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Estudos sobre

Amartya Sen
COMITÊ EDITORIAL

Prof. Dr. Neuro José Zambam – (IMED/RS)


Prof. Dr. Henrique Aniceto Kujawa – (IMED/RS)
Prof. Dr. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino (IMED/RS)
Prof. Dr. Márcio Ricardo Staffen (IMED/RS)
Prof. Dr. Israel Kujawa (IMED/RS)
Prof. Dr. Vinicius Borges Fortes (IMED/RS)
Prof. Dra. Leilane Grubba (IMED/RS)
Profa. Dra. Salete Oro Boff – (IMED/RS)
Prof. Dr. Fausto Santos de Morais (IMED/RS)
Prof. Dr. Jacopo Paffarini – (IMED/RS)
Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues – (IMED/RS)
Prof. Dr. Fabrício Pontin (UNILASALLE/RS)
Prof. Dr. Sandro Flöhlich (UNIVATES/RS)
Prof. Dr. Karol Magón – (CUECCLD – Cracóvia)
Profa. Dra. Karen Fritz – (UPF/RS)
Profa. Dra. Daniela de Figueiredo Ribeiro – (UNIFACEF/SP)
Prof. Dr. Daniel Rubens Cenci – (UNIJUÍ/RS)
Prof. Dr. Cláudio Machado Maia (UNOCHAPECO/SC)
Profa. Dra. Caliane Christie Oliveira de Almeida Silva (IMED/RS)
Prof. Dr. Alcindo Neckel (IMED/RS)
Profa. Dra. Grace Tiberio Cardoso (IMED/RS)
Prof. Dr. Lauro André Ribeiro (IMED/RS)
Profa. Dra. Thaísa Leal da Silva (IMED/RS)
Profa. Dra. Lorena Freitas (UFPB/PB)
Prof. Dr. Enoque Feitosa (UFPB/PB)
Profa. Dra. Alina Celi Frugoni (Universidade de La Empresa - UDE/UY)
Prof. Dr. Marcos Miné Vanzella (UNISAL/SP)
Prof. Dr. Ricardo George de Araújo Silva (UEVA/CE)
Profa. Dra. Graciela Tonon (Universidade de Palermo/AR)
Profa. Dra. Izete Bagolin (PUC/RS)
Estudos sobre
Amartya Sen
Volume 8

Escolhas Sociais, Políticas Públicas e Desenvolvimento

Organizadores:
Neuro José Zambam
Henrique Aniceto Kujawa
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

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estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


ZAMBAM, Neuro José; KUJAWA, Henrique Aniceto (Orgs.)

Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8: Escolhas Sociais, Políticas Públicas e Desenvolvimento [recurso eletrônico] / Neuro
José Zambam; Henrique Aniceto Kujawa (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.

340 p.

ISBN - 978-65-5917-005-0
DOI - 10.22350/9786559170050

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Direito, 2. Direitos fundamentais, 3. Estado, 4. Jurisdição. 5. Filosofia do direito I. Título. II. Série

CDD: 340
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito 340
Sumário

Apresentação .............................................................................................................11
Neuro José Zambam
Henrique Kujawa

1 ................................................................................................................................ 14
Amartya Sen: abordagem introdutória sobre escolhas coletivas e sociais
Neuro José Zambam
Janine Taís Homem Echevarria Borba

2 ............................................................................................................................... 28
The problem of minimal wage in Poland on the background of other european legal
systems in the context of Amartya Sen
Karol Ryszkowski

3 ............................................................................................................................... 42
Vacinas e escolha social: uma perspectiva pela teoria das titularidades
Fabrício Pontin

4............................................................................................................................... 58
Espacio natural, capacidades y política social
Belinha Herrera
Diego Hernandez

5 ................................................................................................................................ 75
Desarrollo sostenible y enfoque de las capacidades desde una perspectiva de género:
Contribuciones de las teorías de Amartya Sen y Martha C. Nussbaum
Alina Celi Frugoni

6............................................................................................................................... 92
A segregação espacial como limitador de desenvolvimento na perspectiva de Amartya
Sen: estudo de caso de Passo Fundo/RS – Brasil
Pricila Spagnollo
Sandrini Birk Belo
Henrique Kujawa
Caliane Almeida

7 ...............................................................................................................................113
A ausência de proteção aos trabalhadores que prestam serviços por meio de
plataformas e a necessidade de mudanças estruturais na proteção social
Nelson Martins da Silva Neto
Zélia Luiza Pierdoná

8 ............................................................................................................................. 130
La satisfaccion con la democracia: Revisando el concepto desde la propuesta de
Amartya Sen
Graciela Tonon

9.............................................................................................................................. 139
Movimentos migratórios e a proteção humanitária migratória: um olhar necessário
para a proteção da condição de agente dos migrantes
Karoline Izaton
José Carlos Kraemer Bortoloti

10 ............................................................................................................................ 162
Amartya Sen: economia e desigualdade
Luana Paula Lucca
Tatiana Aparecida Pedro Knack

11 ............................................................................................................................. 176
Amartya Sen e a escolha social
Sandro Fröhlich

12 ............................................................................................................................ 198
Pensar a justiça social e o desenvolvimento no contexto latino americano
Anna Paula Bagetti Zeifert
Vitória Agnoletto
Anna Júlia Bandeira Ceccato

13 ............................................................................................................................ 214
Educação e justiça social como instrumentos para a promoção da sustentabilidade
Fernanda Gewehr de Oliveira
Cleusa Maria Rossini
Daniel Rubens Cenci
14 ............................................................................................................................ 227
Tribunais de contas como ferramenta informacional para o aperfeiçoamento das
escolhas sociais em Amartya Sen
Francisco Clayton Brito Júnior
André Studart Leitão
Talita Cavalcante Timbó

15 ............................................................................................................................ 241
Cidadania virtual: o enfrentamento das capabilidades em tempos de pandemia
Vinícius Francisco Toazza
Leonardo Tozzo Cominetti

16 ............................................................................................................................265
A ideia de justiça: vidas que a almejam
Daniela Welter
Thami Covatti Piaia

17 ........................................................................................................................... 278
A violência escolar na perspectiva de alunos dos anos finais do ensino fundamental
de uma escola pública e suas implicações para o desenvolvimento como liberdade
Livia Aquino Alves
Daniela de Figueiredo Ribeiro

18 ........................................................................................................................... 299
Os dados pessoais e Amartya Sen: a correlação entre o livre desenvolvimento da
personalidade e as liberdades substantivas
Salete Oro Boff
Wellinton Silva Gnoatto

19 .............................................................................................................................311
Accountability e transparência a partir da Lei de Acesso à Informação: contribuições
de Amartya Sen
Dionis Janner Leal

20............................................................................................................................ 325
Liberdade, desenvolvimento e os fundamentos da justiça: O encarceramento como
uma política utilitarista do Estado brasileiro
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa
Thaynná Batista de Almeida
Lorena de Melo Freitas
Apresentação

Neuro José Zambam


Henrique Kujawa

O Centro Brasileiro de Pesquisas sobre a Teoria da Justiça de Amartya


Sen, vinculado aos Programas de Pós-Graduação de Direito (PPGD) e de
Arquitetura e Urbanismo (PPGArq) da Faculdade Meridional de Passo
Fundo – IMED - realizou em 2020 o seu IV Seminário Internacional sobre
a Teoria da Justiça de Amartya Sen com o tema: Escolhas sociais, políticas
públicas e desenvolvimento em Amartya Sen.
O atual período histórico, considerando os debates em torno da de-
mocracia, das desigualdades e da relação entre o Estado, o mercado, as
instituições e a cidadania em geral demanda uma abordagem que con-
grega diferentes pesquisas e visões de mundo a fim de construir
referências de análise social, avaliação de políticas públicas e das práticas
da democracia. A teoria da justiça de Amartya Sen é reconhecida pela sua
relevância em pesquisas sobre essa temática e possui expressiva influência
em diversos ambientes, por meio de pesquisa empíricas e diálogos com
outras formas de pensar e atuar.
No atual contexto histórico as preocupações voltam-se para o futuro
da democracia, as problemáticas ambientais, as escolhas sociais e a meto-
dologia de avaliação das políticas públicas. Por isso a escolha do tema do
IV Seminário Internacional “Escolhas sociais, políticas públicas e desen-
volvimento em Amartya Sen” constituindo-se num espaço de debates
relevantes em torno destas abordagens e suas repercussões.
O evento assumiu, nesta edição, a dinâmica de temas geradores e me-
sas redondas simultâneas permitindo que os participantes escolhessem os
12 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

assuntos de maior interesse e, principalmente, a condição de maior apro-


fundamento das discussões.
O primeiro tema “Abordagem sobre categorias do pensamento de
Amartya Sen, contou com as mesas redonda “Escolhas Sociais” e “Desen-
volvimento e Políticas Públicas”. O segundo tema “Abordagem sobre
democracia e políticas públicas na América Latina em Amartya Sen” teve
as mesas redondas “Meio Ambiente e Desenvolvimento” e “Democracia,
Políticas Públicas e Justiça”. O Seminário contou também com uma confe-
rência com o tema “Justiça social e Contribuições de Amartya Sen na
atualidade” e a apresentação de trabalhos acadêmicos.
Outro aspecto importante do evento foi a ampliação da participação
de Instituições Internacionais, são elas: Cambridge University - UK, Pa-
lermo- Argentina, Universidade De La Empresa-Uruguai, Università degli
Studi Mediterranea di Reggio Calabria- Itália, Universidad Central de Ve-
nezuela, Uniwersytet Ekonomiczny w Krakowie- Polônia, Facultad de
Derecho Universidad de la Costa, Colombia Extensión Villavicencio.
A presente obra contém textos escritos pelos painelistas e outros se-
lecionados entre os trabalhos apresentados no seminário, abordando
diferentes temáticas analisadas a partir da perspectiva de Amartya Sen. Os
demais textos apresentados no evento foram publicados em formato de
anais. A intencionalidade do Centro Brasileiro de Pesquisas sobre a Teoria
da Justiça de Amartya Sen em publicar anualmente livros e anais vincula-
dos ao seminário é apresentar para o público as produções acadêmicas que
utilizam a teoria de Sen e com isso incentivar novas reflexões sobre os
temas que afligem a humanidade.
Aproveitamos o espaço para agradecer a todos os integrantes do Cen-
tro Brasileiro de Pesquisas sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen que
contribuem para produção e divulgação de conhecimento. Agradecer tam-
bém aos pesquisadores e instituições nacionais e internacionais parceiras
do seminário e demais eventos produzidos pelo nosso Centro. Por fim
agradecer a IMED, que por meio dos Programas de Pós Graduação em Di-
reito e Arquitetura ofereceu seu decisivo apoio institucional, incentiva as
Neuro José Zambam; Henrique Kujawa | 13

pesquisas do Centro Brasileiro de Pesquisas sobre a Teoria da Justiça de


Amartya Sen e contribui para a realização dos eventos.
Boa leitura
1

Amartya Sen:
abordagem introdutória sobre escolhas coletivas e sociais

Neuro José Zambam 1


Janine Taís Homem Echevarria Borba 2

1 Introdução

Esta abordagem tem o objetivo de apresentar a relevância do pensa-


mento de Amartya Sen na atualidade e, especificamente, um panorama
introdutório sobre a abordagem das escolhas sociais e coletivas. As deman-
das de justiça e as deficiências apresentadas pelas estratégias de decisão
em diferentes níveis da organização social demandam a necessidade de
critérios e metodologias que contemplem a transparência das decisões, o
debate público, a escassez de recursos e a amplitude de necessidades, es-
pecialmente em contextos de forte crise como deste período.
A lucidez e o amplo reconhecimento da obra Sen oferecem referên-
cias seguras para líderes, governantes e outros agentes com

1
Pós-doutor em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Doutor em Filosofia pela PUCRS.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional - IMED – Mestrado. Professor do
Curso de Direito (graduação e especialização) da Faculdade Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo
de Trabalho, Ética e cidadania da ANPOF (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Filosofia). Pes-
quisador da Faculdade Meridional. Líder do Grupo de Estudo, Multiculturalismo e pluralismo jurídico. Coordenador
do Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen: interfaces com direito, políticas de desen-
volvimento e democracia. E-mail: neuro.zambam@imed.edu.br; neurojose@hotmail.com.
2
Mestre em Direito, Democracia e Sustentabilidade – IMED; Graduada em Direito pela IMED. Pós-graduada em
Psicomotricidade Relacional pelo La Salle/Canoas. Pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela
FEEVALE/Novo Hamburgo.. Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade IMED. Beneficiária da
Taxa PROSUP/CAPES vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – IMED - 2018-2020;
Membro do Grupo de Estudo – Direitos Culturais e Pluralismo Jurídico. E-mail: janinehomemborba@gmail.com
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 15

responsabilidade pessoal, política e social tomarem decisões equitativas,


qualitativas e pautadas pela busca do bem comum.
O amplo espectro da metodologia de análise contempla a seleção de
obras centrais do autor em diálogo com comentadores. Esta é uma apre-
sentação didática para desafiar o aprofundamento desta temática para
iniciantes na pesquisa e preocupados com critérios de decisão justos.
A arquitetura de apresentação inicia com o destaque sobre a impor-
tância do conhecimento, debate e aprofundamento da Teoria da Justiça de
Amartya Sen no atual período. A profissão de fé na democracia com o re-
conhecimento universal das suas origens acompanhada da necessidade de
renovação das suas estruturas de participação, decisão e exercício do po-
der, clama pela abordagem do grave drama das desigualdades injustas que
a ameaçam cotidianamente. Por sua vez, a superação fortalece a sua legi-
timidade. Prioriza-se, a necessidade de impaciência e o exercício da
argumentação pública como estratégias básicas de prática democrática.
Em seguida apresentam-se referências para uma apropriação inicial
dos temas que envolvem as escolhas coletivas e sociais. Esta é uma dimen-
são cara para as questões da atualidade porque compreendem a atuação
lúcida, segura, tanto em nível social quanto jurídico, especialmente, dos
líderes e governantes em vista do bem de todos.
A pluralidade que caracteriza o cotidiano das sociedades, sejam de-
mocráticas ou não, é um fato que constitui a sua identidade e dinamismo.
A globalização econômica e tecnológica evidenciou as potencialidades, re-
alizações, assim como, os seus limites e desigualdades que impedem o
equilíbrio social e a relação entre os povos.
A realização do IV Seminário Internacional sobre a Teoria da Justiça
de Amartya Sen com o tema central “Escolhas Sociais, Políticas Públicas e
Desenvolvimento em Amartya Sen”, trouxe importantes contribuições
para tratarmos dessas temáticas como uma opção pessoal, estratégia de
pesquisa e disposição para contribuir na construção do bem comum.
A integração de temas caros à tradição como as origens da democra-
cia, formas de participação, estratégias de decisão e a sua consequente
16 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

evolução, aliados às problemáticas evidenciadas na atualidade precisam


inspirar o exercício da cidadania com forte motivação ancorada na busca
pela justiça. Os recursos disponíveis, tanto jurídicos quanto sociais ou tec-
nológicos, não podem ofuscar o valor das pessoas e a sua, respectiva,
dignidade. Esta é uma afirmação cara que precisa ser percebida, promo-
vida e ampliada no cotidiano. A percepção das desigualdades e deficiências
nesse campo precisa impulsionar a busca de soluções.

2 Amartya Sen: Desafios contemporâneos da democracia

A dinâmica da democracia compreende a divergência, a negociação e


a tensão como partes integrantes da expressão da vontade dos cidadãos e
das divergências existentes no seu interior. Essa convicção foi detalhada
por John Rawls em sua obra cujas influências são amplamente reconheci-
das no debate contemporâneo pela tradição jurídica e filosófica. As
concepções de mundo de ordem filosófica, religiosa e moral são irreconci-
liáveis, porém integram a rotina das sociedades3. O acelerado processo de
globalização econômica evidenciou com maior precisão esse fenômeno, as-
sim como as desigualdades injustas que corrompem o tecido social,
especialmente as desigualdades econômicas que estão na origem da maior
parte dos problemas da atualidade.
Em recente entrevista à Revista New Yorker, Sen destaca os medos e
esperanças que pairam sobre a democracia indiana, consequências, entre
outras deficiências, da ausência de percepção com os acontecimentos do
cotidiano e com o exercício da argumentação pública. Tais fraquezas são
representativas das dificuldades, ameaças e constrangimentos porque pas-
sam as demais democracias no mundo, inclusive no Brasil. Compreender
estes acontecimentos, a passividade da população, as demandas jurídicas,
a necessidade de instituições renovas, a necessidade de novas estratégias
de participação é salutar para o cidadão.

3
Uma visão mais completa sobre essa temático pode ser encontrada em: ZAMBAM, Neuro José; OLIVEIRA, Ricardo
de Almeida de. O LIBERALISMO POLÍTICO DE JOHN RAWLS: a missão de educar a juventude para a democracia no
Séc. XXI. Quaestio Iuris. Vol. 10, nº. 03, Rio de Janeiro, 2017. pp. 1500-1516 DOI: 10.12957/rqi.2017.25623.
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 17

2.1 O cuidado do cotidiano

O evento da democracia é um fato histórico relevante e extraordiná-


rio, a estruturação do seu funcionamento é posterior, contudo, o acontecer
desse sistema de organização social, política e institucional depende de um
amplo conjunto de fatores, dos quais se pode destacar: eleições periódicas,
alternância no poder, participação ativa, atualizadas instituições, arquite-
tura jurídica e opção da sociedade como um todo por esta forma de
organização social. Do que se pode afirmar que a democracia acontece no
cotidiano, ou seja, inserida nos espaços geográficos, nas culturas e sendo
percebida por ocasião da solução dos problemas que assolam as pessoas.
O cuidado com os valores, princípios e a organização democrática em
geral é responsabilidade de todos. Entretanto, esta é uma ideia geral, ideal
e pode ofuscar aquelas dimensões e ações que sustentam um sistema, via-
bilizam o seu funcionamento e aprimora as suas estruturas. Essa é uma
variável por meio da qual se pode compreender as deficiências da atuali-
dade e foi sintetizada por Fidel Valdez Ramis, citado por Sen (2000, p.
183): “O desafio para os povos de todo o mundo não é apenas substituir
regimes autoritários por democráticos. É, além disso, fazer a democracia
funcionar para as pessoas comuns”. (grifo nosso).
Essa é uma expressão com grave impacto simbólico e revela os peri-
gos de a democracia tornar-se insensível aos acontecimentos da realidade
fechando-se nas estruturas de poder, nas demandas da burocracia, na ma-
nutenção de grupos ou partidos no poder, na perseguição das oposições,
dentre outras.
O esquecimento de dimensões fundamentais para o funcionamento
da democracia, normalmente distantes das alçadas daqueles que exercem
o poder, gera o que se pode chamar de constrangimento das pessoas e
manipulação de parcelas expressivas da população por meio de recursos
sutis, rotineiros e, outros, poderosos justamente pela ausência de prática
cotidiana da democracia. Em recente entrevista, Sen aborda o declínio da
18 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

democracia na Índia e aponta para o esquecimento da sua constituição


multicultural e de práticas arbitrárias alimentadas por pequenas ações
que ao longo dos anos tornam-se rotineiras, para, finalmente, justificarem
graves violências com amplo apoio da maioria dos habitantes, não raras
vezes, das próprias vítimas4. Uma percepção mais apurada retrata a im-
portância da argumentação pública como prática rotineira sobre temas de
interesse comum e a, embora não mencionada explicitamente, necessi-
dade de formas de participação atualizadas que contemplem desde as
minorias e localidades distantes.
As falhas nos sistemas de participação, aqui destaca-se a caducidade
do critério de maioria como parâmetro único para tomada de decisões,
mesmo as eleitorais, acompanhado da não renovação das instituições e das
formas de transparência, normalmente atoladas em burocracias, está na
origem das crises da atualidade. Esse coro foi a tempo à bastante tempo
alertado por Sen (2000, p. 182): “É preciso ver a democracia como cria-
dora de um conjunto de oportunidades, e o usos dessas oportunidades
requerem uma análise diferente, que aborde a prática da democracia e di-
reitos políticos”. O grifo de Sen, novamente simbólico, é representativo do
atual momento.
Importa destacar, nessa abordagem centrada na necessidade de cui-
dado, atenção e sensibilidade com a prática da democracia no cotidiano
das sociedades, a conexão entre os valores morais ou políticos de uma co-
munidade, as estruturas de organização e funcionamento das instituições,
a forma como os líderes exercem o poder e as consequências para toda a
população. Vale destacar a afirmação de Sen sobre uma das mais graves
ameaças e humilhações à dignidade humana, a fome, a fim de perceber as
conexões decisivas e necessárias para o bom funcionamento da democra-
cia: “[...] nunca houve uma grande ocorrência de fome coletiva em uma
democracia com eleições regulares, partidos de oposição, liberdade básica

4
Para uma visão mais ampla dessa problemática na Índia dispomos do acesso à matéria jornalística: CHOTTINER,
Issac. Esperanças e medos de Amartya Sen pela democracia indiana. Entrevista publicada na Revista New Yorker em
06 out. 2019. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/the-new-yorker-interview/amartya-sens-hopes-
and-fears-for-indian-democracy. Acesso em 20 jul. 2020.
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 19

de expressão e uma imprensa relativamente livre (mesmo em países muito


pobres e em situação alimentar seriamente adversa). (Sen, 2015, p. 376).
A formação da rotina democrática é essencial para o desenvolvi-
mento, a tolerância, a superação das injustiças evitáveis e de outras formas
de exclusão, tanto quanto para a sua estabilidade e legitimidade.

2.2 A argumentação pública

O debate público e as demais formas de participação, além de estra-


tégias de expressão da vontade, são meios fundamentais para o
esclarecimento dos acontecimentos sociais,assim como, de conhecimento
das deficiências que precisam ser corrigidas. Por isso, “um vigoroso exer-
cício de argumentação pública pode desempenhar um papel importante
tanto para expandir a compreensão da população como para ampliar a
prática política esclarecida” (SEN, 2015, p. 282).
Essa forma de conhecimento, esclarecimento e atuação é possível e
necessária nas democracias, visto que, conforme destacado, contempla a
pluralidade de atores, concepções de mundo e interesses próprio da dinâ-
mica social. É nesse contexto que são evidenciados os aspectos
construtivos de uma sociedade e a importância da ampliação e renovação
dos aspectos constitutivos, dos quais destacam-se as formas de participa-
ção e decisão.
Segundo Sen (2011), existe uma íntima relação entre as questões cru-
ciais das relações humanas e a organização com a rotina e o
funcionamento da democracia, especialmente as referências para a justiça
social. Disso decorre o papel central da argumentação pública ampla-
mente evidenciada no decorrer das obras e simbolizada na expressão
“governo por meio do debate. Ou seja, aquelas dimensões que são de inte-
resse público precisam fazer parte do conhecimento e dos temas do
público.
O valor universal da democracia expressa no exercício da argumen-
tação pública a sua face brilhante porque é possível a todos. Entretanto, as
20 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

desigualdades e outras exclusões afastam significativamente do público te-


mas relevantes que poderiam fazer grande diferença no cotidiano,
particularmente, o necessário hábito político da impaciência. Decorre
disso, as diversas restrições à democracia, mesmo no seu funcionamento
formal, com graves consequências para as questões de justiça. Sen (2015,
p. 285) assevera: “A política tente então a ser dominada por uma parcela
relativamente pequena da população, cujas vidas e demandas são discuti-
das e retratadas com muito mais frequência nos meios de comunicação
públicos”.
As deficiências da rotina democrática, especialmente, relacionadas ao
acesso à informação com qualidade, à correção das desigualdades injustas
e à eficácia da política demonstram o necessário compromisso com a atu-
alização dos seus mecanismos de organização, funcionamento,
participação e decisão. Afirma-se, em consonância com Sen (2019): “A de-
mocracia não é um remédio automático para nada. Não é como o quinino
para matar a malária. A democracia é uma forma de capacitação”. (2019).
A importância do tratamento destes temas no atual contexto repre-
senta, explicitamente: a) a grave ameaça provenientes do aumento das
desigualdades; b) da necessidade de renovação da democracia em suas ca-
racterísticas fundamentais; c) da importância que a democracia faça parte
da rotina dos membros da sociedade por meio da argumentação pública;
e, por fim, d) a extraordinária contribuição de Sen para a compreensão da
realidade atual e as diferentes formas de esclarecimento e participação.

3 Tópicos da teoria das escolhas coletivas e sociais

O tema da teoria das escolhas sociais é muito caro a Sen, seus estudos
nessa área de conhecimento foram motivadas pela obra de Arrow, “Social
Choice and Individual Values”, de 1951. Desde esse período Sen adquiriu
um gosto pela temática e não mais a abandonou. Para Sen a teoria da es-
colha social, pode estar relacionada diretamente com os aspectos racionais,
o que para alguns autores, os quais ele cita, é algo que não merece atenção.
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 21

O que se verá neste item são as razões explicitadas por Sen para refutar as
teorias que são céticas em relação a uma visão racionalista da escolha so-
cial.
Tendo como objetivo empregar estratégias baseadas na razão para
fomentar as mudanças sociais, Sen analisa as três principais vertentes que
criticam essa ideia de que as mudanças sociais possam ser promovidas ex-
clusivamente por escolhas racionais.

3.1 O dever e a responsabilidade das escolhas

Os objetivos da teoria de justiça de Sen contempla abordagens sobre


as deficiências nos campos do acesso à justiça, ao desenvolvimento e para
o exercício concreto da liberdade, especificamente evidenciado pelas desi-
gualdades injustas. A preocupação central é com as injustiças que
prejudicam a convivência humana e a equidade social. Por sua vez, a cons-
trução de soluções compreende os condições efetivas para o exercício da
liberdade, ou seja, os indivíduos precisam poder fazer as escolhas que con-
sideram importantes para a sua vida, integração social e participação das
decisões de forma autônoma. Poder escolher significa ser agente de suas
opções. Esta é a identidade primordial do ser humano, conforme destaca:
“A nossa vida está cercada por escolhas sociais de vários tipos” (Sen, 2018,
p. 15).
O contexto marcado por desigualdades de diferentes tipos exige que
a tomada de decisão dos líderes, profissionais, governantes e outros, desde
as mais elementares às de maior repercussão conjuguem interesses de
pessoas, instituições, grupos, organizações, partidos, personalidades e ou-
tros. Por isso, “A teoria da escolha social é relevante - de maneiras
diferentes - para todos os assuntos altamente práticos, tal como é para as
intrigas acadêmicas ou relacionadas com as decisões de grupo” (Sen, 2018,
p. 17).
22 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

É nesse ambiente de complexidade das sociedades democráticas (ou


não) que os critérios para as tomadas de decisão adquirem especial impor-
tância. Os períodos eleitorais recentes demonstraram a insuficiência do
critério da maioria por diversas razões, desde a manipulação por interes-
ses auto interessados ou de grupos e instituições até o poder nefasto da
mentira como critério absoluto de busca pelo poder que pode ser simboli-
zado pelo agravante fenômeno das Fake News5.
As escolhas, portanto, são motivadas por diferentes razões. Sen con-
corda que as escolhas baseadas na razão podem contribuir para a
promoção de sociedades melhores. Nesse sentido destaca três linhas dis-
tintas para explicar que as escolhas baseadas na razão oferecem condições
apropriadas para viabilizar os objetivos para a edificação de sociedades
aceitáveis: i) diante da diversidade de preferências e valores das pessoas,
não é possível contar com uma estrutura coerente para a avaliação social
baseada na razão; ii) essa linha crítica afirma que todos os eventos impor-
tantes da história foram desencadeados por ações não intencionais,
portanto a ideia de que se possa, por meio ações racionais, ter o que ten-
cionamos ter, uma vez que os objetivos baseados na razão de alcançar o
desejado seriam inúteis; iii) a terceira vertente questiona se os modos com-
portamentais das pessoas podem ir além de um auto interesse definido,
ou seja, um progresso social estaria estreitamente ligado aos interesses
pessoais.
A teoria da escolha social conjuga uma diversificada gama de infor-
mações, orientações e motivações que precisam ser contempladas
admitindo, simultaneamente, a complexidade social, as inclinações indivi-
duais, a formação cultural, os recursos existentes conjugados às
necessidades e aos recursos disponíveis, dentre outros. A arquitetura so-
cial supõe um referencial lógico, matemático e reflexivo relacionado com

5
Para uma visão mais abrangente ver: ZAMBAM, Neuro Jose; Baldissera, Wellington Antônio. Fake News e Demo-
cracia: uma análise a partir dos julgados do Tribunal Superior Eleitoral em 2018 e da visão de Amartya Sen. Revista
Jurídica Cesumar. 2019. Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1sZLqD7jHhkD3bVZw
Xs1ddDtHb9Rq56ox/edit. Acesso em 19 nov. 2020.
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 23

a argumentação do cotidiano, dos líderes, das personalidades e outros ato-


res que contribuem para a sociedade.
Essa conjuntura contempla a afirmação de Sen (2018, p. 43): “A teo-
ria da escolha social é uma disciplina muito vasta que cobre uma variedade
de questões distintas às quais pode ser vantajoso prestar atenção como
ilustrações do seu tema”, nesse passo pode-se depreender que a teoria da
escolha social pode ser tão extensa quanto relevante, tendo em vista a
abrangência da teoria.

3.2 Mudanças Premeditadas e Consequências impremeditadas

A primeira vertente analisada por Sen, discute a impossibilidade de


se ter uma escolha social a partir de uma avaliação com base nas preferên-
cias individuais. Para validar essa linha de ceticismo, o “teorema da
impossibilidade” de Kenneth Arrow, é empregado como argumento pro-
batório dessa teoria (Sen, 2010, p. 318).
O teorema da impossibilidade de Kenneth Arrow6, demonstra que
uma escolha baseada em preferências, leva a inconsistências, já que se ba-
seia em apenas uma base informacional, ocorre que este teorema aponta
para o fato de que qualquer meio de tomada de decisão que dependa de
uma mesma base informacional, ou que considere apenas uma classe de
informações serão inadequadas.
Salienta-se que para que haja a possibilidade de usar uma base infor-
macional como meio de decisão para o que seria melhor para uma
sociedade, estaria limitada e não alcançaria seu objetivo que é a justiça so-
cial, por isso neste instrumento devem estar inseridos diferentes

6
Paradoxo do voto é o exemplo dado por Sen para explicar o referido teorema. “Se uma pessoa 1 prefere a opção x à
opção y e prefere y a z, enquanto a pessoa 2 prefere y a z e prefere z a x, e a pessoa 3 prefere z a x e prefere x a y,
sabemos evidentemente que a regra da maioria levará a inconsistências. Em particular, x tem a maioria sobre y, que
por sua vez tem maioria sobre z, o qual tem maioria sobre x.”
24 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

elementos preferenciais para que seja adequada, do contrário, é de se con-


cordar em uma impossibilidade de empregar a base informacional7 como
meio de promover sociedades melhores. Conforme Sen,

[...]uma base informacional composta apenas nos rankings de preferência das


pessoas , sem atentar para quem é mais pobre, para qual é o valor desse ganho
(ou perda) ou para qualquer outra informação [...]. Assim, a base informacio-
nal para essa classe de regras [...] é extremamente limitada e claramente
inadequada para chegar a julgamentos bem informados sobre problemas
econômicos de bem-estar. Isso não ocorre principalmente porque ela conduz
a inconsistência [...], mas porque não podemos realmente fazer juízos sociais
com tão poucas informações. (SEN, 2010, p. 321)

Importa destacar que as decisões sociais relacionadas a aspectos


econômicos considera inúmeros outros tipos de informação, por isso que
para um juízo social a diversidade de informação é imprescindível. Para
Sen, o teorema da impossibilidade, deve ser visto sob outro ângulo, já que
o teorema apresenta um panorama do que é ou não possível vai depender
das informações que são consideradas nas tomadas de decisão.
Com isso, Sen defende que a ampliação de informações cria um am-
biente possível para uma avaliação social e econômica coerente e defende
que a interação social, por meio do debate público tem implicações na for-
mação de preferências sociais (Sen, 2010, p. 322-323).
A segunda vertente apontada por Sen, consiste em questionar a ideia
de que traçar um objetivo baseado na razão para alcançar o que se deseja
é inútil, pois, as maiores conquistas, ou feitos da história não foram pre-
meditadas. Ocorre que Sen, apregoa que não há justificativas para que não
se tente, por meio de premeditações, mudanças sociais. Outrossim, Sen,
ainda destaca a importância das consequências impremeditadas ocorridas
na história, ou seja, há possibilidade de diálogo entre mudanças organiza-
das e planejadas terem consequências positivas impremeditadas, no

7
Para uma compreensão mais ampla sobre a relevância das bases informacionais sugere-se: ZAMBAM, Neuro José.
Bases informacionais transparentes: vitalidade da democracia e da justiça social. Revista Novos Estudos Jurídicos
- Eletrônica, Vol. 22 - n. 2 - mai-ago 2017. Disponível em: https://www6.univali.br/seer/index.php/nej/arti-
cle/viewFile/10985/pdf. Acesso em 20 nov. 2020.
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 25

entanto, não se pode deixar à própria sorte aspectos sociais relevantes para
a promoção de sociedades melhores (Sen, 2010, 324-327).
A tese de Adam Smith, de que o indivíduo é movido por uma “mão
invisível”, que faz com que ele chegue a um fim que não era sua intenção
inicial, é a que desencadeia a ideia de que nas relações econômicas cada
ator vai estar movido por interesses próprios, carreado por consequências
nem sempre desejáveis, mas que de certa maneira foi positivo. Sen dis-
corre que “o mais importante não é que algumas consequências sejam
impremeditadas, mas que a análise causal pode tornar os efeitos impre-
meditados razoavelmente previsíveis.” (SEN, 2010, p. 328).
Considerando essa perspectiva, pode-se refutar o fato de que a tese
das consequências impremeditadas seja contrária a ideia de uma reforma
racionalista, pois as ações sociais e econômicas podem prever alguns re-
sultados, o que leva ao planejamento tendo em conta aspectos importantes
que podem ocorrer frente às consequências impremeditadas.
Na terceira vertente, tem-se o papel dos valores sociais, relacionados
com o auto interesse, ou o bem-estar pessoal. A satisfação pessoal, é um
dos objetivos praticamente de todos os seres humanos, pois mesmo aquele
que diz que faz para colaborar com os demais, está de certa forma alimen-
tando sua satisfação pessoal, mesmo que o ganho não esteja mensurado
em valores econômicos, mas em valores morais.
Por isso, que o interesse pessoal é um meio motivacional para dife-
rentes ações em benefício próprio e alheio e um alerta que Sen faz a
respeito disso é acerca das organizações que têm interesse sociais e econô-
micos não levam em consideração esse aspecto pessoal e acabam não
alcançando o objetivo almejado.

4 Considerações finais

A relevância do pensamento de Sen reflete a sua capacidade de abor-


dar de forma profunda, contextualizada e simples os temas mais
importantes da atualidade e apresentar caminhos de solução possíveis de
26 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

serem efetivados. Por exemplo, a criação do IDH representa uma métrica


alternativa e eficaz de avaliação da justiça. Contudo, as referências que
perpassam esta análise indicam o caminho para as soluções de um grave
drama da humanidade, qual seja, as desigualdades. Posteriormente está
nas premiações, publicações e convites.
A conjugação entre autoridade moral, reconhecimento acadêmico e
respeitabilidade política faz de Sen uma personalidade no seu sentido ge-
nuíno.
Os temas abordados nesta exposição demonstram o necessário com-
promisso dos indivíduos com a democracia em suas variadas dimensões a
fim de torná-la uma convicção moral e política. Com igual importância a
teoria da escolha social revela a complexidade que envolve a necessidade
de tomar decisões e as suas respectivas motivações.
A concretização da equidade social está intimamente relacionada com
essas dimensões chama para a responsabilidade política por meio do exer-
cício da liberdade, da participação e da argumentação pública cuja
efervescência retrata a maturidade social e o dinamismo da democracia
com suas diferenças e forma de cooperação.

Referências

CHOTTINER, Issac. Esperanças e medos de Amartya Sen pela democracia indiana. Entre-
vista publicada na Revista New Yorker em 06 out. 2019. Disponível em:
https://www.newyorker.com/news/the-new-yorker-interview/amartya-sens-ho-
pes-and-fears-for-indian-democracy. Acesso em 20 jul. 2020.

DREZE, Jean; SEN, Amartya. Glória Incerta: A Índia e suas contradições. Tradução de Ri-
cardo Doninelli Mendes e Laila Coutinho. São Paulo: Companhia das Letras: 2015.

SEN, Amartya. Escolha coletiva e bem-estar social.Tradução Ana Nereu Reis. Coimbra:
Almedina, 2018.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Men-
des. São Paulo, Companhia das letras, 2011.
Neuro José Zambam; Janine Taís Homem Echevarria Borba | 27

SEN, AMARTYA. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta.


São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SEN, AMARTYA. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta.


São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

ZAMBAM, Neuro José. Bases informacionais transparentes: vitalidade da democracia e da


justiça social. Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 22 - n. 2 - mai-ago
2017. Disponível em: https://www6.univali.br/seer/index.php/nej/arti-
cle/viewFile/10985/pdf. Acesso em 20 nov. 2020.

ZAMBAM, Neuro Jose; Baldissera, Wellington Antônio. Fake News e Democracia: uma aná-
lise a partir dos julgados do Tribunal Superior Eleitoral em 2018 e da visão de
Amartya Sen. Revista Jurídica Cesumar. 2019. Disponível em: https://docs.goo-
gle.com/document/d/1sZLqD7jHhkD3bVZwXs1ddDtHb9Rq56ox/edit. Acesso em 19
nov. 2020.
2

The problem of minimal wage in Poland on the


background of other european legal systems in the
context of Amartya Sen 1

Karol Ryszkowski 2

As part of the work on the assumptions of the draft budget act for
2021, the government proposed freezing wages in the public/budgetary
sector. The Lewiatan Confederation, like most of the social partners in the
Social Dialogue Council, appeals to the government to verify the initial po-
sition and increase the salaries of budgetary sector employees. The
government has proposed an average annual growth rate of wages in the
state budget sector in 2021 of 100%, which in practice means a wage fre-
eze. There is a considerable inconsistency in this position because if we
can afford to raise the minimum wage from PLN 2,600 to PLN 2,800 in
2021, the level of wages in the budget will dangerously approach the mi-
nimum wage. If during the crisis the government proposes a sharp

1
Has a postdoctoral degree in Banking Law at the Faculty of Law and Administration at the Jagiellonian University,
under the auspicies of the President of the Narodowy Bank Polski. PhD in Legal Studies – the field of Private business
law granted by the Resolution of the Council of the Faculty of Law and Administration at the Jagiellonian University
of 26th March 2018 on the basis of the doctoral dissertation entitled The procedural public policy clause in the Polish
commercial arbitration law in relation to other legal systems (C.H. Beck, Warsaw 2019), supervisor Professor Andrzej
Szumański, Ph.D., full professor of the Jagiellonian University. From 1st October 2018 to the present time Assistant
professor at the Department of Civil, Economic and International Private Law, Institute of Law, Cracow University
of Economics. Lawyer at the civil law notary office for many years. Emails: karol.ryszkowski@uek.krakow.pl ;
ryszkowskikarol@gmail.com
2
Assistant professor at the Department of Civil, Economic and International Private Law, Institute of Law, Cracow
University of Economics, Poland
Karol Ryszkowski | 29

increase in the minimum wage, the more it is worth asking for the inde-
xation of salaries in the budgetary sphere. Low wages in the budgetary
sector limit the already ineffective system of public services. The Lewiatan
Confederation proposes that the wage growth rate should reach 110%.
Wages in the budgetary sector have been inhibited for years, which wor-
sens the situation in the public services sector every year, negatively
affecting their quality and causing the outflow of the best employees. The
problem of poor quality of public services is also highlighted by the Euro-
pean Council, recommending Poland to invest in this area3.
So as we can see the behavior of the Polish authorities seems to be
the behavior of Polish authorities in the field of earnings in the public/bu-
dgetary sphere does not take into account the recommendations of the
European Union.
Social partners and the government did not agree on the minimum
wage in 2021. The Lewiatan Confederation said that: Increasing the mi-
nimum wage will increase labor costs. Too high a minimum wage will
force the least productive people out of the legal labor market. We cannot
rule out a scenario in which we are driving almost entire industries or a
significant part of the local economy out of the labor market. The alterna-
tive is to pass the higher costs on to the consumer, which will result in
high inflation. Ultimately, an increase in the universality of informal work
in the shadow economy cannot be ruled out. With the current distribution
of wages in the economy, raising the minimum wage too quickly (PLN 716
over 4 years) causes wage compression, disrupting their informational
function. A slight difference between the salary of an employee performing
the simplest work under a code contract and a clerk or a nurse demotivates
people to work in difficult occupations, increasing the risk of mass emi-
gration and negative selection. Similar effects can be expected in less
developed areas, and thus systematically lower wages. In the discussions
on the minimum wage, there is an argument that we are striving for the

3
Konfederacja Lewiatan, Pracodawcy apelują do rządu o podwyżki dla budżetówki w 2021 roku, http://konfede-
racjalewiatan.pl/aktualnosci/2020/1/pracodawcy_apeluja_do_rzadu_o_podwyzki_dla_budzetowki_w_221_roku,
24.08.2020,
30 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ratio of the minimum wage to the average in the economy at the level of
60%. The 50% proportion is already very high in the international ran-
kings4.
In this argumentation, it is seen the care of the public employees. Be-
cause their work affects the entire country, including the private sector.
The freezing of budgetary sector earnings could be caused by the si-
tuation related to the coronavirus pandemic, and in particular by aid
granted from public funds to private entrepreneurs.
To counteract the difficulties, the government prepared a plan of pu-
blic help for businesses, called the "Anti-crisis Shield" (Polish: Tarcza
antykryzysowa). The program was launched on 1 April 2020. It served to
maintain the financial safety of employees and the protection of jobs.
One of the forms was one-off benefits of circa 2000 PLN gross (80%
of monthly minimal wage) for self-employed and freelancers. This was es-
timated to affect around 2.2 million people.
Business finance measures include:
Public co-financing of employees' salaries up to 40% of the average
monthly wage, if working time has been reduced up to 20%, but no less
than working time for a half-time position.
But it should be noted that during lockdown many employees in the
private sector lost their jobs.
“The minimum wage in Polish is the lowest monthly or hourly re-
muneration that employers are legally allowed to pay their workers in
Poland. The sum is decided by the Polish government. In 2019, the Polish
government announced a sharp rise in the minimum wage from 2019's
2,250 zloty to 2,600 zloty (610,80 euro) in 2020…”5 and it was planned as
PLN 3,000 in 2021 and subsequent 10% increase per annum until 2024.

4
Konfederacja Lewiatan, Bez zgody w RDS. Lewiatan proponuje, aby płaca minimalna w 2021 roku wyniosła 2716
zł, http://konfederacjalewiatan.pl/aktualnosci/2020/1/bez_zgody_w_rds_lewiatan_proponuje_aby_placa_mini-
malna_w_221_roku_wyniosla_2716_zl, 24.08.2020,
5
Minimum wage in Poland, https://en.wikipedia.org/wiki/Minimum_wage_in_Poland, 25.08.2020,
Karol Ryszkowski | 31

Comparing the data about the minimum wage in the European coun-
tries the highest is in Switzerland (cantons of Jura and Neuchâtel) and the
lowest is in Moldova, according to Poland, my country is in the middle6.
According to the announcements of Prime Minister Mateusz Morawi-
ecki in September 2019, the minimum wage in Poland is to increase
gradually, until it reaches the level of PLN 4,000 gross on January 1, 20247.
According to this plan in 2021 will reach PLN 3000 gross, but as it was
written above this plan has changed due to the COVID-19 pandemic.
The minimum wage has its grounds in international law.
International Labour Organization on minimum wages, it has adop-
ted three conventions:

• Minimum Wage-Fixing Machinery Convention, 1928 (No. 26),


• Minimum Wage Fixing Machinery (Agriculture) Convention, 1951 (No. 99),
• Minimum Wage Fixing Convention, 1970 (No. 131),

and one recommendation - Minimum Wage Fixing Recommendation,


1970 (No. 135), Poland is the party of the Convention No. 998.
Moreover, the minimum wage has its basis in other acts of internati-
onal law.
Universal Declaration of Human Rights, The International Covenant
on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR), European Social Char-
ter.
In the justification of the International Labor Organization for intro-
ducing the minimum wage, it was stated that its purpose is:

• striving to eliminate excessive exploitation of employees,


• fight against poverty,
• ensuring an adequate standard of living,
• providing employees with equal pay for equal work,
• preventing conflicts at work,

6
List of European countries by minimum wage, https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_European_countries_by_mi-
nimum_wage, 25.08.2020,
7
Płaca minimalna, https://pl.wikipedia.org/wiki/P%C5%82aca_minimalna, 25.08.2020,
8
Płaca minimalna, https://pl.wikipedia.org/wiki/P%C5%82aca_minimalna, 25.08.2020,
32 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

• elimination of certain forms of harmful competition,


• promoting economic stability and economic and civilization development9.

Amartya Sen has proposed the concept of the Capability Approach.


“The capability approach (also referred to as the capabilities appro-
ach) is an economic theory conceived in the 1980s as an alternative
approach to welfare economics.[…] In this approach, Amartya Sen and
Martha Nussbaum bring together a range of ideas that were previously
excluded from (or inadequately formulated in) traditional approaches to
the economics of welfare. The core focus of the capability approach is on
what individuals are able to do (i.e., capable of)”10.
There is a connection between the minimum wage and the capability
approach (CA).
“Deakin and Wilkinson have tried to offer a CA defense for the mi-
nimum wage by focusing on non-distributional aspects of this law. They
argue that a minimum wage forces employers to invest in new technolo-
gies, training, skill development, and health and safety –all strategies
enhancing capabilities, which employers have no incentive to pursue
when they have the power to lower wages below their market rate. (…)
This argument is certainly logical, but it seems odd to see this as the main
(or even a major) goal of minimum wage laws…”11.
“The capability approach (CA) has been highly influential in labour
law discourse in recent years. Originally conceived by Amartya Sen, (…)
and further developed mainly by Martha Nussbaum, (…) it has led an in-
creasing number of labour law scholars to argue that the CA can be used
as a normative justification for labour laws. (…) Sen developed the CA as
a critique of Rawls’s focus on the distribution of resources in his theory of
justice. If resources are just means to an end (‘the successful execution of
a rational plan of life,’ for Rawls (…)),we have to wonder whether the same

9
Płaca minimalna, https://pl.wikipedia.org/wiki/P%C5%82aca_minimalna, 25.08.2020,
10
Capability approach, https://en.wikipedia.org/wiki/Capability_approach, 28.08.2020,
11
G. Davidov, The Capability Approach and Labour Law: Identifying the Areas of Fit, Published in THE CAPABILITY
APPROACH TOLABOUR LAW(Brian Langille ed., OUP 2019)Ch. 2, http://www.labourlawresearch.net/sites/de-
fault/files/papers/The%20Capability%20Approach%20and%20Labour%20Law.pdf, p. 11, 31.08.2020,
Karol Ryszkowski | 33

level of resources will give different people the same opportunities and
abilities to reach their goals. Surely people with disabilities, or otherwise
detrimental conditions, will be able to do much less if given the same re-
sources. (…) Ronald Dworkin attempted to rectify this problem with his
scheme for redistribution to compensate for brute bad luck, (…) and luck
egalitarians later suggested a shift of focus to ‘opportunity for welfare,’ or
‘access to advantage.’ (…) Sen offered a different solution. He argued that
we should focus on ‘capabilities’ instead of resources. What’s important
for people is effective, real freedom to pursue their plans of life. Sen des-
cribed our needs and wants as ‘functionings,’ and drew attention to the
importance of capabilities to achieve these functionings”12.
“He supports equality of capabilities only in the ‘sufficientarian’
sense: ensuring that everyone has a set of basic capabilities”13.
As Amartya Sen said, on the one hand, the role state is to provide its
citizens with at least a minimum income, on the other hand, influencing
the price in a way that ensures the continuity of the exchange goods, for
example in the form of compensation for losses after natural disasters food
producers14.
The concepts such as the minimum wage are contrary to the indivi-
dual approach and so to the Sen’s concept of „functionings”.
“I have tried to argue for some time now that for many evaluative
purposes, the appropriate “space” is neither that of utilities (as claimed by
welfarists), nor that of primary goods (as demand by Rawls), but that of
the substantive freedoms – the capabilities – to choose a life one has reason
to value”15.

12
G. Davidov, The Capability Approach and Labour Law: Identifying the Areas of Fit, Published in THE CAPABILITY
APPROACH TOLABOUR LAW(Brian Langille ed., OUP 2019)Ch. 2, http://www.labourlawresearch.net/sites/de-
fault/files/papers/The%20Capability%20Approach%20and%20Labour%20Law.pdf, p. 1, 31.08.2020,
13
G. Davidov, The Capability Approach and Labour Law: Identifying the Areas of Fit, Published in THE CAPABILITY
APPROACH TOLABOUR LAW(Brian Langille ed., OUP 2019)Ch. 2, http://www.labourlawresearch.net/sites/de-
fault/files/papers/The%20Capability%20Approach%20and%20Labour%20Law.pdf, p. 2, 31.08.2020,
14
A. Hartleb, Poglądy A. Sen`a na rozwój społeczny i wolność jednostki, Studia Ekonomiczne Prawne i Adminis-
tracyjne, Nr 1/2017, p. 46,
15
A. Sen, Development as freedom, p. 74.
34 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

“The concept of “functionings,” which has distinctly Aristotelian ro-


ots, reflects the various things a person may value doing or being. […] The
valued functionings may vary from elementary ones, such as being ade-
quately nourished and being free from avoidable disease, […] to very
complex activities or personal states, such as being able to take part in the
life of the community and having self-respect”16.
As we can see this concept has old and noble roots.
There is a difference between the minimum wage and the basic in-
come.
“Basic income, also called universal basic income (UBI), citizen's in-
come, citizen's basic income, basic income guarantee, basic living stipend,
guaranteed annual income, or universal demogrant, is a theoretical gover-
nmental public program for a periodic payment delivered to all citizens of
a given population without a means test or work requirement”17.
“A basic income is a regular, periodic cash payment delivered uncon-
ditionally to all citizens on an individual basis, without requirement of
work or willingness to work. The five broad features of such schemes are:
payments at periodic regular intervals (not one-off grants), payments in
cash (not food vouchers or service coupons), payments to individuals, uni-
versality, and unconditionality”18.
As we can see in this approach there is no individualism. Everyone
gets the same amount, without consideration of its functionings.
Amartya Sen said that "People in a market-driven economy will
spend more on private education and healthcare if their income is in-
creased if the state grants them an amount as a minimum income,” 19 and
“… implementing universal basic income (UBI) in India could lead to more

16
A. Sen, Development as freedom, p. 75.
17
Basic income, https://en.wikipedia.org/wiki/Basic_income, 25.08.2020,
18
A. Sasi, Universal Basic Income: The ‘money for nothing’ idea, https://indianexpress.com/article/explained/sim-
ply-put-the-money-for-nothing-idea-sikkim-universal-basic-income-scheme-what-is-5532728/, 21.08.2020,
19
A. Gupta, Amartya Sen: Granting basic income to all may lead to more privatization, https://indianexpress.com/ar-
ticle/cities/kolkata/amartya-sen-universal-basic-income-ashok-rudra-memorial-lecture-5536609/, 21.08.2020,
Karol Ryszkowski | 35

privatisation as people would spend more on private education and heal-


thcare”20.
“Sen said providing a basic income to all citizens won’t ensure that it
would be spent on health and education — the two main objectives of any
developmental strategy”.
There are new tendencies, for example in Finland and Germany,
where there has been a will to test the universal basic income in practice.
The universal basic income in the amount of 1200 euro/$1,430 will
be experimentally provided in the certain group of people in Germany in
three years’ time. It is an amount just above Germany's poverty line21.
“- 120 Germans will receive a form of universal basic income every
month for three years.
- The volunteers will get monthly payments of €1,200, or about
$1,400, as part of a study testing a universal basic income.
- The study will compare the experiences of the 120 volunteers with
1,380 people who do not receive the payments.
- About 140,000 people have helped fund the study through donati-
ons.
- The concept of universal basic income has gained traction in recent
years, and Finland tested a form of it in 2017.
- Supporters say it would reduce inequality and improve well-being,
while opponents argue it would be too expensive and discourage work”22.
“Its proponents argue that it would reduce inequality and improve
well-being by providing people more financial security. Its opponents say
it would be too expensive and discourage people from going to work. The

20
A. Gupta, Amartya Sen: Granting basic income to all may lead to more privatization, https://indianex-
press.com/article/cities/kolkata/amartya-sen-universal-basic-income-ashok-rudra-memorial-lecture-5536609/,
21.08.2020,
21
A. Payne, Niemcy testują uniwersalny dochód podstawowy. 1200 euro miesięcznie za nic przez trzy lata,
https://businessinsider.com.pl/twoje-pieniadze/budzet-domowy/uniwersalny-dochod-podstawowy-testowany-
przez-niemcy/hh2g5m8, 29.08.2020,
22
A. Payne, Germany is beginning a universal-basic-income trial with people getting $1,400 a month for 3 years,
https://www.businessinsider.com/germany-begins-universal-basic-income-trial-three-years-2020-8?IR=T,
22.08.2020,
36 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

idea has gained traction in recent years amid financial crises and growing
inequality in some Western countries”23.
In this experiment, we can see some inequality because of different
numbers of people with and without universal basic income. These num-
bers should be equal. How they can prevent inequality when they start
with selectable inequality (not the objective, existing one) from the begin-
ning?
The interest in German society is seen because of the foundation of
the experiment universal basic income was gathered through private do-
nations.
Such an experiment was done in Finland. But I can say that people
who had got UBI wasn’t representative because they were not for the
whole society but they were selected only form jobless people. The experi-
ment was introduced in the amount of 2000 jobless people in Finland and
they weren’t compared to people with jobs.
“Giving jobless people in Finland a basic income for two years did not
lead them to find work, researchers said.
From January 2017 until December 2018, 2,000 unemployed Finns
got a monthly flat payment of €560 (£490; $634).
The aim was to see if a guaranteed safety net would help people find
jobs, and support them if they had to take insecure gig economy work“24.
So if another country wants in the future to test the universal basic
income I can propose some guidelines.
First of all, it should be noted by researchers what they want to rese-
arch by testing the universal basic income in practice (the aims). Only one
aspect like in Finland or maybe they want to try to realize Sen’s conception
of functionings.

23
A. Payne, Germany is beginning a universal-basic-income trial with people getting $1,400 a month for 3 years,
https://www.businessinsider.com/germany-begins-universal-basic-income-trial-three-years-2020-8?IR=T,
22.08.2020,
24
A. Nagesh, Finland basic income trial left people 'happier but jobless', https://www.bbc.com/news/world-europe-
47169549, 22.08.2020,
Karol Ryszkowski | 37

It should comparison between an equal amount of people with the


universal basic income an without it.
Connected with aims should be the questions on which people taking
part in the test will be answered.
People who will take part in the experiment should be representative
of the society in which the test will be held. So not only jobless or not only
poor people, but in proportions as they exist in the society.
It should be noted that in Poland there is no discussion about the
universal basic income.
Nowadays the amount of the minimum wage is on the stake.
Next year, Poland's public debt is expected to reach a historically high
level of 64.7 percent. GDP, which according to experts estimates nominally
means crossing the magic barrier of PLN 1.5 trillion. Poland has not had
such a high debt in its recent history25. Poland's debt has increased by over
PLN 114 billion since 201926, PLN 40 billion has gone to private entrepre-
neurs as aid related to the COVID pandemic27.
“Another popular variation is 'universal basic services' - where ins-
tead of getting an income, things like education, healthcare and transport
are free for all”28.
In Poland most of education and healthcare system are free. This is
remains of communism time, but after the healthcare system reform in
the 90’s, after the collapse of communism system in Poland, things got
worse in healthcare system.
Transport like most of areas in Poland is divided on private and pu-
blic sector, but the public domain, as well as transport, is divided on
governmental and self-government. This another effect of the reform in

25
D. Szymański, Rekordowe 1,5 biliona złotych długu. Oto prawdziwy obraz finansów Polski, https://businessinsi-
der.com.pl/finanse/makroekonomia/najwyzszy-dlug-publiczny-w-historii-polski-na-2021-r-15-biliona-
zlotych/9jjwvcf, 29.08.2020,
26
Ministerstwo Finansów o zadłużeniu Skarbu Państwa, https://www.onet.pl/informacje/onetwiadomosci/minis-
terstwo-finansow-o-zadluzeniu-skarbu-panstwa/neb42bz,79cfc278, 29.08.2020,
27
Do przedsiębiorców trafiło już 40 mld zł w ramach tarczy antykryzysowej, https://biznes.gazetaprawna.pl/ar-
tykuly/1478405,emilewicz-tarcza-antykryzysowa-pomoc-dla-przedsiebiorcow.html, 29.08.2020,
28
A. Nagesh, Finland basic income trial left people 'happier but jobless', https://www.bbc.com/news/world-europe-
47169549, 22.08.2020,
38 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

the 90’s. One of the postulates in my city is free public transport for resi-
dents, while the local authorities prefer to allocate money for other
purposes, e.g. concerts and events. You can see a similarity to ancient
Rome and the Roman saying - bread and circuses.
So as we can see the universal basic services is not adopted in Poland
as well. Now when privatization went so far is too late to made all these
things free, for example some people have their own transport companies.
Regardless of whether it would be for the benefit of society or not.
Personally I think the universal basic services is better idea than uni-
versal basic income because in this case people do not have flexibility in
spending money but they receive goods which objectively good for
everyone. The easiest way to provide it is when one state is transforming
from communism or socialism to capitalism, but as the history taught in
these countries capitalism in provided without restrictions with further
repercussions like in Poland – the wild capitalism as we named it in Po-
land. I have to add that in few years back situation in Poland is changing,
because the rulers have the welfare state as their model. But as I told you
in my previous speeches the problem with Polish social program, i.e. 500+
plus program, is that there is no control on which aim the money are
spent. Other countries like Belarus should take this lesson in mind and if
they want to be more capitalistic, In my opinion, universal basic services
should guaranteed.

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N. J. Zambam, K. Ryszkowski, Threatened Democracy and the Reconstruction of Public


Justification, Revista Brasileira de Direito, (accepted to print).
3

Vacinas e escolha social:


uma perspectiva pela teoria das titularidades

Fabrício Pontin 1

Introdução

Esse artigo é uma proposta modesta de análise de uma controvérsia


que surgiu nos últimos dois meses de 2020, em meio a primeira pandemia
do século XXI, e em um momento de intensa disputa política sobre o que
pode ou não pode ser objeto de ação política direta e indireta no contexto
do combate a COVID-192. Meu objetivo nesse artigo é avaliar apenas a úl-
tima controvérsia entre no mínimo quatro ou cinco diferentes discussões
que orbitam dentro do nexo de tensões entre escolhas individuais e esco-
lhas sociais no combate ao vírus: a discussão sobre a obrigatoriedade ou
não das vacinas.
Para tanto, irei dividir o artigo em duas partes distintas. Na primeira
parte irei descrever os principais problemas na literatura de escolha social
sobre a questão das vacinas, ressaltando como os dilemas clássicos sobre
criação de funções de bem-estar social em Arrow seguem sendo em grande
medida ignorados na consideração da possibilidade de equilíbrios paretea-
nos em escolhas sociais que envolvem mais de duas alternativas e mais de

1
Professor - Universidade LaSalle, Escola de Direito e Política/PPG em Educação PhD (Philosophy), Southern Illinois
University | Institute of International Education Fellow (2008-2012), fabricio.pontin@unilasalle.edu.br.
2
Para fins de praticidade, usarei a designação COVID-19, e não farei referência ao vírus que causa a doença (Sars-
Cov-2) neste artigo.
Fabrício Pontin | 43

dois atores individuais. Esse ponto, como veremos, é essencial para a ins-
trução de atores públicos envolvidos na tomada de decisão sobre bens
sociais e titularidades fundamentais (tanto no nível individual quanto mis-
tas e sociais).
Ao trazer a questão das titularidades fundamentais já antecipo o se-
gundo ponto do meu artigo, que tenta trazer o debate sobre titularidades
partindo da distinção proposta por Calabresi e Melamed (1972) entre titu-
lariedades alienáveis, inalienáveis e regras de propriedade e
responsabilidade na manutenção, reparação e compensação no que tan-
gem titularidades individuais, mistas e sociais. No entanto, o modelo
proposto por Calabresi e Melamed não é suficiente para meu propósito
nesse artigo. Na realidade, creio que a proposta de compensação e prote-
ção no artigo seminal de 1972, não obstante a elegância das interações
propostas no artigo, sofre com algumas das limitações apontadas por Ar-
row sobre equilíbrios Pareteanos e pode se beneficiar tanto da
compreensão mais radical de titularidades sociais proposta por Nussbaum
(2003; 2006) quanto da crítica de Sen ao uso de modelos Pareteanos para
avaliação de prioridades sociais (1970).
Em última medida, esse artigo busca contribuir em dois níveis. Pri-
meiro, gostaria de apontar para a necessidade de maior complexificação
da nossa discussão sobre escolhas individuais e escolhas sociais, sobretudo
sobre como pensamos a relação causal entre a legitimidade de escolhas se
e apenas se preservamos algum grau de livre-arbítrio libertário de agentes
em uma condição de escolha individual “pura”, ou seja, sem quaisquer
condicionamentos ou limitações sociais e políticas para o ato de escolha.
Segundo, gostaria de tentar apontar para o caráter da vacinação ou da “ti-
tularidade do direito de ser vacinado” como um tipo de titularidade que é
ao mesmo tempo inalienável e de exercício coletivo. Como veremos, isso
coloca a titularidade da prerrogativa de ser vacinado como um bem de
gestão complexa do ponto de vista político, na medida que a titularidade
deste direito só pode ser de fato garantida na medida que todos nossos
pares sociais têm o direito garantido ao mesmo tempo que nós. Isto traz
44 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

dificuldades dentro de uma análise mais libertária de bens sociais, na me-


dida que indica a impossibilidade de desistir do direito de ser vacinado sem
que essa desistência destrua titularidades alheias – o que é dizer, sem que
essa desistência determine deveres de reparação. Essa questão, torna-se
ainda mais difícil na medida que o tipo de compensação necessária para
reparar o dano social no caso em tela tem repercussões severas e de difícil
atribuição causal. Ao final, tentarei apontar para o caráter preventivo das
soluções institucionalistas propostas por Sen e Nussbaum para problemas
envolvendo titularidades inter-alia sociais, fundamentais e inalienáveis.

Arrow, em um paper seminal chamado “Social Choice and Individual


Values” (1951), revolucionou o debate sobre escolha social ao apontar para
o caráter fundamentalmente desequilibrado da escolha social em uma si-
tuação de mão-invisível.
Em outros termos: Arrow mostra que é muito difícil a partir de uma
situação de escolha individual agregar uma escolha social que represente
de forma eficiente e justa todas as vontades individuais. Arrow cria seis
condições básicas para a escolha individual, relacionadas com a passagem
para a eficiência que ele chama de “função de bem-estar social”.
Nessa sessão gostaria de dar um pequeno panorama da posição de
Arrow, explicando como a partir de um set de condições que preservam a
integridade da escolha individual podemos chegar em um paradoxo no
que tangem escolhas sociais capazes de satisfazê-las. Quero evitar entrar
nas formalizações propostas por Arrow no que segue, e tentar apenas ex-
plicitar os passos para a designação da posição “paradoxal” que o autor
chega no final de sua reflexão sobre a relação entre escolhas individuais e
sociais.
Partimos, então, de duas premissas básicas sobre escolha e racionali-
dade individual:

- pessoas escolhem;
Fabrício Pontin | 45

- pessoas ranqueiam escolhas;


- pessoas são consistentes sobre as escolhas que ranquearam;

Pois bem, estes dois primeiros pontos são aparentemente óbvios. Ar-
row simplesmente indica que qualquer pessoa que pretenda ser tomada
como um agente racional deve agir como um agente capaz de fazer esco-
lhas e se manter consistente sobre suas escolhas. No entanto, preciso fazer
algumas observações sobre como Arrow está entendendo esta relação. Ve-
jam, quando dizemos que pessoas escolhem, ranqueiam e são consistentes
sobre escolhas estamos falando da declaração de uma preferência ou de
um comportamento individual?
De fato, Arrow adota uma perspectiva nominalista no que tange a
escolha, ranqueamento e consistência das preferências. Neste sentido, o
individuo tem uma relação solipsista com bens idealizados, que são ran-
queados e considerados desde uma perspectiva de primeira pessoa.
Permitam-me ilustrar isso com um exemplo: temos aqui João respon-
dendo um questionário com três perguntas sucessivas, a primeira
pergunta é sobre qual bem ele gostaria de consumir, vamos presumir,
nesse caso, que João responda que gostaria de consumir uma fruta. A per-
gunta seguinte pede para João ranquear, de primeiro a terceiro lugar, suas
frutas favoritas, ao que João responde “1) Laranja; 2) Limão; 3) Pêssego”.
Finalmente, perguntamos para João se, diante da possibilidade de consu-
mir Limão, Pêssego e Laranja, todas as coisas sendo as mesmas, qual fruta
ele iria consumir? Nesse ponto, esperamos que João responda “Laranja”,
e, diante dessa resposta estamos prontos para confiar em João enquanto
um agente racional em um nível básico.
Vejam, no nosso exemplo João não está vendo quaisquer uma dessas
frutas. Ele apenas declara preferências em abstrato, de forma nominal, a
respeito de alguns bens. Mas nossa expectativa a partir dessa preferência
declarada irá impactar, ao menos para Arrow, a organização de um sis-
tema de garantias de prerrogativas e titularidades factuais em nível social.
Isso é porque Arrow vê nesta declaração de preferências individuais uma
46 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

função de expressão de prioridades, que indivíduos vão esperar, em al-


guma medida, serem consideradas em uma função social.
Em outros termos, Arrow indica que funções de bem-estar social, ou
de escolha social, são reflexo de um agregado de preferências individuais
declaradas para agentes públicos, que ficam responsáveis por uma agre-
gação representativa do maior set possível de preferências individuais em
um set social de forma completa e coerente. Dada a estrutura léxica-formal
dessa relação, Arrow agora parte para as condições para a formação do set
social de forma completa e coerente, que irá gestar a possibilidade de bens
sociais. Todas essas condições são bicondicionais, o que é dizer, elas são
possibilidades para a completude da função social se e apenas se elas são
garantidas para a escolha individual (curiosamente, esse fator não se
aplica ao nosso exemplo anterior, na medida que a condição de racionali-
dade individual é independente da existência de uma função de bem estar
social. Pois bem, poderíamos resumir as condições de escolha individual
da seguinte forma:

— Ninguém pode impor uma escolha a alguém


— todas as escolhas devem ser livres: nenhum grupo, pequeno ou grande,
pode dominar de forma decisiva o agregado de escolha social de forma a
esvaziar a relevância de outros grupos
— qualquer escolha possível no nível individual é uma escolha possível no nível
social se uma escolha é ranqueada como superior, ela permanece superior
para equilíbrio social irrespectivamente da ordem de ranqueamentos meno-
res: essa é a chamada “independência da alternativa irrelevante”, e
basicamente implica que se tu vai no supermercado e tua prioridade é pri-
meiro feijão, depois arroz e finalmente quinoa, a indisponibilidade de arroz,
junto com a disponibilidade de feijão e de quinoa, não pode determinar a tua
escolha por quinoa.
— Mudanças nas escolhas sociais precisam estar refletidas no agregado de es-
colhas individuais entre as escolhas sociais possíveis, alguma representa
especificamente um bem individual para quem escolhe.
Fabrício Pontin | 47

Arrow passa boa parte do seu artigo mostrando que dentro dessas
condições, que são condições que ele adota como condições de “livre-mer-
cado” ou de “não-intervenção”, não é possível, matematicamente, a
passagem de um estado de escolha individual para um estado de escolha
social. Basicamente, Arrow indica a impossibilidade de uma função de es-
colha social que, ao agregar apenas vontades individuais, acabe como uma
escolha de “bem-estar” geral.
Nesse ponto, podemos, em alguma medida, dentro do modelo do Ar-
row, pensar o problema das vacinas e ilustrar a impossibilidade de escolha
social: basicamente, é impossível determinar uma escolha social para a va-
cina partindo apenas de escolhas individuais — isso é porque em alguma
medida iremos violar ou a regra de não-imposição, ou a regra de não-di-
tadura, ou a regra de universabilidade, ou a regra de superveniência, ou a
regra de single-peak Pareto.
Partindo de um exemplo com apenas duas pessoas, Manu e Lucca.
Manu tem uma excelente alimentação, tem uma saúde excelente, faz exer-
cícios frequentemente, e acredita que vacinas têm componentes
cibernéticos que irão causar infertilidade e demência vascular e, por isso,
sustenta que detém a prerrogativa de negar-se a tomar uma vacina. De
outro lado, temos Lucca. Lucca não cuida da própria alimentação, é diabé-
tico, não pratica exercícios, e acredita que vacinas são excelentes meios de
evitar propagação de doenças crônicas. Se pensamos em termos estritos
de escolha individual, pode ser possível fazer uma equivalência entre todas
as escolhas listadas acima: Manu pode seguir se alimentando bem, fazendo
exercícios, com saúde perfeita, e negando-se a tomar a vacina, e Lucca
pode seguir se alimentando terrivelmente, sem fazer exercícios, e com
uma condição crônica, e tomar sua vacina, correto?
No entanto, a questão é um pouco mais complexa que uma simples
escolha individual de Lucca e Manu no que tange a vacina. Isso é porque a
vacina não é uma prerrogativa que se esgota na ação individual de Lucca
ou Manu. De fato, ao pensarmos no grupo de pessoas que Manu e Lucca
48 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

representam, vemos que a satisfação da prerrogativa de Manu (ou de pes-


soas como Manu) em não tomar a vacina implica, necessariamente, em
uma predação do direito de Lucca em escolher tomar a vacina (ou ao me-
nos de tomar a vacina de forma eficiente). Ou seja, Manu e Lucca, ao
realizarem suas respectivas prioridades, destroem a escolha individual
alheia. Ambos os casos são casos de preferências individuais que querem
se manter “estáveis”. Arrow sugere que a gente tente equilibrar essas duas
preferências através de um mecanismo de escolha livre chamado “eleição”,
com as condições que descrevi acima –e, no entanto, o sistema não conse-
gue equilibrar a situação nem em uma situação simples.
Nesse sentido, desde uma perspectiva ordinalista, escolhas individu-
ais não são plausíveis de mediação direta para gerar estados sociais — é
necessária uma mediação externa, institucional, que vai guiar essas esco-
lhas. Arrow conclui que essa necessidade de mediação externa torna a
proposição da escolha social “indecidível”, ou seja, que não existe uma es-
colha social, apenas a intervenção de um ator externo arbitrário em
escolhas individuais para a criação de um equilíbrio estatal artificial.
Sen, na década de 60, inicia debatendo apenas com o Arrow, em cima
do conceito de transitividade e da questão dos equilíbrios de escolha, já
apontando para um buraco na análise de racionalidade do Arrow — sobre-
tudo na separação mecânica do nível individual e social. A década de 70
vai nos dar o grosso da contribuição do Sen para o debate sobre escolha
individual e social, que está sobretudo no clássico Rational Fools (1977),
que é um ataque frontal a todo o modelo de racionalidade individual e es-
colha social da escola Samuelsoniana, que tem o apogeu no paper do
Arrow, e em On the Impossibility of a Paretian Liberal (1970), que antes
da publicação do Teoria da Justiça de Rawls já antecipa problemas na or-
ganização axiomática de critérios para escolha social.
Nestes dois papers a gente encontra o centro técnico da argumenta-
ção de Sen sobre escolha social, e ela pode ser colocada da seguinte forma:
Duda e Matheus são porto-alegrenses, e tem interesses distintos, Matheus
quer ficar em casa e se proteger da praga até que uma vacina seja viável,
Fabrício Pontin | 49

Duda quer correr na Orla e tomar uma cerveja com o Jorge na Lima e Silva
no final da noite, e não acredita em vacinas. Esses interesses, no entanto,
são indissociáveis dos contextos em que Duda, Matheus, Jorge e até a Manu
estão colocados. Os interesses deles não ocorrem desde uma perspectiva
hipotética (como queria Rawls, uma perspectiva que Sen vai chamar mais
tarde de “institucionalismo transcendental”) nem desde uma perspectiva
puramente auto-interessada e que pode ser reduzida a uma transição for-
mal de interesses individuais para interesses sociais (essa é a perspectiva
do “tolo racional”, que é como o Sen está delicadamente chamando Ar-
row), na realidade, esses interesses estão em um nexo de condições de
escolha marcadas por uma sobreposição de sentimentos morais e condi-
ções de escolhas sociais que são previamente dadas (e sobre as quais
apenas as vezes nossos amigos Porto-Alegrenses tiveram agência).
Daí a conclusão de Sen sobre a relativa superficialidade no foco de
análise na escolha individual — precisamos falar, antes disso, das condi-
ções de escolha dos indivíduos, isto é, quais são as condições institucionais,
públicas, onde eles estão inseridos para escolher. A perspectiva sobre o
“bem social” e a “preferência individual” é conectada com o contexto de
escolha, com como você está quando você está escolhendo. Mesmo emo-
ções supostamente positivas, como empatia, “senso de comunidade” e
amor, por exemplo, nesse contexto, podem ser confundentes para a cria-
ção e avaliação de escolha (empatia e amor são ótima sensações, mas
podem nos levar a fazer merda do ponto de vista público, especialmente
se estamos escolhendo “sem rede”).
Este último ponto é desenvolvido sobretudo por Nussbaum, e no re-
torno que Nussbaum faz ao trabalho de Stuart-Mill, para mostrar que já
na Economia Política de Mill, a relação sobre a qualidade da escolha indi-
vidual já é profundamente dependente do desenvolvimento institucional
público que dá apoio para o fomento de emoções morais informadas por
um comprometimento público — daí a insistência da Nussbaum na pers-
pectiva Milliana para educação, com todas as indiossincrasias do modelo.
De novo, não podemos pensar em escolhas individuais antes de avaliar
50 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

como essas escolhas são constituídas, de como emoções são construídas


publicamente , inclusive na medida que elas se relacionam com questões
cognitivas (que tendemos a pensar como problemas privados, mas que
tem dimensões públicas relevantes, que estão bastante claras na crise de
saúde mental associada com a crise do COVID, e nos efeitos dessa crise,
vejam só, nas nossas “escolhas”).
Voltarei para a proposta de Nussbaum ao final desse artigo, mas creio
que antes precisamos esclarecer um pouco do debate sobre titularidades
na literatura, que vai fundamentar a proposta de Nussbaum sobre titula-
ridades fundamentais, e minha tentativa de usar o modelo de titularidades
fundamentais como uma moldura para gestão de interesses na discussão
sobre vacinas.

II

Antes de começar minha exposição sobre Calabresi e Melamed, quero


aproveitar o escopo da discussão proposta nesse artigo para esclarecer mi-
nha opção pelo termo titularidade para traduzir entitlements. O termo é
de tradução controversa, e uma breve pesquisa indica possibilidades como
propriedades (termo usado principalmente para traduzir a entitlement
theory de Nozick), posição jurídica subjetiva (termo usado sobretudo em
estudos de dogmática jurídica, e em alguns trabalhos sobre direito de da-
nos que importam a compreensão italiana de direitos subjetivos para a
discussão sobre titularidades), prerrogativas (usadas as vezes de forma in-
tercambiável com “direitos”, o que me parece um erro técnico que causa
confusões importantes na interpretação em estudos sobre reparações), di-
reitos (as vezes usados de forma intercambiável com prerrogativas, mas
também de forma unilateral), e intitulamentos, que é o termo mais comum
nas traduções e recepções mais recentes de Amartya Sen e Martha Nuss-
baum em língua portuguesa.
Minha opção, no entanto, tem sido pelo uso de titularidades para tra-
duzir o termo entitlements. Esta opção surgiu durante o esforço de
Fabrício Pontin | 51

tradução do trabalho de Calabresi e Melamed (no prelo) em língua portu-


guesa. Primeiro, o neologismo intitulamentos me parece insatisfatório por
dois motivos, primeiro por indicar um ato específico, uma ação, o que nem
sempre está em jogo - nem toda titularidade é predicada em um ato de
concessão (titularidades podem ser independente de concessões, especial-
mente na leitura de Nussbaum); e segundo pelo caráter mais amplo do
termo titularidade, que pode ser combinado com outras formas de exercí-
cio de posições subjetivas (e aqui já explico porque acho que posição
jurídica subjetiva não é suficiente: toda titularidade é uma posição jurídica,
mas nem sempre trata-se de uma posição subjetiva; ademais, existem po-
sições jurídicas subjetivas que não são titularidades, de modo que o uso do
termo é confundente para a análise do direito econômico e para avaliação
de compensações e ações). Sobre o uso de “propriedade” e “direitos” para
analisar o sentido de entitlements, creio que na abordagem de Nozick essa
tradução de fato faz sentido, mas se vemos a forma de condução na teoria
da titularidade de Calabresi e Melamed, no dimensionamento do direito
de danos em Michelman, e também na abordagem de Nussbaum e Sen, o
sentido proprietário e egocentrista no qual o termo é usado em Nozick é
insuficiente para comunicar o conceito.
Property Rules, Liability Rules and Inalienability (1972) é um divisor
de águas na discussão sobre custos sociais e reinvidicações de titularidades
conflitantes. O principal objeto do estudo de Calabresi e Melamed são com-
pensações e garantias de titularidades sobre direitos relacionados com
danos ambientais, e possibilidades de vendas, alienações, predações e ali-
enações relacionadas com exploração ambiental. O enquadro proposto no
artigo estabelece uma forma de condução para conflitos de titularidades
ao dividir um set de possibilidades de ação e posições jurídicas pertinentes
a conflitos entre partes.
Para Calabresi e Melamed, precisamos entender como establecer re-
gras que, primeiro, reconheçam que existem titularidades individuais e,
segundo, preservem estas titularidades em casos em que existe a necessi-
dade de mediação social. Em alguma medida, a preocupação de Calabresi
52 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

e Melamed espelha a de Arrow, já que tenta sustentar algum tipo de equi-


líbrio entre interesses individuais e mediações sociais, utilizando um
arcabouço pareteano como referência. No entanto, o mecanismo de imple-
mentação do arcabouço pareteano, no artigo de 1972, amplia
consideravelmente a ambição de Arrow ao tentar resolver problemas de
distribuição através de um critério legal.
Tentarei, nas próximas linhas, explicar o esquema de distribuição e
compensação do artigo voltando para nossos heróis, Lucca e Manu. Lucca
e Manu seguem em suas respectivas posições jurídicas da sessão anterior,
e seguimos no dilema de como estabelecer uma regra. Para Calabresi,
nossa primeira pergunta deve ser de que tipo de titularidade estamos fa-
lando? Quando dizemos que Lucca e Manu são titulares de direitos
referentes a vacinas, esses direitos são de qual natureza? Mais importante,
como podemos estabelecer o nível de autonomia que Lucca e Manu tem
com relação a esses direitos?
Vejam, certamente existe um aspecto restrito no qual Lucca e Manu
tem direito abstrato a saúde e liberdade de escolha. Esses direitos, no en-
tanto, são constantemente pautados por condicionamentos para o
exercício desses direitos, condições estas que são via de regra predicadas
na possibilidade de manutenção de uma integridade mínima de escolha
para outros. Calabresi então irá apontar para a necessidade de distinguir
entre prerrogativas individuais em titularidades de caráter coletivo, prer-
rogativas individuais em titularidades de caráter individual, prerrogativas
sociais em titularidades de caráter individual e prerrogativas sociais em
titularidades de caráter social. Cada uma dessas modalidades introduz
uma regra distinta de responsabilização, compensação e mediação.
No caso de Manu, e seu interesse de sustentar a titularidade da prer-
rogativa de escolher não tomar uma vacina, precisamos pensar na relação
de efeitos dessa sustentação em um sistema relacionado com uma prerro-
gativa que Manu não têm de forma independente de outros, na realidade,
ainda que o direito de poder escolher (em abstrato) seja uma prerrogativa
estável e absoluta para Manu, esta escolha (em concreto) em situações que
Fabrício Pontin | 53

indicam uma titularidade de preservação coletiva, pode e deve ser mediada


exatamente na medida que outros são afetados. Isso é dizer: ao recusar-se
a tomar uma vacina, Manu coloca-se como vetor de contaminação, e po-
tencialmente não afeta apenas o próprio bem estar, mas o interesse social
em controlar uma situação de pandemia – e pode no curto prazo impossi-
bilitar escolhas alheias sobre a titularidade. Ou seja, ao fazer uma escolha
aparentemente individual, Manu criou efeitos que destruíram uma titula-
ridade para outros. Vacinas são exemplos, então, de titularidades e
prerrogativas sociais que envolvem, às vezes, prerrogativas individuais
que não são relacionadas com a titularidade da vacina – mas que são afe-
tadas pela implementação da vacina.
Calabresi vai indicar a necessidade de indenização pela perda da prer-
rogativa individual na implementação da titularidade social. Essa
necessidade é derivada de uma regra pareteana: toda a perda de algum
bem individual – e titularidades são bens – em favor de um bem social
deve ser indenizada ao indivíduo que percebe uma perda no seu status. A
forma dessa indenização deve obedecer a uma regra de compensação
igualmente pareteana, o que é dizer, deve ser feita na medida que tanto os
bem estares de membros representantes da sociedade quanto o individuo
(ou grupo de indivíduos) são satisfeitos. Evidentemente, a satisfação igual
de ambas as partes pode ser impossível, dado o conflito de interesses ine-
rente as titularidades em discussão – daí a necessidade de uma regra de
compensação e o estabelecimento de inalienabilidades.
O desenvolvimento de inalienabilidades em Calabresi e Melamed, no
entanto, segue uma explicação econômica e não axiológica. Titularidades
são inalienáveis na medida que não são passíveis de compensação ou na
medida que representam a integridade de um interesse social. Mais uma
vez, Manu não poderia vender seu direito a tomar uma vacina por qual-
quer preço, ou, por exemplo, para poder participar de um reality show.
Ainda que o valor fosse profundamente atraente, a titularidade da prerro-
gativa de tomar a vacina não é de Manu para ser alienada, é de Manu
apenas para ser exercida.
54 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Ainda assim, Calabresi e Melamed insistem na necessidade de com-


pensar indivíduos por todas suas titularidades individuais de escolha, o
que é dizer, de alienabilidade, que são interrompidas por regras de inalie-
nabilidades baseadas em titularidades sociais. A tentativa de formulação
de um modelo capaz de indenizar Manu pela perda da titularidade da prer-
rogativa de não tomar a vacina ocuparia todo o meu artigo se eu estivesse
insistindo em sustentar a moldura proposta no artigo de 1972. No entanto,
minha intuição é que toda a resposta que passe pela moldura proposta pelo
artigo tem alta chance de ser impactada pela intuição de Sen sobre mode-
los pareteanos: ao tentar preservar prerrogativas individuais diante de
titularidade sociais, modelos pareteanos acabam destruindo a possibili-
dade de escolhas sociais e a qualidade de escolhas individuais. O que me
leva ao ponto final deste artigo.

III

Vacinas não são titularidades que podem ser compensadas em um


sentido pareteano. Para pensar uma moldura para distribuição e imple-
mentação de políticas para vacinas sugiro uma abordagem que reconheça
que vacinas são titularidades fundamentais, cujo exercício pleno está ade-
quado a uma preparação institucional para a implementação de uma
política de vacina integrada e coletivizada. Nesse sentido, a proposta de
Nussbaum (2003;2006) nos fornece uma excelente via de acesso para o
problema, ao sugerir uma leitura da própria dimensão de capabilidades
enquanto fundamental. Essa dimensão retém o aspecto inalienável das ti-
tularidades em Calabresi e Melamed, mas desloca a fundamentação da
inalienabilidade de uma regra econômica para uma regra axiológica, esta-
belecendo uma relação de caráter não-pecuniário para o estabelecimento
de obrigações sociais mútuas.
O caráter não-pecuniário de obrigações sociais mútuas, ou seja, a fun-
damentação das relações sociais para além de uma justificativa econômica
é um ponto constante no trabalho de Sen desde 1977. Em Rational Fools,
Fabrício Pontin | 55

Sen introduz a ideia de commitments, ou compromissos como o principal


marcador de relações intersubjetivas. Nussbaum ressalta a importância do
fomento de condições para a realização destes compromissos que são de-
signadas enquanto capabilidades, que dariam para pessoas as condições
de fazer escolhas informadas e livres sobre bens sociais disponíveis, dentro
de situações institucionais dadas. O ponto, aqui, seria dar condições para
que Manu sequer considere a possibilidade de alienar seu direito de usar a
vacina – na medida que instituições estariam trabalhando na criação de
um contexto de escolha ideal para a tomada de decisão.
Escolhas individuais tem alta variabilidade. Amos Tversky and Daniel
Kahneman (1982) apontaram de forma decisiva como os critérios de tran-
sitividade e conectividade apresentados por Arrow são sensíveis a
condições de escolha que alteram profundamente a forma como pessoas
consideram suas decisões. Sen e Nussbaum em alguma medida radicali-
zam a tese de Tversky e Kahneman ao apontar que, de fato, os próprios
objetos de decisões de indivíduos mudam na medida que condições insti-
tucionais que marcam o momento de escolha mudam. Emoções e
sensações como medo, terror, satisfação, prazer, fome e dor não mudam
apenas as nossas escolhas, elas mudam como objetos parecem para nós.
Assim, enquanto encaramos a primeira pandemia do século XXI,
compreender as possibilidades de sucesso de políticas de prevenção, cui-
dado e, esperamos, de vacinação, passa também por pensar as condições
onde pessoas estão formando suas respectivas capacidades de tomar deci-
sões respectivamente a estas políticas – e a relação dessas pessoas com os
agentes públicos que buscam implementa-las.

Referências

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Fabrício Pontin | 57

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02), p. 277 - 283, Outubro 1991.
4

Espacio natural, capacidades y política social

Belinha Herrera 1
Diego Hernandez 2

La teoría de la justicia de Amartya Sen edifica los pilares de una soci-


edad justa sobre la idea de crear condiciones materiales para que los
individuos libres puedan estar en la capacidad de desarrollar aquello que
tienen razones para valorar (Sen, 1997; 2008; 2012; 2013). Una sociedad
justa es aquella que permite y construye las bases materiales para el ejer-
cicio de la libertad sustantiva, en un sentido crítico de la libertad vista
como mera abstracción legal (Nussbaum, 1987)3, a través de un Estado
democrático capaz de crear condiciones materiales para el ejercicio de los
derechos humanos (Nussbaum, 2011; Zambam, 2014).4

1
Abogada, Candidata a Doctor en Derecho – Universidad Externado de Colombia, Magister en Derecho de la Univer-
sidad del Norte. Director de Programas en Extensión y a Distancia de la Universidad de la Costa- Investigadora Senior
Colciencias de la Universidad de La Costa. Par Académico del Ministerio de Educación Nacional. E-mail: bher-
rera3@cuc.edu.co. orcid.org/0000-0002-5974- 7040.
2
Abogado, Doctor en Filosofía del derecho – Universidad católica de Lovaina UCL, Magíster en Filosofía – Universidad
Nacional de Colombia. Investigador y profesor de tiempo completo de la Universidad de la Costa . Consultor en
políticas públicas sociales gubernamentales – metodología e implementación. E-mail: dhernand47@cuc.edu.co. or-
cid.org/0000-0002-4475-9487.
3
En una reflexion que recoge la critica del joven Marx de los derechos como abstraccón legal, Nussbaum concluye
que “the central task of the city will, then, be to give its people (all the ones who can lead such lives, in the sense of
B-capability) the conditions of fully human living: living in which the essential functionings according to reason will
be available. This means, don't just give out food and allow people to "graze": make it possible for people to choose
to regulate their nutrition by their own reason. Don’t just take care of their perceptual needs in a mechanical way,
producing a seeing eye, a hearing ear, etc, Instead, make it possible for people to use their bodies and their senses in
a truly human way. And don't make all this available in a minimal way: make it possible to do these things well.”
(Nussbaum, 1987, 49).
4
“Quando se pode considerar uma sociedade justa? A proposta de Sen não se limita à avaliação do acesso aos bens,
a uma determinação quantitativa, ao aparato legal ou ao funcionamento das instituições. Primeiramente, elege a
democracia como um valor e uma das maiores conquistas da humanidade e apresenta mecanismos e instituições não
dependentes de líderes, corporações ou burocratas, mas inteiramente permeada por formas de participação, decisão
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 59

El Capabilities Approach (CA) ha servido como punto de referencia


en la interpretación y formulación de políticas sociales. La aplicación de
este enfoque a la política social, sin embargo, “has resulted in applications
of the CA to social policy becoming a field that is rather distracted and
lacks coherency” (Brunner, 2020). Es importante anotar los esfuerzos re-
cientes por aplicar el CA a la política social, los cuales han enfatizado sobre
la noción de situated agency o agencia situada (Yerk et.al., 2019), resal-
tando el rol central del entorno material y natural en la definición de
preferencias y funciones.
Aquello que las personas prefieren razonablemente valorar es una
variable simultáneamente natural y material (Sen, 2002), pues la defini-
ción de preferencias está asociada hasta cierto punto con la capacidad que
tenemos los seres humanos de adaptarnos a las condiciones del entorno.
El hecho de la diversidad explica que tengamos buenas razones para valo-
rar cosas distintas, en gran medida asociadas a las condiciones ofrecidas
por el entorno (Zambam, 2012).
El CA parte de aceptar esa diversidad, precisamente, en virtud de la
variedad en las condiciones del entorno. Si bien ha sido posible para Marta
Nussbaum sostener que existe un conjunto de capacidades básicas de al-
cance universal,5 el entorno específico compele al individuo libre a valorar
determinados funcionamientos, los cuales representarían mayor provecho
práctico, dadas las condiciones contextuales (situated agency).
Con la noción de funcionamiento o functioning, el CA incorpora me-
todológicamente las condiciones naturales y materiales del entorno como
determinante fundamental del ejercicio de las capacidades. En la misma
medida en que cambian las condiciones espaciales del hacer, cambia la ca-
pacidad en cuanto tal y su funcionamiento. Mismos recursos puestos en

e informação capazes de alcançar a todos os membros de uma sociedade e transformar profundamente as relações.
As capacidades humanas são uma condição fundamental para que as pessoas tenham condições de proceder aos atos
de escolha e buscar a efetivação dos seus objetivos. A ausência ou negação das capacidades compromete negativa-
mente a realização das expectativas de uma pessoa, a satisfação e o preenchimento das necessidades mais
importantes e a respectiva integração no grupo social, com os demais, entre outras dimensões.”
5
“Martha Nussbaum’s list of the 10 central capabilities contains the most plausible account of valuable functionings
that we have” (Wenar, 2020)
60 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

manos distintas representan funcionamientos diferentes, pues esos funci-


onamientos dependen de lo que el contexto permite a la persona hacer con
dichos bienes. En virtud de ese condicionamiento material de las capaci-
dades, la libertad incluye un aspecto obligacional positivo, al exigir del
Estado la intervención sobre esas condiciones materiales, como medio
para promover el ejercicio sustantivo de la libertad.
El propósito de una sociedad justa y próspera es proporcionar condi-
ciones materiales para el ejercicio efectivo de las libertades básicas. En este
sentido, se puede observar un contenido distributivo en esta teoría de la
justicia, no como una distribución de mercancías, sino como una distribu-
ción de las capacidades,6 para alcanzar funcionamientos efectivos desde el
punto de vista del proyecto valorado.
La perspectiva de la libertad como capacidad y funcionamiento
asume que la sociedad como un todo no vive exclusivamente de la idea de
producir riqueza y consumir las mercancías (Sen 190; Fardell 2020, 263).7
Esta perspectiva, en cambio, se pregunta cómo efectivamente las personas
viven; qué consiguen hacer y cómo consiguen ser con el dinero y la riqueza
que pueden proporcionarse o es posible proporcionarles. No basta con el
hecho de distribuir equitativamente los bienes, es necesario evaluar lo que
se consigue hacer con este recurso, en un entorno/espacio en particular.
Los bienes no consiguen, por sí solos, ofrecer condiciones de desarrollo
para las personas, por lo cual el CA prefiere enfocarse en los funcionami-
entos, o en aquello que logramos obtener efectivamente con los bienes
disponibles:

“Capabilities are a person's real freedoms or opportunities to achieve functio-


nings. Thus, while travelling is a functioning, the real opportunity to travel is
the corresponding capability. The distinction between functionings and capa-
bilities is between the realized and the effectively possible, in other words,

6
“The aim of political planning is the distribution to the city's individual people of the conditions in which a good
human life can be chosen and lived. This distributive task aims at producing capabilities. That is, it aims not simply
at the allotment of commodities, but at making people able to function in certain human ways” (Nussbaum, 1987, 1).
7
“Amartya Sen’s critique of the concept of need and his case for the superiority of capability as a measure of advan-
tage have been highly influential.” (Fardell, 2020, 263).
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 61

between achievements, on the one hand, and freedoms or valuable opportu-


nities from which one can choose, on the other.” (Robeyns, 2016).

Los funcionamientos, en cuanto realización efectiva de la capacidad y


en cuanto agencia efectivamente libre, en cuanto praxis aristotélica, están
naturalmente condicionados por las condiciones del entorno. Por tanto,
más que sólo distribuir una renta, se trata de afectar positivamente deter-
minados espacios/entornos que requieren una condición mejor o más apta
para el desarrollo de las capacidades. Teniendo en cuenta que las condici-
ones de adaptación al entorno no dependen únicamente de condiciones
básicas materiales, sino de factores subjetivos y culturales que determinan
la utilidad o pertinencia de dichos bienes, en función de qué tanto favore-
cen los funcionamientos que la personas tienen razones para valorar.
La critica de Sen al utiliatrismo, en este orden de ideas, puede enten-
derse como que la idea de distribuir o proporcionar las condiciones para
que la persona desarrolle sus gustos, según un criterio exclusivamente
mental,8 no es una metodología suficiente, porque los funcionamientos va-
rían en virtud de la diversidad humana y del entorno. En efecto, sostiene
Sen,

“people seem to have very different needs varying with health, longevity, cli-
matic conditions, location, work conditions, temperament, and even body size.
… So what is being involved is not merely ignoring a few hard cases, but over-
looking very widespread and real differences” (Sen 1980: 215–216).

Desde esta perspectiva, no se debe concentrarse la política publica


meramente en la satisfacción de necesidades básicas, sino en qué tanto,
efectivamente, las personas consiguen libremente optar por aquello que
tienen razones para valorar. La perspectiva seniana incorpora la

8
“The capability approach explicitly aims at providing an alternative to normative views that rely exclusively on
mental states in their evaluative exercises… Sen is concerned not only with the information that is included in a
normative evaluation, but also with the information that is excluded. The non-utility information that is excluded by
utilitarianism includes a person's additional physical needs, due to being physically disabled for example, but also
social or moral principles, such as human rights or the specific principle that men and women should be paid the
same wage for the same work. For a utilitarian, these features of life and these principles have no intrinsic value.”
(Robeyns, 2016).
62 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

dimensión subjetiva de la autoestima y de los modos de intercambio


cultural, dentro de un contexto de factores ambientales y del entorno, que
son determinantes del ser político de la persona humana, con sus sueños,
deseos y preferencias.
Teniendo en cuenta la centralidad que revisten el entorno y el ambi-
ente en el proceso de realización y materialización de la libertad, la
categoría de la sostenibilidad ambiental se convierte en una necesidad
transversal de la política social. Para analizar la transversalidad de la sos-
tenibilidad ambiental en la política social dentro del marco epistemológico
de la teoría de Amartya Sen, se desarrolla un hilo expositor, con dos mo-
mentos. En un primero término se aborda la noción de “entorno” como
categoría transversal a la propuesta de desarrollo introducida por el teó-
rico hindú. En un segundo momento se desarrolla una posible articulación
de las nociones de desarrollo de capacidades y libertades de elección, en
torno a la idea de espacio, con base en consideraciones prácticas sobre el
estudio de caso de la política social ofrecida por el Robierno de Colombia a
la comunidad del Río Yurumanguí, ubicada en una zona rivereá y marginal
de la región del pacífico colombiano.

La noción de espacio como categoría transversal al enfoque de


capacidades

Para comprender la tansversalidad del problema del espacio en las


políticas públicas de sostenibilidad, es necesario definir la relación entre
desarrollo de capacidades, libertad de elección y desarrollo sostenible. Es
posible observar una correlación en la que el Estado, como garante de de-
rechos, debe promover el desarrollo de las capacidades que resultan
valiosas para la comunidad, en virtud de su contexto socio-ambiental. En
esta relación, el contexto socio-ambiental, o el “espacio”, adquiere una re-
levancia central, pues entra a determinar la posibilidad misma de
desarrollar las capacidades y los funcionamientos, en suma, el ejercicio de
la libertad. Por lo tanto, la perspectiva de la estabilización socio-económica
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 63

incorpora la necesidad de promover una relación con el espacio según cri-


terios de sostenibilidad ambiental.
La teoría de Amartya Sen (1989) sugiere una relación transversal de
carácter ético entre el espacio y la libertad, al ser el primero la fuente y
condición de posibilidad para el desarrollo de las capacidades. El espacio
entra en una relación de carácter ético con la idea de libertad como desar-
rollo de capacidades, pues una capacidad llega a tener sentido cuando es
plenamente funcional para desarrollar el proyecto que dicho sujeto tiene
razones para valorar, en las condiciones dadas del espacio socio-ambiental
(Fig. 1).
Fig. 1: Articulación ética del espacio con la libertad como desarrollo de capacidades.

ESPACIO/AMBIENTE

funcionamientos logrables/functioning

a) Persona fín en sí misma (b) Libertad como desarrollo de (c) Desarrollo como libertad
capacidades

(origen) (medio) (finalidad)

Figura 1: Elaboración propia basada en Sen (1989) Sobre ética y economía.

El enfoque de capacidades suscribe una concepción de la justicia en-


tendida como igualdad de capacidades básicas (basic capability equality).9
Este tipo de igualdad, sin embargo, es relativo a las concepciones de la vida
buena que darían lugar a distintos funcionamientos logrables (Sen, 1982),
según la situación objetiva y subjetiva del espacio. Situación contemplada
de modo distinto para otras concepciones de la justicia como satisfacción
de necesidades básicas, en las cuales las relaciones con el espacio y el am-
biente son factores secundarios. Para el enfoque de capacidades, en
cambio, la idea de espacio es transversal, justamente porque la persona
optaría por desarrollar ciertas capacidades según lo que su entorno le su-
giere (Sen, 1989).

9
“No afirmo que la igualdad de la capacidad básica sea la única guía del bien moral. La moralidad, para empezar, no
se ocupa solo de la igualdad. Por otra parte, si bien sí afirmo que la igualdad de la capacidad básica tiene ciertas
ventajas claras sobre otros tipos de igualdad, no creo que los otros sean moralmente irrelevantes. La igualdad de la
capacidad básica es una guía parcial de la porción del bien moral que se ocupa de la igualdad. He intentado demostrar
que como guía parcial tiene sus virtudes que no poseen otras caracterizaciones de la libertad.” (Sen, 1982, 369).
64 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

La idea de libertad como desarrollo de capacidades activa todo un sis-


tema de relaciones conceptuales en torno a la idea de funcionamiento
lograble o función (functioning). Un funcionamiento lograble está supedi-
tado a condiciones materiales mínimas, hasta cierto punto universales,
englobadas en este enfoque dentro de la categoría de basic capability equa-
lity. A través esta categoría el CA consigue integrar esta dimensión
sustancial de la libertad o substantial freedom, “somewhere between ne-
gative liberty and well-being or happiness. Sen appears to believe that the
more substantial freedom one has, the happier one is likely to be.” (Garret,
2011, 21).
En efecto, la idea de garantizar una libertad sustantiva implica que
existan, justamente, condiciones materiales (más que sólo formales) para
el ejercicio de las libertades. Se trata de condiciones materiales relativas al
entorno de oportunidades ofrecidas por el espacio socio-ambiental. Este
aspecto material sería el fundamento de un ejercicio auténtico de la liber-
tad de elegir como desarrollo de capacidades (Sen, 2002).
El espacio no es para nada un categoría estática y puramente objetiva,
sino más bien una construcción (Fig. 2), que resulta de una combinación
de factores objetivos (materiales/ambientales) y factores subjetivos (cul-
turales/significativos). En la forma de funcionamientos logrables se
cristalizan las elecciones concretas de los individuos, las cuales son viables
como elecciones únicamente si existen condiciones materiales de libertad
sustantiva, las cuales condiciones debe contribuir a ampliar “la capacidad
de la población para realizar actividades elegidas y valoradas libremente”
(Sen, 1998, p. 89).
Fig 2. Construcción del espacio desde la libertad sustantiva.

AMBIENTE

funcionamientos logrables/functioning

(a)’ Libertad sustantiva (b)’ Basic capability equality (c)’ Libertad de elegir

(origen) (medio) (finalidad)

Figura 2: Elaboración propia basado en Sen (1989), Choice, Welfare and Measurement
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 65

Global commons

Una mirada centrada el entorno sugiere enfocar la correlación exis-


tente entre el desarrollo de capacidades y la calidad de los bienes
ambientales (Sen, 2010). En realidad, existe una relación de ida y vuelta,
pues al tiempo que el desarrollo de capacidades y funcionamientos está
condicionado por la calidad de los bienes ambientales, éstas mismas capa-
cidades y funcionamientos acarrean importantes consecuencias en la
calidad del medio ambiente. Más aún, sería posible sostener que la calidad
y manejo de los global commons es una condición de posibilidad para de-
sarrollar todo proyecto de vida buena en la Tierra (Bromley and Cochrane,
1994; Bromley 1995; Schrijver 2016, Wijkman 1982).
La literatura contemporánea ha enfatizado la centralidad de la cali-
dad y el manejo de los global commons (agua, are y tierra) en el ejercicio
de la libertad local y la gobernanza nacional y global (Obeng-Odoom 2016,
Last 2017, Chichilnisky-Heal and Chichilnisky 2016, Cogolati and Wouters,
2018). La distribución y el cuidado de estos bienes ambientales se ha con-
vertido en una prioridad de la agenda internacional:

the developed countries take up an unequally large share of what are called
“the global commons” – the common pool of air, water and other natural space
that we collectively can share. (…) is a contemporary fact that has to be taken
into account in looking for a plausible contract about how to share the burdens
of environmental control among different countries today (Sen, 2010, 134).

La centralidad de la noción de entorno pone de presente que el desar-


rollo de capacidades para el ejercicio de la libertad tiene lugar en un
espacio natural, el cual no sólo es condicionante de las preferencias y los
funcionamientos, sino que además es condición de posibilidad para el ejer-
cicio de una verdadera liberad de elegir. Sollow (1993) aboga, en tal
sentido, por una planeación sostenible, donde el desarrollo de capacidades
en el presente no comprometa las condiciones ambientales necesarias para
el desarrollo de las capacidades de las generaciones futuras.
66 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

En virtud de esta preocupación por el contexto de posibilidad ambi-


ental para el desarrollo de capacidades en las generaciones presentes y
futuras, el CA entra a incorporar un principio de auto-limitación, a través
de la categoría de functioning constraints. Partiendo de la Exposición de
las teorías del desarrollo a principios del siglo XXI (Sen, 1998), Rauschma-
yer & Lessmann (2013) deducen la necesidad de incorporar functioning
constraints, o normas de auto-limitación, en el ejercicio de las capacidades
y funcionamientos, en un intento por conceptualizar la noción de desar-
rollo sostenible desde el enfoque de las capacidades.10
Estos functioning constraints contrastan con los meros functionings
o funcionamientos, los cuales suelen ser interpretados en su aspecto neta-
mente positivo o afirmativo. si bien el desarrollo de capacidades multiplica
las oportunidades reales para el individuo ejercer su libertad, este ejercicio
debe ser responsable y establecer normas de auto-limitación, orientadas a
garantizar la sostenibilidad ambiental de las prácticas productivas y de
consumo. En este marco, la auto-limitación se concibe como factor indis-
pensable en el proceso sostenible de desarrollo de capacidades.
Las anteriores consideraciones dan lugar a proponer una construc-
ción conceptual de la idea de sostenibilidad ambiental desde el enfoque de
capacidades. En el esquema propuesto (fig. 3), la idea de sostenibilidad
está fundamentada sobre una concepción de espacio que tienen una doble
función. El espacio es por un lado la estructura que da lugar a los funcio-
namientos logrables que un comunidad o sujeto pueden llegar a preferir.
Al mismo tiempo, ese mismo espacio o ambiente impone al sujeto adoptar
normas de auto-limitación, como parte de su compromiso ético con las
generaciones futuras.
A través de la noción de espacio, el enfoque de capacidades incorpora
la dimensión sustancial o material en el derecho a la libertad. Al resaltar el
estatus de la persona humana como un fin en si mismo, se reitera que la

10
Rauschmayer & Lessmann “argue for introducing ‘functioning constraints’ in order to protect the freedom of
others, including that of future people. By so doing point to the impact of an individual’s decision on others and
hence to individual responsibility for sustainable development. (Rauschmayer & Lessmann, 2013, 96).
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 67

persona debe estar en la capacidad efectiva de ejercer esa libertad. El cál-


culo del desarrollo ya no se centraría en la riqueza agregada, sino en las
capacidades objetivas y sustantivas que el Estado sería capaz de proporci-
onar, con un enfoque diferencial centrado en las particularidades del
espacio socio-ambiental; un medio ambiente que impone normas de auto-
limitación. La noción de espacio/ambiente es, a la vez, la base y el límite
de la libertad de elegir (Fig. 3).
Fig. 3 Construcción conceptual de la idea de sostenibilidad desde el enfoque de capacidades

ESPACIO/AMBIENTE

funcionamientos logrables/functioning

(a) Persona fín en sí misma (b) Libertad como capacidad (c) Desarrollo como libertad

(a)’ Substantive freedom (b)’ Basic capability equality (c)’ Libertad de elegir

(origen) (medio) (finalidad)

Functionig constraints/normas de autolimitación

GENERACIONES FUTURAS

Elaboración propia.

Implicaciones metodológicas en la política social: análisis de caso

La articulación teórica del enfoque de capacidades alrededor de la no-


ción de espacio tiene como consecuencia la centralidad de una idea de
libertad en sentido sustantivo. La propuesta que resulta de esta apuesta
teórica sugiere posibles rutas metodológicas para el diseño de política pú-
blica social, donde la estrategia de intervención debe adaptarse a la
dinámica de los funcionamientos logrables de la comunidad, desde una ló-
gica de cuidado y adaptación al medio ambiente. Para tal propósito,
resulta ejemplar el caso de la política social ofrecida por el Gobierno de
Colombia a la comunidad del río Yurumanguí, para algunos uno de los ríos
mejor conservados del pacífico colombiano.
Se trata de una comunidad adaptada cultural y productivamente a la
vida de río, en una zona donde el intercambio y la movilidad tienen una
predominancia fluvial. El sustento cultural y económico del espacio emana
68 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

del río, al cual se asigna una importancia ecológica y social. Los métodos
de pesca artesanal y las técnicas agropecuarias y constructivas ancestrales
se han adaptado a esta realidad física, lo mismo que las festividades y ce-
lebraciones se refieren y rinden culto al río. El cuidado del río comporta
una simbología espiritual y una gran importancia material y de intercam-
bio.
En el caso de la comunidad del río Yurumaguí se hace evidente cómo
el espacio/ambiente moldea las convicciones de vida buena y determina lo
que las personas tienen razones para valorar. Los determinantes ambien-
tales delimitan el alcance de los funcionamientos logrables, al punto que
las capacidades que tiene sentido desarrollar son aquellas que permiten a
la comunidad vivir de forma sostenible con y para el río. Por esta razón,
las autoridades tradicionales de la zona han priorizado la conservación del
ambiente natural y el ecosistema del río como elemento central de su
agenda organizativa.
Desde el punto de vista metodológico, la concepción del espacio mol-
dea el alcance de los funcionamientos logrables y, por lo mismo, determina
cuáles serían las capacidades cuyo desarrollo tendría un sentido específico
y contextual. En el caso examinado, la comunidad establece una relación
colectiva con el espacio, a través de la existencia de una autoridad étnica,
por lo cual las capacidades a desarrollar no son únicamente capacidades
individuales, sino fundamentalmente capacidades organizativas de la au-
toridad tradicional. Capacidades colectivas que, en virtud de la
importancia del ecosistema del río para la comunidad de Yurumanguí, re-
dundan en funcionamientos logrables ambientalmente sostenibles (Fig.
3).
Fig. 3 Modelo metodológico para el desarrollo de capacidades en la comunidad de Yurumanguí

ESPACIO/AMBIENTE

funcionamientos logrables/functioning

(a) Persona fín en sí misma (b) Libertad como ampliación de la (c) Desarrollo como libertad
capacidad

(a)’ Substantive freedom (b)’ Basic capability equality (c)’ Libertad de elegir
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 69

(a)’’ Desarrollo de capacidades (b)’’ Autoridad étnica (c)’’ Sostenibilidad ambiental

(origen) (medio) (finalidad)

Functionig constraints/normas de autolimitación

GENERACIONES FUTURAS

Elaboración propia.

El Consejo Comunitario de Yurumanguí, como autoridad étnica de la


zona, ha logrado permear el funcionamiento de su medio ambiente como
punto principal para el desarrollo de capacidades, centrándose en la sos-
tenibilidad ambiental en torno al cuidado del agua y el Río. El progreso de
los proyectos productivos y de las asociaciones de economía propia - in-
cluidas las asociaciones productivas y sociales- establecen una relación
estrecha entre el aprovechamiento del espacio y la sostenibilidad ambien-
tal. El desarrollo de capacidades construye un ámbito de libertad
sustantiva, en un contexto donde estas capacidades son administradas co-
lectivamente, a través de una autoridad étnica. Esta autoridad se encarga
de replicar y reproducir las capacidades desarrolladas, construyendo un
marco de igualdad de capacidades básicas. En el caso, la ampliación de
capacidades y funcionamientos logrables ha llevado a la comunidad a com-
prender la libertad de elegir dentro de un marco de sostenibilidad
ambiental y normas de auto-limitación.
Los desafíos y retos que comporta el desarrollo de capacidades en la
zona recaen, por lo tanto, en la capacidad efectiva de las comunidades para
interactuar con las condiciones materiales del espacio, en un equilibrio en-
tre el principio de la persona como fin en si mismo y la idea de adoptar
normas de auto-limitación, que permitan la sostenibilidad ambiental de
comunidades generaciones presentes y futuras.
El enfoque de capacidades tiene ondas implicaciones metodológicas
para el diseño de política pública social y supone también grandes retos,
especialmente relacionados con el hecho de precisar el contenido de los
70 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

funcionamientos logrables (Cato, 2020).11 La mirada centrada en el espacio


permite, sin embargo, enfatizar la importancia que tienen dichos funcio-
namientos logrables para hacer efectivo el ejercicio del derecho a la
libertad. El análisis de la centralidad del espacio en el caso estudiado per-
mite concluir que la gestión de las capacidades adquiridas debe ser
ambientalmente sostenible.
La estrategia de acompañamiento socio-productivo del Estado colom-
biano a la comunidad del río Yurumanguí es un caso de aplicación exitosa
del enfoque de capacidades a la política social con enfoque diferencial ét-
nico. El caso no sólo muestra la dependencia funcional de un grupo
marginal con respecto a las condiciones físicas del espacio, sino que pone
en acción todo un andamiaje conceptual que permite articular la preocu-
pación por la libertad de la persona individual (fin en si mismo) y la auto-
limitación para el cuidado de los bienes comunes ambientales.
En virtud de ese peso relativo asignado el ambiente/entorno en la
propuesta epistemológica y metodológica del CA, este enfoque ha mos-
trado un gran dinamismo a la hora de ofrecer respuestas ante la crisis de
salud pública y crisis de los funcionamientos logrables desatada como con-
secuencia de la pandemia de COVID-19. Una intensa literatura ha tomado
la palestra para presentar el enfoque de capacidades como una posible sa-
lida a esta crisis, eminentemente ambiental, económica y de intercambio
cultural (Biggeri 2020, Venkatapuram 2020, Manley, 2020). Ante la trans-
formación dramática del tipo de vida en el planeta, el CA ofrece un
instrumental pertinente, cuya intención precisa es facilitar el ejercicio de
la libertad humana, en una perspectiva de adaptación a los nuevos contex-
tos medio ambientales.

11
En virtud de esta dificultad metodológica, Susumu Cato ha propuesto adoptar un “enfoque interseccional exten-
dido.” “The intersection approach is a common method of overcoming a conflict among multiple values. Under this
approach, a state is more desirable than another if it is so for all criteria in question. A fundamental difficulty is that
judgment under the intersection approach lacks completeness in too many cases. We propose alternative methods
that extend the intersection approach: the union and union-intersection approaches. Our methods generate a (quasi-
)coherence judgment which is more completed and can be applied to most problems of ethical indices.” (Cato, 2020,
231).
Belinha Herrera; Diego Hernandez | 71

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70
5

Desarrollo sostenible y enfoque de las capacidades


desde una perspectiva de género:
Contribuciones de las teorías de
Amartya Sen y Martha C. Nussbaum

Alina Celi Frugoni 1

1. Introducción

¿Es posible el desarrollo sostenible sin el combate a la pobreza que


padecen millones de mujeres y niñas en el mundo? ¿Qué relación existe
entre el reparto del poder político y económico mundial y el empoderami-
ento de las mujeres y niñas? ¿Qué tanto dependen el fortalecimiento de
las democracias y la paz mundiales de la equidad de género? ¿Puede la
economía mundial reorientarse (éticamente) hacia una sociedad igualita-
ria y más justa? Estas interrogantes están vinculadas a las desigualdades
que padecen millones de personas en el mundo, pero muy especialmente
por su condición y número, a las mujeres y niñas. Estas preguntas persis-
ten, aún pendientes de acciones (respuestas) en el seno de las democracias,
comunidad internacional y otras instituciones y se reiteran en ocasión del
estudio del desarrollo humano y del desarrollo sostenible.
La discriminación de género se advierte en la ausencia de empodera-
miento de mujeres y niñas, en las fallas de los programas sociales y

1
Doctora en Derecho Ambiental (Universidad de Alicante). Profesora de Derecho Ambiental, (Universidad Interna-
cional Iberoamericana- UNINI. Universidad de la Empresa-UDE). alina.celi@gmail.com.
ORCID ID: 0000-0003-2587-0013.
76 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

políticos respecto del acceso igualitario a la vivienda, a los servicios de sa-


lud, al empleo y la educación, en las inequidades de la distribución de la
renta y los riesgos a que se ven enfrentadas; y por sobre todo, en la ausen-
cia de posibilidades de autodeterminación.
Los indicadores de Naciones Unidas (2018), muestran que las muje-
res están por debajo de los hombres en cada uno de ellos; el 70% de las
personas que padecen hambre en el mundo son mujeres; 15 millones de
las niñas, nunca aprenderán a leer ni a escribir. En América Latina, si bien
ha habido avances respecto de otras regiones, 124 mujeres por cada 100
hombres viven en situación de extrema pobreza.
El informe de seguimiento de los ODS de ONU Mujeres (2018):
“Transformar las promesas en acción: la igualdad de género en la Agenda
2030”, revela los avances y persistencia de brechas respecto del empode-
ramiento de las mujeres.
El informe de observación del cumplimiento de los Objetivos del De-
sarrollo Sostenible, ONU Mujeres (2018b), “Hacer las promesas realidad:
La igualdad de género en la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible”,
arroja datos relativos a los niveles de pobreza en 89 países, con 330 millo-
nes de mujeres y niñas pobres; brecha se profundiza en la edad
reproductiva. El acceso a recursos como agua potable, saneamiento o vivi-
enda adecuada, constituye un problema para más del 50% de las mujeres
y niñas en medios urbanos de países en vías de desarrollo. Estas condicio-
nes se deben también al estrecho vínculo de las mujeres con el ambiente,
como ante la pérdida de 3,3 millones de hectáreas forestales, dada entre
2010 y 2015.
El informe mencionado, realiza un llamado urgente a la comunidad
internacional, pone de relieve la necesidad de acciones y realiza recomen-
daciones, para superar la situación de violencia de los derechos humanos
de millones de mujeres y niñas. Son necesarias, políticas integradas con la
generación de sinergias; el desarrollo de indicadores, con el fin de medir
qué está sucediendo con los 17 ODS respecto a los avances o retrocesos en
la superación de las inequidades respecto a mujeres y niñas; existen falta
Alina Celi Frugoni | 77

de datos e información específica sobre mujeres y niñas en los respectivos


informes de los ODS. Se destaca la necesidad que participe la sociedad
activamente y se hace un llamado al cumplimiento de los compromisos y
rendición de cuentas de aquellos que ostentan el poder.
El desarrollo sostenible actual, tal como fuera presentado en la Con-
ferencia sobre Desarrollo y Medio Ambiente de Río (1992), constituye una
aspiración mundial que requiere de una urgente de reconversión ética y
sociocultural de la humanidad, con el fin de favorecer los niveles de igual-
dad de acceso a las oportunidades que posibiliten, el ejercicio de los
derechos de las presentes y futuras generaciones. De las postergaciones
presentes quienes más las padecen son mujeres y niñas y de continuar con
este modelo social, la discriminación de género persistirá para las futuras
generaciones.
La relación de la discriminación por género, la violencia social y fa-
miliar, la pobreza de las naciones, así como los impactos ambientales, en
sentido macro, han determinado la necesidad, que la comunidad interna-
cional aborde las distintas políticas ambientales y de desarrollo
(sostenible) a partir de un enfoque de género, entre otros. El desarrollo
humano es un derecho humano fundamental y el desarrollo sostenible ha
pasado a ser una cuestión de derechos humanos; por la relación intrínseca
que el ser humano guarda con el ambiente y por sus deberes éticos con las
generaciones futuras.
La discriminación por género obstaculiza el desarrollo sostenible, en
el entendido que, sin las garantías de los derechos humanos, el menoscabo
de derechos y libertades, el impacto continuará siendo global y planetario.
En el ámbito de las Naciones Unidas, los Objetivos del Desarrollo Sosteni-
ble (ODS), han tenido en cuenta esta realidad y fundamentos, en el plan
aprobado por los Estados en 2015, para la Agenda 2030. Dentro de las 17
metas propuestas, se prevén entre otras, el fin de la pobreza, hambre cero,
salud y bienestar, educación de calidad, igualdad de género. El desarrollo
sostenible, como aspiración mundial, constituye una dinámica imposible
de ser alcanzada, de no cumplirse dichas metas.
78 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Los Informes 2020 (UN, SDG) sobre equidad de género y empodera-


miento de mujeres y niñas, han puesto de relieve el retroceso en la
remoción de barreras sociales, legales y culturales para el empoderami-
ento, entre otras causas, debido a la crisis del COVID-19. El incremento de
riesgo de violencia en mujeres y niñas en el ámbito doméstico y la dedica-
ción de mayor tiempo en trabajos impagos, constituyen violaciones de
derechos que impiden que mujeres y niñas, logren posiciones de equidad
con respecto a los hombres y niños.
América Latina, presentó mejoras en lo que respecta a la disminu-
ción de la brecha de inequidades por género entre los años 1990-2010, en
un contexto político de sistemas de gobiernos democráticos, según conclu-
yen Braunstein E., y Seguino S. (2018); por medio del gasto público e
inversión y de políticas públicas, que incorporaron el enfoque de género.
Sin perjuicio de lo cual, otras vías de desarrollo no se han tenido en cuenta
para generar empleo para las mujeres. Los gobiernos han mantenido su
preocupación en los flujos de capital global y la disminución de la inflación,
lo que demuestra la dificultad de considerar el enfoque de género en los
aspectos macroeconómicos.
La disociación del manejo de la economía y mercados, y las políticas
públicas con enfoques de género, alejan las posibilidades de empoderami-
ento de las mujeres y su impacto favorable en el desarrollo sostenible. Sen
(2000), destaca la responsabilidad de los Estados en la función de dignifi-
car las personas por medio de una serie de acciones que implican además
un sano equilibrio con los mercados. Los mercados tienen además una
función de responsabilidad socioambiental, en la medida que deben ser
capaces de devolver a la sociedad las utilidades que esta le presta en dis-
tintos sentidos; a vía de ejemplo por los servicios ambientales que brindan
los recursos naturales, utilizados como materia prima para la producción
de bienes y servicios. En el marco del desarrollo sostenible, los mercados
deben generar empleo de calidad y los Estados son responsables de man-
tener ese equilibrio entre lo que el mercado toma de la sociedad y lo que
entrega.
Alina Celi Frugoni | 79

En ambos casos, tanto en la existencia de políticas públicas con enfo-


que de género, como en la acción de los Estados para posibilitar el acceso
equitativo de las mujeres a los mercados de trabajo, se requieren de con-
textos democráticos de gobierno, en que los derechos humanos, sean
promovidos y garantizados. La promoción debe estar orientada hacia el
fomento de la autogestión y autoprotección; las políticas públicas con en-
foque de género justifican su existencia en la desprotección de las mujeres
y niñas, y no debieran en un sistema basado en la igualdad de derechos y
oportunidades, ser cuna de lo que Sen (2000) denominó, “receptores pa-
sivos de beneficios de ingeniosos programas de desarrollo”. Por ello el
desarrollo sostenible, como modelo global, requiere que los cambios es-
tructurales macroeconómicos que posibiliten, la generación de empleo, el
acceso a la educación y al mercado para mujeres y niñas y sean basados en
el consenso mundial.
La convergencia de enfoques de las capacidades y de género, a partir
de las contribuciones de Amartya Sen y Martha C. Nussbaum favorecen el
debate social sobre los fundamentos éticos y morales de los derechos hu-
manos, los contenidos de las garantías de estos derechos en términos de
equidad y justicia social, en un marco universal, con el respeto debido de
las diferencias culturales, en contexto de democracias participativas y sis-
temas políticos liberales, en que la libertad de la persona y la dignidad,
constituyen los ejes fundamentales.

2. Complementariedad de los enfoques de las capacidades y de género


para las políticas públicas globales

El enfoque de las capacidades de Amartya Sen y los aportes de Martha


Nussbaum, constituyen importantes contribuciones teóricas, para los pro-
cesos de empoderamiento de mujeres y niñas, necesarios para el
desarrollo sostenible. Es posible observar la aplicación del enfoque de las
capacidades para el desarrollo sostenible, en un contexto social y político
democrático que complemente la equidad de género, hacia la superación
80 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

de las desigualdades sociales. No se trata de integrar el enfoque de género


pretendiendo una cooperación social que en cierto sentido resulta insufi-
ciente, pues lo que puede representar un beneficio para las mujeres, puede
no ser ventajoso o visto como tal, por otro; teniendo en cuenta que la ga-
rantía de igualdad requiere de sacrificios individuales y de las nacionales
más ricas, como afirma Nussbaum (2013, p.335).
Nussbaum (2013, p. 338) que escapa a la teoría clásica del contrato
social pues la considera insuficiente, destaca que a la misma le preceden,
“ideas más ricas e inclusivas de cooperación humana”, como las de Aristó-
teles, llevadas al plano internacional por Cicero y por los estoicos romanos.
El enfoque de las capacidades para la autora se inscribe en ese contexto en
que la ética y la moral son el sustento principal, para la efectividad del
enfoque de los derechos humanos y se encuentra íntimamente ligado al
mismo (Nussbaum, 2013, p. 350).
El desarrollo sostenible es un derecho humano y como tal integra
esas capacidades a que toda persona tiene derecho a acceder. El mismo
comprende a las generaciones presentes y futuras, cuyo fundamento está
en el principio de solidaridad intergeneracional, que lo dota de un conte-
nido ético (Celi, 2020); por lo que el enfoque de las capacidades asociado
al desarrollo sostenible extravasa las presentes generaciones y ha de ex-
tenderse a las futuras.
Este enfoque de las capacidades permite explorar aspectos que desde
el Derecho constituyeron objeto de controversias, acerca de los derechos
de generaciones aún no nacidas. Si se piensan los derechos de las genera-
ciones futuras, en términos de capacidades y en tanto libertades (Sen,
2013, p. 401) se comprende que las capacidades de las presentes generaci-
ones, por fuera de un contexto ético y moral, comprometen sus derechos
y libertades en el doble sentido atribuido por Sen (2013, p.262): como
oportunidad para la búsqueda de objetivos y desde la importancia del pro-
ceso de elección; bajo “la certeza de que no estamos siendo forzados a algo
por causa de restricciones impuestas por otros”, como afirma el autor. La
Alina Celi Frugoni | 81

distinción para Sen, que denomina de “aspecto de oportunidad” y “aspecto


de proceso”, de la libertad, “puede ser significativa y de largo alcance”.
Todas las capacidades suponen derechos fundamentales de los ciuda-
danos, la falta de una de ellas no es compensada por otra. Ello es claro en
la vida de las niñas, que debido a la falta de acceso a la educación surge la
compensación de dicha ausencia en la familia (Nussbaum, 2013, p. 205),
como a través de matrimonios prematuros. Las mujeres soportan una
mayor carga de trabajo que los hombres, mientras que solo se remunera
un tercio de sus tareas; y de los 1300: de personas en situación de pobreza,
el 70% son mujeres (De La Calle, 2008). Afirma De La Calle (2008) que es
necesaria la reinvención de los procesos de socialización, en todos los ám-
bitos (familia, universidad, trabajo, medios de comunicación, partidos
políticos y órganos de decisión políticos y económicos); aspecto que coloca
en primer lugar, los contextos.
La lucha es necesaria en contextos precisos donde existe una discri-
minación especial en mujeres y niñas (Blázquez Agudo E.M. 2017), con el
fin de cumplir con procesos de recreación de valores; para ello se requieren
sistemas de valores liberales, democracias cuyos fundamentos descansan
en la igualdad de las personas y la libertad de expresión y en los que el
Estado juega un rol garante de los derechos y libertades.
Respecto al desarrollo sostenible como plan mundial, afirma Nuss-
baum (2013, p.339) que el enfoque de las capacidades requiere de la
cooperación social, principios e instituciones que sean capaces de garanti-
zar a las personas, la efectividad de las capacidades y que puedan a su vez,
ser capaces de exigirlas efectivamente; lo que determina un estrecho vín-
culo con las instituciones, lo constitucional y organizativo.
El poder político y el económico, se encuentran en el eje del debate y
la distribución justa de los recursos para el cumplimiento del desarrollo
sostenible, además como designio ético. La teoría del bien de Nussbaum
deriva de la idea de igualdad en la dignidad, que supone la descripción de
82 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

los derechos humanos y desde el inicio su distribución equitativa entre to-


dos; pues esos derechos, se basan en la justicia y el acceso a “un mínimo
de cada uno de los bienes centrales de la lista de las capacidades” (p.345).
La problemática del desarrollo sostenible es de justicia social y el po-
der de la sociedad actúa de contrapeso del uso del poder político de los
Estados y económico de los mercados, en la medida que estos últimos no
contemplan las urgencias ambientales y sociales. Uno de los mayores ries-
gos para la economía mundial es el deterioro del ambiente y la pérdida de
capital ambiental. Para que la balanza se incline hacia la conservación y
uso sostenible, son necesarias reconversiones tecnológicas y sobre todo,
éticas; por ello la planificación económica de la conservación y uso de los
recursos naturales, abarca a las generaciones presentes y futuras, de modo
de garantizar los derechos y libertades.
Como bien dice De La Calle (2008), las aspiraciones del desarrollo
sostenible de cara a las inequidades de género requieren, fomentar “el re-
parto del poder político y la participación plena e igualitaria de decisiones
de hombres y mujeres”. Y para ello es necesaria la coincidencia del enfoque
de las capacidades con el enfoque de género.

3. Universalismo del enfoque de las capacidades en Martha C.


Nussbaum para el desarrollo sostenible

La visión antropocentrista de la Declaración de Rio de 1992 en el prin-


cipio 1, considera a los seres humanos como centro de las preocupaciones
relacionadas con el desarrollo sostenible, es de carácter global e internaci-
onal y como señala García Viera V. (2012, p.27), ello “coloca el desafío de
la reestructuración de las relaciones internacionales entre Estados, socie-
dades, grupos sociales, empresas e individuos” y la multilateralidad de las
relaciones internacionales; generando como dice el autor, una multiplica-
ción de temas no circunscriptos a los territorios nacionales, como la
protección del ambiente y el desarrollo sostenible, la necesidad de reducir
la pobreza y las desigualdades sociales.
Alina Celi Frugoni | 83

En el enfoque de las capacidades, los derechos, centrados en la digni-


dad humana son el núcleo de la concepción como afirma Nussbaum (2013,
p. 385), pero también son importantes, aspectos estructurales. La sobera-
nía como límite, también es fundamental desde el concepto novedoso,
basado en su “importancia moral, como modo de las personas tener afir-
mación de su autonomía, su derecho de dar a sí mismas, leyes propias”.
(Nussbaum, 2013, p. 386).
La reestructuración de las relaciones internacionales a que V. García
Viera (2017, p.27) refiere, supone el análisis de modelos democráticos y de
su transición hacia una real democracia de género (Celi, 2009), en el que
enfoque de capacidades y de género, se complementan. El fin consiste en
permitir el ejercicio libre de los derechos y el acceso a las posibilidades de
desarrollo de las capacidades individuales, fortaleciendo la sociedad demo-
crática. La cooperación social ha de estar orientada por la dignidad
humana y de la libertad, posibilitando el acceso a los derechos efectivos de
un modo equitativo. Las barreras de género relativas a las desigualdades
de mujeres y hombres, en el acceso al empleo, la seguridad, la educación y
la equidad frente a las instituciones, privadas y públicas, confirman la im-
posibilidad de avanzar hacia un modelo de desarrollo sostenible y la
insuficiencia y límites de la cooperación social dentro de los Estados.
La teoría de Nussbaum es universal. Las capacidades son atribuibles
a distintas culturas, sin que ello represente una injerencia ni menoscabo
en las mismas. Existen valores universales y normas, que permiten que el
enfoque de las capacidades pueda ser aplicado en todas las naciones (Nus-
sbaum, 2000, p. 35). La teoría de las capacidades de Nussbaum
fundamenta un feminismo universal, que se enriquece por medio de una
lista abierta y sujeta a revisión. El enfoque de las capacidades recae sobre
el “hacer” y el “ser”. El modelo propuesto por Nussbaum tiene cabida en
una sociedad plural y en el contexto del liberalismo político. (Di Tullio
Arias, 2013). Este último aspecto, como señala Di Tullio Arias (2013) le ha
valido muchas críticas basadas en un concepto tradicional del liberalismo
84 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

y desde una corriente feminista clásica. El rechazo de la teoría de Nuss-


baum por el feminismo clásico se fundamenta en sus luchas de origen con
el liberalismo político y económico de la década del ´60 y ´70.
Por otro lado, el desarrollo sostenible como aspiración global, solo es
posible en un contexto de liberalismo político y de liberalismo económico
reorientado hacia los fines éticos mencionados. El modelo de liberalismo
político y económico se ve reafirmado en el principio 12 del Convenio de
Río (1992), pues expresa que los Estados “deberían cooperar en la promo-
ción de un sistema económico internacional favorable y abierto que llevara
al crecimiento económico y el desarrollo sostenible de todos los países, a
fin de abordar en mejor forma los problemas de la degradación ambien-
tal”. Y agrega respecto a las medidas de política comercial con fines
ambientales, que las mismas “no deberían constituir un medio de discri-
minación arbitraria o injustificable ni una restricción velada del comercio
internacional”.
El carácter universal de la teoría de Nussbaum sobre el enfoque de
las capacidades, aplicable a la discriminación por género en todas las na-
ciones, recae sobre la necesidad de un marco normativo muy general
(Nussbaum, 2000, p.50). También en este aspecto, el feminismo más con-
servador ha manifestado su rechazo, aduciendo razones de paternalismo
en la teoría de Nussbaum.
Como Nussbaum afirma, lo que su teoría hace, es exponer a las per-
sonas en tanto agentes, un contenido breve sobre las libertades donde no
tiene cabida, ordenarles cuáles deben ser sus decisiones. (Nussbaum,
2000, p. 51)
Otro aporte de Nussbaum al enfoque de las capacidades, importante
para eliminar las brechas existentes entre mujeres y hombres en sus de-
rechos y libertades, es el concepto de “umbral”. Mientras que Sen apunta
a un comparativo de estándares de vida, por medio del enfoque de las ca-
pacidades y para ello el espacio será determinante, analizándose
cuestiones sobre igualdad y desigualdad social, para Nussbaum (2000,
p.12), coincidente con dicho enfoque es necesario, introducir el concepto
Alina Celi Frugoni | 85

de umbral (threshold) de las capacidades, que le permitirá definir las bases


para los principios constitucionales que los ciudadanos conocen, y en base
a los cuales pueden accionar para su reclamo ante sus respectivos gobier-
nos.
Existen además otras diferencias, respecto de la teoría de Sen y Nus-
sbaum que resultan importantes, para la complementación del enfoque de
género con el enfoque de capacidades. Una de esas diferencias, es conside-
rar todas las capacidades como igualmente fundamentales, puesto que Sen
reconoce los derechos políticos y civiles en primer lugar y luego los restan-
tes derechos. En efecto los llamados derechos de segunda generación como
la educación, resultan fundamentales para la lucha contra la discrimina-
ción y el debate, respecto a los límites de la acción de los Estados en cuanto
a su promoción y las desventajas que presentan frente a la categoría de los
derechos civiles y políticos. Ello ha sido motivo em las últimas décadas de
un creciente número de procesos de judicialización debiéndose considerar
el acceso a la educación, una categoría fundamental para el desarrollo sos-
tenible y el empoderamiento de las mujeres y niñas.
Por otra parte, como afirma Nussbaum (2000, pp.12-13) comparando
sus puntos de vista con los de Sen respecto al enfoque de las capacidades,
el mismo no ha explicitado el principio de las capacidades de cada persona
(principle of each person’s capability), a pesar de lo cual, tanto Sen como
Nussbaum, están de acuerdo en la necesidad, que prevalezcan normas uni-
versales sobre el relativismo de la pobreza y la cultura.
El funcionalismo no ha estado presente en las ideas de Sen en alusión
al concepto utilizado por Marx y Aristóteles, el que será fundamental en la
construcción teórica de Nussbaum (2000, p.14). Y por último, lo que a
juicio de la autora significa una diferencia aún más importante, Nussbaum
(2000, p.14), recae sobre la elaboración de una lista de las capacidades,
idea ausente en la teoría de Sen. Dicha lista contiene capacidades vincula-
das al desarrollo humano de tres tipos: las básicas, las internas y las
combinadas. Estos aspectos resultan de especial interés cuando se intentan
llevar a cabo, medidas de políticas públicas, percibiéndose la complejidad
86 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

en la red de capacidades, y como unas sin las otras, no son posibles de


alcanzarse. Los informes de ONU Mujeres arriba referidos hablan de estas
fallas con respecto a la necesidad de indicadores capaces de detectar el lo-
gro de capacidades más estrechamente visibles en unos ODS, que en otros.
En conclusión, los aportes del enfoque de las capacidades en Nuss-
baum contribuyen con elementos decisivos para la universalización de
marcos normativos, capaces de armonizar los niveles de igualdad, equidad
y oportunidades para las mujeres y niñas, manteniendo el respeto por las
diferentes culturas y garantizando la efectividad de políticas públicas en
consonancia con los Objetivos del Desarrollo Sustentable, complemen-
tando el enfoque de género, que por sí solo ha demostrado ser insuficiente.

4. Enfoques de las capacidades. democracia global y principios de un


nuevo orden mundial

Para Sen y Nussbaum (2013, p.352), los “derechos relevantes” son


pre - políticos y en el enfoque de las capacidades el fundamento de la rei-
vindicación de un derecho es la existencia de la persona como ser humano.
Esta afirmación se vincula con, la no admisión de la libertad negativa, en
el entendido de no interferencia del Estado, sobre todo en lo referente a la
diferencia marcada entre los derechos de primera y segunda generación.
El error consiste en que el desarrollo sostenible requiere de la efectividad
de todos los derechos y para ello de su garantía y promoción.
Por ello, tanto para Sen como para Nussbaum, el Estado tiene el de-
ber de promover las capacidades y los derechos humanos. El Estado debe
intervenir con el fin de propiciar el equilibrio de los mercados que garan-
tizan el acceso al empleo en forma equitativa de mujeres y hombres, y
actuar para garantizar el acceso a la educación y servicios de salud, de
niñas y niños; pues sin niveles de base, mínimos sociales, no existirá la
posibilidad del desarrollo sostenible; pues como afirma Nussbaum (2013,
p. 353), “el enfoque de las capacidades, al contrario, entiende la garantía
de un derecho como tarea afirmativa”.
Alina Celi Frugoni | 87

El debate público en el contexto de una propuesta nueva de democra-


cia, requiere apartarse de la clásica concepción del modelo en que la
decisión proviene de gobernantes déspotas iluminados, como señala
Fröhlich (2020) recreando las afirmaciones de Sen; pues es necesario que
los espacios de participación sean abiertos a la pluralidad en que las per-
sonas entre ellas las mujeres, puedan manifestar su condición e historias
de vida; representando la democracia un traer luz a las realidades históri-
cas y sociales que existen “en las penumbras y las sombras de la historia”.
La democracia de género ha de traer consigo una reconsideración del
desarrollo humano como eje central de la economía, en el concepto de Sen
(2009); como enfoque que promueva la riqueza humana y la prosperidad,
con equidad y justicia social. En este contexto, son especialmente impor-
tantes los principios para la estructura global, formulados por Nussbaum
(2013, pp. 388-398) orientados a un orden mundial, que favorezcan la
promoción de las capacidades humanas. Estos principios por su contenido
universalistas, éticos y razonables son aplicables al desarrollo sostenible.
Ellos son: a) La sobre - determinación de la responsabilidad que se pre-
tende recaiga parte de la responsabilidad sobre la estructura económica
mundial con el fin de combatir la pobreza y el hambre, algo que no es
alcanzable en niveles domésticos y que no significa que los Estados queden
exonerados de la responsabilidad que les cabe; b) La soberanía nacional
que debe ser respetada dentro de los límites de la promoción de las capa-
cidades humanas; c) Las naciones prósperas tienen la responsabilidad de
hacer entrega de una parte sustancial de sus PIB a las naciones más pobres.
Este principio que alude a la justicia en la distribución de la renta guarda
especial interés con respecto al desarrollo sostenible, en el entendido que
la responsabilidad por la crisis ambiental es compartida pero diferenciada,
teniendo en cuenta que los mayores beneficios son extraídos por los países
desarrollados en desmedro de los más pobres. Por otro lado es interesante
el ejemplo que ofrece Nussbaum (2013, p.389) sobre la posibilidad de los
países ricos ayudar al tercer sector de los países pobres; d) “Las empresas
multinacionales tienen la responsabilidad de promover las capacidades
88 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

humanas en las regiones que operan”, aspecto fundamental respecto a la


responsabilidad socioambiental y acciones tendentes a la educación y ca-
pacitación de la población, que faciliten la participación en la toma de
decisiones, sobre todo en los procesos de gestión de riesgos; e) “Las prin-
cipales estructuras del orden económico global deben ser planificadas de
tal modo que sean justas con los países pobres y en desarrollo”, aludiendo
a los organismos internacionales (Banco Mundial, Fondo Monetario Inter-
nacional) y sus enfoques éticos hacia el tratamiento de la pobreza; f)
“Deberíamos cultivar una esfera pública global tenue, descentralizada,
pero contundente. No siendo un Estado global una aspiración coincidente
con la teoría de Nussbaum, ello no excluye un “sistema limitado de gobi-
erno global”; g) “Todas las instituciones y (la mayoría de los) individuos
deberían prestar atención a los problemas de los desfavorecidos en cada
nación y en cada región”; h) Asistencia a los enfermos, ancianos, niños y
discapacitados, como foco importante de atención de la comunidad mun-
dial; i) El tratamiento de la familia como una “esfera preciosa” pero no
privada, aspecto esencial para vencer la violencia de género y otras discri-
minaciones de mujeres y niñas; j) La responsabilidad colectiva de todas las
instituciones e individuos en el apoyo de la educación como llave para la
autonomía de las personas actualmente desfavorecidas. Este principio cla-
ramente guarda concordancia con los derechos a la educación, conforme
lo prevén las convenciones internacionales, como derecho que posibilita la
efectividad del resto de los derechos humanos.
La enumeración de principios para un orden social global de Nuss-
baum establece, distintas responsabilidades individuales y colectivas, sean
obligaciones o deberes que responden a derechos pre - existentes, congru-
entemente con la posición de la autora (2013, p.340), respecto a que “el
enfoque de las capacidades comienza con derechos tanto en la esfera naci-
onal como en la internacional” y su afirmación que “ningún enfoque
verdadero es un puro enfoque basado en deberes…”.
Alina Celi Frugoni | 89

Conclusiones

El desarrollo sostenible, es además de un designio de carácter global,


una urgencia social, de carácter ético y político. Sin la resolución de las
emergencias ambientales y humanitarias, no estarán garantizadas ni las
libertades ni capacidades de las generaciones presentes y futuras.
El enfoque de las capacidades de Amartya Sen, con los aportes de
Martha C. Nussbaum orientados hacia un feminismo internacional, ofre-
cen sin perjuicio de las contribuciones de índole filosófica, herramientas,
capaces de ser aplicadas a las políticas públicas nacionales e internaciona-
les y por sobre todo a las acciones.
Dichas contribuciones, son urgentes respecto a las garantías y efecti-
vidad de los derechos de las mujeres y niñas, en especial con el fin de
condenar y cesar la violencia que sobre ellas recae, reducir los niveles de
pobreza, garantizar el acceso a la salud y educación y permitir su acceso a
empleo de calidad.
El enfoque de género permite observar las injusticias sociales y la ar-
bitrariedad de las medidas y acciones que son legitimados por los Estados.
Sin embargo, el enfoque de las capacidades y la lista permiten contrastar
los niveles de necesidades y urgencias y determinar los umbrales de dichas
capacidades; llevando a cabo un diagnóstico del cumplimiento de las metas
del plan de los Objetivos del Desarrollo Sostenible.

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6

A segregação espacial como limitador


de desenvolvimento na perspectiva de Amartya Sen:
estudo de caso de Passo Fundo/RS – Brasil

Pricila Spagnollo 1
Sandrini Birk Belo 2
Henrique Kujawa 3
Caliane Almeida 4

1 Introdução

A estruturação das cidades é constituída por diversos aspectos e con-


textos, sendo diretamente influenciada por interesses públicos e privados,
onde o poder aquisitivo é um condicionante fixo para a organização e dis-
tribuição da malha urbana (HARVEY, 2014). Como consequência desse
processo, a desigualdade consiste em um dos maiores problemas sociais e
territoriais, sendo facilmente identificado pela sua representação no tecido
urbano.
A segregação espacial é promotora e reprodutora da exclusão social,
uma vez que concentra diferentes classes em áreas específicas, geralmente

1
Aluna do curso de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, membro do Grupo de Pesquisa THAC-IMED e beneficiária
de Taxa PROSUP CAPES. E-mail: pricispa@hotmail.com.
2
Aluna do curso de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, membro do Grupo de Pesquisa THAC-IMED e benefici-
ária de Taxa PROSUP CAPES. E-mail: sandrinibelo@hotmail.com.
3
Orientador. Docente do mestrado de Arquitetura e Urbanismo e membro do Grupo de Pesquisa THAC-IMED. E-
mail: henrique.kuwaja@imed.edu.br.
4
Orientadora. Docente do mestrado de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora do Grupo de Pesquisa THAC-IMED
e Bolsista de Produtividade da Fundação Meridional. E-mail: caliane.silva@imed.edu.br.
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 93

vinculada à localização e ao valor do solo, sob constante impacto da espe-


culação imobiliária. Neste sentido, a acelerada urbanização unida ao déficit
habitacional e à falta de políticas públicas efetivas, tende a direcionar a
população menos favorecida para áreas afastadas do centro das cidades ou
nos seus arrabaldes, mormente, caracterizadas pelo difícil acesso, seja em
relação aos serviços públicos, urbanidade ou moradia digna (MARICATO,
2003; HARVEY, 2014), bem como pelas precárias condições de habitabili-
dade, oferta e qualidade dos serviços e infraestruturas urbanas necessárias
ao espaço de morar (ALMEIDA, 2012).
Partindo da problemática descrita, o cenário que envolve a segrega-
ção evidencia a necessidade de pensar espaços a partir de diferentes
perspectivas, unindo aspectos políticos, econômicos e sociais em prol de
uma sociedade onde o desenvolvimento não é restrito à lucratividade e ao
poder. Amartya Sen (1999) afirma que o desenvolvimento de um local ou
país não pode ser mensurado apenas pelo seu crescimento monetário ou
econômico. Entre os fatores que promovem tal desenvolvimento deve-se
destacar e atribuir a devida importância às liberdades instrumentais e
substantivas, à condição de agente e às capacitações (capability)5, que pos-
sibilitam a autonomia para que o indivíduo faça suas próprias escolhas e
participe da vida em sociedade (SEN, 1999).
Neste sentido, o presente artigo trata do impacto da segregação soci-
oespacial urbana no desenvolvimento como liberdade, pela abordagem
dos conceitos de Amartya Sen. Para tanto, o objetivo é identificar a segre-
gação socioespacial em áreas do bairro Petrópolis (Setor 04) e São Luiz
Gonzaga (Setor 05), na cidade de Passo Fundo/RS, buscando discutir e
analisar em que medida o fenômeno limita e impacta o desenvolvimento
pessoal e social, segundo Amartya Sen (1999).
Para a elaboração deste artigo, fez-se uso de pesquisa bibliográfica, a
partir da qual foi construído o embasamento teórico e revisão bibliográfica
para as análises e discussões que o tema envolve, considerando autores

5
As liberdades instrumentais (políticas, econômicas, sociais) permitem o alcance da liberdade plena (substantiva) e
desenvolvimento das capacitações, possibilitando escolhas e decisões aos indivíduos, tornando-os atuantes e partici-
pativos (condição de agente) na vida em sociedade (SEN, 1999).
94 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

como Rolnick (1994), Maricato (2003) e Harvey (2014) acerca da segrega-


ção espacial e sua relação com os conceitos de desenvolvimento defendidos
por Sen (1999). Paralelamente, foi realizado o levantamento de dados do
IBGE (Censo 2010) relacionados ao objeto de estudo (Setores 04 e 05),
juntamente com o mapeamento destas áreas, a partir de imagens de Saté-
lite, buscando localizar as ocupações irregulares existentes.
Posteriormente, foi realizado o cruzamento dessas informações e a siste-
matização de dados, buscando associar os preceitos teóricos à dimensão
real encontrada nas análises cartográficas, a fim de construir uma visão
crítica acerca do assunto.
A estrutura deste trabalho envolve um breve resgate sobre a estru-
tura urbana e a segregação espacial, destacando a formação de ocupações
irregulares em áreas de risco. Posteriormente, aborda-se a concepção de
Amartya Sen, com enfoque nos conceitos de liberdade, condição de agente
e capacitações (capability). Na sequência, é realizada a localização e carac-
terização do objeto de estudo, Setores 04 e 05 de Passo Fundo, onde foi
mapeada a presença de ocupações irregulares e realizada a discussão sobre
o assunto, cruzando a realidade encontrada com os preceitos de Amartya
Sen, a fim de entender em que medida a segregação socioespacial inibe o
desenvolvimento humano em assentamentos desse tipo. Por fim, são evi-
denciados os resultados e impressões panorâmicas acerca do tema,
destacando a relação do pensamento de Sen com as vulnerabilidades da
segregação, uma vez que os moradores destas áreas se encontram em de-
sigualdade e exclusão social, além do distanciamento espacial das áreas
qualificadas da cidade, principalmente se tratando de condições de acesso
aos serviços e infraestrutura e à vida urbana.
Entende-se que a segregação espacial consiste em uma preocupante
barreira imposta pela organização da malha urbana, considerada como
um limitador do desenvolvimento humano, já que condiciona a liberdade,
integração e igualdade social. O conjunto de cidadãos segregados tem seu
poder de escolha e oportunidades restritas, o que interfere significativa-
mente na capacidade de atuação e autonomia perante a sociedade.
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 95

2 A paisagem urbana e as questões socioambientais da segregação

O espaço urbano é caracterizado pelas constantes transformações, no


qual a dinâmica espacial permite a articulação, ruptura, adaptação, resis-
tência, metamorfoses, entre outros processos acerca da sua organização e
funcionamento, partindo dos princípios e interesses da sociedade (ou de
parte dela). Neste sentido, a paisagem urbana é influenciada por esses pro-
cessos e, ao mesmo tempo, também os influencia, em contínua
reconfiguração e expansão ao longo do tempo (VERVLOET, 2002).
A paisagem urbana, para Vervloet (2002), compreende uma série de
elementos de origem natural ou provenientes da ação humana, criados em
diferentes recortes temporais, que estão sujeitos às transformações decor-
rentes da dinâmica espacial. Partindo disso, a paisagem urbana é
considerada viva e mutável, sendo caracterizada por incorporar e refletir
os efeitos provenientes da contínua dinâmica do espaço geográfico, como
uma impressão digital da cidade (VERVLOET, 2002).
Como forma de controle e organização urbana, o zoneamento é uma
das ferramentas de ordem impostas pelo homem, responsável por nortear
e condicionar a distribuição de usos e gerenciar seu funcionamento. Criado
na Alemanha, este modelo surgiu nos EUA, nos primeiros anos do século
XX, ganhando vulto na Europa em fins da década de 1930, se tornando
ponto focal de discussões técnicas de arquitetos e urbanistas à época, e se
consolidando como uma importante premissa de ordenamento do uso e
ocupação urbana, definido na Carta de Atenas. No Brasil, assim como em
outros países, o uso do zoneamento para a regulamentação urbana é con-
traditório, uma vez que os grupos dominantes prevalecem e manipulam
as legislações urbanas em favor de seus interesses, enquanto prejudicam
o bem-estar da sociedade, no âmbito coletivo (ALMEIDA, 2012; SANCHES,
MACHADO, 2010).
Para Harvey (2014, p.47), “vivemos cada vez mais em cidades dividi-
das, fragmentadas e propensas a conflitos. O modo como vemos o mundo
96 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

e definimos possibilidades depende do lado da pista em que nos encontra-


mos e a que tipo de consumismo temos acesso” Desta forma, entende-se
que a paisagem urbana consiste em um mosaico de funções e formas dis-
tintas, onde a dinâmica social condiciona a distribuição dos espaços,
fazendo com que diferentes classes ocupem lugares determinados pelo zo-
neamento urbano, o que limita o entrosamento e mascara as
desigualdades sociais, dentre outros aspectos.
Por trás da distribuição da malha urbana, muitas vezes favorecido
pelo zoneamento, nota-se o interesse capitalista, onde a busca por mais-
valia acerca da produção e reprodução de bens de consumo faz do processo
de urbanização uma fonte de absorção contínua, movida pela demanda e
interesse do mercado imobiliário. Em 1872, Friedrich Engels já compreen-
dia este cenário (que hoje caracteriza o urbanismo contemporâneo) ao
destacar os valores abusivos atribuídos continuamente à terra, uma vez
que nas áreas centrais o custo de vida tornava-se insustentável aos mora-
dores menos favorecidos, obrigando-os a buscar novos espaços, enquanto
suas antigas residências eram substituídas por novos empreendimentos
de caráter especulativo (HARVEY, 2014).
Segundo Harvey (2014, p.30) “a urbanização (...) foi, portanto, algum
tipo de fenômeno de classe, uma vez que os excedentes são extraídos de
algum lugar ou de alguém, enquanto o controle sobre o uso desse lucro
acumulado costuma permanecer nas mãos de poucos”. Neste contexto, a
qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria para aqueles que
possuem maior poder aquisitivo, onde a especulação imobiliária valoriza
determinadas áreas em detrimento de outras, expandindo territórios en-
quanto promove a segregação socioespacial.
Nessa perspectiva, Maricato (2003) aponta que a segregação pode ser
considerada uma importante manifestação da desigualdade de renda, atu-
ando inclusive como promotora deste processo, uma vez que sua
abordagem remete à divisão socioeconômica. Partindo disso, pode-se dizer
que a segregação denuncia o distanciamento entre os privilegiados que
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 97

desfrutam dos meios de consumo coletivos (infraestruturas, serviços pú-


blicos, equipamentos) e aqueles que não têm tal facilidade de acesso, não
somente pela distância entre locais, mas pela capacidade de deslocar-se e
usufruir da rede urbana (SANCHES, MACHADO, 2010).
A segregação socioespacial pode acontecer a partir de duas perspec-
tivas com um mesmo denominador: as políticas públicas que geram essas
divisões. A primeira, denominada autossegregação, é vista como um com-
portamento de classe praticado pelas elites com maior poder aquisitivo
que, pela liberdade de escolha, permite a instalação nas melhores localiza-
ções na cidade, consideradas exclusivas pelo alto valor. A segunda
perspectiva consiste na segregação imposta ou induzida que afeta direta-
mente a população de baixa renda, limitando-a a ocupar territórios
considerados de menor valia para o mercado imobiliário. Além da segre-
gação socioespacial acerca dos territórios ocupados pelas diferentes
classes, destaca-se a forma simbólica, cultural e afetiva, o que afasta e di-
ficulta a integração social de diferentes realidades (CORREA, 2013).
Neste contexto, a classe de baixa renda que tem seu poder de escolha
limitado pelos elevados custos de vida acaba ocupando áreas periféricas,
muitas vezes em discordância com a legislação ambiental, comprome-
tendo a qualidade de vida ao se encontrarem excluídos dos benefícios
sociais e infraestruturas básicas, além da exposição a riscos (encostas su-
jeitas a inundações, margens de rodovias e ferrovias, entre outros). Do
ponto de vista social, esta submissão a locais desprovidos de urbanidade,
muitas vezes motivada pelo descaso do poder público, acarreta na prolife-
ração de ocupações irregulares em áreas inadequadas, sensíveis a
interferências do homem. Assim, os problemas ambientais gerados por
este processo ultrapassam a paisagem urbana, no seu âmbito físico, neces-
sitando considerar os impactos sociais que são causados, numa abordagem
socioambiental (SANCHES, MACHADO, 2010).
Entende-se que o déficit habitacional (ausência de moradias) e os va-
zios urbanos, geram diferentes tipos de ocupações irregulares: as
98 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

espontâneas, as geradas pelas especulações imobiliárias e outras por mo-


vimentos sociais. No Brasil, conforme o IBGE (Censo 2010),
aproximadamente 2,2 milhões de domicílios encontram-se em situação ir-
regular:

A existência de grande demanda por moradia, associada à escassez de recursos


disponíveis, aos pequenos volumes de produção e à baixa capacidade de im-
plementação durante certas administrações, resultaram no aumento do déficit
por moradia. Essa situação tem efeito direto sobre a segregação territorial ur-
bana, assim como sobre as desigualdades de acesso aos bens públicos a que
estão sujeitos os grupos sociais da cidade (TORRES, 2005, p.268).

Segundo Villaça (2007), a segregação é caracterizada pela dependên-


cia do centro e pela separação de usos, sendo tipicamente encontrada nas
zonas periféricas da cidade. Existem, por exemplo, lugares em que o lixo é
recolhido diariamente, em outros, semanalmente, e alguns ainda, onde o
lixo, ao contrário de ser recolhido, é despejado. Estas mesmas periferias,
geralmente com condições mínimas de habitabilidade, são evidências cla-
ras da escassez de políticas públicas por parte do governo, tornando-se
assim um dos elementos responsáveis pela segregação socioespacial
(ROLNICK, 1994).
Assim, pode-se entender a segregação como um problema social que
priva o poder de escolha, limitando as liberdades da população menos fa-
vorecida que é submetida a viver nessa situação. Neste contexto, é possível
associar os preceitos de Amartya Sen que visam à defesa da liberdade e
condição de agente de cada indivíduo acerca da sociedade que faz parte.

3 Amartya Sen: liberdades, condição de agente e ampliação das


capacitações

O desenvolvimento geralmente é visto como sinônimo de progresso


e expansão. No sentido econômico, pode ser associado aos índices do Pro-
duto Interno Bruto (PIB) e renda per capita como métrica para analisar o
desempenho de um país. Entretanto, Amartya Sen (1999) defende que o
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 99

desenvolvimento humano não deve ser restrito à satisfação material, pri-


orizando o poder aquisitivo em detrimento do bem-estar. Embora as
condições econômicas tenham sua importância e contribuição, elas cons-
tituem apenas uma parcela para que o indivíduo desfrute de sua realização
plena e liberdade efetiva (SEN, 1999).
Amartya Kumar Sen nasceu no ano de 1933, em Santiniketan, na Ín-
dia. Formado em economia na década de 1950, foi pesquisador e professor,
atuando em instituições de ensino superior na Índia, Europa e Estados
Unidos. Sen conquistou o Prêmio Nobel de Economia em 1998, foi um dos
fundadores do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvol-
vimento (Universidade da ONU) e, juntamente com Mahlub ul Haq,
desenvolveu o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). De origem in-
diana, país em que a desigualdade se manifesta de modo gritante, Sen volta
sua atenção em busca de uma economia que preza pelo bem-estar, como
forma de diminuir a distância entre classes sociais (GRASSENAP; MARIN,
2018).
Para Sen (1999), o Estado deve ter como pauta a garantia de liberdade
das pessoas, criando condições e possibilidades de escolha, enquanto di-
minui as restrições de desenvolvimento, permitindo que o indivíduo tenha
posse de sua condição de agente e sinta-se parte da sociedade. Ainda sobre
o conceito, Sen (1999) frisa:

Estou usando o termo agente não nesse sentido, mas em sua acepção mais
antiga – e “mais grandiosa” – de alguém que age e ocasiona mudança e cujas
realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objeti-
vos, independentemente de as avaliarmos ou não também segundo um
critério externo (...) papel da condição de agente do indivíduo como membro
do público e como participante de ações econômicas, sociais e políticas (inte-
ragindo no mercado e até mesmo envolvendo-se, direta ou indiretamente, em
atividades individuais ou conjuntas na esfera política ou em outras esferas)
(SEN, 1999, p.33).

Para a efetivação e garantia deste processo é necessário investir na


expansão das liberdades substantivas, considerando os indivíduos como
100 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

agentes ativos para realizar mudanças e não meros recebedores passivos


de benefícios. Neste sentido, Sen acredita que os indivíduos podem ser
protagonistas de seus destinos se as oportunidades adequadas forem con-
cedidas. Como método para alcançar tais oportunidades, as liberdades
instrumentais – liberdade política, facilidades econômicas, oportunidades
sociais, garantias de transparência e segurança protetora – possibilitam o
desenvolvimento na busca pela conquista da liberdade (SEN, 1999).
Como exemplos de liberdades substantivas pode-se citar a capaci-
dade de evitar problemas de saúde relacionados à falta de alimento,
doenças relacionadas à higiene, bem como a possibilidade de aprender a
ler e escrever, de participar de decisões coletivas, de expor a opinião sem
medo da censura, ou seja, um conjunto de liberdades que constituem o
desenvolvimento e aumentam as capacidades. Neste sentido, os conceitos
de capabilidade e liberdade andam juntos: “A capacidade (capability) de
uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja
realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liber-
dade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de
funcionamentos” (SEN, 1999, p. 95).
O exercício das liberdades, defendido por Sen (1999), significa ser ca-
paz de conduzir escolhas, construir e defender sua identidade, ser
reconhecido como parte integrante da sociedade, agir livremente com base
na razão e estabelecer trocas/relações sociais. Tais liberdades se interco-
nectam e complementam, uma vez que a violação de uma delas pode
comprometer o desempenho do restante. Trata-se de um sistema, onde
cada aspecto é importante e contribui para o alcance dos objetivos, sejam
eles individuais ou coletivos, de uma sociedade com cidadãos ativos e en-
gajados (SEN, 1999).
Neste mesmo contexto, se encontram as políticas públicas, que se-
gundo Sen (1999) possuem papel fundamental na expansão do
desenvolvimento. Zambam e Kujawa (2016) apontam que o papel do Es-
tado e os princípios da política pública estão baseados na necessidade do
desenvolvimento das capacitações (capabilities) e liberdades, promovendo
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 101

ações que combatam a desigualdade social, aumentem a independência


econômica (especialmente por meio de emprego), proporcionem educação
básica e implantem outras propostas capazes de tornar o cidadão partici-
pante ativo na sociedade. Sen (1999, p. 77) destaca: “O Estado e a sociedade
têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades hu-
manas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda”.
A partir do contexto descrito, a segregação relaciona-se diretamente
às liberdades e condição de agente dos indivíduos. Como exemplo deste
fenômeno, pode-se destacar a presença de ocupações irregulares que bus-
cam espaço na malha urbana e oportunidade de acesso à cidade e suas
infraestruturas, como é o caso dos assentamentos localizados nos setores
04 e 05 de Passo Fundo/RS, que serão analisados na sequência.

4 Segregação urbana em passo fundo: ocupações irregulares nos


setores 04 e 05

Passo Fundo é uma cidade de médio porte localizada no norte do es-


tado do Rio Grande do Sul (Figura 1). É considerada uma cidade
estruturadora e a capital do Planalto Médio, desempenhando funções de
centro regional, principalmente em relação à oferta de saúde e ensino su-
perior. Faz limite com os municípios de Marau, Mato Castelhano, Pontão,
Ernestina, Carazinho, Coxilha e Santo Antônio do Planalto.
102 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Figura 1: Localização de Passo Fundo.


Fonte: Autores, 2020.

O Censo de 2010 especificava uma densidade populacional de 235,92


hab/km². Em 2020, a estimativa é de 204.722 habitantes no município;
um incremento populacional de 19.969 pessoas (10.76%), em uma década
(acima da média nacional). A economia municipal provém essencialmente
do agronegócio, da indústria metalmecânica e do comércio de varejo, so-
mando um PIB per capita (2017) de R$ 43.183,62 (IBGE, 2020). A cidade
apresenta divisões urbanas que resultam em um espaço central de ex-
trema importância e potencial, seguido por quatro subcentros associados
aos eixos viários, nos bairros São Cristóvão, Vera Cruz, Petrópolis e Bo-
queirão. Os serviços de saúde estão majoritariamente localizados em áreas
adjacentes ao centro principal, dando continuidade a ele e representando
um ponto de atração de pessoas e investimentos na região.
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 103

Como diversas cidades de médio porte, Passo Fundo se caracteriza


pela grande especulação do setor imobiliário e pela escassez de políticas
públicas relativas ao uso e ocupação do solo urbano. Tais fatores, somados
ao déficit habitacional, resultam no crescimento de zonas de vazios urba-
nos, o que em determinados casos induzem o surgimento de ocupações
irregulares. Dividida em 22 setores, como mostra a Figura 2, interessam
ao presente estudo os Setores 04 e 05, localizados na região leste da cidade
(Figura 3).

Figura 2: Mapa dos Setores Passo Fundo


Fonte: Base cartográfica da Prefeitura Municipal de Passo Fundo (2020), editada pelos autores.
104 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Figura 3: Setores 04 e 05 de Passo Fundo.


Fonte: Base cartográfica da Prefeitura Municipal de Passo Fundo (2020), editada pelos autores.

O Setor 04 é conhecido como região do bairro Petrópolis e compre-


ende os Loteamentos Umbú, Planalto, Invernadinha, Cidade Universitária,
Vila Petrópolis e Parque Jardim Botânico, contando com aproximada-
mente 9.520 moradores (aproximadamente 5% da população urbana). O
Setor 05, por sua vez, compreende a região do bairro São Luiz Gonzaga e
abrange os Loteamentos Parque Farroupilha, Manoel Corralo, Nova Esta-
ção, Santa Maria I, Santa Maria II, Vila Entre Rios, Vila Ferroviários, Vila
Isabel, Parque Bela Vista, Chácara Bela Vista e São Luiz Gonzaga, somando
aproximadamente 8.235 habitantes, cerca de 4,5% dos moradores urba-
nos (PMPF, 2020).
Para melhor compreender a relação entre poder aquisitivo e distri-
buição espacial, o mapa a seguir (Figura 4), mostra a distribuição de renda
mensal por domicílio, evidenciando que nas áreas centrais (setores 01, 19
e 07, principalmente) ficam concentradas as classes com rendas superio-
res em relação às demais. Nas regiões periféricas, onde estão localizados
os setores em estudo, nota-se que a renda do Setor 04 compreende entre
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 105

R$1.551,00 e R$2.000,00 e a do Setor 05 entre R$1.070,00 e R$1.550,00,


relativamente baixas quando comparadas às centrais (PMPF, 2019).

Figura 4: Renda mensal dos domicílios.


Fonte: Base cartográfica da Prefeitura Municipal de Passo Fundo (2019), editada pelos autores (2020).

Partindo do mosaico urbano, destaca-se a presença de ocupações ir-


regulares nos setores de interesse do estudo. Essas ocupações acontecem
de diferentes formas, com características particulares e dimensões diver-
sificadas, tendo como denominador comum a falta de infraestrutura,
equipamentos e serviços públicos e a baixa renda das famílias ali residen-
tes. Nesse sentido, na Figura 5 estão destacados os assentamentos
identificados nos setores em questão, e que estão implantados em propri-
edades públicas, sendo distinguidos daqueles localizados em áreas de
propriedade privada, a fim de mostrar como a segregação se manifesta na
paisagem urbana. Em se tratando de características físicas, por meio das
imagens de satélite, nota-se que a configuração das quadras não segue um
padrão entre os assentamentos. Em alguns casos, assumem traçado orto-
gonal semelhante ao tecido urbano original, em outros as glebas são
demasiadamente longas (como é observado na porção de terra conhecida
106 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

como beira-trilhos) e/ou se apresentam em formatos irregulares, com


ocupações mais orgânicas, demonstrando diferentes relações com a malha
urbana existente. Outro aspecto que chama atenção está relacionado à in-
fraestrutura urbana. Nesse sentido, é possível identificar pela vista aérea,
que parte das vias pertencentes às ocupações são dotadas de calçamento e
passeio e, em outros casos, não há qualquer qualificação do espaço, exis-
tindo inclusive vias de chão batido. Com base nos mapas de redes de esgoto
da cidade (PMPF, 2019) foi possível verificar que o acesso ao serviço mu-
nicipal não chega às áreas analisadas dificultando o escoamento, a
destinação e o tratamento sanitário adequado dos resíduos e dejetos. A
situação é ainda mais agravada quando se trata de ocupações alocadas em
áreas de preservação permanente, a exemplo da mata ciliar do Rio Passo
Fundo.

Figura 5: Ocupações irregulares nos Setores 04 e 05.


Fonte: Base cartográfica da Prefeitura Municipal de Passo Fundo (2019), editada pelos autores (2020).
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 107

Um dos casos mais emblemáticos de ocupações irregulares de Passo


Fundo é conhecido como beira-trilhos (Figura 6). Este termo diz respeito
aos domicílios instalados às margens do trilho da ferrovia Passo Fundo –
Porto Alegre que continua em operação na porção leste da cidade (bairro
Petrópolis). Além da falta de infraestruturas e questões básicas de urbani-
dade e habitabilidade, destaca-se o risco de segurança causado pela
presença do trem; o que deixa a população da área em estado de atenção
para evitar possíveis acidentes.
Ainda sobre o caso, segundo dados da Comissão de Direitos Humanos
de Passo Fundo (2017), as primeiras ocupações beira-trilhos instalaram-
se entre os anos 1960 e 1970 quando a antiga rota da ferrovia Santa Maria
a Marcelino Ramos ainda estava em operação. Este período coincide com
o intenso êxodo rural para Passo Fundo que, segundo Hassler (2007),
aconteceu em decorrência de dificuldades enfrentadas no campo, a exem-
plo da falta ou distância dos serviços urbanos, das variações e
instabilidades climáticas, dos altos custos de produção agrícola, ou ainda
pela expectativa por uma vida melhor. Como principal razão para tais ocu-
pações destaca-se, conforme dados coletados pela CDHPF (2017), a falta
de alternativas habitacionais oficiais, diante da escassez ou insuficiência de
programas e/ou políticas governamentais para compra, construção ou fi-
nanciamento de unidades, ou possibilidades de autoconstrução legal,
diante do elevado curso da terra, ou mesmo dos consequentes elevados
aluguéis cobrados na região. Neste sentido, as condições financeiras (baixa
renda) somadas à inexistência de custos com aluguel, motivaram a popu-
lação a migrar para estas áreas, considerando-as como oportunidades
(HASSLER, 2007; CDHPF, 2017).
108 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Figura 6: Beira-trilhos, Vila Santa Maria - Passo Fundo.


Fonte: Google Street View, 2020.

As análises cartográficas e informações acerca da área em estudo per-


mitem associar os preceitos teóricos de Amartya Sen à realidade das
ocupações irregulares situadas nos Setores 04 e 05 da cidade de Passo
Fundo, dando continuidade ao estudo.

4.1 Os princípios de Amartya Sen aplicados à segregação socioespacial

A segregação socioespacial é resultado de um sistema de dominação


exercido pelas elites, no qual a luta de classes pelos melhores espaços den-
tro da malha urbana é vencida pelo maior poder aquisitivo (MARICATO,
2003). Neste sentido, a população menos favorecida sofre as consequên-
cias provenientes do mercado imobiliário, onde a busca por mais-valia é
contínua e insaciável, em detrimento do bem-estar coletivo.
A situação de pobreza apresenta-se como um grande limitador do de-
senvolvimento da liberdade defendido por Amartya Sen (1999). Em se
tratando da ausência de moradia legal, pode-se destacar o fato que impede
o indivíduo de ter a posse de um endereço reconhecido, o que dificulta a
conquista de um emprego formal, por exemplo. Além disso, a população
que se encontra nessa situação permanece exposta à discriminação e pre-
conceito por morar em áreas irregulares, muitas vezes negadas pela
cidade.
Outro aspecto que condiciona as escolhas dos indivíduos residentes
em ocupações irregulares consiste na dificuldade de acesso a essas áreas,
Pricila Spagnollo; Sandrini Birk Belo; Henrique Kujawa; Caliane Almeida | 109

o que acarreta na falta de serviços básicos como transporte público, coleta


de lixo, sistema de energia, água encanada e tratamento de esgoto. A soma
destes impasses ao desemprego e aos estigmas associados, limita o desen-
volvimento da população que, “reprimida pela cidade”, busca adaptar-se à
realidade que lhe é imposta ou que lhe resta, distando da condição de
agente defendida por Sen (1999).
A vida na informalidade é um limitador do desenvolvimento segundo
Sen (1999), uma vez a população fica exposta às constantes ameaças ur-
banas (segurança pública, saúde coletiva, etc.). Entre elas, pode-se
destacar as de caráter especulativo, aos riscos de segurança em áreas pe-
rigosas, à distância das áreas centrais e de serviços públicos, à
discriminação e preconceito, além da falta de condições mínimas de urba-
nidade e de habitabilidade em muitos casos. É necessário repensar as
cidades de forma democrática e justa, onde interesses públicos e privados
sejam equilibrados em prol da satisfação coletiva, favorecendo a efetivação
das liberdades, condição de agente e desenvolvimento dos indivíduos.

5 Considerações finais

É evidente a necessidade de políticas públicas em relação à segrega-


ção espacial em meio ao processo de urbanização. O equilíbrio entre
política, economia e sociedade deve prevalecer, uma vez que a exclusão
social se apresenta nas malhas urbanas como um crescente problema que
é condicionado pelo poder aquisitivo. O ciclo que intensifica a segregação
consiste na preocupação e busca constante pela geração de capital que, a
exemplo do mercado imobiliário, "varre" a população menos favorecida
das áreas de interesse e especulação. Desprovidas de condições financeiras
e, muitas vezes, ignoradas aos olhos do poder público, essas pessoas aca-
bam instalando-se em áreas afastadas, muitas vezes carentes de
infraestruturas básicas (moradia digna), com difícil acesso aos serviços pú-
blicos e em situação de vulnerabilidade (risco), como é o caso do beira-
trilhos em Passo Fundo.
110 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

O exercício da condição de agente está diretamente ligado ao cenário


que é imposto pela sociedade, uma vez que a desigualdade social é latente
na maioria das cidades brasileiras e limita o desenvolvimento e a efetiva-
ção das liberdades dos indivíduos. As ocupações irregulares estudadas ao
longo deste artigo evidenciam a segregação urbana e a desigualdade social
resultante do processo de urbanização; o que acaba condicionando as es-
colhas e oportunidades da população menos favorecida.
O desenvolvimento defendido por Amartya Sen remete ao bem-estar
da população a partir do exercício das liberdades, que se complementam e
se fortificam de forma mútua. Compartilha deste olhar acerca da segrega-
ção socioespacial, onde diferentes realidades e poderes desiguais limitam
as capacidades dos indivíduos em meio ao mosaico urbano que conforma
as cidades. Oportunizar, respeitar e valorizar a população, independente
de classe ou qualquer tipo de distinção, é fundamental para o bom funcio-
namento da sociedade como um todo. Portanto, as políticas públicas e a
participação do Estado nesse processo de combate ao preconceito, discri-
minação e privação são fundamentais, uma vez que não se trata da
transferência de poder aquisitivo entre classes para equilibrar rendas e sim
fortalecer elementos que favoreçam a vida individual e comunitária.
Contudo, sabe-se que a posse de moradia digna e legal, com acesso a
infraestruturas básicas como água encanada, tratamento de esgoto sani-
tário adequado, energia elétrica, entre outros serviços são indispensáveis
para a efetivação da cidadania. Desta forma, quando as políticas públicas
são criadas e implantadas em prol dos indivíduos, tornam possível um
conjunto de benefícios, que melhoram o seu desenvolvimento social, polí-
tico e econômico, enquanto favorecem a construção de uma sociedade
mais igualitária, justa, livre e democrática.

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VILLAÇA, F. Espaço intraurbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2001.


7
A ausência de proteção aos trabalhadores que prestam
serviços por meio de plataformas e a necessidade de
mudanças estruturais na proteção social

Nelson Martins da Silva Neto 1


Zélia Luiza Pierdoná 2

1. Introdução

Com a evolução e popularização da internet e dos celulares, desen-


volveram-se novos meios de as pessoas se relacionarem umas com as
outras, de se entreterem e trabalharem.
O presente trabalho tem por objetivo analisar os impactos das inova-
ções tecnológicas na previdência social brasileira, especificamente em
relação à proteção dos trabalhadores que prestam serviços por meio de
plataformas. Visa, ainda, refletir sobre a necessidade de mudanças estru-
turais na proteção social. Para tanto, inicialmente, serão apresentadas as
principais características da previdência social brasileira, como subsistema
integrante do sistema de seguridade social. Na sequência, serão feitas con-
siderações sobre o trabalho prestado por meio de plataformas e a realidade
da desproteção social dos trabalhadores, para, ao final, trazer algumas re-
flexões sobre a necessidade de mudanças estruturais na proteção social.

1
Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. nelsonmsilva-
neto@gmail.com.
2
Professora na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, vinculada à Graduação (Direito da
Seguridade Social) e ao Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico. Coordena o Grupo de Pesquisa
"O sistema de seguridade social". Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP. Estágio de pós-doutoral na Universidad
Complutense de Madrid. zelia.pierdona@hotmail.com.
114 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Para proceder a análise, objeto deste trabalho, foi utilizado o método


hipotético-dedutivo, com suporte na pesquisa de dados oficiais e na legis-
lação vigente, bem como na revisão bibliográfica, tendo como referencial
teórico a perspectiva defendida por Amartya Sen em seu livro “Desenvol-
vimento como liberdade”.

2. A previdência social como subsistema integrante do sistema de


seguridade social brasileiro

Considerando o objeto do presente trabalho, neste item serão apre-


sentadas as principais características do sistema de seguridade social
brasileiro, com especial ênfase ao subsistema de previdência social.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe uma
série de direitos, garantias e deveres ao cidadão, para lhe assegurar uma
vida digna e, também, seu desenvolvimento pessoal pleno. Em outras pa-
lavras, o constituinte buscou meios de ampliar a cidadania para além dos
direitos políticos, abrangendo também os direitos civis ou de liberdade e
os direitos sociais.
Com relação aos direitos sociais, o constituinte os proclamou no art.
6º da Constituição, em rol não exaustivo, sendo que, dentre os referidos
direitos, estão os direitos à saúde, à previdência social e à assistência social,
os quais formam o sistema de seguridade social que tem por objetivo con-
ceder proteção nas situações de necessidade.
O referido sistema está inserido na Ordem Social, que tem por base
o primado do trabalho e a busca pela justiça social. A Constituição pres-
creveu regras e princípios próprios para o sistema, além de orientar sua
forma de administração, organização e efetivação, inclusive no que se re-
fere ao financiamento.
Os princípios do sistema de seguridade social aplicam-se aos três sub-
sistemas (saúde, previdência social e assistência social), em maior ou
menor grau, dependendo das peculiaridades de cada um dos subsistemas.
Os referidos princípios estão preceituados nos incisos do parágrafo único
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 115

do art. 194 da Constituição, bem como no caput dos arts. 194 e 195 e no §
5º do art. 195, todos da Constituição. Apesar de cada um dos subsistemas
ter objetivos e sujeitos específicos, eles devem ser interpretados como in-
tegrantes do sistema de seguridade social (PIERDONÁ, 2016, p. 100).
Em relação ao financiamento, a Constituição determina que a res-
ponsabilidade é de toda a sociedade, que o faz de forma direta e indireta.
O financiamento direto se dá pelo pagamento das contribuições sociais
para a seguridade social (atualmente são sete contribuições – seis previstas
no art. 195 e uma no art. 239, ambos da Constituição) e, o financiamento
indireto, pela destinação de recursos do orçamento fiscal da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Em razão disso, Zélia Luiza Pierdoná (2017, p. 168) aponta que, a par-
tir da Constituição de 1988, “o custeio da proteção social não é mais tríplice
(do trabalhador, do empregador e do governo), mas é de responsabilidade
de toda a sociedade, que a financia de forma direta e indireta”.
Dentre as contribuições sociais elencadas pelo constituinte, duas são
exclusivas para o financiamento do Regime Geral de Previdência Social
(RGPS): a contribuição da empresa sobre a remuneração do trabalho e a
contribuição dos trabalhadores, nos termos do art. 167, inciso XI, da Cons-
tituição.
No que se refere às regras específicas de cada um dos subsistemas
que compõem a seguridade social, verifica-se que o subsistema de saúde é
dirigido a todos. Com isso o acesso aos serviços de saúde é universal e, por
determinação infraconstitucional, é gratuito. Assim, não é exigida qual-
quer contraprestação específica do cidadão. Seu principal objetivo é
promover políticas públicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos, mas também busca implementar ações e serviços para a
promoção, a proteção e a recuperação da saúde (art. 196 da Constituição).
As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionali-
zada e hierarquizada e constituem um sistema único chamado de Sistema
Único de Saúde - SUS (art. 198, caput, da Constituição). No que se refere
116 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ao financiamento do subsistema de saúde, o art. 198, §§ 1º e 2º, da Cons-


tituição, prevê que serão utilizados recursos do orçamento da seguridade
social, bem como de percentual da receita líquida da União e de parcela
dos impostos dos demais entes federativos.
O subsistema de assistência social, assim como o de saúde, não exige
contraprestação específica dos seus usuários. Além de prestar serviços,
também concede benefícios e, diferente do subsistema de saúde, só atende
a quem dela necessitar. Os objetivos deste subsistema estão elencados nos
incisos do art. 203 da Constituição, destacando-se a garantia do benefício
de prestação continuada, no valor de um salário mínimo, à pessoa com
deficiência e ao idoso que comprove estar em situação de miserabilidade e
sem possibilidade de serem protegidos pela família.
O financiamento dos serviços e dos benefícios da assistência social é
mantido pelo orçamento do sistema de seguridade social e dos recursos
dos entes federativos. Sua organização político-administrativa é descen-
tralizada, sob a coordenação da União, sendo a execução dos programas
delegadas aos estados, aos municípios, ao Distrito Federal e às entidades
beneficentes de assistência social.
Por fim, o subsistema de previdência social, diferente dos outros dois
subsistemas, é de caráter contributivo e filiação obrigatória e se destina ao
trabalhador e seus dependentes, garantindo-lhes recursos nas situações
em que não podem ser obtidos pelo exercício de atividade remunerada.
Nas palavras de Zélia Luiza Pierdoná (2016, p. 102), “a previdência obriga-
tória tem como pressuposto o exercício de atividade remunerada e a
contraprestação direta do segurado, por meio de contribuições sociais.
Portanto, tem natureza profissional/contributiva”.
A previdência social se divide em proteção obrigatória e proteção
complementar. A obrigatória se subdivide em Regime Geral de Previdên-
cia Social (RGPS), previsto no art. 201 da Constituição, e em Regime
Próprio de Previdência Social (RPPS), destinado à proteção dos servidores
públicos titulares de cargos efetivos, previsto no art. 40, também da Cons-
tituição.
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 117

A proteção complementar, que é facultativa, tem por objetivo com-


plementar a proteção da previdência obrigatória, nas hipóteses em que os
trabalhadores, durante a vida laboral, recebem rendimentos que superam
o teto de proteção da previdência obrigatória.
Considerando o objeto deste estudo, o Regime Geral de Previdência
Social é destinado a todos os trabalhadores, exceto aos servidores públicos
que estão incluídos nos Regimes Próprios. O RGPS tem por objetivo asse-
gurar a subsistência material do trabalhador, nos termos do art. 201 da
Constituição, protegendo a incapacidade temporária ou permanente para
o trabalho; a velhice; a maternidade e o desemprego involuntário, além de
conceder proteção aos dependentes, por meio do auxílio-reclusão (prisão
do segurado) e da pensão por morte (morte do segurado).
Os segurados do RGPS, de filiação obrigatória, estão previstos no art.
11 da Lei nº 8.213/1991. São eles: o empregado, o empregado doméstico, o
contribuinte individual, o trabalhador avulso e o segurado especial.
Verifica-se, pelo dispositivo legal a cima citado, que a previdência so-
cial inclui todos os trabalhadores, concedendo-lhes prestações, diante de
diversos riscos sociais. Para garantir a efetividade de suas prestações, fo-
ram destinadas duas contribuições sociais exclusivamente para a
previdência social (chamadas de contribuições previdenciárias): uma que
fica a cargo do trabalhador; e, a outra, da empresa, incidente sobre a re-
muneração do trabalho. Entretanto, vêm sendo utilizados recursos das
outras contribuições de seguridade social, haja vista que os recursos das
contribuições específicas têm sido insuficientes para o pagamento dos be-
nefícios do RGPS.
Além do caráter contributivo da previdência social, outra peculiari-
dade da previdência obrigatória brasileira (Regime Geral e Regime dos
Servidores) é o regime financeiro de repartição simples, baseado na soli-
dariedade, no qual os recursos arrecadados das contribuições dos
trabalhadores em atividade e das empresas são destinados ao pagamento
dos benefícios atuais. Assim, para que se mantenha o equilíbrio financeiro
e atuarial, exigido tanto para o Regime Geral, no art. 201, como para o
118 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Regime Próprio, no art. 40, os recursos arrecadados das contribuições es-


pecíficas devem ser suficientes para o pagamento dos benefícios, o que não
tem ocorrido.
Delineados os principais aspectos da previdência social, na sequência
serão abordadas as questões previdenciárias relativas aos trabalhadores
que prestam serviços por meio de plataformas, para que sejam identifica-
dos os problemas e desafios a serem enfrentados pelo ordenamento
jurídico brasileiro.

3. Os trabalhadores que prestam serviços por meio de plataformas

Com a popularização da internet e dos smartphones, surgiram novos


negócios, os quais absorveram um grande número de trabalhadores. Den-
tre esses negócios, estão aqueles que operam sob demanda e por meio de
plataformas online. A título de exemplo, as empresas mais populares deste
ramo oferecem serviço de transporte privado de pessoas, enquanto outras
prestam serviço de entrega de comida e de produtos em geral.
Para a execução do citado trabalho, as empresas poderiam contratar
motoristas de carros e motocicletas e lhes oferecer o necessário para cum-
prir suas tarefas. Mas isso não ocorre. Com essas novas modalidades de
negócio apareceram novas formas de trabalho. Nesse caso, a empresa tem
o motorista, não como um empregado (nos moldes do art. 3º da Consoli-
dação das Leis do Trabalho - CLT), mas como um colaborador que utiliza
seu próprio meio de locomoção, assumindo todos os danos e riscos, e é
remunerado pelo usuário do serviço. Isto é, o serviço é prestado ao usuário
e não à empresa e, também é remunerado pelo usuário e não pela em-
presa.
O Tribunal Superior do Trabalho (2020) reconheceu como legal a
forma de trabalho imposta por essas empresas, não reconhecendo aos co-
laboradores o vínculo de emprego. Nesse sentido, esses colaboradores não
estão vinculados ao RGPS como segurados empregados, devendo eles, por-
tanto, se filiarem ao referido regime como contribuintes individuais.
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 119

O contribuinte individual é, dentre outros, o empreendedor ou traba-


lhador autônomo, que não está submetido ao regime de emprego, previsto
no art. 3º da CLT.
Conforme estabelece o art. 21 da Lei nº 8.212/91, o contribuinte indi-
vidual deve contribuir para o RGPS, em regra, com 20% sobre o valor de
seu salário de contribuição, salvo se optar pela exclusão do direito ao be-
nefício de aposentadoria por tempo de contribuição e, também, trabalhar
por conta própria, sendo que, nesta hipótese, recolherá o valor de 11%,
incidente sobre o salário mínimo. Outra exceção, é a possibilidade de re-
colher 5%, também sobre o valor do salário mínimo, caso o contribuinte
individual se enquadre como microempreendedor individual (MEI).
Nas hipóteses de o contribuinte individual prestar serviço a uma em-
presa, a empresa deve recolher, a título de contribuição previdenciária,
20% sobre a remuneração paga e, ainda, reter 11% relativo à contribuição
do trabalhador, recolhendo as duas contribuições aos cofres da previdên-
cia social. Neste caso, o contribuinte individual fica eximido de fazer o
recolhimento diretamente. Porém, não é este o caso dos trabalhadores que
prestam serviços por meio de plataformas, já que não há determinação
legal para que a empresa que administra a plataforma faça a retenção da
contribuição do motorista.
Portanto, o fato de não serem considerados empregados não os im-
pede que tenham proteção previdenciária, já que o Regime Geral de
Previdência Social brasileiro inclui todos os trabalhadores, conforme men-
cionado no item anterior. Nesse sentido sustenta Zélia Luiza Pierdoná
(2019, p. 164):

Assim, a modificação da forma como o trabalho será desenvolvido, se com ou


sem vínculo empregatício, não é um fator determinante de ausência de prote-
ção previdenciária no Brasil, especialmente se forem adotadas medidas
legislativas, de responsabilidade pela retenção e recolhimento das contribui-
ções incidentes sobre a remuneração do “novo” trabalho. Isso, (...), é um fator
positivo do ordenamento brasileiro para enfrentar os impactos na previdência
social brasileira, decorrentes da implementação das novas tecnologias nas re-
lações de trabalho.
120 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Contudo, em pesquisa publicada pelo Correio Braziliense (CARDIM,


2020), verificou-se que cerca de 72,1% dos motoristas de aplicativo não
eram filiados ao RGPS. Assim, apesar de a legislação os considerar segu-
rados obrigatórios, há pouca efetividade fática.
A pesquisa revelou que, se, de um lado, os trabalhadores alegam que
não sobram recursos para arcar com as contribuições previdenciárias, de
outro, os entes competentes não cumprem com seu dever de fiscalização
(CARDIM, 2020).
Nesse contexto, os trabalhadores que prestam serviços por meio de
plataformas enfrentam, em tese, um concreto estado de desproteção so-
cial3, pois, caso se deparem com algum risco social que lhes impossibilite
de prover a própria manutenção, não poderão se socorrer da previdência
social, que é o subsistema apto para isso.
Em razão disso, a Lei nº 12.587/2012, alterada pela Lei nº
13.640/2018, determinou que os municípios e o Distrito Federal devem
fiscalizar a inscrição dos referidos trabalhadores na previdência social,
como contribuintes individuais.
Com o não recolhimento de contribuições previdenciárias por parte
dos citados segurados, tem-se um expressivo contingente de trabalhado-
res ativos que não estão contribuindo para financiar os benefícios pagos
aos trabalhadores inativos e aos pensionistas, uma vez que, como já men-
cionado, a previdência obrigatória, nela incluída o RGPS, adota o regime
financeiro de repartição simples, fundado na solidariedade. O referido fato
compromete o equilíbrio financeiro e atuarial, não só do subsistema de
previdência social, mas de todo o sistema de seguridade social.
Conforme os dados do Relatório Resumido de Execução Orçamentá-
ria do Governo Federal – 2019 (TESOURO NACIONAL, 2020, p. 40), as
despesas com os benefícios do RGPS foram de cerca de 628,4 bilhões de

3
A falta de proteção social desses trabalhadores é mitigada pelo subsistema de assistência social, que concede um
benefício de um salário mínimo ao idoso com mais de 65 anos e à pessoa com deficiência, desde que não possuam
meios de prover sua manutenção ou de tê-la provida pela família. Porém, trata-se de uma proteção inadequada, uma
vez que nas situações de incapacidade temporária ou com a morte do trabalhador, não haverá proteção. Além disso,
o beneficiário não contribuiu financeiramente para seu direito, mesmo tendo trabalhado durante sua idade laboral.
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 121

reais, enquanto as receitas específicas para o citado regime foram cerca de


415,1 bilhões. Os gastos com o abono salarial foram por volta de 17,5 bi-
lhões e, com seguro desemprego, de 37,3 bilhões. Saindo do subsistema
previdenciário, as despesas com saúde, no âmbito federal, foram de 122,2
bilhões e, com assistência social, de 95,9 bilhões de reais. Com isso o re-
sultado dos gastos em seguridade social, no âmbito federal, foi de 901,3
bilhões de reais, ao passo que as receitas das contribuições sociais para a
seguridade social totalizaram 750 bilhões de reais. Nos referidos valores
não estão incluídas as despesas com o pagamento das aposentadorias dos
servidores públicos federais civis e das pensões de seus dependentes, bem
como as pensões dirigidas aos dependentes dos militares. Os valores des-
tinados ao pagamento dos militares inativos, desde 2016, deixaram de ser
considerados, nos demonstrativos oficiais, como gastos de seguridade so-
cial.
Verifica-se, pelos dados acima apontados, que há um deficit, tanto se
analisados apenas os gastos e as receitas específicas do Regime Geral de
Previdência Social, como se analisado os gastos do sistema de seguridade
social como um todo, mesmo desconsiderando os valores destinados à
proteção dos servidores civis e militares.
Nesse sentido, a diminuição da receita de contribuições previdenciá-
rias pela falta de efetividade das normas previdenciárias de filiação dos
trabalhadores que prestam serviço por meio de plataformas, bem como o
aumento nos pedidos de benefícios de assistência social agravarão o cená-
rio de insustentabilidade do subsistema previdenciário e de todo o sistema
de seguridade social.
Identificado o problema, objeto do presente trabalho, no próximo
item serão apresentadas reflexões, considerando o pensamento de Amar-
tya Sen, especialmente aquele defendido em seu livro “Desenvolvimento
como liberdade”.
122 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

4. Reflexões sobre a necessidade de mudanças estruturais na


proteção social para garantir a segurança protetora

A Constituição estabelece, em seu art. 3º, os objetivos fundamentais


a serem buscados pela República Federativa do Brasil, sendo eles: a cons-
trução de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do
desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização,
bem como a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção
do bem de todos, sem preconceitos e discriminações. Percebe-se que os
objetivos dependem uns dos outros e se complementam e, além disso, que
o objetivo de desenvolvimento nacional engloba a todos.
Para Amartya Sen (2010, pp. 16-17), o desenvolvimento deve ser in-
terpretado como um processo de expansão das liberdades reais do
indivíduo, e não como mero crescimento econômico. Assim, na compre-
ensão do desenvolvimento devem ser consideradas as implicações sociais
e econômicas, bem como os direitos civis e políticos. Nessa perspectiva, a
promoção da liberdade é o fim do desenvolvimento, devendo ser removi-
dos, especialmente pelo Estado, os fatores que contrariem ou diminuam a
liberdade dos cidadãos.
Segundo o autor (SEN, 2010, p. 33), a liberdade possui duas funções
que se inter-relacionam: ela é importante em si mesma, para a plena vi-
vência do indivíduo, mesmo que não vinculada a nenhum fim específico;
e ela também é essencial ao possibilitar que o cidadão participe dos aspec-
tos econômicos, sociais e políticos da sociedade, contribuindo na criação e
na implementação de políticas públicas.
Amartya Sen (2010, p. 58) propõem um rol de liberdades instrumen-
tais, as quais visam a concretização das liberdades substanciais, ou seja, o
desenvolvimento do próprio indivíduo e da coletividade. São elas: as liber-
dades políticas; as facilidades econômicas; as oportunidades sociais; as
garantias de transparência; e a segurança protetora. Segundo o autor
(SEN, 2010, p. 58), “essas liberdades instrumentais tendem a contribuir
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 123

para a capacidade geral de a pessoa viver mais livremente, mas também


têm o efeito de complementar umas às outras”.
O sistema de seguridade social brasileiro está relacionado a duas das
liberdades instrumentais acima referidas: “oportunidades sociais” e a “se-
gurança protetora”.
As “oportunidades sociais” implicam em políticas públicas que asse-
gurem direitos sociais na forma de serviços públicos, principalmente
serviços de educação e de saúde, pois estes melhoram a qualidade de vida
dos cidadãos e, também, lhes permitem participar de forma mais efetiva
na sociedade (SEN, 2010, pp. 59-60). É neste aspecto das liberdades ins-
trumentais que o subsistema de saúde se fundamenta.
Já a segurança protetora está relacionada aos subsistemas de assis-
tência e de previdência social, uma vez que seu objetivo é impedir que os
indivíduos sofram de miséria e de fome. A segurança protetora pressupõe
“[...] incluir disposições institucionais fixas, como benefícios aos desem-
pregados e suplemento de renda regulamentares para os indigentes [...]”
(SEN, 2010, p. 60). Essa liberdade instrumental, para ser garantida, impõe
que o Estado promova uma rede de proteção social, garantindo direitos e
deveres aos cidadãos.
Considerando que essas liberdades instrumentais se inter-relacio-
nam, Amartya Sen (2010, p. 61) sustenta que “o crescimento econômico
pode ajudar não apenas elevando as rendas privadas, mas também possi-
bilitando ao Estado financiar a seguridade social e a intervenção
governamental ativa”.
Na perspectiva de Amartya Sen, a ineficácia do subsistema previden-
ciário em efetivamente proteger os trabalhadores que prestam serviços
por meio de plataformas (considerando que poucos efetuam o recolhi-
mento como contribuintes individuais) é um vício na liberdade
instrumental “segurança protetora”. Contudo, esse não é um problema
que atinge apenas esses trabalhadores, mas sim a maioria dos trabalhado-
res informais que exercem suas atividades por conta própria.
124 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Segundo o artigo publicado por Larissa Linder (2020), no jornal Deu-


tsche Welle, a informalidade cresceu e, consequentemente, houve uma
diminuição no número de trabalhadores que contribuem para a previdên-
cia social. Dentre os motivos para esse cenário, os especialistas
entrevistados apontaram o fenômeno da “uberização” (referente aos tra-
balhadores que prestam serviço por meio de plataformas) como um fator
responsável e explicam que esse fenômeno deve crescer no país, nos pró-
ximos anos.
Assim, considerando as mudanças nas relações de trabalho que têm
ocasionado um contexto de desproteção social, bem como os ensinamen-
tos de Amartya Sen, os quais demonstram a necessidade de garantir as
liberdades instrumentais, dentre as quais a segurança protetora, uma al-
ternativa para garantir um mínimo de proteção social poderia ser a adoção
de uma renda universal para todos os cidadãos ou uma renda seletiva, para
os que se encontrem abaixo de um padrão definido pelo ordenamento ju-
rídico.
Em conjunto com a medida acima, deveria ser alterado o regime fi-
nanceiro da previdência obrigatória, visto que, o sistema de repartição
simples tem apresentado deficit que aumenta a cada ano e tem protegido
apenas parte dos trabalhadores. Como as contribuições sobre a remune-
ração do trabalho (da empresa e do trabalhador) têm sido insuficientes
para garantir o pagamento dos benefícios do RGPS, parte da receita das
outras contribuições de seguridade social (que são suportadas por toda a
sociedade e não apenas pelos trabalhadores e empregadores) tem sido alo-
cada para financiar o RGPS. Assim, os trabalhadores informais, mesmo
sem ter acesso à proteção previdenciária, auxiliam no custeio dela.
A mudança do modelo financeiro de proteção previdenciária, eviden-
cia-se pela falta de sustentabilidade do regime de repartição simples,
especialmente levando em conta as mudanças no mercado de trabalho,
ocasionadas pela adoção das novas tecnologias.
Nesse sentido, Zélia Luiza Pierdoná (2019, p. 164-165) defende como
uma alternativa, a mudança do sistema de repartição simples para o de
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 125

capitalização (apesar do alto custo de transição), combinado com uma


renda básica universal ou com a garantia de prestações mínimas, sem exi-
mir o empregador de obrigações em relação à proteção dos trabalhadores
que lhe prestam serviços. A autora assevera que, no modelo de capitaliza-
ção proposto, “[...] apenas as contribuições do próprio trabalhador e de
seu empregador, na hipótese de existência de vínculo empregatício, finan-
ciarão a sua futura proteção previdenciária” (PIERDONÁ, 2019, p. 165).
A renda universal ou seletiva se justifica em razão das necessidades
de grande parcela da população que não consegue prover o próprio sus-
tento e de sua família e, também, do contingente de trabalhadores que se
encontram desprotegidos pela previdência social brasileira.
No sentido de adoção de uma renda básica e na perspectiva de am-
pliação das liberdades, defendidas por Amartya Sen, Zélia Luiza Pierdoná,
André S. Leitão e Emmanuel T. F. Filho (2019, p. 412) assim sustentam:

Também não se pode desconsiderar a nítida relação entre a renda básica e o


mundo laboral sob a ótica do trabalho decente. Com efeito, graças a segurança
financeira proporcionada pela transferência mensal, muitos miseráveis passa-
riam a ter o direito de escolher exercer um trabalho decente. A propósito,
escolher, por si só, pode ser considerado um funcionamento bastante valioso.
Some-se a isso o ganho em produtividade decorrente do crescimento potencial
da qualidade do trabalho desenvolvido pelo beneficiário do programa, o qual
já não mais estaria confinado no túnel da escassez. Menos escassez, maior lar-
gura de banda, melhor produtividade.

Conforme os dados do Portal da Transparência (PRESIDÊNCIA DA


REPÚBLICA, 2020), os gastos com o Programa Bolsa Família, no mês de
junho, totalizaram mais de 2,5 bilhões de reais; os gastos com o Benefício
de Prestação Continuada da assistência social (devido ao idoso e a pessoa
com deficiência) totalizaram mais de 4,8 bilhões; já os gastos com o auxílio
emergencial concedido aos trabalhadores informais durante a pandemia
do coronavírus totalizaram mais de 200 bilhões.
A relevância deste último benefício foi tão expressiva, que o Governo
Federal, em setembro, lançou uma proposta de implementar uma renda
126 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

cidadã, que substituirá o auxílio emergencial e o programa bolsa-família


(GOVERNO FEDERAL, 2020).
As reflexões acima apontam para a necessidade de se repensar o sis-
tema de proteção social existente, visando garantir a efetividade das
liberdades instrumentais defendidas por Sen, e, com isso, permitir o de-
senvolvimento das liberdades substantivas.

5. Conclusão

A Constituição de 1988 instituiu o sistema de seguridade social, que


compreende os subsistemas de saúde, assistência social e previdência so-
cial. Este último protege o trabalhador em face dos riscos de incapacidade
temporária e permanente, velhice, maternidade, desemprego involuntá-
rio, prisão e morte. A proteção previdenciária se divide em obrigatória e
complementar. A obrigatória se subdivide em Regime Geral e Regime dos
Servidores. O Regime Geral inclui todos os trabalhadores, independente
da forma como o serviço é prestado.
Dentre os segurados do RGPS, encontra-se o contribuinte individual,
espécie que inclui também o trabalhador que exerce sua atividade de
forma autônoma. Esse tipo de segurado tem especial relevância em um
cenário de mudanças estruturais no trabalho, provocadas pela populariza-
ção de novas tecnologias que permitem o trabalho sob demanda, por meio
de plataformas online.
Como contribuintes individuais, os trabalhadores devem proceder à
filiação ao RGPS e contribuir diretamente, como determina a lei, para sua
proteção previdenciária. Contudo, os dados apontam que a imposição legal
de filiação obrigatória é pouco efetiva, já que a maioria desses trabalhado-
res não estão filiados ao RGPS e não recolhem as respectivas contribuições.
Assim, a baixa aderência à previdência social, somada ao aumento na
expectativa de vida dos brasileiros, resultam no fato de o regime financeiro
de repartição simples já apresentar dados de insustentabilidade (deficit),
Nelson Martins da Silva Neto; Zélia Luiza Pierdoná | 127

visto que, o RGPS necessita, cada vez mais, de receitas de outras contri-
buições de seguridade social, além das contribuições do trabalhador e da
empresa sobre a remuneração, prejudicando a efetividade dos outros di-
reitos de seguridade social. O problema de financiamento se agrava,
também, pelo enorme contingente de trabalhadores, desprotegidos pela
previdência social e desempregados, se socorrendo dos benefícios de
transferência de renda do subsistema de assistência social.
Assim, uma alternativa a ser considerada é a instituição de uma renda
universal básica, para todos os cidadãos brasileiros, ou uma renda seletiva,
de forma a garantir o mínimo existencial e a ampliar a liberdade e a dig-
nidade dos brasileiros.
Além da medida acima, talvez o mais adequado seja a alteração do
modelo financeiro de repartição simples do RGPS para o de capitalização,
para o qual apenas as contribuições do trabalhador e da empresa sobre a
remuneração financiariam a proteção previdenciária, garantindo-se uma
proteção mínima com recursos arrecadados de contribuições/impostos
suportados por toda a sociedade, em um sistema solidário.

Referências

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República, Planalto, Brasília/DF, 28 de setembro de 2020. Renda Cidadã. Disponí-
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128 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

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8

La satisfaccion con la democracia:


Revisando el concepto desde la propuesta de Amartya Sen

Graciela Tonon 1

1. La propuesta teórica de Sen

La propuesta teórica de Sen (2000) considera a las personas como


agentes que provocan cambios y es en este sentido, que el autor se refiere
al papel de la agencia del sujeto como miembro del público y como parti-
cipante en actividades económicas, sociales y políticas (Sen,2000). El
enfoque de las capacidades (capability approach-CA) propuesto por Sen,
plantea que estos agentes tienen capacidades (capabilities), definidas como
las habilidades reales de la persona para lograr desempeños valiosos como
parte de su vida, reflejando combinaciones alternativas de los desempeños
que una persona puede lograr y siendo los desempeños la representación
de las cosas que una persona logra hacer o ser al vivir (Sen, 2000). Ade-
más, las personas como agentes provocan cambios, cuyos logros pueden
juzgarse en función de sus propios valores y objetivos, independiente-
mente de toda evaluación externa (Sen,2000).
Sen (2000) señala que su propuesta, considera una concepción de
libertad que entraña tanto los procesos que hacen posible la libertad de

1
Dra. en Ciencia Política, Magister en Ciencia Política y Trabajadora Social.
Directora de la Maestría en Ciencias Sociales y del Centro de Investigación en Ciencias Sociales (CICS-UP) de la
Universidad de Palermo, Argentina.
Es Secretaria de la Human Development and Capability Association (2016-2022).
gtonon1@palermo.edu
Graciela Tonon | 131

acción y decisión, como las oportunidades reales que tienen los sujetos da-
das sus circunstancias personales y sociales. De esta manera, el enfoque
de las capacidades consiste en la identificación de la libertad como un prin-
cipio fundamental de desarrollo. Esta propuesta teórica, difiere de la
evaluación utilitarista tradicionalmente usada para estudiar el bienestar,
ya que considera una variedad de actos y estados humanos en tanto im-
portantes en sí mismos y no solo relacionados con alguna utilidad.
El enfoque de las capacidades está además directamente relacionado
con el bienestar y la libertad de las personas, al tiempo que ejerce una in-
fluencia indirecta sobre la producción económica y el proceso de cambio
social (Sen, 2000). Richardson (2007, p.396) señala que la capacidad se
refiere a lo que las personas realmente pueden elegir; " uno puede real-
mente elegir un funcionamiento o logro dado, sólo si después de haberlo
elegido, se respeta y ejecuta su elección” (Sen, 1985, p. 211).
Las capacidades humanas que tiene en realidad una persona, no son
solo las que se enuncian teóricamente, sino que las mismas dependen de
la naturaleza de las instituciones sociales de cada paìs, las cuales pueden
ser fundamentales para el ejercicio de las libertades individuales; y es en
ese sentido que para Sen (2000) el Estado y la sociedad no pueden evadir
su responsabilidad.
Asimismo, Sen (2000) considera la relevancia de las diferencias en la
satisfacción de las necesidades que tienen las personas, centrando la aten-
ción en el hecho de que las mismas pueden necesitar diferentes recursos
para alcanzar el desarrollo de las mismas libertades.
Sen (2000, p. 57) identifica cinco tipos de libertades estructurales que
contribuyen directa o indirectamente a la libertad de las personas de vivir
como les gustaría, las mismas son: las oportunidades sociales, las liberta-
des políticas, los servicios económicos, las garantías de transparencia y la
seguridad protectora.
Sen (2000) define la salud como una de las oportunidades sociales de
la población en tanto servicios sanitarios que tiene la sociedad y que influ-
yen en la libertad fundamental de los sujetos para vivir mejor. Estos
132 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

servicios no sólo son importantes para la vida privada, como es el hecho


de llevar una vida sana y evitando la morbilidad evitable, sino que también
lo son para participar en las actividades políticas y económicas de la soci-
edad. En el caso de las políticas de salud, Sen (2002) propone que las
mismas diferencien la igualdad en los logros de la salud (posibilidades y
libertades) y la igualdad en la distribución de los recursos sanitarios. Esto
implica revisar la importancia de la justicia de los procesos, es decir, la
ausencia de discriminación en la prestación de la asistencia sanitaria; por
lo cual hay que diferenciar entre dos cuestiones: aquella que se centra en
el logro de la salud, y la que se relacionan con la posibilidad real de los
ciudadanos de alcanzar la salud.
También la educación es considerada por Sen como una de las opor-
tunidades sociales. En nuestro propio planteo teórico la educación es
asimismo considerada como una de las instancias de consecución de la
ciudadanía efectiva y como estrategia de mejoramiento de la calidad de
vida de los ciudadanos (Tonon, 2005). Es decir, la educación no está sola-
mente asociada a la ampliación de las posibilidades futuras de inserción en
el mercado laboral, sino que se conforma como una de las vías de reali-
zación de la vida personal y de la vida en comunidad.
Por libertades políticas, Sen (2000) incluye los derechos humanos y
las oportunidades que tienen las personas de decidir quién los debe gober-
nar, así como de poder expresarse políticamente, criticar a las autoridades,
el derecho a votar y a ser votado, así como el derecho a participar en los
poderes Legislativo y Ejecutivo de un país.
Asimismo, el autor señala que las respuestas de los gobiernos debe-
rían estar en relación a las necesidades de las personas y a las garantías de
transparencia; estas últimas identificadas como la necesidad de franqueza
que pueden esperar las personas y la libertad para interrelacionarse con la
garantía de divulgación de información con claridad; garantías éstas que
cumplen un rol fundamental en la prevención de la corrupción (Sen,
2000). En este sentido, las garantías de transparencia en las decisiones
Graciela Tonon | 133

gubernamentales se basan en la honestidad que los ciudadanos requieren


y en la libertad de acceso a la información de las acciones de los gobiernos.
Cabe en este punto referirnos a las políticas sociales, las cuales han
sido consideradas tradicionalmente como las acciones externas del gobi-
erno para la atención de los problemas sociales. Las políticas sociales han
sido y son operacionalizadas en los diferentes programas sociales de ayuda
por parte de los gobiernos, tanto de desarrollo sistemático como de asis-
tencia a la población en situaciones de emergencia y/o catástrofe. Ya en
1983 Jones, Brown y Bradshaw habían propuesto analizar el potencial de
las políticas sociales para incrementar la justicia social considerando cier-
tos requisitos: que las políticas sociales salvaguarden las libertades básicas,
que proporcionen igualdad de oportunidades, que alcancen a todos los se-
res humanos sin excepción, que incluyan servicios sociales como bienes
sociales, que cubran aspectos económicos sociales y políticos y que sean
socialmente cohesionadoras.
Además, el análisis de las políticas sociales y económicas tiene como
objetivo establecer conexiones empíricas que hagan que el enfoque de la
libertad sea coherente y convincente como perspectiva orientadora en el
proceso de desarrollo. En este sentido, el enfoque de las capacidades re-
presenta una propuesta teórica para evaluar la satisfacción con la vida, las
percepciones de las situaciones sociales, el diseño de políticas públicas que
inciden en el desarrollo económico, las políticas sociales y el desarrollo in-
ternacional (Sen 2000, p. 16).
Es así que, el sistema de protección social de un país, es definido por
Sen (2000) como la red de protección social estable, es decir, los mecanis-
mos institucionales fijos y las ayudas extraordinarias que brinda el
gobierno a los ciudadanos en situaciones de emergencia.

2. La satisfacción con la democracia

El concepto de satisfacción con la democracia apareció por primera


vez en 1976, como un ítem en el Euro barómetro utilizándose en esa
134 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

oportunidad una escala de cuatro puntos, con una pregunta referida a


cuán satisfecha estaba una persona respecto de la forma en que funcionaba
la democracia, en el país en el cual vivía.
En nuestro caso y para analizar el concepto de satisfacción con la de-
mocracia, consideraremos la concepción de democracia que propone Sen.
Para Sen (2000) la democracia desarrolla diversos roles, a saber, un
rol intrínseco, un rol protector que se relaciona con las libertades políticas
y los derechos humanos y un rol constructivo para el fortalecimiento del
debate pluralista acerca de la calidad de vida de los ciudadanos. El autor,
también nos habla del importante rol de las instituciones en los países de-
mocráticos y no alerta acerca de que no podemos simplemente considerar
que las instituciones son recursos mecánicos para alcanzar el desarrollo,
sino que ellas dependen de la utilización de las oportunidades de partici-
pación que ellas posibilitan, así como de la formación de valores en una
sociedad (Sen, 2000).
Al respecto, Vaughan and Walker (2012, p. 498) nos alertan acerca
de que las intervenciones del gobierno generan implicancias en las capaci-
dades individuales de las personas, especialmente considerando los
servicios pùblicos y los bienes pùblicos, asì como en los contextos en los
cuales las personas desarrollan su vida cotidiana.
La satisfacción con la democracia, según Wagner & Schneider (2006)
es un concepto que considera la discrepancia entre como la democracia
debe funcionar (plano teórico) y como efectivamente funciona (plano
práctico) es decir, que no se refiere simplemente a la opinión de los y las
ciudadanos/as acerca de si sostienen o no los principios democráticos, sino
a como ellos y ellas experimentan en su vida cotidiana el funcionamiento
democrático.
En este punto, conviene hacer una distinción entre los conceptos de
legitimidad democrática, apoyo al sistema democrático y apoyo a la demo-
cracia como forma de gobierno. La legitimidad democrática ha sido
definida como el apoyo a los principios de la democracia (Wagner &
Graciela Tonon | 135

Schneider, 2006). El apoyo al sistema democrático, se refiere a las actitu-


des con respecto a la variante particular de democracia que existe dentro
de un país (Canache et al., 2001, p. 6). Por su parte, el apoyo a la democra-
cia como forma de gobierno, concierne a la democracia en un nivel
abstracto (Canache et al., 2001, p. 6).

3. La escala de satisfacción con la vida en el país

La escala de satisfacción con la vida en el país (ESCVP, Tonon) fue


construida en el año 2009 y publicada por primera vez en 2012 (Tonon,
2012, pp. 553-554). La intención fue contar con una escala que midiera el
nivel de satisfacción de las personas con la vida en el país, considerando
distintas variables que surgen del análisis de la vida cotidiana, cuyo sostén
teórico se considera conceptos que surgen de tres propuesta teóricas, una
de las cuales es la propuesta de Sen (2000) particularmente en relación a
las libertades instrumentales: libertades políticas, servicios económicos,
oportunidades sociales, garantías de transparencia y seguridad protectora
Es un instrumento, tipo escala Likert, que contiene 20 frases que se
miden del 0 (totalmente insatisfecho) al 5 (totalmente satisfecho).
Tabla 1. Escala de satisfacción con la calidad de vida en el país (Tonon, 2012).
Pregunta 1 2 3 4 5
¿Cuán satisfecho se encuentra Ud. con la calidad de vida en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las condiciones de seguridad


en la vía pública y en la vida cotidiana en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con el cuidado del medio ambi-


ente en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con el sistema de salud estatal en


su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con el sistema de salud estatal en


su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las posibilidades que tienen


las personas de acceso al sistema de salud estatal en en su país?
136 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con el sistema educativo estatal


en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las posibilidades que tienen


las personas de acceso al sistema educativo estatal en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las posibilidades que tienen


las personas de tener un empleo en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las posibilidades que tienen


las personas de tener una vivienda en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con la situación económica gene-


ral del país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con la seguridad financiera en el


país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las decisiones del gobierno en


respuesta a las necesidades de la población?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con la transparencia de las deci-


siones gubernamentales?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con los planes de ayuda social del
gobierno?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con la ayuda que brinda el gobi-


erno a las personas en situaciones de emergencia?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con el sistema de recaudación de


impuestos en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con las libertades políticas que


tienen las personas en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. con el cuidado de los espacios pú-


blicos, por parte de las personas en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. por el respeto que manifiestan las


personas a las diversidades culturales en su país?

¿Cuán satisfecho se encuentra ud. por el respeto que manifiestan las


personas a las diversidades religiosas en su país?
Graciela Tonon | 137

Conclusiones.

La satisfacción con la democracia es un concepto que no intenta sim-


plemente captar si las personas apoyan los principios de la democracia o
no los apoyan, sino que se preocupa por conocer cómo las personas juzgan
la forma en la cual funciona la democracia en la práctica, a partir de con-
siderar sus propias experiencias concretas (Wagner & Schneider., 2006, p.
8).
Uno de los elementos fundamentales en el logro de la satisfacción con
la democracia en un país, es contar con una efectiva, eficiente y democrá-
tica red de protección social, basada en el desarrollo de sus políticas
sociales.
En este sentido, las actuales circunstancias que atraviesa el planeta
nos llaman a cambiar, aquella mirada tradicional acerca de las políticas
sociales consideradas sólo como una respuesta del estado a las necesidades
y/o las demandas de la población, para avanzar en una nueva mirada, más
amplia, flexible e inclusiva, basada en el respeto a los derechos humanos y
que se caracterice por la tendencia al desarrollo de una ciudadanía que
incluya no sólo el reconocimiento socio-político, sino que también el socio-
cultural.
La propuesta teórica de Sen, nos ayuda a pensar y a trabajar en el
logro de dicho objetivo.

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9

Movimentos migratórios e
a proteção humanitária migratória:
um olhar necessário para a proteção da
condição de agente dos migrantes

Karoline Izaton 1
José Carlos Kraemer Bortoloti 2

“Nossa civilização global é uma herança do mundo – e não apenas uma cole-
ção de culturas locais discrepantes”. Amartya Sen

Introdução

O presente estudo visa provocar atenção ao multifacetado movi-


mento migratório contemporâneo e a proteção da dignidade da pessoa
humana, em especial, daqueles que migram para outros países em busca
de condições de vida mais digna. Pretende-se compreender a premissa,
consolidada ao longo dos anos na comunidade internacional, de que a pro-
teção dos seres humanos deve prevalecer, em detrimento dos interesses
individuais dos Estados, os quais são responsáveis diretos pela garantia da
dignidade das pessoas.

1
Graduada em Direito pela Faculdade Meridional – IMED/Passo Fundo – RS; Advogada. E-mail: karoliza-
ton@yahoo.com.br.
2
Doutor em Direito (UNESA/RJ), com Doutoramento Sanduíche na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(orientação Prof. Dr. Jorge Miranda) financiado pelo PDSE/CAPES. Mestre em Direito (ULBRA/RS). Advogado. Do-
cente da Escola de Direito da IMED/Passo Fundo - RS. Membro do Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da
Justiça de Amartya Sen e do Grupo de Estudo Direitos Culturais e Pluralismo Jurídico, ambos vinculados ao Programa
de Pós-graduação stricto sensu em Direito – PPGD/IMED. E-mail: jose.bortoloti@imed.edu.br.
140 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Justifica-se a importância da presente pesquisa, considerando à con-


tínua vivência pela humanidade dos efeitos da crise migratória, seja ela
por motivos políticos, ambientais, culturais ou econômicos.
A atenção pela busca por refúgio e asilo, além de um problema jurí-
dico e social que afeta considerável número de pessoas ao redor do mundo,
consiste em provocar a necessária discussão sobre a condição de agente
dos migrantes, demandando a adoção de uma postura protetiva por parte
da comunidade internacional, em âmbito interno dos Estados, e com a
consequente e complexa interação entre as culturas e seus direitos, o que
traz a senda das discussões à pertinência da construção teórica de Amartya
Sen.
A temática vem sendo discutida tanto pela doutrina quanto pela co-
munidade internacional, uma vez que os movimentos migratórios estão
vinculados diretamente com o fenômeno da globalização mundial. Por
isso, destaca-se que a compreensão da problemática das migrações força-
das e voluntárias exige uma interpretação interdisciplinar, permitindo
uma visão mais ampla do tema, sob a ótica jurídica, antropológica e social.
Aborda-se as nuances do movimento migratório e a proteção da dig-
nidade da pessoa humana, visto que, diante da instabilidade política,
ambiental, cultural e econômica vivenciada nos últimos anos, os indiví-
duos passaram a sair de seus países de origem em busca de melhores
condições de vida em outros Estados.
Enfatiza-se as políticas de proteção aos migrantes, enaltecendo a Lei
de Migração – Lei 13.445/2017, diploma de maior relevância na proteção
do migrante no ordenamento jurídico brasileiro, pois, além de combater a
criminalidade em face do migrante, passou a tratar o migrante como um
sujeito de direitos, determinando tratamento igualitário a brasileiros e às
pessoas vindas de outros países.
E desse contexto, almeja-se destaque acerca da proteção estatal dada
àqueles buscam guarida em outro Estado por possuírem sua vida, liber-
dade ou dignidade ameaças em virtude de perseguições políticas,
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 141

conjecturando o destaque a partir de uma abordagem com as imprescin-


díveis contribuições de Amartya Sen em relação à democracia como valor
universal e a condição de agentes dos migrantes diante da atenção rece-
bida pelos Estados.
Engendra-se o artigo a partir do método de abordagem dedutivo,
considerando uma forma de interpretação que parte de uma premissa
maior e mais genérica a uma menor e mais específica, chegando a um re-
sultado conclusivo.
Como percepções de resultado introdutório, pode-se ratificar que o
mundo vivencia uma grandiosa crise migratória, visto que inúmeras pes-
soas são forçadas a deixar seu país de origem, por motivos políticos,
ambientais culturais ou econômicos.
A realidade experimentada por essas pessoas, expostas à extrema
vulnerabilidade e sofrimento, demostra a necessidade de implementação
de políticas protetivas por parte dos entes estatais, fomentando-se a con-
dição de agente, a expansão das capabilities nos Estados acolhedores, em
consequência, gerando um movimento de interculturalidade entre a cul-
tura migrante e as culturas acolhedoras, o que denota especial atenção às
contribuições de Amartya Sen.

1. O movimento migratório multifacetado e a proteção da dignidade


da pessoa humana

Mesmo diante do reconhecimento do indivíduo como sujeito de di-


reito internacional, verifica-se que até o século XIX – alguns ainda até o
século XX –, muitos países não empregavam nenhum tipo de distinção en-
tre os direitos nacionais e dos estrangeiros. No entanto, com o advento das
Duas Grandes Guerras Mundiais, as quais geraram restrições à liberdade
de residência e, consequentemente, a impossibilidade dos indivíduos re-
tornaram ao seu país de origem, a sociedade internacional iniciou um
processo de institucionalização, para conferir proteção a estas pessoas con-
sideradas como apátridas e refugiados (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2010, p.
278).
142 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Assim, a Declaração Universal de Direitos Humanos, documento for-


mador do sistema internacional de proteção da pessoa humana, em seu
artigo 13 e 14, refere que todo homem tem direito à liberdade de locomoção
e residência dentro das fronteiras de casa Estado, deixar qualquer país,
inclusive o próprio, e a este regressar, bem como garantir que toda vítima
de perseguição pode procurar asilo em outros países universal
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).
Além disso, inúmeros outros importantes pactos foram firmados, tais
como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948,
assim como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966,
os quais consagraram à migração, a liberdade de circulação, que somente
pode ser contida pelo devido processo legal e ao direito de asilo (JUBILUT;
APOLINÁRIO, 2010, p. 279).
Diante disso, verifica-se que nas modalidades migratórias estão inse-
ridos os migrantes em suas diversas categorias, tais como por motivos
econômicos, voluntários, forçados sem proteção internacional, entre ou-
tros, e, também, os refugiados, categoria específica vinculada a um sistema
de proteção internacional (SILVA; BÓGUS; SILVA, 2017, p. 18).
A evolução do Direito Internacional cominado com o reconhecimento
do direito de mobilidade dos migrantes, e com os inúmeros tratados cele-
brados no âmbito da proteção dos direitos humanos, contribuíram
indiscutivelmente para a intensificação da circulação de pessoas, pois os
Estados restaram obrigados a garantir os direitos dos estrangeiros em seu
território (BICHARRA, 2018, p. 125).
Verifica-se, nesse contexto, que as pessoas se movem por diversos
motivos. A migração pode ser indesejada, ocorrendo devido a algum tipo
de dificuldade, como falta de alimentação, guerra e inundações. Ou, a mi-
gração pode ser desejada, que é quando as pessoas se movem em busca de
um clima mais agradável, liberdade, ou seja, melhores condições de vida.
São inúmeros os fatos que influenciam estes movimentos, “às vezes de
maneira simultânea, incluindo: 1. Ambiental (por exemplo, clima, desas-
tres naturais); 2. Político (por exemplo, a guerra); 3. Econômica (por
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 143

exemplo, o trabalho). 4. Cultural (por exemplo, a liberdade religiosa, a


educação)” (COSTA; REUSCH, 2016, p. 278).
É necessário destacar que a migração se divide em duas modalidades:
voluntárias e forçadas. A primeira abrange todos os casos em que a decisão
de migrar é tomada livremente pelo indivíduo, por razões de conveniência
pessoas e sem a intervenção de um fator externo. Essa modalidade nor-
malmente é aplicada a pessoas, e membros de sua família, que se mudam
para outro país em busca de melhores condições sociais e materiais de vida
para si e para seus familiares. Essas pessoas podem ter um status de mi-
gração regular ou irregular, em função de sua entrada e permanência no
país de residência, tenham sido observados ou não os requisitos legais pre-
vistos no país (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2010, p. 281).
A segunda, por sua vez, diz respeito a migração forçada, a qual ocorre
quando o elemento volitivo do deslocamento é inexistente ou minimizado,
podendo abranger, portanto, uma gama de situações. A situação da migra-
ção forçada é o refúgio, que concede proteção as pessoas que tiveram ou
tem que deixar seu país de origem ou residência habitual em razão de fun-
dados temores de perseguição em função de raça, religião, nacionalidade,
opinião política ou de pertencimento e um grupo social. Além dos refugi-
ados, enquadram-se nas migrações forçadas as pessoas deslocadas
internamente, seja por questões de conflitos armados, desastres ambien-
tais ou graves violações de direitos humanos. No entanto, essas continuam
sob a proteção de seu Estado, o que faz que a proteção internacional seja
peculiar (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2010, p. 281-282).
Nessa modalidade, ainda se enquadram pessoas em movimento de-
vido a mudanças ambientais, os quais são conhecimentos como refugiados
ambientais. Também englobam as pessoas que tiveram que se deslocar em
função de situações relativas a seus direitos econômicos, sociais ou cultu-
rais. E, por fim, aqueles indivíduos que enfrentam violações de direitos
humanos em seu próprio país e ainda se encontram no país, normalmente,
no contexto de tensão política interna ou conflito armado não internacio-
nal (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2010, p. 282).
144 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Atualmente, os fluxos migratórios são situações complexas da socie-


dade, marcados por conflitos, guerras desequilíbrios socioeconômicos,
violência, pobreza, fome e exploração, por isso, as pessoas se deslocam de
seu país de origem em buscas que novas condições de vida. (COSTA;
REUSCH, 2016, p. 279).
Muitas vezes, os migrantes forçados e os refugiados são confundidos
entre si, e, por consequência, tratados com desconfiança, preconceito e in-
tolerância (ACNUR, 2014, b). Por outras, muitos migrantes se submetem
a condições precárias de viagens e, ao chegar ao seu destino final, são des-
vinculados do fluxo migratório que pertencem, permanecendo de forma
irregular, passando a sofrer, pelos Estados, às práticas indiscriminadas do
refoulement3 (SILVA; BÓGUS; SILVA, 2017, p. 18).
Por isso, no ano de 1947, a Organização Internacional para Refugia-
dos foi criada, com o objetivo de regulamentar a situação dos refugiados.
E, posteriormente, o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados
– ACNUR restou estabelecida, para o fim de “promover o desenvolvimento
e supervisionar a implementação das regras legais que definira o estatuto
de refugiados em todo o mundo”. Também, com o objetivo de promover a
proteção aos refugiados, foi estabelecido a Convenção Relativa para o Es-
tatuto dos Refugiados de 1951, que foi redigida conforme recomendação
da Comissão dos Direitos Humanos (SILVA et al. 2016).
Tal instrumento tem por finalidade a demonstração dos princípios
reguladores do tratamento dos refugiados, inerentes à educação, ao bem-
estar, à assistência pública, ao trabalho entre outros. Não obstante a isso,
a Convenção Relativa para o Estatuto dos Refugiados de 1951 priorizou o
respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais sem qualquer
distinção (SILVA et al. 2016).
Ainda, a Convenção de 1951 adotou como um dos princípios mais im-
portantes, considerado norteador, para a questão dos refugiados: o

3
São consideradas formas de refoulement a recondução sumária dos imigrantes que adentraram o território do país
ilegalmente, a recusa em admitir a entrada de indivíduos sem documentos válidos, entre outras práticas (OLIVERA;
CARVALHO, 2017, p. 44).
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 145

chamado non-refoulement, isto é, o princípio da não devolução. Tal nor-


mativa está consagrado no artigo 33 da Convenção sobre o Estatuto dos
Refugiados e prevê que nenhum Estado poderá retornar um refugiado
para seu país natal ou para as fronteiras dos países de onde veio original-
mente, lugares onde sua vida ou liberdade estejam ameaçadas em virtude
de sua cor, nacionalidade, grupo social, concepções políticas ou religiosas.
Trata-se de norma que tem por intuito coibir a repulsa de um Estado aos
refugiados que estejam em seu território (PEREIRA, 2014, p. 25).
O presente princípio valoriza os atos jurídicos criados pelos Estados
a fim de impedir que o mesmo devolva o sujeito que se encontra sob sua
jurisdição, em busca de refúgio. Trata-se da proibição de coação e da re-
pulsa de um Estado à presença de refugiados em seu território (LUIZ
FILHO, 2001, p. 180).
Destaca-se que a garantia da não devolução ocorre antes de o Estado
analisar o pedido de refúgio do solicitante, sendo que a falta de documen-
tos como passaporte ou identidade, ou mesmo a entrada ilegal do
requerente, não podem ser utilizados como argumento para deportação
ou devolução, bem como para o não reconhecimento do status de refugi-
ado. Assim, incumbe às autoridades internacionais e imigratórias avaliar
as condições de chegada e também do país de origem do solicitante de re-
fúgio (PEREIRA, 2014, p. 26).
A Organização Internacional para Migração – OIM, dedica-se para
compreender os fluxos migratórios e, também, no desenvolvimento de
práticas e normas que impeçam a proteção dos direitos humanos e a apli-
cação de normas protetivas (SILVA; BÓGUS; SILVA, 2017, p. 19). Verifica-
se que as organizações de direitos humanos têm dado destaque à proteção
dos direitos dos migrantes e refugiados. Isso porque, os direitos humanos
contêm princípios verdadeiros e válidos para todos os povos, em todas as
sociedades, em todas as condições da vida econômica, política, étnica e cul-
tural. Tratam-se de direitos universais, pois aplicam-se em todos os
lugares; indivisíveis, uma vez que os direitos políticos e civis não podem
146 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ser separados de direitos sociais e culturais; e alienáveis, pois não podem


ser negados a nenhum ser humano (COSTA; REUSCH, 2016, p. 284).
Assim, é possível afirmar que após o período pós-guerra, houve “a
valorização da pessoa como ser humano e a salvaguarda da sua digni-
dade”, em que o ser humano foi recolocado como ponto principal no
ordenamento jurídico, ou seja, “o homem está no centro do Direito, e os
fundamentos do ordenamento jurídico entrelaçam-se sempre com a dig-
nidade do ser humano” (SILVA; LIMA, 2016, p. 174).
Destaca-se que o Brasil, elencou no artigo 1 da Constituição Federal
os fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre os quais destaca
à dignidade da pessoa humana, princípio sob o qual é pautada toda a pro-
teção dos direitos humanos no Brasil. Os princípios previstos no artigo 4 e
5 da Lei Maior também são de importância para problemática dos migran-
tes e refugiados, na medida em que preceituam a prevalência dos direitos
humanos, bem como a concessão de asilo político (JUBILUT, 2007, p. 182).
A dignidade da pessoa humana está situada no ponto central do or-
denamento jurídico brasileiro, tendo em vista que institui a valorização da
pessoa humana como razão fundamental para a estrutura da organização
do Estado e para o Direito. Logo, “o princípio da dignidade da pessoa hu-
mana impõe um dever de abstenção e de condutas positivas tendentes a
efetivar e proteger a pessoa humana. É a imposição que recair sobre o Es-
tado de respeitar, proteger e promover condições que viabilizem a vida
com dignidade” (GUERRA; EMERIQUE, 2006, p. 385-386).
Adotar à dignidade da pessoa humana como valor básico do Estado
Democrático de Direito “é reconhecer o ser humano como o centro e o fim
do direito”. Tal princípio tornou-se um marco irremovível, pois zela pela
dignidade da pessoa humana, que é o valor supremo absoluto cultivado
pela Constituição Federal (AWAD, 2006, p. 114).
Além disso, corroborando com os tratados internacionais de direitos
humanos que o Brasil é signatário, bem como com os princípios democrá-
ticos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de
1988, foi promulgada a nova Lei de Migração – Lei 13.445/2017. A nova
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 147

legislação passou a tratar o imigrante como um sujeito de direitos, deter-


minando tratamento igualitário a brasileiros e às pessoas vindas de outros
países. Além disso, trouxe o princípio da não criminalização da migração,
promovendo aos estrangeiros o acesso aos serviços básicos, como educa-
ção, saúde, assistência jurídica e seguridade social.
Oportuno afirmar que a legislação supramencionada está centrada
no que Amartya Sen indica como principal desafio para o âmbito interna-
cional e local de cada país, no sentido de que “o principal desafio –
internacional e dentro de cada país. As preocupantes desigualdades in-
cluem disparidades na riqueza e também assimetrias brutais no poder e
nas oportunidades políticas, sociais e econômicas” (SEN, 2010, p. 23). Por-
tanto, a legislação brasileira de 2017, centra atenção a preocupação Sen.
Dentro desse contexto, merece destaque o ponto que refere que o es-
trangeiro não pode ser deportado ou repatriado se em seu país de origem
houver situação que coloquem em risco sua vida e integridade física
(BRASIL, 2017).
Verifica-se que a Nova Lei de Migração ganhou destaque na comuni-
dade internacional. Isso porque, junto a Lei do Refúgio de 1997 e a Lei de
Tráfico de Pessoas de 2016, o Brasil ocupa uma posição de vanguarda,
“tanto na proteção dos direitos dos migrantes, quanto no combate a orga-
nizações criminosas que se aproveitam da migração para a prática de atos
ilícitos” (NOVO, 2018).
Diante disso, é possível assegurar que o Brasil zela pela igualdade,
pelo tratamento igualitário entre as pessoas, e, ainda, tem-se como funda-
mento o princípio da dignidade humana (SILVA; LIMA, 2016, p. 177).
Atualmente, a dignidade da pessoa humana é entendida sobre pres-
suposto de que cada indivíduo possui um valor intrínseco e desfruta de
uma posição especial no universo (BARROSO, 2013, p. 145). Para além,
Bonavides destaca que “nenhum princípio é mais valioso para compendiar
a unidade material da Constituição Federal que o princípio da dignidade
da pessoa humana” (2001, p. 15).
148 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

À luz da Constituição Federal de 1988, verifica-se que, assim como os


brasileiros são protegidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
os migrantes que vem para o país em busca de melhores condições de vida
também devem ser tratados com toda à dignidade que cabe ao ser humano
(SILVA; LIMA, 2016, p. 179). Fator complexo na prática de vivência diária
dos migrantes ao redor do mundo, mas, também, muitíssimo complexa
em território brasileiro. Como bem elucida Amartya Sen,

A comunidade bem-integrada na qual os residentes instintivamente fazem coi-


sas absolutamente maravilhosas para uns e outros com grande proximidade e
solidariedade pode ser a mesma comunidade na qual tijolos são atirados
pelas janelas de imigrantes que chegam à região vindos de outra parte. A
adversidade da exclusão pode acabar de mãos dadas com as dádivas da inclu-
são. (SEN, 2015, p. 22, grifo nosso)

O Estado não tem apenas o dever de impedir práticas de atos que


atentem à dignidade da pessoa humana, tem, também, o dever de promo-
ver esta dignidade por meio de condutas ativas, garantindo o mínimo
existencial para cada ser humano em seu território (GUERRA;
EMERIQUE, 2006, p. 385).
Verifica-se que muitos são os motivos que impulsionam os fluxos mi-
gratórios. Portanto, diante dos inúmeros pactos e tratados de direito
internacional dos direitos humanos que garantem a proteção aos migran-
tes, é dever, também, do Estado receptor dar seguimentos as práticas
convencionais e não convencionais de proteção, a fim de assegurar a cir-
culação dos indivíduos, bem como garantir à dignidade dos migrantes.
Além disso, no início do novo milênio, os indivíduos experimentaram
a problemática econômica. Isso porque, houve um forte crescimento eco-
nômico, diante dos avanços tecnológicos no âmbito da comunicação e dos
transportes, traçando um novo modelo de globalização, no entanto, com
baixa oferta de emprego, fazendo com que migrassem em busca de traba-
lho (MARINUCCI; MILESI, 2011).4

4
Frisa-se, aqui, a pertinente elucidação de Amartya Sen: “Nossa civilização global é uma herança do mundo – e não
apenas uma coleção de culturas locais discrepantes”. (SEN; KLISPERG, 2010, p. 20).
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 149

Pode-se dizer que o deslocamento das pessoas é um fenômeno histó-


rico e que se origina por diversos fatores, “desde a simples busca das
pessoas por um lugar onde não há mais perspectivas de emprego ou qua-
lidade de vida, até por situações extremas, como a existência de conflitos
no país de origem” (ANDRADE, 2018, p. 333).
Nos dias de hoje, vive-se uma grandiosa crise migratória. Por isso,
primordial se faz uma análise do viés sociológico do refúgio, considerando
aqueles que são forçados a deixar seu país, sendo,

Necessário pensar como migrante não apenas quem migra, mas o conjunto da
unidade social de referência do migrante que se desloca. Mesmo que uma parte
da família fique no lugar de origem e apenas outra parte se desloque para o
lugar de destino. No entanto, todos padecem as consequências da migração,
embora não sejam estatisticamente migrantes. Todos vivem cotidianamente o
sonho do reencontro. Vivem todos os dias à espera do ausente (MARTINS,
2003, p. 145).

Diante disso, é imprescindível a implementação de políticas de pre-


venção para combater às injustiças aos direitos daqueles que migram,
principalmente de forma forçada, para outro país. A proteção dos direitos
humanos tornou-se uma preocupação comum tanto no âmbito internaci-
onal quanto no direito interno, isso porque, cada vez os entes individuais,
como os Estados Nacionais, estão engajados na empreitada humanitária
(SOUZA, 2011).
Engajamento esse que necessita transcender dos discursos políticos
à realidade dos migrantes, da letra da lei à efetivação de uma sociedade
mais justa e ciente de sua responsabilidade para uma vida intercultural,
onde as liberdades culturais sejam igualmente tangíveis e vivenciáveis,
embora, “se o nosso foco for liberdade (inclusive liberdade cultural), o sig-
nificado da diversidade cultural não pode ser incondicional e deve variar
eventualmente com suas ligações causais com a liberdade humana e seu
papel no processo que leva as pessoas a tomarem suas próprias decisões”.
(SEN, 2015, p. 127)
150 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

2. O Direito Internacional Humanitário e a Lei de Migração – Lei


13.445/2017 brasileira

O Direito Internacional Humanitário, conhecido também como Di-


reito dos Conflitos Armados ou, ainda, Direito de Guerra, surgiu no final
do século XIX, visando solucionar os problemas decorrentes de conflitos
armados, minimizando, por conseguinte, os efeitos trágicos que um con-
flito pode gerar (PIÑEIRO, 2016). Embora um ramo do direito
internacional público, suas ideologias se distinguem, pois enquanto o pri-
meiro rege as relações entre os Estados e é constituído por tratados e
convenções, assim como princípios gerais e costumes, o direito internaci-
onal humanitário está voltado especificamente à proteção da pessoa
humana em torno de um conflito armado (NOVO, 2017).
Com efeito, o Direito Internacional Humanitário tem por objetivo
conceder a maior proteção possível àqueles que se encontram em situação
de crise humanitária, principalmente àquele grupo de indivíduos que ne-
cessitam de proteção, pelo fato de não estarem contemplados com
documentos internacionais. Nesse sentido, pode-se considerar o termo hu-
manitário em seu sentido mais amplo, qual seja, de humanitarismo, pois,
na perspectiva jurídica, tem a finalidade de resguardar o ser humano e a
sua dignidade (ANDRADE, 2018, p. 333).
Verifica-se que a fonte primária do Direito Internacional Humanitá-
rio são os princípios. Estes, possuem a função de regulamentar os conflitos
armados, proteger aqueles que não participam diretamente do conflito ou,
ainda, aqueles que estão impossibilitados de participar por alguma doença
ou por estarem na condição de prisioneiros de guerra. Dentre eles, desta-
cam-se: o princípio da humanidade, da necessidade militar, da
proporcionalidade, da limitação e da distinção (PIÑEIRO, 2016).
No âmbito da garantia da proteção humanitária, o Comitê Internaci-
onal da Cruz Vermelha, que visa proteção da vida e da dignidade, bem
como a assistência das vítimas de conflitos armados ou outras situações de
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 151

violência. Por isso, empenha-se para evitar o sofrimento por meio da pro-
moção e fortalecimento dos direitos e princípios humanitários universais
(MEDEIROS; MOULIN, 2010).
Verifica-se, ainda, que após da Segunda Guerra Mundial os direitos e
garantias dos migrantes restaram resguardados pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, pois, diante do reconhecimento no indivíduo no
âmbito internacional, bem como com o aumento dos imigrantes no
mundo, tornou-se cada vez mais frequente a utilização da Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos para regular as relações entre os Estados
receptores e os imigrantes (PATARRA, 2015, p. 86).
Posterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi criada a
primeira legislação específica para os migrantes, por meio da Organização
Internacional do Trabalho, que elaborou, em 1949, a Convenção sobre os
Trabalhadores Migrantes e, em 1975, as disposições completares da Con-
venção sobre os Trabalhadores Migrantes. Tais documentos
recomendavam que os Estados a garantissem aos migrantes o mesmo tra-
tamento e direitos dos trabalhadores nacionais, independentemente de
sua nacionalidade, raça, religião ou sexo (PATARRA, 2015, p. 86-87).
O Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, do
mesmo modo, encontra-se engajado na empreitada protetiva, visto que,
oferece, de forma global, àqueles que são obrigados a deixar o seu país de
origem, alimentos de emergência, abrigo, água e suprimentos médicos.
Além disso, possui projetos para ajudar a proteger o meio ambiente, cons-
truir escolar e conscientizar sobre questões a AIDS (ACNUR, 2019).
Os Estados, por sua vez, desenvolvem um importante papel na pro-
teção dos migrantes. Isso porque, levando em consideração que a migração
deixou de ser apenas um fenômeno social, transformando-se, também, em
um fenômeno político, cabe aos Estados, por meio de políticas de migra-
ção, lidar com a formação e manutenção dos fluxos migratórios
(MOREIRA, 2017, p. 85).

As políticas de imigração deveriam ir na via de tratas as migrações na sua


complexidade, multidimensionalidade e incluí-la de forma transversal
152 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

nas diversas políticas públicas. A junção entre políticas que possam acomo-
dar os imigrantes no mercado de trabalho formal, com a perspectiva dos
direitos humanos, contribuirá de forma decisiva a consolidar a imigração
como um ativo para o desenvolvimento no país, não somente do ponto de vista
econômico, mas também cultural, social e político (CAVALCANTI, 2015, p. 47,
grifo nosso).

Contemporaneamente, inúmeros países passam por um processo de


fechamentos de fronteiras e implementação de normas restritivas à mi-
gração. O Brasil, todavia, entrou para a rota dos grandes fluxos
internacionais e, diante disso, ampliou o direito migrantes, por meio da
criação de políticas sociais de migração (NOVO, 2017; PATARRA, 2015, p.
88).
Nesse sentido, destaca-se o Conselho nacional de Imigração, órgão
ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego, que atua, ao longo dos anos,
não somente na proteção do imigrante, mas também com os brasileiros
que vivem no exterior. Vale enfatizar, também, o Ministério das Relações
Exteriores, que visa a capacitação e estruturação consular no atendimento
e identificação dos brasileiros no exterior (PATARRA, 2015, p. 88-89).
Em soma e de grande valia, foi promulgada a nova Lei de Migração –
Lei 13.445/2017, a qual visa, principalmente, o combate da criminalidade
em face do migrante, bem como a desburocratização dos processos docu-
mentais para a regularização do estrangeiro no país. Verifica-se que a nova
lei preza pela cooperação jurídica entre países, ressaltando a proteção aos
apátridas, asilados e brasileiros no exterior. Tal lei é vista com bons olhos
pela comunidade internacional, e coloca o Brasil em uma posição de des-
taque no que tange aos direitos dos migrantes (NOVO, 2017).
Muito embora a referida lei apresentar alguns retrocessos no que
tange aos direitos humanos e garantias sociais, como por exemplo, a não
inclusão daquele que mora no Brasil há mais de quatro anos e comete
crime nesse período em grupo de vulnerável, bem como impossibilidade
de concessão de residência ao migrante aprovado em concurso público,
constata-se que há muitos pontos positivos, os quais estão de acordo com
as normas internacionais (NOVO, 2017).
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 153

Veja-se, a referida lei determina a existência de visto temporários


àqueles que se encontram em situação de acolhida humanitária, ou seja,
“para aquelas pessoas que precisam fugir de seu país de origem, mas não
se enquadram na lei de refúgio”. Também, contempla os migrantes que
vem ao Brasil com tratamento de saúde, inclusive a menores desacompa-
nhados (NOVO, 2017).
À luz da nova lei, o migrante contribui de forma significativa para o
desenvolvimento econômico do Brasil, pois paga impostos de forma direta
e indireta, como qualquer brasileiro. Por isso, lhes é assegurado todos os
direitos previstos na Constituição Federal de 1988, inclusive, o direito de
aposentadoria e demais benefícios previdenciários (NOVO, 2017).
Merece destaque, nesse ponto, o disposto no julgado Recurso Extra-
ordinário n° 587.9705 do Supremo Tribunal Federal, que definiu, em
repercussão geral, “a tese de que os estrangeiros no país são beneficiários
da assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Fe-
deral, uma vez atendidos os requisitos constitucionais e legais” (ZORTEA,
2017, 88).
De acordo com o referido artigo, será garantido um salário mínimo
mensal aos portadores de deficiência física e aos idosos com 65 anos ou
mais, desde que comprovado a inexistência de meios para prover à própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família (BRASIL, 1988). No en-
tanto, para os estrangeiros pudessem se habilitar, era necessário
demonstrar eram neutralizados e domiciliados no Brasil, e que não esta-
vam sendo contemplados por qualquer outro benefício previdenciário
(ZORTEA, 2017, 92).
Todavia, tal interpretação era totalmente contrária ao disposto no ar-
tigo 5º, caput, da Constituição Federal, que assegura igualdade entre os
estrangeiros e brasileiros. Assim, deve o migrante ser considerado como o

5
Veja-se, nesse sentido: STF - RE: 587970 SP, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 30/04/2011,
Data de Publicação: DJe-119 DIVULG 21/06/2011 PUBLIC 22/06/2011.
154 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

mesmo, e não como o outro, diante da premissa da igualdade, e do funda-


mento da dignidade da pessoa humana disposto na Constituição Federal
brasileira (ZORTEA, 2017, 89-90).
Nesse sentido, destacou o Ministro Marco Aurélio Melo, quando do
julgamento do RE 587.970,

A eliminação dessa forma aguda de pobreza surge como precondição da cons-


trução de sociedade verdadeiramente democrática, da estabilidade política, do
desenvolvimento do País como um todo. Se há algum consenso no âmbito da
filosofia moral, é a respeito do dever do Estado de entregar conjunto de pres-
tações básicas necessárias à sobrevivência do cidadão. Mesmo que esses
elementos não convençam, o constituinte instituiu a obrigação do Estado de
prover assistência aos desamparados, sem distinção. Com respaldo no artigo
6º da Carta, compele-se os Poderes Públicos a efetivar políticas para remediar,
ainda que minimamente, a situação precária daqueles que acabaram relegados
a essa condição. Vale notar não existir ressalva em relação ao não nacional. Ao
revés, o artigo 5º, cabeça, estampa o princípio da igualdade e a necessidade de
tratamento isonômico entre brasileiros e estrangeiros residentes no País
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011).

Assim, pode-se afirmar que Lei de Migração constituiu um novo


marco legislativo para a questão migratória, visto que, pela primeira vez,
“o migrante deixou de ser tratado como um dirigismo migratório”, sendo
reconhecido como um sujeito de direitos e garantias. Com efeito, a nova
lei expandiu as garantias constitucionais em relação ao migrante, haja
vista que, no art. 4º, I, da Lei Maior, prevê o tratamento igualitário do
migrante com os nacionais, além de garantir, de forma mais específica, no
art. 4º, VIII, o acesso a serviços públicos de assistência social, sem discri-
minação devido à nacionalidade ou da condição migratória (ZORTEA,
2017, 92).
Considerando o intento da presente abordagem, é possível indicar
que a provocação trazida com a Lei de Migração brasileira articula espaço
com a vida humana dos migrantes, articulando relação da proteção legis-
lativa com a possibilidade de que as pessoas que migram para o Brasil
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 155

consigam desenvolver suas capacidades6, ou seja, uma nova via de opor-


tunidades reais de vida, afinal, com Sen, ao afirmar que

A abordagem das capacidades se concentra na vida humana e não apenas


em alguns objetos separados de conveniência, como rendas ou mercadorias
que uma pessoa pode possuir, que muitas vezes são considerados, principal-
mente na análise econômica, como o principal critério do sucesso humano. Na
verdade, a abordagem propõe um sério deslocamento desde a concentração
nos meios de vida até as oportunidades reais de vida. (SEN, 2009, p. 199,
grifo nosso)

Nessa conjuntura, observa-se que os fluxos migratórios são decor-


rentes das inúmeras violações de direitos humanos, principalmente, em
períodos de guerras, desastres ambientais e crises econômicas e humani-
tárias. Ao longo dos anos, com o alargamento assoberbado das migrações,
foi possível perceber que os Estados, a fim de adequar-se à realidade vi-
venciada pela humanidade, adotaram instrumentos de proteção análogos
com aqueles previstos na ordem internacional, bem como por meio de or-
ganismos públicos e privados, para assegurar à igualdade, proteção e
respeito à dignidade do ser humano em qualquer lugar do mundo.
Em que pese a constatação acima, os esforços apenas iniciaram, bem
como, conjuntamente, movimentos contrários aos movimentos migrató-
rios e que contestam o viés multicultural que as migrações inserem nos
países, por meio de racismo, individualismo cultural local exacerbado, e,
tristemente, por constantes atos de terrorismo.
Traçar um caminho para as oportunidades reais de vida dos migran-
tes é pensar um caminho recíproco entre as culturas migrantes e as
culturas locais que abrigam, em um movimento de verdadeiro processo
intercultural, sem falsos jargões, sem falsas evidências, mas com reais con-
dições de expansão conjunta das liberdades culturais.

6
No sentido capabilities.
156 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Considerações finais

O estudo analisou reconhecimento da dignidade da pessoa humana


diante da internacionalização dos direitos humanos e a proteção destinada
aos migrantes forçados e aos asilados diante das transformações da prote-
ção humanitária e do alargamento assoberbado das migrações.
Após os horrores vivenciados durante a Segunda Guerra Mundial,
iniciou-se em processo gradual de internacionalização dos direitos huma-
nos, o qual foi instrumentalizado por meio de declarações e tratados,
firmados pelos entes internacionais, ressaltando o compromisso dos Esta-
dos em assegurar o tratamento humanitário das pessoas.
A adesão aos tratados internacionais inerentes a direitos humanos
permite a intervenção internacional em assuntos internos, todavia, não
traz prejuízos a soberania estatal, pois, o Estado, ao firmar um tratado,
está utilizando sua soberania para submeter-se às disposições lá contidas
e, por conseguinte, atenuando voluntariamente os efeitos do poder sobe-
rano dentro do território nacional.
Veja-se, o ser humano foi colocado no centro de todo o ordenamento
jurídico, reconhecendo às pessoas a condição de cidadãs do mundo, em
detrimento de conceitos ultrapassados de nacionalidade e territorialidade,
anteriormente consagrados.
Percebe-se que o Brasil, com a promulgação da Constituição Federal
de 1988, elevou à dignidade da pessoa humana como fundamento do Es-
tado Democrático de Direito, e também, ampliou os direitos e garantias
fundamentais, pois, além dos direitos individuais civis, foram incluídos di-
reitos sociais, econômicos, culturais, relativos ao meio ambiente, de
interesse coletivos e difusos, de minorias vulneráveis etc. Assim, as nor-
mas dos tratados internacionais de direitos humanos aderidos pelo Brasil
passaram a ter o mesmo status jurídico ao rol constitucional dos direitos
e garantias fundamentais, constituindo-se assim, um modelo aberto asse-
curatório da proteção dos direitos humanos, por meio da integração
normativa entre os planos nacional e internacional.
Karoline Izaton; José Carlos Kraemer Bortoloti | 157

No ano de 2004, foi introduzida Emenda Constitucional n. 45, a qual


pretendia submeter os tratados internacionais de direitos humanos à apre-
ciação do poder legislativo. No entanto, mesmo diante da inovação
constitucional, verificou-se que os tratados de direitos humanos perten-
cem ao bloco da constitucionalidade, independente da forma que foram
recepcionados, pois inexiste hierarquia privilegiada para os tratados inter-
nacionais que versem sobre direitos universais humanos.
Por isso, destaca-se o papel desempenhado pelo Comissário das Na-
ções Unidas para Refugiados – ACNUR e da Organização Internacional
para Migração – OIM, os quais dedicam-se para compreender os fluxos
migratórios, sejam eles forçados ou não, bem como o desenvolvimento de
normas e práticas que impeçam a proteção dos direitos humanos e aplica-
ção de normas protetivas. Além disso, verificou a jurisdição brasileira zela
pelo tratamento igualitário entre as pessoas e, ainda, tem como funda-
mento o princípio da dignidade da pessoa humana.
Com a Lei de Migração – Lei 13.445/2017, o Brasil visa o combate da
criminalidade em face do migrante, bem como a desburocratização dos
processos documentais para a regularização do estrangeiro no país. Veri-
fica-se que a nova lei preza pela cooperação jurídica entre países,
ressaltando a proteção aos apátridas, asilados e brasileiros no exterior.
Ratifica-se, assim, o imperativo de implementação de políticas prote-
tivas por parte dos Estados acolhedores, dando conta do resgate da
condição de agente dos migrantes, a expansão das capabilities (Amartya
Sen) no núcleo das sociedades migradas, em consequência, gerando um
movimento de interculturalidade entre a cultura migrante e as culturas
acolhedoras.

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10

Amartya Sen:
economia e desigualdade

Luana Paula Lucca 1


Tatiana Aparecida Pedro Knack 2

Introdução

As condições para que uma pessoa esteja na sociedade como agente


ativo é relevante para garantir as condições de justiça, sendo esta de
grande relevância para auxiliar na resolução dos impasses da sociedade,
como as desigualdade. O problema que orienta esta pesquisa: Qual a visão
de Sen sobre economia e desigualdades e sua contribuição para a constru-
ção de uma sociedade justa?
Os objetivos são: segundo Amartya Sen quais os requisitos para di-
minuição das desigualdades, qual a importância da economia e qual o
marco do cenário econômico do Brasil. O Método de abordagem adotado
é investigativo-bibliográfico nos escritos de Amartya Sen, materiais dou-
trinários e comentadores.
A ordem econômica constitucional surge de forma positivada em de-
corrência do contexto social de lutas pela efetivação da justiça social, em

1
Advogada, Faculdade Meridional – IMED, vinculada ao Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de
Amartya Sen: interfaces com direito, políticas de desenvolvimento e democracia. E-mail:<luanalu-
cca.ll@gmail.com>.
2
Mestre em Direito, Democracia e Sustentabilidade, pela Faculdade Meridional – IMED. Advogada. Membro do Cen-
tro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen, interfaces com direito, políticas de
desenvolvimento e democracia. E-mail: tatiknack@hotmail.com.
Luana Paula Lucca; Tatiana Aparecida Pedro Knack | 163

virtude das desigualdades existentes provocadas pelo liberalismo econô-


mico.
Quando uma pessoa tem opções para escolher o que considera mais
importante, essa contribui para a diminuição das desigualdades, para que
assim, a sociedade se encontre estruturada sobre o ápice da justiça. O Es-
tado possui a obrigatoriedade de intervir no campo econômico com
diretrizes em prol da promoção do equilíbrio social, da dignidade humana
e da justiça social. Dessa forma, buscando aperfeiçoar as políticas públicas,
como meio de diminuição das desigualdades sociais.
O grande marco no cenário econômico do Brasil decorreu da Consti-
tuição de 1934, quando a população buscava liberdade em face ao Estado
atuante, por meio de uma Constituição democrática.
A Constituição de 1988 possui inúmeros princípios fundamentados
em um Estado Democrático de Direito, inteiramente vinculado à promo-
ção da dignidade humana, pois o cidadão é uma das finalidades deste
Estado. Seus direitos promovem a estabilidade social, econômica e, conse-
quentemente, o desenvolvimento social, restando a mesma direcionada
para os direitos e as garantias fundamentais.

1. A economia

A década de trinta foi marcada por processos de transformações so-


ciais. O primeiro desses processos se deu pela transformação de uma
sociedade essencialmente agrícola para uma sociedade urbana e industrial,
conjuntamente com a transformação de um estado liberal para um estado
social tão reclamado pela sociedade, em razão das desigualdades entre as
classes decorrentes de um passado escravocrata.
Ocorre que a Lei Áurea promoveu a liberdade, contudo agravou a li-
berdade material, trazendo reflexos nas desigualdades sociais em nossa
sociedade. Assim a ordem econômica foi sendo desenvolvida sempre em
prol da dignidade humana na valorização do trabalho e no pleno emprego
164 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

para a efetivação do bem-estar perseguido no transcorrer das alterações


constitucionais com a intenção de desenvolver a justiça social, a igualdade.
O ordenamento econômico atual possui características do “mundo do
dever ser”, conforme proposto pelo economista Eros Grau. Ou seja, o Bra-
sil possui uma política intervencionista e dirigente do sistema econômico,
com o intuito da promoção dos princípios do ordenamento econômico
constitucional centrado no indivíduo e em prol da coletividade, tendo em
vista que a redução das desigualdades sociais é um dos princípios inscul-
pidos em nosso ordenamento econômico.
Indissociável é a relação entre as questões sociais e econômicas, pois
são realidades interligadas. Sendo assim, a não promoção de um trará re-
flexos no outro e, por fim, no desenvolvimento sustentável.
O Estado possui a obrigatoriedade de intervir no campo econômico
com diretrizes em prol da promoção do equilíbrio social, da dignidade hu-
mana e da justiça social. A economia, portanto é um estudo da
indissociável entre a humanidade e as atividades concorrentes da vida, se-
gundo Rosseti, que assim define economia:

[...] a ação individual e social em seus aspectos mais estreitamente ligados à


obtenção e ao uso das condições materiais do bem-estar. Assim, de um lado, é
um estudo da riqueza; e , de outro , e mais importante, uma parte do estudo
do homem .O caráter do homem tem sido moldado por seu trabalho quotidi-
ano e pelos recursos materiais que emprega, mais que outra influência
qualquer [...]. (ROSSETI, 2003, p. 45)

A Constituição Cidadã, em seu título VII – “Da ordem Econômica e


Financeira –, Capítulo I, Art. 170º, estabelece os princípios gerais da ativi-
dade econômica, todos já promovidos ainda na Constituição de 1967.
Os princípios da ordem econômica estão todos vinculados ao inte-
resse nacional, previstos no Artigo 170º da CF, assim disciplinados:

Art. 170º. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre


iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
Luana Paula Lucca; Tatiana Aparecida Pedro Knack | 165

II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado con-
forme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as
leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econô-
mica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos
previstos em lei.

As previsões constitucionais de um ordenamento econômico no de-


correr das evoluções constitucionais demonstraram uma ordem jurídica
necessária em virtude das interações comerciais da própria evolução do
cenário social e econômico.
Surge, então, a necessidade da intervenção estatal pela busca da ma-
nutenção da ordem, organização funcional, bem como dos interesses da
justiça social, igualdade e dignidade humana no combate à crise econômica
inflacionária.
Entre todos os principais objetivos elencados no artigo 170º da Cons-
tituição Cidadã possuímos a promoção da dignidade humana, a redução
das desigualdades, e a justiça social, o que pressupõe a intervenção estatal
no ordenamento econômico para o “dever ser”.
A intervenção do Estado pela busca do bem-estar-social comprova
não somente uma evolução constitucional mas a evolução de Estado Libe-
ral para um Estado Social, pois o cidadão é uma das finalidades deste
Estado, pois seus direitos promovem a estabilidade social, econômica e,
consequentemente, o desenvolvimento social e pôr fim a promoção da jus-
tiça social.
O artigo 170º da Constituição Federal demonstra que a Magna Carta
é dirigente e realiza o planejamento da economia fundada na valorização
166 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

humana. O autor defende que a Constituição deve ser interpretada à luz


de uma construção embasada em uma sociedade livre, justa, solidária pela
busca do desenvolvimento nacional com redução das desigualdades sociais
e com a promoção do bem-estar de todos. (GRAU, 2014).
Os princípios do ordenamento econômico, restam também previstos
no artigo 1º da Magna Carta, juntamente com a previsão constitucional do
Art. 3º, afirmam os objetivos estatais de uma sociedade justa e igualitária
que visa promover o bem-estar social com o desenvolvimento econômico.
O Estado compromete-se em promover a dignidade humana sobre
todos os campos sociais, recepcionando tratados internacionais acerca
dessa temática, incluídas, entre outros, a erradicação da pobreza e a justiça
social.

1.1 A Constituição Cidadã

A Constituição Federal é a forma organizacional para o funciona-


mento do Estado em seu contexto jurídico, social e político, como define
“conjunto sistematizado de normas originárias e estruturantes do Estado
que têm por objeto nuclear os direitos fundamentais, a estruturação do
Estado e a organização dos poderes” (NOVELINE, 2010, p.102).
A Constituição Federal agrupa cinco categorias, e a ordem econômica
seria uma ideologia que consagra os direitos sociais que abarcam as ques-
tões econômicas e sociais. (SILVA, 2000).
Para muitos autores, a previsão da ordem econômica como previsão
de elementos socioideológicos definidos por Silva aponta para uma previ-
são constitucional dirigente, ou seja, uma norma que possui um programa
decorrente do poder Estatal para atingir um determinado fim. (SILVA,
2000).
A função da ordem econômica é decorrente de um conjunto de nor-
mas promotoras da evolução para a concretização do bem-estar social,
abrangendo todos os benefícios que promovam a vida com dignidade,
Luana Paula Lucca; Tatiana Aparecida Pedro Knack | 167

igualdade, valorização humana e promoção da justiça social, princípios in-


dissociáveis em um Estado Democrático de Direito.
Os princípios-fins da ordem econômica são os delineadores finais da
ordem econômica que devem ser atingidos, (BARROSO, 2001), como pre-
vistos no Art. 170º da Constituição Federal:

[...] São eles (i) existência digna para todos; (ii) redução das desigualdades
regionais e sociais; (iii) busca do pleno emprego; (iv) e a expressão das em-
presas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua
sede e administração no país.

Os princípios contidos no Art. 170º são as finalidades, e os objetivos


sociais e econômicos perseguidos pelo Estado são o devem-se, conforme
define Grau (2014), os quais não podem ser contrariados.
O ordenamento econômico pressupõe a intervenção estatal de forma
a fiscalizar, planejar e estimular a ordem econômica e prevenir possíveis
distorções.
A ordem econômica é intervencionista e dirigente, pois atua no
campo econômico que possui característica privada, com políticas progra-
máticas, diretrizes que visam prestações para a promoção dos princípios
econômicos, garantindo o mínimo de prestabilidade no “mundo do dever
ser”, especialmente no tocante à dignidade humana.
A dignidade humana é fundamento do Estado Democrático de Di-
reito, e a previsão constitucional é prevista no Art. 1º, III, bem como no
Art.170º. A Constituição Federal dirigente deve promover programas de
promoção da dignidade humana.
A dignidade humana possui papel essencial na economia, e a digni-
dade humana é o fim da ordem econômica (GRAU, 2014):

[...] assume a mais pronunciada relevância, visto comprometer todo o exercí-


cio da atividade econômica, em sentido amplo – e em especial, o exercício da
atividade econômica em sentido estrito- com o programa de promoção da exis-
tência digna, de que repito, todos devem gozar. Daí porque se encontram
constitucionalmente emprenhados na realização desse programa – dessa po-
lítica pública maior – tanto o setor público quanto o setor privado. Logo, o
168 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

exercício de qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado


àquela promoção expressará violação do princípio duplamente contemplado
na Constituição.

Assim, qualquer exercício econômico que não viabilize uma promo-


ção da dignidade humana – o “mundo do ser” – mostra-se contrário à
promoção da dignidade humana e aos ditames da justiça social e à Cons-
tituição Federal, pois são contrários aos princípios do ordenamento
econômico.
Considerando que um dos objetivos da República Federativa do Brasil
é a erradicação da pobreza, (Art. 170º, VII), conclui-se que um dos objeti-
vos fins do ordenamento econômico, além do desenvolvimento, é a
existência digna e a promoção da justiça social.
A dignidade humana é um direito indisponível previsto também no
ordenamento econômico, que é finalidade da República Federativa do Bra-
sil, devendo ser promovida, protegida, pois a só assim haverá a promoção
da justiça social sendo ela uma das prioridade e objetivos de nosso Estado
Democrático de Direito.

2. Desigualdades em Amartya Sen

A igualdade para Sen, deve ser analisada de forma conjunta com ou-
tras demandas, caso contrário, a avaliação tende a ser distorcida ou
sobrecarregada, sempre analisando a importância na formulação de polí-
ticas públicas nos domínios econômico e social.
Segundo o autor a desigualdade está ligada com as capacidades, ou
seja, estamos falando em igualdade, quando todos os cidadãos, tem as
mesmas oportunidades de buscar por suas liberdades, e para poder tomar
suas decisões e analisar o que é mais importante em cada momento de
suas vidas.
Outrossim, analisa-se também que para Sen as capacidades de deter-
minar o que queremos, o que valorizamos para nossa vida é essencial para
as condições de justiça, para uma expansão da condição de agente ativo de
Luana Paula Lucca; Tatiana Aparecida Pedro Knack | 169

mudança, que consegue efetivar sua liberdade, fazendo escolhas de forma


autônoma e conseguindo levar adiante sua realização.
Devemos avaliar que o êxito de uma sociedade é apreciado segundo
as liberdades substantivas que os seus membros fluem, isto porque para
termos uma sociedade democrática precisamos efetivar a justiça desenvol-
vendo a condição de agente.
Um Estado Democrático, deve promover políticas públicas, com a de-
vida atenção para aqueles que precisam, ou seja, como uma forma de
auxilio no desenvolvimento das capacidades de cada um. O Estado deve
ter responsabilidade na organização da sociedade, oferecendo ajuda aos
que mais precisam.
Assim, uma sociedade que tem como prioridade o indivíduo, a dimi-
nuição da pobreza e a efetivação das capabilities, será uma sociedade igual
e democrática.

Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade


seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vis-
tas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de
seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de
engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm pa-
péis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas. São
papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda. A perspectiva de que
a liberdade é central em relação aos fins e aos meios do desenvolvimento me-
rece toda a nossa atenção. (SEN, 2010, p.77)

Para a sociedade se desenvolver faz-se necessário que as liberdades


das pessoas sejam garantidas, para que por meio destas todos possam
exercer seus direitos e diminuir as desigualdades, pois, a Constituição Fe-
deral de 1988, institui o indivíduo como sujeito de direitos, tendo o poder
de decidir o que considera importante em sua vida, garantindo a todos, os
direitos básicos para a consolidação da dignidade da pessoa humana, ou
seja, a sociedade democrática será concretizada quando, os cidadãos forem
detentores da condição de agente podendo interferir na sociedade segundo
seus próprios preceitos.
170 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

A condição de agente somente será efetivada, quando o cidadão for


sujeito de direitos, efetivando o direito de expressar suas opiniões, buscar
seus ideais e participar de forma livre no futuro de sua sociedade, deste
modo, com liberdade substantiva, poderá auxiliar na efetivação das suas e
das capacidades e dos demais membros da sociedade, diminuindo de
forma eficaz as desigualdades.

A pessoa na condição de agente, participa de maneira autônoma e ativa, con-


tribuindo com a transformação e o equilíbrio da relações sociais e ambientais,
agindo para a melhoria das condições de vida de todos. As múltiplas demandas
que integram os objetivos das pessoas, juntamente com as suas potencialida-
des e limites existentes na sociedade, supõem a necessidade de uma atuação
equilibrada e responsável. (ZAMBAM, 2012, p. 73).

Podemos analisar que para Sen, desigualdade e pobreza estão inti-


mamente ligadas, visto que, uma pessoa com baixas condições
econômicas, não tem condições de desenvolver suas capacidades, e com
essa privação, não conseguirá, desenvolver suas liberdades, então, con-
forme analisa Sen para as condições de justiça se faz necessário a
efetivação das capacitações (capabilities) para determinarmos o que que-
remos o que valorizamos, pois para ele as capacitações (capabilities)
seriam a liberdade substantiva, para realizar aquilo que cada cidadão de-
seja para sua vida.
A igualdade se faz tão importante nesse contexto, pois, uma sociedade
que cada cidadão tem suas capacidades, direitos civis, políticos e econômi-
cos, torna-se uma sociedade justa, porém, em uma sociedade desigual, os
menos favorecidos, acabam tendo privadas suas capacidades e assim per-
dendo o poder e a coragem de desejar as coisas. Assim, ajustando seus
desejos ás suas possibilidades, perdendo a coragem de lutar pela justiça,
por essa razão politicas publicas eficientes se tornam tão importante nesse
contexto.
A responsabilidade de disponibilizar aos cidadãos condições necessá-
rias para que estes efetivem sua condição de agente, e desta forma através
Luana Paula Lucca; Tatiana Aparecida Pedro Knack | 171

das oportunidades asseguradas desenvolvam suas capacitações (capabili-


ties) é da sociedade, para que assim efetivem-se as condições de justiça,
“[...] Justa é uma sociedade que promove e garante os direitos culturais,
que fomenta a superação das gritantes desigualdades e institui políticas de
reconhecimento e formas de relacionamento integradas e interdependen-
tes” (ZAMBAM, 2012. p.225).
Para que o sujeito utilize de sua condição de agente e efetive a justiça
no contexto da sociedade, é importante que todos os membros tenham
uma atuação livre, isso inclui todos os direitos e garantias que devem ser
assegurados, para que possam escolher livremente entre os diferentes ti-
pos de vida, aquele que tem razão par valorizar, e desta forma possam
desenvolver suas capacitações (capabilities), realizando a combinação de
funcionamento que se considera importante na realização pessoal e social.
Quando o sujeito encontra-se na condição de agente e detém capacidade
para realizar algo que considera importante para sua vida ele possui a li-
berdade substantiva para escolher o que fazer e o que não fazer, possui o
poder de escolher.
Enfatiza então, que para ser uma sociedade justa, com desenvolvi-
mento, não deve ser analisado somente o aspecto econômico, como
também o aspecto humano, ou seja, a eliminação das desigualdades que
privam os indivíduos de desenvolver suas capacidades, e seu poder de to-
mar decisões.

4 Considerações finais

A conclusão se faz pela lógica de que a justiça social, bem comum,


pressupõe a igualdade social e a igualdade de oportunidades. A ordem eco-
nômica constitucional busca a justiça social combatendo as desigualdades,
garantindo a cada cidadão os seus direitos.
Quando falamos em uma sociedade democrática, estamos afirmando
que todos têm direitos na mesma proporção, por essa razão se faz neces-
sária a justiça social, garantindo a todos as condições de agente ativo. A
172 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

justiça é fundamental, pois reflete na vida das pessoas, uma sociedade


justa tem preocupação central com a realização dos seus membros, desen-
volvendo suas liberdades substantivas, para que disponham de uma
atuação autônoma.
Desta forma, resta evidente que o legislador ao elaborar a Constitui-
ção Federal de 1988, institui o indivíduo como sujeito de direitos, dando-o
poderes para decidir os rumos a seres tomados pela sua sociedade, ele-
vando os direitos fundamentais e sociais dos homens, tendo como objetivo
primordial o bem comum, através da construção de uma sociedade livre,
justa e solidária com a redução das desigualdades. A existência de uma
democracia concreta e eficaz é essencial a justiça social.
Então, segundo Sen, para um desenvolvimento da sociedade e a efe-
tivação da justiça social, é necessário que seja pensado e aplicado políticas
públicas, para a diminuição das desigualdades e assim, um meio para o
desenvolvimento das capacitações (capabilities) de cada indivíduos, para
que deste modo, exerça sua condição de agente e sua liberdade substan-
tiva, tendo direitos de interferir de forma econômica, civil e política no
contexto da sociedade.

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11

Amartya Sen e a escolha social

Sandro Fröhlich 1

1. Introdução

Uma das questões centrais para a vida de cada sujeito é quanto à es-
colha, da liberdade de optar por uma ou outra preferência ou valor. Se na
esfera individual a escolha representa um aspecto crucial, maior ainda é o
desafio de transformar as infinitas escolhas individuais em opções e esco-
lhas coletivas. Em certa medida isso demonstra a complexidade e a riqueza
que é a existência humana em sociedade, pois há sempre a necessidade e
o desafio de conjugar as escolhas pessoais em decisões coletivas e modos
de organização da vida em comunidade.
A escolha social é um dos temas que perpassou a discussão da econo-
mia do século XX e tem em Amartya Sen um dos grandes pesquisadores,
ao ponto de a Real Academia de Ciências da Suécia lhe conceder o prêmio
em reconhecimento aos estudos e avanços empreendidos. Diante do im-
passe apresentado pelo teorema da impossibilidade de Arrow, é Sen quem
rompe com o paradigma, abrindo frentes para a adoção de um espectro
mais amplo de informações e avaliação da realidade.
A partir de uma metodologia dedutiva – a partir da análise dos escri-
tos e teorias apresentadas por autores – o presente trabalho tem como
objetivo conhecer elementos históricos da teoria da escolha social, bem

1
Doutor em filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS; Mestre em Ciências Criminais e Filo-
sofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS; Advogado; Professor na Univates. E-mail:
sfrohlich@gmail.com
Sandro Fröhlich | 177

como compreender as contribuições de Sen nessa área e os avanços em-


preendidos com seus trabalhos interpretativos e sua proposição do
enfoque das capabilidades.
Dessa forma, o escrito irá apresentar as questões básicas inquiridas
pela escolha social – afinal o que se pretende conhecer e alcançar com as
descobertas da escolha social e como essas perguntas básicas estiveram
presentes nos trabalhos e teorias de alguns pensadores. Em seguida será
abordada a perspectiva de um dos grandes nomes em torno a essa temá-
tica: Kenneth Arrow; bem como apresentar o impasse teórico a que sua
teoria enfrentou. E por fim, elucidar as compreensões de Sen sobre o as-
sunto, elucidando as alternativas e soluções encontradas que serviram
como base para a construção de sua interpretação do enfoque de capabili-
dades.

2. Escolha social: perguntas básicas e elementos característicos

A eleição social possui um campo variado, sendo seus estudos e me-


todologias passíveis de aplicabilidade em diferentes áreas do
conhecimento. Para Gaertner (2009. p. 1) a teoria da escolha social “starts
out from the articulated opinions or values of the members of a given
community or the citizens of a given society and attempts to derive a collec-
tive verdict or statement”. Ou também, conforme Craven (1992. p. 01)
“concerns the possibility of making a choice or a judgement that is in some
way based on the views or preferences of a number of individuals, given
that the views or preferences of different people may conflict with each
other”.
Os variados estudos e pesquisas de Amartya Sen sobre a escolha so-
cial o destacam mundialmente e foi um dos principais temas que lhe
rendeu o prêmio Nobel de economia. Para Sen (1999)2

2
Em seu artigo sobre ‘escolha social’ no dicionário Stanford de filosofia, List (2013) apresenta também o seguinte:
“Central questions are: How can a group of individuals choose a winning outcome (e.g., policy, electoral candidate)
from a given set of options? What are the properties of different voting systems? When is a voting system democratic?
178 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

si existe una pregunta central que pueda considerarse como el tema de debate
que motiva e inspira la teoría de elección social, es ésta: ¿cómo puede ser posi-
ble elaborar, al nivel agregado, evaluaciones coherentes de la sociedad (evaluar,
por ejemplo, el “bienestar social”, o “el interés público,” o “la pobreza agre-
gada”), dada la diversidad de preferencias, preocupaciones y predicamentos de
los distintos individuos dentro de la sociedad? ¿Cómo podemos encontrar una
base racional para realizar tales evaluaciones a nivel agregado, evaluaciones
como “la sociedad prefiere esto a aquello”, o “la sociedad debería elegir esto y
no aquello”, o “esto es socialmente correcto”? ¿Es una elección social razonable
del todo posible, particularmente dado que, como lo notó Horacio hace mucho,
puede haber “tantas preferencias como gente”?

Em outra parte de seu discurso, quando comenta sobre seu trabalho


e a amplitude do tema da escolha social e da importância desta disciplina,
Sen apresenta, conforme sua interpretação, os problemas ou situações so-
bre as quais tal temática se debruça e busca responder. Eis o que afirma o
pensador:

¿Cuándo conduce una decisión por mayoría a elecciones coherentes y no am-


biguas? ¿Cómo podemos juzgar qué tan bien se comporta una sociedad en su
conjunto dados los distintos intereses de sus diversos miembros? ¿Cómo me-
dir la pobreza agregada considerando los varios predicamentos y miserias de
las diversas personas que componen la sociedad? ¿Cómo podemos acomodar
los derechos y libertades de las personas y al mismo tiempo acordar el recono-
cimiento debido a sus preferencias? ¿Cómo evaluar las valoraciones sociales de
bienes públicos tales como el medio ambiente, o la seguridad epidemiológica?
También, algunas investigaciones, aunque no forman parte directamente de la
teoría de elección social, han sido apoyadas por la comprensión generada por
el estudio de las decisiones de grupo (es el caso del estudio de las causas y la
prevención de las hambrunas y el hambre, o de las formas y consecuencias de
la desigualdad de género, o de las demandas de libertad individual vistas como
un “compromiso social”) (SEN, 1999).

How can a collective (e.g., electorate, legislature, collegial court, expert panel, or committee) arrive at coherent collec-
tive preferences or judgments on some issues, on the basis of its members' individual preferences or judgments? How
can we rank different social alternatives in an order of social welfare? Social choice theorists study these questions
not just by looking at examples, but by developing general models and proving theorems”.
Sandro Fröhlich | 179

3. A teoria da escolha social na história

O desafio de transformar ou considerar opiniões e preferências pes-


soais no âmbito de decisões e escolhas coletivas ocupa pensadores desde
longa data. Temas referentes a escolhas e melhores formas de organização
social já estavam presentes na filosofia de Platão e Aristóteles.
Possivelmente foram os romanos que mais se preocuparam com
questões e regras para as eleições democráticas dos representantes do
povo e votações no Senado. Neste cenário se destaca Plínio – o jovem (61
ou 62 a 113). Quando o cônsul Afranius Dexter foi encontrado morto, evi-
tando uma execução imediata do suspeito da morte, Plínio propõe um
sistema de votação plural, tendo como alternativas para os acusados: ab-
solvição, banimento ou pena de morte. Imaginando que todos os
habilitados a votar o fariam de forma sincera, propõe uma regra de vota-
ção complexa que pudesse, conforme sua ideia, ser a mais justa para o
caso.
Outro personagem que desenvolveu ideias vinculadas com a escolha
social foi o espanhol Ramon Lull (1233 – 1316). Escritor e religioso, desen-
volveu um sistema de votação que hoje é denominado como ‘método
Copeland’, que é utilizado em algumas áreas esportivas. Também o cardeal
Nicolau de Cusa (1401 – 1464) dedica parte de seu trabalho para apresen-
tar um método de eleição do Imperador do Sacro Império Romano. Sua
ideia era estabelecer um método honesto, justo e transparente, que con-
sistia basicamente no seguinte: “each voter attributes a digit, 1, 2 , 3… and
10 to the best candidate. Obviously, he assumes that the voter ranks the
candidate without ties from the least preferred to the most preferred and
give marks to candidates from 1 to 10 on the basis of this ranking”
(SALLES). Vencia o candidato que alcançava o maior número de pontos.
Embora tais autores do período antigo e medieval tenham se dedi-
cado a assuntos eleitorais atinentes à escolha social, foi no período
moderno que tal disciplina criou raízes sólidas, principalmente com Borda
e Marquês de Condorcet. O francês Jean-Charles de Borda (1733 – 1799)
180 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ao se dedicar aos estudos de sistemas eleitorais descobre que métodos dis-


tintos de eleições podem também conduzir a resultados finais diferentes,
ou conforme afirma Pinto (2006, p. 08), “analisando o sistema eleitoral
como um método de agregar opiniões para encontrar uma escolha colec-
tiva, notou que métodos diferentes conduzem a resultados diferentes”.
Borda preocupa-se por dar aos eleitores a oportunidade de manifes-
tarem a ordem de preferência ou mérito com que consideram os
candidatos. Ao longo de seus trabalhos apresentou duas maneiras de con-
siderar as preferências dos eleitores: eleição por ordem de mérito e método
das eleições particulares. O método que até hoje é reconhecido consiste
basicamente no seguinte: para uma eleição de x alternativas (opções ou
candidatos), cada alternativa recebe pontos conforme o grau de preferên-
cia. 1ª preferência tem y pontos (10, por exemplo), 2ª preferência tem y-1
pontos (9 pontos) e assim sucessivamente. A última preferência tem 1
ponto. A alternativa vencedora será a que contabilizar o maior número de
pontos. Embora seu método seja sobre eleições, Borda insiste que os mes-
mos princípios poderiam ser utilizados para deliberações.
De grande destaque é o trabalho de Marquês de Condorcet (1743 –
1794). Também oriundo da França, foi filósofo, economista, matemático e
sociólogo, vindo mais tarde tornar-se membro da Assembleia Legislativa.
Mas, sua postura independente o levou à prisão, aonde veio a falecer –
tirou a sua própria vida antes que outros viessem fazê-lo. O sistema elei-
toral de Condorcet é bastante original e consiste basicamente em uma
eleição entre cada par de candidatos, num confronto direto. Nas palavras
de Pinto (2006, p. 34), o método é “baseado em comparações dois a dois e
assenta no chamado ‘Critério do Vencedor de Condorcet’, isto é, se existir
um candidato que derrote todos os outros em comparações dois a dois en-
tão esse deve ser declarado o vencedor”.
Embora o método seja bastante completo e utilizado com certa fre-
quência, é também reconhecido por propiciar a ocorrência de um
paradoxo - ‘paradoxo de Condorcet’. A utilização de tal sistemática pode
levar a decisões inconclusivas, caso se verifiquem certas configurações de
Sandro Fröhlich | 181

preferências dos votantes. Poderiam ocorrer situações em que, se todas as


alternativas ou propostas fossem votadas entre si, não necessariamente se
chegaria a uma conclusão. Vejamos: considerem-se três alternativas A, B,
C a serem postas em ordem de preferência, por três votantes (indivíduos
ou grupos). Suponha-se que a maioria prefira A a B, que B seja preferido
a C e que a maioria prefira C a A. Chega-se a uma maioria cíclica (A > B >
C > A), sem conseguir determinar um vencedor, formando assim o para-
doxo.
Durante o século XIX, mesmo que a democracia fosse tema corrente,
a teoria da escolha social não obteve muito espaço ou avanços. Destacam-
se nomes como Charles L. Dodgson (1832-1898). Interessante observar o
que já naquela época afirmava tal investigador, que serve de reflexão para
analisar as eleições de tempos hodiernos. Para ele as eleições “são mais um
jogo de habilidade que um teste real aos desejos dos eleitores”. E mais, “na
minha opinião é preferível que as eleições sejam decididas de acordo com
os desejos da maioria do que os daqueles que têm mais habilidade no jogo,
por isso penso ser desejável que todos devam saber as regras pelas quais
este jogo se pode ganhar” (DODGSON apud PINTO, 2006, p. 27).
Foi, contudo, no século XX, Kenneth Arrow a maior referência da es-
colha social. Depois de um tempo sem grande relevância, é com este
economista americano que a temática revigora e alcança destaque, sendo
considerado um dos grandes temas da economia, vinculando-se com te-
mas estudados na filosofia, política, matemática, etc.

4. Kenneth Arrow e a escolha social

Com a análise da concepção de Arrow sobre a escolha social, dois as-


pectos se tornam claros e merecem ser destacados. A teoria da escolha
social - como é trabalhada por este autor - não se atenta apenas a questões
de processos eleitorais, mas também intenta encontrar ou construir uma
função que possa estabelecer ou medir padrões de bem-estar das pessoas.
E também, é fundamental reconhecer e esclarecer que há fundamentos
182 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

filosóficos e políticos que servem de substrato e alicerce para estas teorias


econômicas. Discutir e analisar as preferências e o bem-estar das pessoas
é também perguntar e querer apresentar respostas sobre a condição e o
sentido da vida humana; é inquirir sobre os valores e os fins da sociedade3.
A economia do bem-estar no decorrer do século XX aproxima-se da
escolha social, mas não pela via dos processos eleitorais de Borda e Con-
dorcet, mas sim através do utilitarismo benthamista. Conforme afirma
Sen (2002, p. 70), “Bentham had pioneered the use of utilitarian calculus
to obtain judgments about the social interest by aggregating the personal
interests of the different individuals in the form of their respective utili-
ties”.
O século XIX e o início do século XX foram dominados fortemente por
uma perspectiva utilitarista de bem-estar. Acreditava-se então na possibi-
lidade de ‘somar’ e ‘subtrair’ utilidades individuais, tornando possível a
medição de satisfações pessoais, bem como de políticas públicas sobre a
felicidade. A velha escola de bem-estar começa a ceder espaço a uma nova
perspectiva, encabeçada principalmente pelas ideias do economista Lionel
Robbins, para quem “não há meios de testar a magnitude da satisfação de
A quando comparada a de B. [...] A introspecção não permite a A medir o
que está ocorrendo na mente de B, ou a B medir o que ocorre na de A. Não
há meios de comparar as satisfações de diferentes pessoas.” (ROBBINS,
apud BELTRAME; DE MATTOS, 2014).
O bem-estar que já era basicamente calculado por funções utilitaris-
tas, reduz ainda mais a amplitude de informações ao afastar a
possibilidade das comparações interpessoais. O desafio é encontrar fun-
ções e fundamentos para a economia de bem-estar com base em
informações não comparáveis interpessoalmente e ordinais (não cardina-
lidade). O cenário de tal concepção pode assim ser descrito:

3
Tal pensamento é corroborado por Megales (1994, p. 50 – 51), que escreve que a pergunta básica da teoria da escolha
social é: “¿cómo son posibles los juicios sobre el bienestar social? El bienestar social es un objectivo de la sociedad y,
como tal, un valor social. De aquí que su pregunta en realidad sea una pregunta por los fines de la sociedad: ¿cómo
es posible que la sociedad se dé fines a sí misma?”.
Sandro Fröhlich | 183

En primer lugar, los individuos son los únicos legitimados para juzgar su bie-
nestar y nadie tiene autoridad para cambiar ese juicio. En segundo lugar, los
únicos argumentos relevantes para el juicio social son las utilidades individu-
ales, tal y como las presentan las funciones de utilidad. En tercer lugar, el
criterio para evaluar los estados sociales es el de la maximización de la utilidad
y, por consiguiente, se considera que la decisión social ha de seguir las mismas
pautas de racionalidad que la decisión individual (MEGALES, 1994, p. 25).

Outro elemento que fundamenta a economia do bem-estar no início


do século XX é o ‘ótimo de Pareto’. A lei da eficiência criada pelo enge-
nheiro e economista italiano Vilfredo Pareto prevê que uma situação
econômica ou de bem-estar é ‘ótima’ quando não for possível melhorar a
situação de um agente, sem degradar a situação de qualquer outro agente
econômico. Uma situação social ou de bem-estar, desta forma, estaria me-
lhor se algum indivíduo consegue alguma melhora ou ascensão, sem que
com isso outros diminuam ou percam alguma parcela de seu bem-estar. O
‘ótimo de Pareto’ é o método utilizado para definir os pontos de equilíbrio,
a racionalidade e a eficiência econômica, não considerando aspectos de
distribuição ou outros, conforme também observa Sen (2002, p. 72) ao
afirmar que “this criterion takes no interest whatever in distributional is-
sues, which cannot be addressed without considering conflicts of interest
and of preferences”.
Surge uma perspectiva como tentativa de fazer frente à exclusividade
de utilização do critério de Pareto, encabeçada por Bergson e Samuelson.
Tais autores chegaram a desenvolver uma metodologia que passou a ser
conhecida como ‘função de Bem-Estar Social de Bergson-Samuelson’. Não
fazendo uso de comparações interpessoais e se desenvolvendo em termos
ordinais, tal metodologia se adapta ao pensamento vigente e,

a ideia era chegar a uma função de bem-estar social a partir das decisões indi-
viduais, no entanto, apesar de se manter o conceito de utilidade como principal
argumento dessa função, utilidade passou a estar associada apenas a escolhas
individuais e não mais a intensidades cardinais relativas a estados mentais in-
dividuais (BELTRAME; DE MATTOS, 2014).
184 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

O contexto da economia do bem-estar a partir da metade do século


XX era então dominada por um paradigma dominante fundamentado so-
bre quatro pilares praticamente intocáveis: utilitarismo welfarista,
ordinalismo4, impossibilidade de comparação interpessoal de utilidades e,
o critério do ‘ótimo de Pareto’. Situado em tal cenário de compreensão e
tomando por verdadeiras tais condições ou premissas que Arrow desen-
volve suas ideias.
Além da grande atenção às preferências individuais, Arrow percebe a
necessidade de um processo, regras e procedimentos que levem a agregar
as opções individuais a uma decisão coletiva. Os procedimentos devem ga-
rantir a vinculação democrática entre as opções individuais e as escolhas
sociais; o processo requer uma legitimidade democrática5.
Junto à exigência de que os processos de escolha sejam democráticos,
Arrow se questiona quanto à existência de processos que sejam racionais.
Por racionalidade – dentro deste espectro de compreensão – entende-se
basicamente a maximização dos próprios benefícios. Desta forma, os or-
denamentos deveriam seguir a ordem de preferência e, a eleição
corresponde à ordem de preferência elencada. Assim explica Salcedo
(1994, p. 32) ao expor a importância da racionalidade para Arrow: “la ra-
cionalidad es conceptualizada como una relación entre los ordenamentos y
las elecciones. De forma que la pregunta por la racionalidad de las eleccio-
nes colectivas democráticas es una pregunta por la posibilidad de una
relación de consistencia racional […]”.

4
With ordinal utility functions, still numerical functions, the real numbers/utilities could only be meaningfully com-
pared according to the relation ≥. All the other mathematical properties defining the field of real numbers were
rejected. A kind of corollary to the ordinalism thesis was that interpersonal comparisons had to be excluded too, even
when these comparisons are limited to the relation ≥, that is, one could not assert that the utility of individual i in
state x is, say, greater than the utility of individual j in state y (SALLES, 2015, p. 10).
5
“Para abordar la tarea del diseño del procedimiento de fundamentación Arrow abandonó el lenguaje de la teoría de
la utilidad en el que Bergson había presentado la función de bienestar social por el de la lógica formal. Por ello en
lugar de hablar de utilidades habla de preferencias y de ordenamientos de preferencias. Así tanto los valores indivi-
duales como los colectivos son presentados en su modelo como ordenamientos individuales y colectivos de
preferencias”. “De ahí la característica genérica de su investigación: ¿puede haber un método para las sociedades
democráticas que tenga la misma precisión que los métodos de las sociedades no democráticas?”. (MEGALES, 1994,
p. 29-30).
Sandro Fröhlich | 185

Uma relação de preferências deve preencher três requisitos impres-


cindíveis: reflexividade (que x seja considerado ao menos tão bom quanto
ele mesmo); completude (“para todos los pares de alternativas distintas
(x, y) incluidos en S, ya sea x Ri y o y Ri x, las relaciones no definidas entre
pares pertenecientes a S están excluidas”) (MEGALES, 1994, p. 33); tran-
sitividade (se A supera B e B supera C, então A deve superar C). A
transitividade é a condição mais forte entre as três necessárias.
Há uma pergunta básica que impulsiona Arrow: ‘sob quais condições
seria possível que as preferências agregadas de um conjunto de indivíduos
sejam racionais e satisfaçam condições axiológicas e democráticas’? A con-
clusão a que chega Arrow, que obedecendo alguns critérios (Eficiência de
Pareto, não-ditadura, independência de alternativas irrelevantes, domínio
irrestrito) não existe uma regra ou procedimento que garanta que se al-
cance uma escolha social que mantenha os valores e princípios
democráticos. Em seguida uma análise dos critérios e condições estabele-
cidas por Arrow para melhor compreender a situação.
Domínio irrestrito: para cada conjunto que visa ordenar as prefe-
rências pessoais, o procedimento deve considerar um ordenamento
completo e transitivo das opções disponíveis. “Qualquer que seja a confi-
guração de preferências dos indivíduos, a função de bem-estar social deve
ser capaz de agregá-las em um ordenamento de preferência social com-
pleto e transitivo”. Ou ainda, a “função de bem-estar social sempre deve
ser capaz de representar racionalmente as preferências individuais pelos
estados sociais.” (BELTRAME; DE MATTOS, 2014).
Eficiência de Pareto: ‘se cada indivíduo prefere x a y, então também
assim o será para toda a sociedade’. A situação social deve responder po-
sitivamente a uma unanimidade. Arrow utiliza o chamado princípio de
Pareto débil (unanimidade) que é exposta por Megales (1994, p. 36) da
seguinte forma: “si una alternativa x es preferida a una alternativa y en
todos los ordenamientos individuales; entonces en el ordenamiento social
x há de ser preferida a y”.
186 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Não-ditadura: a função de bem-estar social não deve ser ditatorial


ou definida arbitrariamente pela preferência e decisão de um indivíduo
que assume o papel de ‘ditador’, que imponha suas decisões restritas por
sobre (independente das) as preferências e decisões de todos os demais.
Não há ou não pode haver um indivíduo na sociedade que para todos os
perfis de domínio, considerando as alternativas x e y, estabeleça para e em
nome de todos, a preferência de x ou y.
Independência de alternativas irrelevantes: para que se chegue a
uma situação de escolha social entre dois estados alternativos, a escolha
não dependa de nenhuma alternativa além das duas involucradas indivi-
dualmente. Quando se pretende alcançar uma escolha social entre a
melhor opção entre a e b, a alternativa c não deve ser considerada, pois
irrelevante na presente ‘disputa’.
A conclusão a que chega Arrow é a da impossibilidade lógica de de-
senvolver uma regra ou uma função de bem-estar social que atenda a estes
critérios. De tal modo que o Teorema da Possibilidade Geral é mais conhe-
cido como a teoria ou ‘teorema da impossibilidade de Arrow’. Arrow
demonstrou que não existe uma regra de eleição social “que sea una cons-
titución [...]. El teorema de imposibilidad es el resultado de generalizar la
paradoja de la votación y de mostrar que la única forma en que las reglas
sociales superan esa paradoja es haciendo a un individuo decisivo para un
par de alternativas” (MEGALES, 1994, p. 37). Tal conclusão foi devasta-
dora ou desanimadora, dada a demonstração da impossibilidade de
alcançar uma função de bem-estar social que alcançasse padrões mínimos
de democracia e atendesse socialmente as preferências e opções individu-
ais no âmbito de decisão coletiva.
Em reação ao pessimismo, alguns buscaram criticar ou mostrar fa-
lhas no teorema, contudo pouco se conseguiu avançar ou contradizer.
Entre os pensadores inquietados por tal resultado e com expectativa de
encontrar alguma alternativa, encontra-se Sen. Possivelmente o que mais
o diferencia dos seus pares, e por isso foi reconhecido pela Academia sueca,
Sandro Fröhlich | 187

é que não aceita as bases ou pressupostos dados como invioláveis por Ar-
row.

5. Amartya Sen e a escolha social

A Real Academia de Ciências da Suécia concedeu a Amartya Sen o


prêmio Nobel (1998) em Ciências Econômicas, destacando suas contribui-
ções na pesquisa de problemas fundamentais como a escolha social,
definições de bem-estar e pobreza, bem como os estudos empíricos sobre
a fome. O reconhecimento, geral e acadêmico, representado por este im-
portante prêmio, tem um valor significativo, pois expõe a grandeza do
pensamento deste autor, demonstrada pelos câmbios teóricos e práticos e
pelos impactos causados em outros pesquisadores.
Se com o ‘teorema da impossibilidade de Arrow’ vigora um desânimo
em relação aos temas da escolha social, Sen “has clarified the conditions
which permit aggregation of individual values into collective decisions, and
the conditions which rules for collective decision making that are consistent
with a sphere of rights for the individual” (MLA STYLE, 2014). A vida em
sociedade implica sempre alguma forma de eleição social e Sen se preo-
cupa em encontrar alternativas de respeitar preferências, decisões e
valores pessoais, numa agregação de decisões sociais que sejam democrá-
ticas, que distribuam os bens e serviços sociais de forma justa para todos
os membros da sociedade. Igualmente demonstrou a importância de fato-
res éticos e políticos na consideração e análise de realidades econômicas.
Sen desenvolve grande parte de seu trabalho quanto a essa disciplina
buscando encontrar alternativas à ‘impossibilidade estabelecida’ por Ar-
row. Desta forma, entre os múltiplos trabalhos do autor indiano nesse
sentido, suas críticas e avanços podem ser sintetizados em alguns pontos
que se pretende apresentar em seguida: críticas quanto à base informaci-
onal (da impossibilidade de comparações interpessoais e da inconsistência
de decisões); da impossibilidade de um liberal paretiano; críticas quanto à
completude para a racionalidade da escolha social.
188 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

5.1 Ampliação da base informacional

Sen não aceita algumas limitações ou ‘impossibilidades’ estabeleci-


das. Talvez muitas vezes fortalecido por sua biografia e sua condição
histórica e atento à realidade social, o autor buscou sempre encontrar al-
ternativas viáveis onde outros viam restrições e limites. Em algumas
circunstâncias efetivamente é difícil encontrar uma alternativa, mas não
porque esta seja impossível, mas porque os critérios, axiomas e caminhos
propostos talvez sejam insuficientes ou pouco abrangentes. O desafio foi
antes de superar barreiras que encontrar pequenas alternativas dentro de
paradigmas estabelecidos e enrijecidos.
Não se trataria apenas de Arrow ter chegado a uma ‘impossibilidade’
da escolha social, mas tal se apresentaria por ele ter fundamentado sua
teoria ou axiomas numa classe limitada de informações (SEN, 2010, p. 320
e seguintes). Isto permite afirmar que o teorema de Arrow demonstra uma
inconsistência de um sistema de decisão social democrático que toma
como base informacional somente os rankings de preferências das pes-
soas. A assunção de outros elementos e critérios auxiliam para encontrar
critérios sólidos para uma avaliação do bem-estar social.
Sen discute a centralidade das práticas de votação para se alcançar
uma situação de eleição social – vitória pela maioria de votos. Tais proce-
dimentos mostram-se insuficientes por razões diversas: os que não podem
ou decidem não participar não – ou dificilmente – terão suas preferências
ou valores englobados nas decisões sociais; os sistemas de votações utili-
zados nem sempre expressam as reais preferências dos votantes; de modo
geral, as votações não conseguem abarcar informações suficientes para
avaliar ou considerar relações interpessoais e que poderiam garantir ou-
tras opções. A regra da maioria não é suficiente ou capaz de resolver
problemas econômicos por sua extrema limitação de base informacional.
Uma das propostas de Sen, que representa uma reviravolta e que lhe
rendeu grande reconhecimento, é justamente a afirmação da ‘possibili-
dade da incorporação de comparações interpessoais nos procedimentos de
Sandro Fröhlich | 189

eleições sociais’ (SEN, 1999). Sua intenção não é de afirmar que todas as
comparações possam ser axiomatizadas em funções de eleição social – do
‘tipo tudo ou nada’ -, mas inclusão de comparações parciais ou nem sem-
pre completas ou totalmente exatas. Não visa a adoção de extremos, uma
total ausência de comparações ou a comparação interpessoal em todos os
sentidos, mas de uma ‘comparabilidade parcial’6.
A utilização de comparações interpessoais permite que as decisões
públicas e sociais sejam sensíveis e atentas ao aspecto central da desigual-
dade, algo que os sistemas de votação majoritária e o utilitarismo
welfarista não tomam em consideração. A incorporação de novas informa-
ções possibilita a utilização ou desenvolvimento de novos critérios para
considerar o bem-estar das pessoas, considerando uma dimensão mais
ampla da condição humana e tomando em conta a situação social das pes-
soas (pobreza, exclusão social, desigualdade, renda, consumo, etc.).
Junto à proposta da possibilidade de comparações interpessoais, Sen
elabora uma crítica ao que ele denomina como a ocorrência de ‘inconsis-
tência ou incoerência de decisões’ no modelo de decisão social clássico.
Vale-se da vinculação com a crítica ao modelo da decisão pela maioria para
tal e cita um exemplo para ilustrar e explanar melhor o assunto. Toma-se
o exemplo da divisão de um bolo entre três sujeitos (SEN, 2010, p. 321 e
seguintes): se a preocupação for o de melhor atender o interesse da maio-
ria, dois deles poderiam se unir e realizar uma divisão que a eles
contemplasse com 90% do bolo e, ao outro o restante. Ao tomar em con-
sideração apenas o fator de decisão da vitória por maioria, uma plêiade de
informações não estaria contemplada nas razões para a tomada de decisão,
o que abre a possibilidade para a inconsistência ou incoerência decisional.
Por isso sua insistência para a ampliação informacional, com o intuito de
proporcionar a criação de critérios que gerem coerência e consistência nas

6
Muito ilustrativo o exemplo e explicação que o autor apresenta: “Puede ser, por ejemplo, que no nos sea muy difícil
aceptar que la ganancia de utilidad que el Emperador Nerón obtuvo al quemarse Roma fue menor que la pérdida total
de utilidad de todos los otros romanos que sufrieron por culpa del fuego. Pero esto no implica que estemos seguros
de que podamos establecer una relación de uno a uno para la utilidad de todas las personas. Puede haber, por ende,
espacio para una ‘comparabilidad parcial’ – negándose así ambos extremos: la comparabilidad completa y la ausencia
de comparabilidad”. (SEN, 1999).
190 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

decisões a tomar, principalmente nas decisões sociais, nas relações e polí-


ticas públicas.
Sen lança mão de outras informações que são capazes de abranger e
expressar melhor a condição humana como um todo: os funcionamentos
e capabilidades. Conforme afirma em seu discurso na Real Academia da
Suécia,

he tratado de argumentar a favor de una evaluación de la ventaja individual en


términos de las respectivas capacidades que cada persona tiene para vivir de la
manera que él o ella tiene razones para valorar. Este enfoque se concentra en
las libertades sustantivas que la gente tiene, y no solo en los resultados parti-
culares con los que terminan. […] La extensión de las comparaciones
interpersonales puede ser parcial –basada frecuentemente en la intersección de
distintos puntos de vista. Pero el uso de una tal comparabilidad parcial puede
hacer una gran diferencia en la base de información de las evaluaciones sociales
razonadas (SEN, 1999).

5.2 Impossibilidade de um liberal paretiano

Para além da ampliação da base informacional através das compara-


ções interpessoais, outro contributo de Sen é o que se denomina como a
‘impossibilidade do liberal paretiano’. Este teorema apresentado por Sen
em 1970 ‘demonstra a impossibilidade de satisfazer demandas mínimas de
liberdade quando se combinam com o requerimento da eficiência de Pa-
reto’ (SEN, 1999).
O propósito é questionar a adesão ao Princípio de Pareto que era con-
siderado quase incólume dentro do campo da economia do bem-estar. O
questionamento seniano é fundamentalmente quanto à compatibilidade
entre a eficiência de Pareto com a liberdade mínima de cada sujeito. A con-
clusão é pela incompatibilidade da manutenção da eficiência de Pareto com
a possibilidade ou garantia mínima das pessoas escolherem alguns aspec-
tos sobre suas vidas. Há uma inconsistência quando se requer ao mesmo
tempo a utilização do princípio de Pareto e a subsistência de uma esfera de
decisão que dependa unicamente do indivíduo.
Sandro Fröhlich | 191

Sen estabelece três condições que uma função de decisão social7 deva
respeitar: condição U – domínio restrito (todo conjunto logicamente pos-
sível de ordenamentos individuais está incluso no domínio da regra de
escolha social); condição P (se cada indivíduo prefere qualquer alternativa
x a outra alternativa y, então a sociedade deve preferir x a y); condição L
– liberalismo mínimo (há ao menos dois indivíduos tais que para cada um
deles existe ao menos um par de alternativas sobre as quais ele é decisivo,
ou seja, há um par de x, y tal que se ele prefere x a y, a sociedade prefere
x a y) (SEN, 1997, p. 286). Considerando a obediência a tais condições a
conclusão de Sen é que ‘não há uma função de decisão social capaz de sa-
tisfazer simultaneamente as condições U, P e L.
Para tornar o assunto mais ‘palpável’ é útil apresentar um exemplo
(do livro ‘O amante de Lady Chatterley’), apresentado pelo pensador,
(SEN, 2011, p. 344).

Existe um livro supostamente pornográfico e dois possíveis leitores. O indiví-


duo chamado Puritano odeia o livro e não pretende lê-lo, mas sofreria ainda
mais se o livro fosse lido por outro indivíduo, chamado Luxurioso, que adora
o livro (Puritano está particularmente incomodado por Luxurioso poder estar
rindo entredentes com o livro). Luxurioso, por outro lado, gostaria de ler o
livro, mas preferiria ainda mais que Puritano o lesse (revirando o estômago,
espera Luxurioso).

Baseado no princípio da liberdade não há argumento a favor da não


leitura do livro (Luxurioso quer ler o livro e Puritano não pode interferir
nesta decisão). Também não há argumento a favor de que Puritano leia o
livro (e não cabe a Luxurioso interferir numa decisão que não lhe afete).
Restaria a alternativa de Luxurioso ler o livro (decisão fundada quando
cada um decide o que ler ou não ler). Mas, nas suas preferências, os dois
manifestam que preferem que Puritano leia o livro. Isso conduz a um ciclo
intransitivo, implicando numa impossibilidade do liberal paretiano. A al-
ternativa auto escolhida contraria o princípio de Pareto (para ambos é

7
Uma função de decisão social é uma regra de escolha coletiva cujo domínio está restrito às relações de preferência
social que geram uma função de escolha. (SEN, 1997, p. 286).
192 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

melhor que Puritano leia o livro e não Luxurioso), mas as outras duas al-
ternativas violam as exigências da liberdade, o que leva Sen a concluir que
“nada pode ser escolhido que satisfaça as exigências específicas da escolha
social, uma vez que cada alternativa disponível é pior que alguma outra.
Daí a impossibilidade de satisfazer simultaneamente ambos os princípios”
(SEN, 2011, p. 344).
O conflito do liberal paretiano não pode ser resolvido por compara-
ções interpessoais. Isto porque a “fuerza de las reivindicaciones de un
individuo sobre su espacio privado yace en la naturaleza personal de esa
elección –no en las intensidades relativas de las preferencias de distintas
personas sobre el espacio privado de una persona en particular”. Ainda, “la
eficiencia de Pareto depende de la congruencia de las preferencias de dis-
tintas personas con relación a una elección entre dos opciones –no en la
fuerza comparativa de esas preferencias” (SEN, 1999).
O objetivo de Sen foi demonstrar que cada reivindicação pessoal pode
entrar em conflito com as demais reivindicações, gerando uma espécie de
conflito mútuo. Não pretende inibir a liberdade, mas torná-la consciente e
efetiva, coexistindo com os confrontos e com as possibilidades ou necessi-
dades de acordos de unanimidade ou de eficiência paretiana. Não se trata
de escolher pela liberdade individual ou pela opção de uma eficiência pa-
retiana, mas demonstrar que a resolução satisfatória desta impossibilidade
“debe incluir una visión que evalúe las prioridades aceptables entre libertad
personal y deseo de satisfacción general, y debe ser sensible a la informa-
ción relacionada a los canjes entre ésta y aquella que los mismos individuos
están dispuestos a aceptar” (SEN, 1999).

5.3 Completude para a racionalidade da escolha social

O segundo axioma do teorema da impossibilidade de Arrow prevê


que um ordenamento oriundo de um processo de escolha social deverá ser
completo, reflexivo e transitivo. Por completude pode-se entender que da-
das duas alternativas x e y, necessariamente x deve ser preferível a y; y
Sandro Fröhlich | 193

preferível a x ou; as alternativas devem ser indiferentes. Ou seja, não há


possibilidade de uma opção ou escolha social incompleta.
Ao manifestar sua discordância com a necessidade de completude
como pressuposto da escolha social, Sen em diversas ocasiões faz uso de
uma analogia, utilizando a fábula do asno de Buridan8. A teoria da escolha
revelada pressupunha que todas as alternativas fossem elencadas para en-
tão realizar a melhor escolha. Somente com a ideia de um conjunto com
todas as alternativas reveladas poderia ser possível tomar uma atitude ra-
cional. Assim, nenhuma alternativa inferior assumiria o lugar de uma
alternativa melhor (o que representaria uma irracionalidade, caso viesse a
acontecer).
Sen insiste que alcançar níveis de completude ou possibilidade de or-
denamentos completos para então realizar a melhor escolha (racional)
nem sempre é viável ou necessário. Assim como o asno de Buridan não
precisaria ter esperado a elaboração de um ranking completo para esco-
lher o melhor feno, também não se faz necessário alcançar uma teoria de
justiça que seja completa para combater as injustiças que nos afetam con-
tinuamente. Ou como afirmam Sen e Williams “the real ‘irrationality’ of
Buridan's ass rested not in its inability to rank the two haystacks, but in
its refusal to choose either haystack without being perfectly sure that that
haystack was better than, or at least as good as, the other” (SEN;
WILLIAMS, 1982, p. 17).
Assim como a crítica seniana recai sobre a necessidade de completude
para a teoria da escolha social, é destinada também às ideias de justiça,
como a de Rawls. Para tais compreensões a incompletude pode represen-
tar um fracasso ou defeito de teoria, permitindo escolhas ou juízos

8
“Buridan’s ass, which died of starvation dithering between two haystacks (unable to decide which one was better),
could not find a ‘best’ option (since the haystacks could not be ranked vis-à-vis each other), but it still had the oppor-
tunity of doing much better than starving to death. Either haystack would have been a maximal choice, and choosing
a maximal alternative, even though no ‘best’ would have been sensible enough.” (SEN, 2002, p. 16- 17).
“There is no great merit in insisting that the ranking or opportunity must be complete in all cases. The importance of
evaluating freedom or opportunity does not li in any possible hope of being able to rank every set of options against
every other, but in the relevance and reach of the many comparisons that we can sensible make”. (SEN, 2002, p. 610-
611).
194 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

irrelevantes, avaliações incongruentes, etc. Contudo, a possibilidade de ju-


ízos e avaliações que tenham a característica da incompletude, pode ser
muito válida para as comparações interpessoais, para detectar as desigual-
dades e injustiças nas sociedades e na construção de arranjos possíveis ou
políticas públicas justas, mesmo que não projetem um ordenamento social
globalmente justo.
Ao defender a ideia de incompletude, Sen entende que, mesmo não
possuindo uma revelação de um arranjo completo de justiça, ainda seria
possível realizar julgamentos comparativos de justiça e combater injusti-
ças. O enfoque das capabilidades é uma resposta direta e clara à
necessidade de completude preconizada pela economia do mainstream e
pelas ideias transcendentais de justiça. Como defende o autor, “el enfoque
‘capacidad’ puede a menudo dar respuestas concretas incluso aunque no
exista un acuerdo completo sobre las ponderaciones relativas que se deben
aplicar a los diferentes funcionamientos” (SEN, 2010², p. 60).
A imposição de uma completude de conceitos para a realização da
justiça pode ser um verdadeiro inimigo das ações práticas e das políticas
públicas. Não há necessidade de revelar qual a teoria mais completa ou a
política ‘mais justa’ para combater a fome, a miséria e as múltiplas situa-
ções de injustiça localizadas; é necessário “um acordo viável sobre algumas
questões básicas de injustiça ou desigualdade identificavelmente intensas”.
E mais, “reconhecer que as disposições sociais surgidas no consenso e as
políticas públicas adequadas não requerem que haja uma ‘ordenação so-
cial’ única que contenha um ranking completo de todas as possibilidades
sociais alternativas” (SEN, 2010¹, p. 323).

Conclusão

Amartya Sen é comumente mais reconhecido pelas alternativas en-


contradas que pela própria análise do imbróglio conceptual de partida de
suas compreensões. Ou seja, o autor acabou por adquirir notoriedade aca-
dêmica e social a partir do desenvolvimento do enfoque das capabilidades.
Sandro Fröhlich | 195

Contudo, o longo itinerário de desenvolvimento de tais perspectivas surge


à luz como possibilidades de solução para os entraves e falhas apresenta-
das pelos estudos da escolha social até então.
As limitações enfrentadas não se constituíram como óbices, mas mos-
traram a necessidade de assunção de novos paradigmas interpretativos. A
primeira ruptura se constitui a partir da necessidade de ampliação das ba-
ses informacionais para a compreensão dos fenômenos, resolução de
problemas e implementação de políticas públicas. Assim, tornou-se essen-
cial analisar elementos para além do que estava sendo vislumbrado pelo
mainstream, principalmente para explicar que a fome, miséria e pobreza
não são meros elementos naturais, mas se mantêm ou persistem em fun-
ção de escolhas sociais, políticas e econômicas.
Assim, as impossibilidades apresentadas pelos teoremas e axiomas
econômicos não foram barreira para o autor encontrar alternativas con-
ceituais e práticas para buscar melhorar a vida das pessoas. Diante da
discussão da possibilidade – ou não – de comparações interpessoais, Sen
vislumbra a concepção dos funcionamentos: as condições reais de ser e
estar das pessoas. A preocupação deixa de estar centrada sobre a renda,
mas sobre o que as pessoas efetivamente conseguem fazer e quais os esta-
dos alcançados com o que possuem. Mais do que construir uma solução
para o teorema, a atenção volta-se para a real condição de bem-estar que
os sujeitos conseguem alcançar, mesmo que de forma parcial ou imper-
feita.
E mais do que os funcionamentos efetivos, importa a liberdade; a li-
berdade de escolher quais os modos de vida assumir diante das
alternativas que teria para valorizar. Partindo de uma tradição aristotélica,
como solução diante do impasse de teoremas, Sen apresenta o enfoque das
capabilidades: liberdades substantivas para realizar combinações alterna-
tivas de funcionamentos. A vida boa (bem-estar) também está alicerçada
na capacidade de realizar escolhas genuínas de modos de organização da
condição de vida de cada sujeito.
196 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Eis em função de tais avanços e novos horizontes que o mundo ren-


deu reconhecimento a Sen. A elucidação de concepções teóricas, a
superação de paradigmas, bem como a provocação para a adoção de prá-
ticas mais inclusivas são oriundas da análise de uma temática poucas vezes
tomada em consideração: a escolha social. A análise de tais elementos
aponta para a importância de compreender como as visões e opções indi-
viduais acabam por redundar em escolhas coletivas (não naturais); e
assim, compreender que a realidade humana e social que se vislumbra e
acompanha é igualmente consequência de escolhas políticas (sociais, eco-
nômicas, etc.) e não mero acaso alheio à interferência da ação humana.

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SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
12

Pensar a justiça social e


o desenvolvimento no contexto latino americano

Anna Paula Bagetti Zeifert 1


Vitória Agnoletto 2
Anna Júlia Bandeira Ceccato 3

1. Introdução

Pensar a justiça social e o desenvolvimento no contexto latino-ame-


ricano requer pensar alternativas aos processos que naturalizam a
exclusão, a desigualdade e a pobreza. Demanda um olhar crítico sobre as
relações sociais e as formas de poder que estruturaram a realidade, bem
como o grave desequilíbrio que inviabiliza a organização dessas socieda-
des.
O presente estudo analisa a Agenda 2030 da Organização das Nações
Unidas – ONU, bem como seus 17 objetivos de desenvolvimento sustentá-
vel, delineados em 169 metas. Considera o estudo das desigualdades, da

1
Pós-doutora pela Escola de Altos Estudos - Desigualdades Globais e Justiça Social: Diálogos sul e norte, do Colégio
Latino-Americano de Estudos Mundiais, programa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO Bra-
sil) e UNB (Capes PrInt). Doutora em Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito –
Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos - e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI. Integrante do Grupo
de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq). E-mail: anna.paula@unijui.edu.br
2
Graduanda do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ). Voluntária do projeto de pesquisa “Justiça Social: os desafios das políticas sociais na realização das
necessidades humanas fundamentais”, grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabilidade”
(CNPq). Assistente Editorial Voluntária da Revista Direito em Debate da UNIJUÍ (Qualis B1) E-mail: viagnole-
tto@yahoo.com.br
3
Graduanda do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ); Bolsista PIBIC/UNIJUÍ; Integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Justiça Social e Sustenta-
bilidade” (CNPq). E-mail: annajuliabandeiraceccato@hotmail.com
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 199

efetivação dos direitos humanos, das problemáticas contemporâneas que


permeiam os cenários sociais, políticos e econômicos nos países, em espe-
cial no Brasil, compreendendo a importância da efetivação de políticas que
contemplem o caráter transversal e transdisciplinar.
O documento ratificado por 193 Estados-membros, visa garantir a
justiça social plena e efetiva às nações signatárias e objetiva uma significa-
tiva melhora nas condições de bem-estar, possíveis por meio de políticas
públicas.
Como subsídio teórico, o trabalho faz uso das teorias desenvolvidas
pelos autores Amartya Sen e Martha Nussbaum, que ao discutirem a ideia
de capacidade, fornecem uma base analítica capaz de auxiliar no processo
de construção de sociedades mais justas e inclusivas.
O estudo utiliza no seu delineamento dados sobre a América Latina
apresentados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL). O método de abordagem trabalhado é o hipotético-dedutivo,
centrado na pesquisa bibliográfica e de dados das fontes citadas.

2 Capacidades, liberdade e igualdade: um debate entre Amartya Sen


e Martha C. Nussbaum

Amartya Sen é um renomado economista de origem indiana que de-


dicou grande parte de seus estudos para a questão do desenvolvimento, da
liberdade e da justiça social. Entre suas principais obras, cujos conteúdos
mesclam argumentos e referências do âmbito da economia, da política e
da filosofia, estão: Desenvolvimento como Liberdade (2000) e A Ideia de
Justiça (2011). A partir da construção de suas teorias, o referido autor de-
senvolveu uma perspectiva particular e única sobre a justiça social,
demonstrando a relevância de sua abordagem sobre as capacidades e so-
bre a liberdade individual.
Nesse sentido, Sen (2011) utiliza de eventos e marcos da história in-
diana para exemplificar e sustentar algumas de suas mais importantes
hipóteses, que, se analisadas junto do contexto histórico, social e político
200 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

da América Latina, podem se aplicar da mesma maneira, demonstrando a


importância de pensar desenvolvimento e justiça social a partir de pontos
específicos dentro do conjunto latino-americano.
Sen (2011), em um primeiro momento, busca demonstrar que as te-
orias tradicionais voltadas para o tema de desigualdades, desenvolvimento
e justiça social apoiam-se unicamente em cálculos quantitativos de renda,
como o Produto Interno Bruto (PIB). O problema é que cálculos como o
PIB apresentam grandes falhas, visto que são incapazes de indicar a qua-
lidade de vida, do bem-estar e das liberdades que possuem as pessoas.
Outro defeito da análise econômica é que ela se concentra em obser-
var a sociedade a partir de seus rendimentos finais. Isto é, no
entendimento do referido autor, entende-se que valorizar o resultado é
importante para realizar uma análise do cenário econômico, mas é neces-
sário é atentar para as vidas humanas envolvidas no processo, pois apenas
quando se atenta para esses dois elementos é possível perceber o quadro
completo de uma sociedade, que deverá demonstrar a qualidade de vida
dos indivíduos presentes no Estado e qual seu papel e participação no de-
senvolvimento econômico e social de sua sociedade.
Deste modo, a partir de tal perspectiva, é possível analisar que no
contexto mundial existe um favorecimento da visão econômica e dos fins,
condicionando a visão da qualidade de vida e bem-estar das pessoas em
segundo plano. Isto, para Sen (2011) demonstra a intensificação de situa-
ções de desigualdade e vulnerabilidade de determinados grupos sociais,
entre eles as sociedades latino-americanas.
Constatou, deste modo, que quando a preocupação com a qualidade
de vida e o bem-estar ficam em segundo plano se nota um cenário de au-
mento dos níveis de desigualdade social, o que significa que certas vidas
humanas terão melhores condições de qualidade de vida, bem-estar e ga-
rantia de liberdades, enquanto outros grupos sociais terão menor
acessibilidade a essas garantias.
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 201

Os grupos sociais que não possuem a garantia de boa qualidade vida,


de bem-estar e de liberdades são aqueles que, historicamente, foram dei-
xados de lados ou marginalizados, como a população negra e feminina,
que estão em situação de vulnerabilidade por razões sociais e históricas,
que, por fim, influenciam no exercício da liberdade e autonomia dos indi-
víduos, gerando níveis baixos de qualidade de vida e bem-estar dentro
destes grupos.
Enquanto isso, Sen (2011) argumenta que os indivíduos com maior
poder aquisitivo possuem a garantia de uma boa qualidade de vida e bem-
estar, do mesmo modo que possuem a liberdade de escolher o tipo de vida
que querem levar.
Por estas razões, o referido autor passa a demonstrar que a liberdade
para determinar a natureza de nossas vidas é um dos aspectos valiosos da
experiência de viver e que reconhecer a sua importância pode ampliar as
preocupações e compromissos que se deve ter com as pessoas.
Sendo assim, demonstra-se indispensável para pensar justiça social
que busque-se analisar todo o quadro da sociedade, uma vez que tal pers-
pectiva permite enxergar a vulnerabilidade de determinados grupos
sociais, que os condicionam a viver vidas com maiores taxas de mortali-
dade prematura, sem assistência médica e sem condições de acessar água
potável, por exemplo.
É a partir do ponto de vista de Sen (2011) que se passa a ampliar as
preocupações e compromissos com cada indivíduo, compreendendo a im-
portância de garantir a liberdade de cada indivíduo escolher seus objetivos
e de ter direito a escolha. Deste modo, a liberdade pode ser vista a partir
das perspectivas fundamentais: a primeira está diretamente ligada a opor-
tunidade de buscar objetivos e fins que o indivíduo deseja alcançar,
enquanto a segunda remete ao próprio processo de escolha.
Com a união dessas duas perspectivas se constrói a importância da
liberdade e o significado que ela possui para a vida humana. Assim, para o
referido autor, a liberdade é vista como o aspecto de longo alcance do in-
divíduo, de ter a capacidade de escolher suas ambições e propósitos.
202 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Assim, Sen (2011) desenvolve a abordagem das capacidades, que são


compreendidas como a aptidão de uma pessoa para fazer as coisas que ela
tem razão para valorizar. Tal abordagem indica que certos indivíduos pos-
suem maior ou menor vantagem de capacidade, pois alguns apresentam
maior oportunidade real para realizar o que valorizam enquanto outros
apresentam menores oportunidades reais.
Portanto, percebe-se que o conceito de liberdade e de capacidade es-
tão relacionados. Liberdade é a possibilidade de escolher o que valoriza e
o que quer realizar. Capacidade é um aspecto de oportunidade da liber-
dade, a medida do indivíduo para alcançar a liberdade de escolher e de
realizar.
Por isso, o referido autor entende que “a ideia da capacidade está li-
gada à liberdade substantiva, ela confere um papel central à aptidão real
de uma pessoa para fazer diferentes coisas que ela valoriza” (SEN, 2011, p.
214).
O conceito de capacidade aponta para uma série de desigualdades
presentes na sociedade: a menor capacidade de uma pessoa escolher um
objetivo profissional se torna uma desigualdade quando existem indiví-
duos com maiores capacidades para realizar essa escolha.
Essa abordagem não compreende apenas o indivíduo, mas ele e todo
o contexto em que está inserido. Para Sen (2011), é necessário enxergar o
indivíduo como um membro em comunidade, de modo que suas escolhas
serão influenciadas pelas forças que atuam sobre seus valores.
É devido tais prerrogativas e argumentos apresentados por Sen
(2011) que se conclui que a abordagem das capacidades é complexa. Claro
que não poderia ser diferente, uma vez que para o indivíduo ter liberdade
de realizar uma escolha precisa ter oportunidade para tal, e para isso é
preciso analisar todo o seu contexto, para verificar se possuía maior ou
menor capacidade.
O principal objetivo do referido autor é que a abordagem das capaci-
dades seja capaz de medir a qualidade de vida sem partir de cálculos que
medem renda e riqueza, uma vez que a análise econômica se concentra em
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 203

observar o fim atingido da sociedade e da economia, sem preocupar-se


com os processos sociais e com as vidas humanas envolvidas.
Partindo de uma perspectiva complexa, analisando os níveis de qua-
lidade de vida, bem-estar, liberdade e, também, médicas econômicas,
compreende-se que as sociedades do século XXI não são compostas de in-
divíduos em par de igualde, e tal afirmação demonstra a vulnerabilidade
de grupos e sociedades especificas, como o caso do cenário latino-ameri-
cano.
De acordo com Sen (2011), analisar as sociedades a partir do ponto
de vista das capacidades, e não dos recursos, demonstrará se as pessoas
possuem oportunidades reais e a capacidade de pensar, escolher e fazer o
que bem entende e deseja com a sua vida, a partir de suas razões e de seus
valores.
Seguindo esta mesma linha de pensamento, a filósofa Martha C. Nus-
sbaum (2013) desenvolve sua própria perspectiva das capacidades,
construindo um enfoque que envolve partes do pensamento de Sen. Atra-
vés de sua obra Fronteiras da Justiça (2013), Nussbaum argumenta que os
motivos pelos quais certos indivíduos possuem menos capacidade do que
outras são fundamentalmente sociais.
Isso significa dizer que, por exemplo, as mulheres possuem maior di-
ficuldade para adentrar o mercado de trabalho porque estão inseridas em
uma sociedade patriarcal, que submete as mulheres a possuírem menor
capacidade do que os homens em determinados cenários da vida humana.
Entretanto, Nussbaum (2013) busca ir além dos pensamentos e ar-
gumentos de Amartya Sen. O enfoque das capacidades da referida autora
conta com a formulação de uma lista de capacidades, com o objetivo de
definir o mínimo que deve uma sociedade garantir aos seus cidadãos para
atingir a justiça, é outra divergência no pensamento dos autores.
Nussbaum (2013) acredita que tal lista consiste em um meio de tor-
nar o enfoque das capacidades algo possível de ser posto em prática nas
sociedades do século XXI. Na obra da referida autora se argumenta que tal
lista de capacidades pode ser adotada por qualquer Estado e sociedade,
204 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

uma vez que tem como objetivo que o mínimo de dignidade humana seja
atingido nas sociedades de qualquer país.
Sen (2011) e Nussbaum (2013) concordam em indicar a necessidade
de construir a concepção de que o ser humano não pode ser compreendido
fora de seu contexto social, econômico, político e cultural, pois esses ele-
mentos determinam a pluralidade de identidades do indivíduo.
A capacidade de uma pessoa está diretamente relacionada as condi-
ções em que essa está inserida. Desse mesmo modo, a liberdade de escolha
depende da medida da capacidade de cada um. Apenas terá liberdade para
escolher o que considera valoroso aquele que possuir real oportunidade
para fazer essa escolha.
A ideia de justiça, para Sen (2011), busca garantir qualidade de vida e
bem-estar, mas sem esquecer da tão importante liberdade. Uma vida justa
apenas é plenamente justa quando possui equilíbrio entre liberdade, qua-
lidade de vida e bem-estar. Enquanto isso, Nussbaum (2013) busca, no
enfoque das capacidades, construir um modelo de direitos humanos bási-
cos para cada indivíduo da comunidade global, através de sua lista das dez
capacidades básicas demonstra que ela pode ser adaptada para qualquer
sociedade que tenha o objetivo de alcançar o ideal de sociedade justa.

3 Desigualdade e pobreza: obstáculos para o desenvolvimento de


sociedades justas e sustentáveis no contexto latino-americano

Desigualdades persistem nas sociedades latino-americanas, de ma-


neira que se tornam o maior obstáculo contra o desenvolvimento
econômico e social, uma vez que esse fator impede que persistam os avan-
ços na erradicação da pobreza, na expansão da cidadania e no exercício de
direitos fundamentais, assim como enfraquece as sociedades democráti-
cas. Isso fica ainda mais evidente com o momento pandêmico.
O incremento dos níveis de desigualdade possui relação direta com a
diminuição dos níveis de mobilidade social, tal indicação feita pela CEPAL
(2016) reafirma os estudos do sociólogo Machado (2015) de que quanto
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 205

mais cristalizada as desigualdades, maiores as possibilidades de fortaleci-


mentos das categorias e grupos sociais que introduzem rigidez na
sociedade, dificultando a mobilidade social.
Elevados níveis de desigualdade possuem impacto nos processos de
integração social, pois geram experiências de vida e expectativas sociais
divergentes. Consequentemente, maior será a possibilidade de rigidez so-
cial, de segregação e de conflitos.
A América Latina4, em especial, vivência um grave cenário de desi-
gualdades sociais e, apesar das tentativas de diversos órgãos, movimentos
sociais e regimes políticos, ainda são muitos os desafios para combater
efetivamente esse problema.

La Agenda Regional de Desarrollo Social Inclusivo aprobada en 2019 ofrece


líneas de acción para alcanzar ese objetivo. Incluye propuestas para avanzar
en la garantía universal de un nivel de ingresos básico y evaluar la posibilidad
de incorporar gradualmente en los sistemas de protección social de los países
una transferencia universal para la infancia y un ingreso básico de ciudadanía.
Propone también el fortalecimiento de la institucionalidad social para
implementar políticas sociales de calidad. Para la planificación, diseño e im-
plementación de medidas de protección social es importante proteger el gasto
público social y contar con sistemas de información, seguimiento y evaluación
de las prestaciones sociales, incluidos registros de la población destinataria
o potencialmente destinataria que sean lo más amplios y actualizados posi-
ble.” (CEPAL, 2020)

Uma das mais graves consequências da desigualdade é que sua per-


manência fortalece e aumenta os níveis de pobreza. A pobreza pode se
manifestar de várias maneiras, mas, essencialmente, consiste em uma ca-
rência de bens, materiais e imateriais, derivada da falta de recursos

4
En la región, el hambre se deriva de la pobreza (en particular la pobreza extrema) y no de la falta de alimentos.
Teniendo en cuenta que la línea de la pobreza extrema se determina sobre la base del costo de la canasta básica de
alimentos, las personas cuyos ingresos están bajo esta línea no cuentan con los recursos suficientes para cubrir los
costos básicos de alimentación. Así, la caída económica pronosticada para 2020 afectará directamente a la seguridad
alimentaria de millones de personas. (CEPAL, 2020)
206 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

econômicos, ocasionando, consequentemente, na exclusão social de indi-


víduos que não possuem os meios necessários para participar
efetivamente da sociedade.
Nesse contexto, cabe perguntar quem são as populações e grupos
mais atingidos? O quadro a seguir busca responder a essa pergunta e re-
trata a realidade latinoamericana:

O aumento da pobreza está relacionado: redução do investimento em


políticas públicas, dificuldade de acesso a bens e serviços que garantam
bem-estar, a não materialização dos direitos sociais e as políticas econô-
micas neoliberais.
O quadro abaixo apresenta dados relativos a pobreza e a extrema po-
breza que afetam os países na América Latina e a tendência até o final do
ano 2020.
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 207

Assim, resta evidente que a América Latina é marcada pela desigual-


dade social, impedindo os avanços de desenvolvimento, impossibilitando
condições mínimas de justiça social e perpetuando a exclusão de grupos
sociais.

4 Agenda 2030: metas para a promoção dos direitos humanos, do


desenvolvimento sustentável e da construção de sociedades justas

Ratificada por representantes de 193 Estados-membros da ONU, a


Agenda 2030 apresenta 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e
169 metas a serem implementadas até 2030. Essa Agenda articula as dife-
rentes áreas, sobre as quais os países se propõem a trabalhar para a
construção de sociedades mais justas e sustentáveis. Os 17 objetivos ser-
vem como ferramentas para a estruturação e implementação das ações,
pela efetivação de sociedades mais equânimes, objetivando atingir formas
mais dignas de vida para todos, redefinindo compromissos entre os países
signatários, com os temas prioritários, articulando atores e possíveis
meios da cooperação para a implementação de políticas sociais e globais
de enfrentamento dos problemas.
Referida Agenda é proposta a partir de outros documentos e eventos
que foram fundamentais para sua construção: Agenda 21 (1992), ODM
(2001), Rio+10 (2002) e Rio +20 (2012), e a Cúpula das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2016, em Nova York.
Bem como, a Agenda 2030 substitui os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio (ODM) pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
implementando um novo conjunto de demandas por justiça social, por di-
reitos humanos e sustentabilidade.
Para que a Agenda 2030 se efetive é necessário comprometimento,
responsabilidade e ações por parte dos países signatários, ou seja, congre-
gar “[...]crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável e de
208 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

trabalho decente para todos [...] incluindo crescimento econômico inclu-


sivo, desenvolvimento social, proteção ambiental e erradicação da pobreza
e da fome.” (ONU, 2019)
Nesse sentido, é prioritário redefinir e efetivar políticas para a redu-
ção das desigualdades sociais, a proteção de direitos como saúde,
educação, assistência social previdência, proteção ao meio ambiente e em-
prego decente. No entanto, quando olhamos para o cenário mundial e os
problemas advindos da pandemia, percebemos o quanto esses Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável e suas metas serão duramente prejudica-
dos e protelados.
A crise de saúde, social e econômica que atinge os países de forma
desproporcional, exigirá que novas estratégias desenvolvimentistas e de
proteção a direitos sejam implementadas de maneira a minimizar os im-
pactos advindos. “As consequências da pandemia de saúde combinada com
uma recessão global serão catastróficas para muitos países em desenvol-
vimento e impedirão o progresso rumo aos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS).” (ONUBR, 2020)
No entanto, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe
(CEPAL, 2020), entende de maneira diversa a questão, compreende ser
necessário fortalecer a Agenda 2030, seus objetivos e metas, mais do que
nunca, visto que a pandemia provocada pelo COVID-19, estabelecerá uma
nova organização das Nações, uma nova geopolítica, que exigirá de todos
cooperação mútua, avançando num novo modelo de desenvolvimento sus-
tentável, mais inclusivo, presente nos ODS.
A América Latina já enfrentava um cenário de incertezas, desigual-
dade e aumento da pobreza, e isso traduz-se em economias fragilizadas
que exigem transformações profundas e urgentes. Avançar em um cami-
nho de maior igualdade não é apenas um imperativo ético, mas condição
necessária. Todavia, a brecha social que distancia cada dia mais ricos e
pobres e aumenta o poder econômico na mão de alguns poucos, correm o
risco de serem ainda mais intensas devido à crise pandêmica mundial.
Conforme dados apresentados pela própria ONU (2020), “a expectativa de
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 209

perda de renda ultrapassa os 220 bilhões de dólares nos países em desen-


volvimento. Com cerca de 55% de toda a população global sem acesso a
proteção social [...]”, diante da crise sanitária e humanitária.
Conforme retrata o documento denominado Panorama Social da
América Latina, organizado pela Comissão Econômica para a América La-
tina e Caribe (CEPAL, 2019), “a distribuição de renda e da riqueza, a
evolução e tendências da pobreza na região, a dinâmica do gasto social, a
inclusão social e do trabalho da população e a autonomia econômica das
mulheres [...]”, são norteadores para que tenhamos sociedades mais justas
e igualitárias. Porém, os estudos demonstram que houve um incremento
no número de pessoas pobres na região, assim como a pobreza extrema
continua sendo um desafio, e esse cenário, nada favorável, tende a se in-
tensificar a medida que os problemas advindo da disseminação do COVID-
19 tornarem-se reais, especialmente aqueles que afetam consideravel-
mente o bem-estar, a organização das cidades e as condições de vida digna,
intimamente relacionados as questões econômicas e de direitos.
Considerando tal contexto, é necessário e urgente “[...] redobrar es-
forços para avançar [...] na qualidade e na construção e expansão de
sistemas de proteção social integrais e efetivos, que fortaleçam a capaci-
dade de contar com os recursos necessários para uma vida digna para o
conjunto da população.” (CEPAL, 2019) Conforme informações apresen-
tadas pela ONUBR (2020), a realidade demonstra que os “hospitais com
recursos limitados e sistemas de saúde frágeis deverão ficar sobrecarrega-
dos. Isso pode vir a se agravar com um pico no número de casos, uma vez
que até 75% da população nos países menos desenvolvidos não têm acesso
a água e sabão.”
Neste sentido, a Agenda 2030 da ONU, seus Objetivos de Desenvolvi-
mento Sustentável, e as 196 metas a serem buscadas, estão mais que
desafiados no momento em que priorizam o desenvolvimento humano
como sustentáculo de sua carta de intenções. As ações em prol da huma-
nidade são visíveis desde seu preâmbulo, percorrendo a visão e
compromissos, até a abordagem detalhada de cada um de seus objetivos e
210 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

metas. Desenvolver medidas que atentem as necessidades reais dos seres


humanos, proporcionando justiça social e sociedades sustentáveis, acesso
a bens e recursos por meio de políticas sociais, será fundamental a medida
em que percebemos os desafios produzidos pela ação do COVID-19.
É prioridade para a Agenda 2030, que nenhum indivíduo seja deixado
para trás, ou seja, todos importam à medida que se quer promover bem-
estar e dignidade, e isso está expresso tanto nos seus 17 objetivos como ao
longo das 169 metas, fazendo como que cada Estado signatário adote me-
didas suficientes para amenizar os impactos em cada ser humano. Uma
atuação transdisciplinar, integrando dimensões éticas, sociais, econômi-
cas, políticas e ambientais, caminhando rumo ao desenvolvimento
sustentável proposto pela Agenda 2030.
Essa forma de organização é percebida na interação e interligação
que há entre os ODS, ou seja, todos possuem como ideário a construção de
condições justas, equitativas e sustentáveis de organização social, o que faz
com que os desafios sejam ainda maiores quando se pensa nos desastres
sociais e econômicos provocados pela pandemia.
Para tanto, a implementação dos ODS até 2030 será um grande de-
safio para os países signatários. A emergência internacional desencadeada
pela pandemia do COVID-19, declarada em 30 de janeiro de 2020 pela Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS), provoca profundas mudanças no
papel dos Estados e exige ações integradas no campo social, político e eco-
nômico.
A efetivação da Agenda 2030, especialmente na América Latina e no
Brasil, requer recursos para a sua implementação, porém o quadro é pre-
ocupante e até desolador, porquanto alguns países, entre eles o Brasil, não
destinou qualquer recurso para as ações, tão esperadas nas mais diversas
áreas, que respondam aos interesses e necessidades da coletividade, já tão
afetada pelos altos índices de desigualdades sociais, miserabilidade, viola-
ções de direitos e, no atual contexto de crise mundial, retarda-se ainda
mais, as ações pela efetivação de uma justiça social equitativa e sustentá-
vel.
Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 211

5 Conclusão

Para tanto, garantir a continuidade de ações equitativas através de


planos de governos sólidos, permanentes e sustentáveis é fundamental,
possibilitando um desenvolvimento das sociedades para o presente e o fu-
turo. Assim sendo, o aumento das desigualdades no contexto latino-
americano e o quanto essa condição interfere negativamente na qualidade
de vida, no bem-estar e na promoção da liberdade reafirma a necessidade
de pensar a justiça e a noção de capacidade.
A pesquisa apresentada buscou analisar dados referentes ao nível de
desigualdade e pobreza dentro das sociedades latino-americanas, tomando
como base os relatórios publicados pela Comissão Econômica para a Amé-
rica Latina e o Caribe (CEPAL) e pela Organização das Nações Unidas
(ONU).
Deste modo, demonstrou o crescimento acelerado dos níveis de desi-
gualdade e de pobreza dentro dos Estados latino-americanos, indicando
um grave enfraquecimento de políticas públicas e sociais que constroem
oportunidades e garantem efetividade de direitos para grupos vulneráveis.
A partir disso, a pesquisa se centrou em estudar o contexto das desi-
gualdades e da pobreza, a partir da análise de sociólogos e filósofos
contemporâneos, passando a argumentar que as sociedades contemporâ-
neas carregam o preconceito e a desigualdades em suas bases fundantes,
o que consequentemente acarreta na realidade latino-americana: socieda-
des marcadas por desigualdades extremas e pela pobreza sedimenta no
núcleo da estrutura social, política e econômica dos Estados.
Para essa construção teórica, o estudo utilizou como referência o es-
tudo de Fernando Luís Machado (2015) para demonstrar como as
desigualdades afetam umas às outras, intensificando os processos de dis-
criminação e influenciando o aumento da pobreza dentro da sociedade.
Como proposta de solução, então, utilizou-se como embasamento o
enfoque das capacidades, a partir do estudo das obras de Amartya Sen
212 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

(2011) e de Martha C. Nussbaum (2013). Por mais grave que seja o cenário
latino-americano o que tange as desigualdades e o aumento dos níveis de
pobreza, existem possibilidades de transformação desta realidade, como
apontam os referidos autores.
Essas possibilidades passam, necessariamente pela construção de po-
líticas sociais e públicas voltadas para grupos vulneráveis, buscando a
efetivação de direitos básicos e a construção de sociedades justas.

Referências

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https://www.cepal.org/sites/default/files/events/files/matriz_de_la_desigual-
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Anna Paula Bagetti Zeifert; Vitória Agnoletto; Anna Júlia Bandeira Ceccato | 213

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes e Denise Bott-
mann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
13

Educação e justiça social como instrumentos


para a promoção da sustentabilidade

Fernanda Gewehr de Oliveira 1


Cleusa Maria Rossini 2
Daniel Rubens Cenci 3

1 Introdução

A ideia de justiça na organização da sociedade pressupõe a igualdade


de direitos, perante os quais o ser humano possa viver com liberdade e
dignidade. A discussão das mazelas sociais, no ensejo por um mundo mais
justo e igualitário, remete a busca de soluções para inúmeros problemas
que afetam grande parte da população do planeta. Garantir essas liberda-
des substanciais requer que pensemos na promoção de uma vida digna,
na cidadania e sustentabilidade, fortalecendo as relações humanas.

1
Advogada. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (PPGSAS/UNIJUÍ). Especialista em Direito e Processo do Tra-
balho (Anhanguera). Graduada em Direito (UNIJUÍ). Estudante do Projeto de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça
Social e Sustentabilidade CNPq. http://orcid.org/0000-0001-9458-6660. E-mail: nanda_gewehr@hotmail.com
2
Pedagoga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (PPGSAS/UNIJUÍ), Especialista em Gestão do Trabalho Peda-
gógico: Supervisão e Orientação Escolar pela Faculdade Internacional de Curitiba (UNINTER). Graduada em Direito
(UNIJUÍ) e Pedagogia (UNINTER). Estudante do Projeto de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e Sustentabili-
dade CNPq. https://orcid.org/0000-0001-8281-2413.E-mail:cleusam210@gmail.com
3
Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR), mestre em Direito (UNISC), graduado em Direito (UNIJUÍ).
Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da UNIJUI. Professor do Programa de Mes-
trado em Sistemas Ambientais e Sustentabilidade. Pós Doutor em Geopolítica Ambiental Latino-americana na
USACH – Universidade de Santiago – Chile. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Justiça Social e
Sustentabilidade (CNPq). Coordenador do Projeto de Pesquisa O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equili-
brado no Contexto da Sociedade de Risco: em Busca da Justiça Ambiental e da Sustentabilidade.
https://orcid.org/0000-0001-7919-6840. E-mail: danielr@unijui.edu.br
Fernanda Gewehr de Oliveira; Cleusa Maria Rossini; Daniel Rubens Cenci | 215

Nas diversas obras de Sen existem muitos conceitos que ganham uma
roupagem que difere de outros autores, dentre filósofos e pensadores da
época, por exemplo, quando Sen trabalha com liberdade, desenvolvi-
mento, cidadania, comprometimento social, bem-estar e justiça com um
olhar ao que é humano e individual de cada um, a teoria impõe uma ten-
dência ao “institucionalismo transcendental” que por muitas vezes
encontra a utopia na organização da sociedade, a qual pressupõe a justiça
perfeita, igualdade de direitos, perante quais os seres humanos possam
viver com liberdade e dignidade.
A presente pesquisa objetiva promover a discussão sobre os ideais
de justiça e cidadania almejados por Amartya Sen no tocante à educação e
sustentabilidade, condição necessária para o desenvolvimento, efetivação
dos direitos humanos e o bem estar das pessoas e do planeta. O estudo
será feito através da análise bibliográfica explicativa, bem como de abor-
dagem metodológica qualitativa para descrever e compreender a
problemática destes conceitos, a fim de trazer à tona a discussão contex-
tualizada, conjuntamente com as medidas de proteção cabíveis para
garantir os direitos fundamentais, tendo as contribuições de Amartya Sen,
e demais autores.

2 Efetivar direitos humanos condição necessária para o


desenvolvimento: pessoas em primeiro lugar

Ao perceber que o objetivo do desenvolvimento é alcançar e expandir


as liberdades sejam individuais, substanciais, políticas ou civis, precisamos
trazer à tona elementos que caracterizem e efetivem os direitos humanos
e que deem espaço para as pessoas em primeiro lugar.
A liberdade na concepção de Ávila (2019) seria sobre o que decidir e
ter consciência sobre isso ao ponto de arcar com as consequências, por-
tanto, não irá existir liberdade quando o indivíduo não tiver opções e nem
aptidões para compreender essas consequências. A liberdade é dual, pode
216 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ter a opção de escolher como de não escolher e nesse ponto encontra com
a teoria de Amartya Sen.
Para Sen (2010) o desenvolvimento precisa adicionar às liberdades
envolvidas nos processos políticos, sociais e econômicos e em qual grau as
pessoas tem ou não oportunidade de obter resultados. O desenvolvimento
como caminho para remover as privações de liberdade, entre as quais está
a pobreza, negligência de serviços públicos, excessos cometidos pelos Es-
tados repressivos tem como resultado negar liberdades elementares e
substantivas as pessoas.
Tanto a liberdade elementar quanto a substantiva são negadas a uma
boa parcela da sociedade. A substantiva relacionada a pobreza econômica
em que retira das pessoas o básico, como ter acesso a remédios, de mora-
dia e de vestir-se, assim como de ter acesso a água e saneamento. Em
outros casos, pode-se citar a carência de serviços públicos e assistência so-
cial, assistência médica e educacional e, também, a violações de ordem civil
e política como em regimes autoritários (SEN, 2010).
Assim, Sen (2010) não restringe a liberdade somente ao que estiver
relacionado a renda ou crescimento econômico e nem conceber processos
de decisões e escolha social como meios de desenvolvimentos quando de-
vem ser entendidos como fins para o desenvolvimento. Na compreensão
de Zambam (2009) não depende de fins definidos de ordem política, cul-
tural ou econômica, mas como um valor absoluto e indispensável no
ordenamento por influenciar e fortalecer atores sociais, garantir e promo-
ver o acesso a liberdade, tendo um papel de superação a situações que
possam comprometer o processo de desenvolvimento.
Para Pies (2013, p. 03) a partir do ponto de vista de Sen, compreender
o desenvolvimento de uma forma a ampliar um conjunto de variáveis para
expandir liberdades civis, políticas ou estender direitos quanto a distribui-
ção de renda e cidadania, somente com uma democracia forte a decisão
pública ocorrerá através de cidadãos, ou seja, “vão desde os condicionan-
tes macroeconômicos, a inclusão social, a participação social nos espaços
públicos e o uso racional dos recursos naturais”.
Fernanda Gewehr de Oliveira; Cleusa Maria Rossini; Daniel Rubens Cenci | 217

O que se pode perceber que o desenvolvimento social e econômico se


encontra em vários momentos, ainda assim, “a insegurança econômica
pode relacionar-se à ausência de direitos e liberdades democráticas” (SEN,
2010, p. 30). Logo, para que possa ocorrer o desenvolvimento dentro da
democracia é preciso efetivar os direitos humanos. Para Lopes (2000) os
direitos humanos são observados como “garantia da vida democrática”,
tendo em vista que democracia nesse contexto deve ser entendida como
meio eficaz para “o crescimento nacional, o desenvolvimento e a distribui-
ção da riqueza” (p. 14).
Contrapondo Lopes com Sen, chegamos à ideia de desenvolvimento
clássico que seria pela economia, o olhar voltado ao PIB dos países, porém
é preciso pensar que “os princípios básicos da economia são os mesmos
que já eram há 100 ou 150 anos atrás” (GUILLÉN, 2004, p. 69) e não de
desenvolvimento humano, pelo poder de decidir, de ser sujeito ativo na
democracia, na política, ter condições dignas de trabalho e de vida.
É fundamental acrescentar na discussão as violações de direitos hu-
manos, como o trabalho exaustivo, escravo e infantil, os problemas
ambientais, as negação das liberdades básicas, as privação de votar, os cui-
dados médicos, uma lista infinita de ausências, no entanto, o objetivo aqui
não é exaurir os conceitos de inclusão injusta ou exclusão, mas demonstrar
que muitas das “privações e violações de direitos humanos de fato assu-
mem a forma de exclusão de prerrogativas” (p.33), que deveriam ser
garantidas. E que remete também a um campo de discussão muito amplo
quando contempladas as exclusões pelo campo político, social e econômico
(SEN E KLIKSBERG, 2010).
Relaciona, também, com os princípios políticos que esclarecem o sig-
nificado que damos a dignidade humana ou a sua ausência. Dessa forma,
refere-se que o mínimo e essencial a vida humana digna deve superar dez
capacidades centrais e os governos devem trazer como tema central: vida,
saúde física, integridade física, sentidos, imaginação e pensamento, emo-
ção, razão prática, afiliação, outras espécies e controle sobre o próprio
218 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

entorno, que divide-se em político e material. Os quais primeiramente per-


tencem as pessoas na ordem individual e em sentido derivado aos
coletivos, tendo em vista que cada pessoa tem um fim em si mesma
(NUSSBAUM, 2012).
Segundo Sen (2010) para avançar no desenvolvimento é decisivo au-
mentar as liberdades civis e políticas, enquanto, a democracia e os direitos
humanos tem papel fundamental constitutivo. Introduzir o questiona-
mento de Zeifert (2019, p. 03) é imprescindível e coerente, pois o “que
seria necessário para pensar uma vida com o mínimo de dignidade? O en-
foque das capacidades seria uma forma de abordagem dos próprios
direitos humanos? “.
Logo, pensar em desenvolvimento, liberdade e direitos humanos para
que as pessoas estejam em primeiro lugar abre-se para expandir conceitos
e desempenhar uma comunicação sinérgica entre social, econômico e po-
lítico, uma vez que não irão ocorrer independentes entre si.
Existem realidades concretas em todos os países, alguns com mais
efetivação de direitos humanos que outros, alguns com melhores posições
econômicas, outros com visões políticas mais eficazes e nem todas as com-
parações são dignas de serem feitas devido aos graus de realidade que cada
um se encontra. Haja vista, que as capacidades de governança alteram o
tempo todo, principalmente em países em desenvolvimento, como é o caso
do Brasil.
A capacidade de governança atualmente está atrelada a corrupção, a
fake news, que são condições impostas pela nova forma de fazer política
pelo capitalismo liberal. A cidadania tem denunciado a falta de políticas
públicas e demais ausências que partem do estado sobre seus direitos, é
justamente por não ter respostas condizentes com as necessidades da po-
pulação que gera essa diminuição da capacidade e visão negativa dos
governos, tanto no contexto internacional como nacional.
Enquanto o crescimento econômico for o motivo primário do go-
verno e, há quem sustente que isso seja suficiente para o desenvolvimento
social, as riquezas continuarão nas mãos de poucos, chegando apenas o
Fernanda Gewehr de Oliveira; Cleusa Maria Rossini; Daniel Rubens Cenci | 219

básico ou nem isso as populações mais vulneráveis. Precisamos mudar a


forma de ver e se relacionar com o crescimento econômico, para que ques-
tões sociais sejam supridas e não correlacionadas apenas a um requisito:
renda. Como podemos implementar os direitos humanos em um país em
desenvolvimento e que passa por dificuldades orçamentárias? Eis a ques-
tão.
Ademais, almejar uma sociedade que cumpra suas funções, que man-
tenha a população com condições dignas de vida não é ser utópico, mas
perceber que é plenamente possível quando diminuímos os números de
excluídos injustamente e colocamos a possibilidade de escolher que vida
querem ter em todos os âmbitos.

3 Desenvolvimento, justiça e cidadania pela arte de educar para a


sustentabilidade

A ideia de um mundo desenvolvido e sustentável sob a perspectiva de


Sen nos reporta a busca pela efetivação de direitos, tendo como princípios
a igualdade, a justiça, a cidadania na promoção do bem viver a todos os
povos. Desta forma pensar em desenvolvimento requer ir além da ótica
econômica, entendendo este como um conjunto de benefícios aos quais
todos os cidadãos merecem ter acesso e para que o mesmo aconteça é ne-
cessário que se removam as principais fontes de injustiças, tais como:
vulnerabilidade, opressão e violência, intolerância, preconceito, dentre ou-
tras.
O desenvolvimento não estaria atrelado ao aumento do consumo,
mas sim a uma vida com liberdade de escolhas que promovam o bem vi-
ver. O autor supracitado, destaca que nesse contexto a sociedade não deve
ser governada pelo mercado, ao passo que igualmente o Estado não deve
desempenhar o papel de controlador. Neste ínterim, Busato, Radunz e
Nothaft (2019) corroboram quando reafirmam o pensamento de Sen de
que o desenvolvimento vai para além do acesso a bens materiais e aos ser-
viços, o objetivo central é a qualidade de vida dos sujeitos, o pleno exercício
220 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

à cidadania e o acesso às condições de viver bem e em harmonia com a


Terra.
As concepções de Sen ao longo de sua obra “Desenvolvimento como
liberdade”, na qual coloca as liberdades dos indivíduos como elementos
básicos para a análise do desenvolvimento, essas liberdades são meios e
fins. Nas palavras do autor, a liberdade é um fim primordial e o principal
meio do desenvolvimento (SEN, 2010).
Ao tratar da liberdade na avaliação das vidas humanas Sen coloca que
podemos optar ao usarmos nossa liberdade, de modo a nos posicionarmos
frente a objetivos que não são parte de nossas vidas em sentido restrito,
mas que dizem respeito aos problemas de toda coletividade trazendo a im-
portância do debate sobre as questões sociais de modo a ampliar a
participação e criar espaços de articulações, rompendo com a política do-
minante. Destaca-se a importância de as pessoas terem liberdade de
escolha, e que estas escolhas também tenham um cunho social, para que
não corram o risco de ao assumir um comportamento neutro serem im-
parciais em questões primordiais (SEN, 2011).
De acordo com Dréze e Sen (2014) mesmo em um contexto de desi-
gualdades é possível buscar alicerces a fim de construir uma prática
democrática, não desistir da luta pela justiça pelo fato de que ela não é
alcançada em determinado momento, reforçar as estratégias é fundamen-
tal para garantir a justiça social e o desenvolvimento. No entendimento de
Zambam (2009, p.77):

O desenvolvimento não está restrito às determinações exclusivas do mercado,


do crescimento econômico ou de interesses individuais e corporativos, mas se
constrói e se solidifica considerando as necessidades humanas, sociais, ambi-
entais, culturais e outras. Nesse contexto, pode-se falar de desenvolvimento
social, desenvolvimento humano e desenvolvimento ambiental, porque são
qualificações que caracterizam um modelo que se edifica com apoio numa am-
pla base de relações, que contempla os diferentes atores envolvidos num
contínuo processo de cooperação e integração.
Fernanda Gewehr de Oliveira; Cleusa Maria Rossini; Daniel Rubens Cenci | 221

Para além, é preciso entender que a sustentabilidade está direta-


mente ligada ao desenvolvimento de vários setores da sociedade, ou seja,
existe o desafio enfrentado pelo desenvolvimento sustentável voltado a
formação de aptidões na equidade social, tecnologia, diversidade cultural
e democracia participativa (LEFF, 2015), conquanto, complementa Sen so-
bre a necessidade de que o conceito de desenvolvimento sustentável não
caminhe somente pela órbita das necessidades humanas, de forma egoísta,
mas instiga a pensar o meio ambiente como algo maior, intrínseco aos
territórios essenciais da vida (CARTAXO, 2018).
O desenvolvimento sustentável pressupõe a busca de soluções para
os mais variados problemas, é através da sustentabilidade que os recursos
naturais são utilizados de forma inteligente e são preservados para as ge-
rações futuras. De acordo com relatório de Brundtland pode-se entender
o conceito de sustentabilidade como um alicerce no presente que garanta
o futuro “o desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que encon-
tra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras
gerações de atender suas próprias necessidades” (ONU BRASIL).
O debate sobre o desenvolvimento, justiça e cidadania como direitos
fundamentais para um mundo desenvolvido e sustentável, apoiam-se nos
princípios da liberdade, da igualdade e passam necessariamente pela edu-
cação promovendo uma mudança substancial do próprio processo
civilizatório, introduzindo o desafio de pensar que a educação articulada
com a liberdade pode ser promotora desta mudança almejada.
A educação tem um papel inquestionável na formação, evolução, de-
senvolvimento e liberdade das pessoas, pois a mesma busca o
desenvolvimento pleno das capacidades dos indivíduos, colaborando para
a formação de uma sociedade livre e crítica, contribuindo para a evolução
do Estado, mas além disso, o desenvolvimento das suas próprias capaci-
dades torna o sujeito um agente ativo na comunidade da qual faz parte
(ZAMBAM, 2009).
222 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Desta forma educar para a sustentabilidade é um desafio que exige o


esforço coletivo de modo a mudar os paradigmas pré-estabelecidos, forta-
lecendo o processo da democracia e cidadania. Ela deve ser promovida nos
mais diversos meios não somente nas escolas, mas na família, na comuni-
dade, nos movimentos coletivos e sociais, promovendo a autonomia e o
pensamento crítico, segundo Zeifer e Cenci (2000, p.30):

A ação indispensável ao educar para a sustentabilidade não reside exclusiva-


mente em instituições formais e nos profissionais de ensino, mas em uma
articulação complexa de ambos, equacionando também os mais variados ele-
mentos e buscando uma ressonância que se inscreva na cultura, na história e
nas relações socioambientais, bem como nas mais diversas dimensões do vi-
ver. A realização permanente do saber socioambiental é fundamental para o
desenvolvimento e promoção da sustentabilidade.

Dessa forma, a educação ambiental é um desafio para a política da


sustentabilidade, e exige um esforço de todos para um processo de forta-
lecimento da democracia e cidadania. É preciso estimular a reflexão sobre
a diversidade em torno das relações indivíduo natureza e que cada um
saiba da responsabilidade para construir uma sociedade ambientalmente
sustentável. Na concepção de Jacobi (2003, p.8):

A educação ambiental deve ser acima de tudo um ato político voltado para a
transformação social. O seu enfoque deve buscar uma perspectiva holística de
ação, que relaciona o homem, a natureza e o universo, tendo em conta que os
recursos naturais se esgotam e que o principal responsável pela sua degrada-
ção é o homem.

Sob a égide educar para a sustentabilidade significa aprimorar os ins-


trumentos para a garantia da cidadania, formar novos atores e estratégias
de ação para a construção de um novo lugar, em que o desenvolvimento
social preceda o econômico sem menosprezá-lo. Para uma materialidade
das práticas e dos saberes é preciso sair da abstração discursiva, partindo
dos ideais, das teorias, ampliar a visão para iluminar as práticas e reco-
nhecer que as pessoas tem um lugar no mundo e precisam ressignificar a
Fernanda Gewehr de Oliveira; Cleusa Maria Rossini; Daniel Rubens Cenci | 223

sua relação com a natureza, contudo, para que isso venha a ocorrer é ne-
cessário consciência sobre os problemas locais e globais. Depreende- se a
partir destas premissas que a educação é o ponto central para a mudança
de comportamentos e que o tema da sustentabilidade está interrelacionado
com a justiça social, qualidade de vida e equilíbrio ambiental.

4 Conclusão

O direito humano a um mundo mais justo, alicerçado na educação de


qualidade com vistas a cidadania, apresenta como postulado a garantia de
vida plena para todos por meio da efetivação dos demais direitos e garan-
tias. Isso se dá a partir da elaboração e efetivação de políticas públicas
gerando oportunidades, medidas de proteção e melhor distribuição de
renda, que pode ser a chave para orientar o processo do desenvolvimento.
Neste contexto pode-se concluir que formar cidadãos críticos e atu-
antes para que percebam os problemas socioambientais de modo a se
posicionarem frente a questão é caminho para buscar soluções viáveis,
como remete o pensamento de Sen, a cidadania não pode ser esquecida
por detrás do discurso econômico, tornando as condições de vida menores.
Atualmente temos infinitas discussões sobre a temática do desenvol-
vimento que trazem para o núcleo da sociedade este debate, sobre as
injustiças relativas às pessoas e ao planeta e que apontam para uma arti-
culação sociopolítica necessária, que garanta o direito à justiça social, a
cidadania, a sustentabilidade e o bem viver.
Pensar uma educação voltada para a melhoria dos indicadores de in-
justiças social, dos problemas ambientais e econômicos como temáticas
indissociáveis e como condição para a promoção do desenvolvimento e o
bem viver é reafirmar o desejo de Sen de construir uma teoria que seja
justa e para todos.
O discurso em torno da educação tem diversos pontos obscuros que
podem ser trazidos ao debate, incluindo: como ocorre a educação, quais
os níveis, quem educar e para quê educar, o compromisso do Estado em
224 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

custear a educação e como aliar o tipo de educação ao perfil populacional


para que possa contribuir ao desenvolvimento econômico nacional. A au-
sência de pensar a educação de acordo com desenvolvimento social gera
distanciamentos, vulnerabilidades e falta de incentivos. Se atrelar educa-
ção aos três pilares da sustentabilidade estamos iniciando uma nova era,
inclusiva e resiliente.
Conclui-se que por meio desta pesquisa foi possível identificar algu-
mas possibilidades de mudança da organização social frente às injustiças
presentes a partir dos ideais almejados por Sen, os quais remetem a uma
discussão que necessita ser introduzida nos mais diversos núcleos sociais,
a fim de que a partir do esforço coletivo, com retorno da confiabilidade
governamental e as políticas públicas, se possa alcançar uma sociedade
mais sustentável tendo a educação, efetivação dos direitos humanos e a
justiça social como um indicador na qualidade de vida e promoção dos di-
reitos e garantias nas cidades.

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226 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ZAMBAM, Neuro José; KUJAWA, Henrique Aniceto (Orgs.) Estudos sobre Amartya Sen,
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14

Tribunais de contas como ferramenta informacional para


o aperfeiçoamento das escolhas sociais em Amartya Sen

Francisco Clayton Brito Júnior 1


André Studart Leitão 2
Talita Cavalcante Timbó 3

1. Introdução

A teoria da justiça desenvolvida pelo economista indiano Amartya


Sen fundamenta-se, entre outros aspectos, na teoria das escolhas sociais,
contribuída também por Kenneth Arrow, mais próximo da metade do sé-
culo XX, que após analisá-la, desenvolveu-a no que ficou conhecida como
“teorema da impossibilidade”, em razão de seu resultado pessimista para
o conceito.
Para Sen, a razão deve ser usada para “identificar e promover socie-
dades melhores e mais aceitáveis”. Nessa senda, Amartya Sen discute a
necessidade de se conceber uma base informacional para que a escolha

1
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS). Especialista em Direito e Processo do
Trabalho pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Especialista em Controle Externo pela Universidade Estadual
Vale do Acaraú (UVA). Bacharel em Direito pela Faculdade Farias Brito. Consultor Técnico no Tribunal de Contas do
Estado do Ceará. E-mail: claytonbritojr@hotmail.com.
2
Pós-doutor (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Mestre e Doutor em Direito (PUC-SP). Professor do
programa de pós-graduação stricto sensu da Unichristus e do curso de graduação do Centro Universitário Farias
Brito. Procurador Federal. E-mail: andrestudart@gmail.com.
3
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Bacharel em Direito
pela Faculdade Farias Brito. Advogada. E-mail: talitactimbo@gmail.com.
228 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

social racional seja viável, posto que para ele, só com conhecimento ade-
quado poderíamos tomar decisões mais acertadas ou menos injustas, o que
pode influenciar na democracia.
Partimos, então, da ideia de que os Tribunais de Contas, sendo um
órgão que exerce fiscalização da conta pública, e que atua auxiliando o Po-
der Legislativo nesta função fiscalizatória, devem ser instrumentos
capazes de trazer informações importantes para serem ponderados pela
sociedade em geral nas tomadas de decisões que mais afetam a coletivi-
dade, como, por exemplo a de sufrágio, enriquecendo consideravelmente
os debates e consequentemente fomentando a justiça e a democracia sob
a ótica de Amartya Sen.
A utilização da função de controle social da administração pública,
auxiliada pelos Tribunais de Contas, pode ser compreendida, neste con-
texto, como um ato que vai além do autointeresse, que pretende impedir
uma injustiça evidente.
É de relevância inquestionável um banco de dados e mais ainda a
transparência e confiabilidade nas informações constantes neles, pois,
desse modo, orientam os cidadãos e a sociedade na tomada de decisões
para, assim, alcançar o bem comum.

2. O problema das escolhas sociais

A democracia, desde sua origem na Grécia antiga, fora constante-


mente aperfeiçoada para que de fato as ações do Estado representem a
vontade popular. Inicialmente poderíamos cogitar a forma de decisão di-
reta, todavia, isso constituiu-se em um desafio com o crescimento
populacional, havendo a necessidade de se desenvolver um sistema repre-
sentativo que viabilizasse o plano democrático.
O nosso sistema representativo encontra-se desacreditado na socie-
dade ante os maus resultados apresentados pelos gestores públicos às
demandas coletivas. Este fato torna-se mais visível ainda no período elei-
toral, onde muitos cidadãos votam mais pela obrigação do que pelo direito
Francisco Clayton Brito Júnior; André Studart Leitão; Talita Cavalcante Timbó | 229

em si, pela consciência de participar das decisões políticas. Somando-se a


isso, há ainda o grande número de votos nulos e brancos, que demonstram
o desinteresse neste formato de democracia.
Diante do enfraquecimento do atual sistema representativo e da pre-
ocupação com o futuro da democracia, devemos, então, estudar soluções
pragmáticas que podem ser adotadas em um curto período de tempo,
como também que possam ser aperfeiçoadas.
Um dos importantes princípios trazidos pela Carta Magna de 1988 foi
o do não retrocesso dos direitos fundamentais. Isso não significa que de-
vemos estagnar o direito por receio de uma possível decadência legal, mas,
para que possamos progredir, faz-se mister a difusão de conhecimento au-
têntico da esfera pública, e de modo que se chegue às pessoas de todas as
classes sociais e níveis escolares.
Para Vuolo (2007, p. 50), “a democracia passa a estar embasada em
confiança recíproca, com convergência nos esforços, transparência nas
ações e eficiência no uso dos meios, deixando de ser uma técnica formal
de escolha periódica de quem governa”, devendo ainda ser “uma escolha
permanente de como querem ser governados”. A autora acrescenta:

Deste modo ao cidadão, tão importante quanto votar e ser votado deve ser:
- Acompanhar as ações dos eleitos (gestores/legisladores) no trato da coisa
pública;
- Participar e contribuir para o bem-estar da sociedade.

Enquanto que aos órgãos exercentes da soberania do Estado cabe:


- Promover espaços democráticos de decisão;
- Estimular o cidadão a utilizar os instrumentos legais de controle legitimados
nas possibilidades deixadas na Constituição Federal de 1988;
- Fomentar o exercício da cidadania.

Vale dizer, impõe-se que a democracia seja exercida com a participa-


ção popular. Para isso acontecer, urge que o cidadão tenha acesso aos
gastos públicos, afinal a transparência pública e o controle social são ins-
trumentos basilares no Estado Democrático de Direito.
230 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Amartya Sen apresenta as escolhas coletivas como forma de aprimo-


rar a democracia. As melhores escolhas são aquelas que trazem a sensação
de justiça e consequentemente a ideia de democracia.
Já se pensou em uma democracia baseada nas escolhas sociais, con-
tudo, a viabilidade desse modelo é algo que requer melhor análise.
Amartya Sen (2010) observou que seria necessário a criação de um banco
informacional, para que as pessoas dispusessem de melhor embasamento
na tomada de decisões.
Conquanto a rede mundial de computadores tenha facilitado o acesso
à informação, acarretou a eclosão de um novo risco: as notícias falsas (fake
news). A fonte da informação precisa ser confiável, de outro modo conti-
nuaríamos com um sistema viciado.
Na atualidade, a sociedade pode obter informações variadas em meio
digital, que inevitavelmente influenciam o resultado das eleições. Contudo,
há de se preocupar com a veracidade dessas informações.
Imperioso destacar, também, o papel da cidadania no processo de-
mocrático, conforme Delano Carneiro (apud VUOLO, 2007, p. 48):

Pensar a cidadania é pensar a democracia. É sobre o pano de fundo da demo-


cracia que um conjunto de direitos sociais, civis e políticos é assegurado aos
indivíduos de um Estado-Nação. O reconhecimento e a garantia desses direitos
são a segurança do indivíduo, das condições necessárias e indispensáveis à sua
manutenção e reprodução e da sua participação na comunidade política do
Estado nacional.

A cidadania, que se relaciona ao efetivo exercício dos direitos políti-


cos, está intimamente interligada à democracia, ambiente no qual são
reconhecidos e garantidos direitos sociais, civis e políticos. Nesse contexto,
plausível é a cita de Amartya Sen (2010, p. 322):

mediante uma ampliação informacional é possível chegar-se a critérios coe-


rentes e consistentes para a avaliação social e econômica. A literatura sobre
“escolha social” (como se denomina esse campo de exploração analítica), que
resultou da iniciativa pioneira de Arrow, é um mundo tanto de possibilidade
como de impossibilidades condicionais.
Francisco Clayton Brito Júnior; André Studart Leitão; Talita Cavalcante Timbó | 231

A teoria da justiça desenvolvida pelo economista Amartya Sen funda-


menta-se, entre outros aspectos, na teoria das escolhas sociais. Nos idos
do século XX, Kenneth Arrow, após analisar a teoria das escolhas sociais,
desenvolveu o que ficou conhecido como o “teorema da impossibilidade”,
sob uma visão negativa de que escolhas individuais não podem originar
uma escolha social justa.
Para Sen (2010, p. 318), a razão deve ser usada para “identificar e
promover sociedades melhores e mais aceitáveis”. Nessa toada, Sen dis-
cute a necessidade de conceber uma base informacional para que a escolha
social racional seja viável. Para ele, só com conhecimento adequado pode-
ríamos tomar decisões mais acertadas ou menos injustas.
Estudos preliminares, ainda no século XVIII, sobre as escolhas coleti-
vas tinham como propósito aperfeiçoar a prática da democracia. Em sua
obra “Desenvolvimento como Liberdade”, Amartya Sen (2010) contesta
três aspectos que costumam ser apresentados contra a ideia do progresso
baseado na razão: 1º) o “teorema da impossibilidade”; 2º) as consequên-
cias premeditadas; 3º) a motivação egoísta dos seres humanos.
Em relação ao teorema da impossibilidade, Sen (2010, p. 320) en-
tende que, em verdade, “esse teorema não prova a impossibilidade da
escolha social racional, e sim a impossibilidade que emerge quando tenta-
mos basear a escolha social em uma classe limitada de informações”.
Outro aspecto relevante envolve o poder do planejamento, bem como
das intenções projetadas por uma determinada mente. Nesse sentido, in-
fere-se que, a partir de uma intenção, pode-se ter aquilo que se almeja. Em
resumo tudo se baseia em nossa real vontade, sendo ainda certo que as
intenções não planejadas não possuem utilidade. (SEN, 2010)
Questiona-se outrossim se as condutas humanas podem ir além de
seus próprios interesses. Caso se entenda que o comportamento humano
deve ser baseado exclusivamente nos próprios interesses, negam-se aspec-
tos sociais e morais. Ao realizar determinadas condutas, o indivíduo não
deve pensar somente nos seus próprios interesses, mais também ponderar
232 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

questões sociais e morais que o levam a praticar determinado comporta-


mento. (SEN, 2010)
Nesse prisma, levando-se em consideração as críticas relacionadas à
tomada de decisões não baseadas na racionalidade, percebe-se que elas re-
sultam em escolhas injustas e inadequadas social e moralmente,
impedindo o desenvolvimento de uma sociedade melhor. Escolhas sociais
devem basear-se na racionalidade, bem como em informações precisas e
verídicas de instituições democraticamente legítimas.

3. A função social do tribunal de contas

A garantia dos direitos em geral, inclusive a efetivação no âmbito so-


cial, de inclusão e proteção dos menos favorecidos na sociedade, custam
aos cofres públicos vultosas quantias. A fiscalização dos gastos públicos,
nesse sentido, está intimamente conectada à efetividade da realização dos
direitos sociais.
A maneira como são realizados os gastos públicos é de fundamental
importância para a sociedade em geral, razão pela qual deve ser fiscali-
zada, seja no âmbito dos controles interno e externo, seja no âmbito do
controle social. Assim, a administração dos recursos públicos deve vir
acompanhada da devida fiscalização e transparência.
Nesse prisma, os Tribunais de Contas, instituições que auxiliam o Po-
der Legislativo no exercício do controle externo, possuem a missão de
fiscalizar os recursos públicos, primando “pela legalidade e legitimidade, a
eficiência, eficácia e economicidade, com a finalidade principal de prestar
contas ao cidadão do emprego pelos governos dos recursos públicos, a
compreensão das suas funções institucionais é indispensável” (VUOLO,
2007, p. 22).
Nesse sentido, é mister destacar o papel dos Tribunais de Contas na
fiscalização das contas públicas e das políticas públicas, tendo em vista que
se tornaram instrumentos de inquestionável relevância, na atualidade, es-
pecialmente no contexto do controle.
Francisco Clayton Brito Júnior; André Studart Leitão; Talita Cavalcante Timbó | 233

Conforme salientou o ex-Ministro do STF Ayres Britto (2001, online),


referindo-se à participação obrigatória do Tribunal de Contas no exercício
do controle externo, “é inconcebível o exercício da função estatal do con-
trole externo sem o necessário concurso ou o contributo obrigatório dos
Tribunais de Contas”.
Nesse diapasão, os Tribunais de Contas possuem independência para
atuar juntamente com os poderes estatais, sobretudo no contexto do con-
trole, deles não fazendo parte. Com efeito, os Tribunais de Contas são
órgãos autônomos e independentes, de modo que não se subordinam ao
Poder Legislativo e não o integram. Não obstante as Cortes de Contas se-
jam órgãos auxiliares do Poder Legislativo na atuação controladora
externa, não há qualquer relação de subordinação.
A Constituição Federal de 1988 traz previsão expressa, na seção IX
(da fiscalização contábil, financeira e orçamentária), das competências do
Tribunal de Contas, consagradas nos incisos do artigo 71 e podem ser di-
vididas em fiscalizatória, judicante, sancionatória, consultiva, informativa
e corretiva.
O papel do Tribunal de Contas é essencial na realização do controle
da utilização dos recursos públicos, pois todos que atuam na gestão do di-
nheiro público devem prestar contas de sua gestão ao Tribunal, que realiza
a análise técnica e dá a publicidade do resultado de sua análise ao gestor,
ao Legislativo e à sociedade.
Outro importante aspecto das Cortes de Contas é o controle social.
Há uma via de mão dupla no sentido de que tanto elas podem receber de-
núncias dos cidadãos para análise e apreciação das referidas denúncias a
respeito de desvios ou equívocos na aplicação de recursos públicos, como
também as cortes emitem informações técnicas da gestão pública com o
escopo de informar à sociedade como estão sendo dispendidos os recursos
públicos. Destarte, não há dúvida de que o Tribunal de Contas é meio de
concretização do controle social, na medida em que funciona como ponte
de integração da sociedade com a administração pública para solução de
problemas e deficiências sociais.
234 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Destaque-se que a atividade fiscalizatória abrange as dimensões da


legalidade, economicidade e legitimidade. “Não basta, portanto, avaliar
que determinado gasto público está em conformidade com a legislação,
mas cabe verificar se está em sintonia com critérios de economia e se
atende a anseios legítimos” (LIMA; DINIZ, 2018, p. 401).
Impende registrar um mecanismo dos Tribunais de Contas para ava-
liação de políticas públicas, qual seja, auditoria governamental. Esse
instrumento de análise das políticas públicas encontra guarida no inciso
IV do artigo 71 da Constituição Federal. Por esse mecanismo, segundo
Lima e Diniz (2018, p. 403):

Avalia-se também se os próprios produtos e serviços escolhidos para alcançar


determinado objetivo de política pública são os mais adequados do ponto de
vista de custo. Por exemplo, se o objetivo de determinada política é diminuir a
taxa de desemprego entre jovens e o produto escolhido para tal fim foi o trei-
namento presencial com quarenta horas por semana, a auditoria pode avaliar
se um treinamento à distância não teria o mesmo resultado, mas a um custo
menor.

À guisa de exemplo, destaca-se um programa que visa a assegurar a


sustentabilidade de um sistema previdenciário (LIMA; DINIZ, 2018, p.
403):

Em uma auditoria da efetividade da reforma de um programa que vise asse-


gurar a sustentabilidade de um sistema previdenciário, por exemplo,
verificam-se os benefícios pagos, as alíquotas cobradas, a legislação de regên-
cia, as possibilidades de alteração, os riscos envolvidos, de forma a avaliar se
certas premissas inicialmente previstas não subestimavam dificuldades ope-
racionais e políticas, se os riscos foram devidamente avaliados, se efeitos
negativos da reforma implementada não forma subestimados, entre outros
itens, de forma mensurar quão próximos os resultados ficaram do que foi pro-
jetado, identificando ainda as oportunidades de melhoria.

Denota-se, portanto, que o papel dos Tribunais de Contas é impres-


cindível até mesmo na análise das políticas públicas, como agente
fiscalizador e prestador de informações precisas à sociedade. Neste azo, as
Francisco Clayton Brito Júnior; André Studart Leitão; Talita Cavalcante Timbó | 235

Cortes de Contas desempenham função essencial no guarnecimento de in-


formações aos gestores públicos e cidadãos no que concerne à análise de
políticas públicas.
Sob a ótica de Sen (2010), essas políticas públicas constituem instru-
mentos importantes para a realização do desenvolvimento e da justiça.
Não é despiciendo notar que a concretização das oportunidades soci-
ais, por meio de políticas públicas bem aplicadas e efetivas, confere ao
indivíduo a capacidade de fazer escolhas e de ser responsável por elas,
tendo a possibilidade de moldar o seu futuro.
Nesse contexto, é interessante salientar a iniciativa do Tribunal de
Contas do Estado de São Paulo que desenvolveu o Índice de Efetividade da
Gestão Municipal (IEGM), que mede o desempenho dos municípios por
meio de sete índices, dentre os quais, educação, saúde, planejamento, ges-
tão fiscal e meio ambiente. (CHADID, 2019)
Esse projeto foi difundido para os demais Tribunais de Contas no
Brasil. Outrossim, “referidos indicadores finalísticos foram criados para a
análise de processos utilizados pelos gestores municipais, permitindo ob-
servar as quantidades e qualidades do serviço público prestado ou
terceirizado, e sua adequação ao menor preço”. (CHADID, 2019, p. 246)
Atualmente, os instrumentos que possibilitem e promovam a trans-
parência e participação popular na administração pública estão ganhando
espaço em uma sociedade com recursos públicos cada vez mais escassos.
No que diz respeito às fiscalizações realizadas pelas Cortes de Contas, tor-
nam-se cada mais comuns as notícias de gestores sendo responsabilizados
por má administração, resultando algumas vezes na aplicação de multas,
ressarcimento ao erário, inelegibilidades nos termos da lei da ficha limpa.
A transparência pública, nos dias atuais, constitui um dos principais
objetivos dos Tribunais de Contas, haja vista a função primordial de publi-
cizar e de dar transparência dos gastos públicos à sociedade. Essa função
fica mais clara no momento em que as contas dos gestores se tornam pú-
blicas. Corroborando essa ideia, Bonilha (2020, p. 187) aduz:
236 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Um papel dos mais importantes, todavia, está na missão de proporcionar à


sociedade conhecimento sobre a atuação da administração pública, traduzir
em termos acessíveis o desempenho das ações desenvolvidas pelo poder pú-
blico, promovendo o uso transparente da régua utilizada para medir a
eficiência de uma gestão.

Bonilha (2020, p. 187) ressalta, ainda, que as Cortes de Contas devem


dar respostas efetivas às demandas da sociedade:

O Tribunal de Contas do século XXI deve ser capaz de dar respostas efetivas
às demandas da sociedade e, como foi apontado acima, sua ação será, inevita-
velmente, pautada pelo princípio da sustentabilidade.

Quando analisamos os objetos de desenvolvimento sustentável, verificamos


que todos se relacionam a iniciativas inadiáveis do ponto de vista de proporci-
onar às futuras gerações um ambiente capaz de prover os insumos necessários
ao seu pleno desenvolvimento. Da mesma forma, todas se relacionam a ativi-
dades de fiscalização desenvolvidas cotidianamente pelos Tribunais de Contas.

É evidente a importância da atuação das Cortes de Contas, que atuam


em diversas áreas das demandas sociais, seja no julgamento das contas
dos gestores públicos, seja na análise das políticas públicas e do desenvol-
vimento sustentável. Por outro lado, a necessidade de informar à
sociedade sobre essa atuação, com informações precisas, autênticas e em
tempo hábil, possibilita que o cidadão participe da vida política de sua co-
munidade, promovendo o desenvolvimento sob a ótica de Sen.
Chadid (2019, p. 214), destacando a função de cumprimento das de-
mandas sociais pelos Tribunais de Contas, ressalta o papel desses
Tribunais no incremento da transparência na gestão pública, senão veja-
mos:

Dentre os órgãos que exercem a função de auxílio no cumprimento das de-


mandas sociais e das execuções dos programas governamentais temos os
Tribunais de Contas, que fazem a defesa do indivíduo, do patrimônio público
e dos valores sociais por meio de mecanismos que procuram incrementar a
Francisco Clayton Brito Júnior; André Studart Leitão; Talita Cavalcante Timbó | 237

transparência na gestão, combater o desperdício e a corrupção, já que detec-


tam e impõem a correção dos rumos de implementação ou consolidação de
políticas públicas que possam concretizar benefícios à sociedade.

Os Tribunais de Constas exercem função primordial de combate à


corrupção, bem como no combate ao desperdício do dinheiro público, uma
vez que, ao fiscalizar as contas dos gestores, o órgão fiscalizador dá trans-
parência às suas decisões, possibilitando aos cidadãos o exercício do
controle social.
Verifica-se que as informações e os resultados da atuação das Cortes
de Contas devem ter ressonância na sociedade e, assim, produzir melhoria
na vida das pessoas como meio de alcançar o bem comum. A participação
e a aproximação da sociedade com as ações de controle, “ao mesmo tempo
em que possibilita o fortalecimento dessas instituições, para que se tornem
cada vez mais respeitadas e reconhecidas perante a sociedade, como im-
prescindíveis na vida democrática do país”. (VUOLO, 2007, p. 30)
A transparência, que pode ser considerada um direito fundamental
do cidadão, transcende a mera publicação ou publicidade dos atos públi-
cos, constituindo, pois, um “elemento indutor de accountability e
governance e se potencializa pela divulgação de informações de forma
clara, facilmente acessível e que possa ser utilizada como forma de controle
tanto formal quanto do controle social”. (NÓBREGA, 2011, p. 105)
Nesse sentido, Amartya Sen (2010) ressalta a necessidade de infor-
mações precisas, autênticas e oportunas como fundamentais à tomada de
decisão individual. Por outro lado, informações imprecisas e ininteligíveis
dificultam a compreensão por parte da maioria dos cidadãos, ocasionando
escolhas equivocadas e inviabilizando a justiça social.
Ademais, “as informações são necessárias porque o cidadão precisa
ter conhecimento de seus direitos para que possa exigi-los com eficácia,
legitimidade e responsabilidade”. (MACIEL, 2020, p. 208).
Ressaltando a importância da transparência de dados de instituições
públicas e privadas, Zambam (2017, p. 519-520) aduz:
238 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

A ausência de uma base informacional segura e com as condições de oferecer


uma avaliação coerente sobre a realidade impede a análise sistêmica e logica-
mente estruturada dos fenômenos sociais. A complexidade que envolve a
compreensão da realidade, seja pelos atores e envolvidos e analisados, seja
pelo contexto e suas inúmeras tensões, está intimamente relacionada com a
disponibilidade de dados que tornam a avaliação mais coerente e justa, quanto
mais qualificadas forem as informações. Os juízos emitidos precisam refletir
essa unidade de informações que são essenciais para orientar os líderes, os
grupos e as instituições responsáveis pela construção de políticas públicas em
vista do bem comum.

Neste azo, depreende-se a inquestionável relevância de um banco de


dados e mais ainda da transparência e confiabilidade de suas informações,
para, desse modo, orientar os cidadãos a tomarem decisões conscientes.
Amartya Sen (2010, p. 318) assevera que “precisamos, então, de uma
estrutura avaliatória apropriada; precisamos também de instituições que
atuem para promover nossos objetivos e comprometimentos valorativos”.
Ante as ponderações expostas, os Tribunais de Contas podem ser
considerados uma ferramenta informacional extremamente relevante,
com estrutura avaliatória apropriada aos cidadãos, para que eles tomem
decisões individuais e coletivas com o escopo de aprimorar a sociedade.

4. Conclusão

Conclui-se que os Tribunais de Contas possuem pontos convergentes


com a teoria de Amartya Sen e, portanto, caracterizam-se como institui-
ções que promovem objetivos e comprometimentos valorativos. Essas
Cortes podem ser consideradas estruturas avaliatórias apropriadas para a
difusão de informações qualificadas, verídicas, simples, compreensíveis,
de modo a auxiliar o cidadão no processo de tomada de decisões individu-
ais e coletivas.
Os Tribunais de Contas constituem instrumentos capazes de trazer
informações importantes para que sejam ponderadas pela sociedade na
Francisco Clayton Brito Júnior; André Studart Leitão; Talita Cavalcante Timbó | 239

tomada de decisões, enriquecendo consideravelmente os debates e conse-


quentemente fomentando a justiça e a democracia sob a perspectiva
seniana.
Verifica-se função social na atuação dos Tribunais de Contas por atu-
arem como mecanismos de controle da legalidade, mas também da
economicidade (eficiência) e legitimidade, bem assim pela clara aproxima-
ção com os valores democráticos e a transparência na gestão pública.
Assim, as Cortes de Contas atuam como instrumento de concretiza-
ção da cidadania, despertando no cidadão a necessidade de fiscalização dos
recursos públicos e do controle social.

5. Referências

BONILHA, Ivan Lelis. Sustentabilidade como princípio conformador do Tribunal de Contas


do século XXI. In: LIMA, Edilberto Carlos Pontes (Coord.). Tribunal de Contas do
Século XXI. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 179-190.

BRITTO, Carlos Ayres. O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2001. Disponível em: <https://www.editoraforum.com.br/
noticias/o-regime-constitucional-dos-tribunais-de-contas-ayres-britto/>. Acesso
em: 23 out. 2020.

CHADID, Ronaldo. A função social do Tribunal de Contas no Brasil. Belo Horizonte:


Fórum, 2019.

LIMA, Edilberto Carlos Pontes; DINIZ, Gleison Mendonça. Avaliação de políticas públicas
pelos Tribunais de Contas: fundamentos, práticas e a experiência nacional e interna-
cional. In: SACHSIDA Adolfo (Organizador). Políticas públicas: avaliando mais de
meio trilhão de reais em gastos públicos. Brasília: Ipea, 2018. p. 399-416.

MACIEL, Moises. Tribunais de Contas e o direito fundamental ao bom governo. Belo


Horizonte, Fórum, 2020.

NÓBREGA, Marcos. Os Tribunais de Contas e o controle dos programas sociais. Belo


Horizonte: Fórum, 2011.
240 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.

VUOLO, Cassyra Lucya Barros. Os Tribunais de Contas como instrumento de constru-


ção da cidadania. Cuiabá: Edição da Autora, 2007.

ZAMBAM, Neuro José. Bases informacionais transparentes: vitalidade da democracia e da


justiça social/Transparent information bases: vitality of democracy and social jus-
tice. Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Itajaí, v. 22, n. 2, p. 512-543,
mai./ago. 2017. ISSN 2175-0491. Disponível em: <https://www6.univali.br/seer/in-
dex.php/nej/article/viewFile/10985 /pdf>. Acesso em: 22 jul. 2020. DOI:
<https://doi.org/10.14210/nej.v21n2.p512-543>.
15

Cidadania virtual:
o enfrentamento das capabilidades
em tempos de pandemia

Vinícius Francisco Toazza 1


Leonardo Tozzo Cominetti 2

1 Introdução

A terminologia cidadania, é prevista na Carta Magna como um de


seus fundamentos com a finalidade de perpassar todo o sistema legal:
“Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indisso-
lúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) II - a cida-
dania”. Para tanto, é importante observar a problemática existente,
mormente a uma deturpação da identidade de cidadãos que, encontram-
se conectados em um sistema planetário, onde se despreza questões lo-
cais, atingindo níveis surreais de cultura sem ultrapassar fisicamente as
fronteiras, tendo nesse mesmo contexto, a presença de cidadãos não inse-
ridos na conjuntura global devido à falta de acesso à políticas públicas de
inclusão, que acentuam as desigualdades.

1
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo. Especialista em Direito Penal. Pro-
fessor da Faculdade de Direito da UPF. Advogado. Presidente do Conselho da Comunidade do Sistema Penitenciário
de Passo Fundo. Presidente da APAC de Passo Fundo. Membro do Conselho Penitenciário do Estado do RS. E-mail:
vinitoazza@hotmail.com.
2
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo - UPF. E-mail: leonardo.comine-
tti@gmail.com.
242 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Amartya Sen, em seus estudos relatou algumas problemáticas mor-


mente nas democracias mundiais, a cultura, a política, a estabilidade social
e a economia. Estes quatro pilares são a base para estruturação de uma
sociedade efetivamente participativa, porém a problemática está nas ca-
pabilities de cada cidadão, como estas frentes de políticas sociais chegam
até a sociedade em tempos de pandemia, é a busca da resposta deste artigo.
Para tanto, leva-se em consideração a desigualdade econômica e so-
cial mundial, bem como, o estado de exceção instalado pela pandemia da
Covid-19, pois é fundamental partir da análise do conceito de cidadania e,
principalmente, da mais atual acepção de cidadania digital, assunto em
voga no momento pelo aumento de serviços ofertados pelo meio digital, já
que a própria conjuntura epidemiológica impõem restrições de contato
físico entre pessoas como meio de prevenção, ainda, perpassando as ideias
de Amartya Sen quanto à efetividade das políticas públicas nesse cenário
sui generis.
A partir contexto tecnológico, pode-se visualizar, especialmente, dois
pontos expostos por Vieira sobre o conceito de cidadania: a questão terri-
torial e a questão da identidade. O que leva a discussão entre a noção de
cidadania nacional e a ascensão de uma cidadania cosmopolita. Visto que,
a igualdade da cidadania é sempre um ideal, mas as diferenças subsistem.
Dentro de um Estado, a cidadania nacional não significa identidade. Pre-
cisa-se ponderar que há desigualdades e diferenças dentro de uma nação,
principalmente, naquelas que possuem um vasto território, como é o caso
da brasileira. Suprir as mazelas sociais são o grande desafio das democra-
cia contemporâneas que passam necessariamente por combater as
(in)capacidades dos cidadãos, quais sejam as necessidades básicas, para
poder pensar posteriormente em uma cidadania participação, capaz de
gerar debates públicos com respectiva consciência nas escolhas, inclusive
de ser tolerante e sensível quanto as demandas das minorias.
Entretanto, os que se sobressaem em grande parte, não apresentam
essa essência compassiva com as pretensões das minorias, compostas
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 243

geralmente por sujeitos mais vulneráveis socialmente. Sendo que, há a


vaga tentativa de justificar a situação da desigualdade
como uma questão de acaso, mas que pode se tornar ainda pior
quando se tenta negar que exista essa diferença. Por exemplo: A alma da
ideologia dominante se expressa na pretensão de convencer os desiguais
que não são, ou o são por fatalidade imutável. Aí procura-se reproduzir a
falsa consciência da desigualdade apenas estrutural, invariante. Mas, não
se explica por que os desiguais não teriam qualquer outra chance histó-
rica. Ou, por que os iguais só podem ser sempre os mesmos.
A ideologia dominante quer adesão, e de preferência a inconsciência,
porque então o problema político-histórico sequer se põe. Nesse sentido,
a ideologia dominante tem como confrontante temível a emancipação dos
desiguais. A grande veemência da cidadania democrática está na emanci-
pação social, advinda da consciência de cada indivíduo enquanto
participante da coletividade, entretanto, há muito que se percorrer, a fim
de garantir uma cidadania que contemple as reais condições do povo bra-
sileiro, que parte é planetário
(cibercidadão), enquanto outros sobrevivem em um submundo das
desigualdades.

2 Cidadania virtual

O conceito de cidadania passa por uma revitalização devido às mu-


danças sociais e ao crescente acesso das pessoas aos mecanismos de
participação e comunicação na era digital. Por essa razão, é essencial
(re)pensar o conceito de cidadania em um cenário tecnológico, privilegi-
ado pelo ciberespaço — espaço comunicacional — que possibilitado pela
interconexão mundial dos computadores transforma o pensar e agir do
cidadão.
A cidadania é um conceito presente na Constituição Federal do Brasil
de 1988, mas que remonta à significação consumada na polis grega. No
244 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

entanto, o termo sofreu alterações em sua particularidade durante o pro-


cesso civilizatório e passa nesse lapso temporal representar a vinculação
do sujeito com o Estado e o seu direito de participar da vida em sociedade.
Todavia, em tempos remotos já representou a liberdade, a conquista do
direito ao voto, o reconhecimento de um ser humano no outro, a igual-
dade de gênero e, ainda, a garantia de vida digna dos sujeitos.
Dito isso, pode-se compreender a cidadania como uma “conquista so-
cial e histórica de lutas pelo reconhecimento de direitos” (BERTASO;
HAMEL, 2016, p. 17). E, que por sinal deve ser vivenciada, principalmente
porque denota a identidade de cada indivíduo e o faz pertencente a sua
nação. Em outras palavras: “la ciudadanía es un status outorgado a aquel-
los
que son membros de una comunidade de manera absoluta. Todos
los que gozan de ese status son iguales con respecto a los derechos y de-
beres que dicho status confiere” (MARSHALL, 1998, p. 92).
Dessa forma, falar em cidadania é falar de reconhecimento de direitos
e garantias, é ter a consciência das relações multiculturais e ao mesmo
tempo ter tolerância com as diferenças. Pois, como refere Hart (2012, p.
133):

Dizer que determinada regra é válida equivale a reconhecer que esta satisfaz a
todos os critérios propostos pela norma de reconhecimento e é, portanto, uma
norma do sistema. Na verdade, pode-se simplesmente dizer que a afirmação
de que certa norma é válida significa que tal norma satisfaz a todos os critérios
oferecidos pela norma de reconhecimento.

Como se percebe que no decorrer do tempo a cidadania expressou


diferentes significações, Vieira aponta que “[...] historicamente, a cidada-
nia foi concedida a restritos grupos de elite — homens ricos de Atenas e
barões ingleses do século XIII — e, posteriormente estendida a uma grande
porção dos residentes de um país (VIEIRA, op. cit, p. 34-35)”.

A cidadania está intimamente vinculada ao processo em devir dos Direitos Hu-


manos que consolidou a sociedade na modernidade. O conceito de cidadania
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 245

surgiu ligado a um ente estatal no século XVIII; seu exercício e realização se


fizeram sob a tutela do Estado nacional. Porém, considerando a atual forma
de sociedade, a cidadania afirma se pelo envolvimento do cidadão nos movi-
mentos sociais, nos mais diversos, no âmbito da emergente sociedade civil e
esfera pública transnacional que se vai construindo no mundo globalizado
(BARRETO, 2010, p. 96).

Vale destacar que em cada forma de regime que o Estado perpassou,


o conceito de cidadania envolveu direitos e obrigações distintas. Portanto,
no “liberalismo, a relação entre direitos e obrigações é essencialmente
contratual, trazendo em si uma forte carga de reciprocidade: a cada direito
corresponde em geral uma obrigação” (VIEIRA, 2001, p. 37-38).
Já que para a teoria liberal ser cidadão implica ser dotado de liberda-
des. A cidadania nesta ocasião não se relacionou com características que
determinam sua identidade, mas somente com o indivíduo, o qual deve
ser visto como livre e igual, tornando-se responsável pelo exercício de seus
próprios direitos. Por conseguinte, o “comunitarismo prioriza a comuni-
dade, sociedade ou nação, invocando a solidariedade e o senso de um
destino comum como pedra de toque da coesão social. É a ideia oposta ao
liberalismo ao objetivar uma sociedade com valores e identidades co-
muns” (VIEIRA, 2001, p. 39).
Nessa ótica solidária, a cidadania neste determinado contexto versa
que as obrigações são priorizadas em face ao exercício de direitos, isto é,
os direitos são conferidos em decorrência do cumprimento de uma série
de obrigações. Porém, tanto no liberalismo quanto no
comunitarismo, a cidadania apresenta um papel normativo, todavia
com características diversas. “Na visão liberal, a cidadania é um acessório,
não um valor em si mesmo. Na visão comunitarista, os indivíduos são
membros de unidades maiores do que si mesmos, e uma delas é a comu-
nidade política” (VIEIRA, 2001, p. 40).
Aborda-se, ainda, uma terceira possibilidade de visualização da cida-
dania, proposta pela teoria social-democrata de democracia expansiva,
que destaca, principalmente, a participação. Aqui se:
246 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

[...] preconiza a expansão de direitos individuais ou coletivos a sujeitos histo-


ricamente discriminados, notadamente por sua classe, gênero ou etnia. A
teoria democrata expansiva reivindica o aumento da participação coletiva nas
decisões e uma maior interação entre o cidadão e as instituições (VIEIRA,
2001, p. 41).

Nessa abordagem, esmera-se pelo equilíbrio entre direitos coletivos,


individuais e obrigações. Entretanto, as três teorias apresentadas exibem
conflitos a respeito dos direitos e obrigações concernentes à cidadania,
pois, enquanto que na teoria liberal os direitos contêm prioridades em
relação aos deveres, na teoria comunitarista as obrigações são priorizadas
em detrimento de direitos, o que harmoniosamente para a democracia
social direitos e obrigações devem encontrar equilíbrio.
Em se tratando, de um contexto tecnológico, pode-se visualizar, es-
pecialmente, dois pontos expostos por Vieira sobre o conceito de
cidadania: a questão territorial e a questão da identidade, o que leva à
discussão entre a noção de cidadania nacional e a ascensão de uma cida-
dania cosmopolita. O autor explica como a cidadania é habitualmente
entendida apenas como “cidadania nacional” — capaz de transmitir iden-
tidade na esfera internacional, especialmente quando comparada a outras
nacionalidades. Entretanto, internamente em uma nação não pode se pen-
sar assim. Visto que “a igualdade da cidadania é sempre um ideal, mas as
diferenças subsistem. Dentro de um Estado, a cidadania nacional não sig-
nifica identidade” (VIEIRA, 2001, p. 223).
Precisa-se ponderar que há desigualdades e diferenças dentro de uma
nação, principalmente, naquelas que possuem um vasto território, como
é o caso da brasileira. Suprir as mazelas sociais são o grande desafio das
democracias contemporâneas que passam necessariamente por combater
as (in) capabilides dos cidadãos, quais sejam as necessidades básicas, para
poder pensar posteriormente em uma cidadania-participação, capaz de
gerar debates públicos com respectiva consciência nas escolhas, inclusive
de ser tolerante e sensível quanto às demandas das minorias. Segundo
Pérez Luño:
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 247

La teoria y la práctica de la democracia no pueden ser insensibles a la urgencia


de tomar en serio la tarea de construir una concepción de los valores y de las
libertades abiertas y responsablemente comprometidas con la respuesta a las
nuevas necesidades y exigencias de los seres humanos que viven en la era de
las nuevas tecnologias (PÉREZ LUÑO, 2013, p. 121).

Entretanto, os que se sobressaem em grande parte não apresentam


essa essência compassiva com as pretensões das minorias, compostas ge-
ralmente por sujeitos mais vulneráveis socialmente. Sendo que há a vaga
tentativa de justificar a situação da desigualdade como uma questão de
acaso, mas que pode se tornar ainda pior quando se tenta negar que exista
essa diferença. Como se observa na fração:

A alma da ideologia dominante se expressa na pretensão de convencer os de-


siguais que não são, ou o são por fatalidade imutável. Aí procura-se reproduzir
a falsa consciência da desigualdade apenas estrutural, invariante. Mas não se
explica por que os desiguais não teriam qualquer outra chance histórica. Ou
por que os iguais só podem ser sempre os mesmos. A ideologia dominante
quer adesão, e de preferência a inconsciência, porque então o problema polí-
tico-histórico sequer se põe. Nesse sentido, a ideologia dominante tem como
confrontante temível a emancipação dos desiguais (DEMO, 1990, p. 53-72).

A grande veemência da cidadania democrática está na emancipação


social, advinda da consciência de cada indivíduo como participante da co-
letividade, entretanto, há muito que se percorrer, segundo Padilha, pois
“o cidadão brasileiro se pergunta muito mais o que o Estado pode fazer
por ele do que ele, na condição de cidadão, pode fazer pelo Estado”. Logo,
é fundamental que esse cidadão desenvolva o espírito de cidadania, uma
vez que “precisa parar de atribuir tudo ao poder público, já que a socie-
dade política saiu da sociedade civil e os homens que estão lá exercendo
poder saíram daqui”. Há a necessidade de que a sociedade civil desenvolva
o conceito de cidadania intrinsicamente (PADILHA, 1998. p. 24-25).
Nesse aspecto, enquanto há cidadãos mais preocupados em se servir
do Estado do que contribuir com ele, dá-se margem, em contrapartida,
para que se instale nesses sistemas democráticos governantes que não
248 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

fazem esforços mínimos a fim de separar o que é público do que é privado.


Esses acabam por se utilizar da máquina pública, em conformidade com
seus interesses e dos seus apoiadores e dependentes, pagando-lhes tribu-
tos em troca da permanência no poder.
Tão logo, prevalecem-se do “uso do favor como moeda de troca nas
relações políticas” acaba por instalar uma espécie de controle político por
meio do mecanismo da cooperação, o qual dá margem à corrupção insti-
tucionalizada, ao mesmo tempo que nega às classes populares o seu
direito de participação política direta e de maneira autônoma, na coibição,
por exemplo,
dos movimentos sociais de protestarem na rua, e por fim, acabam
fazendo o uso privado dos recursos públicos e dos aparelhos estatais.
A grande problemática por detrás de todas essas circunstâncias está
na legitimidade de governos, que se aproveitam da democracia para im-
por seus projetos pessoais de poder, utilizando-se das regras do jogo
democrático em benefício próprio. Aparecem os meios de comunicação
como instrumento para o convencimento.

En el contexto de la política democrática, el acceso a las instituciones del estado


depende de la capacidad para movilizar una mayoría de votos de los ciudada-
nos. En las sociedades contemporáneas, la gente recibe la información y forma
su opinión política esencialmente a través de los medios, sobre todo de la te-
levisión. [...] Así pues, para actuar en las mentes y voluntades de la gente, las
opciones políticas en conflicto, encarnadas en partidos y candidatos, utilizan
los medios como vehículo fundamental de comunicación, influencia y persua-
sión (CASTELLS, 2001, p. 345).

Fora a utilização dos meios de comunicação para influenciar questões


eleitoreiras, é possível evidenciar que meios como a internet podem con-
tribuir com a propagação de informações aos cidadãos. “Así las
posibilidades de aprovechamiento de internet para la información, lá edu-
cación, en entretenimiento y la actividad económica a nível planetario es
ciertamente importante” (BRAVO, 2001, p. 15). Principalmente, para os
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 249

novos cidadãos que de maneira habitual estão em rede conectados. Dessa


forma,

As inovações técnicas abrem novos campos de possibilidades que os atores


sociais negligenciam ou apreendem sem qualquer pretensão mecânica. Um
vasto campo político e cultural, quase virgem, abre-se para nós. Poderíamos
viver um desses momentos extremamente raros em que uma civilização in-
venta a si própria, deliberadamente (LÉVY, 2000, p.60).

A participação na seara da cibercidadania é considerada universal,


não podendo se deter as fronteiras nacionais, por esse motivo é que o
conceito de cidadania precisa ser repensado no que tange à criação de uma
identidade nacional, por compreender que cada um dos indivíduos de
uma nação é também um cidadão de direitos no mundo globalizado. Além
disso, “una democracia sólo hace honor a su nombre si los ciudadanos tie-
nen verdadero poder para actuar como tales, es decir, si son capaces de
disfrutar de una serie de derechos que les permitan demandar participa-
ción democrática y considerar dicha participación como un título” (HELD,
2001, p. 355).
Ou seja, valorizar realmente a possibilidade de fazer parte das deci-
sões e buscar a continuidade democrática. “Así el marco de una
continuidad democrática que reconoce ampliación de la participación ciu-
dadana, se combina con los efectos-políticos de profundas
transformaciones” (BONETTO, 2005, p.275).
Neste mesmo grau,

Em sua essência a democracia participativa é caracterizada por um conjunto


de pressupostos normativos que incorporam a participação da sociedade civil
na regulação da vida coletiva dentro de uma agenda previamente determinada
de assuntos. Pode-se afirmar que a democracia participativa impõe o exercício
da cidadania nos atos de governo, significando, em última análise, um sistema
no qual os cidadãos possam efetivamente participar das decisões políticas fun-
damentais (BIANCHINI, 2014, p. 15).
250 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

É nesse modelo de democracia utópica, aparentemente, tratando-se


de estados agigantados, que os cidadãos digitais estão se inserindo, toda-
via com as peculiaridades e inovações que o largo sistema tecnológico
propicia para o exercício de uma democracia direta, retomando seu nas-
cedouro grego. Recordando que o:

Modelo da democracia moderna foi a democracia dos antigos, de modo parti-


cular a da pequena cidade de Atenas, nos felizes momentos em que o povo se
reunia na ágora e tomava livremente, à luz do sol, suas próprias decisões, após
ter ouvido os oradores que ilustravam os diversos pontos de vista. Para dene-
gri-la, Platão (que era um antidemocrático) a havia chamado de ‘teatrocracia’
(palavra que se encontra, não por acaso, também em Nietzsche). Uma das ra-
zões da superioridade da democracia diante dos estados absolutos, que haviam
revalorizado os arcana imperii e defendiam com argumentos históricos e po-
líticos a necessidade de fazer com que as grandes decisões políticas fossem
tomadas nos gabinetes secretos, longe dos olhares indiscretos do público,
funda-se sobre a convicção de que o governo democrático poderia finalmente
dar vida à transparência do poder, ao ‘poder sem máscara (BOBBIO, 1997, p.
29).

Certamente, ambiciona-se que não haja máscaras no poder. Que cada


cidadão possa participar livremente, inclusive, contrariando os tiranos e
demagogos, que distorcem os verdadeiros regimes a seu mero deleite.
Acima de tudo, confrontar abertamente os hipócritas que enchem a boca
para falar em modelos democráticos, mas são amantes fiéis de regimes
ditatoriais e apresentam em suas vivências pessoais formas autoritárias e
totalmente hierarquizadas, que contrariam métodos horizontais das ver-
dadeiras democracias.

3 O enfrentamento das capabilities em tempos de pandemia

É inegável o Estado de exceção trazido a toda população mundial pela


pandemia da Covid-19. O intenso fluxo de pessoas das cidades brasileira
foi alterado para uma quarentena rígida, houve o cerceamento do direito
à liberdade e do direito de ir e vir, através de um isolamento social acen-
tuado, que culminou com o fechamento do comércio, de bares,
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 251

restaurantes, shoppings, praças e se instaurou no lugar da vivência comu-


nitária, práticas virtuais, como o próprio home office, no intuito de evitar
a propagação do vírus. Neste prisma, considerando uma sociedade globa-
lizada e conectada, cresce a figura do cibercidadão, aquele cidadão que
permanece o dia conectado nas redes, que solicita serviços públicos pelas
redes, estuda e trabalha de forma virtual, compra eletronicamente, ou seja,
redução sua convivência social e virtualiza-se, visto a agilidade que as re-
des têm trazido para serviços antes morosos e que deixavam os usuários
insatisfeitos, bem como, pela praticidade encontrada no ciberespaço.
Passando-se a uma análise real do cidadão e os efeitos da pandemia
sobre suas capabilities, o Estado assume um importante papel, visto que,
segundo Sen (2000, p.214): “A ausência do Estado na organização da so-
ciedade, sedimenta e amplia o fosso das desigualdades e outras
disparidades”. De pronto, identifica-se a problemática da politização da
pandemia, sendo que, muitos tem usado a mesma como positivação de
suas ideias sociais de dizimação das minorias, bem como, há a negação da
gravidade do vírus e suas consequências sobre a sociedade e sobre a eco-
nomia nacional e mundial. Por outro lado, usa-se a crise sanitária como
cortina de fumaça para justificar situações que há anos se arrastam.
Para tanto a função do Estado torna-se evidente nesses períodos, pois
é quando o cidadão mais precisa de serviços públicos efetivos e que real-
mente cheguem até ele. Contudo, percebe-se uma disparidade dos efeitos
da pandemia entre países de governo mais liberais e governos mais soci-
ais. Em países com governos mais liberais, durante a pandemia se
priorizou a economia, refutando-o o isolamento social e, muitas vezes co-
locando em dúvidas as próprias recomendações de cientistas. Nota-se que
foram lançados impulsos governamentais para o mercado não parar,
tendo como consequências nesses locais, o elevado número de casos de
Covid-19, acompanhado de um grande número de mortes e, em casos ex-
tremos o colapso do sistema de saúde, segundo dados da própria
Organização Mundial da Saúde.
252 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Por sua vez, em países de caráter social e mais protecionista, pode-se


perceber um auxílio governamental para que o cidadão ficasse em casa e
um incentivo às indústrias com isenção de impostos e empréstimos a ju-
ros mais baixos, visando reduzir a circulação de pessoas, as aglomeração
e assim, a disseminação do vírus. O resultado nesses países foi um redu-
zido número de casos, um menor número de mortes e, consequentemente
um menor período de quarentena, pois a curva de casos não teve pico,
assim, não houve superlotação do sistema de saúde.
Importante é identificar as dificuldades de acesso do cidadão às polí-
ticas públicas como educação, saúde, cultura e políticas econômicas,
principalmente em tempos de pandemia. Considerando a totalidade das
políticas emergências criadas pelo Estado, que tentam suprir lacunas tem-
porárias da população, lidando com seus problemas atuais e não tratando
problemas permanentes, percebe-se a ineficácia de tais medidas segundo
destaca Sen:

Políticas tendentes a lidar com a incapacidade podem ter um âmbito muito


alargado, o qual tanto incluirá a mitigação dos efeitos advindos de deficiências
e incapacidades como a criação de programas para a prevenção do surgimento
de tais incapacitações. É de extrema importância que se compreenda que mui-
tas incapacitações são evitáveis, muito podendo ser feito, não apenas para
diminuir a penalidade da incapacitação, mas também, e desde logo, para re-
duzir a sua incidência. (SEN, 2010, p. 352).

Neste compasso, pode-se identificar a condição de cidadão agente, o


cidadão não como fim para o estado, mas sim como meio. Meio de fazer
a verdadeira construção de políticas públicas eficientes e que realmente
busquem sanar os problemas majoritários das desigualdades que assolam
as capabilities da sociedade mundial. O cidadão meio, é aquele cidadão que
participa de um governo, na sua condição de agente transformador e não
mero observador.
Dessa forma, ao elencar os pontos principais de políticas públicas vol-
tadas a efetivação do cidadão, ou seja, da participação digital do cidadão,
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 253

mesmo frente as dificuldades causadas pela pandemia, identifica-se algu-


mas problemáticas que impossibilitam a efetivação e a concretude do
cibercidadão, sobre as quais passe-se a discorrer.
É premissa mínima para a efetivação do cibercidadão um acesso glo-
bal a internet. Tratando-se do Brasil, um país continental, que ainda vê
pessoas sem saneamento básico, bem como, sem água tratada, o acesso à
internet não se torna uma das necessidades mais primárias da população
mais vulnerável, não só do interior do país, mas também dos grandes cen-
tros urbanos – metrópoles. Neste ponto, com o surgindo do cibercidadão,
aumentasse ainda mais o abismo das desigualdades sociais que já é tão
latente na sociedade brasileira.
A dificuldade de acesso à rede, fica evidenciada, na tentativa de im-
plantar o ensino remoto nas escolas públicas do país, enquanto que na
rede particular as aulas nunca pararam. O resultado que tem se obtido, é
um alto índice de evasão/não participação escolar. Veja-se que este alto
índice na maioria dos casos não passa pela vontade do estudante, é cau-
sado pela falta de acesso à internet e/ou de acesso a um equipamento
eletrônico, porque ainda se elitiza o ensino no país, ainda há um ensino
público de baixa qualidade, pouca infraestrutura e, principalmente, de
baixa eficiência no aporte de recursos tecnológicos.
Neste ponto, a desigualdade ganha enfoque pois a educação é o pilar
da estruturação de toda uma sociedade, uma educação de baixa qualidade
ou inexistente acaba reduzindo as chances de escolha do cidadão e, con-
sequentemente reduzindo sua participação comunitária e a transformação
social, nesse sentido, destaca Sen:

A ligação entre a liberdade individual e a realização de desenvolvimento social


vai muito além da relação construtiva – por mais importante que ela seja. O
que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportu-
nidades econômicas, liberdades políticas poderes sociais e por condições
habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento
de iniciativas. (SEN, 2000, p.19).
254 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Outrossim, analisando as consequências causadas pela pandemia ao


cidadão brasileiro, vê-se uma dificuldade no acesso às informações acerca
do Covid-19. Pois, há ocultação e omissão por parte do poder Executivo
Federal em fornecer as informações sobre o número de casos, número de
mortes e aporte de recursos no combate a pandemia. Restando necessário
que que a rede de consórcio de veículos de imprensa, contabilize junto as
secretarias estaduais de saúde esses dados e informe a população. De
pronto, o exercício da cidadania parte da premissa fiscalizadora do cida-
dão, o que está sendo dificultado pelas atuais medidas do governo federal.
Nesse mesmo compasso, o Congresso Nacional se mostra inerte as
dificuldades enfrentadas pelos brasileiros em tempos de pandemia. Cons-
tata-se que não houve uma política congressista em relação a garantir o
acesso a uma internet pública para pessoas vulneráveis, que necessitam
da mesma para o acesso à educação ou a tão falada telemedicina, tam-
pouco houve a tentativa de trazer à tona os verdadeiros dados da
pandemia, deixando o cidadão a mercê da mídia, e de informações pró-
prias extraoficiais.
No plano econômico, o auxílio emergencial, propiciado pelo governo
federal e ratificado pelo congresso, mostra-se uma ajuda necessária, po-
rém inócua quando comparada as reais e gigantescas dificuldades
enfrentadas pela sociedade na pandemia. A economia brasileira que já não
vinha bem nos últimos anos, de fato vem encontrando cada vez mais difi-
culdades para se reerguer, contudo, deve partir do governo políticas
efetivas para que o Brasil ressurja no plano econômico.
Muito mais do que somente aportar recursos, a economia precisa de
estratégias e gatilhos que alavanquem seu crescimento e tragam instabi-
lidade para o país. Porém, Sen, um dos idealizadores do IDH (índice de
desenvolvimento humano), descava a importância do crescimento econô-
mico vir acompanho do crescimento social e de uma melhor qualidade de
vida dos cidadãos.
O IDH, o qual rendeu a Sen o prêmio Nobel de economia, baseia-se
em um tripé que leva em consideração o PIB per capita, a educação e a
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 255

expectativa de vida ao nascer, do país, assim, chega-se ao índice de desen-


volvimento social de uma nação, rendendo a ela rótulos como
desenvolvidos, em desenvolvimento, ou subdesenvolvida. O IDH brasileiro
atual é 0,759 (dado 2018), de uma variante que vai de 1 (muito desenvol-
vido) à 0 (pouco desenvolvido).
Pelo IDH, positiva-se a teoria de Sen que um estado regulador e que
promove políticas públicas eficientes e concretas, melhora a vida da socie-
dade e, consequentemente, torna-se mais efetiva a participação do
cidadão. Tem-se visto durante a pandemia, a reinvenção de atividades e a
busca de pessoas pelo aprimoramento para entrar no mercado do traba-
lho. O home office, tem colocado em choque a legislação trabalhista
brasileira, bem como a tele entrega tem reinventado as relações de con-
sumo.
Neste caráter excepcional de estado, pode-se citar a alteração causada
pela Emenda Constitucional n. 107/2020, que trouxe uma importante
mudança para o efetivo direito do cidadão, o voto. Tal emenda, em vista
da crescente onda de contágios do COVID-19, autorizou a prorrogação das
eleições municipais de 2020 para o dia 15 de novembro, sendo a primeira
vez na história brasileira que tal medida é tomada, desde a promulgação
da Constituição Cidadã de 1988.
Não obstante, analisar os efeitos de tal medida frente ao exercício do
voto popular é ímpar para reconhecer e apontar as consequências na par-
ticipação cidadã na escolha de seu representante no poder executivo e
legislativo municipal. Outrossim, é cedo para falar nas consequências de
uma eleição em meio a pandemia, suspeita-se de uma redução no número
de votantes, principalmente entre idosos (que não são obrigados a com-
parecer), o que, por si só, já coloca em choque a efetiva participação do
cidadão no pleito.
Ademais, diversas adaptações necessárias no plano do Poder Legisla-
tivo, merecem destaque, no caso das Câmaras Municipais, Assembleias
Legislativas e o próprio Congresso Nacional, composto pela Câmara dos
Deputados e Senado Federal, modificaram sua forma legiferante e outros
256 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

trabalhos, pois com a redução do trânsito de agentes políticos nessas casas


da democracia brasileira, os meios digitais foram a solução para reunir os
parlamentares, a fim de aprovar leis que dessem continuidade da própria
vida coletiva, como foi a aprovação do Auxílio Emergencial, aprovação de
recursos para a saúde e outros tantos feitos importantes desse poder do
Estado.
No âmbito do judiciário, não foi diferente, em uma análise mais es-
pecífica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, também
reconhecendo os efeitos da pandemia em todo Brasil, foram necessárias
suspensão das atividades de atendimento ao público, cancelamento de au-
diências e outras medidas até que se observasse as melhores saídas. Em
alguns lugares optou se por um regime interno ou até mesmo fechamento
dos fóruns, com a instauração do trabalho remoto, que fez com que mui-
tos juízes batessem recordes de decisões/mês, tornou mais produtivo dar
sentenças do conforto do lar, mas por outro lado, levou a impossibilidade
do cidadão ao acesso à justiça, que com poucas informações não sabiam
onde recorrer.
Foram feitas, muitas adaptações necessárias e tentadas, para dar con-
tinuidade ao sistema de justiça, de realização de audiências, porém não há
como negar que as partes mais vulneráveis sentiram na pele a desigual-
dade processual. Pois, a baixa instrução somada as dificuldades de acesso
à justiça virtual, criou um abismo entre aquele que tem conhecimento e
um aparelho eletrônico capaz de conectá-lo com a justiça e aquele que mal
tem alimentos para passar a pandemia.
Na ânsia de tentar minimizar os danos, o Tribunal de Justiça do RS,
optou pelo sistema “CISCO WEBEX MEETINGS” que foi autorizado pelo
Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 314 de
20/04/2020, nos termos do Termo de Cooperação Técnica nº 007/2020,
por ser mais fácil de acessar que outras plataformas, já que não necessita
ter e-mail e ser possível acessá-lo sem maiores dificuldades de qualquer
aparelho telefônico. Qualquer aparelho, desde que tenha o sistema de
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 257

tecnologia android e internet para conexão, o que continua a limitar


parcela significativa da população.
No âmbito dos Juizados Especiais, criados pela Lei 9.099/95, que
apresenta como principais princípios a celeridade e a informalidade, o que
garante acesso das partes inclusive sem procurador, sendo umas das pou-
cas situações processuais que não se exige a presença do advogado, já que
este é considerado indispensável a administração da justiça, também so-
freu alterações legislativa, durante a pandemia. A Lei nº 13.994, de 2020,
incluiu no artigo 22, o parágrafo § 2º, que trouxe o seguinte texto:

É cabível a conciliação não presencial conduzida pelo Juizado mediante o em-


prego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens
em tempo real, devendo o resultado da tentativa de conciliação ser reduzido a
escrito com os anexos pertinentes.

Essa medida possibilitou a continuidade das audiências do Juizado


Especial, entretanto, freou as petiços redigidas a termo nos próprios bal-
cões dos cartórios dos juizados, por pessoas simples que não tinham
condições de arcar com honorários e vinham reclamar muitas vezes, pro-
dutos de pequeno valor comercial, como uma batedeira, cobrança indevida
de um serviço de telefonia, entre outros, que os próprios servidores aca-
bavam por abrir a ação simplificadamente.
Logo, muitos são os prejuízos para aqueles que são os mais vulnerá-
veis da sociedade, para eles a pandemia não foi apenas uma experiência
limitante no aspecto econômico e da liberdade, mas transcendeu a sua
forma de viver em sociedade e poder ter acesso a direitos, o que faz jus a
análise de Amartya Sen em relação as capacidades primárias, que qualquer
sujeito deveria ter acesso para poder garantir todo o restante.
Assim, uma sociedade participativa “[...] seria, então, aquela em que
todos os cidadãos têm parte na produção, gerência e usufruto dos bens da
sociedade de maneira equitativa. Toda a estrutura social e todas as insti-
tuições estariam organizadas para tornar isso possível” (BORDENAVE,
258 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

1994, p. 25). Não é o que se evidência durante uma crise sanitária-econô-


mica social. Apenas se confirma o precipício existente entre as distintas
realidades de um mesmo Brasil. Sem dúvidas,

O que se busca é promover a disseminação de ideias e o máximo de intercâm-


bios. Poder interagir com quem quer apoiar, criticar, sugerir ou contestar.
Como também driblar o monopólio de divulgação, permitindo que forças con-
tra-hegemônicas se expressem com desenvoltura, como atores sociais
empenhados em alcançar a plenitude da cidadania e a justiça social (MORAES,
2001, p. 128).

Precisa haver aqui um ativismo compromissado por parte de cada


um dos cidadãos, uma corresponsabilidade social com o uso e manuten-
ção da esfera pública, que:

Graças à nova rede de comunicação global, a própria natureza da cidadania


democrática passa por uma profunda evolução que, uma vez mais, a encami-
nha no sentido de um aprofundamento da liberdade: desenvolvimento do
ciberactivismo à escala mundial (notavelmente ilustrado pelo movimento de
antimundialização), organização das cidades e regiões digitais em comunida-
des inteligentes, em ágoras virtuais, governos eletrônicos cada vez mais
transparentes ao serviço dos cidadãos e voto eletrônico (LÉVY, 2003, p.30).

Só uma nação comprometida com o interesse coletivo e não mera-


mente com os interesses escusos dos poderosos se torna capaz de
germinar um espírito ou consciência de cidadania. Ou seja, um “país in-
dependente é aquele cuja população se sente compromissada com o
interesse nacional, e não com o interesse pessoal” de seus membros dire-
tivos. A partir disso,

Las redes de telecomunicaciones pueden conducir a una nueva ética <<cibe-


respacial>> que genere y estimule actitudes de conciencia coletiva sobre el
respecto de las libertades y de los bienes amenazados por una utilización in-
debida del ciberespacio, y contribuir a la formación de vínculos solidarios [...]
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 83).
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 259

Prezando, indistintamente, pelo reconhecimento dos direitos de to-


dos os cidadãos, concretizando e garantindo a inclusão das minorias e
excluídos. Pensa-se aqui na inserção dos excluídos tecnológicos a fim de
promover com o passar o tempo a participação plena dos cidadãos. Por-
quanto,

La posesión de derechos a partir de su reconocimiento y efectivización, incluye


como contrapartida el compromiso cívico centrado en la participación activa
en el proceso público que confiere un sentido de pertencia, en definitiva, un
sentido de comunidad que promueve em sus miembros la consciencia de ser
sujetos con derecho a tener derechos, y a fijar cuáles son los contenidos de los
derechos que pueden construir su horizonte de acción (PÉREZ LUÑO, 2004,
p. 53).

Esse reconhecimento passa pela consciência de uma inclusão justa e


plena de garantia de direitos e deveres sem distinção entre os cidadãos. O
que leva a crer que as novas tecnologias fomentam uma isonomia na rede.
Por outro lado,

Los investigadores coinciden en que las nuevas tecnologías, especialmente In-


ternet, facilitan la difusión y acceso a la información, aunque no siempre una
mayor información implica una mejor información. En este sentido, los ciu-
dadanos pueden encontrar dificultades a la hora de acceder a la información
tanto por el interés o disposición de los gobernantes e instituciones para faci-
litar la información como, por otro lado, por la posibilidad que tienen los
ciudadanos de dar con dicha información. [...] Por tanto, teniendo en cuenta
que las nuevas tecnologías podrán resultar útiles para impulsar un nuevo
marco de relaciones políticas de acercamiento entre los representantes y una
ciudadanía activa y motivada en forma de masa influyente y crítica, lo que se
pretende en la ciberdemocracia es que “el ciudadano opine y argumente, que
sea escuchado, que pueda acceder a la información política que viaja en la Red,
que pueda preguntar a políticos y a expertos, y, en definitiva, que pueda de-
batir en la arena pública sobre los aspectos de esa vida pública que le afectan”
sin perder el horizonte de que estas parcelas estarían accesibles únicamente
para aquellos ciudadanos activos, implicados en la política, dejando fuera al
resto de los individuos que quedarían excluidos de los procesos de participa-
ción (DOMÍNGUEZ, 2009. p. 32).
260 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Por fim, pode-se entender que “pueden concebirse a las NT, en par-
ticular, a internet como un nuevo tejido comunitário para la sociedad civil
o como un instrumento de sujeción universal” (PÉREZ LUÑO, op. cit, p.
100). Tudo vai depender da consciência com que cada indivíduo acessa as
informações disponíveis no ciberespaço e da maturidade político partici-
pativa que ele possui.
Cabe, ainda referir que é preciso superar a cidadania apenas como
uma única identidade:

Devemos compreender que as culturas indenitárias, como tais, são impasses.


Se conservamos dela apenas o aspecto indenitário, uma cultura não é, então,
nada além do que um grupo de pessoas que se imitam. Mas, sobretudo, fe-
chando-nos em culturas indenitárias, nos separamos dos que são diferentes,
e isso pela única e falsa razão de que eles nasceram (por acaso) em um meio
que comportava outros modelos de identificação, diferente do nosso. A imita-
ção não é um mal em si, pois ela é a base de todas as iniciações, de todas as
aprendizagens. Mas a imitação deve ser ultrapassada pela criação, e a identi-
dade pela abertura (LÉVY, 2001, p. 128).

Em síntese, pode-se dizer que uma sociedade conectada cria seus ci-
bercidadãos capazes de interagir uns os outros, com a governança e
progressivamente com o cosmo. Não sendo imprescindível para assegurar
sua cibercidadania que todos com quem se relacione sejam da mesma na-
ção, já que se pensa de modo cosmopolita a ideia de cidadania, sem
barreiras territoriais ou de identidade nacional. Da mesma forma que se
promove a inclusão de todos na rede, comungando de uma visão multi-
culturalista da cidadania, que por hora se demonstra mais a mais sã e
equilibrada dentre outras.
Assim, pode-se constatar que quanto mais efetiva é a política pública,
mais o cidadão assume a condição de agente meio e não fim. A construção
de uma sociedade mais justa, para Sen, passa por um olhar apurado para
as políticas públicas, não com o fim de evidenciar as incapacidades do
cidadão, mais sim de trabalhar suas capacidades, chegando assim, no
Vinícius Francisco Toazza; Leonardo Tozzo Cominetti | 261

agente que interfere em seu meio, e busca por si próprio reduzir as desi-
gualdades sociais, econômicas e políticas.

4 Conclusão

Nesse contexto, percebe-se uma fragmentação do princípio da cida-


dania, originário na Grécia antiga e que veio sofrendo alterações e
inovações ao longo dos séculos, porém ainda não foi capaz de adaptar-se
ao principal problema que assola a sociedade, as desigualdades.
As desigualdades no Estado brasileiro são uma constante, um dos
principais motivos, é não ter o Brasil passado pelo Estado Social, sendo
muito mais difícil romper com o abismo existente entre as classes sociais,
independente de havido em alguns governos políticas públicas mais favo-
ráveis para sua ruptura, a desigualdade persiste e é real.
É tão real que foi ainda mais evidenciada durante a pandemia da
COVID-19, que fez com que a sociedade buscasse no mundo virtual, a con-
tinuidade de uma “vida normal”, ou melhor, adaptável e possível. Mas, o
principal questionamento é quem pode gozar de uma vida mais próxima
a que tinha antes da crise sanitária, que virou econômica e afetou ainda
mais o social? Aqueles que ocupam os melhores lugares da sociedade foi
mais fácil a adaptação com o home office, pedir comida por aplicativos,
pagar contar pelo internet banking ou cursar normalmente seus estudos
acadêmicos ou seus filhos continuarem a estudar de forma remota. É fácil
quando já se têm uma boa conexão com a internet e excelentes aparelhos
eletrônicos, muitas vezes importados e de última geração tecnológica.
Mas, e aquela que fazia a higienização da casa dessa mesma família,
que exerce um trabalho mais de força física, como ela pôde alterar seu
trabalho para o home office? Será que os filhos dela que estudam na rede
pública tiveram acesso aos estudos? Sua rede de internet é capaz de su-
portar as novas exigências? Há aparelhos tecnológicos nessa casa que
permitam o
262 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

acesso as plataformas da escola? De uma reunião ou até mesmo para


fazer uma audiência virtual para buscar reparação de uma batedeira que
fora comprada com vícios? As considerações de Amartya Sen sobre vencer
as capabilidades, por meio de políticas públicas efetivamente concretas e
eficientes, é um dos poucos caminhos a serem pensados para visualizar
um futuro mais coeso e igualitário em um país continental como o Brasil.
Infelizmente, não tem sido norte de governantes que buscam instau-
rar novamente o voto de cabresto no povo brasileiro. A ascensão da
política liberal tem colocado em cheque o estado assistencialista, o Estado
que busca efetivar seu cidadão agente e dessa forma, partindo das capaci-
dades de cada região, buscar reduzir a desigualdade social e econômica. O
cidadão virtual é sem dúvidas uma alternativa qualificada e eficaz. De-
monstrou-se ser um caminho sem volta nessa pandemia, porém são
mecanismos para uma sociedade que busca combater as diferenças sociais.
Não há como se falar em cibercidadãos em um país que não possui
saneamento básico para todos, não possui políticas de incentivo a uma
educação de qualidade, que possa migrar ao ensino virtual e que ainda
detém uma elitização não só do ensino, mas da políticas de acesso às tec-
nologias da informação e comunicação. A pandemia despiu o país, tornou
evidente as velhas mazelas de uma sociedade que não investe ou investe
mal em educação. Apresentou em bom som que parte da população pre-
fere acreditar em salvadores mercantis do que cientistas.
Ídolos políticos são mais acreditados que médicos e profissionais da
saúde. E, o mais terrível, há aqui um solo muito propício para o cultivo
das Fakenews, o que demonstra que parte significativa da população não
evoluiu o básico para estar no mundo tecnológico, ainda há muito que su-
perar das capabilidades mínimas, antes de adentrar na sociedade pós-
moderna, onde o cidadão não é local, mas global e interconectado.

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16

A ideia de justiça:
vidas que a almejam

Daniela Welter 1
Thami Covatti Piaia 2

1. Introdução

É de conhecimento geral que vivemos em uma sociedade em que a


desigualdade social é facilmente visível. A desigualdade social consiste, na
maioria dos casos, na diferença econômica das pessoas, ficando assim,
maior poder econômico com pequeno grupo de pessoas. Percebe-se que
ao falar-se em desigualdade social, que existe uma divisão desses grupos
no meio em que estes habitam, como a minoria que comporta um maior
poder econômico sendo denominada de elite, e a maioria da população
daquele Estado/país, vivenciando uma realidade totalmente diferente.
Frisa-se que a desigualdade social não está somente concentrada em
poder econômico, ou como popularmente conhecido, dinheiro. Ela traz
como consequências, dificuldades para a vida daquele grupo social, como

1
Acadêmica do 6° semestre da Graduação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI
– Campus Santo Ângelo. Bolsista do Projeto “Cybberbullying nas escolas: informação e conscientização/Cybberbul-
lying nas escolas: perspectivas e desafios para alunos, professores e sociedade” nesta instituição. Endereço eletrônico:
danielawelter561@gmail.com.
2
Orientadora do artigo; Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Visiting
Scholar na Universidade de Illinois – Campus de Urbana-Champaign – EUA (2012). Professora na Graduação e no
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, Mestrado e Doutorado da Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões – URI -, Campus de Santo Ângelo/RS. Coordenadora do rojeto “Cybberbullying nas
escolas: informação e conscientização/Cybberbullying nas escolas: perspectivas e desafios para alunos, professores e
sociedade”. Endereço eletrônico: thamicovatti@hotmail.com
266 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

o acesso à educação, acesso à saúde, e também no acesso à justiça, sendo


esta representada no Brasil pelo poder Judiciário.
Percebe-se diante disto, uma realidade diferente para aqueles indiví-
duos que nascem e desenvolvem-se com uma situação favorável, e aqueles
que nascem em ambientes considerados inadequados.
A atuação do Estado diferencia-se também nesses grupos sociais. A
“elite”, acaba sendo privilegiada em diversos fatores do cotidiano, inclusive
no acesso à justiça, no entanto, o grupo social que não faz-se presente
nesta pequena parte da população que possui maior poder econômico, en-
frenta dificuldades neste acesso à justiça, ficando a mercê de um poder que
existe para ajudar e combater injustiças que existem em nossa sociedade.
Diante disso, percebe-se uma diferença no conceito de justiça para cada
ser humano, e se a mesma realmente existe e está presente na vida de
todos, ou apenas naqueles que possuem poder para tê-la.
Assim sendo, a presentes pesquisa objetiva discorrer sobre os fatores
mencionados e nas consequências que surgem na vida dos seres humanos,
como fatores de desigualdade social, oportunidades, conceito e acesso à
justiça, bem como a influência do meio em que o indivíduo está inserido
na sociedade. A metodologia adotada para a elaboração do artigo é dedu-
tiva, por meio de pesquisa em produções acadêmicas, científicas,
jurisprudenciais e em legislações.

2. Desenvolvimento

Vivemos em uma sociedade rodeada por injustiças. A desigualdade


social é um fator que causa diversas injustiças na vida dos indivíduos, tor-
nando como consequência destes fatores, dificuldades nos acessos aos
direitos básicos admitidos e previstos em lei.
As dificuldades geradas pela disparidade de renda sobre diferentes
grupos sociais, geram barreiras nos acessos à direitos, como por exemplo,
o direito à justiça, permanecendo uma imagem que esta beneficia somente
Daniela Welter; Thami Covatti Piaia | 267

aqueles que possuem condições de arcar com as despesas, bem como, fa-
vorece pessoas que somente agem em causa/benefício próprio. Sobre o
acesso à justiça, Vera Leilane Mota Alves de Souza discorre:

A Constituição Federal de 1988 traz expressamente tal conotação deste direito,


nos termos do art. 5º, XXXV, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Trata-se da demonstração
constitucional do princípio da inafastabilidade da jurisdição, o qual significa,
em linhas gerais, que o Estado não pode negar-se a solucionar quaisquer con-
flitos em que alguém alegue lesão ou ameaça de direito. Sendo assim, o
cidadão, por meio do direito de ação, vale dizer, direito de postular em juízo,
postulará a tutela jurisdicional ao Estado. Pode-se afirmar, portanto, que este
é o conceito de acesso à justiça sob uma perspectiva interna do processo, sinô-
nimo de acesso ao Poder Judiciário.

Com a legislação mencionada, entende-se que o Poder Judiciário não


poderá discriminar ou selecionar a quem vai prestar seus serviços, sendo
o acesso à justiça um direito previsto e assegurado em lei, onde todos os
cidadãos do Estado brasileiro poderão usufruir deste direito, possuindo
acesso ao processo e todos os meios que asseguram sua defesa (SOUZA,
2013).
Com o passar dos anos, as legislações, influenciadas pela Constituição
Federal de 1988, preocuparam-se em proporcionar aos cidadãos um maior
acesso à justiça, e com isso, um melhor acesso ao Poder Judiciário no Bra-
sil. Criou-se também, outras formas de acesso à justiça como Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, bem como a criação de instrumentos que tem
como objetivo a defesa de direitos coletivos (SOUZA, 2013).
A justiça, é conceituada como “aquela que é uma constante e firme
vontade de dar aos outros o que lhes é devido. A justiça é aquilo que deve
fazer de acordo com o direito, a razão e a equidade”, ou até mesmo “Justiça
é a particularidade do que é justo e correto”.
Diante destes conceitos, surge os questionamentos do que seria algo
certo ou justo para todos, haja vista que em nossa sociedade faz-se pre-
sente grandes injustiças, onde apenas um pequeno grupo de pessoas que
268 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

concentram a maior parte do poder econômico do país, beneficiam-se de


certos privilégios, que na verdade, deveriam ser direitos fundamentais que
todo e qualquer indivíduo deveria possuir, uma vez que mesmo assegu-
rado e previsto em lei, há dificuldades para alcançá-los.
Ainda, existe ao falar em justiça, uma primeira dificuldade sobre o
assunto, a sua definição. A justiça não resulta apenas do mero cumpri-
mento da lei, e sim, algo anterior à lei, sendo então, o que esta procura
atingir. A justiça vai objetivar a composição de interesses segundo os mé-
rito de cada pessoa, porém, com o fim de atender as necessidades de cada
um destes na medida certa. A justiça é a concretização da ética, o concílio
dos interesses diferentes, o pagamento pelo erro, e o prêmio pelo mérito
(BANDEIRA, 2017).
Para Bandeira, “justiça é um ideal - e, sendo-o, é necessariamente
uma utopia”. No entanto, pelo fato de a justiça ser um ideal a ser alcan-
çado, a mesma apresenta na realidade do cotidiano, ferramentas e uma
estrutura estatal regulada para ser alcançada, através de meios que garan-
tem uma decisão justa, imparcial e objetiva. O autor aborda ainda que,

É obviamente errado deixar de prosseguir a realização da Justiça, no dia a dia,


mesmo sabendo-se que essa prossecução ou realização não poderá deixar de
ser imperfeita, só porque se tem a noção de que a Justiça ideal é inatingível em
pleno, é necessariamente utópica. Fazê-lo seria condenarmo-nos a deixar me-
drar a injustiça, a violência, o arbítrio. A Justiça real é sempre e
inapelavelmente um menos em relação à Justiça ideal, utópica. Mas esse me-
nos é o que temos, o que conseguimos construir e que é indispensável que
possamos desfrutar - sob pena de sofrermos a anarquia do arbitrário.

Sobre os requisitos de justiça já mencionados na presente pesquisa,


Amartya Sen aborda em seu livro “A ideia de justiça”, que a justiça deve
estar ligada com a razão, imparcialidade e objetividade. Ainda, quando dis-
corre sobre o assunto de justiça e seus requisitos de imparcialidade,
objetividade e razão, percebe-se a importância destes fatores para o al-
cance da justiça em um caso concreto que está sendo analisado, haja vista
Daniela Welter; Thami Covatti Piaia | 269

que há diversos requisitos e formalidades que o julgador deve seguir na


fundamentação da sua decisão.
A desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, Kenarik Boujikian, discorre sobre a imparcialidade, assegu-
rando que esta é um dever do juiz.

Se o processo for julgado por juiz parcial não teremos um julgamento, mas
uma fraude, pois a imparcialidade compõe a própria jurisdição, não restando
outra alternativa senão reconhecer que aqueles atos não têm qualquer valor.
[...] Juiz que atua com parcialidade corrompe a jurisdição e mancha o Poder
Judiciário. Não se trata de uma questão que alcança exclusivamente as partes.
Estas são diretamente atingidas, mas a atuação parcial afeta o Poder e a de-
mocracia.

Com o exposto acima, extrai-se que a justiça e o meio pelo qual ela é
representada, no Brasil pelo Poder Judiciário, deve ser imparcial, para uma
decisão justa, sem o favorecimento de uma das partes, por fatores como
por exemplo foro íntimo, subordinação, ou entendimento pessoal do jul-
gador fora dos moldes da lei.
Sobre a importância da análise da justiça e da injustiça, bem como da
imparcialidade e parcialidade, Sen explica que: “A linguagem da justiça e
da injustiça reflete uma boa dose de compreensão mútua e comunicação
do conteúdo das afirmações e alegações desse tipo, mesmo quando a na-
tureza substantiva das alegações seja contestada depois de ser
compreendida”. Diante disso, compreende-se que é necessário entender as
duas versões das partes contrárias que estão buscando um determinado
resultado, sendo este decidido pelo órgão responsável, visando uma deci-
são justa. Cada ser possui a sua verdade, o seu ponto de vista, e cabe a
justiça, de modo imparcial, objetivo e ligado a razão, decidir qual o resul-
tado que melhor adequa-se às legislações vigentes no Estado em que estes
encontram-se.
Outrossim, em tratando-se de justiça e seu conceito, é indubitável
afirmar que cada pessoa tem para si o que seria justiça, podendo esta ter
sua concepção diante de cada ser humano e a realidade que este vive. Mas,
270 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

fica claro que todos devem ter acesso à justiça, uma vez que a justiça e a
injustiça estão presentes no cotidiano por meio das realizações dos seres
humanos. Sobre o tema, Amartya Sen:

Pode haver uma compreensão satisfatória da ética geral e da justiça, em par-


ticular, se ela se limita sua atenção a algumas pessoas e desconsidera outras,
presumindo – ao menos implicitamente – que algumas pessoas são importan-
tes enquanto outras simplesmente não? A filosofia moral e política
contemporânea tem ido de modo geral, na direção de Mary Wollstonecraft,
negando esta possibilidade e exigindo que todas as pessoas sejam vistas como
moral e politicamente relevantes. Mesmo que, por uma ou outra razão, acabe-
mos nos concentrando nas liberdades de determinado grupo de pessoas – por
exemplo, membros de uma nação, de uma comunidade ou de uma família -, é
preciso haver algum tipo de indicação que localiza tais exercícios restritos den-
tro de uma estrutura mais ampla e espaçosa que leve todas as pessoas em
consideração.

Ademais, assim como a busca pela justiça, a humanidade está em


uma luta constante para o melhoramento da vida das pessoas, buscando a
facilidade em diversos fatores que auxiliam no cotidiano e permitem uma
melhor qualidade de vida. No entanto, vivemos em uma sociedade em que
a desigualdade social faz-se presente na vida dos seres humanos, deixando
visivelmente claro que aqueles que possuem melhores condições, tendem
a ter um melhor acesso à direitos que todos os indivíduos deveriam ter,
independentemente de sua classe social, sexo ou etnia.
Segundo Benigno Núñez Novo:

O Brasil tem a maior concentração de renda do mundo. Quase 30% da renda


do Brasil está nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país, a maior concen-
tração do tipo no mundo. É o que indica a Pesquisa Desigualdade Mundial
2018, coordenada, entre outros, pelo economista francês Thomas Piketty. O
grupo, composto por centenas de estudiosos, disponibiliza um banco de dados
que permite comparar a evolução da desigualdade de renda no mundo nos
últimos anos.

Diante disso, é indubitável afirmar que o Brasil é um país que em


razão de concentrar maior poder econômico em um pequeno grupos de
Daniela Welter; Thami Covatti Piaia | 271

pessoas, contribui para a desigualdade social neste, onde a distribuição de


renda entre as pessoas dá-se de forma divergente e desigual. Esta diver-
gência da distribuição de renda acarreta em realidades totalmente
diferentes entre os grupos sociais. Todos as pessoas que residem no Estado
brasileiro, possuem direitos fundamentais previstos em legislações.
Em tratando-se de direitos que são assegurados aos indivíduos, a
Constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 6°: “São direitos sociais
a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à in-
fância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Sendo então, de garantia dos cidadãos brasileiros, estes direitos básicos,
porém, apesar de previstos na lei, é de conhecimento geral que estes direi-
tos não chegam à pessoas que realmente necessitam destes.
Como mencionado, importante destacar que com a desigualdade, há
um modo de vida diferente entre esses grupos sociais. Aqueles que estão
em um ambiente considerado inadequado para sua saúde e segurança,
possui dificuldades maiores em alcançar estes direitos básicos e funda-
mentais supracitados (SEN, 2011).
Ainda, o meio em que o indivíduo está inserido interfere em seu
modo de vida e na também na perspectiva desta, uma vez que, existem
grupos desfavoráveis que necessitam adequar-se ao ambiente em que está
inserido, sendo este não considerado adequado e seguro. Em consequência
disto, há que se discorrer sobre as oportunidades em que o indivíduo que
encontra-se nessas situações descritas acima possui. (SEN, 2011).
Percebe então, que a pessoa que vive nesse ambiente pode ter suas
ações e pensamentos influenciados por este, haja vista que “todos os fenô-
menos sociais devem ser explicados com relação àquilo que os indivíduos
pensam escolhem e fazem” (STERWART e DENEULIN),
Sobre o assunto, Amartya Sen:

É difícil então imaginar convincentemente que as pessoas na sociedade podem


pensar, escolher ou agir sem ser influenciadas de uma maneira ou de outra
272 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

pela natureza e pelo funcionamento do mundo ao seu redor. [...] Quando al-
guém pensa, escolhe e faz algo, certamente é a pessoa, e não outra, quem está
fazendo tais coisas. Mas seria difícil compreender como e por que ela realiza
essas atividades sem alguma compreensão de suas relações sociais.

A sociedade possui uma forte influência sobre o indivíduo que está


inserido nesta, moldando-o em suas ações e pensamentos de acordo com
a realidade que este ser humano presencia no cotidiano. A página Actuali-
dady Politica discorre que:

A influência da sociedade na formação da personalidade é enorme e não é de


modo algum impossível subestimar sua significância nesse nível. Mas no fu-
turo, isso não para. Observamos constantemente as regras de vida geralmente
aceitas ao escolher uma ou outra opção de interação com os outros e tentamos
fazer uma avaliação objetiva de seu comportamento de acordo com essas nor-
mas. Assim, a influência da sociedade na personalidade de uma pessoa
continua até o fim de seus dias. A sociedade pode executar e pode coroar. Ele
coloca etiquetas, de acordo com as quais nosso status e lugar na hierarquia de
outros similares são determinados. Tudo isso afeta os pontos fortes e fracos
de nossa personalidade, nos faz desenvolver a capacidade de se adaptar à si-
tuação, dependendo das circunstâncias.

Ainda, para André Barreto Lima,

O indivíduo é psicologicamente coagido a determinadas condutas ou pontos


de vista e uma vez que fuja a esses padrões, existe uma censura objetiva, que
parte da sociedade para com ele, excluindo-o do grupo social, ou ainda a cen-
sura subjetiva, onde o medo impera no subconsciente individual reprimindo-
o a determinadas práticas por não querer ser excluído ou visto negativamente
pelo grupo social em que convive. [...] Observa-se que o indivíduo é psicologi-
camente coagido a determinadas condutas ou pontos de vista e uma vez que
fuja a esses padrões, existe uma censura objetiva, que parte da sociedade para
com ele, excluindo-o do grupo social, ou ainda a censura subjetiva, onde o
medo impera no subconsciente individual reprimindo-o a determinadas prá-
ticas por não querer ser excluído ou visto negativamente.

As oportunidades podem entrelaçar-se com a liberdade, uma vez que


com a liberdade, o ser humano possui variadas formas de oportunidades
de escolhas e ações, bem como onde deseja viver sem que isto lhe esteja
Daniela Welter; Thami Covatti Piaia | 273

sendo forçado, e sim, pela sua própria consciência e vontade do ser hu-
mano (SEN, 2011).
Amartya Sen explica em seu livro, que uma pessoa pode realizar a
mesma ação estando coagida ou por livre escolha, o resultado final pode
ser exatamente o mesmo, contudo, a possibilidade que existe no meio
desta realização da ação é divergente, visto que, a pessoa quando não está
coagida ou forçada a algo, tem a total liberdade e a possibilidade de diver-
sas escolhas, de outra banda, se coagida em sua ação, esta não possui mais,
tais possibilidades, e assim, deve permanecer e fazer o que lhe foi exposto
sob pena de sofrer grave consequência. Com a liberdade, a pessoa pode
entender o que são coisas valoráveis para si. Pessoas têm vantagens indi-
viduais diferentes umas das outras, haja vista que esta relação está
fortemente ligada ao fato de que, quanto mais o indivíduo consegue reali-
zar, mais capacidade e liberdade de escolha este tem para ser livre.
Ainda, Pansieri discorre sobre o assunto nas perspectivas de Amartya
Sen.

Na obra A Ideia da Justiça, o economista indica duas razões para a liberdade


ser tão elementar ao desenvolvimento de um Estado. Em primeiro lugar por-
que o seu aumento proporciona maiores oportunidades de se alcançar os
objetivos pessoais e da sociedade em conjunto. No aspecto pessoal, por exem-
plo, um ambiente caracterizado pela liberdade ajudará aos indivíduos na
escolha do ambiente em que desejarão viver e, para tanto, possibilitará cami-
nhos diversos para a consecução daquele fim. A segunda razão se relaciona ao
processo de escolha, isto é, de que os cidadãos não serão forçados a acatar
determinado caminho preconcebido mas poderão deliberar acerca da melhor
maneira de se atingir determinada finalidade. Estas duas noções são denomi-
nadas por ele a partir de dois aspectos distintos: o aspecto de oportunidade,
isto é, relacionado com a conveniência para se fazer algo, e o aspecto de pro-
cesso, a decisão sobre o que se fazer e quando se fazer.

Em tratando-se de influência da sociedade no indivíduo inserido


neste, e também, que a sociedade molda-se e constrói-se pelos indivíduos
que fazem desta uma sociedade, bem como nos fatores de influência das
ações e pensamentos destes seres humanos, Flávio Pansieri, assevera que
274 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

“quando Amartya Sen trata do desenvolvimento, quer designar o processo


de expansão das liberdades reais que os indivíduos desfrutam”. Ou seja,
com a liberdade, os indivíduos possuem mais oportunidades de escolhas e
ações. No entanto, os indivíduos que encontram-se inseridos em um
grupo, como o próprio Amartya Sen asseverou “considerado inadequado”,
as possibilidades de oportunidades são menores daqueles que estão em
um ambiente considerado adequado e seguro.
Sendo assim, quando se fala em influência da sociedade no indivíduo
e assim como que a sociedade é o reflexo daqueles que a fazem sociedade,
há que falar-se que cada ser humano, diante da sua realidade social, do seu
grupo, sendo aqueles que estão em um ambiente considerado adequado
para sua saúde e segurança, ou aquele que não está em um ambiente con-
siderado seguro, tem para si, seus modos de pensar e agir. Possui então, o
seu raciocínio. Amartya Sen, tem em seu entendimento que:

O que é importante para o presente trabalho não é a suposição de que as pes-


soas sempre agem de forma racional, mas a ideia de que as pessoas não estão
completamente alienadas das exigências da racionalidade (mesmo que se en-
ganem de vem em quando, ou não consigam seguir os ditames da razão em
todos os casos). A natureza do raciocínio ao qual as pessoas podem responder
é mais central para este trabalho do que a precisão da capacidade delas para
fazer aquilo que a razão lhes dita em todos os casos, sem exceção. As pessoas
podem responder ao raciocínio não apenas no seu comportamento do dia a
dia, mas também na reflexão sobre grandes questões, como a natureza da jus-
tiça e as características de uma sociedade aceitável.

Quando fala-se em sociedade, ou comunidade, devemos compreen-


der que uma pessoa não é apenas parte de um grupo, esta pode ser estar
integrada e ser reconhecida como parte dele, porém, um indivíduo pode e
deve ter suas escolhas e capacidades individuais, assim como pensamentos
e ações não podem ser reconhecidos como apenas pertencentes a um mero
grupo social. Portanto, ao falar de justiça, nota-se a importância de anali-
sar que cada indivíduo possui a sua ideia do que é certo (SEN, 2011).
Percebe-se também que as pessoas são influenciadas pelo ambiente
em que estão inseridas, bem como nas ações que outras pessoas ao seu
Daniela Welter; Thami Covatti Piaia | 275

redor realizam, compreende-se que o meio o ser humano estão ligados e


são o reflexo um do outro (SEN, 2011).
Ao questionarmos sobre as desigualdades existentes na sociedade,
presume-se que está reflete as injustiças que se oportunizam na desigual-
dade na vida das pessoas. As diferenças da realidade da vida das pessoas é
imensa. Não pode-se propor um padrão igual para todos, deve haver a
equidade, para assim haver justiça. A igualdade em uma sociedade desi-
gual as vezes não é o suficiente para suprir esta.

3. Considerações finais

É indubitável afirmar que vivemos em um mundo desigual. A desi-


gualdade está presente em nossa sociedade nos grupos sociais presentes
nesta.
Existem grupos favorecidos, que são aqueles que vivem em um am-
biente considerado adequado e seguro, com as demais formas de
oportunidades para serem alcançadas, pertencentes a uma minoria da po-
pulação que concentra maior poder econômico no país.
Outrossim, considerando que a maior parte da população brasileira
que não enquadra-se nesse grande poder econômico e aquisitivo, vive a
experiência de uma realidade totalmente diferente. Este grupo social, pos-
sui menores possibilidades comparados ao exposto acima, visto que,
precisam adequar-se à sua realidade, que na maioria dos casos, o ambiente
em que estão inseridos não são considerados adequados.
Portanto, ao discutir sobre desigualdades e oportunidades, verifica-
se que há dificuldades nos acessos a direitos básicos como, acesso à edu-
cação, acesso à saúde e também, como discutido na presente pesquisa, o
acesso à justiça. Pessoas que presenciam e possuem uma realidade dife-
rente daquela conceitua atualmente como “privilegiada”, enfrentam
dificuldades e barreiras no acesso a direitos, mesmo estes sendo previstos
e assegurados em lei.
276 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

A justiça, conceituada como aquilo que é certo, justo, através do órgão


que a representa, deverá estar ligada com a razão, objetividade e imparci-
alidade para ser alcançada. Não poderá haver um padrão para o seu
resultado, haja vista que estamos em uma sociedade rodeada por injustiças
presentes no cotidiano e nas ações do ser humano.
Sendo assim, cada cidadão possui uma realidade, e esta deve ser en-
tendida e compreendida de que este terá o seu próprio entendimento sobre
o que é certo e justo. Ainda, o ambiente em que este está inserido reflete
as suas ações e pensamentos, bem como, suas infinitas, ou finitas possibi-
lidades.
Ainda, importante salientar que, quando discorre-se sobre oportuni-
dades e ambiente, bem como, nas desigualdades que existem na sociedade,
verifica-se que cada ser, influenciado pelo meio em que está inserido, além
de ter a sua concepção de justiça, vai possuir a sua linha de raciocínio, o
seu modo de pensar. Devendo ser compreendido que nem sempre os in-
divíduos vão pensar de modo como deve ser pensado, o raciocínio vai
derivar dos seus pensamentos e ações.
Ainda, percebe-se que se a pessoa está coagida, podendo ser esta co-
ação pelo próprio ambiente em que está inserida, vai possuir
oportunidades diferentes daquele indivíduo que não é coagido pelo ambi-
ente em que encontra-se. O resultado final das ações pode ser exatamente
o mesmo, porém, as oportunidades que podem surgir no meio para a ob-
tenção deste resultado, a pessoa que está sendo coagida pode não possuí-
la.
Conclui-se que precisamos buscar a justiça, ligada pela razão e im-
parcialidade para o melhoramento da vida em sociedade, analisando o
caso concreto do indivíduo que a almeja, não a tornando um padrão, mas
sim, uma análise e compreensão de todos os fatores que estão ligados a
este.
Daniela Welter; Thami Covatti Piaia | 277

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17

A violência escolar na perspectiva de alunos dos anos


finais do ensino fundamental de uma escola pública e
suas implicações para o desenvolvimento como liberdade

Livia Aquino Alves 1


Daniela de Figueiredo Ribeiro 2

1 Introdução

A violência entre os estudantes no contexto escolar tem sido um pro-


blema apontado por vários autores, sendo este um fator que demanda
atenção. Diante da queixa de violência escolar em um contexto público de
educação, se torna necessário compreender este fenômeno, preveni-lo e
transformá-lo visando a obtenção de uma educação de qualidade para os
alunos da rede pública brasileira.
A partir desse problema foi realizada uma pesquisa em um contexto
público de educação nos anos finais do Ensino Fundamental que apresen-
tava queixas quanto à violência escolar, objetivando a compreensão e o
mapeamento das violências presentes, verificando a perspectiva de alunos
dos anos finais do Ensino Fundamental, tendo em vista compreender as
diferentes situações de violência no âmbito escolar, levantar aspectos das
relações aluno-aluno e professor-aluno e favorecer reflexões que se refe-
rem aos modos de convivência dos alunos nesse contexto, relacionando à
teoria de Amartya Sen.

1
Graduanda em Psicologia, Uni-FACEF, pesquisa financiada pelo PIBIC CNPq, liviaquinoa@gmail.com.
2
Doutora e docente em Psicologia, Uni-FACEF, danifiribeiro@yahoo.com.br.
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 279

Os resultados obtidos por meio da análise qualitativa dos dados fo-


ram expostos a partir de suas três etapas, sendo elas: observações
participantes, entrevistas individuais e entrevista em grupo focal. Estes fo-
ram elencados e discutidos em três eixos teóricos: a naturalização da
violência, a violência institucional e suas decorrências e soluções cotidia-
nas para situações de violência.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a violência confi-
gura-se no exercício

[...] intencional da força física ou do poder, de modo real ou em ameaça, auto-


inflingida, interpessoal ou coletiva, que resulte ou tenha alta probabilidade de
resultar lesão, óbito, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou pri-
vação e o ato violento pode ser de natureza física, sexual, psicológica ou
negligência (OMS, 2002, p. 5).

Tendo em vista os dizeres de Libardi e Castro (2014), a conceituação


de violência tem sido utilizada para mencionar diferentes situações ocor-
ridas no âmbito jovem. Deste modo, segundo a concepção de violência por
Cruz e Maciel (2018) este é um fenômeno mutável e dinâmico. É possível
compreender, assim, que os significados de violência se adaptam e modi-
ficam conforme a sociedade fica mais complexa, no que se diz respeito a
seu avanço e reestruturação.
Portanto, de acordo com Silva (2013, p. 7), a “produção da violência
na sociedade como um todo e a produção da violência da escola, em espe-
cial, possibilita-nos dizer que está havendo uma relação direta na produção
da realidade brasileira cuja estruturação está sendo composta também
pela violência de uns contra os outros”, potencializando os ciclos dos me-
canismos reprodutivos do fenômeno violência e dos abusos que se referem
a este na escola e na sociedade.
A escola, enquanto instituição efetivamente participante na vida de
seus integrantes, demonstra necessidade de que seus objetivos sejam abar-
cados. “Nesse sentido o ambiente escolar é um local que, para além de ter
o encargo de educar e reportar saberes tende também a auxiliar no pleno
280 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

desenvolvimento dos alunos, a promoção de valores e relações interpesso-


ais” (SILVA et. al. 2018, p. 2).
No entanto, Bispo e Lima (2014) dizem que todas as formas de vio-
lência, contradições, relações de poder, conflitos de interesse, exclusões e
discriminações presentes na sociedade estão, também, presentes nas es-
colas e que, ainda, as salas de aula são invadidas por problemas sociais que
interferem na aprendizagem e que, deste modo,

[...] a escola é uma instituição que utiliza o poder disciplinar para o controle
social. No entanto, ao mesmo tempo em que ela produz corpos dóceis e sub-
missos, ela também produz comportamentos de transgressão, como forma de
não submissão às regras impostas (BISPO; LIMA, 2014, p. 6).

Além disso, Gouveia (1997) apresentou em seu estudo uma noção


lançada desde o início da década de sessenta que reforça a ideia de que
seria um importante agente para o desenvolvimento econômico o grau de
capacitação da força de trabalho e remetendo, assim, a uma preocupação
com a eficiência externa da escola. A atenção foi voltada, em parte, ao ren-
dimento do aluno, ao invés de seu comportamento, considerando o
“produto, em uma condição de profissional ou trabalhador e, além disso,
visando lucro. Reformas educacionais foram inspiradas pelo foco em fazer
da escola um recurso de desenvolvimento econômico” (GOUVEIA, 1997, p.
26). Assim, a escola, é entendida

[...] como fator de mudança social, por isso que levaria à modernização ou
racionalização, ou como instrumento de preservação da ordem vigente, por
isso que levaria à interiorização de crenças e valores que legitimam e perpe-
tuam as iniquidades sociais, a escola encontra-se assim sob fogos cruzados
(GOUVEIA, 1997, p. 28).

Apesar desta visão fazer parte de nossa sociedade Sen (2010) afirma
que não seria a solução o crescimento econômico simplesmente, afastando
as teorias que restringem o desenvolvimento, sendo àquelas que o limitam
ao crescimento econômico.
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 281

Ainda pensando desta forma, Goldin (2016, apud Mattos, 2017) traz
a concepção de que o desenvolvimento não está limitado ao crescimento
econômico e não pertence apenas ao estudo econômico. Ao contrário, o
próprio assunto se tornou objeto de estudo em sociologia, política, psico-
logia, geografia, história, medicina, antropologia, entre outras disciplinas,
se tornando interdisciplinar, e tem apontado rápida evolução.
Mattos (2017) diz que, considerando o desenvolvimento das capaci-
dades, a educação é um fator importante, tendo em vista que estas
possibilitam a concretização das liberdades substantivas, que são aquelas
que, sendo essenciais na realização de um indivíduo, não estão vinculadas
apenas ao acesso ao mercado ou ao crescimento econômico, dando impor-
tância às diferentes maneiras de relações e, ainda, considerando os direitos
civis e políticos importantes para uma atuação na sociedade, permitindo o
exercício de liberdade e a eleição de maneira efetiva e consciente sobre
aquilo que é importante e essencial para si, influenciando na perspectiva
da condição de agente, descrito por Sen, que está intimamente relacionado
às capacidades, às liberdades e ao desenvolvimento. Deste modo, as capa-
cidades são essenciais e decisivas no que se diz respeito ao fortalecimento
no desenvolvimento da sociedade e das potências humanas e da dimensão
da condição de agente. Sendo necessário, deste modo, promovê-las para
que haja tanto o desenvolvimento de seus integrantes quanto o bem-estar
destes, tendo em vista que é a partir dessas condições que uma atuação
efetiva e consciente se torna possível, considerando abrir caminhos, qua-
lificar a participação social e a importância do equilíbrio em uma sociedade
democrática.
Zambam e Aquino (2016), dizem que quando há oportunidade, por
meio da democracia, da participação social, com uma distribuição de poder
equitativa e promovendo condições melhores de desenvolvimento, há uma
ampliação de liberdades e um engrandecimento no que se refere às capa-
cidades humanas. Desse modo, poderão ser mitigados a fome, as
desigualdades, o desemprego, a miserabilidade, a exclusão.
282 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Amartya Sen, segundo Mattos (2017), compreende as capacidades


humanas como uma liberdade ao se efetivar uma combinação, ao escolher
dentre as possibilidades apresentadas pelo contexto econômico e social,
considerando o lugar em que vive. Ainda segundo Mattos (2017), a capa-
cidade humana é influenciada grandemente pelo apoio público,
especialmente no fornecimento de educação fundamental e saúde básica.
Considera-se, deste modo, que estas facilidades são fundamentais tanto
para o aproveitamento dessas capacidades quanto para a formação do in-
divíduo.
Desta forma considera-se a escola como amostra do social e, a consi-
derando como parte do todo, são expressados por meio dela a sociedade e
seu funcionamento.
Segundo Cruz e Maciel (2018) os participantes de seu estudo menci-
onaram que ministrar aulas e conteúdos não são os únicos fatores que
determinam um bom professor, mas o desenvolvimento de um contato
pessoal e a expressão de afetividade.
Para Ferreira e Pereira (2017), a relação dos alunos com seus supe-
riores está menos preocupada com uma relação de diálogo e se constitui
da atenção à disciplina. Assim sendo, um espaço para existência da parti-
cipação destes no contexto escolar não é favorecido. É possível considerar
que a participação dos estudantes em situações de violência está atrelada
a questões em que estes não definem o funcionamento da escola e não
afetam as decisões tomadas por aqueles que detém o poder, sendo estas
definições restritas.
Relacionado aos grupos, de acordo com Libardi e Castro (2014), o
funcionamento destes se dá de formas distintas à medida em que a ma-
neira de se relacionar é estabelecida, direta ou indiretamente, por seus
integrantes. Por isso, “os episódios de violência mais frequentes estão re-
lacionados a conflitos entre diferentes grupos de pares” (LIBARDI;
CASTRO, 2014, p. 7), pois “o revanchismo é necessário como forma de
reparação da imagem do indivíduo em seu grupo” (LIBARDI; CASTRO,
2014, p. 7), além de protegê-lo das violências e ameaças dos outros grupos.
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 283

Desta forma, anular a rede de violência já estabelecida implica em anular


sua aderência aos códigos grupais e o indivíduo só é, se faz parte de um
grupo.
Tendo em vista os funcionamentos grupais, segundo Zambam
(2012), as liberdades substantivas, o poder de escolha é uma essencial fa-
ceta. Deste modo, na ocasião em que é inexistente escapam às capacidades
sua importância, tendo em vista que não haverá alternativas ou escolhas
para que o sujeito se decida, não podendo optar pelo que é a si próprio
essencial, não contribuindo para o desenvolvimento da sociedade. Esta re-
alidade é presente em contextos onde há uma acentuada desigualdade,
falta de acesso à saúde, à infraestrutura, à segurança e à educação, além
dos demais serviços públicos básicos e, ainda, quando um sistema político
que seja democrático é inexistente, não assegurando os interesses pesso-
ais, grupais e institucionais.
Mattos (2017) em seu estudo relembra que no Fórum Mundial sobre
Educação em Dakar, em 2000, foram delimitados pela UNESCO pilares
imprescindíveis da educação, sendo eles: “aprender a conhecer, aprender
a fazer, aprender a conviver e aprender a ser” (MATTOS, 2017, p. 266). No
entanto, podemos observar que estas práticas não são comuns no contexto
escolar atual.
Silva e Ristum (2010) têm a perspectiva de que só se consegue com-
preender o fenômeno vivenciando-o dentro do âmbito das relações sociais.
Desta forma, não se deve deixar passar despercebido que todos os mem-
bros escolares, independente dos papéis que atuam, podem ser potenciais
vítimas e agressores, segundo Abramovay (2015).
Segundo Gouveia (1997), ainda que os requisitos ou as condições da
economia direcionem a critérios meritocráticos, universalistas, de em-
prego, o fator da desigualdade das oportunidades permanecerá, tendo em
vista que os sujeitos das camadas baixas, que comumente não atingem
graus escolares que prevalecem nas camadas mais favorecidas, irão con-
correr em situação de menos vantagem no mercado de trabalho.
284 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Entretanto, segundo Sposito (1998, p. 62), é necessário salientar que


“a violência nas escolas se dá, sobretudo, em áreas urbanas e não é restrita
aos bairros periféricos” e que, ainda, a maioria dos vínculos que são cons-
truídos no âmbito escolar advém das maneiras de sociabilidade de alguns
relacionamentos significativos com professores e da relação entre pares.
Para Sen (2010), cada vez mais temos capacidade de mantermos co-
nexão com qualquer parte do mundo e vive-se mais do que antes. No
entanto, no mundo contamos com privações, opressões e destituições.
Deste modo, é possível compreender que, ainda que contemos com con-
quistas tecnológicas, que são muitas e possibilitam uma perspectiva de
vida maior, não atingimos o estágio da tecnologia se estender por toda a
população do mundo. Ainda são existentes as segregações e privações para
parte da sociedade.
Segundo Zambam (2012), para a organização de uma sociedade con-
sidera-se a liberdade como um valor fundamental, além de caracterizar as
relações pessoais estabelecidas entre os indivíduos entre si, com os outros,
com as instituições, meio ambiente e futuras gerações. A ação humana,
diferenciada pelas perspectivas, dimensões e necessidades, se sedimenta e
se integra a partir de uma consistente experiência com a liberdade, pela
qual há dependência em relação à sua integração com a vida em sociedade
e realização profissional. Defender, garantir e promover a efetivação da
liberdade diz respeito ao tipo de vida escolhido pelas pessoas, conside-
rando aquilo que lhes é importante e a disposição das instituições na
sociedade. Ainda, buscando o exercício da liberdade, as pessoas conside-
ram a sociedade como um aspecto fundamental e essencial para sua
existência e, para tanto, os diversos aspectos são levados em conta, princi-
palmente aqueles advindos no contexto social e cultural onde vivem.
Tendo em vista a realização de cada indivíduo, Zambam (2012), diz
que as liberdades substantivas são essenciais. Considerando que não pos-
suem vínculo exclusivo com o acesso aos mercados e com o crescimento
econômico, se relacionam também às diferentes maneiras de interação so-
cial, inerentes à efetivação da condição de agente, e se relacionam com a
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 285

condição de vida dos indivíduos, especialmente no que se refere aos direi-


tos civis e políticos, indispensáveis na participação de uma sociedade.
Amartya Sen (2010) evidencia o contexto educacional

quando aponta como exemplo aqueles que não têm acesso à educação, os quais
são excluídos do mercado de trabalho e de atividades econômicas que exijam
qualificação; bem como o analfabetismo, que impede de participar politica-
mente por simplesmente não compreenderem jornais ou conseguirem
comunicar-se de forma escrita. Mesmo em países ricos, é comum haver res-
trição para determinada porcentagem da população no que tange a educação
básica, acesso a serviços de saúde, saneamento básico, água tratada, emprego
remunerado ou segurança social. Essas formas de privação da liberdade geram
morbidez desnecessária e mortes prematuras/evitáveis ( AMARTYA SEN,
2010, p.59).

Segundo Sen (2011), tendo em vista que as pessoas possuem vanta-


gens diferentes umas das outras, considerando as características do
contexto (social/natural) em que estão inseridas, se torna necessário con-
siderar as capacidades que estas conseguem desfrutar em sua totalidade.
Este se torna um importante argumento, embasando as capacidades em
relação ao foco que se dá sobre a renda, quando se consideram como sendo
ela centro os recursos. Deste modo, levando em conta as capacidades e a
ideia que se relaciona a elas, ligada à liberdade substantiva, lhe é conferido
um relevante papel na capacidade real de um indivíduo efetivar aquilo que
ele estima. Sendo esta uma abordagem que considera e foca na vida, que
é humana, e não nos recursos acumulados pelas pessoas.
Avanci, Pesce e Ferreira (2010), asseguram em seu estudo que, assim
como na infância, a fase da adolescência é de contínuo e intenso processo
de desenvolvimento e maturação, sendo uma experiência especialmente
difícil e muito particular da vida, a violência torna adolescentes e crianças
consideravelmente vulneráveis às suas recorrências e aos impactos nega-
tivos que decorrem delas.
Bispo e Lima (2014) afirmam o fato de que a escola passa a ser alvo
das ferramentas institucionais quando exclui e segrega sistematicamente
286 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

todos os que expressam comportamento discordante, implicando ao aluno


punições e vigilância contínua.
De acordo com Zambam (2012), as liberdades presentes em uma so-
ciedade se referem à maturidade social, econômica e política dela. Deste
modo, Mattos (2017) revela a possibilidade considerar um meio social de-
mocrático onde há liberdade de atuação, expressão, diferentes
pensamentos e opções, e onde as liberdades substantivas são capazes de
proporcionar maturidade na realização de escolhas dentro desta convivên-
cia, que possui múltiplas facetas, onde cada pessoa poderá ser capaz de
elencar o que é essencial para si.
Desta forma, tendo em vista os distintos tipos de liberdades elencados
por Sen (2010), sendo eles: “liberdades políticas, facilidades econômicas,
oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora”,
se vê necessária uma reflexão acerca de como a sociedade tem se relacio-
nado com seus integrantes e o desenvolvimento deles.
Tendo em vista que, de acordo com Njaine e Minayo (2003), o con-
texto de violência está além da responsabilidade de um só, segundo
Kappel, Gontijo, Medeiros e Monteiro (2014), ao assumir sua parte na res-
ponsabilidade, a instituição permite a superação de uma atuação
descontinuada e individualizada, sendo “fundamental promover relações
sociais positivas entre alunos e seus pares, assim como com os professores,
uma vez que essas relações podem, por si ou em conjunto, dificultar ou
facilitar o engajamento escolar” (VALLE; PEREIRA; PEIXOTO; WILLIAMS,
2018, p. 7).
Considerando os dizeres de Cruz e Maciel (2018) a reversão desta re-
alidade se tornará possibilidade quando o tema for discutido
continuamente. Sendo assim, segundo Bispo e Lima (2018), os resultados
indicam a necessária ampliação de recursos democráticos no contexto es-
colar, onde todos os atores escolares tenham a possibilidade de serem
respeitados e ouvidos em sua condição humana.
Desta forma, não se pode, tranquilamente, aguardar que determina-
das mudanças político-sociais gerem transformações automáticas nas
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 287

práticas escolares e sua orientação. Ainda que se possa idealizar que ocor-
ram conversões significativas nestas, é possível que dificilmente elas sejam
operadas sem que seja transformada a própria sociedade, de acordo com
Gouveia (1997).
Portanto, compreendendo que a “criação surge da transgressão, do
conflito, presente em todo grupo social” (BISPO; LIMA, 2014, p. 8), é nos
remetida à ideia de que é papel da escola dar abertura a espaços que cai-
bam a palavra e a promoção de estruturação de um sentido singular aos
estudantes, mesmo que dentro de um âmbito coletivo.
Considerando Mattos (2017), são muitos os incentivos, planejamen-
tos e esforços que buscam a melhoria da educação nas organizações
mundiais. A educação tem a possibilidade de decidir questões acerca de
problemas relevantes no mundo, atualmente. Para isso, a autora compre-
ende a necessidade na elaboração de políticas públicas que se
fundamentem em uma perspectiva global das sistematizações educacio-
nais. Além disso Mattos reconhece que a educação viabiliza a valorização,
o reconhecimento, o enriquecimento e a transformação de culturas, pro-
movendo sociedades que sejam pacíficas e assegurando a promoção da
empatia nas relações. Ainda, a educação por ser indispensável em oportu-
nizar inovação e tecnologia, controla-as e as influencia.
Desta forma, Amartya Sen (2010) coloca a liberdade como impres-
cindível no desfecho do desenvolvimento, considerando que o
“desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das li-
berdades reais que as pessoas desfrutam” (SEN, 2010, p. 17). Essas
liberdades viabilizam a ação humana nas mais diversas perspectivas,
sendo de indiscutível relevância na vida humana.
Desde modo, de acordo com Zambam (2012), agindo de maneira
ativa e autônoma o indivíduo na condição de agente transforma e possibi-
lita o equilíbrio nas relações, sejam elas sociais ou ambientais. Além disso,
principalmente relacionados ao contexto educacional, influenciam na su-
peração das dificuldades sociais, sendo capazes de proporcionar a busca
288 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

de melhorias nas condições de vida e em uma convivência mais justa e


equitativa.
Por fim, considerando Dahlberg e Krug (2007, p. 1164), ainda que “a
violência tenha estado sempre presente, a humanidade não deve aceita-la
como um aspecto inevitável da condição humana” pois, ainda segundo as
autoras, junto à violência existem outros fatores como sistemas filosóficos,
comunitários, legais ou até religiosos que se desenvolveram com a finali-
dade de limitá-la ou preveni-la.

2 Metodologia

A pesquisa se caracteriza como qualitativa de cunho etnográfico que,


segundo André (1995), trata-se de um estudo que abrange, além da coleta
de dados e da transcrição das informações apreendidas, a compreensão a
respeito dos comportamentos, crenças, práticas, hábitos e valores existen-
tes em um ambiente sociológico, contando com um pesquisador atuante
na interação com o contexto pesquisado, sendo afetado e afetando-o.
Os participantes da pesquisa foram estudantes dos 6º, 7º e 8º anos
do período da tarde de uma escola pública estadual. Foram realizadas seis
observações participantes, sendo duas delas em cada sala, com duração de
em média cinco horas cada e, posteriormente, seis alunos foram convida-
dos para participar de uma entrevista individual semiestruturada e uma
entrevista grupal, considerando o envolvimento destes em situações de vi-
olência, tanto como agressor quanto como vítima. Foram realizadas seis
entrevistas individuais, tendo em vista que com cada participante foi rea-
lizada uma entrevista, e uma entrevista em grupo focal com três dos
participantes, considerando que os seis foram convidados.
As observações participantes foram realizadas pautadas em um ro-
teiro previamente estabelecido, a fim de que informações acerca da data e
duração, da série dos alunos, do contexto onde aconteceu a situação de
violência, das práticas observadas e dos estudantes envolvidos nas ocor-
rências fossem registradas.
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 289

As entrevistas individuais semiestruturadas se concretizaram tam-


bém a partir de um roteiro. Os dados coletados se referiram ao sentimento
dos alunos antes de irem à escola, enquanto estão na escola e como se
sentem quando vão embora da escola, o que os chateia na escola e como
gostariam de ser tratados na hora da chateação, o que os deixam felizes na
escola e como gostariam de ser tratados quando estão felizes, o que os dei-
xam com raiva na escola e como gostariam de ser tratados quando estão
com raiva, se alguém os agride o que fazer e se veem alguém sendo agre-
didos o que fazem.
Por fim, a entrevista em grupo focal contou com três participantes
que, escolhendo duas das figuras apresentadas, representando situações
de violências que ocorrem na escola, discorreram suas perspectivas no que
se referem às situações de violência escolar, qual o sentimento trazido por
estas aos participantes, exemplos de como elas ocorrem, qual o papel de
atuação destes estudantes nas ocorrências dessas situações, como lidam
com elas e possíveis modificações na efetivação das mesmas.
Os dados coletados foram analisados segundo os moldes sugeridos
por Minayo para Análise de Conteúdo (2007) e a pesquisa foi aprovada
pelo Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos (CAAE nº
08975119.6.0000.5384).

3 Resultados e discussão

A partir das três fases da coleta de dados foram identificadas ocor-


rências de violências em diversos níveis considerando as agressões
relacionais (aluno-aluno/professor-aluno/equipe técnico administrativa-
aluno) e pela maneira como estas ocorrem, verbal ou fisicamente.
Os resultados obtidos se referem ao mapeamento de situações onde
ocorreram violências físicas e verbais, auto-inflingidas e negligência,
sendo percebidas nas relações aluno-aluno, professor-aluno e equipe téc-
nico-administrativa-aluno.
290 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Foram levantadas como soluções a punição, revidar a violência, a vi-


gilância, a culpabilização, a disciplina e, ainda, houve um questionamento
acerca de questões de gênero. Foi trazido como solução, ainda, recorrer a
ajuda de algum superior. No entanto, soluções que considerem tratar o
outro como gostaria de ser tratado, tratar bem, com respeito e educação,
fazendo-o feliz, foram também levantadas, considerando a ajuda dos pro-
fessores e orientadores. Ainda, com um espaço democrático estabelecido
na entrevista em grupo focal foram expressadas novas soluções, caracte-
rizadas pelo respeito ao diferente.
A partir dos resultados obtidos nas três fases da pesquisa, foram cri-
ados três eixos de discussão, sendo eles: a naturalização da violência; a
violência institucional e suas decorrências; e soluções cotidianas para situ-
ações de violência.
A naturalização da violência foi constatada nas observações partici-
pantes a partir de xingamentos como “Cala a boca!”, “retardada”,
“Burro!”, “idiota”, “imbecil”, que eram recorrentes dentro da sala de aula
e em diálogos como: “Larga de ser otário, fi”. Na entrevista individual um
participante disse que fica chateado na escola, “Quando os alunos fica fa-
zendo graça” e na entrevista em grupo focal, outro participante colocou a
violência vista como forma de brincadeira: “Nóis” acha que “nóis” leva na
brincadeira, mas “nóis” não sabe o que o outro sente”. Antes desta decla-
ração, o participante revelou que a violências ocorrem por meio de “Briga,
“porradaria”, xingamento” e que, apesar de que aconteçam “Direto” ainda
são vistas como naturais, o que legitima sua ocorrência.
Tendo em vista, ainda, a naturalização da violência, Kappel, Gontijo
Medeiros e Lima (2015) dizem que as brincadeiras estão presentes nas re-
lações entre os alunos com a finalidade de incluir, integrar e aproximar e
que estas são definidas pelo equilíbrio de diversão dos dois lados, ao
mesmo tempo que o desequilíbrio refere-se à violência, onde um lado é
constrangido e outro se diverte. As brincadeiras e práticas de violência são
vistas de forma conjunta e mal discriminadas pelos atores sociais nas re-
lações e situações escolares.
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 291

Uma cultura escolar que não diferencia bem brincadeira de violência


vai se constituindo no cotidiano escolar e a inclusão do estudante aos gru-
pos acontece na medida em que há a reprodução das condutas
estabelecidas, onde os participantes partilham do mesmo padrão de con-
vivência e, assim, invalidar as práticas de violência estabelecidas requer a
invalidação do consentimento dos princípios grupais.
Então, de acordo com Dahlberg e Krug (2007), determinadas causas
da violência podem ser constatadas facilmente, enquanto outras se encon-
tram enraizadas profundamente no tecido econômico, cultural e social da
vida humana, sendo mais difíceis de se tornarem conscientes. Observa-se,
ainda, a partir dos depoimentos, a não consideração do desenvolvimento
das capacidades na educação, conforme propõe Mattos (2017).
A realidade do contexto escolar e as ocorrências de violência conside-
radas naturais evidenciam a necessidade da compreensão do fenômeno.
Para Sen (2010), atuar neste aspecto se refere à capacidade de agir livre e
racionalmente considerando suas próprias perspectivas e visões de
mundo, sendo ampliadas a partir da prática das liberdades e de uma vida
autônoma.
Considerando a violência institucional e suas decorrências, foram
constatadas variadas situações que dizem respeito às relações de poder
existentes no âmbito escolar e aos sentimentos dos estudantes diante des-
tas relações.
Nas observações participantes foram evidenciadas situações que se
referem à violência institucional, como: uma professora, dizendo em tom
de superioridade, se referiu a uma aluna com a fala: “A partir do momento
em que a pessoa começa a ter atitudes horrorosas, nem nome ela tem
mais”. Uma outra situação observada foi: “Seus pais não aparecem aqui
pra nada. Seu caso já está lá indo pro Conselho Tutelar, tá?!”, disse a pro-
fessora para um aluno que se recusou a ir para o lugar. Uma distinta
situação, neste caso, foi quando uma professora, mostrando um caderno
para a sala, ameaçou: “A sala tem um caderno para anotar quem não faz a
lição. O caderno “tá” aqui”.
292 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Atentando-se a OMS (2002) a definição do fenômeno está relacio-


nada à intenção e à concretização da violência, independente do resultado
obtido e Dahlberg e Krug (2007) afirmam, além disso, que é possível que
haja uma grande discrepância entre a consequência e o comportamento
intencionais, onde o agressor, cometendo uma prática intencional, pode
não perceber desta forma.
Levando em conta as concepções de Abramowicz e Levcovitz (2005),
são diversas as produções educacionais que refletem o cotidiano escolar,
onde são excluídos aqueles que não estejam nos moldes estabelecidos, in-
dicando que a maneira de funcionamento da escola se dá como uma
máquina que produz pressuposições acerca da imposição do copiar para
aprender, sentar e calar, valorizando jeitos de ser determinados, acarre-
tando nas maneiras de pensar, brincar e falar. Os autores revelam, ainda,
que este mecanismo disciplinador produz e dociliza o corpo e, constru-
indo-o de novo, recorta o tempo, cria paladares, define papéis,
esquadrinha o deslocamento e vigia.
Para Sen (2010), apesar de no mundo atual contarmos com priva-
ções, opressões e destituições, um desenvolvimento possível acontece a
partir da liberdade, que viabiliza a ação humana por diferentes perspecti-
vas.
Na atual pesquisa, a situação em que o coordenador ameaçou os alu-
nos, reflete bem essa postura: o coordenador da escola entrou na sala,
desejou boa tarde ao professor e aos alunos e disse: “Estou passando para
avisar que estou chegando. Fiquem espertos” e alertou, ainda, que iria co-
locar a cadeira ao lado dos alunos para que eles estivessem atentos aos
seus comportamentos.
A violência institucional pôde ser observada, além disso, quando
houve o uso do poder que não explicita a violência em sua execução de
maneira óbvia, nas situações em que ela é sútil: um aluno pediu várias
vezes para ir ao banheiro, porém ainda não estava no horário e foi impe-
dido; um aluno perguntou para a professora: “Porque tem que ser a
lápis?”, considerando que tinha apenas caneta, e teve como resposta: “Por
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 293

que a professora pediu que fosse a lápis”, não explicando a orientação ou


oferecendo outra possibilidade para a concretização da atividade.
Por fim, considerando o último eixo, soluções cotidianas para situa-
ções de violência foram relatadas nas três fases da pesquisa. Nas
observações participantes os alunos mencionaram a suspensão ou “cha-
mar a polícia” e os professores citaram o conselho tutelar.
Nas entrevistas individuais, soluções para violência foram a disciplina
e a culpabilização, como na seguinte situação: um aluno que contou que
levou suspensão ao brigar com um colega e relatou: “Minha mãe falou um
monte, pegou meu celular, tirou meu computador, meu videogame e a bi-
cicleta e me deixou sem nada”, sendo a privação uma solução comumente
encontrada para lidar com a violência.
Na entrevista em grupo focal a culpabilização também apareceu
como solução para as violências, tal como pode ser observado no relato a
seguir: “Se o menino fosse mais magro, não teria muita “zoação” com
ele...”. No entanto, paralela à maneira como esta solução foi dada, a fala foi
complementada por outra participante com: “Ou se eles criasse vergonha
na cara e parasse de zoar”.
Apesar destas soluções para violência, foram pautadas, também, so-
luções como: tratar o outro como gostaria de ser tratado, tratar bem, com
respeito e educação, fazendo-o feliz também, sendo levantadas considera-
ções como pedir ajuda aos professores e orientadores.
Além disso, soluções mais dialógicas surgiram na entrevista em
grupo focal: “Cada um tem que fazer sua parte” e outra participante com-
plementou: “A pessoa que tem que sentir na pele o que é ser zoado e não
gostar, pra parar”. Outra participante, ainda, comentou: “Se a pessoa ti-
vesse no lugar da outra, ela não ia gostar. Então não faça com o outro o
que você não gostaria que fizesse a você”.
Deste modo, a partir de um espaço democrático vivenciado na última
etapa da coleta de dados, soluções cotidianas para situações de violência
foram levantadas pautadas em limites definidos pelo respeito e tolerância
às diferenças.
294 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Vê-se, assim, a relevância em evidenciar a educação como função que


possibilita compreender o mundo e que ainda, segundo Mattos (2017), fo-
menta a consciência de homem e de mundo e, por consequência, contribui
para a humanidade e seu desenvolvimento. Verifica-se, portanto, que uma

educação de qualidade atua em benefício da condição de agente e exerce papel


primordial para o desenvolvimento de uma sociedade mais democrática, mais
equilibrada e equitativa, que possua como norte os parâmetros de desenvolvi-
mento humano identificados por Amartya Sen (MATTOS, 2017, p. 277).

Mattos (2017), por fim, revela que considerar o meio social como de-
mocrático diz respeito à uma convivência onde há liberdade para atuação
e expressão, num contexto onde haja espaço para diferentes pensamentos
e opiniões, onde haja espaço para ser e agir.

4 Considerações finais

As violências escolares nos anos finais do Ensino Fundamental estão


presentes nas relações entre os estudantes, entre eles e os professores e,
ainda, na relação destes com a equipe técnico-administrativa.
Além disso, este fenômeno se dá por níveis e intensidades diferentes,
no que se referem às violências verbais, físicas, auto-inflingidas ou por ne-
gligência.
Foram levantadas, neste trabalho, questões acerca da violência, como
fenômeno que ocorre em intensidades e níveis que se diferem; da escola,
como amostra da sociedade enquanto instituição; da violência institucio-
nal e grupal, incluindo a relação professor-aluno e equipe técnico-
administrativa-aluno, considerando as relações existentes no âmbito esco-
lar para além da relação entre pares; do contexto social e a violência,
enquanto aspectos que se correlacionam no contexto escolar, a fim de que
sejam levantadas questões sociais que se relacionam às ocorrências dentro
da escola; quanto ao estudante adolescente, onde foram levantadas ques-
tões que se referem à etapa de vida dos alunos e à maneira como atuam
Livia Aquino Alves; Daniela de Figueiredo Ribeiro | 295

na escola; e, por fim, discutiu-se o enfrentamento das violências, que se


refere à possíveis ações para transformação da realidade existente.
Deste modo, as violências mapeadas foram as violências físicas e ver-
bais, auto-inflingidas e negligência e diante do tema os estudantes
mostraram naturalização, considerando muitas situações de violência
como brincadeiras ou como aspectos naturais no cotidiano escolar e foram
percebidas decorrências da violência institucional na relação aluno-aluno,
professor-aluno e equipe técnico-administrativa-aluno.
Os estudantes encontraram como soluções cotidianas para situações
de violência: a punição, revidar a violência, a vigilância, a culpabilização, a
disciplina, o questionamento acerca de questões de gênero e eles trouxe-
ram, ainda, que recorrer a ajuda de algum superior, mesmo que o auxílio
esteja ligado à vigilância e à punição, ou revidando a violência, são cami-
nhos possíveis para uma solução.
Por outro lado, soluções para violência pautadas em tratar o outro
como gostaria de ser tratado, tratar bem, com respeito e educação, fa-
zendo-o feliz, foram levantadas por meio das entrevistas individuais,
considerando a ajuda dos professores e orientadores. Além disso, a partir
de um espaço democrático vivenciado na entrevista em grupo focal, solu-
ções cotidianas para situações de violência foram levantadas, pautadas em
limites definidos pelo respeito e tolerância às diferenças.
Em síntese, os estudantes agem e percebem a violência de forma na-
turalizada, apesar de não se sentirem bem em muitas situações. Eles
sentem a violência institucional e reproduzem ou resistem a ela. Como so-
luções para a violência, eles trazem reproduções dos modos dominantes
na sociedade e na escola, como culpar e punir. No entanto, também apon-
taram saídas ligadas ao respeito às diferenças e se colocar no lugar do
outro, que implicam em novos modos de convivência. Decorre daí a im-
portância de se refletir sobre os valores que norteiam os modos de convívio
social e grupal, ampliando o exercício para níveis amplos e institucionais,
perpetuadores da cultura.
296 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Conclui-se que a violência escolar constitui uma privação de liber-


dade e, portanto, precisa ser compreendida e erradicada para que a
educação seja considerada de qualidade.

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18

Os dados pessoais e Amartya Sen:


a correlação entre o livre desenvolvimento da
personalidade e as liberdades substantivas

Salete Oro Boff 1


Wellinton Silva Gnoatto 2

1. Introdução

Os dados pessoais possuem um valor substancial na sociedade con-


temporânea. Eles demonstram padrões de comportamento que
movimentam a cultura consumerista e impactam diretamente na econo-
mia global, demonstrando ser um ativo financeiro almejado por muitos
empresários e empreendedores, além de possuírem o poder de perfilar os
cidadãos de modo a manipular os efeitos do uso desse instrumento.
Por esse motivo, as pessoas necessitam atribuir um novo conceito
acerca da relevância que atribuem aos seus dados pessoais, compreen-
dendo que possuem uma responsabilidade com a publicização de seus
gostos, preferências e registros governamentais – nesse sentido, a Lei Ge-
ral de Proteção de Dados – LGPD diferencia os dados comuns de dados
sensíveis, visto a inerente importância desses fatores para todas as áreas
do conhecimento.

1
Pós-Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Doutora e Mestre em Direito pela Universidade
do Vale dos Sinos (2000). É coordenadora e docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado - em
Direito da Faculdade Meridional (IMED). É professora da UFFS - Universidade Federal da Fronteira Sul. E-mail:
salete.boff@imed.edu.br; e
2
Mestrando e Graduado em Direito pela Faculdade Meridional – IMED/RS (2020). Advogado. E-mail: wgno-
atto.adv@gmail.com.
300 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Por conseguinte, o impacto dos dados pessoais implica direta no de-


senvolvimento de políticas públicas e das liberdades substantivas, fato
determinante para um modelo de justiça equitativo e competitivo segundo
o pensamento de Amartya Sen. A expropriação deliberada de dados pes-
soais afeta os meios de produção e o próprio sistema democrático de uma
forma sistematizada.
A pesquisa se justifica pela presença de elementos atuais e temas da
maior relevância para o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a
proteção de dados pessoais, com a superveniência da Lei Geral de Proteção
de Dados – LGPD (BRASIL, 2018), se tornou matéria de debate social, aca-
dêmico e corporativo, com a pretensão de alterar estruturas gerais de
forma sistemática, desde os meios de produção até a proteção aos dados
pessoais como direito fundamental.
Nessa ótica, Amartya Sen se justifica na presente pesquisa pela abor-
dagem com as liberdades substantivas e o valor atribuído às capacidades
individuais que são importantes para o desenvolvimento pessoal em um
modelo de justiça social equitativo, conforme preconizado por Amartya
Sen, e a inserção dos dados pessoais e sua inerente proteção nesse meio é
um passo relevante para o estabelecimento de um modelo de justiça social
eficiente e eficaz.
Nesse aspecto, utilizando-se do método de abordagem o hipotético-
dedutivo, e como método de procedimento o bibliográfico, amparando-se
em livros, doutrinas, artigos científicos e publicações em geral, a pesquisa
buscará responder o seguinte problema: A proteção dos dados pessoais
contém correlação, sob o entendimento de Amartya Sen, com os elementos
necessários para o pleno exercício das liberdades substantivas?
Outrossim, o objetivo geral do trabalho é definir se, através do exer-
cício das liberdades substantivas, a proteção dos dados pessoais possui
uma relação fundamental com a abordagem das capacidades de Amartya
Sen, demonstrando a relevância da temática no livre desenvolvimento da
personalidade das pessoas como direito fundamental e o impacto dos da-
dos pessoais em um modelo de justiça contemporâneo.
Salete Oro Boff; Wellinton Silva Gnoatto | 301

2. Os dados pessoais na era da informação e na Lei Geral de Proteção


de Dados – LGPD

Em dezembro de 2009, a empresa Google proporcionou uma revolu-


ção nas mídias digitais, com o início da era da personalização. Nessa data,
o site de busca anunciava que passaria a utilizar um novo mecanismo de
pesquisa, intitulado de “busca personalizada para todos”, que basicamente
utilizava 57 “sinalizadores” que variavam entre o local do usuário no mo-
mento da pesquisa, os termos pesquisados, o navegador, dentre outros
(PARISER, 2012).
A partir desse momento, toda a estruturação das mídias digitais pas-
sou a ser personalizada, e conforme oportunamente lembrado por Cathy
O’Neil, “[...] nós devemos nos perguntar não apenas quem projetou o pro-
grama, mas também o quê essa pessoa ou empresa está tentando realizar”
(O’NEIL, 2016, p. 24, tradução nossa)3. Afinal, por que a maioria desses
produtos são “gratuitos”?
Nesse sentido, é importante compreender que essa bolha de filtros
contém novas dinâmicas que são prejudiciais para o indivíduo, que podem
ser divididas, brevemente, em três: a) estamos sozinhos na bolha; b) a bo-
lha dos filtros é invisível; e c) nós não optamos por ingressar na bolha.
Portanto, quiçá existe o conhecimento da modulação personalizada das
notícias e informações – além disso, existe um severo agravamento em
face das fake news (PARISER, 2012, p. 11-12).
Somado a isso, integra-se uma pesquisa realizada pelas empresas
DataReportal e GlobalWebIndex, mostrando que pela primeira vez na
história mais da metade da população da terra utiliza redes sociais,
englobando 3,96 bilhões de habitantes, o que representa 51% dos seres
humanos. Além disso, a pesquisa esclarece que as pessoas utilizam em

3
Texto original: “[...] we must ask not only who designed the model but also what that person or company is trying
to accomplish.”
302 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

média 6 horas e 43 minutos dos seus dias na internet, o que pode significar
40% do seu tempo de vida4.
A democracia necessita a compreensão da visão do outro e de empa-
tia, entretanto, cada vez mais é ofertado aos cidadãos uma visão paralela e
ímpar sobre aspectos de convívio social, políticos, morais, entre outros.
Como o processo é silencioso e nada disruptivo, os usuários estão sob a
demanda das grandes corporações e de seus interesses.
Há cinco empresas que trabalham incisivamente com bases e análise
de dados, disciplinando a forma como nos relacionamos com o mundo.
São elas: a) Alphabet (participante do universo Google que possui o sis-
tema operacional Android); b) Amazon (notória pelos serviços de
streaming, e-books e smart speakers); c) Apple (fabricante de hardwares
com ecossistema próprio, como os iPhones e a Apple TV); d) Facebook
(também controlador das plataformas WhatsApp e Instagram); e e) Mi-
crosoft (criadora do Windows, sistema operacional de 90% dos
computadores do mercado), notoriamente conhecida (KISCHINHEVSKY e
FRAGA, 2020, p. 127-129).
É fundamental a compreensão de que essas empresas, apesar de seus
processos originários ocorrerem de forma online, se espalham para o
mundo real. É nesse sentido que Shoshana Zuboff indaga: se o Google é
apenas uma empresa que promove sites de busca, por que investe em dis-
positivos de casa inteligente, carros autônomos, entre outros? E, se o
Facebook é apenas uma rede social, por que está desenvolvendo drones e
métodos de realidade aumentada? Os dados pessoais estão sendo explora-
dos e extorquidos de todas as maneiras possíveis (ZUBOFF, 2019).
A Lei nº 13.709/2018 (BRASIL, 2018) define e conceitua o que é um
dado pessoal, disciplinando se trata de qualquer informação relacionada a
uma pessoa natural identificada ou identificável. Dessa forma, o diploma
legal possibilita as identificações que não são diretamente vinculadas à al-
guém, ou seja, com o big data e tecnologias de análise de dados, pode-se

4
www.datareportal.com. Digital 2020: Global Digital Overview. Disponível em:
<https://datareportal.com/reports/digital-2020-global-digital-overview>. Acesso em 23 set. 2020;
Salete Oro Boff; Wellinton Silva Gnoatto | 303

chegar a uma identificação de uma pessoa natural, ainda que não se obte-
nha nome, sobrenome, etc.

3. As liberdados substantivas e os dados pessoais

No objetivo de estabelecer um modelo de justiça amplo, Sen busca


delinear a capability approach, que, em tradução livre, significa “aborda-
gem das capacidades”. Dessa forma, as liberdades substantivas são meios
de busca e alcance de objetivos pessoais dos cidadãos, que não obtém duas
perspectivas atingidas com estatísticas frias e demasiadamente objetivas
como “renda” e “classe social” (SEN, 2010).
A liberdade é um fundamental e imprescindível por dois motivos: a)
mais liberdade gera mais oportunidades de alcançar objetivos individuais,
tudo que é valorizado pelo determinado indivíduo, relacionando-se com a
destreza para se realizar o que tem valor para si, e; b) é de extrema rele-
vância para o processo de escolha, obtendo-se certeza de que a atitude que
se escolhe não é forçada por terceiros, não há restrições alheias (SEN,
2011).
Com isso, a liberdade de escolha é o centro das alternativas para se
alcançar uma justiça social, um modelo de justiça geral, visto que diversas
circunstâncias – tais com local em que se habita, presença assídua dos pais,
escolaridade, cor da pele, etc., devem ser relevadas no momento de se ins-
tituir políticas públicas e sociais de combate à desigualdade, uma vez que
a privação de renda pode ser determinante para a privação das capacida-
des do indivíduo (SEN, 2001).
A importância maior para Amartya Sen se concentra na necessidade
de que haja condições para que as capacidades se desenvolvam, fazendo
com que o cidadão obtenha uma condição de agente ativo, devendo essas
condições serem a máxima da propositura estatal que se apresenta em
forma de políticas públicas (eficazes), com o indispensável aprimoramento
desses quesitos (ZAMBAM e KUJAWA, 2017).
304 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Referindo-se a Aristóteles, Sen destaca que nem Deus pode mudar o


passado. Entretanto, o futuro é moldado por nós e, dessa forma, é mani-
pulável, uma vez que tenhamos a racionalidade como base para a tomada
de decisão. Porém, para a tomada de decisão, é necessária uma estrutura
avaliatória apropriada, para que haja o enfoque de decisões nas medidas
que realmente possuem relevância impactante no modelo de justiça (SEN,
2010).
Nesse ponto, instiga-se a posição do indivíduo no ecossistema em que
se situa, de modo que:

A posição de uma pessoa num ordenamento social pode ser julgada por duas
perspectivas diferentes, que são (1) a realização de fato conseguida, e (2) a
liberdade para realizar. A realização liga-se ao que conseguimos fazer ou al-
cançar, e a liberdade, à oportunidade real que temos para fazer ou alcançar
aquilo que valorizamos. As duas não necessitam ser congruentes. (SEN, 2001,
p. 69).

Com essa intelecção, é possível concluir que a liberdade, referente à


oportunidade real de realização, é tão importante – se não mais – do que
a própria realização, considerando-se um sistema democrático como mo-
delo social. Nesse sentido, em seu livro “A Ideia de Justiça”, dedicado à John
Rawls em seu prefácio, Sen demonstra de forma mais detalhada a aborda-
gem das capacidades, contrastando-a às linhas de pensamento utilitarista:

Em contraste com as linhas de pensamento baseadas na utilidade ou nos re-


cursos, na abordagem das capacidades a vantagem individual é julgada pela
capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar.
Com relação às oportunidades, a vantagem de uma pessoa é considerada me-
nor que a de outra se ela tem menos capacidade — menos oportunidade real
— para realizar as coisas que tem razão para valorizar. O foco aqui é a liber-
dade que uma pessoa realmente tem para fazer isso ou ser aquilo — coisas que
ela pode valorizar fazer ou ser. (SEN, 2011, p. 197, grifo nosso).

É incontroverso que a liberdade é valor fundamental para a pessoa,


em sentido global. Entretanto, este valor moral necessita de circunstâncias
Salete Oro Boff; Wellinton Silva Gnoatto | 305

muito bem pré-estabelecidas e compartilhadas por líderes mundiais. Se-


guindo esse raciocínio:

O valor moral da liberdade e o direito fundamental de exercê-lo precisa ser


uma prerrogativa irrenunciável dos líderes comprometidos com a justiça so-
cial e critério para a sua legitimidade moral e jurídica para sua própria atuação
política. (ZAMBAM e KUJAWA, 2017, p. 69).

Para exercício da liberdade do indivíduo, importante referir o poder


e a necessidade da responsabilidade individual, que estimula a motivação
e a iniciativa para realização de projetos pessoais e sociais. Contudo, Sen
ressalta que, pontualmente, as liberdades substantivas são dependentes de
circunstâncias pessoais, mas também de sociais e ambienteis (SEN, 2010).
Portanto, o apoio social deve visar expandir a liberdade das pessoas
e deve ser um argumento a favor de uma responsabilidade individual, vi-
sando o estímulo e a ampliação desta responsabilidade, e não de sua
entrega à pessoa alheia ou entidade estatal (SEN, 2010). Para tanto, é ne-
cessário que haja a viabilidade de uma argumentação racional e,
principalmente, imparcial, como um elemento essencial da justificação dos
direitos humanos, mesmo que isso acarrete uma argumentação por vezes
ambígua e dissonante (SEN, 2011).
Nessa órbita, os dados pessoais se situam como uma das modalidades
individuais em que as liberdades substantivas, que são condicionantes à
um modelo de justiça social equitativo e ponderado, uma vez que sua de-
turpação pode gerar diversos óbices no âmbito moral e social da vida de
um indivíduo, acarretando no declínio de uma potencial democratização
dos meios de bem viver.
Nesse sentido, a própria Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção
de Dados – LGPD), disciplina em seu escopo o princípio da não
discriminação dos dados pessoais, disposto no artigo 6º, inciso IX,
referindo que: “Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais
deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios: [...] IX - não
306 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins


discriminatórios ilícitos ou abusivos.” (BRASIL, 2018, grifo nosso).
Mais do que isso, a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD disciplina
com distinção os denominados “dados pessoais sensíveis”, que baseados
pelo princípio da não discriminação, possuem um cuidado maior aos olhos
da Lei por serem entendidos pelo legislador que são passíveis de discrimi-
nação, sendo eles, conforme o artigo 5º, inciso II:

“[...] dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião
política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou
político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico,
quando vinculado a uma pessoa natural” (BRASIL, 2018).

Dessa forma, o cidadão, que é o indivíduo que possui direito a ter


direitos, desabrocha sua condição, motivo pelo qual talvez essa seja uma
das maiores dificuldades encontrada pelos Estados-nação na atualidade:
articular um ambiente favorável à realização da cidadania. É perceptível
que a organização social contemporânea escapa do controle autentica-
mente democrático e entrega os espaços públicos à regência de um
capitalismo predatório. A mansidão definitiva da cidadania implica assim
na finitude da participação política, ou seja, os espaços públicos, mais do
que nunca, encontram-se instrumentalmente voltados à realização indis-
criminada dos interesses econômicos (CAMPUZANO, 2000).
Contudo, a ideia de uma cidadania reconhecida como princípio
emancipatório da vida social é relativizada a partir do momento em que o
paradigma da modernidade se reduz ao desenvolvimento capitalista. As
sociedades modernas passam a vivenciar uma contradição entre o princí-
pio emancipatório, que aponta em direção à integração social, e os
princípios de regulação, que passam a reger os processos de desigualdade
e exclusão produzidos pelo próprio desenvolvimento capitalista (SANTOS,
2005). Logo, assegurar o exercício da cidadania torna-se uma tarefa árdua,
uma vez que as suas raízes se encontram assentadas em um solo infértil.
Essa infertilidade é produto de um processo de desigualdade progressiva
Salete Oro Boff; Wellinton Silva Gnoatto | 307

alicerçado pela inefetividade dos direitos humanos reconhecidos em âm-


bito internacional.
Nesse diapasão, de modo tradicional, o grande problema de um mo-
delo razoável de justiça e bem comum sempre foi a potencialização das
forças em apenas um lado da relação estabelecida, com o avanço das mai-
orias sobre as minorias, e este detrimento é prejudicial a um pensamento
baseado no valor moral da solidariedade, tornando-se um embate institu-
cional (STAFFEN, 2015).
Por esse motivo, a globalização se torna um tema de relevância ao se
tratar de proteção aos dados pessoais na ótica de Amartya Sen, pois
quando se trata da temática globalização, dificilmente se pode desassociá-
la da ideia de um espaço sem fronteiras. O desenvolvimento tecnológico
ampliou de forma significativa as redes de comunicação e as relações eco-
nômicas. Contudo, essa mobilidade nem sempre encontra respaldo
político na esfera de predomínio das soberanias estatais (GERVASONI,
2017).
A importância e ressignificação da proteção aos dados pessoais deve
caminhar de mãos dadas com a alteração de cultura social acerca do tema,
e nesse sentido políticas públicas podem e devem promover a conscienti-
zação acerca da monetização indevida de dados pessoais e sua
intercorrência com uma lógica de modelo de justiça social equitativo e ade-
quado com a perspectiva de um direito globalizado e em compasso com as
transformações inerentes à indústria 4.0 e seus aspectos.
Muito embora a concepção de uma economia globalizada, sem qual-
quer controle fronteiriço, tenha se solidificado, não é possível observar
essa tendência no que diz respeito ao reconhecimento e proteção de direi-
tos em um contexto global. Há um descompasso gritante entre aquilo que
se prega no âmbito econômico e as práticas supostamente democráticas
adotadas pelos Estados-nação. A exemplo disso pode-se mencionar a pro-
blemática da emigração diante do enrijecimento das fronteiras.
308 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

4. Conclusão

A proteção dos dados pessoais contém correlação, sob o entendi-


mento de Amartya Sen, com os elementos necessários para o pleno
exercício das liberdades substantivas?
A pesquisa buscou estabelecer traços que consignassem no desenvol-
vimento de uma lógica de correlação entre as liberdades substantivas e a
proteção dos dados pessoais, sob a ótica de Amartya Sen, empregando bi-
bliografias para que com o método hipotético-dedutivo, houvesse a
afirmação de uma hipótese.
Nesse sentido, importante ressaltar que o Brasil legislou acerca do
tema, e este progresso já é notório e possibilitou avanços sobre a proteção
dos dados pessoais e sua relevância no ordenamento jurídico brasileiro,
desencadeando uma onda de reflexão e guinada de chave cultural na soci-
edade como um todo, de forma sistemática. Os ditames da lei podem
atribuir novas perspectivas para o andamento da proteção dos dados pes-
soais e a relevância e os benefícios que podem prover dessa maneira de
agir por parte do Estado, o que corrobora o entendimento da necessidade
de um viés através da ótica de Amartya Sen e de um modelo de justiça
social equitativo.
De outra banda, os incidentes relacionados a segurança da informa-
ção vêm aumentando e, portanto, a legislação acerca da temática busca
trazer maior estabilidade para o atual cenário. Com entrada em vigor em
um contexto de instabilidade financeira em razão da pandemia da doença
COVID-19, as adequações podem ser proporcionais e a depender da de-
manda que irá se estruturar por parte dos titulares dos dados pessoais.
Portanto, é possível definir como uma das hipóteses de conclusão da
pesquisa que o estudo acerca da proteção de dados pessoais possui intimi-
dade com o tema do desenvolvimento da personalidade das pessoas – este
que por sua vez resguarda em si a característica de um direito fundamen-
tal, indispensável para o indivíduo aumentar suas capacidades individuais,
sua condição de agente e suas liberdades substantivas, sendo que o apreço
Salete Oro Boff; Wellinton Silva Gnoatto | 309

ao tema pelo Estado e sua consequente regularização são imprescindíveis


para o desenvolvimento de políticas públicas.
Foi possível concluir que a proteção aos dados pessoais inerentes ao
cidadão possuem correlação com a temática das liberdades substantivas
da doutrina de Sen, uma vez que seus elementos se disciplinam por meio
do estabelecimento de bases de direitos fundamentais, caso que já é possí-
vel vislumbrar ao se falar em proteção de dados pessoais.

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310 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

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19

Accountability e transparência a partir da Lei de Acesso à


Informação: contribuições de Amartya Sen

Dionis Janner Leal1

Introdução

Uma das características de responsabilidade é chamada transpa-


rência e boa governança corporativa, onde a necessidade da existência de
políticas de informações com acesso público é alimentada continuamente,
características essas que devem estar presentes no âmbito das repartições
públicas, como hodiernamente se percebe com a promulgação da Lei de
Acesso à Informação (LAI).
O presente estudo objetiva fundamentar a accountability como fer-
ramenta necessária para adequar o gestor público frente às disposições da
LAI e aos pedidos recebidos em face do direito à transparência, sob a ótica
de Sen, e abordar os mecanismos de responsabilização e prestação de con-
tas dispostas na LAI. Tem-se como problema a extensão da accountability
na Administração Pública e sua posição na organização administrativa a
partir da lei de acesso à informação: a lei estabelece responsabilidades pelo
seu descumprimento, mas que accountability interno e externo existem?
É fundamental que a accountability seja vertical (por intermédio da LAI) e
horizontal, a partir de uma Autoridade de Accountability (ou instâncias de

1
Advogado. Especialista em Direito Público. Técnico Administrativo em Educação no Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia Farroupilha. Membro do Núcleo de Inovação e Transferência de Tecnologia. Graduando em
Formação Pedagógica para Professores da Educação Profissional pela mesma instituição de ensino. Mestrando em
Direito e membro do GEDIPI, ambos pela Faculdade Meridional de Passo Fundo-RS. E-mail: dionislea-
ladv@gmail.com
312 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

direção) que apreciará e revisará cada pedido de acesso à informação plei-


teado pelo cidadão e dar-lhe-á a conformidade com a lei e os deveres do
gestor público, além de lhe ensejar prerrogativas ex officio para apurar
responsabilidades na inobservância da LAI em face dos agentes públicos
como accountability horizontal.
É a partir do debate público que teremos melhores retornos na efe-
tivação de políticas públicas – aliadas também a outros instrumentos
sociais, políticos ou legais (mídia independente, oposição pública, acesso à
informação).
No Brasil adotou-se a transparência dos atos governamentais a par-
tir da edição da Lei de Acesso à Informação (LAI), onde estabelece que
qualquer cidadão (LAI, art. 10) poderá solicitar informações, documentos
e direito de resposta a atos do governo (LAI, art. 7°), inclusive sobre pro-
cessos, atos de gestão e o seu não atendimento pelos agentes públicos
ensejam responsabilização administrativa e, quiçá, em sanção por impro-
bidade administrativa (LAI, art. 32, §2°) – mas como a accountability pode
contribuir?
Buscou-se pelo método dedutivo e com a técnica de pesquisa bibli-
ográfica, partindo-se da ideia de que, como regra, as informações
guarnecidas pelo Poder Público são públicas, a obrigatoriedade da identi-
ficação do usuário que pretende acessar informações não garante proteção
da identidade do requerente, o qual é passível de intimidação ou retaliação
por órgão estatal ou por agente público, comumente em comunidades pe-
quenas onde todas as pessoas têm conhecimento de quem é cada morador,
onde labora ou reside. Eis a conexão entre acesso à informação, proteção
de dados e a indispensabilidade da accountability.
A par das fragilidades da LAI, percebe-se que o próprio ente estatal
incorporou instrumentos de organismos privados como transparência,
governança e políticas de pessoal aliada a inovações tecnológicas como for-
mas de colaboração no combate a crises.
É necessário, entretanto, criar mecanismos de controles internos
efetivos – e não apenas oportunizar acesso ou aguardar controles externos
Dionis Janner Leal | 313

de órgãos fiscalizadores – ou de auditoria ou ouvidoria, mas que tenha


autonomia e independência, como a praxe privada requer nas implemen-
tações de programas de compliance, para que não se desvirtuam os atos
praticados dos ditames da lei, da transparência e da responsabilização, me-
diante a implementação de accountability horizontal de caráter
obrigatório.

1 Transparência e informação na Lei de Acesso (LAI)

A lei de acesso à informação oportuniza maior transparência e


acesso à informação, o que torna os atos governamentais com maior aber-
tura ao público e enseja o fomento da accountability (SEN, 2015, p. 158,
online). Contudo, não se pode confundir transparência com acesso à in-
formação.
Informações e comunicações demasiadas por si sós não ensejam
transparência, porque a massificação de informações não gera verdade, e
quanto mais informações liberadas mais não transparente (intranspa-
rente) torna-se o mundo, que no dizer de Han, “a hiperinformação e a
hiercomunicação não trazem luz à escuridão” (2017, p. 95-96).
É o que ocorre, por exemplo, com os portais de transparência2 onde
as informações de despesas, receitas, contratos e convênios estão disponí-
veis, mas é necessário um esforço por parte do usuário/cidadão em
interpretar as informações ali disponibilizadas sem considerar, ainda, que
os processos administrativos eletrônicos e físicos que originaram tais in-
formações permanecem com acesso restrito no âmbito da respectiva
repartição pública.
Alia-se a essa constatação a existência de desinteresse ou pouco uso
do direito de acesso à informação decorrer de fatores associados, como
pouca informação, custos de acesso, desnível de poder entre as pessoas e
as organizações (públicas ou privadas) e carência das informações forne-
cidas – muitas vezes as respostas a determinadas solicitações são parcas

2
Portal de transparência do governo federal: http://www.portaltransparencia.gov.br/
314 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

ou insuficientes – onde o futuro do direito de acesso dependerá da supe-


ração desses obstáculos (RODOTÀ, 2008, p. 68).
Na análise de Han, “transparência e poder não se coadunam muito
bem”, pois o poder prefere andar no oculto ao passo que a transparência
é que derruba a esfera oculta do poder, e que uma transparência recíproca
só haveria por meio de uma supervisão permanente (2017, p. 110).
A proposta de transparência de Han dispõe que se tem algo que não
é conhecido – não saber – há uma relação de confiança, e não de transpa-
rência. Diz-se isso uma vez que a “confiança só é possível em uma situação
que conjuga saber e não saber. Confiança significa edificar uma boa rela-
ção positiva com o outro, apesar de não saber dele; possibilita ação, apesar
da falta de saber.” A transparência remete a “um estado no qual se elimina
todo e qualquer não saber, pois onde impera a transparência já não há
espaço para a confiança” (2017, p. 111).
Logo, tem-se a transparência como resultado do acesso à informa-
ção – pois não há mais o não saber a partir do acesso –, a qual pode ser
ativa (ou proativa) ou passiva. Tem-se como transparência passiva aquela
onde o cidadão solicita informações por intermédio de um serviço de in-
formações disponibilizado pela organização pública “ao não localizar a
informação buscada”, ao passo que a transparência ativa3 é a própria dis-
ponibilização em portais de “transparência” de informações (ZAGANELLI,
et. al, 2020, p. 110).
A LAI promove a cultura da transparência ao prescrever como di-
retriz em seu artigo 3°, inciso IV, ou seja, não só oportuniza acesso à
informação, mas constrói uma cultura de transparência e de combate aos
excessos do poder do Estado (SEN, 2015, p. 163, online).
Em síntese, adotou-se a transparência dos atos governamentais a
partir da edição da LAI, na qual se estabelece que qualquer cidadão (LAI,
art. 10) poderá solicitar informações, documentos e direito de resposta a
atos do governo (LAI, art. 7°), inclusive sobre processos, atos de gestão. E

3
Sobre o tema, ver o Guia de Transparência Ativa do governo federal. Disponível em: https://reposito-
rio.cgu.gov.br/bitstream/1/46643/1/gta_6_versao_2019.pdf.
Dionis Janner Leal | 315

o seu não atendimento pelos agentes públicos enseja responsabilização ad-


ministrativa e, quiçá, crime de improbidade administrativa (LAI, art. 32,
§2°).
Trata-se, portanto, de ferramentas disponíveis aos cidadãos para
acessar informações de atos e políticas promovidas pelo Estado. Todavia,
os instrumentos normativos da LAI podem não trazer resultados imedia-
tos, porque a priori inexiste um controle sobre as informações que foram
prestadas ou não aos requerentes, até porque a lei, que prima pela trans-
parência (art. 3°, IV, da LAI), colabora para isso, criando empecilhos, como
exigência de identificação do requerente (LAI, art. 10), não colaborando
com a impessoalidade e proteção daquele que não pretende se identificar
para acessar informações públicas.

2 Accountability empresarial?

As organizações privadas também foram objeto de atenção na lei de


acesso à informação, imputando-lhe responsabilização por sua inobser-
vância (LAI, art. 33), o que vem corroborando com as exigências atuais de
transparência não apenas no setor público, isto é, apesar de tímida, a LAI
também se aplica a empresas privadas que em razão do vínculo com o
Poder Público disponham de informações.
O cenário atual onde as atividades empresariais são desenvolvidas
não dispensam uma relação mútua de confiança, boa-fé e boas práticas,
não apenas nas transações comerciais, mas também na imagem da em-
presa e de seus dirigentes para com seus colaboradores internos e a
sociedade.
Eram outros tempos em que as organizações privadas com fins lu-
crativos defendiam uma única responsabilidade como lhe sendo inerente,
a de “gerar lucros para seus proprietários e que só a eles deveria prestar
contas” (SEN, 2010, on-line). A opção em seguir o caminho íntegro força
o compromisso para com seus associados e o mercado de que somente
316 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

realizará negociações honestas, mesmo em condições de vantajosidade fi-


nanceiras tentadoras (GIOVANINI, 2018, p. 54).
Outrossim, espera-se que as empresas sejam encorajadas a partici-
par de leis de incentivos fiscal e/ou de fomento (cultural4, inovação5 etc.),
e ultrapassem essa posição, e atuem como empresas de alta responsabili-
dade social, tendo em vista o atual momento em que as pessoas exigem
mais das organizações privadas (SEN, 2010, on-line). Esse novo momento,
pode compreender por uma guinada cultural da população, que exige do
Estado e das organizações privadas que possuem poder econômico uma
conduta moral – para com as pessoas do local onde está inserida sua sede
ou campo de atuação profissional.
Existem seis características consideradas por Sen (2010) como es-
senciais para reconhecer uma empresa ou organização privada de
responsabilidade social: políticas de pessoal; transparência e boa gover-
nança corporativa; jogo limpo com o consumidor; políticas de proteção do
meio ambiente; integração com políticas públicas; aparência e execução
única de conduta. Para o presente estudo, atentar-se-á no que diz respeito
à transparência.
A transparência e boa governança corporativa traduz a necessidade
da existência de políticas de informações com acesso público e alimentadas
continuamente, a existência de mecanismos de intervenção pelos acionis-
tas, a existência de uma instância de direção com idoneidade e passível de
controle, além da abolição de conflitos de interesse (SEN, 2010, on-line),
características que devem estar (estão) presentes no âmbito das reparti-
ções públicas. A empresa ao adotar mecanismos de conscientização de seus
colaboradores internos e de terceiros acerca dos prejuízos (financeiros e à
reputação) oriundos de condutas desonestas (SCHRAMM, 2019, p. 131)
deixa clara a política a ser adotada pela empresa e por quem quiser aden-
trar e permanecer com ela.

4
Lei n° 8.313/1991.
5
Lei n° 11.196/2005.
Dionis Janner Leal | 317

Outrossim, cabe a organização responsável socialmente levar em


consideração todo o conjunto de seus colaboradores – o que inclui propri-
etários, acionistas e funcionários – inclusive, os clientes e fornecedores,
assim como terceiros que são afetados pelos impactos decorrem de suas
atividades e decisões institucionais (COSTA, 2011, p. 22).
A responsabilidade social empresarial:

[...] é uma reivindicação ética da sociedade, mas, ao mesmo tempo, a


forma de a empresa se reciclar para o século XXI. Um século no qual de-
verá prestar contas não apenas aos seus proprietários, como acreditava
Friedman equivocadamente, mas a todos os stakeholders, o que significa
seus próprios funcionários, os pequenos investidores, os consumidores, a
opinião pública e a sociedade civil em suas diversas representações. A crise
aguçou a necessidade de mudanças taxativas das concepções tradicionais
sobre o papel da empresa na sociedade (SEN, 2010, on-line).

É nesse campo que a responsabilidade social empresarial se insere,


no atendimento dos anseios da sociedade hodierna – que exige uma
contraprestação social de bem-estar – e quando possuírem vínculo com
órgão estatal sujeitar-se-ão aos ditames da lei de acesso à informação,
passível de controle da sociedade e do Estado, podendo ensejar, pois,
accountability.

3 Accountability na esfera pública e a lei de acesso à informação

Como observado, a efetividade da lei é dificultada a partir da exi-


gência da identificação do requerente de informações públicas ao órgão
que os detêm, onde o utente/cidadão é passível de intimidação ou retalia-
ção, bem como os custos de acesso, desnível de poder entre o requerente
e o detentor da informação, insuficiência nas respostas deferidas etc.
Todavia, a própria lei de acesso à informação disponibiliza – mesmo
que precária e timidamente – mecanismo de controle social (art. 3°, V),
318 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

prestação de contas (art. 30) e sanção – indireta6 – ao exigir a implemen-


tação de um órgão enquanto autoridade de monitoramento (art. 40 c/c
art. 41). No âmbito federal, o monitoramento ficou a cargo da Controlado-
ria Geral da União (CGU) que visa monitorar a implementação da LAI
quanto a informações estatísticas, ao cumprimento de prazos e procedi-
mentos (Decreto 7.724/12, artigo 68, IV e VI).
A lei de acesso à informação dá maior abertura para transparência
e fomenta a accountability, expressão que traduz a ideia de relações de
fiscalização e controle daqueles agentes públicos – sujeitos permanentes
ao monitoramento – responsáveis por tomadas de decisões e que estão
sujeitos a determinadas sanções (SEN, 2015, p. 16, online).
A expressão accountability privilegia ideias de controle, responsa-
bilidade e sanção, inerente à temática de prestação de contas (CABRAL,
CABRAL, 2018, on-line). O termo é “com frequência traduzido como ‘res-
ponsabilidade’, ou mesmo ‘prestação de contas’. É certo que accountability
envolve uma conceituação complexa, que não permite enquadrá-la em um
vocábulo único da língua portuguesa (ZIELINSKI, 2015, p. 100).
Ainda, Flávio Garcia Cabral destaca o debate existente quanto ao
conceito estrangeiro, prescrevendo que “a carga axiológica que o termo
‘prestação de contas’ carrega mostra-se variável a depender do idioma uti-
lizado e do conteúdo cultural ali aplicado. Em regra, a compreensão acerca
da prestação de contas remete à internação nacional do termo anglo-saxão
accountability” (CABRAL, 2015, p. 150).
Outra contribuição vem de Eurico Zecchin Maiolino, para quem o
conceito de accountability “implica que os atores a serem controlados têm
obrigações de agir de maneira consentânea com os standards aceitos de
comportamento e que eles serão punidos pelo não cumprimento”.
(MAIOLINO, 2018, online).
A exigência de prestar contas e a previsão de responsabilidades dos
agentes públicos está relacionada à Lei de Acesso à Informação (LAI), como

6
Diz-se sanção indireta uma vez que as sanções aplicadas a agente público pelo não atendimento das disposições da
LAI são pautadas por legislação esparsa, específica, como a de improbidade administrativa.
Dionis Janner Leal | 319

sendo uma medida jurídica destinada a assegurar a accountability (SEN,


2015, p 162). A legislação de acesso à informação corrobora com o dever
de prestar contas à sociedade dos agentes públicos, uma vez que disponi-
biliza a qualquer cidadão não somente acesso a documentos, mas sim a
pedidos de esclarecimento e informações a respeito dos atos e procedi-
mentos a serem executado pelo Poder Público (SEN, 2015, p. 163).
Para Sen, a norma de acesso à informação tem como escopo com-
bater a corrupção e promover a accountability (SEN, 2015, 164), e o
governo federal brasileiro deu um passo a mais, promulgando o mencio-
nado decreto regulamentador de governança pública. Importante
esclarecer que “a adequação de um sistema de accountability não pode ser
dissociada dos objetivos que estão sendo perseguidos” (SEN, 2015, p. 141),
ou seja, a entidade ou organização pública deve criar mecanismos de con-
trole, responsabilidades de seus agentes e prestação de contas condizentes
com os fins a que ela foi concebida.
A accountability é um mecanismo destinado a garantir a responsa-
bilização de agentes, sejam públicos ou privados, para prestar contas e pelo
resultado de sua atuação, incluindo as sanções que lhe são inerentes, ca-
racterizando-se a partir da existência de três requisitos essenciais:
transparência dos atos praticados; motivação na expedição dos atos; pre-
visão de sancionamento (SCHRAMM, 2019, p. 160-161).
Para Koppell, há cinco dimensões ou categorias de accountability: a
transparência, a responsabilização, a controlabilidade, a responsabilidade
e a capacidade de resposta, sendo que as duas primeiras são a sustentação
da accountability (2010, p. 34).
Considerando ser a accountability “um mecanismo relacionado
com a necessidade de controle por parte da sociedade em relação aos atos
do poder público (accountability vertical) e do próprio poder público em
relação a seus órgãos (accountability horizontal)” (PRADO, 2017, p. 53) a
lei de acesso à informação tem como papel oportunizar ambos os tipos.
O’Donnell foi um dos primeiros a estabelecer distinção de tipos de accoun-
tability, a horizontal e a vertical (MOTA, 2006, p. 34).
320 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Entende-se por accountability horizontal a existência de órgãos ou


entidades do Estado que possuem a prerrogativa institucional – atribuída
em lei – de agir em face de outros órgãos e entidades públicos, desde a
supervisão a sanções de caráter legal quando praticam atos delituosos
(O’DONNELL, 1997, p. 40).
A existência de accountability horizontal se dá por intermédio de
agências estatais que tem como prerrogativa legal a supervisão, controle e
sanção de outros órgãos e entidades estatais, além de autonomia, que não
se limitam a instituições clássicas dos três poderes (Executivo, Legislativo
e Judiciário), mas por vários órgãos de supervisão (O’DONNELL, 1997, p.
43).
Para Sen “a adequação de um sistema de accountability não pode
ser dissociada dos objetivos que estão sendo perseguidos” (2015, p. 141),
ou seja, a entidade ou organização pública deve criar mecanismos de con-
trole, responsabilidades de seus agentes e prestação de contas condizentes
com os fins a que ela foi concebida.
Tendo em vista a LAI contemplar diretriz para ser um mecanismo
de controle social, exigir prestação de contas e atribuir sanções a quem a
não observa, não instituiu uma autoridade que possua atribuições de su-
pervisão e independência como ocorre lei de acesso à informação Indiana
(SEN, 2015, p. 163).
A lei brasileira apenas arrola que a sua inobservância acarretará
responsabilização do agente privado7 enquanto que para o agente público
que não cumpriu com os ditames legais não há uma responsabilização di-
reta pelo órgão ou autoridade superior, deixando a cargo de órgãos de
controle (Tribunal de Contas e/ou Poder Judiciário) a aplicação de sanções.
Se conceber que a accountability possui essencialmente a capaci-
dade de impor sanção (KENNEY apud PRADO, 2017 p. 56) não teríamos

7
Lei n° 12.527/2011. Art. 33. A pessoa física ou entidade privada que detiver informações em virtude de vínculo de
qualquer natureza com o poder público e deixar de observar o disposto nesta Lei estará sujeita às seguintes sanções:
I - advertência; II - multa; III - rescisão do vínculo com o poder público; IV - suspensão temporária de participar em
licitação e impedimento de contratar com a administração pública por prazo não superior a 2 (dois) anos; e V -
declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a administração pública, até que seja promovida a reabili-
tação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade.
Dionis Janner Leal | 321

accountability vertical na lei de acesso à informação, apenas uma parcial


accountability, limitada ao controle social e à prestação de contas sem po-
der de sanção. Há, por outro lado, a partir da accountability horizontal,
por determinação da própria LAI (art. 32, § 2°), a aplicação de sanção por
atuação dos órgãos externos.
O monitoramento da aplicação da LAI por órgão superior não pode
ser considerado como accountability horizontal propriamente dito, uma
vez que lhe falta a característica sancionadora, tampouco o controle social
pode ser considerado accountability vertical, por lhe faltar a mesma carac-
terística. Pode-se argumentar, todavia, que os usuários a partir do acesso
à informação pleiteada possam tomar conhecimento de eventual irregula-
ridade e remeter a órgãos de controle para que apurem os fatos e, se for o
caso, aplique a correspondente sanção. Contudo, não se trata especifica-
mente de accountability.
A criação de uma agência estatal independente que tenha compe-
tência de supervisão, controle e sanção na aplicação da LAI, no respectivo
ente federativo, terá todas as características necessárias para ser concebida
como Autoridade de accountability do tipo horizontal, uma vez que nos
termos que se apresenta, o direito de acesso à informação não possui ca-
racterística de quaisquer dos tipos de accountability definida por
O’donnell.
Por outro lado, não está presente a accountability vertical no âm-
bito da lei de acesso à informação por não ter meios diretos pela LAI do
cidadão exigir à autoridade aplicação de sanção direta por inobservância
das diretrizes da lei, o que inviabiliza a sua caracterização nos termos da
doutrina nesse estudo apresentada.

4 Considerações Finais

Não somente os organismos e corporações privados estão sujeitos


a princípios éticos, de integridade, responsabilidade, controle e eficiência
322 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

no desenvolvimento de suas atividades para o fim de alcançar seus objeti-


vos institucionais, mas também órgãos e entidades públicas estão
interiorizando princípios e conceitos da iniciativa privada, isto é, do mer-
cado para otimizar e criar mecanismos que auxiliam e orientam as
diretrizes de atuação estatal por intermédio de seus agentes públicos, que
devem por natureza prestar contas e informações aos destinatários dos
serviços que prestam, até porque os titulares dos serviços e utilidades pú-
blicos é cada cidadão pertencente a determinado local.
A partir de promulgação de leis e atos normativos internos que bus-
cam dar resultados mais eficazes e modos de condutas e comportamentos
da organização pública e de seus agentes é que se inseriu no Brasil concei-
tos de responsabilidades e prestação de contas, conceitos privados como
accountability como resposta ao dever inerente de cada agente público de
demonstrar de forma transparente os atos que pratica e os resultados co-
lhidos.
A LAI fomentou a transparência das informações e promoveu a ac-
countability, inclusive para organizações privadas que possuem vínculo
com o Poder Público, exigindo-lhes transparência, prestação de contas,
responsabilização e passível de sanção.
Não obstante a disponibilização de informações em portais eletrô-
nicos de transparência pelos entes federativos, a dificuldade de interpretar
os dados disponíveis somados à carência na clareza das informações e de
interesse da população dificultam uma melhor accountability por parte
dos cidadãos.
Nesse estudo foi possível constatar que há dois tipos accountability,
a horizontal e a vertical, aplicáveis a órgãos públicos. Demonstrou-se a ne-
cessidade da instituição de uma Autoridade de Accountability em cada ente
federado como único meio de dar efetividade à accountability entre órgãos
públicos8 (horizontal) na aplicação da lei de acesso à informação, perma-
necendo a accountability vertical de execução precária por não ensejar ao

8
Sobre o tema ver: LEAL, Dionis Janner. Accountability no setor público sobre a perspectiva de Amartya Sen: do
estado eficiente ao estado de controle e gestão de riscos. In: LUCAS, Doglas Cesar et al (Orgs.). Direitos Humanos e
Dionis Janner Leal | 323

cidadão de, diretamente, aplicar sanções, mas por um órgão estatal que
possua essa prerrogativa.

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20

Liberdade, desenvolvimento e os fundamentos da justiça:


O encarceramento como uma política
utilitarista do Estado brasileiro

Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa 1


Thaynná Batista de Almeida 2
Lorena de Melo Freitas 3

1 Introdução

A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, também conhecida como Lei


de Execução Penal - LEP, possui, como um de seus objetivos, a ressociali-
zação do preso, ou seja, proporcionar condições para a harmônica
integração social do condenado e do internado, possibilitando o seu re-
torno à sociedade. Prevê, ainda, o respeito ao princípio da individualização
da pena e a separação entre os condenados e os presos provisórios. No
entanto a prerrogativa da integração social do indivíduo não se concretiza
e inúmeras violações a Direitos Humanos comumente ocorrem nas carce-
ragens brasileiras diante da ausência de assistência material, de saúde,
jurídica, educacional, social, religiosa do preso. Paralelo a isso, há práticas
como: torturas, maus tratos, exposição a diversas doenças infecciosas e

1
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB. E-mail: jessikasaraiva@gmail.com..
2
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB. E-mail: thaynna.ba@gmail.com.
3
Professora dedicação exclusiva da UFPB (Associada I), ensinando na Graduação (Hermenêutica Jurídica, Direito
Internacional Privado) e Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado (Metodologia, Teoria Geral do Direito).
Membro do GT Ética e Cidadania da ANPOF. Graduada (UNICAP), Mestra e Doutora (UFPE) em Direito. Desenvolve
pesquisas voltadas à atividade judicial. E-mail: lorenamfreitas@hotmail.com
326 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

conflitos internos entre gangues rivais que culminam em massacres como


o visto no ano de 2019 no presídio de Altamira, no Pará.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2015,
em sede de medida cautelar, reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucio-
nal (ECI), tendo em vista os inúmeros desrespeitos a direitos
fundamentais do caótico sistema penitenciário brasileiro. A aplicação do
ECI ao contexto brasileiro ocorreu por meio da Arguição de Descumpri-
mento de Preceito Fundamental (ADPF n.º 347).
Diante do exposto, este artigo tem como objetivo realizar uma dis-
cussão a respeito do sistema carcerário brasileiro observando em que
medida ele funciona como uma política utilitarista do Estado que não pos-
sibilita a ressocialização dos presos e promove a marginalização de um
determinado grupo social. O problema proposto por este estudo é: O en-
carceramento no Brasil funciona como uma política utilitarista? A hipótese
defendida é a de que ressocialização, conforme preceitua a LEP, não é apli-
cada no Brasil, não possibilitando o desenvolvimento do indivíduo, de suas
aptidões bem como a sua reintegração à sociedade. Sendo assim, o encar-
ceramento é uma política utilitarista do Estado que promove a exclusão de
um grupo que socialmente já é marginalizado.
O quadro teórico tem por marcos as obras “Justiça: o que é fazer a
coisa certa” de Michael J. Sandel que trata sobre o conceito de utilitarismo
e como ele se dá na prática; “Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação”, de Jeremy Bentham, que traz a teoria utilitarista sob um viés
quantitativo como uma forma de maximização dos prazeres humanos;
além da obra “Desenvolvimento como Liberdade”, do filósofo indiano
Amartya Sen, na qual os conceitos de liberdade e desenvolvimento estão
intrinsecamente relacionados, tendo em vista a ideia de que o desenvolvi-
mento requer que se removam as principais fontes de privação da
liberdade tais quais: pobreza e tirania, carência de oportunidades econô-
micas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e
intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. Esta pes-
quisa se insere nos campos do Direito e da sociologia.
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 327

No que diz respeito à metodologia adotada neste trabalho, será reali-


zada uma pesquisa de forma qualitativa descritiva, documental e
bibliográfica e será apresentada em três partes. Inicialmente, no primeiro
tópico, foi feita uma breve análise filosófica sobre o Utilitarismo. Em se-
guida, no segundo tópico, foram abordados os temas do Sistema carcerário
e da ressocialização, numa perspectiva comparativa entre o ser e o dever
ser. No terceiro tópico, o encarceramento é abordado como política utili-
tarista, na medida em que o desenvolvimento e a liberdade do preso só
podem ser alcançados quando seus direitos de assistência material, à sa-
úde, jurídica, educacional, social e religiosa são efetivamente garantidos,
possibilitando o processo de ressocialização e integração à sociedade.
A omissão por parte do Estado e a existência de prisões que são de-
pósitos de grupos excluídos, devido à seletividade punitiva do nosso
sistema carcerário que tem um público alvo em sua maioria de jovens ne-
gros e de baixa escolaridade, sem influência política e econômica junto aos
poderes constituídos, promove um desrespeito aos direitos básicos dos
presos (art. 41, LEP), visto que não são observados os direitos fundamen-
tais nem as assistências previstas na lei de Execução Penal. Revelando-se,
assim, uma política utilitarista do Estado que exclui aqueles considerados
inúteis.

2 Pressupostos filosóficos do utilitarismo

Afirma SEN (2010, p. 48) que nossas liberdades são diversas, ha-
vendo um processo de valoração explícita na determinação do peso
específico das diferentes formas de liberdade quando se contrapõe às van-
tagens individuais e ao progresso social. Em todo esse trato, encontra-se
explícito a valoração dos valores, isto é, a “seleção dos valores mais valio-
sos”, ainda que nem sempre isso seja feito explicitamente – aliás, na
maioria das vezes sucede implicitamente.
328 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Tal abordagem avaliativa é sempre feita tendo uma determinada


“base de informações selecionadas” (SEN, 2010, p. 80), cuja escolha de re-
pertório já envolve um critério de valoração prévia.
De outra parte, assevera SEN (2010, p. 83), caso se fale de uma qua-
lidade comum a qualquer teoria de justiça, ela há que ser compreendida
centralmente a partir da base informacional que leva a determinação do
que HARTMANN, em sua filosofia dos valores (1959, passim) chama de
valores valiosos.
É por isso mesmo que em outra obra sua, “Sobre ética e economia”
(1999), SEN tece uma argumentação que evidencia a absoluta necessidade
de um sistema montado em torno de pilares consequencialistas, isto é, que
manejem com as consequências práticas, operando em favor de um ‘sis-
tema consequencial’, incorporando a fruição, o gozo efetivo de direitos.

2.1. O foco do utilitarismo em Jeremy Bentham

Na obra “Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”,


de 1789, Jeremy Bentham apresenta a sua teoria a respeito do princípio da
utilidade, defendendo que as ações do homem estão baseadas nos aspectos
de dor e de prazer e que tais ações correspondem ao que for melhor para
a comunidade, devendo as medidas a serem tomadas pelos governos se
basearem à luz da utilidade que ela terá para todos, promovendo, reflexa-
mente, um bem-estar-social para a maioria das pessoas.
É importante notar que no sistema concebido por Bentham o prazer
e a dor são os únicos “bem e mal” a serem sentidos pelo homem, estando
todos os outros sentimentos relacionados ao prazer e a dor. Assim, Ben-
tham acredita que o homem age de acordo com a seus interesses para que
possa naturalmente fugir da dor e se aproximar do prazer. Nesse viés, para
o autor, o princípio da utilidade poderá ser formulado da seguinte forma:

Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desa-


prova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir
a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 329

em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a refe-


rida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não
somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qual-
quer ato ou medida de governo [...].O princípio que estabelece a maior
felicidade de todos aqueles cujo interesse está em jogo, como sendo a justa e
adequada finalidade da ação humana, e até a única finalidade justa, adequada
e universalmente desejável; da ação humana, digo, em qualquer situação ou
estado de vida, sobretudo na condição de um funcionário ou grupo de funcio-
nários que exercem os poderes do governo [...]. (BENTHAM, 1979, p. 4)

Nesse sentido, a teoria moral apresentada por Bentham visa a um


caráter universalista, afirmando que todos os homens tendem natural-
mente a fugir da dor e buscar o prazer, e que tal fato é a razão da existência
de todos os seres humanos. Para isso, Bentham parte de uma análise in-
dutiva, ao observar um determinado número de indivíduos para assim
atestar a tendência que o homem tem de buscar o prazer e fugir da dor e
que tais ações determinam as atitudes morais do indivíduo. Os atos ruins
ou considerados como imorais são aqueles que não tem como finalidade
buscar o prazer ou fugir da dor, sendo objeto do direito penal.
Assim, pela análise da teoria do utilitarismo trazida por Bentham,
pode-se perceber a presença de um caráter tanto individual quanto cole-
tivo na formulação do princípio da utilidade. No quesito individual, é claro
o entendimento de que o homem poderá fugir da dor e buscar o prazer,
enquanto no aspecto coletivo temos a possibilidade de maximização do
prazer e minimização da dor de todas as pessoas afetadas pela ação de um
indivíduo. Isso pode ser mais bem observado no âmbito do direito penal,
por exemplo, quando um determinado governante exclui da sociedade os
indivíduos que geram dor para o todo. Afirma Bentham:

A parte da missão do governo que consiste em punir constitui mais particu-


larmente o objeto da lei penal. A obrigatoriedade ou necessidade de punir uma
ação é proporcional na medida em que tal ação tende a perturbar a felicidade
e na medida em que a tendência do referido ato é perniciosa, [...] Como temos
visto, o escopo geral de todas as leis é evitar o prejuízo, isto é, quando valer a
pena [...]. (BENTHAM, 1979, p. 25)
330 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

O objeto do direito penal, sob uma ótica utilitarista, seria exatamente


promover a coação dos indivíduos que infligirem dor ao coletivo, fato esse
que poderá ser feito também pela ética. A punição deverá ocorrer de forma
proporcional, tendo em conta que nem todas as dores causadas por indi-
víduos podem ser passíveis de objeto do direito penal. Dessa forma, a
punição necessita de razões satisfatórias para a sua existência, ou seja, de-
verá produzir mais benefício para a comunidade do que a dor que é gerada.
Assim, uma pena que é excessivamente onerosa significa que o mal
causado por ela irá se adicionar ao mal que se quer impedir e então ne-
nhum benefício será gerado. Isso ocorre, por exemplo, na situação das
penas bastante onerosas para o estado que privam a comunidade de se
beneficiar de outros serviços que são por ele prestados. Nesses casos, há
outras formas de promover a punição sem que haja uma desproporciona-
lidade da onerosidade ao mal causado. A isso, Bentham afirmou que é
necessário agir com a caneta e não com a espada (BENTHAM, 1979, p. 65).
Destarte, pode-se concluir que a finalidade das ações deve ser levada
em consideração na teoria utilitarista de Bentham por meio de um equili-
bro entre prazer e dor. Outrossim, caso mais dor do que prazer seja gerado
para um determinado indivíduo inserido em uma comunidade, o princípio
da utilidade irá direcionar para a aplicação de uma punção legal que deverá
vir na medida da dor infligida para que não haja desproporcionalidades. O
Direito vem por meio do Estado aplicar as punições mais severas em que
tão somente a ética não seria suficiente.
Por fim, a ótica utilitarista de Bentham ainda trata sobre a questão
do utilitarismo atrelado à guerra, considerando que, para ele, os conflitos
entre as nações são inúteis na medida em que causam dores desnecessá-
rias a toda uma comunidade em detrimento do benefício que traz.
Exemplifica ressaltando os custos monetários que uma guerra traz para
uma determinada nação bem como as hostilidades que geram prejuízos
mais diversos entre as nações, prejuízos esses que seriam desproporcio-
nais aos benéficos que a guerra proporciona.
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 331

2.2 A teoria utilitarista de Michael J. Sandel

No livro “Justiça, o que é fazer a coisa certa, o filósofo Michael Sandel


traz diversas questões sobre a filosofia política que tem por base um
pensamento moral, com o objetivo de fomentar um pensamento crítico no
leitor sobre os diversos aspectos da vida coletiva como o que é justiça,
honra, virtude, moral, lei. Um dos questionamentos levantados diz
respeito sobre como deverá ser aplicada a justiça em uma sociedade. Para
isso, ele aponta três caminhos distintos: o utilitarismo, que realça o bem-
estar social como prioridade; o liberalismo que colocar a liberdade
individual no ponto central da discussão; e a virtude e finalidade da ação
política.
A primeira linha teórica apresentada pelo autor, o utilitarismo, que
já havia sido anteriormente discutida por outros filósofos renomados
como Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Para Bentham, como visto an-
teriormente, diz respeito a maximizar a felicidade e afastar a dor. Sandel,
por sua vez, elenca várias objeções a este pensamento filosófico tendo em
vista que o princípio da dignidade da pessoa humana deverá transcender
a ideia da utilidade e que os direitos devem ter uma base filosófica maior
do que meramente a sua utilidade dentro de um quesito social. (SANDEL,
2011, p. 63)
Além disso, ainda afirma Sandel que o utilitarismo se baseia em uma
questão moral daquilo que poderá ser considerado como felicidade, le-
vando em consideração que todos os valores possuem a mesma natureza
bem como o mesmo grau de importância para as pessoas. Sob esse prisma,
a obra de Sandel pode ser considerada como uma crítica à teoria utilitarista
de Bentham, impondo a necessidade de um cálculo moral mais elaborado.
Assim, afirma que é impossível transformar valores morais em aspectos
numéricos e monetários, considerando que alguns valores possuem mais
importância para algumas pessoas do que para outras, o que não possibi-
lita a noção quantitativa do utilitarismo que é trazido por Bentham
(SANDEL, 2011, p. 55).
332 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

Sandel ainda discorre sobre o pensamento moral de Stuart Mill, par-


tindo da constatação que esse pensador reformulou o conceito de
utilitarismo para dar um caráter mais humano e menos calculista do que
foi apresentado por Bentham. Mill afirma que a questão central da filosofia
utilitarista diz respeito a maximização da felicidade e da liberdade para
que cada um possa agir livremente conforme as suas convicções. No en-
tanto, Mill faz um importante contraponto: as pessoas devem ter liberdade
para fazerem o que desejam desde que suas ações não façam mal a outras
pessoas. Complementa ainda afirmando que os indivíduos só devem ex-
plicações a sociedade quando os seus atos atingirem a outras pessoas.
Além disso, Sandel afirma que para Mill é importante levar em con-
sideração o desenvolvimento humano além do mero caráter quantitativo
da busca pelo prazer, tendo em vista a existência da dignidade de cada um
bem como do caráter no momento da tomada de determinadas atitudes,
independente da utilidade que isso possa trazer ao indivíduo. Por fim, San-
del concorda com Mill na medida em que os prazeres morais que levam a
felicidade não devem ter uma base meramente quantitativa como aduz
Bentham, devendo haver também uma análise qualitativa que varia con-
forme os valores de cada indivíduo. Logo, a partir das ideias de Sandel,
podemos perceber um ideal de utilitarismo mais humanizado e qualitativo
se comparado com a ideia trazida por Bentham.
Na prática, Sandel traz uma nova discussão no que diz respeito aos
aspectos de aplicação da pena no âmbito do direito penal. Isso porque o
autor faz uma indagação de que se a tortura, por exemplo, seria justificável
para os casos de terrorismo, bastante comuns no início do século XXI nos
Estados Unidos. Sob a ótica do utilitarismo de Bentham, a tortura seria
plenamente justificável, sendo uma pena equivalente ao sofrimento que as
mortes por ataques terroristas causariam. No entanto, tal ideia é rejeitada
por Sandel, pois as informações obtidas por meio de tortura nem sempre
são confiáveis, acarretando, em contrapartida, dor a um indivíduo que não
necessariamente se transforma em algo útil para a sociedade (SANDEL,
2011, p. 52).
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 333

3. Entre o ser e o dever ser: o sistema carcerário e a ressocialização

3.1 A lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP)

O sistema carcerário brasileiro revela as condições sub-humanas e a


seletividade punitiva do nosso sistema carcerário que tem um público alvo
pessoas de baixa escolaridade, sem influência política e econômica junto
aos poderes constituídos. Trata-se, assim, de um desrespeito generalizado
aos direitos básicos dos presos (art. 41, LEP), uma dura realidade do nosso
sistema prisional.
No que se refere ao perfil sóciodemográfico da população carcerária
brasileira, à faixa etária, raça, cor e etnia da população prisional, a escola-
ridade e ao tipo penal, com dados divulgados pelo INFOPEN e confirmados
pelo NMP 2.0, a população prisional brasileira é composta por jovens ne-
gros de 18 a 29 anos, que ainda não cursaram o ensino médio, tendo
concluído, no máximo, o ensino fundamental, ou seja, grande parte de
nossos jovens estão encarcerados. Os crimes de roubo e furto são os que
apresentam maiores incidências seguidos pelos de tráfico.
Quarenta por cento de nossos presos são provisórios, não possuindo
condenação sequer em primeira instância, e se encontram aguardando
sentença e em alguns casos acabam cumprindo uma pena mais gravosa do
que a que seria cabível caso fossem condenados.
A não observância dos prazos processuais, da razoável duração do
processo além da morosidade na tramitação dos processos de réu preso,
da ausência de mecanismos legais de sanção para essas violações, da falta
de controle sobre o tempo de prisão destacam aspectos de um sistema pu-
nitivo seletivo e falido que não cumpre sua finalidade de ressocialização e
que se tornou um deposito de pessoas estigmatizadas e aliciadas para a
criminalidade em um campo de disputa de facções criminosas que coman-
dam a criminalidade de dentro dos presídios.
Outro aspecto que merece destaque é a superlotação e o encarcera-
mento em massa que no Brasil vem crescendo de forma assustadora. Caso
334 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

continuemos nesse ritmo crescente de 352,6 pessoas presas para cada 100
mil habitantes, logo ocuparemos o segundo lugar no vergonhoso ranking
de encarceramento no mundo, caminhando na contramão da tendência
mundial.
Ademais, a superlotação é notória, claramente constatável quando a
realidade é de 700 mil presos para pouco mais de 350 mil vagas. Esse é
um dos fatores que contribui para a violação de Direitos Humanos siste-
matizada que será abordada no próximo capítulo.
Em contrapartida a essa realidade vergonhosa do sistema carcerário,
do ser e do dever ser, a lei Nº 7.210/ 1984 (lei de Execução penal-LEP), que
deve ser aplicada tanto ao preso provisório quanto ao apenado na execu-
ção provisória ou definitiva da pena ou da medida de segurança, prevê a
individualização da execução da pena. Assim como ocorre na sentença (do-
simetria), na execução cada condenado possui um processo de execução
individualizado, consoante ao princípio da individualização da pena, uma
vez que a execução penal é um novo processo de caráter jurisdicional e
administrativo que tem como fim colocar em prática as disposições da sen-
tença ou da decisão judicial e proporcionar condições para a harmônica
integração social do preso, ou seja, sua ressocialização.
Nesse sentido, os artigos 5 e 84 da LEP com base no princípio de
individualização da pena, dispõem que o preso provisório ficará em celas
separadas do condenado por sentença transitada em julgado. Na prática,
contudo, essa separação não é feita, os presos provisórios são misturados
aos que possuem condenação definitiva e os presos definitivos não são se-
parados de acordo com a gravidade do delito, seus antecedentes e
personalidade, para orientar a individualização da execução penal. Res-
salte-se que devem ser garantidos ao preso todos os direitos não suspensos
pela sentença, tais como assistência à saúde, judiciária, educacional e rein-
gresso ao trabalho, conforme os princípios Reeducativos ou da
Ressocialização e princípio da Humanização das penas, ambos com ali-
cerce na Dignidade da Pessoa Humana.
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 335

Além desses princípios, a separação dos condenados dos presos pro-


visórios tem como base a presunção da inocência e tal princípio é objeto
de grandes discussões na atualidade apesar de expressamente previsto na
Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVII que dispõe ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal con-
denatória. Persistem grandes debates jurídicos não a respeito da sua
existência, mas sim quanto a sua interpretação.
A presunção da inocência é prevista também em vários diplomas in-
ternacionais de Direitos humanos, na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional francesa, em 1798, em
seu artigo 94, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada e
proclamada pela 183ª Assembleia da Organização das Nações Unidas, em
19485em seu artigo XI.
Ao incorporar ao nosso ordenamento tais diplomas internacionais, o
Brasil assume a obrigação de promover um sistema criminal que observe
as garantias legais e os Direitos Humanos como a presunção de inocência,
e de garantir, em sua ordem interna a aplicação desse princípio, sob pena
de descumprimento desses compromissos internacionais.
Diante do contexto brasileiro, de sua realidade histórica, social, polí-
tica, cultural, das dificuldades de materialização de nossa Constituição e
consequentemente dos direitos fundamentais nela positivados, o STF jul-
gou a cautelar da ADPF 347 que será explorada no próximo tópico.

3.2 A ADPF 347 e o Estado de Coisas Inconstitucional

A teoria do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) foi adotada recen-


temente pela nossa Suprema Corte Constitucional que analisou a ADPF347
em sede de cautelar e concedeu alguns dos pedidos solicitados.

4
Artigo 9º- Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo,
todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.
5
Artigo XI 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas
todas as garantias necessárias à sua defesa.
336 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

A teoria do Estado de Coisas Inconstitucional surge na corte Consti-


tucional da Colômbia, em 1997, conferindo poderes à Suprema Corte do
país para corrigir essas situações de violações sistemáticas aos direitos fun-
damentais.
Ao declarar o ECI, além de defender os direitos do grupo envolvido,
a corte procurou proteger as dimensões objetiva e subjetiva dos direitos
fundamentais, a efetividade e a supremacia da Constituição Colombiana.
Apesar de ter sua origem na Colômbia, ela não foi o único país a reconhe-
cer esse instituto do Constitucionalismo Contemporâneo.
A aplicação dessa teoria ao contexto brasileiro e o reconhecimento de
forma parcial pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ocorreram em maio
de 2015, por meio da ação Arguição de Descumprimento de Preceito Fun-
damental (ADPF 347) proposta pelo Partido Socialista e Liberdade (PSOL),
na qual se postulava pela declaração que a situação atual do sistema peni-
tenciário brasileiro violava preceitos fundamentais da Constituição
Federal – diversos direitos fundamentais dos presos – e, em razão disso,
requeria-se que o tribunal determinasse providências com o objetivo de
sanar essas graves lesões aos direitos dos presos.
A ação supramencionada teve como base a representação formulada
pela Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio
(UERJ) e o parecer do Professor Titular de Direito Penal da universidade,
Juarez Tavares, bem como documentos que atestavam a dramática situa-
ção das prisões brasileiras.
Tratou-se de uma pauta impopular, de uma minoria estigmatizada
que, segundo o senso comum, perde sua dignidade e direitos em virtude
da prática delitos. Pelo fato de os poderes políticos ignorarem essa reali-
dade, não há sensibilidade legislativa para com essa problemática, não
apenas por temor de represália da opinião popular, mas também porque
os presos têm seus direitos políticos suspensos até o cumprimento de suas
penas, não sendo, assim, possíveis eleitores a serem cobiçados pelos re-
presentantes do povo no Executivo e no Legislativo.
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 337

Diante desse quadro gravíssimo de violação de preceitos fundamen-


tais e direitos fundamentais dos presos pelas ações e omissões dos poderes
públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, na ADPF 347, postu-
lou-se que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse a existência do
"Estado de Coisas Inconstitucional" e expedisse medidas para tentar resol-
ver a situação das prisões brasileiras.
A nossa corte superior ainda não julgou definitivamente o mérito da
ADPF, mas já apreciou liminarmente os oito pedidos realizados e decidiu
conceder parcialmente a tutela requerida através: I) do pedido de redução
do número de prisões provisórias por meio da motivação das prisões pelos
magistrados com as justificativas para não adoção de medidas cautelares
alternativas à privação da liberdade; II) do pedido de realização de audiên-
cia de custódia; III) da liberação das verbas do Fundo Penitenciário
(FUNPEN). Os pedidos que envolviam tempo de prisão foram considera-
dos insubsistentes devido à falta de previsão legal que alicerçasse o seu
acolhimento.
Por conseguinte, o STF entendeu, conforme voto do ministro Marco
Aurélio, relator da medida cautelar, que é papel da Corte retirar os demais
poderes da inércia, coordenar ações com o objetivo de resolver o problema
e monitorar os resultados alcançados, pois a intervenção judicial seria ne-
cessária diante da incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas
e administrativas para solucionar tais problemas.
São visíveis as contradições existentes entre as previsões legais, o de-
ver, e o ser referente os direitos dos presos no Brasil. Como também é
evidente que o encarceramento tem funcionado como uma política utilita-
rista do Estado para um grupo específico da população brasileira.
Como sugestão de um modelo de ressocialização que tem obtido re-
sultados positivos trazemos o exemplo da Associação de Proteção e
Assistência ao Condenado – APAC – é uma entidade civil de direito Pri-
vado, sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria, dedicada à
recuperação e reintegração social dos condenados às penas privativas de
liberdade.
338 | Estudos sobre Amartya Sem - Volume 8

A APAC é uma alternativa ao modelo prisional tradicional, promo-


vendo a humanização da pena de prisão e a valorização do ser humano,
vinculada à evangelização, para oferecer ao condenado condições de se re-
cuperar.
Ela também possui uma perspectiva voltada para a proteção da soci-
edade, e da justiça e do apoio as vítimas de violência, essa metodologia
surgiu por meio das ideias do fundador, o advogado Mário Ottoboni, que
em 1972 desenvolveu um trabalho junto aos presos da única cadeia exis-
tente em São José dos Campos/SP.
Esse pontual exemplo revela que devemos buscar modelos que estão
tendo resultados positivos e analisar os fatores que contribuíram para o
ECI que os nossos presídios vivem para que possamos efetivamente pro-
mover a ressocialização dos presos.

Conclusão

As divergências entre o ser e dever são claras quando tratamos do


sistema prisional brasileiro no qual ocorre uma violação sistemática e ge-
neralizada dos direitos dos presos. A superlotação e punibilidade seletiva,
voltada para um grupo especifico da sociedade muitas vezes funciona
como uma política utilitarista do Estado.
A ausência de políticas eficientes de ressocialização ressalta a impor-
tância da intrínseca relação que Sen tece entre liberdade e
desenvolvimento. Ausência que leva os presos a saírem do encarcera-
mento em condições piores das que entraram, basta olhar as altas taxas de
reincidência.
A visão utilitarista da sociedade contribui para que o encarceramento
seletivo de um grupo, jovens negros de baixa escolaridade, se perpetue,
uma vez que muitas vezes esses indivíduos não são considerados seres hu-
manos.
Para combater esse estado de coisas precisamos colocar em prática o
que Sen denomina de desenvolvimento como liberdade e mudar nossa
Jéssika Saraiva de Araújo Pessoa; Thaynná Batista de Almeida; Lorena de Melo Freitas | 339

cultura social encarceradora na qual prevalece a ideia de que bandido bom


é bandido morto.

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Paulo: Companhia de letras, 2010.
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