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Convergentes:
Populações Tradicionais e Práticas
Jurídicas
São Luís
2022
Diálogos
Convergentes:
Populações Tradicionais e Práticas
Jurídicas
´
Luís Fernando Cardoso e Cardoso
Joaquim Shiraishi Neto
Ricardo Cid Fernandes
Judith Costa Vieira
Organização
Diálogos
Convergentes:
Populações Tradicionais e Práticas
Jurídicas
São Luís
2022
Universidade Federal do Maranhão
Reitora Prof. Dr. Natalino Salgado Filho
Vice-Reitor Prof. Dr. Marcos Fábio Belo Matos
Editora da UFMA
Diretor Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira
Conselho Editorial Prof. Dr. Luís Henrique Serra
Prof. Dr. Elídio Armando Exposto Guarçoni
Prof. Dr. André da Silva Freires
Prof. Dr. Jadir Machado Lessa
Profª. Dra. Diana Rocha da Silva
Profª. Dra. Gisélia Brito dos Santos
Prof. Dr. Marcus Túlio Borowiski Lavarda
Prof. Dr. Marcos Nicolau Santos da Silva
Prof. Dr. Márcio James Soares Guimarães
Profª. Dra. Rosane Cláudia Rodrigues
Prof. Dr. João Batista Garcia
Prof. Dr. Flávio Luiz de Castro Freitas
Bibliotecária Dra. Suênia Oliveira Mendes
Prof. Dr. José Ribamar Ferreira Junior
D537
Diálogos Convergentes: populações tradicionais e práticas jurídicas. / Organização Luís Fernando
Cardoso e Cardoso, Joaquim Shiraishi Neto, Ricardo Cid Fernandes e Judith Costa Vieira. _ São Luís:
EDUFMA, 2022.
214 p.
Ebook
ISBN: 978-65-5363-117-5
Direitos Humanos – população tradicionais. 2. Comunidades tradicionais - Maranhão. 3.
Religiões de Matrizes africana. 4. Direito – território tradicional. 5. Questão Agrária – justiça. 6.
Direito Ambiental – povos indígenas – ayahuasca. 6. Territórios Quilombolas. 7. Questão
Indígenas – conflitos de terra. I. Cardoso, Luís Fernando Cardoso (Org.). II. Shiraishi Neto,
Joaquim (Org.). III. Fernandes, Ricardo Cid (Org.). IV. Vieira, Judith Costa (Org.). V. Título.
CDU 374.7:342.7(812.1)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida,
armazenada em um sistemade recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por
qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, microimagem, gravação ou outro, sem
permissão dos autores.
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Bacanga CEP: 65080-805 | São Luís |
MA | Brasil Telefone: (98) 3272-8157
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edufma@ufma.br
AGRADECIMENTOS
Este livro nasce do esforço dos autores e organizadores que desejam contribuir para o
debate sobre a atualidade, revendo as formas de organização e de lutas sociais. Por isso,
gostaríamos de agradecer a cada autor que disponibilizou seu texto para a coletânea.
Acreditamos que as várias vozes ouvidas aqui concorrem para o desenvolvimento da pesquisa
científica e que os diálogos estabelecidos ao longo da organização desta publicação ainda
renderão muitos conhecimentos para todos.
Gostaríamos de agradecer aos organizadores do Encontro Nacional de Antropologia em
Direito (Enadir). O VII Encontro, realizado no período de 23 a 27 de agosto de 2021, fomentou
as discussões sobre várias temáticas que se inserem na intersecção entre o direito e a
antropologia e concedeu-nos um espaço de interlocução com pessoas preocupadas em investigar
as práticas jurídicas de povos e comunidades tradicionais. Esse espaço foi representado pelo
Grupo de Trabalho 03 intitulado “Diálogos convergentes: populações tradicionais e práticas
jurídicas”, do qual veio a maior parte dos textos que compõem este livro. A cada participante do
nosso GT, deixamos nosso agradecimento, assim como agradecemos aos colegas que, mesmo
não tendo participado do GT do Enadir, aceitaram o convite de partilhar conosco suas reflexões
sobre o tema desta publicação.
Agradecemos também à Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) que, por meio
do Edital n.º 03/2019 do Programa Institucional de Bolsas de Pesquisa, Ensino e Extensão
(PEEX), contemplou a proposta do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Sociedades
Amazônicas, Cultura e Ambiente (SACACA), justamente no sentido de fortalecimento de
metodologias e de abordagens antropológicas e jurídicas dos fenômenos sociais.
Agradecemos à editora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) que nos possibilitou
a publicação deste livro e que tem demonstrado muita abertura e incentivo às publicações que
tratam das temáticas de relevância social. Nesse sentido, também agradecemos à própria UFMA, à
Universidade Federa do Pará (UFPA), à Universidade Federal do Paraná (UFPR) e à Ufopa pelo
apoio aos organizadores na realização de suas pesquisas.
Agradecemos as profissionais que se empenharam em colaborar conosco na qualificação
da publicação, seja fazendo a revisão dos textos, como no caso de Maria da Graça Leal, seja na
elaboração da capa e do projeto gráfico, de responsabilidade de Jacymara de Jesus da Silva Rocha.
PREFÁCIO
Vânia Fialho[1]
A teoria clássica antropológica teve como um dos principais interesses a reflexão sobre
a existência ou não de leis e sistemas jurídicos em sociedades culturalmente diferenciadas, o
papel do costume e a forma de se assumir a condução de disputas. Fica assim assegurado que a
relação da antropologia com o direito vem de longas datas.
A tentativa de aproximação entre esses dois campos de conhecimento parece ter nascido
de uma contraditória e sedutora relação caracterizada pelo fascínio e pela tensão. A fase inicial
dessa relação se deu sob olhares meio ressabiados dos dois lados, procurando congruências, mas
também identificando as diferenças e as incompatibilidades (FIALHO; GUSMÃO, 2008). A
discussão permaneceu tensa pela separação entre aspectos lógicos e práticos, entre enfoque
forense e etnográfico, acarretando mais ambivalência e hesitação do que acomodação e síntese
(REGO, 2007). Laura Nader, autora importante na discussão entre a antropologia e o Direito,
chega a afirmar que a disputa de matrizes diferentes na compreensão de resolução de conflitos e
na discussão sobre o pluralismo jurídico, acabou por criar não apenas uma “arena
interdisciplinar”, como um movimento “antidisciplinar”.
Estamos diante de uma coletânea, organizada por um conjunto de professores - Fernando
Cardoso e Cardoso, Joaquim Shiraishi Neto, Ricardo Cid Fernandes e Judith Costa Vieira - que
transitam entre os campos do direito e da antropologia; logo, poderia expressar tensão e
resistência de parte à parte. No entanto, seu título anuncia um esforço na direção contrária, a da
convergência de diálogos. Não por acaso, a novidade acompanha um movimento que segue a
insurgência de coletivos identitários na América Latina, que congregam povos originários,
outros submetidos a diásporas, dentre variadas situações que lhes conferem o reconhecimento de
uma trajetória histórica muito própria e a assunção de um projeto de futuro marcado pelos laços
sociais que os constituem como coletividades.
Segundo Raquel Fajardo (2009), vivenciamos na América Latina um ciclo de reformas
constitucionais. Tal sequência de reestruturação das cartas magnas nos coloca, diante de novas
demandas por parte desses coletivos, diante da constatação de que o Estado periférico latino-
americano tem raízes distintas do Estado nacional europeu, como destacado por Pedro Brandão
(2015).
AGRADECIMENTO.....................................................................................................................05
PREFÁCIO.....................................................................................................................................06
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Radcliffe-Brown, em O direito primitivo, defende que não há como atribuir a palavra “direito”
a determinadas sociedades, por lhes faltarem os campos de sanções institucionalizadas.
Para ele, direito é um conceito reservado apenas às sociedades modernas, ao passo que
as sociedades sem escrita possuem um conjunto amplo de costumes que ordenam as relações
sociais. Como um clássico da antropologia estrutural funcionalista britânica, Radcliffe-Brown
(1973, p. 321) reforça que, nos grupos africanos que ele estudou, a ordem jurídica local é “um
sistema organizado de justiça, que não constitui, no entanto, um sistema de direito, no sentido
estrito, porque não existe nenhuma autoridade judicial estabelecida, institucionalizada”.
As ideias de Radcliffe-Brown são influentes, porém, são também contestadas no interior
da própria tradição antropológica britânica. Max Gluckman, em The Ideas in Barotse
Jurisprudence (1965), estuda um reino africano constituído por 25 grupos tribais onde um grupo
social domina a estrutura jurídica como especialista em resolver conflitos. Nesse caso, o juiz
assume um papel importante como mediador entre disputas.
A tese de Gluckman mostra não apenas que os Barotse têm direito, mas também que seu
sistema tem paralelo nos estágios iniciais do direito romano e europeu. O autor evidencia que
o sistema de propriedade dos Barotse sobre a terra, as coisas e os títulos são inerentes às
posições sociais das pessoas (relação de status), que estão ligadas por arranjos complexos nos
quais a maior parte do direito à terra é também o direito pessoal. Isso porque há uma confusão
entre direitos individuais e de propriedade.
No entendimento do autor, a terra é um nexo essencial em todas as relações sociais, que
não podem ser definidas senão em relação à terra. Por conseguinte, as transações com a terra
dominam as relações mais importantes do direito entre os Barotse (GLUCKMAN, 1965). O
autor explica o sistema jurídico local, tornando possível perceber uma relação intrínseca entre
status, posse de terra e conjunto de direito. Todavia, ele não abdica da perspectiva funcionalista,
que vê o direito como um meio de resolução de disputas, conflitos sociais ou relações de status
entre o grupo que estuda (SCHUCH, 2003).
Leach ([1964] 1996) é outro autor de tradição britânica que traz elementos ao
entendimento da antropologia do direito. Quando ele analisa as “noções de processo legal e
conceitos de direito sobre propriedade” (LEACH, 1996, p. 197) na sociedade Kachin, toma
como base o conceito de dívida (hka). Todo o sistema de relações mútuas nessa sociedade é
percebido como um desenvolvimento a partir da dívida: “Praticamente qualquer tipo de
obrigação legal que existe entre dois Kachins pode ser considerado uma dívida” (LEACH,
1996, p. 199).
14
Dessa forma, Leach (1996) evidencia o significado simbólico da dívida para a
manutenção da organização social do grupo, a partir do sistema de status, pelo qual o
pagamento da dívida está ligado à condição econômica do insolvente, o que dá flexibilidade a
todo o sistema. Na sociedade Kachin, conflito e dívida são partes de uma mesma moeda. São,
sobretudo, as dívidas entre estranhos que devem ser quitadas rapidamente; do contrário, o
possuidor da dívida tem uma desculpa legítima para recorrer à violência. Já as dívidas entre
parentes, especialmente entre parentes afins, não constituem questão de urgência. “[...] a dívida
é uma espécie de conta de haver que assegura a continuidade da relação. Existe assim uma
espécie de paradoxo em virtude do qual a existência de uma dívida pode significar não só um
estado de hostilidade como também um estado de dependência e amizade” (LEACH, 1996, p.
195-212).
A perspectiva de Leach leva à compreensão do conceito de dívida como componente
das relações sociais, mas também à constatação de que a dívida varia de acordo com os sujeitos
envolvidos, revelando níveis na aplicação da regra, ocasionando a solidificação ou a dissolução
das relações pessoais e interpessoais. Leach, a partir da dívida, repõe o simbólico no centro da
discussão da antropologia do direito.
Geertz amplia essa análise e considera o direito como um sistema cultural. No livro O
saber local ([1983] 1997), ele analisa a relação entre a lei e o fato como um sistema de símbolos
e significados. Para ele, a lei está aqui, lá, ou em qualquer lugar, é parte de uma maneira
distintiva da imaginação do real, é parte do que chama “sensibilidade jurídica” – o sentimento
de justiça que, tal como a sensibilidade, varia de sociedade para sociedade. Suas interpretações
derivam da comparação de pesquisas realizadas em três culturas: a islâmica, a indiana e a
malasiana. Usando dados etnográficos, o autor demonstra como um homem em Bali pode
perder a própria “raça humana” por descumprir normas jurídicas locais, como, por exemplo,
negar-se a fazer parte do conselho da aldeia, cessando, com isso, de usufruir o terreno de sua
casa e tornando-se um nômade. As pessoas da comunidade negam-lhe o direito de entrar no
templo da aldeia, distanciando-o dos deuses. O aldeão perde também todo seu universo social,
pois ninguém poderá dirigir-lhe a palavra sob pena de ser igualmente penalizado.
O conceito de sensibilidade jurídica resgata o caráter criativo das relações sociais, que
configuram um conjunto normativo de princípios localizado no tempo e no espaço.
Sensibilidade jurídica não é um conceito universal, abstrato, positivo; ao contrário, é local,
circunstancial e relacional, delimitado por noções de pertencimento, de lugar, de identidade e
de tradição. O lugar para Geertz pode ser lido como o conceito antropológico de território, ao
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indicar a existência de relações sociais e simbólicas marcadas a partir de regras locais de direito
construídas pelo grupo.
Seguindo Geertz, considerando a sensibilidade jurídica, as leis locais, a lei como cultura,
já nos afastamos da perspectiva dos autores funcionalistas e estrutural-funcionalistas. Contudo,
mantemos um olhar no simbólico, sem esquecer a dimensão dos conflitos, a dimensão
institucional do direito – um olho no gato e outro no peixe.
De fato, o foco na sensibilidade jurídica dos povos, grupos ou coletivos não exclui a
atenção dada à força organizadora do Estado, afinal, são as instituições que, ao mesmo tempo,
respondem às normas do direito e às demandas da sociedade. No Brasil, instituições como
Funai, Incra, ICMBio, Ibama, Institutos e Secretarias, por exemplo, são carregadas de
contradições, especialmente visíveis em tempos turbulentos, como o que estamos vivendo.
Compreender esse universo de relações e contradições formadas pelo direito como
sensibilidade jurídica e como força resolutiva de problemas é o que nos leva a discutir as
populações tradicionais e as práticas jurídicas desses grupos no Brasil. “Populações
tradicionais” já é um conceito consagrado no Brasil. Se em tempos pretéritos houve muita
dúvida e desconfiança em relação ao conceito, hoje ele está legitimado em diversos dispositivos
legais.
A Constituição Federal de 1988 e a Convenção n.º 169, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), incorporada pelo Brasil por meio do Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de
2004, por sua vez, delinearam rupturas com o mundo jurídico dominante, garantindo a esses
grupos sociais a sua autonomia política1. Em 2007, a defesa da diversidade cultural passou a
contar com um importante dispositivo, o Decreto n.º 6.040, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais e, em consonância com
a Convenção n.º 169 da OIT, assim definiu, em seu artigo 3, I, povos e comunidades
tradicionais:
[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição.
1
Shiraishi Neto (2010) analisa esse processo de construção legal (no interior e fora da ordem jurídica) e de
reconhecimento da diversidade social brasileira. Atenta-se para o fato de que os mais variados termos serviam
para designar a existência de grupos culturalmente diversos no Brasil. Tais designações transitivas juridicamente
representam tentativas de aproximação das situações vividas por esses grupos.
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existência do sujeito coletivo de direito. Contudo, as coisas complicam-se quando olhamos para
as situações empíricas, que envolvem uma enorme complexidade. Optamos então por misturar
indígenas, quilombolas, pescadores, extrativistas, comunidades de terreiro... Misturados, esses
grupos encerram, com a riqueza da etnografia, as distintas práticas e sensibilidades jurídicas em
meio às condições limitantes da norma e da instituição, que enquadram esses grupos.
O diálogo é feito de diferentes trocas e experiências, que a todo instante se renovam em
novas conexões. Em comum, todos os artigos aqui reunidos tratam de perspectivas situacionais,
localizadas, do direito local, consuetudinário ou costumeiro, entrelaçadas à ordem jurídica
dominante. Essas práticas, fundadas em territorialidades específicas, conhecimentos
tradicionais, ancestralidades e espiritualidades próprias confrontam-se, mergulhando o direito
em um turbilhão de situações nem sempre juridicamente catalogadas. A tensão, pelo visto, é
inevitável, entre a vida (movimento) e o bem (não movimento).
O alcance das soluções, portanto, é quase sempre provisório, objeto de questionamentos,
dada a incapacidade do direito para enquadrar a vida em movimento. Mas as pesquisas, as
reflexões e as críticas apresentadas neste Livro afluem para descortinar novas possibilidades do
direito (talvez com uma certa dose de idealismo), isto é, novas formas de relação e de
convivência, numa tentativa de superar as desigualdades que marcam a nossa vida em
sociedade. Ao mesmo tempo, sublinhamos que as leituras moleculares revelam formas
institucionalizadas de negação de direitos e caminhos políticos abertos pela mobilização. Desse
modo, esperamos que os diálogos suscitados neste Livro incentivem novos entendimentos sobre
o papel do direito e das políticas de reconhecimento no atendimento das demandas das
populações tradicionais.
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O artigo de Luis Fernando Cardoso e Cardoso e Joaquim Shiraishi Neto, intitulado
Constituição local: direito e território numa comunidade amazônica, analisa a organização
sociojurídica de um território quilombola no estado do Pará. Partindo da categoria analítica
“ordenamento jurídico local”, busca-se entender como os quilombolas definem os sujeitos de
direitos locais. A análise baseia-se em uma pesquisa de campo na comunidade de Bairro Alto,
na ilha do Marajó, estado do Pará. Os princípios jurídicos intrínsecos à comunidade orientam
os sujeitos na luta pelo território expropriado por fazendeiros. Um forte diálogo é estabelecido
entre as normas locais e o artigo 68 da Constituição Federal (Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias), tendo em vista a correção de iniquidades históricas.
Os autores do artigo A justiça de Xangô: breve reflexão acerca do uso da tradição
como motivação de decisão judicial, Gabriel Haddad Teixeira e Iyaromi Feitosa Ahualli,
partem dos relatos de uma petição ao juiz de direito da comarca de Nazaré, na Bahia, proposta
pela Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, para transferência do corpo de Maria Stella de
Azevedo Santos (Mãe Stella de Oxóssi) da cidade de Nazaré das Farinhas para o Ilê Axé Opô
Afonjá na cidade de Salvador, sob o fundamento de que uma pessoa iniciada no candomblé
será iniciada para a vida toda, não havendo a possibilidade de “desiniciar”. Diante desse
conflito, o artigo busca refletir sobre o direito e o Poder Judiciário, notadamente sobre o
conflito presente entre patrimônio cultural e direito de personalidade.
A interface entre direito ambiental, direitos étnicos e culturais é discutida no artigo A
legislação ambiental sobre ayahuasca e os povos indígenas: tensões e controvérsias em
perspectiva, dos irmãos Antunes – Igor, antropólogo, e Henrique, ambientalista. Parentesco
pouco comum em nossas publicações, os irmãos tratam de forma complementar a trajetória da
ayahuasca no plano da institucionalização e o controle sobre sua produção e circulação,
analisando as repercussões do ordenamento jurídico sobre as percepções e os usos tradicionais.
A tensão e o desencontro explícito entre a perspectiva ambiental e a perspectiva cultural são
examinados a partir da ênfase na circulação. Protegida enquanto espécie e autorizada enquanto
“religião”, a ayahuasca está sujeita à legislação que impõe restrições à sua circulação fora dos
contextos indígenas ou tradicionais. Entretanto, é a circulação que fortalece a tradição, que, por
sua vez, é especialmente multiplicada nos contextos urbanos de consumo. A irreconciliável
controvérsia é tratada com apuro etnográfico que demonstra os limites e as tensões inerentes à
burocracia do reconhecimento legal.
No artigo Tecendo territórios e direitos: a experiência de construção do plano de
gestão territorial e ambiental dos Munduruku do Planalto, as autoras Judith Costa Vieira e
Rosimary de Souza Cruz analisam o processo de elaboração do Plano de Gestão Territorial e
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Ambiental (PGTA) do povo indígena Munduruku do Planalto. Apoiadas nos referenciais
teóricos da antropologia jurídica e da mobilização do direito, as autoras demonstram como esse
instrumento foi apropriado pelos indígenas no intuito de aumentarem seu controle e sua
legitimação no território reivindicado. A partir do acompanhamento empírico das ações de
discussões e de elaboração do PGTA, as autoras identificaram os diferentes usos e sentidos que
esses sujeitos atribuem ao direito visando aproximá-lo dos seus próprios anseios.
Os dilemas entre participação social e representação na Reserva Extrativista Tapajós-
Arapiuns são tratados por Florêncio Almeida Vaz Filho. Por meio da sua participação enquanto
conselheiro representante de entidade indígena e como antropólogo, o autor debate no seu artigo
Entraves à efetiva participação de comunitários no conselho deliberativo da Resex
Tapajós-Arapiuns as insuficiências das metodologias ditas “participativas” para garantir uma
efetiva escuta e um posicionamento adequado dos indígenas moradores do território da Resex.
O texto percorre uma crítica à ideia de representação como forma chancelada institucionalmente
de participação e desvenda as relações de poder que impregnam os processos de tomadas de
decisão nesse formato.
Não é novidade afirmar que o direito territorial quilombola não trata apenas de questões
vinculadas à reforma agrária no país. Tal assertiva lembra a complexidade que a categoria
território carrega simbolicamente para o modo de vida dessas comunidades tradicionais.
Efetivamente, territórios e identidades estão entrelaçados. É nesse panorama que o artigo
Quilombo, território e o campo jurídico: algumas reflexões, de Amanda Lacerda Nunes e
Alessandro André Leme, busca compreender quais são as principais características das decisões
judiciais presentes no campo jurídico brasileiro acerca do direito territorial quilombola.
A luta dos pescadores artesanais pelo reconhecimento dos seus territórios pesqueiros,
bem como pelo seu reconhecimento enquanto categoria laboral com acesso a direitos previstos
é abordada no texto de Carla Daniela Leito Negócio intitulado A terra na água: a defesa das
comunidades tradicionais pesqueiras, sua identidade e seus territórios. A autora debate os
percalços que os pescadores artesanais enfrentam para sair do contexto de invisibilidade social.
Com base nos preceitos previstos nos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais de
reconhecimento de comunidades tradicionais, demonstra que os pescadores artesanais são
também detentores de direitos diferenciados.
João Vitor de Freitas Moreira, em Encontros pragmáticos: as relações ameríndias na
adjudicação, toma como ponto partida o enunciado “Existir é diferir”, de Gabriel Tarde, para
se referir aos aspectos de um conflito envolvendo os Borum do médio rio Doce. O autor
sublinha que o artigo é uma tentativa de contribuir na compreensão de uma relação estabelecida
19
pela antropologia do direito. O conflito será, portanto, o tropo teórico para investigar. Mas esse
investigar implica “pensar-com” o conflito, numa tentativa de compreender os arranjos que
decorrem desse encontro (jurídico e ameríndio).
A tensão entre etnicidade e teoria penal é abordada por meio do tema desafiador do
encarceramento de indígenas no Brasil. Com enfoque no processo burocrático das
classificações que dão forma e conteúdo ao sistema de execução penal, o antropólogo Felipe
Kamaroski, no artigo O processo de descaracterização étnica de indígenas Kaingang
encarcerados no Paraná, analisa os diferentes níveis da burocracia penal brasileira,
demonstrando que a manipulação de categorias de identificação étnica, por vezes, transforma
“indígenas” em “pardos”. Quando nos registros do sistema de informação penitenciária a
identidade é convertida em cor da pele, “cútis”, o direito à diferença é negado e a condição
étnica, apagada. Como comprova o artigo, não se trata apenas de registros burocráticos
incorretos, mas de classificações que restringem direitos das pessoas indígenas.
Precedentes que informam o direito à consulta prévia: possibilidades para além da
Convenção n.º 169 da OIT, de Leonardo Custódio da Silva Júnior, é um convite à discussão
sobre a aplicação do direito de consulta, que, hoje em dia, encontra-se sob ameaça, dada a
existência de um Projeto de Lei no Congresso Nacional que autoriza a denúncia do tratado. Por
meio de uma análise das decisões coletadas no repositório do STF, o autor propõe uma
discussão sobre a força vinculante desse direito para além da norma de direitos humanos
insculpida na Convenção n.º 169 da OIT. Os indicadores de jurimetria, associados a conceitos
da antropologia jurídica, por sua vez, são utilizados como subsídios para uma análise mais
aprofundada das questões por ele levantadas.
Referências
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.
GLUCKMAN, Max. The Ideas in Barotse Jurisprudence. New Haven: Yale University
Press, 1965.
20
KUPER, Adam. The Invention of Primitive Society: Transformation of an Illusion. London:
Routledge, 1997.
LEACH, Edmund Ronald. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1996.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
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NOSSA JUSTIÇA É LEI: OS “ACORDOS COMUNITÁRIOS” COMO
PRÁTICA JURÍDICA DE RESISTÊNCIA EM TERRAS DE FAXINAL2
1 INTRODUÇÃO
2
Trabalho apresentado ao GT03 (sessão 02) – Diálogos convergentes: populações tradicionais e práticas jurídicas
– durante o 7.º Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir), realizado virtualmente no período de 23
a 27 de agosto de 2021.
22
práticas jurídicas constituídas nos faxinais para proteger as relações sociais de uso comum da
terra, particularmente no Faxinal Saudade Santa Anita, município de Turvo, Paraná. As práticas
jurídicas constituídas nos faxinais refletem a organização social do território, razão pela qual
os faxinalenses se percebem como possuidores de direitos locais. Evidencia-se, por essa via,
que a luta pela afirmação da ordem jurídica local é uma das formas de resistência no território,
construída mediante inúmeros conflitos territoriais voltados para a manutenção das terras de
uso comum, das práticas tradicionais e do modo de vida.
Motivado por esse debate, o presente artigo é um extrato da pesquisa de pós-
doutoramento em Antropologia realizada entre 2020 e 2021 no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná. A investigação
antropológica surge da demanda específica do movimento social faxinalense em ações judiciais
que questionam a legalidade e a legitimidade dos “acordos comunitários” ante o avanço de
antagonistas mobilizados pela privatização dos recursos naturais em terras de faxinais. Com a
finalidade de configurar o campo de debates dos conflitos de interlegalidade que envolvem o
uso comum, tomei como referência contextos históricos e jurídicos de formação das terras de
uso comum, até alcançar o momento atual, quando os “acordos comunitários” são convertidos
em leis estatais, evidenciando as lutas pela operacionalização da referida legislação consoante
as obrigações concernentes à atuação do aparelho do Estado na defesa do faxinal e dos
faxinalenses.
A análise examinou o repertório de legislações que direta ou indiretamente criaram
obstáculos às formas tradicionais de uso dos recursos naturais nos faxinais, em contraponto às
suas práticas jurídicas, mobilizadas a partir das relações sociais internas e externas ao grupo.
No que concerne à formulação e à administração das respectivas práticas pelos faxinalenses,
recorremos a situações empiricamente observadas de conflitos sociais relacionados às lutas pela
manutenção do uso comum dos recursos naturais para descrever como se atualizou esse sistema,
a fim de criar condições para operar na lógica da interlegalidade dialogada entre os distintos
ordenamentos jurídicos, ao reclamar a adoção da premissa da interculturalidade pelo aparato do
Estado.
Outrossim, nessa investigação, parto do pressuposto de que o direito local é inerente às
relações sociais; logo, conhecer essa realidade é um esforço de alargar a compreensão sobre o
modo como os grupos faxinalenses constroem as suas práticas jurídicas e buscam dar-lhes
eficácia, com a finalidade de manterem seus territórios diante do assédio dos agentes da
privatização do uso comum. Com isso, busco contribuir para a ampliação do conhecimento
sobre os sistemas jurídicos próprios dos faxinais, na perspectiva de edificar argumentos
23
científicos e disponibilizá-los aos faxinalenses, mas também aos operadores do direito, no
cenário de persistentes conflitos de interlegalidade.
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Na mesma direção, encontram-se as análises oriundas da observação empírica, que
veem, na redução progressiva das áreas de uso comum - mediante a formação de “fechos” e a
destruição de “mata-burros” e portões - parâmetros que sinalizam o fim do “sistema faxinal”,
na medida em que elegem a substância cultural e material como indicador de sua situação,
desconsiderando a persistência das relações sociais diferenciadas, historicamente construídas
pelo grupo e sempre atualizadas pela ação dos sujeitos faxinalenses, em permanente disputa
contra seus antagonistas para manter as terras disponíveis ao uso comum. A explicação
dominante no campo do direito, dada a forma específica de constituição das áreas de uso
comum, culmina na hierarquia jurídica da propriedade da terra e na prerrogativa de
individualização pelos proprietários, como base exclusiva da sustentação do faxinal, em
detrimento da noção de bem comum determinado pelo uso, pautado pelas relações sociais
específicas baseadas nos vínculos de parentesco e nos laços de solidariedade e historicamente
construídas na defesa do uso comum das pastagens, funcionando como pilar de sua organização
social.
A força explicativa de viés reducionista ampara-se no conjunto de características
visíveis, que à primeira vista evidenciam a forma peculiar de exploração da terra e dos recursos
naturais, composta parcialmente por propriedades privadas “que se agregam” para constituir
um “condomínio” de uso comum de pastagens, mas que também “se decompõem” pelo desejo
único e exclusivo dos proprietários. Deriva daí o conceito de “compáscuo”, extraído do antigo
Código Civil (1916); a partir dele, o uso comum nos faxinais só poderia existir mediado pelo
consenso dos proprietários. Em consequência, tais análises advogam uma dicotomia absoluta
entre propriedade privada e uso comum, desconsiderando o processo de construção histórica
não linear, narrado por avanços e retrocessos decorrentes da luta dos faxinalenses –
proprietários e posseiros de terras – na defesa de pastagens comuns e dos demais recursos
naturais situados em terras privadas como florestas, terras públicas e devolutas. Essa construção
histórica não se explica exclusivamente pela força do poder econômico ou patrimonial, assim
como também não opõe propriedade privada e uso comum da terra.
Essa definição desdobra-se em outras explicações irrefletidas pelos operadores de
direito e por parte de intelectuais que atuam no campo de debates sobre os faxinalenses e
faxinais, tais alegações permitem imediata correlação dentro de regras universais oriundas dos
compêndios de direito, o que dificulta a compreensão de “outras” legalidades constituídas por
formas específicas de organização social advindas de sistemas jurídicos próprios e inarticulados
ou não integrados ao ordenamento jurídico nacional. Ademais, o procedimento que universaliza
resulta na perda da especificidade existente nos faxinais (SHIRAISHI NETO, 2009). Via de
25
regra, os conflitos de interlegalidade devem-se à operação de assimilação ou de apagamento
das regras de comportamento social de grupos subalternizados às normas de um Estado que
reproduz a lógica da dominação social, levando, entre outros prejuízos, a uma interpretação
reducionista e simplificada das regras de funcionamento das práticas sociais de grupos
culturalmente diferenciados.
Em razão do predomínio dessa interpretação universalista, seja do direito, seja das
ciências sociais e humanas, impõe-se a necessidade de se rever os modelos jurídicos à luz da
antropologia do direito, de modo a garantir a compreensão da existência social diferenciada de
base comum, considerando não ser possível dissociar os indivíduos uns dos outros, pois trata-
se de uma existência coletiva cujo princípio ordenador é o uso comum da terra substanciado
pelos “acordos comunitários”.
Partindo-se dessa premissa, compreende-se a ação dos sujeitos sociais que pensam e
vivem dinamicamente suas práticas tradicionais como fator que expressa a luta e a defesa da
territorialidade específica do grupo contra as permanentes ameaças ao uso comum. Outrossim,
trata-se de compreender que a “tradição” não se refere à permanência ou à rigidez das práticas
no tempo; deve-se, antes, a processos de reorganização social e territorial para garantir práticas
sociais de uso comum mediante a defesa de territórios tradicionalmente ocupados. Com efeito,
as estratégias de reabilitação das práticas jurídicas buscam conter o avanço da privatização dos
recursos naturais, apontando a persistência do sentido atribuído à justiça local.
Por essa via, a atualização jurídica do debate, para além dos esquemas formais do
direito, remete-nos a uma leitura dos faxinais a partir das práticas jurídicas dos grupos que
ocupam e usam a terra de forma tradicional, bem como de todo o processo de mobilização e de
organização política que reafirma a especificidade do grupo. Tal interpretação precisa refletir
sobre a proteção e a defesa da existência coletiva dos faxinalenses, tomando como base os
princípios da Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988) e da Convenção n.º 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2004), sobretudo, no que diz respeito à conversão
dos acordos comunitários em leis estaduais e municipais em virtude da luta faxinalense
objetivada em movimento social desde 2005. Por conseguinte, é o pertencimento a determinado
grupo social que representa o elemento-chave para a garantia da defesa dos direitos do grupo.
Portanto, a proteção do faxinal resulta da defesa dos direitos dos faxinalenses. Não é a proteção
do Estado aos bens patrimoniais culturais e ambientais que determina a manutenção e a
existência dos faxinais. Trata-se, sim, de proteger os direitos faxinalenses.
26
3 ANTROPOLOGIA JURÍDICA DOS “ACORDOS COMUNITÁRIOS”
A maior parte desses acordos permaneceu vigente até as décadas de 40 e 50. Até hoje,
é costume marcar as criações animais, reforçando a unidade social nas áreas do “grande
faxinal4”. Não obstante, não há registros da forma como as decisões eram tomadas pelos
representantes dos grupos domésticos, nem das sanções aplicadas aos descumpridores. Com o
ingresso gradual de colonos, estimulados por políticas agrárias da República Velha, conheceu-
3
Não se sabe com certeza até quando os recursos florestais ficaram disponíveis ao uso comum no período do
“grande faxinal”. Conforme Souza (2001), com a privatização da terra, a erva-mate passou a ser beneficiada
localmente em quantidades maiores, a madeira passou a ter valor no mercado com a chegada das serrarias em
1940. A abundância desses recursos em mercados mais próximos à capital do estado e a falta de vias de acesso
transitáveis e de recursos próprios de beneficiamento e transporte retardaram a entrada desses produtos no
mercado regional.
4
O “Grande Faxinal” ocupava áreas de antigas sesmarias e fazendas devolutas em maior parte abandonadas após
a crise do tropeirismo. Sua dimensão era compreendida como “ilimitada” em extensão territorial até a chegada
da propriedade privada.
27
se a instituição da propriedade privada e seus desdobramentos nas relações sociais entre os
novos moradores e o Estado.
A chegada da propriedade privada trouxe consigo o aparato legal amparado na parca
presença do Estado, que criava a nascente administração pública nos municípios por meio dos
códigos de posturas municipais e demais normas correlatas. Nesse momento, o direito previsto
no ordenamento estatal ignorava a lógica de uso comum instituída nos faxinais pelo
campesinato livre, consentindo sua existência na figura jurídica do “criador comunitário”,
inspirada no conceito de “compáscuo”, inscrito no Código Civil de 1916. Desse modo, perdia-
se a relativa autonomia camponesa pela privatização gradual de áreas comuns, no que se refere
ao livre acesso à terra e aos recursos naturais: cercavam-se as criações animais, restringindo-se
a área comum e abriam-se áreas de lavouras, privatizando-se esse componente do território. O
faxinal é, então, colonizado pela propriedade privada da terra, apoiada pelas normas estatais.
Embora as terras de uso comum sejam delimitadas e, em parte, apossadas individualmente, o
novo conjunto de moradores do faxinal (proprietários e posseiros) reorganiza socialmente o uso
comum, reduzindo-o à noção de prática do “criador comunitário”, regido por normas que
visavam disciplinar o uso comum mediante o regramento das cercas do perímetro, o que, de um
lado, favorecia a propriedade privada da terra e, de outro, tolerava a presença do uso comum,
que passou a ser regulamentada pelos códigos de posturas municipais.
A despeito disso, as práticas jurídicas faxinalenses sofreram algumas alterações,
considerando as novas relações de poder baseadas na propriedade privada de parcela das terras
do faxinal. Isso determinou a centralidade das cercas do perímetro, mas também a decisão sobre
seu traçado e a definição de abertura de novas áreas de cultivo – desde que na propriedade do
faxinalense ou em áreas devolutas. Os recursos naturais permaneceriam em “aberto”. Dessa
forma, uma relativa estabilidade territorial foi mantida sob a dominação da propriedade privada
a partir da década de 30, apoiada pelo desenvolvimento de instituições permanentes, por novas
normas internas, estratégias de alianças e regras familiares de sucessão. Todas essas relações
sociais específicas passaram a gravitar em torno do interesse dos proprietários de terra.
Entre as décadas de 40 e 80, recuperamos “acordos comunitários” na revisão de
trabalhos acadêmicos (CARVALHO, 1984; SOUZA, 2001). O crivo de entrevistas realizadas
com lideranças mais idosas permitiu captar as mudanças nas práticas jurídicas predominantes
naquele período:
a) os moradores que mantêm animais no criador comunitário devem
cuidar dos seus vãos de cerca combinados em reunião e mantê-los em
bom estado para que os animais não passem para as áreas de lavoura;
28
b) os quintais de lavoura podem ser abertos, desde que o dono da
terra vede, com no mínimo 11 fios de arame, parte de sua área, sem com
isso fechar toda sua terra ou isolar algum vizinho;
c) é permitido fechar parte de sua propriedade com 4 fios de arame
para manter piquetes ou potreiros;
d) toda cerca de divisa deve ser reforçada com fios de arame, tala,
tábua, frechame ou vara na parte inferior da cerca, para evitar que os
porcos invadam as áreas de lavoura;
e) se comprovado que os animais passaram para a lavoura por causa
de vãos de cercas malcuidadas, o responsável pela cerca deverá assumir
os danos provocados pelos animais nas lavouras;
f) os moradores que quiserem colocar animais no criador terão que
participar dos mutirões de cerca e estradas;
g) desde que contribuam na manutenção das cercas, os moradores
podem ter quantas cabeças de criação alta e baixa quiserem,
independentemente do tamanho de sua terra no faxinal;
h) a erva-mate, o pinheiro e madeiras de lei só podem ser cortados
pelo proprietário onde se encontram;
i) lenha, pinhão, frutos do mato e remédios caseiros podem ser
retirados por quem precisar;
j) os palanques, mourões, grampos, tábuas, frechames e arames
devem ser disponibilizados pelo proprietário da cerca que passa em sua
propriedade; já a mão de obra é do mutirão.
5
Os acordos comunitários no Faxinal Saudades Santa Anita existiram informalmente desde o início da
comunidade. Foram pela primeira vez formalizados em um documento discutido e aprovado pela comunidade
no dia 7 de março de 2009. Passados dois anos, os acordos comunitários foram rediscutidos e aprovados em uma
nova Assembleia Geral realizada no dia 20 de novembro de 2011.
30
- As cercas que já estiverem fora do limite permitido pelo acordo
comunitário não poderão ser reformadas, devendo adequar-se ao que
estabelece o acordo comunitário.
- A manutenção das cercas que dividem a área de faxinal e a área de
lavoura são de responsabilidade do proprietário da lavoura e dos faxinalenses
da comunidade.
- As cercas das áreas de isolamento (fechos individuais) são de
responsabilidade dos proprietários das áreas.
- Aqueles que possuem áreas de divisa entre faxinal e a lavoura que não
permitirem que seja feita a reforma na cerca da divisa, ficarão responsáveis
pela reforma da cerca, arcando com as despesas dela, bem como se
responsabilizando pelos eventuais danos que sua falta de manutenção possa
causar, como por exemplo: a perda de animais e danos na lavoura ocasionados
por animais do criador comunitário, entre outros.
- Havendo a necessidade de manutenção das cercas de divisa entre
faxinal e a lavoura, aqueles que possuem criação no criador comunitário
deverão participar das reuniões e mutirões para os consertos. Caso não
participem, perdem o direito de deixar suas criações na área de criador
comunitário.
- Aqueles que deixarem os portões ao lado dos mata-burros abertos serão
responsabilizados pelos eventuais danos que possam acontecer, como por
exemplo: a fuga e morte de animais, danos à lavoura, entre outros.
- Os mata-burros do faxinal são de responsabilidade da Prefeitura
Municipal de Turvo em manter em bom estado.
- Não é permitido, dentro da área de criador comunitário, quaisquer
práticas agrícolas, tais como: gradear, arar ou usar veneno.
- Não é permitido o uso de qualquer tipo de agrotóxico/veneno, tanto nas
áreas de criador comunitário quantos nas áreas de isolamento.
- Não é permitida qualquer prática que vá contra as leis ambientais.
- Não é permitido fazer queimadas dentro do Faxinal.
- É proibido qualquer tipo de caça dentro do Faxinal.
- No caso de acidente envolvendo automóvel e criação animal, o
condutor do veículo deverá responder civil e criminalmente pelos danos
decorrentes.
- Fica proibido no faxinal manter animais que venham a descascar
pinheiros ou comer mudas de pinheiros, matar ou agredir outros animais ou
pessoas, ficando sob responsabilidade do dono do animal os danos que este
causar.
- Não é permitido retirar pinhão dos pinheiros sem autorização do dono
(ASSOCIAÇÃO FAXINALENSE SAUDADE SANTA ANITA, 2011, p.1).
Esse cenário ficou explícito nas entrevistas e nas anotações de campo. Os faxinalenses
relataram de maneira intensa e perturbadora o contexto em que o faxinal parecia esfacelar-se,
passando por mudanças bruscas marcadas pelo descontrole dos “fechos” e por despojamentos
territoriais, intimidação e ameaça de morte às lideranças, danos e matança de animais, que
solaparam em boa medida a autoestima dos faxinalenses, colocando em descrédito o futuro do
faxinal, mantido pelas diversas ações de resistência localizadas, que visavam assegurar a
permanência de áreas em uso comum.
31
4 A “INSURREIÇÃO DE DIREITOS” NOS FAXINAIS
32
posturas – que amparavam o uso comum, é a permanência dos “acordos comunitários”
sustentados pela organização social faxinalense que mantém a unidade do grupo ante a
privatização do uso das terras, até o momento atual, no qual os “fechos” forçam a fragmentação
do uso comum a partir de dentro, sendo contidos pelas regras internas do faxinal que tensionam
e resistem contra o esfacelamento territorial.
Conquanto em períodos anteriores as leis do Estado tivessem subordinado as relações
sociais engendradas pela autonomia camponesa em períodos anteriores, a análise do processo
de privatização das terras de faxinais permitiu identificar não o fim de um sistema jurídico, mas
a “coexistência” assimétrica do ordenamento local ao ordenamento estatal, marcada pela
tolerância, pela funcionalidade e pela complementaridade dos “acordos comunitários”, em
posição marginal no ordenamento jurídico estatal. A despeito disso, até o início da década de
80, os “acordos comunitários” inseriram-se parcialmente na estrutura e no funcionamento do
ordenamento estatal, resistindo pela inaptidão deste último para regular todos os aspectos da
vida social, não somente os relacionados à conservação das cercas em seu aspecto jurídico, mas
também os relacionados às dimensões religiosa, social, política e econômica. O conjunto dessas
dimensões articuladas permitiu a coesão social do grupo, garantiu o sentido de justiça e o
reconhecimento de sua forma de organização social pelo Estado, ainda que de modo marginal.
Tais aspectos auxiliaram-nos a constatar que os faxinalenses reelaboram seus “acordos
comunitários” também no cruzamento entre várias ordens jurídicas, como no caso dos códigos
de posturas.
Se o ordenamento estatal serviu em boa parte de sua vigência ao objetivo jurídico de
proteger a ordem agrária imposta pela propriedade privada da terra por meio da centralidade
das cercas de perímetro, os “acordos comunitários”, por sua vez, mantiveram as relações que
ordenam o uso comum no faxinal, isto é, garantiram sua permanência, apoiando-se nas relações
de parentesco e nos vínculos sociais de cooperação e de autodefesa contra antagonistas que
ameaçavam os faxinalenses.
Assim, enquanto o ordenamento estatal administrava juridicamente o uso comum entre
propriedades privadas – por intermédio da figura do inspetor municipal que monitorava
desavenças relacionadas à conservação das cercas do perímetro dentro das regras de altura,
vedação e tipos de materiais, responsabilizando os donos das criações animais por danos
causados nas lavouras e dividindo o trabalho e os custos da manutenção das cercas –, o
ordenamento jurídico local internalizava essas regras entre seus moradores beneficiados pelo
uso comum das pastagens, independentemente da presença do Estado, em um processo que se
33
assemelha à autogestão (CARVALHO, 1984), mostrando-se fundamental para a organização
da vida social.
A investigação também nos permitiu compreender que o Faxinal Saudade Santa Anita,
desde suas territorialidades diferenciadas, apresenta um ordenamento jurídico próprio,
intrínseco e plástico, que se foi moldando às novas relações sociais, por fatores de natureza
jurídica, política, econômica e simbólica, concernentes ao processo de ocupação da terra,
considerando o conjunto de relações sociais entre parentes, moradores, fazendeiros, outras
comunidades, os “contra”, o mercado e o Estado. Portanto, o ordenamento jurídico local não se
formou nem sequer foi alterado posteriormente por processos fechados em si mesmos, como se
estivesse livre das relações sociais com outros sujeitos; tampouco foi formado como réplica da
ordem jurídica estatal, ainda que tenha inevitavelmente sofrido influências e influenciado, dada
a sua condição subordinada e dependente, mas também internalizada nas relações sociais e nos
corpos.
Foram essas relações de poder, determinadas pela instituição da propriedade privada da
terra, a razão da complexa “coexistência” com o uso comum, motivo da permanente e crescente
insegurança jurídica entre os faxinalenses, que buscaram a conversão de seus acordos em leis,
visando assegurar garantias à sua organização social e territorial, em função do aquecimento do
mercado de terras e das consequências da compra de terras por novos moradores, bem como da
constante preocupação com os herdeiros e suas escolhas, que se resumem em continuar ou não
a disponibilizar as terras para o uso comum.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegados à etapa final do artigo, é possível nos ater a alguns apontamentos conclusivos
que desde o início mobilizaram os esforços de pesquisa e justificaram a hipótese da centralidade
dos “acordos comunitários” como princípio ordenador da vida social no faxinal, tendo no uso
comum dos recursos naturais o princípio que estrutura as relações sociais. Por isso, buscamos
conhecer e compreender o enlace entre os diferentes processos sociais de territorialização
(OLIVEIRA, 1999) e a atualização das práticas jurídicas, ao longo de mais de um século de sua
existência na localidade Faxinal Saudade Santa Anita. Por essa razão, o sistema jurídico local
pode ser lido como uma noção-chave para o entendimento das dinâmicas territoriais pelos quais
o grupo se reconstrói contra históricos e novos antagonistas.
A análise desse longo período permitiu-nos compreender que as relações sociais internas
ao faxinal, contra os antagonistas, especialmente o Estado, passaram por momentos de rupturas
34
completas da estabilidade jurídica e política, o que resultou em várias ameaças à existência
social do faxinal, mas também em resistência e ofensivas dos sujeitos faxinalenses. Tal contexto
evidenciou pelo menos dois fatores que concernem aos faxinais nessa longa trajetória até a
criação da APF: primeiro, a dominação legal sempre impôs processos heterônomos,
ocasionando substanciais mudanças na organização social e territorial dos faxinais, com a
finalidade de ampliar a apropriação privada dos recursos naturais e o poder dos proprietários de
terra, em detrimento da equitativa distribuição dos bens comuns e da relativa autonomia
camponesa preconizadas pelas práticas jurídicas locais; segundo, enquanto identidade étnica e
coletiva, os faxinalenses resultam de uma construção social e histórica mediada por interações
conflitivas em defesa do uso comum das pastagens e das demais territorialidades específicas,
consoante pactos internos que, ao longo das décadas, mantiveram sua unidade social em
períodos de instabilidade econômica, política e jurídica.
Entrementes, desde 2005, com a criação da APF, observa-se a passagem da existência
atomizada para a existência coletiva dos faxinalenses, momento em que se objetivam em
movimento social os processos de resistência e de luta, seja na esfera local (comissões locais e
associações faxinalenses), seja no plano estadual e nacional (participação em conselhos e
comissões governamentais). Tais mobilizações políticas permitem que a narrativa dos
faxinalenses emerja e transcenda os esquemas explicativos que ocultam e silenciam sua
existência social. Pode-se asseverar que é a autodeclaração coletiva que rompe com a norma
discursiva dominante, provocando a reinterpretação dos sujeitos de direito no campo das
ciências jurídicas e sociais, influenciando a orientação das análises científicas e fornecendo um
novo contorno às interpretações jurídicas.
Tais mobilizações têm levado ao conhecimento do Poder Judiciário as formas
intrínsecas de uso comum dos recursos naturais e as delimitações das territorialidades
específicas dos faxinalenses, demandando seu reconhecimento jurídico-formal pelo Estado e
requerendo dos operadores do direito e das estruturas burocráticas (Instituto Ambiental do
Paraná, Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, Prefeituras, Força
Verde etc.) competências e saberes adequados que relativizem noções preconcebidas sobre as
formas tradicionais de uso dos recursos naturais nos faxinais.
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; SOUZA, Roberto Martins de (org.). Terras de
faxinais. Manaus: Edições da UEA, 2009. (Coleção Tradição e Ordenamento Jurídico, 4).
35
ASSOCIAÇÃO FAXINALENSE SAUDADE SANTA ANITA. Acordos comunitários.
Faxinal Saudade Santa Anita, 2011.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (org.). A viagem de
volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 1999. p. 13-42.
PARANÁ. Lei n.º 15.673, de 13 de novembro de 2007. Dispõe que o Estado do Paraná
reconhece os Faxinais e sua territorialidade. Diário Oficial do Estado do Paraná, Curitiba,
n. 7597, 13 nov. 2007.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. O direito dos povos dos faxinais. In: ALMEIDA, Alfredo
Wagner Berno de; SOUZA, Roberto Martins de (org.). Terras de faxinais. Manaus: Edições
da UEA, 2009. (Coleção Tradição e Ordenamento Jurídico, 4). p. 17-28.
SOUZA, Roberto Martins de. “Na luta pela terra, nascemos faxinalenses”: uma
reinterpretação do campo intelectual de debates sobre os faxinais. 2010. 335 f. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.
YU, Chang Man. Sistema faxinal: uma forma de organização camponesa em desagregação
no centro-sul do Paraná. Londrina: Iapar, 1988. (Boletim Técnico, 22).
36
CONSTITUIÇÃO LOCAL: DIREITO E TERRITÓRIO NUMA
COMUNIDADE AMAZÔNICA6
1 INTRODUÇÃO
6
Os dados apresentados neste texto compõem, em parte, a tese de doutorado A constituição local: direito e
território quilombola na comunidade de Bairro Alto, ilha do Marajó-PA, defendida por mim, Luis Fernando
Cardoso e Cardoso, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
de Santa Catarina, sob a orientação da professora Ilka Boaventura Leite, a quem sou muito grato. O artigo
estabelece um diálogo com outro projeto de pesquisa, intitulado Conflitos socioambientais em Sítio Ramsar:
modelos de natureza e direitos territoriais em disputas, que conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa
e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema) (Edital 035/2018 – Redes Territoriais).
37
Nesses lugares, não bastou apenas construir estruturas comunitárias, mas foi
imprescindível criar regras sociojurídicas que garantissem a segurança necessária à reprodução
física e cultural dos grupos. A Compreensão desses processos são importantes por
possibilitarem perceber como são construídas as práticas jurídicas locais e como elas funcionam
por ocasião dos conflitos pelo uso dos territórios das comunidades no interior da Amazônia.
Para discutir tais aspectos, partiremos do conceito de pluralismo jurídico, já que esta noção
considera o direito como inerente ao campo social e não atributo da ordem jurídica estatal
(MOORE, 1976; GRIFFITHS, 1986; GEENHOUSE, 1998; GRIFFITHS, 2002; GUEVARA
GIL, GÁLVEZ RIVAS, 2014; BENDA-BECKMANN, TURNER, 2018).
Buscando preencher está lacuna nas pesquisas sobre comunidades negros rurais, esta
pesquisa foi realizada na comunidade quilombola de Bairro Alto, localizada a 15 quilômetros
da sede do município de Salvaterra, na ilha do Marajó, no Estado do Pará. A localidade é
formada por uma população de crede de 340 habitantes, divididos em 84 unidades familiares.
Investigamos especificamente as práticas jurídicas locais de Bairro Alto para compreender as
formas de manutenção, de organização e os laços de pertencimento ao território. Tais aspectos
estruturaram-se no momento da formação da comunidade, gerando princípios de uso e usufruto
que definiram simbolicamente o território tradicionalmente ocupado. O território está, desse
modo, ordenado com base em práticas jurídicas locais surgidas no processo de ocupação da
terra e em um conjunto de relações sociais conflituosas com os fazendeiros, com outras comunidades
vizinhas e com o próprio Estado (MEINZEN-DICK, PRADHAN, 2002).
38
Hoje a comunidade de Bairro Alto está empenhada em reaver parte do território perdido
em confrontos com fazendeiros que se apropriaram das terras. A base primeira para essa
reivindicação é a ordem jurídica local, parte inseparável da história do grupo, foi violada por
expropriadores, sendo necessário restabelecê-la.
Na condição de libertos, os negros somente poderiam adquirir terras pela compra, como
outros brasileiros e estrangeiros migrantes para o Brasil, de acordo com o artigo 1.º da Lei de
Terras, de 1850, que ressalta: “ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro
título que não seja o de compra”. Assim, essa lei proíbe a qualquer um ter o domínio sobre as
terras devolutas7 do Império, como era possível antes de sua promulgação8 (SILVA, 1996).
Todavia, acreditamos que o senhor Joaquim, para registro de sua área, valeu-se do artigo 5.º, o
qual enfatiza:
Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primária, ou havidas
do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada,
habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1.º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno
aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais
de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que, em nenhum caso, a extensão total da
posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma
comarca ou na mais vizinha.
Silva (1996, p. 124-125), apontando os processos que envolveram a aprovação da Lei
de Terras bem como as implicações para o Brasil, observa:
7
Silva (1996, p. 161) define terras devolutas, segundo a Lei de Terras de 1850, como as terras que não estavam
ligadas a algum uso público nacional, estadual e municipal, bem como as que não estavam no domínio particular
em virtude de título legítimo.
8
Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850.
39
Com o fim do trabalho escravo e a transição para o trabalho livre, e, na visão do governo imperial,
a solução para que essa transição se operasse sem traumatismos era a imigração estrangeira, que
por sua vez precisava ser financiada. Uma forma de financiar esse processo seria a venda das
terras devolutas da Coroa. Isso leva a adquirir-se terra somente pela compra.
A área na qual está situada parte da comunidade de Bairro Alto foi concedida ao senhor
Joaquim; por não possuir proprietário anterior, era tida como terra de ninguém, aspecto
ressaltado 110 anos depois pelo senhor Vera Cruz, que tem 78 anos: “Isso aqui era terra de
ninguém. Era tudo terra da União”. Para ele, a terra de ninguém é do Estado, podendo ser
apropriada pelos grupos que nela vivem e criam seu modo de vida. A carta de aforamento
concedida ao senhor Joaquim indicava ser ele o primeiro ocupante da área.
Ser definido como primeiro ocupante torna-se uma questão temporal importante na
formação da propriedade no Brasil, naquele momento da instalação da comunidade ou no
futuro. Ao analisar a formação da propriedade no pensamento de Kant, Durkheim (2002, p.
181-182) enfatiza que “a tomada de posse só se conforma à lei da liberdade anterior de cada
um sob a condição de ter a vantagem da prioridade no tempo, ou seja, de ser a primeira tomada
de posse”. Ele ainda continua:
uma vez que minha vontade se declarou, nenhuma outra pode se declarar em sentido contrário;
mas, inversamente, se nenhuma outra vontade se declarou, minha posse se afirma com toda
liberdade. E, como é pela ocupação que se afirma a vontade da apropriação, a condição de
legitimidade de minha apropriação é ser o primeiro ocupante.
Num espaço “geográfico vazio” 9, terra supostamente sem gente, forma com a qual tem
sido definida a Amazônia por muito tempo, o Estado é legalmente10 proprietário de grande parte
das terras da região. Ser, então, o primeiro a requerer a área definia, no final do século XIX, um
9
Charles Wagley (1988) mostra com clareza, em seu estudo clássico sobre “uma comunidade amazônica”, o modo
de vida dessa população da região. Ele ressalta ainda a baixa densidade demográfica da Amazônia, menos de
dois habitantes por quilômetro quadrado, na década de 50. Esse aspecto ainda não mudou significativamente. A
denominada Amazônia Legal cobre 61% do território nacional, com um total de cinco milhões de quilômetros
quadrados. Ela abrange os estados do Amazonas, Acre, Amapá, oeste do Maranhão, Mato Grosso, Rondônia,
Pará, Roraima e Tocantins. Se considerarmos sua superfície total, temos uma densidade demográfica média de
3 habitantes/km2, enquanto, nas capitais dos estados, esse indicativo sobe para 17 habitantes/km 2, o que
evidencia o inchaço das cidades da região. Tal aspecto impõe a hipótese de alta concentração de terras nas mãos
de poucos, relegando às pequenas comunidades camponesas, ribeirinhas e quilombolas uma área reduzida de
terra para a reprodução de seu modo de vida, fato que leva muitas vezes seus membros a migrar para as cidades,
o que torna suas vidas ainda mais precárias nas periferias das grandes cidade (MEIRA, Alcyr. A Amazônia e
seus mitos. Disponível em: http://www.acp.com.br/pdf/AlcyrMeira.pdf. Acesso em: 12 set. 2007).
10
A ilha do Marajó possui 74,2% de terras devolutas, ou seja, essas terras são legalmente do Estado. Porém, a área
da ilha está em grande parte ocupada por fazendas. Os posseiros de grandes áreas exercem poder significativo
na relação com as comunidades quilombolas, dizendo-se donos das terras. Todavia, somente 25,8% das terras
estão devidamente registrados como estabelecimentos agropecuários, segundo o Plano de Desenvolvimento
Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó, formado pelo Grupo Executivo Interministerial (GEI), por
meio do Decreto de 26 de julho de 2006. A ilha do Marajó possui 74,2% de terras devolutas, ou seja, essas terras
são legalmente do Estado. Porém, a área da ilha está em grande parte ocupada por fazendas. Os posseiros de
grandes áreas exercem poder significativo na relação com as comunidades quilombolas, dizendo-se donos das
terras. Todavia, somente 25,8% das terras estão devidamente registrados como estabelecimentos agropecuários,
segundo o Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó, formado pelo Grupo
Executivo Interministerial (GEI), por meio do Decreto de 26 de julho de 2006.
40
proprietário, desde que pagasse as taxas necessárias ao governo. Isso porque o espaço requerido
pelo senhor Joaquim não tinha sido reivindicado por herdeiros de um dos 22 contemplados pela
doação da ilha do Marajó em 176011 por D. José I. De fato, o local escolhido para a instalação
da comunidade era distante da sede municipal, à qual somente se chegava por dentro da mata
ou após várias horas de canoa a remo, cortando furos12que levam de um rio a outro.
O senhor Joaquim fez esse caminho até a cidade de Soure, buscando com isso ser
proprietário da área na qual se instalara com sua família. Tentou garanti-la a seus herdeiros a
partir de documentação, porque sabia que “a sociedade não estabelece somente uma relação
entre a imagem de um lugar e um escrito”. Ela, como lembra Halbwachs (2004, p. 152),
“considera o local enquanto se relaciona então a uma pessoa, seja porque esta o tenha
demarcado com balizas e cercas, seja porque ali reside habitualmente, porque o explora ou
manda explorar”. Assim, o senhor Joaquim tinha demarcado sua área com o trabalho, mas
necessitava também de uma garantia legal de sua propriedade.
A comunidade de Bairro Alto foi assim criada por um ato fundador de um homem. Por
consequência, também foi ele quem instituiu uma ordem social, submetida a regras constituídas
na dinâmica das relações sociais do grupo entre si e dele com outros. Essas regras – ressalte-se
– não dizem respeito somente àquele grupo de descendentes do senhor Joaquim, mas espelham
e refletem as práticas jurídicas envolvendo várias unidades sociais e grupos quilombolas no
11
Os jesuítas foram, por muito tempo, no Pará, os mais ricos. Em suas fazendas, reuniam 134.465 cabeças de gado
bovino e 1.409 cabeças de gado cavalar. Além disso, possuíam outras fortunas. Com a expulsão dos religiosos,
suas posses foram entregues a um diretor, que quase as leva à ruína. Antes disso, D. José I mandou, por carta
régia de 18 de junho de 1760, ratear e repartir entre juntas governamentais tais posses. Assim, na ilha de Marajó,
formaram-se 22 quinhões aproximadamente iguais (ANNAES..., 1902).
12
Trecho de água, em meio a arvoredos e plantas aquáticas, passível de ser navegado, pelo qual rios e lagos se
comunicam.
41
Marajó, pois há, como lembra Azevedo Marin (2005), um conjunto de comunidades de
descendentes de escravos a se constituir nesse período. Elas têm relações de parentesco entre si
e compartilham a ideia de uma ancestralidade comum, sendo a comunidade quilombola de
Mangueira – município de Salvaterra – o foco de dispersão. Assim, as regras jurídicas locais
assumem feições próprias, mas, de maneira ampla, manifestam um conjunto maior de relações
formadas nas mesmas condições históricas e sociais, a exemplo das comunidades onde se
situam as quebradeiras de coco do quilombo Enseada da Mata, no Maranhão. Tais comunidades
constituíram-se, com exceção do povo indígena Gamela, a partir da decadência e da
desagregação do sistema monocultor exportador no final do século XIX e início do XX
(ANDRADE, 1999; SÁ, 2007). As práticas jurídicas locais construídas por essas comunidades
na região da Baixada Ocidental Maranhense, baseadas em um complexo sistema de uso comum,
ensejaram uma maneira própria de utilizar e de usufruir a terra e os recursos naturais, garantindo
a existência coletiva dos grupos, que hoje se encontram ameaçados diante do processo de
“modernização” pelo qual passa a região.
O direito de propriedade está na base de todo pensamento jurídico ocidental, sobre o modelo e a
partir do qual é possível conceber como todas as outras obrigações são definidas. Disto decorre
que a sociedade adota uma atitude, e uma atitude durável, frente a tal parte do solo ou de tal
objeto material.
Uma das regras construídas na comunidade, que assume importância até o presente, é a
forma de transmissão das terras restrita aos denominados herdeiros. Tal regra garante o
território a seus descendentes, eliminando a possibilidade de que outras pessoas de fora, que
não estejam concretamente vinculadas ao grupo a partir de laços de consanguinidade, venham
a instalar-se no território. Anjos e Silva (2004, p. 70) explicam:
42
Mas não só o mapa genealógico e a consanguinidade garantem a condição de herdeiro;
é necessário observar outras práticas sociais decorrentes do próprio universo de relações locais.
Com efeito, soma-se ao aspecto genealógico um habitus (BOURDIEU, 1999, p. 60-61) que faz
com que as “práticas sem razão explícita e sem intenção significante de um agente singular
sejam, no entanto, ‘sensatas’, ‘razoáveis’ e objetivamente orquestradas” pelo grupo para que
alguém possa ser reconhecido como parte dele.
13
Margarida Moura (1978) fez uma descrição que se tornou clássica na Antropologia Social brasileira sobre o
sistema de herança de terras entre os sitiantes do Sul de Minas Gerais. Esse estudo usou como base a transmissão
de terra dentro de um grupo familiar com propriedade definida. Isso se diferencia de Bairro Alto, no qual o
território é de uso comum a vários grupos familiares.
14
Didier Eribon pergunta a Lévi-Strauss (2005) numa entrevista: “O senhor hoje manteria a ideia de partida de
seu livro, ou seja, de que a proibição do incesto mostra que o domínio da cultura é o universo da regra?” O mestre
francês, citando exemplos etnográficos, fornece uma resposta afirmativa à pergunta: o domínio da cultura é o
domínio da regra.
43
prático possibilita flexibilidade em sua aplicação, levando a uma argumentação lógica, na lógica
dos sujeitos, sobre as possibilidades presentes na regra. Mas, de forma alguma, sua praticidade
nega sua existência como fundamento das relações sociais.
Quando da instalação do senhor Joaquim nas terras onde hoje se encontra a comunidade,
existiam perto outras famílias com terras, compartilhando as regras sociais quanto à apropriação
do território, delimitando as fronteiras simbólicas e territoriais dadas por acidentes geográficos,
árvores, bem como pela memória que identifica cada limite de propriedade. As famílias
dividiam – e ainda dividem –, além dos limites entre os territórios próprios de cada unidade
social, os espaços dos rios, para a atividade de pesca, das matas, para a caça, a coleta ou o
extrativismo e para o estabelecimento de roças de mandioca.
O local que aqueles homens e mulheres, cuja procedência não é conhecida por seus
atuais descendentes, escolheram para instalar-se permitia a exploração de recursos naturais para
a reprodução física e cultural, como ainda ocorre. A divisão de terras próximas gerou uma
identidade familiar e territorial. Mas, por outro lado, também criou um conjunto de princípios
de inter-relação entre os grupos sociais que fazia com que todos respeitassem as formas de
organizar as áreas próprias de cada grupo, porque isso dizia respeito à forma de manutenção de
terra. Formou-se, dessa maneira, o que poderia ser denominado “um ordenamento jurídico
local”.
Aqueles homens e mulheres passaram grande parte de suas vidas construindo suas casas
em áreas que definiam como suas, indicando quem poderia fazer uso daquele espaço, não
.
44
apenas como ordem física, mas, sobretudo, simbólica. Além disso, estabeleceram uma rede de
reciprocidade, de casamentos entre as várias famílias, e uma solidariedade que compunha o
quadro organizativo local.
Os limites das regras são, em muitos casos, flexíveis e passam por negociações e
ponderações que garantem a manutenção da ordem social local dentro dos extremos que cada
situação requer. Isso, todavia, não implica falta de dinâmica; pelo contrário, permite renovar
alguns aspectos, manter e reafirmar outros, sem, muitas vezes, a justa consciência. O conjunto
de práticas jurídicas locais não pode ser separado das relações sociais presentes, mantidas pelo
grupo também com sujeitos externos a ele. No caso, o direito demonstra-se visceralmente ligado
aos contextos em que é aplicado, diferentemente da tradição do direito moderno, que criou
categorias abstratas (como o contrato, a propriedade, o sujeito de direito) para pôr ordem nas
relações de troca que se constituíam.
Os sistemas jurídicos locais têm ainda uma ligação forte com os antepassados do grupo,
pois eles não estão num vazio geográfico, estão relacionados a um espaço físico e mítico, que
constitui e ativa a memória do grupo. Fala-se dos antepassados como se eles existissem de
forma concreta nos espaços nos quais viveram, construíram suas casas, estabeleceram suas
roças e pomares, fizeram suas plantações, etc. Não se faz alusão a um antepassado sem citar
onde morava e plantava, sem falar, portanto, de suas marcas, sinais de existência concreta, que
estão tanto no território quanto na memória das pessoas. Arruti (2006, p. 241) mostra que isso
é igualmente recorrente no universo da comunidade Quilombola de Mocambo, no Estado de
Sergipe:
[...] Para a população do Mocambo, o território serve não apenas como um guia de suas
narrativas, mas também como uma moldura para elas: o que foi registrado sobre o território é
memorável, o que fica fora dele não é. Não é possível recuperar, senão muito genericamente, de
onde vieram seus ancestrais ou como chegaram ali, porque isso parece remeter a um tempo sem
suporte para a memória, época nebulosa de onde não chegam histórias e onde impera o silêncio.
Por isso, seria possível afirmar que a memória do Mocambo, antes de ser uma memória histórica,
é uma memória territorial.
45
O espaço torna os antepassados lembranças vivas, marcas no presente, porque a imagem
deles está assinalada, sendo quase possível percebê-los concretamente em menções locais, tais
como “vou pegar uma fruta na árvore do finado avô”, “ali é a tapera do finado Joaquim”, “esta
é a mangueira da Inácia”. Antepassados presentes na terra. Ao se falar num antepassado,
sempre, usa-se a posição na geografia do território e na genealogia do grupo. A existência de
qualquer pessoa está diretamente marcada pelo espaço não apenas na mente, mas igualmente
no território.
Desse modo, as terras das unidades sociais da comunidade de Bairro Alto estão ligadas
a cada grupo familiar, não são vistas como pertencentes a um único proprietário definitivo ou
a um conjunto deles. Elas são sempre de gerações futuras, herdadas de gerações anteriores. São
sempre consideradas como pertencendo aos filhos ou a seus descendentes, filhos dos filhos,
tendo em vista, de tal modo, um local que está sempre por vir, um futuro distante. O atual
proprietário da terra está apenas guardando-a para outras gerações; daí o cuidado que se tem
com a terra e os recursos naturais ali existentes.
É como “quando uma pessoa morre, e deixa um herdeiro”, lembra Halbwachs (2004, p.
153): “diz-se que ‘o morto agarra-se ao vivo’, quer dizer, tudo se passa como se não tivesse
havido interrupção no exercício dos direitos, como se houvesse uma continuidade entre o
herdeiro e o ascendente”. Nesse mesmo sentido, Godbout (1999) vê a herança como uma forma
de dádiva. Esse autor enfatiza que os herdeiros podem ser chamados “testemunhas”, pois “a
geração que herda”, ressalta ele, “funciona como geração-testemunha entre a geração
precedente e a seguinte” (GODBOUT, 1999, p. 58).
Essas são formas comuns de conceder e de negar o direito ao território. Essa é uma regra
que assume sua força nas relações sociais locais desde os fundadores. Não possuir, então,
formal e socialmente ascendentes que deram origem à comunidade invalida a condição de
herdeiro. Isso é comum, sobretudo quando o filho é fruto de uma relação extraconjugal, pois o
sujeito não consegue se colocar na genealogia do grupo. Portanto, nem todos podem ser
definidos como herdeiros do território, já que nem todos conseguem estabelecer um vínculo
com o fundador da localidade. Com isso, excluem-se as pessoas que vivem há muitos anos: por
não serem percebidas como do grupo, como herdeiros, sofrem restrições no uso do território da
comunidade. Isso implica que o cônjuge de um herdeiro passa a adquirir direitos sobre o
território, de modo que o fator oferta de terra para a reprodução social do casal não está ausente
da estratégia de escolha matrimonial por parte daquele que não possui terra. Isso porque o
46
sistema de herança é bilateral, sendo assegurado às mulheres e aos homens da comunidade,
direito à terra.
Parece, desse modo, que a oferta de terra a um dos cônjuges é um fator que pesa na
escolha do parceiro para a composição familiar. Os homens, de forma geral, se possuírem terras,
mesmo que as mulheres também possuam, optam por residir junto de sua família; já entre as
mulheres, esse desejo é menos intenso. Porém, se faltar terra ao homem, ele irá morar nas terras
da família da esposa, mesmo que isso não seja o ideal para ele, pois, de certa forma, prefere
assumir o ônus de construir a casa e tudo o que envolve a nova relação em suas terras. As
mulheres, por outro lado, se necessário, buscam assumir somente o ônus da concessão da área
para a construção das condições do núcleo familiar, e o restante é visto como obrigação
plenamente masculina.
Na visão do marido, existe o desejo de assumir o ônus da nova relação. Soma-se a isso,
o sentimento de segurança por estar num espaço seu, não tendo de abandonar tudo o que
construiu, caso o casamento venha a ser rompido. Todavia, há atualmente um descompasso
entre o que os homens desejam como ideal e a real situação do território. Com efeito, não há
terras disponíveis para os novos grupos familiares por conta da perda de parte do território para
os fazendeiros lindeiros ou do crescimento demográfico da comunidade.
No passado, o ideal era alcançado: os homens eram os únicos provedores da família, por
terem acesso fácil aos elementos necessários a sua subsistência. Mas, mesmo hoje, diante da
escassez de terra, ainda não mudaram sua maneira de ver o casamento e nutrem o ideal de trazer
a esposa para sua terra; tampouco deixaram de considerar a possibilidade de morar no terreno
da família de sua esposa, desde que necessário. No caso das quebradeiras quilombolas,
observamos o papel preponderante das mulheres na chefia das famílias. Aliás, na sua maioria,
elas tornaram-se lideranças do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu
(MIQCB).
Hoje o modelo ainda é seguido, não mais, porém, como um imperativo para os que
procuram construir uma vida em comum. Há, sim, a busca de um local no qual o casal possa
assentar sua casa, sua residência e, segundo a disponibilidade de terras, construir formas de
manter sua família de um modo compatível com sua reprodução.
O fato de a mulher, ao casar, ir com seu cônjuge para o território dele garante-lhe uma
estabilidade maior do que a que o marido conseguiria, caso fosse morar na terra dela. A
condição de esposa atribui à mulher a falsa percepção de que passa a integrar o grupo do marido,
com os mesmos direitos de outros reconhecidos como pertencentes à comunidade. Na verdade,
47
porém, a efetiva incorporação da esposa como possuidora do direito às terras da família do
marido somente se dá com o nascimento dos filhos, e, mesmo assim, nunca de forma integral.
Os filhos, ao nascerem, parecem ser os esteios sobre os quais se assenta a maior segurança da
esposa. Não há como negar a condição de herdeiro ao filho de um herdeiro. Desse modo, não
se pensa em separar uma mulher de sua prole, portanto, com isso, ela também conquista o
direito ao território por via dos filhos.
Não há contestação dessa situação caso o marido venha a morrer. Os filhos do casal são
os herdeiros diretos, mesmo aqueles que não são filhos biológicos, mas foram registrados pelo
chefe da família. A condição de herdeiro dos não registrados é contestada. A mãe assume,
portanto, a posição de guardiã das terras para os filhos enquanto eles não podem assumir
integralmente os bens deixados pelo pai. Tais práticas jurídicas locais estabelecidas e vividas
no interior dos grupos contrariam aquelas ditadas pelo Código Civil brasileiro de 2002, que
determinou tratamento isonômico para os filhos, independentemente de sua origem.
Quando uma mulher casa e o marido vai morar com ela, ainda que digam que, em certos
momentos, ele tem direito à área por ser esposo, por ter casado com uma herdeira, o marido
reconhece que seu direito é limitado, por não possuir vínculos de consanguinidade com o grupo.
Ele sabe que a aliança estabelecida pelo casamento não é suficiente para fazê-lo sentir-se como
parte integrante do grupo. Sabe, por exemplo, que, caso seu casamento termine, o mais
apropriado é procurar outro lugar onde poderá dar continuidade a sua vida.
Constata-se, desse modo, o que Deere (2000, s/n) mostram sobre os direitos das
mulheres em relação à terra na América Latina. Para essas autoras, a posse da terra dá à mulher
um poder de decisão que ela não teria se não estivesse na condição de proprietária. Ressaltam
a autora:
a terra é importante para criar as bases de uma igualdade real entre homem e mulher. [...] a terra
e a propriedade em geral são importantes para os processos de empowerment (aumento de poder)
da mulher, tanto para melhorar sua autoestima, quanto sua possibilidade de participar das decisões
no lar, das decisões na produção e na comunidade, etc.
A garantia de terra dada às mulheres por meio do casamento com um herdeiro faz com
que existam estratégias para incentivar relações com herdeiros, o que assegura a reprodução do
grupo familiar no território do marido. Em certas situações, quando a família de origem da
esposa não possui terra, o marido não leva para seu território somente a mulher com quem
casou; dependendo da possibilidade de acesso às terras, leva um conjunto familiar, que
acompanha a esposa e passa a integrar o território do marido.
48
Esse fato é recorrente nas várias unidades sociais que compõem a comunidade de Bairro
Alto. As pessoas que casam são vistas como não herdeiras, ainda que se admita, em certo
momento, que elas têm direito à terra do marido ou da esposa. Mas o direito nunca é reclamado
para si; só para os filhos daquela relação. Os filhos do casal sempre são percebidos como
legatários; os de outra relação são considerados como não titulares de direitos.
O marido ou a mulher que passa a compor o grupo familiar como um sujeito com direito
à terra não é visto como ligado a ela. Caso o verdadeiro sucessor venha a morrer – o esposo ou
a esposa –, o outro cônjuge torna-se não o proprietário da área, mas tão somente o depositário,
podendo dispor da terra como bem entender, mas apenas como guardião para as gerações
futuras. Portanto, o território não é considerado como disponível para a venda. Existe no grupo
quilombola de Bairro Alto uma disposição em preservar a área para a geração seguinte.
os direitos costumeiros de herança caracterizam-se pela ausência de direitos de herança por parte
da viúva e pela divisão total e equitativa da herança entre os descendentes da primeira geração.
Isto é, a esposa não tem direito à herança. O casamento não dá acesso aos direitos de propriedade
sobre a terra do marido, pois estes são transferidos do pai apenas para seus descendentes.
Negrão (2003, p. 241) continua:
a divisão total da herança significa que os bens e os direitos de propriedade são repartidos e
atribuídos aos descendentes da primeira geração, sem sobras ou fundos de reserva para os netos.
Trata-se, pois, de um sistema baseado em duas gerações ou um sistema de estabilidades
nucleares.
Portanto, para os que não possuem áreas de terra, o casamento é uma maneira de
consegui-las, por meio da união com os herdeiros. Embora essa possibilidade seja mais concreta
para as mulheres, não negamos existir a mesma estratégia para os homens, visto que a união de
um casal está longe de ser uma relação meramente romântica. Ela encerra elementos que
ultrapassam a sentimentalidade que envolve a relação de um casal. O trabalho de Lévi-Strauss
(2005, 2003) mostrou, inicialmente, o universo de troca que se funda com o casamento 15.
15
Apesar das generalizações com as quais o método estruturalista trabalha, é inegável sua contribuição para as
investigações empíricas. Assim, análises estruturalistas são boas para pensar sobre a realidade etnográfica de
qualquer pesquisador; todavia, isso não implica a aceitação plena de seus princípios teóricos e metodológicos.
49
Depois dele, a literatura antropológica é bastante farta em análises do casamento para além de
uma visão romântica de simples afetividade, mesmo que o romantismo seja hoje o ideal de
relação de qualquer jovem ou adulto da comunidade.
Quando a mulher é herdeira e traz o homem para morar em seu território, de certo modo,
ela possui um poder que resulta da condição de estar na terra de seus antepassados. No jogo das
relações, isso assume um significado simbólico que parece amparar a mulher, fornecendo-lhe
uma segurança, não somente em razão da propriedade da terra, mas também da própria estrutura
familiar, dos parentes que a cercam. Está entre os parentes e sente-se segura no ambiente social
no qual se insere. Já quando se instala no território do marido, a mulher sente-se desconfortável
por estar distante de sua terra e de seus parentes, mesmo que eles estejam a poucos minutos de
onde construiu sua casa com o marido. Muitas vezes ouvimos a reclamação de uma jovem
senhora que morava com o marido numa unidade social da comunidade próxima de onde estava
sua família de origem. Não se sentia confortável no lugar onde estava com seus filhos e seu
marido. Sempre nos disse que mudaria, ainda que o marido não aceitasse. Ele teria
inevitavelmente de escolher: ou a seguiria, ou a deixaria de vez.
Reclamações também foram ouvidas de uma professora cujo marido possuía terras em
outra unidade social. De forma geral, ela é tida como herdeira das terras onde mora com sua
família, porque sua mãe foi casada com um dos herdeiros. Porém, quando sua mãe casou, já
tinha cinco filhos. Então, hoje ela se diz herdeira e muitos reconhecem essa sua condição,
entretanto não é isso o que se evidencia no campo das relações sociais, na vivência cotidiana.
Parece que ela ocupa uma posição de herdeira intermediária, que lhe permite ficar no território,
mas não lhe permite fazer uso pleno da terra como convém a um herdeiro em linha direta de
descendência.
O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros” individuais ou coletivos;
é um modo de ação de alguns sobre outros. [...] só há poder exercido por “uns” sobre os outros;
o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidades esparso,
que se apoia sobre estruturas permanentes.
50
Portanto, a herança diferencia as pessoas a partir de sua posição na genealogia do grupo.
Ser herdeiro é uma condição que confere a pertença plena e a possibilidade de exercer o poder
como forma de garantir essa condição, requisito que a professora não preenche inteiramente,
por ser filha de outro homem, que não era herdeiro. Seu direito é reconhecido, mas impõe-lhe
limitações no uso do território.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
51
em direção ao reconhecimento. Talvez a garantia do território ancestral às gerações futuras seja
um projeto possível, que se esboça no horizonte das novas lutas sociais no Brasil atual.
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55
A JUSTIÇA DE XANGÔ: BREVE REFLEXÃO ACERCA DO USO DA
TRADIÇÃO COMO MOTIVAÇÃO DE DECISÃO JUDICIAL16
1 INTRODUÇÃO
16
Trabalho apresentado ao GT03 (sessão 02) – Diálogos convergentes: populações tradicionais e práticas jurídicas
– durante o 7.º Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir), realizado virtualmente no período de 23
a 27 de agosto de 2021.
17
A ação foi distribuída sob o n.º 8000796-64.2018.8.05.017618 (ver Anexo A).
18
Iyá Kekere é um termo do tronco linguístico yorubano que significa “mãe pequena” ou mulher responsável pela
criação das pessoas iniciadas naquela casa.
56
profana nos candomblés, o “culto” passa a ser considerado um “recorte na dimensão temporal
da experiência” (NASCIMENTO, 2016, p. 160), e o cotidiano é a continuação da instância das
manifestações dos orixás, inquices e voduns.
À luz da cosmovisão dos candomblés, diz Nascimento (2016, p. 160) que o corpo, como
todas as coisas, é “parte e participado dessas figuras primordiais dos candomblés”, ou seja, o
corpo é um elemento que tanto pertence à ancestralidade histórica e natural, quanto é portador
da história que constitui as famílias de axé, carregando “o tempo da memória, os acordos e
alianças que fizeram com que nossa existência se desse” (NASCIMENTO, 2016, p. 160).
Essa relação é entendida enquanto algo infindo, a partir do momento que se compreende
que a iniciação no candomblé cria uma relação de pertencimento à comunidade de maneira que
ela não é sanada com o cessar da funcionalidade corporal (morte). Os rituais fúnebres afro-
religiosos são responsáveis por renovar e reconhecer essa ligação no “pós-vida”
(CONCEIÇÃO, 2017). Assim como a Igreja Católica profetiza que, ao falecer, o fiel passará
por processos de bênçãos e missas (ritos fúnebres próprios da Igreja) para entrar na “vida
eterna”, na cosmovisão dos candomblés, os ritos fúnebres concretizam a continuação.
Mesmo que se admita que as comunidades de matriz africana não precisam legitimar-se
a partir da vivência, da logística e da cosmologia de outras religiões, essas observações são
usadas a fim de limpar o olhar e a imaginação cheia de resquícios do racismo religioso e do
“imaginário” sobre as comunidades de matriz africana.
É preciso compreender que as comunidades de matriz africana não vivenciam uma
tradição religiosa, sua cosmovivência abrange todos os aspectos civis, religiosos, pessoais e
espirituais de sua comunidade, de seu egbé19 e de seus iniciados. Nessa perspectiva, a petição
inicial da Ação n.º 8000796-64.2018.8.05.017618 apresenta um resumo da trajetória de Iyá
Stella enquanto filha de santo, pessoa civil e enquanto Iyá (Mãe), simbolizando seu
pertencimento àquela comunidade. Consecutivamente, também explica a importância de o
sepultamento ser realizado nos moldes tradicionais de matriz africana, dada sua importância
para a manutenção da continuação social da comunidade.
Nesse contexto, este artigo tem como objetivo refletir sobre o alcance dos métodos
utilizados no sistema judiciário brasileiro para jurisdicionar assuntos com base nas tradições,
notadamente com foco no conflito presente entre patrimônio cultural e direito de personalidade.
Em outras palavras, entendendo-se que o Judiciário deve considerar as diversas fontes e os
diversos saberes relacionados aos argumentos jurídicos necessários à solução dos litígios que
19
Egbé é uma palavra yorubana que significa “sociedade”.
57
lhe são apresentados, examina-se, com base no caso de Iyá Stella, a incorporação das tradições
de matriz africana na tomada de decisão.
2 O “descanso” da Iyá
Em dezembro de 2018, foi anunciada a morte de Iyá Stella de Oxóssi, que causou um
clamor nas comunidades tradicionais de matriz africana do território nacional. Maria Stella de
Azevedo Santos inicia sua trajetória dentro do candomblé levada por sua tia. Filha de Mãe
Senhora (Maria Bibiana do Espírito Santo), então Iyalorixá do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá
(Salvador), em 1976, um ano depois do falecimento de Mãezinha (Mãe Ondina de Oxalá) e
cumpridas todas as cerimônias fúnebres em honra da falecida, Mãe Stella é escolhida20 como a
5.ª Iyalorixá do Axé Opo Afonjá (AHUALLI; ALMEIDA, 2020).
Na década de 80, Iyá Stella fundou a escola Eugênia Anna dos Santos. Por sua militância
reconhecida, acumulou diversos títulos e honrarias, entre os quais o de doutora honoris causa
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); em setembro de 2013, foi escolhida para ocupar
a cadeira 33 da Academia Baiana de Letras. Todo esse trajeto construído por Maria Stella de
Azevedo Santos está diretamente vinculado ao título de “Iyalorixá” – título marcado por seu
sacerdócio no Ilê Axé Opô Afonjá. Iyá Stella e Maria Stella de Azevedo Santos não podem ser
entendidas como personalidades desvinculadas (AHUALLI; ALMEIDA, 2020).
Por ser Iyá Stella considerada uma das representantes do candomblé de maior
importância e visibilidade, seu falecimento revestiu-se de toda a complexidade de um evento
de luto coletivo em razão de todos os títulos por ela acumulados, tanto no universo político-
religioso21 quanto no universo acadêmico. Esse evento resultou em uma disputa judicial que
tinha como objeto jurídico o local de sepultamento e o direito à realização dos ritos fúnebres
que fazem parte da tradição do candomblé, para além da identificação de Maria Stella de
Azevedo Santos como Iyá.
20
A escolha para a sucessão do cargo de Iyalorixá é feita por meio de um jogo divinatório. No caso de Iyá Stella,
esse ritual foi realizado pelo professor e babalaô Agenor Miranda, na presença de toda a comunidade religiosa
do terreiro e de outras casas, que aguardavam pelos desígnios de Xangô, orixá patrono do terreiro.
21
Considero que as categorias de política e religião nas comunidades tradicionais de matriz africana de nação Ketu
estão diretamente entrelaçadas, segundo a trajetória histórica da Casa Branca – Ilê Axé Iyá Nassô Oká –, situada
no Engenho Velho (Salvador), fundada por dirigentes do povo de Oyó, da Nigéria. A fundação e a resistência
da Casa Branca do Engenho Velho têm um caráter religioso efetivado na compreensão da política enquanto
espaço de poder que garantiria o culto. A resistência dessa casa e de suas ditas “casas filhas” abriu espaço para
pesquisadores e determinadas relações com pessoas “do governo” como forma de garantir o culto. Política e
religião passaram, pois, a ser categorias similares.
58
Na petição inicial da Ação n.º 8000796-64.2018.8.05.017618, a Sociedade Cruz Santa
requeria o impedimento do sepultamento de Maria Stella de Azevedo Santos no cemitério
Nosso Senhor dos Aflitos, situado em Nazaré (BA), bem como o imediato translado do corpo
da de cujus para a cidade de Salvador (BA), para que o sepultamento fosse feito conforme os
ditames do Candomblé de Nação Ketu. Na parte contrária, estava Graziela Domini, na época,
companheira de Iyá Stella, que, com seu falecimento, assumiu o direito da personalidade da de
cujus.
A resposta do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) ao pedido de tutela de urgência,
requerido pela associação do Axé Opô Afonjá, determinou que o corpo de Iyá Stella fosse
levado à capital baiana e entregue à comunidade do Axé Opô Afonjá, interrompendo, assim, o
sepultamento em Nazaré. Diversos vídeos foram feitos e muitas fotos foram tiradas exatamente
quando pessoas da comunidade do Opô Afonjá, que se deslocaram de ônibus até Nazaré, com
a ordem judicial em mãos, carregaram o corpo de Iyá Stella que estava sendo velado sob gritos
e saudações direcionados ao Orixá Xangô, patrono da casa, considerado responsável pela
justiça.
A decisão recorreu à autoridade de nomes de antropólogos para legitimar a importância
social e simbólica do rito fúnebre, considerando que o direito, contrariando os ideais de Kelsen,
não é uma ciência pura, dissociada das outras ciências sociais. A falta de teorias e de estudos
sobre o direito funerário e suas vertentes pode ter tornado as argumentações antropológicas um
atrativo para a caracterização do bem jurídico (decisão liminar) pleiteado pela Sociedade Cruz
Santa como patrimônio cultural, com pleno exercício do culto religioso garantido pela
Constituição.
Contudo, essa afirmação tem alguns vícios importantes a serem observados. Cabe
considerar que o direito brasileiro não tem arcabouço suficiente para atender com total
compreensão as demandas tradicionais. Pressupor que esse seja seu papel é alimentar a ilusória
ideia de que o direito funciona sem outras ciências sociais. Portanto, é preciso ressaltar a
importância do diálogo entre as ciências sociais, considerando o direito enquanto uma ciência
social, para que os conflitos jurídicos sejam sanados com soluções que conversem com os
elementos das diversas comunidades tradicionais.
Quando se analisa a relação entre direito e candomblé, pode-se observar que a categoria
do patrimônio cultural cumpre um papel de caminho paliativo para a resolução dos conflitos
59
que envolvem as questões tradicionais de matriz africana. Com efeito, na amplitude do direito,
decisões com base nos costumes tradicionais ganham corpo jurídico. Em seu artigo 216, a
Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), de 1988, define patrimônio cultural
“[...] como os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira [...]” (BRASIL, 1988).
Alexandre de Morais (2003) defende que essa definição seja aplicada tanto a
manifestações culturais populares, quanto a manifestações culturais de povos indígenas e afro-
brasileiros. A decisão exarada nos autos da Ação n.º 8000796-64.2018.8.05.017618 considera
o candomblé como lócus de patrimônio material (no caso, o terreno do Opô Afonjá, tombado
em 2000) e imaterial, como o são as oferendas, os cânticos, os sons, o tabuleiro do acarajé, as
vestimentas das baianas que são parte intrínseca do desenvolvimento dessas comunidades. A
decisão concluiu que o rito fúnebre alcança, juridicamente, o caráter patrimonial, que, segundo
a concepção constitucional de patrimônio cultural, é grande portador de referência à identidade,
à memória e à continuidade. Em sentença, a juíza proferiu:
Presente o fumus boni iures da pretensão do Autor, visto a iminência do
sepultamento na cidade de Nazaré e, incontroverso é também o
periculum in mora, fato de que, a não realização do ritual religioso,
importará no sepultamento de Iyá Stella de Oxóssi, medida irreversível,
o que porá em risco continuidade dos ritos religiosos da sociedade
autora (ANEXO A).
60
existentes em uma sociedade”. À medida que se torna importante o reconhecimento das
manifestações culturais das camadas populares, o candomblé passa a ser considerado “como
um sistema religioso fundamental à constituição da identidade de significativa parcela das
sociedades brasileiras” (VELHO, 2006, p. 238).
Mesmo com o Decreto n.º 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que reconheceu os povos e
comunidades tradicionais (BRASIL, 2007) e com o Recurso Extraordinário (RE) n.º
494.601/2019, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) considera constitucional o sacrifício
de animais de acordo com preceito religioso, pode-se observar que o espaço conquistado pela
comunidade tradicional do candomblé na categoria de patrimônio caracteriza-se como um fator
social. Embora Gilberto Velho (2006, p. 238) reconheça o terreiro como patrimônio cultural,
por tratar-se de “um fato social, um terreiro em plena atividade, com seus fiéis, sacerdotes e
ritual em pleno dinamismo”, o que acontece quando a tradição entra em conflito particular com
as(os) filhas(filhos) de santo?
Olhares mais treinados logo perceberam que a presunção de que o exercício do direito
à personalidade de Iyá Stella, em situação de falecimento, alargar-se-ia sob a proteção da
legitimidade familiar deixa escapar parte do rito processual que realmente reconhece esse
direito.
De acordo com o Enunciado n.º 4 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça
Federal (CJF), “O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária,
desde que não seja permanente nem geral”.
61
Quanto aos remanescentes direitos de personalidade da pessoa falecida,
parece-nos haver, com efeito, uma sucessão ou uma aquisição derivada
translativa mortis-causa de direitos pessoais, mas com um regime muito
especial, funcionalizado em razão dos presumíveis interesses pessoais
do de cujus como se vivo fosse e fundamentalmente alicerçado em
termos de assegurar a legitimidade processual para requerer as
providências do n.º 2 do art. 70.º do Código Civil a todos aqueles a que
se reconheceu um interesse moral para agir em nome do falecido em
razão dos presuntivos laços que os ligavam ao defunto (SOUSA, 1995,
p. 404).
O artigo 1.790 do Código Civil dispõe sobre a matéria de sucessão por união estável
(BRASIL, 2002). Com base nesse artigo, existe o entendimento de que, para que a sucessão em
união estável seja reconhecida juridicamente, a companheira sobrevivente deve, primeiramente,
ter essa união reconhecida em juízo. No caso, esse reconhecimento foi feito após a decisão de
tutela de urgência, por motivo presumidamente óbvio, que seria a urgência de conservação do
corpo para o enterro.
A análise desse ponto é de extrema importância quando examinamos processos que
envolvem o choque de vontades entre a família da de cujus e das pessoas que poderiam
preservar sua personalidade. Nesse sentido, analisemos o conceito de personalidade na
perspectiva do direito civil:
O conceito de personalidade está umbilicalmente ligado ao de pessoa.
Todo aquele que nasce com vida torna-se uma pessoa, ou seja, adquire
personalidade. Esta é, portanto, qualidade ou atributo do ser humano.
Pode ser definida como aptidão genérica para adquirir direitos e contrair
obrigações ou deveres na ordem civil. É pressuposto para a inserção e
atuação da pessoa na ordem jurídica (GONÇALVES, 2017, p. 107).
62
Portanto, no que diz respeito aos conceitos apresentados, autonomia, alteridade e
dignidade são os elementos essenciais da personalidade civil. Seus signos e símbolos, no caso
de Iyá Stella, devem ser analisados no contexto de sua trajetória como um todo, abrangendo à
vida civil e à comunidade tradicional de matriz africana. Essas instâncias da vida não são
separadas, elas se constituem na formação do indivíduo, logo, na formação de sua
personalidade.
Em contrapartida ao discurso de Graziela Domini, que defende o direito de
personalidade de Iyá Stella, há o discurso de uma comunidade inteira diretamente ligada à
identidade de Iyá Stella, bem como ligada a sua memória. Para conduzir esse conflito, o
princípio da proporcionalidade tornou-se peça fundamental. A sentença foi invocada por
diversas vezes como forma de justificar a decisão jurídica:
Nessa monta, ante a precariedade da decisão vê-se que causará menos
prejuízo se o velório se der em Salvador, visto que assim se estará
evitando que todo um culto religioso seja violado ante a alteração do
lugar do sepultamento da Iyá Stella de Oxóssi, ainda que indo contra o
exercício da companheira de escolher local de sepultar o corpo conforme
direito que lhe assiste (ANEXO A)
Não há, portanto, uma recusa de direito, tampouco a falta de conhecimento dele. Há
uma análise proporcional ao periculum in mora, ao corpo dentro dos bens jurídicos discutidos.
Embora a fala de Graziela Domini seja pautada pelo direito familiar e reconhecida
judicialmente, embora o direito de personalidade por ela defendido seja garantido pela
documentação da união estável entre ela e Iyá Stella, não havia nada que desvinculasse Iyá
Stella de todos os procedimentos do rito funerário nos termos das tradições das comunidades
de matriz africana de nação Ketu. Quem a decisão alcança?
Não havendo nos autos prova de manifestação da de cujus de local
sepultamento, pelo melhor interesse social, é possível mitigar o direito
de disponibilidade da família da de cujus, sobrepondo-se a proteção do
patrimônio cultural, entendo que se deve conceder à comunidade o
exercício do culto religioso, ante a supremacia do princípio que aqui
seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da
qual Iyá Stella de Oxóssi era líder, bem como a proteção do patrimônio
histórico e cultural do exercício da religião de matriz africana (ANEXO
A).
Compreendendo que o direito busca, em sua suposta “pureza”, realizar atos isonômicos,
a questão que suscita a decisão da juíza é: qual o alcance dessa decisão? São cinco páginas de
decisão (ANEXO A) para justificar o deferimento da petição inicial em prol do patrimônio
cultural afro-religioso e reconhecer a importância de Iyá Stella.
63
Poderia citar Wanderson Flor (2016) e uma diversidade de outras autoras para
contextualizar o candomblé e as comunidades de matriz africana – comunidades compostas e
estruturadas como um corpo (de pessoas), que tem uma série de órgãos responsáveis, cada um
com suas especificidades. Isso tudo para dizer aos leitores que cada pessoa que compõe a
comunidade importa.
A CRFB de 1988, em seu artigo 216, define os elementos que compõem o patrimônio
cultural material e imaterial, individualmente ou em conjunto, enquanto portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico
(BRASIL, 1988]).
64
patrimônio cultural é salvaguardar toda a comunidade. Porém o problema de fato não seria a
contextualização das categorias abordadas, mas sua relevância em termos sociojudiciários. De
fato, qual a relevância dessa matéria na formação dos magistrados?
5 Conclusão
A juíza cita o antropólogo Lévi-Strauss, o que demonstra claramente que o direito não
é uma ciência independente. Com efeito, por ser idealmente concebida como tal, pouco interage
com outros conhecimentos. A citação da juíza teve como referência um site sobre rito fúnebre,
e esse site nem se preocupou de fato em citar obras de um clássico como Lévi-Strauss ao
defender seu argumento. Em matéria afro-religiosa, há um lapso no interesse e na formação
básica do corpo jurídico brasileiro.
O reflexo do racismo religioso torna a decisão da juíza da cidade de Nazaré um evento
nacional, tanto por envolver uma figura de extrema relevância para as comunidades de matriz
africana, quanto por permitir que esses elementos sejam explorados de maneira jurídica.
Na petição inicial, a Sociedade Cruz Santa requeria o impedimento do sepultamento de
Maria Stella de Azevedo Santos no cemitério Nosso Senhor dos Aflitos, situado em Nazaré
(BA), e o imediato translado do corpo da de cujus para a cidade de Salvador (BA) para que o
sepultamento fosse feito segundo os ditames do Candomblé de Nação Ketu. Na parte contrária,
estava Graziela Domini, na época, companheira de Iyá Stella, em quem recairia o direito de
proteger a personalidade da de cujus.
A sentença valeu-se de nomes de antropólogos importantes para legitimar a importância
social e simbólica do rito fúnebre. A falta de teorias e de estudos sobre o direito funerário e suas
vertentes pode ter tornado as argumentações antropológicas um atrativo para conceitualizar o
bem jurídico pleiteado pela Sociedade Cruz Santa e para caracterizar como patrimônio cultural
o pleno exercício do culto religioso garantido pela Constituição.
Contudo, essa afirmação tem alguns vícios importantes a serem observados. É
importante considerar que o direito brasileiro não tem arcabouço suficiente para atender com
total compreensão as demandas tradicionais. Pressupor que esse seja seu papel é alimentar a
ilusória ideia de que o direito funciona sem outras ciências sociais. Portanto, é preciso ressaltar
a importância do diálogo entre as ciências sociais, considerando o direito como uma ciência
social, para que os conflitos jurídicos sejam sanados com soluções que conversem com os
elementos das diversas comunidades tradicionais.
65
O Judiciário “bebe de outras fontes”, que se ocupam dos argumentos jurídicos na
tomada de decisão jurídica. De fato, o Judiciário só deve agir quando provocado e não se
responsabiliza pela diversidade cultural brasileira. Mas o direito não é só o Judiciário. Portanto,
importa observar que, tanto na realidade das tradições, quanto no direito fúnebre, há um vácuo
de conteúdo jurídico. Essa falta de conteúdo jurídico tem sido, paulatinamente, superada pelo
uso da categoria do “patrimônio cultural”, que, na esfera das garantias constitucionais, alcança
e abarca toda a performance cultural que não seja a hegemônica ocidental.
Referências
BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, seção 1, p. 1, 11 jan. 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 2
fevereiro 2021.
CONCEIÇÃO, Joanice. Irmandade da Boa Morte e Culto de Babá Egum. Paco Editorial,
2017.
ENTERRO do corpo de Mãe Stella de Oxóssi vira disputa judicial. Jornal do Brasil, 28 dez.
2018. Disponível em: https://www.jb.com.br/cultura/2018/12/968753-enterro-do-corpo-de-
mae-stella-de-oxossi-vira-disputa-judicial.html. Acesso em: 6 de dezembro de 2021.
PODER JUDICIÁRIO
JUÍZO DE DIREITO PLANTONISTA DA COMARCA DE NAZARÉ
Fórum Edgard Matta – Av. Eurico Mata, nº 83, Centro, CEP 44.400-000 Tel (75) 3636-2710
DECISÃO
67
Relata na inicial que:
Sobre o mesmo fato, nesta data também foi ajuizada a ação tombada sob nº 8000797-
49.2018.8.05.0176 tendo como requerente ADRIANO DE AZEVEDO SANTOS FILHO,
68
sobrinho de MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS e presidente da SOCIEDADE CRUZ
SANTA DO AXÉ OPÔ AFONJÁ. Em sede liminar requereu o IMPEDIMENTO do
sepultamento de MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS, MÃE STELLA DE OXÓSSI,
IALORIXÁ DO ILÊ AXÉ OPÔ AFONJÁ, no CEMITÉRIO NOSSO SENHOR DOS
AFLITOS, situado na cidade de Nazaré/BA; e o imediato translado do corpo da de cujus para
a cidade de Salvador/BA, de modo que sua família possa proceder com o sepultamento nos
ditames do Candomblé de Tradição da Nação Ketu.
22
https://perdaseluto.com/2016/06/07/o-significado-da-morte-e-o-processo-de-luto-nas-religioes-de-matrizes-
africana-candomble/
69
Versa o processo acerca de pedido liminar para que se proceda o sepultamento de
MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS (MÃE STELA DE OXÓSSI), nos moldes e
preceitos do candomblé, obedecendo os ritos religiosos da religião a qual a de cujus era líder.
23
https://perdaseluto.com/2016/06/07/o-significado-da-morte-e-o-processo-de-luto-nas-religioes-de-matrizes-
africana-candomble/
70
realização do ritual religioso, importará no sepultamento da Iyá Stella de Oxóssi, medida
irreversível, o que porá em risco continuidade dos ritos religiosos da sociedade autora.
Nesse nessa monta, ante a precariedade da decisão vê-se que causará menos prejuízo se
o velório se der em Salvador, visto que assim se estará evitando que todo um culto religioso
seja violado ante a alteração do lugar do sepultamento da Iyá Stella de Oxóssi, ainda que indo
contra o exercício da companheira de escolher o local de sepultar o corpo conforme direito que
lhe assiste.
Ante o quanto exposto, em harmonia com parecer ministerial, determino que a requerida
obste de REALIZAR O SEPULTAMENTO DE MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS
E determino a TRANSFERÊNCIA DO CADAVER DE MARIA STELA DE AZEVEDO
SANTOS (MÃE STELA DE OXÓSSI) DA CIDADE DE NAZARÉ DAS FARINHAS PARA
O ILÊ AXÉ OPÔ AFONJÁ NA CIDADE DE SALVADOR.
Citem-se os requeridos.
71
Serve este de mandado e ofício.
72
A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL SOBRE AYAHUASCA E OS POVOS
INDÍGENAS: TENSÕES E CONTROVÉRSIAS EM PERSPECTIVA24
1 INTRODUÇÃO
24
O presente trabalho é fruto de uma comunicação apresentada ao GT03 (sessão 2) – Diálogos convergentes:
populações tradicionais e práticas jurídicas – durante o 7º Encontro Nacional de Antropologia do Direito
(Enadir), realizado no período de 23 a 27 de agosto de 2021, na Universidade de São Paulo.
73
proteção estatal. Assim, consolidou-se nas políticas de drogas a concepção de que o uso
religioso da ayahuasca possui um valor histórico e cultural, estando apto a receber proteção por
parte do Estado brasileiro, considerando o princípio constitucional de proteção e de salvaguarda
de manifestações religiosas e culturais das tradições indígenas e afro-brasileiras (ANTUNES,
2019).
Esse movimento de afirmação do uso religioso da ayahuasca enquanto manifestação
cultural ganhou força e visibilidade, sobretudo a partir do pedido de reconhecimento enviado
ao Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2008, por parte
de grupos ayahuasqueiros do Acre, solicitando o reconhecimento do uso religioso da ayahuasca
como patrimônio imaterial da cultural brasileira25. O pedido encaminhado ao Iphan marcou um
novo momento e um importante deslocamento nas políticas públicas sobre o uso religioso da
ayahuasca no Brasil, as quais deixaram progressivamente o terreno das políticas de drogas e
adentraram as políticas afirmativas de promoção e de preservação da cultura nacional26.
A primeira década do século XXI também marcou o início do desenvolvimento da
primeira legislação ambiental direcionada exclusivamente à ayahuasca, abrindo um novo flanco
de políticas públicas sobre os usos da bebida. Assim, além das políticas de drogas e da área da
cultura, o uso religioso da ayahuasca passou a ser foco de preocupação por parte de órgãos
ambientais, os quais procuraram estabelecer critérios e normas para regulamentar as práticas
dos grupos ayahuasqueiros.
Desse modo, o presente trabalho visa abordar esse marco relativamente recente da
legislação ambiental sobre a ayahuasca no Brasil e suas controvérsias. Inicialmente,
apresentaremos uma análise da legislação ambiental dos estados do Acre e de Rondônia,
desenvolvida com o intuito de regular a extração, o transporte e a circulação das espécies
vegetais utilizadas na produção da ayahuasca. Em seguida, abordaremos os impactos de tal
legislação nas populações tradicionais que consomem a ayahuasca, bem como as controvérsias
geradas a partir de sua implementação, principalmente no que diz respeito aos povos indígenas
25
Em 2011, o Iphan abriu a licitação para a realização de um Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).
A empresa vencedora, cujos responsáveis são integrantes de um núcleo da UDV em Rio Branco, montou uma
equipe que contou com a participação de antropólogos especialistas no tema, como Wladimyr Sena Araújo,
Sandra Goulart e Edward MacRae, iniciando a realização do inventário em 2012 (GOULART; LABATE, 2016,
p. 7-8). Relatam Assis e Labate (2018, p. 224): “Em outubro de 2014, as recomendações do IPHAN sobre o
inventário foram enviadas à sua equipe técnica, que passou a reelaborar o relatório, que por sua vez corresponde
à primeira das três etapas do processo de registro. O Relatório Final dessa etapa, com análise qualitativa que
abordara os aspectos sociais, farmacológicos, legais e religiosos da ayahuasca, foi concluído em 2015, e
apresentado publicamente na cidade de Rio Branco, Acre, em 22 de agosto de 2017. Contudo, este ainda não
identifica quais bens culturais seriam registrados para a patrimonialização”.
26
Para um olhar aprofundado sobre o processo de reconhecimento do uso religioso da ayahuasca como patrimônio
imaterial da cultura brasileira, ver Antunes (no prelo).
74
amazônicos. Assim, nosso intuito é demonstrar que, para além dos possíveis avanços em relação
à preservação das espécies vegetais, a legislação ambiental teve por efeito contrário a criação
de uma série de entraves legais e burocráticos para as populações que são alvo dessa política
pública.
75
demanda pela bebida, exercendo uma pressão crescente sobre as espécies vegetais utilizadas
em sua confecção.
Outro ponto que merece destaque é a proposta do órgão para a articulação entre as
entidades ayahuasqueiras e os proprietários de áreas em fase de licenciamento para desmate.
Por meio dessa interação, os membros das entidades ayahuasqueiras podem entrar em acordo
com esses proprietários para pesquisar se há a presença de cipó e chacrona nas áreas que serão
desmatadas, com o intuito de coletar o material antes do desmate. Essa iniciativa pode ser
considerada inovadora, pois investe na possibilidade de aproveitamento de recursos florestais
que seriam perdidos. Sobre essa questão, Thevenin (2017) destaca que, no estado de Rondônia,
por exemplo, a expansão de atividades agropecuárias tem provocado o avanço do
desmatamento, reduzindo, consequentemente, a quantidade de fragmentos florestais e a
disponibilidade desses recursos florestais em seu habitat natural, o que tornaria a iniciativa
governamental em questão uma importante medida para o melhor aproveitamento das espécies
vegetais. Entretanto, vale salientar que a medida possui um alcance limitado, pois a maior parte
do desmatamento no bioma amazônico ocorre de forma ilegal.
Em 2010, quase uma década após a primeira portaria do Ibama sobre o tema, a questão
da legislação ambiental referente à ayahuasca no estado do Acre foi revisitada. Dessa vez, os
órgãos envolvidos foram o Conselho Estadual de Meio Ambiente, Ciências e Tecnologia
(Cemact) e o Conselho Estadual de Florestas (CFE). Os órgãos elaboraram, em parceria, a
Resolução Conjunta n.º 4, de 20 de dezembro de 2010. O documento corrobora alguns dos
pontos anteriormente propostos pelo Ibama, mas traz alguns elementos novos (CEMACT; CFE,
2010).
Os órgãos também exigem que as entidades sejam cadastradas para poderem extrair ou
coletar as espécies vegetais. Todavia, diferentemente do Ibama, que exige o cadastro no próprio
órgão, a Resolução Conjunta determina que o cadastro seja feito no Instituto de Meio Ambiente
do Acre (Imac). De acordo com a portaria, o pedido de autorização para a coleta dos recursos
florestais deverá ser feito aos órgãos competentes. Após a coleta do material, as entidades
possuem um prazo de trinta dias para encaminhar ao Imac um relatório contendo as seguintes
informações: descrição do local de coleta e identificação do campo; data em que se realizou o
procedimento; quantidade em quilogramas do material coletado, tanto do cipó quanto da
chacrona; quantidade da bebida produzida em litros e data do preparo; procedimentos adotados
para a extração e a coleta do material; histórico da cota anual utilizada (CEMACT; CFE, 2010).
Nota-se que um dos efeitos da preocupação crescente dos órgãos ambientais com a exploração
das espécies vegetais que compõem a ayahuasca diz respeito à normatização e à burocratização
76
do processo de coleta e de transporte dos recursos florestais, o que cria obstáculos para os
grupos que buscam enquadrar-se e contemplar todas as exigências dos órgãos
regulamentadores.
A Resolução Conjunta também trata das cautelas que devem ser tomadas nas atividades
de extração e de coleta das espécies vegetais. Nesse sentido, o documento corrobora as
sugestões propostas pelo Ibama sobre as técnicas a serem utilizadas e os cuidados com a
conservação das espécies que compõem a ayahuasca, assim como de seu habitat natural. Os
órgãos indicam que as entidades devem manter um plantio de recomposição compatível com
seu consumo médio anual. A entidade que possuir o plantio deve cadastrá-lo no órgão
ambiental, devendo informar a quantidade de recursos a serem explorados na área cultivada.
Um ponto inovador dessa legislação refere-se à definição da quota de recursos florestais que
podem ser extraídos por vez e também anualmente: mil e duzentos quilogramas de cipó e cento
e oitenta quilogramas de chacrona por vez; quatro mil e oitocentos quilogramas de cipó e
setecentos e vinte quilogramas de chacrona por ano. Os recursos florestais extraídos no próprio
plantio não são contabilizados (CEMACT; CFE, 2010). De um lado, essa medida é de grande
relevância, pois impõe um limite para a extração desses recursos florestais, contribuindo
diretamente para sua preservação; de outro lado, a não inclusão do material coletado no próprio
plantio na cota de extração anual também é de extrema importância, visto que boa parte do
material utilizado pelos grupos provém de plantios próprios.
Por fim, os órgãos assinalam que a extração e a coleta desses recursos florestais para
fins de beneficiamento e de consumo da ayahuasca por populações tradicionais e indígenas,
bem como para uso familiar ou individual, realizados em suas próprias áreas, são dispensadas
do licenciamento previsto na Resolução. Não obstante, os órgãos indicam que essa dispensa
impede o transporte desses recursos florestais para além de sua área de origem. Isso traz
algumas implicações práticas para esses grupos, pois limita a extração das espécies vegetais
apenas aos seus territórios, assim como impede o transporte do material coletado em suas áreas
para outros locais.
Para além do estado do Acre, vale destacar o papel de Rondônia na regulamentação da
ayahuasca no Brasil. A Assembleia Legislativa de Rondônia promulgou a Lei n.º 3.653, a qual
institui a liberdade religiosa da ayahuasca no estado (RONDÔNIA, 2015). De modo geral, não
há novidades em relação às legislações anteriores. A Lei reafirma a necessidade de cadastro no
órgão ambiental do estado para autorização da coleta e transporte dos recursos florestais.
Todavia, ao contrário dos procedimentos adotados pelas agências reguladoras do estado do
77
Acre, o documento não discorre sobre as técnicas que devem ser adotadas para as atividades de
extração dos recursos florestais.
É digno de nota que todas as medidas propostas pelos órgãos públicos tocam na questão
da necessidade de cadastro para a autorização de coleta e de transporte dos recursos florestais.
Tal exigência é foco de intensa controvérsia entre grupos indígenas, os quais encontram
empecilhos burocráticos e legais para o cumprimento das exigências das agências reguladoras
ambientais. Nesse âmbito, vale ressaltar que as regulamentações ambientais referentes à
ayahuasca tiveram como alvo os grupos que se enquadram no contexto do uso religioso da
bebida, cujas práticas foram previamente reconhecidas e regulamentadas pelo Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD, 2006).
No que diz respeito ao caso da ayahuasca especificamente, é importante lembrar a
importância da articulação política entre os grupos religiosos ayahuasqueiros da Amazônia e os
órgãos regulamentadores de políticas de drogas. Conforme indicam Antunes (2012) e MacRae
(2008), os processos de legitimação e de reconhecimento público das “religiões ayahuasqueiras
brasileiras”, assim como ocorrido com as religiões afro-brasileiras décadas antes, contaram com
a participação ativa de atores de diversos segmentos sociais, como médicos, psiquiatras,
intelectuais, líderes religiosos, cientistas sociais, historiadores, entre outros, os quais se
articularam para reivindicar ao poder público o reconhecimento do uso da ayahuasca como
legítima prática religiosa. Considerando, portanto, a maior representatividade de atores
vinculados a essas religiões e suas articulações nos órgãos regulamentadores, não é surpresa
que a elaboração de políticas públicas referentes à ayahuasca tivesse esses grupos como seu
público-alvo.
No que concerne à produção de políticas públicas, DiMaggio e Powell (2005) apontam
que o estabelecimento de políticas governamentais que regulamentem de forma semelhante
grupos distintos teria como resultado uma tendência homogeneizante, na medida em que
organizações díspares seriam constrangidas institucionalmente a assumirem práticas
semelhantes. Esse fenômeno é observado na elaboração das políticas ambientais referentes à
ayahuasca, porque os grupos que se enquadram no contexto religioso de uso da bebida estão
aptos a atender as exigências presentes na legislação, enquanto grupos indígenas encontram
frequentemente barreiras institucionais e burocráticas que os obrigam a adotar o modelo
estipulado para a regulamentação das práticas das religiões ayahuaqueiras. Apesar das
limitações impostas pela regulamentação em pauta, a presença e a visibilidade crescentes dos
povos indígenas nos circuitos urbanos da ayahuasca têm dado margem à emergência de novas
demandas e, consequentemente, de novas tensões. Assim, a próxima seção será dedicada à
78
análise das controvérsias que surgem quando os povos indígenas enfrentam as limitações
impostas pela legislação ambiental e pela regulamentação do uso religioso da ayahuasca no
Brasil.
79
fiscalizadores e reguladores em relação à circulação da ayahuasca entre os povos indígenas.
Dentre os principais pontos do documento, é possível destacar a sugestão da possível criação
de um registro civil para poderem coletar as espécies vegetais e circular com a ayahuasca fora
de seus territórios27.
A questão do trânsito e da circulação da ayahuasca é de extrema relevância, pois exige
dos povos indígenas um registro civil enquanto instituição religiosa (CNPJ) para coletar as
espécies vegetais, para receber e enviar carregamentos, bem como para transportar as espécies
vegetais e a bebida em sua forma final. Assim, à medida que se fazem presentes de modo mais
intenso nos circuitos urbanos da ayahuasca no Brasil, realizando festivais, cerimônias e
workshops, os povos indígenas da Amazônia enfrentam uma série de restrições legais.
Especificamente, a possibilidade de criar um registro civil enquanto instituição
religiosa, tal qual estipulado pela legislação ambiental, é objeto de controvérsia entre lideranças
indígenas28. De um lado, é possível encontrar relatos de lideranças que apontam o uso da
ayahuasca como uma religião indígena a priori, questionando a necessidade de
institucionalização de algo que seria parte intrínseca da religiosidade indígena. Tal sentido fica
claro na fala de Biraci Brasil, o qual foi impedido de viajar transportando a ayahuasca em
aeroportos do Acre em mais de uma ocasião. “Autorização? Que coisa feia. Assim como os
conhecimentos tradicionais e milenares, os cristãos colocam suas bíblias em todo lugar do
mundo (dentro do hotel, nos aviões, nas igrejas...). Os muçulmanos com o Alcorão, eles são
respeitados no mundo inteiro. E a nossa?” (BRASIL, Biraci apud SANTOS, 2018, p. 136).
Todavia, há lideranças que assumem uma postura distinta, posicionando-se de modo
mais radical acerca dos procedimentos de fiscalização. Nesse sentido, algumas lideranças
indígenas questionam a legitimidade dos mecanismos legais instaurados pelos órgãos públicos
no que diz respeito aos usos, à produção e à circulação da ayahuasca. Tal posicionamento fica
evidente na fala de Francisco Pianko, liderança Ashaninka: “Se a gente vai usar os instrumentos,
criar organizações para poder transitar com a nossa ayahuasca, nós estaremos cedendo,
enfraquecendo a nós mesmos. [...] Isso está claro que não se resolve só botando no papel. Isso
é um processo mais profundo” (PIANKO, Francisco apud SANTOS, 2018, p.138).
Vale destacar que os procedimentos estipulados pelos órgãos reguladores foram
criticados não somente por lideranças indígenas, mas também por membros do poder público.
27
Para uma atualização sobre esse tema, ver a Carta de Recomendação da Conferência Indígena Ayahuasca de
2017 e de 2018 (POVOS INDÍGENAS DO ACRE, 2017, 2018).
28
Há também, desde 2006, uma recomendação por parte do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
(CONAD, 2006) para que os grupos ayahuasqueiros obtenham o registro civil.
80
Em uma fala na Conferência, Claudia Aguirre, defensora pública do estado do Acre, abordou a
questão da circulação da ayahuasca por parte dos povos indígenas, argumentando que “não é o
branco, do lado de fora, que vai regulamentar isso. Nem pode ser. Não nos deem esse poder. A
Convenção 169 prevê que devem ser respeitados os métodos tradicionais da resolução de
conflitos e de práticas de delitos por alguém da comunidade” (AGUIRRE, Claudia apud
SANTOS, 2018, p. 54). É digno de nota o fato de a fala de Aguirre mencionar a Convenção n.º
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais29, de
1989, valendo-se de um tratado internacional para sugerir que os povos indígenas possuem
legitimidade para construir mecanismos próprios de regulação de suas práticas e saberes.
Aguirre também se referiu à convenção da OIT para questionar as disposições do Conad e do
Ibama sobre a necessidade da criação de um CNPJ. Pergunta a defensora pública:
Precisa de CNPJ para defender direitos? Não! Não! A rigor, não. Porque, se
você pega na mão da Convenção 169, não precisa de associação, não precisa
de CNPJ para exercer direitos. Não precisa disso também, segundo a
Constituição Federal. [...] Se o CONAD permite o uso religioso, por que não
permite o uso sagrado dentro do modo de ser indígena, conforme a
Constituição Federal? Não garanto que o Judiciário vá aceitar. Mas isso é a
luta diária. A Convenção 169 não caiu do céu, foi porque várias pessoas
começaram a falar que: Olha, tem os direitos humanos, mas esse modo que
vocês falam de direitos humanos aí [na Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH)], não serve muito para a gente. A Convenção 169 foi muito
isso, foi uma releitura disso. Então, vocês têm que ter ideia disso e se apropriar
disso (AGUIRRE, Claudia apud SANTOS, 2018, p. 151).
29
A Convenção n.º 169 da OIT tem como destinatários os povos indígenas, quilombolas e demais povos
tradicionais presentes nos Estados independentes. Historicamente, a OIT – uma agência multilateral da ONU –
tratou esses povos como trabalhadores que deveriam ser integrados ao mercado de trabalho, tornando-os objeto
de políticas públicas de pleno emprego (SOUZA FILHO, 2018). Como indica Souza Filho (2018), contudo, a
partir de 1989, houve uma mudança de postura por parte da OIT com o intuito de definir direitos de existência
coletiva e a garantia de territorialidade capazes de manter o modo de vida das populações indígenas ou tribais.
30
Daiara Hori Figueroa Sampaio, nascida em São Paulo e residente em Brasília. Faz parte do povo indígena
Tukano do Alto Rio Negro na Amazônia brasileira. É mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília.
81
os tratados internacionais já reconhecem o direito indígena como um direito
originário. E o direito indígena mais importante é a sua prática cultural, que é
a sua identidade. Então, nossa prática da medicina, da cerimônia, o nosso
trânsito é um direito originário, e o direito originário no Brasil é cláusula
pétrea. O direito originário está antes da construção das outras leis, porque nós
somos os povos originários desta terra. Então, nós viemos, diante dessa
inquietação, nos articular sobre como fazer esse diálogo com as autoridades
competentes, com o governo brasileiro, mas também com outras instituições
do mundo como, por exemplo, a Unesco, e até mesmo outros países, para
deixar claro o que é o direito indígena (TUKANO, 2017).
A fala de Daiara faz um duplo movimento complementar. Por um lado, assim como na
fala de Aguirre, a menção aos tratados internacionais e à Unesco evidencia a mobilização do
instrumental desenvolvido pelo direito internacional. Tal recurso insere as reivindicações
indígenas em um conjunto mais amplo e universalista de direitos que extrapola a jurisdição do
Estado brasileiro. Por outro lado, a noção de “direito originário” ressalta a especificidade do
estatuto dos povos indígenas perante a legislação brasileira e os limites de seus instrumentos
legais para lidar com as demandas indígenas. Ademais, a posição de Daiara em relação à
Unesco remete aos modos como o processo de elaboração de políticas apresenta um alcance
cada vez mais transnacional.
Em uma perspectiva mais ampla, portanto, a inserção dos povos indígenas nos circuitos
urbanos de consumo da ayahuasca e a falta de uma legislação que contemple especificamente
suas particularidades criaram uma série de problemas legais e, consequentemente, deram
margem à emergência de um novo conjunto de demandas, como a livre circulação e a liberdade
de produzir e de ministrar a ayahuasca para além de seus territórios. Esse recente protagonismo
entrou em choque, contudo, com os protocolos e burocracias estipulados pela legislação sobre
o uso religioso da ayahuasca no Brasil. Em contrapartida, os representantes dos povos indígenas
organizaram-se, criando canais de visibilidades para sua agenda política e colocando em xeque
pela primeira vez a legitimidade do Estado brasileiro para elaborar políticas sobre o uso
indígena da ayahuasca. Para além das controvérsias e de seus desdobramentos, uma coisa é
certa: a presença cada vez mais acentuada, com o crescente protagonismo dos povos indígenas
no debate público sobre o uso da ayahuasca no Brasil, é uma tendência que veio para ficar e
que tem borrado fronteiras, categorias e gerado novas alianças políticas no universo
ayahuasqueiro.
4 Considerações finais
82
O presente trabalho teve por objetivo central apresentar as políticas ambientais sobre o
uso da ayahuasca no Brasil e suas controvérsias. Conforme demonstramos ao longo do trabalho,
a legislação em pauta criou uma série de impedimentos para grupos com dificuldades em se
adequar às exigências burocráticas e legais, sobretudo para os povos indígenas. Seria prematuro
afirmar que se trata de um ato discriminatório deliberado, visto que os povos indígenas possuem
total autonomia para coletar os vegetais, produzir e consumir a ayahuasca em seus territórios.
Todavia, o direcionamento das políticas, desenvolvidas a partir de um diálogo com os principais
grupos religiosos ayahuasqueiros da região Norte, e o silêncio com relação aos direitos dos
povos indígenas para além de seus territórios suscitam controvérsias e novos problemas. Tais
controvérsias ficam evidentes à medida que o uso indígena da ayahuasca se insere com uma
frequência cada vez mais intensa em um contexto mais amplo de consumo da ayahuasca nos
grandes centros urbanos do Brasil, corroborando a necessidade urgente da produção de políticas
públicas que atendam as demandas dos povos originários.
Por um lado, a legislação ambiental adotou parâmetros para um uso sustentável da
ayahuasca, mas também consolidou um quadro restritivo do uso da ayahuasca como “religião”,
fazendo com que todos os grupos ayahuasqueiros se organizem e se apresentem conforme os
requisitos atrelados à categoria. Por outro lado, como observou Labate (comunicação pessoal,
2021), “a pesada carga burocrática criada por esta legislação ambiental cria dificuldades para
que pequenos grupos urbanos cumpram as exigências da lei. Em termos práticos, a legislação
tem agido de modo a respaldar alguns grupos, restringindo a ação de outros”. Vale lembrar,
contudo, como salienta Labate, que essas medidas afetam não apenas os grupos indígenas que
usam ayahuasca, mas também os grupos neoayahuasqueiros e dissidências das principais
religiões ayahuasqueiras. Assim, a lógica desenvolvida para orientar a legislação ambiental
explicita um importante problema em relação às políticas sobre a ayahuasca no Brasil: elas
concedem o reconhecimento legal e a legitimidade a um número limitado de grupos
institucionalizados que possuem a estrutura financeira e institucional para cumprir com as
intrincadas regulamentações estatais, mas à custa da impossibilidade de reconhecimento legal
de boa parte dos grupos que consomem a ayahuasca.
Referências
83
ANTUNES, Henrique Fernandes. O uso da ayahuasca como um problema público: um
contraponto entre os casos do Brasil e dos Estados Unidos. 2019. 218 f. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
ANTUNES, Henrique Fernandes. “It cannot be solved just by putting it on paper”: heritage
policies and the religious use of ayahuasca as a Brazilian intangible cultural heritage. In:
MONTERO, Paula; NICÁCIO, C.; ANTUNES, Henrique Fernandes (org.). Religious
Pluralism and Law in Contemporary Brazil. No prelo.
GOULART, Sandra Lucia; LABATE, Beatriz Caiuby. Religião, política e cultura: o uso da
ayahuasca como patrimônio cultural. Trabalho apresentado na 30.ª Reunião Brasileira de
Antropologia. João Pessoa, 2016.
LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO, Wladimir Sena (org.). O uso ritual da ayahuasca.
Campinas: Mercado das Letras, 2002.
LABATE, Beatriz Caiuby; COUTINHO, Tiago. “My grandfather gave ayahuasca to Mestre
Irineu”: Reflections on the entrance of Indigenous peoples into the urban circuit of Ayahuasca
consumption in Brazil. Curare, [s.l.], v. 37, n. 3, p. 181-194, 2014.
SANTOS, Fabiana Lima dos. “Índio não usa droga, ele usa medicina”: a criminalização da
ayahuasca indígena. 2018. Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) –
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 2018.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Os povos tribais da Convenção 169 da OIT.
Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 42, n. 3, p. 155-179, set./dez. 2018.
TUKANO, Daiara. The first Indigenous ayahuasca conference (Yubaka Hayrá) in Acre
demonstrates political, cultural, and spiritual resistance. Chacruna, 14 fev. 2019. Disponível
em: https://chacruna.net/the-first-indigenous-ayahuasca-conference-yubaka-hayra-in-acre-
demonstrates-political-cultural-and-spiritual-resistance/. Acesso em: 5 jun. 2021.
85
TECENDO TERRITÓRIOS E DIREITOS: A EXPERIÊNCIA DE
CONSTRUÇÃO DO PLANO DE GESTÃO TERRITORIAL E
AMBIENTAL DOS MUNDURUKU DO PLANALTO
1 INTRODUÇÃO
86
Este texto insere-se nas discussões sobre os efeitos do direito de reconhecimento sobre
o modo de vida dos grupos tradicionais; traz, porém, para o centro do debate a questão do uso
das ferramentas jurídicas pelos próprios sujeitos, analisando as consequências políticas e
jurídicas para os povos indígenas. Esta reflexão fundamenta-se em dois referenciais teóricos. O
primeiro diz respeito à mobilização do direito. À luz das teorias sobre movimentos sociais,
examina-se o papel do direito em diferentes momentos das mobilizações políticas, desde o
surgimento do movimento social até as diferentes ações organizadas por ele. Verifica-se que,
para compreender o papel do direito na luta política, é preciso observá-lo não só como normas
e instituições, mas também como uma forma de conhecimento que organiza e direciona as
práticas comunicativas (MCCANN, 2006).
É justamente nessa amplitude das formas de expressão do direito e dos múltiplos
significados que ele pode adquirir na prática social que o debate sobre a mobilização do direito
encontra o segundo referencial – a antropologia jurídica. Com efeito, os ganhos investigativos
da pesquisa empírica e da perspectiva local ajudam a compreender os diferentes usos e sentidos
atribuídos ao direito pelos sujeitos.
No campo da antropologia jurídica, Chenaut e Sierra (1992) argumentam que é
necessário analisar a forma como os sujeitos reagem ao contexto político dos seus países,
mediante a ressignificação dos discursos sobre os direitos, a partir de práticas e epistemologias
próprias e por meio da reconstituição da justiça comunitária. Para as autoras, é importante
interpretar esse espaço de reivindicação de direitos levando em conta o papel produtivo e o
poder das leis, ou do direito, e das identidades culturais nesse processo.
Do ponto de vista metodológico, Chenaut e Sierra (1992) constatam, em suas
pesquisas sobre a relação entre direitos indígenas e o Estado, que é difícil tentar separar as duas
esferas de direito – a estatal e oficial e a indígena. Apesar da relação assimétrica entre essas
duas esferas do direito, há uma série de imbricações e de múltiplas influências entre elas. Além
disso, devido à dominação a que foram submetidos os povos indígenas ao longo dos últimos
séculos, é preciso considerar a influência dos sentidos do direito oficial nas noções jurídicas
locais.
Assim, para entender a juridicidade local, o estudo sobre o direito indígena deve,
segundo as autoras, deter-se nos usos do legal em seu contexto social e cultural, entendendo-se
o legal como processos de controle, tal como o definiu Malinowski (CHENAUT; SIERRA,
1992). Nessa linha, trata-se de investigar o uso que os indígenas fazem das leis, ou do direito,
e as estratégias envolvidas nesse uso no cotidiano e no âmbito político em seus enfrentamentos
organizados contra o Estado.
87
Logo, a abordagem acima visa compreender o papel do direito na luta política a partir
da observação do uso que os sujeitos fazem da linguagem, das normas e das noções jurídicas.
Partindo dessa perspectiva, esta pesquisa buscou examinar preliminarmente o modo como isso
ocorre na prática por meio do acompanhamento do processo de elaboração do Plano de Gestão
Territorial e Ambiental (PGTA) pelo povo indígena Munduruku do Planalto. Por meio da
apropriação e da ressignificação de um instrumento normativo proposto pelo Estado, os
Munduruku visaram criar uma forma de maior controle e de legitimação política sobre seu
território.
O PGTA do território indígena do Planalto foi lançado no ano de 2020, após mais de
dois anos de reuniões e de encontros sobre o tema. O PGTA é produto do acordo entre as quatro
aldeias que compõem o território. Para sua elaboração, tendo em vista a construção do
diagnóstico participativo, foram feitas discussões sobre os conflitos, as potencialidades e as
regras de gestão coletiva dos recursos. Após essa etapa, foram definidas as normatizações
internas que visam enfrentar as situações conflituosas identificadas no diagnóstico.
Os dados apresentados neste texto baseiam-se em levantamentos bibliográficos sobre o
movimento indígena dos Munduruku do Planalto e sobre os conflitos na região do lago do
Maicá, área circundante do território indígena, assim como na análise dos aspectos legais
envolvidos na questão. Foi realizado, ainda, o acompanhamento do processo de elaboração do
PGTA por meio da observação de reuniões e de encontros presenciais e virtuais com lideranças
e apoiadores da questão territorial indígena e com a assessoria jurídica na sistematização do
documento.
A experiência do PGTA dos Munduruku é importante porque é a primeira de toda a
região do Baixo Tapajós. Por isso, tem fomentado o debate sobre as formas e os desafios da
gestão compartilhada do território. Além disso, a experiência de elaboração do PGTA desse
povo indígena também se consolida como uma oportunidade de reflexão sobre o modo como a
construção de um documento normativo é apropriado pelos indígenas e utilizado como
estratégia de controle sobre o território e de pressão sobre o Estado.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo é analisar o processo de elaboração do PGTA do
território indígena do Planalto santareno visando identificar como e por qual motivo os
indígenas utilizam o instrumento, bem como refletir sobre os efeitos desse uso na luta pelo
território desse povo.
O texto divide-se em duas partes. Na primeira, é abordado o contexto dos conflitos
socioambientais vivenciados pelos indígenas Munduruku do Planalto e as diferentes estratégias
jurídicas elaboradas por eles para encaminharem suas demandas. Na segunda parte, serão
88
debatidos os percursos e temas envolvidos no processo de elaboração da proposta de gestão
coletiva dos recursos dos Munduruku, bem como os objetivos e as expectativas dos Munduruku
sobre a produção do documento.
31
Área que sofre inundação periódica ocasionada pela subida dos rios. Na região do Maicá, a inundação ocorre
entre os meses de dezembro e de maio, em regra.
89
elaboradas pelas comunidades locais e visava a diminuição dos conflitos pela pesca por meio
do controle dos instrumentos de pesca que poderiam ser utilizados no lago, da definição de
períodos para a pesca e da fixação de limites para a quantidade de pescado permitida para cada
pescador.
A estratégia de manejo instituída no acordo deveria funcionar a partir da fiscalização
direta dos moradores locais. Com os acordos, os conflitos pela pesca na região do Maicá
diminuíram, mas não cessaram (CERDEIRA; CAMARGO, 2007). As comunidades locais até
hoje se organizam em turmas para fazer a fiscalização do lago do Maicá e dos lagos internos de
algumas comunidades. Contudo, quando chega o verão, a entrada de geleiras intensifica-se,
aumentando a tensão local. Além da problemática da pesca, há também outros conflitos
decorrentes da extração ilegal de açaí e da caça praticadas por pessoas de fora das comunidades
e, por vezes, praticadas também pelos pescadores ilegais.
Além da pesca, outro ponto de conflito nessa região deve-se à pecuária. Essa
atividade predomina em todo o Maicá, nas inúmeras ilhas ou nas áreas de terra firme que
margeiam o lago. Existem inúmeras denúncias sobre o impacto da pecuária na qualidade do
solo e na diminuição do estoque pesqueiro, já que o pisoteio do gado e o desmate para os campos
afetam a fertilidade do solo e o crescimento das árvores nativas que servem de alimento para
os peixes.
Ao lado dos impactos ambientais provocados pela pecuária, há também os
impactos socioeconômicos para a população local. A atividade intensiva e sempre crescente da
pecuária diminui as áreas e os recursos disponíveis para a manutenção das famílias tradicionais
do entorno do lago. Os cercamentos, a compra e a venda irregular de terras, as ameaças, os
danos do gado às roças são alguns dos exemplos desses impactos, contra os quais se mobilizam
as famílias locais. Ainda assim, a pecuária e a ação opressora dos fazendeiros ainda são uma
realidade nessa região.
Além dessas questões geradas diretamente pela pecuária extensiva na região do Maicá,
a partir dos anos 2000, a pecuária contribuiu para a entrada de uma nova ameaça aos territórios.
As extensões de terra já desmatadas, cuja posse estava concentrada nas mãos dos fazendeiros,
foram vendidas a produtores de soja que, incentivados pelas novas normas de facilitação da
regularização fundiária na região Amazônica, viram nessas áreas férteis uma oportunidade de
instalação.
A chegada desses produtores estabelece um novo marco nas relações sociais e
ambientais em toda a região de Santarém e, consequentemente, nas comunidades de terra firme
no entorno do lago do Maicá. Os impactos provocados pela implantação da monocultura da
90
soja são mais devastadores e aceleram as dinâmicas expropriatórias nas comunidades, afetando
rapidamente as condições de sobrevivência das famílias. A sojicultora, como se sabe, é uma
atividade mecanizada; por isso, deixa de empregar a população local, além de provocar, em
ritmo acelerado, o desmatamento de áreas antes utilizadas pelas comunidades locais para coleta,
caça e agricultura.
A intensa pressão sobre as comunidades tradicionais do lago do Maicá não deixa
alternativa às famílias da região que não seja a resistência. Em 2004, têm início processos de
mobilização política e de luta pelos territórios. São diferentes bandeiras identitárias acionadas
e diferentes propostas de regularização fundiária discutidas entre a população local, todas a
partir de modalidades de uso coletivo do território. Na várzea, são discutidos assentamentos
agroextrativos e territórios quilombolas; em terra firme, comunidades quilombolas e indígenas
também se organizam para verem respeitados seus direitos à terra e ao uso dos recursos.
Tais mobilizações coletivas nesse formato são estimuladas pela instituição de um novo
marco normativo nacional e internacional; os chamados direitos étnicos (SHIRAISHI, 2007).
Os direitos políticos e territoriais de grupos tradicionais são reconhecidos, o que traz obrigações
para os Estados nacionais de respeito às práticas locais e aos diferentes modos de fazer e de
viver dos grupos portadores de identidade coletiva. No plano nacional, a Constituição de 1988
reconheceu que o país é formado por uma pluralidade social e cultural e instituiu mecanismos
de proteção aos territórios, à cultura e às formas de organização política desses grupos.
Especificamente no campo dos direitos indígenas, a Constituição Federal brasileira
garante, nos artigos 231 e 232, o direito originário dos indígenas às terras que ocupam, o
usufruto exclusivo dos recursos naturais necessários a sua subsistência, bem como o respeito e
a garantia de proteção às formas locais de organização política, assim como institui, para o
Estado, o dever de oferecer educação e saúde diferenciadas a esses sujeitos. Reconhecida a
autonomia indígena, os povos indígenas, podendo falar e demandar em nome próprio,
mobilizam-se em todo o país para ter acesso a tais direitos (LUCIANO, 2006).
Essa efervescência dos povos indígenas na luta pelos seus direitos também se espalhou
pela região do Baixo Tapajós, onde vários povos indígenas, antes considerados extintos,
começam a mobilizar-se e a reclamar sua condição de sujeitos políticos e a atenção do Estado
para as situações de expropriações e de negação de direitos a que estavam submetidos (VAZ
FILHO, 2010).
Por conseguinte, é nesse contexto de pressão e de mobilização coletiva que os indígenas
Munduruku do Planalto organizam-se enquanto sujeitos políticos e posicionam-se nessa
disputa. A organização política dos indígenas é resultado da busca de argumentos de
91
pertencimento ao local capazes de legitimar os direitos territoriais desses sujeitos e também da
busca de caminhos jurídicos capazes de conferir poder de escuta às suas demandas (ARRUTI;
VIEIRA; SILVA, 2019).
Nesse processo, a recuperação e a reelaboração da memória coletiva de ocupação do
território, assim como das práticas e tradições indígenas presentes nos modos de viver daquelas
famílias (ARRUTI; VIEIRA; SILVA, 2019) – terras pretas, danças, ritos, nomes, técnicas das
pessoas do lugar – ganham novos sentidos no processo de disputa política e são utilizadas com
o fim de demarcação das fronteiras étnicas entre os indígenas e os de fora (BARTH, 1998).
Mas não há só mudanças na maneira como esses sujeitos percebem seu modo de vida.
Ao se reconhecerem como indígenas, as famílias locais começam a direcionar sua ação política
para as instâncias estatais do campo indigenista encarregadas da aplicação e da defesa dos
direitos e garantias legais (LUCIANO, 2006). Nesse momento, os sujeitos passam a dialogar
mais intensamente com os sentidos jurídicos e das formas consagradas de reconhecimentos.
Para interagir com esse campo, é preciso falar a “linguagem”, é preciso decifrar códigos e enviar
mensagens que possam ser traduzidas pelos agentes do campo jurídico e político (MCCANN,
2006).
A ação dos indígenas que visa seu reconhecimento como sujeitos de direitos é mais do
que reclamar a aplicação da lei; é também elaborar formas de enfrentamento que forcem os
agentes do campo institucional a responderem. A elaboração de estratégias jurídicas, nesse
sentido, não esgota a luta política, mas dela faz parte, e nessa ação é possível ver sentidos
jurídicos que se cruzam e o uso de instrumentos jurídicos para atender finalidades próprias dos
sujeitos (MCCANN, 2006).
No conjunto de ação políticas dos Munduruku, o seu PGTA destaca-se por utilizar a
forma e a linguagem do direito não só como forma de impor o controle sobre o território, mas
também como instrumento de pressão e de mobilização interna. Nesse sentido, todo o processo
de elaboração do PGTA, mais até do que seu produto final, gerou efeitos que extrapolaram o
campo jurídico e provocaram mudanças na própria organização política dos indígenas e nas
noções jurídicas que marcam o uso dos recursos no território em disputa. É no intuito de refletir
sobre esses efeitos que este texto explora os debates no interior das discussões do plano de
gestão do território.
92
3 A experiência de elaboração do PGTA dos Munduruku do Planalto
93
Munduruku diante da tarefa de demonstrar publicamente como suas regras iam ao encontro das
normas estatais de proteção ambiental.
Do ponto de vista dos indígenas, demonstrar essa sincronia entre as normas locais e as
normas ambientais era importante por dois motivos principais: entendiam que a validade da sua
norma dependeria dessa correspondência e que essa correspondência dar-lhes-ia maior
legitimidade para atuar no território, já que eles seriam os agentes capazes de atuar na proteção
desse território.
A ideia a princípio, como já dito, era colocar no papel as regras de uso do território. Na
busca de um instrumento legal que satisfizesse a esse objetivo, foi apresentado ao grupo o
PGTA. Apesar de uma relutância inicial em aceitar o modelo de PGTA proposto na legislação
e seguido pela Fundação Nacional do Índio (Funai), os Munduruku resolveram tentar fazer, já
que para eles era importante que seu “plano de uso” tivesse a chancela da lei, o que lhe
asseguraria menos resistência interna e maior poder de articulação externamente.
O PGTA está previsto no Decreto n.º 7.747/2012 que institui a Política Nacional de
Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (BRASIL, 2012). Esse decreto estabelece
princípios e objetivos para a atuação do Estado no sentido de promover um desenvolvimento
socioambiental equilibrado nos territórios indígenas a partir do processo de participação
indígena na definição de suas prioridades de desenvolvimento. A proposta legal visa
transformar o plano em uma ferramenta de conhecimento e de decisão sobre os problemas e
potencialidades dos territórios indígenas.
De acordo com Jucelino Farias, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que prestou
apoio na construção do plano, a ideia surgiu da necessidade de proteger o território:
eles mesmos começaram a pensar, em algo que pudesse ajudar nessa
proteção, nessa defesa, né, como uma ferramenta mesmo de luta que
eles pudessem ter em mãos pra dizer “olha isso aqui é nosso, aqui a
gente tem critérios, a gente tem normas né, desde muito tempo”, e
agora... tão querendo criar novos, é, fazer práticas que eles não
concordavam e pensam em criar como eles mesmos diziam “a gente
podia ter leis aqui, né, criar nossas próprias leis”, e assim se iniciou esse
processo, é, do plano de uso, né (Jucelino, entrevista concedida em abril
de 2021).
Para a elaboração do plano de gestão, o primeiro momento foi percorrer as aldeias para
promover a sensibilização e a mobilização dos moradores. Atuaram nessa etapa, além das
lideranças indígenas, os representantes da Funai, da CPT e da Universidade Federal do Oeste
do Pará (Ufopa). O objetivo era explicar a proposta e fazer um cronograma de trabalho. Esses
primeiros encontros ocorreram entre 2018 e 2019.
94
A segunda etapa teve por finalidade a elaboração de um diagnóstico. Essa fase
transcorreu durante o ano de 2019 e concretizou-se por meio de encontros com as lideranças
em cada aldeia onde eram narrados os principais problemas enfrentados, desde invasões,
explorações irregulares até ausência de políticas públicas e dificuldades de organização. Eram
levantadas, ainda, as demandas locais relativas a emprego, renda, potencialidades econômicas
de cada uma das aldeias e as propostas sobre as formas de superar os desafios e de alcançar os
objetivos anunciados. Juntamente com isso, eram feitas anotações sobre as regras e propostas
para a melhor gestão dos recursos ambientais do território.
Uma iniciativa que merece realce na questão da elaboração do diagnóstico surgiu da
necessidade de as aldeias se conhecerem melhor, de entendem quais eram as áreas mais
ameaçadas e quais eram as riquezas do território Munduruku como um todo. Assim, para que
essa apropriação conjunta do território fosse alcançada, os indígenas realizaram uma atividade,
a qual foi primeiramente denominada “ronda”, para dar uma ideia de vigilância do território,
mas depois foi chamada “excursão”, já que seu objetivo era implementar uma ação de
reconhecimento das áreas sensíveis de cada aldeia.
A proposta da excursão consistia em percorrer todas as aldeias. Nesse percurso, as
lideranças de cada local apontavam um ponto de visitação, que poderia ser uma nascente de
igarapé, uma cachoeira ou um sítio arqueológico. Em cada ponto, eram feitas reflexões sobre
os usos daqueles espaços pelas famílias indígenas e as ações que estavam colocando aquelas
áreas em risco. Essa ação teve um impacto muito grande sobre os presentes, já que despertou a
percepção entre os indígenas de que estavam perdendo o controle de parte do território que era
indispensável para a vida de muitas famílias das aldeias.
Ainda na excursão, houve um evento emblemático sobre a ameaça territorial que os
indígenas estão sofrendo. Ao chegarem à cachoeira da Cavada, local desconhecido pela
maioria, foram quase impedidos de entrar, pois o ocupante e seus funcionários de fora da região
acreditavam que estava havendo uma “ocupação indígena”. O episódio rendeu agressões e
ameaças e provocou mais vontade nos indígenas de reaverem o controle dessa cachoeira,
considerada sagrada por eles, principalmente para os indígenas da aldeia de São Francisco da
Cavada, onde ela se localiza. Até hoje esse episódio é lembrado nas reuniões como exemplo de
“humilhação” que os indígenas sofrem em seu território.
A excursão ajudou na adesão de indígenas à participação nas discussões no PGTA. A
fase seguinte de trabalho foi a etapa de construção de um consenso. Nessa etapa, os
representantes de todas as aldeias encontravam-se para definir as regras que seriam melhores
para proteger o interesse de todos. Alguns pontos eram mais fáceis de serem resolvidos, como
95
a questão das regras sobre a caça e sobre a exploração florestal – questões já bastante
regulamentadas, inclusive pela legislação ambiental. Entretanto, sobre o uso dos igarapés e a
coleta do açaí, diferentes em cada aldeia, o consenso tornou-se praticamente impossível. Por
isso, abriu-se a possibilidade para que cada aldeia continuasse a regulamentar pontos mais
específicos da questão, sobrando para o PGTA apenas a criação de normas gerais, como aquelas
que instituíam as competências para estabelecer regras, autorizar ou fiscalizar internamente.
Em 2020, foram realizadas mais quatro reuniões entre as lideranças indígenas para
revisões do conteúdo. Depois, o material foi sistematizado e discutido pelas lideranças das
quatro aldeias e pelo Conselho Indígena do Planalto, que aprovou o Plano e definiu sua
publicação e entrega aos órgãos públicos (PGTA Manduruku, 2020, p. 6).
Logo na apresentação do Plano, os Munduruku ressaltam:
Chamamos este documento de plano de gestão e de uso porque
queremos que ele seja um guia para melhor usarmos nosso território.
Sofremos com várias ameaças às nossas terras e recursos e precisamos
nos proteger destas violências ao mesmo tempo em que precisamos nos
fortalecer internamente para ficarmos unidos e mantermos as condições
adequadas de nosso território à nossa cultura e com isto garantir a vida
para nossos filhos, filhas, netos e netas (PGTA Manduruku, 2020, p. 3).
Além das regras de proteção dos recursos ambientais do território indígena, essa parte
contém importantes definições sobre quem tem acesso a esses recursos e quem pode ser
considerado morador para efeitos do plano. De acordo com o artigo 45, como indígenas
moradores, são considerados aqueles que nasceram e moram nas aldeias, ou que tenham vínculo
familiar até o segundo grau com indígenas da aldeia, e aqueles que se autorreconheçam como
indígenas mesmo não tendo nascido lá, que estejam residindo em qualquer aldeia há mais de
cinco anos e que colaborem com a defesa do território (PGTA Manduruku 2020, p. 25).
Segundo o artigo 44, também são considerados moradores das aldeias, logo com acesso aos
recursos ambientais, pessoas que moram há mais de dez anos e que, mesmo não se afirmando
indígenas, estabeleçam uma vida pacífica com os indígenas (PGTA Manduruku, 2020, p. 25).
Conforme se observa, o Plano de Gestão e Uso do Território Indígena
Munduruku do Planalto sintetiza e estabelece uma série de pontos importantes para a
organização política local. A principal preocupação dos indígenas é, de fato, estabelecer a
proteção do território contra “os de fora”, mas eles também esperam que o Plano represente um
instrumento para que eles próprios se comprometam ainda mais com a proteção e a defesa do
seu território. A proposta do Plano não foi, portanto, engessar as práticas locais, mas apenas
estabelecer critérios gerais para o uso dos recursos de forma a garantir que os moradores locais
continuem a ter acesso a eles.
Ademais, com o Plano, os Munduruku pretendiam criar um mecanismo interno para
denunciar usos irregulares e predatórios do território, conforme se depreende da leitura do artigo
2 do documento publicado: “A finalidade deste plano é manifestar o compromisso dos
indígenas munduruku em cuidar do seu território, através do uso responsável dos bens naturais
com respeito ao meio ambiente e às tradições indígenas” (PGTA Manduruku, 2020, p. 22).
Sobre o que o Plano representa para os indígenas, as lideranças dizem o seguinte:
É uma forma que encontramos de manter o nosso próprio povo dentro
do território. De fortalecer os estudos do nosso território, de termos
autonomia. A forma que encontramos de nos reorganizar e buscar
97
benefícios sociais que possamos manter em relação à nossa cultura e
organização (Cacique Manoel Munduruku, aldeia Ipaupixuna, 2021)
A gente ainda encontra forças pra resistir, dizer que nós estamos aqui
no Planalto, nós afirmamos que passar essa energia para os parentes que
o momento não é favorável, mas a nossa luta continua. Esse plano, pra
nós, ele é um guia, ele é um documento que vai nortear nossa vida, vai
mostrar as nossas ações dentro do território. Porque nós temos esse
documento como um instrumento que fala como nós devemos gerenciar
aquilo que é nosso. O plano de gestão, ele, para nós, é um guia que vai
nortear todas as nossas ações pensando no atual, pensando também nas
futuras gerações, no que respeita ao uso sustentável da coleta de frutas,
dos peixes, pescaria e também de tudo o que faz parte do nosso
território. Então, desde a extração de madeira, de modo sustentável,
desde a criação de animais. Então, o plano ele tem esse formato, né,
primeiro ele vai contar um pouquinho de quem somos nós, um
pouquinho da nossa história, falando um pouquinho da nossa
ancestralidade [...] porque isto está enraizado no nosso sangue, nossa
história e nós podemos contar com propriedade porque nós fazemos
parte, né, desse povo que tanto sofrem que tanto é resistente (Cacique
Josenildo, aldeia Açaizal) (Live de lançamento do PGTA munduruku,
2021).
Como se nota, para as lideranças indígenas, o Plano é considerado como um guia, mais
do que um código petrificado de normas. Como os próprios indígenas chamam, o Plano é uma
“cartilha”; para eles, esse documento tem mais o condão de orientar os moradores locais sobre
seus direitos de uso do território e de chamar a atenção para o dever de cada um na proteção e
na preservação daqueles recursos. Para os de fora, o Plano serve para demonstrar que há um
controle e uma vigilância sobre aqueles recursos.
De fato, o Plano de Gestão e Uso do Território Indígena Munduruku do Planalto
constituiu um importante instrumento de fortalecimento interno das aldeias, tanto no sentido de
promover uma maior articulação entre elas, quanto no sentido de fomentar o debate interno
sobre as melhores formas de gestão da área, principalmente nos momentos de trocas internas
sobre os desafios e as demandas de cada uma. Ademais, o processo de construção do Plano
envolveu lideranças novas, principalmente estudantes que estavam na universidade. Portanto,
esse processo de elaboração foi importante para estimular a mobilização política local.
4 Considerações finais
98
procuram legitimar seus interesses por meio do uso do discurso sobre os direitos. Assim,
elaborar um plano que vise estabelecer regras coletivas de uso e de acesso aos recursos do
território objetiva não só introduzir práticas de manejo mais adequadas ao território, mas
também definir quem tem o poder de dizer como deve ser feito o uso do território.
O Plano de Gestão e Uso do Território Indígena Munduruku do Planaltos deve
ser entendido como mais um instrumento na luta pelo território. Para discutir os diferentes usos
dos recursos naturais e as percepções da forma de acesso a esses recursos, o Plano exigiu uma
reflexão coletiva sobre as ações predatórias realizadas no território e fomentou o debate sobre
as necessidades e as possibilidades de combate dessas ações; ao mesmo tempo, fortaleceu a
mobilização indígena interna, já que os constantes encontros entre os representantes das aldeias
reforçaram os laços e os compromissos entre elas.
Ainda do ponto de vista da disputa territorial, o Plano tem servido como um meio
de comunicação entre os indígenas e as instâncias estatais, por denunciar crimes e práticas
predatórias contra o território e manifestar suas propostas de organização e de controle.
Considerando ainda que a área está em estudo pela Funai, esse plano pretende contribuir para
a produção e a divulgação de conhecimento sobre o modo de vida local, visando com isso fazer
conhecer a luta política indígena e reafirmar seus direitos sobre aquele território.
Com base na descrição do processo de elaboração do Plano Munduruku, observa-se que
o direito foi manejado pelos indígenas de diferentes formas e com diferentes objetivos.
Primeiramente, como argumento de mobilização e de legitimação da luta política: aqui os
direitos indígenas tornam-se o idioma em que as questões locais são apresentadas. Mas,
enquanto forma de conhecimento e de autoridade local, o direito também é manejado
internamente no sentido de reforçar os laços de pertencimento ao território, de proteger e de
controlar os bens necessários à subsistência das famílias indígenas. As noções jurídicas locais
são, assim, reavivadas e reformuladas à luz da nova forma de organização política do grupo e
para atender as novas demandas de proteção coletiva do território. Também se pode dizer que
a elaboração do Plano indica o uso do direito como forma de pressionar o Estado a caminhar
no processo de demarcação do território, já que a linguagem dos direitos é aquela que estabelece
obrigações para aquele ente.
Nesse sentido, pode-se dizer, relembrando McCann (2006), que o direito não é
apenas um conjunto de normas e de prescrições provenientes do Estado, mas é também uma
criação local, uma maneira como os sujeitos expressam seu modo de vida cotidiano e seus
desejos de mudanças sociais. Isso significa que, além da dimensão prescritiva de estabelecer
normas de comportamento, o direito tem uma dimensão constitutiva, ou seja, também induz e
99
incentiva os sujeitos a assumirem comportamentos desejáveis. Foi nestes dois sentidos que o
direito foi mobilizado pelos indígenas Munduruku do Planalto: como instrumento de
mobilização e de controle (dimensão normativa) e como meio de instituir novas formas de
gestão coletiva do território baseada nos valores e nas expectativas gestados na luta territorial
indígena (dimensão constitutiva).
Por fim, a experiência de elaboração do Plano Munduruku acende um relevante
debate acerca do entendimento das formas como os indígenas constroem e vivem o direito em
contextos de alta exclusão, marginalização, pobreza e racismo (SIERRA; HERNÁNDEZ;
SIEDER, 2013) e amplia o olhar sobre as formas de expressão e de uso do direito por parte dos
movimentos sociais. Tentar compreender o papel do direito a partir da perspectiva dos sujeitos
em confrontos políticos contribui para denunciar as formas de opressão engendradas pelo
direito oficial, tanto quanto contribui para evidenciar o papel criativo e propositivo dos
movimentos sociais.
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100
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102
ENTRAVES À EFETIVA PARTICIPAÇÃO DE COMUNITÁRIOS NO
CONSELHO DELIBERATIVO DA RESEX TAPAJÓS-ARAPIUNS
1 INTRODUÇÃO
Além da discussão sobre a forma adequada de realizar a CPLI na Resex, outra questão
diz respeito à qualidade da participação dos líderes indígenas extrativistas nas assembleias do
Conselho Comunitário, coordenadas pela Tapajoara, e nas reuniões do Condel. Por serem
32
Em maio de 2021, a Cooprunã também entrou no processo como assistente litisconsorcial.
104
maioria no Condel, os moradores poderiam ter barrado ou protelado a aprovação dos projetos
de manejo madeireiro, ao não se sentirem suficientemente informados e consultados. Por que
não fizeram isso? Eis a questão.
Apresentarei aqui uma reflexão feita no âmbito do plano de trabalho “Capacitação dos
representantes no Conselho Deliberativo da Resex Tapajós-Arapiuns”, que estava inserido no
projeto “Institucionalização e Consolidação do Núcleo Integrado de Estudos Interdisciplinares
de Sociedades Amazônicas, Cultura e Ambiente (Sacaca): instrumentos de gestão coletiva e
mecanismos de acesso a recursos naturais no Oeste Pará”, do Programa Institucional de Bolsas
de Pesquisa, Ensino e Extensão (PEEX) da Ufopa (2019-2021). O Plano pretendia acompanhar
os representantes indígenas no Condel, identificando o seu grau de real compreensão dos vários
aspectos do Plano de Manejo da Resex Tapajós-Arapiuns e das principais leis que amparam os
seus direitos enquanto povos indígenas, como a Lei da CPLI. Pretendíamos entender qual a
visão que tinham do uso do seu território indígena sobreposto à área da Resex. A partir desse
diagnóstico, planejávamos desenvolver um programa de estudo e de capacitação sobre os
referidos documentos, leis e sua aplicação. Mas isso não foi possível, devido à pandemia do
coronavírus, que provocou a suspensão das atividades presenciais na Ufopa, das atividades
entre os indígenas e inclusive das reuniões do Condel.
Assim, a maior parte dos trabalhos que embasam este texto envolveu a pesquisa
bibliográfica e documental e conversas esporádicas com lideranças indígenas, durantes as
atividades do Cita antes do início da pandemia e nos últimos meses de 2020, quando a pandemia
arrefecia por algum tempo. Viajei para algumas aldeias no fim de 2020, mas, em seguida, os
casos de covid aumentarem com mais força, e as atividades foram paralisadas de novo.
Aproveitei as oportunidades quando esses líderes estiveram na cidade de Santarém, para
conversas informais. Também me servi das observações feitas durante as reuniões do Condel,
do qual sou um dos conselheiros desde 2018, representando o Grupo Consciência Indígena
(GCI). De forma que, apesar dos impactos negativos da pandemia sobre o planejamento do
estudo, estas linhas são resultado de pesquisas bem fundamentadas.
A Resex Tapajós-Arapiuns foi criada em 1998 em uma área de 647.611 hectares entre
os rios Tapajós e Arapiuns, no Oeste do Pará. Existem 78 comunidades na Resex (JUSTIÇA...,
2021), incluindo 45 aldeias indígenas, compondo uma população total de aproximadamente 25
105
mil habitantes. A gestão dessa Unidade de Conservação (UC) é feita pelo ICMBio com o
Condel da Resex, que devem observar o Plano de Manejo da Resex aprovado em 2014.
Durante as mobilizações pela criação da Resex, e logo após a sua criação oficial em
1998, os moradores e as lideranças das comunidades e das associações participavam bastante
dos encontros e das reuniões em que se discutia e decidia a gestão da Resex. Os encontros
reuniam centenas de moradores, entre jovens e adultos. Indígenas e não indígenas conviviam
sem tensões. Havia pouquíssimas associações de moradores, e a participação destes nos
encontros era de forma direta, discutindo entre si e dialogando com autoridades e ativistas de
ONGs. Por isso mesmo quase não se usava a palavra “representantes”.
Em 2002, com o início da implantação do Condel, por divergirem sobre a forma como
o processo foi conduzido, os indígenas decidiram afastar-se e não participar dessa instância de
deliberação da Resex (VAZ FILHO, 2013). Foi assim até 2013. Em uma audiência realizada
pelo Ministério Público Federal (MPF) na aldeia Solimões, no rio Tapajós, no município de
Santarém (PA), em 6 de dezembro de 2013, os indígenas reclamaram do fato de terem pouca
representação no Condel e de não receberem informações sobre as suas atividades e decisões.
O então gestor da Resex e presidente do Condel, Sr. Mauricio Mazzotti Santamaria, anunciou
que seria realizada uma reunião ainda naquele mês de dezembro “para discutir a participação
dos grupos indígenas” no Condel, que passaria por uma “possível reestruturação”. Na Ata da
Audiência, datada de 17 de dezembro de 2013, o Procurador Luiz Eduardo Camargo Outeiro
Hernandes recomendou ao ICMBio que providenciasse “a melhora da gestão da Resex”.
Na primeira reunião do Condel de 2014, em 17 de março, em Santarém, foi aprovada a
entrada de cinco associações indígenas, com suas respectivas suplentes. Assim, os indígenas
passaram a ter maior representação no Condel, mas a convivência era sempre tensa com as
demais lideranças não indígenas, que associavam os indígenas a conflitos no interior da Resex,
e algumas das propostas indígenas eram rechaçadas. Por isso, na última reunião do Condel de
2015, em 23 de novembro, parte dos conselheiros indígenas abandonou o salão de reunião, em
protesto. Em 13 de agosto daquele ano, 200 indígenas haviam ocupado a sede do ICMBio em
Santarém, onde ficaram durante três dias, exigindo a suspensão do projeto de comercialização
de créditos de carbono, em implementação na Resex sem consulta aos povos indígenas. Sob
pressão, o ICMBio anunciou a suspensão do projeto de crédito de carbono (VAZ FILHO;
PEREIRA; CARDOSO, 2017). Constata-se com isso que, mesmo já participando do Condel,
os indígenas estavam sempre atentos e serviam-se de outras estratégias para terem seus direitos
respeitados.
106
Ainda dentro desse contexto de tensões, em 2018, o Cita foi excluído do Condel sob a
justificativa de não ter entregado a documentação exigida, conforme o Regimento Interno do
Condel, embora tivesse sido cobrado em duas reuniões (27 de março de 2018 e 24 de julho de
2018) em que esteve presente (TRF1, 2021). Teria sido por essas questões burocráticas que o
Cita não pôde mais continuar no Condel a partir de 2018, exatamente quando se tratava da
aprovação final do plano de manejo madeireiro da Cooprunã. Foi nessa mesma época que o
GCI entrou para o Condel, sendo eu seu representante efetivo.
Os integrantes do Condel participam de discussões que exigem o prévio conhecimento
do Plano de Manejo, da legislação sobre o uso dos recursos naturais em UCs e de outros estudos
sobre os quais os representantes das comunidades, indígenas inclusive, têm pouco domínio. A
maioria dos representantes indígenas não possui muitos anos de estudo formal, o que dificulta
sua capacidade de compreensão dos discursos e a leitura dos documentos que subsidiam as
reuniões. Mas sua presença nas reuniões confere legitimidade ao processo das decisões, e, de
modo geral, é como se estivessem representando bem os interesses de suas aldeias e
organizações. A polêmica da ACP vem mostrar que é preciso olhar com mais atenção para essa
situação.
107
Tampouco explicaram bem por que na ocasião não contestaram a aprovação, argumentando,
por exemplo, o respeito à CPLI. É preciso considerar alguns elementos.
O Condel é integrado também por atores estatais e organizações não governamentais
(ONGs), externos às comunidades indígenas e tradicionais da Resex. Eles podem estar em
número inferior aos moradores, mas têm um poder muito maior no uso da fala e da
argumentação. Um exemplo disso é a performance política do próprio ex-gestor da Resex e ex-
presidente do Condel, Mauricio Santamaria, que sempre insistia em dizer que ali são os
conselheiros que decidem e que o Condel tem autonomia diante do ICMBio, mas quase sempre
as propostas que ele mesmo apresentava ou defendia eram as propostas aprovadas. Até porque
dificilmente os líderes comunitários têm outras informações para fazer contra-argumentações.
Ainda que tenha apenas um voto entre os 57 conselheiros, o ICMBio tem um poder bem maior,
que vai além do voto.
Durante as discussões que ocorrem nas reuniões do Condel, as falas feitas por
acadêmicos, representantes de ONGs e pelos próprios técnicos e consultores do ICMBio
geralmente usam de uma linguagem especializada e pouco acessível aos comunitários, mas com
um alto poder de convencimento. O mesmo ocorre com os documentos, estudos e relatórios
apresentados durante as reuniões. O problema é o entendimento dessas informações
transmitidas e todo o discurso feito pelos conselheiros mais familiarizados com conceitos
científicos, números e raciocínios, que são estranhos aos representantes dos moradores. O
problema pode ser a metodologia de trabalho nessas instâncias decisórias, como apontou
Auricelia Arapium, vice-coordenadora do Cita: “As pessoas das comunidades não entendem o
linguajar, não entendem siglas. Essas coisas devem ser claras para que o povo entenda o que
está sendo discutido, o que estão assinando” (JUSTIÇA..., 2021).
Além da linguagem especializada e menos acessível, Marcelo Moraes de Andrade
(2019) aponta outro elemento que explica parte do sucesso na aprovação de pautas mais
problemáticas ou que inicialmente poderiam ser rechaçadas pelos representantes das
comunidades, que é o direcionamento do discurso dos gestores do ICMBio:
[...] resta ainda uma ponderação sobre o perfil técnico de agentes estatais mais
diretamente envolvidos na condução das reuniões e assembleias da Resex. Observei
nas reuniões do Conselho Deliberativo de que participei que os gestores da Reserva,
agentes de mediação profissional, direta ou indiretamente, influenciam as decisões
nessas arenas de debates, pois, em se tratando de peritos, experts em suas áreas de
formação, muitas questões são apresentadas já imbuídas de cunho político ideológico
por esses agentes. Em várias situações os técnicos declaram suas opiniões pessoais
sobre questões que estariam em votação. Algumas vezes presenciei disputas
ideológicas em torno de opiniões divergentes entre técnicos do ICMBio sobre a
permanência ou não da criação do gado na Resex, assim como a legitimidade da
exploração madeireira (ANDRADE, 2019, p. 229-230, grifo do autor).
108
Como representante do GCI no Condel, pude constatar, nas discussões sobre os planos
de manejo madeireiro na Resex, que o representante do ICMBio atuava abertamente
defendendo tais atividades conforme proposto pela Cooprunã e Coopermaró. Na reunião do
Conselho Comunitário de 18 de julho de 2019, quando se discutia o pedido da Coopermaró
para estudos de ampliação de uma área para exploração madeireira, e os seus representantes
defendiam o pedido dizendo que precisavam de “emprego”, três líderes indígenas discursavam
com argumentos críticos à solicitação. O então gestor da Resex entrou em cena. Com toda sua
autoridade de presidente do Condel, Mauricio Santamaria, representante do ICMBio, disse que
“a decisão é do pessoal de Prainha do Maró, e não cabe às outras comunidades tirar a autonomia
deles” (anotações pessoais no meu caderno de campo). Com isso, deu a entender que os
indígenas estavam negando os direitos daqueles moradores do rio Maró, neutralizando a
argumentação dos indígenas. Em seguida, o presidente da Tapajoara, Dinael Cardoso dos
Anjos, também discursou defendendo o pedido da Coopermaró. E aquelas poucas vozes
indígenas que ousavam questionar o pedido foram silenciadas. Ressalta-se que a reunião era do
Conselho Comunitário, e não do Condel, este, sim, presidido pelo ICMBio. Na reunião do
Condel, no dia seguinte, diante de mais questionamentos dos indígenas (eu inclusive) e do
representante da Funai, Mauricio Santamaria e Dinael Anjos reafirmaram o dito no dia anterior,
defendendo a aprovação do estudo para a ampliação da área a ser manejada pela Coopermaró
(anotações pessoais no meu caderno de campo).
Outro elemento é que os responsáveis pela apresentação das questões para a discussão
destacam apenas aspectos supostamente positivos dos empreendimentos, como se viu na
reunião do Condel dos dias 25 e 26 de novembro de 2019, quando se discutia o “Manejo
Florestal Comunitário das Cooperativas Cooprunã e Coopermaró”. Sobre o plano de manejo da
Cooprunã, já aprovado e com portaria do ICMBio, o Sr. Waldemar Fernandes da Silva, vulgo
“Americano”, presidente da referida cooperativa, celebrava os seus “avanços” e falava de um
“sonho que está se tornando realidade”, o que ficou registrado na ata da reunião do Condel da
Resex Tapajós-Arapiuns, realizada em Vila Franca, em 19 de julho de 2019. O representante
da Cooperativa Mista da Flona Tapajós (Coomflona), que explora madeira, incentivava os
conselheiros dizendo que o negócio “é um potencial para a comunidade”. Sobre os lucros e
rendimentos do negócio, Mauricio Santamaria, destacou que “15% da sobra saem da
cooperativa e vai para as comunidades da RESEX, [...] e o retorno para as comunidades será
por meio de edital”. O presidente da Tapajoara, Dinael dos Anjos, reforçou que, desses 15%,
5% serão para a Tapajoara e “10% será investido nas comunidades em forma de projetos”.
Ainda que os líderes não soubessem exatamente o que significaria em reais essa porcentagem,
109
ficaram animados em descobrir que esse dinheiro iria para as suas comunidades. Na mesma
reunião, foi aprovado um novo estudo para possível manejo madeireiro na área sul da Resex.
Um conselheiro ligado à Coopurnã falou das oportunidades de “emprego” que surgem com
esses empreendimentos. Esse novo estudo foi aprovado sem nenhum voto contra.
Nas reuniões do Conselho Comunitário que antecedem as reuniões do Condel, em que
se discutem quase os mesmos temas, não é diferente. Na reunião do Conselho Comunitário da
Resex Tapajós-Arapiuns realizada em Mentai (rio Arapiuns) nos dias 12 e 13 de abril de 2019,
quando se tratou do plano de manejo da Cooprunã, antes da sua aprovação final pelo Condel,
foi destacado apenas (e novamente) que aqueles 15% das sobras iriam para a Tapajoara, e que
10% desse valor seriam repassados para projetos nas comunidades. Em 2021, o edital para o
uso dessa verba, no valor de R$100.000,00, beneficiaria apenas 15 projetos e comunidades. A
promessa foi mais animadora do que a realidade, mas serviu para a aprovação do plano de
manejo, como pretendido.
Também observei o estranhamento de muitos líderes comunitários durante discussões
mais complexas. Sem entender todas as implicações de um determinado empreendimento, eles
facilmente se tornam vítimas de argumentos apelativos e passionais, como dizer que, se um
determinado projeto de manejo madeireiro não for aprovado, os moradores vão passar
necessidades etc. Foi exatamente isso que ocorreu durante a aprovação do projeto de manejo
madeireiro da Cooprunã na reunião do Condel de 25 e 26 de novembro de 2018, após um apelo
emocionado, beirando a chantagem, do presidente dessa cooperativa, Sr. Waldemar Fernandes
da Silva, o “Americano”. Ele afirmava que as suas comunidades estariam em situação difícil e
que iriam continuar nessa penúria se não fosse aprovado o pretendido projeto de manejo
(anotações pessoais no meu caderno de campo). As demais falas citavam somente os possíveis
ganhos econômicos, nada sobre os aspectos críticos ou os impactos socioambientais negativos
para a floresta e os próprios moradores.
Registre-se ainda que, nessa reunião de 2018, eu, como representante do GCI,
argumentei bastante, pedindo mais tempo para as discussões, mas era só eu e um outro líder
indígena que insistíamos nisso. Naquela reunião, o Cita já não integrava o Condel. Os demais
conselheiros ficaram calados ou pareciam comovidos diante do apelo emocional do Sr.
Waldemar “Americano”. Na votação que aprovou o referido plano de manejo, pouquíssimos
votaram contra.
Sobre a aprovação desse plano de manejo madeireiro da Cooprunã, vale a pena informar
que, desde o início das discussões, predominou esse tom de apelo emocional, mais que
elementos racionais. Andrade (2019) participou da reunião do Condel ainda em 29 de agosto
110
de 2016, quando o grupo de moradores do rio Inambu (região do rio Maró), ligados à
Ascaprunã, solicitou autorização para iniciar estudo do potencial de exploração madeireira em
uma área de duas das suas comunidades. A pesquisa foi autorizada, mas muitos moradores
manifestaram-se contra tal atividade. Nisso, aqueles comunitários do rio Inambu reagiram, com
uma espécie de chantagem, “advertindo que, caso os projetos de exploração madeireira não
fossem aprovados, iriam abrir processo nos órgãos competentes, solicitando o
desmembramento de suas comunidades da Resex” (ANDRADE, 2019, p. 219, grifo do autor).
E foram esses moradores que conseguiram em 2018 a aprovação do seu plano de manejo
madeireiro por intermédio da Cooprunã, repetindo que ele iria “gerar emprego para os
comunitários” (palavras registradas na ata da reunião do Condel da Resex realizada em 21 de
novembro de 2016) e que sem tal empreendimento suas famílias iriam passar necessidades.
Em outra reunião do Condel de 2019, quando o assunto voltou, os poucos
questionamentos sobre os empreendimentos foram feitos pelos líderes indígenas Antônio
Curupini e Brás Tupinambá, pelo representante da Funai e por mim, que pedi mais “trabalhos
pedagógicos” para levar as informações sobre a temática até “às bases” (como consta na ata da
reunião do Condel da Resex Tapajós-Arapiuns, realizada em Vila Franca, em 19 de julho de
2019). Na mesma reunião, falou-se de uma estrada para escoar madeira, que cortaria a Resex
de um lado ao outro, e a Coopermaró pediu entusiasticamente a aprovação da ampliação da sua
área de manejo florestal madeireiro. O pedido foi aprovado com 19 votos e 9 abstenções.
Nenhum voto contra. Sobre possíveis impactos ambientais e sociais, nenhuma palavra. Então,
é compreensível que a maioria dos representantes dos moradores vote a favor de uma proposta
assim, pois só ouviram seus aspectos positivos e vantajosos.
Observei também que parte dos líderes indígenas e extrativistas que se mantém
silenciosa durante as apresentações e discussões vota seguindo o voto da maioria, seja a favor,
seja contra. Até porque, para essas pessoas humildes, é constrangedor votar contra a maioria, e
mais constrangedor ainda é admitir publicamente que não se está entendendo o assunto
discutido. Por isso, após longa explanação, quando o expositor que está na frente pergunta
“alguém não entendeu?”, dificilmente um comunitário vai levantar as mãos, ainda que não
tenha entendido, porque ele supõe que só ele não compreendeu e que isso se deve a uma
deficiência sua, sobre a qual é melhor silenciar. Talvez o problema esteja no formato e na
linguagem usados na explanação das questões e nas tomadas de decisões no Conselho
Comunitário e no Condel.
No caso do Conselho Comunitário, apesar da participação de grande número de
representantes das comunidades, parte deles vai a uma reunião e não vai mais às outras, sendo
111
substituídos por outros moradores. Não há uma continuidade na participação do conjunto desses
representantes, o que dificulta o acúmulo e o amadurecimento de conhecimentos sobre temas
que, como os planos de manejo madeireiros, são discutidos durante até cinco anos seguidos.
Não dispondo de informações sobre o que já foi tratado em reuniões anteriores, esses
conselheiros ficam sem entender o que está sendo tratado, não reúnem argumentos diante das
falas dos diretores da Tapajoara e dos gestores do ICMBio, ficando calados e intimidados. É aí
que votam, seguindo a maioria, pois não é simpático votar e perder, e votam a favor do que
disseram as autoridades na frente. É algo meio cultural entre esses moradores não discordar
publicamente de autoridades.
Uma compreensão mais profunda da cultura dos indígenas e dos povos tradicionais que
vivem na Resex joga mais luzes sobre essa questão. Será que a forma como são apresentados
as questões e os temas nas reuniões do Conselho Comunitário e do Condel é apropriada aos
modos de vida desses moradores? Reuniões que duram várias horas e até três dias – quando
essas pessoas têm de ficar naquela disposição de cadeiras umas atrás das outras – são cansativas
e facilmente dispersam as suas mentes. Enquanto isso, na mesa de coordenação dos trabalhos,
seguem-se as apresentações dos vários pontos da pauta, com sua linguagem especializada ou
pretensamente popular. As pessoas podem parecer que estão ali, mas não estão participando
efetivamente. Quando se aproxima o horário das refeições, e aumentam a fome e o cansaço,
mesmo sem nem entender o que se está discutindo, ou pelo menos não em profundidade, é
comum escutar os representantes comunitários desabafarem: “’Bora votar logo!”. Quando o
assunto é votado, muitos seguem a maioria e a opinião das autoridades.
A forma de participação dos moradores no Condel não está sendo apropriada
culturalmente, conforme os seus modos de discutir e de tomar decisões. Esses moradores podem
até ficar nas reuniões, assinar listas de frequência e votar, mas é evidente que a sua efetiva
participação é muito precária. É verdade que uma minoria desses líderes tem um traquejo maior
com a linguagem das instituições e dos acadêmicos, o que tem a ver com o seu tempo de atuação
como liderança e de convivência com o mundo das instituições estatais. Inclusive, devido ao
seu poder de influência, não é raro que esses líderes sejam cooptados para a defesa das propostas
e dos encaminhamentos dos gestores e dos técnicos. Isso acaba dando legitimidade ao discurso
apresentado e influenciando decisões, uma vez que a maioria dos conselheiros vê que quem
está ali defendendo a proposta é um deles.
Parece evidente que, apesar de alguns esforços feitos, os gestores da Resex e dirigentes
da Tapajoara não têm conseguido desenvolver metodologias adequadas ao modo de vida, às
práticas sociais e culturais e às “instituições representativas” dos povos indígenas e tradicionais
112
na Resex Tapajós-Arapiuns, como prescreve a Convenção n.º 169 (OIT, 2011). É preciso
reconhecer que o modo de atuação da Tapajoara e do Condel não tem sido “culturalmente
apropriado” (TRF1, 2021) aos costumes e tradições de discutir e tomar decisões típicos dos
indígenas e extrativistas da Resex.
É provável que parte desse problema tenha começado exatamente com a criação da
Resex e a institucionalização do Condel, que impactaram os modos como se relacionavam os
moradores com as instituições do Estado, do mercado e do mundo envolvente. Antes os agentes
externos tinham uma relação mais direta com os nativos e suas lideranças tradicionais (pajés,
parteiras, benzedores, catequistas, professores, presidentes de comunidade etc.), sem que estes
tivessem um poder de “representar” oficialmente as vontades e os interesses do conjunto dos
moradores. Ainda que, pela sua influência, pelo seu carisma e pela sua posição em redes de
parentesco, esses líderes tradicionais funcionassem aos olhos externos como porta-vozes dos
moradores. Mas para os próprios moradores não havia delegação da sua representação. Era
como se, de alguma forma, cada um representasse a si mesmo, numa relação direta com agentes
e instituições externos.
A criação da Resex trouxe a necessidade – ou a imposição – de uma representação social
dos moradores, como se já tivessem uma “organização coletiva estruturada” conforme
exigências dos agentes do Estado, e isso teria de ser feito geralmente por meio de associações,
cujo número aumentou muito a partir de então. Só na pequena comunidade Anã, no rio
Arapiuns, existiam em 2019 sete associações, sendo quatro delas regularizadas (ANDRADE;
SILVA, 2019). Esse tipo de institucionalização da representação dos moradores foi proposto
pelos agentes do Estado como a maneira mais adequada de gestão do território e de acesso aos
famosos projetos. Apenas na forma de associações, os moradores podem participar do Condel,
por exemplo. E foi nesse ambiente institucional que passaram a ser definidos “os princípios
norteadores de normas que delineiam as regras do jogo” (ANDRADE; SILVA, 2019, p. 161).
Os agentes das instituições do Estado entendem que, tratando com os representantes
legais das comunidades, estão imediatamente tratando com o conjunto dos moradores na ponta.
Mas não é bem assim. Aproximadamente 4 mil famílias vivem na Resex Tapajós-Arapiuns,
mas, no final de 2018, apenas 1.119 eram cadastradas na Tapajoara, das quais apenas 279
estavam quites, de acordo com a Ata da Reunião do Conselho Comunitário da Associação
Tapajoara, realizada em Mentai (rio Arapiuns) nos dias 12 e 13 de abril de 2019. Portanto, o
número de famílias que efetivamente participam da vida institucional e que escolhem
representantes para o Conselho Comunitário e o Condel é muito pequeno. Parece haver um
113
problema sério de participação do conjunto dos moradores nas atividades desses conselhos, e
isso não pode ser ignorado, pois afeta a legitimidade das suas decisões.
Os assuntos, antes de serem discutidos e decididos no Condel, são tratados nas reuniões
do Conselho Comunitário, das quais participam três lideranças indicadas por cada comunidade.
Cabe a esses três moradores representar os interesses dos demais moradores daquela
comunidade, e todos os integrantes do Conselho Comunitário em tese representam o conjunto
de moradores da Resex (indígenas e não indígenas). Embora as reuniões desse Conselho tenham
apenas representantes dos comunitários, os resultados são também problemáticos em termos de
participação. Apesar de servirem para que os moradores desabafem sobre várias questões locais,
os temas mais complexos e polêmicos são direcionados pelos diretores da Tapajoara e pelos
gestores do ICMBio, que participam também da reunião, como vimos acima. No Conselho
Comuntário, são repetidos muitos dos equívocos da condução do Condel.
Vem daí a reclamação constante nas reuniões do Conselho Comunitário e no Condel de
que muitos representantes não transmitem às famílias nas comunidades o que foi dito e acertado
nessas reuniões. Em muitas comunidades, os moradores confirmam que há representantes que
não se comunicam bem com eles. Parte dos moradores não sabe exatamente o que fazem seus
representantes em tantas viagens e reuniões. Não raro surgem fofocas de que eles ganham
vultosas diárias, e por isso estão sempre viajando. Por seu turno, alguns representantes
reclamam que, quando tentam reunir os moradores para repassar os assuntos das reuniões, a
maioria não comparece às reuniões. Há problemas aí. Porém, esses mesmos moradores
continuam comparecendo aos eventos comunitários chamados por outras lideranças, como
puxiruns, cultos religiosos, festas de santo, promoções beneficentes e torneios de futebol.
Portanto, o desinteresse parece ser por um tipo específico de reunião, como aquelas do Conselho
Comunitário e do Condel. Por que isso? O problema provavelmente está na representação
delegada e na forma de condução destas reuniões, não em uma suposta falta de interesse de
participação dos moradores.
É sobre alternativas a essa burocratização da representação dos comunitários que fala
Auricélia Arapium, vice-coordenadora do CITA: “Não basta só conversar com a gente aqui
[Santarém], a gente tem que conversar com o povo. É o povo que tem que saber o que está
acontecendo e o que vai acontecer para poder decidir”. Parece evidente que ela cobra uma ida
aos moradores nas suas comunidades, em vez de um contato somente com seus representantes
institucionais. Moradora da comunidade São Pedro, rio Arapiuns, na Resex, Auricélia defende
que são necessários outros espaços de discussão para além das reuniões do Condel e do
114
Conselho Comunitário, onde há muita influência de agentes externos às comunidades e as
discussões ocorrem de forma pouco acessível aos comunitários.
4 Conclusão
115
Tapajoara, o Condel e as demais entidades que atuam na área, poderiam ter stands para divulgar
informações referentes à Resex e sua gestão, exibir pequenos filmes, fazer sondagem de opinião
e dialogar com os moradores, principalmente com os jovens, os grandes ausentes das reuniões
formais da Tapajoara e do Condel. Essa aproximação proporcionaria a escuta das vozes e
percepções dos moradores, o que ajudaria na tomada de decisões sobre a vida da Resex. Essas
ações, que vão além das salas de reuniões oficiais, certamente terão impacto positivo na
qualidade da participação dos moradores na vida da sua Resex.
Referências
ANDRADE, Marcelo Moraes de; SILVA, Danielle Wagner. Modos de organização social e
dinâmicas institucionais na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, estado do Pará, Brasil. In:
Sustainability in Debate, Brasília, DF, v. 10, n. 2, p. 155-166, ago. 2019.
JUSTIÇA Federal passa por cima da consulta prévia e autoriza a exploração de madeira na
Resex Tapajós Arapiuns. Terra de Direitos, 28 abr. 2021. Disponível em:
https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/justica-federal-passa-por-cima-da-consulta-
previa-e-autoriza-exploracao-de-madeira-na-resex-tapajos-arapiuns/23584. Acesso em: 27
out. 2021.
POR FALTA de consulta prévia, TRF-1 suspende Planos de Manejo dentro da Resex Tapajós
Arapiuns (PA). Terra de Direitos, 30 abr. 2021. Disponível em:
https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/por-falta-de-consulta-previa-trf1-suspende-
planos-de-manejo-dentro-da-resex-tapajos-arapiuns-pa/23588. Acesso em: 2 nov. 2021.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1.ª REGIÃO (5. Turma). Processo n.º 1014278-
86.2021.4.01.0000. Processo referência: 1007927-65.2020.4.01.3902. Juiz relator:
Desembargador Federal Souza Prudente. Decisão: 30 abr. 2021.
VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Os conflitos ligados à sobreposição entre Terras Indígenas
e a Resex Tapajós-Arapiuns no Pará. Ruris, Campinas, v. 7, n. 2, p. 143-183, set. 2013.
116
VAZ FILHO, Florêncio Almeida; TAPAJÓS PEREIRA, João Antônio; CARDOSO, Luana
da Silva. Baixo Tapajós: lutando por direitos, apesar do forte preconceito. In: RICARDO,
Fany. Povos indígenas no Brasil: 2011-2016. São Paulo: ISA, 2017. p. 443-446.
117
QUILOMBO, TERRITÓRIO E O CAMPO JURÍDICO: ALGUMAS
REFLEXÕES33
1 INTRODUÇÃO
33
Trabalho apresentado ao GT03 (sessão 02) – Diálogos convergentes: populações tradicionais e
práticas jurídicas – durante o 7.º Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir), realizado
virtualmente no período de 23 a 27 de agosto de 2021.
34
Tal decreto regulamenta o processo de titulação territorial das comunidades quilombolas, como também
apresenta todos os órgãos responsáveis por executá-lo.
35
Denominamos vocalização a partir da perspectiva de Bourdieu (2003) que acredita que a produção da fala e do
discurso são formas de dar visibilidade a questões como problemas sociais ao fazer com que sujeitos ocupem
campos sociais e lutem pelo que consideram “verdades”.
118
e econômicos, como aqueles ligados à questão agrária brasileira. Nesse panorama, insere-se a
problemática da regularização de territórios quilombolas, que alcançou grande visibilidade
social desde o início do julgamento da ADI movida contra o Decreto n.º 4.887/2003 no Supremo
Tribunal Federal (STF). Essa ação foi alvo de manchetes de jornais e de discursos contendo
argumentos contrários e favoráveis ao direito territorial quilombola e ao reconhecimento étnico
e identitário desses grupos.
A partir de 2004, repetidas manifestações midiáticas (em telejornais e na imprensa
escrita) questionam as características “quilombolas” de inúmeras comunidades que
reivindicavam o direito à titulação de territórios. Tais peças jornalísticas, sem exceção,
vinculavam o “ser” quilombola aos elementos interpretativos do termo “remanescente das
comunidades de quilombos”. Havia um consenso – pelo menos no campo das práticas estatais
– de 1988 até 2003, segundo o qual as comunidades quilombolas eram consideradas como
quilombos históricos e não como grupos étnico-identitários. Esse discurso marca inúmeras
interpretações judiciais sobre os quilombos e seus direitos territoriais (JORGE, 2016).
A existência dessa aberta comunidade de intérpretes tem sido costurada com base em
variados interesses (econômicos, identitários, morais, políticos e científicos, principalmente)
resultando em práticas discursivas sobre o que são “remanescentes de quilombos” e como o
Estado deveria relacionar-se com eles. Nessa arena de lutas, verdades e interpretações, as
reflexões construídas por Pierre Bourdieu (1993, 2003) são para a nossa análise um arcabouço
teórico importante, por nos permitirem compreender o campo jurídico como um contexto de
interação de ritos, códigos, símbolos e proposições de verdades estruturadas pelos juristas em
companhia de outras enunciações presentes em outros campos sociais.
À luz dessas considerações, organizamos as nossas ideias neste artigo em três
momentos. No primeiro tópico, apresentamos ao leitor apontamentos sobre o panorama geral
da pesquisa, que se encontra em sua fase inicial, assim como o caminho metodológico
escolhido. Em um segundo momento, trazemos discussões sobre o que nomeamos “questão
quilombola” no Brasil, tendo em vista entender a problemática que envolve comunidades
negras rurais e urbanas como quilombolas e o seu direito ao território. Por fim, tecemos algumas
reflexões a partir de alguns resultados obtidos com o levantamento de decisões judiciais nos
Tribunais Regionais Federais até este momento.
119
2 Apontamentos iniciais
36
Destacam-se nesse panorama três momentos importantes. O primeiro momento foi marcado pela publicação do
artigo 68 do ADCT na CF de 1988 como primeiro dispositivo constitucional a fazer o reconhecimento do direito
territorial das comunidades quilombolas ante o Estado brasileiro. O segundo momento relaciona-se com a
promulgação do Decreto n.º 4.887/2003, que veio regulamentar todo o processo administrativo de
reconhecimento das comunidades quilombolas e da titulação ao território. Por fim, o terceiro momento
importante para a discussão do reconhecimento do direito territorial quilombola está ligado ao julgamento da
ADI n.º 3239/2004 no STF, que teve duração de 14 anos até chegar ao seu fim em 2018.
120
Tribunais fizeram parte desse rol: Tribunais Regionais Federais (TRFs), Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). O Quadro 1 apresenta as decisões judiciais
encontradas.
STF 11 acórdãos
STJ 10 acórdãos
TRF1 67 acórdãos
TRF2 57 acórdãos
TRF3 66 acórdãos
TRF4 31 acórdãos
TRF5 56 acórdãos
TOTAL 29837 acórdãos
Fonte: Pesquisa realizada no site de cada Tribunal Federal (de 1988 a 2020).
A partir desse levantamento, foi criado um banco de dados com todos os acórdãos de
inteiro teor encontrados na busca das palavras-chave utilizadas na pesquisa. Uma primeira
análise de cada acórdão permitiu-nos excluir algumas decisões que não tinham relação direta
com o objetivo da pesquisa. O Quadro 2 apresenta o número de decisões judiciais que tratam
especificamente da titulação quilombola ou de ações possessórias que envolvam essas
comunidades.
37
É importante ressaltar que é possível encontrar, entre os acórdãos, decisões que dizem respeito a um mesmo
caso, como bem nos lembram Madeira e Geliski (2017) ao analisar julgados nos TRFs tendo como objeto
políticas sociais no Brasil.
121
tema
quilombo/território
Fonte: Pesquisa realizada no site de cada Tribunal Federal (de 1988 a 2020).
Para este artigo especificamente, as nossas análises têm como foco os Tribunais
Regionais Federais. Nesse campo de atuação, foram encontradas 142 decisões judiciais que
tratam da questão territorial quilombola. Verificou-se que o Tribunal Regional Federal da
Primeira Região é aquele com o maior número de decisões, com destaque para o Estado do
Maranhão, que possui 17 decisões publicadas. Além de apresentar alguns aspectos gerais das
decisões judiciais, este artigo visa examinar com mais detalhes um dos litígios a fim de
compreender qual é a temática abordada e quem são os agentes participantes da disputa
discursiva sobre o direito das comunidades quilombolas ao território.
Posto isso, entendemos que o levantamento e a análise das decisões judiciais que
envolvam a questão territorial quilombola são também uma importante ação na arena do
conhecimento entre sociologia e direito, principalmente diante da instituição de políticas
públicas e sociais previstas para essas comunidades a partir do artigo 68 do ADCT e do Decreto
n.º 4.887/2003, que, na prática, não têm sido executadas de fato. Basta verificar o número
ínfimo de territórios e comunidades quilombolas titulados até o momento atual. Nesse sentido,
antes de passarmos à análise do material levantado, é importante refletir sobre a questão
quilombola no Brasil.
3 A “questão quilombola”
122
Vale ainda ressaltar que o fenômeno chamado “questão quilombola” no Brasil não pode
ser analisado sem considerar as alterações nos aparatos jurídicos e legislativos vigentes em
outras realidades nacionais. No plano internacional, a afirmação das diferenças culturais e da
necessidade de reconhecimento das características e da autenticidade de grupos
“subalternizados” ou “minoritários” ensejou a emergência de políticas de identidade, de
reconhecimento e mesmo multiculturais. Tais políticas e perspectivas foram patrocinadas pelas
organizações internacionais multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o
Banco Mundial (DUPRAT, 2007; SHIRAISHI NETO, 2007).
No Brasil, a discussão da questão quilombola tem início com a iniciativa de
parlamentares ligados a setores do movimento social negro que conseguiram incluir no debate
político da CF de 1988 um dispositivo (art. 68 do ADCT) que possibilitaria a titulação dos
territórios de grupos nomeados naquele texto jurídico como “remanescentes de quilombos”. A
partir daí, um conjunto amplo e sistematicamente crescente de comunidades rurais e urbanas
passou a demandar o reconhecimento como “quilombolas” e a organizar-se politicamente em
defesa dessa demanda. O reconhecimento nesse caso é demandado ao Estado e, em paralelo,
deveria redundar em titulação de territórios – elemento redistributivo que se mostra
vigorosamente importante em um país que sempre passou ao largo de qualquer iniciativa de
reforma agrária.
A partir daí, verificamos um intenso debate na sociedade sobre os limites e
possibilidades de operacionalização do direito territorial e do reconhecimento de comunidades
negras rurais e urbanas como quilombolas. Esse debate ganhou inclusive um cenário próprio
no campo jurídico com o julgamento da ADI n.º 3239/2004 no STF. A ação foi movida pelo
Partido Democratas contra o direito territorial quilombola previsto pelo Decreto n.º 4.887/2003.
Os discursos provenientes desse julgamento, finalizado em 2018, trouxe-nos uma interessante
percepção: a relação privilegiada entre o discurso do campo jurídico e o do campo das ciências
sociais, porque os ministros do STF lançaram mão de saberes de outros campos do
conhecimento (Sociologia e Antropologia) a fim de defenderem o direito territorial dessas
comunidades.
No que diz respeito à questão quilombola no Brasil, por conta da adoção das categorias
“uso comum” e “terras de preto”, as contribuições de Almeida (1989) são consideradas uma
referência para o pacote de informações e para a construção dos direitos que seriam
fundamentais, mais tarde, para a emergência dos “quilombolas” ou “remanescentes de
quilombos” como sujeitos de direitos. De fato, a categoria “terras de preto” foi transformada,
por meio da interpretação antropológica, em uma referência política. Isso porque as categorias
123
“uso comum” e “terras de preto” unidas deram forma nominativa a grupos que tinham um modo
de vida próprio (segundo a leitura antropológica), constituído a partir do acesso a recursos
naturais que eram usados coletivamente com base em modos de apropriação territorial
específicos. Tratava-se aqui da demarcação de uma diferença simbólica entre esses grupos e
qualquer outro que não apresentava a mesma configuração.
Podemos perceber que a categoria território reforça o direito à titulação previsto no
artigo 68 do ADCT38. Com efeito, essa categoria ultrapassa a noção de que a “questão
quilombola” teria em seu conteúdo apenas a demanda por resolução de conflitos agrários. A
categoria território enseja, portanto, a representação de uma diversidade ampla de saberes
tradicionais, práticas sustentáveis de uso dos recursos naturais e uma organização social própria
vinculada à utilização do espaço. Nessa chave interpretativa, as comunidades “quilombolas”
seriam grupos diferenciados porque sua reprodução social, cultural e material estaria ligada a
um espaço socialmente apropriado. Assim, o território seria mais um elemento identitário
importante para a nomeação das comunidades “quilombolas” como coletividades diferenciadas,
o que justificaria o reconhecimento por parte do Estado e a redistribuição, associados à ideia de
garantia de acesso ao espaço que lhes pertence.
Dessa forma, o vínculo dessas comunidades com o território traduz o sentimento de
pertença, os laços de parentesco, a herança de seus antepassados. Tal espaço possuiria um valor
afetivo, material e coletivo, pois, como aponta Souza (2002, p. 118), “o território define a
divisão política e dá forma e cria fronteiras aos sujeitos sociais a partir de dois aspectos
principais: o movimento (de pessoas, de ideias ou mercadorias), a iconografia e os símbolos”.
No próximo tópico, apresentamos algumas conclusões extraídas da análise do material
coletado nos Tribunais Regionais Federais.
38
O artigo 68 do ADCT instituído na CF de 1988 é conciso e bastante impreciso, afirmando somente: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
124
de sanções, pode, por exemplo, retirar a liberdade, garantir ou não o direito à propriedade e
ainda construir sujeitos de direitos. Nesse sentido, a “verdade” anunciada pelo juiz pertence aos
atos de nomeação ou à instituição representando a palavra pública (BOURDIEU, 2003).
No caso da questão territorial quilombola, os “intérpretes” oriundos do campo jurídico
têm atuado com força na construção de práticas discursivas relativas aos direitos territoriais e
ao reconhecimento étnico e identitário desses grupos. Nesse sentido, este artigo fundamenta as
suas análises partindo da perspectiva de que o reconhecimento do direito territorial das
comunidades quilombolas pelo Estado brasileiro ao mesmo tempo constrói e é construído por
um conjunto de enunciados, que contribuem para reconhecer ou desfavorecer a produção e a
efetividade de direitos para as coletividades quilombolas.
Durante a pesquisa, foram encontradas 142 decisões judiciais40 que tratavam sobre
questões territoriais envolvendo comunidades quilombolas. Destacamos algumas temáticas que
se repetiram com certa frequência:
39
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o acórdão corresponde a uma decisão coletiva de juízes sobre
determinado julgamento.
40
Incluímos em nossa pesquisa apenas os acórdãos que tratavam especificamente da discussão sobre territórios
quilombolas, abordando a titulação quilombola ou ações possessórias ou de propriedade acerca das terras que
lhes pertencem.
125
a) ações embasadas no questionamento da constitucionalidade do Decreto n.º
4.887/2003 – muitas delas mobilizavam a argumentação da ADI 3239/DF que
tramitava no STF, e algumas delas foram suspensas durante a tramitação dessa ADI;
b) ações possessórias de diversas naturezas – algumas delas questionavam a posse do
território por quilombolas, outras são movidas pelos próprios quilombolas,
representados pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública;
c) ações que buscam a nulidade do processo administrativo para delimitação,
demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por comunidade
descendente de quilombo, sob o argumento de algum tipo de irregularidade ou
ilegalidade no processo;
d) ações movidas pelo Ministério Público – um número considerável – para questionar
a inércia do Poder Público, na figura do Incra e da Fundação Cultural Palmares
(FCP), em dar continuidade ao processo administrativo de delimitação, demarcação,
desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por comunidade descendente de
quilombo, sendo essas ações julgadas procedentes para fixar um prazo para alguma
etapa específica do processo.
Foi possível constatar ainda que o Tribunal Regional Federal da Primeira Região é
aquele como maior número de decisões, com destaque para o Estado do Maranhão, com o total
de 17 acórdãos. Esse quantitativo de decisões na região pode estar ligado a diferentes fatores
para além da atuação de juristas ou de outros agentes no campo dos julgamentos previstos nos
TRFs. Por exemplo, devemos considerar que o Maranhão é o estado onde está concentrado o
maior número de comunidades quilombolas em comparação com outros estados brasileiros. De
acordo com dados recentes da Fundação Cultural Palmares, pesquisados no ano de 2021 no site
do próprio órgão, é a região Nordeste que se destaca pelo número de comunidades que se
autodefinem como quilombolas: 2195 comunidades. É nessa região que também está presente
um quantitativo significativo de comunidades certificadas pela FCP e tituladas pelo Incra ou
por órgãos estaduais.
Na região Nordeste, se o Maranhão concentra o maior número de comunidades
quilombolas (846 comunidades), a Bahia, com 827 comunidades, possui o maior número de
comunidades certificadas (672), já o Maranhão conta com 589 certificações. É importante
ressaltar ainda a morosidade das titulações e da atuação tanto do Incra quanto de órgãos
estaduais: do total de comunidades quilombolas reconhecidas no Maranhão, apenas 57 possuem
territórios titulados ou parcialmente titulados (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO,
[20--]; FCP, [20--]).
126
Outro fator importante também precisa ser citado: é no Maranhão que há o maior
quantitativo de conflitos por terra de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
(2021). Observa-se que as regiões que mais se destacam em ocorrências de conflitos são Norte
e Nordeste. Entre os estados, em primeiro lugar, está o Maranhão, com 1772 ocorrências,
seguido de Pará, com 1169, Bahia, com 827, Rondônia, com 788, Mato Grosso, com 564,
Amapá, com 557, Acre, com 555, Pernambuco, com 433, Mato Grosso do Sul, com 426, e
Minas Gerais, que contabilizou nos últimos dez anos 397 ocorrências (CPT, 2021, p. 27).
Entre os segmentos mais atingidos pela violência contra a ocupação e a posse na região
Nordeste, destacam-se: povos indígenas, quilombolas, posseiros, assentados e pequenos
proprietários, camponeses de fundo e fecho de pasto. Nesse cenário de violência, são agentes
causadores de conflitos principalmente fazendeiros, empresários e grileiros, seguidos de
madeireiros e mineradoras. Outro ponto importante apontado pela CPT (2021): o ano em que
houve o maior número de ocorrências de conflitos por terra foi 2020, seguido de 2019. Portanto,
“os dois anos de governo de Jair Bolsonaro foram os de maior registro de ocorrências de
conflitos por terra na série histórica” (CPT, 2021, p. 26).
41
Neste tópico, o objetivo é apresentar ao leitor um panorama geral das decisões, pois estamos na fase inicial da
análise do corpus documental.
127
Ministério Público, mas também como apelantes em situações em que recorrem das ordens
judiciais que cobravam celeridade no processo administrativo de reconhecimento e titulação
das terras quilombolas.
Das 17 decisões no Estado do Maranhão, outras quatro traziam como protagonistas
comunidades quilombolas, o Ministério Público e o Centro de Lançamento de Alcântara. Esses
litígios apresentavam duas demandas: o pedido de comunidades quilombolas à União para
usufruírem de parte do território situado perto do centro de lançamento de Alcântara para
plantio; o pedido de desapropriação de propriedade pertencente a fazendeiros locais na região
de Alcântara para fins de titulação territorial quilombola em uma ação movida pelo Ministério
Público contra o Incra. Outras três decisões judiciais estavam relacionadas a empresas
impetrantes de ação contra o Incra que se diziam contrárias à expropriação das terras – que lhes
pertenciam, segundo elas – para fins de titulação quilombola.
Em meio ao material coletado nesta pesquisa, que se encontra em fase inicial de análise,
escolhemos apresentar alguns elementos e fatos que permeiam uma única decisão judicial, mas
exemplificam outras situações parecidas. Trata-se de um julgamento que ocorreu em 2018 no
Estado do Maranhão que trazia solicitação da União para que o TRF revisasse decisão judicial
proferida por um juiz estadual. A decisão publicada pelo juiz dizia respeito a uma ação civil
pública ajuizada pela Defensoria Pública da União contra o Incra.
O juiz havia solicitado no julgamento medidas efetivas por parte da administração
pública, visando à conclusão do procedimento de regularização fundiária da comunidade de
remanescentes de quilombolas de Castelo (MA). Essa comunidade teria apresentado ao Incra,
em 2007, o pedido de regularização fundiária, até então não concluído. O juiz de âmbito
estadual apoiou sua interpretação no artigo 68 do ADCT, considerando que esse dispositivo
trazia fundamentos jurídico-constitucionais sobre a dignidade da pessoa humana no tocante à
moradia. Apontou ainda a urgência da titulação em razão dos inúmeros conflitos territoriais
vividos pela comunidade provocados pela investida de terceiros que tentavam ocupar o espaço
que pertencia aos moradores.
Para tanto, em sua decisão, o juiz concedeu ao Incra o prazo de 90 dias para a conclusão
do processo administrativo de regularização fundiária, assim como 180 dias para a conclusão
da titulação, prevendo multa diária de 50 mil reais pelo não cumprimento da decisão. Foi contra
essa decisão que o Incra recorreu ao TRF1, sustentando que reconhecia a morosidade nos
processos administrativos de titulação, mas defendendo a complexidade de procedimentos de
regularização fundiária. O órgão apontou também a impossibilidade de cumprir os prazos
estipulados pelo juiz e de efetuar o pagamento de multas.
128
O relator do caso no TRF1, um desembargador federal, em seu voto sobre a interposição
do Incra contra a decisão do juiz de âmbito estadual, explicitou, no início de sua argumentação,
que, embora eventuais dificuldades de ordem operacional possam acontecer na política de
titulação das comunidades quilombolas, não é admissível que uma comunidade espere mais de
10 anos para ter o seu título territorial. Esse quadro manifestaria, segundo o relator, uma
violação dos princípios da eficiência e da moralidade envolvendo a administração pública – o
que demandaria a intervenção do Poder Judiciário republicano para assegurar o direito à
demarcação dos territórios que pertencem aos quilombolas.
Em seu discurso, o relator recorreu ao artigo 68 do ADCT, primeiro dispositivo que
instituiu o direito de comunidades quilombolas ao território, assim como ao Decreto n.º
4.887/2003, que prevê o processo administrativo de reconhecimento e titulação, para reafirmar
o direito que deveria ser garantido aos quilombolas. No voto do relator, destaca-se ainda a
defesa do Judiciário como agente importante ante a administração pública, como fiscalizador
da efetividade de direitos assegurados pela CF de 1988.
Ao fim do seu voto, o relator manteve decisão favorável à comunidade quilombola de
Castelo42 ao defender integralmente a decisão proferida pelo juiz anterior. É importante notar
que tanto a decisão proferida pelo relator, quanto a decisão do juiz estadual não davam destaque
à existência das comunidades quilombolas como coletividades diferenciadas ou como povos
tradicionais de forma explicita. Mas o principal elemento sublinhado pelos juízes foi a
importância do acesso ao território como direito fundamental que deveria ser garantido de
maneira efetiva pelo Estado. O acórdão final que traz a decisão coletiva da Quinta Turma do
Tribunal Regional Federal da Primeira Região corroborou a argumentação do relator, negando
a solicitação anterior do Incra para anular decisão judicial.
5 Considerações finais
42
Em pesquisa realizada no site da Comissão Pró-Índio, constata-se que a comunidade Castelo, localizada no
Estado do Maranhão, permanece até os dias atuais sem o título do território. Em 2020, nova decisão do TRF1
ordenou que o Incra elaborasse um calendário para dar início ao processo administrativo de titulação com prazo
de dois anos para a conclusão.
129
não têm o seu direito territorial efetivado. Trata-se nesse caso, como apontam Souza e Mattos
(2007), a partir dos estudos de Fraser, de uma problemática que envolve injustiça econômica e
cultural (mobilizadora de movimentos sociais), sociedade civil e Estado.
Estamos nesse sentido ante a luta por reconhecimento e por redistribuição quando
trazemos à tona a previsão da regularização dos territórios quilombolas como uma ação de
reparação. Tal luta visa garantir a reprodução material dessas comunidades a partir de um
direito fundamental, que é ter acesso à moradia, e dar visibilidade a coletividades que precisam
ter sua cultura e sua história reconhecidas pela sociedade.
Isso nos mostra que nos devemos afastar de interpretações que relacionam os
“quilombolas” unicamente aos problemas agrários. De fato, a “questão quilombola” faz parte
do campo de reconhecimento das diferenças culturais, e a luta pelo território é uma bandeira
importante da autoidentificação que precisa ser garantida o quanto antes.
Referências
ALMEIDA, A. W. B. de. “Terras de preto, terras de santo, terras de índio – uso comum e
conflito.” Belém, Cadernos do Naea, n.10, p.163-96, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.
MADEIRA, Lígia Mori; GELISKI, Leonardo. Políticas sociais nos tribunais intermediários:
Tribunais Regionais Federais em evidência. Anuario de Derecho Constitucional
Latinoamericano, Bogotá, v. 23, p. 305-326, 2017.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil:
declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política
nacional. Manaus: UEA, 2007.
SOUZA, Jessé; MATTOS, Patrícia (org.). Teoria crítica do século XXI. São Paulo:
Annablume, 2007.
SOUZA, Vânia Rocha Fialho de Paiva e. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE). In:
O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de
Janeiro: FGV, 2002.
131
A TERRA NA ÁGUA - A DEFESA DAS COMUNIDADES
TRADICIONAIS PESQUEIRAS, SUA IDENTIDADE E SEUS
TERRITÓRIOS43
1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país diverso em sua composição étnica e cultural, abrigando um número
significativo de povos e comunidades diferenciados, muitos dos quais estão ainda em situação
de invisibilidade, discriminação ou exclusão, quando não chegam a ser alvo de pressões
econômicas, fundiárias e, sobretudo, territoriais. Esse contexto, é um grande desafio assegurar
a esses grupos os direitos que lhe são outorgados pela Constituição e pela legislação que a
complementa, que garantem sua existência e a manutenção de seu modo de ser, criar e viver.
O reconhecimento jurídico-formal dos denominados “povos e comunidades
tradicionais” deu-se a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. A Convenção n
169, da OIT, e, posteriormente, os Decretos n. 6.040/2007 e 8.750/2016 deram visibilidade a
esses grupos, enumerando os seus direitos e consagrando-lhes espaços e instrumentos para sua
luta. Entretanto, a despeito das iniciativas e do protagonismo assumido por muitos desses
grupos, a ausência ou a negação de informações sobre os direitos e seus meios de acesso têm
constituído inúmeros obstáculos em sua trajetória.
É o caso das comunidades pesqueiras, definidas como
os grupos sociais, segundo critérios de auto-identificação, que têm na pesca artesanal
elemento preponderante do seu modo de vida, dotados de relações territoriais
específicas referidas à atividade pesqueira, bem como a outras atividades comunitárias
e familiares, com base em conhecimentos tradicionais próprios e no acesso e usufruto
de recursos naturais compartilhados. (PL 131/2020, art. 1º, I).
43
Trabalho submetido ao VII Encontro Nacional de Antropologia do Direito – ENADIR - GT03 -
Diálogos convergentes: populações tradicionais e práticas jurídicas
132
dos ecossistemas e de seus corpos hídricos, bem como a própria subsistência e reprodução das
espécies.
São consideradas comunidades tradicionais, e por isso merecedoras de proteção quanto
à preservação e a proteção da sua identidade e da sua cultura, sua dignidade territorial, enquanto
grupos participantes do processo civilizatório nacional e formadores da sociedade brasileira.
Também têm o direito à consulta prévia, livre e informada quanto a quaisquer medidas
legislativas ou administrativas afetá-las de alguma forma em seus modos de vida e na gestão
dos seus territórios.
Contudo, embora estejam presentes em quase todos os Estados do País, essas
comunidades ainda não receberam do Poder Público a devida atenção e reconhecimento. Ao
contrário, enfrentam, em seu cotidiano, dificuldades constantes e graves, muitas vezes
relacionadas ao enfrentamento do contexto de marginalidade e da invisibilidade social em que
estão inseridos. As questões que enfrentam vão desde as mais simples, como a ausência de
registro, que impede o desenvolvimento regular de suas atividades, até problemas complexos
como a poluição sistêmica dos rios ou o grande número de impactos causados pelos
empreendimentos que os afetam, sem a imprescindível consulta.
Alguns dos pontos cruciais para o reconhecimento e proteção a essas comunidades são
a garantia de sua identidade, por meio da autoatribuição, a identificação e defesa de seus
territórios e a proteção ao seu modo de vida diferenciado, com a garantia dos meios necessários
ao exercício de suas atividades econômicas e culturais.
Nesse sentido, um grande instrumento para a implementação dessas garantias é a
aprovação do Projeto de Lei n. 131/2020, que promove o reconhecimento, proteção e garantia
do direito ao território das comunidades tradicionais pesqueiras, tido como patrimônio cultural
material e imaterial sujeito a salvaguarda, proteção e promoção, bem como o procedimento para
a sua identificação, delimitação, demarcação e titulação. Adota como critérios de identificação
dos territórios pesqueiros a habitação, o desenvolvimento de atividades produtivas, a
preservação, abrigo e reprodução das espécies e de outros recursos necessários à garantia do
seu modo de vida, bem como à sua reprodução física, social, econômica e cultural.
O presente artigo busca dar uma compreensão mais ampla do que são essas
comunidades, quais as suas formas de constituição, sua relação com os seus territórios e
atividades econômicas, de forma a conferir-lhes a proteção necessária aos seus direitos
fundamentais, de que são destinatárias pela Constituição Federal (art. 215 e 216), pela
Convenção 169 da OIT e pelo Decreto n. 6040/2007.
133
2. Da caracterização dos pescadores artesanais, uma comunidade tradicional
135
Essas populações abrangem uma diversidade de grupos, como quilombolas, ribeirinhos,
povos e comunidades de terreiros, povos e comunidades de matriz africana, povos ciganos,
pescadores artesanais extrativistas, caiçaras, faxinalenses, benzedeiros, ilhéus, raizeiros,
geraizeiros, catingueiros, vazenteiros, veredeiros, apanhadores de flores, pomeranos,
quebradeiras de coco babaçu, comunidades de fundo de pasto, entre outros.
No mesmo diploma legal, também são definidos territórios tradicionais dessas
comunidades como
os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e
comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária,
observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente,
o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias e demais regulamentações. (art. 3º, II)
44
ADI 3.239, Julgada em 08.02.2018, Plenário, Relatora para Acórdão Min. Rosa Weber.
136
b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na
elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais e é transferido de
geração em geração por via oral;
c) noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e
socialmente;
d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns membros
possam ter-se deslocado para centros urbanos;
e) importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadorias
possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado;
f) reduzida acumulação de capital;
g) importância dada à unidade familiar, doméstica e comunal e às relações de
parentesco ou compadrio para o desenvolvimento das atividades econômicas, sociais
e culturais;
h) importância da simbologia, mitos e rituais associados à caça, à pesca e a atividades
extrativistas;
i) uso de tecnologia relativamente simples e de baixo impacto sobre o meio ambiente
– há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo
produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final;
j) fraco poder político, que em geral reside nos grupos dos centros urbanos;
l) autoidentificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta
das outras. (DIEGUES, 2008, p. 89 e 90)
E, por fim, para Alfredo Wagner Berno Almeida a ocupação permanente de terras e suas
formas intrínsecas de uso caracterizam o modo peculiar de ‘tradicional’. Além disso, o
significado político das mobilizações em torno de um dado território também constrói a
identidade junto a sua territorialidade segundo aspectos socioculturais intrínsecos e dinâmicos.
O processo de territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que
envolvem a capacidade mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e um
137
certo jogo de forças em que os agentes sociais, através de suas expressões
organizativas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado. As relações
comunitárias neste processo também se encontram em transformação, descrevendo a
passagem de uma unidade afetiva para uma unidade política de mobilização ou de
uma existência atomizada para uma existência coletiva. A chamada “comunidade
tradicional” se constitui nesta passagem O significado de “tradicional” mostra-se,
deste modo, dinâmico e como um fato do presente, rompendo com a visão
essencialista e de fixidez de um território, explicado principalmente por fatores
históricos e pelo quadro natural, como se cada bioma correspondesse necessariamente
a uma certa identidade. A construção política de uma identidade coletiva, coadunada
com a percepção dos agentes sociais de que é possível assegurar de maneira estável o
acesso a recursos básicos, resulta, deste modo, numa territorialidade específica que é
produto de reivindicações e de lutas. Tal territorialidade consiste numa forma de
interlocução com antagonistas e com o poder do Estado. (ALMEIDA, 2008, p. 118-
119).
138
A atividade de pesca é regida, em âmbito nacional, pela Lei n. 11.959, de 29 de junho
de 2009, que “Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da
Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei no 7.679, de 23 de
novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras
providências.”
Tal lei define, em seu art. 4º, parágrafo único, a atividade pesqueira artesanal, nos
seguintes termos:
139
art. 2º, as categorias de inscrição para os pescadores, quais sejam:
I - Pescador Profissional na Pesca Artesanal: aquele que exerce a atividade de pesca profissional
de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou
mediante contrato de parceria, podendo atuar de forma desembarcada ou utilizar embarcação
de pesca com Arqueação Bruta (AB) menor ou igual a 20 (vinte); e
II - Pescador Profissional na Pesca Industrial: aquele que, na condição de empregado, exerce a
atividade de pesca profissional em embarcação de pesca com qualquer AB.
143
sociedade brasileira, e da legislação que o regulamenta.
Como se pode perceber, a partir da situação vivenciada atualmente pelos pescadores, a
despeito da proteção constitucional e legal de que dispõem, o regramento adequado da matéria
é vital para que se dê instrumentos de concretização dos direitos desses povos, permitindo,
assim, que permaneçam íntegros, vivendo de acordo com os seus costumes e tradições, nos
termos da Constituição e das convenções internacionais.
Nesse sentido, o projeto se propõe a fornecer esse novo paradigma, contemplando
aspectos relevantes para a defesa dessa comunidade tradicional.
Merece destaque, de início, a adoção da autoatribuição como o critério fundamental para
a definição dos grupos aos quais se aplicam as suas disposições.
A autoatribuição está fundada em dois critérios, ambos imprescindíveis à sua
configuração: a) a autodeclaração e consciência de sua identidade; e, b) o reconhecimento de
sua identidade por parte do grupo de origem. Assim, não basta, como poder-se-ia aferir em uma
leitura precipitada do texto, que alguém se autoatribua a condição de pescador artesanal para
ser portador dessa identidade. É necessário que sua comunidade ou grupo também o reconheça
nessa condição, para que se complete o critério bilateral previsto na Convenção n. 169. Com
efeito, são os próprios integrantes de tais comunidades os mais habilitados a reconhecer os
conteúdos e os contornos de seu universo identitário, como também a lógica específica de sua
construção.
Os art. 1º, parágrafo único, I, e 3º do projeto adotam com pertinência doutrinária e
jurisprudencial a autoidentificação como elemento central para a caracterização das
comunidades tradicionais pesqueiras.
Pretende-se, assim, superar as atuais dificuldades que os pescadores têm enfrentado para
a realização do seu registro profissional, as quais têm se mostrado, no atual contexto,
intransponíveis. A nova regulamentação soluciona essa questão de modo adequado.
Outro aspecto relevante é a definição de território adotada pelo projeto, em seu art. 1º,
parágrafo único, inciso II:
II – Territórios tradicionais pesqueiros: as extensões, em superfícies de terras ou
corpos d’água, utilizadas pelas comunidades tradicionais pesqueiras para a sua
habitação, desenvolvimento de atividades produtivas, preservação, abrigo e
reprodução das espécies e de outros recursos necessários à garantia do seu modo de
vida, bem como à sua reprodução física, social, econômica e cultural, de acordo com
suas relações sociais, costumes e tradições, inclusive os espaços que abrigam sítios de
valor simbólico, religioso, cosmológico ou histórico.
144
espécies e de outros recursos necessários à garantia do seu modo de vida, bem como à sua
reprodução física, social, econômica e cultural. Contempla, assim, de forma adequada, a
complexidade e importância do território para a comunidade tradicional, bem como a
especificidade desse grupo.
Por último, mas não menos importante, o projeto acerta ao assegurar, em seu art. 2º, o
direito à consulta prévia, livre e informada, nos seguintes termos:
Art. 2º São garantidos aos integrantes das comunidades tradicionais pesqueiras o
acesso preferencial aos recursos naturais e seu usufruto permanente, bem como a
consulta prévia e informada quanto aos planos e decisões que afetem de alguma forma
o seu modo de vida e a gestão do território tradicional pesqueiro.
Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas organizações
legalmente constituídas e compostas exclusivamente pelos seus membros.
5. Conclusão
Os pescadores artesanais são uma comunidade tradicional, de acordo com os parâmetros
da Constituição Federal, da Convenção n. 169 da OIT e da legislação nacional, sobretudo do
Decreto n. 6.040/2007. Seu reconhecimento, contudo, tem enfrentado inúmeros obstáculos e
incompreensões, que têm resultado em graves impactos e restrições aos seus direitos. Entre
estes, destaca-se a negativa de fornecimento de registro, em virtude da colocação de requisitos
que são absolutamente dissonantes da proteção conferida a essa comunidade pelas normas
citadas, que tem inviabilizado o exercício dos direitos das comunidades e dos indivíduos a ela
vinculados.
O Projeto de Lei n. 131/2020, se aprovado, representará um grande avanço na defesa
dos direitos dessas comunidades, eis que contempla os principais aspectos de seu exercício, tais
como o reconhecimento de sua caracterização como comunidade tradicional; a autoatribuição
145
de sua identidade; a proteção ao território e a exigência de consulta livre, prévia e informada
para a implementação de quaisquer medidas que afetem as comunidades.
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais
livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2.
ed. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os Quilombos e as Novas Etnias: é necessário que
nos libertemos da definição arqueológica. In: LEITÃO, Sérgio (Org). Direitos territoriais das
comunidades negras rurais. Documentos do ISA, n. 5, 1999
BRASIL. Decreto n.º 8.425, de 31 de março de 2015. Regulamenta o parágrafo único do art.
24 e o art. 25 da Lei n.º 11.959, de 29 de junho de 2009, para dispor sobre os critérios para
inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira e para a concessão de autorização,
permissão ou licença para o exercício da atividade pesqueira. Diário Oficial da União: seção
1, Brasília, DF, p. 2, 1 abr. 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Decreto/D8425.htm. Acesso em:
15 abr. 2021.
BRASIL. Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III
e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 19
jul. 2000a. PL 2892/1992. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm. Acesso em: 15 abr. 2021.
BRASIL. Lei n.º 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras,
revoga a Lei n.º 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei n.º 221, de
146
28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília,
DF, p. 1, 30 jun. 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/lei/l11959.htm. Acesso em: 15 abr. 2021.
BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Distrito Federal. 9.ª Vara Federal Cível da
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LITTLE, Paul. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma antropologia da
Territorialidade. Anuário Antropológico/2002-2003 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004:
251-290
OIT. C169 – sobre Povos Indígenas e Tribais. OIT, 1989. Disponível em:
https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236247/lang--pt/index.htm. Acesso em: 5
maio 2021.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998.
147
ENCONTROS PRAGMÁTICOS: AS RELAÇÕES AMERÍNDIAS NA
ADJUDICAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
45
Essa expressão veio até mim após o conhecimento do projeto de Bruno Latour An Inquiry into modes of
existence, que nomeia também mais uma das publicações desse autor (LATOUR, 2019b). Depois, compreendi
que se trata de um termo amplo e utilizado por autores que Latour explora em Reflections on Etienne Souriaus’s
Les différents modes d’existence. Segundo Latour, “[i]t turns out in fact that each mode defines, most often with
astonishing precision, a mode of VERIDICTION that has nothing to do with the epistemological definition of
truth and falsity” (LATOUR, 2013, p. 53-54, grifo do autor). Voltarei a essa expressão ao longo do texto para
aplicá-la ao que busco escrever de forma marcada sem carregar em sua conexão com a teoria ator-rede, o que
me leva a definir o termo de forma simples: “modo de existência” refere-se à maneira sociológica e metafísica
de um grupo social, aproximando-se do conceito de formas de vida, próprio da hermenêutica. A expressão
encontra interessantes repercussões em Veena Das, que propõe a seguinte definição: “in which the social and the
natural absorb each other – forms referring to the dimension of say, social conventions and institutions, and life
to that which always inheres in forms even as it goes beyond them” (DAS, 2011, p. 321).
46
Aos mais próximos das discussões em Antropologia do Direito, Malinowski (2015) termina sua arguição em
Crime and custom in savage society dizendo hypotheses non fingo. Quero já deixar claro que minha propositura
com este texto está associada à contraposição de Gabriel Tarde (2007): hypotheses fingo.
148
atento, já são evidentes, e o contexto de análise é fixado no pós-evento crítico47 ocorrido em
2015, quando todos nós assistimos atônitos ao colapso de mais um grande empreendimento
minerário: o rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG). Com essa proposição,
buscarei empreender um retorno ao conflito, julgando ser pertinente recuarmos para
compreender alguns aspectos esquecidos no campo da antropologia do direito. Acredito que
nós passamos muito tempo analisando o processamento de disputas e desvelando as evidências
(simbólicas ou não) das variadas formas de resolução de conflitos que, desde Malinowski,
parecem ocupar parcelas das monografias nesse campo interdisciplinar. Talvez seja interessante
nos atermos a outras camadas que antecedem a ideia de resolução (ou administração) do
conflito, atentando para as conexões parciais que o conflito em si promove, tal como Simmel
(1983) sugeriu no campo sociológico. Agora gostaria de rever seu papel em nossa disciplina.
Retomar o conflito permite compreender adequadamente como os agentes do direito48
colocam em ação, de forma bastante perspicaz, o modo particular do regime de enunciação
jurídica. Dessa forma, é possível caminhar além da dimensão simbólica (melhor seria dizer
compor-com) para nos ater à ontologia própria que os variados modos de existência podem
colocar em cena. Em outras palavras, o “fato juridicamente relevante”, como dizem os agentes
do direito, é, antes de mais nada, dotado de uma forma de enunciação própria com pressupostos
constitutivos de uma realidade nada “fictícia”, embora o direito seja encantado por ficções. Por
isso, mais do que uma objetividade sem objeto49 – ou a descrição do direito como formas
abstratas, normas gerais e abertas etc. –, penso que é melhor pensar o direito como um
compositor de existências, pois desde Geertz sabemos que “o direito é saber local e não um
47
Em minhas investigações, optei por esse conceito ofertado por Veena Das (1995), pois é capaz de abranger mais
do que as formas variadas de nomear o rompimento da barragem em si, ressaltando aspectos políticos e as
modificações no seio social que tal evento acarreta: “[...] first let me define what I mean by a critical event.
François Furet (1978) defined the French revolution as an event par excellence because it instituted a new
modality of historical action which was not inscribed in the inventory of that situation. None of the events that I
have selected and described as critical compare with the French revolution, but they do have one thing in common
with Furet’s characterization of that event. That is that, after the events of which I speak new modes of action
came into being which redefined traditional categories such as codes of purity and honour […] (DAS, 1995, p.
5-6, grifo do autor).
48
Essa é a maneira como opto por denominar as pessoas (e as formas) do direito, evitando termos complexos e
com antecedentes que eu não conseguiria adequadamente controlar, tais como juristas, operadores do direito etc.
O termo agente, por outro lado, permite-me evocar ironicamente seus significados variados (todos interessantes)
e, curiosamente, facilmente aplicáveis às formas oficiais do direito: agenciadores, espiões, funcionários,
negociadores etc.
49
Bruno Latour faz essa colocação em A fabricação do direito quando informa que “a objetividade do direito tem
essa coisa estranha de ser literalmente sem objeto, mas inteiramente sustada pela produção de um estado mental,
de uma hexis corporal [...]” (LATOUR, 2019a, p. 288, grifo do autor). Muitas vezes, o autor faz uso de termos
de forma meramente retórica; quando contrastados com seus argumentos, as expressões parecem um pouco
bagunçadas ou de difícil sustentação. Especificamente, no capítulo 6 de “Falar do direito?”, há indicações sobre
um aspecto da fabricação do direito que aponta para a necessidade de pensar também sobre a fabricação do fato
jurídico, já que deveríamos nos ater às ontologias próprias que lhe convêm (LATOUR, 2019a, p. 338). Voltarei
a esse argumento ao final.
149
princípio abstrato e [...] é construtivo da vida social em vez de refleti-la” (GEERTZ, 1983, p.
218, tradução nossa). Consequentemente, o direito e, especificamente, a adjudicação interferem
no campo do real de forma prescritiva em relação aos conflitos, dos quais, invariavelmente, as
formas oficiais parecem fazer parte.
Portanto, ao rastrear etnograficamente um conflito e suas variadas repercussões
cosmológicas em um povo indígena, procurarei examinar diferentemente o “enquadramento”
jurídico da demanda (ou litígio, como chamam os agentes do direito) que logo se sucedeu ao
evento crítico de Mariana. Por conseguinte, esses dois momentos revelarão o que conta como
relação, permitindo rever as assimetrias e munir-nos para melhor compreender o regime
jurídico e a composição do fato (juridicamente) relevante. A tessitura dessa facticidade, seja
jurídica, seja etnográfica, não deve ser classificada simplesmente como frágil ou de delicada
delimitação, tal como normalmente escutamos. Existem fissuras recíprocas por onde as coisas
colocadas juntas insistem em escapar, fazendo com que as conexões parciais tornem difícil a
observação de um desfecho, obrigando-nos a retornar aos bastidores da trama.
Devo dizer que não estou interessado nas formas de síntese50, de reconciliação, de
restauração ou de resolução do conflito, mas nas múltiplas conexões que o encontro de modos
de existências parece desenhar. Algumas delas são certamente perigosas, outras se mostram
modestas, mas interessantes para apreender as formas de convivência que as práticas ameríndias
parecem ensinar-nos; todas se desdobram num fazer político animado de múltiplas entidades.
Humanos e outros-que-humanos51 compõem o espectro político local e, arrisco dizer, infectam
arenas oficiais, embora esse processo implique muitos desacordos, pois os agentes do direito
normalmente “não conseguem ver” o que nos estão dizendo muitos indígenas. Um bom
diagnóstico desse monismo começa por levar a sério a simples, porém poderosa constatação de
Kopenawa e Albert (2015, p. 461): “não há dúvida de que eles [os Brancos] têm muitas antenas
e rádios em suas cidades, mas estes servem apenas para escutar a si mesmos. Seu saber não vai
além das palavras que dirigem uns aos outros em todos os lugares onde vivem”.
Assim, o conflito será o tropo teórico para investigar a hipótese levantada, uma maneira
de pensar-com o conflito para entender os arranjos (jurídicos e ameríndios) que decorrem desse
encontro. Um encontro, devo dizer, que se faz por inúmeros entrelaçamentos, mas apresentarei
apenas uma versão, que é a adjudicação, já que ela é o modus pelo qual estabilizamos nos
50
Resgatando Geertz (1983, p. 216): “The legal universe is not collapsing to a ball but expanding to a manifold;
and we are headed rather more toward the convulsions of alpha than the resolutions of omega”.
51
Estou utilizando a definição de De La Cadena e de Blaser (2018, p. 38), pois os autores explicam que “we called
them otherthan-humans (instead of nonhumans) to emphasize that, while actors, they did not share the epistemic
or ontological status of laboratory things”. Ver também De La Cadena (2010).
150
modelos formais do Estado um conflito em busca de uma decisão. As condições desse regime
de enunciação, portanto, deverão ser pensadas como prescritivas de uma realidade que se choca
com as formas de vida que ali são potencialmente descritas (ou inventadas com outros termos).
Por isso, se é verdade que toda tradução é uma traição, tratarei de me ater a essa face e de
compreender como os modos de existência são traídos, porque inventados, na adjudicação. Isso,
contudo, não se dá sem interferências. As formas jurídicas e as formas ameríndias (entre outras)
parecem interagir e produzir múltiplas interseções, conexões parciais que não buscam nenhuma
síntese, mas que podem ter reflexões por vezes prejudiciais, até porque “importa que ideia nós
usamos para pensar outras ideias”, como bem lembra Donna Haraway (2016, p. 12, tradução
nossa) em referência a Marilyn Strathern.
Desse modo, passando ao nosso contexto-conflito, tratarei de apresentar na primeira
parte do texto um conflito etnografado, que está associado a um enunciado nativo com
importantes repercussões. Segundo meus interlocutores, Watú kuém, isto é, o parente (rio) está
morto. Buscarei traçar esse fato etnográfico e retirarei as repercussões que ele carrega consigo,
ou seja, buscarei expressar as relações e conexões parciais52 para evidenciar a existência de uma
entidade ameríndia em um conflito ontológico com as práticas neoextrativistas. Na segunda
parte, proponho um deslocamento para “dentro da lei”, investigando as consequências e a
construção do fato juridicamente relevante no “Caso de Mariana”, ressaltando alguns aspectos
que fazem a adjudicação ter um papel importante na construção de arranjos e conexões muito
complexas, mas que pouco tratam dos enunciados ameríndios propriamente ditos. Ao invés
disso, o que está em jogo é uma preocupação em apresentar um fenômeno estável e já acabado
pelo acúmulo de informações, de tal modo que não é necessário rediscutir a dita “afetação” ou
o “dano”, uma vez que as energias estão concentradas na execução de um verdadeiro programa
social como resultado adjudicatório. Por fim, na terceira parte, busco investigar um pouco mais
a hipótese a partir de uma tentativa de contrastar os dois regimes – ameríndio e jurídico –,
ressaltando suas interferências e os efeitos que uma entidade ameríndia tem no campo oficial e,
por sua vez, o modo como a arena oficial produz resultados que se chocam pragmaticamente
com as formas de vida locais e se fazem presente no cotidiano das relações ameríndias.
52
Os termos “relações” e “conexões parciais” serão utilizados ao longo do texto no sentido de Strathern (1991,
1995).
151
2 Watú kuém: (des)estabelecendo o contexto para os conceitos outros.
Conviver com os índios Krenak53, como são mais conhecidos os Borum do médio rio
Doce, é uma tarefa bastante interessante e intrigante. Ao longo desses quase dois anos de
relação com uma parte desse grupo, aprendi a me identificar em campo e a pensar
diferentemente com conceitos que são ou eram estranhos a mim. O contexto, evidentemente, é
de grande vulnerabilidade social, pois a bacia do rio Doce e seus territórios foram
completamente devastados física e moralmente com o “evento crítico de Mariana”, como
nomeio o rompimento da barragem de Fundão no ano de 2015. Aqueles milhares de metros
cúbicos de lama (tóxica) que contaminaram rios e ceifaram formas de vidas variadas
confundem-se em nossas cabeças, pois nunca sabemos ao certo como organizar esses eventos
quando estamos “distantes” da situação de fato. Ainda mais se pensarmos que o boom de
destruição ocasionado pelos rompimentos está compondo o cotidiano das vidas a partir de sua
banalização midiática a ponto de embaralharem as representações e não sabermos
adequadamente o que foi o rompimento de Mariana diante da imagem de Brumadinho em 2019.
Muitos autores (WANDERLEY, 2017; WANDERLEY, MANSUR, MILANEZ,
PINTO, 2016) caracterizam o rompimento de barragens como cíclico, apontando características
estruturais para esses eventos e ofertando boas e interessantes análises que nos alertam para
algo que certamente ocorrerá: uma nova barragem se romperá. O que me interessa, entretanto,
é propor um deslocamento de 370 km do “epicentro” fenomênico no estado de Minas Gerais e
adentrar a Terra Indígena Krenak, onde, atualmente, convivem pouco mais de 630 pessoas
subdivididas em pelo menos seis aldeias (FIOROTT, 2017). Nesse espaço, onde as intrigas dos
grupos Jê vão tecendo (e rompendo) relações sociais para garantir uma dissidência dinâmica
(MOREIRA, 2020; PASCOAL, 2010), nada parece acontecer, ao mesmo tempo que tudo está
em movimento. Hoje os caminhões-pipa circulam pelo território levando “água bruta” e “água
potável” para as famílias. Carros perambulam nas estradas de chão partilhando as perigosas
curvas com motocicletas pilotadas com grande emoção pelos jovens. Muitas delas54 são apenas
controladas pelos muitos quebra-molas que surgiram nas estradas de acesso. Na varanda das
casas, de onde observamos esses objetos circularem, as garrafas de polietileno com água são
53
Essa é a denominação que encontramos entre os indígenas e é assim que são reconhecidos pelo órgão indigenista.
Contudo, por razões de coerência etnológica e por questões trazidas por Arantes (2006), optei por usar o
etnônimo indígena Borum neste trabalho, que significa “gente”, “índio” ou “humano” (PASCOAL, 2010, p. 39).
54
Em campo, escutei que muitas dessas motocicletas eram pokemons, termo empregado para referir-se a veículo
cuja documentação pode estar atrasada ou não existir. Esse aumento exponencial de veículos e motocicletas dá-
se especialmente após a instauração de pagamentos mensais tidos como emergenciais às famílias, resultado dos
atos de guerra desse povo indígena, tal como analisado em outro lugar.
152
empilhadas para serem consumidas (e circularem) entre as pessoas. As conversas que ali tomam
lugar são, quase sempre, rompidas por um grito de alguém aos fundos pedindo para levar um
fardo até a cozinha, pois é necessário passar um café ou realizar as tarefas domésticas. Estando
lá, percebo que tudo está arranjado para indicar como o rompimento da barragem é presente no
cotidiano dessas famílias, sendo lembrado nas ausências, nos silêncios e nos objetos que
carregam esses pressupostos.
O evento crítico ocorrido em 2015 é presente no cotidiano dos Borum mesmo após quase
seis anos. Evento crítico que chama à cena não as violentas destruições (físicas) do fato em si,
mas o lento e sofrido choro de Dona Dejanira, que circulou pelas mídias sociais ao ver aquela
água barrenta e pálida apoderar-se do corpo de seu parente: “Watú kuém, bok kuém [...]”,
entoava ela meio engasgada pelo choro e pela tristeza que foi tomando conta de todos. Uma
tristeza que parece perdurar nesses objetos que compõem o cotidiano de muitas famílias e
modificam as suas relações sem deixar de lado os elementos já dispostos e os afazeres
domésticos. Como diria Veena Das (DIFRUSCIA, p.137, 2010), o ordinário não é suspenso
para que o extraordinário possa ocorrer. O luto, claro, logo tomou conta e foi necessário fabricar
novas relações e interações, sendo difícil para alguns, até os dias atuais, falar do assunto,
embora seja utilizado pela militância das lideranças, que esse mesmo evento crítico, como um
propulsor, colocou no cenário nacional55.
Watú, referido por Dona Deja, é uma entidade Borum que remonta às muitas histórias e
mitos que fui encontrando ao longo da pesquisa. É também uma entidade que está ligada a
muitas das “lutas” (PASCOAL, 2017) desse povo indígena na retomada do território e na
própria compreensão de algumas características culturais de singularização dos Krenak.
Geralda Soares (1992), inclusive, nomeará uma importante publicação dessa segunda fase
etnográfica como “os Borun do Watu”. Trata-se de um livro que é preenchido por histórias
desses indígenas descendentes dos paradigmáticos botocudos.
Watú, como me alertaram muitos dos meus interlocutores, é um nome próprio e, como
no português, designa uma entidade dotada de intencionalidade e celebrada pelas relações
dadivosas com Borum. Algumas makiãn chegam a dizer que se trata de uma “mãe”, outros
afirmam ser como um “tio” ou até mesmo um “pai”. Sem sombra de dúvidas, todas as
identificações impõem a necessidade de retribuir o que é ofertado. E uma das formas mais
interessantes de retribuir é celebrar por meio de cantos esse dom que conecta a todos. Um desses
cantos diz o seguinte: “Watu minhãn ererré; Watu bok nhauit; Borum amangut Ererré; he, he,
55
Esse é um reflexo capaz de ser revisto junto com o conceito de evento crítico de Das (1995) e que me parece ser
ignorado por muitos estudiosos envolvidos no contexto de Mariana.
153
he, he, he, he, he, he”56. Seu significado, em uma tentativa bastante superficial de tradução,
revela uma saudação às águas do “rio” pelos muitos peixes que alimentam os índios.
Isso evidencia a necessidade de cortejo das relações e conexões que os Borum tecem
com Watú. Ou, melhor dizendo, as relações que dão vida ao Watú e muitas outras realidades
ameríndias.
Evidentemente, esse caso e outros mitos levam-me a pensar, tal como propõe Viveiros
de Castro, sobre as relações multinaturalistas que, em maior ou menor grau, compõem as
filosofias ameríndias das terras baixas. Nesse plano horizontal, outros-que-humanos são
conceituados a partir de um pano de fundo onde o que vigora é a humanidade (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996, 2002, 2004a, 2004b). O inverso ocorre na tradição ocidental, que concebe as
relações entre natureza e cultura como uma continuidade da primeira sobreposta por uma
descontinuidade da segunda; daí ser possível falar em “multiculturalismo”. Contudo, se o
multinaturalismo (ou perspectivismo ameríndio) pode ser compreendido como um corolário do
animismo (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 122; DESCOLA, 2013), pensar em sua
aplicação a grupos Jê requer cautela57. Por essa razão, regressar aos dados etnográficos é, sem
dúvida, a melhor saída para o analista.
Nesse quesito, minha principal interlocutora não falha ao me colocar em uma condição
privilegiada como etnógrafo. Não porque seja dotada de qualquer excepcionalidade cognitiva,
mas por saber exatamente o que dizer quando questionada sobre suas relações com o parente
Watú. Sua engenhosidade nos usos das palavras tem a capacidade de deixar uma grande plateia
em estado de contemplação. Ela já me confessou algumas vezes que é muito estranho, em sua
percepção, notar que as pessoas parecem não estar compreendendo nada do que tem para dizer,
apenas ficam ali assistindo como que na reprodução de um certo paternalismo complacente
estampado em suas feições. Alguns exemplos podem me ajudar e irão ressaltar exatamente o
caráter inverso da relação Borum-Watú que estou buscando apresentar, pois como bem coloca
minha interlocutora: “para nós, o rio é um ser humano que está sempre lá e está nos ajudando.
Mas agora nosso rio, nosso ‘Watu’, está morto” (KRENAK, 2019). Ou ainda: “Tenho muitas
memórias afetivas relacionadas ao rio, que chamamos de Watu. Significa ‘o rio que corre’, ‘o
rio que fala’. Para muita gente é só água correndo. Para nós é como se ele fosse um ser vivo
[...]” (KRENAK, 2019).
56
Essa é apenas uma versão, escrita, que tomo emprestado neste texto. Escutei esse mesmo canto incontáveis vezes
e em incontáveis situações. Em todas elas, ele parecia um pouco diferente.
57
Apoio-me em Coelho de Souza (2001) para prosseguir com as afirmações, especialmente nos dados sobre os Jê
do Norte que ofertam a ideia de parente como pessoa humana. Algumas controvérsias existem em relação à
possibilidade da leitura do grupo Borum com características dos Jê meridional. Porém, faltam-me dados para
promover qualquer discussão mais densa acerca desse tópico.
154
Essa característica inerente ao Watú chama à cena inúmeras formas de apresentar ou de
explicar a relação ameríndia, muito embora opto por encontrar no idioma do perspectivismo
americanista uma importante entrada para, como veremos, explorar suas repercussões
ontológicas. Watú é visto e concebido por nós apenas como um “rio” ou, na melhor das
hipóteses, um recurso natural, ainda que muitas vezes a sutil ironia das falas de minha
interlocutora me fizesse pensar que, por trás da “capa” ou da “forma” rio, há uma entidade que
continua a ser humana, embora não evidente58 (MOREIRA, 2020).
Inclusive, onde tudo é humano, tudo é muito perigoso. Por isso, são necessárias
saudações por meio de cantos, assim como práticas e rituais à beira do Watú, pois em toda troca
ou relação persiste uma centelha agonística. Essa relação permite-me dar um passo além da
interessante percepção lévi-straussiana que retoma a ideia do pensamento nativo como que
envolvendo nas suas relações de parentesco as entidades dotadas de significado, isto é, “os seres
que o pensamento indígena investe de significação são percebidos como que mantendo um certo
parentesco com o homem” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 53). Porém, o que parece estar
acontecendo é a definição da posição de sujeito com base nas relações construídas, pois os
dados me sugerem que é a partir da capacidade de intencionalidade e de agência que se define
essa posição. Como diria Souza (2001, p. 71): “[a]qui e ali, tudo indica, verifica-se a mesma
tendência à extensão do ‘parentesco’ a todos os ‘humanos’, sugerindo que aquilo que faz a
identidade dos membros do grupo como (mais ou menos) humanos é a mesma coisa que faz de
todos eles (mais ou menos) parentes”. Acontece que nós, pesquisadores de campo, tornamo-
nos muito espertos em pensar com outras pessoas. O que importa compreender, entretanto, é
que parte desse mundo envolvido nas relações ameríndias, tido como meros recursos de jure,
pensam, ou, ao menos, transcendem as fronteiras contextuais do símbolo por meio do que
Eduardo Kohn (2013) tem chamado sylvan thinking.
Se os dados corroboram isso, posso dizer que os Borum pensam exatamente que o Watú
pensa como eles, sendo capaz de agência. Muitas vezes invocada por comportamentos que
certamente são explicados pela causalidade das ciências, essa agência para os indígenas é lida
58
O já canônico exemplo de Viveiros de Castro sobre o jaguar traduz um pouco da ideia, de forma muito mais
bem elaborada: “A linha geral traçada pelo discurso mítico descreve, assim, a laminação instantânea dos fluxos
pré-cosmológicos de indiscernibilidade ao ingressarem no processo cosmológico: doravante, as dimensões
humana e felina dos jaguares (e dos humanos) funcionarão alternadamente como fundo e forma potenciais uma
para a outra. A transparência originária ou complicatio infinita se bifurca ou se explica, a partir de então, na
invisibilidade (as almas humanas e os espíritos animais) e na opacidade (o corpo humano e as “roupas” somáticas
animais) que marcam a constituição de todos os seres mundanos. Essa invisibilidade e opacidade são, entretanto,
relativas e reversíveis, uma vez que o fundo de virtualidade é indestrutível ou inesgotável (os grandes rituais
indígenas de recriação do mundo são justamente os dispositivos de contra efetuação desse fundo indestrutível)”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 38).
155
por via de signos, com preferências claras por ícones e índices que envolvem a dimensão mental
dos significantes que estão em jogo na relação Borum-Watú. Exemplo disso é encontrado no
episódio da grande enchente de 1979, quando o rio Doce arrastou moradas e tudo o que havia
pelos leitos de inundação. Para os Borum, exilados nesse período do século XX (DIAS FILHO,
2015; MOREIRA, 2020, p. 48; SOARES, 1992), era hora de voltar para a terra dita sagrada,
pois aquela cheia significava um alerta: “O Watu avisa: tá na hora de voltar” (SOARES, 1992,
p. 148). Ou, ainda, se retomarmos um belo vídeo que me mostrou uma das filhas de uma
liderança já falecida, nele perceberemos que, ainda nos idos anos 2000, Waldemar Krenak dizia:
“Ocês parem de poluir o rio Doce, que um dia ele vai chorar sangue”. Talvez o choro de Dona
Dejanira fosse exatamente a representação (simétrica) do choro de sangue do Watú em 2015.
As conexões geradas pelo luto, que ainda se atêm aos objetos que carregam esses pressupostos,
mais uma vez são capazes de revelar as relações ameríndias e, portanto, o modo de existência
nativa (worlding).
Certamente esse exemplo não é o único possível. Outras hipóteses que se assentam no
plano das relações humanas e outros-que-humanos poderiam contribuir mais adequadamente
quando retomamos as elipses da escrita etnográfica. O que nos interessa, contudo, é entender
que a morte do Watú é desencadeada pelas interferências extraordinárias que as relações não
indígenas promovem nos tempos do Antropoceno (CRUTZEN, 2002; DANOWSKI;
VIVEIROS DE CASTRO, 2017). A destruição em massa que a força mecânica do evento
crítico de Mariana gerou, agora, pode ser considerada como uma força cósmica que ultrapassa
as relações não indígenas e acarreta o fim (e sua consequente irreversibilidade) de uma relação
ameríndia59. Enquanto concebemos o evento crítico como uma ruptura, um desastre, um crime
ou outras formas que presumem uma causa comum sem apresentar um responsável, os Borum
do médio rio Doce compõem-com, formam relações e criam parentesco. A literatura irá trazer
formas de nomear o parente – mãe, pai ou tio; para nós, não indígenas, trata-se de um “curso
de água” que foi contaminado ou, resumidamente, de um “recurso natural” destruído. O que
está em destaque, evidentemente, é a descontinuidade de natureza no pensamento Borum, que
reverte os polos da filosofia ocidental para dizer que neste mundo muitos outros mundos são
possíveis, bastando observar o que conta como relação – e o que está relacionado nessa relação.
59
É curioso como o discurso da inevitabilidade domina o campo especulativo tanto ameríndio, quanto não
indígena. Contudo, enquanto os indígenas traduzem em dimensões práticas essa especulação filosófica, nós
formulamos dimensões fantasiosas sobre a inevitabilidade ao criarmos narrativas outras que são sujeitas ao fim,
como é o caso dos muitos filmes de science fiction que apresentam a inevitabilidade do fim, como em Avenger
Endgame.
156
A da mineração, agente por excelência do Antropoceno, por outro lado, presume um
one-world world (LAW, 2015) e acarreta reducionismos ontológicos pela suposta capacidade
concedida a si mesma de assimilar outros mundos, destruir rios, mover montanhas e transformar
este e muitos outros mundos em uma pilha de composto (HARAWAY, 2016). A morte do Watú
é mais um exemplo desse devastador extrativismo que, seguindo Marisol de la Cadena e Mario
Blaser, “continua a prática de terra nullius: cria ativamente espaço para a expansão tangível de
um mundo, tornando vazios os lugares que ocupa e tornando ausentes os mundos que fazem
esses lugares” (DE LA CADENA; BLASER, 2018, p. 18, tradução nossa). Seja nas terras altas,
seja nas terras baixas da América do Sul, a extirpação do significado das relações ameríndias –
deixando, perversamente, que os “fatos” sejam rememorados por esses conhecimentos
carregados pelos objetos que circulam após o evento crítico – parece encontrar um grau de
inevitabilidade. A inevitabilidade aqui também constitui uma outra chave de leitura importante
que está conectada ao problema em si: a intrusão neoextrativista e o conflito que ela acarreta.
O neoextrativismo não é algo de todo novo, como o prefixo parece indicar. Sob uma
mesma lógica, o que há de novo são as dimensões de disputa e de conflito que a dinâmica de
acumulação gera. Baseados na pressão sobre os “bens” naturais e na necessidade cega de sua
exploração, arranjos empresariais transnacionais ganharam força no bojo de políticas
neoliberais latino-americanas que dominaram o boom das commodities no século XXI
(SVAMPA, 2019), permitindo que subjetividades fossem forjadas e interesses, construídos
sobre a pilha de resíduos extrativistas do período colonial. O que pouco muda, evidentemente,
são os pressupostos constitutivos dessa intrusão neoextrativista, lembrada, de tempos em
tempos, pelas consequências de uma barragem que se rompe, de uma montanha que deixa de
existir, de milhares de quilômetros de floresta ocupados por um lago de inundação de uma usina
hidrelétrica etc. Enfim, a redução de um grau de diversidade política, econômica e ontológica.
A resistência ao neoextrativismo é também fenômeno que emerge nesse mesmo período e está
presente em variados países latino-americanos, em especial no Brasil, pois o neoextrativismo
enquanto categoria analítica (SVAMPA, 2019) tem repercussões políticas por aqui – políticas
da espoliação, evidentemente, que não reduzem somente “recursos” de uma natureza universal
a commodities, mas, e primordialmente, formas e modos de vida que se entrecruzam nessa
continuidade presumida pela forma ocidental. A intrusão extrativista, one-world world, acarreta
interferências conflituosas nos mundos possíveis, interferências que expropriam as formas
sociais e as relações que colocam em interação humanos e outros-que-humanos para continuar
a fazer a engrenagem do desenvolvimento moderno rodar.
157
Esses conflitos são dotados de muitas camadas. O que estou buscando ressaltar a partir
da morte do Watú não são as perspectivas dos agentes em conflito, mas a disputa sobre que tipo
de fato é conflituoso. O desencontro (e consequente devastação de mundo) reflexo dessa
intrusão extrativista prescreve um fato que é concebido de outra maneira, pois é integrado em
relações complexas do pensamento ameríndio. A relação investida de significação transforma
o rio em parente, colocando os Borum e o Watú juntos num plano de interação. Isso,
evidentemente, excede a constituição dos modernos (LATOUR, 2013) e traz à tona um conflito
que nomeei ontológico (MOREIRA, 2020). Estão em jogo os significados cindidos pela
intrusão extrativista, provocando o espanto televisionado de alguns, o choro entoado pela morte
de outros. O dissenso instaura-se no momento em que aquelas milhares de toneladas de lama
tomavam Watú, tornando perceptível o equívoco referencial presente ao observarmos o
“mesmo fato” sem nos darmos conta de que as perspectivas, antes de determinarem o objeto,
determinam os sujeitos envolvidos nas relações. O dissenso não é simbólico ou epistêmico,
como alguns certamente irão dizer. Se atentarmos bem ao conflito, indígenas e não indígenas
sabem o que é um parente, o que é um rio, o que é território e, especificamente, o que é a morte.
Eles compartilham essas noções, embora tais conceitos estejam suspensos em relações diversas,
cujas repercussões também são diversas.
Por isso, atendo-me ao conflito em si, está em jogo uma disputa sobre as convenções
que distribuem capacidades para definir o que é e como é o “fato” relevante (DE LA CADENA,
2014). Enquanto o relativismo multicultural inscrito na pressuposição one-world-world
neoextrativista supõe uma diversidade de representações acidentais sob uma terra nullis (uma
natureza externa e universal), os muitos povos indígenas “propõem o oposto: uma unidade
representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma
radical diversidade objetiva. Uma só ‘cultura’, múltiplas ‘naturezas’ – o perspectivismo é um
multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação” (VIVEIROS DE CASTRO,
1996, p. 128, grifo do autor). Donde falar que Watú compõe um certo pensamento simbólico
Borum é uma conclusão desconfortável para mim. Torna-se difícil atar as relações que parecem
exceder ao elemento contextual humano, faltando espaço (seja físico, seja semiótico) para as
percepções nativas que colocam em relação humanos e outros-que-humanos, mas não apenas.
Entidades são criadas, como Watú, regimes dadivosos são entrelaçados nas múltiplas conexões
constituídas (e constitutivas) de uma in-dubiedade acerca da variabilidade corpórea e, portanto,
de perspectivas. Mundos são inventados, no sentido wagneriano do termo, onde modos de
existência são manifestados e interações são construídas entre múltiplas camadas do que
158
poderíamos chamar, tomando emprestado o termo de Marisol de la Cadena e Mario Blaser
(2018), pluriverso60.
A morte do Watú, trágica em si, é fatídico exemplo das interferências do reducionismo
ontológico. É uma história – como a dos Mapuche, dos AwajunWampi, dos Runa e de muitos
outros – demasiadamente local, mas irrompe nos limites paroquiais que envolvem o fato (Watú
kuém) em uma narrativa grande o suficiente para marcar os contrastes e evidenciar um conflito.
O rio, que é humano, mas não apenas, sobrepõe-se aos conceitos modernos, mesmo que
distantemente alocados em teias de relações variadas. Embora apontem para a mesma coisa, os
pressupostos são muito diferentes. A equivocação, então, abre um espaço para reflexões
políticas sobre essa atuação que ressalta um epifenômeno: os desacordos não são somente entre
diferentes pontos de vista, mas entre os pressupostos desses pontos de vista que correspondem
a mundos que não são apenas o mesmo, tal como lembram Marisol de la Cadena e Mario Blaser
(2018). Acrescentaria, ainda, que o fato conflituoso não é apenas o mesmo. Sobreposto por
relações, Watú escapa por todos os lados e desafia politicamente as formas neoextrativistas. Seu
modo de apresentação, por meio das relações que com ele se compõem, torna o objeto
identificado por ele o mesmo, mas não apenas. Porém, se o meu leitor não consegue “ver” as
muitas variáveis em questão, deixe-me tentar (des)contextualizar mais um pouco.
Em uma conversa, um dos meus interlocutores contou-me que estava ele e mais um
advogado de uma dessas grandes empresas envolvidas no neoextrativismo que cerca os Borum
do médio rio Doce discutindo exatamente sobre o “fato” relevante. A questão, claro, envolvia,
novamente, as afetações em relação ao Watú no caso da Usina Hidrelétrica de Aimorés
(PASCOAL, 2010) que os afetou nos idos anos 2003-2005. Embora diferente, esse caso é
suficientemente interessante para colocar os termos em questão. Quando falava das relações
dos Borum com o Watú para o advogado da empresa, segundo meu interlocutor, a
incompreensão ficou instaurada, pois o advogado não conseguia ver aquilo que meu
interlocutor dizia (especialmente ressaltando aspectos do que ele chamava espiritualidade
Borum). Um trecho desse mesmo caso foi narrado por outro pesquisador, de tal maneira que
faço a transcrição: “Como o próprio cara da CEMIG um dia falou, o advogado: eu não consigo
entender isso, eu não tenho como compensar uma coisa que eu não vejo, que eu não pego, eu
preciso ter essas coisas pra quantificar” (KRENAK apud FIOROTT, 2017, p. 92-93).
É interessante notar que relatar esse fato a mim e a outros pesquisadores revela uma
consciência da incompreensão generalizada por parte de muitos agentes envolvidos nos
60
Segundo De La Cadena e Blaser (2018, p. 4): “heterogeneous worldings coming together as a political ecology
of practices, negotiating their difficult being together in heterogeneity”.
159
variados casos que os afetam e que são reflexos da intrusão neoextrativista. Em relação ao
evento crítico de Mariana, os agentes do direito, em especial, espalharam-se rapidamente pela
bacia do rio Doce para quantificar, como queria o advogado da Cemig, os muitos povos e
“fatos” que configurariam uma afetação, concorrendo para a perpetuação de seus próprios
pressupostos, já que eles certamente não “veem” o que meus interlocutores Borum contam. A
lógica geral para a construção do que é relevante pautou-se por uma negociação complexa (e
assimétrica) que merece maior atenção, uma vez que as interferências são possíveis, mas os
reducionismos de ordem ontológica parecem estar predispostos. Uma redescrição (ou seria
melhor dizer “uma invenção”?) dos “fatos” pelas formas jurídicas eleva o conflito que
examinamos neste tópico à arena oficial. O que nos interessa, mais do que descrevê-lo, é refletir
sobre os contrastes propostos para averiguar minha suposição levantada na introdução.
Se é permissível configurar o conflito revelado acima no estilo “fora da lei”, creio que
as situações e os encontros são mais complexos quando o que é relevante, antes de ser
“equacionado” nos termos da lei, é predisposto por parte dos agentes que movimentam (e em
alguma medida configuram) a máquina jurídica. Longe de buscar coerências ou qualquer outra
dimensão que presuma continuidade ou síntese, o objetivo aqui é observar o fenômeno (agora
jurídico) e as mutações causadas por aquilo que os agentes do direito preferem chamar litígio61.
A antropologia do direito tem um longo histórico de estudo sobre litígio, especialmente
aquele que se insere no que podemos chamar de adjudicação. Esse termo, embora polissêmico
na tradição brasileira, é empregado por nossa disciplina no sentido anglo-saxão (adjudication),
isto é: o processo de julgamento jurídico-legal (OLIVEIRA, 1990) que goza de uma certa
oficialidade. Por outro lado, a definição de cunho processualista oferta a dimensão do litígio na
adjudicação como aquela controvérsia processual instaurada quando da contestação da
demanda inicial. Porém, essa acepção não me interessa, uma vez que o importante
evidentemente não é a satisfação de uma forma processual, mas a controvérsia sobre os fatos
juridicamente relevantes aos quais os agentes do direito dedicarão maior ou menor atenção a
depender de algumas variáveis.
61
Luís Roberto Cardoso de Oliveira (1989, 1990, 1991, 2018), dialogando com a hermenêutica filosófica,
corriqueiramente observa que o Judiciário enfrenta sérios problemas de inteligibilidade. Creio que muitos dos
argumentos encontrados em seus trabalhos podem ser considerados como uma melhor descrição da situação que
estou delineando neste tópico. Contudo, etnograficamente, há algumas variáveis que meu campo parece
evidenciar e que tornam o equacionamento do problema das relações ameríndias na adjudicação um pouco mais
complexo.
160
A empreitada antropológica sobre aspectos da adjudicação (aqui ou acolá) é bastante
longa, embora influenciada, ainda hoje, por resquícios do debate entre Gluckman e Bohannan.
Os estudos que colocam a comparação como foco nos processos adjudicatórios merecem ser
reavivados sob a lógica central do conflito que deixamos de compreender para logo pensar em
resolver. O interesse na adjudicação das relações ameríndias, assim, não presume uma
contraposição de um “direito tribal” a um “direito moderno”, nem muito menos traz termos
êmicos como formas mais ou menos analíticas de um sistema folk. O que gostaria de propor,
sem dúvida, é uma comparação entre o “fato” relevante e a maneira pela qual as assimetrias
interagem nas conexões parciais reveladas nos procedimentos oficiais adjudicatórios. Isso
permitirá contrastar o conflito evidenciado anteriormente com o litígio judicial e encontrar o
que está em questão quando esses dois regimes de enunciação são colocados em oposição. No
estilo de Llewellyn e Hoebel (1983, p. 28), “the case trouble” tem um papel importante aqui
para tensionar o próprio direito oficial, já que esse método se apresenta como “a main road into
inquiry”. Porém, sem nos dedicarmos a uma busca da “right way” e deixando de lado os muitos
respingos do realismo jurídico que pouco contribuem para nossas situações, é possível
evidenciar um pouco mais a importância do conflito ou de um método contrastivo que busque
equacionar as variadas formas constitutivas do litígio. Se essa metáfora matemática ainda se
sustenta, o objetivo é evidenciar que o litígio tem força constitutiva, portanto, dimensões
normativas. Entretanto, isso implica efeitos cognitivos, porque será o meio pelo qual os agentes
do direito assumirão a difícil tarefa de conhecer a diversidade litigiosa, que se faz com o
manuseio de uma boa pilha de documentos e de algumas tensas conversas nos corredores de
seus gabinetes.
No que me concerne, retomo o litígio proposto na adjudicação no que veio ser grafado
em caixa-alta nas peças judiciais como “CASO DE MARIANA”. Esse case trouble aqui ganha
tonalidades muito interessantes, pois toda a complexidade das repercussões ameríndias é
analisada no campo oficial a partir de dois grandes eixos concatenados pelas ações civis
161
públicas (ACP)62 e pelos termos de ajuste de conduta (TAC)63, que tomaram curso para
“resolver” o problema e propor reparações variadas aos mais de 3 milhões de pessoas afetadas
pelo evento crítico de Mariana em 2015 (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E
SANEAMENTO BÁSICO, [201-]). Em outro lugar (MOREIRA, 2020), esmiucei essa relação
com base nas narrativas judiciais encontradas nas petições iniciais de forma mais sistemática,
de tal modo que passarei a apresentar os resultados da construção do que é relevante na
estabilização do “fato” no regime jurídico acionado. O direito no sistema adjudicatório adotou
o termo indiferenciado “atingidos”, resumindo o complexo momento pós-evento crítico como
“danos” a serem tratados em dois eixos: socioambiental e socioeconômico. Sem qualquer
definição apropriada do que seriam esses danos (relegados ao mapeamento por experts), o
pedido por um veredicto aqui é traduzido na necessidade de um programa social, tornando a
linguagem se/estão colapsada no fundamento como/portanto (VON BENDA-BECKMANN,
2002; GEERTZ, 1983).
Com esse programa social previsto nos autos das ações civis públicas e
instrumentalizado pelos acordos de ajustamento de conduta, as formas jurídicas espalharam-se
rapidamente e foram construindo uma estrutura complexa para fazer valer a ideia inicialmente
ofertada: a ordem de reparar. A “nuvem” representada na Figura 1 contém algumas das ações
judiciais e dos acordos firmados (e em execução) no “Caso de Mariana” e é bastante ilustrativa.
62
A ACP é um instrumento de direito processual coletivo, cujo objetivo é a litigância de interesse público dos
direitos transindividuais. Isso significa dizer que, na tutela coletiva promovida pela jurisdição estatal, postula-se
um direito coletivo lato sensu ou afirma-se a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de
obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de
pessoas. A ACP é um desses instrumentos processuais da jurisdição coletiva e está prevista no artigo 129, III, da
Constituição Federal e foi disciplinada pela Lei n.º 7.347, de 1985. O seu cabimento está previsto no artigo 1.º:
“Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos
morais e patrimoniais causados: I - ao meio-ambiente; II - ao consumidor; III - a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico; IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; V - por infração da
ordem econômica; VI - à ordem urbanística; VII - à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos;
VIII - ao patrimônio público e social”.
63
Os termos de ajuste (ou ajustamento) de conduta são instrumentos negociais firmados entre as partes processuais
nos quais a(s) pessoa(s) reconhece(m) implicitamente a conduta lesiva do interesse difuso ou coletivo, assumindo
o compromisso de eliminar a ofensa, retardando os atos praticados, ou de reparar e promover a adequação às
exigências legais. A fundamentação legal dos ajustamentos de condutas firmados, normalmente, entre os órgãos
tutelares (Ministério Público, Defensoria etc.) advém do artigo 5.º, § 6.º, da Lei n.º 7.347, de 1985, do artigo 211
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do artigo 79-A da Lei n.º 9.605, de 1998. Além disso, o
ajustamento de conduta encontra respaldo na Resolução n.º 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público.
162
Figura 1 – Ações judiciais e acordos firmados (e em execução) no “Caso de Mariana”.
Os indígenas do médio rio Doce, como objetos fluidos, eram caracterizados pelos
agentes do direito como sujeitos ora a danos socioeconômicos, ora a danos socioambientais
(MOREIRA, 2020). Em outras palavras, nesse contexto legal, dois grandes instrumentos
jurídicos emergiram no campo adjudicatório e foram manuseados pelos agentes oficiais da
União e pelos agentes do Ministério Público Federal (MPF), de tal modo que a ACP da União
nem sequer mencionava os Borum, muito embora acionasse o token indígena para caracterizar
uma suposta afetação socioambiental. Por outro lado, a ACP do MPF substancializaria sua
arguição em parecer antropológico para afirmar que a afetação era socioeconômica, mas não
apenas. Eis aí o ponto interessante. A caracterização do tipo de dano não é feita sem o manuseio
de uma importante ferramenta do direito oficial: a hesitação64. Ela se fez presente nos
desacordos internos e nos conflitos revelados pelos próprios agentes do direito, que
discordavam sobre como e o que deveria ser feito em relação à reparação dos “atingidos”. De
um lado, afirmavam que “mais importante do que saber o que de fato morreu pela onda de lama
é averiguar o que ainda resta nas áreas afetadas e que, efetivamente, poderá contribuir para a
sua recuperação” (JUSTIÇA FEDERAL, 2015, p. 20). De outro lado, os agentes do MPF
hesitavam em dizer o direito, mas buscavam, ao contrário, dedicar parcela do texto à descrição
das “violações” em relação ao povo Borum. Essa atenção é pautada por um cânone bastante
interessante e conhecido dos antropólogos do direito, uma vez que, diante da complexidade das
64
Tomo emprestado o termo de Latour (2019a), embora adaptado aos contornos deste trabalho.
163
relações ameríndias descritas acima, o que percebemos é uma influência (mesmo que velada)
de léxicos cristãos na configuração da afetação forjada na necessidade de se blindar a lógica do
contraditório (LIMA, 2010).
Baseando-se em laudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e de antropólogos do
MPF e nos “Estudos de componente indígena” da Vale S/A, o Ministério Público apresentava
os impactos destacando palavras que nos chamam a atenção: “recurso ambiental”,
“subsistência” e “espiritual”. Amarradas sob a lógica sacralizante do olhar não indígena, essas
palavras ofertavam explicações no estilo: “Como se vê, os Krenak têm intensa relação, não
somente física, mas também acentuadamente espiritual, com o Rio Doce [...]” (MPF, 2016, p.
74). Aos leitores de Clastres (2014), o emprego de algumas dessas palavras diz muito,
assinalando a forma como os agentes do direito fabricam os fatos ocorridos e marcam distinções
de caráter cosmológico. De qualquer forma, as caracterizações do evento crítico de Mariana
pela figura do MPF são bastante interessantes, pois o corpo da petição contém descrições
importantes, embora pareçam apenas palavras esvaziadas dos múltiplos significados, como nos
exemplos abaixo:
A estreita relação dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais com
os recursos naturais de seus territórios os torna particularmente vulneráveis a
desastres ambientais (MPF, 2016, p. 70, grifo nosso).
Outro impacto importante se refere à morte do próprio rio para os indígenas. O Rio
Doce (chamado Watu pelos Krenak) é considerado sagrado para os mesmos, fazendo
parte de sua cosmologia e ritos. Com a inutilização do Rio Doce, seus costumes e
tradições, direitos garantidos na Constituição também foram seriamente afetados,
trazendo inclusive problemas de ordem psicológica para membros da comunidade
indígena, principalmente anciãos (Ofício n.º 319/GAB/CR/MG-ES/2015 da Funai
apud MPF, 2016, p. 77).
O inusitado de tudo isso é que, após mencionados, os fatos passam por um processo de
questionamento para logo se tornarem indiscutíveis. A hesitação em enunciar o “dano” e o
enquadramento descrito tomou lugar para levar os fatos jurídicos a um ponto no qual não mais
se discute o que é a afetação, nem quem são os sujeitos e suas variadas relações afetadas
(humanos ou outros-que-humanos), mas a quantidade a ser ressarcida. Evidentemente, o que
está em jogo é muito bem descrito por Bruno Latour (2019b, 2019c) ao informar que a
perturbação na enunciação compõe o cenário dos litígios jurídicos como fator operante. Na
verdade, essa hesitação decorre imediatamente de um diagnóstico feito por Geertz há muito
tempo: o temor dos fatos, que implica uma estipulação virtual do “que realmente aconteceu”,
até porque “uma justiça sem complicações nunca pareceu tão atraente” (GEERTZ, 1983, p.
164
257). Exemplo disso é encontrar discussões tornadas públicas (isso, sim, pode ser visto como
novo) entre os agentes do direito que “guerreavam” por se tornarem protagonistas em relação
à enunciação da virtualidade do realmente acorrido e da afetação relevante. A diferença,
entretanto, é que o direito não opera apenas a partir de representações ou de representações das
representações, mas prescreve formas de existência que informam quais conexões são
possíveis, pois elas já estão constituídas65. Porém, antes de desenvolver esse argumento,
deixem-me exemplificar mais os aspectos da hesitação como fator operante.
Confirmando as notícias veiculadas pela mídia de que a decisão liminar impulsionou
forte movimentação das partes no sentido de buscar um acordo para por fim ao litígio,
tendo contado inclusive com suspensão do processo para tanto, os membros da Força-
Tarefa do MPF, instituída para a condução do caso, foram procurados pelas
advocacias públicas dos entes federativos a fim de serem comunicados sobre as
tratativas entabuladas pelas partes e sondados sobre eventual interesse de
participação nas negociações.
Considerando que mesmo após as duas reuniões, realizadas em 13/01/2016 e em
15/01/2016 (Doc. 01), os representantes do Poder Público não tinham esclarecido
minimamente os contornos e os detalhes das negociações e do eventual acordo, foi
encaminhado ofício solicitando informações adicionais, não havendo resposta
satisfatória aos questionamentos formulados (Doc. 02).
De forma alheia a qualquer participação do Ministério Público e da sociedade afetada,
os representantes do Poder Público decidiram organizar as tratativas com as empresas
[...].
Nas datas de 15, 16, 17 e 22 de fevereiro houve novas reuniões em Brasília para as
quais o MPF foi convidado como sempre, de véspera. Havia ainda muitas dúvidas
não sanadas, na maioria, referidas à incompletude ou inexistência de elementos
técnicos que dessem suporte à definição de valores e medidas que se iam
estabelecendo nas negociações. Em 25/02/2016 foi encaminhado ofício ao Advogado
Geral da União (AGU), com requerimento de subscrição pelo PGR, solicitando prazo
para manifestação sobre o acordo entre as partes e o envio de toda a documentação
técnica que o subsidiara.
Em resposta, a Advocacia Geral da União encaminhou versão desatualizada do acordo
ainda em negociação e não enviou a documentação técnica solicitada (MPF, 2016, p.
13-14, grifo nosso).
Embora longo, esse trecho é curioso, pois revela uma relação um tanto quanto pueril
entre os agentes do direito envolvidos, mas, também, evidencia a hesitação e conturbações
internas a eles. É necessário que eles participem, mas para duvidar e questionar de tal forma a
associarem, precariamente, uma legitimidade à enunciação do programa social criado nos seus
próprios termos. Dúvidas, claro, podem existir quanto aos valores e medidas técnicas, pois o
fato juridicamente relevante já se encontra estabilizado. Essa é uma das particularidades do
regime jurídico de veridicção: um conjunto mais ou menos fechado e indiscutível pela
65
Luís Roberto Cardoso de Oliveira (1991, 2018) sempre ressalta que o mundo é simbolicamente pré-estruturado.
Embora eu concorde com essa afirmação, a maneira como os símbolos (e signos) são manuseados é o que me
interessa aqui, pois ela diz muito quando mudamos a lente para as instituições oficiais. Por vezes, esquecemos
que o direito não está em condição ‘dicionária’; por isso, gastamos tempo identificando a “intenção” da lei ou
sua eficácia, quando nos perguntamos, parece-me interessante, sobre as práticas dos agentes e o que eles fazem
com a lei.
165
acumulação de muitas informações (laudos de experts, pareceres jurídicos, laudo antropológico
etc.) às quais não é necessário mais retornar. É a fabricação no estilo latouriano (2019a), mas
com especificidades. Que o direito “produz sua própria sombra” (GEERTZ, 1983, p. 231) não
é algo muito novo, mas os contornos dessa forma não são meras representações, pois não posso
me permitir o erro de dizer que esses produtos do pensamento dos agentes do direito são como
“práticas” internalizadas. Como bem nos ensina Geertz, o direito, aqui ou acolá, é uma maneira
especial de imaginar o real. A questão, entretanto, é que essa forma especial de imaginar cria
os elementos constitutivos do real, grafando-o sob a rubrica de suas próprias convenções.
É que o regime de veridicção relativamente importante para os agentes do direito é,
como eles mesmos nos ensinam, o que consta dos autos. Contudo, mais do que mero “jargão”
que produz certos risos sarcásticos entre os agentes do direito, esse termo comum revela um
mundo de projeção possível desses agentes no qual o horizonte do que existe é concebido e
concretizado. É a forma de conter as convulsões de alfa pelo uso do repertório metafísico desses
agentes66. As consequências são imediatas e estão empregadas nos objetos que circulam, na
simplificação de uma entidade ameríndia em uma forma de garrafa de polietileno. O esforço na
contenção dos fatos é seu regime próprio de enunciação, que passa a conflitar, doravante, no
campo de existência das formas de vida diretamente afetadas pelo evento crítico. O dano
relevante para o fato fabricado é postulado por meio de uma materialidade correspondente,
capaz de tornar os elementos indígenas “palpáveis” nos nossos próprios termos; por isso, os
recursos utilizados correspondem aos espectros conceituais dos agentes do direito, em vez da
linguagem ameríndia. Há uma certa dimensão ideológica67 associada às formas jurídicas, que
ressalta uma importante característica no caso concreto: a necessidade de se quantificar. Esse
processo litigioso poderia ser concebido como uma tentativa de tradução dos conceitos tribais
em formas ocidentais como a antropologia do direito já conheceu, a qual parece ser relevante
para observar uma certa forma de agir no “Caso de Mariana”. Em nenhum momento, o processo
adjudicatório concebe Watú dentro de seu estatuto cosmológico, pois ele é pensado pelos
agentes do direito a partir de outros pressupostos. Ao invés de um nome próprio, é antes um
nome comum rapidamente equiparado à condição de jure rio. As qualidades de sua existência
e sua caracterização passam, antes, por uma especialização nos termos da cultura jurídica e não
por uma tradução nos termos do contraste. Uma verdadeira traição, pois se trata de “patrimônio
natural” e de “recursos hídricos” da matriz de danos traçada pelas ações que se preocupam em
66
Isso não significa – ressalta-se – que eles não possam compor muitas outras relações e, assim, partilhar de
convenções outras.
67
Ideologia no sentido de weltanschauung, que aparece mais bem formulada em Louis Dumont.
166
dizer que, no caso de Minas Gerais, os relatórios (e eles parecem sempre ser necessários)
informam que “os prejuízos públicos e privados contabilizados pelos municípios mineiros
somam o montante de R$ 428.271.782,00” (MPF, 2016, p. 66). Ao final dessa argumentação
encontrada nos autos, um quadro é apresentado em uma determinada petição forjada a partir do
relatório da Funai. Nele os termos empregados tratam de caracterizar os “impactos diretos e
indiretos sobre a comunidade Krenak” (MPF, 2016, p. 78): “fragmentação e destruição de
habitats”, “assoreamento do leito dos rios”, “mortandade de espécimes em toda a cadeia
trófica”, “comprometimento do estoque pesqueiro”, apenas para citar alguns.
Evidentemente, a adjudicação no campo da tutela coletiva68, escolhida para resolver o
problema que os juristas identificam em seus próprios termos, é um instrumento jurídico
interessante, embora implique colocar tudo dentro dos limites que esse ritual adjudicatório
permite69. Como é perceptível, se contrastarmos as formas de vida ameríndia com as formas de
vida juridicamente descritas por meio da caracterização de danos, as coisas escapam por todos
os lados. O conflito ontológico é reescrito (inventado) no campo litigioso das ações civis
públicas e dos acordos para tratar de algo que é apenas rio do ponto de vista jurídico. Embora
possam ser conectados a outras dimensões, trata-se muitas vezes de instrumentos alegóricos,
pois o que de fato importa é estabilizar o argumento sobre o fato juridicamente relevante para
levantar uma matriz de danos, socioeconômicos ou socioambientais. Os agentes do direito (e
seus experts) certamente não compreenderão70 que não é “natural nem sobrenatural, a sintonia
dos índios com a natureza é social, isto é, mediada por formas específicas de organização
sociopolítica; a natureza é natureza para uma sociedade determinada, fora da qual se reduz a
uma abstração vazia” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 9).
Evidentemente, a adjudicação no “Caso de Mariana” assume que está lidando com uma
singularidade do real e logo sofreu inúmeras acusações de ausência de qualquer participação
dos atingidos, o que, devo dizer, tem certas repercussões importantes no andamento processual,
mas seu meio jurídico parece ainda permanecer sobre os trilhos previamente assentados.
Inclusive, o que interessa, após a fabricação dos fatos jurídicos nos autos processuais, é
instrumentalizar uma maneira de se negociar como tudo será reparado.
Embora isso fuja um pouco do meu escopo, algumas notas de campo que tratam de um
evento singular ocorrido em Governador Valadares no ano de 2019 e que visava a realizar um
balanço dos cinco anos do evento crítico de Mariana são interessantes. Nesse evento, por várias
68
Ver nota 14.
69
Muitos dirão que se trata de uma filtragem no estilo que implica uma “redução” da contingência. O ponto do
meu argumento é justamente o contrário: não é uma filtragem, é uma fabricação do fato.
70
Empregado no sentido de verstehen.
167
vezes, os agentes do direito que se encontravam presentes não sabiam exatamente onde uma
coisa era tratada e se confundiam sobre qual ação ou acordo estabelecia determinado assunto
que a fala ao público estava abordando. Certamente complexa é a situação jurídica, mas o que
isso revela é o precário interesse sobre os debates locais ou as sensibilidades que ali eram
expostas por um bom número de pessoas atingidas que também estavam presentes no evento.
Talvez, tomando como dado os fatos juridicamente relevantes e construídos, como no caso dos
Borum, o que lhes interessa, em maior medida, é viabilizar a execução do programa social
juridicamente desenhado, cujas premissas já estão estabilizadas e não serão rediscutidas.
Isso não significa que julgo os agentes do direito com desconfiança ou desprezo em
relação ao trabalho que desempenham. Ao contrário, ao compreender os muito bem-
intencionados atores do processo, percebo que a angústia que lhes suscita o “Caso de Mariana”
é grande no sentido de não conseguirem realizar muitas das suas propostas e verem seus
esforços, por vezes, tolhidos pela concentração da tomada de decisão no juiz competente para
o caso71. Creio que eles, como muitos de nós, estão sujeitos a uma metafísica idiossincrática de
um campo agonístico de poder, e corriqueiramente nos vemos adotando estilos comparativos
com o intuito de trazer esses conceitos de experiências muito distantes para termos mais
próximos. Acontece que isso se faz de forma muito peculiar no campo do direito, pois, ao invés
de promover uma tentativa, mesmo que singela, de compreensão das alteridades, as regras do
direito são aqui mobilizadas em um procedimento adjudicatório e acompanhadas de formas
negociais que expressam mais que um exercício coercitivo do poder central: elas caracterizam
um sistema de pensamento pelo qual algumas relações são tomadas como naturais e defendidas
de forma muito energética. Evidentemente, esses contornos da sombra jurídica que o “Caso de
Mariana” sugere em relação aos Borum são sintomáticos de algumas características do próprio
direito e do modo como ele lida com a diversidade (em sentido radical). Os resultados são, na
mesma medida, repostas que compõem um olhar (cívico, pois estamos diante de uma verdadeiro
programa social) que opera um aumento de entropia aplicada à destruição (política, social e
ontológica) da diversidade de formas de vida, levantando considerações no campo do rumor
que afirmam que, hoje, na bacia do rio Doce, os principais dissensos reparatórios 72 estão
diretamente ligados a territórios tradicionais, entre os quais a Terra Indígena Krenak.
71
O juiz competente é o magistrado Mário de Paula Franco Júnior, que, curiosamente, equiparou-se ao ex-juiz
Sérgio Moro em uma palestra na Escola Superior Dom Helder Câmara, em Belo Horizonte, o pode ser conferido
no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=QYYYybj-p9E.
72
Em relação a essa exemplificação, tenho em mente os problemas que foram levantados pelo juiz em um dos
processos de contratação de assessoria técnica independente (uma figura criada pelos TAC) pelo povo Krenak.
Essa assessoria técnica, tida sempre como problemática e desproporcional, foi e é alvo de deslegitimação por
outros atores na bacia do rio Doce, sendo até mesmo objeto de investigação requerida pelo juiz do caso.
168
Porém, como havia sugerido desde o início, as formas jurídicas são muito bem
estruturadas, o que não significa que sejam densamente sólidas, pois o contrário seria pensar
sistemas autopoiéticos que não me parecem adequados para percebermos as interações e
conexões que as variadas ações locais acabam por provocar nas dimensões oficiais. O próprio
caso adjudicatório em questão, embora crie um regime próprio, o faz à luz de termos outros
para referirem (e legitimarem) as formas de imaginar o real que prescrevem a partir do manuseio
desses termos. Isso sugere que, ao encontrar respaldo nos muitos laudos, pareceres,
documentos, relatórios etc., os agentes do direito mobilizam suas formas conceituais
(prescritivas e cognitivas) e suas atuações indicam resultados diferentes do esperado, mas, tão
logo são percebidas como “anomalias” no curso processual, são corrigidas ou delegadas a uma
discussão ainda por ser feita. Seja porque a via adjudicatória não é adequada, seja porque as
categorias jurídicas são acionadas para performarem uma justificativa que aponte a
“incompetência”, a “parcialidade” ou a “inadequação do pedido diante da fundamentação”.
Essa arguição é particularmente compreensível no “Caso de Mariana” quando se observa que,
da ACP do MPF, foi deduzido um pedido que no sistema de tutela coletiva soaria estranho, já
que os direitos difusos ou coletivos em curso não necessariamente abarcariam o pedido de
demarcação das terras remanescentes reivindicadas pelos Borum.
Esse ponto é bastante sugestivo. Em uma oportunidade, conversei com um de meus
interlocutores que me informou sobre tratativas que ele e seu pai tiveram com alguns agentes
do direito, notadamente alguns procuradores que, por vezes, envolveram-se no “Caso de
Mariana”. Como se trata de algo que me interessa e tenho designado como “agenciamento
Borum sobre as formas oficiais de resolução de conflito”, indaguei sobre como pedidos dessa
natureza (incomuns) poderiam ser deduzidos pelos agentes do direito e como meu interlocutor
via essa atitude. Sua resposta foi no sentido de traduzir essa atitude como consequência das
conversas que seu pai e outros indígenas tinham corriqueiramente e desembocavam numa
prática dos indígenas que buscavam incorporar, no que fosse possível e interessante, a dimensão
oficial aos vários significados que o termo “luta” tem para esse povo (PASCOAL, 2017).
Nessa oportunidade, meu interlocutor citou outro fato que já havia despertado minha
curiosidade: o pedido de anistia coletiva do povo Krenak protocolado pelo MPF73. Como se
sabe, a Comissão da Anistia que foi instaurada pela Medida Provisória n.º 2.151/2001 não prevê
reparações coletivas, aplicando-se a casos individualmente considerados. Porém, é difícil a
situação quando constatamos que a Comissão Nacional da Verdade (CNV), cuja finalidade é
73
Referido pedido encontra-se para conhecimento no seguinte link: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-
imprensa/noticias-mg/mpf-mg-requer-anistia-politica-para-o-povo-indigena-krenak.
169
apurar graves violações de direitos humanos, no que diz respeito aos indígenas, nem sequer foi
capaz de nomear esses involuntários da pátria (VIVEIROS DE CASTRO, 2017), quantificando-
os por meio de uma categoria do Estado: estatisticamente, eles são 8.350 (CNV, 2014). Diante
desse motivo, o MPF, provocado pelos indígenas, peticionou ao antigo Ministério da Defesa
requerendo, contra legem, a anistia política e a reparação coletiva. Evidentemente, o pedido foi
negado, mas a ação quase militante sugere algo mais interessante nas relações e conexões
parciais do que a etnografia tem potencial de revelar, pois esse pedido incomum deve ser
considerado como o resultado de um dos sentidos marcados de luta, aquele que “está
relacionado ao envolvimento pessoal ou coletivo em uma categoria (o movimento indígena), e
nas suas ações e rotinas. Com efeito, luta assume aqui um caráter jurídico e político [...]
concebidos [sic] pelas diversas organizações indígenas e indigenistas das quais os Krenak
participam desde seu surgimento” (PASCOAL, 2017, p. 95).
Desse modo, as interlocuções e muitas outras ações que tenho registrado mostram uma
conexão constante dos indígenas com uma certa dimensão oficial, já que isso compõe o fazer
político desse povo ameríndio. Embora pouco certos acerca das diferenças no que diz respeito
à nomeação e à competência dos órgãos, os indígenas procuram esses órgãos e tentam “intimá-
los” constantemente por meio de mensagens de WhatsApp, de pareceres requeridos a mim e a
outros parceiros74 ou de provocações mais diretas, como a participação em reuniões com
representantes e outras autoridades. Há uma insistência em fazer valer seus termos nativos
nesses espaços, provocando, mesmo que por intermédio de pareceres e documentos, uma
aproximação de certas temáticas e conceitos que outrora certamente não seria possível.
Contudo, em quase todos os casos, a frustração é um dos resultados que se desdobram em
muitas outras questões que passam a existir no campo das interações e, por consequência, das
formas jurídicas, como discutirei no próximo tópico. Nem a demarcação do território
remanescente nem a anistia foram concedidas nos dois exemplos até aqui mencionados, o que
não me leva a ignorar como dado relevante no âmbito oficial a presença desse tensionamento
como mera causalidade ou retórica dos agentes do direito no manuseio da engrenagem jurídica.
Por outro lado, sugerem que o vetor inicial sai não de um ponto fixo no plano jurídico, mas de
ações que compõem os significados de luta ameríndia e despertam, talvez, sensibilidades
complacentes em relação aos agentes do direito e uma tentativa de alargamento nos argumentos
possíveis.
74
A discussão sobre esse aspecto da relação de campo com o analista foi mais bem explorada em Moreira, Vidal
e Nicácio (2021).
170
Portanto, a questão não está em função de uma ética específica. Decerto, envolve uma
dimensão moral e, especialmente, uma discussão ontológica, pois a adjudicação – e não a sua
prática, pois ela me parece reflexo de uma condição de pensamento – assume que está lidando
com uma realidade singular, embora permeada por diferentes manifestações de deuses,
espíritos, mortos, habitantes cósmicos outros, plantas, artefatos, totens, objetos, fenômenos
meteorológicos, acidentes geográficos ou figuras variadas. Tudo isso são meros elementos
alegóricos de uma natureza constante, que, no “Caso de Mariana”, é concebida a partir do plano
de existência socioeconômico ou socioambiental. Inegáveis, contudo, são as interferências
ameríndias nessas arenas oficiais que, corriqueiramente, fazem-me examinar diferentemente os
procedimentos e fundamentos que começaram a surgir no campo do direito especificamente a
partir de 200175. Hoje essas interferências parecem ganhar maiores tonalidades a ponto de serem
analisadas de forma mais densa a partir das fissuras que têm provocado, tal como a presença
incomum de pedidos de demarcação de terra em um procedimento de tutela coletiva, ações
penais que visam a responsabilização de anistiados da ditadura militar, entre outras que estão
sempre flertando com entidades ameríndias, como o Watú, os Marét e muitos outros.
Todavia, se as interferências parecem inegáveis, já que a densidade do fenômeno dá
lugar a uma geometria variável (o que não significa fragilidade, apenas condição), a pergunta a
ser feita é: esse fenômeno encontra homologias empíricas? O esforço agora toma lugar no
trabalho de investigação para aproximação de outros exemplos na adjudicação. Penso que o
campo penal é sensivelmente paradigmático, seja porque os estudos se acumulam em grande
monta, seja porque o direito penal tem repercussões mais midiáticas. Os mestres do pensamento
ameríndio, caracterizados como sujeitos do conhecimento tradicional, são particularmente
afetados pela dimensão existencial prescrita nas formas penais. Os tipos e as condutas ali
escritos flertam com moralidades restritas que, antes de tudo, presumem um sujeito adequado
e ontologicamente fabricado. Embora regradas por grandes performances, todas as ações do
direito penal parecem invocar uma forma particular de imaginar o real, que exclui todas as
existências que diferem, desapropriando, por exemplo, os índios de sua condição cultural e
territorial, as travestis de sua sexualidade, os negros de sua cor de pele e, sobretudo, tornando
os pobres controlados, quando não mortos.
O conhecimento de um feliz exemplo decorrente de uma trágica situação chegou a mim
pelas burocracias que a pesquisa nos impõe. Ele foi franqueado a mim por uma antropóloga do
órgão indigenista que tinha sido convocada para dar parecer antropológico em um caso de
75
Refiro-me, especificamente, a um levantamento de pesquisa que resultou das investigações recentes e que busca
compreender ações dos Borum nas áreas oficiais.
171
tráfico de drogas relacionado a um jovem índio Krahô de Itacajá (TO). O fato é curioso, pois
essa antropóloga, interessada em questões jurídicas, viu em mim, um advogado interessado em
questões antropológicas, a oportunidade de esclarecer alguns pontos em relação ao processo no
qual ela tinha sido designada para dar um parecer antropológico. O “fato jurídico” era que o
jovem indígena foi “pego” por policiais da pequena cidade perto da TI com uma mochila na
qual havia plantas Cannabis sativa Lineu, ainda com raiz e de porte mediano. A partir daí, os
sujeitos envolvidos no processo descobriram que se tratava de um indígena apenas por ocasião
do pronunciamento da Defensoria Pública76, após esse índio ter passado alguns dias em
privação de liberdade sem entender as razões, uma vez que a prática de produção das
“garrafadas” utilizando a caprã77 é muito difundida entre os Krahô.
Ao ler a denúncia, verifica-se que o indígena estava sendo enquadrado no artigo 36 da
Lei n.º 11.343/2006 (tráfico). O que importava era exatamente a percepção de conduta (ilícita)
no campo imaginado pelos agentes do direito. Todos os outros elementos parecerem circulares
e não mereceram, portanto, entrar na denúncia (como a condição de indígena). A escuta dos
áudios das audiências trouxe à tona as convulsões de alfa sobre a realidade fática construída na
localidade de relações, pois os fatos não eram nada “simples” ou “simplificados” como
aparentavam. Não somente se tratava de um jovem indígena, mas as relações e conexões desse
sujeito inserido nos contatos com a sociedade revelaram uma prática comum em relação a
muitas comunidades indígenas, que é o aprisionamento dos cartões de redistribuição de renda
(Bolsa-Família) pelo comerciante local, que faz uso de artimanhas capazes de “prender” o
indígena em um ciclo vicioso de dependência. Nessa situação, o indígena viu-se obrigado a
levar caprã para fazer uma “garrafada” para o comerciante local, que a utilizaria na recuperação
de seu pai, acometido por uma doença. Quando o Estado se fez presente na figura dos policiais,
o comportamento do comerciante (acovardado, mas quem não fica?) foi negar o pedido e lá
estava o Krahô “pego” pelas formas jurídicas. Maldito kuben, deve ter pensado o jovem Krahô,
confuso de ver sua forma de vida contrastada com a prescrição jurídica que nem sequer
conheceu a situação, pois o fato juridicamente relevante foi fabricado no flagrante de ele estar
sendo visto, registrado e denunciado pelas formas jurídicas. Na delegacia, era necessário forjar
a “materialidade” do fato pela “autoria” do índio que, nos usos da tradição cristã, “confessou”78
aquilo que os ouvidos do direito estavam preparados para escutar.
76
A diversidade cultural, diria Geertz (1999, p. 21), está mais nos sentires do que nas fronteiras: “O sentimento de
ser estrangeiro não começa à beira d’água mas à flor da pele”. Por isso, não nos perguntamos se o padeiro é
também pastor neopentecostal ou se o serventuário do Cartório de Pessoas Jurídicas é praticante de poliamor.
77
É a forma como o grupo da Terra Indígena Krahô da aldeia da Porteira chamam a Cannabis.
78
Novamente, os termos do campo jurídico são sugestivos, pois denunciam sua natureza cristã e a prática
pecaminosa desses selvagens sem lei. Para maiores discussões, ver Kant de Lima (2010).
172
As coisas nesse litígio só mudaram de tonalidade quando as explosões dos fatos
caminharam pela geometria variável do direito e de suas concepções, pois os instrumentos
ficaram contaminados por muitas das outras histórias (juridicamente irrelevantes na inicial), a
ponto de o Promotor de Justiça requerer: “[d]urante a instrução processual, foi observado que
o acusado reside em aldeia indígena, não restando claro se este é pessoa integrada aos costumes
do “homem branco”, havendo necessidade de exame antropológico e social para aferir a
imputabilidade do indígena”. É desnecessário dizer alguma coisa sobre os preconceitos
inscritos nesse tipo de requerimento, não fosse o fato de ele escancarar contradições importantes
e, mais uma vez, estar vinculado ao acionamento de um expert para dizer que o Krahô é
exatamente aquilo que é, isto é, índio.
A partir daí, é possível ler o próprio contato da antropóloga responsável como uma
tentativa de oferecer a melhor de suas performances no intuito de conseguir que o jovem índio
Krahô escapasse ao monismo ontológico do direito, ao confrontar pragmaticamente a forma de
vida com a forma jurídica em adjudicação.
A fissura provocada nesse litígio foi interessante, pois, quase três anos após esse
encontro com o direito penal, foi proferida decisão judicial absolutória, cujo argumentação traz
à tona a hesitação que perdurou no “espírito” do julgador: “[...] talvez sejamos todos
essencialmente garantistas, se e desde que se nos repugne a ideia de condenação (afirmação de
certeza judiciária) baseada em convencimento cuja dúvida ainda remanesça no espírito do
próprio julgador”.
Poderia tentar produzir maiores argumentos e aproximações em relação a conflitos que
são vistos em outros termos pelos agentes do direito, mas creio que por ora é suficiente dizer
que, no campo ameríndio, as configurações constitutivas do litígio promovem verdadeiras
formas de imaginar o real, cujos fatos juridicamente relevantes são fabricados a partir das
predisposições conceituais das adorações monistas da metafísica incutida no pensar jurídico.
Os muitos conflitos que estão espalhados onde há relações humanas e outras-que-humanas
rapidamente são contados, pensados, enfim, fabricados de outra forma ou em outros termos.
Não à toa, os termos jurídicos instrutórios da adjudicação requerem que os agentes produzam
provas e não as tragam aos autos, pois a realidade relevante deve ser forjada no plano de
existência que a adjudicação parece projetar. Acontece que isso não se dá sem grandes
consequências, sejam elas diretamente decorrentes de procedimentos na adjudicação (como os
TAC) ou condicionadas por programas sociais que parecem ser, cada vez mais, a maneira de se
dizer o direito. O conflito, litigiosamente considerado, ou antropologicamente etnografado,
sugere que os encontros que promove são muito mais complexos do que nossa vã imaginação
173
supõe, promovendo afetações e contágios recíprocos que nossa intuição relativista deixou de
considerar, assim como aponta para desdobramentos pragmáticos que irei agora explorar.
79
Afirmo isso pois penso que a circulação provocada pelos objetos do direito não se dissocia exatamente dos
pressupostos constitutivos desse modo particular de produzir seres. Há uma impossibilidade, segundo Mauss, de
os iroqueses etc. retirarem a economia das relações sociais, morais e estéticas. Eu diria, também, das legais.
174
que-humanos parecem compartilhar, muito embora sejam minimalisticamente pensados pelos
agentes do direito. O questionamento que meu interlocutor fez no encontro com um advogado
da Cemig é um exemplo do desacordo pragmaticamente percebido sobre a “ausência” de
correspondência por parte do advogado que não “vê” ou “quantifica” aquilo que ele [meu
interlocutor] está por dizer. Por consequência, o modo de existência descrito no regime
adjudicatório corresponde a uma realidade empírica outra e choca-se, pragmaticamente, com as
formas ameríndias pensadas e experimentadas em um determinado território.
Seja na adjudicação, seja no conflito etnograficamente descrito, há encontros variados
que nem sempre se fecham e que flertam com ontologias distribuídas diferentemente. Se
ontologias são “o acervo de pressupostos sobre o que existe. Encontros com o que existe
pertencem ao âmbito pragmático” (ALMEIDA, 2018, p. 9, grifo do autor), tal como é o
aprisionamento de jovem indígena Krahô diante da conduta presumida no campo do direito e
que, pragmaticamente, requer a correspondência (forjada) de uma existência ilícita. O que isso
nos revela? A inseparabilidade de ontologias e de seus correspondentes encontros pragmáticos,
cuja arguição aponta a adjudicação como uma forma interessante desse encontro, isto é,
encontro entre modos de existência cujos efeitos são corriqueiramente distribuídos e passam a
estar presentes nas varandas das casas, no dinheiro que circula com as reparações ou na entrada
de um oficial de justiça e policiais na aldeia para intimar o indígena por causa da conduta ilícita.
Enfim, resíduos de uma ontologia peculiar associada às práticas adjudicatórias. Muitas
interferências surgem desses encontros e podem ser recíprocas. Elas estão em muitos objetos
produtos desses encontros, que se manifestam no ordinário onde os modos de vida são
pensados, tais como as garrafas de polietileno contendo “água potável” para consumo, os
caminhões-pipa que abruptamente interrompem a manhã para abastecer as caixas d’água nas
casas dos índios e levar água aos cochos do gado. Coincidentemente, o manejo do gado é mais
um exemplo de encontros pragmáticos deixados cotidianamente pelas formas jurídicas, pois
essa prática de criação de gado foi fomentada por meio de um instrumento reparatório
desencadeado por uma adjudicação no caso da Usina Hidrelétrica de Aimorés.
De qualquer forma, o que quero ressaltar por via desses encontros pragmáticos, seja na
adjudicação, seja no conflito etnográfico, é que a textura do cotidiano muda com essas
interferências, ora para forçar uma dedução de pedido incomum na adjudicação, ora para buscar
um fardo de água estocado na varanda e rememorar a morte do parente. Embora a comparação
possa nos levar à afirmação, equivocada, de uma incomensurabilidade fática, não me parece
que essa incomensurabilidade se sustente no estilo dualista de Geertz (existência ou
inexistência), pois, se retomarmos à equivocação, experimentos levados a cabo podem
175
promover conexões parciais a ponto de afirmarem um como se típico dos antropólogos,
praticados pelos indígenas. Eles, no estilo educativo que adotam com suas crianças, buscam
ensinar um mundo radicalmente diferente aos não indígenas, sugerindo que há
comensurabilidades pragmáticas (ALEMIDA, 2003) entre esses regimes, que podem ser feitas
nas muitas tentativas que um conflito proporciona. Trata-se de uma difícil comensurabilidade,
decerto, pois a pressa em resolver prevalece no confronto (conflito). Ainda mais difícil quando
faltam aos rituais do Judiciário xamãs capazes de promover o trânsito cósmico e de informar
sobre o ponto de vista do outro (e o mundo descrito por aqueles conceitos). O que não posso
deixar de notar é que esses modos de existência corriqueiramente divergem nas suas amplitudes,
assim como em relação ao poder associado às suas práticas, pois, lembrando Clastres (2014),
não é possível comparar um aparato sociológico ameríndio com a estrutura coerciva do Estado.
Por outro lado, engajar-se etnograficamente e encontrar as estratégias ameríndias
desdobrando-se em espaços oficiais contribui para a tentativa de compreender essa
comensurabilidade parcial e indica que eles, os índios, estão a todo momento testando essas
comensurabilidades, seja a partir da compreensão da linguagem jurídica (e é curioso notar o
interesse de meus interlocutores pelo direito), seja na ocupação de espaços de representação,
como a eleição de um representante indígena para a câmara municipal de Resplendor (MG).
Em comemoração, além dos rituais de dança, foi realizada uma grande carreata pela cidade
conduzida pelos automóveis advindos da reparação para fazer ecoar o som de músicas indígenas
nas arquiteturas oficiais.
No nosso caso em questão, a realidade jurídica criada por meio de seu regime de
enunciação confronta claramente com as muitas formas de vida na bacia do rio Doce e,
especialmente, com o modo de existência Borum, revelando ontologias agonísticas em
múltiplas instâncias. Entretanto, se nos preocuparmos mais com o conflito dentro e “fora da
lei”, poderemos ser capazes de “ver” a dimensão política associada às fissuras que as
convulsões de alfa podem provocar. Por isso, a noção de conflito (ou confronto) leva-nos a
compreender esses testes de comensurabilidades que podem falhar. E corriqueiramente falham.
Mas, se a política é sempre uma experimentação, penso que, quando praticada pelos povos
ameríndios, ela é uma coisa outra. Por isso, sugeriria que, se uma antropologia do direito deva
importar-se mais com as condições nas quais os termos do conflito são experimentados, ela deve
fazê-lo tendo como interlocutora necessária a antropologia política.
176
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181
O PROCESSO DE DESCARACTERIZAÇÃO ÉTNICA DE INDÍGENAS
KAINGANG ENCARCERADOS NO PARANÁ80
Felipe Kamaroski
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho81 nasce como parte da minha pesquisa de mestrado cujo objetivo principal
é entender os impactos do encarceramento em questões identitárias de indígenas no estado do
Paraná. Por questões de escopo e de proximidade geográfica, minha análise é focada em grupos
da etnia Kaingang do Oeste do estado. O encarceramento é um tema amplo dentro das ciências
sociais; por esse motivo, pesquisas sobre os fenômenos do encarceramento podem revelar
realidades e processos sociais distintos que por vezes acabam misturados, homogeneizando
indivíduos dos mais diversos contextos dentro da “massa” de encarcerados. O fator de distinção
do encarceramento de indígenas no Brasil reside primariamente na problemática do
“pardismo”, já que diversos contextos sociais são ignorados e classificados como uma mesma
categoria. No Brasil, o exemplo que melhor elucida a ambiguidade da categoria “parda” é
observada na multiplicidade de processos sociais que afetam uma pessoa parda: essa categoria
pode significar, de um lado, uma ancestralidade ligada à diáspora africana e, de outro lado, em
sentido oposto, remeter a uma ancestralidade indígena. É importante, portanto, separar o uso
do termo “parda” em dois contextos: enquanto categoria burocrática do Estado para identificar
pessoas e enquanto fato social total na análise sociológica. Neste trabalho, meu foco principal
é o uso de “parda” no primeiro contexto.
A categoria burocrática “parda” é associada a um preso (ou a uma presa) quando ele
ingressa no sistema prisional por meio da ficha do detento. Quem faz esse fichamento – no caso
as operadoras e operadores do direito – classifica os presos e presas a partir de sua própria visão
de mundo. Dependendo do contexto, e não raras vezes como mostrarei, os indígenas não
dominam o português; por conseguinte, a caracterização dada pelos operadores do direito é a
única que prevalece na definição ou não de pertencimento étnico da pessoa presa a um grupo.
80
Trabalho apresentado ao GT03 (sessão 02) – Diálogos convergentes: populações tradicionais e práticas jurídicas
– durante o 7.º Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir), realizado virtualmente no período de 23
a 27 de agosto de 2021.
182
A prisão de indígenas envolve diversos temas, passando por questões de etnicidade,
pertencimento, banimento ou prisões de sentido político. Como estratégia para circunscrever a
complexidade da questão, vou descrever um caso específico ocorrido no Paraná, mas que
poderia extrapolar para outros contextos, como sugere Stephen G. Baines (2015) em sua análise
da situação de indígenas presos em Roraima. A partir do caso exposto, proponho uma reflexão
sobre a descaracterização étnica que indígenas sofrem quando entram no sistema prisional do
estado.
A população carcerária no Brasil tem crescido nas últimas décadas. Segundo os dados
apresentados pela organização não governamental (ONG) Carcerópolis, o Brasil saltou de 132
presos a cada 100 mil habitantes no início dos anos 2000 para 351 presos por 100 mil habitantes
em 2019 (DADOS..., 2021). Esse aumento significativo pode explicitar os mais diversos
fenômenos. Por esse motivo, este trabalho limitar-se-á a examinar somente as problemáticas do
encarceramento no contexto social indígena, especificamente no cenário da Terra Indígena (TI)
Rio das Cobras no Oeste do Paraná, território compartilhado pelas etnias Xetá, Guarani e
Kaingang, ainda que a maciça maioria dos habitantes dessa TI se reconheça como Kaingang.
Antes, é importante estabelecer que o encarceramento de indígenas no Brasil é
documentado desde o século XVIII na figura dos aldeamentos, como observaram Ricardo C.
Fernandes (1998), Stephen G. Baines (2015) e Manuela Carneiro da Cunha (1992). No passado,
o cárcere tinha como objetivo oficial “aculturar” e “assimilar” o indígena à sociedade nacional
por meio de catequese e da proibição do uso da língua nativa (CUNHA, 1992). Essa perspectiva
muda oficialmente com a redemocratização (1988), quando o Estado deixa de ser o tutor legal
dos povos nativos e muda sua política assimilacionista – que antes era baseada na noção de
aculturação – para, a partir daquele momento, incorporar a noção de pluralidade étnica e de
soberania cultural dos povos.
Parece-me prudente afirmar que a lógica aplicada aos aldeamentos do passado foi
superada. Mas algumas características desse tipo de relação entre indígena e encarcerador
(podendo ser o colonizador do passado ou o operador do direito no presente) persistem: a falta
de informação, o uso da violência física, a dificuldade de comunicação e, por vezes, um
descompasso no entendimento do que configura um crime e do que é passível de pena. É
relevante mencionar que, dentro das Terras Indígenas Kaingang, existem prisões controladas
pelos próprios indígenas com códigos penais específicos de uso interno. Sobre essas prisões
controladas pelos indígenas, existem relatos de abuso de poder e de criação de milícias armadas
indígenas dentro dos territórios. Por isso, as características mencionadas acima podem ser
183
válidas, ainda que de forma assimétrica, para o regime estatal de encarceramento82 e para o
regime penal interno dos Kaingang83.
Por fim, por uma questão de responsabilidade, todos os nomes de pessoas relacionadas
ao caso que descrevo a seguir foram alterados. Esse cuidado deve-se à complexidade e à
sensibilidade que algumas informações expostas no processo que mencionarei exigem. Soma-
se a isso o fato de que todas as pessoas que citarei estão vivas, e algumas informações expostas
poderiam acarretar danos para as(os) envolvidas(os).
2 O CASO
Os eventos que descrevo a seguir ocorreram durante os meses de maio e julho de 2021,
ainda que o caso em si e os eventos que geraram a prisão e o processo de Paulo (nome fantasia
do réu e principal personagem do ocorrido) tenham acontecido entre os anos de 2011 e 2015.
A pandemia da covid-19 acabou por restringir qualquer tipo de ida a campo (físico), por
questões de biossegurança. Além disso, não fui de forma ativa em busca de um relato para que
eu pudesse refletir sobre a questão, tomei conhecimento dos fatos depois de ser provocado a
investigá-los, de certa forma é coerente dizer que foi o campo que me encontrou e não o
contrário. Por essas duas razões, minha metodologia ficou restrita a telefonemas, entrevistas
por aplicativos de mensagens, análise de documentos gerados no processo de Paulo, e,
principalmente, buscas nas bases de dados do Judiciário.
Meu envolvimento com o caso começa com um pedido de ajuda de um amigo, indígena
e morador de Rio das Cobras, aqui designado como Ademar.
Ademar mandou-me um registro administrativo de nascimento84 de um homem de nome
Paulo (que foi residente de Rio das Cobras, sua família ainda mora em uma das aldeias da TI)
e perguntou-me se eu poderia localizar o rapaz, que estaria desaparecido, sua família não tinha
notícias dele há dois anos. De acordo com a última informação obtida pela mãe do rapaz, ele
82 Algumas aldeias Kaingang no Sul do Brasil têm edificações específicas, destinadas a prender pessoas,
uma cadeia no sentido literal da palavra, com barras de ferro e estrutura de alvenaria.
83 Em minha monografia de graduação, analisei o caso de um incêndio em uma cadeia indígena na TI de
Kondá (SC) que matou um casal de adolescentes. O rapaz que morreu no incêndio era natural de Kondá, já sua
namorada, também morta no acidente, era de outra aldeia, o que levou sua mãe a pedir reparação por danos que
teriam sido cometidos dentro da aldeia. O processo foi, na prática, um embate entre duas noções de legitimidade
de vigiar e punir. O juiz e a mãe da garota acusavam a Fundação Nacional do Índio (Funai) de negligência por
permitir que existisse uma cadeia (que não fosse controlada pelo Estado) na aldeia, e a Funai sustentava que não
era dever dela exercer papel de polícia dentro das aldeias e que o princípio de soberania cultural deveria ser levado
em conta nessa equação de direitos e deveres (KAMAROSKI, 2020).
84
Registro Administrativo de Nascimento é um documento produzido pela Funai que permite que o indígena
confeccione outros documentos no cartório.
184
havia sido preso por estupro. O crime em questão teria ocorrido dentro da própria aldeia onde
eles moravam.
Para entender as etapas processuais que Paulo havia cumprido, pedi ajuda a uma amiga
(advogada) que tinha meios de consultar a situação processual dele. Descobri que ele já havia
sido condenado, sua pena foi fixada em mais de 12 anos de prisão por estupro de vulnerável,
com o agravante de que a vítima era sua cunhada, com menos de 11 anos no momento do
ocorrido. Sobre a prisão, o sistema apontou que ele estaria preso em dois locais ao mesmo
tempo: ele poderia estar na 7.ª Subdivisão Policial de Umuarama (PR) ou na 16.ª Delegacia
Regional de Altônia (PR). Outra informação que o sistema permitiu visualizar foi o telefone e
o nome de seu advogado (Airton). O advogado de Paulo estava como defensor na condição de
dativo, ou seja, foi designado pelo Estado para o caso, e seus honorários seriam definidos pelo
número de audiências que aconteceriam naquele processo.
Para solucionar a ambiguidade da localização de Paulo, liguei para o Departamento
Penitenciário do Estado do Paraná (Depen-PR). Fui informado de que ele estaria preso na 16.ª
regional de Altônia e não em Umuarama.
Na tentativa de entender o caminho que Paulo teria feito até chegar a Altônia, entrei em
contato com Airton. Embora não tenha atendido minhas ligações, o advogado mostrou-se
solícito quando entrei em contato por via de um aplicativo de mensagens. Inicialmente me
identifiquei e perguntei pelo rapaz, disse que era o caso de um indígena que, segundo sua
família, não tinha fluência em português (informação que se confirmou mais tarde). Airton,
ainda que tenha demonstrado entender a situação, disse que não se lembrava do caso em questão
e não se recordava de ter atendido alguém de nome Paulo; pediu para que eu aguardasse alguns
minutos, que iria consultar os documentos em seu escritório, ver se encontrava algo sobre o
caso do Paulo. Quando retornou, deu-me as informações que eu já havia conseguido por outros
meios, mas, para aproveitar a ocasião, perguntei se ele havia entrado em contato com a Funai85
ou com a família de Paulo quando entrou no caso, a resposta foi negativa.
Por sua natureza, o processo correu em segredo de justiça. Na prática, eu não poderia
ter acesso às informações contidas na peça principal, restou-me analisar o processo de
execução, de acesso público. O Processo de Execução é um amontoado de documentos relativos
a momentos diferentes do processo organizados de forma cronológica. Por meio dessa
documentação, foi possível entender o caminho que Paulo fez até chegar a Altônia. Essa peça
permitiu-me entender como a pessoa indígena foi traduzida pela documentação. Aliás, como
85 A Funai é o órgão estatal responsável por políticas de auxílio e de mediação dos diversos grupos
indígenas do Brasil.
185
um típico caso de descaracterização étnica observado por Stephen G. Baines (2015) em
Roraima, Paulo aparecia como “pardo” (no documento, essa informação aparece como “cútis:
parda”86) em sua ficha do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU). Informação
paradoxal considerando outros documentos dispostos na peça, uma vez que, no mandado de
prisão expedido no caso, Paulo aparece como tendo “cútis: indígena”. Mais tarde, entrevistando
operadores do direito, descobri que essa discrepância deve-se à origem do banco de dados no
momento da confecção da documentação. Enquanto no mandado de prisão as informações não
são editáveis, por virem direto do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), no SEEU as informações
são alimentadas pela pessoa que está fichando o preso no momento em que ele entra no sistema
prisional. Em outras palavras, as informações dispostas no SEEU refletem a visão de mundo do
operador ou da operadora do direito que fichou a pessoa em questão; já no mandado de prisão,
a informação disposta tem origem na autodeterminação reivindicada pela pessoa. Em casos de
indígenas que não falam português, esse problema toma proporções mais severas, uma vez que
nesses casos a autodeterminação não chega nem a ser uma questão e, quando chega a ser
suscitada, como expressá-la?
Por fim, depois de conversas sobre mais casos de indígenas que tiveram contato com a
polícia, Ademar relatou uma sensação de estranhamento em relação à “justiça dos brancos”.
Um dos casos de que tomei conhecimento durante essas conversas foi o de uma mulher
(indígena) que teria sido levada pela Polícia Civil no começo de julho de 2021, a família da
mulher não sabe o motivo de ela ter sido levada, nem como encontrá-la.
3 DISCUSSÃO
86 Cútis é literalmente a película que recobre a pele da pessoa, particularmente a pele do rosto;
consequentemente, indica a cor da pele. Ainda que nos dados do TRE o termo “cútis” possa ter uma conotação
próxima à de etnicidade, parece-me que esse não é o entendimento dos operadores do direito com quem conversei.
Entendo que essa questão pode ser reveladora para compreender mecanismos de afirmação étnica, mas não é
intenção deste trabalho específico debruçar-se sobre o sentido que assume o termo “cútis” nos diferentes contextos.
87 Essa pesquisa levou em conta um universo de 645.797 pessoas presas.
186
pertencem à categoria burocrática “parda” é uma tarefa que se tem mostrado impossível, se
analisarmos os dados oficiais do Estado.
Não existe um sistema de informação integrado entre os setores prisionais que compõem
as esferas municipais, estaduais e federais responsáveis pela manutenção de dados relativos ao
perfil dos presos. Nesse sentido, os dados que vão compor os relatórios periódicos do Infopen88
têm origem no preenchimento de um formulário pelos operadores do direito, em geral, aquela
ou aquele que comanda a unidade prisional89. Em outras palavras, quando um indígena é
fichado como “pardo” no momento em que entra no sistema prisional, a taxa de encarceramento
de indígenas torna-se indetectável pelas vias oficiais. Paulo insere-se nos 49,72% da população
carcerária identificada como parda pelos mecanismos oficiais.
Em relação à dificuldade de observar a problemática, em 2018, o Ministério da Justiça
e Segurança Pública divulgou uma Nota Técnica referente ao mapeamento da população
indígena presa (BRASIL, 2020c). A maioria dos indígenas presos seriam homens (1.325
homens e 65 mulheres); desse universo, apenas 672 indígenas seriam autodeclarados.
Paradoxalmente (ou não), o estado do Paraná aparece com um total de zero indígenas presos90.
No período em que a Nota Técnica havia sido publicada, Paulo estava preso. Isso significa que,
ainda que ele fosse o único indígena preso no Paraná, o que é questionável, ele não constava
nos dados oficiais.
188
3.2 UM PROBLEMA DE ESTADOS DIFERENTES
A relação da teoria penal com povos autóctones foi analisada por outros pesquisadores
em contextos diferentes. Vou mencionar brevemente como se apresentam as problemáticas
expostas anteriormente em outros lugares e como os diferentes Estados nacionais responderam
às demandas de grupos étnicos. As pesquisas e os trabalhos que citarei a seguir foram escolhidos
a partir de buscas em bases de dados usando descritores em língua inglesa. A adoção dessa
metodologia de pesquisa deveu-se à escassez de trabalhos que relacionem indígenas a
experiências de cárcere ou de prisões no contexto brasileiro91.
É importante dizer que não tenho a intenção de fazer um extenso exercício comparativo
na reflexão que se segue, reconheço o tom problemático que pode existir em comparações,
principalmente no pensar antropológico. O que proponho é uma reflexão tendo em vista como
esse denominador comum, o Estado, opera em diferentes cenários.
Nos anos 90 no Canadá, foi julgado um caso que ficou conhecido como R. v. Gladue
(Royal Queen versus Gladue), o qual tratava do assassinato de um homem por uma mulher
indígena (CANADA, 1999). O julgamento foi revolucionário, pois definiu uma nova
jurisprudência para casos envolvendo indígenas. Na sentença, foi definida uma pena mais
branda para a ré. Na decisão, a Suprema Corte enfatizou que o contexto social da mulher de
pobreza e de exclusão territorial era fruto de um momento em que colonizadores se apropriaram
de terras nativas, exploraram e massacraram os povos que viviam no lugar; por esses motivos,
existiam evidências concretas de que aquele crime poderia ser consequência direta desse
passado de exploração.
A nova jurisprudência pavimentou o caminho para a criação do que viria a ser conhecido
como as Gladue Courts, cortes especializadas em julgar casos (no nível penal) que envolvessem
réus indígenas. Essas cortes operam de forma idêntica às cortes “comuns”, o único diferencial
é que os conhecimentos nativos são integrados à decisão da corte, numa tentativa de expandir
a perspectiva legal e, em geral, dando preferência a penas mais brandas ou baseadas em
costumes do grupo a que pertence aquela pessoa que está sendo julgada (MAURUTTO;
HANNAH-MOFFAT, 2016). Para tornar viável essa prática, as Gladue Courts contam com
funcionários treinados para educar os operadores do direito em relação às práticas coloniais de
91 Além do já citado Stephen G. Baines (2015), que examinou a situação de Roraima, é relevante mencionar
um relato de caso em Dourados (MS), que mostrou como o apagamento da identidade indígena opera no estado
com a maior população carcerária do Brasil (PACHECO; PRADO; KADWÉU, 2011).
189
exclusão que geraram a marginalização dos povos nativos. Esses funcionários geram Gladue
Reports (algo como um laudo antropológico), que são apreciados pelas cortes.
A condição do indivíduo nos casos julgados pelas Gladue Courts é posta em segundo
plano, o que se enfatiza é o impacto histórico do coletivo e suas consequências. O tipo de
conhecimento gerado nessas cortes específicas difere do tipo de conhecimento produzido por
outros atores sociais menos especializados:
Em geral, nossas descobertas indicam que as informações geradas por juristas sobre
os aborígines acusados podem identificar fatores culturais que levaram à
discriminação, no entanto, essas informações não são consistentemente
fundamentadas em histórias de colonialismo e relações raciais. Em contraste, os
relatórios produzidos por escritores treinados das Gladue Courts resultam em tipos
substancialmente diferentes de conhecimento, que traçam conexões entre as ações de
um acusado e histórias aborígines específicas do colonialismo (MAURUTTO;
HANNAH-MOFFAT, 2016, p. 455, tradução nossa).
190
maioria havia tido poucos anos de estudo, dificuldades familiares e longos períodos de
desemprego, o que para Jackson seria reflexo de poucas oportunidades92.
Existem fatores em comum entre o caso neozelandês e o brasileiro. Stephen G. Baines
(2015) menciona que a justificativa dada por alguns operadores do direito para negar os direitos
diferenciados dos indígenas é a noção de que todos são iguais perante a lei. Moana Jackson
aponta para uma lógica muito parecida no caso do estado neozelandês:
O sistema de justiça está enraizado nas mesmas bases culturais de outras estruturas
sociais importantes, como o sistema educacional; é inevitavelmente influenciado e
moldado pelos mesmos valores e ideais culturais. Na verdade, o truísmo legal de que
o sistema de justiça opera “uma lei para todos” contém sementes implícitas de racismo
institucional, uma vez que é uma lei baseada na common law inglesa, sem
reconhecimento de direitos Maori específicos ou formas de controle social
(JACKSON, 1987, p. 12, tradução nossa).
Não se trata de comparar esses dois cenários, trata-se, antes, de mostrar como existem
pontos comuns na prática colonial no que se refere às experiências de cárcere.
Em resposta às demandas políticas Māori, o Estado, na figura do Ministério de Justiça
(via Departamento de Correção), negou integrar práticas culturais consideradas “distintas” ao
sistema penal, mas adotou algumas medidas que visavam acolher os infratores de
autodeterminação Māori93.
Por fim, é interessante ressaltar que houve outra tentativa de mudança de abordagem
estatal sobre o problema Māori94. No caso, foi a instauração de um comitê consultivo
(composto por operadores do direito e sociedade civil) que deu parecer favorável às mudanças
no sistema penal, visando a integração de práticas culturais Māori ao julgamento e à reinserção
de infratores. Ainda assim, a resposta do Judiciário foi contrária às recomendações do comitê.
Foi levantado o argumento de que não haveria forma de garantir a integridade dos processos,
uma vez que o Estado perderia seu papel ativo (TAURI; WEBB, 2012). Somente em 2008,
foram incorporadas às práticas estatais as Rangatahi Courts, com foco na reinserção de jovens
Māori que haviam cometido crimes. A mudança estatal foi considerada uma vitória, ainda que,
92 O contexto histórico da pesquisa de Moana Jackson (1987) é anterior ao Te Ture Whenua Māori Act, de
1993, que reformulou o entendimento estatal referente à posse e ao usufruto da terra pelos Māori (NEW
ZEALAND, 2021). Acredito que fatores como territorialidade poderiam afetar significativamente os dados da
pesquisa de Moana Jackson, caso sua pesquisa fosse refeita hoje. Ainda assim, Tauri e Webb (2012) usam a
pesquisa de Jackson como referencial teórico, uma vez que, por meio dos dados coletados por Moana Jackson, é
possível atestar a forma como o Código Penal impactou a vida dos Māori antes do Te Ture Whenua.
93 Algumas dessas medidas foram: 1) conselho comunitário baseado nas iwi (unidades socioculturais
Māori); 2) projeto piloto de diversidade com foco comunitário, como Te Whānau Āwhina, que se concentrou em
infratores Māori de contexto urbano; 3) unidades prisionais dedicadas somente aos Māori; 4) programas de terapia
“bicultural” (TAURI; WEBB, 2012, p. 4).
94 Maori problem é o termo usado para fazer referência às altas taxas de encarceramento entre os Māori.
191
como Tauri e Webb (2012) destacam, essa iniciativa focava os jovens infratores e não
solucionava problemas estruturais de racismo dentro do Judiciário.
Antes de finalizar esta seção sobre indígenas e sistema penal, gostaria de tecer breves
comentários sobre a situação na América Latina, com foco no cenário chileno.
A autodeterminação de povos nativos é amparada em dispositivos legais, que definem
a manutenção de direitos exclusivos. Em 2002, o Brasil ratificou a Convenção n.º 169 da
Organização Mundial do Trabalho (OIT), mas só em 2004 as normas adotadas entram em
vigência (Decreto n.º 5.051/2004). Nessa linha, países como México, Chile, Equador e Bolívia
dão status de reconhecimento aos povos indígenas em suas constituições a partir dos itens
expressos na referida convenção. Em adição, Guatemala, Colômbia e Peru vão além do simples
reconhecimento legal dos grupos e admitem a legitimidade da jurisdição indígena em matéria
penal (ROYO LETELIER, 2015).
Embora tenha sido signatário das normas propostas na Convenção n.º 169 da OIT, o
Estado chileno não efetivou em nível constitucional e penal o reconhecimento dos direitos
exclusivos de povos nativos. Essa situação forçou defensores de direitos humanos, indígenas,
políticos e militantes a denunciar a inércia estatal:
Essa relutância dos órgãos jurídicos chilenos em incorporar as normas da Convenção
169 e outros tratados internacionais de direitos humanos a processos criminais contra
réus indígenas levou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos a condenar o
Estado chileno em 2014, indicando que os tribunais teriam assumido uma conotação
racista que violava o direito à igualdade, além dos efeitos de outras garantias
fundamentais (ROYO LETELIER, 2015, p. 364, tradução nossa).
Em sua revisão sobre o modo como as práticas penais chilenas afetam os indígenas,
Manuela Royo Letelier (2015) usa o termo “monismo jurídico” para definir o paradigma no
qual a única fonte de direito e o único produtor de normatividade é o Estado.
O monismo jurídico pode ser uma ferramenta teórica útil para entender como diversos
Estados nacionais dedicaram-se a rever, ou a propositalmente não rever, o papel que a
diversidade tem nas perspectivas penais. Como em outros contextos, novamente aparece a
noção de uma suposta igualdade como apaziguadora de diferenças, que, na verdade, acaba por
soterrar as múltiplas formas de conceber que fazem parte da experiência humana e não humana.
Como ressalta a autora, existe uma: “[...] falsa ideia de igualdade que padronizou as várias
práticas normativas em um único Estado de Direito” (ROYO LETELIER, 2015, p. 367,
tradução nossa).
192
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A descaracterização étnica sofrida por indígenas no Brasil não é fenômeno recente, nem
exclusivo do Brasil. Porém, a relevância e a necessidade de discutir a temática do
encarceramento indígena tornam-se evidentes pela forma preocupante com que se apresenta o
quadro geral de omissão, a falta de dados e o despreparo dos operadores do direito. O banimento
de Paulo da aldeia, sua prisão pela justiça dos brancos e seu apagamento entre os Kaingang
podem ser reveladores e mostram como o sistema penal do Estado, por vezes, é usado como
ferramenta de punição pelo sistema penal próprio dos Kaingang, empurrando aquele que
comete a ofensa para o duplo apagamento. Sem condições de ser julgado pela aldeia, Paulo
deixa de ser membro de seu grupo e desaparece em meio aos dados do Depen. As autoras que
mencionei ao analisar o caso canadense e o neozelandês citam o excesso de representação de
nativos no sistema penal de seus contextos (MAURUTTO; HANNAH-MOFFAT, 2016;
TAURI; WEBB, 2012), condição que no cenário brasileiro é quase impossível observar quando
se examinam os dados oficiais disponíveis. Existem indícios da invisibilidade de um problema
sério, provavelmente maior do que é possível constatar no momento.
A questão da identidade nos diversos cenários abordados, e no caso de Paulo, mostra
como a individualização do problema penal de indígenas encarcerados, entendido por vezes
como uma patologia social, pode eclipsar outros fatores de exclusão tidos como normativos.
Individualizar é ignorar contextos sociais, econômicos e, principalmente, culturais de
marginalização e de apagamento. Ainda que pareçam progressistas, as Gladue Courts e as
outras iniciativas políticas de reconhecimento de soberania de formas outras de vigiar e punir
não resolvem o problema estrutural dessas expressões contemporâneas de processos coloniais.
Reconhecer a diversidade étnica e a autonomia dos povos passa, necessariamente, por
reconhecer outras formas de conceber a teoria penal, processo que obrigaria o Estado a abrir
mão de seu poder decisório. Enquanto isso não acontece, essas outras formas são jogadas à
marginalidade e entendidas como formas menos legítimas de controle, formas quase
criminosas. Como bem observou Foucault, “uma coisa é singular na justiça criminal moderna:
se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los [...], é, ao
contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não
jurídicos”; logo, “é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga”
(FOUCAULT, 2012, p. 23).
193
Referências
BRASIL. Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 13177, 21 dez. 1973. PL 2328/1970. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm. Acesso em: 15 abr. 2021.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.
133-154.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
JACKSON, Moana. The Maori and the Criminal Justice System: A New Perspective: He
Whajpaanga Hou. Wellington, New Zealand: Policy and Research Division, 1987. (Study
Series, 18).
NEW ZEALAND. Parliamentary Counsel Office. Te Ture Whenua Maori Act 1993: Maori
Land Act 1993. Version as at 28 October 2021. Disponível em:
https://www.legislation.govt.nz/act/public/1993/0004/latest/whole.html#DLM29075. Acesso
em: 11 jul. 2021.
PACHECO, Rosely Aparecida Stefanes; PRADO, Rafael Clemente Oliveira do; KADWÉU,
Ezequias Vergílio. População carcerária indígena e o direito à diferença: o caso do município
de Dourados, MS. Revista Direito GV, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 469-500, jul./dez. 2011.
https://doi.org/10.1590/S1808-24322011000200005.
TAURI, Juan M.; WEBB, Robert. A Critical Appraisal of Responses to Māori Offending.
International Indigenous Policy Journal, [s.l.], v. 3, n. 4, p. 1-16, 2012. DOI
10.18584/iipj.2012.3.4.5. Disponível em:
https://ojs.lib.uwo.ca/index.php/iipj/article/view/7390. Acesso em: 12 jul. 2021.
195
PRECEDENTES QUE INFORMAM O DIREITO À CONSULTA
PRÉVIA: POSSIBILIDADES PARA ALÉM DA CONVENÇÃO N.º 169
DA OIT95
1 INTRODUÇÃO
O direito de consulta prévia, livre e informada, inaugurado com a Convenção n.º 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT)96, representa um avanço por garantir a
participação e a autonomia diante de intervenção nos territórios ancestrais, reforçar as noções
de território e de territorialidade e conferir poder de decisão aos povos e comunidades
indígenas, quilombolas e tradicionais (SILVA, 2017, p. 127).
De forma a materializar esse direito, os Protocolos de Consulta Prévia, Livre e
Informada (PCPLI) têm sido apropriados pelos grupos locais enquanto “saída jurídica apontada
pelos povos” (SILVA, 2017, p. 141). Trata-se de documentos produzidos nos territórios, que
estipulam os aspectos mais específicos dos procedimentos da consulta, como o lugar, a
temporalidade, os responsáveis pela condução das reuniões, o calendário para a sua realização,
o horário, os relatores.
Nesse contexto de criação de protocolos pelos povos e comunidades tradicionais, ocorre
a denúncia da Convenção n.º 169 da OIT. Em 27 de abril de 2021, o deputado federal Alceu
Moreira da Silva, do MDB do Rio Grande do Sul, apresentou o Projeto de Decreto Legislativo
(PDL) n.º 177, por meio do qual o Presidente da República fica autorizado a denunciar a
Convenção. O instituto da denúncia está previsto no artigo 39 da Convenção n.º 169 da OIT.
De acordo com a exposição de motivos (CÂMARA DOS DEPUTADOS, [2021]), a
Convenção feriria a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 (BRASIL,
1988) ao impedir o acesso do Poder Público e “dos particulares” às Terras Indígenas, o que
95
Trabalho apresentado ao GT03 (sessão 02) – Diálogos convergentes: populações tradicionais e práticas jurídicas
– durante o 7.º Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir), realizado virtualmente no período de 23
a 27 de agosto de 2021.
96
Foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n.º 143, de 2002, e promulgada pelo Presidente da
República em 19 de abril de 2004, por meio do Decreto n.º 5.051. Posteriormente, em 5 de novembro de 2019,
todos os atos normativos que dispuseram sobre convenções e recomendações da OIT foram consolidados no
Decreto n.º 10.088 (BRASIL, 2019).
196
seria um entrave ao desenvolvimento do Brasil. É apontado o caso de Roraima, que não se
encontra integrado ao sistema de abastecimento de energia do Brasil, dependendo de
fornecimento pela Venezuela. São mencionadas outras obras de infraestrutura que seriam
prejudicadas pela obrigação imposta ao Estado nacional de promover a consulta: a construção
do Terminal Mar Azul em Santa Catarina e da Rodovia BR-080. São questionados os princípios
da autoatribuição e da autoidentificação, que representariam uma ameaça à soberania do Brasil,
o que teria levado outros países a não ratificarem a norma. Por fim, segundo a exposição de
motivos, a consulta deveria ser feita diretamente à Fundação Nacional do Índio (Funai), tendo
havido um desvirtuamento desse comando.
Para além dessa denúncia, cujo intuito é enfraquecer a proteção dos direitos dos grupos
tradicionais, também se observa uma série de violações de direitos fundamentais, que têm
ensejado o questionamento da constitucionalidade de procedimentos de licenciamento
ambiental, de decretos autorizativos de obras de infraestrutura ou de políticas públicas, cujas
normas reguladoras têm sido produzidas sem a observação dos direitos previstos pela
Convenção n.º 169 da OIT. Diante desse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido
provocado a pronunciar-se sobre a questão; nessas oportunidades, parâmetros de compreensão
do direito de consulta vão sendo delineados.
Ante esse quadro, proponho uma discussão sobre a força vinculante do direito à consulta
prévia, livre e informada para além da norma de direitos humanos insculpida na Convenção n.º
169 da OIT, a partir da análise de uma amostra de decisões coletadas no repositório do STF.
Para tanto, foram adotados indicadores de jurimetria, que, associados a conceitos da
antropologia jurídica, dão subsídios para uma análise mais aprofundada. O objetivo será
verificar como conceitos elaborados a partir dos territórios e traduzidos numa compreensão
própria do direito de consulta têm sido expressos nos julgados.
2 Nota metodológica
197
Quadro 1 – Resultados da pesquisa exploratória de jurisprudência.
Conjunto de palavras- Número de resultados Link da pesquisa
chave
“consulta prévia, livre e 3 acórdãos https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=true
&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10
informada” 4 decisões monocráticas &queryString=%22consulta%20pr%C3%A9via,%20livre%20e%20informada%20%22&
sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true
https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false
consulta prévia, livre e 55 acórdãos
&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10
informada 14 decisões monocráticas &queryString=consulta%20pr%C3%A9via,%20livre%20e%20informada%20&sort=_sco
re&sortBy=desc
https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false
Consulta E Prévia E 1 acórdão
&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10
Livre E Informada 14 decisões monocráticas &queryString=Consulta%20E%20Pr%C3%A9via%20E%20Livre%20E%20Informada&
sort=_score&sortBy=desc
198
Recurso Extraordinário 1.312.132/RS 02/03/2021 RE 1312132 Cármen Lúcia
Recurso Extraordinário com Agravo 18/08/2020 ARE Cármen Lúcia
1.277.937/RS 1277937
Fonte: Elaboração do autor.
No exame dos julgados coletados, fica clara a correlação estabelecida entre o direito à
consulta prévia, livre e informada e os comandos constitucionais que estabelecem garantias aos
povos e comunidades tradicionais. Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2019) evidencia
essa relação, destacando a emergência normativa com os movimentos constituintes na América
Latina:
Os direitos dos povos foram reconhecidos e garantidos em primeiro lugar como o
direito de existir como povo, de manter sua cultura e organização social. Em segundo
lugar, como direito ao território para que possam desenvolver a cultura e a organização
social. Neste sentido os dois grandes direitos são o de ser e de estar em seu lugar. Daí
decorrem todos os outros, material ou imaterialmente considerados (SOUZA FILHO,
2019, p. 22).
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Contudo, o Relator decidiu que houve perda superveniente do objeto, no que foi
acompanhado em unanimidade pela Segunda Turma, competente para o julgamento. Essa perda
deveu-se ao fato de que o ato administrativo autorizador do empreendimento fora anulado pela
autoridade municipal, bem como foi deferido Mandado de Segurança pelo Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, restabelecendo o direito de consulta.
Não obstante ter sido julgada a perda do objeto, alguns detalhes levados ao
conhecimento da Corte nesse conflito constituem questões de interesse para a pesquisa.
Primeiramente, observa-se a presença da Federação Quilombola N’Golo, que atua como
defensora dos direitos das comunidades quilombolas e fez o caso chegar ao STF, o que desvela
o alto grau de organização e de articulação política dessas comunidades. Por outro lado, o
fundamento de seu questionamento lastreia-se na eficácia da Súmula Vinculante n.º 25, cujo
enunciado é o seguinte: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a
modalidade de depósito” (STF, 2009). Dessa forma, almeja-se reconhecer o caráter supralegal
da norma de direitos humanos em questão, que é a Convenção n.º 169 da OIT. Esse
reconhecimento é fundamental para estabelecer o critério de validade da norma, uma vez que
por meio dele firma-se o entendimento de que os decretos e normas não poderão retroceder em
matéria de direitos humanos.
Liana Amin Lima da Silva (2019, p. 53) destaca que, na Colômbia e na Bolívia, a
Convenção n.º 169 compõe o bloco de constitucionalidade. No caso do julgado na Ação Direta
de Inconstitucionalidade n.º 3.239, em 8 de fevereiro de 2018, em que foi analisado o conteúdo
do Decreto n.º 4.887/2003 – que regulamentou o processo de identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas de que trata o artigo 68 do ADCT –,
ao defender em seu voto o status constitucional da Convenção n.º 169 da OIT, Celso de Mello
apontou o caminho para a superação da supralegalidade.
Outro julgado que teve por objeto ameaça ao território quilombola foi a STA 856 (STF,
2017), cuja Relatora foi a Ministra Cármen Lúcia. Tratou da suspensão de tutela antecipada
ajuizada pelo estado da Bahia contra decisão interlocutória proferida no Agravo de Instrumento
n.º 0042034-57.2016.4.01.3300, que tramitou perante o Tribunal Regional Federal da Primeira
Região, pela qual se deferiu a tutela antecipada, requerida pelo Ministério Público na Ação
Civil Pública n.º 42034-57.2016.4.01.3300, para “determinar a paralisação imediata da
execução das obras de implantação da nova Rodovia BA-099 [...] até a conclusão do processo
de regularização fundiária da comunidade remanescente de quilombo do Quingoma” (STF,
2017, p. 2).
200
Portanto, diante da suspensão das obras pelo Tribunal, a Procuradoria do estado da
Bahia levou a questão ao STF, argumentando que a rodovia seria importante para a fluidez do
tráfego de veículos, beneficiando o conjunto da sociedade baiana, além de estar 80% pronta.
Na apreciação da demanda perante o STF, a Relatora harmoniza a aplicação da
Convenção n.º 169 da OIT com a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, no
seguinte sentido:
Registre-se, por oportuno, que a mencionada Convenção OIT n.º 169 tem aplicação à
hipótese tratada nestes autos, nos termos do que dispõem o seu artigo 1.º, e o art. 3.º,
incisos I e II, do Decreto n.º 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (STF, 2017, p.
5).
201
“Convenção n. 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que foi incorporada ao
Direito Brasileiro e tem legitimidade nos postulados de proteção e garantia dos direitos dos
índios previstos nos arts. 231 e 232 da Constituição da República” (STF, 2021c, p. 7).
Esse pequeno detalhe relacionado ao reconhecimento indica, por si só, a deferência da
Corte diante da Convenção n.º 169 da OIT e também aspectos da sua força vinculante. Essas
possibilidades de postulação vão fixando uma jurisprudência favorável aos povos,
sedimentando o entendimento sobre a sua autonomia.
A Relatora cita também dois precedentes do STF: o caso Raposa Serra do Sol e o voto
do Ministro Luiz Fux para referendar a medida cautelar na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n.º 709, em que ele menciona exemplos do direito comparado e de
julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a necessidade de participação
efetiva das comunidades indígenas na consulta prévia sobre políticas públicas e
empreendimentos privados em seus territórios.
No dispositivo, a Relatora remete a causa ao Tribunal de origem, ordenando, com isso,
a reforma da decisão. Tal precedente informa importante reconhecimento do direito de consulta
prévia, fortalecendo a posição dos povos no campo de disputa por esse direito.
O segundo caso trata de reivindicação da comunidade indígena Waimiri Atroari para
que fosse feita uma consulta prévia, livre e informada antes do licenciamento ambiental para a
passagem de linha de transmissão de energia pelo seu território. A passagem da linha interligará
o estado de Roraima e o restante do sistema de energia elétrica nacional. Esse caso foi julgado
nos autos do Agravo Regimental na Suspensão de Liminar 995/AM (SL 995), teve relatoria de
Dias Toffoli e sua decisão foi publicada em 5 de novembro de 2019 (STF, 2019).
No início das obras, houve o ajuizamento de uma Ação Civil Pública (ACP), tendo sido
deferido o pedido de consulta prévia na primeira instância, o qual foi indeferido na segunda, e
seguiu para o STF, que, finalmente, manteve o indeferimento, em julgamento da Ministra Ellen
Gracie.
O Ministro Relator Dias Toffoli proferiu voto contrário ao pleito pela consulta prévia,
livre e informada. Fundamentou sua decisão em duas principais linhas argumentativas: (i) o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está
conduzindo os estudos de licenciamento com a participação da comunidade indígena; (ii) a obra
está avançada e é necessária para o desenvolvimento do estado de Roraima.
No voto vogal, o Ministro Edson Fachin discorda do Relator, afirmando que “a
disposição constante da Convenção 169/OIT nem mesmo se limita ao procedimento de
licenciamento, exigindo uma postura ativa do Estado na busca da consulta prévia para cada
202
decisão que atinja a comunidade” (STF, 2019, p. 18). O Ministro vogal fundamenta sua decisão
na necessidade de consulta prévia prevista na Convenção n.º 169 da OIT, na possibilidade, já
observada em conflitos pretéritos na mesma região, de ampliação de conflitos armados,
ameaçando a segurança pública, e na existência de povos indígenas em condição de isolamento
voluntário, com destaque para o povo Pirititi, afetado por empreendimentos realizados nas
décadas de 70 e 80 que levaram à morte de cerca de 1200 indígenas na região, o que configura
grave lesão à saúde pública provocada pela obra. O Ministro vogal menciona ainda o
fundamento firmado nos artigos 216 e 231 da Constituição Federal. Ante o posicionamento do
Relator sobre ameaça à economia, dado o avançar das obras, afirma o Vogal:
na medida em que se trate de matéria atinente à manutenção da vida dessas
comunidades, com grande impacto ambiental e sanitário, a desconsideração da
consulta prévia, determinada pela Convenção 169 da OIT, como meio de informar os
índios e de buscar um consenso em relação às obras a serem realizadas em seus
territórios, de modo a sobrelevar a ordem e a economia pública como valores
absolutos, não parece se coadunar com os princípios constitucionais atinentes ao tema
(STF, 2019, p. 20).
203
Nesses casos, portanto, a força vinculante do direito de consulta prévia não se mostra
suficiente para fazer frente a determinados interesses, sobretudo em casos de obras de grande
vulto e maciço investimento público.
97
Cabe ressaltar que a decisão tratou de múltiplos assuntos, que requerem uma detida análise. Nesta pesquisa, o
foco será a compreensão da mobilização do direito de consulta prévia, livre e informada.
204
culturas e tradições diferentes, que têm o direito de vocalizar seus interesses e
pretensões (STF, 2020b, p. 4).
206
campos, olhando primeiramente em uma direção, depois na outra, a fim de formular as questões
morais, políticas e intelectuais que são importantes para ambos” (GEERTZ, 1997, p. 253).
Dessa forma, a definição das políticas de saúde sobre covid-19 para povos indígenas
encontra na arena do STF um ponto de inflexão, visto que o governo federal, na época, excluiu
totalmente essas populações do planejamento e do monitoramento das políticas.
A ideia de um diálogo intercultural tem sido concebida como o estabelecimento de
trocas entre culturas diferentes, partindo de universos de sentidos distintos e buscando soluções
para problemas relacionados à aplicação de direitos humanos. De acordo com Boaventura de
Sousa Santos (2010), o diálogo intercultural ocorre por meio do procedimento da hermenêutica
diatópica, entendida como o processo pelo qual as culturas reconhecem sua incompletude,
dando-se a oportunidade de dialogar a partir de topoi fortes. Esses topoi são lugares-comuns
retóricos, que dão conteúdo a princípios e valores; de acordo com Boaventura, “Funcionam
como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam
possível a argumentação e a troca de argumentos” (SANTOS, 2010, p. 338).
A Sala de Situação, concebida no voto do Relator, pode ser entendida como um
componente mediador desse diálogo. A preocupação com a sua viabilização técnica relaciona-
se com a garantia da eficácia para que as ações de monitoramento, de planejamento, de
avaliação e de coordenação de ações possam ser realizadas tendo em vista a tradução
intercultural de anseios dos povos, em sintonia com a normatividade jurídica.
A inclusão das comunidades no processo de elaboração e de execução de políticas,
portanto, pode ser identificada como um esforço para conferir efetividade à decisão judicial,
imprimindo contornos concretos à previsão de autonomia e de respeito à cosmovisão indígena
prevista pela Convenção n.º 169 da OIT e também na CRFB/1988.
Dessa forma, valores de dignidade, ou topoi fortes do direito constitucional, passam a
ser integrados pela visão indígena num legítimo esforço hermenêutico de acomodação de
interesses que preza a máxima representatividade. Muito embora não caiba aqui avaliar a
efetividade da decisão judicial ou da Sala de Situação, reconhece-se o esforço de sua
constituição, que indica possibilidades de expansão do direito.
Entretanto, esse esforço não pôde ser observado na segunda decisão analisada. Assim,
as entidades representativas de atingidos pelo rompimento das barragens B-I, B-IV e B-IVA da
mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), requerem o reconhecimento do direito de
participação das vítimas nas tratativas que resultaram no acordo de reparação naquele caso,
celebrado em 4 de novembro de 2020, sob segredo de justiça e homologado pelo Tribunal de
207
Justiça de Minas Gerais (TJMG), em sessão que não contou com a presença de nenhuma pessoa
atingida, tampouco de suas assessorias técnicas.
Nesse caso, foi protocolada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
790/MG (ADPF 790), em 18 de fevereiro de 2021, que teve por Relator o Ministro Marco
Aurélio (STF, 2021a). Os autores foram a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens,
o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e o Centro de Alternativas
Socioeconômicas do Cerrado (Casec), ao lado do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do
Partido dos Trabalhadores (PT).
No julgado, os órgãos representativos dos atingidos invocam o artigo 8.º da Convenção
Americana de Direitos Humanos, requerendo que fossem ouvidos as vítimas e seus
representantes; requerem ainda a realização do direito à consulta prévia, livre e informada
prevista no artigo 6.º da Convenção n.º 169 da OIT, aludindo à sua condição de norma
supralegal.
O Relator julgou que o recurso manejado foi impróprio para o objetivo almejado, não
podendo o STF pronunciar-se em sentido contrário ao do Tribunal de Justiça, que chancelou o
acordo.
Como compromitentes, o acordo em questão contou com: estado de Minas Gerais,
representado pela Advocacia-Geral do Estado e pelas Secretarias de Estado de Planejamento e
Gestão (Seplag), de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), de Infraestrutura
e Mobilidade (Seinfra) e de Saúde (SES); Ministério Público do estado de Minas Gerais
(MPMG); Defensoria Pública do estado de Minas Gerais (DPMG); Ministério Público Federal
(MPF). Como compromissária, o acordo contou com presença da Vale S.A., proprietária da
barragem rompida em Brumadinho que causou o desastre (MINAS GERAIS, 2021, p. 3).
O desastre atingiu cerca de 19 (dezenove) municípios ao longo do curso do rio
Paraopeba. Na sequência de sua ocorrência, foi ajuizada uma Ação Civil Pública (ACP) pelo
Ministério Público do estado de Minas Gerais (MPMG) perante a 6.ª Vara da Fazenda Pública
Estadual e Autarquias de Belo Horizonte. Foi prevista a contratação de Assessorias Técnicas
Independentes (ATI) para todos os territórios98 (MINAS GERAIS, 2019).
98
Para a contratação de ATI, os municípios foram agrupados em regiões. As assessorias foram escolhidas, por
meio de edital público, pelas Comissões de Pessoas Atingidas de cada município. Na Região 1, formada pelo
município de Brumadinho, foi escolhida a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), que
também foi eleita pelas comunidades atingidas da Região 2, que compreende os municípios de Betim, Mário
Campos, São Joaquim de Bicas, Juatuba e Igarapé. O Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por
Barragens (Nacab) foi escolhido para prestar assessoria técnica independente à população atingida nos
municípios de Esmeraldas, Florestal, Pará de Minas, São José da Varginha, Fortuna de Minas, Papagaios,
Maravilhas, Paraopeba, Pequi e Caetanópolis. O Instituto Guaicuy foi escolhido pelas Regiões 4 (municípios de
Pompéu e Curvelo) e 5 (demais municípios banhados pelo lago da Usina Hidrelétrica de Três Marias: São
208
Como se vê no conjunto de órgãos do estado de Minas Gerais que constam como
compromitentes, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), responsável pelas
políticas de direitos humanos e pelas minorias no Estado, foi excluída do processo. Também
foram excluídos das tratativas os municípios atingidos, as Comissões de Atingidos constituídas
no processo de escolha das ATI e as organizações da sociedade civil.
Muito embora já tenham sido identificados povos e comunidades tradicionais na bacia
do Paraopeba, como as comunidades quilombolas de Sapé, Ribeirão, Marinhos e Rodrigues,
em Brumadinho, e os povos e comunidades tradicionais de religião ancestral de matriz africana
(PCTRAMA), cujo Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada já foi publicado
(PROTOCOLO..., 2020), todos eles foram deixados de lado no processo de mediação
conduzido pelo TJMG.
Por intermédio das ATI, as Comissões de Atingidos do vale do Paraopeba divulgaram,
em 7 de dezembro de 2020, um Manifesto (ASSOCIAÇÃO ESTADUAL DE DEFESA
AMBIENTAL E SOCIAL; NÚCLEO DE ASSESSORIA ÀS COMUNIDADES ATINGIDAS
POR BARRAGENS; INSTITUTO GUAICUY, 2020), no qual colocam como principal
condição para a validade de qualquer acordo o respeito à participação nos termos da Convenção
n.º 169 da OIT, bem como a transparência, uma vez que as sessões de discussão sobre o acordo
foram realizadas sob segredo de justiça (ASSOCIAÇÃO ESTADUAL DE DEFESA
AMBIENTAL E SOCIAL; NÚCLEO DE ASSESSORIA ÀS COMUNIDADES ATINGIDAS
POR BARRAGENS; INSTITUTO GUAICUY, p. 3).
Dessa forma, é possível observar um contraste no tratamento dado pelo STF a duas
situações: em uma decisão, o diálogo cultural foi valorizado, tendo o Relator da ADPF 709
determinado o levantamento de detalhes da criação de uma Sala de Situação para lidar com a
pandemia de covid-19; noutro giro, a decisão sobre o desastre de Brumadinho recebeu um
tratamento diverso, com o acordo celebrado e homologado sem a presença das pessoas
atingidas, sem suas comissões representativas, sem os entes municipais, sem as organizações
da sociedade civil que defendem interesses de grupos atingidos e também sem a participação
das ATI.
Gonçalo do Abaeté, Felixlândia, Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras, Martinho Campos, Abaeté e Três
Marias).
209
5 Considerações finais
Referências
210
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Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. p. 19-45.
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SOBRE OS AUTORES
Alessandro André Leme: Doutor em Ciência Política pela UNICAMP, Professor Associado
do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais Professor do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia – PPGS/UFF, alessandro_leme@id.uff.br
Carla Daniela Leite Negócio: Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas
pela Universidade Federal da Paraíba. Analista processual do Ministério Publico Federal.
carladanielaln@gmail.com
Gabriel Haddad Teixeira: doutor em direito pela UnB, mestre em direito pelo CEUB,
professor titular no CEUB. gabrielht@me.com
João Vitor de Freitas Moreira: Doutorando, Mestre (2020) em Antropologia do Direito pela
UFMG. Graduado em Direito pela UFJF (2017), joaovitorfmoreira@gmail.com
Judith Costa Vieira: Advogada. Mestre em Direito Ambiental. Doutora em Ciências Sociais
(UNICAMP). Professora do programa de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Oeste
do Pará. judith.vieira@ufopa.edu.br
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Leonardo Custódio da Silva Júnior: Mestre em Direito pela UFMG, doutorando em Direito
pela UFMG. leocustodiomg@gmail.com
Luis Fernando Cardoso e Cardoso: Doutor em Antropologia Social pelo UFSC, Professor
permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Pará. lfcardoso@ufpa.br
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