, diários e atas referentes
ao cotidiano doméstico tornaram-se alguns dos instrumentos agregadores para
as investigações iniciais. Há uma rejeição ao caráter fixo, outrora dicotômico,
tido como passividade/agressividade. O rastreio do feminino parte do encontro
com os vestígios de mulheres que permaneceram no anonimato pela sociedade
de maneira proposital e excludente em função do culto ao patriarca, posto que
a veneração ao masculino se manifestou após o declínio e a substituição da
Deusa-Mãe1 ainda na antiguidade.
A partir de análises acerca de vestígios de povos antigos do oriente,
Gerda Lerner (1986) avaliou a maneira como as figuras femininas norteavam
as práticas das diferentes organizações humanas ao relatar que,

1 Para Lerner (1986, p.68-69), a partir de vestígios arqueológicos como esculturas e pinturas rupestres se inferiu
que as experiências dos primeiros grupos humanos estavam fortemente ligadas ao papel da progenitora.
Desse modo, a razão para a existência da representação feminina tida como “Deusa-Mãe” pode estar vinculada
à escolha da mulher como representação do divino, visto a associação ao princípio gerador da vida e o
encadeamento psíquico ocorrido entre mães e filhos.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


70
A supremacia da Deusa também é expressa nos primeiros mitos de
origem, que celebram a criação feminina que dá vida. Na mitologia
egípcia, o oceano primordial, a deusa Nun, dá à luz o deus do
sol Atum, que então cria o resto do universo. A deusa suméria
Nammu cria por partenogênese o deus do céu An e a deusa da
terra Ki. No mito babilônico, a deusa Tiamat, o mar primordial, e
seu companheiro dão à luz deuses e deusas. Na mitologia grega, a
deusa da terra Gaia, em um nascimento virginal, cria o céu, Urano.
A criação dos humanos também é atribuída a ela. Na versão assíria
de um mito sumério anterior, a sábia Mami (também conhecida
como Nintu), ‘a mãe-ventre, aquela que cria a humanidade”, molda
a humanidade com argila, mas é o deus masculino Ea ‘que abriu
o umbigo’ das imagens, completando assim o processo de lhes
dar vida [...]. (Lerner, 1986, p. 348).

A figura feminina assumiu diversas formas a partir da representação da


Grande-Deusa ou, Deusa-mãe, e sistematicamente moldou as dinâmicas sociais,
políticas, culturais e religiosas na fase neolítica. Para Lerner (1986), a exaltação
da Deusa-Mãe, símbolo de fertilidade, poderia estar também relacionada aos
papéis desempenhados pelas mulheres no período, tratando-se de um reflexo
da conjuntura social experienciada cotidianamente. No entanto, gradativamente
a divisão dos papéis sociais passou a ter o forte peso reprodutivo em função
da sobrevivência da prole. A substituição simbólica do panteão, outrora de
representação feminina, impôs a alteração dos papéis e instituiu a figura do
patriarca, constituindo-a enquanto uma dominância masculina criada e forta-
lecida histórica e culturalmente.
A deusa concebida como símbolo de fertilidade universal e primária, passa
a ser relegada à condição de mera fecundação, além da forte dependência dos
deuses masculinos. Desta forma, Lerner (1986) propõe, após algumas discor-
dâncias teóricas com Simone de Beauvoir, que por muito tempo a história sobre
as manifestações do feminino foi desprezada e distorcida, a fim de deslegitimar
os processos nos quais as mulheres operacionalizaram de maneira “invertida”
diante da ordem patriarcal. Não foi pensado em uma autonomia das mulheres
ou, sequer, na possibilidade de existência sem uma tutela masculina. Posto isto,
o feminino e a sua trajetória tenderam a concepções fantasiosas e ausentes de
compreensões profundas acerca do gênero, além de constatarem que,

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A negação às mulheres de sua história reforçou a aceitação da
ideologia do patriarcado e enfraqueceu a noção de valor próprio da
mulher individualmente. A versão masculina da história, legitimada
como a “verdade universal”, apresentou as mulheres como marginais
à civilização e como vítimas do processo histórico. Ser assim
apresentada e acreditar é quase pior do que ser esquecida por
completo. Como sabemos agora, essa imagem é falsa, em ambas
as afirmações. Mas o progresso das mulheres ao longo da história
é marcado pela luta contra essa distorção incapacitante. (Lerner,
1986, p.463).

Considerando a escolarização prejudicada por mais de 2.500 anos,


como o conhecimento feminino passou a ser identificado como tal e não mais
como mera “intuição”? Deve ser pontuado que as mulheres de setores privile-
giados, compostas pela elite dominante, puderam apreciar a intelectualidade
por tanto tempo restrita, assim como contribuíram para uma alternativa diante
do pensamento protagonizado por homens. Por muitas vezes, intimidadas por
pensadores que invalidavam a continuidade de tais estudos, muitas pesquisa-
doras questionaram a relevância de experiências e fontes por elas levantadas.
Portanto, há uma busca ávida por narrativas que reorganizem as incógnitas que
permeiam as múltiplas faces do feminino representadas ao longo dos séculos.
Contudo, Lerner (1986) reconhece que a falta de leitura sobre as lutas e
os triunfos tende a ser uma maneira de manter as mulheres subjugadas. A falta
de conhecimento sobre as identidades femininas privou o (re)conhecimento
de heroínas do passado, ao passo que conjecturou um sistema de ideias que
privilegiasse um sobre o outro. Logo, a mulher naturalmente possui o desafio
de definir a si mesma, visto que a educação que recebeu foi composta essen-
cialmente pela lógica patriarcal e naturalizada acerca dos conhecimentos tidos
como estimados, priorizando condutas alinhadas à ordem vigente.

Reflexões sobre a desigualdade de gênero na educação feminina

Em síntese, buscamos contextualizar o tema gênero, sua historicidade e


a isenção da mulher no processo de escolarização. Nesse sentido estaremos,
também, trazendo a história de luta das mulheres e suas conquistas na socie-
dade, pois, por muitos séculos, nas mais diferentes culturas, as funções sociais

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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têm sido reproduzidas historicamente, de modo naturalizado, nos diferentes
espaços sociais com o objetivo de difundir padrões e normas de comportamen-
tos para os indivíduos. Estabelecendo uma relação de poder que salientava o
submetimento da opressão da mulher, de forma que mulheres e homens vão
construindo-se historicamente em um processo de padrões sociais definidos
por práticas, gestos, atitudes, posturas e falas consideradas apropriadas.
Ao nos dirigimos aos povos ocidentais antigos, percebemos que histori-
camente as mulheres sempre lutaram por sua liberdade. Conforme narrativas
gregas, as amazonas2 eram guerreiras que viviam em uma estrutura social própria,
em ilhas isoladas, compostas somente por mulheres, lutavam contra homens
que tentavam submetê-las. Certa vez, o cronista André Thevet (1944) discutiu
que as amazonas poderiam ter três prováveis origens: a primeira provinda da
África, e as duas outras de grupos matriarcais expansionistas da Ásia antiga.
Assim, denominadas de Cita, ou “Scythas”, eram mulheres descendentes de
povos arqueiros que renunciaram os seus maridos após estes irem para guerra,
as deixando excluídas desse processo, e o emprego de “a” e “maza” significaria
a ideia de que elas não viviam de pão, considerando que as suas existências
havia sido concebidas muito antes.
Todavia, a história das mulheres na antiguidade sempre esteve relacionada
ao trabalho constante, pesado e a sua desvalorização pela sociedade. Na cultura
romana as mulheres exerciam diferentes funções, voltadas para a sua condição
de mulher, eram lavadeiras, costureiras, médicas e parteiras. Já as mulheres
primitivas trabalhavam duro e executavam tarefas de caráter masculino, além
de cuidar do lar, da família, do campo e dos animais, mas nunca foram eviden-
ciadas por esses trabalhos (Miler, 1989).
Com os avanços da sociedade ocidental, as atividades foram dividi-
das. As mulheres ficaram responsáveis pelos cuidados com o lar, filhos e
marido e o homem com as tarefas a serem executadas fora de casa. Entretanto,
mesmo dentro de casa a mulher terminava por contribuir com a organização

2 Segundo a lenda, às amazonas eram filhas de Ares, o deus da guerra, com a ninfa Harmonia. Elas eram
guerreiras da Capadócia. Elas não aceitavam homens vivendo entre elas, os recebendo uma vez ao ano para
procriação. De acordo com a mitologia ás amazonas são representadas como mulheres fortes, sedutoras e
hábeis na arte da guerra.

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social e política da família que a sociedade da época primava. Nesse sentido,
percebemos que a luta das mulheres por sua liberdade e por sua preservação
é muito antiga e até os dias atuais ela ainda permanece na busca de igualdade
e da liberdade de ser mulher.
Ao nos direcionarmos ao século XVII, as mulheres, diferente das amazonas
e das mulheres da antiguidade, já tinham outro papel, em que sua imagem era
voltada a figura da mãe, esposa e dona de casa. A mulher não tinha nenhum
papel político, econômico e educacional na sociedade ou para a visão que
se mantinha em torno da educação feminina. O seu único papel direcionado
a educação era o que convinha a mulher, da época, de servir o marido e os
filhos. De acordo com Ribeiro (2015), a função da mulher era fazer tudo que era
pregado pela Igreja e pelo Estado.
Segundo Ribeiro (2015), somente no século XVIII foram criadas escolas
com a finalidade de educar mulheres, entretanto, a educação recebida era voltada
para os cuidados ao lar e à família. Elas eram educadas a seguir os caminhos
da igreja, a limpar, cozinhar, a cuidar do marido, dos filhos e da casa. A escola
para as mulheres era bem diferente da escola para os homens, pois cada um
deveria aprender o seu papel na sociedade.
No século XIX, o quantitativo de meninas que frequentava a escola era
restrito, por essa ser diferenciada dos meninos. As mulheres não recebiam uma
educação com instrução profissional, elas aprendiam a ler, a escrever, a realizar
operações básicas e as instruções do lar, ou seja, o necessário para cuidar da
família. Segundo Louro (2014) a escola é um espaço reprodutor das distinções,
diferenças e desigualdades desde seus primórdios por se classificar através de
vários mecanismos de ordenação e hierarquização.

A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna


começou por separar adultos de crianças, católicos e prostetantes.
Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela
imediatamente separou os meninos das meninas. (Louro, 2014, p. 61).

São discussões que atravessam a história da educação feminina, já


que por muito tempo a educação da mulher era voltada para os cuidados da
família e do lar. Diferentemente, da educação para o homem que poderia bus-
car conhecimentos que lhe oportunizaria se sobressair por sua racionalidade,

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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intelectualidade e autoridade. Nessa perspectiva foram construídas concepções
de inferioridade da natureza feminina e superioridade da masculina, proporcio-
nando a desigualdade de gênero que permeia até os dias de hoje.
De acordo com Louro (2014) e Scott (2019) historicamente, mulheres e
outros sujeitos foram colocados a margem da sociedade e vem reivindicando
os seus direitos de cidadania e práticas sociais. Todavia, devemos destacar que
essas reivindicações foram indubitáveis para que as mulheres conquistassem
seus direitos a uma educação igualitária.
Por conseguinte, as primeiras manifestações femininas começaram no
século XIX, com as reivindicações do direito ao voto, de uma educação iguali-
tária e pela entrada da mulher no mercado de trabalho. O primeiro momento
de luta das mulheres pelo direito ao aprendizado da leitura e escrita aconteceu
em 1830, sendo que antes este direito era destinado somente a homens. A luta
pela ampliação da educação tomou conta do movimento feminista em 1870, pois
por não serem reconhecidas socialmente, elas não poderiam se beneficiar de
direitos como cursar o ensino superior, trabalho remunerado, direito ao voto e ao
divórcio (Duarte, 2003). A educação feminina teve início com escolas particulares
em meados de 1867, sendo que as mulheres só tiveram o direito de ingressar
no sistema de educação pública em 1880. No que tange a educação feminina, o
conceito de inclusão nas escolas públicas, começou a ganhar força no início do
século XX, com o propósito de responder a abordagem tradicional da educação.
As reivindicações a educação e ao direito ao voto para as mulheres se
intensificaram no início do século XX, com o destaque de grupos feministas nos
jornais e na imprensa, visto que além de exigirem um estudo digno, as mulhe-
res, também, lutavam por visibilidade social. Nos estudos de Louro (2014, p.19)
essas manifestações foram divididas em primeira e segunda onda. A primeira
onda demonstrava os interesses de mulheres brancas de classe média com a
finalidade de reivindicações ligada a “organização da família, oportunidade de
estudo ou acesso a determinadas profissões”.
Segundo Carneiro (2019) a luta feminina por direitos não aconteceu de
forma simultânea, se dando em lugares e tempos diferentes, de modo que um
dos maiores objetivos da primeira onda foi refletir sobre a desconstrução das
diversas formas de relações e instituições patriarcais que reproduziam as táti-
cas de dominação masculina para deixar as mulheres em posição inferior aos

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dos homens. A segregação no espaço universitário era outra reivindicação do
movimento feminista, uma vez que eram raras as mulheres que faziam parte
do campo científico.
O primeiro momento da luta do movimento feminista retratou a afirma-
ção das condições de igualdade econômica, política e social entre os gêneros,
e a busca pelo fim da discriminação entre mulheres e homens. Conseguinte,
foi na década de 1960 que se iniciou a chamada segunda onda do movimento
feminista, surgindo com a apreensão e esclarecimentos de direitos igualitários
em um sistema patriarcal.
De acordo com Louro (2014) foi na segunda onda que se iniciou as cons-
truções teóricas que propiciou debates entre estudiosos/as e militantes. Os estu-
dos tinham características da história de opressão e invisibilidade da mulher
na sociedade. No Brasil as discussões do movimento feminista ganharam força
na década de 1970, durante o governo militar, inicialmente, na classe média e
depois nas classes populares.
Duarte (2003) descreve a segunda onda como um dos momentos mais
exuberantes do movimento feminista, por alterar costumes e tornar reivindica-
ções consideradas ousadas em naturais. Segundo o autor, na década de 1970
as mulheres reivindicavam direitos a política, melhores condições de trabalho,
maior visibilidade. O que proporcionou a discussão de variados temas: como
aborto, jornada de trabalho dupla, prostituição e maternidade sendo esses
discutidos com maior freqüência em jornais e pela imprensa.
Para tanto, o direito a educação e a igualdade social foi o primeiro passo
em um processo contínuo de luta, que atravessa a história por busca de uma
construção da identidade de ser mulher. Esses movimentos em torno da história
da mulher e de sua formação educacional e social proporcionaram discussões que
formaram conceitos e reflexões diante da desigualdade de gênero na sociedade.

DISCUTINDO A INTERDISCIPLINARIDADE DO CONCEITO DE


GÊNERO

Por meio dos estudos de gênero é possível perceber que o conceito


de gênero questiona historicamente os papeis socialmente atribuídos ao ser
homem e ao ser mulher, os quais são modificados de acordo com a sociedade,

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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tempo e espaço. Atualmente, o estudo do conceito de gênero exige um olhar
interdisciplinar de pesquisadores/as de diferentes áreas para se compreender as
categorias das diferentes culturas e sociedades. Campos como a Antropologia,
Filosofia, Sociologia, História; entre outros nos permite aprofundar com mais
eficácia nas categorias que marcam as diferenças que constituem uma sociedade.
Segundo Vicentini (2022, p.19) “apesar do termo atravessar várias dis-
ciplinas, foi com as ciências humanas e sociais que ‘gênero’ encontrou maior
expansão”. Os debates teóricos em torno do termo nos diferentes campos
de estudos estabeleceram um domínio teórico que classificam e ordenam o
termo em uma hierarquização de nossas relações sociais. “Compreendem-no
na qualidade de categoria, conceito, ferramenta analítica que trouxe ao âmbito
acadêmico as questões que retratam o caráter antagônico e assimétrico das
relações sociais e humanas.” (Vicentini, 2022, p 19).
Dentro dessa perspectiva o conceito de gênero é discutido a partir das
condições diversas e dissonantes das relações humanas na sociedade, de forma
que o conceito de gênero vem sendo debatido e estudado pela ciência em um
cunho histórico. Assim, ao recorremos aos estudos de Stellman (2007) perce-
bemos que os estudos sobre o conceito de gênero perpassam pela gramática,
assim como pela medicina por meio dos estudos da anatomia humana, sendo
que no século XV já se fazia uma relação biológica, ou seja, o termo gênero
tornou-se sinônimo do sexo biológico dos indivíduos, priorizando primeiro o
macho e depois a fêmea. No século XVIII, a ideia do modelo unissex3 concebia
o conceito de gênero como uma categoria cultural, visto que a situação bio-
lógica não era determinante, mais ser homem ou mulher era uma condição
estabelecida pela sociedade.
Foi no final do século XVIII que se proliferou a ideia de sexos opostos,
predominante na atualidade. Pesquisadores/as avançavam em seus estudos
sobre anatomia humana, o que lhes permitiram reconhecer as diferenças bio-
lógicas presentes no corpo humano. Os estudos sobre a distinção radical entre

3 Segundo os estudos de Stellman (2007) acreditava-se que homens e mulheres tinham órgãos genitais iguais,
sendo que nas mulheres se localizavam no interior do corpo.

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os sexos proporcionaram afirmações que homens e mulheres são diferentes
física e moralmente.
De acordo com Foucault (2022) as descobertas sobre a anatomia humana
serviram para a burguesia justificar a desigualdade entre homens e mulheres,
reforçando os interesses de poder e supremacia do poderio masculino sobre
as mulheres, utilizando a diferença entre sexos para justificar a desigualdade
política e econômica da ordem burguesa dominante. Conseguinte, foram sur-
gindo mais estudos nas áreas das ciências naturais para reafirmar as diferenças
entre homens e mulheres, pois, ao mesmo tempo em que as diferenças entre
os sexos se fortaleciam as desigualdades sociais, morais e políticas contra as
mulheres também aumentavam.
Ao nos voltamos para o estudo do termo gênero na esfera gramatical,
Vicentini (2022) nos diz que o termo dividiu-se em masculino, feminino e neutro.
Assim, como Stellman (2007) que também reforça que o termo gênero vem do
latim, trazendo como significado família, nascimento e tipo. Já Joan Scott (1989),
traz uma amplitude na definição gramatical do termo gênero por defender que
as palavras e as ideias que representam a definição do termo possuem uma
história. A autora defende que ao longo da história o termo vem sendo usado
de forma deliberadamente errada para evocar traços de caráter ou sexuais.

A utilização proposta pelo Dicionário da Língua Francesa de


1876, era: “Não se sabe qual é o seu gênero, se é macho ou fêmea,
fala-se de um homem muito retraído, cujos sentimentos são
desconhecidos” (2). E Gladstone fazia esta distinção em 1878:
“Atena não tinha nada do sexo, a não ser gênero, nada de mulher
a não ser forma” (3). Mais recentemente – recentemente demais
para que possa encontrar seu caminho nos dicionários ou na
enciclopédia das ciências sociais – as feministas começaram a
utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, no sentido mais literal,
como uma maneira de referir-se à organização social da relação
entre os sexos. (Scott, 1989, p. 2).

Segundo Scott (1989), a relação com a gramática implica em regras


formais que decorrem da qualificação do masculino e feminino. Assim, Scott
(2019) instituiu em seus estudos que o uso mais recente do termo gênero deve
ter surgido entre as feministas estadunidenses que almejavam instituir o cará-
ter social das diferenças baseadas no sexo. No uso gramatical o termo gênero,

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


78
inicialmente, indicava uma rejeição ao determinismo biológico subjacentes no
uso de palavras como sexo ou diferença sexual.
Assim, o termo gênero destacava aspectos análogos as definições regula-
mentárias femininas. O uso do termo gênero na gramática levantou preocupações
entre as próprias mulheres, por este está centrado em produções de estudos
que abordavam uma visão da mulher muito restrita e isolada.

Na gramática, gênero é compreendido como um meio de classificar


fenômenos, um sistema de distinções socialmente acordado mais
do que uma descrição objetiva de traços inerentes. Além disso, as
classificações sugerem uma relação entre categorias que permite
distinções ou agrupamentos separados. (Scott, 2019, p.50).

Essa compreensão de gênero introduz uma noção relacional em nosso


vocabulário. Na língua portuguesa, a gramática divide os nomes em categorias
de masculino e feminino, sendo costumeiro que nomes, pronomes e formas
normais referentes ao masculino sejam considerados do gênero masculino,
assim como para generalizar situações plurais. E os considerados opostos são
classificados do gênero feminino, não havendo a classificação da neutralidade.
Nesse sentido, Vicentini (2022) compreende que as categorias de gênero
foram construídas de forma desigual entre mulheres e homens e para mulhe-
res e homens, sendo esta uma questão social, cultural, econômica e religiosa
relacionado ao papel de superioridade do homem e de inferioridade da mulher.
Dessa forma, estabelecendo uma relação social de tensões de poder ocorridas
historicamente em determinados conceitos pela diferenciação do discurso de
poder presente na sociedade, considerando a compreensão de toda a produção
de linguagem, por esta estabelecer uma relação entre o discurso e os elementos
que o constitui.
De acordo com Foucault (2014) é por meio de nossos discursos que a
verdade atravessa a história na vontade do saber, podendo ser este um sistema
de exclusão histórico, institucional ou constrangedor. A visão de Michel Fou-
cault demonstra o percurso que o discurso pode seguir conforme a narrativa
assumida pelo sujeito da enunciação, ou seja, de acordo com a verdade que se
busca e a relação de poder estabelecida.

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Todavia, devemos enfatizar a relevância das abordagens históricas nos
estudos de gênero e na definição do termo através das inúmeras compreensões,
bem como, da (re) construção da diferença sexual. Assim, como os estudos das
diferentes áreas científicas foram avançando na apresentação e formulação de
diferentes conceitos, a história iria simultaneamente incluindo e apresentando
experiências que dependeriam de como o gênero estava sendo desenvolvido
e analisado pelos/as estudiosos/as.
Na grande maioria dos/as historiadores/as ao tentar teorizar gênero, o
termo continuava ligado aos quadros tradicionais das ciências sociais por utili-
zarem formulações antigas que almejavam proposições de cunho geral. Assim,
a abordagem utilizada por historiadores/as se dividiu em duas categorias. A pri-
meira de caráter descritivo se refere à existência da realidade, sem buscar suas
causalidades ou interpretar os fenômenos. A segunda é de ordem casual, onde
o/a historiador/a elabora teorias sobre a natureza dos fenômenos e realidade
para compreender como e porque tomam a forma que possuem (Scott, 1989).

Estas teorias tiveram, no melhor dos casos, um caráter limitado


porque elas tendem a incluir generalizações redutoras ou simples
demais: estas minam não só o sentido da complexidade da
causalidade social tal qual proposta pela história como disciplina,
mas também o engajamento feminista na elaboração de análises
que levam à mudança. Um exame crítico destas teorias mostrará
os seus limites e permitirá propor uma abordagem alternativa.
(Scott, 1989, p.6).

É dentro desse aspecto de estudos engajados nas causalidades sociais,


que o uso de gênero estaria vinculado à figura da mulher, entretanto, Scott
(1989) reforça em seus estudos que a definição do conceito de gênero é muito
mais abrangente por envolver fatores históricos e sociais.
Para tanto, os estudos sobre gênero se perpetuam nas diferentes ciên-
cias pelas críticas das premissas e critérios de trabalhos científicos existentes,
mediante aos movimentos feministas que historicamente foi lutando por seus
direitos e desmitificando idéias e conceitos preconcebidos. Dessa forma o inte-
resse dos/as pesquisadores/as expressa a preocupação da inclusão das pessoas
excluídas e do não isolamento do conceito de gênero por esse não poder ser
definido sem considerar o conjunto social e seus determinantes que compõem

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


80
as relações humanas. Assim, mulheres e homens devem ser compreendidos
enquanto seres singulares, respeitando uma totalidade social formada por um
contexto histórico compartilhado em coletividade e composto por diferenças.

A GAMIFICAÇÃO COMO INSTRUMENTO PARA A DISCUSSÃO


DE GÊNERO

A gamificação é um instrumento de aprendizagem que facilita o desen-


volvimento do aprendente, se utilizado como objetivo didático no campo edu-
cacional. Esse tipo de instrumento lúdico usa técnicas que pode proporcionar
mecanismos de jogos e pensamentos com o fim de enriquecer o processo
educacional para o/a docente e estudante. A reconfiguração do game para
instrumento técnico aplicado em esferas de aprendizagem ativa surgiu ainda
na década de 1990, em especial, a partir de testes cujo objetivo era provocar
maiores estímulos em atividades instrucionais observadas pelos pesquisadores
Charles C. Bonwell e James A. Eison (1991). Neste ponto, foi constatado que
a aprendizagem sempre foi ativa, mas que as escolhas das práticas utilizadas
corroboraram de forma significativa para que os educandos apresentassem
desinteresse diante das exposições realizadas.
A técnica não está presa ao jogo em si, visto que o peso está no contexto
que será gamificado. Quando se discute a aplicação dos games voltados para a
educação, Raguze e Silva (2016, p. 5) esclarece que as etapas se desenvolvem a
partir de “aspectos como a repetição de experimentos, ciclos rápidos de resposta,
níveis de dificuldade crescente, possibilidades de caminhos e recompensa [...]”
e, em função disso:

Situações fantasiosas estimulam o imaginário do jogador, tornando a


experiência do sujeito mais emocionante no momento em que estas
são integradas com o ambiente do jogo; Objetivos bem definidos
envolvem o indivíduo ao ambiente, a partir do entendimento do
jogador sobre o que deve ser feito dentro do jogo; Feedbacks
possibilitam respostas instantâneas do sistema. Desta forma, erros
podem ser evitados conduzindo o indivíduo para a recuperação
correta da ação, contribuindo para o maior aproveitamento do jogo
assim como o engajamento do jogador. (Raguze; Silva, 2016, p. 9).

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Para Maude Bonenfant (2010, p.51-52, tradução nossa) o performer, ou
seja, o desenvolvedor, é quem produz o jogo, transformando-o em “um produtor
cultural, e não apenas um produto da cultura”, em que “expressa a interpretação
do mundo feita por uma comunidade”. Deste modo, o criador possui interesses,
pois o jogo criado passa a ser um fabricador de padrões culturais, refletindo
princípios e normas a depender da cultura que o construiu, além de torná-lo
um possibilitador de interação social.
Testes e questionários, conforme Bonwell e Eison (1991, p.27), também
podem ser compreendidos como métodos de aprendizagem ativa. Pesquisas
realizadas na década de 1920 alertavam sobre a “curva de esquecimento”
de estudantes em relação ao que foi discutido em contextos de instrução,
logo, quizzes de domínio imediato do material discutido podem ser aliados do
mediador da atividade. Os jogos de tabuleiro temáticos com ou sem RPG (Roler
Playing Game) e, sobretudo, jogos digitais como Quizizz e Kahoot!, oferecem
dramatizações e simulações que podem auxiliar em “situações estressantes,
desconhecidas, complexas ou controversas”, conforme Davison (1984, p.91 apud
BONWELL e EISON, 1991, p.61). Portanto, oferecem condições temporariamente
realistas admitindo que estudantes assimilem determinados contextos, além de
gerar entusiasmo e valorizar as iniciativas pessoais de jogadores.
O jogo está intimamente ligado às contribuições da dramatização para
a absorção de conceitos e normas hereditárias adquiridas pelas diversas for-
mações socioculturais. Certamente, as práticas teatralizadas foram de forte
cooperação para estudos mais dinâmicos desenvolvidos na Escola de Direito
de Havard (Havard Law School) nos anos 1980, descritas por Bonwell e Eison
(1991) a partir da compreensão de que:

[...] A dramatização constitui a base para um curso semestral de direito


empresarial no qual os alunos têm a oportunidade de desenvolver
habilidades em entrevistas, aconselhamento e negociação. As
atividades semanais do curso são cuidadosamente estruturadas
para que todos os alunos estejam ativamente envolvidos no cenário
em desenvolvimento, que destaca os interesses conflitantes de um
pequeno fabricante e seu sócio, um rico dono de mercearia que
você investiu no negócio. Os alunos na dramatização se preparam
um memorando antes da aula, detalhando seus planos para
cada reunião, que inclui uma análise de todos os aspectos legais
relevantes doutrinas e os fatos pertinentes. Membros da classe

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


82
não envolvidos na dramatização daquela semana estão motivados
e envolvidos porque eles devem entregar breves comentários
analisando os memorandos fornecidos pelos jogadores. (Bonwell;
Eison, 1991, p.62, tradução nossa).

O significado produzido pelo jogo é moldado pelos discursos e ambiente


que o cercam. Para Huizinga (2007, p. 3-4), esta atividade pode ser “significante”
e possuir uma função social, mesmo que “exterior a vida habitual””. É uma ati-
vidade que impacta a vida real, apesar de transparecer ausência de seriedade,
conforme Caillois (1990). Enquanto técnica adaptada a aprendizagem, aprimora
a discussão acerca das representações de gênero visto a emergência de conhe-
cimentos produzidos por e sobre mulheres a partir de ensinos que ofereçam
histórias e existências não mais esquecidas na contemporaneidade.
Neste sentido, podemos dizer que na esfera educacional um dos grandes
desafios que as escolas públicas enfrentam em seu currículo é a abordagem
apropriada dos elementos que compõem a sociedade e a esfera escolar, como
a diversidade e discussões sobre gênero, que são assuntos estagnados pelo
preconceito, mas que estão em movimento social e histórico. Esses pontos aca-
bam sendo esquecidos e são apenas normalizados por documentos, costumes e
pelo conservadorismo tradicional no processo de ensino dentro da sala de aula.
Atualmente, mesmo mediante do ensino tradicional estudantes utilizam
a tecnologia digital, especialmente aplicativos de comunicação, em sua maio-
ria as redes sociais. Desse modo, Bortoni-Ricardo (2008) acredita que com o
avanço tecnológico e a modernização social, há uma demanda crescente por
habilidades de leitura e escrita em todo o mundo. Considerando a proximidade
da sociedade atual com os meios tecnológicos, é interessante buscar uma maior
interação entre metodologias de ensino na educação, bem como discussões de
gênero, o que poderá despertar um maior interesse nessas temáticas e assim,
permitir que estudantes ampliem seus horizontes.
Assim, podemos dizer que os jogos midiáticos ou não, contribuem para
o desenvolvimento humano, seja social, cognitivo ou emocional. Dessa forma,
a gamificação pode ser entendida como uma estratégia que propõe aplicar
elementos de jogos em atividades de não-jogos, como as atividades da sala
de aula. Em outras palavras, gamificar alguma atividade significa construir

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modelos ou sistemas que focalizam e envolvem pessoas em ações, tendo como
pressuposto a lógica dos games.
Desse modo, podemos refletir que a gamificação é um auxilio a contri-
buir com o ensino-aprendizagem sobre as discussões de gêneros por meio de
seus métodos. A título de exemplo, podemos ensinar a história feminina por
meio de um jogo de tabuleiro, trazendo personagens e momentos históricos
que fazem parte da trajetória feminina. Dessa forma é possível ensinar o trajeto
educacional das mulheres nos diferentes séculos usando um jogo de cartas, de
modo que cada carta traz um ponto da história referente à educação feminina.
Nesse sentido, poderia se utilizar em uma carta a imagem da mulher que tinha
como principal papel ser educada para ser esposa e atrás da carta o século
que ocorria e um resumo da história. O jogo abordaria diferentes momentos
da história feminina e o participante que conseguisse montar o seu momento
histórico primeiro concluiria o jogo. O jogo funcionaria da seguinte maneira: uma
pessoa tiraria uma carta e contaria a história para as demais e iria montando
a história feminina referente ao momento histórico que retirou primeiro. Após
retirar a primeira carta passaria a vez para o próximo. Se na vez do participante
a carta não correspondesse ao momento histórico que se propõe a montar, o
jogador passa a vez para o próximo. O quantitativo de participantes depende
da quantidade de pontos históricos trazidos no jogo.
Para tanto, por meio da gamificação é possível resgatar e ensinar a história
feminina, de modo que a ludicidade se torna um grande auxilio no processo de
aprendizagem. Assim, o resgate de personalidades femininas, sejam guerreiras
belicosas da antiguidade, lideranças militares de exércitos colossais ou mulhe-
res que lutaram pelo direito de trabalhar pela primeira vez fora do ambiente
doméstico, está na intenção de formatar realidades e reconstituir cenários. Neste
contexto, é de incumbência da gamificação, enquanto iniciativa não tradicional,
consolidar-se como um instrumento estimulante frente às novas linguagens de
ensino e os dilemas enfrentados nos espaços educacionais cotidianamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência com a gamificação, atrelando o ensino a estratégias


metodológicas, trouxeram muitas respostas e lançaram novos desafios para o

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


84
futuro, sendo um deles disseminar a importância desta nova ferramenta para os
educadores de todas as etapas da educação utilizando ou não as tecnologias.
Através deste estudo é possível constatar a eficácia da gamificação nos
processos educativos, nas quais as aprendizagens podem ser captadas a partir
da discussão de gênero, diante da interação destas temáticas e a gamificação.
A educação centrada nos/as estudantes no processo busca motivá-los/
as, primeiro para frequentar a escola e segundo para realizar atividades, sendo
que o principal objetivo da gamificação é aumentar o engajamento e despertar
a curiosidade de estudantes sobre um determinado assunto. Assim, podem ser
incentivados a superar os desafios apresentados no jogo, enquanto as recom-
pensas também são um fator chave para o sucesso do processo e certamente
se traduzirão em aprendizagem dentro das discussões de gênero e diversidade,
a partir dessas estratégias que a gamificação promove.
Constatamos por meio do exposto que a gamificação, mesmo sendo
considerada uma metodologia de auxílio, apresenta diversas contribuições no
processo de ensino, e sua aplicação promove, entre outros resultados, motiva-
ção, engajamento e interação, além de possibilitar melhorias na compreensão
das temáticas abordadas.
Percebemos, também, que os desafios que podem surgir dentro das
estratégias na gamificação podem ser superados desde que professores/as
elaborem um planejamento bem estruturado e estejam cientes dos objetivos
que desejam atingir, como questões de gênero, por exemplo.
Consideramos que ainda há muito o que se pesquisar sobre a gamificação
no ambiente educacional. Contudo, esperamos que as questões discutidas neste
trabalho contribuam com a prática docente dos/as profissionais que pretendem
aplicar a gamificação como metodologia no processo de ensino e discussões
sobre gênero feminino e a pluralidade que é presente nos currículos escolares.
Enfim, por meio das experiências e desafios da gamificação, os/as
estudantes participam da construção do conhecimento, desenvolvendo sua
autonomia e assumindo um papel ativo no seu processo de aprendizagem.
Acreditamos, portanto, que a gamificação é uma metodologia interessante e
viável para o ensino de outros conteúdos no campo da educação, assim como
discussões de gênero, diversidade e pluriculturalidade.

ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


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Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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06

NARRATIVAS DE DOCENTES DA
EDUCAÇÃO INFANTIL SOBRE AS
RELAÇÕES DE GÊNEROS E
SEXUALIDADES

Susy Kelly Azevedo de Melo


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Jónata Ferreira de Moura


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

10.37885/230914530
RESUMO

Apresenta-se uma revisão narrativa sobre a relação de gêneros e sexualidades


na infância e a concepção adotada por professoras da Educação Infantil. O texto
é fruto de uma pesquisa de mestrado, em andamento, de abordagem qualitativa,
tendo a entrevista narrativa e o grupo de discussão-reflexão como técnicas de
produção de dados. O local de pesquisa será uma escola de Educação Infantil da
rede pública de ensino municipal de Imperatriz/MA, tendo um grupo de quatro
docentes dessa escola como participantes. Os objetivos são: 1. Conhecer as pro-
fessoras e a relação que, possivelmente, tiveram ou têm com a temática gêneros
e sexualidades; 2. Levantar indícios de que forma as práticas pedagógicas de
professoras da Educação Infantil contribuem na manifestação da sexualidade
e identidade de gênero de crianças pequenas; 3. Analisar as narrativas das
professoras durante o grupo de discussão-reflexão; 4. Perceber as contribuições
do grupo de discussão-reflexão no posicionamento das professoras participan-
tes da pesquisa sobre a temática gêneros e sexualidades. Ao término, tem-se
a proposição da construção de um documentário no formato curta metragem
que abordará os desafios para se trabalhar a temática gêneros e sexualidades
na educação infantil.

Palavras-chave: Educação Infantil, Gêneros, Sexualidades.

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PARA INÍCIO DE CONVERSA

Dentro do cenário educacional, por muito tempo, as questões de gêne-


ros e sexualidades foram encaradas como um problema moral. Para Foucault
(2022) historicamente a sexualidade infantil não foi silenciada, pelo contrário,
foi tratada por diferentes especialistas das instituições educacionais e da famí-
lia, entretanto com o objetivo de estabelecer controle sobre os corpos, onde a
escola constituia-se como um dispositivo de poder. Em Felipe e Guizzo (2022)
discute-se o papel da escola como espaço generificado que formula e coloca em
ação regulações sobre os corpos, apesar de haver resistências e negociações
dentro deste espaço.
Embalados por movimentos mundiais que têm seu início a partir da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), seguido da Declaração
Mundial de Educação para Todos (1990) e da Declaração de Salamanca (1994),
surgem os Parametros Curriculares Nacionais (1998), inserindo a orientação
sexual como tema transversal, sendo, portanto, a primeira vez que esse tema é
inserido no currículo escolar brasileiro. Para Louro (2018, p. 130), “as políticas
curriculares são, então, alvo da atenção de setores conservadores, na tentativa
de regular e orientar crianças e jovens dentro dos padrões que consideram
moralmente sãos”, mas isso foi ainda mais agravado com a criação da Base
Nacional Comum Curricular de 2018.
Diante deste cenário, discutir gêneros e sexualidades, mesmo entre
docentes constitui desafio, especialmente em se tratando da Educação Infan-
til, primeira etapa da educação básica, a qual, de acordo com a Lei nº 13.257,
de 8 de março de 2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira
infância, crianças que estão matriculadas em escolas de Educação Infantil,
correspondem respectivamente às crianças de creche (de zero aos três anos)
e crianças da pré- escola (de quatro a seis anos incompletos).
O interesse pela temática surgiu a partir da percepção da dificuldade de
docentes da Educação Infantil na condução de questões relacionadas as sexua-
lidades e aos gêneros na faixa-etária de 4 e 5 anos, frente aos novos arranjos
familiares, diversidade e ampliação do discurso sobre gêneros e sexualidades na
sociedade contemporânea, bem como da observação da interação entre crian-
ças, à exploração do próprio corpo e expressão de curiosidade, e da percepção

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


90
de um discurso estereotipado e heteronormativo no ambiente escolar por parte
de profissionais de educação.
Esse texto é fruto de uma pesquisa de mestrado, em andamento, de abor-
dagem qualitativa, tendo a entrevista narrativa e o grupo de discussão-reflexão
como técnicas de produção de dados. O local da pesquisa será uma escola de
Educação Infantil da rede pública de ensino municipal de Imperatriz/MA1, tendo
um grupo de quatro docentes dessa escola como participantes. Os objetivos são:
1. Conhecer as professoras e a relação que, possivelmente, tiveram ou têm com
a temática gêneros e sexualidades, 2. Levantar indícios de que forma as práticas
pedagógicas de professoras da Educação Infantil contribuem na manifestação
da sexualidade e identidade de gênero de crianças pequenas, 3. Analisar as
narrativas das professoras durante o grupo de discussão-reflexão, 4. Perceber
as contribuições do grupo de discussão-reflexão no posicionamento das pro-
fessoras participantes da pesquisa sobre a temática gêneros e sexualidades.

DE ONDE PARTIMOS

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), “guia


de reflexão de cunho educacional sobre objetivos, conteúdos e orientações
didáticas para os profissionais que atuam diretamente com crianças de zero
a seis anos” (BRASIL, RCNEI, 1998, v.II, p. 7) estabelece relações quanto às
sexualidades e aos gêneros capazes de nortear o trabalho a ser desenvolvido
em sala de aula por docentes da educação infantil.

O espelho continua a se fazer necessário para a construção e


afirmação da imagem corporal em brincadeiras nas quais meninos
e meninas poderão se fantasiar, assumir papéis, se olharem. [...]
É importante possibilitar diferentes movimentos que aparecem
em atividades como lutar, dançar, subir e descer de árvores ou
obstáculos, jogar bola, rodar bambolê etc. Essas experiências
devem ser oferecidas sempre com o cuidado de evitar enquadrar

1 Localizada na Região Metropolitana do Sudoeste Maranhense, com população, em 2022, de 273.110 habitantes
e área territorial de 1.369, 039 km2 (IBGE), Imperatriz é a segunda maior cidade do Estado do Maranhão.
Estende-se pela margem direita do rio Tocantins e é atravessada pela Rodovia Belém-Brasília, situando-se na
divisa com o estado do Tocantins. Atualmente conta com 129 escolas da rede municipal.

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as crianças em modelos de comportamentos estereotipados,
associados ao gênero masculino e feminino, como, por exemplo,
não deixar que as meninas joguem futebol ou que os meninos
rodem o bambolê. (Brasil, RCNEI, 1998, v. III, p. 3)

Embora sejam inúmeros os desafios que se apresentam aos docentes no


que concerne ao trabalho com estas categorias, o cotidiano social impõe que a
escola se atenha à discussão de temas tidos com sensíveis de modo a cumprir
seu papel social de transformação, de inclusão e respeito à diversidade, uma vez
que as informações estão postas de diferentes maneiras, suscitando curiosidade
e questionamentos desde muito cedo entre as crianças. Silva e Moura (2022)
frisam a relevância de subsídios teóricos e metodológicos para a efetivação e
significado do trabalho do professor com a Educação Sexual, principalmente
na sua formação inicial.

Sem ter essa formação específica, o/a docente corre o risco de cair
no senso comum e relativizar aspectos referentes às sexualidades
e os gêneros que deveriam ser tratados com aparatos teóricos e
metodológicos próprios para tal abordagem. Por isso a importância
de uma formação docente de qualidade, para que possibilite ao/a
discente uma educação afetivo-sexual, não através de discursos
“moralistas” ou de cunho totalmente “liberal”, mas sim devendo
ter a clareza de que seu papel na escola é de catalisador/a e nao
de substituto da família. (Silva; Moura, 2022, p. 167)

Para Camargo e Ribeiro (2003), a construção de uma informação qualifi-


cada possibilita que as crianças se sintam tranquilas em relação a sexualidade,
podendo se desenvolver conscientes de seus direitos. A sexualidade é processo
amplo e inerente ao desenvolvimento humano, sua manifestação, portanto, está
relacionada a cultura vigente, as experiências vividas pelo indivíduo, sua herança
genética e experiências de socialização. A sua repressão ocorre a partir das
normas culturalmente impostas. Expressar a própria sexualidade é uma parte
fundamental do desenvolvimento psicológico e saudável da pessoa.
Para Louro (2022) o corpo é o ponta pé inicial para a educação de crianças,
por isso tem sido produzindo, pelos conservadores, através da padronização dos
corpos, uma dita normalidade sexual dicotomizada em masculino e feminino.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


92
Esta padronização se dar de forma sutil e disciplinadora e pela sua continuidade
é quase sempre eficiente em seus resultados.
Em Butler (2003), temos que a criança encena determinado gênero e ao
decorrer da vida, segue encenando, levando o sujeito a crer que ele é fixo. Nasce
aí a categorização e o binarismo: homem e mulher. Nesse sentido, é a partir do
corpo e de sua relação com o mundo que se compreende a sexualidade, bem
como a regulação deste corpo para a padronização e categorização daquilo
que é socialmente aprovado pelo coletivo.
Para Sousa (2010, p. 15), entretanto, “a marcante heterogeneidade tem
se apresentado fortemente, invalidando velhos paradigmas, exigindo dos
profissionais dos diversos contextos educacionais novas ações pautadas em
conhecimentos específicos que fundamentem a sua prática.”. À medida que se
percebe o corpo que habita e a relação com o outro, seja ele, outras crianças,
adultos, ou o próprio ambiente, a criança começa a estabelecer padrões de
repetição do que observa nessas interações.

O corpo - seus movimentos, posturas, ritmos, expressões e


linguagens - é, portanto, uma construção social que ocorre nas
relações entre crianças e entre elas e adultos, de acordo com cada
sociedade e cada cultura. Ele é produzido, moldado, modificado,
treinado e decorado de acordo com parâmetros culturais. (Vianna;
Finco, 2009, p. 271-272)

Se os padrões que a criança observa são permeados por premissas que


categorizam comportamentos típicos relacionados ao sexo biológico, logo,
reproduzirá tais padrões e incorporará-los como naturais e inquestionáveis,
pois assim foram apresentados a ela desde sempre e ensinados. Nesse sentido,
partindo do questionamento de tais paradigmas e comportamentos, buscamos
estabelecer novas linhas de diálogo que fomentem nos docentes uma aborda-
gem mais consistente sobre as temáticas gêneros e sexualidades no âmbito
da Educação Infantil.
O desafio neste espaço de ampla socialização, mas que também pode
ser de estereotipização, é de alguma forma “perturbar a familiaridade do pen-
samento e pensar fora da lógica segura.” (Louro, p. 71, 2018). Neste sentido é
que se depreende que a reflexão de docentes sobre gêneros e sexualidades traz

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benefícios para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças da Educação
Infantil, no que concerne à sua expressão no mundo.
Aqui se estabelece a relação entre a expressão dos gêneros e das sexua-
lidades a partir da história narrada e vivenciada por professoras da Educação
Infantil em sala de aula e espaços escolares, a partir de suas próprias experiên-
cias. Esperamos que a partir das reflexões realizadas junto às professoras, novas
perspectivas sejam elaboradas sobre a temática dentro do contexto ocupado
por estas profissionais.
Neste sentido, questionamos: De que forma é possível trabalhar as
relações do corpo sem estereótipos? Como respeitar e acolher o olhar e os
questionamentos da criança sobre gêneros e sexualidades? De que maneira o
fazer pedagógico pode estar alinhado com as necessidades apresentadas pelas
crianças? Questões como essas embalam a pesquisa que estamos desenvolvendo
no Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas
(PPG FOPRED), em nível de mestrado, da Universidade Federal do Maranhão,
Centro de Ciências de Imperatriz, que gerou este capítulo.

O CAMINHO METODOLÓGICO

O caminho metodológico escolhido é para uma pesquisa com natureza


qualitativa e traz como técnica de construção de dados a entrevista narrativa,
tendo em vista a busca de respostas mais genuínas, interpretação do contexto
dos entrevistados, no sentido de perceber como este se relaciona e se articula
com a prática realizada em sala de aula junto às crianças acerca do tema
gêneros e sexualidades.
Para Moura (2015), a entrevista narrativa vai além do esquema pergun-
ta-resposta presente em grande parte das entrevistas, e por esta razão, é tida
como mais profunda. Nesse sentido, a entrevista narrativa focará “no que foi
lembrado pelas professoras entrevistadas, no que elas escolheram quando
forneceram as entrevistas, como construção da história de vida de cada uma.”
(Moura; Nacarato, 2017, p. 17).
O local escolhido para a realização da pesquisa escolhido será uma escola
municipal de Educação Infantil de Imperatriz/MA, que atualmente conta com

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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19 turmas de Educação Infantil, das quais, oito são de pré-escola. Nosso foco
são as turmas da pré-escola.
Mediante a autorização das professoras de pré-escola que atuam no
turno vespertino da Instituição, será realizada a primeira entrevista narrativa,
que tem por objetivo conhecê-las e perceber a relação delas com a temática.
Após a transcrição, textualização e aprovação pelas entrevistadas, será realizado
o primeiro grupo de discussão-reflexão. Este grupo, para Moura (2019), possui
característica muito peculiar; para sua realização, os participantes necessitam
de um vínculo, seja por aproximação profissional ou intimidade com a temática e
também partindo de questões fomentadas anteriormente. Esse é nosso suporte
para a escolha dessa maneira de produzir dados.
Um terceiro momento será de observação participante em sala de
aula, a fim de levantar indícios de que forma as práticas pedagógicas destas
professoras contribuem para a manifestação das sexualidades e gêneros de
crianças pequenas.
Após os encontros, será proposto a construção de um documentário no
formato curta metragem, com duração aproximada de dez minutos, que aborde
os desafios de trabalhar a temática gêneros e sexualidades na Educação Infan-
til. O documentário é uma obra audiovisual:

sem roteiro pré-concebido, produzida a partir de estratégias de


abordagem à realidade, ou Obra audiovisual produzida a partir
de roteiro pré-concebido cuja trama/montagem seja organizada
de forma discursiva por voz over, texto escrito ou depoimentos
de personagens reais. (BRASIL, 2015)

Para a condução da pesquisa, será entregue a cada professora participante


um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, constando os objetivos da
investigação e o comprometimento de que os dados serão tratados em sigilo e
confidencialidade, com garantia de anonimato das participantes, a fim de que
não seja violado nenhum critério ético.

CONSIDERAÇÕES (QUE NÃO SÃO) FINAIS

O projeto, até o presente momento, se encontra nas discussões de


natureza bibliográfica e documental, e esperamos que devido ao conhecimento

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prévio da pesquisadora sobre o ambiente, pois trabalha no mesmo espaço
exercendo a função de técnica no apoio pedagógico, a relação pesquisadora e
participantes, não traga interferência para o trabalho a ser desenvolvido, mas
consiga compreender melhor as narrativas das participantes e que isso também
contribua para sua formação.
A proposta é contribuir para a formação continuada das professoras
participantes da pesquisa e, com suas práticas, impactar na formação dos
estudantes que elas acompanham.

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Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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MOURA, Jónata Ferreira de. Pesquisa-formação: marcas, resistências e apropriações reveladas


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07

DO ABORTO VEIO A LUZ: ACUMULAÇÃO


PRIMITIVA, PATRIARCADO E CAÇA ÀS
BRUXAS

Clarissa Pepe Ferreira


Universidade de Málaga (Espanha)

Mariana Almeida Picanço Rossi


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

10.37885/231014664
RESUMO

Este artigo discute a necessidade da regulamentação do abortamento voluntário


irrestrito no Brasil. Realiza uma análise interdisciplinar concentrada em enfoques
menos examinados no tocante a essa temática. Tem o propósito de colaborar com
um debate político-criminal qualificado, sob a ênfase de uma perspectiva femi-
nista voltada ao escrutínio da capacidade de autodeterminação e emancipação
do sujeito. A metodologia empregada foi a interpretação bibliográfica cruzada
e comentada de quatro obras: “História do aborto”, de Giulia Galeotti; “Genea-
logia da Moral”, de Nietzsche; “Domínio da vida”, de Ronald Dworkin; e “Calibã
e a bruxa” de Silvia Federici. Vida e corpo são os conceitos fundamentalmente
problematizados, e será discutida a relação entre corpos femininos, patriarcado,
cristianização, relação de poder, controle estatal e capitalismo. São objetivos
deste estudo: demonstrar como o Estado de Direito no Brasil está legitimando
o patriarcado e a caça às bruxas na atualidade; demonstrar que a negação do
direito ao abortamento voluntário é uma potente estratégia de controle dentro
da esfera das políticas da existência; demonstrar que a finalidade do controle
estatal das políticas da existência é a garantia da acumulação primitiva.

Palavras-chave: Aborto, Corpo Feminino, Cristianização, Patriarcado e Capitalismo.

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INTRODUÇÃO

A legislação brasileira é restritiva em matéria de abortamento volun-


tario. À exceção dos casos de estupro e risco de vida da gestante, em que o
aborto é legal se existe consentimento da mulher (art. 128, I e II, CP/1940), e
dos casos de anencefalia fetal, em que o aborto é permitido se a parturiente
assim desejar (ADPF1 54/2012; discussão iniciada no STF em 2004), todas as
demais situações de abortamento voluntário são punidas com pena privativa
de liberdade a ser cumprida em estabelecimento prisional (art. 124, CP/1940;
art. 33 CP/1940 e seguintes). O bem jurídico tutelado pelo ordenamento penal
é o direito à vida do nascituro.
Um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS)2, iniciado em 2017
e publicado em 2019, verificou que nos países em cujo ordenamento jurídico o
abortamento voluntário é completamente proibido ou permitido com severas
restrições – como é o caso do Brasil – apenas 1 entre 4 mulheres consegue
abortar de maneira segura, isto é, sem risco de óbito; em contrapartida, nos
países em que o abortamento voluntário é assegurado legalmente em supostos
mais amplos – como é o caso de vários países europeus, por exemplo, em que o
aborto é permitido até, aproximadamente, a 12ª semana de gestação – os índices
de abortamento voluntário são menores, comparativamente, e praticamente 9
em cada 10 mulheres realizaram abortos seguros. A conclusão do estudo é a de
que a restrição do acesso ao aborto – que é um procedimento médico comum,
de baixíssimo risco – não só não reduz o número de incidências como, ainda,
expõe mais intensamente as mulheres ao risco de morte.
A pesquisa destacou, ademais, que o aborto legal e sem riscos é essen-
cial para cumprir o compromisso mundial com o Objetivo de Desenvolvimento
Sustentável relativo ao acesso universal à saúde sexual e reprodutiva (meta de
número 3.7), e que o preconceito e a reprovação social, por razões morais e

1 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) destina-se a prevenir lesão contra preceitos
fundamentais da Constituição (nos termos do art. 102, § 1º, da Constituição da República, e da Lei n. 9.882/99).
In: MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13 ed. São Paulo:
Saraiva, 2018, p. 688-689.
2 Disponível em: https://www.who.int/es/news-room/detail/28-09-2017-worldwide-an-estimated-25-million-
-unsafe-abortions-occur-each-year. Acesso em: 18 abr. 2020.

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100
religiosas, são importantes elementos constitutivos do trágico panorama inter-
nacional traçado pela clandestinidade e insegurança no abortamento. De acordo
com o que foi verificado pela OMS, entre 2010 e 2014, ocorreram anualmente
mais de 55,5 milhões de abortos no mundo e quase a metade deles foi praticado
por pessoas não qualificadas que fizeram uso de métodos perigosos, como a
introdução de objetos estranhos, ressaltando que as complicações disso deri-
vadas, além da morte da mulher, podem incluir aborto incompleto, hemorragia,
lesões vaginais, cervicais e uterinas, e infecções. Outrossim, o estudo observou
que não houve uma distribuição aleatória dos casos classificados como “nada
seguros”: 97% dos abortos perigosos ocorreram em países em desenvolvimento
da África, Ásia e América Latina.
A partir dos resultados aferidos pela OMS, e considerando a incomple-
tude dos dados sobre o aborto e suas complicações no Brasil, foi publicada
recentemente a pesquisa desenvolvida por Cardoso, Vieira e Saraceni (2020)
utilizando os dados públicos disponíveis sobre mortalidade, pessoas nascidas
vivas e internação hospitalar. Os pesquisadores verificaram a incidência de
200.000 internações/ano no período entre 2008 e 2015 por procedimentos
relacionados ao aborto, das quais cerca de 1.600 se deram por razões médicas
e legais. Os autores identificaram uma subnotificação nos casos de óbitos por
aborto da magnitude de 29% ao ano.3 Ao confrontar os dados dos sistemas
de informação sobre internação hospitalar e mortalidade quanto a mortes de
mulheres por abortamento, observaram uma variação de 47,4% em 2008 para
72,2% em 2015. As mulheres negras e indígenas, com menos de 14 e mais de 40
anos, com baixa escolaridade e sem companheiro, vivendo nas regiões Norte,

3 A subnotificação identificada pelos pesquisadores diz respeito aos dados existentes, considerando o banco
de dados oficiais nela trabalhado. Em outras palavras, essa subnotificação significa uma estimativa da zona
de penumbra que os pesquisadores conseguiram visualizar cruzando banco de dados oficiais. Não se trata,
portanto, de uma magnitude absoluta, mas relativa à dimensão visível do problema. Ressaltamos isso não
porque estejamos diante de um valor pouco relevante, ao contrário. É um valor elevado, ainda que circunscrito
somente à esfera do visível. Ocorre que, em países em que a legislação é punitiva em matéria de abortamento,
a subnotificação extrapola sobremaneira a esfera do visível. Com isso, gostaríamos de chamar a atenção para o
fato de que ela é ainda consideravelmente superior ao que pôde ser projetado pelos pesquisadores em questão:
a zona de penumbra visível é meramente uma parcela da zona de penumbra total, uma vez que, temendo ser
criminalizadas, punidas e rechaçadas socialmente, muitas mulheres recorrem ao abortamento clandestino,
suportam escondidas as complicações decorrentes de uma intervenção pouco ou nada segura e falecem
sozinhas ou com atestados de morte alterados (se pensamos em clínicas de aborto, por exemplo).

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Nordeste e Centro-Oeste do país, são mais vulneráveis ao risco de morrer em
decorrência de abortamento.
Outro estudo realizado no Brasil – por Diniz, Medeiros e Madeiro (2017) –,
poucos anos antes do anteriormente mencionado, versando sobre a extensão
da prática do aborto no país, encontrou o mesmo perfil de mulheres vulneráveis.
Neste caso, à diferença do estudo do anterior, a pesquisa foi feita diretamente
com mulheres, por meio de inquérito domiciliar, compondo uma amostra repre-
sentativa do Brasil urbano com população feminina alfabetizada na faixa etária
de 18-39 anos. Nela, os resultados mostram que o aborto é frequente entre as
mulheres e independe da classe social, grupo racial, nível educacional ou reli-
gião. Constatou-se que 1 em cada 5 mulheres na faixa dos 40 anos, em 2016,
realizou ao menos um aborto. Em 2015, de aproximadamente 416 mil mulheres
que tentaram um aborto, metade utilizou medicamentos e outra parcela de
quase a metade precisou ser internada para concluir o abortamento.
Um dossiê elaborado pelo ANIS Instituto de Bioética, Direitos Humanos e
Gênero (2019) sustenta que a política de criminalização do abortamento voluntário
no Brasil não impede a realização de abortos, mas causa graves consequências
à saúde das mulheres e coloca suas vidas em risco. O documento comunica
que 4,7 milhões de mulheres já fizeram aborto no Brasil, 67% delas têm filhos
e 88% têm religião (56% são católicas, 25% são evangélicas ou protestantes,
e 7% professam outras religiões). O relatório também adverte que “se todas
as mulheres fossem punidas pela lei atual, teríamos hoje 3 milhões de famílias
que ficariam sem mães, ou cujas mães teriam passado pela prisão em algum
momento da vida” (ANIS, 2019, p. 2). Uma das pesquisadoras responsáveis pelo
levantamento, Débora Diniz, enfatiza que a mulher que aborta sabe o significado
e a seriedade da maternidade e se vê diante do imperativo de não ser capaz,
por diversas razões, de levar adiante uma gestação. A mesma pesquisadora,
em artigo publicado em um jornal internacional de grande circulação, cita um
estudo científico estadunidense que aponta que as mulheres, de um modo
geral, sentem alívio ao abortar, posto que elas consideram que essa é a decisão
correta para suas vidas. (DINIZ e CARINO, 2020).
Em 2016, mediante a análise de um pedido de habeas corpus (HC 124.306),
a corte constitucional brasileira (Supremo Tribunal Federal, STF) posicionou-se,
pela primeira vez, de modo favorável à interrupção voluntária e irrestrita da

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102
gestação até a sua 12ª semana de desenvolvimento. O argumento teve fulcro
na garantia da legitimidade de direitos fundamentais das mulheres que giram
em torno do conceito de dignidade da pessoa humana, constitucionalmente
assegurado no Brasil. Segue a mesma linha interpretativa vigente há anos em
países democráticos desenvolvidos, bem como a recomendação de organismos
internacionais em matéria de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A tese
sustentada pelo STF apoiou-se em: 1) o Estado não pode obrigar as mulheres a
manterem uma gravidez indesejada; 2) o Estado não pode violar a autonomia
das mulheres de fazerem suas escolhas existenciais; 3) são as mulheres que
sofrem os efeitos da gravidez no seu corpo e no seu psiquismo; 4) a equipara-
ção plena de gênero depende do respeito à vontade da mulher de levar adiante
ou não a gestação, uma vez que os homens não engravidam; 5) o impacto da
criminalização do abortamento voluntário decai de forma francamente mais
nociva sobre as mulheres pobres, multiplicando casos de automutilação, lesões
graves e óbitos.
Frente a isso, coletivos antiaborto, marcadamente religiosos e autoin-
titulados “pró-vida”, deflagraram uma nova convulsão política e social no
país. Na história da modernidade brasileira, a temática esteve constantemente
atravessada por disputas ideológicas e discursivas que com frequência foram
responsáveis por tergiversar a questão de fundo que a problemática da crimina-
lização do aborto envolve. Um exemplo disso aparece com clareza impactante
no material audiovisual exibido sob o título “Vai pensando aí” (IPAS, 2008):
é perguntado a algumas pessoas se elas são contra ou a favor do aborto; na
sequência, é indagado àquelas que se dizem contra se as mulheres que fazem
aborto devem ser presas; o resultado é um silêncio acompanhado de uma
expressão facial que evidencia um “nunca tinha pensado sobre isso, mas acho
que não”. No audiovisual é possível visualizar nitidamente como a política de
criminalização do aborto é reduzida a uma falsa questão que impede as pessoas
de refletirem e entenderem adequadamente o que está em jogo. Muitas acre-
ditam que a legalização do aborto, ou mesmo sua descriminalização, obrigará
as mulheres que não desejam praticá-lo a fazê-lo.
Em meados de 2018, deu-se a proposição da ADPF 442 pela legalização
absoluta do abortamento voluntário até a 12ª semana de gestação. Basicamente,
o que costuma girar em torno ao tema é a colisão de direitos constitucionais

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fundamentais: vida do feto, por um lado, e a dignidade da pessoa humana da
mulher, por outro. Como tem sido habitual na condução dessas ações no STF nos
últimos anos, a corte constitucional vem realizando audiências públicas desde
então, ouvindo o pronunciamento de diversos e variados coletivos e categorias
sociais sobre o tema em análise, antes de passar à etapa dos debates internos
que conduzirão à decisão final, com vistas a proceder, assim, do modo mais
democrático possível.4 Em paralelo, frente à possibilidade de que o STF venha
a acatar o pleito feminista, foi desarquivada em 2019 – esteve em discussão no
Senado brasileiro em 20205 – a PEC 296, que trata da inviolabilidade do direito
à vida desde a concepção. Ela foi apresentada em 2015 e consiste em uma
proposta de emenda constitucional com objetivo de proibir terminantemente o
aborto, isto é, criminalizá-lo em todos os casos, até mesmo em se tratando de
estupro, risco de vida da gestante e feto anencefálico. Há indícios de que um
lobby antiaborto foi organizado por meio da criação de frentes parlamentares
nas Assembleias Legislativas e da modificação de constituições estaduais de
forma a acabar com qualquer possibilidade de realização de aborto legal no
país (VILLAMÉA e TARANTINO, 2020).
Um dos últimos casos de grande repercussão social no país ocorreu em
2022 com o impedimento da realização de abortamento legal em uma menina
de 11 anos em Santa Catarina. O hospital público a que ela acudiu com seus
familiares se negou a realizar a intervenção sem uma autorização judicial. Não
obstante, tratando-se de um caso de violação sexual de uma menor, dita auto-
rização não era necessária. A situação adquiriu contornos ainda mais abusivos
quando: 1) a magistrada responsável pelo caso decidiu pelo afastamento da
criança de seus progenitores, determinando seu ingresso em um abrigo, a fim
de que pudesse refletir, com independência das influências parentais, sobre a

4 Isso ocorreu quando da discussão sobre a anencefalia fetal (ADPF 54) e o processo durou, em total, cerca de 8
anos.
5 Consta, entretanto, que apesar de ter sido debatida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), não chegou
a avançar. Está parada desde então à espera de um novo relator. Disponível em: https://www.jota.info/joti-
nhas/aborto-no-brasil-a-legislacao-sobre-interrupcao-de-gravidez-e-os-dados-oficiais-17052022. Acesso em:
6 dec. 2022.
6 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120152. Acesso em: 14 set.
2020.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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seriedade do ato de extirpar uma vida; 2) durante o julgamento, a magistrada
induz a criança a desistir do abortamento legal alegando que ela estaria a ponto
de cometer um homicídio.7
Diante da atualidade e relevância da reflexão sobre o abortamento
voluntário no Brasil, elaboramos este artigo com o propósito de colaborar com
o enriquecimento do debate político-criminal qualificado, sob a ênfase de uma
perspectiva feminista voltada ao escrutínio da capacidade de autodeterminação
e emancipação do sujeito. O estudo está ancorado em uma análise interdisci-
plinar e a metodologia empregada foi a interpretação bibliográfica cruzada e
comentada de quatro obras: “História do aborto”, de Giulia Galeotti; “Genealogia
da Moral”, de Nietzsche; “Domínio da vida”, de Ronald Dworkin; e “Calibã e a
bruxa” de Silvia Federici. Vida e corpo são os conceitos que serão fundamen-
talmente problematizados. O problema de pesquisa consiste em: tendo em
vista o cenário descrito, e considerando que o Estado de Direito brasileiro se
afirma laico e democrático, por que ainda existem tantos entraves à legalização
do abortamento voluntário no Brasil? A seguir, enumeramos as hipóteses e os
objetivos deste estudo:

– Hipótese 1 (H1): existe um continuum entre expropriação da experiên-


cia, alienação da existência e mortificação do ser.

– Hipótese 2 (H2): existe um continuum entre liberalismo e moralidade


religiosa.

– Hipótese 3 (H3): o continnum presente tanto em H1 quanto em H2 está


materializado no corpo feminino; é ocultado, em ambos os casos, pela
tutela legal do direito à vida; H1 e H2 estão, portanto, interconectados.

– Objetivo 1 (O1): demonstrar como o Estado de Direito no Brasil está


legitimando o patriarcado e a caça às bruxas na atualidade.

7 Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/21/o-que-se-sabe-sobre-caso-da-me-


nina-de-11-anos-impedida-de-fazer-aborto-em-sc-apos-estupro.ghtml; https://theintercept.com/2022/06/20/
video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/. Acesso em: 06 dec. 2022.

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– Objetivo 2 (O2): demonstrar que a negação do direito ao abortamento
voluntário é uma potente estratégia de controle dentro da esfera das
políticas da existência.

– Objetivo 3 (O3): demonstrar que a finalidade do controle estatal das


políticas da existência é a garantia da acumulação primitiva.

DESENVOLVIMENTO

Uma contradição histórica aparente

O modo como o aborto foi tratado ao longo dos séculos evidencia o


dissenso peculiar das grandes temáticas que envolvem a vida e a morte. Uma
reconstrução temporal da questão, elaborada por Galeotti (2007), conduziu à
compreensão de que é “possível traçar uma história do aborto. Esta desenro-
la-se ao longo de um percurso em que se alteram não só noções e técnicas
médicas, mas também sujeitos, interesses, conotações éticas e regulamentos
jurídicos”. (p. 21).
Conforme a autora, inicialmente e por muito tempo, o aborto foi assunto
exclusivo de mulheres. O embrião/feto era considerado pelo senso comum como
um apêndice do corpo materno, com base na ideia de que um fruto, enquanto
ainda está na árvore, é uma porção da mesma. Era uma opinião sem nenhum
cunho científico, porém partilhada por filósofos, teólogos e legisladores, apesar
de ter havido posições em contrário. Nesse contexto, o que havia durante a
gravidez era tão-somente uma alteração momentânea do corpo da mulher tal
qual a menstruação, não existindo, pois, uma relação entre entidades autônomas
como considerado atualmente. Isso significa que, havendo a necessidade de
escolher entre a gestante e o nascituro, dificilmente se colocaria a vida mulher no
mesmo plano da de um ser ainda não considerado como tal. (GALEOTTI, 2007).
O feto passa a ser considerado uma entidade autônoma graças às
descobertas no campo da fecundação e do desenvolvimento embrionário
(GALEOTTI, 2007). Nesse contexto, a invenção e utilização do microscópio e
os progressos dos estudos anatômicos e cirúrgicos fizeram toda a diferença
(GALEOTTI, 2007). O fato de uma gravidez poder ser vista objetivamente
altera os sujeitos nela envolvidos e também a visão social da situação, o que

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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vai influenciar diretamente a questão do aborto (GALEOTTI, 2007). “Em certo
sentido, a futura mãe torna-se pública inclusive a si mesma, visto que, para se
saber grávida, necessita de uma intervenção exterior que lhe fale de si e do seu
estado” (GALEOTTI, 2007, p. 81).
Eis que à luz das necessidades políticas que permearam a Revolução
Francesa, o feto se transformou no futuro cidadão e a maternidade passou a
ser entendida como ato de patriotismo, e como “a única possível a autêntica
missão feminina” (GALEOTTI, 2007, p. 94). Ser mãe passou a ser sinônimo de
sofrimento e sacrifício, e também a razão exclusiva de felicidade e satisfação
que uma mulher pode ter. “A mãe deve estar disposta a abdicar de tudo e a
sacrificar-se até a ela própria para que o filho nasça e cresça” (GALEOTTI, 2007,
p. 94). O Estado passou a relacionar-se com o feto de forma direta, posto que
cada criança era um trabalhador, contribuinte e soldado em potencial. Seguindo
a ideologia e propaganda que precedeu, acompanhou, e sucedeu a Revolução
Francesa, quantidade populacional seria, pois, sinônimo de uma nação forte,
segura, rica e poderosa. Assim, o Estado superou a mediação materna na relação
com o feto, na medida mesmo em que se apropriou de sua gravidez, definindo
que nascimentos e não-nascimentos seriam questões públicas, numa clara
preferência pela prevalência do interesse do feto na solução de um eventual
conflito entre ele e a mãe. (GALEOTTI, 2007).
A partir da legislação napoleônica, os registros civis, que antes eram
realizados nas paróquias, passam a ser feitos pelo Estado. Surgem, assim, as
bases do Estado contemporâneo, coordenando e documentando as passa-
gens mais significativas da vida de cada cidadão. O predomínio dos homens
em todas as áreas profissionais qualificadas permite que o Estado controle o
corpo da mulher, decidindo se ela pode ou não ter um filho (por meio de leis
que condenam a contracepção e o aborto), inclusive extraindo-o em caso de
problema (por meio da cesariana). Observa-se, portanto, uma troca evidente
na posição dos atores em matéria de nascimento, em um lapso temporal de
dois/três séculos. (GALEOTTI, 2007).
No século XIX, afirma-se uma preocupação com a diminuição dos nas-
cimentos, que se acredita ter derivado da emancipação feminina, da difusão
de práticas contraceptivas (preservativos masculinos produzidos e difundidos
em larga escala, graças à descoberta da vulcanização da borracha), aliadas ao

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triunfo do racionalismo e do espírito individualista. O Estado, no entanto, seguiu
condenando o aborto movido por exigências políticas, apesar de uma veia
moralista também estar presente. A partir do código penal francês de 1810, o
aborto recebeu status de atentado contra a vida e foi inserido no rol dos crimes
contra a pessoa. A situação de pobreza saiu da condição de atenuante, mas
a causa de honra permaneceu: em alguns casos o aborto podia ser realizado
para esconder uma concepção ilegítima, como uma forma de manter a honra da
mulher; em outros, porém, era tido como uma “má conduta”, levando, inclusive,
a um agravamento da pena. (GALEOTTI, 2007).
A sanção normativa à matéria acentuou-se ainda mais no século XX. A ques-
tão política entra em cena novamente como pano de fundo para a condenação
da prática abortiva, em particular após a Primeira Guerra Mundial, em decor-
rência da necessidade de crescimento demográfico com vistas ao desenvol-
vimento econômico-social assentado em uma lógica imperialista (GALEOTTI,
2007). Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a legislação nazista, tendo
como intenção declarada o aperfeiçoamento da raça, de forma a purificá-la,
por um lado perseguiu zelosamente os que executavam aborto e por outro
tentou impedir que as mulheres de raça tida como inferior se tornassem mães
(GALEOTTI, 2007). Mussolini, por sua vez, defendeu uma efetiva perseguição
ao crime de aborto afirmando que “fator prévio ao poder político e, portanto,
econômico e moral das nações, é o dinamismo demográfico [...] O destino das
nações está ligado ao seu dinamismo demográfico” (GALEOTTI, 2007, p. 113).
Na França, em 1943, uma parteira foi guilhotinada após denúncia anônima
feita à polícia, acusada do cometimento de 26 abortos, crime que se conside-
rava não apenas atentatório contra as pessoas, mas ameaçador da segurança
interna e da força do Estado. Esse clima de repressão teve algumas destacáveis
exceções na primeira metade do século XX, ainda que um período curto. Trata-se
da Rússia bolchevique, que liberalizou o aborto em 1920, apesar de, 16 anos
depois, a prática ter sido novamente proibida pelo totalitarismo stalinista, e da
República Espanhola, que legalizou o aborto em 1936, com a ministra da saúde
anarquista Federica Montseny, embora, poucos anos depois (início dos anos
40), sob o regime ditatorial franquista, a legislação tenha sido modificada e o
aborto tenha sido reintroduzido no código penal espanhol. (GALEOTTI, 2007).

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Até aqui, é verificável que a preocupação com o fortalecimento político
e econômico do Estado teve um grande peso, durante bastante tempo, sobre a
escolha da proteção do feto. A isso se pode somar um movimento fortemente
moralista, preocupado com as relações extraconjugais e com a redefinição do
papel feminino decorrentes de mudanças sociais e de costumes que ocorre-
ram na segunda metade do século XX, com reflexos sobre o comportamento
sexual e as escolhas demográficas. O surgimento da pílula contraceptiva foi um
marco nesse sentido, uma vez que as mulheres que tinham acesso ao medica-
mento passaram a poder controlar a procriação com facilidade e segurança,
e a maternidade, assim, pôde deixar de ser vislumbrada como um destino,
passando a ser encarada como algo pertencente à esfera da livre escolha da
mulher. Essa foi uma das principais bandeiras do movimento feminista, sob os
slogans “olhamos durante 4000 anos: agora vemos!”, “donas das nossas barrigas”
e “o útero é meu”. A legislação que criminalizava o aborto era entendida por
várias vertentes do movimento como um símbolo da expropriação do corpo e
da identidade feminina. Pleiteavam que a prática fosse assegurada como um
direito civil. A filósofa Simone de Beauvoir, grande voz do movimento feminista,
defendia a difusão dos contraceptivos e a liberalização do aborto para libertar
a mulher do envenenamento ocasionado pelo terror e pelo remorso, possibili-
tando que ela se apoderasse de seu corpo e passasse a ter disponibilidade para
engajar-se em outras lutas. A procriação e a maternidade como livre escolha da
mulher foi uma reivindicação em torno da qual mulheres de diferentes classes
sociais, raças, culturas e idades se uniram. (GALEOTTI, 2007).
Outra importante quebra de paradigma ocorreu em relação à escolha
política dos Estados por fazer crescer numericamente suas populações. Quando
a bomba atômica de Hiroxima matou, em um só instante, cem mil pessoas, o
fator quantitativo deixou de ser dominante tanto para fins militares quanto para
fins industriais, já que a nova tecnologia demonstrou potencial para substituir
pessoas por máquinas. Foi nesse quadro que o aborto se tornou matéria de
acalorada discussão pública, o que resultou na revisão, por diversos países, das

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legislações pertinentes ao caso. Na Inglaterra, com o Abortion Act8 em 1967, um
jovem membro do partido liberal apresentou à Câmara dos Comuns um projeto
de lei que foi aprovado por esmagadora maioria, apesar de ter sido parcialmente
revisto, mais tarde, em razão de subsequente campanha promovida por católicos
e algumas organizações laicas. (GALEOTTI, 2007).
Nos Estados Unidos, em 1970, quase se obteve a ab-rogação da legislação
vigente, quando o estado de Nova Iorque admitiu o aborto às mulheres grávidas
com menos de 24 semanas, na condição de a interrupção ser realizada por um
médico em instalações clínicas, o que determinou uma divisão entre os estados
americanos, acabando no Supremo Tribunal, por meio do caso de Jane Roe, 23
anos, que já com dois filhos e vivendo em uma situação econômica precária,
“queria desesperadamente interromper a terceira gravidez não desejada”, não
tendo conseguido uma decisão a tempo, razão pela qual a criança nasceu viva
e foi dada para adoção. (GALEOTTI, 2007).
A sentença do caso Roe contra Wade, de 1973, é considerada célebre, pelo
fato de o Supremo Tribunal norte americano ter afirmado o direito da mulher em
escolher interromper ou não sua gravidez, com base no conceito de liberdade
pessoal garantido pela 14ª Emenda da Constituição Americana, e com isso
pode-se evitar consequências tanto físicas quanto psíquicas relacionadas à uma
maternidade não desejada e obrigatória. (GALEOTTI, 2007). Segundo Ronald
Dworkin (2003), o Supremo Tribunal acabou indo, inclusive, mais adiante, ao
afirmar a inconstitucionalidade de que qualquer lei que proibisse o aborto antes
do sétimo mês tão somente para proteger o feto.
Na Alemanha Ocidental e na França, em 1971, mais de setecentas mulheres,
entre ilustres ou não, declararam publicamente já terem abortado. Isso estimu-
lou, ainda, mais de três mil autodenúncias ao ministro federal da Justiça alemã.
Dois anos depois, na França, o processo da menina Michelè Chevalier, de 16
anos, que fora a tribunal após ter sido denunciada, juntamente com sua mãe,
pelo próprio colega de escola que a violara, pela prática ilegal de aborto, o que

8 O Abort Action (tradução livre: Lei do Aborto) de 1967 é uma lei do Parlamento do Reino Unido que legaliza o
aborto sob certas condições e que regula a provisão paga por impostos de tais práticas médicas por meio do
Serviço Nacional de Saúde.

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desencadeou duras acusações ao Estado francês pelas condições dramáticas
em que as mulheres abortavam. Tudo isso deflagrou vasta mobilização, que
trouxe a ambos os países novas regulamentações em matéria de interrupção
de gravidez: na Alemanha, uma petição para a abolição da legislação então em
vigor conduziu à revisão da lei em 1974 (liberalização do aborto nos primeiros três
meses de gravidez), enquanto em França a legalização se deu no ano seguinte
com a lei Veil. Ressalta-se que o processo de reunificação da Alemanha teve
como um de seus grandes impasses a questão do aborto, já que na Alemanha
Oriental, como em diversos países comunistas, o método era visto como normal
em termos de controle de natalidade. (GALEOTTI, 2007).
Na Bélgica, em 1990, e de modo muito semelhante na Polônia, após ter
sido aprovado pelo Senado e pela Câmara a lei de liberalização, o texto passou ao
rei, que, num considerado “golpe de teatro” recusou-se a assinar sob a alegação
de objeção de consciência. Segundo registrou em carta ao primeiro-ministro, se
nenhum cidadão belga é obrigado a agir em desacordo com sua própria cons-
ciência, não poderia ser essa uma exceção para o rei. Entretanto – continuou
– não seria aceitável que por causa de sua posição pessoal se bloqueasse o
funcionamento das instituições democráticas na Bélgica. Assim, o rei não pôde
desempenhar suas funções constitucionais e os ministros, então, reunidos em
conselho, ratificaram e promulgaram a lei. (GALEOTTI, 2007).
A Irlanda, contudo, mandou incluir num protocolo europeu que, sempre
que seja aprovada uma lei sobre o aborto, o povo irlandês terá o direito de se opor
à aplicação da mesma em seu território. Mas a questão não é de todo pacífica,
como mostrou o caso de uma jovem de 14 anos que, grávida, ameaçou suicídio
caso não pudesse abortar. Chamado a pronunciar-se sobre o caso, o Supremo
Tribunal solucionou o conflito autorizando que a menina se deslocasse para a
Inglaterra para proceder ao aborto. (GALEOTTI, 2007).
Na Itália, após intensa discussão entre diversas instituições, foi aprovada
em 1978, a lei 194, com o objetivo de obstacular juridicamente o aborto como meio
de controle dos nascimentos, e assim, reafirmar o valor social da maternidade
e defender o direito à procriação consciente e responsável. A partir dela, abor-
tar nos primeiros 90 dias após a concepção passou a ser possível apenas nos
casos em que fosse necessário à proteção da saúde física ou psíquica da mãe,
que deve estar severamente ameaçada. Trata-se de uma nova interpretação à

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condição de saúde da mulher, incluindo o seu bem-estar psíquico, e levando em
consideração as condições econômicas, sociais e familiares, as circunstâncias
da concepção, bem como as possíveis anomalias ou má formações do nasci-
turo. Observa-se que a mãe não decide por tirar a vida do feto sem qualquer
justificativa, mas lhe é permitida a escolha entre proteger sua saúde ou defender
a existência do feto. (GALEOTTI, 2007).
Já na China, ao contrário do que ocorre atualmente em diversos países
ocidentais, abortar é quase obrigatório, em decorrência de um regime de con-
trole de nascimentos imposto pelo Estado, que só permite que cada casal tenha
apenas um filho. Se tentar uma segunda gravidez, este casal estará sujeito a
medidas restritivas, tais como multa elevada, perda do direito de acesso aos
serviços sociais, diminuição dos aumentos salariais e até mesmo discriminação na
atribuição de habitação. Aliado a isso, está a tradição de se ter um filho homem,
o que se possibilita, na primeira gravidez, ao realizar a ecografia para ver o sexo
do feto, a opção do casal em levar a gestação adiante ou não. (GALEOTTI, 2007).
Diante de todo o contexto, depreende-se que a história do aborto está
intimamente relacionada às transformações da ciência e às necessidades
do Estado, trazendo, ainda, um envolvimento com questões morais e com as
tradições, que no caso do Oriente tem uma forte influência cristã. Trata-se de
um tema constantemente trazido à discussão por razões políticas, dada sua
vinculação essencial às temáticas de vida e morte. (GALEOTTI, 2007).

A moralidade do aborto e a sacralidade da vida

Traçado o panorama geral da história do aborto, verificamos que as


sociedades lidaram com a questão, desde a Antiguidade até os tempos atuais,
lastreadas em concepções morais, religiosas e políticas, estando essas for-
temente misturadas entre si. O papel social da mulher, a divindade da vida e
a necessidade de mão-de-obra militar e industrial dos Estados, como visto,
influenciaram de tal forma a abordagem do objeto deste trabalho que, arrisca-se
a dizer, provavelmente sem esses elementos o aborto não teria se tornado uma
questão para o mundo ocidental, ficando restrito ao universo feminino e seu
direito de escolha sobre decisões que lhe dizem respeito.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


112
Entendemos não ser possível falar em aborto sem falar em moral. Nesse
sentido, faz-se ineludível a menção às ideias do filósofo alemão Friedrich Niet-
zsche, que na polêmica obra Genealogia da Moral descreveu a construção desta
no mundo ocidental. Estudioso da Linguística Histórica, Nietzsche (1998) inicia
sua dissertação sobre a gênese da moral ocidental investigando a origem dos
conceitos “bom e mau”, “bom e ruim”. Verificou que o juízo “bom” provinha não
daqueles aos quais se fez o bem, mas dos nobres, poderosos, superiores em
posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como
bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo o que era baixo, vulgar
e plebeu, isto é, “ruim”.
O que foi visto pelo filósofo, por meio do estudo filológico de tais palavras
nas mais diversas línguas, era expressão de poder, o direito senhorial de dar
nome às coisas, definindo os papéis sociais. A raiz etimológica da palavra “bom”
demonstra que ela não se liga necessariamente a ações “não egoísticas”, como
quis a superstição dos então “genealogistas da moral”, mas um produto do juízo
de valor aristocrático, significando, pois, “espiritualmente nobre”, “espiritualmente
bem-nascido”, “espiritualmente privilegiado”, definições que se contrapunham
a do escravo, estirpe inferior (NIETZSCHE, 1998, p. 22). Explica Nietzsche que a
palavra mau deriva do latim “malus”, em que esta pode ter origem no “homem
comum como homem de pele escura, sobretudo como de cabelos negros [...],
como habitante pré-ariano do território da Itália, que através da cor se distin-
guia claramente da raça loura, ariana, dos conquistadores tornados senhores”
(NIETZSCHE, 1998, p. 22).
Assim, enquanto os homens “bons” eram detentores de uma constituição
física poderosa, uma saúde rica, transbordante, e tinham como hábitos a guerra,
a aventura, a caça, a dança, os torneios e tudo o que envolvia uma atividade
robusta, livre e contente, os “ruins” eram os fracos, os impotentes, os subjuga-
dos. Não podendo vencer fisicamente seus senhores, os escravos encontraram
uma solução psicológica para enfrentá-los, criando o “Reino dos Céus”, onde,
então, teriam a paz e a prosperidade que na Terra lhes foram negadas, dando
início ao cristianismo, a revolta dos escravos na moral (NIETZSCHE, 1998, p. 26).
Ou seja, a partir do cristianismo inverte-se a ordem dos valores estabeleci-
dos: significa dizer que os miseráveis, sofredores, doentes e necessitados passam
a ser os “bons”, os abençoados. Somente para eles há a bem-aventurança. Já os

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nobres e poderosos serão por toda a eternidade os “maus” e cruéis, desven-
turados e malditos. Do ressentimento dos subjugados para com a nobreza
nasce seu triunfo, requerendo um mundo oposto e exterior para poder agir
em absoluto. Assim, entram em cena sentimentos de passividade, obediência,
temor a Deus, o pecado, a castidade, a culpa, o castigo, a negação dos desejos
humanos em oposição à supervalorização do divino, espiritual, bem como a
mansidão, a prudência, a civilidade e todos os demais elementos da educação
cristã, regras de comportamento que serviam, na verdade, como meio de con-
ter as “aves de rapina” que, com toda a sua maldade, atacavam as inofensivas
“ovelhas” (NIETZSCHE, 1998, p. 36).
A concepção de “bem e mal” surgiu dessa moral cristã, que apequenou
o homem, seus instintos e desejos, sua força, sua audácia, sua indiferença e
desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua jovialidade e intensidade
no prazer de destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade, dando todo poder
e valor a Deus, o Pai, o Salvador, numa efetiva resposta dos homens do res-
sentimento, “pobres”, “fracos”, “indefesos” - antes escravos, agora “bons” - aos
“inimigos maus”, os “bárbaros”, os “vândalos”, os antigos senhores.
Com Nietzsche, percebemos que a moral ocidental foi edificada no esva-
ziamento do homem de si mesmo, na sua desumanização, na medida em que ele
deixa de ser o seu próprio mentor, deixa de ser a obra-prima, para ser o barro,
aquele que precisa moldado, guiado, aculturado por Deus, o absoluto, o que
está acima do “bem” e do “mal”. O homem passou a ser impotente diante de
Deus, submisso aos desígnios divinos, perdendo autonomia e liberdade sobre
sua existência: “a impotência que não acerta contas é mudada em “bondade”;
a baixeza medrosa, em “humildade”; a submissão àqueles que se odeia em
“obediência” (há alguém que dizem impor essa submissão – chamam-no Deus)”
(NIETZSCHE, 1998, p. 38-39).
Verificamos, pois, como a moral cristã, que dominou o mundo ocidental,
concebeu as ideias de justo e injusto. A moral ocidental é, portanto, pautada
em uma disputa de poder. A partir do esquema nietzschiano, entendemos a
moral como parte essencial das “punitividades institucionais que conformam
o sistema penal”, fundando um modelo de justiça baseado no ressentimento,
sempre atribuindo a culpa ao outro (CARVALHO, 2008, p. 197).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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Com os estudos de Ronald Dworkin sobre aborto, eutanásia e direitos
individuais, notamos como o “bem e mal”, “bom e ruim”, “justo e injusto” de
Nietzsche estão de fato impregnados na compreensão do indivíduo ocidental
sobre os comportamentos humanos, aparecendo nitidamente na abordagem
que envolve o objeto desse estudo: de um lado, os que supostamente defen-
dem a vida, os “bons”; de outro, aqueles que supostamente a banalizam em
prol da liberdade, os “bárbaros”, os “vândalos”. Contrariando essa cisão que se
estabeleceu em torno do aborto entre bem e mal, Dworkin (2003), entendendo
pela inadequação do tratamento condenatório, constrói linha argumentativa
com base na existência de uma unidade fundamental de convicção humanitá-
ria entre os debatedores da questão, provando que toda a discussão gira em
torno de opiniões filosóficas e religiosas sobre a relevância da vida: “O que
compartilhamos é mais fundamental do que nossas divergências sobre sua
melhor interpretação” (p. 99).
Em sua obra “Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais”,
ele identifica duas controvérsias possíveis nas discussões que dizem respeito
à condenação ou não do aborto. A primeira questiona se o feto tem interesses
(inclusive de se manter vivo), e direitos que os protejam. Em caso afirmativo,
Dworkin (2003) sustenta que “existe uma objeção derivativa ao aborto e uma
justificação derivativa das leis que o proíbem ou regulamentam. Se a resposta
for negativa, então não existe tal objeção ou justificação” (p. 32-33). Já a segunda
questão é sobre saber se o aborto é considerado moralmente errado por “negar
e profanar a santidade ou inviolabilidade da vida humana”, e não por ser injusto
com alguém. No caso de ser essa questão respondida afirmativamente, ele
entende haver, portanto, “uma objeção independente ao aborto, e, assim, uma
justificação independente para bani-lo ou regulamentá-lo”, e que tanto a opinião
liberal quanto a conservadora, os religiosos e as feministas, partem justamente
dessa premissa, de que a vida humana tem em si mesma um significado moral
intrínseco, sagrado e inviolável (DWORKIN, 2003, p. 32-33).
Ao analisar os argumentos daqueles que pertencem ao movimento pró-
-vida nos Estados Unidos, o autor verifica nesse discurso sólida base religiosa,
enxergando a vida como a mais grandiosa criação de Deus. Observa que não
defendem os direitos do feto, mas a sacralidade da vida. O movimento antia-
borto é, portanto, liderado por grupos religiosos, que sustentam uma posição

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muito mais conservadora sobre o tema do que as pessoas que não frequentam
igrejas, ou que o fazem esporadicamente. (DWORKIN, 2003).
No polo oposto, Dworkin nota que também no movimento feminista a
questão do aborto não está propriamente centrada em direitos do feto, mas
no valor intrínseco da vida, na medida em que a decisão de uma mulher de
interromper ou não uma gestação é difícil e trágica justamente por fazer parte
de um desafio maior, qual seja, a reflexão da mulher sobre definir se tem ou
não condições de ser a gestora de um projeto que significa tutelar uma vida
alheia, garantindo a ela os meios necessários a uma existência satisfatória em
termos materiais e emocionais, e, a partir disso, decidir por levar ou não adiante
a gestação não planejada. Isso demonstra que também para as feministas a vida
tem um caráter sagrado, visto que elas “não sustentam que o feto é uma pessoa
com direitos morais próprios, mas insistem em que é uma criatura dotada de
importância moral” (DWORKIN, 2003, p. 70-80).
Alguns filósofos colocam objeção à possibilidade de que qualquer coisa
possa vir a ter valor intrínseco, argumentando que os objetos e os fatos só
podem ter valor quando e porque servem aos interesses de alguém ou de
alguma coisa. Dworkin contesta, tomando como exemplo a arte, que possui um
valor que independe do fato de que qualquer criatura queira realmente passar
pela experiência que ela proporciona, mostrando com isso que a ideia de valor
intrínseco nos é deveras familiar. Ele cita o exemplo de que ao querermos ver
um quadro de Rembrandt, o fazemos porque o achamos maravilhoso, e não
que ele é maravilhoso porque o queremos ver. E que a ideia de que uma obra
de Rembrandt possa ser destroçada é por nós enxergada como “uma terrível
profanação”, e que isso em nada tem a ver como fato das experiências que
podemos ser privados de ter com ela, já que a chance de um dia podermos ver
o quadro talvez seja mínima. (DWORKIN, 2003).
A vida humana não seria valiosa somente por seu valor intrínseco, pos-
suindo inegavelmente dois outros sentidos: instrumental e subjetivo. O primeiro
deles – o instrumental – observa-se quando se avalia em termos do quanto o
fato de uma pessoa estar viva serve aos interesses dos outros, do quanto aquilo
que ela produz torna melhor a vida de outras pessoas. Identifica-se o valor
instrumental da vida como sendo a causa da proteção dada ao feto pelos Esta-
dos Nacionais, por exemplo. O segundo sentido – subjetivo – pode chamar-se

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


116
também de pessoal, pois significa o valor que a vida de um ser humano tem
para si próprio, quando se poderia, então, falar no direito do feto de nascer e de
viver, como têm feito muitos daqueles que discutem a problemática do aborto.
Entretanto, verificamos com as observações de Ronald Dworkin que os dois
outros valores aqui citados não parecem tocar de forma apropriada a questão
que se apresenta neste trabalho. Ele sustenta que o debate sobre o aborto tem
de abordar se o feto tem ou não direitos e interesses próprios, posto que se ele os
tiver, então terá o interesse pessoal em continuar vivo e ser protegido. Contudo,
ele próprio não acredita que, no início da concepção, um feto tenha interesses e
direito, e afirma que quase ninguém acredita nisso. E, por isso, ele sustenta que
“se o valor pessoal fosse o único tipo de valor pertinente em jogo na questão
do aborto, este não seria moralmente problemático” (DWORKIN, 2003, p. 117).
Partindo da premissa de que tanto os conservadores quanto os liberais
aceitam que, em princípio, a vida humana é inviolável, Ronald Dworkin demonstra
que isso explica por que as duas partes concordam e divergem entre si. Quanto
aos aspectos consensuais, ambas entendem que a morte é a frustração de todo
investimento criativo natural e humano, e que o tamanho da frustração depende
da fase de vida em que a morte ocorre, sendo maior quando se der depois que
a pessoa tiver feito um investimento pessoal significativo em sua própria vida,
e menor se for depois que algum investimento tiver sido substancialmente
concretizado, ou tanto quanto poderia. No que toca às divergências entre con-
servadores e liberais, defende que, embora todas as partes, em geral, concordem
que é ruim que uma vida no início venha a frustrar-se, há um desacordo em
relação saber se essa morte prematura que poderia ser evitada “é sempre, ou
invariavelmente, a mais grave frustração de vida possível”. Nesse sentido, os
conservadores sustentam a tese de que, sim, a morte imediata é a mais grave
frustração de vida possível. Os liberais, por sua vez, têm sustentação oposta:
“a de que em alguns casos, ao menos, a opção pela morte prematura minimiza
a frustração da vida, não sendo, portanto, uma atenuação do princípio de que
a vida humana é sagrada, mas sim a opção que mais respeita esse princípio”.
(DWORKIN, 2003, p. 125).
Quando se observa o curso natural de uma vida humana, vê-se que ela
começa com a concepção, caminha para o nascimento e a infância, culmina em
uma maturidade ativa e bem-sucedida na qual se concretizam os investimentos

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biológico e humano, terminando com a morte natural depois de um espaço
de tempo normal. Assim compreendida, a vida pode ser frustrada principal-
mente de duas formas: pela morte prematura, que deixa por realizar qualquer
investimento natural e pessoal previamente feito, e por outras modalidades de
fracasso, como por exemplo pela pobreza, por uma educação insuficiente, por
projetos malfeitos, por deficiências físicas e mentais. Qualquer desses reveses
pode, de diferentes maneiras, frustrar a oportunidade que uma pessoa tem de
levar uma vida plena de realizações ou tornar concretas suas ambições. É jus-
tamente a partir desse pressuposto que Dworkin enxerga a divergência entre
conservadores e liberais quanto à condenação do aborto, conforme descrito na
passagem acima, concluindo que “se os conservadores e os liberais não chegam
a um consenso quanto à morte prematura ser sempre a pior frustração da vida
-, então a divergência deve dar-se em virtude de um contraste mais geral entre
diretrizes religiosas e filosóficas” (DWORKIN, 2003, p. 125).
O que podemos constatar é que foram colocados para lutar o homem e
o divino, acreditando ser possível que um dos dois vença. O que a moral oci-
dental parece enxergar no aborto é uma disputa absolutamente inócua. Nunca
existirá vencedor porque esse embate que, insistentemente, se acredita existir é
algo impossível e irreal. E enquanto o mundo despende energia envolvendo-se
nesse duelo entre o bem e o mal, milhares de mulheres continuam a morrer
todos os anos, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil,
que apresentam preponderante condução conservadora das questões sociais,
ou melhor, nítida moral cristã, tal qual descrita por Nietzsche (1998).

A relação entre o controle dos corpos femininos e a acumulação primitiva

Tal qual o tráfico intercontinental de negros e negras escravizados, a


caça às bruxas foi utilizada como instrumento de colonização, segundo Federici
(2017). Anos de estudo foram necessários para que a autora pudesse reescrever
a história “esquecida” das mulheres e da reprodução da vida durante o período
de transição do feudalismo para o capitalismo. Nesse diapasão, ela argumenta
que “[...] o compromisso com o barateamento do custo da produção do traba-
lho, ao longo do desenvolvimento capitalista, exige o uso da máxima violência
e da guerra contra as mulheres, que são o sujeito primário dessa produção”

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


118
(FEDERICI, 2017, p. 14). Cabe aqui ressaltar, de imediato, algo que nos pareceu
fundamental para a reflexão que desenvolvemos ao longo deste texto (e que
desenvolveremos de forma ainda mais clara nas próximas páginas): as políti-
cas exercidas sobre os corpos, racializados e/ou femininos, e que no exame do
abortamento voluntário manifesta sua crueldade interseccional9, é um processo
de máxima violência exercido sobre o sujeito, que, à luz de Federici (2017), foi
e é estruturante do processo de acumulação primitiva de riqueza sem o qual o
capitalismo não se sustenta.
O elo entre “feminino”, “corpo” e “acumulação primitiva” é o que, de
acordo com Federici (2017), explica algo que tanto as feministas radicais quanto
as feministas socialistas não conseguiram explicar satisfatoriamente, isto é,
as raízes comuns da exploração social e econômica das mulheres. Conforme
a autora, a esfera da reprodução é fonte de valor e exploração. Isso nos dará
cabida a entender por que em momentos de legitimação de governos auto-
cráticos, ultraconservadores e neoliberais, as discussões sobre gênero são
demonizadas e os corpos LGBTQI+ são atacados. Não há casualidade alguma
nisso, tampouco se trata de um uso manipulativo no sentido de desfocar a
atenção da população ante a propulsão de ataques “mais graves”. Voltaremos
a esse ponto mais adiante. Por hora, sigamos com a análise do seguinte trecho:

[…] por quê, no começo do século XXI, depois de mais de quinhentos


anos de exploração capitalista, a globalização ainda é movida pelo
esta- do de guerra generalizado e pela destruição de nossos sistemas
reprodutivos e de nossa riqueza comum, e por quê, novamente, são
as mulheres que pagam o preço mais alto. Observem o aumento
da violência de gênero, especialmente intensificada em regiões
como África e América Latina, onde a solidariedade comunal está
desmoronando sob o peso do empobrecimento e das múltiplas
formas de despossessão. (FEDERICI, 2017, p. 14).

Em sua obra, Federici (2017) faz um trabalho de resgate da história


apagada do período designado oficialmente de “transição” do feudalismo
para o capitalismo. A autora relata que diversas revoltas camponesas – com

9 Para compreensão do conceito de interseccionalidade, ver CRENSHAW (2002).

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protagonismo de mulheres, inclusive – ocorreram na Europa pré-capitalista,
tendo como elemento comum a pugna contra a opressão e a miséria infligida
pela classe dominante de então. Naquele momento, demonstra a autora, não
havia propriamente uma divisão sexual do trabalho e existiam algumas terras
comunais frequentadas livremente pela classe dominada. No cotidiano desta, as
tarefas diárias eram mais ou menos executadas por todos e giravam em torno da
subsistência. Quanto às terras comunais, além de um espaço de socialização e
estabelecimento de vínculos de solidariedade, os absolutamente empobrecidos
dispunham de um lugar para habitar e obter alimento. O conjunto de estraté-
gias utilizadas pelos dominantes, ameaçados em seu poder, para massacrar
tais revoltas populares é a base do questionamento de Federici (2017) à ideia
de “transição”, ao tempo em que é também o que a faz pensar na irrupção do
capitalismo na cena mundial como uma contrarrevolução.
Tratando de maneira bastante resumida – o que, por certo, a autora ela-
bora e apresenta em sua obra com riqueza de detalhes –, processos tais como
o cercamento dos campos, a imposição do trabalho assalariado e a substituição
do trabalho com fins de subsistência pelo trabalho orientado à produção, muito
longe de significarem um movimento natural-evolutivo necessário à melhoria
das condições de vida humana no globo, como apregoado em discurso pre-
dominante, foram, com efeito, parte essencial do arsenal empregado pelos
detentores do poder com tal de anular as possibilidades de horizontalização das
relações sociais e libertação da exploração pelas quais estava lutando a classe
dominada. A propriedade privada, como elemento cultural e jurídico, foi instituída
neste contexto. Dentro da mesma conjuntura, em substituição à expropriação das
terras e a despossessão e expulsão que ela provocou, como forma de fissurar a
unidade de gênero entre os insurgentes e desvirtuar o antagonismo de classe, e
como meio de aplacar os “impulsos rebeldes” principalmente entre a juventude
masculina, o corpo feminino foi utilizado institucionalmente como território de
apropriação recreativa dos homens. A prostituição foi incentivada, prostíbulos
foram abertos pelo poder público e abundaram os casos de estupros coletivos.

[…] as autoridades políticas empreenderam importantes esforços


para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio
de uma maliciosa política sexual, que lhes deu acesso a sexo
gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


120
contra as mulheres proletárias. […] as autoridades municipais
praticamente descriminalizaram o estupro nos casos em que as
vítimas eram mulheres de classe baixa. […] o estupro de mulheres
proletárias solteiras raramente tinha como consequência algo
além de um puxão de orelhas, até mesmo nos casos frequentes
de ataque em grupo […]. […]. […] o estupro coletivo de mulheres
proletárias se tornou uma prática comum, que se realizava aberta
e ruidosamente durante a noite, em grupos de dois a quinze que
invadiam as casas ou arrastavam as vítimas pelas ruas sem a menor
intenção de se esconder ou dissimular. Aqueles que participavam
desses “esportes” eram aprendizes ou empregados domésticos
[…] enquanto as mulheres eram meninas pobres […]. Em média,
metade dos jovens participou alguma vez nesses ataques, […].
Porém, os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores,
pois o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal
debilitou a solidariedade de classe que se havia alcançado na luta
antifeudal. […], as autoridades encararam os distúrbios causados
por essa política […] como um preço pequeno a se pagar em troca
da diminuição das tensões sociais, já que estavam obcecadas pelo
medo das grandes insurreições […]. Para estas mulheres proletárias,
tão arrogantemente sacrificadas por senhores e servos, o preço a
pagar foi incalculável. Uma vez estupradas, não era fácil recuperar
seu lugar na sociedade. Com a reputação destruída, tinham que
abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição […]. Porém,
elas não eram as únicas que sofriam. A legalização do estupro
criou um clima intensamente misógino que degradou todas as
mulheres, qualquer que fosse sua classe. Também insensibilizou a
população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno
para a caça às bruxas […]. […]. Outro aspecto da política sexual
fragmentadora que príncipes e autoridades municipais levaram a
cabo com a finalidade de dissolver o protesto dos trabalhadores
foi a institucionalização da prostituição, implementada a partir do
estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por
toda a Europa. […] foram abertos bordéis geridos publicamente
e financiados por impostos, numa quantidade muito superior à
atingida no século XIX. (FEDERICI, 2017, p. 103-105).

Conforme sustentado por Federici (2017), a caça às bruxas e o tráfico


negreiro foram o laboratório de experimentação da “ciência da exploração”
que permitiu que o capitalismo, enquanto contrarrevolução, prosperasse. Com
o emprego do termo “ciência”, a autora não faz uso de um recurso estilístico,
mas nomeia a aquisição de um conhecimento profundo sobre algo a partir
do exercício empírico de um exame continuado e manipulado; ela nomina a

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organização sistematizada de um saber conseguido racionalmente pela prática,
pela aplicação de métodos e técnicas minuciosamente elaborados, testados e
aprimorados dentro de um esquema de afrontamento dos fenômenos e fatos
que se deseja controlar. Em nosso artigo, a ênfase recairá, por motivos óbvios
concernentes ao seu tema central, sobre a caça às bruxas. Isso não significa,
porém, que o tráfico negreiro tenha natureza diversa para a autora, ao contrário.
Ambos são apreendidos e compreendidos por ela, de forma entremeada, dentro do
horizonte do processo contrarrevolucionário de acumulação primitiva do capital.
Antes de passarmos à análise propriamente dita da caça às bruxas, é
necessário observar o que depreende Federici (2017) de uma sequência de
acontecimentos históricos, em sede do que foi dito anteriormente. A Grande
Fome, que ocorreu no início do século XIV e debilitou profundamente a saúde
das pessoas, foi precedida pela Peste Negra, que gerou um colapso demo-
gráfico sem precedentes, dizimando algo em torno de 30-40% da população
europeia. Em consequência, a vida social e política da Europa foi radicalmente
alterada: “As hierarquias sociais foram viradas de cabeça para baixo, devido
ao efeito nivelador da mortandade generalizada. A familiaridade com a morte
também debilitou a disciplina social” (FEDERICI, 2017, p. 96). A ocorrência con-
junta – e temporalmente alargada – da crise do trabalho (e sua intensificação) e
de um turbilhão revolucionário imparável forçou uma aliança entre a nobreza e
a burguesia que vinha se consolidando nas cidades. O resultado dessa aliança
deu cabida ao surgimento do Estado, cuja implementação das políticas sexuais
anteriormente descritas possibilitou sua centralização, em tanto que “o único
agente capaz de confrontar a generalização da luta e de preservar as relações
de classe[:] [...] o Estado tornou-se o gestor supremo das relações de classe
e o supervisor da reprodução da força de trabalho” (FEDERICI, 2017, p. 107).

A consequência mais importante da peste foi, entretanto,


a intensificação da crise do trabalho gerada pelo conflito de
classes: ao dizimar a mão de obra, os trabalhadores tornaram-se
extremamente escassos, seu custo aumentou de forma crítica
e a determinação das pessoas em romper os laços do domínio
feudal foi fortalecida. […], a escassez de mão de obra causada
pela epidemia modificou as relações de poder em benefício das
classes baixas. Em épocas em que a terra era escassa, era possível
controlar os camponeses por meio da ameaça de expulsão. […],

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


122
enquanto os cultivos estavam apodrecendo e o gado caminhava
sem rumo pelos campos, os camponeses e artesãos repentinamente
tomaram conta da situação. Um sintoma deste novo processo foi
o aumento das greves de inquilinos, reforçadas pelas ameaças
de êxodo em massa para outras terras ou para a cidade. […]. Até o
final do século XIV, a recusa a pagar o aluguel e a realizar serviços
havia se transformado em um fenômeno coletivo. Aldeias inteiras
organizaram-se conjuntamente para deixar de pagar as multas, os
impostos e a talha, negando-se a reconhecer a troca de serviços e
as determinações dos tribunais senhoriais, que eram os principais
instrumentos do poder feudal. Nesse contexto, a quantidade de
aluguéis e de serviços retidos era menos importante do que o fato
de que a relação de classes em que se baseava a ordem feudal
fosse subvertida. […]. Como resposta ao aumento do custo da
mão de obra e ao desmoronamento da renda feudal, ocorreram
várias tentativas de aumentar a exploração do trabalho a partir do
restabelecimento da prestação de serviços laborais compulsórios
ou, em alguns casos, da escravidão. […]. Porém, essas medidas só
aprofundaram o conflito de classes. […] Durante esse processo,
o horizonte político e as dimensões organizacionais da luta dos
camponeses e artesãos se expandiram. Regiões inteiras rebelaram-
se, formando assembleias e recrutando exércitos. Algumas vezes,
os camponeses se organizaram em bandos, atacaram os castelos
dos senhores e destruíram os arquivos onde eram mantidos os
registros escritos da servidão. No século XV, os enfrentamentos
entre camponeses e nobres tornaram-se verdadeiras guerras,
[…]. […]. Em nenhum desses casos os rebeldes se conformaram
apenas em exigir algumas restrições do regime feudal, tampouco
negociaram exclusivamente para obter melhores condições de
vida. O objetivo era colocar fim ao poder dos senhores. […]. […],
para uma parte importante do campesinato da Europa Ocidental
e para os trabalhadores urbanos, o século XV foi uma época de
poder sem precedentes. Não só a escassez de trabalho lhes deu
poder de decisão, mas também o espetáculo de empregadores
competindo por seus serviços reforçou sua própria valorização
e apagou séculos de degradação e submissão. (FEDERICI, 2017,
p. 96-100).

Comenta Federici (2017) que, a reboque da crise do trabalho, o proletariado


europeu conquistou um nível de vida que não foi igualado até o século XIX: “algo
muito distinto da representação canônica do século XV, que foi imortalizado
iconograficamente como um mundo sob a maldição da dança da morte e do

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memento mori10” (FEDERICI, 2017, p. 100). Frente às várias tentativas da classe
dominante de reverter esse quadro a seu favor, um “turbilhão revolucionário
imparável” foi desatado por trabalhadores e trabalhadoras que tinham o unívoco
propósito de que cada ser humano tivesse tanto quanto qualquer outro para
viver. Como visto, a coalisão das forças do poder feudal ao redor da instituição
do Estado absolutista teve sua ocorrência voltada integralmente a parar o, até
então, imparável. Dada a intensificação do conflito social, a Igreja compôs essa
coalisão junto a nobres e burgueses, apesar das tradicionais divisões existentes
entre as três forças. Ela até mesmo viu com bons olhos o programa de incentivo
à prostituição e administração de bordéis pelo Estado, posto que viu nisso um
antídoto contra as práticas hereges e a sodomia, bem como um meio de pro-
teger a vida familiar, sobre a qual exercia um poder direto. Por parte do Estado,
ademais, foram criadas leis estabelecendo limites ao custo do trabalho, fixando
tetos salariais, proibindo e castigando duramente a vadiagem, e estimulando
os trabalhadores a se reproduzirem. (FEDERICI, 2017).
Conta-nos Federici (2017) que as principais seitas hereges persistiram
durante longo tempo – apesar da perseguição extrema que sofreram – e tive-
ram um papel bastante relevante na luta antifeudal. A autora relata que elas
tinham um programa social que reinterpretava a tradição religiosa e eram bem
organizadas no tocante a sua disseminação e autodefesa, e também à difusão
de suas ideias. Elas floresceram entre as camadas populares dominadas e, na
atualidade, pouco se sabe sobre elas dada a ferocidade com que foram per-
seguidas pela Igreja, que não envidou esforços em apagar todo rastro de suas
doutrinas. “Apesar de ter influência das religiões orientais que mercadores e
cruzados traziam à Europa, a heresia popular era menos um desvio da doutrina
ortodoxa do que um movimento de protesto que aspirava a uma democratização
radical da vida social.” (FEDERICI, 2017, p. 70).
A autora comenta que a heresia era para o proletariado medieval algo
como a “teologia da libertação”. Informa que o movimento herético proporcio-
nava uma vivência comunitária alternativa. Seus membros viviam suas vidas

10 Expressão latina que significa, literalmente, “lembre-se da morte”. Sua mensagem representa algo assim como
“lembre-se que você é mortal” ou “lembre-se que você vai morrer”.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


124
com maior autonomia, se beneficiavam do estabelecimento de redes de apoio
constituídas por contatos, refúgios e escolas, e de redes de conexões estabele-
cidas por meio de feiras comerciais, peregrinações e permanentes ajudas aos
refugiados perseguidos em cruzamentos de fronteiras. Federici (2017) considera
não ser um exagero afirmar que o movimento herético foi a primeira “internacio-
nal proletária”, uma vez que deu um marco às demandas populares de justiça
social e renovação espiritual, desafiando a verdade superior da Igreja e da
autoridade secular, denunciando as hierarquias sociais, a propriedade privada
e a acumulação de riquezas, e difundindo entre o povo uma nova concepção
de sociedade, que redefinia todos os aspectos da vida cotidiana.

Na raiz da heresia popular estava a crença de que Deus já não falava


por meio do clero, devido à sua ganância, à sua corrupção e ao seu
comportamento escandaloso. […]. Sob a égide do Novo Testamento,
os hereges ensinavam que Cristo não possuía propriedades e
que, se a Igreja queria recuperar seu poder espiritual, deveria
desprender-se de todas as suas posses. Também ensinavam
que os sacramentos não eram válidos quando ministrados por
padres pecaminosos […]. […]. O desafio dos hereges, porém,
era principalmente político, já que desafiar a Igreja pressupunha
enfrentar ao mesmo tempo o pilar ideológico do poder feudal, o
principal senhor de terras da Europa e uma das instituições que
mais contribuía com a exploração cotidiana do campesinato. […].
Além disso, exortavam as pessoas a não pagarem os dízimos e
negavam a existência do Purgatório, cuja invenção havia servido
ao clero como fonte de lucro, por meio das missas pagas e da
venda de indulgências. (FEDERICI, 2017, p. 72-73).

Merece destaque a caracterização oferecida por Federici (2017) sobre os


cátaros, a mais influente das seitas hereges, que se destacou na história dos
movimentos sociais europeus. Eles possuíam aversão às guerras (incluindo
nesse rol as cruzadas religiosas) e não toleravam a pena de morte em hipótese
alguma (algo que, por certo, provocou a Igreja a se pronunciar pela primeira
vez de maneira explícita sobre sua concordância quanto à pena capital). Sua
condescendência com outros credos e crenças possibilitou, por exemplo, a
produção da tradição mística da Cabala (decorrente da fusão do pensamento
cátaro com o pensamento judaico). Eles eram estritamente vegetarianos (por
sua oposição não só à matança de seres vivos, mas ao consumo de alimentos

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gerados sexualmente), repudiavam o matrimônio e a procriação (fortemente
vinculados na tradição cristã), e desdenhavam da castidade (enquanto imposição
involuntária). Atribuíam ao sexo um valor místico (via de alcance de um estado
de inocência), mas respeitavam aqueles que, por vontade própria, praticavam
a abstinência sexual. Consideravam a procriação um ato por meio do qual a
alma ficava presa ao mundo material, e se negavam a ter filhos para não trazer
novos escravos a uma terra de perversidades, em que a maioria era submetida
por uma minoria a uma existência degradada à mera sobrevivência.
As mulheres tinham grande participação e lugar de destaque nas seitas
hereges. A autonomia da vontade quanto ao disfrute do próprio corpo, as prá-
ticas sexuais livres e o respeito às relações homoafetivas eram outros de seus
traços marcantes. Apesar de as práticas sexuais não-procriativas abraçadas
pelos hereges, seu antinatalismo e o controle da natalidade (sodomia, aborto
e infanticídio) por eles praticado não terem tido qualquer impacto demográfico
decisivo, quando o crescimento populacional se tornou uma preocupação funda-
mental por conta da profunda crise demográfica e da escassez de trabalhadores,
criou-se um clima político em que qualquer forma de anticoncepção passou
a ser associada à heresia e duramente perseguida. Em paralelo, os costumes
hereges representavam uma ameaça ao controle da Igreja sobre o matrimônio
e a sexualidade, por meio do qual ela conseguia colocar a todos sob seu escru-
tínio disciplinar, desde o imperador até o mais pobre dos camponeses. Assim,
a Igreja passou a abordar as questões sexuais com uma obsessão mórbida11 e
a politização da sexualidade ganhou um fôlego renovado, em razão da ameaça
à estabilidade econômica e social das classes dominantes. Em consequência,
tanto as seitas hereges como qualquer prática que pudesse ser associada à
heresia passaram a ser implacavelmente combatidas. (FEDERICI, 2017).
Um dos aspectos mais significativos do movimento herético, segundo
Federici (2017), foi a elevada posição que ele designou às mulheres: se socialmente
estavam sendo encaradas como nada, entre os heréticos eram consideradas

11 Vemos, em Federici (2017), que práticas como o aborto e a sodomia (realização de sexo anal) chegaram a ser
vistas pela Igreja, anteriormente, com certa indulgência, na medida em que vez permitiam fazer frente à proli-
feração descontrolada da massa de miseráveis. Distinto era o tratamento dado quando se tratava de mulheres
que lançavam mão de tais práticas com tal de esconder um “crime de fornicação”.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


126
como iguais; tinham os mesmos direitos que os homens e desfrutavam de
uma vida social e de uma mobilidade incomum nos demais espaços naquele
momento. Entre os cátaros, que eram adoradores de uma figura feminina
chamada “Senhora do Pensamento”, as mulheres ministravam os sacramen-
tos, pregavam, batizavam e alçavam ordens sacerdotais. Nas seitas hereges,
era comum que mulheres e homens compartilhassem livremente, sem estar
casados, a mesma moradia. Também era comum que as mulheres formassem
as suas próprias comunidades, vivendo apenas entre mulheres. Dessa forma,
elas conseguiam manter seu trabalho fora do controle masculino ao tempo em
que seus corpos, e sua própria existência, deixavam de estar subordinados ao
controle monástico.
Considerando a necessidade de mão de obra após o desastre demográfico,
a necessidade de cindir a classe proletária que se rebelava contra o sistema
de dominação imposto, e o apelo que as doutrinas e o modo de vida herege
seguiam despertando – sobretudo nas camadas populares – sobre as bases da
igualdade e da cooperação, em que pese a perseguição que vinham sofrendo,
às acusações dos inquisidores de sodomia e licenciosidade sexual dos hereges
foram agregadas outras, tais como o culto a animais, a prática do bacium sub
cauda12, o regozijo em rituais orgiásticos, voos noturnos, sacrifícios de crianças e
adoração ao diabo. Pouco a pouco, a figura do herege foi se tornando a de uma
mulher e a persecução à heresia foi transitando progressivamente para a caça às
bruxas. A revolução sexual foi um constituinte basilar do movimento herético, e
eles – especialmente na figura dos cátaros – desafiaram a visão degradada que
a Igreja tinha das mulheres. Os hereges, assim como as bruxas, também foram
queimados na fogueira, acusados de traidores da verdadeira religião, e os crimes
de que foram acusados entraram a posteriori para o decálogo da bruxaria. Sob
o mesmo pretexto de imposição de uma ortodoxia religiosa, porém com o pro-
pósito de castigar a subversão social, é significativo (e nada casual) que a caça
às bruxas tenha primeiro se desenvolvido precisamente naquelas regiões onde
a perseguição aos hereges foi especialmente mais intensa. (FEDERICI, 2017).

12 Beijo sob o rabo.

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Há, para Federici (2017), uma clara continuidade entre a perseguição
precedente aos hereges e a subsequente caça às bruxas, considerando, em
especial, a primeira etapa de caça às bruxas e a persecução por bruxaria.
Ocorre que, para ela, o elemento “bruxaria” é, ao mesmo tempo, aquilo a partir
do que é possível enxergar a diferença estruturante da perseguição à heresia
em relação à caça de bruxas: nesta última, a bruxaria foi considerada um crime
essencialmente feminino. Com efeito, no ápice da caça às bruxas, foram os cri-
mes reprodutivos que ocuparam o lugar de destaque nos julgamentos. A caça
às bruxas, comenta a autora, ocorreu em um contexto histórico distinto ao da
repressão à heresia, contexto este já dramaticamente transformado, primeiro,
pelos traumas e deslocamentos produzidos pela Peste Negra e, mais tarde,
pela profunda mudança ocorrida nas relações de classe que carregou consigo
a reorganização capitalista da vida econômica e social. Com isso, ela chama a
atenção para o fato de que, mesmo os elementos visíveis de continuidade entre
os dois eventos, tiveram significados distintos em um e outro. É no rastro da
interpretação desses significados que Federici (2017) busca desvendar por que
a caça às bruxas foi, na realidade, uma perseguição às mulheres.

Isso pode ser notado especialmente no momento em que a


perseguição alcançou seu ponto máximo, no período compreendido
entre 1550 e 1650. Em um momento anterior, os homens chegaram
a representar cerca de 40% dos acusados e um número menor
deles continuou sendo processado posteriormente, sobretudo
vagabundos, mendigos, trabalhadores itinerantes, assim como
ciganos e padres de classe baixa. […]. Mas o fato mais notável é
que mais de 80% das pessoas julgadas e executadas na Europa
nos séculos XVI e XVII pelo crime de bruxaria eram mulheres. De
fato, mais mulheres foram perseguidas por bruxaria neste período
do que por qualquer outro crime, exceto, de forma significativa, o
de infanticídio. (FEDERICI, 2017, p. 323).
Até hoje, [a caça às bruxas] continua sendo um dos fenômenos
menos estudados na história da Europa ou, talvez, da história mundial
[…]. [...]. As feministas reconheceram rapidamente que centenas
de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e
submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um
desafio à estrutura de poder. Também se deram conta de que essa
guerra contra as mulheres, que se manteve durante um período
de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto decisivo na
história das mulheres na Europa [...]. (FEDERICI, 2017, p. 290-292,
grifo nosso).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


128
Genocídio é a designação utilizada por Federici (2017) para referir-se à
caça de bruxas. Nesse diapasão, ela critica a indiferença dos historiadores frente
a um fato social tão atroz. Argumenta que o fato de a maior parte das vítimas na
Europa terem sido mulheres camponesas empobrecidas seria provavelmente
a explicação para tal postura. Dita indiferença, segundo o seu ponto de vista,
roça a cumplicidade, “já que a eliminação das bruxas das páginas da história
contribuiu para banalizar sua eliminação física na fogueira, sugerindo que foi
um fenômeno com um significado menor, quando não uma questão de folclore”
(FEDERICI, 2017, p. 290). Dentre as poucas abordagens acadêmicas existentes
(predominantemente masculinas) com anterioridade ao advento do movimento
feminista, que tirou o fenômeno da caça às bruxas da clandestinidade, Federici
(2017) afirma serem abundantes os exemplos de inspiração misógina, salvo raras
exceções. Apesar de deplorarem o extermínio das bruxas, essas abordagens
acusam as vítimas de “tolas miseráveis que padeciam de alucinações” (p. 290)
e cujos surtos de loucura teriam deflagrado uma epidemia de pânico social; em
outras palavras, “todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das
bruxas e despolitizam seus crimes” (FEDERICI, 2017, p. 290).
Outrossim, lamenta a autora que também nos estudos marxistas sobre a
história do proletariado a caça às bruxas quase não apareça. Salvaguardando
algumas poucas contribuições, é como se esse acontecimento carecesse de
importância para a história da luta de classes. Para ela, não obstante, mais
do que adquirir relevância, o evento precisaria ocupar um lugar central nesse
debate. Porque, se por um lado, a referida persecução teria sido “o ‘pecado
original’ no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a
chegada do capitalismo” (FEDERICI, 2017, p. 292), por outro, em sua opinião, só
conseguiremos compreender a misoginia que ainda hoje caracteriza a prática
institucional e as relações entre homens e mulheres se formos capazes de reco-
nhecer a caça às bruxas como um aspecto crucial da “guinada” capitalista no
interregno do que foi o final do feudalismo, marcado por crises de toda natureza
e diversas revoltas populares, e a instauração propriamente dita do capitalismo
como modo de ordenação da vida.

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[…] quero reforçar que, contrariamente à visão propagada pelo
Iluminismo, a caça às bruxas não foi o último suspiro de um mundo
feudal agonizante. É bem consagrado que a “supersticiosa” Idade
Média não perseguiu nenhuma bruxa — o próprio conceito de
“bruxaria” não tomou forma até a Baixa Idade Média, e nunca
houve julgamentos e execuções massivas durante a “Idade das
Trevas”, apesar de a magia ter impregnado a vida cotidiana e, desde
o Império Romano tardio, ter sido temida pela classe dominante
como ferramenta de insubordinação entre os escravos (FEDERICI,
2017, p. 294-295).
As dimensões do massacre deveriam, entretanto, ter levantado
algumas suspeitas: em menos de dois séculos, centenas de
milhares de mulheres foram queimadas, enforcadas e torturadas.
Deveria parecer significativo o fato de a caça às bruxas ter sido
contemporânea ao processo de colonização e extermínio das
populações do Novo Mundo, aos cercamentos ingleses, ao começo
do tráfico de escravos, à promulgação das Leis Sangrentas contra
vagabundos e mendigos, e de ter chegado a seu ponto culminante
[…] quando os camponeses na Europa alcançaram o ponto máximo
do seu poder, ao mesmo tempo que sofreram a maior derrota da
sua história. Até agora, no entanto, este aspecto da acumulação
primitiva tem permanecido como um verdadeiro mistério. (FEDERICI,
2017, p. 292-293).

Federici (2017) demonstra que a perseguição sistemática de mulheres


acusadas de bruxaria, seguida de tortura e posterior queima de seus corpos vivos
em fogueiras organizadas em praça pública foi um dos acontecimentos mais
importantes para o desenvolvimento da sociedade capitalista e para a formação
do proletariado moderno. Por meio do desencadeamento de uma campanha de
terror contra as mulheres, o Estado (representando os seus próprios interesses,
bem como os da Igreja, da aristocracia latifundiária e da nascente burguesia)
conseguiu debilitar a capacidade de resistência do campesinato europeu (como
um todo) frente ao impacto combinado da privatização da terra, do aumentos
dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida
social. A campanha de terror contra as mulheres instaurou uma nova ordem
patriarcal que era – e continua sendo – funcional à acumulação primitiva de
capital. Caçando bruxas, o Estado conseguiu não só fazer valer a estratégia
de “dividir para governar”, aprofundando a divisão entre homens e mulheres e
inculcando nos homens o medo do poder das mulheres (especialmente aque-
les relacionados à vida e à cura), mas também logrou destruir “um universo

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


130
de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a
disciplina do trabalho capitalista, redefinindo assim os principais elementos da
reprodução social” (FEDERICI, 2017, p. 294).

A caça às bruxas foi também a primeira perseguição, na Europa, que


usou propaganda multimídia com o objetivo de gerar uma psicose
em massa entre a população. Uma das primeiras tarefas da imprensa
foi alertar o público sobre os perigos que as bruxas representavam,
por meio de panfletos que publicizavam os julgamentos mais
famosos e os detalhes de seus feitos mais atrozes. Para este
trabalho, foram recrutados artistas, entre eles o alemão Hans
Bandung, a quem devemos alguns dos mais mordazes retratos de
bruxas. Mas foram os juristas, os magistrados e os demonólogos,
frequentemente encarnados na mesma pessoa, os que mais
contribuíram na perseguição: eles sistematizaram os argumentos,
responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maquinaria legal que,
por volta do final do século XVI, deu um formato padronizado, quase
burocrático, aos julgamentos, o que explica as semelhanças entre
as confissões para além das fronteiras nacionais. No seu trabalho,
os homens da lei contaram com a cooperação dos intelectuais
de maior prestígio da época, incluindo filósofos e cientistas que
ainda hoje são elogiados como os pais do racionalismo moderno.
(FEDERICI, 2017, p. 299).

A punição à magia, antes do século XV, foi aplicada àqueles que faziam
uso de tais práticas para infligir dano às pessoas e às coisas. A partir de então,
quando o crime de maleficium foi suplantado pelo crime de bruxaria, não era mais
uma transgressão específica aquilo que se castigava, mas práticas anteriormente
aceitas de grupos de indivíduos que, agora, tinham que se tornar abomináveis
aos olhos da população. Não houve um rechaço social espontâneo à bruxaria,
isto é, ela não se tratava de um crime socialmente reconhecido cuja punibilidade
foi requerida de baixo para cima. Ela foi imposta de cima para baixo, e toda uma
campanha de horror e criminalização foi institucionalmente mobilizada, como
verificado no trecho acima. A obscuridade da acusação, a impossibilidade de
comprová-la, a punibilidade inclusive na ausência de qualquer dano comprovado
a pessoas e coisas, o fato de que a mera suspeita fosse suficiente para levar uma

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pessoa a julgamento, a imprescritibilidade da pena13 e sua condição de crimen
exceptum, ou seja, um crime que deveria ser investigado por meios especiais,
incluindo a tortura, são elementos que evidenciam o caráter de controle social
da caça às bruxas e que fizeram da persecução à bruxaria um instrumento
poderoso para castigar qualquer forma de protesto ou insubordinação, com a
finalidade de gerar suspeita até mesmo sobre os aspectos mais corriqueiros
da vida cotidiana. (FEDERICI, 2017).
A partir das observações anteriores, fica evidente para Federici (2017)
que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de elevada envergadura, para
muito além de uma perseguição de cunho religioso. Ela ressalva que a Igreja,
sim, teve um papel importante neste processo, estimulando a perseguição,
tal qual o fez em relação aos hereges, e fornecendo o arcabouço metafísico
e ideológico para isso. Enfatiza, ademais, que sem os séculos de campanhas
misóginas da Igreja contra as mulheres, sem as numerosas bulas papais que
exortavam as autoridades seculares a procurar e castigar “bruxas” e sem a
Inquisição, a caça às bruxas não teria sido possível. Ocorre que, conforme a
autora, o evento em comento não foi um mero produto do fanatismo papal ou
das maquinações da Inquisição. Prova disso é que no seu apogeu as cortes
seculares conduziram a maior parte dos juízos enquanto nas regiões onde a
Inquisição operava a quantidade de execuções, em termos comparativos, foi
mais baixa. Sem contar que a Inquisição dependia da cooperação do Estado
para atuar, principalmente naquelas regiões em que a Reforma fez do Estado
a Igreja e da Igreja, Estado. Ainda sobre a natureza política da caça às bruxas,
Federici (2017) aduz, finalmente, que este fenômeno suscitou alianças entre
nações católicas e protestantes, em guerra entre si quanto a todas as demais
temáticas, e que ele foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos
Estados-nação europeus após o cisma que a Reforma provocou.

13 Foram frequentes os julgamentos por supostos acontecimentos ocorridos várias décadas antes.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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[...] a bruxaria tornou-se um dos temas de debate favoritos das elites
intelectuais europeias. Juízes, advogados, estadistas, filósofos,
cientistas e teólogos se preocuparam com o “problema”, escreveram
panfletos e demonologias, concluíram que este era o mais vil dos
crimes e exigiram sua punição. (FEDERICI, 2017, p. 301).
[…] uma vasta organização e administração oficial. Antes que
os vizinhos se acusassem entre si ou que comunidades inteiras
fossem presas do “pânico”, teve lugar um firme doutrinamento, no
qual as autoridades expressaram publicamente sua preocupação
com a propagação das bruxas e viajaram de aldeia em aldeia para
ensinar as pessoas a reconhecê-las, em alguns casos levando
consigo listas de mulheres suspeitas de serem bruxas e ameaçando
castigar aqueles que as dessem asilo ou lhes oferecessem ajuda.
(FEDERICI, 2017, p. 298).
[…] receberam ordens para perguntar a seus paroquianos, sob
juramento, se suspeitavam que alguma mulher fosse bruxa. Nas
igrejas, foram colocadas urnas para permitir aos informantes o
anonimato; então, depois que uma mulher caísse sob suspeita, o
ministro exortava os fiéis, do púlpito, a testemunharem contra ela,
estando proibido oferecer qualquer assistência […]. (FEDERICI,
2017, p. 298-299).
[…] os ministros e as autoridades que alimentavam suspeitas e
que se asseguravam de que resultassem em denúncias; também
certificavam-se de que as acusadas ficassem completamente
isoladas, forçando-as, entre outras coisas, a levar cartazes nas
suas vestimentas para que as pessoas se mantivessem longe
delas […]. (FEDERICI, 2017, p. 299).

No desenvolvimento da doutrina da bruxaria, a feitiçaria foi declarada


como uma forma de heresia e como o crime máximo contra Deus, a Natureza
e o Estado. Nesse sentido, o entendimento das artes mágicas como um ins-
trumento de insubordinação contra as classes dominantes foi revigorado. Era
constante o temor dos abastados ou “de melhor estirpe” de que as “classes
baixas”, que estavam perdendo tudo o que tinham, abrigassem contra eles
pensamentos malignos e lhes lançassem um “mau-olhado”. Federici (2017)
comenta que as crenças diabólicas surgem em momentos históricos em que
um modo de produção é substituído por outro, e que a batalha contra a magia
acompanhou o desenvolvimento do capitalismo, estendendo-se até mesmo
aos dias atuais. Conforme a autora, as pessoas que praticavam os rituais de
magia eram majoritariamente pobres que lutavam para sobreviver, para evitar
desastres e danos, para obter o bem que consistia no bem-estar, na saúde, na

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fertilidade e na vida. Para ela, na magia, estava presente um tipo de relação
com a natureza e uma concepção anárquica e molecular da difusão do poder
no mundo que era insuportável aos olhos da nova classe capitalista.

A premissa da magia é que o mundo está vivo, que é imprevisível e


que existe uma força em todas as coisas: “água, árvores, substâncias,
palavras [...]” […]. Desta maneira, cada acontecimento é interpretado
como a expressão de um poder oculto que deve ser decifrado e
desviado de acordo com a vontade de cada um. […]. Ao tentar
controlar a natureza, a organização capitalista do trabalho devia
rejeitar o imprevisível que está implícito na prática da magia, assim
como a possibilidade de se estabelecer uma relação privilegiada
com os elementos naturais e a crença na existência de poderes a
que somente alguns indivíduos tinham acesso, não sendo, portanto,
facilmente generalizáveis e exploráveis. A magia constituía também
um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma
ameaça para o estabelecimento do princípio da responsabilidade
individual. Sobretudo, a magia parecia uma forma de rejeição do
trabalho, de insubordinação, e um instrumento de resistência de
base ao poder. O mundo devia ser “desencantado” para poder ser
dominado. (FEDERICI, 2017, p. 312-313).

Conexas à magia, o curandeirismo e a sanação eram atividades desenvol-


vidas fundamentalmente por mulheres, em interação direta e harmoniosa com
a natureza, respeitando seus ciclos próprios, suas potências, seus mistérios e
seus limites. Era uma sabedoria compartilhada entre elas oralmente, transmitida
pelas mulheres mais velhas às mais jovens. Do mesmo modo eram partilhados os
saberes e práticas associados à sexualidade e à reprodução. Todo o universo das
alterações ocorridas no corpo feminino era de exclusivo conhecimento delas, que
se ajudavam e se instruíam mutuamente sobre menstruar, ovular, sentir prazer,
gestar, impedir a gestação, parir, passar pelo puerpério amamentar, abortar,
cuidar da prole, etc. Comunitarismo, ancestralidade e natureza atravessava a
própria existência das mulheres. Isso nos auxilia na compreensão da essência
do raciocínio de Federici (2017) quando da sustentação de que “a caça às bruxas
na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres apresentaram contra
a difusão das relações capitalistas e contra o poder que obtiveram em virtude
de sua sexualidade, de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade
de cura” (p. 305).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade
de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades
– como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas – que
as mulheres foram per- seguidas, pois, ao recorrerem ao poder
da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado,
dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular
o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a
ordem constituída. (FEDERICI, 2017, p. 314).

Conta Federici (2017) que no século XV, entre 1435 e 1487, vinte e oito
tratados sobre bruxaria foram escritos, culminando no tristemente célebre Mal-
leus Maleficarum (“O martírio das bruxas”) – o mais completo e cruel manual de
caça às bruxas –, apoiado na bula papal Summis Desiderantes de Inocêncio VIII,
que afirma a bruxaria como a nova ameaça da Igreja e a associa, por primeira
vez, com a contracepção e o aborto. Nos séculos seguintes (XVI e XVII) é que
vai aparecer a relação entre a bruxa e o diabo como uma das novidades intro-
duzidas pelos julgamentos. Sobre esse aspecto, a autora relata que as bruxas
foram acusadas de adoradoras do demônio sob o argumento de que vendiam
seu corpo e sua alma em troca de poderes mágicos, por meio dos quais teriam
assassinado inúmeras crianças a fim de sugar seu sangue e fabricar poções com
sua carne, além de causar a morte de vizinhos, provocar tempestades, destruir
gados e cultivos, e praticar, enfim, uma infinidade de outras abominações. Vemos
que a procriação é colocada no centro da disputa. Apesar de não se tratar do
único alvo da contrarrevolução capitalista, sendo inerente ao corpo da fêmea
humana, será necessariamente pelo corpo da mulher que o biopoder precisará
transcorrer em primeira instância para mobilizar o processo de acumulação
primitiva do capital.
Nos míticos encontros noturnos – ou sabá das bruxas – ocorreriam
supostamente os conjuros, a cópula das mulheres com o diabo, orgias, sacri-
fício de humanos e animais e conjurações de natureza satânica. Sobre isso, a
autora defende que, nos horrores evocados pelas autoridades a respeito destes
encontros e na obsessão dos juízes por punir as “conspirações demoníacas”, o
que se escuta é o eco das reuniões secretas que camponeses e pessoas vindas
de todas as partes realizavam à noite, em bosques e colinas desertas, para
tramar em segredo suas revoltas. Isso porque a caça às bruxas se desenvolveu
em um terreno de guerras rurais e urbanas contra a privatização das terras e a

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deflagração de um período de mendicância e fome generalizada em razão da
crise socioeconômica que teve lugar quando começaram a se forjar as institui-
ções econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil (e.g. revolução dos
preços). Não foi uma casualidade que a maioria dos julgamentos por bruxaria
tenha ocorrido nos territórios europeus onde o processo de privatização da terra
foi mais intenso, já que o inverso também se deu, ou seja, onde o cercamento dos
campos não ocorreu e tampouco foi parte da agenda, não há indícios históricos
que atestem a ocorrência de caça às bruxas. (FEDERICI, 2017).
Na esteia do anteriormente exposto, Federici (2017) salienta que muitas
dessas revoltas foram iniciadas e dirigidas por mulheres, sobretudo na tentativa
de proteger seus filhos da fome. Mesmo com o esmagamento das revoltas, e
o subsequente encarceramento e massacre de muitos homens, as mulheres
mantiveram firme o propósito de levar adiante a resistência, ainda que maneira
clandestina. Há, igualmente, outros dois aspectos que a autora destaca sobre
as simbolizações horripilantes atribuídas ao sabá. Um deles diz respeito ao
voo noturno das bruxas, que em sua interpretação consistia em um ataque das
autoridades ao “vagabundeio” por conta do temor que um fenômeno novo lhes
estava causando – qual seja, a mobilidade dos imigrantes e dos trabalhadores
itinerantes –, uma vez que nele se expressava um uso do espaço contrário à
nova disciplina capitalista do trabalho. O outro aspecto alude à própria dimen-
são noturna do sabá, algo que a autora considera figurar (cremos que, quiçá,
para quaisquer dos atores sociais em questão) como uma rebelião contra os
senhores na forma de violação da regularização capitalista do tempo do traba-
lho, ataque à propriedade privada e à ortodoxia sexual, dado que as sombras
produzidas na escuridão mesclavam as distinções entre os sexos (ruptura dos
papéis sexuais) e as fronteiras entre “o meu e o seu”. Daí a investida contra a
anarquia e a orgia alegadamente reinantes nos sabás.
Uma vez acusadas, as “bruxas” eram submetidas a ordálias de extremo
sadismo, que seguiram basicamente o mesmo padrão em toda a Europa: eram
despidas, depiladas completamente, submetidas a estupros, perfurações corporais
que incluíam suas genitálias, tinham seus ossos esmagados e seus membros
arrancados, e eram postas sentadas sobre cadeiras de ferro embaixo das quais
se acendia fogo. Tudo isso antes de serem queimadas vivas em um ritual público
de assistência obrigatória a todos os membros comunidade (incluindo os filhos,

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


136
mas, especialmente, as filhas das bruxas, que muitas vezes eram açoitadas
diante das mães que ardiam nas fogueiras), a fim de que a lição a ser extraída
não fosse ignorada. Federici (2017) comenta que, em muitos lugares, mulheres
de um mesmo povoado foram quase todas exterminadas, às vezes em poucas
semanas, sem que tenha existido qualquer organização de homens tentando
impedir esse processo, exceto um único caso ocorrido em uma aldeia de pesca-
dores do País Basco. Como possível explicação para isso, autora proclama que
nas fogueiras e salas de tortura, entre exorcismos sexuais e estupros psicológicos,
foi forjado o padrão do feminino requerido pelo patriarcado capitalista, isto é,
que se encarregasse da produção e da reprodução do capital.
Um dado que torna patente, para Federici (2017), o quanto a caça às bruxas
foi uma arremetida generalizada contra todas as mulheres condiz com o fato
de que, sob o respaldo da demonização da bruxaria, uma verdadeira cruzada
misógina foi levada a cabo em paralelo às atrocidades praticadas contra as
supostas bruxas. Os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade neces-
sários à acumulação primitiva de capital demandaram uma ação coordenada de
degradação da mulher em sentido amplo. No plano jurídico, a autora assinala
uma clara continuidade entre as práticas que foram alvo da caça às bruxas e
as proibições de conduta introduzidas na mesma época por novas legislações,
de um extremo ao outro da Europa Ocidental, com o propósito de regular a vida
familiar e as relações de gênero e propriedade. No plano ideológico, ela aponta
a estreita correspondência entre o trabalho de deterioração da figura da mulher
realizado pelos demonólogos e a construção, no seio dos debates produzidos à
época sobre a “natureza feminina”, de um estereótipo canônico de feminilidade
evocador de uma mulher fraca de corpo e de mente e biologicamente inclinada
ao mal, que justificava a necessidade do controle masculino permanente, além
de afirmar a supremacia masculina. No fim das contas, a bruxaria era uma
consequência da luxúria insaciável presente potencialmente em todas e cada
uma das mulheres, seres desprovidos de razão, cujos corpos, portanto, são
potenciais receptáculos da penetração do demônio.

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A caça às bruxas não só santificava a supremacia masculina, como
também induzia os homens a temer as mulheres e até mesmo a
vê-las como destruidoras do sexo masculino. Segundo pregavam
os autores do Malleus Maleficarum, as mulheres eram lindas de se
ver, mas contaminavam ao serem tocadas; elas atraem os homens,
mas só para fragilizá-los; fazem de tudo para lhes satisfazer, mas
o prazer que dão é mais amargo que a morte, pois seus vícios
custam aos homens a perda de suas almas – e talvez seus órgãos
sexuais […]. Supostamente, uma bruxa podia castrar os homens
ou deixá-los impotentes, seja por meio do congelamento de suas
forças geradoras ou fazendo com que um pênis se levantasse e
caísse segundo sua vontade. […]. Mas quem eram essas bruxas que
castravam os homens e os deixavam impotentes? Virtualmente,
todas as mulheres. […], nenhum homem podia sentir-se a salvo ou
estar seguro de que não vivia com uma bruxa. […]. Instigavam os
homens que foram expropriados, empobrecidos e criminalizados a
culpar a bruxa castradora pela sua desgraça e a enxergar o poder
que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades como um
poder que as mulheres utilizariam contra eles. Todos os medos
profundamente arraigados que os homens nutriam em relação
às mulheres (principalmente devido à propaganda misógina da
Igreja) foram mobilizados nesse contexto. As mulheres não só
foram acusadas de tornar os homens impotentes, mas também
sua sexualidade foi transformada num objeto de temor, uma força
perigosa, demoníaca, pois se ensinava aos homens que uma bruxa
podia escravizá-los e acorrentá-los segundo sua vontade […].
[…]. O fato de as bruxas terem sido acusadas simultaneamente
de deixar os homens impotentes e de despertar neles paixões
sexuais excessivas é uma contradição apenas aparente. No novo
código patriarcal que se desenvolvia de modo concomitante à caça
às bruxas, a impotência física era a contrapartida da impotência
moral; era a manifestação física da erosão da autoridade masculina
sobre as mulheres, já que do ponto de vista “funcional” não havia
nenhuma diferença entre um homem castrado e um inutilmente
apaixonado. Os demonólogos olhavam ambos os estados com
suspeita […]. (FEDERICI, 2017, p. 338-343).

Uma guerra de classes levada a cabo por outros meios: esse é o balanço
de Federici (2017) acerca do que representou a caça às bruxas. Segundo a autora,
calcinando corpos femininos, as classes dominantes cindiram, reprimiram e dis-
ciplinaram eficazmente o proletariado como um todo. Os séculos de propaganda
e terror conseguiram romper a solidariedade de classe e minar o seu próprio
poder coletivo. Isso sucedeu entre homens e mulheres, mas também entre as

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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próprias mulheres. Federici (2017) ilustra claramente essa questão ao analisar
a alteração etimológica sofrida pela palavra “gossip”. Na Idade Média, seu sig-
nificado era “amiga”, algo que remetia a laços comunais e que na atualidade,
quiçá, seria interpretado como “sororidade”; entretanto, quando da persecução
às bruxas e degradação das mulheres, a palavra adquiriu o significado que pos-
sui até os dias de hoje, qual seja, “fofoca”. Como bem destacado pela autora, a
nova classe de “modernizadores” enxergava com pânico e repulsa as formas
de vida comunais. Também o fato de a caça às bruxas ter recaído despropor-
cionalmente sobre mulheres camponesas pobres, trabalhadoras assalariadas,
acusadas por indivíduos que formavam parte das estruturas locais de poder,
muitas vezes seus próprios empregadores ou senhores de terra, e que, com
frequência tinham laços estreitos com o Estado central, ratifica e enfatiza a
alusão de Federici (2017) à guerra de classes.

Quanto aos crimes diabólicos das bruxas, eles não nos parecem
mais que a luta de classes desenvolvida na escala do vilarejo: o
“mau-olhado”, a maldição do mendigo a quem se negou a esmola, a
inadimplência no pagamento do aluguel, a demanda por assistência
pública […]. (FEDERICI, 2017, p. 310).
Muitas mulheres acusadas e processadas por bruxaria eram velhas
e pobres, e dependiam com frequência da caridade pública para
sobreviver. A bruxaria — segundo dizem — é a arma daqueles que
não têm poder. Mas as mulheres mais velhas eram também mais
propensas que qualquer outra pessoa a resistir à destruição das
relações comunais causada pela difusão das relações capitalistas.
Elas encarnavam o saber e a memória da comunidade. A caça
às bruxas inverteu a imagem da mulher velha: tradicionalmente
considerada sábia, ela se tornou um símbolo de esterilidade e de
hostilidade à vida. (FEDERICI, 2017, p. 348).
[Sobre as várias rebeliões camponesas ocorrida com anterioridade
à caça às bruxas em consequência da difusão do capitalismo rural],
podemos imaginar que o feroz trabalho de repressão […] e as
centenas e centenas de camponeses crucificados, decapitados e
queimados vivos, sedimentaram ódios insaciáveis e planos secretos
de vingança, sobretudo entre as mulheres mais velhas, que haviam
testemunhado e recordavam esses acontecimentos e que, por
isso, eram mais inclinadas a tornar pública, de diversas maneiras,
sua hostilidade contra as elites locais. (FEDERICI, 2017, p. 316).

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As mulheres que não foram caçadas como bruxas não ficaram à salvo da
concomitante cruzada misógina perpetrada entre os séculos XV e XVII. O feminino
foi inferiorizado e humilhado, considerado selvagem e primitivo, seus direitos
passaram à tutela masculina, sua presença nos espaços públicos e participa-
ção na esfera social foram radicalmente restringidas e minimizadas, sua voz foi
calada sob a acusação de serem “resmungonas” e possuírem “línguas ferinas”
(havia inclusive rédeas para as desobedientes, similar à utilizada pelos trafican-
tes de escravos no transporte dos cativos, com as quais os maridos desfilaram
suas esposas pelas ruas), seus saberes de cura e relacionados à concepção
foram suplantados por uma medicina praticada exclusivamente por varões, sua
sexualidade foi drasticamente castrada e seu útero foi confiscado. A nascente
família burguesa tinha sua estrutura inspirada no Estado, com o marido como
rei e a mulher subordinada à sua vontade, devotada de maneira abnegada à
administração do lar, e um necessário de um distanciamento entre ambos para
que não houvesse risco de que o homem fosse enfeitiçado e sucumbisse aos
desejos e caprichos da mulher. É possível entender, a partir disso, por que a
mulher sexualmente ativa representava um perigo público e sua figura precisava
ser combatida. Ela significava uma ameaça à referida ordem social na medida
em que subvertia a autoridade dos homens, seu sentido de responsabilidade,
sua capacidade de trabalho e de autocontrole. (FEDERICI, 2017).
Outro destacado balanço elaborado por Federici (2017) a respeito da caça
às bruxas e seus desdobramentos é o que apresentaremos a seguir, cuja relação
com a acumulação primitiva de capital é ainda mais direta e contundente. A política
sexual introduzida pela nova ordem patriarcal capitalista garantiu a imposição
estabilizada do trabalho assalariado e assegurou a criação do proletariado, con-
solidando, assim, a produção e a reprodução do capital. Por um lado, estipulou
uma divisão sexual do trabalho que, ao colocar a mulher na condição de reclusa
absoluta das atividades de cuidado doméstico, não só concedeu aos homens a
exclusividade do trabalho remunerado como também conseguiu alguém para
incumbir-se daquelas tarefas que, apesar de essenciais para a manutenção e
sobrevivência humana, dentro do esquema de trabalho assalariado, além de
invisibilizadas perderam a sua contrapartida. Há que recordar que, no sistema
de servidão ou semi-servidão, as atividades domésticas eram contratualmente
compensadas. Essa mesma política sexual abriu caminho para que, séculos mais

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


140
tarde, quando a mão de obra das mulheres foi requisitada, elas vieram a receber
salários inferiores aos dos homens pela realização de atividades idênticas. Por
outro lado, o controle dos corpos femininos por meio do confisco de seu útero
pelo Estado patriarcal capitalista restringiu a existência da mulher à procriação
de prole, transformando-as em fábricas de geração de proletários.
Consideramos necessário trazer à colação um resumo sintético sobre o
conceito marxiano de acumulação primitiva de capital. Para Marx (2011), isso
consiste na separação violenta dos produtores dos seus meios de vida, que
passam a ser destinados à valorização do valor, ou seja, a produção de mais-va-
lia. Os instrumentos de trabalho, enquanto meios de existência e, portanto, uma
extensão do próprio corpo dos trabalhadores, são convertidos nos elementos de
sua própria subordinação. Feita essa aclaração e pensando sobre as argumen-
tações desenvolvidas por Federici (2017), em especial a que foi apresentada no
parágrafo acima, julgamos válido salientar um ponto de divergência da autora
frente a um segmento da teoria foucaultiana, relacionado à história da sexuali-
dade, uma vez que tal discrepância tem fundamento na influência marxista na
construção do pensamento da autora. Ela critica o fato de que Foucault, igno-
rando a caça às bruxas, tenha pensado a sexualidade a partir da perspectiva
de um gênero neutro, de um sujeito indiferenciado, cujas consequências das
atividades vitais sejam supostamente as mesmas para homens e mulheres,
e, ademais, que ele tenha apreendido a sexualidade como uma alternativa à
repressão e, não, à serviço da repressão, da rejeição e da censura.
Finalmente, Federici (2017) revela que a caça às bruxas não foi um evento
circunscrito à Europa, tendo ocorrido também nas colônias. Além disso, a autora
reporta dados fundamentados da existência de laços bastante estreitos entre
a perseguição às bruxas e o processo de colonização, no sentindo de que um
intensificou-se quando o outro começou a ser posto em marcha. O Malleus
Maleficarum foi publicado às vésperas da viagem de Colombo às Américas, e
ela não considera este fato uma coincidência histórica. Ao contrário, a autora
demonstra que a caça às bruxas na Europa e a colonização das Américas foram
processos que se entremearam e se retroalimentaram em “efeito boomerang”.
Isso significa que, segundo ela, as formas repressivas desenvolvidas no Velho
Mundo na persecução às bruxas foram transportadas ao Novo Mundo e utilizadas
na sujeição dos povos originários africanos e ameríndios; das colônias, uma vez

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aprimoradas, regressavam à Europa revigoradas e eram reaplicadas na caça de
bruxas; por fim, retornavam reformuladas às Américas, onde tornavam incidir
quer seja sobre bruxas ou sobre os corpos primitivos insolentes. Juntamente
com o tráfico negreiro, foi assim que se armou o ciclo completo do que Federici
(2017) designou de “laboratório de uma ciência da exploração”.
Nas colônias, o olhar do homem branco europeu para os nativos (indígenas
ou africanos) produziu a junção do amável (enquanto ser infantilizado, idioti-
zado) e do feroz (ser bestializado), como os dois lados de uma mesma moeda,
fundamentando o discurso civilizatório como verdade científica. A depreciação
das práticas sexuais e culturais das populações dominadas foi utilizada como
forma de justificar a barbárie infligida sobre elas, ocultando a expropriação
dos trabalhadores de seus meios de vida e a conversão dos meios de vida
em capital. Nas fontes históricas em que aparece a descrição da chegada do
europeu às Américas é notável o recurso textual à imagética da penetração de
um corpo de mulher como meio de narrar o acontecimento. Seria algo assim
como a imagem de um semental (homem branco europeu desbravador) pene-
trando com veemência um corpo feminino (continente americano), com tal de
despejar, derramar, fazer jorrar dentro dele os seus valiosos gens superiores.
Lugones (2008) faz a mesma sustentação em seu estudo sobre a construção
de masculinidades tóxicas. A teoria das raças vai surgir a reboque de tudo isso,
bem como demais teorias científicas que vão afirmar a inferioridade anatômica
da mulher e das raças não-brancas. Tudo isso contribuiu para sustentar uma
nova divisão internacional do trabalho a partir de então, assentada sobre gênero
e raça. (FEDERICI, 2017).
No processo de caça às bruxas, enquanto projeto de acumulação pri-
mitiva de capital, Federici (2017) identifica a existência de um continuum entre
exploração, resistência e demonização, que teve como cimentos a colonização
e a cristianização. O obscurantismo e a demonização de corpos, práticas e
saberes, oportunizados pela cristianização, conformaram a ideologia ade-
quada ao asseguramento e expansão dos privilégios de classe, assim como à
colonização de corpos, recursos naturais e afetos, expropriando tanto terras
quanto identidades, desarmando todo tipo de resistência e impondo o discipli-
namento necessário à produção e reprodução de capital. Cabe registrar, com
base na autora, que a associação entre obscurantismo e ciência por meio da

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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racionalização da demonização foi uma fórmula repetida muitos anos depois
pelo regime nazista. Por último, Federici (2017) comunica a incidência de caça
às bruxas no século XX, em países da África e da Ásia, com ações de cima para
baixo (com segmentações classistas e imposição de sistemas disciplinares) e
entre pares (fragmentação no seio da própria classe proletária), chamando a
atenção para a globalização e persistência do projeto.

DISCUSSÃO

Iniciamos este artigo apresentando o estado mais recente das discussões


sobre o aborto no Brasil e as nefastas consequências da proibição normativa à
decisão livre da mulher quanto a praticá-lo ou não, ressalvando que os impactos
são ainda maiores sobre as mulheres negras e pobres. Nesse sentido, e consi-
derando a exposição presente no quarto capítulo, notamos o quanto o controle
estatal sobre os corpos femininos, que passa pela negação do direito ao abor-
tamento voluntário, serve ao aprofundamento da violência contra a mulher, do
racismo, dos privilégios de classes e da exclusão social, em um país onde tais
problemas já são, por si só, significativamente graves e elevados.
Verificamos, nos dois capítulos que sucedem imediatamente a introdução,
o quão relativo e contestável pode chegar a ser o discurso sobre a sacralidade
absoluta do direito à vida do nascituro. O panorama que expusemos no segundo
capítulo deste artigo, trabalhando com o estudo de Giulia Galeotti sobre a his-
tória do aborto no mundo (única obra em língua portuguesa sobre o tema), nos
mostrou que a proteção irrestrita à vida do ser em gestação, por cima da decisão
da mulher de levá-la ou não adiante, não foi nem constante nem tampouco um
apelo social ocorrido de baixo para cima. Ao contrário, entrara em cena, uma e
outra vez, por razões de afirmação de poder político e religioso. Não obstante,
possivelmente por tratar-se de um estudo descritivo, a autora não escrutina
as profundezas da trama do poder. Assim, dá margem a interpretações que
considerem cabível que a proibição do aborto tenha sido assentada mais ou
menos de maneira absoluta, ao longo de uma história presumida como processo
linear, como consequência “natural” de uma suposta evolução dos povos em
termos civilizatórios. Em outro sentido, pode ainda dar cabida a interpretações
que assumam que os vai e vens históricos sobre a proibição do aborto tenham

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girado em torno aos meros dissabores de lideranças fundamentalistas, no que
concerne à afirmação de poder político e religioso. De qualquer modo, em ambos
os casos a questão de gênero fica apagada.
Pelas mãos de Nietzsche, na primeira parte do terceiro capítulo, pudemos
refletir sobre o quanto a moral ocidental foi pavimentada pelo pensamento
cristão. Concluímos, a partir disso, que a dinâmica do sistema penal está direta
ou indiretamente impregnada de valores religiosos para além do desejo cons-
ciente dos atores sociais que agem dentro dele como seus operadores (desde
legisladores e juristas, até os magistrados, passando pelos corpos policiais).
Queremos dizer com isso que a laicização do Estado não pode ser inferida apenas
porque está expressamente assegurada no texto constitucional. É necessário
um esforço constante e permanente de autocrítica dos agentes e revisão crítica
dos brocardos. Nesse sentido, é fundamental, inclusive, que a escuta ativa dos
brados daqueles sujeitos mais afetados por tal problemática tenha sempre um
peso superior ao dos grupos de pressão nitidamente religiosos.
Em Ronald Dworkin, na segunda parte do terceiro capítulo, encontramos
amparo para a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Porém,
no decurso desse trabalho, provocadas que fomos pelo feminismo de Silvia
Federici, entendemos que a discussão pura e simples da proteção dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres não basta. De toda sorte, a despeito do
anteriormente dito, encontramos alguns senões na filosofia constitucionalista
liberal de Ronald Dworkin, apesar do atraente que se mostra por reivindicar a
defesa de ideais e valores humanistas com base nos seguintes princípios: 1) o
direito de cada indivíduo de ser tratado com igual consideração e respeito; 2)
a responsabilidade individual de cada um por sua própria vida, o que abarcaria
o respeito aos desígnios próprios sobre as decisões pessoais que são tomadas
no limiar da vida e da morte. Ao reivindicar igualdade, terminam ignoradas nas
construções de Dworkin – ainda que não seja sua pretensão – as particularidades
histórico-sociais das questões de gênero, racialização e interseccionalidade14,

14 Segundo Kimberlé Crenshaw (2002), o conceito de interseccionalidade permite uma melhor apreensão e
compreensão das desigualdades e discriminações quando elas operam juntas no nível de um mesmo sujeito.
Com o foco de análise nas sobreposições, a interseccionalidade mostra as diferenças existentes na diferença, as
exclusões manifestadas dentro da exclusão.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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para as quais o pensamento contemporâneo feminista e decolonial15 vem cha-
mando a atenção.
Questões como as acima indicadas não podem ser esquecidas nem
obscurecidas porque, como evidenciado na introdução deste artigo, perpassam
radicalmente a problemática do aborto de ponta a ponta. Outrossim, o huma-
nismo liberal de Dworkin abre precedente para sustentações perigosas em
termos de políticas públicas e inaceitáveis do ponto de vista ético por acenarem
à eugenia, mesmo que de forma sutil. Citamos como exemplo a pugna pela
legalização do aborto como estratégia de controle demográfico voltada para a
diminuição da criminalidade (DONOHUE e LEVITT, 2001; HARTUNG, 2009), e a
história da pílula anticoncepcional (desconhecida por inúmeras mulheres), que
apesar ter sido considerada um catalizador da revolução sexual feminina, tem
como moldura: o lucro da indústria farmacêutica, sendo uma das drogas mais
consumidas no mundo; objetivos de controle demográfico, em particular, volta-
dos à porção periférica e empobrecida do globo; a utilização, como cobaias, de
corpos de mulheres esquizofrênicas hospitalizadas para os testes laboratoriais
de pequeno alcance, e, em seguida, para os testes de larga escala, os corpos
de mulheres porto-riquenhas suburbanas, analfabetas e semianafabetas, com
família numerosa e escassos recursos, em uma combinação nefasta de con-
trole da natalidade e da pobreza; a utilização de corpos femininos negros e/ou
ameríndios para servir de território de experimentação de um produto que, em
um primeiro momento, seria quase que exclusivamente utilizado de maneira
voluntaria, por mulheres brancas de classe alta de países desenvolvidos, dado
o elevado custo inicial de comercialização do fármaco (MARKS, 1997).
Não obstante, observamos que o humanismo socialista não deixa brechas
para a penetração de tais perigos. É sobre ele que se apoia – e com ele dialoga
– o pensamento de Silvia Federici, cuja obra referencia o quarto capítulo deste

15 Sobre o pensamento decolonial, ressaltamos que, dentro da heterogeneidade de correntes teóricas que o
compõem, existem também aquelas que identificam e defendem uma síntese possível e fecunda entre os
elementos não-eurocêntricos da colonialidade e do marxismo, a partir da qual o sujeito subalterno em sua
especificidade assume condição protagônica nas teorias sociais. Isso é viável na medida da articulação entre
o marxismo clássico, componentes do essencialismo latino-americanista, com a luta pela superação da colo-
nialidade, do imperialismo e das novas formas de acumulação e reprodução do capital expressadas no nível do
poder, do saber e do ser. (AGUIAR, 2018).

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artigo. A partir dos ensinamentos da autora, aquelas profundezas da trama do
poder não exploradas no segundo capítulo enfim puderam ser escrutinadas e
ganharam corpo e complexidade. Seu rico e necessário estudo sobre a caça às
bruxas restituiu a memória de um evento apagado da história da humanidade,
e da história das mulheres, e o problematizou. Elaborado sob uma perspectiva
feminista pautada no materialismo histórico-dialético de Karl Marx e na gover-
namentalidade de Michel Foucault, o estudo reconstrói o genocídio perpetrado
contra as mulheres, atestando que o evento cumpriu com um propósito de exercer
controle sobre os corpos insurgentes e impor o tipo de disciplinamento social
necessário ao modo de produção nascente, e demonstrando que o sequestro
específico de corpos femininos, além de promover uma divisão sexual imobi-
lizou a mulher no trabalho doméstico não remunerado, teve a finalidade de
disponibilizar esses corpos ao processo de acumulação primitiva, porque eles,
em particular, atendem à exigências mais amplas no que se refere à produção/
reprodução do capital na medida em que são os únicos dotados da capacidade
de fabricar proletários.
Obrigadas a parir e a dedicar-se exclusivamente às atividades de cuidado
doméstico – as quais perderam compensação no contrato laboral assalariado
sem, contudo, terem deixado de ser essenciais à vitalidade e à disposição física e
mental de qualquer ser humano – são as mulheres que ficarão encarregadas de
gerar e criar corpos dóceis e produtivos para o trabalho, assim como da manter o
trabalhador vivo e operativo, a fim de que ele possa entregar todo o seu tempo e
energia vital ao proprietário dos meios de produção, que extrairá daí a mais-valia.
Para instaurar esse sistema e fazer com que ele chegasse a se auto-alimentar
e, até mesmo, se auto-refinar, foi necessária uma tática de guerra – a caça às
bruxas – e uma estratégia política capaz de conjugar exploração, cristianização,
obscurantismo e demonização – a ideologia patriarcal. Em suma, o capitalismo
alvoreceu e estabeleceu-se almagamado ao patriarcado, o qual, como vimos, foi
o componente estruturante fundamental do processo de colonização do Novo
Mundo. Isso tudo explica por que algumas correntes feministas e antirracistas
tem como premissa basilar a luta anticapitalista.
Oportuno pontuar que a teorização feminista de Federici ofereceu impor-
tantes contribuições aos pensamentos marxista e foucaultiano, que extrapolam
a viabilidade do cruzamento profícuo de duas tradições teóricas robustas e

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


146
impactantes no que diz respeito à análise crítica da sociedade (e que por vezes
foram consideradas inconciliáveis). Ela conseguiu enxergar a centralidade do
biopoder – enquanto poder político exercido sobre os corpos, e fundamental-
mente através deles – para a acumulação primitiva do capital e a contenção
permanente da luta de classes orientada a alterar a estrutura social de domi-
nação. Isso foi possível porque ela trouxe o corpo da mulher para o centro das
reflexões marxista e foucautiana, elaborando um raciocínio científico-crítico sobre
essa categoria e para além dela. Isso a permitiu examinar em profundidade o
quanto a alienação do corpo feminino (e, na sequência, também o corpo negro e
ameríndio) foi essencial para a estruturação de políticas orientadas a produção
e reprodução do capital, categorização e hierarquização dos seres humanos
(com base na inferiorização da mulher e na racialização dos povos), destruição
do comunitarismo, dos vínculos culturais de ancestralidade e da comunhão
com a natureza, etc., em prol de impelir o individualismo e a destruição ecoló-
gico-ambiental, estruturar as relações sociais em torno da propriedade privada
e da mais-valia, bloquear a consciência de classe, ao passo que, propagando
ideologia – forma de consciência que oculta e inverte o real, naturaliza o produto
dessa ocultação/inversão e justifica, assim, o particular como universal (MARX
e ENGELS, 2007; MARX, 2005; MARX, 2011) –, logra borrar a irracionalidade e
a brutalidade do modo de produção capitalista.
Se o capitalismo inaugura tendências que ele mesmo não consegue sus-
tentar (LÊNIN, 2011), isso significa que o processo de acumulação primitiva do
capital será recorrente. Tratando-se de um sistema que sobrevive de crises cícli-
cas, o processo de acumulação primitiva não pode ser tomado como um evento
acabado, circunscrito a um contexto histórico-social de tempo passado. É um
processo que retorna periodicamente porque a perenidade é uma condição
necessária para a existência do capitalismo. Por isso a sabedoria coletiva e os
vínculos pessoais – que são resultado de processos não-perenes, posto que
requerem tempo, espaço, solidariedade e trabalho não-alienado, ou seja, despen-
dimento de energia em ação improdutiva (em termos marxianos) – são atacados
e erodidos pelo capital. O trabalho é aquilo que cria o próprio ser humano e
a cultura, segundo Marx; a isso ele vai chamar de trabalho vivo. O capital, em
contrapartida, é trabalho morto que, como um vampiro, suga o trabalho vivo dos
trabalhadores para obter mais-valor. Tal dinâmica nunca é estanque, porque a

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geração de valor sobre o valor requer reinvestimento constante. Sendo assim, a
riqueza – que para Marx está no trabalho e na natureza – precisa perecer para
que esse ciclo se ative e se reative incessantemente. (MARX, 2011).
O exame minucioso de Silvia Federici sobre a caça às bruxas nos fez
entender que a modernidade vai despontar e se estabelecer arrimada sobre
um tripé composto pelo capitalismo, o patriarcado e a racialização, cuja articu-
lação se estruturou no período histórico que ela analisa (entre os séculos XIII e
XVII, mas, fundamentalmente, no decorrer dos séculos XV-XVII, por ocasião da
persecução em comento). A contrarrevolução capitalista inaugura uma nova
ordem patriarcal, de amplo espectro e magnitude sem precedentes, que vai ser
essencial ao controle e disciplinamento dos corpos para o trabalho em todos
os níveis da vida social, a partir do genocídio de mulheres e do sequestro do
corpo feminino pelo Estado, que culminará na produção da racialização e no
genocídio de pessoas negras e indígenas. Os milhares e milhares de anos de
sometimento dessas pessoas e seus descendentes a uma carga brutal de vio-
lência física, simbólica e ética as despojou de suas crenças, práticas, costumes,
vínculos, memória, sabedorias, anseios e horizontes de possibilidades de ser
e estar no mundo. Convertidas em mercadoria à disposição dos desígnios e
privilégios de outros, elas foram forçadas a subsistir suportando o sofrimento
do estranhamento de si. É nesse sentido que vislumbramos a confirmação da
primeira hipótese de nosso trabalho (H1), que diz respeito à existência de um
continuum entre expropriação da experiência, alienação da existência e morti-
ficação do ser. Foi esse o legado do patriarcado capitalista às mulheres e aos
seres humanos racializados com base nas mesmas premissas de demonização
e inferiorização.
Nossa segunda hipótese (H2) está pautada na existência de um continuum
entre liberalismo e moralidade religiosa. Vimos com Federici que a contrarre-
volução capitalista e todas as suas conquistas em termos de manutenção e
expansão de privilégios e incremento do acúmulo de riquezas se fez possível
por conta de um pacto de poder, entre a nobreza, a Igreja e a burguesia que
começava a emergir, em torno da formação do Estado. Com o decorrer da his-
tória e o avanço do capitalismo, a burguesia ampliou seu domínio e fez ruir o
absolutismo. Tanto as instituições que atuaram em nome do Estado absoluto
quanto as que irão atuar em nome do Estado liberal burguês instaurado têm

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


148
por princípio e finalidade, cada uma a seu tempo, assegurar a supremacia dos
mesmos, salvaguardando os interesses daqueles que o governam. O liberalismo
burguês que herdamos e que pauta as democracias capitalistas na atualidade,
com independência da intensidade de regime democrático alcançada mundo
afora, carrega em sua essência o espírito disso que acabamos de descrever.
Seguindo tanto essa linha de raciocínio quanto aquela traçada por Nietzsche
em sua genealogia da moral, desembocamos na confirmação de H2. Cabe aqui
o seguinte adendo: se no humanismo liberal a autonomia da vontade é tratada
como “tenência de propriedade sobre si”, a reverberação da lógica da propriedade
privada sobre a ideia de liberdade acaba dando cabimento às interferências
discutidas oportunamente, uma vez que a esfera de liberdade dos indivíduos
no liberalismo burguês é mediada pela posição que ocupam na estrutura social.
Como terceira hipótese (H3), estimamos a presença de um continuum
entre H1 e H2 materializado no corpo feminino e ocultado pela tutela legal
do direito à vida do nascituro. Inspecionando a pesquisa de Federici sobre
a caça às bruxas, pareceu-nos inequívoco que o ataque ao corpo feminino
não se tratou de um efeito colateral qualquer derivado de uma tática política
implementada pela dominância com o propósito exclusivo de desarmar, conter
e controlar a resistência dos dominados. Não que isso não tenha ocorrido e
careça de gravidade; pelo contrário. Contudo, é cognoscível na obra da autora
a centralidade do confisco do corpo feminino para o exercício das políticas de
vida e morte das quais se nutre o capital. É precisamente sobre o arresto desse
corpo – não de outro (inicialmente), nem por outras vias – que se consolidou o
tripé examinado (capitalismo, patriarcado e racialização) e a partir do qual se
edificou a soberania do capital e a força do Estado capitalista. Vale recordar
que, no patriarcado capitalista, cristianização e demonização são componente
elementares, e ambos continuam perpassando e dominando o debate sobre o
abortamento voluntário. Assim, ratificamos o pensamento de Federici, dando por
confirmada H3, e acrescentando que a sobreposição ao abortamento voluntário
da tutela legal do direito à vida do nascituro, no nosso entendimento, mais do
que obliterar a questão que acaba de ser discutida, pode estar operando a favor
do processo de fetichização do capital, ocultando uma realidade de imposição,
sobre os corpos femininos, de verter sua existência, de maneira inescusável, em

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prol da produção e da reprodução do capital via naturalização da procriação e
do cuidado doméstico gratuito.
Federici, ao situar a acumulação primitiva no âmago do propósito de
caça às bruxas, nos faz perceber com muita nitidez como a potência espo-
liadora do capital decai sobre a energia dos corpos, corroendo, até a medula,
a subjetividade do ser. É na interseccionalidade da história das mulheres, na
exposição da truculência do entrecruzamento entre patriarcado, racialização e
luta de classes, que a diafaneidade da barbárie perpetrada pelo capital se faz
ineludível. Por isso a estigmatização do feminismo como algo abominável; mais
ainda se se tratar de um feminismo anticapitalista e antirracista. O arresto do
útero da mulher, encarnado na proibição legal do abortamento voluntário, é a
forma “civilizada” com que a modernidade burguesa dá continuidade ao projeto
de caça às bruxas.
Se, por um lado, consideramos que a proibição do abortamento voluntário
permite vislumbrar com mais exatidão a questão da acumulação primitiva e o
rechaço aos corpos femininos que não desejam ou não estão aptos a procriar, por
outro, pensamos que o uso do conceito foucaultiano de biopoder na teorização
de Federici, referente ao “fazer viver, deixar morrer”, daria conta de dialogar,
de forma mais apropriada e aprimorada, com a brutalidade do processo de
acumulação primitiva executado por meio da caça às bruxas, bem como com
a problemática do aborto aqui discutida, se incorporasse a ideia de necrobio-
poder16 que vem sendo desenvolvida por Bento (2018). Ao menos para nós, que
vivemos na periferia do sistema capitalista global, isso, certamente, faria ainda
mais sentido, uma vez que, conforme Bento (2018), “o verbo ‘deixar’ sugere que
o Estado não irá desenvolver políticas de morte[;] [em contrapartida, na prática,
o que] há [é] uma reiterada política de fazer morrer, com técnicas planejadas e
sistemáticas” (p. 4). Nesse sentido, há que destacar que o índice de morte por
abortamento clandestino no país é elevado e atinge as mulheres de maneira
desigual dependendo de sua raça e classe social. Há que se considerar também
que o atual governo nacional, de extrema direita e ultra neoliberal, manifestou

16 A autora parte do conceito de “necropolítica” presente em MBEMBE, Achille. Necropolítica: seguido de sobre el
governo privado indirecto. Santa Cruz de Tenerife: Melusina, 2011.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


150
abertamente seu interesse pela proibição total do direito ao aborto. O elemento
comum, identificado por Bento (2018), presente nos estudos sobre feminicídio,
transfeminicídio e violência praticada contra a população negra e indígena no
país diz respeito ao fato de o Estado brasileiro aparecer como agente funda-
mental na distribuição diferencial de reconhecimento de humanidade. Daí sua
afirmação de que “necropoder e biopoder (vida matável e vida vivível) são termos
indissociáveis para se pensar a relação do Estado com os grupos humanos que
habitaram e habitam o Estado-nação [e que] foi o necrobiopoder que nutriu e
engordou aqueles/as que foram chamados a fazer parte da ‘população’ [em]
um país que por 388 anos extraiu sua riqueza de ‘sombras personificadas’17”
(BENTO, 2018, p. 4).
Acreditamos que este trabalho contribui com a problematização da
proibição do abortamento voluntário para além das questões mais recorrentes
sobre o tema que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e
a laicidade do Estado, na medida em que proporciona o delineamento de um
panorama ainda mais profundo, que diz respeito à capacidade do ser de se
autodeterminar livremente de acordo com as suas aspirações existenciais. Se é
certo que isso é algo que o capitalismo asfixia, é indubitável que o faz por meio
de uma desigual colonização de corpos, afetos e subjetividades. Se este não
for tomado como marco medular de referência, permaneceremos anestesiados
em discussões sobre as misérias do possível enquanto o privilégio de alguns
continuará sendo garantido às custas do sacrifício biopsicossocial de vários.
Não é casual que as pautas ultraconservadoras nos costumes estejam se
apresentando no cenário mundial atual (em alguns países de maneira mais
evidente e acelerada do que em outros) emparelhadas com pautas ultra neo-
liberais. Não se trata de uma aliança ocasional, mas de um projeto único que
tem como propósito salvaguardar e fomentar a perpetuação contínua do pro-
cesso de acumulação do capital através da exploração patriarcal racializada.
Vejamos alguns exemplos: na Espanha governada pelo Partido Popular (que
possui ligações nada sutis com o franquismo18), a implementação das políticas

17 Termo extraído pela autora de MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Portugal: Antígona, 2014.
18 https://www.eldiario.es/politica/pp-franco-dictador-silencio-exhumacion_1_1299001.html.

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de austeridade que visavam, supostamente, minimizar os danos causados
pela crise financeira mundial de 2008 foi seguida da aprovação de um projeto
de lei de aborto responsável por um retrocesso significativo dos direitos con-
quistados nessa matéria até então19; no Brasil do protofascismo misógino de
Jair Bolsonaro e do ultra neoliberalismo de Paulo Guedes (um dos fundadores
do BTG Pactual, o maior banco de investimentos da América Latina cuja ati-
vidade consiste em otimizar os ganhos financeiros dos mais ricos20), a única
ministra mulher, Damares Alves, responsável pelo Ministério da Mulher, Família
e Direitos Humanos, que está sendo investigada pela Procuradoria-Geral da
República por tentativa de impedimento do aborto legal de uma menina de 10
anos estuprada pelo tio no Espírito Santo21, encarregou-se, ao que tudo indica,
de intermediar e participar de uma reunião “surpresa” com fazendeiros para
pressionar caciques a aceitar uma proposta de acordo que inclui a redução do
tamanho da área destinada ao grupo de indígenas da etnia Parakanã , que vive
na Terra Indígena Apyterewa , no sul do Pará22. Ambos os exemplos citados
podem ser pensados a partir da ideia de uma contra-ofensiva burguesa para
garantir a dominação e a acumulação do capital com incidência não-casual
sobre determinados corpos e subjetividades.
As fogueiras da caça às bruxas foram apagadas quando a política do
medo já ardia organicamente no interior das almas e as subjetividades perse-
guidas já se haviam convertido em terra arrasada. O patriarcado posto a serviço
da acumulação e dominação do capital, que nomeamos nesse trabalho como
patriarcado capitalista, estabeleceu, através da caça às bruxas, um cânone de
feminilidade que colocou a existência da mulher sob o regimento de um man-
dato social da maternidade. Isso foi – e continua sendo – fundamental para a
imposição da disciplina capitalista de trabalho. O útero é o elemento chave nesse
processo. Por essa razão, Silvia Federici afirmou em um debate público que a

19 https://elpais.com/sociedad/2013/12/20/actualidad/1387544028_883233.html.
20 https://outraspalavras.net/outrasmidias/paulo-guedes-o-banqueiro-e-seus-tentaculos/; https://www.
btgpactualdigital.com/quem-somos.
21 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/11/10/pgr-damares-alves.htm.
22 https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-11-30/demarcacao-indigenas-denunciam-reuniao-de-fazen-
deiros-com-ministerio-de-damares.html.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


152
questão do aborto é a questão da procriação e o corpo da mulher é a última
fronteira do capitalismo por conter em sua anatomia o único órgão capaz de
funcionar como uma fábrica geradora de trabalhadores.23 O mandato social da
maternidade condiciona uma série de outros mandatos, como o da família hete-
roparental que determina o papel da mulher como ama de casa, o das relações
heteronormativas que inferiorizam e infantilizam as mulheres obrigando-as a
servir aos homens e deles depender, o da divisão sexual do trabalho que impõe
à mulher o trabalho não-remunerado de procriação e cuidado doméstico, etc.
Quantas foram – e continuam sendo – as subjetividades femininas aniquiladas
em decorrência disso.
Na distopia, que virou série televisiva, projetada na obra “O conto da
criada” pela escritora canadense Margaret Atwood (quem, inclusive, compa-
rou o governo de Bolsonaro com a sua imaginária “República de Gilead”24), o
governo totalitário fundamentalista de Gilead – criado não por lunáticos, mas
por tecnocratas – extinguiu os direitos das mulheres e colocou seus corpos a
serviço da salvação de um mundo ameaçado por desastres ambientais (CAM-
BRA-BADII ET AL., 2018), os quais, sabemos, são produto da ação depredatória
do capitalismo. É uma prova de que a luta por reconhecimento de direitos, em
que pese ser de extrema importância, pode ser deteriorada a qualquer momento
se não for combatido o cerne da questão que possibilita que a caça às bruxas
permaneça viva na atualidade. Nesse sentido, a legalização do abortamento
voluntário, como estratégia de combate ao mandato social da maternidade que
viabiliza a acumulação primitiva e que tem como desdobramentos o racismo
interseccional, o feminicídio e o assassinato da população transgênero, a
homofobia e a transfobia, etc., precisa estar ancorado em uma agenda feminista
anticapitalista e antirracista.

23 https://www.eldiario.es/euskadi/euskadi/cuerpo-mujer-ultima-frontera-capitalismo_1_4879508.html.
24 https://www.handmaidsbrasil.com/2020/06/margaret-atwood-compara-governo-de-bolsonaro-com-gilead.
html.

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153
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi apresentado e discutido, damos por atendidos


os objetivos perseguidos por este trabalho, quais sejam, demonstrar como o
Estado de Direito no Brasil está legitimando o patriarcado e a caça às bruxas
na atualidade (O1), demonstrar que a negação do direito ao abortamento volun-
tário é uma potente estratégia de controle dentro da esfera das políticas da
existência (O2) e demonstrar que a finalidade do controle estatal das políticas
da existência é a garantia da acumulação primitiva (O3). Outrossim, concluímos
que, em nome da garantia de vida das mulheres e do asseguramento de sua
existência digna, ou o Estado de Direito brasileiro enfrenta definitivamente a
questão discutida neste artigo, legalizando o abortamento voluntário irrestrito
e seguro, ou sua condição de “laico”, “democrático” e “garantidor da dignidade
da pessoa humana” restará abertamente esvaziada.

Agradecimentos

Agradecemos a Dra. Bruna Dutra de Oliveira Soalheiro Cruz pela gene-


rosidade na realização da leitura comentada deste artigo. A Dra. Soalheiro Cruz
é psicanalista e historiadora, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil) e professora associada da Universi-
dade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ, Brasil). É doutora pela Universidade de
São Paulo (USP, Brasil) em supervisão internacional conjunta com a École des
Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, Paris (França).

REFERÊNCIAS
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Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


156
08

A IMERSÃO DO RITUAL FESTIVO E AS


REGRAS DO JOGO NAS PERFORMANCES
DE MASCULINIDADES HOMOAFETIVAS:
UMA OBSERVAÇÃO ETNOGRÁFICA EM
UM ESPAÇO FREQUENTADO POR
HOMENS NO OESTE PARANAENSE

Deivid Nascimento de Carvalho


Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA)

10.37885/230814083
RESUMO

Este texto compõe um ensaio etnográfico produzido através de uma observação


participante em um espaço frequentado somente por homens no interior de
uma cidade do oeste paranaense, próximo da tríplice fronteira do Brasil com
a Argentina e o Paraguai. Esta região possui magnífica diversidade cultural,
no entanto, a homossexualidade ainda revela um tabu frente ao cristianismo,
conservadorismo e tradicionalismo enraizados culturalmente. Em um contexto
descritivo, o texto tem como objetivo refletir como a homocultura e as normas
compulsórias de masculinidade se associam e se dissociam na produção de
um espaço demarcado pela heteronormatividade imposta no comportamento
e na comunicação homoerótica. O estudo a seguir faz uso da prática etnográ-
fica para observar como as distintas produções de masculinidades interagem
entre si e assumem pactos comportamentais que são nocivos no âmbito indi-
vidual e coletivo.

Palavras-chave: Masculinidades, Homossexualidades, Comportamentos


Homoeróticos, Relações Homoafetivas, Homocultura.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


158
INTRODUÇÃO

Este projeto de observação etnográfica surgiu através de uma disciplina


para estudar rituais simbólicos no curso de antropologia. A proposta refere-se
a uma etnografia pautada no contexto liminar de um rito de passagem onde,
por sua vez, os indivíduos desprendem-se de suas características usuais ou
cotidianas para adentrar a uma esfera subversiva à luz de novas experiências.
Estes rituais ocorrem em um lugar específico mediado exclusivamente para o
rito e, ao fim da celebração, os indivíduos retomam suas características usuais
e cotidianas para retornarem à vida comum, completamente renovados com a
experiência vivida no local. Estes rituais simbólicos representam uma ruptura
do cotidiano para a apreciação de uma nova ordem estrutural proporcionada
no local onde o ritual se estabelece. O local onde se realiza a consagração do
ritual é preparado para comportar o evento no qual simboliza a degustação do
momento ritualístico e a ruptura do momento cotidiano. Estes rituais simbólicos,
de maneira breve e simplificada, podem ser entendidos através da realização de
cultos religiosos, shows musicais, teatros e demais espetáculos artísticos, jogos
e competições esportivas, eventos festivos e diversas celebrações, viagens e
passeios para outra cultura e outra dinâmica social além de outros exemplos
que possibilitam uma experiência imersiva promovida por um ambiente ou
local específico.
Como ponto de partida tem-se as premissas de transição entre o momento
cotidiano e o momento ritualístico, com base nos elementos que configuram
as descrições de um ritual simbólico tal qual a busca de locais cujos indivíduos
materializam outra configuração de si como forma de agregar-se a determinado
lugar. Tomada as diretrizes do projeto, na procura de um local que possibilite
experiências mediadas em sujeitos que buscam a vivência de novas formas de
socializar em um determinado espaço, surge a ideia de observar os bares homo-
centrados da cidade no qual morei durante três anos. A observação participante
ocorreu em 2017, em uma cidade no oeste do Paraná com pouco mais de 258
mil habitantes, segundo o IBGE de 2019. Eu nasci e vivi em São Paulo, frequentei

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muitos locais de socialização e cultura LGBTQIA+1, no entanto, quando aden-
trei a esta cidade haviam pouquíssimos locais que pudessem integrar, incluir e
representar culturalmente Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais
e Transgêneros. A cidade paranaense era estritamente conservadora e senti o
estranhamento de não encontrar formas de me socializar na cidade cujo tradi-
cionalismo interiorano reinava diante das plantações de soja.
Desta forma, mediado por colegas, fui em busca de bares no qual pudesse
conhecer indivíduos pertencentes a estas categorias para entender, a partir
de seus respectivos pontos de vista, como ocorre a dinâmica de socialização
nesta cidade. Entretanto, na época desta pesquisa, haviam pouquíssimas
opções. De imediato, havia: um único pub2 abertamente LGBTQIA+ e dois exclu-
sivamente frequentados por homens. Por parte das masculinidades nativas da
cidade pouco se falava sobre homoafetividade e surgia um mistério interiorano
que reinava sobre estes bares: o que acontecia nestes ambientes por ali ficava
como um absoluto segredo entre os frequentadores. Decidi fazer um projeto de
observação nesses bares para entender como ocorre o processo endocultural3
das masculinidades frequentadoras destes locais bem como se estabelece as
dinâmicas subjetivas de aproximações e socializações. Além disso, se faz inte-
ressante observar como ocorre a recepção destes ambientes em uma cidade
extremamente católica do interior paranaense, onde o tradicionalismo permeia
gerações e a heteronormatividade compulsória determina formas de invisibili-
dade no que diz respeito às relações entre homens, bissexuais ou homossexuais,

1 LGBTQIA+ é o termo mais recente referido por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexos e
Assexuais. O “+” refere-se às demais identidades vinculadas na diversidade de gênero e sexualidade. Este termo
visa trazer maior visibilidade para as demais categorias de identificação, para além das demarcações das siglas
centradas no LGBT.
2 O termo Pub é popularmente conhecido por configurar um estabelecimento de influência britânica onde há
venda de bebidas alcoólicas dispostas em diversos espaços temáticos que podem oferecer pistas de dança,
bares, karaokês, restaurantes e lanchonetes. Além de possuir áreas recreativas altamente decoradas e planeja-
das, inclui uma estética influenciada na cultura europeia. Nesta pesquisa, embora o Pub inclua diversos espaços
de entretenimento e o bar, geralmente, está centralizado na venda e consumo de bebidas alcoólicas, utilizo as
definições de Pub e bar como equivalentes.
3 Endocultura: Endo = dentro; Cultura = hábitos, costumes, conhecimento de determinado grupo. É um itinerário
de aprendizagem que o indivíduo tem sobre sua cultura; a assimilação destes símbolos culturais em sua identi-
dade.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


160
entendidas por muitas vezes como práticas subversivas das normas e regras
estruturais impostas socialmente.
Para compor as discussões desta pesquisa, atentei-me ao foco etnográfico
permeado na performance de masculinidade segundo as menções de Butler
(2010). Os arranjos homoafetivos e homoeróticos são retratos pesquisados por
Braz (2010) e Matos (2012), além de referências discursivas através das redes
geossociais4 com base em Miskolsi (2009), Padilha (2015) e Silva (2009). No campo
das masculinidades faço assimilações através de Bourdieu (1999, 2002), Daniel
Walzer-Lang (2001) e Raewyn Connell (2013) para abordar o complexo jogo de
características e composições do masculino dispostas em um campo social. Esta
pesquisa será composta através de textos brevemente temáticos que visam a
assimilação das bibliografias aqui demarcadas com o anexo das observações
em campo, além das interatividades promovidas a partir de dispositivos móveis.
Não há intenção de esgotar o assunto, muito menos expor a intimidade dos
interlocutores que a mim confiaram o compartilhamento de relatos pessoais a
fim de compor as discussões aqui presentes. Para tanto, embora este trabalho
esteja centralizado no comportamento masculino, na cultura homossexual, na
imersão de espaços de homossociabilidade, nas relações afetivas e desarranjos
homoeróticos, não haverá abordagens nem exposições relacionadas a vida
sexual ou detalhes sobre as práticas referidas.

A SOCIALIZAÇÃO HOMOAFETIVA COMEÇA NO BAR

O início das socializações do que viria a ser o movimento LGBT teve início
em bares. Em Stonewall Inn, nos Estados Unidos, em 1969 houve uma rebelião
de gays, lésbicas, travestis e drag queens motivados por reivindicações e pro-
testos contra ações arbitrariamente violentas e abordagens intimidatórias da
polícia civil nos bares gays de Nova York. A rebelião que ocorreu durante seis
dias foi considerada o marco do movimento LGBT contemporâneo em busca
de direitos sociais e civis. Aqui no Brasil, na década de 1970, inicialmente surgiu

4 O termo referido por Padilha (2015) simboliza “um conjunto específico de aplicativos que operam como redes
sociais digitais georreferenciadas. São tecnologias que operam em dispositivos que suportam o sistema de
posicionamento global (GPS).” (PADILHA, p. 73).

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um movimento, sobretudo, homossexual que ganhou força à luz da ditadura
militar no país (1964-85). O epílogo se deve a publicação do jornal Lampião da
Esquina, de cunho informativo sobre a cultura LGBT, centrado na denúncia da
violência social e repressão policial, além de oposição ao regime militar vigente.
Como relembrado por Renan Quinalha (2017):

Durante a ditadura civil-militar, de forma mais intensa do que


em outros períodos da nossa história, o autoritarismo de Estado
também se valeu de uma ideologia da intolerância materializada na
perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como
uma ameaça ou perigo social. […] a criação da figura de um ‘inimigo
interno’ valeu-se de contornos não apenas políticos de acordo
com a Doutrina da Segurança Nacional, mas também morais, ao
associar a homossexualidade a uma forma de degeneração e de
corrupção da juventude. (QUINALHA, 2017, p. 25).

A seguir, foi fundado o jornal ChanacomChana com o intuito de representar


mulheres lésbicas e bissexuais como forma de dialogar o feminismo e a liberta-
ção sexual feminina em tempos obscuros da censura moralista. Os panfletos do
jornal eram comercializados em um bar frequentado por lésbicas. No entanto,
a venda deste jornal não era aprovada pelo dono do local e se instaura as mar-
gens da censura e proibição deste público em frequentá-lo. Em 1983, mulheres
lésbicas, homens gays e demais ativistas LGBTs realizaram um ato político que
tinha o objetivo de mediar a proibição do jornal alternativo, além de reivindicar a
comercialização do material publicamente. Esta rebelião ficou conhecida como
o Stonewall à brasileira, demarcando a resistência da sigla frente às opressões
estruturais. A partir deste momento, foi institucionalizado ao longo das décadas
a inclusão das demais siglas ao movimento LGBT com a finalidade de unir a
diversidade de gênero e sexualidade que divergem da heteronorma socialmente
estabelecida. O objetivo de reivindicar direitos políticos e propor a visibilidade
para suas identidades demarcam a resistência diante de um regime político
opressor de suas categorias sociais. O levante demonstra a constante luta contra
a moral e os bons costumes da política sexual imposta na ditadura brasileira,
conforme relembrado nas pesquisas de Quinalha (2017) sobre o obscurantismo
da violência, da censura e da tortura como marcas culturais de um passado que
lamentavelmente ainda se faz presente na memória coletiva.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


162
Em 1980, houve uma nova emergência frente às categorias LGBTs. A epi-
demia do HIV/AIDS golpeou a população frente a uma doença até então
desconhecida. No início da década, a infecção teve como alvo inicialmente e
sobretudo homens homossexuais e dizimou significadamente grande parte
desses sujeitos. A síndrome epidêmica repercutiu um grande estigma para os
LGBTs como portadores e transmissores de uma doença até então incurável.
Atualmente, com os avanços da ciência e tecnologia, além de diversos estudos
sobre o assunto, a infecção passou a ser tratável sob medicamentos que estabi-
lizam o vírus no corpo. Hoje, há opções de prevenção ao HIV através do Sistema
Único de Saúde (SUS) além de antirretrovirais para reduzir o risco de infecção
em caso de exposição ao vírus. Os indivíduos soropositivos carregaram o fardo
de constantemente serem associados a um “castigo divino” cuja sexualidade fora
da heteronorma seria uma punição e um sintoma de vergonha e imoralidade.
Houve também o estigma do “câncer gay” motivado através do fundamentalismo
religioso somado a ignorância coletiva que acomete a sociedade intolerante e
preconceituosa, cuja formulação do conceito patológico de “cura gay” tem o
pretexto de tratar a homossexualidade como doença. Em 1990, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) removeu o “homossexualismo” (“ismo” denota um
sufixo patológico) da lista de distúrbios mentais e esta medida foi fundamental
para a promoção de um olhar humanizado para homossexualidade, sobretudo,
para as sexualidades divergentes da heteronorma socialmente compulsória.
Desta forma, a cultura LGBT presente em diversos espaços mediados
por representações, debates, manifestações e festividades têm o propósito de
repercutir o diálogo, o respeito e a visibilidade para Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transgêneros e demais categorias identitárias que promovem a inclusão da
diversidade de gênero e sexualidade como formas de entender e respeitar a si
mesmo. O orgulho em ser LGBTQIA+ é uma dinâmica de aceitação da identidade
e sexualidade que visa combater a homofobia e transfobia internalizada como um
potencial alvo de violência para si e para o outro. Além disso, a democratização
da cultura LGBTQIA+ como integrantes que necessitam de política pública no
combate da violência e na inclusão social a fim de garantirem seus respectivos
direitos sociais acolhidos pelo Estado. A luta para a reexistência e a criminalização
do ódio motivado pela identidade, sexualidade e aversão a qualquer conduta
que demonstre a homoafetividade e transexualidade tem como foco combater

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o preconceito que persegue estes sujeitos. A investigação de qualquer crime
pautado nestas condições transformam mortes em estatísticas por negligência
do Estado no combate da violência motivada por homofobia e transfobia.
Desde o início do movimento LGBT em Stonewall, a cultura LGBTQIA+
está centrada em locais e ambientes onde estes indivíduos estão representados
e se sentem à vontade para assumir publicamente a identidade frente a estrutura
violenta que acomete essas siglas no âmbito social. Desta forma, emergiu uma
ampliação social e política no que diz respeito ao alcance da rede de relações
sociais LGBT pela presença de um novo eixo de atores vinculados na mídia.
Assim como mencionado por Facchini (2009):

Nota-se também uma ampliação da rede de relações sociais do


movimento e a presença de novos atores nesse campo, por exemplo,
a mídia, as agências estatais ligadas aos temas justiça e saúde,
parlamentares que incluem a bandeira dos direitos dos homossexuais
em suas plataformas, o mercado especializado, organizações
internacionais e grupos religiosos flexíveis ou especialmente
voltados a questões ligadas à sexualidade. (FACCHINI, 2009, p. 61).

Os bares direcionados a este público se tornam fonte de resistência e


sociabilização onde afloram a troca de informações, aproximações culturais
e formas de socialização. No âmbito cultural da homossexualidade, os bares
gays concentram a dinâmica homocultural onde as diferentes masculinidades
atravessam as distintas formas de interagir, demarcando o ambiente como
confidente de suas intimidades. Neste projeto há o pretexto de observar as
socializações homoafetivas dentro desses espaços e nas descrições a seguir
há de se considerar que haveriam outras análises que poderiam emergir à luz
do foco etnográfico. No entanto, a sistematização do olhar está pautada no
âmbito da sociabilidade, a busca por paqueras, amigos e dinâmicas para exercer
e conhecer a sexualidade, isto é, as práticas de intimidade homossocial dentro
destes espaços e como elas servem de metáfora para o diálogo da masculinidade
nociva e a produção de disputas entre as masculinidades dominantes entre si.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


164
FESTA NO PUB!: A SOCIABILIDADE ENTRE A DISCRIÇÃO E
PARCERIA

Diante das pesquisas para estudar a produção de masculinidades, entre


sites e informações, fui em busca de locais que somente homens frequentam
e que dê possibilidade para observar suas respectivas condutas uns com os
outros. Tive como exemplo o antropólogo Camilo Braz (2010) ao elaborar uma
etnografia “imprópria” em clubes de sexo masculinos, cujo termo impróprio se
molda “pelo possível diálogo com uma bibliografia que toma tais ‘impropriedades’
como ponto de partida para um questionamento de determinadas premissas
antropológicas […].” (BRAZ, 2010, p. 39). Encontrei estes bares em uma breve
pesquisa na internet e um evento me deixou curioso: festa em um pub temá-
tico, que possui muitos espaços, compartimentos “secretos” e entre eles, uma
sauna. Se a sauna masculina certamente é frequentada por homens, uma festa
em um pub-bar-sauna poderia ser um bom espaço para analisá-los. Era um
espaço dinâmico, bem arquitetônico, instigante e visualmente divertido. O visual
ganhava o interesse pelas cores e intensidades de luzes de ambiente animado.
Era uma boate moderna no bar que possui uma sauna frequentada por homens.
As festas despertam o interesse do público. Haviam noites de descontos
e promoções no ingresso, a casa demandava uma organização exclusiva para
as festas em noites de carnaval fora de época, noites de lançamentos de discos
de música pop, noites de bebidas alcoólicas gratuitas ou com baixos valores
agregados – popularmente conhecidas como “open bar”, noites de “escuro”
ao qual todos permaneciam no ambiente à penumbra de reflexos e sombras
– bem como um darkroom, noites da “cueca” onde todos deveriam vir a rigor
para a isenção de taxa de entrada. Deste modo, com festas temáticas, o pub
atualizou seu catálogo de clientes e adquiriu outros futuros parceiros. Não há
a necessidade de cadastro e o contato com o local ocorre com discrição. Esta
era uma regra a ser tomada em prática dentro de todo o ambiente, tanto pelos
frequentadores, quanto pelos trabalhadores do local. Tudo o que acontece no
bar permanecerá no bar e não será repassado à diante. Os parceiros demandam
segredos entre o grupo e isto é compreendido. Portanto, o sigilo é absoluto.
O pub disponibiliza dois acessos de entrada com dois valores diferentes:
o primeiro ingresso inclui somente o bar e o segundo ingresso inclui o bar, as

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saunas de banho e respectivos ambientes de recreação. O primeiro ingresso
possui pagamento de valor menor que o segundo, no entanto, o bar serve
como ponte aos demais ambientes, tornando-se um espaço intermediário
dentro da casa. O bar torna-se um processo liminar entre o ambiente externo
(o rompimento da vida cotidiana em busca de novas experiências e distrações
que fogem da rotina) e o ambiente interno (a estrutura da sauna e espaços
secretos cuja libertação da sexualidade exala entre os corredores). O público
adentra ao ambiente que possui mais interesse. Deste modo, alguns preferem
permanecer somente no bar, à luz da pista de dança, e outros vão diretamente
no que os outros espaços secretos oferecem: locais reservados para o sexo
entre homens. Neste projeto de observação etnográfica atentei-me somente ao
bar pois despertou-me profunda curiosidade sobre o seu papel e representação
nesta casa, permeado pela indagação: quem frequenta somente este espaço e
porque ele é importante para o contexto da sauna e demais locais recreativos.
Fiz uma proposta etnográfica com o objetivo de cumprir com as normas
metodológicas da pesquisa. Em um sábado fui ao bar, à deriva. O objetivo de
observação diante da penumbra cumpriu-se sem a necessidade de ser visto
nem percebido. Neste dia coincidentemente havia uma festa em comemora-
ção ao aniversário do município, estava muito frio e a cidade completamente
silenciosa, sem pessoas nas ruas. O silêncio e o vazio noturno da cidade eram
justificados por dois motivos: grande parte do público compareceu ao festival
gratuito de shows comemorativos e grande parte do público permaneceu em
suas casas. O pub estava vazio, não haviam muitas pessoas, então planejei
permanecer por mais ou menos 60 minutos. Estive sozinho e não conversei
com ninguém, a intenção era observar a dinâmica do bar diante de um pro-
cesso meditativo. Refletir consigo é uma dádiva e observar a cultura estética
europeizada do local emergia à tônica da noite.
Estava frio, todos estavam com muitas roupas sobrepostas e, de fato,
um bar comum. Era inspirado em Londres e demais capitais europeias para
configurar a ascendência cultural da colonização alemã no sul do Brasil, mais
respectivamente no oeste paranaense a partir do início do século XX. Deste modo,
temos a demarcação do público frequentador desta casa noturna: ascendentes à
europeização de si, sumariamente brancos. Centralizaram-se diante de categorias
identitárias semelhantes e, porventura, as demais interseções raciais, sociais e

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


166
culturais enquanto presentes, permaneciam à margem. O espaço representava
um pub juvenil que tocava músicas da moda sob luzes fluorescentes. Na pista
de dança emaranhavam-se poucos. Todavia, para mim simboliza qualquer outro
lugar que já conheci. No entanto, tornava-se curioso ver a troca de olhares e a
conduta masculinizada sustentada no local. Esta conduta sexualizava-se através
do olhar e do teor de desejo que permeia o ambiente. Sustentar máscaras de
virilidade os tornavam visíveis e cobiçados por um notável público. Ali dentro,
todos deveriam seguir as mesmas regras do pacto entre homens e quase todos
estavam acompanhados. Aqueles que estavam sozinhos logo encontravam
alguma companhia para conversar e dependendo do acordo, adentravam aos
outros espaços mais reservados ao sair do bar para adentrar as salas privadas.
Era fundamentalmente a representação de um jogo e participa dele quem está
disposto a jogar.
Por outro lado, havia homens que não sustentavam incessantemente a
conduta masculinizada e extremamente viril dentro do pub. A estes indivíduos
os olhares escapavam aos sujeitos que sustentavam tais pactos de masculi-
nidade entre homens. Aqueles que não faziam parte deste pacto ao subverter
suas premissas mantinham-se à margem do interesse de outrem. Mas cer-
tamente poderiam ser cobiçados por outro sujeito, caso este fosse o êxito da
noite: obter um parceiro para sexo. Este é o objetivo de permanecer no bar por
alguns minutos. A dinâmica dos códigos de masculinidade com os homens que
lá estavam refletiam na forma de aceitação heteronormativa cujo o homem gay
para ser notado e respeitado não deve compor nenhum traço de feminilidade.
Portanto, embora houvesse eventuais exceções, aqueles que compunham
traços afeminados serviam-se, sobretudo, ao prazer carnal. Em certa medida,
permeiam o segundo plano das intenções e investidas de outrem, pouco notado
e admirado. Aos poucos, o bar esvaziava-se ao passar dos minutos. Enquanto
os poucos se retiravam, eu também me retirei. Embora adentrei este campo por
um curto tempo, foi suficiente para perceber como este ritual de masculinidade
se sustenta a partir de máscaras que são socialmente estabelecidas.
E aqui se faz o pretexto desta observação etnográfica. Há certos espa-
ços que somente são frequentados por homens para exercer atividades entre
homens. De modo discretamente privativo e reservado. Distantes das mulhe-
res, tornam-se uma outra representação entre seus iguais. Dentro deste bar,

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principalmente em dias de festa, ocorre a troca de relatos e o compartilhamento
de experiências sociais, afetivas e sexuais de homem para homem. Este ambiente
permite todas as possibilidades que o cliente deseja obter no comparecimento
destes eventos cujo sigilo e discrição são fundamentais para exercer o pacto
entre homens. A manutenção do segredo entre as masculinidades tornam-se,
portanto, uma máscara de representação social.

A HOMOSSOCIABILIDADE E A HIERARQUIA MASCULINA


COMO RITO DE PASSAGEM

Na homossociabilidade, os homens ensinam aos outros homens certos


códigos que servem como pacto entre eles. Esses rituais de homens para
homens, ao qual o domínio desses códigos e pactos estabelecem as regras
do jogo, tornam-se um rito de passagem, conforme mensurado pelo sociólogo
Daniel Walzer-Lang (2001). O processo cultural desse jogo determina quem
pode jogar dentro do campo social que eles estabeleceram. E nestes espaços,
como explica Bourdieu (2004), se formam um “campo de forças e um campo
de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças.” (BOURDIEU,
p. 22-23). Neste campo, os agentes sociais dispõem-se de diferentes posições
seguindo estratégias para dominar e seguir em busca de troféus. Neste campo
da masculinidade, ao qual para pertencê-lo é necessário cumprir certas regras
estabelecidas socialmente, expõem-se quem está determinado à margem por
não cumprir estes respectivos papéis sociais. Os troféus deste campo são
estabelecidos na superioridade masculina e na aversão a toda característica
entendida como feminina. Quem cumpre tais regras de masculinidade recebe
o troféu de reconhecimento enquanto pertencente à categoria social que será
notada e reconhecida diante do jogo entre quem se mantém dominante e quem
por este é dominado. São as relações de poder.
Os ritos de passagem, como definido por Arnold Van Gennep, citado por
Turner (1974), são caracterizados como “ritos que acompanham toda mudança
de lugar, estado, posição social de idade” (TURNER, 1974, p. 116) e ocorrem em
três fases: a separação (da vida cotidiana), a margem (a transição liminar) e
agregação (a algum lugar). Nesse rito de passagem há o diálogo de diversas
estruturas e antiestruturas. Por sua vez, Turner corresponde a ideia de liminaridade

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


168
ao momento que configura a margem dos ritos de passagem, sendo um período
de transição entre uma estrutura social e uma antiestrutura que, por sua vez,
subverte esta. Deste modo, a liminaridade revela um momento indefinido no
qual ocorre uma ambiguidade e uma indeterminação, onde os indivíduos não
possuem precisão de certeza e estão categoricamente no meio termo. É neste
momento que está para ocorrer uma transformação, uma transgressão para algo
maior, a fuga do cotidiano. A liminaridade padece de uma estrutura anterior e
uma antiestrutura posterior. Deste modo, a liminar de um comportamento está
no entre-lugar, não exatamente um e não correspondente a outro.
Turner (1974) elabora o conceito de communitas, no qual revela uma
antiestrutura, de forma a compor uma comunidade que está diante da unificação
de indivíduos que subvertem uma estrutura lógica e se compadecem de uma
experiência coletiva distinta da estrutura social. As communitas se associam
a um estilo de vida em comum que se dissociam do estilo de vida cotidiano,
no âmbito rotineiro da vida privada ou das normas e regras socialmente pré
estabelecidas. De acordo com Turner:

Existe, aqui, uma dialética, pois a imediatidade da communitas


abre caminho para a mediação da estrutura, enquanto nos ritos
de passagem os homens são libertados da estrutura e entram na
communitas apenas para retornar à estrutura, revitalizados pela
experiência da communitas. (TURNER, 1974, p. 157).

No campo social das masculinidades, cujos pactos de virilidade devem


ser exercidos e reproduzidos a fim de reafirmar a manutenção deles, os indi-
víduos mantêm-se como parceiros imersos a um campo ao qual pertencem,
formando uma espécie simbólica de “communitas” culturalmente formulada
de códigos comuns estabelecidos socialmente. Para ter acesso a este campo,
a homossociabilidade exerce um processo endocultural através de um ritual
de conduta, ensinamento e aprendizado a serem transmitidos e assegurados
de homem para homem. O comportamento socialmente adequado torna-se
constantemente reafirmado como categoria de representação e afirmação da
conduta masculina de superioridade e autoridade. Quem segue este ritual como
princípio de manutenção das regras e normas estruturais e tradicionalmente
reguladoras para conservar o poder da masculinidade sobre as categorias “não

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masculinizadas” participa do jogo para manter-se como categoria hegemônica,
conforme Raewyn Connell (2013), e hierárquica de domínio e controle social.
Aquele que não segue este ritual de normatização da identidade como regra abso-
luta está à margem dele e, portanto, inferior e excluído deste campo dominante.

PACTOS DE MASCULINIDADE, JOGOS DE SEDUÇÃO E A


COMUNIDADE ANÔNIMA

Nestes espaços frequentados somente por homens estão presentes as


subjetividades de certos códigos de conduta que revelam o cumprimento ou
descumprimento das normas do que entendem por virilidade. Ocorrem, por
muitas vezes, a pressão social e a tendência ao uso de máscaras para pertencer
e ser aceito a esta comunidade. Esta, entretanto, requer o uso de tais controles
da masculinidade e as induções de comportamento tornam evidente quem é
visto, percebido e pertencente a este local. Como demonstrado pelo antropólogo
Camilo Braz (2010), “há, pois, um controle das práticas corporais e da gramática
corporal, lidando com limites.” (2010, p. 216). Neste “controle do descontrole”
referido pelo autor, há determinados “enquadramentos” que acometem o indi-
víduo que está apto a pertencer à cultura do local. Desta forma, o controle de
trejeitos efeminados e qualquer símbolo aplicado ao feminino seria um fator
de invisibilidade do sujeito diante de todos. No entanto, este fator poderia ser
reconsiderado caso o mesmo sujeito cumpra as normas de outros pactos de
masculinidades, sobretudo, a composição do culto ao “corpo perfeito” do homem
que embora afeminado, possui um corpo másculo, trabalhado em rigidez mus-
cular e definição da massa corpórea. A musculatura do corpo e a ramificação
de pelos e barba servem, por sua vez, de linha divisória entre a apreciação e a
degradação do indivíduo notado e desejado.
O grande desejo é suprir todas as regras do pacto e neste ambiente há
o disfarce de determinadas condutas que poderiam fugir das demandas exi-
gidas socialmente. A pressão social para ser aceito a esta comunidade requer
o endeusamento do corpo atlético, musculoso e juvenil. No entanto, o desejo
está em enquadrar-se nestes 3 âmbitos estéticos ou pelo menos sobressair-se
em um deles. Diante da observação, quis atentar-me aos jogos de sedução e
paquera entre homens para assimilar quais são os códigos a serem entendidos

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


170
para estes fins. Em campo, fui um observador participante sem a intenção de ser
percebido, no entanto, na sistematização das observações ocorre a curiosidade
de questionar esses códigos de comportamento. Dentro do bar não abordei
nenhum dos homens que ali estavam, permaneci recluso imerso nas obser-
vações. Deste modo, pensei na possibilidade de dialogar com frequentadores
deste espaço fora deste local, em uma dinâmica informal e descontraída. O bate
papo fora deste ambiente seria menos inconveniente pois o objetivo da minha
permanência no local está estritamente vinculado à observação, distante da
importunação e da participação do jogo homoerótico estabelecido neste bar.
Os interlocutores que acessam os aplicativos de relacionamentos me
parecem receptivos ao diálogo sobre estes assuntos, dado as características que
são propostas na forma de comunicação através destes dispositivos. Aqueles
que estão no bar também utilizam os dispositivos móveis para “caçar” outros
homens que estão localizados dentro ou fora da casa. Como frequentadores,
poderiam compartilhar opiniões sobre o ambiente. Como não-frequentadores,
poderiam expor opiniões sobre o “olhar de fora” da casa. O diálogo não teve
pretensões de abordagens e intimidades relacionadas a práticas sexuais, nem
mesmo no eventual uso de preservativos em caso afirmativo de sexo neste local.
Este é um assunto que envolve uma sistematização mais criteriosa da colheira
de informações e necessita de uma pesquisa qualificada com o foco direcionado
neste assunto a fim de propor uma discussão mais detalhada e atenciosa sobre
a sexualidade de homens que fazem sexo com outros homens (HSH5) além de
um amplo debate sobre saúde sexual LGBTQIA+, doenças sexualmente trans-
missíveis e políticas públicas de prevenção ao HIV/AIDS.
As sistematizações que centravam-se nos diálogos que compõem as dinâ-
micas desta pesquisa remetem a comportamentos da cultura gay que afligem ou

5 Conforme Regina Facchini (2009), “a sigla HSH – homens que fazem sexo com homens – foi introduzida no
Brasil nos anos 1990, no contexto das políticas de prevenção às DST/aids. O objetivo de seu uso é fazer refe-
rência direta às práticas sexuais, contornando o problema representado pela não-coincidência entre práticas e
identidades, que faz com que categorias como gays ou homossexuais não sejam adequadas para definir todos
os sujeitos que poderiam ser alvo dos programas de prevenção. A utilização dessa sigla vem sendo questionada
por ativistas, que criticam o uso de uma categoria que não remete a identidades e invisibiliza o sujeito político do
movimento que demanda tais políticas” (FACCHINI, 2009, p. 64).

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contemplam particularidades sobre si. A publicação dos relatos aqui existentes
foram permitidos e os nomes foram ocultados. Para Richard Miskolci (2009),

A internet ampliou o armário duplamente: por ter introduzido nele


muitos que jamais explicitariam desejos por pessoas do mesmo
sexo – e que o fazem agora graças ao anonimato – e também porque
a maioria das relações forjadas on-line já surge secretamente.
[…] Não extinguiu a principal fonte de preocupação, sofrimento
e solidão de muitos que compartilham desejos por pessoas do
mesmo sexo: o segredo. O armário ainda parece ser o mecanismo
de controle de suas vidas, no fundo, solitárias, já que vividas em
um limbo comprimido entre a socialmente aceita e a secreta, em
que tentam alocar seus desejos, prazeres e sonhos. (MISKOLCI,
2009, p. 188).

Os aplicativos de relacionamentos dispostos em uma mediação geográfica


possibilitam a socialização homocultural a partir da localização do dispositivo
móvel a fim de aproximar homens que estão geograficamente próximos. Estes
dispositivos tornam-se uma prática popular de se conectar com o indivíduo que
também faz uso deste aplicativo e está a uma localização específica. As formas
de interagir nestes dispositivos remetem a linguagens mais objetivas e informais
no epílogo das relações sexuais e interpessoais. A autenticidade das informa-
ções prestadas revelam a dinâmica de conhecer alguém através das redes e a
possibilidade de ocultar a identificação na manutenção do anonimato dispõem
um jogo de códigos que possibilitam a reinvenção de si diante das telas. Deste
modo, estas mídias de comunicação geosocial repercutem, por muitas vezes,
a veracidade das informações compartilhadas e revelam a tônica da inconfia-
bilidade dos sujeitos ali abordados. Como sinalizado por Felipe Padilha (2015),

É possível sugerir que essas tecnologias são criadas e moldadas


respondendo também às condições históricas de um contexto
que não provê condições de reconhecimento e segurança para as
expressões públicas do desejo homoerótico, ou não-heterossexual.
Por outro lado, os usuários em contato com a tecnologia podem
constantemente ressignificar o seu uso. (PADILHA, 2015, p. 74).

A realização deste método veio a partir da reflexão sobre a relação


do indivíduo da cidade com o local observado, mediante o público-alvo que

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


172
frequenta, já frequentou ou conhece frequentadores que possam contribuir
com informações relevantes para o olhar etnográfico.
Tive acesso a cinco interlocutores, com objetivos distintos neste
espaço. O primeiro foi um rapaz que mora no centro da cidade e possui 25
anos. Indagado pelo motivo de frequentar o pub respondeu-me que apenas
procura por amigos, geralmente apenas frequenta o bar e não adentra aos
outros espaços para fazer sexo. Possui interesse de conhecer homens gays
com afinidades semelhantes para conversar, ir a festas, frequentar outros bares
e jogar videogame. Ele relata o interesse de encontrar parceiros para fazer
sexo mas não deseja a realização de tais práticas dentro da sauna pois acre-
dita que fora dela, ao introduzir o novo amigo em sua vida particular, renderá
uma afinidade maior e portanto, o contato será melhor qualificado. Quando o
abordei sobre comportamentos e táticas usuais para o reforço heteronormativo
dentro dos espaços do bar ele me diz que entende e reproduz os códigos de
masculinidade tanto dentro quanto fora deste local. Para ele, utilização destes
pactos estão relacionados à discrição da sexualidade, de forma a “não expor a
homossexualidade publicamente.” Neste espaço se sente mais desinibido para
fazer amizades e fora do bar, na vida cotidiana, ele é mais tímido e reservado.
Por este motivo, prefere adquirir tais normas para não ser percebido socialmente
enquanto homem gay e este disfarce seria uma alternativa com a finalidade de
proteger a si mesmo da homofobia e demais violências.
O segundo interlocutor tem 52 anos, mora em um bairro muito afastado
do centro e chamou-me atenção a liminar de seu comportamento na vida coti-
diana e seu comportamento dentro do pub. Ele frequenta tanto as festas quanto
os banhos de vapor, busca por sexo e relacionamento sério. Cumpre seu dever
se alguma dessas metas forem atingidas. Para ele, é evidente os processos
de liminaridade entre estar fora e dentro da sauna, visto que para pertencer a
esta comunidade é necessário atentar-se aos códigos de masculinidade para
ser percebido por outros homens. Dentro deste local ele assume máscaras de
virilidade que fora deste são completamente descartadas. Dentro do ambiente
ocorre o “show da performance do macho hétero” como ele mesmo se refere e
fora deste ambiente não há controle nenhum sobre tais regras e normas pois
ocorre a “autenticidade do ser.” Percebeu que nestes espaços, caso estas más-
caras de conduta masculinizantes fossem anuladas dentro do pub e sauna, os

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objetivos de sexo e relacionamento não se concretizam, ele não seria notado
diante da pista de dança e seria descartado no catálogo de homens performáticos.
O terceiro interlocutor é um turista que tem 33 anos, veio visitar a cidade
no fim de semana e é paulistano. Ele é um frequentador das casas de sauna de
São Paulo e nelas busca sexo casual e novas experiências que, segundo ele, são
exercidas somente dentro destes espaços. Questionado sobre esse assunto, ele
me diz que dentro das saunas, próximo de outros caras que também buscam
experimentar novas atividades sexuais e somado ao teor das bebidas alcoólicas
do bar, torna-se encorajado e menos tenso para exercer condutas “despren-
didas” de si. Fora da sauna ele não age de forma libertina pois me informou
que naquele espaço tudo era permitido e todas as curiosidades poderiam ser
exercidas. No entanto, todas as experiências sexuais que foram adquiridas nas
saunas são fundamentais pra entender a sua relação com o sexo e o modo que
exerce a sua sexualidade através da atração e desejo. Tanto dentro como fora
da sauna ele cumpre as exigências do pacto entre homens.
O quarto interlocutor não revelou a idade, é morador de uma cidade vizinha
e percorre os 60 km em seu automóvel para aventurar-se distante de sua região
de origem. Refere-se a si mesmo como um homem discreto e frequenta tanto o
pub quanto às áreas internas com o pretexto de socializar com outros homens
que, assim como ele, possuem uma esposa e são casados. A intenção destes
encontros têm como objetivo único a busca de sexo entre homens. Uma prática
sexual que, por muitas vezes, é reprimida frente a heteronorma e, por sua vez,
estabelece o medo de confrontar a sexualidade publicamente. A prática de sexo
entre homens dentro deste espaço ou outros locais privativos compõem uma
forma de manter a vida heterocentrada no âmbito social sem, contudo, expor
diante da sociedade o vínculo de uma sexualidade não-heterossexual. Dentro
do bar, da sauna e demais locais de intimidade homossocial há a realização
da experiência homossexual e, em contrapartida, fora destes ambientes reina
a heterossexualidade compulsória como membro da família tradicionalmente
conservadora da moral e dos bons costumes.
A liminar deste duelo reluz a performance de masculinidade nociva para
agradar a sociedade heteronormativa e permeia metaforicamente as regras do
jogo do campo social formulado por Bourdieu (2002). O jogo de ceder a prática
da homossexualidade exclusivamente quando convém remete às implicações

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


174
sociais que podem causar o rompimento de determinados privilégios enraiza-
dos na heteronormatividade, luz da hierarquia social. Bem como o estremecer
de laços familiares e das conquistas pessoais em nome da heterossexualidade
que poderiam ser perdidas mediante exposição da privacidade afetiva/sexual.
Tanto nos aplicativos de relacionamentos quanto nos espaços que reservam
experiências homoeróticas, o sigilo entre os parceiros e a discrição comandam
as normas de socializações entre homens que buscam o mesmo perfil. O fato
de serem casados revelam a confiabilidade presente e estabelecida no comum
acordo de parceria. Nestes locais sentem-se à vontade para realizarem o desejo
sexual homoafetivo e os jogos de erotismo.
A repressão internalizada, o medo da violência, a vergonha e o preconceito
reforçam a manutenção de máscaras sociais e o anonimato para pertencerem
a homocultura sem, entretanto, revelar-se a si mesmos como pertencentes de
uma cultura não-heterossexual. A realização afetiva/sexual obtida dentro des-
ses espaços tornam-se a tônica enérgica da adrenalina. A vida dupla remete
a um contexto liminar entre a vida publicizada e a vida privativa. O ritual se
apresenta como um jogo de masculinidade a fim de reafirmar tais pactos e
normas de condutas nocivas tanto para os relacionamentos entre homens
quanto para a homossexualidade enquanto cultura de orgulho, visibilidade e
resistência. Os bares gays promovem um encorajamento para enfrentar, acei-
tar e experimentar a sexualidade da forma que lhe convém. Acolhem tanto os
indivíduos que questionam e assumem orgulhosamente quem são diante da
sociedade homofóbica como aqueles indivíduos que se escondem em dilemas.
Para tanto, optam por ocultar-se e camuflar-se na heterossexualidade compul-
sória, na zona de conforto de si mesmo, em constante fuga.

O BAR NA TRÍPLICE FRONTEIRA: O BRASIL ENTRE ARGENTINA


E PARAGUAI

Os bares e saunas do oeste do Paraná, em região fronteiriça, despertam


a curiosidade dos homens moradores na tríplice fronteira. Paraguaios e argenti-
nos também frequentam estes espaços para conhecer quem são os brasileiros,
como eles se comportam e como poderiam trocar conhecimentos sobre sexo
e afeto. Nas páginas dos sites destes estabelecimentos e nos aplicativos de

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relacionamentos há perguntas sobre os valores e a localização das saunas na
cidade. Ir ao Brasil para conhecer os homens que fazem sexo com homens se
torna atrativo. Entre outras pesquisas sobre bares, sauna e seus respectivos
contextos encontrei o quinto interlocutor. Ele é argentino, morador de uma cidade
que faz fronteira com o Brasil, há 18 km. Tem 24 anos e se considera bissexual.
Entretanto, não tivera nenhuma experiência com homem e possui interesse em
exercer esta aproximação para experimentar seu lado homossexual. Relata que
muitos argentinos atravessam a fronteira com o Brasil diariamente motivados
pelos burburinhos nos aplicativos de relacionamentos sobre estes ambien-
tes. A dinâmica das redes interculturais fomentadas por brasileiros e argentinos
dialogam com a liminaridade fronteiriça no ritual da homossociabilidade. Ele
relata que frequentou o bar somente uma vez e não quis adentrar a outros
espaços pois inicialmente não procura por sexo e apenas desejava conversar
com homens assumidamente gays. Tem como objetivo se conhecer melhor e se
permitir aguçar um novo terreno das relações interpessoais em solo brasileiro.
Frequentar estes espaços no Brasil remete ao sinônimo de liberdade
para experimentar a sexualidade sem que ninguém de seu país de origem saiba,
principalmente se neste “espaço estrangeiro” o indivíduo se torna desconhe-
cido aos olhos de quem o vê. Esse fator é fundamentalmente importante para a
experimentação de si, bem como se torna relevante conhecer e entender como
os homens brasileiros exercem a sexualidade e fazem sexo. Este interlocutor
vem mensalmente ao centro da cidade brasileira para a frequência de suas
consultas ao dentista e neste dia resolveu assistir o entardecer paranaense para
acessar o bar ao anoitecer. Não era motivado pela incessante busca de sexo mas
atentava-se ao treino do olhar direcionado a outros homens ao qual sentia-se
atraído. O objetivo da permanência no local estava em admirar e desejar livre-
mente outros homens sem sentir-se repreendido pois naquele espaço ninguém
o conhecia e, por sua vez, ele não conhecia ninguém. Portanto, ele participa do
jogo de sedução e faz uso de máscaras de masculinidade para participar desse
campo de erotismo. Ele assume tais códigos de virilidade tomados para si como
forma de impor respeito e não levantar suspeitas acerca de qualquer vínculo
à homossexualidade. Para tanto, as práticas e manutenção destes códigos
ocorrem tanto dentro quanto fora do contexto do bar. Este jovem relata que

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


176
não se relacionou com ninguém e espera o momento certo para confrontar esta
experiência homossexual. No momento, ficará recluso no “armário.”
Diante de pesquisas sobre as saunas nesta cidade paranaense e diversas
curiosidades acerca dos territórios que fazem fronteira na tríplice de países lati-
no-americanos, me foi percebido o quanto há de procura sobre esses espaços e
como eles estão configurados em um certo tabu. Argentinos e paraguaios, bem
como outros turistas da América Latina e demais partes do mundo sentem-se
indagados ao “jeito brasileiro” de se expressar pois querem experimentar “o
calor humano” do território brasileiro. Estes enquadramentos cultivados cultu-
ralmente produzem uma imagem “tropicaliente” dos brasileiros que é vendida
comercialmente como cultura de exportação. Diante disso, o que acontece na
sauna do lado brasileiro da fronteira fica memoravelmente intocado como um
segredo demarcado na região fronteiriça. Se esses frequentadores não são
brasileiros de origem, o conforto da despedida dessas experiências se tornam
mais expressivos.
Um fator que despertou curiosidade está vinculado à representação sim-
bólica de como os moradores desta cidade percebem as saunas locais. Em busca
de sites bem como redes sociais, grupos e comentários desses estabelecimen-
tos na internet pude assimilar essas informações. Na página oficial dos bares
e saunas, em sua maioria estavam presentes comentários com o intuito de
menosprezar e ridicularizar esses espaços. Os comentários eram centrados
na divina justificação moral heteronormativa de configuração religiosa. Eram
realizados, sobretudo, por homens heterossexuais casados, membros da famí-
lia tradicional brasileira. Haviam ofensas e discursos de ódio erroneamente
entendidos como liberdade de expressão, pautadas em imoralidade e homo-
fobia. Muitos deles mencionaram nas postagens de eventos festivos do bar os
respectivos amigos como forma de garantirem testemunhas para o clube de
agressão virtual para reafirmar a negação destes locais, com uso de palavras de
ordem moral, fundamentos religiosos e ódio gratuito. Para eles, a demonstração
do discurso ofensivo e o preconceito sobre os bares e saunas exclusivamente
gays indicavam publicamente que estavam em “superioridade moral” diante da
homocultura. A intenção de demonstrar que eram superiores, justificados pela
hierarquia entre homens heterossexuais versus homossexuais, compadecem a
súplica de raiz conservadoravelmente homofóbica da sexualidade homossexual

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ser demasiadamente “sexualizada.” Deste modo, para os sujeitos inglórios, a
castidade heterossexual, por sua vez, equivocadamente não seria.

[IN]CONCLUSÕES

De antemão, informo que este texto se faz inconclusivo, incompleto e


insuficiente para pensar sobre masculinidades com a precisão necessária de
interseccionar as nuances de identidade, gênero, raça, classe e demais demar-
cações que particularizam as diversas existências e composições do masculino.
Este texto faz uma simbólica metáfora sobre as masculinidades hegemônicas,
que independente da sexualidade, marginalizam outros aspectos do masculino
e feminino. A urgência de discutir sobre a masculinidade nociva segmenta, cada
vez mais, as opressões estruturais que os homens carregam em si e emanam
para o outro, como forma de devolver ao mundo todos aqueles sentimentos e
emoções que foram escondidos por vergonha do choro e do medo. A disputa
dos homens em se afirmarem “macho” é, na verdade, uma rivalidade agressiva
contra eles mesmos e isto reflete no convívio social, de forma irresponsavelmente
violenta, dizimando possibilidades de existências que são legítimas. O ritual
de tornar-se homem engrandece a constante reafirmação da masculinidade
na composição do macho enquanto gênero socialmente estabelecido. É uma
forma equivocada de encenar um papel social que não condiz com a necessi-
dade pública de autoafirmação. Simboliza uma performance diante do escuro,
completamente cruel para quem encena, sobretudo, para a plateia incentivadora
da vigília moralista.
Para tanto, demarcam a homofobia e transfobia para punir identidades
desviantes com o pretexto de se adequarem dentro do campo normativo para
serem legitimadas. Este é um retrato que simboliza, por diversas situações, a
homofobia internalizada e o medo de se assumir enquanto um integrante LGB-
TQIA+ devido ao preconceito e a intolerância motivada pela violência de gênero
e sexualidade não-heterossexuais. As agressões, perseguições e mortes viram
estatísticas da negligência do Estado na investigação de crimes e na ausência
de políticas públicas que combatam a LGBTfobia, em todas as interseccionali-
dades. Além disso, ainda há países que consideram a homossexualidade uma
doença imoral através da pena de morte aos indivíduos que possuem relações

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


178
homoafetivas. Como forma de combate ao preconceito, munir resistência e
visibilidade, assim como ocorreu no estopim da rebelião de Stonewall Inn em
28 de junho de 1969, a Parada do Orgulho LGBTQIA+ tem por objetivo espa-
lhar o amor e a luta contra a repressão social que acomete estas identidades
diariamente, no espaço público e privado de nossa existência.
Por fim, retrato orgulhosamente a emergência de masculinidades que
subvertem e antagonizam outras afirmações e expressões de feminilidade. Adep-
tos/as de posturas feministas no combate a desigualdade de gênero bem como
a transformação do masculino, no contínuo incentivo de uma masculinidade
saudável, menos nociva para consigo e para o coletivo. Este texto é dedicado
aos indivíduos cujas luzes do contexto festivo observado se apagam. No entanto,
ressignificam normas socialmente compulsórias para exercerem a identidade
pública com orgulho, autoaceitação e liberdade. Tensionam, pois, as relações
de poder centralizadas na conservação dos jogadores que preservam a manu-
tenção de suas peças dominantes.

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1969, 1971, 1980. © 2002 Editorial Montressor.

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Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


180
09

DESAFIOS AO NÍVEL DA SEXUALIDADE


APÓS EVENTO CARDÍACO

Eugénia Mendes

Ana Azevedo

André Novo

10.37885/230713750
RESUMO

Com a evolução das ciências médicas e da tecnologia disponível, as pessoas


com doença cardíaca crónica vivem mais anos e aquelas que têm episódios
maior de doença cardíaca aguda têm maior taxa de sobrevivência. Esta realidade
traduz-se em pacientes com necessidades específicas que, com a intervenção
da reabilitação cardíaca, podem viver de forma ativa e com qualidade. Um dos
aspetos relevantes da qualidade de vida é a vivência plena da sexualidade,
incluindo a relação sexual satisfatória para a pessoa e o seu parceiro. Estudos
epidemiológicos sugerem que a atividade sexual tem um efeito favorável na
saúde a longo prazo(1).

Palavras-chave: Reabilitação Cardíaca, Sexualidade, Evento Cardiovascular.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


182
INTRODUÇÃO

Durante décadas acreditou-se que a atividade sexual implicava um


esforço cardíaco máximo, principalmente no momento do orgasmo, e que
estava associada a eventos cardíacos adversos maior como, por exemplo, a
morte súbita durante o coito, amplamente retratada no cinema e em séries
televisivas. Para a construção e manutenção deste mito muito contribuíram
os estudos realizados na década de 60 do século XX por Masters e Johnson(2,3)
que estudaram, entre outros aspetos, a variação da frequência cardíaca e da
tensão arterial durante a relação sexual em laboratório e que confirmaram os
resultados obtidos em estudos anteriormente realizados nomeadamente por
Bartlett em 1956. Os sujeitos, jovens e saudáveis, mantinham relações sexuais
no laboratório, em câmaras privadas, monitorizados com dispositivos não inva-
sivos. Os resultados mostraram elevação da frequência cardíaca atingindo picos
de 140-180bpm, elevação da tensão arterial de 80mmHg sistólica e 50mmHg
diastólica e elevação da frequência respiratória atingindo os 40 ciclos por minuto
levando a concluir que a atividade sexual exigia um esforço cardíaco conside-
rável ou mesmo uma sobrecarga cardíaca(2). A hipótese de que o ambiente não
natural do laboratório, a monitorização, que implicava estarem ligados por fios
a um aparelho de eletrocardiografia, bem como a presença dos investigadores
“do outro lado da parede” poderia ter influenciado os resultados, o que levou a
que outros estudos fossem conduzidos em ambulatório nos quais as relações
sexuais aconteciam no ambiente natural dos sujeitos, com os seus parceiros
habituais e nos tempos e posições por eles determinados. São exemplos os
estudos de Hellerstein e Friedman(4) e Littler, Honour e Sleight(5) que constituí-
ram o ponto de viragem nos estudo do impacto da atividade sexual na função
cardiovascular. Hellerstein e Friedman estudaram homens de meia idade com e
sem doença coronária aos quais foi colocada monitorização eletrocardiográfica
portátil durante 24 horas. Este estudo permitiu comparar a frequência cardíaca
durante as atividades quotidianas e durante a atividade sexual nos 14 sujeitos
com patologia arteriosclerótica cardíaca que se envolveram, natural e esponta-
neamente, em relações sexuais com os seus parceiros habituais no seu domicílio
durante o período de monitorização. Os resultados revelaram uma frequência
cardíaca média de 117,4bpm (mínimo: 90bpm; máximo: 144bpm) no momento

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do orgasmo, o que se revelou inferior a outras atividades diárias registadas
durante a monitorização cuja média se situou nos 120,1bpm.
Resultados idênticos foram identificados por Littler e colaboradores nos 7
sujeitos (6 homens e 1 mulher) estudados. Relativamente à tensão arterial, ambos
os estudos encontraram uma maior variabilidade com pacientes a atingir picos
correspondentes a 100% ou mais de elevação. No entanto, o período em que
ocorriam os picos, tanto de frequência cardíaca como de tensão arterial, eram
de curta duração (em média inferior a 15 segundos), o que correspondia à fase
do orgasmo, descendo para valores abaixo dos registados antes da atividade
sexual, na maioria dos casos(2,4,5). Estes achados levaram os investigadores a
concluir que, durante a atividade sexual de indivíduos de meia idade, nas suas
casas e com os parceiros habituais, o esforço cardíaco e o consumo de oxigénio
estimado estavam longe de ser considerados máximos ou submáximos: a FC atin-
gida durante o coito foi frequentemente inferior à de outras atividade diárias e
o VO2 correspondente era de 16mL/min/Kg, ou seja, em 60% da capacidade
máxima dos sujeitos. Estas conclusões revelaram que o esforço requerido para
a atividade sexual era modesto e equivalente a “subir dois lanços de escadas”.
Esta ideia generalizou-se e ainda hoje é usada, embora Bohlen, em 1984, focasse
a variabilidade inter-individual e desencorajasse esta comparação(6).
Em 2007, Palmeri e colaboradores(3), compararam o esforço cardíaco
durante a atividade sexual e durante a prova de esforço em passadeira com o
protocolo de Bruce. As medidas usadas foram a frequência cardíaca, tensão
arterial e a perceção subjetiva de esforço, usando uma escala de “1 – muito
fraco” a “5 – máximo”. A prova de esforço em passadeira foi realizada com
monitorização contínua e a 2/3 minutos de cada estadio do protocolo de Bruce
era avaliada a perceção subjetiva de esforço. As relações sexuais ocorreram
no espaço natural do sujeito e com o parceiro habitual. Os resultados revela-
ram uma enorme variação entre sujeitos com valores máximos de frequência
cardíaca a situarem-se entre 72 e 162bpm e os valores máximos de tensão
arterial sistólica a variarem entre 131 e 213mmHg. De qualquer forma, em 31
dos 32 participantes, os valores máximos atingidos na prova de esforço foram
superiores aos observados durante a atividade sexual, o mesmo acontecendo
com 30 dos 32 relativamente à tensão arterial sistólica e em todos os partici-
pantes relativamente ao duplo produto. A maior parte dos participantes referiu

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


184
sentir um nível de exaustão significativamente inferior durante a relação sexual
quando comparado com a prova de esforço. Observou-se, ainda, que a duração
da relação sexual foi aproximadamente três vezes mais longa que a prova de
esforço em passadeira, mas que o esforço cardíaco durante a relação sexual
foi aproximadamente metade do esforço máximo observado na passadeira.
Assim, concluíram que a atividade sexual consiste num esforço físico moderado
comparável ao estadio II no protocolo de Bruce (aproximadamente 7 MET) para
homens e ao estadio I para mulheres (aproximadamente 5 MET). Concluíram
ainda que os valores máximos de frequência cardíaca e tensão arterial durante
a atividade sexual correspondem a aproximadamente 75% do valor máximo
atingido durante a prova de esforço(3). Resultados idênticos foram obtidos por
Frappier e seus colaboradores, num estudo com 21 casais heterossexuais, em
que concluíram que em termos de equivalentes metabólicos (MET), a intensidade
média da relação sexual era de 5,8MET, o que corresponde a uma intensidade
moderada, de acordo com o American College of Sports Medicine1 (ASCM)
(moderado: 3 a 6 MET)(7).
Nemec(8), Bohlen e respetivos colaboradores(6) estudaram a influência da
posição ou o modo como a atividade sexual era realizada sobre a frequência
cardíaca e a tensão arterial. Em ambos os estudos, os sujeitos da amostra eram
homens casados e mantiveram relações sexuais com as respetivas mulheres, nos
seus domicílios e sob monitorização. Em ambos os estudos foram analisadas as
diferenças entre as posições sexuais “homem em cima” e “homem em baixo”,
sendo que Bohlen e colaboradores estudaram ainda a estimulação não coital do
homem pela esposa e masturbação do homem sem a esposa presente. Ambos
os estudos revelaram não haver diferenças significativas entre as duas posições
usadas durante o coito, ocorrendo em ambas gastos energéticos e esforço
moderados. Nas práticas sexuais sem coito foi exigido menos esforço cardíaco e
menos gasto energético, quando comparadas com as atividades coitais. Os picos
registados foram curtos e com reversão imediata após o orgasmo. No entanto,
Bohlen registou uma grande diferença entre resultados, com valores de gasto

1 Colégio Americano de Medicina Desportiva

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metabólico a variar entre 2 MET e 5,4 MET na posição “homem em cima”, o que
reforça a ideia da importância da avaliação caso a caso. Apesar disso, parece
não existir base fisiológica para recomendar uma posição sexual específica
no sentido de obter menor gasto cardíaco e metabólico. Embora o esforço
requerido durante a atividade sexual seja considerado moderado em todos
os estudos apresentados, vários aspetos podem ter enviesado os resultados.
Desde logo o facto da atividade sexual não ser uma atividade física constante,
tendo em conta a grande variabilidade de movimentos e variações da posição
corporal, bem como as variações de intensidade e ritmo dos movimentos, o
que dificulta a monitorização e medição dos parâmetros que permitem avaliar
o pico coital de consumo de oxigénio(9). Vários outros fatores podem modificar
a resposta fisiológica durante a atividade sexual, nomeadamente psicológicos
(sintomas de ansiedade e sintomas depressivos), inerentes a uma condição
orgânica (patologia cardíaca, disfunção sexual, diabetes, dislipidemia ou obe-
sidade), relativos ao estilo de vida (tabagismo, alcoolismo ou sedentarismo) e
relacionais (percepção de diminuição do desejo sexual por parte do parceiro,
parceiros ocasionais, relações extraconjugais)(9–13) .

DESENVOLVIMENTO

A doença cardiovascular tem impacto negativo na função sexual. A dis-


função sexual em homens e mulheres é considerada preditor independente
de eventos cardiovasculares adversos. De facto, os fatores risco que podem
contribuir para ambas as entidades são comuns: idade avançada, hipertensão
arterial, obesidade, disfunção do metabolismo da glicose e dos lípidos, síndrome
metabólica, tabagismo e estilo de vida sedentário. Todos estes fatores contri-
buem, individualmente ou em sinergia, para a disfunção endotelial no sistema
cardiovascular sistémico, afetando também a circulação sanguínea vaginal e
peniana(13,14). Esta disfunção endotelial é mais precocemente sintomática nos
órgãos sexuais devido ao menor calibre dos vasos, o que leva a que a disfunção
sexual se manifeste, habitualmente, entre 1 a 5 anos antes dos sintomas ou even-
tos cardiovasculares(12,13). Nos homens, esta diminuição do fluxo sanguíneo em
resposta à excitação sexual manifesta-se por uma menor capacidade de obter
e manter a ereção satisfatória e de a manter o tempo considerado suficiente

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


186
e, nas mulheres, por diminuição ou inexistência de lubrificação, sensibilidade
vulvar e ereção clitoriana. Na revisão sistemática apresentada por Nascimento
e colaboradores(14), a prevalência de disfunção sexual era elevada tanto para
homens como mulheres, atingindo valores de 64% para a disfunção erétil e
65% para a insatisfação com a relação sexual ou diminuição do desejo. Outros
fatores podem contribuir para a redução da atividade sexual, como a presença
de ansiedade e depressão, fatores de risco cardiovascular, como o tabagismo
ou a obesidade e a doença pulmonar(12,13).
Nos homens, os fármacos utilizados no tratamento da doença cardíaca,
como por exemplo as Tiazidas ou os Betabloqueantes, podem por si só causar
disfunção erétil. A Espirinolactona tem um efeito antiandrogénico nos homens
que se manifesta por diminuição da libido, disfunção erétil e ginecomastia. Nas
mulheres, as Tiazidas e a Aldosterona podem diminuir a lubrificação vaginal e
causar irregularidades no ciclo menstrual(9,13). É recomendado que, previamente
à instituição destas terapêuticas, se questione sobre a saúde sexual do casal,
de modo a que se consiga, mais facilmente, associar uma possível disfunção
à introdução do fármaco. No caso de surgir disfunção/queixa, é recomendado
o ajuste de terapêutica usando fármacos que tenham um efeito positivo na
função sexual, como por exemplo o Valsartan(13). No caso de necessidade de
recurso a um beta-bloqueante, optar pelo nebivolol, que pela sua seletividade
b1, tem menor risco de causar disfunção sexual. Nos casos em que o tratamento
não seja possível ajustar de outra forma, é oportuno adicionar um inibidor da
fosfodiesterase 5 (PDE5), no caso de disfunção erétil(9,13). Não há consenso
alargado de que os PDE5 aumentem o risco de evento cardíaco isquémico,
ainda que não devam ser utilizados concomitantemente com nitratos, pelo
risco de síncope. A par destas indicações, é importante avaliar cada caso indi-
vidualmente, averiguar se a disfunção sexual é situacional (só em determinada
situação) ou generalizada (em todas as situações), se ocorre na masturbação
ou só na atividade com parceiros e, no caso do homem, avaliar a existência de
ereções noturnas, elementos que podem orientar o raciocínio para uma questão
psicogénica ou iatrogénica.
Após o diagnóstico de doença cardíaca, da realização de um procedi-
mento cirúrgico cardíaco ou de um evento cardiovascular major, há tendência
para a redução da atividade sexual em homens e mulheres(9,15). Como preditores

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significativos de uma atividade sexual mais saudável, em indivíduos com doença
cardiovascular, estão o autoconceito mais elevado, perceção de autoeficácia,
menor ansiedade sexual, idade mais jovem e ser casado(12). A depressão e a dis-
função sexual estão frequentemente associadas e influenciam-se mutuamente,
afetando a qualidade de vida relacionada com a saúde(9). A depressão e a dis-
função sexual estão frequentemente associadas e influenciam-se mutuamente,
isto é, a depressão prejudica a saúde sexual, quer pela patologia em si (humor
deprimido, diminuição da energia, apatia, autoestima diminuída, isolamento),
quer pelos possíveis tratamentos instituídos (nomeadamente inibidores sele-
tivos da recaptação da serotonina e antipsicóticos) e a disfunção sexual, pode
preceder a instalação de sintomatologia depressiva ou ser preditora do seu
início. De qualquer forma, esta relação tem um impacto negativo na saúde glo-
bal, sendo a qualidade de vida relacionada com a saúde a principal afetada(9),
algo que pode comprometer a reabilitação e orienta para a necessidade da
abordagem multidisciplinar.
A ansiedade tem sido considerada um antagonista sexual e pode ter
impacto quer no doente quer no parceiro. No entanto, Barlow e colaboradores
em dois dos seus estudos, concluíram que a ansiedade, em níveis moderados,
é facilitadora da resposta sexual(16,17).
A preocupação e o medo, associados a crenças disfuncionais sobre a
doença, bem como as expectativas sobre a performance sexual, levam a que
durante a atividade sexual surjam pensamentos automáticos negativos no próprio
e nos parceiros. Esses mesmos pensamentos, bem como os traços caracteriais
individuais, levam a que a pessoa mantenha uma hipervigilância relativamente
ao surgimento de qualquer sintoma físico, o que é muito comum durante a
relação sexual, sendo qualquer sinal interpretado de forma catastrófica. Este
processo aumenta o “papel de espectador” na relação sexual e desvia o foco
atencional do foco erótico, sendo este o caminho para a disfunção se instalar.
Quer a pessoa doente, quer os parceiros, pela crença de que poderão ficar
pior ou fazer mal, têm medo e preocupam-se com sintomas associados a uma
normal atividade cardiovascular (taquicardia ou dispneia) ou, no caso de surgir
dor torácica, a ansiedade que esta despoleta pode ser traumática ou reativar
o trauma vivenciado, podendo condicionar evitamento da atividade sexual(9).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


188
A literatura é unânime, considerando a atividade sexual, em adultos sau-
dáveis no seu ambiente natural, como um esforço moderado e que o risco de
eventos cardiovasculares major durante a relação sexual é baixo(10). No entanto,
em indivíduos com doença cardiovascular pré-existente, a atividade sexual, tal
como a atividade física, pode exceder a capacidade física e dar origem a eventos
adversos major, incluindo morte súbita por paragem cardíaca(18).
A paragem cardíaca súbita durante a atividade sexual tem sido amplamente
estudada e a prevalência encontrada é baixa, contrariando o mito. De facto,
importantes estudos longitudinais, como o apresentado por Lange e colabora-
dores(18), que analisa dados colhidos ao longo de 45 anos e o de Sharifzadehgan
e colaboradores(19), com dados do Paris-Sudden Death Expertise Center, de um
estudo em curso desde 2011, constatam que a paragem cardíaca durante a ati-
vidade sexual é rara, situando-se abaixo de 1% de todas as paragens cardíacas
súbitas. Ao estabelecerem o perfil da pessoa que sofreu de paragem cardíaca
súbita durante o sexo, através da autópsia aos falecidos e das entrevistas aos
sobreviventes, forneceram dados importantes para a compreensão deste fenó-
meno. Este perfil corresponde a um homem, entre os 50 e 60 anos, com pelo
menos um fator de risco cardiovascular (obesidade presente em 65% dos casos)
mas geralmente assintomático(18,19). Em 80% dos casos, Lange e colaboradores
encontraram um aumento do peso do coração acima do esperado, sugerindo
hipertrofia cardíaca(18). As causas de morte ou internamento mais importantes
foram o síndrome coronário agudo e a doença coronária crónica(18,19).
As circunstâncias em que a atividade sexual decorria no momento da
paragem cardíaca também revelou semelhanças em ambos os estudos e cor-
robora a literatura existente. Na grande maioria dos casos, a relação sexual era
extraconjugal ou ocasional, com prostitutas por exemplo, e ocorreu em outros
ambientes que não a residência habitual da pessoa(18,19).
A infidelidade como fator de risco para eventos cardiovasculares major
começou a ser estudada na década de 80, quando um sujeito que participava
numa investigação e usava monitorização contínua teve relações sexuais com
a amante durante a tarde e com a esposa à noite. Os resultados surpreenderam
os investigadores: na relação com a amante a frequência cardíaca subiu de 96
para 150bpm e com a esposa de 72 para 92bpm(2,10,11). É possível que um encontro
sexual secreto, num ambiente não familiar, eleve significativamente a tensão

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arterial e a frequência cardíaca, levando a um aumento do consumo de oxigénio
pelo miocárdio. Acresce, ainda, que o parceiro tende a ser mais jovem e que pode
haver um aumento da frequência das relações(2,10,11) e que as mesmas ocorram
após comer e/ou beber em excesso(10). Importante e também indutor de stress
psicológico, capaz de aumentar o risco cardiovascular, é o sentimento de culpa
relativamente ao parceiro habitual após a relação extraconjugal(2,10). Um indutor
de stress psicológico após a relação extraconjugal, capaz de aumentar o risco
cardiovascular, é o sentimento de culpa relativamente ao parceiro habitual(2,10).
O estudo de Sharifzadehgan e colaboradores(19) destaca ainda uma questão
importante: apesar de todas as paragens cardíacas durante o sexo terem sido
presenciadas neste grupo, quando comparado com os grupos que sofreram
paragem cardíaca em repouso ou durante outra atividade não sexual, como a
prática desportiva por exemplo, o tempo de inicio das manobras de reanimação
foi mais longo, observaram-se menos ritmos desfibrilháveis iniciais e menor
taxa de sobrevivência.
O retorno à atividade sexual após o diagnóstico de doença cardíaca,
cirurgia cardíaca ou evento cardíaco major é, geralmente, gerador de medo e
insegurança nos doentes e seus parceiros pela perspetiva de que complica-
ções ou novos eventos possam ocorrer. De facto, mais de metade dos homens
e um quarto das mulheres com doença cardíaca referem ter pelo menos uma
dificuldade sexual(20). Estas dificuldades são variadas e podem ser relacionadas
com diversos fatores de ordem fisiopatológica, farmacológica ou psicológica.
Algumas pessoas a quem foram implantados dispositivos eletrónicos cardíacos
(pacemaker, cardioversor-desfibrilador implantável ou dispositivo de ressin-
cronização cardíaca) e os seus parceiros referem que adiam o inicio ou evitam
manter relações sexuais por receio de danificar os dispositivos durante a relação
sexual ou que no decurso desta haja ativação dos mesmos com o aumento da
frequência cardíaca(9).
Todos estes aspetos vêm reforçar a ideia de que a avaliação e estratificação
do risco são absolutamente essenciais para estabelecer a segurança no início e
manutenção da atividade sexual da pessoa com patologia cardíaca. No Quadro
1 apresentam-se os níveis de risco definidos por Levine e colaboradores para
a American Heart Association 2 (21,22).

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


190
Quadro 1. Níveis de risco para o início e manutenção da atividade sexual para a pessoa com patologia
cardíaca (21,22).
Nível de risco Perfil do paciente
Pacientes para quem a atividade sexual não representa significativo
risco cardíaco. Geralmente podem realizar exercício de intensidade
moderada, sem sintomas. Incluem-se indivíduos revascularizados
com sucesso (revascularização do miocárdio, stent ou angioplastia),
Baixo risco
pacientes com hipertensão controlada assintomática, com doença
valvular leve e com disfunção ventricular esquerda/insuficiência
cardíaca (NYHA classes I e II) que alcançaram 5MET sem isquemia
em provas de esforço recentes.
Pacientes com problemas cardíacos graves ou instáveis, sintomá-
ticos de forma moderada ou severa. Incluem-se pacientes com
angina de peito instável ou refratária, hipertensão não controlada,
insuficiência cardíaca congestiva (NYHA classe IV), enfarte do
miocárdio recente sem intervenção (2 semanas), arritmia de alto
Alto risco
risco (taquicardia ventricular induzida pelo exercício, cardiover-
sor-desfibrilador implantado interno com choques frequentes e
fibrilhação auricular mal controlada), cardiomiopatia hipertrófica
obstrutiva com sintomas graves e doença valvular moderada a
grave, particularmente estenose aórtica.
Incluem-se aqueles com angina pectoris estável leve ou moderada,
enfarte do miocárdio (2 a 8 semanas) sem intervenção, que aguar-
dam eletrocardiografia de exercício, insuficiência cardíaca congesti-
va (classe III da NYHA) e sequelas não cardíacas de doença ateros-
clerótica. A prova de esforço é necessária para pacientes de risco
indeterminado antes de retomar a atividade sexual. Com base nos
Risco indeterminado resultados da prova de esforço, os pacientes serão reclassificados
em baixo ou alto risco. Os testes de stress químico (por exemplo,
dipiridamol ou adenosina com imagem nuclear) são adequados
se o paciente não puder concluir um teste ergométrico padrão
(por exemplo, devido a uma condição incapacitante, como artrite).
Pacientes com disfunção erétil podem exigir avaliação para doença
vascular e subsequente reclassificação para baixo ou alto risco.

A American Heart Association2 subscreveu recomendações gerais para


atividade sexual e doença cardiovascular, numa declaração científica(21), que
pode ser observada no Quadro 2.

2 Associação Americana do Coração

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Quadro 2. Recomendações da American Heart Association (21).
Recomendação Nível de evidência
As mulheres com doença cardiovascular devem ser aconselha-
das quanto à segurança e conveniência dos métodos contrace- I C
tivos e gravidez, quando apropriado
É razoável que os pacientes com doença cardiovascular que
desejam iniciar ou retomar a atividade sexual sejam avaliados IIa C
com histórico médico completo e exame físico
A atividade sexual é razoável para pacientes com doença car-
diovascular que, na avaliação clínica, estão determinados como IIa B
com baixo risco de complicações cardiovasculares
O teste ergométrico é razoável para pacientes que não estão em
baixo risco cardiovascular ou risco cardiovascular desconhecido
IIa C
para avaliar a capacidade de exercício e o desenvolvimento de
sintomas, isquemia ou arritmias
A atividade sexual é razoável para pacientes que se podem exer-
citar > 3 a 5 MET sem angina, dispneia excessiva, alterações IIa C
isquémicas do segmento ST, cianose, hipotensão ou arritmia
A reabilitação cardíaca e o exercício regular podem ser úteis
para reduzir o risco de complicações cardiovasculares com IIa B
atividade sexual em pacientes com DCV
Pacientes com doença cardiovascular sintomática instável, des-
compensada e/ou grave devem adiar a atividade sexual até que III C
a sua condição seja estabilizada e otimizada
Pacientes com doença cardiovascular que apresentam sinto-
mas cardiovasculares precipitados pela atividade sexual devem
III C
adiar a atividade sexual até que sua condição seja estabilizada
e otimizada

Num outro estudo, publicado por Lange e Levin(23), são indicadas as


recomendações sobre a atividade sexual no paciente com doença cardíaca
isquémica, que podem ser consultados no Quadro 3.

Quadro 3. Recomendações sobre a atividade sexual no paciente com doença cardíaca isquémica.
Recomendação Nível de evidência
Angina estável e doença cardíaca isquÉmica estável
É razoável que os pacientes com doença cardiovascular que
desejam iniciar ou retomar a atividade sexual sejam avaliados IIa C
com histórico médico completo e exame físico
A atividade sexual é razoável para pacientes com angina leve
IIa B
ou sem angina
O teste ergométrico é razoável para pacientes sem risco car-
diovascular baixo ou risco cardiovascular desconhecido, a fim
IIa C
de avaliar a capacidade de exercício e o desenvolvimento de
sintomas, isquemia ou arritmia

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


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Recomendação Nível de evidência
A atividade sexual é razoável para pacientes que se podem exer-
citar ≥3 a 5 MET sem angina, dispneia excessiva, alterações IIa C
isquémicas do segmento ST, cianose, hipotensão ou arritmia
A reabilitação cardíaca e o exercício regular podem ser úteis
para reduzir o risco de complicações cardiovasculares com a IIa B
atividade sexual em pacientes com doença cardiovascular
Pacientes instáveis
Pacientes com doença cardiovascular que apresentam sinto-
mas cardiovasculares precipitados pela atividade sexual devem
III C
adiar a atividade sexual até que sua condição seja estabilizada
e gerida de forma ideal
A atividade sexual deve ser adiada para pacientes com angina
instável ou refratária até que a sua condição seja estabilizada III C
e gerida de forma ideal
Pós-enfarte do miocárdio
A atividade sexual é razoável uma ou mais semanas após o en-
farte do miocárdio sem complicações, se o paciente estiver sem IIa C
sintomas cardíacos durante atividade física leve a moderada
Após revascularização coronária
A atividade sexual é razoável para pacientes submetidos a re-
vascularização coronária completa e pode ser retomada vários
dias após a intervenção coronária percutânea ou 6 a 8 semanas IIa C
após a cirurgia de revascularização do miocárdio, desde que os
locais de acesso estejam bem cicatrizados
Para pacientes com revascularização coronária incompleta, o
teste ergométrico pode ser considerado para avaliar a extensão IIa C
e a gravidade da isquemia residual
Medicação cardiovascular e função sexual
A medicação cardiovascular que pode melhorar os sintomas e a
sobrevivência não deve ser retida devido a preocupações sobre III C
o possível impacto na função sexual
Inibidores da PDE-5 para disfunção sexual
Inibidores da PDE-5 são úteis no tratamento da disfunção erétil
I A
em pacientes com doença cardiovascular estável
Inibidores da PDE-5 não devem ser usados em pacientes me-
III B
dicados com nitratos
Os nitratos não devem ser administrados a pacientes nas 24
horas após a administração de sildenafil ou vardenafil ou nas III B
48 horas após a administração de tadalafil
Aconselhamento a pacientes e parceiros
A ansiedade e a depressão em relação à atividade sexual devem
I B
ser avaliadas em pacientes com doença cardiovascular
O aconselhamento de pacientes e cônjuges/parceiros pelos
prestadores de cuidados de saúde é útil para auxiliar a retoma I B
da atividade sexual após um evento cardíaco agudo
Fonte: Traduzido e adaptado de Lange e Levin, 2014(23).

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Uma das condições particulares, raras mas preocupantes, é o enfarte do
miocárdio associado à gravidez. Neste caso, as mulheres devem ser referencia-
das para reabilitação cardíaca (recomendação classe I). Devido à sua particular
condição, no caso de mães recentes, é possível que não consigam participar em
programas de reabilitação cardíaca estruturados par a população em geral pelo
que se recomenda que, para aumentar a adesão, sejam desenhados programas
mais flexíveis e adaptáveis e preferencialmente domiciliários(24,25).
O aconselhamento sexual é fundamental para estabelecer a confiança e
segurança da pessoa ao retomar a sua atividade sexual. Embora as diretrizes
Americanas e Europeias recomendem que todos os pacientes devem receber
aconselhamento relativo à atividade sexual, o que se verifica é que cerca de
metade dos paciente referem não se sentirem devidamente informados e, entre
os profissionais de reabilitação cardíaca, 61% referem que nos seus serviços
raramente são abordadas questões referentes a problemas sexuais(9,12,20).
Os pacientes que desejem abordar questões sexuais, geralmente per-
cebem menos barreiras à comunicação do que os profissionais de saúde, que
temem causar ansiedade e desconforto ao levantar questões sexuais com
seus pacientes(26). Num estudo desenvolvido em 2012, sobre o aconselhamento
sexual de pacientes com insuficiência cardíaca, 75% dos enfermeiros que
responderam ao questionário enviado pelos investigadores referiu sentir uma
certa responsabilidade em discutir a saúde sexual dos pacientes. No entanto,
na prática, 61% desses enfermeiros raramente ou nunca abordaram a sexuali-
dade. As barreiras identificadas e que impediam os enfermeiros de abordar a
sexualidade incluem falta de política organizacional, falta de treino e não saber
como abordar os pacientes(27).
Com base na estratificação de risco, foi desenvolvido o modelo de aconse-
lhamento baseado no acrónimo KiTOMI – kissing (Ki), touching (T), oral sex (O),
masturbation (M) and vaginal or anal intercourse (I)3. Usando um fluxograma,
estabelecem-se as recomendações adequadas a cada nível: pacientes de baixo
risco podem envolver-se em atividades KiTOMI, pacientes de risco indeterminado

3 Beijo (Ki), Toque (T), Sexo Oral (O), Masturbação (M) e Relação Sexual, Vaginal ou Anal (I)

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


194
é considerado seguro qualquer um dos atos exceto a relação sexual (KiTOM) e
os pacientes de alto risco não devem ir além de KiT. Os pacientes aconselha-
dos serão tranquilizados e adequadamente informados sobre como retomar
gradualmente a atividade sexual habitual após um evento ou procedimento
cardíaco importante, começando com o KiT e avançando progressivamente
para o KiTOM, até que todas as atividades do KiTOMI sejam permitidas(9).
Cada caso é único e individual e merece uma atenção específica e uma
atenção empática de forma a estruturar um plano individualizado e promotor
de bem-estar. Há necessidade de discutir cada caso de modo individual, com
o terapeuta de referência, sendo fundamental que se introduza o tema e, con-
soante a abertura dada pela pessoa, dar sugestões sobre a saúde sexual e, no
caso de existir necessidade, encaminhar para terapia sexual.

CONCLUSÃO

A reabilitação cardíaca e o exercício regular poderão ser estratégias para


pacientes com doença cardiovascular estável, que planeiem manter-se ativos
sexualmente(21). A Organização Mundial da Saúde considera que a saúde sexual
é parte integrante da qualidade de vida e saúde em geral.
A evidência comprova que pessoas com patologia cardíaca que partici-
pam regularmente em programas de exercício físico e que, por consequência
aumentem a sua capacidade física e funcional no desempenho das atividades
de vida diária, têm também ganhos no que diz respeito à atividade sexual com
menores frequência cardíaca e VO2(2,9). Este facto reforça a ideia de que todos
os pacientes devem ser incluídos em programas de reabilitação cardíaca.

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ISBN 978-65-5360-451-3 - Vol. 1 - Ano 2023 - www.editoracientifica.com.br


197
10

FROM EDUCATION FOR HUMAN RIGHTS


TO THE ‘GENDER IDEOLOGY’
MOVEMENT: A FOUCALDIAN DISCOURSE
ANALYSIS OF THE GENESIS IDEOLOGY’S
TOOL

Danni Conegatti

10.37885/230814158
ABSTRACT

This paper investigates human rights education in Brazilian schools and the
escalation of the ‘gender ideology’ discourse, its strategies and effects. It discusses
the context in which this discourse became possible, mainly the ineffectiveness
of the proposed political and legal actions intended to ensure human rights are
part of the school curricula, which has led to the rise of the ‘gender ideology’
movement. Foucauldian discourse analysis is used to study the ‘gender ideo-
logy’ movement’s premisses and to put together a ‘gender ideology’ discourse
as part of a bigger agenda, identified here as Genesis ideology discourse. This
analysis reveals the ‘gender ideology’ discourse sustains the Genesis ideology by
creating moral panic towards the teaching of human rights and by superficially
claiming objectivity and plurality of views as teaching principles, a demand their
own discourse seems to strongly contradict.

Keywords: Gender Ideology, Human Rights Education, Discourse Analysis,


Fundamentalism, Brazil.

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INTRODUCTION

In the last eight years the field of education in Brazil has been a locus of
fervent political contentions. While nothing new has emerged, certain preexisting
quandaries have undergone a marked escalation. One of them is the prolifera-
tion of the beliefs and the term ‘gender ideology’1, which is used by the ‘gender
ideology’ movement to criticize gender and sexuality studies, social movements
and any contemporaneous manifestation that proffers a more advanced pers-
pective on the concept of human rights2. Within educational institutions, this
mobilization has discovered a platform to combat any gender and sexuality
comprehensive methodology that offers a broader sense of these subjects
beyond the Christian and exclusively biological-centric way of thinking. To do
so, some religious leaders and right-wing politicians have been investing in
raise conspiracy theories by warning that, when researchers, professors and
teachers investigate or debate gender and sexuality through a socio-cultural
and linguistic perspective, they are not teaching scientific knowledge, but rather
creating a ‘gender ideology’. As a result, students are supposedly persuaded to
believe in things that go against the ‘natural’ order.
This investigation aligns itself with Martins Teixeira (2019) who, through
a brief but consistent article, approached some of the political, economic and
social conditions in Brazil that led to the escalation of the ‘gender ideology’ move-
ment and its social effects; with Lionço et al. (2018) who explored the so-called
scientific works produced by the ‘gender ideology’ supporters, exposing their
lack of commitment to ethical and scientific postulates; and finally, with Frigotto
(2017) who investigated some of the strategies of the School Without Political
Parties (Escola Sem Partido) movement.
Based on this phenomenon, this paper is an investigation of some of the
strategies adopted by the ‘gender ideology’ movement in search of its discourse
and the beliefs that sustain it. In this regard, it will be addressed the gaps present

1 The use of this terminology with quotation marks is defended by Junqueira (2018) to indicate that this is in fact
an expression not accepted by the gender and sexuality studies.
2 In Brazil subjects like gender and sexuality are considered part of the education for human rights, both by
academia and by most of the legal documents cited here.

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200
in Brazil’s education system that led to the proliferation and intensification of
the ‘gender ideology’ movement, including the lack of State Policy regarding
education for human rights and the lack of proper teacher training regarding
a pedagogical approach to gender and sexuality. Then, this paper will briefly
address the ‘gender ideology’ movement’s history, to set the context in which
the ‘gender ideology’ movement’s discourse is analyzed through some of its
campaigns and propositions, in order to expose its political intentions to the
point in which what is reveal is, in fact, that the ‘gender ideology’ movement is
part of a strategy focused on guarantee the legitimacy of a Genesis ideology
(Maranhão F., 2018).
In the process of exploring the strategies of the ‘gender ideology’ move-
ment, it is undertaken a Foucauldian discourse analysis. This lens enables this
paper to identify a discourse - the ‘gender ideology’ discourse - that has been
reinforced, thus composing a body of statements that are organized in a syste-
matic way, supported by ‘a set of conditions of existence’ (Foucault, 2005, p. 124).
Hence, the ’gender ideology’ discourse, would be the one that would endorse the
emergence of a truth (Foucault, 1989). This discourse, when scrutinized, leads to
a bigger ideological purpose called here Genesis ideology (Maranhão F., 2018).

Education for human rights: from guidelines to (the absence of) teacher
training

In the year 2014, Brazilian unions and social movements along with
the federal government started to work on the PNE (National Plan for Educa-
tion). In the same year, a bill named School Without Political Parties (Escola Sem
Partido), conceived as part of the ‘gender ideology’ movement, was proposed
by a lawyer called Miguel Nagib in the Federal Congress, which even though
being rejected - or maybe because of it - gave rise to similar bills at the state and
municipal levels. Given the bill’s name, one might infer that it would intend to
assure the absence of political parties inside schools, in another words, assure
their freedom from political influences. However, this bill, among other things,
aimed to restrain the teaching of human rights by claiming that social move-
ments along with Brazil’s MEC (Ministry of Education) were trying to force the
inclusion of these subjects in the PNE. Despite its failure to pass at the federal

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201
level, it inspired a movement invested in delegitimize the teaching of any social
and/or cultural perspective of gender and sexuality.
In fighting to keep gender and sexuality issues out of the last National
Plan for Education, the ‘gender ideology’ movement was able to erase a key
part of the text of the PNE, specifically the one that denounced and pledge to
overcome racism, gender and sexual discrimination as part of a system that
sustains educational inequalities (Brasil, 2015). Along with this change in PNE’s
final text, all references to any subject related to gender and sexuality were
suppressed. Subsequently, the same movement also attempted (and mostly
succeeded) to eradicate all references to gender, diversity and sexuality from
regional Educational Plans. Therefore, because of the ‘gender ideology’ move-
ment through the popularization of the School Without Political Parties bill, the
PNE failed to guarantee the right to make gender and sexuality subjects part
of school curricula.
Regardless this outcome, it is important to ask: if the original text of the
PNE had been approved, would it have changed anything? In Brazil, numerous
legal documents are already supposed to guarantee the teaching of human
rights in school curricula. For Silva and Tavares (2013), two of them guide its
implementation: The Human Rights National Program I, II and III (PNDH), the
most recent version being from 2010, and the National Human Rights Educa-
tional Plan (PNEDH), of 2006. Both consider human rights to be State Policy
and stipulate ways to ensure that is the case. They express Brazilian necessities
regarding the promotion of human rights by offering guidelines for both ele-
mentary and college education and proposing themes to be addressed both in
school curricula and teacher training, among other things. Two of the highlights
of these documents are the demystification of impartiality when selecting and
excluding subjects from school curricula and also the commitment to the tea-
ching of ethical values and conduct. However, the PNDH website has not been
active since 2017, and the PNEDH is not even mentioned in the last National
Plan for Education (2014), which only contains one short sentence regarding
the promotion of democracy and human rights.
But those are not the only guidelines that supposedly ensure the approach
to human rights in education. There are laws 10.639/03 and 11.645/08, about
ethnicity and race, ECA (Child and Adolescent Act) and the Maria da Penha law.

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


202
There are also the PCNs (National Curricular Parameters) that since 1997 should
guarantee the right of students to learn about gender and sexuality through a
transversal perspective, which means that gender and sexuality among other
topics should be discussed in all school subjects, from Languages to Math. Lastly,
since 2013, the National Curricular Guidelines for Basic Education have sought
to safeguard the inclusion of those subjects in school curricula. Despite their
absence in the PNE, the PNLD3 (National Program of Textbook) considers all
these legal documents and laws to be important guides to ensure the presence
of human rights topics in school textbooks.
The 2009 National Plan for Citizenship and Human Rights of Lesbian,
Gay, Bisexual, Transexual and Transgender and the Brazil Without Homophobia
Program created by the Federal Government in 2004 also include guidelines for
education. In addition, there are institutions like the Secretariat of Continuing
Education, Literacy and Diversity (Secadi) created in 2004, which is responsi-
ble for policy implementation regarding diversity in education, but was closed
during Bolsonaro’s Government.
That considerable amount of legal documents, guidelines and federal
agencies dating from the last twenty years in Brazil, counterpointed with the
current backlash in gender and sexuality studies leads to this inevitable question:
shouldn’t those be enough to ensure human rights’ place in the school curricula?
All of these documents, guidelines, and institutions, however, are not part
of an integrated action, but rather they represent isolated initiatives. Therefore,
the inclusion of human rights in school curricula was compromised (Silva and
Tavares, 2013). As a result, there are guidelines dated from twenty years ago
that most people, including teachers, are unaware of.
According to Silva and Tavares (2013), the lack of proper teacher training
is one of the major problems preventing the consolidation of teaching for human
rights. Specifically regarding gender and sexuality subjects, Felipe and Guizzo
(2016) found that there is a great deal of insecurity among teachers regarding
the handling of these topics at schools. As a result, despite numerous guidelines,

3 This Program selects and then distributes textbooks to be used in all Brazilian’s public schools.

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teachers have not been prepared for teaching this kind of subject. A study con-
ducted in Brazil between 2003 and 2008 (Unbehaum; Cavasin; Gava, 2010) into
gender and sexuality classes in teacher training courses showed that of the 989
colleges and universities only 41 of them included these subjects in their programs.
The same study also showed that in most cases the classes were optional, so the
teacher undergoing training could choose not take them. Another study, from
2021 (Rizza; Ribeiro, 2021), presented 137 gender and sexuality courses as part
of 27 teacher training programs considering all of Brazil’s universities. However,
the same research revealed that only 20 of those courses are mandatory, which
shows that, depending on the teacher training program a student chooses, they
might not have to study this subject at all.
Withal, in 2015 a study from UNESCO presented an astonishing finding
about Brazil: 58.27% of Brazilian colleges and universities offer classes about
gender and sexuality in the core curriculum of teaching training courses (Cruz,
2015). This is a remarkable number, especially for 2015, but the methodology and
results of this study need to be carefully examined. From 2276 teacher training
colleges in Brazil only 300 responded to the survey. Based on this, the research
coordinator suggested that the high percentage could be explained by the fact
that institutions with some commitment to the subject are more likely to res-
pond. This is an important hypothesis given that only 19.42% of the institutions
responded they do not offer classes about gender or sexuality. When the survey
asked in which courses gender and sexuality studies are offered there were no
responses from courses like physics, math or chemistry. Regarding biology,
where those issues are usually addressed in a biology-centered normative way,
only 16.7% responded that they also dealt with the social aspects of gender
and sexuality. In this sense, although the study presented important data, it
cannot ensure its findings reflect Brazil’s situation regarding teacher training’s
commitment to human rights education.
The above-mentioned proposal from the PCNs that gender and sexuality
be addressed by all school subjects is clearly ideal, because it recognizes that
gender and sexuality inequity underlies all areas of knowledge, making science
equally responsible for it. However, it also made it very simple for school curricula
to ignore the importance of addressing these subjects on the grounds of lack of
time or other excuses. In this sense, it is evident that, even with an impressive

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


204
amount of guidelines, education for human rights did not become State Policy
in Brazil. That, along with the absence of appropriate teacher training, and the
political and economical circumstances discussed by Martins Teixeira (2019),
created the perfect context for a substantial backlash against human rights.
Hence, what can be found here is that the lack of State Policy alongside the
lack of teacher training weakened the political and scientific movement invested
in guarantee that human rights legitimately become a part of school curricula.
When the discussions for the National Plan for Education started in Brazil, the
attempts to ensure the teaching of human rights at schools, rather than stren-
gthening the cause, ended up offering the perfect circumstances for a backlash
in the form of the emergence of the ‘gender ideology’ discourse.

The escalation of the ‘gender ideology’ discourse and its premisses

The creation of the ‘gender ideology’ movement and the School Without
Political Parties bill has led to the forging of a curious alliance. Along with Catholics
and Pentecostal parties and churches, secular entrepreneurs have also invested
in the movement, the latter particularly interested in fighting what they have been
calling ‘Marxist indoctrination’ in school curricula. Miskolci (2018) explains that
this alliance between religious and non religious parties was based on the first
version of the School Without Political Parties movement, which mainly sought
to prohibit the teaching of Marxist theories in school.
The bill has not yet become law, mostly because its propositions pre-
sent numerous violations to Brazil’s Constitution. Despite that, it succeeded in
strengthening a social movement focused on promoting the idea that educa-
tion for human rights is actually a conspiracy movement trying to indoctrinate
children into ‘changing their natural ways’, with plans to eradicate the nuclear
heterosexual Brazilian Christian family. As Martins Teixeira (2019) presented in
his paper, rich churches in Brazil, which also control part of media, along with
political parties and a number of leaders and influencers have been working to
disseminate this idea. Consequently, scientific researchers who study gender
and sexuality suddenly are being referred to as ‘gender ideologists’ and their
theories ‘gender ideology’ i.e. an ideological way of persuading society and
foremost its children. This campaign has been so intense in Brazil that in 2017,

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Judith Butler, an internationally known philosopher, was attacked by Brazilian
fundamentalists who called her ‘witch’ because of her work with gender, when
in fact at the time Butler was in Brazil to talk about her latest book, whose main
topic was not related to gender and sexuality.
The plurality of views is undoubtedly an essential part of a democratic
system. Therefore, the ‘gender ideology’ movement has an absolute right to
defend its position. However, one must ask: what kind of strategies does it apply
in the process of defending its point of view? How does the ‘gender ideology’
movement justify or sustain its beliefs?
Part of the answer can be found in the history of that movement. In fact,
this way of referring to gender and sexuality studies and more progressive views
was not created by the School Without Political Parties bill. Furlani (Dip, 2016)
explains that in 1998 there was an episcopal conference of the Catholic Church
in Peru, called Gender Ideology: its dangers and reach. According to Furlani, the
name refers to Dale O’Leary’s (1996) book entitled The Gender Agenda: redefining
equality. O’Leary wrote this book to criticize both the appropriation of gender as
a concept by the feminist movement and of gender as an analysis category by
the UN, which intended to create policies to promote gender equality. O’Leary
comes from the pro-life movement and recognizes gender as a ‘radical feminist
ideology’ (Corrêa, 2017).
In Brazil, however, O’Leary’s book and the subsequent Church events
about what it had been calling ‘gender ideology’ gained visibility with a book
from the Argentine lawyer and pro-family activist Jorge Scala. His book, named
Gender Ideology: Gender as a power tool, was published in Brazil in 2015 under the
curious title ‘Gender Ideology: neototalitarism and death of the family’ (Machado,
2018). The ‘gender ideology’ movement in Brazil had been growing considerably
at that time, mostly because of the repercussions from the 2014 PNE.
Being the director of the Sophia Perennis Catholic Institute and the pre-
sident of the InterAmerican Biopolicy Observatory, two institutions invested in
promoting the ‘gender ideology’ movement’s agenda, Felipe Nery had appeared
in several videos explaining what they understand by ‘gender ideology’. His
explaining enlightens some of the premisses of the movement. In one of these

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


206
videos, precisely about the PNE4, Nery states that gender and sexuality studies
(which he calls ‘gender ideology’) suggest all children must experiment with all
kinds of sexualities5, while simultaneously an image is shown of a girl and a boy
with the words homem (man) and mulher (woman) crossed out.
This video presents two main strategies. The first is expressed in the claim
that gender and sexuality studies aim to encourage children to experiment with
their sexualities. By saying that, Nery is actually supporting a narrative that indi-
cates the existence of a hidden agenda towards gender equality. In this sense,
the use of the word ‘must’ is a way to precisely make it believable that there is
some kind of obligatory demand regarding the behavior of children imposed
by the deconstruction of gender and sexuality norms. More than that, Nery,
representing the beliefs of the ‘gender ideology’ movement, carefully choses to
focus on sexual (and gender, as it will be discussed) diversity because that is
the subject of human rights that general people usually have trouble unders-
tanding. In fact, Nery left out a number of important impacts that working with
gender and sexuality in the classroom might have in the children’s lives. He con-
veniently forgets to mention that, by discussing gender and sexuality issues
in schools, children can learn how to protect themselves from unsolicited or
inappropriate interactions. He also forgets to emphasize human rights focus
in promoting gender equality across all spheres, and the kind of impact that
approaching these issues can have in a kid’s expectations towards their future,
especially for young girls. His choice of focusing on one of the many impacts
that the approaching of gender and sexuality at schools might have - in this
case, the possibility of children understanding that there are many ways to safely
express gender and sexuality -, as well as his unsubstantiated claims regarding
the effects that these discussions might have on children, are part of a strategy
aimed at sparking conspiracy theories about a subject which has been poorly
communicated by the educational system.

4 At 49 seconds of a Youtube video entitled: ‘tudo sobre a ideologia de gênero e a BNCC – Prof. Felipe Nery’,
available from: https://www.youtube.com/watch?v=EjlOGUz5vyA Acess on 18 Mar 2020
5 In the original: ‘Todas as crianças devem experimentar todas as formas de sexualidade possíveis’.

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The second strategy is a confusion regarding these two concepts that
empowers his arguments. In his claim, Nery ignores the fact that gender and
sexuality are different aspects of an individual’s constitution. To this extent, while
he addresses the sexuality issue, both the images used and the words man and
woman actually reveal a focus in gender, implying that as an effect of learning
about gender and sexuality, children would not have the right to express their
assign at birth gender anymore. Consequently, through Nery’s speech gender
and sexuality are conceived as one and the same, precisely supporting the way
in which society elects the heterosexual, cisgender way of being as the ‘natural
one’, opposed to any other expression of gender and/or sexuality. In other words,
by confusing gender with sexuality, Nery supports the cisgender heterocentric
point of view to which there is no difference between gender and sexuality since
it is the heterosexual matrix that constitutes gender (Butler, 2002). One could
argue that Nery’s speech is not enough to set an agenda for the ‘gender ideology’
movement, however these same strategies can be easily found in unaccredited
handouts the InterAmerican Biopolicy Observatory recently claimed to have
released (Dip, 2016).
Even though Nery’s video is from a time in which PNE was being discussed,
his views certainly lead to more recent events that can be addressed. Together,
they even reveal that there is more to the ‘gender ideology’ movement besides
the ‘gender ideology’ itself.

From ‘gender ideology’ to Genesis ideology: the true colors of the movement

In Brazil’s 2018 elections, the so-called Christian parliamentary group


grew more than 15%, with impressive election results among senators, going
from three to seven members (Damé, 2018). During 2022, the number of federal
representatives increased to 189 (of 594) and included representatives from 80%
of the Brazilian political parties. With this significant growth and the political
alliances this group has been able to forge, religious beliefs have become political.
In 2022, Brazil experienced one of its fiercest political conflicts. This scenario
has led many research institutes to look for answers to Brazil’s apparent polari-
zation. The Datafolha Institute was able to identify religion as a possible factor
influencing the decisions of Brazilian voters, showing that, for more than half of

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208
the population (56%), politics and religion must go hand in hand. In addition, the
institute disclosed data on another important statement: “It is more important
that the political candidate upholds family values than has good suggestions
for business,”6 for which the results were very similar to the first inquiry, having
60% of people totally or partially agreeing with this statement – 38% totally and
22% partially (Gielow, 2022).
The above data support the claim that Brazil remains a predominantly
Catholic (49%) and Protestant (26%) country (Carrança, 2022). They also reveal
that religion has been and is an important factor in determining political issues,
going beyond personal beliefs and through the walls of religious places. Although
in 2022 Jair Bolsonaro lost the Brazilian elections to Luis Inácio Lula da Silva,
a left-wing representative, the presidential election that made Jair Bolsonaro
president in 2018 involved all sorts of miscomprehension and fake news about
hot topics at the time - maybe to a bigger extent than in the last elections -,
including the moral panic incited by the ‘gender ideology’ movement since 2013.
Amongst all events that could be addressed here, one that deserves attention
is the day Jair Bolsonaro, at the time candidate in the presidential election and
publicly aligned with the ‘gender ideology’ movement, went to Brazil’s most
popular tv news show7 with the purpose of denouncing a book about gender
and sexuality that, according to him, was being distributed among schools
along with what he had called a ‘gay kit’ i.e. a kit to turn kids into homosexuals,
something later proved wrong (Salgado, 2018). In fact, the so-called ‘gay kit’,
which had no relation to the book Bolsonaro showed in his interview, was
a reference to a pedagogical material called ‘School Without Homophobia’,
created by Brazilian NGO’s and proposed to be distributed to public schools
during Dilma Rousseff’s government, in 2011. However, due to public pressure
and moral panic it was not approved.
Bolsonaro was able to sustain a political polarization through the rising
of moral panic in many areas, which turn the ‘gender ideology’ discourse an

6 In the original: ‘É mais importante um candidato defender os valores da família do que ter boas propostas para a
economia’.
7 The complete interview is available at https://globoplay.globo.com/v/6980200/ . The lies about the existence of
a ‘gay kit’ begin at 20’50’’ of the video.

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important tool for him. By saying that students were going to receive a ‘gay kit’,
he evoked power relationships invested in the ‘gender ideology’ discourse since
Nery’s claims in 2013, sustaining its strategy of forging a moral panic towards
the possibility of students having contact with progressive views of gender
and sexuality. The ‘gender ideology’ movement was able to forge a discourse
through Bolsonaro’s and other popular leaders claims. Due to this, macro-po-
litical discussions have been replaced by the belief that social problems are a
result of behavioral changes in individuals, which should be opposed in order
to prevent youth from becoming corrupted by such changes (Miskolci, 2018).
A significant amount of evidence produced by supporters of the ‘gender
ideology’ discourse exposes their intention of provoking moral panic towards
human rights education. However, this strategy comes along with another
curious one: this movement also advocates for the safeguarding of signifi-
cant educational principles, like the one that seeks to assure that students be
exposed to a plurality of views, especially when learning about social pheno-
mena. An interesting example of this involves the proposition by the School
Without Political Parties bill of placing a poster inside each classroom in Brazil
that would state every teacher’s duties. Among these there is one focused on
plurality of perspectives. Such need is supported by the bill by asserting that
teachers often demonstrate a bias towards their own personal beliefs and may
disregard alternative perspectives.
As Foucault (1989; 2005) explains, there is always a given discourse socially,
historically and culturally situated through power relationships producing ‘the
truth’. Hence, truth can never be objective, but rather changeable based on a
specific time and location. That seems to be the case with the ‘gender ideology’
discourse. It appears to prioritize the preservation of the prevailing societal
norms by constructing a narrative that portrays education for human rights as a
tactic to eliminate the Christian heterosexual nuclear family, a plot where human
rights seek to impose one view in expense of others. In spite of that, the asser-
tions made by both Felipe Nery and Jair Bolsonaro suggest that the principles
of the ‘gender ideology’ movement are incongruous with this purported claim.
Consequently, while demanding impartiality and plurality of views at schools,
it actually condemns any progressive perspective that advocates pluralism on
issues such as family, religion, sexuality and gender.

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210
The ‘gender ideology’ discourse cannot sustain its own demand for a
non-biased teaching of gender and sexuality due to its own inclination towards
promoting a partial perspective on gender and sexuality, which is consistent
with the Genesis ideology discourse. This discourse can be defined as:

[an] ‘ideology’ [in which] God created the woman and commanded
the couple: ‘Be fruitful and multiply and fill the earth and subdue
it’. (Genesis 1.28)… Therefore, God created mankind in His own
image, in the image of God He created them: man and woman he
made them (Genesis 1.27) (Maranhão F, 2018, p.115-116).

According to Maranhão F. (2018), the above quote comes from an online


post made by pastor Adir Eleotério de Almeida, who belongs to the Medina
Methodist Church in Minas Gerais. Such ideology relies on an ancient inter-
pretation based on the Holy Bible. Nowadays, however, the Genesis ideology
has transcended the biblical pages, the walls of worship and masses, and an
ordinary post from an unknown pastor to invade the education world. A simple
internet search directs the user to a multitude of texts and videos on the sub-
ject, always resorting to the biblical explanation of human creation. From such
an understanding of human origins arise some hypotheses that are at odds
with the scientific achievements in the field of social sciences and humanities.
The first is the idea that there are only two sexes. These sexes would be due
in their phenotypic differences to two specific and well-defined body types,
the appearance of the genitals being the main sexual determinant. It is thus a
concept that rejects all sexual variations as well as the notion of gender as a
social discursive construct, even ignoring important scientific findings in biology
field - like the ones Fausto-Sterling’s (2000) explores in her research. Another
assumption of this religious ideology relies on a hierarchy view of the sexes,
which defines the woman as an inferior being whose creation was conditioned to
the creation of the man. Thus, an ideology that relies on both religious beliefs as
well as simplistic biological concepts to guarantee the scientific legitimacy and
veracity of a myth which sustains the so-called biological and social superiority
of men. In doing so, it invokes the imperative that the only possible relationship
is the heterosexual and conjugal one, categorizing any other relationship as an
ideological indoctrination imposed by malevolent forces.

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Therefore, these aspects demonstrate the interrelation between the ‘gender
ideology’ and the Genesis ideology discourses, as they both serve to achieve the
same objective. The former is employed by the latter as a means to stigmatize
any other gender, sexuality, or sex notions that contradict or provide alternative
viewpoints on human creation and its societal structure. The term ‘ideology’ is
implied to generate a moral panic, perceiving these theories as a threat to Brazi-
lian students, instigated by educators and researchers. Hence, even though the
‘gender ideology’ discourse sustains the idea that it is invested in dismantling
an ideology, it is, in fact, maintaining the realm of the Genesis ideology.

CONCLUSION

The analysis of the ‘gender ideology’ discourse revealed it is sustained


by two strategies: the creation of moral panic towards the effects of education
for human rights and the illusion of support for objective and impartial teaching
through a superficial demand for plurality of views, which is, at the same time,
frequently criticized by their own statements.
As an effect, despite its political aversion to the public school system,
the ‘gender ideology’ movement certainly insists on State intervention in school
curricula by formulating bills that seek to prohibit the teaching of topics related
to human rights. However, in doing so, the ‘gender ideology’ alliance between
some liberal institutions, entrepreneurs, religious organizations and social move-
ments highlights its contradictions by calling for minimum State intervention in
economic affairs and basic services, while at the same time demanding State
intervention in social and private relations (Miguel, 2016, p. 594).
The emergence of the ‘gender ideology’ discourse and its effects show
we were unable to ensure education for human rights as a State Policy. In this
matter, this paper stands with Felipe and Guizzo (2016): legal documents and
guidelines are important, but they cannot be the only strategy. If human rights
education were a State Policy, faculties and universities would have to take
responsibility and offer future teachers proper training vis-a-vis gender and
sexuality issues. Thus, those topics could be ethically addressed in the school
curricula with the seriousness of traditional scientific fields and the commitment
of social movements dedicated to supporting gender equality. If there is anything

Diversidade Sexual e de Gênero: abordagens multidisciplinares


212
the emergence of the ‘gender ideology’ discourse has taught us, it is that legal
documents and laws alone are worthless without concomitant changes in culture.
Brazil is experiencing both an economic crisis and a general disappoint-
ment with politicians. It is in times like these that fundamentalists groups can
rely on fear and anger to make moral panic prevail. However, as Miskolci (2018)
observes, it is important to distinguish between those who created the ‘gender
ideology’ narrative and those who are frightened by its discourse. The former
should be held to account for spreading so much hate and intentional misinfor-
mation about the importance of human rights-based education. Our educational
efforts, however, should be directed at the latter.

Disclosure statement

No potential conflict of interest.

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215
SOBRE O ORGANIZADOR
Jónata Ferreira De Moura

Licenciado em Ciências com Habilitação em Matemática pela Universidade Estadual


do Maranhão (2006) e em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão
(2009). Especialista em Educação Infantil pela Faculdade de Educação Santa
Terezinha (2009). Mestre e Doutor em Educação (Educação Matemática) pelo
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São
Francisco (2015-2019) com período de estágio doutoral na Universitat de Barcelona
(09/2018-02/2019). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal do
Maranhão (CCIm/UFMA), atuando no curso de Pedagogia e no Programa de
Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas (PPGFOPRED);
presidente da Comissão de Acompanhamento de Egressos do referido curso,
coordena o Núcleo de Práticas Pedagógicas (Brinquedoteca e Laboratório de
Ensino do Curso de Pedagogia), membro titular da Comissão Institucional - Área
de Sociais - do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC/
AGEUFMA/UFMA, membro do Comitê de Ética em Pesquisa do CCIm/UFMA
e consultor Ad hoc da FAPEMA. Foi docente da Educação Básica durante 15
anos. Coordenou, orientou e supervisionou os estágios do curso de Pedagogia
(2018-2021); coordenou o subprojeto Residência Pedagógica (RP-Pedagogia - RP/
UFMA/CAPES) [2020-2022] e atuou na docência do Programa Profebpar/Parfor -
Pedagogia (2011-2022). É vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Histórias
de Formação de Professores que Ensinam Matemática (HIFOPEM - CNPQ/USF),
membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Sexualidade nas Práticas
Educativas (GESEPE - CNPQ/UFMA), da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd-GT19), da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)
Biográfica (BIOGraph) e da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM-
GT7), atuando no Conselho Nacional Editorial e como 2 tesoureiro da Regional
do Maranhão. Avaliador do SINAES e atua, principalmente, nos seguintes temas:
infância, educação matemática, formação do professor que ensina matemática,
estágio e prática de ensino, relações de gênero e sexualidade, narrativas e pesquisa
(auto)biográfica.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0491949366167171
Gênero: 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22,
ÍNDICE 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 37, 42, 43, 45,
46, 47, 48, 53, 56, 57, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 69,

REMISSIVO 71, 72, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 83, 85, 86, 87, 89,
91, 92, 93, 96, 97, 102, 103, 119, 120, 137, 141, 142,
144, 154, 155, 160, 162, 163, 178, 179, 180, 207, 213,
214, 215
A
Gênero: 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22,
Aborto: 76, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106,
23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 37, 42, 43, 45,
107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 115, 116, 117, 118, 126,
46, 47, 48, 53, 56, 57, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 69,
135, 143, 145, 150, 151, 152, 153, 154, 155
71, 72, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 83, 85, 86, 87, 89,
Aprendizagem: 18, 31, 32, 67, 68, 81, 82, 83, 84, 91, 92, 93, 96, 97, 102, 103, 119, 120, 137, 141, 142,
85, 86, 94, 160 144, 154, 155, 160, 162, 163, 178, 179, 180, 207, 213,
Assédio Moral: 56 214, 215
Gêneros: 11, 15, 16, 31, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 43,
C 44, 45, 46, 47, 48, 50, 52, 61, 76, 84, 88, 89, 90, 91,
Comportamentos Homoeróticos: 158 92, 93, 94, 95, 97
Corpo Feminino: 99, 105, 120, 134, 142, 147, 148, H
149
Homocultura: 158, 175, 177
Cristianização: 99, 142, 146, 149
Homossexualidades: 46, 158
Currículo: 26, 29, 36, 42, 45, 49, 50, 51, 53, 54,
83, 90, 97 Human Rights Education: 199, 204, 210, 212
Curso de Pedagogia: 8, 9, 10, 11, 13, 17, 18, 19, I
21, 22, 86, 97
Ingresso: 8, 9, 10, 11, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 63, 104,
D 165, 166
Desafios: 18, 26, 67, 83, 84, 85, 89, 92, 95, 97, M
179, 181
Masculinidades: 50, 61, 142, 157, 158, 160, 161,
E 164, 165, 168, 169, 170, 178, 179
Educação: 11, 13, 14, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, Método Biográfico: 9, 10, 11, 12, 13
25, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38, 40, 41, Misoginia: 56, 62, 129
42, 43, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 57, 58, 64, 65,
66, 67, 68, 69, 72, 74, 75, 76, 81, 83, 84, 85, 86, 87, P
88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 114, 118, 155, Patriarcado e Capitalismo: 99
213, 214
Práticas Pedagógicas: 36, 38, 46, 51, 53, 89,
Educação Física: 23, 24, 25, 26, 27, 29, 30, 31, 91, 95
32, 33, 34
Preconceito: 19, 21, 32, 56, 65, 83, 97, 100, 164,
Educação Infantil: 22, 88, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 175, 177, 178, 179
96, 97
Ensino Médio: 18, 20, 24, 25, 30, 32, 42, 43, 53 R
Estado da Arte: 35, 36, 38, 39, 40, 41, 46, 52, Racismo Estrutural: 56
53, 54, 86 Reabilitação Cardíaca: 182, 192, 193, 194, 195
F Relações Homoafetivas: 126, 158, 178
Fundamentalism: 199 S
G Sexualidade: 10, 11, 15, 17, 18, 22, 23, 24, 26, 27,
28, 29, 30, 32, 33, 34, 43, 44, 45, 50, 54, 61, 63, 70,
Gamificação: 66, 67, 68, 69, 81, 83, 84, 85, 86 86, 89, 90, 91, 92, 93, 96, 97, 126, 134, 138, 140, 141,
Gender Ideology: 198, 199, 200, 201, 202, 205, 160, 162, 163, 164, 166, 171, 173, 174, 175, 176, 177,
206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213 178, 179, 181, 182, 194, 207, 213, 214, 215
Sexualidade: 10, 11, 15, 17, 18, 22, 23, 24, 26, 27,
ÍNDICE REMISSIVO

28, 29, 30, 32, 33, 34, 43, 44, 45, 50, 54, 61, 63, 70,
86, 89, 90, 91, 92, 93, 96, 97, 126, 134, 138, 140, 141,
160, 162, 163, 164, 166, 171, 173, 174, 175, 176, 177,
178, 179, 181, 182, 194, 207, 213, 214, 215
Sexualidades: 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 44, 45,
46, 50, 52, 53, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 97, 163
científica digital

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