Você está na página 1de 246

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Joice Graciele Nielsson


Daniel Rubens Cenci
(Organizadores)

DIREITOS HUMANOS
E DEMOCRACIA
Anuário do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UNIJUÍ – 2023

Ijuí
2023
2023, Editora Unijuí
Editor Rua do Comércio, 3000
Fernando Jaime González Bairro Universitário
98700-000 – Ijuí – RS – Brasil
Coordenadora Administrativa
Márcia Regina Conceição de Almeida
(55) 3332-0217
Capa
Alexandre Sadi Dallepiane
editora@unijui.edu.br
Imagem da Capa
www.freepik.com
www.editoraunijui.com.br
Responsabilidade Editorial,
Gráfica e Administrativa
Editora Unijuí da Universidade Regional fb.com/unijuieditora/
do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
instagram.com/editoraunijui/
Conselho Editorial
• Fabricia Carneiro Roos Frantz
• João Carlos Lisbôa
• Vânia Lisa Fischer Cossetin

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
D598
Direitos humanos e democracia [recurso impresso e eletrônico]: anuário
do programa de pós-graduação em Direito da Unijuí – 2023 / organizadores
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, Joice Graciele Nielsson, Daniel Rubens Cenci.
– Ijuí : Ed. Unijuí, 2023. 246 p. –
Formato impresso e digital.
ISBN 978-85-419-0383-7 (impresso)
ISBN 978-85-419-0381-3 (digital)
1. Direitos humanos. 2. Democracia. 3. Desenvolvimento. 4. Ética – social.
5. Ética – profissional. I. Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. II. Nielsson, Joice
Graciele. III. Cenci, Daniel Rubens. IV. Título. V. Título: Anuário do programa de
pós-graduação em Direito da Unijuí – 2023.
CDU: 342.7:321.7
Bibliotecária Responsável:
Cristina Libert Wiedtkenper
CRB 10/2651
Este livro foi publicado com recursos oriundos
do Programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior de Apoio à Pós-Graduação
(Proap/Capes), Processo nº 88881.860276/2023-01.

Nosso agradecimento à Capes.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................................9
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

LINHA DE PESQUISA 1
Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos
– 11 –

A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE


DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO ...................................................... 17
André Leonardo Copetti Santos

O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:


A Proteção Jurídica das Diferenças Identitárias na Suprema Corte Brasileira.......... 37
Doglas Cesar Lucas

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL:


Estado, Políticas Públicas e Cidadania – Uma Tríade Estrutural.................................. 65
Janaína Machado Sturza

DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA


NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL................................... 81
Joice Graciele Nielsson

PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO


LATINO-AMERICANO: Uma Alternativa ao Superencarceramento?........................... 101
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:


As Transformações no Mundo do Trabalho e o Acesso à (Qual) Justiça?.................. 125
Rosane Teresinha Carvalho Porto
LINHA DE PESQUISA 2
Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento
– 141 –

TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS................ 143


Anna Paula Bagetti Zeifert

NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE


E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL.................................... 159
Daniel Rubens Cenci

A CIDADE :
Território de Confrontação Ativa e de Concretização do Direito Humano à Cidade ... 177
Elenise Felzke Schonardie

OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA


EMERGÊNCIA HISTÓRICA: Uma Reflexão a Partir da Obra de Norberto Bobbio...... 195
Gilmar Antonio Bedin

O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL:


Considerações Sobre a Violação dos Direitos Humanos no Tempo Presente............ 211
Ivo dos Santos Canabarro

COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIASDE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:


Da Vigilância Deletéria no Contexto Global................................................................. 229
Mateus de Oliveira Fornasier

SOBRE OS AUTORES.................................................................................................... 243


APRESENTAÇÃO
O tema dos direitos humanos adquiriu, nas últimas décadas, um
papel central nas sociedades democráticas e na mediação dos conflitos
internacionais. Por isso, a escolha desse tema como referência central da área
de concentração do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (PPGD Unijuí). De
fato, o destaque dado ao tema dos direitos humanos evidencia que o seu
reconhecimento e proteção é um dos parâmetros de análise da consolidação
de um regime democrático e do nível de desenvolvimento de uma sociedade.
Isso é ainda mais presente na sociedade brasileira, em razão das crescentes
demandas sociais apresentadas e da trajetória histórica de grande exclusão
social.
Nesse sentido, a área de concentração e as duas linhas de pesquisa do
PPGD Unijuí contemplam discussões relacionadas ao processo de conquista e
efetivação dos direitos humanos. A abordagem de tais temas é realizada a partir
de uma postura crítica e interdisciplinar, evidenciada pela estrutura curricular
do Programa, pelos projetos de pesquisa nele desenvolvidos e pelo percurso
formativo do corpo docente que o integra. Essa postura afigura-se como
fundamental para a compreensão da dinâmica de reivindicação, instituciona-
lização, crítica e proteção dos direitos humanos em uma sociedade cada vez
mais complexa, plural e interconectada.
Somente a partir dessa perspectiva é que se compreende, no âmbito do
PPGD Unijuí, que se torna possível apreender a complexidade sociopolítica
dos direitos humanos. Com efeito, apesar da universalização da visão cultural
ocidental-hegemônica dos direitos humanos ter contribuído sensivelmente,
desde o segundo pós-Guerra, para o desenvolvimento da qualidade de vida
em termos globais, não se pode deixar de observar que diferentes regiões do
mundo e pessoas viveram, ao longo dos últimos anos, um recuo absoluto no
que diz respeito à efetivação dos direitos humanos em suas realidades/vidas
concretas.

9
APRESENTAÇÃO
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Nesse processo, somente a pesquisa interdisciplinar, alicerçada


em parâmetros reflexivos mais amplos, pode, de fato, ajudar a identificar
obstáculos e a construir soluções relevantes para que os direitos humanos
se tornem mais efetivos e relevantes. Parte-se, portanto, da premissa de que
o fortalecimento de espaços democráticos e emancipadores para a discussão
das diversas temáticas que lhes subjazem é fundamental para a promoção e
defesa dos direitos humanos.
É por isso que o PPGD Unijuí se encontra estruturado em duas Linhas
de Pesquisa, cujas ementas são a seguir apresentadas, evidenciando sua total
aderência à área de concentração:
• Linha de Pesquisa 1: Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos.
Ementa: O problema da fundamentação dos direitos humanos.
Historicidade e universalidade dos direitos humanos. Estado, cidadania e
direitos fundamentais. Estado, políticas públicas e inclusão social no Brasil.
Diversidade cultural, minorias e reconhecimento. Corpo, identidade e direitos
humanos. Vulnerabilidade social, violência e cidadania. Biopolítica, biopoder
e direitos humanos. Estado, políticas públicas e direito à saúde. Bioética e
dignidade humana.
• Linha de Pesquisa 2. Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento.
Ementa: Estado de Direito, direitos humanos e equidade. Sociedade
da informação, direitos humanos e democracia. Justiça social e cidadania.
Espaços urbanos e inclusão social. Direitos humanos, educação em direitos
humanos e cidadania no Brasil. Meio Ambiente, sustentabilidade e desenvolvi-
mento. Novos direitos, novas ordens jurídicas e transnacionalização. Direitos
humanos, paz e guerra.
Considerando-se a área de concentração e as Linhas de Pesquisa
que lhe dão sustentação, os objetivos do PPGD Unijuí são: a) a geração e a
consolidação da pesquisa e da produção científica, por meio da formação de
pesquisadores, de docentes e de outros profissionais qualificados para atuação
no Direito e em áreas afins, tendo como referência metodológica a interdis-
ciplinaridade, e como temática fundamental a questão do reconhecimento,
institucionalização, crítica, proteção e efetivação dos direitos humanos na
sociedade complexa; b) a intervenção na realidade por meio da reflexão crítica
e da busca de alternativas que possam contribuir para a maior consciência

10
APRESENTAÇÃO
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

da importância fundamental dos direitos humanos para as sociedades


democráticas e para sua maior eficácia no interior dos Estados e na sociedade
internacional, a partir da formação de uma cidadania ativa e comprometida
com a transformação social pela via da promoção/efetivação dos direitos
humanos.
Como missão, o PPGD Unijuí busca consolidar-se como um Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu na área de direitos humanos sustentável e
de excelência, com impacto no desenvolvimento regional, reconhecido no
contexto acadêmico nacional e articulado internacionalmente, voltado à
formação de pesquisadores com excelência técnica e consciência social crítica,
bem como à produção e difusão de conhecimentos voltados ao desenvolvi-
mento da região.
A proposta e a estrutura curricular e de funcionamento dos cursos de
Mestrado e Doutorado vinculados ao PPGD Unijuí propiciam consistência
e coerência com o perfil de egressos formados pelos referidos cursos. Isso
porque o Programa oferece aos seus estudantes uma formação ampla sobre
as principais questões que envolvem os direitos humanos, sua reconstrução
e afirmação histórica, privilegiando a contribuição das diversas Ciências
Humanas e Sociais. Nesse sentido, a preocupação do PPGD Unijuí é
desenvolver uma sólida base teórica – evidenciada pela estrutura curricular e
pelos grupos de pesquisa e projetos desenvolvidos pelos seus docentes – de
cunho crítico e transdisciplinar, que perpassa pelo estudo histórico-conceitual
das doutrinas políticas que, ao longo da Modernidade, contribuíram para a
formulação contemporânea dos direitos humanos, bem como pelos debates
teóricos atuais acerca da fundamentação e justificação dos direitos humanos
no contexto da globalização. Isso permite que o estudante aprofunde, a
partir de seus interesses, a pesquisa sobre a temática central do Programa,
destacando a importância que os direitos humanos têm para a proteção e
respeito à vida e à dignidade da pessoa humana, tanto em âmbito nacional
quanto internacional.
Desse modo, os mestres e doutores formados pelo PPGD Unijuí são
profissionais aptos a compreenderem a realidade em que estão inseridos
e críticos capazes de enfrentar os desafios a que os direitos humanos são
expostos na atualidade. Assim, o perfil do egresso é o de um profissional
qualificado e de um cidadão comprometido com a cultura democrática,

11
APRESENTAÇÃO
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

preparado para realizar observações e reflexões críticas sobre o contexto em


que está inserido, propor ações que auxiliem no processo de efetivação dos
direitos humanos e intervir na realidade local, regional e nacional a partir de
suas especificidades econômicas, políticas, culturais, geográficas, dentro de
um enfoque de universalidade de tais direitos.
O perfil do egresso do PPGD Unijuí é, portanto, o de um profissional
habilitado a dominar e desenvolver conceitos e argumentos teóricos, observar
e compreender a sociedade atual e avaliar, de forma não fragmentada e
interventiva, os principais desafios dos direitos humanos e seu papel na
consolidação do Estado de Direito e de uma sociedade cosmopolita. Esse
perfil é alicerçado em um recorte transdisciplinar, propiciado por uma postura
crítica diante das transformações da sociedade e suas implicações. Assim, é um
pressuposto fundamental que os estudantes do PPGD Unijuí desenvolvam a
capacidade de pesquisa autônoma, mas que também consigam interagir com
os segmentos sociais presentes em seus espaços de vida, buscando construir
alternativas para a superação dos problemas que estão impedindo a efetivação
dos direitos humanos, a democratização dos processos sociais e o desenvol-
vimento da cidadania.
É em virtude disso que o Programa propicia, para além da formação
teórica, que o acadêmico esteja em constante contato com atividades extracur-
riculares (como seminários, intercâmbios e viagens de estudo, atividades
artístico-culturais, oficinas, projetos de extensão, etc.), voltadas para a sua
inserção cidadã na realidade que o cerca e para o seu envolvimento nos
debates mais significativos que envolvem a área.
Dessa forma, é possível afirmar que, de forma pormenorizada,
tematizada e individualizada (mas não estanque) que são capacidades e
competências que o PPGD Unijuí procura desenvolver nos profissionais
formados:
a) Compreender os direitos humanos como fenômeno jurídico e as
transformações sociais, culturais, econômicas, éticas, morais, etc., na
sua complexidade histórica, em um mundo globalizado e em constante
transformação;
b) Compreender os problemas de seu tempo e de seu espaço jurídico-social
e seu envolvimento para a construção efetiva da cidadania;

12
APRESENTAÇÃO
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

c) Comprometer-se com o desenvolvimento de uma cultura jurídica crítica


capaz de (re)construir, constantemente, os direitos humanos não apenas
como dogmática institucionalizada, mas também como fundamento
libertador de influência decisiva na construção de uma nova ordem social;
d) Assumir uma posição ética associada à responsabilidade social e profissional;
e) Apreender, transmitir e criar, crítica e criativamente, os direitos humanos a
partir da constante pesquisa e investigação;
f ) Dominar a gênese, os fundamentos, a evolução e o conteúdo da ordem
jurídica de direitos humanos ora significante e vigente.
E, ainda, o PPGD busca desenvolver as seguintes capacidades técnicas
de seus egressos:
a) Ler, compreender e elaborar textos e documentos atinentes aos direitos
humanos de forma crítica e transdisciplinar, sempre em sintonia com
o estado da arte da investigação das questões éticas, jurídicas e sociais
inerentes à temática;
b) Interpretar e aplicar o Direito a fim de demonstrar as conotações ideológicas
que compõem o discurso jurídico – mesmo quando construídos discursi-
vamente com a tonalidade de direitos humanos;
c) Transmitir pelos mais variados meios conhecimentos construídos, posiciona-
mentos críticos inovadores e intervenções profissionais sintonizados com
uma cultura cosmopolita, democrática e de inclusão da pessoa humana
nos processos sociais.
A composição do corpo docente do PPGD Unijuí evidencia a
preocupação e o compromisso assumido historicamente – desde a criação
do Programa – no sentido de oferecer aos seus estudantes uma formação
interdisciplinar, a qual se entende como condição de possibilidade para a
compreensão da dinâmica de reivindicação, institucionalização, crítica
e proteção dos direitos humanos na sociedade contemporânea. Essa
composição – que contempla majoritariamente professores com titulação na
área do Direito, mas também pesquisadores da Filosofia, do Meio Ambiente e
Desenvolvimento, das Ciências Sociais e da História – é, portanto, fundamental
para alcançar os objetivos do PPGD Unijuí.

13
APRESENTAÇÃO
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Nesse sentido, o presente Anuário inclui textos que sintetizam as


pesquisas que os professores do Programa vêm desenvolvendo ao longo do
ano de 2023, evidenciando a realização de investigações adequadas e aderentes
à respectiva área de concentração e às Linhas de Pesquisa do PPGD Unijuí.
Etimologicamente, um anuário é um livro que registra, destaca e
comemora um ano passado no contexto de uma instituição. Para além de uma
“amostra” das investigações realizadas pelos docentes do Programa, portanto,
este livro também marca um momento de comemoração dos êxitos alcançados
até o momento pelos pesquisadores que integram o seu corpo docente.

Desejamos a todos uma excelente leitura!

Ijuí, RS, 8 de agosto de 2023.

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth


Coordenador do PPGD Unijuí

14
LINHA DE PESQUISA 1

Fundamentos e Concretização
dos Direitos Humanos
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A
POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM
ESTILO PENAL HÍBRIDO1

André Leonardo Copetti Santos

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A era das penas privativas de liberdade, iniciada há pouco mais de


200 anos, no Ocidente, atingiu seu clímax nas últimas quatro décadas ou
quatro décadas e meia, especialmente pelo acontecimento de profundas
mudanças que começaram no início dos anos 70 do século 20, notadamente
nos Estados Unidos e na Inglaterra, com caráter marcadamente criminali-
zatório e encarcerador. Este movimento estendeu-se por um considerável
número de outros países, como o Brasil. Estes países, apesar de se
regozijarem de seu caráter altamente democrático liberal, apresentam
extremos de desigualdade socioeconômica, estruturas políticas marcadas
por processos de oligarquização e corrupção, além de, no plano penal,
uma hiperinflação de seus sistemas penais materializada por meio de um
encarceramento massivo sem precedentes, com um altíssimo grau de
seletividade social. Este caráter segregatório do sistema penal brasileiro
fica evidenciado no levantamento efetuado pelo Departamento Penitenciário

1
O presente trabalho é um resultado parcial do projeto de pesquisa denominado “Controle Social,
Política Criminal e Democracia: A Expansão do Sistema Penal Brasileiro e sua Adequação ao Estado
Democrático de Direito”, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Fundamentação Crítica dos Direitos
Humanos”, originado na Linha de Pesquisa 1 (Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos)
do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Unijuí.

17
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

Nacional (Brasil, 2021), entre julho a dezembro de 2021, o qual indica que,
em números absolutos, cerca de 833.176 pessoas estavam sob a custódia
do Estado. Deste montante, 199.058 autodeclararam-se brancos e 436.685,
pretos ou pardos.
Alguns sinais, entretanto, indicam que esta página da história dos
poderes punitivos pode estar sendo virada. A realidade de que a prisão é
ineficaz no combate e na redução da criminalidade, há muito conhecida
por pesquisadores dos sistemas punitivos, parece agora estar sendo
admitida nas esferas políticas de governo de alguns países, tal como, por
exemplo, nos Estados Unidos. Barak Obama, em 2015, ao visitar a prisão
de El Reno, em Oklahoma, deu um passo inicial simbólico para acelerar
uma das prioridades de seu último ano e meio de governo: a reforma do
maior e mais caro sistema penal do mundo. Obama iniciou uma nova fase
nas políticas federais relacionadas ao encarceramento massivo decorrentes
majoritariamente do tráfico de drogas, antecipando, com isto, a soltura de 6
mil presos. Lá, deram-se conta de que uma nova abordagem é necessária; que
os custos do sistema prisional são altíssimos; que o aprisionamento em massa
não levou à superação ou à diminuição do tráfico de drogas; que a grande
maioria da população atingida é de negros e hispanos; que foi produzida uma
superpopulação carcerária.
Inobstante as diferenças ideológicas em relação ao governo
democrata de Obama, o seu sucessor, o ultraconservador Donald Trump, deu
seguimento a esta política de desencarceramento, especialmente pelo seu
comprometimento em cortar custos do Estado norte-americano. A postura
de Obama voltada à diminuição do contingente de apenados deu-se por
questões humanitárias e de compreensão da seletividade do sistema penal
norte-americano em relação a negros e pobres, enquanto Trump teve como
motivação fundamentos econômicos liberistas de redução máxima do Estado
e de suas funções.
Contrariando esta tendência, e comprovando que os sistemas punitivos
não são universais, tampouco racionais, o Brasil tem em marcha um processo
de hiperencarceramento, como antes referido, ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, adota novas possibilidades de materialização do sistema
punitivo, menos violentas que a prisão, como a monitoração eletrônica. Neste

18
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

contexto, estaremos, em nosso país, diante de um lento desfazimento deste


casamento de mais de dois séculos com as penas privativas de liberdade,
característica central do estilo penal da Modernidade?
A persistente permanência institucional da prisão em nosso sistema
punitivo é, nos limites de uma razoabilidade argumentativa, uma permanência/
projeção da história colonial/oligárquica do Brasil, na qual a punitividade,
dirigida a grupos hipossuficientes dominados pelas elites oligárquicas
socioeconômicas sempre competiu com possíveis inovações pragmáticas
emancipatórias.
Com a positivação na Constituição da República de 1988 de novos
projetos de Estado, sociedade e Direito, lastreados em um sistema positivo
de direitos fundamentais sem precedentes em nossa história constitucional,
nosso sistema punitivo, em todas suas facetas, deveria ter sido modulado
e redirecionado para um âmbito normativo e institucional de humanização
e consequente enxugamento. O que temos assistido nas últimas décadas,
entretanto, é um movimento em sentido contrário, com a adoção de um
repressivismo de alta intensidade que tem resultado em um processo de
hiperencarceramento (Copetti Santos, 2019).
A positivação do Monitoramento Eletrônico (ME) em nosso sistema
punitivo tem aberto novos flancos de reflexão acerca da adoção de uma
nova racionalidade político-criminal, com possibilidades de gerar um
distanciamento de uma tradição punitiva baseada nas penas privativas de
liberdade para uma quantidade significativa de delitos, o que traria, por
consequência, uma deflação do hiperencarceramento reinante em nosso país.
Seria o ME, pelas suas potencialidades de redução da violência e dos custos
do Estado na manutenção de seu poder penal, uma alternativa de adequação
do sistema punitivo à nossa moldura constitucional de Estado Democrático
de Direito? Diante deste contexto, toca-nos a tarefa de investigar se este novo
instituto está adequado aos principais objetivos da punição dentro dos marcos
do que deve ser um estilo penal num Estado Democrático e Constitucional de
Direito, ou seja, menos violento pelo respeito aos direitos humanos e menos
dispendioso em termos orçamentários, possibilitando, assim, o investimento
público em outras áreas que impliquem ampliação quantitativa e qualitativa
do capital social dos grupos vulnerabilizados ao crime, e mais eficaz em seus
objetivos de redução da criminalidade.

19
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

1 ESTILOS PENAIS E TECNOLOGIAS PUNITIVAS


Em sua obra “Crimen y Castigo en la Modernidad Tardía”, David
Garland (Garland, 2007) chama a atenção para o fato de que assim como a
arquitetura, os hábitos alimentares, as formas de vestir ou os modos à mesa, o
sistema penal tem um propósito instrumental, mas também um estilo cultural
e uma tradição histórica que determinam as maneiras como tal objetivo é
perseguido. Esta afirmação de Garland, em certo sentido, vai ao encontro
do que Foucault chama, ao se referir às tecnologias punitivas do suplício e
da utilização do tempo, de “estilo penal”. A determinação da identidade de
uma cultura penal punitiva ou de um estilo penal ultrapassa em muito os
meros questionamentos sobre a eficácia ou a justificação do castigo, mas, com
exigências de sentido muito mais amplas, insta-nos a outras questões acerca
de: Como surgem determinadas medidas penais? Quais são as funções sociais
do castigo? Como se relacionam as instituições penais com outras instituições?
De que maneira contribuem com a ordem social, o poder estatal, a dominação
de classe ou a reprodução cultural da sociedade? Quais são os efeitos sociais
inesperados do castigo, suas carências funcionais e seus mais amplos custos
sociais?
De modo mais ou menos direto, todas estas questões estão relacionadas
com as tecnologias punitivas utilizadas epocalmente, as quais são o elo final de
toda a cadeia persecutória em cada um dos estilos penais. É na materialidade
da sanção que se revelam, de forma mais nítida e intensa, todas as causalidades
determinantes da funcionalidade de um sistema penal.
Historicamente, podemos identificar dois grandes estilos penais,
conforme aponta Foucault (1983) em seu “Vigiar e Punir”: o do suplício e
o da economia dos direitos suspensos. O estilo penal baseado no suplício
toma o corpo como objeto de sofrimento, numa espécie de desenvolvimento
de uma arte das sensações insuportáveis sobre ele. Uma forma de saber fazer
sofrer, uma técnica de sofrimento que adota métodos como a força, o patíbulo,
o pelourinho, o chicote, a roda, a marca a ferro quente e as torturas em
geral. O estilo penal do suplício é o estilo cultural punitivo por excelência da
Antiguidade e do Medievo. Nesses períodos, a privação de liberdade não tinha
caráter de pena, mas serviu fundamentalmente à contenção e guarda de réus
para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados (Guzman,

20
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

1983, p. 73). A frase de Henri Sanson, o verdugo de Paris, em suas memórias,


ilustra bem a cultura punitiva deste estilo: “Até 1791 a lei criminal é o código
da crueldade legal” ( Valdés, 1981, p. 14).
Foucault aponta o final deste estilo penal na Europa, ou a transição
para o estilo da economia dos direitos suspensos, no período compreendido
pelo fim do século 18 e o início do 19, lapso no qual ocorre, naquele
continente, toda uma redistribuição da economia do castigo em virtude de
inúmeros projetos de reforma legislativa; de uma reformulação da teoria da
lei penal e do crime e uma nova justificação moral ou política do direito de
punir; da abolição de antigas ordenanças e supressão de costumes (Foucault,
1983, p. 13).
Não se pode deixar de frisar, entretanto, que, ainda que na Europa
tenha ocorrido a supressão do espetáculo penal e a anulação da dor e do
sofrimento corporal infligidos pelo Estado, em outros países do mundo – e
não são poucos – as penas corporais não deixaram de existir até os dias atuais.
O segundo grande estilo penal apontado por Foucault – o da economia
dos direitos suspensos – típico da Modernidade, começa a ser gestado ainda
no ventre da Idade Média. A partir da segunda metade do século 16 teve início
na Europa um movimento de grande importância para a institucionalização
das penas privativas de liberdade e, consequentemente, para a construção
de prisões organizadas para a correção dos apenados. Nessa época surgem,
inicialmente, a prisão de Estado e a prisão eclesiástica. Na primeira, somente
podiam ser recolhidos os inimigos do poder, real ou senhorial, que tivessem
cometidos delitos de traição, ou os adversários políticos dos governantes.
Apresentava-se em duas versões: a prisão-custódia ou como detenção
temporal ou perpétua. A “Bastilha” é o exemplo mais conhecido desse tipo
de instituição. A segunda, por sua vez, era destinada aos clérigos rebeldes e
respondia às ideias de caridade, redenção e fraternidade da Igreja, dando ao
internamento um sentido de penitência e meditação ( Valdés, 1981, p. 72 et
seq.).
Posteriormente, como desenvolvimento deste movimento que viria
a consolidar um novo estilo penal, são criadas, na Inglaterra, as houses of
correction ou bridwells, no começo do século 17, ou as workhouses, no
final desta mesma centúria; em Amsterdã, na Holanda, do final do século 16
em diante criaram-se vários tipos de instituições prisionais, por exemplo, as

21
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

Rasphuis, ou casas de correção de homens; as Spinhis, para mulheres, e já no


começo do século 17, uma versão para jovens. Daí em diante o movimento
pela pena privativa de liberdade não mais cessou, chegando com um vigor
impressionante até os dias atuais (Bitencourt, 2006).
Este estilo penal que toma o corpo como um instrumento, como
um intermediário para o fim de impor ao apenado a perda de um bem ou
direito, foi, segundo afirma Kaufmann , “produto do desenvolvimento de
uma sociedade orientada à consecução da felicidade”, em que a correção
do apenado tinha como finalidade incluí-lo, pelo menos esta era a tônica
discursiva legitimatória das penas privativas no grande projeto político de
felicidade materializado pelos catálogos de direitos que se construíam na
época. Suas tecnologias punitivas são as conhecidas nos dias de hoje, umas
mais aplicadas que outras, e algumas até mesmo não mais usadas, tais como:
a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição
de domicílio e a deportação, mas é a prisão, a reclusão, tecnologia punitiva
próprias deste estilo, em seus mais distintos sistemas, a que predomina até
os dias atuais.
O elenco de penas próprias ao estilo penal da economia dos direitos
suspensos não mais atende a qualquer critério de eficácia na ressocialização
dos apenados, tampouco em termos de humanização das tecnologias punitivas
utilizadas nesses processos. A decadência das penas privativas de liberdade
começa a ocorrer antes mesmo do final do século 19, período em que,
paradoxalmente, atinge também seu apogeu. O Programa de Marburgo de
Von Liszt deu início às críticas às penas de prisão, especialmente em relação
às de curta duração (Mourullo, 1982). Os motivos da desaprovação sempre
orbitaram em torno de dois grandes argumentos: a) a impossibilidade de que
um ambiente artificial como as prisões, em razão de sua total antítese com a
comunidade natural livre, possa criar as condições necessárias para qualquer
processo de reabilitação e ressocialização dos apenados; b) as condições
materiais e humanas existentes na imensa maioria das prisões do mundo
tornam inalcançáveis quaisquer objetivos reabilitadores.
A sobrevivência do estilo penal da economia dos direitos suspensos
tem se dado mais pela substituição das penas privativas de liberdades do que
propriamente pelo seu aperfeiçoamento. Se formos pensar em aprimoramento
das penas de prisão, especialmente focando nossa análise para o caso

22
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

brasileiro, facilmente constataremos que não houve evolução alguma, pois


a maioria das prisões de nosso país pouco ou nada diferem dos calabouços
medievais lúgubres e insalubres. O fulcro central das mudanças tem sido os
chamados substitutivos penais, notadamente em relação a penas de curta
duração.
Recentemente, com a entrada em vigor da Lei n. 12.258/2010, que
modificou a Lei n. 7.210/84, foi introduzida no Brasil a possibilidade da
utilização da monitoração eletrônica, lançando-se com isto o questionamento
acerca de se estamos diante de um novo divisor de águas na nossa história
da punição. Internacionalmente, há indícios crescentes de que a lua de
mel de pouco mais de dois séculos com as penas privativas de liberdade,
como sanções principais da rede sancionatória penal, pode estar chegando
ao seu final, o que poderia estar evidenciando o surgimento de um novo
estilo penal. O questionamento acerca da eficácia deste dispendioso modo de
punição já pode ser considerado uma tendência mundial, especialmente no
Ocidente, tanto entre governos progressistas – o que não é surpresa alguma
– mas também entre governos conservadores que têm priorizado a agenda
econômica de diminuição do Estado em detrimento da pauta moral sobre
alguns temas a eles tão caros, por exemplo, as drogas.
A utilização de novas tecnologias de controle de grupos e indivíduos,
como a monitoração eletrônica, tem dado um destaque sem precedentes ao
debate sobre a superação de um velho modelo de penologia, baseado na
responsabilidade do indivíduo e nas penas privativas de liberdade, por um
novo tipo de sistema “persecutório punitivo” no qual prevalece a ideia de
controle.
Os contornos da “velha” penologia, cujos conceitos ainda constituem
o núcleo da formação em dogmática penal nas nossas faculdades de Direito,
concentram-se nos indivíduos; o indivíduo é a unidade de análise. Há um
caráter individualista-garantista que é fortemente enfatizado no Direito Penal
e no processo penal. O Direito Penal concentra-se na intenção para atribuir
responsabilidade pessoal. O processo penal ergueu barreiras à condenação
para testar provas e proteger o indivíduo acusado diante do Estado poderoso.
A sanção criminal tem, assim, se baseado em teorias de punição voltadas ao
indivíduo.

23
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

Em contraste, o que parece ser um novo estilo penal nos indica que
este modelo prioriza muito menos a responsabilidade, a culpa, a sensibilidade
moral, o diagnóstico ou a intervenção e tratamento do infrator individual.
Em vez disso, está focado em técnicas para identificar, classificar e gerenciar
agrupamentos classificados por periculosidade. A tarefa é gerencial, não
transformadora (Cohen, 1985; Garland, Young, 1983; Messinger, 1969;
Messinger, Berecochea, 1990; Reichman, 1986; Wilkins, 1973). Procura
regular os níveis de desvio, não intervir ou responder a desvios individuais
ou malformações sociais.
Este novo estilo penal é muito mais do que “discurso”, sua linguagem
ajuda a revelar essa mudança de forma mais impressionante. Não fala de
indivíduos deficientes que precisam de tratamento ou de pessoas moralmente
irresponsáveis que devem ser responsabilizadas por suas ações. Em vez
disso, considera o sistema de justiça criminal e persegue a racionalidade e a
eficiência sistêmicas. Ele procura classificar e classificar, separar o menos do
mais perigoso e criar estratégias de controle racionalmente. As ferramentas
para esse empreendimento são “indicadores”, tabelas de previsão, projeções
populacionais e similares. Nesses métodos, o diagnóstico e a resposta individu-
alizados são substituídos por sistemas de classificação agregados para fins de
vigilância, confinamento e controle (Gordon, 1991). Seria, assim, a ME uma
tecnologia indicadora de um novo estilo penal?

2 A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA (ME) ESTÁ INAUGURANDO


UM NOVO ESTILO PENAL OU RELEGITIMANDO O VELHO ESTILO
DA ECONOMIA DOS DIREITOS SUSPENSOS?
2.1 Monitoramento eletrônico como alternativa à prisão. Requisitos
mínimos a serem satisfeitos
A ME foi desenvolvida por meio de diferentes formas e métodos,
utilizando uma ampla gama de tecnologias contemporâneas (Crowe et
al., 2002, p. 57). É normalmente instituída com a ajuda de dispositivos
eletrônicos resistentes a manipulações que enviam sinais para as autoridades
do sistema penal, como um meio de exercer alguma forma de controle sobre
os indivíduos que estão sendo monitorados. Isso permite às autoridades
verificar se o indivíduo monitorado cumpre ou não os termos da decisão
judicial (Di Tella; Schargrodsky, 2013, p. 2). Os principais objetivos da ME têm

24
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

sido geralmente limitar e incapacitar criminosos, ou estabelecer um “modelo


de transferência” no qual o controle é “transferido” da prisão para o ambiente
doméstico do delinquente (Caiado, 2012, p. 5). Assim, as restrições que são
impostas àqueles que estão sendo vigiados contêm, com as tecnologias atuais,
limitações geográficas e temporais. Essas restrições podem incluir a proibição
de se reunir, ir ao trabalho ou à escola, ou evitar regiões específicas.
As origens da ME podem ser rastreadas até o início da década
de 60, quando foi concebida pela primeira vez como uma ferramenta
para a modificação comportamental na psicologia clínica e experimental
(Schwitzgebel et al., 1963, p. 234). Desde 1983, quando um juiz no Novo
México instrumentalizou esta invenção para rastrear a localização dos
estagiários, tem sido utilizada no campo da justiça criminal (Burrel; Gable,
2008, p. 104-105; Fox, 1987, p. 131).
Até o ano de 1986 a ME já havia sido adotada em pelo menos 53
programas carcerários nos EUA. Em um cenário de aumento da população
carcerária e, consequentemente, dos seus custos, de desenvolvimento de
tecnologia e de uma maior aceitação de sanções intermediárias ou substitutivas
de forma mais geral, o uso da ME continua a crescer no mundo todo (Nellis;
Beyens; Kaminski, 2012 ).
A ME tem sido usada, no Brasil, antes e após o julgamento. No primeiro
caso, pode ser utilizada como medida cautelar diversa da prisão, a fim de
evitar a prisão preventiva, nos termos do artigo 319, inciso IX, do Código
de Processo Penal; no segundo, de acordo com o artigo 146-B da Lei de
Execuções Penais, quando autorizar a saída temporária no regime semiaberto
ou em caso de prisão domiciliar. Até o momento, entretanto, não tem sido
tipicamente concebida como um substitutivo direto da prisão ou até mesmo
como uma sanção primariamente imposta já na sanção condenatória.
A ME como objeto principal de uma sentença primária poderia, no
entanto, fornecer uma alternativa viável à prisão como a sanção dominante para
delitos mais graves, o que, sem dúvida, pode significar uma radical alteração no
estilo penal. Para se tornar uma real alternativa sancionatória dominante em
relação à prisão para a maior parte dos crimes previstos em nossa legislação,
cambiando, assim, definitivamente, nosso estilo penal, a ME deve, pelo menos,
satisfazer os propósitos de controle do crime, sentenciando tão bem ou melhor
do que a pena de prisão. Nesse sentido deve demonstrar sua eficácia para:

25
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

a) proteger a comunidade por meio da incapacitação/contenção dos


infratores;
b) dissuadir os infratores condenados e outros membros da comunidade de
cometerem crimes, satisfazendo os objetivos de prevenção específica e
geral;
c) fornecer punição proporcional aos infratores pelos crimes cometidos;
d) reabilitar os infratores para reduzir a reincidência, gerando os efeitos
reeducativo e ressocializante ao monitorado.

2.2 Reunindo argumentos por um estilo penal híbrido de transição em


relação ao estilo da economia dos direitos suspensos
A ME, ao que parece, é provavelmente tão boa quanto, se não melhor,
do que a prisão para alcançar muitos dos objetivos instrumentais pretendidos
com as sanções próprias do estilo penal em vigência. Sabemos, no entanto,
que as decisões de políticas públicas não se baseiam meramente em objetivos
instrumentais. As fragilidades da prisão na redução da criminalidade são
conhecidas por décadas (Tonry, 2013), mas isso pouco fez para conter seu
crescimento. Os proponentes e executores das políticas públicas e das leis de
“resistência ao crime” do final do século 20, responsáveis pelo repressivismo
de alta intensidade que resultou em movimentos estatais de hiperencarcera-
mento “não deixavam a evidência, ou sua ausência, atrapalhar estes processos
(Tonry, 2013, p. 187). E, na medida em que a política é conduzida, majoritaria-
mente, pela opinião pública (Matthews, 2005 ), sabemos que as opiniões sobre
sentenças são significativamente influenciadas por preocupações emocionais
e afetivas sobre o papel da punição, ao invés de seu efeito direto sobre o
crime (Freiberg, 2001; Kornhauser, 2013; Scheingold, 1984; Tyler; Boeckmann,
1997). Em última análise, é evidente que se a prevenção do crime (isto é,
uma abordagem instrumental e não punitiva da punição) é para fornecer um
discurso alternativo às tendências atuais de condenação, ele deve abordar o
emocional e também preocupações afetivas do público (Freiberg, 2001, p. 272).
Propor a ME como substituto da prisão é, no entanto, um caminho
ainda arriscado. Exige uma mudança à dura retórica da lei e da ordem
sobre a qual tanto apoio público foi construído (Caiado, 2012). Convencer

26
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

os formuladores de decisão a abandonarem o estilo penal da economia da


suspensão de direitos depende, entre outros fatores, de uma forte persuasão
de legitimação política do novo estilo.
2.2.1 O Impacto Econômico de uma Adoção Ampla da ME
Alguns fatores positivos militam em favor da ampliação no uso da ME
como alternativa à prisão. Em primeiro lugar, o impacto econômico. A adoção
da ME, sem qualquer dúvida, resulta em diminuição das despesas estatais
com o sistema prisional. De acordo com o trabalho realizado pelo CNJ em
conjunto com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e o Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), denominado “Calculando
Custos Prisionais: Panorama Nacional e Avanços Necessários” (Brasil, 2021), o
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP),
visando à padronização das informações disponibilizadas pelas Unidades da
Federação, por meio da Resolução 6/2012, adotou uma metodologia de cálculo
do custo mensal do preso. Grosso modo, o cálculo proposto pela Resolução
é feito da seguinte forma: divide-se as despesas com pessoal e administrativas
do mês de referência pelo número de encarcerados no mês. De acordo com o
artigo 5º da Resolução, o custo mensal do preso é definido pela resultante do
total de despesas apresentado no mês de referência dividido pela população
carcerária do mesmo mês.
Para tanto, a Resolução elencou cerca de 20 parâmetros que devem ser
discriminados e constar no cálculo do custo.2 Estes parâmetros são próprios
de um estilo e de um sistema penais que têm na pena privativa de liberdade
sua principal sanção, e cujo custo de manutenção é altíssimo. De acordo com

2
Despesas com pessoal: Salários: órgãos da administração penitenciária; Salários: outros Órgãos; Material
de expediente; Prestadores de Serviço; Estágio remunerado de estudantes; Outras despesas: Aluguéis
(bens imóveis, móveis, veículos e equipamentos de informática); Transportes (inclusive para deslocamento
para as audiências e atendimentos à saúde) e combustíveis; Material de limpeza; Material de escritório;
Água, luz, telefone, lixo e esgoto; Manutenção predial; Manutenção de equipamentos de segurança;
Manutenção de equipamentos de informática; Aquisição e/ou aluguel de equipamentos de segurança, de
informática, veículos, móveis e imóveis; Atividades laborais e educacionais; Contrapartida da administração
penitenciária em relação a parcerias para desenvolvimento de atividades laborais ou educacionais dos
presos; Alimentação; Material de higiene pessoal; Colchões, uniformes, roupas de cama e banho; Recursos
para assistência à saúde do preso (médica, odontológica, psicológica, terapia ocupacional, etc.).

27
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

o CNJ (Brasil, 2021), cada pessoa presa no país representa um custo médio
de R$ 1.800,00 por mês para cada Estado. O gasto pode variar até 340% entre
as 22 unidades da Federação analisadas.
Já em relação à ME, os números indicam uma realidade orçamentária
completamente diferente. Com base em dados da SAP (Secretaria de Estado
da Administração Penitenciária) de São Paulo, obtidos por meio da Lei de
Acesso à Informação, o custo anual de um preso monitorado por meio de
ME é de R$ 3.803,00. De acordo com as informações disponibilizadas pela
pasta, entre dezembro de 2010 e março de 2015, o órgão desembolsou R$
97,3 milhões para monitorar 4.800 detentos. Isso significar dizer que, no
período (64 meses), foram gastos R$ 317,00 com cada detento submetido
ao monitoramento eletrônico.3 Ainda de acordo como a página web oficial
do Estado do Mato Grosso, no ano de 2015 o Estado monitorava 2.554
recuperandos que receberam o benefício da ME do poder Judiciário. Com
isso, o Estado economizou nesse ano R$ 5.108.000,00 levando-se em conta
que cada preso custa ao erário, em média, cerca de R$ 2.000,00, segundo
dados contidos no documento antes citado (Brasil, 2021).
Com uma progressão escalar na utilização da ME, as despesas com
vários destes parâmetros desapareceriam (alimentação e assistência médica,
por exemplo) e muitas outras seriam bastante reduzidas (contratação de
pessoal e ampliação da infraestrutura), o que pode aliviar o orçamento público
em rubricas que pouco ou nada trazem de produtivo para o desenvolvimento
pessoal dos apenados e para o combate à criminalidade.
2.2.2 O Potencial de uma Maior Concretização dos Direitos Humanos dos
Apenados
O começo dos anos 80 é paradigmático em termos de discursos críticos
em relação aos direitos humanos na América Latina, não tendo sido diferente
no Brasil. Até então, as denúncias de violação de direitos humanos tinham
como foco a ação das ditaduras militares instaladas em praticamente todo
o continente americano, com exceção do extremo norte. As acusações de
mortes e desaparecimentos por motivos de oposição política dirigiam-se

3
https://fiquemsabendo.com.br/gastos-publicos/monitorar-preso-com-tornozeleira-eletronica-custa-r-3-
800-por-ano/.

28
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

contra boa parte dos governos autoritários da região, acoitamentos que pouco
a pouco revelaram-se como totalmente verdadeiros, trazendo à luz genuínos
terrorismos de Estado contra opositores políticos.
Os discursos sobre violações de direitos humanos mudam considera-
velmente de perspectiva quando, em 1983, o Instituto Interamericano de
Direitos Humanos realiza uma extensa e detalhada pesquisa tendo como
objeto as violações de direitos humanos nos sistemas penais de países
latino-americanos, investigação que resultou na publicação “Sistemas Penales
y Derechos Humanos en América Latina” (IIDH, 1983). Neste relatório de
pesquisa foi apontada uma série de violações de direitos humanos que já
naqueles anos se perpetravam em termos normativos/abstratos e fáticos/
concretos, tanto no campo penal quanto processual penal, pelo poder penal
dos Estados da região. A partir daí, as investigações com este objetivo jamais
cessaram, havendo uma farta literatura que aponta a enorme efetividade
das penas privativas de liberdade em concretizar tais violências aos direitos
humanos dos presos.
Em relação ao universo individual dos apenados, o rol de violações
de seus direitos em decorrência do encarceramento é bastante extenso.
Condições insalubres dos presídios em que cumprem suas penas,
superlotação, proliferação de doenças, falta total de segurança caso não
se submetam a alguma organização criminosa, alimentação de baixíssima
qualidade, saúde precarizada, falta de acesso à educação, ao trabalho, à
cultura, enfim, uma longa lista de não prestações estatais que ocorrem em
razão do encarceramento em prisões que não só atingem a alma, como diria
Foucault ao se referir ao estilo penal da economia dos direitos suspensos, mas
que atingem o próprio corpo dos apenados.
Com a ampliação das situações penais e processuais de adoção da
ME, não há dúvidas de que uma gama cada vez maior de direitos humanos
dos indivíduos aos quais ela se destinará será respeitada. Não só direitos
vinculados ao núcleo das liberdades, mas também uma série de outros direitos
de natureza social deverão ser efetivados, como os direitos vinculados às
relações de trabalho, os direitos de natureza cultural, além de outros, que, sem
sombra de dúvidas, irão agregar porções importantes de cidadania à existência
destas pessoas, afastando-os cada vez mais da criminalidade.

29
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

2.2.3 O potencial da ME de agregação de conforto existencial ou felicidade


para o apenado/monitorado
Quando um criminoso é punido pelo Estado, é um dos próprios
cidadãos nacionais que está submetido à dor e sofrimento (in)justos. Se essa
ação for considerada justificável, então deve haver restrições impostas sobre
a quantidade e o tipo de sofrimento que pode ser infligido. Nesse sentido,
para fornecer uma justificação é necessário, entre outros critérios, ter uma
consciência do modo como aqueles que são punidos verdadeiramente
experimentam a miséria de um castigo. De que maneira e em que medida as
diferentes formas de sanção estatal têm um impacto prejudicial na felicidade
e no bem-estar de um indivíduo? As respostas parecem ser óbvias quando a
comparação é feita entre a pena de prisão e os demais tipos de sanções.
De acordo com pesquisa empírica realizada por Bronsteen, Buccafusco
e Masur (2008), as pessoas conseguem se ajustar a multas monetárias significa-
tivamente melhor do que elas esperam ser capazes. Para estes pesquisadores, o
nível de prazer de um delinquente ou ofensor não penal pode cair temporaria-
mente depois de pagar uma multa, mas rapidamente voltará para onde estava
antes da infração ter sido cometida. As pessoas têm um tempo muito fácil
e rápido de se adaptar às suas novas circunstâncias financeiras, o que leva
à conclusão de que, então, até mesmo multas significativas têm apenas um
impacto mínimo no bem-estar geral dos indivíduos que estão sujeitos a eles. O
efeito punitivo de uma multa pode, portanto, ser significativamente mitigado
mediante a adaptação.
De modo distinto, a pesquisa aponta que o impacto que a prisão
tem no nível de conforto existencial é bem mais complexo. Por um lado, é
comparável ao pagamento de uma multa no sentido de que os indivíduos se
adaptam rapidamente ao seu novo ambiente de encarceramento. Sua alegria
diminui no início, e eles antecipam que ela continuará a diminuir durante
o processo, mas ela rapidamente se recupera à medida que se acostumam
com seu novo ambiente. Por outro lado, praticamente qualquer quantidade
de tempo gasto na prisão, independentemente de quão curto seja, tem
desdobramentos existenciais e sociais que afetam negativamente a vida dos
prisioneiros em aspectos que são de difícil recomposição, mesmo depois de
terem sido libertados.

30
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

Os prisioneiros, por exemplo, frequentemente acham que seus amigos


e entes queridos os abandonaram, que é difícil para eles encontrar e manter
empregos, e que eles têm de lidar com doenças terminais que contraíram
enquanto estavam atrás das grades. A experiência de viver na prisão, portanto,
diminui sua própria opressão existencial durante o curso da execução das
penas, mas as ramificações e desdobramentos do encarceramento tendem a
permanecer e prejudicar a felicidade de uma pessoa para sempre.
Essas descobertas, segundo eles, estão em forte contraste com as
suposições gerais que são levadas em conta ao serem formuladas políticas
públicas de natureza penal e pesquisas filosóficas sobre punição. Todas as
principais teorias sobre punição colocam uma ênfase significativa no conceito
de proporcionalidade. De acordo com essas teorias, punições mais severas
são justificadas para infrações mais graves. Isso pode ser feito para aumentar
o nível de dissuasão, para compensar adequadamente o delinquente por
suas transgressões, para expressar o nível apropriado de condenação social,
ou alguma combinação desses objetivos. Devido, no entanto, à miríade de
maneiras pelas quais as pessoas podem ou não se adaptar a uma variedade
de desafios, as técnicas de punição próprias do estilo penal da economia dos
direitos suspensos são muito severas para permitir a formulação de sanções
proporcionais.
Ao contrário do que se poderia antecipar, essa pesquisa sobre a
relação entre punição e felicidade indica que mudar o montante da sanção
pecuniária ou a quantidade de anos a serem cumpridos na prisão não afetam
materialmente o conjunto total de miséria que tem de ser suportada pelo
criminoso. Tanto o aumento da pecúnia a ser paga quanto o prolongamento
do tempo a ser dispendido na prisão são sanções muito adaptáveis. Como
consequência disso, os efeitos negativos de praticamente qualquer multa são
relativamente temporários.
Por outro lado, praticamente qualquer duração da prisão impõe
sofrimento enorme e persistente, pois causa doença, desemprego e perda de
conexão social, além de outras violações de direitos humanos. Períodos de
prisão mais longos, contudo, não diminuem a felicidade significativamente
mais do que os mais curtos. Dada a variedade de sanções possíveis, é, por
conseguinte, impossível escolher uma pena que seja proporcional à gravidade
da infração.

31
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

A adaptação não apenas prejudica a proporcionalidade da punição,


mas também tem outras consequências importantes. Como os infratores
assumem erroneamente que um pagamento pecuniário alto diminuiria
significativamente sua felicidade, isso reduz o dano infligido por uma sanção
monetária sem diminuir o potencial de desestímulo da multa. O mesmo vale
para se ajustar ao tempo realmente passado atrás das grades. Esse fenômeno,
entretanto, está em desacordo com o fato de que a vida fora da prisão é muito
mais difícil do que a maioria dos pensadores e legisladores acredita que seja.
Estudiosos e formuladores de políticas devem considerar as implicações
da adaptação hedônica ao construir instituições que compõem um sistema de
punição. É necessário e relevante refletir com precisão sobre a experiência
de punição para aqueles que estão sujeitos a ela. Nesse sentido, a ME parece
ser uma importante alternativa penal com alto potencial de não interferência
ou mínima intervenção no nível de felicidade ou conforto existencial dos
monitorados, pois ao distanciar-se significativamente do estilo penal baseado
na prisão, evitando boa parte de suas consequências para a existência do
apenado, é bastante provável que mitigue a miséria existencial que está
umbilicalmente ligada à pena de prisão, pois poderá evitar grande mazelas
causadas pelo cárcere.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A positivação nos sistemas normativos penal e processual penal
brasileiros da utilização da Monitoração Eletrônica, com a entrada em vigor
da Lei n. 12.258/2010, que modificou a Lei n. 7.210/84, levou muitos juristas
a se questionarem se chegamos a um novo estilo penal a la Big Brother, com
a superação de um velho modelo de penologia, baseado na responsabilidade
do indivíduo e nas penas privativas de liberdade, por um novo tipo de sistema
“persecutório punitivo” no qual prevalece a ideia de controle por meio de
novas tecnologias.
Será que estamos, com a adoção da monitoração eletrônica, nesta
virada epocal em termos punitivos? Será que efetivamente a Monitoração
Eletrônica significa um abrandamento do poder penal do Estado e isto tem se
constituído num fator de criminogênese, como consideram alguns defensores
de um Direito Penal máximo?

32
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

Nos moldes e nas situações em que vem sendo aplicada, a ME ainda


não tem potência suficiente para determinar uma superação no estilo penal
da economia dos direitos suspensos por um estilo de controle a distância
baseado em novas tecnologias, pois, por ora, somente é utilizada em situações
excepcionais à prisão. Uma total transposição do estilo penal da economia
dos direitos suspensos, em que a principal tecnologia são as penas privativas
de liberdade, por um novo estilo baseado no controle mediante e tecnologias
digitais, reclama que o protagonismo do sistema penal seja assumido por estas
novas medidas tecnológicas. Isto, porém, parece não ser um horizonte a ser
atingido a curto ou médio prazo. Talvez devêssemos pensar num estilo penal
híbrido, no qual as penas privativas de liberdade sejam cada vez mais mitigadas
por outras alternativas penais, outras tecnologias punitivas ou de controle, ou
até mesmo por medidas não penais.
Com a ampliação significativa na utilização da ME, quiçá possamos
começar a falar neste estilo penal híbrido, no qual as novas tecnologias digitais
de controle, como a ME, sejam consorciadas com as penas privativas de
liberdade e seus substitutivos. Para efetivamente perspectivarmos este modelo
penal híbrido, quem sabe até mesmo de transição para um novo estilo penal
diverso do da economia dos direitos suspensos, devemos começar a considerar
a possibilidade da ME como uma sanção a ser aplicada já na própria sentença
condenatória, para um amplo leque de crimes, seja como sanção primária,
seja como pena substitutiva, especialmente para aqueles delitos sem uso da
violência ou grave ameaça à pessoa, podendo ou não ser cumulada com outras
medidas não privativas de liberdade ou substitutivos penais como os que já se
encontram positivados em nosso sistema penal.
As evidências científicas, baseadas nos benefícios que a ME representa
em relação ao modelo penal em vigência, são motivos mais que suficientes
para a ampliação dessa tecnologia penal. Um conjunto de motivações políticas,
entretanto, distantes de qualquer racionalidade que possa alimentar um
sistema punitivo, têm prevalecido em praticamente todos os âmbitos em que
as decisões públicas de natureza criminal são tomadas e executadas.
As feridas existenciais, no âmbito individual dos apenados, e as chagas
sociais, na esfera pública, abertas por sistemas penais cada vez mais inflados,
apresentam uma purulência política e normativa como jamais se viu na história

33
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

brasileira. Parafraseando distorcidamente Lampedusa, é preciso realmente


mudar, para que as coisas não permaneçam como estão, quando falamos em
sistemas punitivos.

REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 2006.
BRASIL. Calculando custos prisionais: panorama nacional e avanços necessários.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Departamento Penitenciário
Nacional. Coordenação Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi et al. Brasília: Conselho
Nacional de Justiça, 2021.
BRONSTEEN, John; BUCAFUSCCO, Cristopher; MASUR, Jonathan. Happiness and
Punishment. University of Chicago Law School, Economics Working Paper, n.
424, 2008.
BURRELL, Willian; GABLE, Robert S. From B. F. Skinner to Spiderman to Martha
Stewart: the past, present and future of electronic monitoring of offenders.
Journal of Offender Rehabilitation, v. 46, n. 3-4, p. 101-118, 2008.
CAIADO, Nuno Franco. A terceira via: uma agenda para monitoramento eletrônico
na próxima década. Journal of Offender Monitoring, v. 24, n. 1, p. 5-14, 2012.
COHEN, Stanley. Visions of Social Control: Crime, Punishment and Classification.
Cambridge, UK: Polity Press, 1985.
COPETTI SANTOS, André Leonardo. O repressivismo pós-moderno brasileiro de
alta intensidade. O direito penal na encruzilhada entre o pensar calculador e a
fundamentação ético-política. Novos Estudos Jurídicos, v. 24, n. 2, p. 420-452,
2019.
CROWE, Ann; SYDNEY, Linda; BANCROFT, Pat; LAWRENCE, Beverly. Offender
supervision with electronic technolog y: A user’s guide. Kentucky: American
Probation and Parole Association, 2002.
DI TELLA, Rafael; SCHARGRODSKY, Ernesto. Criminal recidivism after prison and
electronic monitoring. Journal of Political Economy, v. 121, n. 1, p. 28-73, 2013.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1983.
FOX, Richard G. Dr Schwitzgebel’s machine revisited: electronic monitoring
of offenders. Australian and New Zealand Journal of Criminolog y, v. 20, p.
131-147, 1987.
FREIBERG, Arie. Affective versus effective justice. Punishment & Society, v. 3, n.
2, p. 265-278, 2001.

34
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

GARLAND, David. Crimen y Castigo en la Modernidad Tardía. Bogotá: Siglo del


Hombre Editores, 2007.
GARLAND, David; YOUNG, Peter. The Power to Punish. Atlantic Highlands, NJ:
Humanities Press, 1983.
GORDON, Diana R. The Justice Juggernaut: Fighting Street Crime, Controlling
Citizens. New Brunswick: Rutgers University Press, 1991.
GUZMAN, Luis Garrido. Manual de Ciencia Penitenciaria. Madrid: Edersa, 1983.
IIDH. Instituto Interamericano de Derechos Humanos. Sistemas Penales y
Derechos Humanos. Buenos Aires: Depalma, 1983.
KAUFMANN, Hilde. Principios para la reforma de la ejecución penal. Buenos
Aires: DE Palma, 1977.
KORNHAUSER, Ryan. Reconsidering predictors of punitiveness in Australia: a test
of four theories. Australian and New Zealand Journal of Criminology, v. 46, n.
2, p. 221-240, 2013.
MATTHEWS, Roger. The myth of punitiveness. Theoretical Criminology, v. 9, n.
2, p. 175-201, 2005.
MESSINGER, Sheldon; BERECOCHEA, John. Don’t stay too long but do come back
soon. CONFERENCE ON GROWTH AND ITS INFLUENCE ON CORRECTIONAL
POLICY, 1990. Proceedings […]. California: Center for the Study of Law and
Society; University of California at Berkeley, 1990.
MESSINGER, Sheldon. Strategies of control. 1969. Dissertation (Ph.D.). University
of California at Los Angeles, Department of Sociology, 1969.
MOURULLO, Gonzalo Rodriguez. Directrizes político-criminales des Anteproyecto
de Código Penal. In: MIR, Santiago. Política criminal y reforma de Derecho
Penal. Bogotá: Temis, 1982.
NELLIS, Mike. The electronic monitoring of offenders in England and Wales:
recent developments and future prospects. British Journal of Criminology, v.
31, n. 2, p. 165-185, 1991.
NELLIS, Mike; BEYENS, Kristel; KAMINSKI, Dan. (ed.). Electronically monitored
punishment: International and critical perspectives. London: Routledge, 2012.
REICHMAN, Nancy. Managing crime risks: Toward an insurance-based model of
social control. Research in Law Deviance and Social Control, v. 8, p. 151-172,
1986.
SCHEINGOLD, Stuart. The politics of law and order: Street crime and public
policy. New York: Longman Inc, 1984.

35
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E A POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO PENAL HÍBRIDO
André Leonardo Copetti Santos

SCHWITZGEBEL, Ralph; SCHWITZGEBEL, Robert; PAHNKE, Walter N.; HURD,


Willian Sprech. A program of research in behavioral electronics. Behavioral
Science, v. 9, p. 233-238, 1963.
TONRY, Michael. Crime and justice in America 1975-2025. Crime and Justice, v.
42, n. 1, p. 141-198, 2013.
TYLER, Tom R.; BOECKMANN, Robert J. Three strikes and you are out, but why?
The psychology of public support for punishing rule breakers. Law & Society
Review, v. 31, n. 2, p. 237-266, 1997.
VALDÉS, Carlos García. Introducción a la Penologia. Madrid: Universidad
Compostela, 1981.
WILKINS, Leslie T. Crime and criminal justice at the turn of the century. Annals
of the American Academy of Political and Social Science, v. 408, p. 13-29, 1973.

36
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO
E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A Proteção Jurídica das Diferenças Identitárias
na Suprema Corte Brasileira1

Doglas Cesar Lucas

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A sociedade contemporânea tem protagonizado reivindicações de
cunho identitário que reclamam o reconhecimento jurídico de suas diferenças.
Notadamente no Brasil crescem as legislações, decisões judiciais, produção
teórica e políticas públicas que incorporam na agenda democrática a defesa
jurídica da diferença (questões de gênero, étnicas, de cor, de idade, etc.) como
um valor fundamental para a proteção e inclusão das “minorias”. Por isso,
entender as causas, os limites, a densidade e a extensão desse movimento
político-jurídico brasileiro em nome das causas identitárias e sua repercussão
no campo da teoria jurídica é importante para a formação de saberes e práticas
que estimulem e situem o diálogo entre a igualdade e a diferença no contexto
de um Direito e de um Estado Democráticos.
As decisões do Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, têm ocupado
um lugar central nesse processo de reconhecimento e proteção identitária.
Nesse cenário de ambivalências e de reclamos por reconhecimento das
diferenças, este texto pretende responder aos seguintes questionamentos:
Quais os elementos fundamentadores do direito à diferença identitária que

1
Texto produzido no âmbito do projeto de pesquisa “ Direitos Humanos e a proteção jurídica das
diferenças identitárias nas decisões contemporâneas do STF”, financiado pela Chamada CNPq/MCTI/
FNDCT Nº 18/2021.

37
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

estão presentes nas decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal


nas últimas duas décadas? A Corte tem promovido excessos ativistas nesse
tipo de decisão? É possível extrair das decisões do Supremo Tribunal Federal
elementos substanciais que indiquem o surgimento de um constitucionalismo
de tipo identitário e uma teoria constitucional do direito à diversidade?
A pesquisa valeu-se da metodologia de revisão bibliográfica crítica
das categorias estudadas, visando a traçar um itinerário teórico do direito
à diferença, diversidade e reconhecimento na teoria do Direito e no Direito
Constitucional brasileiro. Para responder do ponto de vista da práxis jurídica
aos questionamentos formulados, selecionaram-se decisões paradigmáticas
do Supremo Tribunal Federal tendo como recorte cronológico o período
2000-2023, no bojo das quais projeta-se a pauta identitária e o direito das
minorias, o que permite analisar os movimentos da Corte em direção (ou não)
à afirmação de um constitucionalismo liberal identitário.

1 IDENTIDADE E DIFERENÇA EM BUSCA DE PROTEÇÃO JURÍDICA


Referências ao termo identidade proliferam em todos os lugares.
Identidade cultural, nacional, religiosa, étnica, de gênero, profissional,
organizacional, etc., sugerem uma ideia de valor positivo, uma qualidade que
agrega particularidades e garante a unidade com base em uma representação
comum. Parece que não se pode acessar ao mundo sem recorrer a uma
identidade, destaca Francesco Remotti (2010). Ela sugere ser, no contexto
contemporâneo de inseguranças, uma ilha de proteção, uma promessa de
certeza e de estabilidade.
Para isso a identidade depende de certa obsessão metafísica, de
uma ligação abstrata a algo que, para além das particularidades, garante a
persecução de um projeto compartilhado. É como se somente na unidade
dessa representação as particularidades adquirissem sentido. Esse apelo ao
semelhante, porém, ao igual, esconde um jogo ambivalente com o seu oposto,
com a sua diferença que é condição mesma de possibilidade para a identidade.
Definitivamente a identidade só é, em si, um evento possível na paradoxal
relação com o outro, com o estranho, com a sua diferença (Resta, 2011). A
criação das condições de igualdade dentro da comunidade são, também, as
condições de diferença para fora dela. A amizade entre iguais, nesse sentido,

38
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

pressupõe uma desconfiança entre os diferentes. Os de dentro e os de fora


se institucionalizam. Para se incluir os primeiros faz-se necessário excluir os
segundos.
A igualdade nacional, como se sabe, fortemente homogeneizadora e
ao mesmo tempo negadora das diferenças, coexistiu com o individualismo
e a afirmação do “eu” como sujeito em si mesmo, resultado dos contornos
impessoais que a vida moderna passou a permitir e a considerar. De fato, a
modernidade liberal é, nesse sentido, um momento paradoxal. Ao mesmo
tempo em que prescreve a igualdade de todos perante a lei e que institui
um Estado legitimado pela convenção entre iguais, cria as condições para o
florescimento de um ethos individual centrado na liberdade e na autonomia
do sujeito, condição que ecoa nas diversas demandas de cunho individualista
que o período vê eclodir e que notadamente caracterizam o espaço de
pertencimento como uma invenção da igualdade num ambiente de severas
diferenças em conflito, sejam elas externas ou internas ao espaço estatal.
O acirramento desse processo, então, torna o indivíduo, sem perder
seu privilegiado vínculo nacional, uma biografia mais complexa, pois sua
lealdade estatal, sustentada na sua pertença espacial e temporal, evidencia
a universalidade de sua igualdade, enquanto que sua liberdade permite
refundar, a todo o tempo, novas lealdades com o seu eu-semelhante (seja no
campo econômico, religioso, cultural, étnico, etc.) e expor suas diferenças.
Afirma sua etnia, sua cor, sua religião, sua sexualidade, seu gênero, etc.,
bem como reconhece as diferenças materiais entre sujeitos de um mesmo
Estado como algo próprio da liberdade em movimento. Iguais perante a lei,
diferentes enquanto sujeitos históricos, o sujeito vê as diferenças se aguçarem,
notadamente no campo econômico, com o desenvolvimento da matriz
produtiva capitalista e que com o avanço substancial das democracias constitu-
cionais que deram visibilidade a uma nova agenda de demandas coletivas
de cunho identitário, centradas, contudo, numa espécie de enraizamento do
coletivo no individual (Ferry, 2010).
Isso não quer dizer que as formas de identidade-nós, de cunho
comunitarista, tenham desaparecido com a modernidade e com a globalização.
Não é isso que se está afirmando. O que se percebe é um movimento
razoavelmente complexo em que a identidade-nós, tão cara às sociedades
mais simples e à organização do mundo antigo e de certa forma medieval,

39
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

começou a transpor-se para uma identidade-eu. Isso significa que com o


avanço da agenda moderna e com a conformação de um marco globalizante,
notadamente nas áreas tecnológica, ambiental, econômica e comunicacional,
a identidade-eu passou a ter um enorme significado na condução dos projetos
pessoais e na pauta de satisfações, desejos e insegurança dos indivíduos que
não se encontram mais vinculados às modalidades tradicionais de identidade
(Giddens, 2002). Aos poucos o sujeito ganhou autonomia e lançou-se numa
aventura centrada na liberdade, tendo de conviver, nesse mesmo processo,
com grande dose de incerteza e insegurança que no contexto das comunidades
tradicionais era praticamente desconhecido. Bauman (2010) chega a dizer que
a modernidade sólida foi substituída por uma modernidade liquefeita, por um
novo estado de coisas em que a insegurança dos projetos individuais agoniza
o sujeito que não encontra mais uma comunidade reprodutora de tradições
compartilhadas coletivamente que possa lhe restaurar a estabilidade.
A importância do papel da cultura, de certas práticas e costumes sociais
locais na definição da identidade, entretanto, não representa necessariamente
uma contradição em relação ao processo de generalização e unificação das
instituições, dos símbolos e dos modos de vida perpetrados pela globalização,
mas, paradoxalmente, parece apontar para a ocorrência de uma resposta reativa
do particular às indiferenças alimentadas pelos mecanismos de padronização
que afetam mundialmente quase todos os espaços de produção da vida social.
Os novos reclamos por identidade e diferença, segundo Giacomo Marramao,
refletem uma reação aos efeitos de uma globalização que uniformiza mas
não universaliza, que comprime mas não unifica, “una mutua implicazione
di ‘omogeneizzazione’ ed ‘eterogeneizazzione’. Un’inclusione della ‘località’
della differenza nella stessa composizione organica del globale” (2003, p. 40).
Refletem, na posição de Zygmunt Bauman (2005), uma defesa-resposta contra
um fenômeno que tende a desenraizar os vínculos identitários, tornando-os
efêmeros, provisórios, sem continuidade, promovendo, por conta disso, o
fortalecimento ou mesmo o retorno da ideia de comunidade e de suas formas
de lealdade e de pertença para com os semelhantes, uma maneira encontrada
para se conquistar mais segurança e igualdade num mosaico de indistinções
que parece desfavorecer as aproximações humanas mais duradouras.

40
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

Em decorrência da fragilização das formas tradicionais de se


estabelecer vínculos comuns de lealdade, resultado de um mundo em
mudanças contínuas, de transitoriedade permanente, os sujeitos tendem a
ser seduzidos pelo discurso bastante tentador de retorno à “comunidade”,
uma forma de buscar segurança num contexto de incertezas. A comunidade é
requisitada como um abrigo contra as incertezas globais, como uma condição
de possibilidade para que os projetos de vida possam ganhar sentido no
entendimento compartilhado. Os reclamos por identidade aparecem, então,
como uma resposta à insegurança, como uma tentativa de se estabelecer
lealdades entre semelhantes numa sociedade de sujeitos desenraizados, na
qual os laços comunitários tradicionais são cada vez menos perenes.
Ocorre, no entanto, que nem mesmo a comunidade tem conseguido
desempenhar habilmente esse papel (quando não o dificulta ainda mais),
pois a forma como o mundo estimula a realização de projetos seguros de
vida, sempre como um desafio individualizado, parece não ser a receita mais
adequada para alcançar tais objetivos, o que tende a aumentar ainda mais
a insegurança. Além disso, a estratégia de fechamento das comunidades
em torno de si mesmas tem acirrado a guerra do “nós” contra o “eles”,
proliferando inúmeros ambientes forjadores de identidade cultural que,
paradoxalmente, tendem a potencializar as diferenças culturais e aumentar os
reclamos por diversidade; no mesmo instante em que a comunidade defende
a homogeneidade cultural e proíbe o ingresso de qualquer coisa que lhe
seja estranha, alimenta, com isso, os medos e as incertezas que inicialmente
pretendia combater. Quanto maior a insegurança sentida pelos sujeitos de uma
comunidade, menores são as chances de se estabelecer uma abertura para o
diálogo com os outros diferentes e mais fortes serão as medidas de segregação
e divisão, restando prejudicada a conformação de uma comunidade “tecida
em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; de uma
comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos iguais
de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos”
(Bauman, 2003a, p. 134).
Nenhum projeto que se elabore na sociedade contemporânea, comenta
Bauman, consegue contar com a garantia de perenidade. Tudo se apresenta
fugaz e efêmero. As afiliações sociais que tradicionalmente eram consideradas
determinantes da identidade, como o Estado, a família, a religião, a raça, o

41
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

gênero, revelam-se cada vez mais frágeis e, no seu lugar, novas formas de
convívio social são projetadas como fontes de pertencimento que possibilitam
a elaboração da identidade. É como se as identidades tradicionais, prossegue
Bauman, mais sólidas e perenes, não funcionassem nesse mundo de realidades
líquidas; como se tivessem desaparecido os grandes relatos unificadores,
diria Jean-François Lyotard (2004), eclodindo em seu lugar uma “sociedade
transparente” ( Vattimo, 1990) na qual as etnias, culturas, gênero, raças e
comunidades apenas pudessem manifestar sua existência pela diferença de
suas identidades.
Nessa trilha de argumentos, Stuart Hall (2005) destaca que a sociedade
da modernidade tardia processa mudanças constantes, rápidas e provisórias, as
quais têm contribuído para o descentramento, deslocamento e fragmentação
das identidades modernas. Não apenas as localizações sociais tradicionais
(família, gênero, religião, nacionalidade, raça) são enfraquecidas, mas o
próprio “sentido de si” estável, menciona Hall, perde sua referenciabili-
dade nesse contexto. Assim, a identidade totalmente “unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia”. Em vez disso, prossegue o autor, os
sujeitos deparam-se com uma multiplicidade de sistemas de significação e de
representação cultural ao mesmo tempo, com cada um dos quais se é possível
identificar ao menos temporariamente. O processo de fragmentação das
identidades produz, então, uma espécie de subjetividade flexível, decorrente
da vivência entrelaçada de diferentes culturas dentro de um mesmo indivíduo
que, na composição de sua vida, transita por uma diversidade de grupos
sociais com práticas diferenciadas e até divergentes.
Na sociedade contemporânea e mesmo na modernidade, como já
referimos, o indivíduo convive ao mesmo tempo em vários espaços. Sua vida
não é linear e nem pré-ordenada. É complexa e muitas vezes até caótica. Não
mantém vínculos com um único sistema de sociabilidade. Não se pode, por
isso, falar de um vínculo exclusivo com uma unidade, mas com vínculos com
várias unidades a um só tempo. A própria história como algo unitário parece
não ter mais sentido, disse Vattimo. “Vivir en este mundo múltiple significa
experimentar la libertad como oscilación continua entre la pertenencia
y el extrañamiento” ( Vattimo, 2000, p. 29). Apoiando-se em Heidegger e
Nietzsche, o autor refere que o ser não coincide necessariamente com o
estável, fixo e permanente, senão que tem uma relação mais próxima com o

42
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

evento, consenso, diálogo e interpretação, observando-se que as experiências


oscilantes do mundo contemporâneo podem servir como oportunidade de
um novo modo de ser humano. O eu e o outro, portanto, encontram-se numa
fase dinâmica de suas constituições identificadoras.
A essência identitária desmoronou e em seu lugar muitas identidades
cambiantes e diversas convivem num mesmo espaço, em espaços diferentes,
produzindo estranhamento e reafirmando suas unidades. Se na sociedade
pré-moderna os vínculos identitários eram fiéis a uma certa ordem de
estabilidade, o que se vê no mundo moderno e que foi potencializado no
contemporâneo é uma abertura do mundo para o indivíduo que se coloca
sobre o dilema da unificação versus fragmentação. Esse processo não retira
a força da identidade, mas acaba com a ideia de uma identidade totalizante,
de uma grande narrativa que dá conta de toda experiência histórica do
sujeito. No seu lugar aparecem identidades múltiplas, fluidas e móveis,
advogando cada uma delas a sua diferença e apostando em seu estatuto de
reconhecimento. Esse é o enredo atual da identidade: sujeitos atomizados
buscando, cada um à sua maneira, afirmar sua diferença e ver reconhecida
sua particular forma de estar no mundo. Cada uma dessas diferenças, dessas
identidades, reclama reconhecimento e proteção jurídica, um direito de estar
no mundo em igualdade de condições. Os direitos humanos qualificam e
intensificam a sua atuação quando garantem essa proteção. Definitivamente,
as identidades reclamam reconhecimento jurídico para cada uma das suas
formas de identificação, como um apelo fundamental para se viver a diferença
em igualdade de condições.

2 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SUA FUNÇÃO


CONTRAMAJORITÁRIA: ITINERÁRIOS DE UM
CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁTIO
A atuação do STF foi profundamente modificada nas últimas décadas.
A realidade contemporânea tornou-se muito complexa e novos temas, que
sempre foram ou deveriam ser da seara política, chegam à Corte a todo
momento. Não é exagero afirmar que o STF tem um protagonismo na
República bastante expressivo e, para muitos analistas, exagerado e indevido.
Seja em temas eminentemente morais (como casamento de pessoas do mesmo
sexo ou aborto) ou temas políticos (critérios eleitorais e procedimentos

43
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

de impedimento), o STF é quase sempre incitado a se pronunciar. Com o


crescimento da comunicação digital, não demorou a se tornar, também, um
assunto público não institucional, do sendo comum, alvo de apoio, mas
também de críticas odiosas. Não sejamos ingênuos, porém. O acesso ao STF é
mais facilitado aos núcleos formais do poder político e econômico do que aos
grupos periféricos e vulneráveis. Apesar de ter enfrentado temas importantes
sobre identidade, diferença e diversidade, a Corte máxima de nosso país ainda
não é uma caixa de ressonância dos direitos das minorias excluídas. E as
estatísticas de acesso ao STF, aduz Nunes (2020), comprovam isso.
No campo teórico muitos acusam o STF de ativismo, de invadir as
competências do Parlamento, de dizer mais do que a Constituição diz. E
alerte-se: no Brasil, ativismo é considerado, como afirma Abboud (2022),
pronunciamento judicial que substitui a legalidade vigente pelas convicções
pessoais, é discricionariedade e voluntarismo judicial, adoção de valores
pessoais como se fossem jurídicos (ao qual nos opomos radicalmente). Os
limites entre a política e o Direito parece que foram estreitados pela Corte,
aduzem aqueles que denunciam uma postura ativista que tem judicializado
excessivamente a vida social e que teria tornado o STF um protagonista
ilegítimo, se comparado com os outros poderes. Outros sustentam, sem
definir limites muito claros para tanto, que o STF tenha uma atuação
substancialista capaz de concretizar direitos e garantir a eficácia dos conteúdos
constitucionais. Quase todos defendem que as Cortes constitucionais têm
uma missão contramajoritária que se revela fundamental para proteger
o direito das minorias dos arroubos estatais e mesmo das vontades das
maiorias eventuais. Nesse cenário de muitas divergências sobre os limites
da jurisdição constitucional, o certo é que os procedimentos, os temas e os
atores que compõem o itinerário do constitucionalismo contemporâneo foram
profundamente alterados nas últimas décadas e têm exigido novas análises e
colocado, para a práxis jurídica, novos desafios.
Independentemente de outras questões que de fato podem ser
problematizadas em relação ao STF, não há dúvida de que a sua atuação
contramajoritária na proteção dos direitos das minorias configura-se como
um dos movimentos mais notórios da Corte e de certo modo do constituciona-
lismo nos últimos 20 anos. Especialmente no Brasil as minorias e suas pautas
identitárias, que têm pouco apoio no Parlamento, acabaram encontrando no

44
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

STF um caminho para o reconhecimento de seus direitos. De fato, pode-se


objetar se esse foi o melhor caminho, posto que temas desse calibre deveriam
ser tratados pelos órgãos democraticamente eleitos. O fato, contudo, é que
muitas minorias foram reconhecidas e protegidas juridicamente por decisões
do STF, muitas vezes antes da legislação. E é igualmente verdadeiro que o
tema da diferença e diversidade estão mais presentes na gramática decisória
da Corte. Como muitos desses temas são considerados sensíveis por parte da
sociedade brasileira, não é de se estranhar que grupos conservadores tenham
se pronunciado radicalmente contra muitas dessas decisões e contra a própria
Corte.
O STF, portanto, tem se inserido, mesmo que lentamente, num constitu-
cionalismo de tipo identitário, em que o direito à diferença, à diversidade,
passa a ocupar um lugar de destaque. Como mencionamos anteriormente,
muitas decisões desse tipo, não sem críticas, foram tomadas no âmbito da
Corte, e muitas ações dessa natureza estão pendentes de julgamento, como
a ADPF 442, que trata da descriminalização do aborto. Esse tipo de decisões,
de cunho contramajoritário, de proteção aos grupos minoritários, não fazia
parte da tradição moderna do constitucionalismo, baseado sobretudo na ideia
de igualdade e individualidade abstratas. O objeto dos direitos era o sujeito
individual standard, que atendesse aos padrões de titularidade de direitos,
portanto apenas o homem branco, hétero, cristão e proprietário. Somente
no final 20 que a teoria do direito, as leis e as decisões judiciais começaram
a reconhecer e proteger os grupos historicamente vulnerabilizados, mas é
apenas no decorrer deste século 21 que as Cortes constitucionais como a
brasileira passaram a enfrentar esses temas de modo mais rotineiro. Ou seja,
é somente quando as minorias se organizam e passam a reclamar um estatuto
jurídico próprio que o Estado e a sociedade internacional criam mecanismos
de reconhecimento e proteção.
Evidentemente que o novo papel das Cortes Constitucionais tem
relação com um novo constitucionalismo, que aflora no segundo pós-Guerra e
reconhece a positividade e concretude ampla das normas constitucionais, que
passam a sedimentar um importante conteúdo social, estabelecendo normas
programáticas, consistentes em metas a serem atingidas pelo Estado, bem
como a proteção contramajoritária de minorias a cargo do poder Judiciário.
Esse novo pensamento reflete-se no conteúdo das Constituições. Se antes elas

45
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

se limitavam a estabelecer os fundamentos da organização do Estado, agora


passam a prever valores e opções políticas gerais e específicas que instrumen-
talizam uma nova forma de julgar. Luís Roberto Barroso (2005), nesse
sentido, leciona que o neoconstitucionalismo identifica um amplo conjunto
de modificações ocorridas no Estado e no Direito Constitucional, apontando
os marcos histórico, filosófico e teórico que subsidiam o surgimento do
neoconstitucionalismo.
O marco teórico do neoconstitucionalismo, a seu turno, é o conjunto
de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão
da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática
da interpretação constitucional. O reconhecimento da força normativa da
Constituição, dirá Hesse (1991), busca garantir a concretização dos valores
inseridos no texto constitucional. A Constituição não pode e não deve ser
vista como uma mera carta de intenções, mas como um conjunto de valores
que deve ter realização prática.
Com a ênfase dada aos direitos fundamentais, é imperativo que a
jurisdição constitucional passe a ganhar novos contornos: passa a ser tarefa,
também, do poder Judiciário, proteger os direitos fundamentais, assumindo
inclusive uma postura contramajoritária. Segundo Cardinali (2018, p. 114),
uma das justificativa mais comuns para o exercício contramajoritário
da jurisdição constitucional é a tutela dos direitos fundamentais das
minorias, principalmente daquelas socialmente estigmatizadas, a
partir da ideia de que direitos fundamentais operam como trunfos,
não estando submetidos a considerações majoritárias. Assim, o poder
Judiciário e, em especial, a Suprema Corte teriam o papel de servir
como o refúgio dos párias sociais para fazer valer os seus direitos
fundamentais, não adequadamente tutelados pelos poderes políticos
representativos.

Dworkin (2002), ao tratar os direitos como trunfos, refere que eles


devem se sobrepor a meros cálculos de utilidade social e concepções de
moralidade, mesmo que estas sejam majoritárias. Ao enfrentar o argumento
de que os tribunais não possuem legitimidade para decidir sobre questões
constitucionais importantes, uma vez que não se compõem de magistrados
eleitos, devendo tais assuntos ser resolvidos pela maioria política, Dworkin
destaca que uma das principais características do constitucionalismo moderno

46
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

é garantir os direitos individuais, mesmo das minorias, pela limitação dos


poderes políticos da maioria, razão pela qual não parece que essa mesma
maioria seja a mais indicada para julgar as suas próprias questões. Em outras
palavras, como a Constituição opera como um limitador da vontade da maioria,
declinar em favor dessa mesma maioria o poder de decidir de modo exclusivo
sobre os seus próprios limites não satisfaz qualquer argumento derivado da
democracia. Dworkin alega, ainda, que os legisladores não se encontram,
institucionalmente, em situação mais privilegiada que os magistrados para
decidirem sobre questões de Direito, e que, por consequência, não há
nenhuma razão plausível para imaginar que as decisões do Legislativo sobre
direitos sejam mais acertadas que as tomadas pelo Judiciário.
Isso não significa, contudo, que Dworkin concorde com decisões
discricionárias, voluntaristas e populistas. Pelo contrário. A criação jurispru-
dencial, defende o autor, deve respeitar os princípios formulados ao longo da
história de uma comunidade, de modo que cada decisão judicial se origine de
uma referência jurídica compartilhada, parâmetro de um processo sucessivo
de decisões que sustentam a integridade contínua do Direito. “A interpretação
criativa do juiz não seria a do exercício do poder discricionário, como na
teoria positivista, nos casos de ausência ou de indeterminação da norma. Ao
contrário, dado que sua interpretação deve estar constrangida pelo princípio
da coerência normativa face à história do seu direito e da sua cultura política”
( Vianna et al. , 1999, p. 39). Todas as inovações e alterações no Direito devem
respeitar esta coerência histórica que preserva o enredo do Direito e que, por
isso, permite a elaboração de novos princípios que reforcem a ordem jurídica
de que ele faça parte.
Streck (2013), na mesma direção, crítica radicalmente o ativismo
à brasileira que, segundo ele, mesmo no STF, promove decisões seguindo
padrões estritamente políticos, a partir de argumentos utilitaristas/consequen-
cialistas. Destaca que os “diversos grupos que leva(ra)m as suas reivindicações
ao Tribunal Maior – demarcação de terras indígenas, a questão das cotas, a
questão do aborto, as questões homoafetivas, embriões, demandas coletivas
de saúde, etc.”, tiveram as suas “reivindicações” atendidas pelo Judiciário (e
não pelo Executivo ou o Legislativo). O autor é enfático:

47
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

Em boa parcela desses pleitos, julgados por intermédio de ADIns,


ADPFs e HCs, a resposta do STF foi invasiva, por vezes ingressando nas
competências dos demais poderes (não importa, aqui, se esses “demais
poderes” “mereceram” essa invasão ou não, em face de suas inércias).
Aliás, isso pode não ser de todo um mal. Talvez o grande problema
esteja na distinção entre judicialização e ativismo. A primeira acontece
porque decorre de (in)competências de poderes e instituições,
abrindo caminho-espaço para demandas das mais variadas junto ao
Judiciário; a segunda é, digamos assim, behaviorista, dependendo da
visão individual de cada julgador. A judicialização pode ser inexorável;
o ativismo não. O ativismo não faz bem à democracia (Streck, 2013,
p. 212).

É inegável que o papel contramajoritário das Cortes Supremas, e isso


vale para o STF, por sua vez encontra certos limitadores no mecanismo de
freios e contrapesos que permite a ação e reação do poder Legislativo, por
exemplo, por meio do chamado efeito backlash, cada vez mais frequente, à
medida que avança a pauta contramajoritária na Suprema Corte. O constitucio-
nalismo popular propugna o uso estratégico do backlash como uma poderosa
ferramenta de pressão sobre os tribunais. Nesse sentido, o efeito backlash
pode ser entendido como a contraforça que surge, no seio da sociedade, ante
decisões do poder Judiciário que interpretam a Constituição (Pimentel, 2017 ).
Por isso, decisões do STF sobre temas considerados impopulares não encerram
a questão e nem convertem a oposição política. A disputa sobre os significados
constitucionais, portanto, continua por muito tempo (Cardinali, 2018).
Luís Roberto Barroso (2015 , p. 15), perspectivando aquilo que ele
chama de “judicialização da vida”, fala também no papel representativo, que
funciona ao lado do contramajoritário e consiste no “atendimento, pelo
Tribunal, de demandas sociais e de anseios políticos que não foram satisfeitos
a tempo e a hora pelo Congresso Nacional.” Fato é que o Supremo Tribunal
Federal tem aludido em seus votos sobre uma série de novos constitucio-
nalismos, entre os quais é possível citar o constitucionalismo fraternal, o
constitucionalismo abusivo (também chamado de legalismo autocrático ou
democracia iliberal), o constitucionalismo latino-americano, o constituciona-
lismo popular (segundo o qual o intérprete final da Constituição deve ser o
povo), etc. Nessa mesma direção, portanto, não se fala de contramajoritário
somente no sentido de ser contra a maioria formal do Legislativo, mas de uma

48
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

resistência popular dominante que, por conta do nosso modelo eleitoral e de


representatividade, é de fato majoritariamente contrária à determinada lei ou
política pública.
Por mais importantes que sejam, e de fato são, os direitos das minorias,
o direito à identidade e a proteção da diversidade, é preciso ter cuidado
para não avançar de qualquer modo e de qualquer maneira, fomentando
decisionismos voluntaristas e perigosos. O limite material e procedimental é
sempre a Constituição. Decisões contramajoritárias devem ser fundadas nos
exatos termos da legalidade constitucional, sem avançar nas legítimas funções
do poder Legislativo. Não se pode, por melhor que seja a agenda (mesmo que
identitária), desconfigurar os arranjos institucionais da República e colocar em
risco a própria noção do que é entendido como direito e o que é entendido
como política. O Judiciário precisa se proteger da política, da economia e
do subjetivismo infundado (Abboud, 2022). Uma decisão contramajoritária
não pode ser qualquer decisão, mesmo que alcance um tema identitário; não
pode fomentar ativismos de nenhuma ordem, seja ele moralista, messiânico,
populista, etc. Os direitos das minorias devem ser garantidos porque são
juridicamente protegidos, porque se amparam na tradição constitucional.
Não é objeto principal deste texto problematizar se as decisões do
STF em matéria de direito das minorias são ou não ativistas, mas é inegável
que a Corte, em certos julgados (e não estamos discutindo o mérito), parece
ter dito mais do que comumente se espera que uma Corte o faça (o caso de
equiparação do crime de LGBIfobia com racismo, nas ADO 26 e MI 4.733, é
sem dúvida um desses casos). Feito esse alerta final, esta pesquisa trabalha com
a hipótese segundo a qual o Supremo Tribunal Federal (apesar de algumas
controvérsias) vem encabeçando, sobretudo nas últimas duas décadas, um
novo constitucionalismo, de corte identitário, vocacionado a concretizar,
mesmo que de modo lento e errático, os direitos fundamentais dos grupos
minoritários e historicamente vulneráveis. Diferença, diversidade, identidade,
multiculturalismo, são termos cada vez mais presentes nas decisões da Corte
máxima do país. Apesar de os avanços serem sempre maiores quanto maior
é a aceitabilidade da opinião pública, é inegável que esses novos temas estão
implicando a cena da jurisdição constitucional e alterando seu protagonismo
nas questões republicanas. Vejamos na sequência algumas dessas decisões que
nos permitem concluir nessa direção.

49
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

3 IGUALDADE E DIFERENÇA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:


UMA ETERNA AMBIVALÊNCIA
Nesta derradeira seção a análise centrar-se-á, apenas de modo noticioso,
sobre os casos do Supremo Tribunal Federal que implicaram, ou ao menos têm
evidenciado para uma virada paradigmática na atuação da Suprema Corte, no
sentido de fazer do seu atuar contramajoritário um instrumento de proteção
das diferenças identitárias. Como já referimos, não trataremos neste texto
da questão ativista ou não dessas decisões, apesar de reconhecermos que
esse debate seja necessário e deva ser feito. Interessa-nos aqui demostrar que
esses temas têm ocupado um espaço privilegiado na jurisdição constitucional,
que tem acolhido, mesmo que tardiamente e de modo ainda incipiente, as
demandas identitárias e consagrado o direito à diversidade e à diferença como
condições para o exercício efetivo da igualdade material.
É importante advertir que os casos analisados foram escolhidos
levando-se em consideração, primeiramente, a sua relevância temática para o
direito das respectivas minorias que são indicadas em cada tópico. Outrossim,
partiu-se do pressuposto de que esse movimento neoconstitucional instalou-se
no Brasil com mais vigor nas últimas duas décadas, de modo que o recorte
cronológico é aquele do período compreendido entre 2000 e 2023.

3.1 Raça e Racismo


Um dos mais importantes julgamentos da última década do Supremo
Tribunal Federal, justamente por ser o Brasil o último país a abolir a escravidão
nas Américas, tem como pano de fundo o tema das cotas raciais e a questão
do racismo estrutural e institucional. A ADPF 186, julgada em 2012, envolveu
o sistema de cotas utilizado pela Universidade de Brasília (UnB), a primeira
universidade federal a adotar esse mecanismo. A ação questionava os atos
da instituição de ensino que instituíram o sistema de reserva de vagas com
base em critério étnico-racial no processo de seleção para ingresso no Ensino
Superior.
Em 2009 o Partido Democratas (DEM) questionou, por meio da ADPF
186, os atos administrativos que na UnB determinaram a reserva de vagas
oferecidas pela universidade (medida que vinha sendo efetivada desde 2004).
O partido alegou que a política de cotas adotada na UnB feria vários preceitos

50
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

fundamentais da Constituição Federal, como os princípios da dignidade da


pessoa humana, de repúdio ao racismo e da igualdade, entre outros, além de
dispositivos que estabelecem o direito universal à educação. No julgamento,
em 26 de abril de 2012 (acórdão publicado em 2014), todos os ministros
seguiram o voto do relator, ministro Lewandowski, pela improcedência da
ADPF. Esse posicionamento repercutiu em outras ações que trataram da
mesma matéria e consolidou o entendimento da Corte sobre a constituciona-
lidade da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012).
A decisão do STF sustenta a tese de que as ações afirmativas, praticadas
por prazo limitado, em benefício de determinados grupos específicos
historicamente prejudicados, prestigia (em vez de contrariar) o princípio
constitucional da igualdade material. Destaca que “o modelo constitucional
brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as
distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da
igualdade”. Uma leitura da Constituição, centrada na ideia de pluralidade e
diversidade como valores positivos, permite defender que a “Justiça social,
hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço
coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla
valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles
reputados dominantes” (Brasil, 2012c). A Procuradoria Geral da República,
nessa mesma ADPF 186, representada pela vice-procuradora geral, Débora
Duprat, é enfática ao defender que políticas afirmativas dessa natureza,
apoiadas nos artigos 215 e 216 da CF, reconhecem e protegem, expressamente,
o caráter plural da sociedade brasileira, recuperando o espaço ontológico da
diferença.
Ao final, prevaleceu o voto do Relator, ministro Ricardo Lewandowski
(Brasil, 2012c, p. 46), segundo o qual
as experiências submetidas ao crivo desta Suprema Corte têm como
propósito a correção de desigualdades sociais, historicamente
determinadas, bem como a promoção da diversidade cultural na
comunidade acadêmica e científica. No caso da Universidade de
Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros e
de “um pequeno número” delas para “índios de todos os Estados
brasileiros”, pelo prazo de 10 anos, constitui providência adequada
e proporcional ao atingimento dos mencionados desideratos. Dito

51
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

de outro modo, a política de ação afirmativa adotada pela UnB não


se mostra desproporcional ou irrazoável, afigurando-se, também sob
esse ângulo, compatível com os valores e princípios da Constituição.

A ação, ajuizada pelo Partido Democratas – DEM em 2009, firma


um importante posicionamento do Supremo Tribunal Federal que hoje é
condizente, inclusive, com a Convenção Interamericana contra o Racismo,
a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela
República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013,
incorporada em 2022 ao ordenamento jurídico brasileiro na forma de emenda
constitucional e em cujo artigo 5º lê-se que
os Estados-Partes comprometem-se a adotar as políticas especiais e
ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos
direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao
racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância,
com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade
de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos.
Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias
ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não
resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos
e não se estenderão além de um período razoável ou após terem
alcançado seu objetivo.

Esse entendimento da Suprema Corte foi corroborado mais


recentemente pelo Plenário nos autos da ADC 41, de Relatoria do ministro
Roberto Barroso, cujo julgamento ocorreu em 8 de junho de 2017, tendo
prevalecido o entendimento de que “É constitucional a Lei n° 12.990/2014,
que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos
públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito
da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos.”
Outrossim, entendeu-se que “É legítima a utilização, além da autodeclaração,
de critérios subsidiários de heteroidentificação [...], desde que respeitada a
dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
Nesse ínterim, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal lançou mão
da noção de ações afirmativas para responsabilizar o Estado no sentido de
viabilizar uma reparação histórica relativamente às pessoas negras e ao passado
escravocrata do país. A Suprema Corte encerra a discussão, ao menos por

52
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

ora, quanto à constitucionalidade do sistema de cotas raciais, o qual é tido


como condizente com o ordenamento jurídico brasileiro e com a Constituição,
especialmente levando-se em consideração os fundamentos e objetivos da
República Federativa do Brasil.

3.2 Comunidades Tradicionais: indígenas e quilombolas


Segundo o artigo 3º, inciso I do Decreto nº 6.040/2007, que institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição.
O artigo 231 da Constituição Federal assegura aos indígenas o
reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las e proteger e fazer respeitar todos
os seus bens.
Na PET 3.388, conhecida como Caso Raposa Serra do Sol, o Supremo
Tribunal Federal entendeu que somente são consideradas “terras tradicio-
nalmente ocupadas pelos índios” aquelas em que eles habitavam na data
da promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, 5 de outubro
de 1988, salvo nos casos do chamado renitente esbulho, e, complementar-
mente, se houver a efetiva relação dos indígenas com a terra, consistindo essa
característica no marco da tradicionalidade da ocupação. Com isso, adotou-se
a teoria do marco temporal. Assim, se, em 5 de outubro de 1988, a área em
questão não era ocupada por indígenas, isso significa, em tese, que ela não
terá a natureza indígena de que trata o artigo 231 da Magna Carta.
A discussão, porém, voltou ao Plenário do Supremo diante do Tema
1.031, cujo objetivo é dar uma “Definição do estatuto jurídico-constitucional
das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das
regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”. O recurso discute,
à luz dos artigos 5º, incisos XXXV, LIV e LV; e 231 da Constituição Federal,
o cabimento da reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio

53
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma) de área administrativamente


declarada como de tradicional ocupação indígena, localizada em parte da
Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina.
O relator, ministro Edson Fachin, já se manifestou pela teoria do
indigenato, ou seja, segundo a qual as terras tradicionalmente ocupadas
pelos indígenas constituem um direito inato, congênito, sendo anterior à
própria criação do Estado brasileiro, a quem incumbe tão somente demarcar
e declarar os limites territoriais. A natureza da decisão, então, é meramente
declaratória.
No voto do ministro relator, as terras indígenas foram caracterizadas
como “substrato inafastável do reconhecimento ao próprio direito de existir
dos povos indígenas, como notoriamente se observa da história dos índios
em nosso país.” Para ele, a discussão perpassa pela diversidade do modo de
ser indígena, pois
a compreensão de uma sociedade plural e de respeito à diversidade,
como aquela que a Constituição de 1988 busca constituir, exige que
se respeite o direito à autodeterminação desses povos, mantendo-os
fora do contato constante com outras pessoas, em respeito a seu
modo de vida e evitando sua dizimação, como ocorreu notoriamente
em nosso país com outras comunidades contatadas ao longo da
História. Sendo assim, e estando completamente alijadas do modo
de vida ocidental, de que modo farão prova essas comunidades
de estarem nas áreas que ocupam em 5 de outubro de 1988? Se
muitas dessas comunidades sequer são conhecidas pelo órgão
indigenista, sendo meramente estimadas sua existência e quantidade
de indivíduos, como assegurar com exatidão suas terras por meio do
“fato indígena”?

Diante do valoroso voto do ministro relator, ao que tudo indica, pode


haver uma virada jurisprudencial quanto à decisão anteriormente proferida, no
bojo da PET 3.388, de outubro de 2013, adotando-se, a partir de então, a teoria
mais condizente com o direito das minorias, qual seja, a teoria do indigenato,
defendida também pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH,
2018), no caso Povo Indígena Xucuru vs. República Federativa do Brasil,
alusivo à demora de mais de 16 anos do processo de demarcação de terras
indígenas da comunidade.

54
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

3.3 Pessoas com Deficiência


Historicamente, existe uma invisibilização da pessoa com deficiência.
Esse cenário vem mudando paulatinamente, conferindo-se maior autonomia
às pessoas com deficiência, a fim de que possam determinar-se quanto às suas
escolhas existenciais e estabelecer suas próprias concepções de vida boa.
No Brasil, a alteração legislativa mais importante nesse sentido foi a
Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), conhecida como Estatuto da
Pessoa com Deficiência, cujo objetivo é assegurar e promover, em condições
de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pelas
pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
O artigo 28, §1º e o artigo 30 do Estatuto preceituam que as escolas
privadas devem oferecer atendimento educacional adequado e inclusivo às
pessoas com deficiência sem que possam cobrar valores adicionais de qualquer
natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas para cumprimento
dessa obrigação. Diante da normativa, a Confederação Nacional dos Estabele-
cimentos de Ensino (Confenen) ajuizou ação de inconstitucionalidade contra
ambos os dispositivos legais. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, decidiu
que são constitucionais o artigo 28, §1º e o artigo 30 da Lei nº 13.146/2015.
Isso porque o dever de oferecer ensino às pessoas com deficiência não é
apenas do Estado, podendo ser exigido também das instituições privadas.
Ademais, para a Suprema Corte, o ensino inclusivo atende aos objetivos
constitucionais. Em seu voto o relator, ministro Edson Fachin, pontuou que “é
somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento
que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que
o bem de todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Recentemente, a Suprema Corte também discutiu o Decreto nº
10.502/2020, que instituía a “Política Nacional de Educação Especial:
Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida” que, entre outras,
estabelecia a instituição de classes especializadas em escolas regulares e de
escolas especializadas para pessoas com deficiência. O ato normativo foi
impugnado por meio da ADI 6.590. Para o Supremo Tribunal Federal, o
paradigma da educação inclusiva é o resultado de um processo de conquistas
sociais que afastaram a ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência

55
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

ou necessidades especiais para inseri-las no contexto da comunidade, de modo


que subverter esse paradigma significa, além de grave ofensa à Constituição de
1988, um retrocesso na proteção de direitos desses indivíduos.

3.4 Direitos das Mulheres


No que diz respeito aos direitos das mulheres, talvez o julgamento
mais importante do Supremo Tribunal Federal seja aquele pela constituciona-
lidade da Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006. O Supremo Tribunal Federal
julgou conjuntamente duas ações relacionadas com a Lei Maria da Penha: a
ADC 19, proposta pela Presidência da República, que tinha como objetivo
declarar constitucionais os artigos 1º, 33 e 41 da normativa, e a ADI 4.424,
proposta pelo Procurador-Geral da República, para o fim de dar interpretação
conforme aos artigos 12, inciso I, 16 e 41, ambos da Lei nº 11.340/2006, e
assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão
corporal, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no
ambiente doméstico. Para os ministros da Suprema Corte, a Lei não viola o
princípio da igualdade, porquanto justamente cria mecanismos para coibir e
prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, exatamente como
preconizado pelo §8º do artigo 226 da Constituição Federal, bem como pela
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a
Mulher, pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher e por outros tratados internacionais ratificados pela
República Federativa do Brasil. O relator, ministro Marco Aurélio, afirmou
que a Lei Maria da Penha promove a igualdade numa perspectiva material,
sem, no entanto, restringir de maneira desarrazoada o direito das pessoas
pertencentes ao gênero masculino. Ainda, no mesmo julgamento, o Supremo
Tribunal Federal definiu que foi legítima a opção do legislador de excluir tais
crimes do âmbito de incidência da Lei nº 9.099/95, isto é, da norma relativa
aos crimes de menor potencial ofensivo.
Outro julgamento importante diz respeito à possibilidade de
remarcação de teste de aptidão física para candidata gestante à época de sua
realização. A decisão foi tomada em novembro de 2018, no julgamento do RE
1.058.333, com repercussão geral reconhecida, firmando-se a tese segundo
a qual “É constitucional a remarcação do teste de aptidão física de candidata
que esteja grávida à época de sua realização, independentemente da previsão

56
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

expressa em edital do concurso público”. Para o relator do caso, ministro Luiz


Fux, negar esse direito à mulher em situação gestacional acirra a desigualdade
entre homens e mulheres.
Finalmente, outro julgamento da mais extrema importância refere-se
à inadmissibilidade, pelo Supremo Tribunal Federal, da tese da legítima
defesa da honra no Plenário do Tribunal do Júri. Na ADPF 779, o Supremo
Tribunal Federal decidiu que a tese da legítima defesa da honra é inconstitu-
cional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana (artigo 1º, III, da CF/88), da proteção à vida e da igualdade de gênero
(artigo 5º da CF/88). Segundo o ministro relator, Dias Toffoli, além de ser
atécnica, a ideia que subjaz à “legítima defesa da honra” tem raízes arcaicas no
Direito brasileiro, constituindo um ranço, na retórica de alguns operadores
jurídicos, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e
de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida
na Constituição de 1988.

3.5 Pessoas LGBTQIAPN+


Quanto à comunidade LGBTQIAPN+, um dos passos mais importantes
dados pelo Supremo Tribunal Federal foi o reconhecimento, no bojo da ADI
4.277 e da ADPF 132, das uniões entre pessoas do mesmo sexo como dignas
de proteção jurídica. Em maio de 2011 o Plenário do Supremo Tribunal
Federal equiparou, de forma unânime, as relações entre pessoas do mesmo
sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, portanto,
a união homoafetiva como um núcleo familiar. O foco da discussão foi o
artigo 1.723 do Código Civil, que define como união estável aquela “entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Ao discorrer sobre o
constitucionalismo fraternal, o ministro relator, Carlos Ayres Britto, mencionou
o princípio da diferença, também estudado, segundo ele, pelo italiano
Francesco Viola sob o conceito de “similitude”.
Avançando na pauta das minorias sexuais, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu aquilo que chamou de racismo social no bojo da ADO 26,
entendendo que a Lei nº 7.716/89 pode ser aplicada para punir as condutas
homofóbicas e transfóbicas. A Suprema Corte alude à “tolerância como

57
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

expressão da harmonia na diferença e o respeito pela diversidade das pessoas


e pela multiculturalidade dos povos”. Em seu voto, o ministro relator, Celso
de Mello, preceitua que
é possível constatar, a partir dessa breve exposição, que a comunidade
LGBT, longe de constituir uma coletividade homogênea, caracteriza-se,
na verdade, pela diversidade de seus integrantes, sendo formada pela
reunião de pessoas e grupos sociais distintos, apresentando elevado
grau de diferenciação entre si, embora unidos por um ponto comum:
a sua absoluta vulnerabilidade agravada por práticas discriminatórias e
atentatórias aos seus direitos e liberdades fundamentais (Brasil, 2019).

Com isso, decidiu-se que


até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a
implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos
XLI e XLII do artigo 5º da Constituição da República, as condutas
homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão
odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém,
por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua
dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante
adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos
na Lei nº 7.716, de 8.1.1989, constituindo, também, na hipótese de
homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo
torpe (Brasil, 2019).

Outro importante julgamento do Supremo Tribunal Federal envolveu


as pessoas trans. Nos autos do RE 670.422, com repercussão geral reconhecida
(Tema 761) decidiu-se que o transgênero tem direito fundamental subjetivo à
alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não
se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo,
o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente
pela via administrativa. Consignou-se, também, que essa alteração deve ser
averbada à margem do assento de nascimento, vedando-se expressamente a
inclusão do termo “transgênero”. Em seu voto, o ministro relator, Dias Toffoli,
pontuou que
em uma ordem jurídico-constitucional em que o respeito à dignidade
do ser humano e o poder-dever de garantir seus direitos se apresentam
como elementos centrais para o desenvolvimento da sociedade

58
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

brasileira, a diversidade fática e o pluralismo jurídico instituídos nos


levam a concluir que algumas soluções imprecisas de outros ramos do
Direito não se revelam adequadas para o enfrentamento de questões que
são íntimas à concretização dos direitos da personalidade (Brasil, 2018).

Com base no exposto, a Suprema Corte firmou a tese que restou


redigida nos seguintes termos:
I – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de
seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não
se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do
indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial
como diretamente pela via administrativa; II – Essa alteração deve
ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão
do termo “transgênero”; III – Nas certidões do registro não constará
nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de
certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou
por determinação judicial; IV – Efetuando–se o procedimento pela via
judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento
do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração
dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os
quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.

Fato é que o Supremo Tribunal Federal, também no cenário das


pessoas LGBTQIAPN+ tem atuado de modo a assegurar a existência digna
das minorias, vocacionando o Estado brasileiro à construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, voltada para a promoção do bem de todos
e sem preconceitos de qualquer ordem, de modo a assegurar o bem-estar, a
igualdade e a justiça como valores supremos e a resguardar os princípios da
igualdade e da privacidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das críticas ao modelo de atuação do STF, frequentemente
acusado de ativista, é possível destacar que o Supremo Tribunal Federal vem
consolidando, mesmo que lentamente, um constitucionalismo identitário de
tipo afirmativo, que dialoga e substancializa os limites materiais do princípio
da igualdade e reconhece demandas de reconhecimento identitário de viés
liberal. Para consolidar essa função, o papel contramajoritário da Suprema

59
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

Corte tem sido fundamental, pois ele permite a defesa das regras do jogo
democrático e dos direitos fundamentais de grupos historicamente excluídos,
a exemplo dos abordados neste texto. Isso porque, não raras vezes, a solução
justa não é a mais popular. E o populismo judicial é tão danoso à democracia
quanto qualquer outro. Além disso, o papel representativo impõe que o poder
Judiciário “olhe à sua volta” e decida tendo em mente a realidade concreta, o
mundo da vida. Nesse sentido, seria importante ampliar o acesso à Corte às
minorias periféricas, pois as estatísticas indicam uma participação ainda muito
pequena desses grupos.
Recentemente, a propósito, o Supremo Tribunal Federal trouxe
coletâneas que consolidam seus entendimentos jurisprudenciais vocacionados
à proteção do direito das minorias numa série recente de publicações
temáticas, o que denota uma preocupação crescente da Suprema Corte
quanto a tais pautas identitárias. Se o constitucionalismo é o poder limitado
e o respeito aos direitos fundamentais, não há como negar que o Supremo
Tribunal Federal, no papel de guardião da Constituição, tem desempenhado
importante função no sentido do estabelecimento de um constitucionalismo
de jaez identitário. Esse movimento é novo e, como dissemos, não é visto
como totalmente positivo por todos os autores. Uma coisa, porém, é certa:
as questões identitárias fazem parte da agenda de qualquer país democrático
e é normal que as suas pautas por reconhecimento e proteção sejam cada
dia mais habituais nos ambientes institucionais da República. O Direito e a
política estão incitados, cada um do seu lugar, a dizer algo e deverão elaborar
as soluções para que esses grupos minoritários tenham o igual direito de
viverem as suas diferenças.

REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Ativismo Judicial. Os perigos de se transformar o STF em
inimigo ficcional. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.
BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o
governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5,
Número Especial, 2015. p. 23-50.

60
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do


Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito
Administrativo, v. 240, p. 1-42, 2005. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.
br/ojs/index.php/rda/article/view/43618. Acesso em: 23 jul. 2023.
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada. Vidas contadas e histórias
vividas. Tradução José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual.
Tradução Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003a.
BAUMAN, Zygmunt. De peregrino a turista, o una breve história de la identidad.
In: HALL, Stuart; GAY, Paul du (Comps.). Cuestiones de identidad cultural.
Buenos Aires: Amorrortu, 2003b.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5
de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 jul. 2023.
BRASIL. Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional
de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/
decreto/d10502.htm. Acesso em: 23 jul. 2023.
BRASIL. Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/
d6040.htm. Acesso em: 23 jul. 2023.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso
em: 26 jul. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Declaratória de Constitucionali-
dade nº 41. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Julgado em: 8 jun. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Declaratória de Constitucionali-
dade nº 19. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 9 fev. 2012a.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 5.357. MC-Referendo/DF, Rel. Min. Edson Fachin. Julgado em: 9 jun. 2016.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 4.244. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 9 fev. 2012b.

61
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade


nº 4.277. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Julgado em: 5 out. 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 3.510. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Julgado em: 29 maio 2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade
por Omissão nº 26. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em: 13 jun. 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em: 26
abr. 2012c.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 779. Rel. Min. Dias Toffoli. Julgado em 13 mar. 2021a.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 622. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Julgado em: 1º
mar. 2021b.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Cadernos de Jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos Humanos – Direito dos povos
indígenas. Brasília: STF/CNJ, 2023a.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Cadernos de Jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos Humanos – Direito das
pessoas LGBTQQIAP+. Brasília: STF/CNJ, 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Cadernos de Jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos Humanos – Direito à igualdade
racial. Brasília: STF/CNJ, 2023b.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Cadernos de Jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos Humanos – Direitos das
mulheres. Brasília: STF/CNJ, 2023c.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Petição nº 3.388. Rel. Min. Roberto
Barroso. Julgado em: 23 out. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário nº 670.422/RS.
Rel. Min. Dias Toffoli. Julgado em: 15 ago. 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário nº 1.017.365.
(Tema 1.031 de Repercussão Geral). Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno.
Pendente de julgamento.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7. ed. 16. reimp. Coimbra: Almedina, 2003.

62
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

CARDINALI, Daniel Carvalho. A judicialização dos direitos LGBT no STF. Limites,


possibilidades e consequências. Belo Horizonte: Arraes, 2018.
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença. Povo Indígena
Xucuru e seus membros vs. Brasil. 5 fev. 2018. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf. Acesso em: 30 maio 2021.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Martins Fontes: São Paulo, 2002.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Martins Fontes: São Paulo, 2000.
FERRY, Luc. Famílias, amo vocês. Política e vida privada na era da globalização.
Tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução Plínio Dentzien. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu
da Silva e Guacira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabbris Editor, 1991.
LYOTARD, Jean-François. La condición postmoderna. Informe sobre el saber.
Traducción de Mariano Antolín Rato. 8. ed. Cátedra: Madrid, 2004.
MARRAMAO, Giacomo. Passagio a Ocidente. Filosofia e globalizzazione. Torino:
Bollati Boringhieri, 2003.
NUNES, Daniel Capecchi. Minorias no Supremo Tribunal Federal. Entre
impermeabilidade constitucional e os diálogos com a cidadania. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2020.
PIMENTEL, Mariana Barsaglia. Backlash às decisões do Supremo Tribunal Federal
sobre união homoafetiva. Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 54, n. 214,
p. 189-202, abr./ jun. 2017. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ril/
edicoes/54/214/ril_v54_ n214_p189
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva
Educação, 2021.
REMOTTI, Francesco. L’ossessione identitaria. Roma-Bari: Laterza, 2010.
RESTA, Eligio. L’identità nel corpo. In: RODOTÀ, Stefano; ZATTI Paolo. Il governo
del corpo. Roma: Giufrrè Editore, 2011.
RESTA, Eligio. Le stelle e le masserizie. Paradigmi dell’osservatore. Roma-Bari:
Laterza, 1997.
STRECK, Lenio Luiz. Democracia, Jurisdição Constitucional e Presidencialismo de
Coalizão. In: Observatório da Jurisdição Constitucional, a. 6, v. 1º maio 2013.
ISSN 1982-4564.

63
O CONSTITUCIONALISMO IDENTITÁRIO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS NA SUPREMA CORTE BRASILEIRA
Doglas Cesar Lucas

VATTIMO, Gianni. La sociedad transparente. Barcelona: Paidós, 1990.


VATTIMO, Gianni. Posmoderno. ¿Una sociedad transparente? In: ARDITI,
Benjamin. El reverso da diferencia. Identidad y política. Caracas: Nueva Sociedad,
2000.
VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais
no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
VILHENA, Oscar; RUBENS, Glezer. A razão e o voto: diálogos constitucionais com
Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

64
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL:
Estado, Políticas Públicas e Cidadania
– Uma Tríade Estrutural

Janaína Machado Sturza

As questões de saúde são, em verdade, como todas as questões


humanas, de natureza ética e política, porque se referem à opção
entre o respeito democrático pelo ser humano, ou o desrespeito por
eles (Dias, 1995, p. 5).

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O direito à saúde no Brasil, consagrado na Constituição Federal
de 1988, é direito de todos e dever do Estado (artigo 196), garantido por
meio de políticas sociais e econômicas – políticas públicas,1 voltadas para a
redução de riscos e de doenças, objetivando, essencialmente, a garantia do
acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e
recuperação da saúde da população. Assim, o termo saúde concretizou-se
como um direito humano reconhecido igualmente a todos, além de ser um
meio de promoção e preservação da vida, contribuindo também para a o pleno
exercício da cidadania.2

1
Políticas públicas podem ser definidas como conjuntos de disposições, medidas e procedimentos que
traduzem a orientação política do Estado e regulam as atividades governamentais relacionadas às tarefas de
interesse público. São também definidas como todas as ações de governo, divididas em atividades diretas
de produção de serviços pelo próprio Estado e em atividades de regulação de outros agentes econômicos
(Lucchese, 2004, p. 3). Ou ainda, [...] políticas públicas são respostas do poder público a problemas políticos.
Ou seja, as políticas designam iniciativas do Estado (governos e poderes públicos) para atender demandas
sociais referentes a problemas políticos de ordem pública ou coletiva (Schmidt, 2018, p. 122).
2
Cidadania é a pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-nação com certos direitos e
obrigações universais em um específico nível de igualdade ( Janoski apud Vieira, 2001, p. 34).

65
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

Nesse sentido, o interesse principal deste texto é revisitar o contexto


das políticas públicas promovidas pelo Estado, como ferramenta de subsídio
para a efetivação do direito à saúde e, consequentemente, o exercício da
cidadania – afinal, é justamente dentro desse cenário que são articuladas e
elaboradas as ações necessárias para o acesso ao direito à saúde, que resultará
no efetivo exercício da cidadania, reduzindo as desigualdades excessivas e
garantindo o bem-estar de todos.
Nessa perspectiva, considera-se pertinente a utilização dos
pressupostos constitucionais contemporâneos, verificando-se – por meio de
estudo bibliográfico e da abordagem hipotético-dedutiva – a possibilidade
de contextualizar e refletir o direito à saúde como um direito reconhecido
igualmente e universalmente a todos, que se consolida como direito humano
essencial à preservação da vida.
A saúde representa, assim, uma preocupação constante na vida de
cada cidadão, constituindo-se também como um elemento fundamental para
a garantia da segurança nos vários aspectos da convivência em sociedade.
A complexidade do aparato necessário para responder a esta preocupação
é acrescida pela articulação dos Estados, muitas vezes de forma desviante
do objetivo original, qual seja, garantir a saúde a todo e qualquer cidadão.
Igualizar o acesso ao direito à saúde é tarefa reservada às políticas econômicas
e sociais do país, mas exige também o compromisso e a participação de toda
a sociedade.
Na sociedade contemporânea a saúde é, sem dúvida, um direito
fundamental, além de representar um importante investimento social. Na
medida em que os governantes visam a melhorar as condições de saúde
(e de vida, consequentemente) de todos os cidadãos, é necessário investir
recursos em políticas públicas3 capazes de garantir programas efetivos para
promoção, proteção e recuperação da saúde – pressupostos básicos do
SUS. Garantir, no entanto, o acesso igualitário a condições de vida saudáveis
e satisfatórias para todos os seres humanos é um princípio fundamental
da justiça social e, portanto, também requer um profundo e complexo

3
Infatti una politica pubblica no è un fenomeno oggettivo dal profilo evidente, ben definito,
compiutamente formalizzato, come una legge, un trattato, un’organizzazione burocratica, i cui contorni
sono ben delineati (Regonini, 2001, p. 22).

66
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

compromisso da sociedade e do Estado, pois é necessário intensificar


esforços para coordenar e articular intervenções econômicas e sociais por
meio de uma ação integrada.
Levando-se em consideração que a cidadania, associada à dignidade,
representam fundamentos do Estado Democrático de Direito, tem-se que o
Estado deve interagir diretamente com o povo e, portanto, todas as ações
estatais devem ser avaliadas sob o prisma da possibilidade de ocorrência de
inconstitucionalidade e violação da dignidade da pessoa humana. É, portanto,
um paradigma de avaliação que diz respeito a toda a ação do poder público
e um critério essencial para medir a introdução e os resultados das políticas
públicas de Estado e de governo.4
Para o pleno desenvolvimento de todo indivíduo, portanto,
concebido como membro ativo de uma sociedade democrática e igualitária,
é fundamental não só garantir o acesso universal ao direito à saúde, mas
também sua efetiva realização e satisfação, por meio da intervenção ativa do
um Estado fundado na dignidade da pessoa humana, que busca eliminar os
obstáculos e promover a saúde de todos e para todos os seus cidadãos – isso
por que o direito à saúde estabelece interlocução direta com o direito à vida,
bem maior de todo ser humano como membro de um Estado democrático,
que tem (ou deveria ter) como objetivo a perseguir o exercício pleno e efetivo
da cidadania.

4
Políticas de governo expressam opções de um governo ou de governos com a mesma orientação
ideológica; estão menos enraizadas na institucionalidade estatal e menos legitimadas pelo conjunto das
forças políticas. Políticas de Estado expressam opções amplamente respaldadas pelas forças políticas
e sociais, têm previsão legal e contam com mecanismos e regulamentações para a sua criação. Políticas
inovadoras frequentemente iniciam como políticas de governo e é o enfrentamento vitorioso dos
desafios da institucionalização e da legitimação político-social que as leva à condição de políticas de
Estado, as quais “atravessam” governos de diferentes concepções ideológicas por estarem entranhadas
no aparato estatal e terem ampla legitimação. Caracterizar uma política como sendo “de Estado” não
é conferir um qualificativo de excelência ético-política e sim reconhecer que ela reúne condições para
se prolongar no tempo. Políticas de governo tendem a ser provisórias; políticas de Estado, duradouras
(Schmidt, 2018, p. 129).

67
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

1 DO PASSADO AO PRESENTE:
IDEIAS PARA ENTENDER A AMPLITUDE DO CONCEITO DE SAÚDE
Na sociedade contemporânea a saúde deve ser considerada um bem de
todos, como um direito social fundamental necessário à manutenção da vida e,
consequentemente, da sobrevivência da espécie humana. O reconhecimento
de sua efetividade concreta, no entanto, é tema no centro de muitos debates,
especialmente em relação aos “direitos sociais e suas externalidades que não
podem ser internalizados na avaliação da saúde como um bem econômico”
(Dallari, 1987, p. 15).
A primeira formulação do conceito de saúde remonta provavelmente
à Grécia antiga, por meio do folheto “Mens Sana in Corpore Sano”, que ainda
hoje se constitui como uma contribuição importante para a definição de saúde.
Em 1946, a constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS) definia a
saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social” e não
simplesmente “a ausência de doença ou enfermidade”. “Este conceito refletia,
de um lado, uma aspiração nascida dos movimentos sociais do pós-Guerra:
o fim do colonialismo, a ascensão do socialismo. Saúde deveria expressar o
direito a uma vida plena, sem privações” (Scliar, 2007, p. 37). Dessa forma, a
saúde é reconhecida não somente como um dos direitos fundamentais de todo
ser humano, mas também como um direito humano essencial, independente
de condição social ou econômica, crenças religiosas ou políticas. Nesse
sentido:
O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política
e cultural. Ou seja: saúde não representa a mesma coisa para todas as
pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Dependerá
de valores individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas,
filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das doenças. Aquilo que é
considerado doença varia muito (Scliar, 2007, p. 30).

Diante disso, a saúde surge como uma busca incessante pelo equilíbrio
entre influências ambientais, estilos de vida e outros pressupostos necessários
para que se obtenha aquilo que todos desejam: uma vida saudável. Nesse
sentido, numa visão bastante avançada em relação à época em que foi
aprovada, a definição da OMS ampliou o conceito de saúde, historicamente

68
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

vinculado à recuperação da doença, passando a incluir a promoção da saúde


como argumento essencial a uma qualidade de vida minimamente condizente
com as necessidades humanas.
É inegável que o século 20 trouxe mudanças sociais marcantes, apesar
das guerras mundiais. Outrora, a saúde era vista como uma necessidade
individual. A ideia do Estado de bem-estar social, todavia, mudou esta
concepção e a prevenção em saúde passou a assumir um protagonismo não
apenas nas questões sanitárias, mas também nas agendas econômicas e sociais
– é o início de uma preocupação de cunho político com a saúde da população,
restando claro que “a saúde de cada indivíduo não depende exclusivamente
dele. Ao contrário, fica sujeita às condições de saúde e de vida dos demais”
(Dallari; Aith; Maggio, 2019, p. 10). Ainda, “por integrar o contexto social,
o bem-estar a que o homem faz jus acaba por se vincular aos determinantes
gerais da população, até mesmo enquanto fluxo das contingências, variantes
e complicadores naturais da mera condição de viver” (Dallari; Aith; Maggio,
2019, p. 10).
Já no século 21 a expansão dos meios de comunicação de massa e a
tecnologia da informação permitiram que a criatividade humana atingisse uma
expressividade extraordinária, dentro de um sistema de alcance global. Este
século foi beneficiado por fantásticas experiências científicas e tecnológicas,
que favoreceram o crescimento da produção e proporcionaram condições
para aumentar o bem-estar e o acesso aos serviços, inclusive na área da saúde
– traduzidos por meio de medicamentos, equipamentos e procedimentos
técnicos, sistemas organizacionais, informacionais, educacionais e de suporte
e programas e protocolos assistenciais, entre outros.
Logo, a ideia de saúde no século 21, a partir do conceito progressista
da OMS à época de sua criação, corresponde também à ideia de felicidade,
um estado de bem-estar completo que é, de fato, difícil de alcançar, e que não
é possível operacionalizar em sua totalidade por meio de ações promovidas
exclusivamente pelo Estado. Note-se que esta ideia de saúde, amplamente
aceita, tem um caráter positivo, que diz respeito à promoção do bem-estar,
e um negativo, que diz respeito à ausência de doença – logo, afirmar que a
saúde é um completo estado de bem-estar social é algo temerário nos dias
atuais, quando não irreal e unilateral.

69
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

A saúde, no entanto, também pode ser pensada sob outros aspectos


relacionados aos direitos sociais, e, portanto, à comunidade como um todo:
o objetivo passa a ser a prevenção e não apenas o tratamento. O conceito de
saúde está vinculado à questão do direito do cidadão a uma vida saudável, que
determinará sua qualidade de vida, pois “[...] il diritto alla vita deriva dal diritto
all’integrità fisica, che fa parte del diritto alla salute. Consiste nel diritto di ogni
uomo o donna di mantenere intatto il proprio corpo” (Fiorio, 2002, p. 43).
Assim, a promoção e proteção de uma qualidade de vida digna – com
particular destaque para a saúde – deve trazer benefícios para o desenvol-
vimento do homem e da sua existência, constituindo-se como “o centro de
irradiação por excelência de todos os bens ou interesses jurídicos protegidos”
(Dias, 1995, p. 9). A saúde, portanto, é um direito de todos, garantido pelas
políticas públicas promovidas pelo Estado. Sendo assim, “um aspecto do
direito à saúde no país a ser destacado é o de que a sua garantia deve se
efetivar mediante a implementação de políticas públicas não só de saúde,
para garantir o acesso a ações e a serviços nesta área, mas de outras políticas
sociais e econômicas, com o objetivo de reduzir o risco de adoecimento dos
indivíduos” ( Vieira, 2020, p. 11).
Nota-se que, para além do conceito da OMS, a evolução do conceito
de saúde e do direito à saúde, especialmente no Brasil, pode ser percebido
na Constituição de 1988 no artigo 196, que diz: “A saúde é direito de todos
e dever do Estado, garantida por meio de políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doenças e outros agravos, e à garantia de acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação” (Brasil, 1988). Com isso, o acesso ao direito à saúde passou
por grandes transformações no país e, apesar dos muitos entraves impostos
por setores sociais privilegiados e atrasados, muito se avançou na luta por
melhores condições de vida – inclusive saúde, para todos os cidadãos. É
possível, então, perceber o evidente avanço em relação à concepção estreita
e individualista que antes limitava a esfera da saúde exclusivamente à prestação
de serviços médico-hospitalares voltados de forma única para a cura de
doenças. A promoção e proteção passam a ter protagonismo, para além da
recuperação e cura de doenças.

70
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

Assim, assegurar que o direito à saúde equivale ao direito à vida de


todo ser humano significa também afirmar que, em caso de doença, todos têm
direito a tratamento digno de acordo com os conhecimentos atuais da ciência
médica, independentemente de sua situação econômica. O direito à saúde,
fundamentado nos artigos 196 e 197 da Constituição, indicam a relevância
pública das ações e serviços de saúde, ou seja, cabe ao Estado, nos termos
da lei, regular e fiscalizar sua execução. Assim sendo, nos termos constitucio-
nais, o direito à saúde representa um direito humano, fundamental e social
que deve ser efetivado diuturnamente pelo Estado, o qual deve permanecer
definindo e redefinindo constantemente seus conteúdos e diretrizes, em
direção aos objetivos determinados conforme as necessidades da sociedade
e seus cidadãos – não é tolerável, sob a perspectiva jurídica, que uma pessoa
ou toda a coletividade seja privada deste direito.
Diante deste cenário, torna-se notável o reconhecimento do
entendimento acerca da cidadania na Constituição, que contém um rol quase
exaustivo de direitos e garantias individuais, além, obviamente, dos direitos
sociais, que reafirmam a preocupação com o exercício efetivo da cidadania.
É neste contexto que se situa o direito à saúde, ou seja, um direito social
fundamental e humano, destacando-se, segundo Dallari (1985, p. 32), que
“[...] o direito à saúde deve ser garantido igualmente a todos [...]”.
Por sua vez, este direito representa um dos elementos fundamentais
da cidadania, uma vez que visa a proteger a vida dos indivíduos, uma vez que
o direito à saúde é equivalente ao direito à vida. Com base nessa análise, a
questão do direito à saúde é universal, assim como a igualdade de acesso
aos serviços de saúde, garantida constitucionalmente. É importante ressaltar,
todavia, que “trata-se de um direito de satisfação progressiva que não é
absoluto, ou seja, não comporta como dever do Estado a garantia de acesso
pelos indivíduos a toda e qualquer prestação de saúde existente” (Vieira, 2020,
p. 10), ou seja,
[...] a sua garantia deve se efetivar mediante a implementação de
políticas públicas não só de saúde, para garantir o acesso a ações e a
serviços nesta área, mas de outras políticas sociais e econômicas, com
o objetivo de reduzir o risco de adoecimento dos indivíduos. Aqui,
nota-se o pressuposto de que a saúde é determinada por diversos

71
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

fatores e que apenas a oferta de ações e serviços de saúde não é


suficiente para que se alcance o maior nível possível de bem-estar
físico, mental e social (p. 11).

Resta claro, portanto, que, já em seu preâmbulo, a Constituição Federal


representa (ou deveria representar!) a positivação do Estado Democrático,
responsável por garantir o exercício dos direitos sociais individuais e coletivos,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e no pleno exercício da cidadania,
incluindo neste contexto o direito à saúde – que deve ser promovido e
consolidado por meio de políticas públicas voltadas às necessidades em
saúde.5

2 CONSOLIDANDO O DIREITO À SAÚDE:


A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
É cediço que na sociedade atual muitos são os marcos regulatórios
que amparam o direito à saúde, delimitando ao Estado o dever de pensar
políticas públicas que promovam ações de sustentação ao SUS, uma vez que
“[...] conflitos políticos e morais derivados da dinâmica de efetivação do direito
à saúde em nossa sociedade devem ser resolvidos por meio de processos
decisórios estatais democráticos e participativos [...]” (Aith, 2017, p. 15),
destacando aqui o exercício pleno da cidadania na promoção e efetivação do
direito à saúde.
Assim, as políticas públicas de saúde6 representam um instrumento
para os pressupostos inspiradores do SUS, razão pela qual devem ser
articuladas e efetivadas sob e sobre a perspectiva da racionalidade, para

5
As políticas públicas em saúde integram o campo de ação social do Estado orientado para a melhoria
das condições de saúde da população e dos ambientes natural, social e do trabalho. Sua tarefa específica
em relação às outras políticas públicas da área social consiste em organizar as funções públicas
governamentais para a promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e da coletividade
(Lucchese, 2004, p. 3).
6
No Brasil, as políticas públicas desempenharam um papel muito importante para a consolidação
da ordem republicana que, desde a origem, manteve traços antidemocráticos cujas raízes penetram
profundamente nas estruturas existentes, fundindo-se em interesses sociais objetivos e contraditórios
entre si (Sousa, 2015, p. 107).

72
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

que o sistema de saúde no Brasil seja realmente possível e concretamente


materializado, segundo preceituam os norteadores do SUS – universalidade,
integralidade e equidade. Nesse sentido:
As políticas públicas são responsáveis pelas atividades do Estado
(governo) e visam a causar determinados efeitos ou diferenças, diretas
ou indiretas, na sociedade. Nesse sentido, a noção de políticas públicas
passa por uma série de transformações ao longo do desenvolvimento
dos Estados e, a partir da segunda metade do século XX, ganha
visibilidade, à medida que os países desenvolvidos passam a utilizar
as políticas públicas como ferramentas nas decisões governamentais
(Zeifert; Sturza, 2019, p. 116).

Ou seja, as políticas públicas poderão agir com o objetivo de alcançar


o ideal de sociedade justa, de maneira a efetivar as demandas voltadas para
as necessidades humanas fundamentais (Zeifert; Sturza, 2019), entre elas o
direito à saúde. Logo, partindo do pressuposto de que o Estado deve atuar
na efetivação do direito à saúde, é importante ilustrar o quão substancial
e complexa é a instituição de políticas públicas em relação a esse direito,
especialmente aquelas voltadas para a promoção da saúde e prevenção de
doenças, pois além dos serviços prestados para o tratamento, também são
essenciais para evitar danos à saúde. É notável que, ainda que o Estado tenha
o dever de atuar em todas as áreas de proteção do direito à saúde (tratamento,
prevenção e promoção), são as políticas públicas de promoção da saúde, que
incluem atividades de prevenção de doenças – ou seja, o ponto culminante
está na saúde (e sua promoção) e não na doença, as grandes responsáveis pela
efetivação (de fato e de direito!) do direito à saúde (Sturza; Lucion, 2022).
As políticas públicas, portanto, “são o resultado do processo político,
que se desenrola sob o pano de fundo institucional e jurídico, e estão
intimamente ligados à cultura política e ao contexto social” (Schmidt, 2018, p.
122), tornando-se um instrumento indispensável para a promoção, prevenção
e recuperação em saúde. Nesse sentido,
para se garantir o mínimo de dignidade por intermédio da satisfação
das necessidades humanas fundamentais, necessita-se, essencialmente,
de políticas públicas que busquem (de fato e de direito) fomentar
um desenvolvimento social mais justo e inclusivo. Em síntese, para a
efetivação de políticas públicas, é preciso estabelecer estratégias que

73
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

envolvam toda a população e segmentos da sociedade, em um esforço


conjunto para buscar o acesso igualitário a tais necessidades humanas
fundamentais (Zeifert; Sturza, 2019, p. 125).

De fato, as necessidades humanas fundamentais, em sua maioria


relacionadas com os direitos fundamentais, requerem políticas públicas,
as quais atuam como instrumentos de potencialização para a garantia da
dignidade humana e exercício da cidadania – aliás, refletir sobre o direito
à saúde é também refletir sobre cidadania e sobre dignidade. Dito isto,
verifica-se que a Constituição Federal de 1988 afirma que o dever de garantir
a saúde pode ser alcançado por meio de três tipos de políticas públicas:
políticas de promoção, políticas de prevenção e políticas de recuperação da
saúde, todas voltadas para a preservação do acesso universal e igualitário
aos serviços prestados, nos exatos termos da artigo 196 (Sturza; Lucion,
2022), sem esquecer que toda e qualquer política pública “deve começar
pela compreensão do que lhe é essencial: as demandas sociais vinculadas a
problemas políticos” (Schmidt, 2018, p. 122).
No que se relaciona à saúde, ou melhor, ao direito à saúde, tais
demandas devem ser potencializadas pelo sistema de saúde pública do Brasil,
o qual, segundo argumentos de Sturza e Lucion (2022, p. 91) está “baseado
em questões que vão além da simples ausência de doença, resultando na
promoção da justiça social, da universalização e promoção da equidade.
Isso porque, finalmente, reconheceu-se que as condições de vida interferem
diretamente na produção da saúde [...]”. É unânime, portanto, o fato de
que não é possível eliminar completamente todas as doenças – a exemplo
disso vivemos recentemente a pandemia de Covid-19 – mas é fundamental
reconhecer que a saúde está relacionada com várias situações dispostas no
cotidiano da população, sobretudo a promoção e concretização da cidadania,
entrelaçada com a dignidade, como as condições de alimentação, de moradia,
de segurança e educação – condições estas que, na maioria das vezes, não
dependem apenas do indivíduo, mas também de medidas políticas e sociais,
inclusive de cunho econômico, pressupondo-se que a consolidação da saúde
depende de um conjunto de ações do Estado, voltadas para o bem-estar da
população e para o pleno exercício da cidadania.

74
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

3 A SAÚDE COMO DIREITO: EXERCÍCIO PLENO DE CIDADANIA


No Brasil, a trajetória da cidadania é indissociável do processo de
desenvolvimento dos direitos fundamentais e sociais. São facetas de uma
mesma história, a da humanidade em busca do aperfeiçoamento de instituições
jurídicas e políticas que garantam a liberdade e a dignidade humana (Costa,
2007). Na verdade, é uma história de lutas pelos direitos fundamentais e
humanos da pessoa, lutas marcadas por massacres, violências, exclusões e
outras variáveis que caracterizam o Brasil desde a época da colonização e que,
afinal, têm como único objetivo a conquista de direitos que possam legitimar
o pleno exercício da cidadania, associados à proteção da dignidade humana.
Na última década do século 20 assistimos à multiplicação de estudos
sobre o tema da cidadania em todo o mundo, com um grande esforço analítico
para enriquecer a conceituação de cidadania. A cidadania, como direito a
ter direitos, tem sido abordada sob diferentes perspectivas. Entre elas está a
concepção, que mais tarde se tornou clássica, de Thomas H. Marshall, que em
1949 propôs a primeira teoria sociológica da cidadania, tratando dos direitos e
deveres inerentes à condição de cidadão ( Vieira, 2001). Assim, portanto, neste
contexto, é possível vislumbrar o direito à saúde quando é afirmado que “[...]
os direitos e as obrigações de cidadania existem, portanto, quando o Estado
valida as normas de cidadania e adota medidas para implementá-las”, sendo
que a “cidadania concerne, desse modo, à relação entre Estado e cidadão,
especialmente no tocante a direitos [...]” ( Vieira, 2001, p. 36).
Levando-se em consideração que o reconhecimento da saúde como
direito, no Brasil, alcançou seu ápice ante a expressa condição manifesta na
CF/88, é possível visualizar de imediato a consciência de cidadania associada
à afirmação da saúde como um direito, eis que a expressão da cidadania, em
matéria de saúde, até então nunca havia sido presenciada no Brasil até 1988,
com a Constituição Federal. Desse modo, a importância de uma cidadania
sanitária, como é designada por alguns autores, ganha relevância quando
se volta o olhar ao passado e se percebe toda a trajetória percorrida por
este direito, o qual estabelece uma relação direta com a dignidade humana
e a inclusão social, tornando-se um elemento para o exercício da cidadania
(Sturza; Lucion, 2022).

75
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

Nesse cenário é possível destacar que o cidadão – ou em outros


termos, o ser humano – é, sem dúvida, o centro e o fim do direito, sendo essa
característica fundamentada no valor do Estado Democrático de Direito, ou
seja, na dignidade da própria pessoa humana, associada ao pleno exercício da
condição de cidadão – a cidadania em sua mais pura acepção política, jurídica
e social. Destaca-se que, no mundo globalizado, a condição humana está
constantemente sujeita a atitudes e comportamentos indignos, não obstante
as manifestações favoráveis ao reconhecimento da dignidade das pessoas,
sujeitas a violações, práticas degradantes e incompatíveis com as condições
esperadas (e necessárias) para a consolidação da cidadania individual e coletiva
de um povo.
Assim, ao indicar a cidadania como um dos princípios fundamentais,
associada à dignidade da pessoa humana, o Estado sancionou o dever de
proteção máxima da pessoa, por meio de um sistema jurídico positivo formado
por direitos fundamentais e sociais – entre eles o direito à saúde, garantindo
assim o respeito absoluto ao indivíduo e seus direitos, sob a preconização
de uma existência plenamente digna e protegida de qualquer tipo de ofensa,
seja ela praticada por outros sujeitos ou pelo próprio Estado. A consagração
constitucional do exercício da cidadania resulta, portanto, na obrigação do
Estado de proporcionar à pessoa um nível mínimo de recursos, capazes de
lhe garantir direitos essenciais como a saúde.
A cidadania, no contexto do direito à saúde, alcança sua relevância a
partir da concepção de participação integral do indivíduo na comunidade,
ainda que muitas vezes dentro de uma realidade de desigualdade econômica
e social. A cidadania, desta forma, é fruto de uma construção histórica que
resultou na luta por espaços políticos na sociedade a partir da autonomia
de cada sujeito, sendo inegável que a cidadania também tem relação direta
com o sentimento de pertencimento integral e participativo do sujeito como
membro de um determinado espaço político. Nesse contexto, a construção de
uma identidade cidadã tomou força quando o Estado de Direito foi elevado
ao status de garantidor dos direitos de cidadania e a partir deste momento, a
efetividade das políticas públicas promovidas pelo Estado passaram a assumir
um papel fundamental na promoção da cidadania, nos termos da Constituição
(Sturza; Lucion, 2022).

76
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

Por conseguinte, é possível identificar uma relação direta entre


dignidade, cidadania e direitos fundamentais, sobretudo o direito à saúde –
isso porque, ainda que em muitos espaços políticos, sociais e jurídicos não
se faça referência explícita à dignidade, não é possível concluir que não está
presente na condição de valor que informa todo o ordenamento jurídico,
desde que nele sejam garantidos os direitos fundamentais inerentes à pessoa.
A cidadania, como valor e princípio normativo indispensável, faz parte do
conteúdo de todos os direitos humanos e sociais fundamentais, exigindo e
pressupondo o reconhecimento e proteção dos direitos individuais e coletivos,
em todas as suas dimensões.
A consagração da cidadania, portanto, implica o fato de considerar o ser
humano, diferentemente dos demais seres vivos, o centro do universo jurídico.
A cidadania e o seu pleno exercício estão, pois, essencialmente ligados aos
direitos humanos, que conferem unidade de sentido, valor e concordância
prática ao sistema dos direitos sociais fundamentais e, nesse sentido, o direito
à saúde no Brasil é um importante elemento de cidadania, uma vez que,
segundo preceitos constitucionais, deve reduzir a desigualdade social a partir
do acesso igualitário, integral e universal aos serviços de saúde prestados pelo
Estado (Sturza; Lucion, 2022).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao elaborar este texto, a intenção não foi exaurir completamente a
abordagem aqui apresentada, mas apenas pontuar algumas considerações
sobre questões observadas ao longo da sua escrita. As palavras de Ost (1995,
p. 389), portanto, parecem sábias: “[...] não há necessidade de concluir. Ao
contrário, é preciso abrir o círculo: ele se transforma em espiral e turbilhão,
circularidade em movimento como a própria vida e as ideias [...]”.
A pesquisa não é, portanto, um estudo definitivo, mas uma maneira
de formular questionamentos, reflexões e alternativas para a produção de
conhecimento sobre questões de importância direta e fundamental para o
processo de construção e reconstrução do Estado Democrático de Direito e,
consequentemente, de seus relevantes princípios e direitos fundamentais e
sociais, para que a cidadania seja efetivada.

77
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

Falar hoje em “direito à saúde” é sinônimo de um pensamento que


nos remete à ideia de concretizar e consolidar os direitos das pessoas como
seres humanos, dignos de exercer seus direitos, mas também chamados a
cumprir seus deveres de cidadãos, pertencentes ao Estado de Direito. Afinal,
ser cidadão é ter consciência de ser “sujeito de direitos”, direitos civis, políticos
e sociais, que incluem o direito à vida e, consequentemente, à saúde.
É desta forma que se pode contribuir para o exercício efetivo da
cidadania, pois uma sociedade de cidadãos é uma sociedade de relações
democráticas assentes na igualdade entre os indivíduos e, sobretudo, no
respeito pela dignidade humana. Os cidadãos devem estar cientes de suas
responsabilidades como parte integrante do grande e complexo organismo
que é a sociedade, a nação e o Estado, no qual todos são responsáveis pela
efetivação dos direitos. É assim que se alcança o objetivo final e coletivo: a
justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.
Por fim, nota-se a impossibilidade de dissociar o direito à saúde
das políticas públicas, as quais se revelam como um sólido instrumento
de efetividade e exigibilidade dos direitos sociais fundamentais, rumo à
positivação do exercício da cidadania, representada não apenas pela efetivação
de direitos, mas também na perspectiva da afirmação de princípios como a
solidariedade e a igualdade, uma vez que o direito à saúde equivale ao direito
à vida, bem maior da humanidade.

REFERÊNCIAS
AITH, Fernando. Direito à saúde e democracia sanitária. São Paulo: Quartier
Latin, 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
COSTA, Ademar Antunes da. Cidadania e direitos humanos no marco do constitu-
cionalismo. In: COSTA, Marli M. M. da. Direito, cidadania e políticas públicas II.
Porto Alegre: Imprensa Livre, 2007.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Viver em sociedade. São Paulo: Moderna, 1985.
DALLARI, Sueli Gandolfi. A saúde do brasileiro. São Paulo Paulo: Editora Moderna,
1987.

78
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADANIA – UMA TRÍADE ESTRUTURAL
Janaína Machado Sturza

DALLARI, Sueli Gandolfi; AITH, Fernando; MAGGIO, Marcelo. Direito sanitário


– aspectos contemporâneos da tutela do direito à saúde. Curitiba: Juruá Editora,
2019.
DIAS, Hélio Pereira. A responsabilidade pela saúde – aspectos jurídicos. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1995.
FIORIO, Carlo. Libertà personale e diritto alla salute. Padova: Cedam, 2002.
LUCCHESE, Patrícia. Políticas públicas em Saúde Pública. São Paulo: Bireme;
Opas; OMS, 2004. Disponível em: http://files.bvs.br/upload/M/2004/Lucchese_
Politicas_publicas.pdf. Acesso em: 27 jul. 2023.
OST, François. A natureza à margem da lei – ecologia à prova do Direito. Trad.
Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
REGONINI, Gloria. Capire le politiche pubbliche. Bologna: Il Mulino, 2001.
SCLIAR, Moacyr. História do Conceito de Saúde. Physis: Rev. Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 29-41, 2007. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/physis/a/WNtwLvWQRFbscbzCywV9wGq/?format=pdf&lang=pt. Acesso em:
25/07/2023.
SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais,
metodológicos e abordagens teóricas. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, v.
3, n. 56, p. 119-149, set./dez. 2018. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/
index.php/direito/index. Acesso em: 27 jul. 2023.
SOUZA, Simone Letícia Severo e. Direito à saúde e políticas: do ressarcimento
entre gestores públicos e privados da saúde. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
STURZA, Janaína Machado; LUCION, Maria Cristina Schneider. Retornando ao
passado para compreender o presente: a trajetória de reconhecimento da saúde
como direito e importante elemento de cidadania e inclusão social. Revista
Culturas Jurídicas, v. 9, n. 22, jan./abr. 2022. Disponível em: file:///C:/Users/User/
Downloads/45395-Texto%20do%20Artigo-192459-1-10-20220710.pdf. Acesso em:
26 jul. 2023.
VIEIRA, Listz. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização
e a necessidade da macrojustiça. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – Ipea, 2020.
ZEIFERT, Anna Paula Bagetti; STURZA, Janaína Machado. As políticas públicas e a
promoção da dignidade: uma abordagem norteada pelas capacidades (capabilities
approach) propostas por Martha Nussbaum. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília,
v. 9, n. 1, p. 114-126, 2019.

79
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA
E MORTALIDADE MATERNA NO BRASIL 20
ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL

Joice Graciele Nielsson

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente texto analisa o complexo legislativo e as políticas públicas
de enfrentamento à mortalidade materna colocadas em prática no Brasil nos
últimos 20 anos, a fim de verificar a repercussão da condenação brasileira
no caso internacional Alyne da Silva Pimentel Teixeira – “Caso Alyne” – vs.
Brasil, quanto à incorporação e efetivação do paradigma da justiça reprodutiva.
Trata-se de pesquisa realizada junto a Linha Fundamentos e Concretização
dos Direitos Humanos, com ênfase na investigação sobre a efetivação dos
direitos humanos das mulheres, da igualdade de gênero e dos direitos sexuais
e reprodutivos. Está vinculada ao Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos
Humanos, e ao projeto de pesquisa “A atuação dos Sistemas Internacionais
de Proteção aos Direitos Humanos Frente à Diversidade de Gênero e
Sexualidade”.
Para seu desenvolvimento, utiliza abordagem qualitativa a partir
de estudo documental do relatório do Caso Alyne Pimentel e dos dados
acerca da mortalidade materna no Brasil, buscando responder à pergunta:
Em que medida as recomendações estabelecidas pela Cedaw no caso Alyne
repercutiram no arcabouço jurídico e nas políticas públicas brasileiras,
promovendo a incorporação do paradigma da justiça reprodutiva e diminuindo
os índices de mortalidade materna no país?
O artigo está estruturado em três partes. Na primeira apresenta uma
descrição do caso e da decisão de mérito. Na segunda examina os contornos
teóricos do paradigma da justiça reprodutiva, defendendo sua utilização como

81
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

uma forma de expansão do paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos ao


vincular elementos de justiça social e racial como imprescindíveis à análise.
Na terceira parte verifica o complexo legislativo e jurídico e as políticas
públicas de enfrentamento à mortalidade materna colocados em prática no
Brasil nos últimos 20 anos, verificando os reflexos e mudanças no que tange à
incorporação e efetivação do paradigma da justiça reprodutiva e redução das
vidas maternas perdidas.

1 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS:


O CASO ALYNE PIMENTEL E SUAS REPERCUSSÕES
A incorporação dos direitos das mulheres, da perspectiva de gênero,
e mais especificamente dos direitos sexuais e reprodutivos ao rol de direitos
humanos reconhecidos e protegidos internacionalmente ocorreu de modo
lento e ainda incompleto, em um contexto de lutas constantes (Corrêa; Alves;
Jannuzzi, 2006). A Cedaw é o primeiro tratado internacional que dispõe
amplamente sobre os direitos das mulheres, buscando promover a igualdade
de gênero e reprimir quaisquer discriminações pelo Estado-parte. Já no âmbito
da saúde materna, conforme Cook (2013), seu reconhecimento no escopo
dos direitos humanos passou a ganhar força em 1999 com a Recomendação
Geral n. 24, da Cedaw.
Foi com o caso de Alyne, contudo, que a vinculação entre direitos
humanos e saúde materna adquiriu relevância. O caso Alyne da Silva Pimentel
Teixeira (“Alyne”) vs Brasil, apresentado perante o Comitê Cedaw é a primeira
reclamação sobre mortalidade materna apresentada ao Comitê Internacional
(De Oliveira, 2014). Alyne era uma mulher brasileira, pobre e negra, vivendo
na periferia do Rio de Janeiro, que morreu aos 28 anos devido ao precário
tratamento médico recebido durante o pré-natal e o parto, que a deixou
sangrar em um corredor de hospital (ONU, 2011). Alyne morreu em novembro
de 2002, ano no qual outras 1.654 mulheres perderam a vida no país por
complicações na gravidez.
Em 2008, Maria de Lourdes da Silva Pimentel apresentou comunicação
individual contra o Estado brasileiro junto ao Comitê Cedaw, fundamentada
no descumprimento do artigo 2º, alínea “c” e do artigo 12, da Convenção
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres.

82
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

O caso Alyne Pimentel vs Brasil foi o primeiro, no Sistema Global de Direitos


Humanos, envolvendo mortalidade materna, buscando evidenciar o problema
como violação do direito humano à saúde reprodutiva das mulheres.
Os fundamentos que levaram à comunicação junto ao Comitê Cedaw
foram: a) a violação ao direito à saúde e à vida; b) a ineficiência de prestação
jurisdicional que garantisse a proteção de Alyne Pimentel e sua família contra
a discriminação de gênero sofrida, e c) a sistêmica condição de discriminação
de gênero e violação do direito à saúde das mulheres pela ineficiência dos
serviços médicos prestados (Cook, 2013). O argumento era que a falta de
atendimento médico que resultou na sua morte era reflexo de um quadro de
violência estrutural e discriminatória que impacta as mulheres pobres e negras
no Brasil (ONU, 2011).
O Comitê, quanto à análise do mérito, entendeu que a morte de Alyne
Pimentel, ao contrário do afirmado pelo Estado brasileiro, foi uma morte
materna, fato relevante na medida em que a classificação equivocada das
causas de morte de mulheres acaba por ensejar a sua subnotificação (Cook,
2013). Quanto aos serviços de saúde prestados, o Comitê concluiu que
não foram garantidos os serviços apropriados à sua condição de gravidez,
e reconheceu que o Estado brasileiro não cumpriu com suas obrigações de
manter políticas públicas que garantam a igualdade de tratamento em saúde
entre homens e mulheres.
Segundo o Comitê, o Estado brasileiro violou o direito ao acesso à
saúde; o direito ao acesso à Justiça e o direito a ter as atividades dos serviços
privados de saúde regulados pelo Estado, conjuntamente com o direito a
não ser discriminada. Ainda, a ausência de serviços apropriados de saúde
materna constitui, além de violação do direito à saúde, discriminação contra
a mulher. Para o Comitê, além de Alyne Pimentel ter sofrido discriminação por
ser mulher, também o foi por ser afrodescendente e pertencer à camada da
população de baixa renda. Por fim, o Comitê reconhece que o Estado brasileiro
não assegurou proteção judicial efetiva e remédios jurídicos apropriados (De
Oliveira, 2014).
Foram sete recomendações feitas ao Estado brasileiro, uma de natureza
compensatória, prevendo indenização à mãe e à filha de Alyne Pimentel;
três sobre políticas públicas de saúde: assegurar o direito da mulher à
maternidade saudável e o acesso de todas as mulheres a serviços adequados

83
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

de emergência obstétrica; realizar treinamento adequado de profissionais de


saúde, especialmente sobre direito à saúde reprodutiva das mulheres; reduzir
as mortes maternas evitáveis, por meio da instituição do Pacto Nacional para
a Redução da Mortalidade Materna e da criação de comitês de mortalidade
materna, e três sobre garantias judiciais: assegurar o acesso a remédios
efetivos nos casos de violação dos direitos reprodutivos das mulheres e
prover treinamento adequado para os profissionais do poder Judiciário e
operadores do Direito; assegurar que os serviços privados de saúde sigam
padrões internacionais sobre saúde reprodutiva; garantir que sanções sejam
impostas para profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das
mulheres (De Oliveira, 2014).
No que diz respeito ao aspecto interseccional, a decisão de mérito do
Comitê considerou a morte de Alyne uma violência de gênero e destacou que
a situação vivenciada por ela e por outras mulheres que morrem em razão
de morte materna evitável, é parte de um cenário de violência estrutural que
circunda as mulheres negras e de condições socioeconômicas desprivilegiadas.
O caso evidencia que raça e gênero são categorias moduladas por estruturas
do racismo e de uma subalternidade histórica, responsáveis por assimetrias
que atravessam todos os âmbitos sociais, marcando, em especial, a vida de
mulheres negras e pobres.
Nas palavras de Cook (2013), o caso representa a primeira decisão de
um órgão convencional internacional que responsabilizou um governo por
uma morte materna evitável, tendo um papel fundamental no reconhecimento
dos direitos reprodutivos não só no Brasil, mas na América Latina e no
mundo. O autor “acrescenta uma dimensão importante à jurisprudência
internacional emergente de direitos relacionados à saúde” (Cook, 2013, p.
109) ao reconhecer o direito das mulheres a uma maternidade segura e ao
acesso sem discriminação a serviços básicos de saúde de qualidade.
Em uma leitura geral, ao estabelecer que o Brasil tem a responsabili-
dade legal de tomar medidas imediatas para reduzir a mortalidade materna, o
Comitê apresentou a base jurídica necessária para uma abordagem de direitos
humanos à saúde materna. (Lardosa, 2018). E inova ao abordar não somente
a situação de Alyne, mas a condição de outras mulheres que atualmente não
têm acesso à assistência de saúde materna oportuna e de qualidade. Alyne vs.
Brasil reconhece expressamente que os Estados têm uma obrigação imediata

84
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

e exequível de abordar e reduzir a mortalidade materna, fortalecendo o


reconhecimento de direitos reprodutivos como obrigações que devem ser
cumpridas imediatamente pelos Estados.
Lardosa (2018) também destaca a capacidade do caso em identificar a
discriminação interseccional com base em sexo, raça e classe. A discriminação
interseccional refere-se a múltiplos aspectos de identidade interagindo para
criar uma forma única de discriminação, com ênfase para o papel do racismo
nesta imbricação (Lardosa, 2018). Nesse cenário, uma característica notável da
decisão é a “mudança de foco repetida da vítima individual para populações
vulneráveis”. A decisão do Comitê condenou o governo brasileiro “por ter
negado, não somente os direitos de Alyne, mas também os direitos de todas
as mulheres brasileiras, de uma maneira que transcende as particularidades
do evento individual, ao abordar os fatores sistêmicos da atenção à saúde, que
levaram à morte materna” (Cook, 2013, p. 14).
Pode-se afirmar, portanto, que a decisão de mérito do Comitê deve ser
lida como importante jurisprudência de direitos humanos das mulheres, por
considerar a discriminação interseccional sofrida por Alyne Pimentel. O Comitê
reafirmou tal posicionamento ao destacar o disposto em sua Recomendação
Geral nº 28/2010, na qual ficou exposto que a discriminação contra as
mulheres baseada no sexo ou no gênero está intrinsecamente ligada a outros
fatores que as afetam, como raça, etnia, religião ou crença, saúde, status,
idade, classe social, casta, orientação sexual e identidade de gênero.

2 O PARADIGMA DA JUSTIÇA REPRODUTIVA: A JUSTIÇA SOCIAL


E RACIAL NO CENTO DA SAÚDE E DOS DIREITOS REPRODUTIVOS
Como vimos, um dos grandes destaques da decisão proferida pelo
Comitê Cedaw foi incorporar a perspectiva interseccional em sua análise, ao
afirmar que todas as mulheres devem ser protegidas pelo Estado brasileiro,
de forma a garantir atenção especial às necessidades de saúde e direitos da
mulher, de grupos vulneráveis e desfavorecidos. Nesse sentido, o Comitê
acrescentou o dever de eliminar a discriminação no acesso aos cuidados de
saúde, o que inclui a responsabilidade de levar em conta a maneira pela qual
os fatores sociais variáveis possam determinam o estado de saúde.

85
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

A decisão do caso Alyne Pimentel evidencia uma violência marcada


não apenas pelo racismo institucional, mas antes por múltiplas formas de
violências que atravessam a vida de mulheres negras e pobres no contexto
brasileiro. A violência que resultou na sua morte demonstrou o perfil nacional
e internacional do problema: a morte prematura e evitável de mulheres
racializadas e de classe social periférica. Nestes termos, abordar a questão
da saúde das mulheres de forma interseccional implica compreender a
centralidade do racismo e das diferentes discriminações na violação de direitos
humanos das mulheres.
A experiência de Alyne Pimentel não pode ser pensada separada
da discriminação racial e de gênero. Ambas precisam ser ampliadas para
abordarmos as questões de interseccionalidade: classe, raça, deficiência, idade,
religião, etnia, sexualidade e outros regimes de desigualdade são definidores
do acesso à saúde e determinam a autonomia possível de tomar decisões sobre
a sexualidade e a reprodução. É neste sentido que, neste estudo, propomos
a incorporação do paradigma da justiça reprodutiva como uma perspectiva
teórica capaz de dar suporte à interseccionalidade necessária para análise da
vivência dos direitos reprodutivos e da garantia do acesso à saúde sexual
e reprodutiva. Nestes termos, interseccionalidade e justiça reprodutiva são
conceitos que devem se articular na análise das questões relacionadas à saúde
materna e infantil, à autonomia sexual e à gestação (Collins, 2020).
Incorporar o paradigma da justiça reprodutiva não significa abandonar o
paradigma, seja da saúde reprodutiva, seja dos direitos sexuais e reprodutivos,
mas ampliá-los. A garantia efetiva dos direitos sexuais e reprodutivos como
direitos humanos e sua incorporação em tratados internacionais e marcos
jurídicos internacionais e nacionais é fundamental para a sua efetivação. Do
mesmo modo que a criação de políticas públicas, programas e serviços que
se proponham a materializar a garantia ao acesso e atendimento qualificado e
universal à saúde é um dos grandes objetivos a serem alcançados. Em grande
medida, no entanto, tais paradigmas estão centrados na dimensão individual,
pautados na ética da liberdade individual de escolha de cada indivíduo quanto
às possibilidades de tomadas de decisão livres e saudáveis.
A liberdade reprodutiva desempenha um papel fundamental nos
debates sobre a ética da procriação, como um princípio moral que protege
os interesses das pessoas em matéria procriativa e permite que decidam se

86
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

querem ter filhos, o número de filhos que têm e, até certo ponto, o tipo
de filhos que têm. A ênfase teórica e política da liberdade reprodutiva na
autonomia e no bem-estar das pessoas é fundamentada em uma estrutura
centrada no indivíduo para discutir a ética da procriação. Ele protege os
interesses dos procriadores e reduz significativamente os motivos permitidos
para interferência de terceiros.
Sobre cada indivíduo específico, no entanto, entrecruzam-se diferentes
dimensões e contextos estruturais de vida que impactam na tomada de decisão
sobre direitos e a elaboração de políticas de acesso à saúde reprodutiva. A
compreensão de como as discriminações e desigualdade impactam as decisões
sobre reprodução e sexualidade de pessoas que gestam é o que preconiza a
ideia de justiça reprodutiva, uma vez que tais decisões não são dissociadas da
comunidade em que se inserem os sujeitos e das injustiças enfrentadas por
eles. A justiça reprodutiva muda o foco dos direitos sexuais e reprodutivos:
em vez de evidenciar a importância de decisões individuais, enfrenta como
os diferentes regimes de opressão impactam a saúde sexual e reprodutiva e
prioriza a organização coletiva para demandar direitos e políticas fundamentais
ao exercício livre e autônomo da sexualidade (Ross, 2006).
O conceito justiça reprodutiva popularizou-se em 2003, em uma
Conferência proferida por Loretta Ross (Oliveira, 2022). Nessa perspectiva,
a ideia de justiça é bem mais ampla que a de Direito, pela inclusão das
intersecções ou imbricações sociais de meninas e mulheres em suas inúmeras
diversidades. Justiça reprodutiva refere-se aos recursos econômicos, sociais
e políticos para que as mulheres possam tomar decisões saudáveis sobre os
seu corpo, sua sexualidade e suas reproduções, não de uma maneira apenas
individual, mas levando em conta suas famílias, comunidades e a estrutura
social (opressiva sob diferentes aspectos) em que estão inseridas (Ross, 2006).
Logo, conforme Ross (2006), a abordagem da justiça reprodutiva analisa
como a capacidade de qualquer mulher para determinar seu próprio destino
reprodutivo está ligada às condições de sua comunidade, e essas condições não
são apenas uma questão de escolha individual e acesso. A justiça reprodutiva
aborda a realidade social da desigualdade, especificamente, a desigualdade de
oportunidades para determinar o destino reprodutivo. Para além da demanda
da privacidade e do respeito pelas tomadas de decisão individuais, considera
os apoios sociais necessários para que as decisões individuais sejam realizadas

87
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

e inclui obrigações estatais para proteger os direitos humanos das mulheres.


“Nossas opções para fazer escolhas devem ser seguras, baratas e acessíveis, três
pilares mínimos de suporte do governo para todas as decisões individuais de
vida” (Ross, 2023, p. 4, tradução nossa).
Neste contexto, explicita Ross (2023, p. 4), abrange (1) o direito de ter
um filho; (2) o direito de não ter filhos e (3) o direito de cuidar dos filhos que
temos, bem como de controlar nossas opções de parto, como a obstetrícia.
Também lutamos pela necessária capacitação e condições para exercer esses
direitos. Isso contrasta com o foco singular no aborto pelo movimento pró
escolha que exclui outros movimentos de justiça social.
Conforme destacam Brandão e Cabral (2021), atualmente o conceito
tem sido amplamente discutido no meio acadêmico e jurídico, adotando a
teoria feminista interseccional em sua radicalidade para abordar questões
reprodutivas, e produzindo uma crítica à perspectiva liberal centrada no par
pró escolha/pró vida, propondo outra práxis política. Ao apontar os limites
dessa concepção mais estreita que embasa o direito à escolha reprodutiva,
o conceito de justiça reprodutiva abarca também o direito a ter filhos em
condições seguras, independentemente da condição social das mulheres,
sejam privadas de liberdade, em situação de rua, em abrigos, e de criá-los
com dignidade e segurança.
Nestes termos, a estrutura da justiça reprodutiva aborda a desigualdade,
especificamente, de oportunidades de controlar o destino reprodutivo, indo
além de uma demanda por privacidade e respeito pela tomada de decisão
individual para incluir os apoios sociais necessários para que as decisões
possam ser realizadas. Conforme enfatiza Oliveira (2022), portanto, pretende
ir além do aspecto reprodutivo, interpelando a democracia ao questionar
as reais condições para a criação e educação de crianças negras, sem que
elas sejam impostas às violências estatal, policial e sistêmica presentes nas
periferias, tais como as brasileiras. Permite questionar, assim, em seu escopo,
seja o genocídio de jovens negros ou o encarceramento seletivo tomados
como formas de violação ou negação da possibilidade de vivências de certas
formas de maternidade.
Analisado a partir deste paradigma, o caso Alyne evidencia as dimensões
entrecruzadas da injustiça reprodutiva de sua morte, e ao fazê-lo, aponta
para a especificidade do racismo que se perpetua em silêncio sob o mito de

88
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

democracia racial. No Brasil, as intersecções entre os regimes de poder de


gênero, raça, sexualidade e classe foram objeto de análise de teóricas e ativistas
do feminismo negro, que denunciaram nos movimentos sociais e na Academia
a precariedade das análises sobre as desigualdades. Por isso, apenas as chaves
propostas por uma análise do racismo atrelado ao sexismo é que permitem
explorar a fundo o mito da democracia racial brasileira e identificar que as
violências simbólicas operadas por esse regime de poder afetam com mais
intensidade mulheres negras (Gonzalez, 1984).
É preciso mencionar que essas chaves já vêm sendo desenvolvidas
há tempos no Brasil, mesmo antes da adoção do termo e do conceito de
justiça reprodutiva. Estudos de feministas negras como Lélia Gonzalez, Sueli
Carneiro, Jurema Werneck e outras já trilhavam o caminho na construção
de uma perspectiva crítica ao paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos
quando desvinculados do contexto de desigualdade social. Já em 1996 Sonia
Correa e Rosalind Petchesky (1996) abordavam as tensões entre os princípios
da liberdade individual e da justiça social que permeavam o debate feminista
acerca dos direitos sexuais e reprodutivos, questionando os limites de uma
abordagem de defesa da autonomia sexual e reprodutiva das mulheres sem
condições sociais estruturais para a prática de uma vida digna.
Para Brandão e Cabral (2021), recuperar a dimensão da justiça
social torna-se importante para enfrentar o descaso diante das necessidades
reprodutivas das mulheres. Assim sendo, o percurso indicado pelo paradigma
da justiça reprodutiva não se limita à problematização das particularidades
da vida de meninas e mulheres negras em relação ao direito ou à saúde
reprodutiva, mas vincula a perspectiva dos direitos reprodutivos e sexuais
à ideia de justiça social. Ao fazê-lo, propõe analisar a mortalidade materna
como expressão da articulação entre discursos e práticas de poder patriarcais
e racistas. Em suma, afirmam Brandão e Cabral (2021, p. 7), os “eventos da
gravidez, contracepção e aborto, embora ocorram no corpo das mulheres, são
fenômenos relacionais, envolto em uma teia de relações sociais, que implicam
parceiros, familiares, amigos, profissionais de saúde e condições sociais
objetivas para se efetivarem.” Logo, “não são simples escolhas individuais,
mas das condições de possibilidade que elas encontram para tomarem suas
decisões reprodutivas”.

89
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

De tal modo, a presença de obstáculos que articulam estruturalmente


a desigualdade social, racial, de classe e de gênero impedem a realização
de escolhas livres e saudáveis, dificultando, e em alguns casos impedindo
a realização da tão propalada autonomia reprodutiva. A compreensão deste
cenário auxilia na não responsabilização única das próprias mulheres acerca
de suas vivências e (in)capacidade de gerir sua vida sexual e reprodutiva, o que
muitas vezes precariza sua vida e as coloca na condição de hysteras sacras,
conforme Nielsson (2022). Nestes termos, a formulação de justiça reprodutiva
incorpora explicitamente e de modo mais amplo a necessidade de garantia de
direitos sociais e econômicos em aliança aos direitos sexuais e reprodutivos,
que não se viabilizam sem condições estruturais que sustentem a sobrevida
das mulheres.
Brandão e Cabral (2021) chamam a atenção para o necessário resgate
estratégico no momento político atual da perspectiva da justiça reprodutiva,
uma vez que recuperaria o elo perdido ao longo das últimas décadas, entre
direitos sexuais e reprodutivos e direitos sociais, clamando sobretudo
por justiça social. Em outras palavras, não se trata de substituição de uma
perspectiva por outra, mas da necessária integração entre essas dimensões,
sobretudo na proposição de políticas públicas que encampem o desafio de
enfrentar as múltiplas formas de desigualdades sociais e seus impactos na
saúde.

3 É POSSÍVEL FALAR EM JUSTIÇA REPRODUTIVA? UM OLHAR SOBRE


A MORTALIDADE MATERNA NO BRASIL NOS ÚLTIMOS 20 ANOS
Considerando o amplo espectro das recomendações da Cedaw no
caso Alyne, este tópico pretende analisar, a partir do paradigma da justiça
reprodutiva, os seus impactos no país nos últimos 20 anos, com foco nos
dados acerca da mortalidade materna, um problema não só de saúde pública,
mas também de violação de direitos humanos, entendimento conceitual
preconizado pelo Comitê Cedaw. Nestes termos, a morte materna evitável
consiste em violação à dignidade humana intrínseca da mulher, assim como
flagrante injustiça social.
Conforme preconizam Barreto e Espinoza (2022), os índices de
letalidade materna refletem a qualidade dos indicadores de um país e
constituem um bom indicador de injustiça social: uma maior taxa de

90
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

mortalidade materna indica índices elevados de pobreza e repercute sobre


famílias e comunidades. A situação vivenciada por milhares de mulheres
brasileiras, pobres e negras, que perdem a vida todos os anos faz parte de um
quadro de violência estrutural refletido na omissão e negligência das decisões
políticas e legislativas (Cook, 2013).
A mortalidade materna é qualificada pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) como a que ocorre durante a gestação ou dentro de um
período de 42 dias após o término desta, conforme determina a OMS (OMS,
2016) devido a qualquer causa relacionada com a gravidez, ou por medidas
em relação a ela, ou problemas que são acentuados, à exceção das causas
acidentais. A maioria das mortes assim consideradas são plenamente evitáveis
se houvesse acessos a serviços de saúde de referência e qualidade.
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2009, p. 10), “em 2003, a razão
de mortalidade materna no Brasil obtida a partir de óbitos declarados foi de
51,7 óbitos maternos por 100.000 nascidos vivos, e a razão de mortalidade
materna corrigida é de 72,4 por 100.000 nascidos vivos, correspondendo
a 1.572 óbitos maternos”. Os maiores índices são encontrados nas regiões
Nordeste e Centro Oeste, com uma participação maior de mulheres da
população parda, seguido de mulheres brancas e depois pretas. No contexto
global, as maiores causas de letalidade materna são, por exemplo, hemorragia,
hipertensão, aborto inseguro e infecções, que contribuem cumulativamente
para cerca de 82% das mortes maternas (Cook, 2013).
Neste movimento, a ONU incorporou a redução das taxas de
mortalidade materna como um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio,
e posteriormente dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – e
da Agenda de Desenvolvimento Sustentável de 2030.
A Quinta Meta de Desenvolvimento do Milênio buscava a redução da
taxa de mortalidade materna em 75% até o ano 2015: entre 1998 e 2010,
o Brasil reduziu a taxa de mortalidade materna de 103,43 para 56 (OMS,
2012 ), o que representa uma redução de 51% (Cook, 2013). Os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável – ODS – por sua vez, com uma agenda a ser
cumprida até 2030, estabelecem o objetivo de redução da taxa de mortalidade
materna global para 70 mortes por 100.000 nascidos vivos, e a meta brasileira
para contribuir com a taxa global é a redução para 30 mortes a cada 100.000
nascidos vivos.

91
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

Apesar destas garantias e metas, a realidade brasileira ainda é muito


distante do que preconizam os dispositivos internacionais, em que pesem
algumas tentativas de viabilizar políticas públicas vislumbradas até mesmo
antes de 2011, tais como a iniciativa do Pacto pela Saúde. Criado em 2006, o
Pacto priorizava a melhoria da saúde materna e exigia ações de enfrentamento
à mortalidade materna e infantil, como a criação da Comissão Nacional
de Mortalidade Materna dos Comitês de Morte Materna, que se somava à
Campanha Nacional de Incentivo ao Parto Normal e à Redução de Cesária
Desnecessária (Reis; Pepe; Caetano, 2011).
Uma das medidas mais conhecidas, objeto de recomendação pela
Cedaw no caso Alyne, foi a criação, em 2011, da Rede Cegonha, no âmbito do
Sistema Único de Saúde, consistindo em uma rede de cuidados que assegura
o planejamento reprodutivo e atenção humanizada na gravidez, antes, durante
e após a gestação. Com ela, o governo brasileiro procurou construir uma
estratégia alinhada com os padrões internacionais de direitos humanos. Acerca
da Rede Cegonha, muitas dificuldades são apontadas para sua efetivação. De
Oliveira e Barros Schirmer (2012) destacavam naquele momento a dificuldade
de acesso à informação sobre o programa e a falta de recursos que são
destinados.
De um modo geral estas políticas não apresentaram grande efetividade,
pois esbarravam em barreiras, como: a descontinuidade das ações de vigilância
e do monitoramento de agravos; baixo grau de instituição de comitês de
mortalidade materna; baixo grau de interiorização das políticas de saúde
voltadas para este problema e desconhecimento dos gestores locais sobre as
políticas que visam à redução da mortalidade materna (Dhesca, 2015 ).
Sob este quadro de (des)avanços, em 2015, 13 anos após a morte de
Alyne Pimentel, e 4 anos após a condenação do Brasil no Comitê Cedaw,
pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
com a Secretaria Especial de Articulação Social indicava que a Razão por Morte
Materna (RMM) em âmbito nacional atingiu o número de 62, muito além das
metas estabelecidas que estipulava o valor de 30 para o Brasil.
Este cenário já indicava a dificuldade na configuração de ações
que fizessem frente ao tema, uma vez que a interseção entre gênero, raça
e status socioeconômico cria formas de discriminação únicas que causam
invisibilidade perante os processos de tomada de decisão. Conforme Paris

92
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

(2022), é inegável que nos últimos anos o Brasil foi reconhecido por adotar
uma perspectiva de direitos humanos por meio do quadro legal introduzido
pela Constituição Federal de 1988 e leis infraconstitucionais, ratificando os
principais instrumentos de direitos humanos e demonstrando avanços para
instituição do direito à saúde e direitos reprodutivos. Embora haja aparente
igualdade formal perante a lei, no entanto, a igualdade substantiva permanece
fora do alcance para muitas mulheres.
De um modo geral é possível perceber que as legislações e políticas
públicas colocadas em prática no Brasil nos primeiros anos após a condenação
do caso Alyne Pimentel não levaram em consideração os princípios da justiça
reprodutiva e não alcançaram a amplitude e interseccionalidade necessárias
para a efetiva abordagem do tema: enfrentamento conjunto às desigualdades
de gênero, raça e classe que são estruturalmente vinculadas à mortalidade
materna e infantil no Brasil. Isto se evidencia se observarmos os dados
epidemiológicos desagregados segundo raça-cor, que indicam o impacto que
o racismo tem na condição de saúde da população negra ( Werneck; Iraci,
2016). Em 2004, conforme Cruz (2004), logo após a morte de Alyne Pimentel,
a taxa de mortalidade materna geral era de 51,7/100.000 nascidos vivos, mas
nas mulheres brancas era de 37,73, e de 212,80/100.000 nas mulheres pretas.
Ou seja, conforme Werneck e Iraci (2016), as mulheres negras são 62%
das vítimas de morte maternas no Brasil, as quais que seriam evitáveis com
o acesso a um sistema de saúde adequado, no entanto, segundo as autoras,
apenas 55% das mulheres negras fizeram sete consultas de pré-natal em 2012.
O perfil mais traçado das mulheres que falecem é de mulheres com baixos
níveis de escolaridade, solteiras, de cor parda, sendo apontadas deficiências no
pré-natal, não reconhecimento de fatores de risco e superlotação nos hospitais
(Rodrigues; Cavalcante; Viana, 2020)
Nestes termos, é possível vislumbrar que a literatura hegemônica,
os documentos oficiais sobre saúde reprodutiva e a configuração da morte
materna como objeto sanitário, bem como as legislações e políticas públicas
acerca dos direitos reprodutivos, colocadas em prática no Brasil durante a
primeira e segunda décadas do século 21, no que tange ao enfrentamento
à mortalidade materna falharam ao incorporar o paradigma da justiça
reprodutiva, ocultando o racismo e as injustiças sociais estruturalmente
vinculadas ao tema.

93
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

Se o cenário descrito anteriormente a 2020 já era preocupante,


a emergência da pandemia de Covid-19 acentuou ainda mais todas as
dificuldades já apresentadas, precarizou as já debilitadas políticas públicas
e fez o número de mortes maternas disparar no Brasil. Com a pandemia de
Covid-19, as respostas à emergência sanitária levaram à redução de serviços
de saúde sexual e reprodutiva, impactando na vida de meninas e mulheres,
especialmente no Brasil, epicentro da mortalidade materna pela Covid-19.
Conforme Diniz, Brito e Rondon (2022), três grandes barreiras
impediram um atendimento de saúde que considerasse as questões de saúde
sexual e reprodutiva de mulheres gestantes e puérperas: a) houve demora
na identificação dos sintomas relacionados à Covid-19; b) ocorreu demora
na hospitalização; c) houve demora na adoção de medidas eficazes para
combater a infecção, como a antecipação do parto e a internação em Unidade
de Terapia Intensiva. Segundo as pesquisadoras, essas barreiras evidenciaram
discriminação racial e de gênero, assim como falhas sistêmicas do sistema de
saúde brasileiro.
O Grupo Brasileiro de Estudos de Covid-19 e Gravidez acompanhou o
fenômeno e em julho de 2020 demonstrou que, entre 26 de fevereiro de 2020
e 18 de junho de 2020, 124 gestantes e/ou puérperas morreram por Covid-19
no Brasil – 77% dessas mortes no mundo – das quais 23% não tiveram acesso
a um leito de UTI e 36% não chegaram a ser intubadas (Takemoto et al., 2020).
Em agosto de 2020, as pesquisadoras identificaram que a cada 10 óbitos de
gestantes no mundo, 8 aconteceram no Brasil e destacaram uma concentração
de óbitos maternos no país (Nakamura-Pereira et al., 2020).
No mesmo sentido, o Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19
identificou, entre os meses de março de 2020 a março de 2021, um total
de 1.031 mortes maternas (680 mortes entre gestantes e 351 faleceram no
período pós-parto). Destes casos, 22,5% não tiveram acesso a UTIs, o que
se devia, entre outros fatores, à precariedade do acesso ao sistema de saúde
(Francisco; Lacerda; Rodrigues, 2021). Por sua vez, dados do Sistema de
Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, mostram que em
2020, 1.965 mulheres morreram durante a gravidez, o parto ou puerpério no
Brasil. Em 2021, os dados revelam que foram 3.030 mortes maternas.

94
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

Estudo do Observatório Covid-19 Fiocruz (Guimarães et al., 2023)


revela que, em 2020, os óbitos maternos cresceram 40%, o que, mesmo
considerando a expectativa de aumento das mortes em decorrência da
pandemia, ainda houve excesso de 14%. O estudo identificou ainda que as
chances de hospitalização de gestantes com diagnóstico da doença foram
337% maiores, e que, por sua vez, as chances de uma mulher negra, residente
da zona rural e internada fora do município de residência entre os óbitos
maternos foram 44%, 61% e 28% maiores em comparação ao grupo controle.
Em que pesem os dados e pesquisas realizados, durante a pandemia,
ao menos nos documentos lançados pelo governo federal brasileiro, não são
evidentes preocupações e políticas próprias de atenção a gestantes (Paris,
2022). O posicionamento genérico do governo federal não considerou
as evidências científicas de que o vírus oferece maior risco a gestantes e
puérperas ( Villar et al., 2021 ), fato que deveria impor a priorização do grupo
entre os mais afetados no que diz respeito à vacinação e políticas de resposta
à pandemia.
Sob a perspectiva do racismo estrutural, estudo realizado por Santos et al.
(2020), ao analisar casos de mulheres brancas e negras gestantes ou puérperas,
com idades similares e perfis de comorbidade aproximados, identificou que
mulheres negras apresentavam não só um índice duas vezes maior de mortes,
bem como acesso mais precário ao atendimento, sendo minoria entre as
internadas em UTIs e eram hospitalizadas com quadros mais graves. O estudo
concluiu, então, que dados clínicos ou biológicos não podem explicar o impacto
desproporcional da Covid-19 entre as mulheres gestantes e puérperas negras. Na
verdade, essa vulnerabilização inicia-se em processos anteriores ao adoecimento,
relacionados ao racismo e ao patriarcado que aprofundam desigualdades
enfrentadas no acesso à saúde, às condições de vida e trabalho e vulnerabilizam
a população negra, em especial mulheres negras.
Encarar a necessidade de políticas públicas de atendimento integral
às necessidades de gestantes e puérperas é levar em consideração a justiça
reprodutiva, uma vez que o alarmante cenário de mortes maternas por
Covid-19 vivido no Brasil não se explica somente por causas biológicas ou
médicas relacionadas à gestação e ao puerpério. Em vez disso, esses índices
podem estar relacionados a problemas crônicos da assistência à saúde, entre
eles disparidades raciais e a violência obstétrica (Souza; Amorim, 2021).

95
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

Nesse sentido, o quadro que se apresenta atualmente, passados mais de


20 anos da morte de Alyne Pimentel, evidencia uma tragédia. Segundo alerta
do Fundo de População da Organização das Nações Unidas (Unfpa), em 2021,
a taxa de mortalidade materna para cada 100 mil nascidos vivos foi superior a
107. A alta é quase o dobro, mais de 94% em comparação a 2019, ano anterior
à emergência sanitária global, quando o resultado chegou a 57 para 100 mil
partos. Em 2020, este mesmo número saltou para 71,97 mortes, um aumento
de quase 25% em relação ao ano anterior e retrocedendo, em 2021, para os
mesmos patamares registrados no início dos anos 2000, momento histórico
da morte de Alyne Pimentel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da realização da pesquisa, pode-se destacar três pontos à
guisa de conclusão: 1. O paradigma da justiça reprodutiva mostra-se o mais
adequado para se pensar a efetividade dos direitos sexuais e reprodutivos
e o acesso a programas e políticas de saúde que garantam a sua viabilidade
e vivência; 2. A decisão de mérito do Comitê Cedaw é paradigmática ao
reconhecer a morte materna e evitável de Alyne Pimentel como violência de
gênero, articulando as categorias gênero, raça e classe na análise do caso; 3.
Em que pese a decisão tenha garantido novas bases jurídicas para a abordagem
interseccional, no que tange às legislações e políticas públicas sobre saúde
materna brasileiras, estas falharam em garantir a justiça reprodutiva.
Acerca do primeiro ponto, tem-se que o paradigma da justiça
reprodutiva deva ser adotado na abordagem do tema, uma vez que expande
os paradigmas clássicos, seja da saúde, seja dos direitos sexuais e reprodutivos
para além da ética da escolha individual. Enfatiza os elementos da justiça social
e do racismo, considerando que não é possível efetivar o direito de escolha
acerca da vida sexual e reprodutiva sem considerar as imbricações estruturais
do racismo, da pobreza e de outras estruturas de poder que precarizam vidas.
Acerca do segundo ponto, vislumbra-se a relevância do Caso Alyne e sua
decisão, o primeiro caso a abordar a mortalidade materna perante o Sistema
Global de Direitos Humanos. Quanto à decisão de mérito é paradigmática,
pois reconhece a morte materna evitável de Alyne Pimentel como uma violação
de direitos humanos, fruto da imbricação entre violência de gênero, racismo
e injustiça social.

96
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

Acerca do último ponto, embora a decisão tenha garantido novas bases


jurídicas para a abordagem multidimensional da violência contra as mulheres,
no que tange às legislações e políticas públicas acerca da mortalidade materna
postas em prática no Brasil, estas falharam em incorporar e garantir a justiça
reprodutiva, o enfrentamento ao racismo e à desigualdade social. Se o cenário
descrito anteriormente a 2020 já era preocupante, a emergência da pandemia
da Covid-19 acentuou ainda mais as dificuldades vivenciadas, precarizou as já
debilitadas políticas públicas, e fez o número de mortes maternas evitáveis,
especialmente de mulheres negras, racializadas e periféricas, disparar no Brasil,
a tal ponto de vivenciarmos um retrocesso de 20 anos na saúde materna,
nos trazendo aos mesmos patamares encontrados no início dos anos 2000,
justamente no momento histórico da morte de Alyne Pimentel.

REFERÊNCIAS
BARRETO, Bruna Marques; ESPINOZA, Fran. As políticas públicas como combate
da mortalidade materna. Revista Direito UFMS, Campo Grande, MS, Edição
Especial, p. 166-181, 2022.
BRANDÃO, E. R.; CABRAL, C. da S. Justiça reprodutiva e gênero: desafios
teórico-políticos acirrados pela pandemia de Covid-19 no Brasil. Interface –
Comunicação, Saúde, Educação, 25, e200762, 2021.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento
de Análise de Situação em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito
materno. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
CATOIA, Cinthia de Cassia; SEVERI, Fabiana Cristina; FIRMINO, Inara Flora
Cipriano. Caso “Alyne Pimentel”: Violência de Gênero e Interseccionalidades. Rev.
Estud. Fem., Florianópolis, v. 28, n. 1, p. e60361, 2020.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo,
2020.
COOK, Rebecca. Direitos humanos e mortalidade materna: explorando a eficácia
da decisão do Caso Alyne. Tradução Maria Elvira Vieira de Mello e Beatriz Galli.
Journal of Law, Medicine & Ethics, v. 41, n, 1, p. 103-123, 2013. Disponível em:
https://www.law.utoronto.ca/utfl_file/count/documents/reprohealth/Pub-AlynePor-
tuguese.pdf. Acesso em: 21 jul. 2023.
CORRÊA, Sonia, PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma
perspectiva feminista. Physis, v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1966.

97
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

CORRÊA, Sonia; ALVES, José Eustáquio Diniz; JANNUZZI, Paulo de Martino.


Direitos e saúde sexual e reprodutiva: marco teórico-conceitual e sistema de
indicadores. In: CAVENAGHI, Suzana (coord.). Indicadores municipais de saúde
sexual e reprodutiva. Rio de Janeiro: Abep, 2006.
CRUZ, Isabel Cristina Fonseca da. A sexualidade, a saúde reprodutiva e a violência
contra a mulher negra: aspectos de interesse para assistência de enfermagem.
Revista da Escola de Enfermagem da USP [on-line]. 2004, v. 38, n. 4, p. 448-457.
DOI: https://doi.org/10.1590/S0080-62342004000400011. Acesso em: 25 ago.
2023.
DE OLIVEIRA, Aline Albuquerque. O Caso Alyne Pimentel e o direito à saúde no
Brasil. 2014. Disponível em: https://cebes.org.br/o-caso-alyne-pimentel-e-o-direito-
a-saude-no-brasil/3378/. Acesso em: 5 jul. 2023.
DE OLIVEIRA, Aline Albuquerque; BARROS SCHIRMER, Julia. Caso Alyne Pimentel:
uma análise à luz da abordagem baseada em direitos humanos. Revista do
Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, [S.l.], n. 12, p. 11-22, dez. 2012.
DHESCA BRASIL. Relatório sobre mortalidade materna no contexto do processo
de implementação da decisão do Comitê CEDAW contra o Estado brasileiro
no caso Alyne da Silva Pimentel. Redação Beatriz Galli, Helena Rocha e Jandira
Queiroz. 1. ed. Brasília: UNFPA – Fundo de População das Nações Unidas, 2015.
Disponível em: https:// edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4265992/mod_resource/
content/1/DESCHA%20%20Relatorio%20Caso%20Alyne%20Pimentel.pdf. Acesso
em: 25 ago. 2023.
DINIZ, Debora; BRITO, Luciana; RONDON, Gabriela. Maternal mortality and the
lack of women-centered care in Brazil during COVID-19: preliminary findings
of a qualitative study. The Lancet Regional Health – Americas, on-line., v. 10, p.
100-239, jun. 2022.
FRANCISCO, Rossana Pulcineli Vieira; LACERDA, Lucas; RODRIGUES, Agatha S.
Obstetric Observatory BRAZIL – COVID-19: 1031 maternal deaths because of
covid-19 and the unequal access to health care services. Clinics, v. 76, p. 1-4, 2021.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências
Sociais Hoje, São Paulo: Anpocs, p. 223-244, 1984. Disponível em Disponível
em https://www.academia.edu/27681600/Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_
Brasileira_-_L%C3%A9lia_Gonzales.pdf. Acesso em: 12 jul. 2013.
GUIMARÃES, R. M. et al. Rastreamento do excesso de mortes maternas associadas
à COVID-19 no Brasil: uma análise nacional. BMC Gravidez Parto, v. 23, n. 22,
2023. DOI: https://doi.org/10.1186/s12884-022-05338-y

98
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

LARDOSA, Tatiana Pessôa da Silveira Santos. Discriminação interseccional e


responsabilidade do Estado à luz do Caso Alyne Pimentel: uma abordagem de
direitos humanos. Revista de Direito da Defensoria Pública Estado do Rio de
Janeiro, a. 28, n. 28, 2018.
LÓPEZ, Laura Cecilia. Mortalidade materna, movimento de mulheres negras e
direitos humanos no Brasil: um olhar na interseccionalidade de gênero e raça.
Revista Tomo, p. 135-167, 29 jun. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.21669/tomo.
v0i0.5424
NAKAMURA-PEREIRA, M. et al. COVID-19 and Maternal Death in Brazil: An
Invisible Tragedy. Rev. Bras. Ginecol. Obstet., v. 42, n. 8, p. 445-447, 2020.
NOGUEIRA, Shamia Beatriz Andrade et al. Mortalidade Materna no Brasil: uma
revisão de literatura. Premissas da Iniciação Científica, [S.l.], n. 4, p. 47-53, 9 dez.
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.22533/at.ed.1141911026. Acesso em: 10 dez. 2020.
NIELSSON, Joice Graciele. Direitos reprodutivos e esterilização de mulheres:
a Lei do Planejamento Familiar 25 anos depois. Santa Cruz do Sul: Essere nel
Mondo, 2022.
OLIVEIRA, R. N. Justiça reprodutiva como dimensão da práxis negra feminista:
contribuição crítica ao debate entre feminismos e marxismo. Germinal: Marxismo
e Educação em Debate, v. 14, n. 2, p. 245-266, 2022. DOI: https://doi.org/10.9771/
gmed.v14i2.49559
ONU. Organização das Nações Unidas. Comitê para a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher. Decisão de 25 de julho de
2011. Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brazil. Comunicação, n. 17/2008,
Cedaw/C/49/D/17/2008. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/
HRBodies/CEDAW/ Jurisprudence/CEDAW-C-49-D-17-2008_en.pdf. Acesso em:
20 jul. 2023.
OMS. Organização Mundial da Saúde; WHO. World Health Organization. Global
Estimates of Maternal Mortality, Statistic, Politics and Policy, v. 3, ISS. 2, article
3, 2012.
OMS. Organização Mundial da Saúde. Estatísticas Mundiais de Saúde 2016 [OP]:
monitoramento da saúde para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS). [S.l.]: Organização Mundial da Saúde, 2016.
PARIS, Mariana Silvino. Responsabilidade e reparação: testemunho sobre um
caso de morte materna na pandemia de Covid-19 No Brasil. 2022. Dissertação
(Mestrado) – Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Direito,
Brasília, 2022.

99
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E MORTALIDADE MATERNA
NO BRASIL 20 ANOS DEPOIS DA MORTE DE ALYNE PIMENTEL
Joice Graciele Nielsson

REIS, Lenice Gnocchi da Costa; PEPE, Vera Lucia Edais; CAETANO, Rosângela.
Maternidade segura no Brasil: o longo percurso para a efetivação de um direito.
Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 21, p. 1.139-1.160, 2011.
RODRIGUES, Antonia Regynara Moreira; CAVALCANTE, Ana Egliny Sabino;
VIANA, Aleide Barbosa. Mortalidade materna no Brasil entre 2006-2017: análise
temporal. Revista Tendências da Enfermagem Profissional, Fortaleza, v. 11, n.
1, p. 3-10, 4 jan. 2020. Disponível em: http://www.coren-ce.org.br/wp-content/
uploads/2020/01/ Mortalidade-materna-no-Brasil-entre-2006-2017-an%C3%A1lise-
temporal-final.pdf. Acesso em: 25 ago. 2023.
ROSS, Loretta. What is Reproductive Justice? Disponível em: https://www.
protectchoice.org/downloads/Reproductive%20Justice%20Briefing%20Book.pdf.
Acesso em: 13 jul. 2023.
ROSS, Loretta et al. Understanding Reproductive Justice: Transforming the
Pro-Choice Movement. 2006. Disponível em: https://www.law.berkeley.edu/
php-programs/centers/crrj/zotero/loadfile.php?entity_key=6NK5BUG9. Acesso
em: 21 jun. 2023.
SANTOS, D. S. et al. Disproportionate impact of COVID-19 among pregnant and
postpartum Black Women in Brazil through structural racism lens. Clin. Infect
Dis., ciaa1066, 2020. DOI: https://doi.org/10.1093/cid/ciaa1066
SOUZA, Alex Sandro Rolland; AMORIM, Melania Maria Ramos. Maternal mortality
by COVID-19 in Brazil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, São Paulo:
FapUNIFESP, v. 21, n. 1, p. 253-256, fev. 2021.
TAKEMOTO. M. L. S. et al. Maternal mortality and COVID-19. J. Matern Fetal
Neonatal Med., 2020. DOI: 10.1080/14767058.2020.1786056
VILLAR, José et al. Maternal and Neonatal Morbidity and Mortality Among Pregnant
Women With and Without Covid-19 Infection. Jama Pediatrics, American Medical
Association (AMA), [S. l.], v. 175, n. 8, p. 817, 1º ago. 2021. DOI: http://dx.doi.
org/10.1001/jamapediatrics.2021.1050. Disponível em: https://jamanetwork.com/
journals/jamapediatrics/fullarticle/2779182. Acesso em: 26 jun. 2023.
WERNECK, Jurema; IRACI, Nilza. A situação dos direitos das mulheres negras no
Brasil: violências e violações. Criola-Geledés, São Paulo, 2016. Disponível em:
http://fopir.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Dossie-Mulheres-Negras-.pdf.
Acesso em: 15 jul. 2023.

100
PANORAMA DA MONITORAÇÃO
ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO
LATINO-AMERICANO:
Uma Alternativa ao Superencarceramento?1

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A monitoração eletrônica tem sido utilizada em grande parte dos países
da América Latina como alternativa ao cenário de superlotação carcerária
evidenciado na região. O cumprimento da pena privativa de liberdade, em um
cenário de vagas deficitárias, transforma a prisão em uma pena aflitiva, cruel e
degradante, em afronta aos direitos assegurados pela maioria das legislações
internas dos países latino-americanos, bem como em vários Tratados de
Direitos Humanos, com destaque para a Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH).
O cenário apresentado pelos sistemas penitenciários da região,
inclusive, levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),
em 25 de novembro de 2019, com supedâneo no artigo 64.1 da CADH, a
solicitar uma Opinião Consultiva da Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CorteIDH) acerca do necessário enfoque diferenciado que deve
ser dado às pessoas privadas de liberdade. A solicitação da Comissão à Corte
foi fundamentada no contexto de extrema vulnerabilidade das pessoas

1
Artigo produzido no âmbito do projeto “Rede de cooperação acadêmica e de pesquisa: Eficiência,
efetividade e economicidade nas políticas de segurança pública com utilização de monitoração eletrônica
e integração de bancos de dados”, do Programa de Cooperação Acadêmica em Segurança Pública e
Ciências Forenses (Edital Procad/Capes nº 16/2020 – Processo nº 88887.516380/2020-00).

101
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

encarceradas diante das deploráveis condições de detenção que caracterizam


o cárcere na América Latina. No dia 30 de maio de 2022 a Corte Interamericana
de Direitos Humanos emitiu a Opinião Consultiva de nº 29, a qual apresenta,
entre outras, diretrizes relacionadas à necessária observância da dignidade
humana como princípio geral de tratamento devido às pessoas privadas de
liberdade, ao controle judicial da execução penal, ao direito à igualdade e
à não discriminação, segundo um enfoque diferenciado e interseccional, ao
acesso a serviços básicos para uma vida digna na prisão, etc. (CorteIDH, 2022 ).
Anteriormente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já
havia se pronunciado a respeito da temática da monitoração eletrônica por
ocasião da publicação do “Guia prático para reduzir a prisão preventiva” no
contexto latino-americano. No referido guia a CIDH destacou a necessidade
de observância, pelos poderes Judiciário e Legislativo, da garantia de que a
aplicação da medida não implique discriminação das pessoas que não dispõem
de condições econômicas para financiar sua aplicação. Por outro lado, a
CIDH destacou que o poder Judiciário deve adotar as medidas necessárias
para assegurar que a aplicação da monitoração eletrônica observe critérios
de igualdade material, de modo que, comprovada a incapacidade financeira
do sujeito, sejam utilizadas outras medidas não privativas de liberdade e que
não haja cobrança pela utilização dos dispositivos telemáticos. Além disso, a
CIDH estabelece como obrigação do poder Executivo a garantia do desenvol-
vimento tecnológico necessário a respeito da utilização dos mecanismos de
monitoração eletrônica, de modo a não permitir que as características dos
dispositivos empregados resultem em estigmatização dos usuários (CIDH,
2017).
Diante do contexto de intensas e reiteradas violações de direitos
humanos no âmbito dos sistemas carcerários dos países que integram a
América Latina a monitoração eletrônica, utilizada na fase processual – como
alternativa às prisões cautelares – ou na execução penal, suscita inúmeros
debates quanto a sua efetiva capacidade de enfrentamento da finalidade à qual
se propõe. Isso porque a sua adoção não tem sido responsável por uma efetiva
diminuição dos índices de encarceramento, de modo que se tem afirmado que
a monitoração eletrônica representa uma estratégia de ampliação do controle
penal para além dos espaços tradicionalmente destinados ao cumprimento
de pena.

102
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Neste contexto, o presente estudo apresenta, em um primeiro


momento, alguns aspectos conceituais e operacionais relacionados à
monitoração eletrônica no âmbito jurídico-penal; na sequência, propõe-se
um panorama acerca da instituição da monitoração eletrônica nos países
latino-americanos, traçando algumas considerações críticas ao cenário
descortinado pela efetivação dos serviços de monitoramento eletrônico neste
contexto.

1 A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA E AS TECNOLOGIAS EMPREGADAS


A tecnologia da monitoração eletrônica pode ser conceituada como
uma forma de controle de vigilância remota, ou seja, como um meio de
regular, de forma flexível, os cronogramas espaciais e temporais da vida de
um infrator (Nellis; Beyens; Kaminski, 2013, p. 4). As tecnologias envolvidas
no monitoramento eletrônico, na contemporaneidade, incluem dispositivos
de monitoramento residencial controlados por rádio, pulseiras e tornozeleiras
rastreadas por sistemas de posicionamento global (GPS), adesivos para teste de
álcool e até mesmo reconhecimento de voz (Eggers, 2013, p. 14). Em relação
especificamente ao monitoramento eletrônico como alternativa ao cárcere,
trata-se de medida que implica acoplar, ao corpo do indivíduo, um dispositivo
tecnológico de supervisão que, em tempo integral, transmite a uma central de
recebimento de informações dados relacionados ao hospedeiro.
Os dispositivos de monitoração eletrônica, portanto, podem ser
conceituados como mecanismos de restrição de liberdade e de intervenção em
situações de conflitos e violência, “diversos do encarceramento, no âmbito da
política penal, executados por meios técnicos que permitem indicar de forma
exata e ininterrupta a geolocalização das pessoas monitoradas para controle
e vigilância indireta, orientados para o desencarceramento” (Brasil, 2017).
Contemporaneamente, o sistema de monitoramento eletrônico de
pessoas possui duas formas tecnológicas de rastreamento: o GPS (Global
Positioning System) e a Radiofrequência, os quais também podem ser usados
de forma simultânea, quando se fala em sistema misto ( Vidal, 2015 , p. 49).
Importante destacar que existem quatro modalidades de equipamentos de
rastreamento do indivíduo monitorado: a pulseira eletrônica, a tornozeleira
eletrônica, o cinto eletrônico e o microchip implantado no indivíduo (ainda

103
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

em fase de testes científicos). Nos países pesquisados neste estudo, porém, a


efetivação do monitoramento eletrônico acontece majoritariamente pelo uso
de tornozeleira ou pulseira eletrônica ( Vidal, 2015, p. 49).
Na modalidade operacionalizada pela tecnologia GPS,2 utiliza-se um
conjunto de hardware e software compostos por tecnologias de telecomu-
nicação e geoprocessamento. Desta forma, um dispositivo tecnológico
(tornozeleira/pulseira eletrônica) é fixado no tornozelo/pulso do indivíduo
monitorado e sua geolocalização é calculada em tempo real pelas centrais de
monitoração (Campello, 2019, p. 20).
Havendo alguma violação à delimitação espacial, aproximação com
a vítima, ou ainda, alguma forma de dano ao dispositivo, o aparelho emite
alarmes para a central de fiscalização da monitoração. No Brasil, por exemplo,
cada Estado é responsável pela contratação da empresa prestadora do serviço
de monitoramento de pessoas, fator este que pode apresentar diferentes
formas de administração e manipulação dessa tecnologia (Campello, 2019,
p. 20).
Nessa modalidade, o usuário recebe um aparelho único que é fixado
no seu corpo e as informações relativas à sua localização são monitoradas pela
central responsável. O aparelho tecnológico, por intermédio de software de
monitoramento, emite sinais luminosos por LEDs e alarmes por GPS quanto
ao funcionamento do aparelho, tais como: ausência de sinal GPS, falta de
comunicação com GPRS, baixos níveis de bateria; contato dos monitores do
sistema; descumprimentos de regras relativas às áreas de inclusão ou exclusão
(Campello, 2019, p. 54).
Trata-se de uma tecnologia que não está isenta de desvantagens,
pois, ao permitir o deslocamento de pessoas fora de uma área de vigilância
específica, pode ocorrer um maior número de falhas na cobertura dos sistemas
de rastreio, por exemplo, quando o sujeito monitorado ingressa em túneis
ou em uma rede de metrô subterrâneo. Por outro lado, o volume e o peso
dos dispositivos empregados na monitoração podem gerar incômodos ao
indivíduo monitorado, além de potenciar os efeitos estigmatizantes da medida.

2
Nesse tipo de monitoramento eletrônico se utiliza tanto a Tecnologia GPS (Global Positionning System)
quanto a GPR (General packet radio services) (Campello, 2019, p. 54).

104
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Em contrapartida, a tecnologia utilizada para o monitoramento por


radiofrequência é composta por duas peças, observando-se que uma delas
“emite sinais de radiofrequência a uma Unidade Portátil de Rastreamento
(UPR) que armazena a bateria do sistema, além dos transmissores GPS. Ambos
os aparelhos devem ser mantidos a uma distância máxima programável”
(Campello, 2019, p. 54). Ocorrendo o descumprimento da delimitação
espacial, um alarme de violação é emitido.
Para o controle da central, um dos aparelhos fica conectado ao
corpo do indivíduo monitorado e o outro dispositivo é colocado no
perímetro espacial em que se encontra o indivíduo (na sua grande maioria é
colocado na residência do sujeito). Desta forma, para facilitar o controle, no
monitoramento por radiofrequência, os alertas, sinais, luzes e alarmes sonoros
são transmitidos pela UPR, que ao alertarem possível violação, notificam o
software da central de controle de monitoração ( Vidal, 2015, p. 50).
Nesse sentido, considerando-se as diferentes tecnologias empregadas
para a monitoração eletrônica, é oportuno salientar que esta medida não
é uma forma de controle que se ajusta a todo e qualquer tipo de infrator,
sendo necessário desenvolver rigorosos critérios de elegibilidade para sua
aplicação.
No que se refere às vantagens e desvantagens relacionadas à
monitoração eletrônica de pessoas, os estudos realizados por Martínez (2012)
sintetizam, na tabela a seguir (Tabela 1), os principais argumentos utilizados
neste debate na contemporaneidade.

105
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Tabela 1 – Vantagens e desvantagens da monitoração eletrônica

Fonte: Martínez, 2012 , p. 46.

A partir das considerações técnico-conceituais aqui expendidas,


propõe-se, na sequência, uma leitura panorâmica acerca da adoção das
políticas de monitoração eletrônica de pessoas no âmbito jurídico-penal no
contexto da América Latina. Os dados apresentados referem-se, preponde-
rantemente, aos seguintes aspectos: a) ano de introdução da medida em cada
país, b) legislação regulamentadora, c) hipóteses de aplicação e d) empresas
contratadas para instalação do serviço.

106
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

2 PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA NA AMÉRICA LATINA


Foram investigadas as situações dos 20 países latino-americanos para
obter dados gerais, disponibilizados por órgãos oficiais, sobre a existência
da monitoração eletrônica e, para os casos de uso, sobre suas características
essenciais em cada contexto. Salienta-se, oportunamente, que o panorama
ora exposto pode apresentar algumas inconsistências, visto que um aspecto
que caracteriza a América Latina, neste tema, é a falta de transparência, de
investigações científicas e de avaliação das políticas públicas que motivaram,
em cada país, o uso dos dispositivos eletrônicos no monitoramento de
acusados e condenados. Destaca-se, outrossim, que em relação a alguns países
– nomeadamente Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela – não foram encontradas
informações suficientes para uma análise do tema, razão pela qual eles não
integram o panorama a seguir esboçado.

2.1 Argentina
Em solo argentino cada província possui seu próprio sistema de
justiça, com a província de Buenos Aires sendo a primeira do país a adotar o
monitoramento eletrônico, em 1997. Nesse sentido, a Argentina é referenciada
como o primeiro país da América Latina a adotar a monitoração eletrônica,
na esteira da Lei nº 24.660/1996. A legislação prevê a possibilidade de
monitoração eletrônica em casos de violência de gênero e prisões domiciliares
para condenados e com prisão preventiva. A prisão domiciliar é aplicada em
seis casos: 1 – detento que necessite de tratamento adequado de saúde; 2 –
detento acometido de doença terminal; 3 – detento portador de deficiência;
4 – detento com idade superior a 70 anos; 5 – mulheres grávidas; 6 – mães
de criança menor de cinco anos ou pessoa com deficiência (Argentina, 1996).
O sistema empregado é o de radiofrequência, mediante serviços prestados
pela empresa Surely S.A.3

3
Disponível em: https://surely-sa.com.ar/servicios-2/monitoreo-de-detenidos/control-arresto/

107
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

2.2 Bolívia
Não foram localizados dados precisos quanto à instituição da medida
de monitoração eletrônica na Bolívia. Sabe-se que a medida está prevista na
Lei n° 1.005, de 15 dezembro de 2017, que estabelece o Código do Sistema
Penal (suspenso em 2018) e que prevê sua aplicação como medida substitutiva
de prisões cautelares impostas a adultos (Bolívia, 2018).
No dia 24 de abril de 2023 foi protocolado na Câmara dos Deputados,
pelo presidente da Bolívia, Luis Arce, o Projeto de Lei nº 358-22-23 que trata
sobre o uso de controle e funcionamento técnico do dispositivo eletrônico
de vigilância. O Projeto visa a regulamentar a utilização de monitoramento
eletrônico como medida de proteção às vítimas de violência e como
medida cautelar de caráter pessoal. Segundo a normativa, o benefício do
monitoramento eletrônico não poderá ser aplicado a condenados: a) pelos
crimes aos quais a Constituição Política do Estado preveja a imprescritibi-
lidade; b) pelos crimes de feminicídio, infanticídio, parricídio, homicídio,
homicídio culposo, tráfico de pessoas, sequestro, estupro, estupro de criança,
menina, menino ou adolescente; c) pelos crimes de legitimação de lucros
ilícitos, terrorismo e financiamento do terrorismo; d) pelos crimes previstos
na Lei nº 1.008, de 19 de julho de 1988, sobre o Regime da Coca e Substâncias
Controladas, exceto quando os réus forem mulheres grávidas ou com filhos
menores de 6 anos; da mesma forma, mulheres com filhas ou filhos com
deficiência grave ou gravíssima; e) pelos crimes de posse, posse ou porte e
uso de armas convencionais e tráfico ilícito de armas e f ) pelos crimes cuja
vítima seja menina, menino ou adolescente, idoso ou pessoa com deficiência.
Quanto à duração da medida cautelar, o artigo 11 do Projeto de Lei prevê
o prazo máximo de vigilância por 6 meses, com possibilidade de revisão e
modificação (Bolívia, 2023).4

2.3 Brasil
No Brasil a monitoração eletrônica de pessoas iniciou-se em Recife,
no ano de 2011, na esteira do que autoriza a Lei nº 12.258/2010, que alterou
dispositivos da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984).

4
Notícia sobre o assunto pode ser assistida em: https://www.youtube.com/watch?v=6zMH5k5x9f8

108
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Com o advento da Lei n. 12.403, de 4 de maio de 2011 (Brasil, 2011), foi


incluída mais uma possibilidade de utilização do monitoramento eletrônico
no ordenamento jurídico brasileiro: trata-se de sua previsão como medida
cautelar diversa da prisão, no artigo 319, inciso IX do Código de Processo
Penal. Nesse sentido, no Brasil, a monitoração eletrônica pode ser aplicada: a)
como medida cautelar diversa da prisão; b) em casos de saída temporária no
regime semiaberto; c) em casos de saída antecipada do estabelecimento penal,
cumulada ou não com prisão domiciliar; d) na prisão domiciliar de caráter
cautelar; e) na prisão domiciliar substitutiva do regime fechado, excepcional-
mente, e do regime semiaberto; f ) como medida protetiva de urgência nos
casos de violência doméstica e familiar.
A tecnologia empregada no país é o GPS, e o serviço é prestado por
diferentes empresas contratadas em cada unidade da Federação. A média do
custo de locação mensal da tornozeleira por pessoa é R$ 267,92 e a mediana
R$ 230,00 (Brasil, 2021).
No ano de 2017 foi editado, no Brasil, o “Modelo de gestão para
monitoração eletrônica de pessoas”,5 que tratou extensivamente de vários
aspectos buscando a consecução de uma política nacional de monitoração
eletrônica de pessoas, tais como princípios orientadores, diretrizes quanto
ao uso da tecnologia e da proteção dos dados das pessoas envolvidas,
metodologias de acompanhamento, protocolos para tratamento de incidentes,
etc. (Brasil, 2017).

2.4 Chile
No Chile, a instituição da monitoração eletrônica ocorreu a partir
de 2013, mediante a Lei nº 20.603/2012, que regula as medidas alternativas
à prisão, incorporando ao rol a chamada liberdade vigiada intensiva, cujo
objetivo consiste em buscar a efetiva reinserção da pessoa e um maior
controle da medida (Chile, 2012). Adota-se a monitoração eletrônica em

5
Produzido no âmbito da mesma parceria entre o Depen e o Programa das Nações Unidos para o
Desenvolvimeno (Pnud Brasil), no âmbito do Projeto BRA/14/011 – Fortalecimento da Gestão do Sistema
Prisional Brasileiro, e atualizado no âmbito do Projeto BRA/18/019 – Fortalecimento do Monitoramento
e da Fiscalização do Sistema Prisional e Socioeducativo, entre CNJ e Pnud Brasil, efetivado em parceria
com o Depen (Brasil, 2017).

109
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

casos de violência intrafamiliar, em determinados crimes sexuais, como


medida substitutiva da prisão cautelar e em casos de liberdade condicional. A
tecnologia empregada é o GPS e o serviço é administrado pela Gendarmeria,
destacando-se que a empresa prestadora do serviço é a Pegasus Group
Company.6

2.5 Colômbia
A Colômbia utiliza monitoração eletrônica desde 2008. A legislação
que regulamenta o tema, entre outros textos legislativos, são o Decreto nº
177/2008 e a Lei nº 906/2004, que estabelecem possibilidades de utilização
da medida em casos de pessoas acusadas (medida substitutiva das prisões
cautelares) e condenadas (medida alternativa à pena privativa de liberdade).
Dispõe o artigo 1º do Decreto nº 177/2008 que o Juízo de execução
das penas privativas de liberdade e medidas de segurança poderá ordenar
a utilização do sistema de monitoramento eletrônico sempre que estiverem
presentes os seguintes requisitos: a) que a pena imposta na sentença não seja
superior a oito anos de prisão; b) que não se trate de delitos de genocídio,
contra o Direito Internacional dos Direitos Humanos, de desapareci-
mento forçado, sequestro extorsivo, tortura, deslocamento forçado, tráfico
de migrantes, tráfico de pessoas, delitos contra a liberdade, integridade e
formação sexuais, extorsão, organização criminosa, lavagem de dinheiro,
terrorismo, financiamento de terrorismo e administração de recursos
relacionados com atividades terroristas ou com tráfico de drogas; c) que a
pessoa não tenha sido condenada por crime doloso ou preterdoloso nos
últimos cinco anos; d) que o desempenho pessoal, laboral, familiar ou social
do condenado permita ao juiz deduzir, de forma fundamentada e motivada,
que o sujeito não colocará em perigo a comunidade e que não se evadirá
do cumprimento da pena; e) que seja efetuado o pagamento total da multa
arbitrada; f ) que sejam reparados os danos ocasionados pelo delito dentro
dos termos fixados pelo juiz; g) que o condenado se comprometa, mediante
caução, ao cumprimento das seguintes obrigações: observar boa conduta;
não praticar novo delito ou contravenção durante a execução da pena;

6
Disponível em: https://www.pegasus.cl/#Bienvenidos

110
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

cumprir as restrições à liberdade de locomoção ínsitas à medida; comparecer


perante quem vigie o cumprimento da execução da pena sempre que isso for
requerido. (Colômbia, 2008). A prisão preventiva pode ser substituída pelo
monitoramento eletrônico, observadas as condições estabelecidas pelo artigo
314 da Lei nº 906/2004. A Colômbia emprega tecnologia de radiofrequência,
GPS e reconhecimento de voz (Triana, 2014).

2.6 Costa Rica


Na Costa Rica a monitoração eletrônica foi estabelecida em 2017,
mediante a Ley de Mecanismos Electrónicos de Seguimiento en Materia
Penal (Ley nº 9.271/2014) e da Ley de Penalización de la Violencia contra las
Mujeres (Ley nº 8.352/2007 de Costa Rica, 2007). Aplica-se a medida a presos
provisórios e condenados, assim como em situações envolvendo violência de
gênero. A tecnologia empregada é o GPS e a empresa responsável pelo serviço
é a Buddi, estimando-se um custo diário de 17 dólares por pessoa (Costa Rica,
2017 , 2018, 2019, 2020).

2.7 El Salvador
A monitoração eletrônica em El Salvador é regida pela Ley Reguladora
del Uso de Medios de Vigilancia Electrónica en Materia Penal (Decreto nº
924/2015), a qual estabelece os casos em que se autoriza a utilização da
medida. Nesse país, a monitoração pode ser empregada: a) como meio de
monitoração das medidas alternativas ou substitutivas da prisão provisória nas
hipóteses previstas no Código de Processo Penal (artigo 332); b) nas hipóteses
em que foi excedido o prazo de prisão provisória (24 meses); c) como
mecanismo de colaboração interinstitucional na supervisão das condições a
que se encontra submetido um condenado a quem foi outorgada a liberdade
condicional (abstenção de frequentar determinados lugares ou outras medidas
determinadas de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto). A
monitoração poderá ser aplicada aos réus em liberdade condicional, em
liberdade condicional antecipada e nos casos de prisão domiciliar. Também
se autoriza a monitoração para agressores em casos que envolvem violência
de gênero (El Salvador, 2015). O sistema empregado é o de GPS.

111
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

2.8 Equador
No Equador, a monitoração eletrônica encontra-se em uso desde
o ano de 2017. O Reglamento para la Prestación del Servicio de Vigilancia
Electrónica (Registro Oficial nº 37, de 17 de julho de 2017) prevê, em seu
artigo 11, que poderão ser usuários do dispositivo de monitoração eletrônica
as seguinte pessoas: a) sentenciadas com mudança de regime fechado para
regime semiaberto; b) sentenciadas com mudança de regime semiaberto para
aberto; c) processadas com medidas cautelares ou de proteção; d) processadas
com caducidade da prisão preventiva; e) casos especiais de prisão preventiva
previstos em lei; f ) vítimas, testemunhas ou outros participantes do processo
penal; g) demais hipóteses permitidas em lei – a exemplo da violência de gênero.
A tecnologia empregada é GPS, instalada por meio do Servicio Integrado de
Seguridad ECU 911 em todo o território nacional (artigo 21) (Equador, 2017).

2.9 Guatemala
Na Guatemala, em que pese a monitoração eletrônica, com tecnologia
GPS, estar prevista na Ley de implementación del control telemático en el
proceso penal (Decreto nº 49, de 27 de outubro de 2016), a medida ainda não
foi posta em prática. A legislação prevê que a medida possa ser aplicada a presos
provisórios e condenados, assim como para casos que envolvem violência de
gênero (Guatemala, 2016). Em 11 de maio de 2023 o governo da Guatemala
anunciou que em breve iniciará a introdução da monitoração eletrônica no
processo penal do país,7 já dispondo de 2 mil tornozeleiras para uso.

2.10 Honduras
Em Honduras, a monitoração eletrônica ainda não foi adotada, em que
pese a sua previsão no Decreto nº 98/2017, que alterou o Código de Processo
Penal, introduzindo os artigos. 173-A e 173-B, prevendo a possibilidade de
utilização da medida como alternativa à prisão provisória, mediante tecnologia
de GPS (Honduras, 1999, 2017).

7
Disponível em: https://mingob.gob.gt/autoridades-implementan-control-telematico-en-el-proceso-penal-
de-guatemala/

112
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

2.11 México
No México, a monitoração eletrônica é autorizada tanto como medida
alternativa à prisão cautelar (nos termos do Artículo 155, Fracción XII, do
Código Nacional de Procedimientos Penales) quanto como medida substitutiva
da pena privativa de liberdade (nos termos do que prevê a Ley Nacional de
Ejecución Penal, publicada no Diário Oficial de la Federación em 16 de junho
de 2016). Os requisitos para liberdade condicional mediante monitoração
eletrônica são: a) cumprimento de 50% da pena; b) boa conduta; c) não ter
sido condenado em outro processo; d) não ter multas; e) não ter outros
processos em curso; f ) cumprir com atividades no centro penitenciário
(culturais, recreativas, cívicas, desportivas, etc.). A legislação mexicana não
admite monitoração eletrônica nos casos de sequestro, tráfico de pessoas e
crime organizado. O país discute a utilização da monitoração eletrônica em
casos que envolvem violência de gênero. A tecnologia empregada é o GPS
(México, 2023a,b).
No contexto mexicano, a legislação prevê que a ferramenta para a
monitoração eletrônica seja provida pela autoridade penitenciária. Existe,
no entanto, a possibilidade de o imputado acessar a medida com recursos
próprios, nos casos em que a autoridade pública não puder provê-la. Esse
entendimento restou consolidado no âmbito da Suprema Corte de Justicia de
la Nación, em sessão pública de número 28, realizada em 4 de abril de 2017,
na qual o ministro Arturo Salivar declarou a invalidade de diversas disposições
da Ley Nacional de Ejecución Penal, destacando que, “excepcionalmente,
cuando las condiciones económicas y familiares del beneficiario lo permitan,
éste cubrirá a la Autoridad Penitenciaria el costo del dispositivo”.8 A empresa
GPS Monitor – Rastreo Satelital tem explorado, diante dessa possibilidade, esse
ramo de mercado no cenário mexicano, conforme informações disponíveis no
seu web site.9

8
Voto disponível em: https://arturozaldivar.com/wp-content/uploads/2019/08/AI-61_2016-Ley-Nacional-
de-Ejecuci%C3%B3n-Penal-.pdf. Acesso em: 17 maio 2023.
9
Disponível em: https://www.brazaleteselectronicos.mx/

113
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

2.12 Panamá
No Panamá, a monitoração eletrônica foi estabelecida em 2021,
mediante autorização da Resolución n° 223-R-177, de 23 de dezembro de
2021. A medida pode ser aplicada : a pessoas com enfermidades graves e
crônicas; a mulheres grávidas, lactantes e com filhos com deficiência, desde
que não tenham praticados crimes graves; em casos de prisão domiciliar;
em delitos em que caibam fiança; em casos de liberdade condicionada;
como medida cautelar (artigo 3º, Resolución nº 223-R-177) (Panamá, 2021).
Estuda-se a possibilidade de aplicação da monitoração eletrônica em casos
de violência doméstica, sendo que a última informação encontrada sobre o
assunto afirmava que o monitoramento, nessas hipóteses, aconteceria a partir
do mês de maio de 2023 (TVN, 2023). A tecnologia empregada é o GPS.

2.13 Paraguai
No Paraguai, a monitoração eletrônica encontra autorização nas Leis nº
5.863/2017 e 6.568/2020 (Paraguai, 2017, 2020). Até o momento, no entanto,
a regulamentação ainda não foi aplicada.10 A legislação paraguaia prevê a
utilização da monitoração eletrônica em casos que envolvem tratamento
de doenças supervenientes à condenação; controle das medidas privativas
de liberdade; controle da prisão domiciliar; controle da suspensão em
julgamento da execução da pena; controle de liberdade condicional; controle
da suspensão condicional do processo; controle da medida de internamento
em observação; fiscalização de medidas alternativas ou substitutivas à prisão
preventiva; controle da ordem de internamento do arguido em estabele-
cimento de cuidados; controle de medidas provisórias para adolescentes
previsto no procedimento especial de menores; controle estabelecido na
seção correspondente ao período probatório; controle prisional domiciliar;
controle de saídas transitórias; controle do regime de semiliberdade; controle
da prisão descontínua e de fim de semana; controle das autorizações de saída
(Paraguai, 2017). Autoriza-se a medida, também, em casos de violência de
gênero (Paraguai, 2020). A tecnologia empregada é o GPS.

10
Sobre o tema, conferir notícia disponível em: https://www.ip.gov.py/ip/analizan-mecanismos-para-la-
-implementacion-de-tobilleras-electronicas/. Acesso em: 30 abr. 2023.

114
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

2.14 Peru
No Peru, a monitoração eletrônica encontra autorização na Lei
n° 29.499/2010, que prevê a possibilidade de sua aplicação como medida
substitutiva às prisões cautelares e à pena privativa de liberdade. O país
também admite a medida em situações que envolvem violência de gênero.11
A tecnologia empregada é o GPS (Peru, 2010, 2017, 2023).

2.15 República Dominicana


Na República Dominicana tramitam atualmente o Projeto de Lei que
incorpora ao artigo 8º da Lei nº 18.050 o uso de tornozeleira para indultos
(República Dominicana, 2023) e o Projeto de Lei para uso de tornozeleira em
caso de violência de gênero, Boletim 15878-07 (República Dominicana, 2016).
A tecnologia prevista é o GPS.

2.16 Uruguai
A monitoração eletrônica, no Uruguai tem sido empregada em casos
que envolvem violência de gênero, nos termos da Lei de Violencia Doméstica
nº 17.514/2002 (Uruguai, 2002). A tecnologia empregada é o GPS.

A partir dos dados coletados, torna-se possível afirmar, a título de


síntese, que: a) a medida da monitoração eletrônica carece de maiores estudos
no campo científico e de maior transparência pelos órgãos responsáveis
pela sua operacionalização em cada país, na divulgação de informações
relacionadas à sua instituição e aplicação; b) a medida tem sido adotada
recentemente e, em muitos países, tem sido utilizada no contexto da violência
de gênero; c) a tecnologia preponderantemente utilizada na monitoração é o
GPS, que se afigura, entre as alternativas tecnológicas possíveis, como a mais
custosa aos cofres públicos; d) não foram localizados estudos que relacionem,
diretamente, nos países pesquisados, a efetivação da monitoração eletrônica
com a diminuição da população encarcerada.

11
Informação disponível em: https://www2.congreso.gob.pe/Sicr/Prensa/heraldo.nsf/CNtitulares2/b118f201
1381dd4a052577820008ee56/?OpenDocument. Acesso em: 2 maio 2023.

115
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Nesse sentido, pode-se afirmar que a discussão acerca da introdução


da monitoração eletrônica de pessoas no âmbito penal, como alternativa
ao encarceramento, insere-se em um cenário ambíguo: embora alicerçado
em um discurso que denota preocupação com as atrocidades do sistema
penal e penitenciário e, portanto, apresentando-se como uma técnica mais
“humanizada” de controle, o emprego da monitoração eletrônica também
se encontra atrelado a uma lógica de controle/punição que evidencia uma
dilatação do poder punitivo, em uma racionalidade cuja equação primordial
radica no máximo de eficiência versus mínimo investimento em políticas
públicas (perspectiva gerencialista). Essa perspectiva mostra-se bastante
evidente na medida em que nos discursos relacionados à aplicação da medida,
com bastante frequência, utiliza-se o discurso da diminuição de custos estatais
para o exercício do controle penal.
Tendo isso em vista, torna-se necessário desenvolver um exame
crítico acerca de tendências político-criminais que apresentam, atualmente, a
propensão de alargamento do poder punitivo, na contramão dos desenvolvi-
mentos teóricos e empíricos que há vários anos demonstram o malogro das
estratégias que optam pela maior, e não menor, presença do sistema penal
na sociedade.
Assim é que se observa, por exemplo, que o monitoramento eletrônico
não se consolidou, ainda, como uma efetiva medida de evitar a prisionalização
no contexto latino-americano. Nesse sentido, uma das críticas estabelecidas ao
monitoramento eletrônico é justamente sua capacidade de alastrar, de forma
quase que ilimitada, a presença do poder punitivo nos espaços que, antes,
constituíam-se como lugares de liberdade. A complexidade reside, aqui, não
apenas nesse espraiamento, como também no paradoxo consistente no fato
de que a “sociedade de controle” é uma sociedade que se “acostuma” com a
vigilância e com a presença de controles sutis na configuração da vida social.
A faceta configuradora da vida social característica do poder punitivo não
deixa, no entanto, de estabelecer diferenciações fundamentais em relação
a quais pessoas serão selecionadas para integrar os “bancos de dados” e
incorporar, seja por meio da reclusão em instituições prisionais, seja pelo
próprio acoplamento do símbolo ao corpo, a punição.

116
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Conforme observa Campello (2019), uma das consequências da


utilização do monitoramento eletrônico é a potencialização das capacidades
de controle do sistema penal. E, em um cenário tal, a monitoração eletrônica
não se distancia da lógica punitiva. Pelo contrário: ela surge para compor
o diagrama da punição, possibilitando a convivência do cárcere com seus
módulos de extensão a céu aberto.
Tais observações refletem o fato de que as reflexões teóricas e os dados
empíricos existentes até o momento acerca do monitoramento eletrônico na
América Latina – aos quais se somam os produzidos a partir desta pesquisa
– parecem indicar uma série de problemas que solapam a possibilidade
dessa ferramenta de produzir efeitos concretamente benéficos no contexto
penitenciário, primordialmente, evitar que mais pessoas sejam presas e
contribuir na desprisionalização, e, em uma visão mais otimista, auxiliar na
redução da reincidência e na reinserção social das pessoas condenadas (ou
não condenadas, mas presas provisoriamente).
Por certo que a monitoração eletrônica é uma ferramenta preferível, em
geral, ao cárcere, que desde há muito já foi desnudado por pesquisas teóricas
e empíricas como sendo um local por excelência de degradação humana. A
efetivação da dignidade humana, no entanto, como reconhecido pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos na Opinião Consultiva mencionada na
introdução deste estudo, convoca para a busca de algo melhor. É nesse sentido
que se entende ser o monitoramento eletrônico uma ferramenta que, não
obstante possuir “vantagens” quando comparada à prisão, não será o caminho
apto à consecução de um sistema profundamente comprometido com a
emancipação e dignidade humanas como critérios absolutamente centrais, o
que exigiria práticas comprometidas com a liberdade, igualdade, intimidade,
entre outros direitos humanos fundamentais.
Nesse viés – e considerando a perspectiva de que o monitoramento
eletrônico tende a ser cada vez mais ampliado – é necessário buscar a
efetivação das garantias necessárias para se evitar que a vigilância eletrônica
se converta em um instrumento desumanizado de repressão. Com efeito, para
fazer frente à desumanização do Direito Penal expressa nas atuais práticas
atuariais e securitárias, é o sujeito que deve ser recolocado no centro das
preocupações. Não se deve naturalizar o poder de punir, ainda que esse venha
a se realizar por meio de uma liberdade vigiada/monitorada – não obstante

117
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

o punitivismo proveniente dos consagrados clamores sociais (especialmente


pelo populismo punitivo esboçado por diversos políticos), recorde-se que
ainda se trata de um “cárcere eletrônico”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo realizado, cujo escopo foi traçar um panorama
acerca da instituição da monitoração eletrônicas no âmbito jurídico-penal no
contexto latino-americano, a partir das diferentes experiências observadas nos
países que integram a região, torna-se possível, a título conclusivo, afirmar
que a monitoração eletrônica tem sido uma medida empregada com base em
um discurso que reconhece a necessidade de se pensar alternativas ao cárcere
em um contexto de profundas e graves violações de direitos humanos nestes
espaços. Nesse sentido, o próprio Modelo de Gestão desenvolvido no Brasil
destaca a medida como orientada para o desencarceramento (Brasil, 2017).
Para isso, no entanto, é necessário que a monitoração eletrônica seja, além de
concebida com essa finalidade, efetivada de modo planejado, sendo objeto de
constante monitoração e avaliação.
É necessário conhecer e debater a medida. Observou-se, na realização
desta pesquisa, uma grande escassez de estudos relacionados ao tema, o
que torna o debate latino-americano bastante incipiente e, em alguns países,
praticamente inexistente – ainda que a monitoração já esteja prevista em seus
respectivos ordenamentos jurídicos. Não existe, até o momento, um debate
sólido, por exemplo, a respeito da temática da monitoração eletrônica em
sua interface com a ressocialização do sujeito monitorado, por meio de sua
participação efetiva no seu meio social, convivência familiar, oportunidades
de trabalho, etc.
Nesse sentido, como propõe Caiado (2013), a monitoração eletrônica
pode e deve começar a ser percebida menos como uma estratégia de
dominação e mais como uma estratégia de liberdade, de responsabilidade
e de empoderamento. Para tanto, o respeito aos direitos humanos precisa
assumir a posição central nos debates acerca da adoção e aplicação da medida,
de modo a distanciá-la do estigma e da violência que caracterizam os sistemas
carcerários latino-americanos.

118
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Isso posto, a proporcionalidade na aplicação da monitoração eletrônica


e a sua utilização como ultima ratio diante de outras medidas disponíveis
são impositivas para que ela efetivamente se apresente como uma medida
alternativa e não extensiva do cárcere para além dos seus muros. Além disso,
a legalidade e a criação de mecanismos de padronização de aplicação da
monitoração eletrônica são fundamentais para se evitar discricionariedades e
arbitrariedades na sua condução.

REFERÊNCIAS
ARGENTINA. Ley nº 24.660/1996. Ejecución de la pena privativa de la libertad.
Disponível em: http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/35000-
39999/37872/texact.htm. Acesso em: 1º maio 2023.
ARGENTINA. Ministério da Justiça e Direitos Humanos. Resolução 86/2016.
Programa de atendimento a pessoas sob vigilância eletrônica. Disponível em:
https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/143094/20160404. Acesso
em: 1º maio 2023.
BOLÍVIA. Cámara de Senadores. Senado sanciona Proyecto de Ley de abrogación
del Código del Sistema Penal. 2018. Disponível em: https://web.senado.gob.
bo/prensa/noticias/senado-sanciona-proyecto-de-ley-de-abrogaci%C3%B3n-del-
c%C3%B3digo-del-sistema-penal. Acesso em: 2 maio 2023.
BOLÍVIA. Proyecto de ley 358-2022-2023. Disponível em: https://pt.scribd.com/
document/645651510/PL-358-2022-2023#from_embed. Acesso em: 19 maio
2023.
BRASIL. Lei nº 12.258, de 15 de junho de 2010. Altera o Decreto-Lei no 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e a Lei no 7.210, de 11 de julho
de 1984 (Lei de Execução Penal), para prever a possibilidade de utilização de
equipamento de vigilância indireta pelo condenado nos casos em que especifica.
Brasília: Presidência da República, 2010.
BRASIL. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-Lei
nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à prisão
processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras
providências. Brasília: Presidência da República, 2011.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Monitoração eletrônica criminal:
evidências e leituras sobre a política no Brasil. 2021. Disponível em: https://
www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/diagnostico-politica-monitoracao-
eletronica.pdf. Acesso em: 26 abr. 2023.

119
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Programa


das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Manual de Gestão para a Política
de Monitoração Eletrônica de Pessoas. Izabella Lacerda Pimenta (autora).
Brasília: PNUD, 2017. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/5406/1/
modelodegestoparaamonitoraoeletrnicadepessoas.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.
CAIADO, Nuno. Las grandes cuestiones éticas alrededor de la vigilancia
electrónica. Debates Penitenciarios, v 18, 2013. Disponível em: https://www.cesc.
uchile.cl/publicaciones/debates_penitenciarios_18.pdf. Acesso em: 13 abr. 2023.
CAMPELLO, Ricardo Urquizas. Faces e interfaces de um dispositivo tecnopenal: o
monitoramento eletrônico de presos e presas no Brasil. 2019. Tese (Doutorado)
– Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/8/8132/tde-16122019-185040/en.php. Acesso em: 13 maio 2023.
CHILE. Ley 20.603 de 13 de junho de 2012. Modifica la Ley nº 18.216, que
establece medidas alternativas a las penas privativas o restrictivas de liberdad.
Disponível em: https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1040510. Acesso
em: 2 maio 2023.
COLÔMBIA. Decreto nº 177, de 24 de janeiro de 2008. Disponível em: https://
www.funcionpublica.gov.co/eva/gestornormativo/norma.php?i=28508. Acesso
em: 15 maio 2023.
COLÔMBIA. Lei nº 906, de 31 de agosto de 2004. Código de Processo Penal.
Disponível em: https://observatoriolegislativocele.com/pt/C%C3%B3digo-de-
Processo-Penal-da-Col%C3%B4mbia-906-2004/. Acesso em: 15 maio 2023.
CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Guía práctica sobre
medidas dirigidas a reducir la prisión preventiva. 2017. Disponível em: https://
www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/GUIA-PrisionPreventiva.pdf. Acesso em: 16
maio 2023.
CORTEIDEH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinión Consultiva
OC-29/22 de 30 de mayo de 2022: enfoques diferenciados respecto de
determinados grupos de personas privadas de libertad. Maio 2022. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_29_esp.pdf. Acesso em:
10 abr. 2023.
COSTA RICA. Ley 8352/2007. Penalización de la violencia contra las mujeres.
Disponível em: https://observatoriodegenero.poder-judicial.go.cr/images/Leyes/
Obsgenero-Normativa-Nacional-Ley-de-Penalizacin-de-la-Violencia-Contra-las-
Mujeres.pdf. Acesso em: 30 abr. 2023.
COSTA RICA. Ministerio de Justicia y Paz. Unidad de Atención a Personas Sujetas
a Monitoreo con Dispositivos Electrónicos. 2018. Disponível em: https://www.
mjp.go.cr/Dependencias/Brazaletes Acesso em: 30 abr. 2023.

120
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

COSTA RICA. Ministério Público. Directrices sobre monitoreo electrónico y


reglas prácticas de interpretación de los artículos 57 bis del código penal y 486
bis del código procesal penal. 2019. Disponível em: https://ministeriopublico.
poder-judicial.go.cr/images/phocadownload/CircularesAdministrativas/2019/09-
-ADM-2019.pdf. Acesso em: 30 abr. 2023.
COSTA RICA. Presidencia. Nuova tecnologia en brazaletes electrónicos
mejorará seguridad y generará al país ahorro anual de más de $2,7 millones.
2020. Disponível em: https://www.presidencia.go.cr/comunicados/2020/05/
nueva-tecnologia-en-brazaletes-electronicos-mejorara-seguridad-y-generara-al-
pais-ahorro-anual-de-mas-de-27-millones/. Acesso em: 30 abr. 2023.
COSTA RICA. Presidencia. Vigilancia electrónica comenzó este lunes
con ocho usuarios. 2017. Disponível em: https://www.presidencia.go.cr/
comunicados/2017/02/vigilancia-electronica-comenzo-este-lunes-con-ocho-
usuarios/. Acesso em: 30 abr. 2023.
DAEMS, Tom. Electronic Monitoring. Tagging Offenders in a Culture of
Surveillance. Cham, Switzerland: Palgrave McMillan, 2020.
EGGERS, Dave. The circle. New York: McSweeney’s Books, 2013.
EL SALVADOR. Asamblea legislativa. Decreto nº 924. 2015. Disponível em: https://
www.asamblea.gob.sv/sites/default/files/documents/decretos/BC262239-F73D-
4B30-B113-726298885B60.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.
EQUADOR. Reglamento para la prestación del servicio de vigilancia electrónica.
Registro Oficial nº 37, de 17 de julho de 2017. Disponível em: https://www.
registroficial.gob.ec/index.php/registro-oficial-web/publicaciones/registro-oficial/
item/download/8336_2dcd2ef9c90e2f50ef7870da1b229bb7. Acesso em: 2 maio
2023.
GUATEMALA. Decreto nº 49, de 27 de outubro de 2016. Ley de Implementación
del Control Telemático en el Proceso Penal. Disponível em: https://www.mnp-opt.
gob.gt/img/kcfinder/files/24_LeyControlTelematico.pdf. Acesso em: 16 maio 2023.
HONDURAS. Congreso Nacional. Decreto nº 9-99-E. Código procesal penal.
1999. Disponível em: https://www.poderjudicial.gob.hn/CEDIJ/Leyes/Documents/
CodigoProcesalPenal(ActualizadoNoviembre2021).pdf. Acesso em: 2 maio 2023.
HONDURAS. Congreso Nacional. Decreto nº 98 de 2017. Disponível em: https://
www.tsc.gob.hn/web/leyes/Ref_art_83-91-codigo_penal.pdf. Acesso em: 2 maio
2023.

121
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

MARTÍNEZ, Fernando (coord.). Monitoreo telemático: seis experiencias de


aplicación. Santiago do Chile: Centro de Análisis de Políticas Públicas; Instituto de
Asuntos Públicos – Universidad de Chile, 2012. Disponível em: http://cesc.uchile.
cl/mon_tel/Monitoreo_Telematico_Seis_Experiencias_Aplicacion_CAPP-CESC.
pdf. Acesso em: 15 maio 2023.
MÉXICO. Ley nacional de ejecución penal. Disponível em: https://www.diputados.
gob.mx/LeyesBiblio/pdf/LNEP_090518.pdf. Acesso em: 2 maio 2023a.
MÉXICO. Código Nacional de Procedimientos Penales. Disponível em: https://
www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/CNPP.pdf. Acesso em: 17 maio 2023b.
NÁJERA GONZÁLEZ, Xavier. Criminología, derecho penal y uso de monitores
electrónicos. Puntos de encuentro epistemológico en la protección de los
derechos humanos y la seguridad pública. IUS – Revista del Instituto de Ciencias
Jurídicas de Puebla A.C., v. VIII, n. 34, p. 101-124, jul./dic., 2014. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/2932/293233779007.pdf. Acesso em: 14 maio 2023.
NELLIS, Mike; BEYENS, Kristel; KAMINSKI, Dan. Electronically monitored
punishment: international and critical perspectives. New York: Routledge, 2013.
PANAMÁ. Resolución n° 223-R-177 del 23 de diciembre de 2021. Disponível
em: https://www.sistemapenitenciario.gob.pa/wp-content/uploads/2022/04/
Gaceta-Brazaletes.pdf. Acesso em: 12 maio 2023.
PARAGUAI. Ley 5.863/2017. Establece la implementación de los dispositivos
electrónicos de control. Disponível em: https://www.bacn.gov.py/
leyes-paraguayas/9764/ley-n-5863-establece-la-implementacion-de-los-dispositivos-
-electronicos-de-control#:~:text=Esta%20ley%20tiene%20por%20objeto,de%20
dispositivos%20electr%C3%B3nicos%2C%20como%20pulseras%2C. Acesso em:
30 abr. 2023.
PARAGUAI. Ley 6.568/2020. Que modifica el artículo 2º de la Ley 1600/2000
contra la violencia doméstica. Disponível em: https://www.bacn.gov.py/
leyes-paraguayas/9284/ley-n-6568-modifica-el-articulo-2-de-la-ley-n-16002000-
contra-la-violencia-domestica. Acesso em: 30 abr. 2023.
PERU. Instituto Nacional Penitenciário. Inpe inaugura centro de vigilancia
electrónica personal. 2017. Disponível em: https://www.inpe.gob.pe/prensa/
noticias/item/503-inpe-inaugura-centro-de-vigilancia-electr%25C3%25B3nica-
personal.html. Acesso em: 2 maio 2023.
PERU. Ley nº 29.449/2010. Disponível em: https://www.leyes.congreso.gob.pe/
Documentos/Leyes/29499.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.

122
PANORAMA DA MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO:
UMA ALTERNATIVA AO SUPERENCARCERAMENTO?
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

REPÚBLICA DOMINICANA. Senado. Projeto de Lei do Sistema de


Acompanhamento das Medidas Cautelares. Boletim 15875-03 de 2023. Disponível
em: https://www.camara.cl/verDoc.aspx?prmID=16101&prmTIPO=INICIATIVA.
Acesso em: 1º maio 2023.
REPÚBLICA DOMINICANA. Senado. Proyecto de Ley. Modifica la ley Nº 20.066,
que Establece ley de Violencia Intrafamiliar, con el objeto de establecer el uso de
tobilleras electrónicas como medida accesoria y cautelar que pueden decretar
los juzgados de familia. Boletim 15878-07, 2016. Disponível em: https://www.
camara.cl/legislacion/ProyectosDeLey/tramitacion.aspx?prmID=11197&prmBO
LETIN=10762-18. Acesso em: 1º maio 2023.
RESOLUCIÓN PRESIDENCIAL. Instituto Nacional Penitenciario nº 275-2022
INPE-P. 2022. Disponível em: https://cdn.www.gob.pe/uploads/document/
file/3905180/RP%20275-2022.pdf.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.
TRIANA, Ricardo Antonio Cita. Subrogados penales, mecanismos substitutivos de
pena y vigilancia electrónica en el sistema penal colombiano. Bogotá: Ministerio
de Justicia y del Derecho, 2014. Disponível em: https://www.minjusticia.gov.co/
Sala-de-prensa/PublicacionesMinJusticia/Cartilla%20Subrogados%20Penales.pdf.
Acesso em: 15 maio 2023.
TVN. Brazalete para protección de víctimas de violencia doméstica se
implementaría desde mayo. 2023. Disponível em: https://www.tvn-2.com/
nacionales/brazalete-proteccion-victimas-violencia-domestica_1_2029077.html.
Acesso em: 12 maio 2023.
URUGUAI. Ley nº 17.514/2002. Ley de violencia domestica. Disponível em: https://
siteal.iiep.unesco.org/sites/default/files/sit_accion_files/siteal_uruguay_0484.pdf.
Acesso em: 30 abr. 2023.
VIDAL, Eduarda de Lima. Monitoramento eletrônico: aspectos teóricos e práticos.
2015. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/17989/1/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20
final%20-%20Eduarda%20de%20Lima%20Vidal.pdf. Acesso em: 13 maio 2023.

123
“LA SUPREMA CORTE DE
LOS GRANDES INOCENTES”:
As Transformações no Mundo do Trabalho
e o Acesso à (Qual) Justiça?

Rosane Teresinha Carvalho Porto

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O labor humano tem sido, predominantemente, espaço de sujeição,
sofrimento, desumanização e precarização nas relações de trabalho, muito
acentuada com a pandemia da Covid-19 e as novas tecnologias. Vivencia-se
em pleno século 21, mais do que nunca, milhões de homens e mulheres
dependendo de forma exclusiva do trabalho para sobreviver e cada vez mais se
encontram em situação de vulnerabilidade social. Isto é, ao mesmo tempo que
se amplia o contingente de trabalhadores e trabalhadoras em escala global, há
uma diminuição imensa dos empregos; aqueles que se mantêm empregados
contemplam a degradação dos seus direitos trabalhistas e a erosão de suas
conquistas históricas e sociais.
O fenômeno da “uberização” consiste na situação em que os
trabalhadores e as trabalhadoras com seus automóveis, seus instrumentos
de trabalho, arcam com todas as despesas como seguridade, manutenção,
alimentação, limpeza e outras que advierem. Enquanto o “aplicativo”, uma
empresa privada e mundial disfarçada sob a modalidade de trabalho desregula-
mentado, apropria-se do maior valor gerado pelos motoristas, ignorando os
direitos trabalhistas e a dependência econômica que provêm desta relação
laboral, não reconhecida como vínculo empregatício. Considerando a
importância do trabalho digno e decente como o foco do Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 8, que tem como objetivo

125
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

“promover um crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável,


emprego pleno e produtivo e trabalho digno/decente para todos”, como será
possível assegurar a proteção e o acesso à justiça do trabalhador/motorista
de plataformas de mobilidade, que está diante de uma subordinação
econômica? Por conta disso, questiona-se: Quais as implicações das novas
tecnologias nas relações de trabalho: desmonte dos direitos trabalhistas ou
inovação necessária? E o acesso do trabalhador à qual justiça? Para responder
ao questionamento, o texto encontra-se dividido em três partes. Na primeira,
busca-se analisar as transformações do mundo do trabalho, a precarização
das relações laborais; na segunda o fenômeno da uberização, precarização
ou trabalho inovador?, e na terceira o (des)acesso à justiça do trabalhador e
o acesso à qual justiça?
Na sequência o texto pretende, a partir do conceito de “mundo do
trabalho”, “precarização” e acesso à justiça, com base na análise da pintura
“La Suprema Corte de los Grandes Inocentes”, refletir sobre os avanços e
retrocessos do trabalhador como agente histórico e político na contemporanei-
dade e diante das novas tecnologias, que também pairam em reflexões como
sobrevivência e resistência às desigualdades sociais e econômicas.

1 AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO,


A PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES LABORAIS
O mundo do trabalho vem passando por diversas transformações
ocasionadas pela crise econômica, sanitária, social, política e tecnológica.
Alguns trabalhadores encontram trabalho temporário, precário, flexível,
desregulamentado e com força laboral intensificada, comprometendo muito
seus direitos trabalhistas e a própria saúde (Antunes, 2005).
Diante disso, falar sobre o significado do trabalho envolve conceitos
e valores, no sentido de prospectar sobre as mudanças laborais que causam
precariedade nas relações de trabalho, resultando em “universo do não
trabalho, ou seja, o mundo do desemprego” (Antunes, 2005, p. 139). A
palavra trabalho tem vários significados, entre eles: a realização de uma obra
que dê reconhecimento social, esforço rotineiro e repetitivo da mão de obra
(Albornoz, 1994).

126
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

Em sua obra O Capital, Marx define o trabalho como sendo: “uma


condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais,
eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e
natureza e, portanto, da vida humana” (Antunes, 2009, p. 140; Marx, 2013,
p. 255). Noutras palavras: “La ideia del trabajo como la fuente principal de
la produción de la riqueza, sobre todo en la sociedad capitalista. El trabajo
humano como la fuente de la acumulación capitalista” (Federici, 2018, p.
8). No contexto histórico seria um processo de lutas de classes, a luta do
proletariado contra o capital para findar com a exploração (Federici, 2018).
O processo de “pauperização absoluta do proletariado” exigiu do
Estado social uma regulação e responsabilidade para com a força de trabalho,
estabelecendo salários mínimos, tempo para jornada, assim como mecanismos
de proteção jurídica para os sindicatos e a autodefesa do trabalhador, para
além de ser pauta de direita e esquerda. E o mesmo Estado precisou também
proteger a ordem capitalista, mercado e lucro rápido e voraz. Em síntese,
encontrar limitadores para a desigualdade entre ricos e pobres, capital e
proletariado. Em meio à modernidade líquida, das relações fragilizadas, das
incertezas, da ausência de territorialidade, o proletariado deixa de ser uma
classe de luta, passando a ser vista como o precariado (Bauman; Donskis,
2014, p. 82-83).
A precarização do trabalho tem assumido novas formas, trazendo
inclusive “crises da subjetividade humana” decorridas a um capitalismo de
tipo “manipulatório”, de se compreender o lugar esse trabalhador (Alves,
2011). Consiste o precariado na personificação do desmonte do sistema
jurídico de proteção dos trabalhadores promovido pelo Estado neoliberal
sob a influência do capital global e financeirizado. O precariado consiste em
pessoas desprovidas de oportunidades adequadas de um salário e emprego e
proteção no mercado de trabalho (Cruz; Porto, 2022). Parafraseando Bauman
e Donskis:
A grande pergunta, a pergunta de vida ou morte, é se o
“precariado” pode ser reclassificado como “agente histórico”, tal
como o “proletariado” foi (ou se esperou que fosse) capaz de agir
solidariamente e buscar um conceito comum de justiça social e
uma visão comum de boa sociedade, uma sociedade hospitaleira a
todos os seus membros. Essa pergunta só pode ser respondida pela
maneira como nós, os precários, agimos – sozinhos, em grupos ou

127
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

todos juntos. Pode-se supor, contudo, que enquanto o “Estado Social”


buscou responder a essa pergunta de maneira positiva, a pressão
concentrada dos atuais governos e órgãos intergovernamentais são
cortes nos gastos sociais (cortes nas provisões para os pobres e
indolentes com aumentos para ricos e poderosos), intencionalmente
ou não se volta para tornar implausível, se não totalmente impossível,
uma resposta positiva (Bauman; Donskis, 2014, p. 82-83).

Por conseguinte, evidencia-se a massificação desordenada das pessoas,


dos trabalhadores que procuram em meio à informalidade e na lógica do “ser
empreendedor de si mesmo” sobreviver com os postos de empregos que são
ofertados atualmente, a citar motorista de plataforma de mobilidade – mais
adiante tratar-se-á a respeito. Em meio a esse cenário desafiador e precário,
as pessoas e o trabalhador buscam distribuição de renda, representatividade
e principalmente reconhecimento como sujeito de direitos humanos.Uma
rápida viagem no tempo, quando o assunto versa sobre as novas tecnologias
e trabalho: Como será o mercado de trabalho em 2050, quando os homens
disputarão espaços com a máquina? Será ficção ou realidade?
Sabemos que o aprendizado de máquina e a robótica vão mudar quase
todas as modalidades de trabalho. Contudo, há visões conflitantes
quanto à natureza dessa mudança e sua iminência. Alguns creem
que dentro de uma ou duas décadas bilhões de pessoas serão
economicamente redundantes. Outros sustentam que mesmo no
longo prazo a automação continuará a gerar novos empregos e maior
prosperidade para todos. Estaríamos à beira de uma convulsão social
assustadora, ou essas previsões são mais um exemplo de histeria
ludista infundada? É difícil dizer. Os temores de que a automação
causará desemprego massivo remontam ao século XIX, e até agora
nunca se materializaram. Desde o início da Revolução Industrial,
para cada emprego perdido para uma máquina pelo menos um novo
emprego foi criado, e o padrão de vida médio subiu consideravel-
mente. Mas há boas razões para pensar que desta vez é diferente, e
que o aprendizado de máquina será um fator real que mudará o jogo
(Harari, 2018, p. 40).

Entre a criação de novos empregos, o mais difícil será o retreinamento


dos humanos para ocupar as respectivas vagas ou postos. Em 1920, um
trabalhador agrícola dispensado devido à mecanização da agricultura era

128
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

capaz de achar um novo emprego numa fábrica de tratores, bem como um


operário de fábrica desempregado em meados de 80 poderia trabalhar em
um supermercado. Atualmente trabalhar como motorista de plataforma de
mobilidade não requer treinamento ilimitado (Harari, 2018, p. 52-53).
Nesse sentido,
Em 2050, porém, um caixa ou um operário da indústria têxtil que
perder seu emprego para um robô dificilmente estará apto a começar
a trabalhar como oncologista, como operador de drones ou como
parte de uma equipe humanos IA num banco. Como consequência,
apesar do aparecimento de muitos novos empregos humanos,
poderíamos assim mesmo testemunhar o surgimento de uma nova
classe de “inúteis”. Poderíamos de fato ficar com o que há de pior
nos dois mundos, sofrendo ao mesmo tempo de altos níveis de
desemprego e de escassez de trabalho especializado. Muita gente
poderia compartilhar do destino não dos condutores de carroça do
século XIX – que passaram a ser taxistas – mas dos cavalos do século
XIX, que foram progressivamente expulsos do mercado de trabalho
(Harari, 2018, p. 58).

Algumas alternativas são apresentadas para inibir ou frear estas


transformações na sociedade global, para evitar uma nova classe de “inúteis”
e excluídos, entre elas: desacelerar o ritmo das mudanças tecnológicas, como
a Inteligência Artificial , para dar tempo de criar novos empregos; revolucionar
a educação e a psicologia, devido às rápidas mudanças de aprendizagem e
retreinamento , ou seja, treinamento ilimitado; explorar novos modelos de
sociedade pós-trabalho, de economias pós-trabalho e de política pós-trabalho,
pois os atuais planos políticos, sociais e econômicos herdados do passado são
inadequados para lidar com tal desafio (Harari, 2018, p. 58).
Por exemplo: o plano político comunista conclamava a uma revolução
da classe trabalhadora. Logo, como se começa uma revolução da classe
trabalhadora sem valor econômico se não há classe trabalhadora? (Harari,
2018, p. 58). Pensa-se também como alternativa na Renda Básica Universal
(RBU). Ela pressupõe que os governos tributem os bilionários e as corporações
que controlam os algoritmos e robôs, e usem o dinheiro para prover cada
pessoa, cobrindo suas necessidades básicas. Isso protegerá os pobres da

129
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

perda de emprego e da exclusão econômica, enquanto protege os ricos da ira


populista, no entanto é algo complexo e ainda enseja muito debate sobre os
prós e contras (Harari, 2018, p. 63).

2 ENQUANTO ISSO... 2023:


O FENÔMENO DA UBERIZAÇÃO PRECARIZAÇÃO
OU TRABALHO INOVADOR?
Mesmo ainda não estarmos em 2050, os problemas com o desemprego
e a precarização das relações de trabalho estão em uma crescente, que
aumentou e disparou a partir da pandemia da Covid-19, da guerra na Ucrânia
e com as novas tecnologias, como as plataformas de mobilidade, que acabaram
servindo de alternativa de sobrevivência aos trabalhadores que estão na
informalidade ou que não encontram possibilidades de ocupar uma vaga nos
postos de trabalho, seja pela diminuição deles, bem como pela alavancada
que as tecnologias estão dando no meio ambiente de trabalho, propondo
outras modalidade organizacionais. O trabalho e as formas organizacionais
no século 21 estão sendo redesenhados pela era digital, implicando grandes
desafios para a humanidade. Com o fito de tratar de um tema atual e que
coteje com os dilemas do acesso à justiça, mister uma breve síntese dos fatos
que deram início ao conflito “Uber”, e que ainda atualmente a justiça, os
Tribunais Regionais de Trabalho e o próprio Supremo Tribunal de Federal
(STF)1 não têm posicionamento unânime sobre o reconhecimento de vínculo
de trabalho do motorista de aplicativo com a “Uber” e/ou outras plataformas
dessa natureza.
A Uber do Brasil Tecnologia Ltda. é uma sociedade empresária que
define seus serviços como de intermediação digital prestados por meio de
plataforma tecnológica, sob demanda e serviços relacionados que permitem
que prestadores(as) de transporte busquem, recebam e atendam solicitações

1
Moraes suspende processo que reconhecia vínculo entre motorista e aplicativo de transporte.
Ministro do STF, Alexandre de Moraes, afirmou que a decisão destoa do entendimento do
Tribunal sobre possibilidade de formas alternativas à relação de emprego. Disponível em: https://
ndmais.com.br/politica/moraes-suspende-processo-que-reconhecia-vinculo-entre-motorista-e-
aplicativo-de-transporte/#:~:text=O%20ministro%20do%20STF%20(Supremo,fora%20de%-
20opera%C3%A7%C3%A3o%20no%20Brasil. Acesso em: 31 jul. 2023.

130
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

de serviços de transporte feitas por usuários(as) que os procurarem. Sua


atuação no Brasil deu-se em maio de 2014, na cidade do Rio de Janeiro, RJ,
depois em São Paulo, SP e Belo Horizonte, MG. Desde então, a sociedade
empresária vem se expandido cada vez mais, alcançando cidades do interior
de todos os Estados brasileiros2 (Martins, 2018).
O sucesso está principalmente ligado ao baixo custo aos seus clientes se
comparado aos outros serviços de transporte particulares existentes, como é o
caso do serviço de táxi. A não existência, inicialmente, de vínculo empregatício
entre a Uber e motoristas nela cadastrados reduz drasticamente os valores
repassados aos clientes. A sociedade empresária atua nas cidades sem pagar
taxas de licença, como são obrigados a pagar os taxistas em razão da Lei n.
12.468/11, também não onerando os clientes com esse gasto. Além disso,
a manutenção e o combustível dos veículos são suportados pelos próprios
motoristas, assim como todos os gastos para a prestação do serviço de
transporte (Martins, 2018, p. 100).
Em meio a esse conflito de interesses e discussões legais entre
taxistas, usuários e Uber surgem problemas mais complexos. Muitos
motoristas da plataforma ingressaram e ainda ingressam na Justiça do
Trabalho requerendo a declaração de existência de vínculo de emprego com
a sociedade empresária e consequentemente, as verbas rescisórias (salário,
adicionais legais, horas extras, 13ºsalário, férias, etc.). A grande questão é
que os tribunais ainda não tem posicionamento pacificado a respeito da
matéria (Martins, 2018)3.
Atualmente o Brasil tem 1.660.023 pessoas trabalhando como
motoristas ou entregadores de aplicativos. Os dados são inéditos e foram
revelados em pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e

2
Uber do Brasil Tecnolgia Ltda. (2018); informação contida no sociedade empresária ;disponível em
https://www.uber.com/pt- BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/. Acesso em: 24 abr. 2018.
3
Sobre o assunto, destaco recente decisão proferida no Tribunal Superior do Trabalho pelo ministro Relator
Ives Gandra Martins Filho no AIRR-1000605-23.2021.5.02.0062: “AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO
DE REVISTA DO RECLAMANTE – RITO SUMARÍSSIMO – VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE MOTORISTA E
PLATAFORMAS TECNOLÓGICAS OU APLICATIVOS CAPTADORES DE CLIENTES (99 TECNOLOGIA LTDA.)
- IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DIANTE DA AUSÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
– TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA - RECURSO DESPROVIDO. 1. Avulta a transcendência
jurídica da causa (CLT, art. 896-A, §1º, IV), na medida em que o pleito de reconhecimento do vínculo de

131
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

emprego envolvendo os recentes modelos de contratação firmados entre motoristas de aplicativo e


empresas provedoras de plataformas de tecnologia por eles utilizadas ainda é nova no âmbito desta
Corte, demandando a interpretação da legislação trabalhista em torno da questão. 2. Ademais, deixa-se
de aplicar o óbice previsto na Súmula 126 desta Corte, uma vez que os atuais modelos de contratação
firmados entre as empresas detentoras da plataforma de tecnologia (no caso, a 99 Tecnologia Ltda.)
e os motoristas que delas se utilizam são de conhecimento público e notório (art. 374, I, do CPC) e
consona com o quadro fático delineado pelo Regional. 3. Em relação às novas formas de trabalho e à
incorporação de tecnologias digitais no trato das relações interpessoais – que estão provocando uma
transformação profunda no Direito do Trabalho, mas carentes ainda de regulamentação legislativa
específica – deve o Estado-Juiz, atento a essas mudanças, distinguir os novos formatos de trabalho
daqueles em que se está diante de uma típica fraude à relação de emprego, de modo a não frear
o desenvolvimento socioeconômico do país no afã de aplicar regras protetivas do direito laboral a
toda e qualquer forma de trabalho. 4. Nesse contexto, analisando, à luz dos arts. 2º e 3º da CLT, a
relação existente entre a 99 Tecnologia Ltda. e os motoristas que se utilizam desse aplicativo para
obterem clientes dos seus serviços de transporte, tem-se que: a) quanto à habitualidade, inexiste
a obrigação de uma frequência predeterminada ou mínima de labor pelo motorista para o uso do
aplicativo, estando a cargo do profissional definir os dias e a constância em que irá trabalhar; b) quanto
à subordinação jurídica, a par da ampla autonomia do motorista em escolher os dias, horários e forma
de labor, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem
nenhuma vinculação a metas determinadas pela Reclamada ou sanções decorrentes de suas escolhas,
a necessidade de observância de cláusulas contratuais (valores a serem cobrados, código de conduta,
instruções de comportamento, avaliação do motorista pelos clientes), com as correspondentes sanções
no caso de descumprimento (para que se preserve a confiabilidade e a manutenção do aplicativo no
mercado concorrencial), não significa que haja ingerência no modo de trabalho prestado pelo motorista,
reforçando a convicção quanto ao trabalho autônomo a inclusão da categoria de motorista de aplicativo
independente, como o motorista da 99 Tecnologia Ltda., no rol de atividades permitidas para inscrição
como Microempreendedor Individual – MEI, nos termos da Resolução 148/2019 do Comitê Gestor do
Simples Nacional; c) quanto à remuneração, o caráter autônomo da prestação de serviços se caracteriza
por arcar, o motorista, com os custos da prestação do serviço (manutenção do carro, combustível,
IPVA), caber a ele a responsabilidade por eventuais sinistros, multas, atos ilícitos ocorridos, entre outros
(ainda que a empresa provedora da plataforma possa a vir a ser responsabilizada solidariamente em
alguns casos), além de os percentuais fixados pela 99 Tecnologia Ltda., de cota parte do motorista,
entre 75% e 80% do preço pago pelo usuário, serem superiores ao que este Tribunal vem admitindo
como suficientes a caracterizar a relação de parceria entre os envolvidos, como no caso de plataformas
semelhantes (ex.: Uber). 5. Já quanto à alegada subordinação estrutural, não cabe ao poder Judiciário
ampliar conceitos jurídicos a fim de reconhecer o vínculo empregatício de profissionais que atuam em
novas formas de trabalho, emergentes da dinâmica do mercado concorrencial atual e, principalmente,
de desenvolvimentos tecnológicos, nas situações em que não se constata nenhuma fraude, como é o
caso das empresas provedoras de aplicativos de tecnologia, que têm como finalidade conectar quem
necessita da condução com o motorista credenciado, sendo o serviço prestado de motorista, em si,
competência do profissional e apenas uma consequência inerente ao que propõe o dispositivo. 6. Assim
sendo, não merece reforma o acórdão regional que não reconheceu o vínculo de emprego pleiteado
na presente reclamação, ao fundamento de ausência de subordinação jurídica entre o motorista e a
empresa provedora do aplicativo. Agravo de instrumento desprovido” (AIRR-1000605-23.2021.5.02.0062,
4ª Turma, Relator Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, DEJT 08/04/2022).

132
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia


(Amobitec). O estudo analisou informações fornecidas pelas empresas iFood,
Uber, 99 e Zé Delivery, e também entrevistou mais de 3 mil trabalhadores
dessas categorias.4
Foram coletados dados como faixa etária, gênero, raça e escolaridade
e com relação ao perfil dos motoristas a idade média é de 39 anos e 60%
deles têm Ensino Médio completo; 62% são pretos ou pardos; 35% são
brancos; 3% são amarelos; 1% é indígena; 95% são homens; 5% são
mulheres. Antes dos APPs, 45% dos motoristas tinham ocupação anterior e
mantiveram essas atividades depois de começar a trabalhar com aplicativos;
36% estavam procurando trabalho; 22% tinham ocupação prévia, mas
abandonaram as atividades para se dedicar aos APPs; 3% não estavam
procurando trabalho.
Depois dos APPs o estudo coletou informações sobre as atividades
remuneradas desempenhadas atualmente por entregadores e motoristas:
63% dos motoristas trabalham somente com APPs; 37% têm outro trabalho;
52% dos entregadores trabalham somente com APPs; 48% dos entregadores
têm outro trabalho. A pesquisa perguntou ainda se as pessoas pretendem
seguir trabalhando com aplicativos ou não. As respostas coletadas foram
as seguintes: entregadores 63% querem continuar trabalhando com APPs;
15% querem muito continuar trabalhando com APPs, 11% querem deixar
de trabalhar com APPS, 8% não sabem se querem continuar com APPs, 3%
querem muito deixar de trabalhar com APPs. Por sua vez os motoristas: 54%
querem continuar trabalhando com APPs; 15% querem deixar de trabalhar
com APPs; 13% não sabem se querem ou não continuar com APPs; 10%
querem muito continuar trabalhando com APPs; 8% querem muito deixar
de trabalhar com APPs.
A remuneração média mensal tanto de entregadores como de
motoristas é superior ao praticado pelo mercado para pessoas com o mesmo
perfil socioeducacional em jornadas integrais (40 horas semanais). O salário

4
Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2023/04/13/brasil-tem-16-milhao-de-
pessoas-trabalhando-como-entregadores-ou-motoristas-de-aplicativos.ghtml Acesso em: 31 jul 2023.

133
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

mínimo vigente durante a coleta dos dados era de R$ 1.212. Para motoristas,
a renda líquida média varia entre R$ 2.925 e R$ 4.756. Para entregadores, o
rendimento médio varia de R$ 1.980 a R$ 3.039.5
Nesse contexto não se acredita no fim do trabalho e sim o que Antunes
intitula como “nova polissemia do trabalho, ou seja, outras ressignificações e
sentido para o sujeito que trabalha (Antunes, 2009, p. 139).
Por conseguinte se o mundo do trabalho passa e passará por sérias
transformações, junto a ele tem os sistemas de justiça, como irão se reinventar
e dar respostas a soluções complexas como as mencionadas anteriormente. E
qual será o papel de atuação do Estado e principalmente do poder Judiciário
em garantir o acesso à justiça pelos trabalhadores. É inconcebível o Estado
deixar de regulamentar de maneira equânime as relações do mercado com os
trabalhadores, a ter um olhar mais atento nas plataformas de mobilidade. Aliás,
o fato de ainda não se ter decisão consolidada e pacificada sobre a relação
entre motoristas e entregadores de plataformas de mobilidade é um recuo a
inovação tecnológica ou um (des)acesso à justiça?

3 LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES. O (NÃO)


ACESSO À JUSTIÇA DO TRABALHADOR. O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
O acesso à Justiça é um princípio constitucional e direito fundamental,
sem ele nenhum dos demais direitos se realiza ou se concretiza. Assim,
qualquer ameaça ao acesso à Justiça impõe sérios danos aos preceitos da
igualdade e à prevalência da lei. A Constituição Federal de 1988 consagrou o
acesso à Justiça como um direito em seu artigo 5º, XXXV: “a lei não excluirá da
apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O direito de acesso
à Justiça não significa apenas recurso ao poder Judiciário sempre que um
direito seja ameaçado. Esse direito envolve uma série de instituições estatais
e não estatais (Mattos, 2011).
Além disso, o acesso à Justiça “da porta de entrada à porta de saída” não
é sinônimo de sala de audiência ou ingresso aos tribunais do poder Judiciário,
é um direito fundamental da pessoa humana, do trabalhador, nesse caso

5
Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2023/04/13/brasil-tem-16-milhao-de-
pessoas-trabalhando-como-entregadores-ou-motoristas-de-aplicativos.ghtml. Acesso em: 31 jul. 2023.

134
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

(Sadek, 2014). As ondas de justiça de Cappelletti e Garth (2002) representam


as barreiras ou obstáculos a serem enfrentados pelo cidadão que busca a
garantia e a efetividade dos seus direitos.
O sentido de Justiça e da maneira como acessá-la tem sido um tema cada
vez recorrente e necessário, pois passa por alguns pontos a serem enfrentados.
O primeiro deles está na dificuldade de delimitar conceitualmente o acesso
à Justiça, partindo da premissa de que não significa exclusivamente acessar o
poder Judiciário, e sim, também ser uma prerrogativa inerente do ser humano,
um direito fundamental. A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de
difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema
jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou
resolver seus litígios sob os auspícios do Estado (Mattos, 2011; Cappelletti;
Garth, 2002).
Em “La Suprema Corte de los Grandes Inocentes”, de Pedro Pont
Vergés, pintada em 19886 na sala de audiências do Tribunal Superior de
Córdoba, destaca por imagens, não juízes, mas vítimas da humanidade que
olham para o espectador sem acusar ou pedir vingança, mas pedindo, alguns,
assim, que a situação se inverta. “Seus personagens são Vincent Van Gogh,
vítima da pintura; o menino vallecas, vítima da zombaria e do ridículo popular;
a mulher, vítima dos homens e de si mesma; Buster Keaton, vítima da ganância
do grande capital do cinema americano; o menino de braços erguidos, que se
destaca entre a multidão de evacuados do gueto de Varsóvia para os campos
de concentração e experimentação para exterminar o homem ‘racialmente não
puro’; John Lennon, cujo sonho era a paz, vítima de sua popularidade artística
e um assassino demente que o removeu para dar vida a si mesmo assumindo
sua personalidade; Martin Luther King, cujo sonho era também a paz na
convivência de brancos e negros, vítima da intolerância e da discriminação
racial; e o NN (sem nome), vítima de desaparecimento sob qualquer regime
totalitário; o doente mental, vítima de abandono familiar e social, internado
para toda a vida em hospitais psiquiátricos. A obra parece tão viva, tão real,
como se cada uma das vítimas que ali estavam quisessem dizer algo mais,
porém não puderam, foram silenciadas.

6
Disponível em: https://www.abogadovergara.com.ar/2019/05/la-suprema-corte-de-los-grandes.html

135
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

Figura 1 – “La Suprema Corte de los Grande Inocentes”

Fonte: https://www.abogadovergara.com.ar/2019/05/la-suprema-corte-de-los-grandes.html

A justiça na forma de uma mulher e tão distante e com o véu


escondendo os olhos e o rosto daqueles que ali precisavam dela, inclusive de
quem observava a pintura. Todos de costas para a “deusa Themis”. Mesmo não
retratado pelo artista o proletariado, a pintura por meio dos olhares e histórias
dos que ali estão abre possibilidades de pensar no trabalhador, no proletário
e hoje precariado ou empreendedor de si mesmo. Nas suas subjetividades
humanas e nas injustiças sociais sofridas também pelo desmonte dos direitos
trabalhistas arduamente conquistados. A obra nos remete a pensar sobre a
questão do acesso à Justiça pela via dos direitos humanos e pelas mãos de uma
justiça nua, cega e guardiã de promessas, mas distante de efetivar os direitos.
A sua cegueira e espada não conseguem proteger e guardar aqueles que lutam
por uma sociedade menos desigual e humana. “A justiça não é apenas a forma
certa de distribuir as coisas. Ela também diz respeito à forma de avaliar as
coisas” (Sandel, 2012, p. 323). Pelo menos deveria ser assim, quando um
trabalhador ou vulnerável chega até a sua porta.

136
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

Desde finais da década de 80 a discussão sobre as teorias da justiça


tem se reestruturado em torno do conceito de reconhecimento a partir das
subjetividades humanas, tendo como objetivo a redistribuição e a representa-
tividade (Fraser, 2003). Há sim uma considerável relação com o tema acesso
à Justiça, pois como princípio constitucional e direito fundamental a busca
pela sua efetividade também é uma busca pelo reconhecimento na condição
de sujeito histórico e de direitos.
Os diversos obstáculos do acesso à Justiça pela via dos direitos sociais
colocam em xeque o caminho da justiça a ser percorrido pelo trabalhador e
ou motorista de plataforma de mobilidade. É fundamental que cada caso de
pedido de reconhecimento de vínculo empregatício seja analisado, baseado
nos princípios constitucionais e do trabalho. Além disso, que o poder público
por meio de políticas públicas regulamentadoras das plataformas repassem ou
dividam melhor os lucros com os trabalhadores. Não é possível a polissemia
tecnológica de trabalho perpetuar a exploração humana.
Nesse interim destaca-se a importância de se primar pelo trabalho
decente e o crescimento econômico a partir dos 17 objetivos de desenvol-
vimento sustentável da Agenda 2030. A meta 8.5 trata da busca pelo alcance
do emprego pleno e produtivo, trabalho decente para todos e remuneração
igual para trabalho de igual valor. Alcançar o objetivo de Trabalho Decente
e Crescimento Econômico, no entanto, requer enfrentar os desafios e
obstáculos mencionados anteriormente, mas um deles merece ser retomado:
a precarização das relações de trabalho e as novas tecnologias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos humanos laborais são impregnados das discussões sobre
temais atuais como: universalismo, efetividade, multiculturalismo, e envolvem
as transformações no mundo do trabalho. Os princípios da liberdade e
igualdade que dão o tom dos direitos fundamentais no mundo do trabalho
podem ser ampliados pelo princípio da fraternidade e do acesso à Justiça.
Ainda sublinha-se a centralidade das discussões sobre o trabalho
no âmbito dos direitos humanos à Agenda 2030, que entrou em vigor em
2016, foi adotada em 2015 na Cimeira das Nações Unidas para a adoção da
agenda de desenvolvimento pós-2015 após vários anos de ampla consulta e
negociação.

137
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

A Agenda 2030 aborda três dimensões da sustentabilidade – econômica,


social e ambiental – e inclui 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS), cada um acompanhado de metas específicas. Considerando a
importância do trabalho digno e decente como o foco do ODS número 8,
que tem como objetivo “promover um crescimento econômico sustentado,
inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho digno/decente
para todos”, como será possível assegurar a proteção e o acesso à Justiça do
trabalhador/motorista de plataformas de mobilidade, que está diante de uma
subordinação econômica ? Por conta disso, questiona-se quais as implicações
das novas tecnologias nas relações de trabalho: desmonte dos direitos
trabalhistas ou inovação necessária? E o acesso do trabalhador à qual Justiça?
No desenvolvimento do texto procurou-se fazer alguns enfrentamentos
dados a complexidade e desafios levantados pelos questionamentos
norteadores. Para o efetivo acesso à Justiça dos trabalhadores pela via dos
direitos sociais dois pontos precisam ser retomados: o trabalho precisa ser
digno e decente e é papel do Estado promover políticas públicas de desenvol-
vimento sustentável, buscando o equilíbrio com o mercado. O ser humano
deve ser o foco das políticas públicas, seja em 2023 ou 2050. Há uma Agenda,
a Agenda 2030, que precisa ser cotejada pelos Estados para trilhar caminhos de
equilíbrio e que retardem o avanço tecnológico, sem antes ter possibilidades
e estratégias de proteção ao ser humano.
As instituições precisam se remodelar, se humanizar para que também
sejam espaços de interlocução, proteção e garantia dos direitos humanos dos
vulneráveis, como o trabalhador. Este está sem rosto, sem identidade, em
meio as massas, não é nem proletário, é precário. Ele precisa se redescobrir,
se reinventar não como “empreendedor de si mesmo”, mas como um sujeito
potencialmente histórico e reconhecido.

REFERÊNCIAS
ALBORNOZ, S. O que é trabalho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo
manipulatório. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2011.
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
ANTUNES, R. O caracol e sua concha: ensaio sobre a nova morfologia do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 2005.

138
“LA SUPREMA CORTE DE LOS GRANDES INOCENTES”:
AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E O ACESSO À (QUAL) JUSTIÇA?
Rosane Teresinha Carvalho Porto

BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral: a perda da sensibilidade


na modernidade liquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. 1. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2014.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 2002.
CRUZ, Ezequiel de Souza. PORTO, Rosane T.C. As transformações no mundo do
trabalho: uma análise biopolítica em tempos de pandemia. Blumenau: Editora
Dom Modesto, 2022.
FEDERICI, Silvia. El patriarcado del salario. 1. ed. Ciudad Autônoma de Buenos
Aires: Tinta Limón, 2018.
FRASER, Nancy. Social Justice in the age of identity politics: Redistribution,
Recognition, and Participation. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel.
Redistribution or Recognition? A political-Philosophical exchange. Londres; Nova
York: Verso, 2003. p. 7-109.
HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o século XXI. Tradução Paulo Geiger. 1. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
MARX, K. O capital: crítica de economia política. Livro I. O processo de produção
do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo. 2013.
MARTINS, Marcelo Gouvêa Almeida. O vínculo empregatício no mundo
tecnológico e o conflito de interesses que o circunda: a busca por uma solução a
partir de análise do “caso Uber”. Revista Trabalhista: Direito e Processo. Brasília:
Anammatra; Rio de Janeiro. Forense, a. 18, n. 61, p. 94-109, jan./jun. 2028.
MATTOS, Fernando Pagani. Acesso à justiça: um princípio em busca de efetivação.
Curitiba: Juruá, 2011.
NARDI, H. C.; TITTONI, J.; BERNARDES, J. S. Subjetividade e Trabalho. In:
CATTANI, A. D (org.). Trabalho e tecnologia; dicionário crítico. 3. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000. p. 240-246.
SADEK, Maria Tereza, Aina. Acesso à justiça: um direito e seu obstáculos. Revista
USP, São Paulo, n. 101, p. 55-66, mar./abr./maio 2014. Disponível em: https://www.
direitorp.usp.br/wp-content/uploads/2021/04/Maria-Tereza-Sadek.pdf. Acesso em:
31 jul. 2023.
SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Tradução Heloisa Matias e
Maria Alice Máximo. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

139
LINHA DE PESQUISA 2

Democracia,
Direitos Humanos
e Desenvolvimento
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO
SOCIAL E DIREITOS HUMANOS1

Anna Paula Bagetti Zeifert

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente estudo analisa a importância dos programas de transferência
de renda como mecanismos de proteção social e de garantia dos direitos
humanos, tendo em vista os níveis elevados de desigualdade, pobreza e fome/
insegurança alimentar2 presentes na sociedade brasileira. Especificamente,
centra as discussões em problemas que são histórico-estruturais, verificando
como o acesso a uma renda mínima poderá reduzir os efeitos negativos e as
condições de vulnerabilidade, considerando que as desigualdades sociais e a
pobreza são problemas de ordem multidimensional, podendo estar associadas
à raça, classe, gênero, etnia, território, idade, participação, poder, entre outras.
Assim, pensar soluções que amenizem ou solucionem tais problemas requer
passar por todas essas interseccionalidades.
Como mecanismo público de garantia de uma renda mínima, será
estudado o Programa de Transferência de Renda Bolsa Família, tendo como
problemática a seguinte questão: Qual o impacto do Programa Bolsa Família,

1
Estudo desenvolvido a partir do projeto de pesquisa “Determinantes Multidimensionais da Pobreza e da
Fome no Brasil e na Argentina: Estudo Comparado Sobre o Alcance dos Programas de Desenvolvimento
e Assistência Social na Superação das Situações de Vulnerabilidades”, Edital Fapergs 14/2022, ARD/
ARC; vinculado à Linha 2 – Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento, do Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da Unijuí.
2
Para o estudo optamos por trabalhar as duas expressões de forma conjunta, mas entendendo que a fome
pode ser considerada uma situação duradoura e o entendimento sobre insegurança alimentar como a
dificuldade de ter acesso à comida, podendo acontecer por um dia inteiro ou mais, assim como não ter
acesso à alimentação saudável em quantidade e qualidade suficiente para a garantia do seu bem-estar
nutricional (Agência Brasil, 2023).

143
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

como meio de transferência de renda, nas condições de bem-estar e promoção


da dignidade dos cidadãos, considerando que o Brasil, segundo relatório da
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) teve
uma piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar nos últimos anos?
Como hipótese de pesquisa, consideramos que no Brasil os programas
de transferência de renda, como é o caso do Programa Bolsa Família, são
fundamentais para garantir direitos sociais mínimos, principalmente para a
população mais vulnerável, o que possibilitaria condições para se viver uma
vida com dignidade.
Há que se considerar, todavia, que as raízes da desigualdade no Brasil
são históricas, atreladas a questões políticas, econômicas e, também, culturais,
exigindo que o seu enfrentamento aconteça de maneira permanente por meio
de ações estatais, em busca de justiça social. Suas múltiplas facetas requerem a
adoção de estratégias desenvolvimentistas que possam ir além da perspectiva
essencialmente econômica, posto que as desigualdades graves colocam em
perigo a dinâmica das sociedades, afetam o sistema democrático e a efetividade
dos direitos humanos.
Nessa mesma perspectiva, a fome/insegurança alimentar também são
situações que estão intimamente relacionadas ao modelo econômico de
desenvolvimento adotado pelo país nos últimos tempos, mesmo sabendo
que o Brasil produz um número significativo de alimentos e possui uma
quantidade de terra abundante para a produção, porém observamos que a
população reduziu sua capacidade de compra e acesso à alimentação.
Ao analisar a questão da pobreza, o estudo trabalha com a temática da
aporofobia, que, em essência, consiste na rejeição, aversão e desprezo pelos
pobres, indivíduos que não contribuem na lógica de troca das sociedades,
considerando o viés fortemente contratualista que serve de base para as
relações sociais desde a Modernidade.
Assim, no seu delineamento, o texto utiliza o método de abordagem
hipotético-dedutivo, centrado na pesquisa bibliográfica, utilizando dados
secundários de acesso público para demonstrar e sustentar as bases teóricas
expostas como linha argumentativa. Está dividido em duas seções: a primeira,
que trata especificamente do modelo de desenvolvimento adotado pelo Estado
brasileiro, marcado pelo aumento das vulnerabilidades sociais e atravessado
por interseccionalidades que refletem as desigualdades histórico-estruturais

144
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

presentes e a insuficiência de renda; a segunda, que aborda o impacto nas


condições de bem-estar e promoção da dignidade a partir dos programas de
transferência de renda tendo como referência o Bolsa Família.

1 DESENVOLVIMENTO, INTERSECCIONALIDADES
E VULNERABILIDADES: A INSUFICIÊNCIA DE RENDA
E SEUS REFLEXOS NA SOCIEDADE BRASILEIRA
O Brasil, como um dos países que mais produz e exporta alimentos no
contexto mundial, convive com o paradoxo de ser, também, o lugar em que
um número significativo de pessoas passa fome ou convive com a questão da
insegurança alimentar severa ou moderada. Nesse sentido, podemos classificar
a insegurança alimentar severa como um nível de gravidade em que,
em algum momento do ano, as pessoas ficam sem comida e passam
fome, o que chega a acontecer, em casos mais extremos, por um dia
inteiro ou mais. Já a fome propriamente dita é uma situação duradoura,
que causa sensação desconfortável ou dolorosa pela energia insuficiente
da alimentação. Por fim, a insegurança alimentar moderada é aquela
em que as pessoas enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter
alimentos e são forçadas a reduzir, em alguns momentos do ano, a
qualidade e a quantidade de alimentos que consomem, devido à falta
de dinheiro ou outros recursos (Agência Brasil, 2023).

No ano de 2022 ao menos 33 milhões de brasileiros ficaram em


condições de fome ou insegurança alimentar, sem ter o que comer, número
este que representa 15% de toda a população do país. Os dados públicos
apontam que apenas quatro em cada dez famílias conseguiram o que se
entende por acesso pleno à alimentação, evidenciando que mais da metade
da população brasileira conviveu com algum grau de insegurança alimentar,
o que nos conduz a reconhecer que o Brasil regrediu aos níveis de fome de
décadas passadas (Rede Penssan, 2022).
Políticas sociais de combate às desigualdades, a pobreza, a fome/
insegurança alimentar, que estiveram presentes em outros momentos da história
e passaram por um período de recesso, inflaram esse cenário de vulnerabilidades.
“Para além do escândalo ético, isso é uma aberração em termos de organização
econômica e social. No plano moral, beira o criminoso: [...], enquanto
exportamos e produzimos mais de três quilos, só de grãos, por pessoa por dia”,
famintos perambulam sem destino em muitas cidades (Dowbor, 2022, p. 181).

145
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

Referido cenário, no entender de Dowbor (2022), terá impacto estrutural


a longo prazo, principalmente quando se verifica que boa parte dos indivíduos
atingidos pelo contexto de fome/insegurança alimentar e vulnerabilidades
são crianças, o que afeta o desenvolvimento psicomotor, cognitivo e acelera
o desenvolvimento de doenças (infecciosas, cardiovasculares, diabetes e
obesidades, entre outras), sem falar na incapacidade produtiva na vida adulta.
Importante destacar, nesse contexto, que a fome tem cor, gênero e
idade, ou seja, dentro do percentual de 53,2% dos domicílios que viviam em
insegurança alimentar no ano de 2022, 65% deles são de lares comandados
por pessoas pretas ou pardas. Domicílios em que a mulher é a referência,
a fome aumentou cerca de 8%, enquanto naquelas chefiadas por homens,
o aumento foi de cerca de 5%. Nas residências em que vivem crianças, o
percentual de fome chega a ser o dobro daquelas em que vivem apenas
adultos. Os dados da Rede Penssan (2022) apontam que essa realidade é mais
presente em Estados do Norte e Nordeste o Brasil, onde há “[...] proporção
de Insegurança Alimentar moderada e grave, acima de 30,0%, nos domicílios
com presença de menores de 10 anos, sobretudo nos Estados do Maranhão
(63,3%), Amapá (60,1%), Alagoas (59,9%), Sergipe (54,6%), Amazonas (54,4%),
Pará (53,4%), Ceará (51,6%) e Roraima (49,3%)”.
Figura 1 – (In)Segurança Alimentar

Fonte: Rede Penssan (2022).

146
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

Assim sendo, considerando o apresentado anteriormente,


ao darmos rosto à fome, percebemos que outras desigualdades
se somam à econômica. O conceito de pobreza, enfim, não pode
ser reduzido à noção de precariedade de renda; é complexo e
abrangente, está relacionado a vários tipos de desigualdades – raça,
gênero, território, idade, etnia, classe, participação, poder. Portanto,
também as soluções e a busca por maior igualdade passarão por
todas essas interseccionalidades (Cátedra Josué de Castro, 2022, p.
162).

A Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida (Rede


Penssan, 2022) afirma que em 29 anos de luta contra a falta de comida no
prato dos brasileiros, a instituição viu-se diante de “um dos piores momentos
dos números da fome desde sua fundação”, em 1993. “Não podemos mais
tolerar que 33 milhões de pessoas não tenham o que comer em um país com
tanta diversidade como o Brasil. É um retrocesso total”.
Para a superação desse abismo é importante entender que o desenvol-
vimento requer a superação de barreiras histórico-estruturais e exige, de
maneira efetiva, o combate à pobreza e às desigualdades. O desenvolvimento
exige o enfrentamento dos problemas atrelados à supressão das potenciali-
dades humanas, bem como a melhoria dos índices gerais de qualidade de vida
e o combate sistêmico das discriminações (raciais, sociais, de classe, gênero,
políticas, entre outras).
Essa problemática nos faz introduzir o estudo desenvolvido por Cortina
(2017), a qual entende a pobreza como parte dos fenômenos sociais e da
sociedade de base contratualista cunhada ao longo da História. Para tanto, a
autora apresenta o termo aporofobia, que consiste no desprezo e rejeição aos
indivíduos incapazes de contribuir e cooperar nas sociedades.
O indivíduo pobre é excluído “de un mundo construido sobre el
contrato político, económico o social, de ese mundo del dar y el recibir, en el
que sólo pueden entrar los que parecen tener algo interesante que devolver
como retorno.” Ou seja, a ideia de participação e colaboração não existirá; “los
pobres parecen quebrar este juego del toma y daca, porque nuestra mente
calculadora percibe que no van a traer más que problemas a cambio y por eso
prospera la tendencia a excluirlos” (Cortina, 2017, p. 6-7).

147
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

Isso demonstra que a aporofobia atenta contra a dignidade e o


bem-estar das pessoas, que são incapazes de perceber que ela já ocupa os
espaços sociais há muito tempo e é fomentada, diariamente, por nosso cérebro
aporófobo e os modelos econômicos e políticos instituídos.
Historicamente, as sociedades ocidentais vivenciaram experiências
marcantes como a luta pela abolição da escravatura, da misoginia, da homofobia,
do racismo e da xenofobia, fomentando uma consciência moral sobre o justo a
partir de Constituições, Tratados e, especialmente, da Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 (ONU). Persiste, no entanto, o abismo entre a moral
pensada e a moral escrita, o que faz com que haja ineficácia nas formas legais que
impedem determinadas ações e omissões, tanto por parte dos indivíduos quanto
das instituições. Cortina (2017) reconhece esse abismo como uma debilidade
moral, que nos condiciona a rejeitar o diferente, inconveniente, aquele que
é pobre ou desamparado. Nosso instinto em rechaçar aquele que não pode
efetivamente colaborar com o sistema e somente dele depende, estando o pobre
prejudicado quando se trata de dar e receber.
Para Cortina (2017, p. 86), o indivíduo nessas condições parece perder
a capacidade adaptativa biológica e social, porque a lógica apresentada pelo
sistema exige uma postura de independência, troca ou colaboração, o que
não é possível para quem necessita da presença do Estado. Por tal razão, “los
pobres provocan un sentimiento de rechazo porque sólo plantean problemas
a quienes en realidad lo que desean es ayuda para prosperar, sucitan desprecio
cuando se les contempla desde una posición de superioridad” [e muito mais]
“miedo cuando generan inseguridad y, en el mejor de los casos, impaciencia
por librarse de ellos, impaciencia del corazón”.
Na tentativa de evitar ou amenizar as consequências advindas de um
pensamento aporófobo, é fundamental a construção de instituições que
tenham como seu eixo central a dignidade de cada ser humano. Essa também
deve ser a opção das políticas econômicas: viabilizar a dignidade, a igualdade e
o acolhimento dos mais necessitados, superando a racionalidade que endossa
a aporofobia e o individualismo.

148
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

Alcançar a igualdade e suprimir ou amenizar as desigualdades, a pobreza,


a fome/insegurança alimentar requer estabelecer um novo pacto social que
viabilize a redistribuição de ingressos e outros ativos, reconheça identidades e
autonomias diversas, garantindo equidade distributiva e proteção social.
O empobrecimento acelerado e o retorno do país ao Mapa da Fome
exigem que o Estado brasileiro busque, por meio de políticas públicas sociais,
superar as condições de vulnerabilidade imposta a uma grande parte da
sociedade brasileira. Algumas propostas estão se estruturando e outras podem
ser retomadas, com as mudanças na gestão e nas políticas sociais. Como
exemplo é possível citar as Cozinhas Solidárias (especial atenção para o Projeto
de Lei Projeto 491/23, em tramitação na Câmara dos Deputados, que institui
o Programa Cozinha Solidária, para a distribuição gratuita de alimentação à
população em situação de vulnerabilidade e risco social, incluindo as pessoas
em situação de rua), iniciativas já conhecidas na sociedade brasileira, e que
nos anos 90 assumiram projeção nacional e passaram a ser articuladas a partir
de Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto
em 2019 e retomado em 2023, assim como outros programas sociais, como o
Plano de Segurança Alimentar e o Fome Zero.
Todos estes projetos confluíram num cenário que foi impulsionado,
pela Campanha da Ação da Cidadania (naquele período, Contra a Miséria
e pela Vida), que em relação e em diálogo com outras iniciativas, evocou o
direito à segurança alimentar. Não podemos deixar de mencionar, ainda, o
Programa Bolsa Família (hoje reestruturado), que transferiu renda para muitas
famílias.
Assim, após analisar de forma breve a realidade social brasileira,
centrando as discussões em problemas que são histórico-estruturais, na
próxima seção vamos verificar como o acesso a uma renda mínima poderá
reduzir os efeitos negativos e as condições de vulnerabilidade, considerando
que as desigualdades sociais e a pobreza são problemas de ordem multidimen-
sionais, já a fome/insegurança alimentar uma questão de desordem econômica
e social que requer ajustes e compromisso com o bem-estar, qualidade de vida
e dignidade humana.

149
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

2 O IMPACTO NAS CONDIÇÕES DE BEM-ESTAR E PROMOÇÃO


DA DIGNIDADE A PARTIR DOS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA
DE RENDA: O BOLSA FAMÍLIA COMO PROJETO DE JUSTIÇA SOCIAL
O acesso à proteção social e à garantia do bem-estar para todos sempre
estiveram em pauta, principalmente quando exigem um comprometimento
maior por parte do Estado e isso provoca reações no mercado em razão dos
ajustes econômicos que possam ser demandados.
A presença das desigualdades, da pobreza e da fome/insegurança
alimentar desde sempre é parte das estruturas sociais brasileiras.3 Enfrentamos,
todavia, novas categorias de desigualdades, tanto em âmbito social e cultural
quanto econômico. Novas exclusões, práticas sociais e discriminações
são adicionadas àquelas já existentes. As desigualdades antigas e novas se
interligam nos espaços, bem como os contrastes sociais, herança de tempos
remotos, sucedem em múltiplas dimensões da vida social como reflexo de
condições estruturais injustas.
Como forma de (re)pensar a realidade que nos é imposta,
consideramos pertinente trazer para a discussão a análise de dois teóricos
igualitários, o economista indiano Amartya Sen e a filósofa norte-americana
Martha Nussbaum, considerando a noção de capacidades com foco na justiça
social. O objetivo é relacionar as condições de vida com a ideia de dignidade
e bem-estar, a fim de confirmar a hipótese levantada de que os programas de
transferência mínima de renda são meios para ser viver uma vida digna de
ser vivida. Não estamos querendo afirmar que o auxílio de uma bolsa satisfaz
todas as necessidades de um indivíduo, mas que o coloca numa dimensão de
menor vulnerabilidade.
A necessidade de partir de uma compreensão que seja baseada na
realização e satisfação, uma abordagem relacionada ao argumento de que a
justiça não pode ser indiferente à vida que as pessoas podem viver de fato,

3
Conforme esclarece Dowbor (2022, p. 181-182), “o Brasil produz o equivalente a onze mil reais por
mês por família de quatro pessoas. Uma soma que, não fosse a brutal concentração de renda, permitiria
a todos uma vida digna e confortável. Bastaria uma redução moderada da nossa desigualdade para
assegurar que as pessoas vivessem bem. O problema central e estruturante do Brasil não é econômico,
é de organização política e social. Não há democracia que funcione com o grau de desigualdade que
temos”.

150
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

está no cerne dos estudos do Sen. Vidas, experiências e realizações humanas


são insubstituíveis, e representam aquilo de mais valioso que se tem no
espaço social. Instituições e regras são naturalmente importantes, “[...] mas
as realizações de fato vão muito além do quadro organizacional e incluem as
vidas que as pessoas conseguem ou não viver” (Sen, 2011, p. 35).
Assim, no entender de Sen (2011), para compreender a complexidade
de justiças e injustiças existentes no interior das sociedades é fundamental
pensar na ideia de liberdade como alternativa. Duas perspectivas são apontadas
como aquelas que fazem da liberdade algo tão importante para os indivíduos e
para pensar a justiça social: a primeira diz respeito à oportunidade de buscar
os objetivos e os fins que cada indivíduo deseja alcançar; a segunda remete ao
próprio processo de escolha dos objetivos e fins. Essas perspectivas, reunidas,
compõem a ideia de liberdade como a capacidade de um indivíduo decidir
por si próprio seus objetivos, com autonomia.
A ideia de justiça social está diretamente relacionada à própria noção
de capacidade descrita por Sen (2011), diz respeito àquilo que os indivíduos
podem ser e fazer, com capacidade para levar adiante seus planos para a
concretização de uma vida digna. Envolve as condições dadas pelo Estado por
meio de políticas para que todos acessem condições mínimas para viver, ou
seja, o grau de liberdade de cada indivíduo que possibilita autonomia.
A abordagem das capacidades em Sen (2011) tem seu foco na liberdade
que possui uma pessoa para fazer as coisas que tem razão para valorizar.
Compreendemos, por intermédio da ideia de liberdade, de capacidade e de
justiça, que a parte fundamental da liberdade consiste na capacidade de o
indivíduo escolher o que mais valoriza, que deseja para si e para sua vida.
A capacidade está ligada, portanto, à liberdade por meio do seu aspecto de
oportunidade abrangente, como o potencial de o indivíduo realizar várias
combinações de funcionamentos que tenham razão para serem valorizadas.
Quando analisamos a perspectiva de Sen (2000, p. 18) identificamos
percepções críticas às necessidades humanas e à ideia de capacidades, que
ultrapassam a questão de renda, embora considere a liberdade econômica
importante ao desenvolvimento. O autor alerta para o fato de que outras
determinantes são fundamentais para a expansão das liberdades humanas,
como disposições sociais e dos direitos individuais. As necessidades humanas
compõem um conjunto que, para a sua satisfação, depende mais do que poder

151
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

econômico, e ultrapassa a visão unidimensional de necessidades e, consequen-


temente, de privação. As necessidades humanas são multidimensionais, bem
como a própria acepção de desigualdade e pobreza.
A abrangência de examinar as necessidades e o desenvolvimento
humano, realizada por Sen, encontrou convergência nas construções teóricas
de Nussbaum (2014), a qual afirma que o progresso econômico, embora seja
responsável por importantes e grandes mutações em um conjunto social, não
oportuniza isoladamente as condições dignas de existência. Nas considerações
da autora, a liberdade diz respeito à importância de compreender a necessidade
de um indivíduo possuir liberdade para escolher um estilo dentro dos diferentes
modos de vida. Capacidade para escolher a vida que deseja levar e a possibilidade
de realizar escolhas quanto à própria vida é uma questão de dignidade.
Seguindo com o economista indiano, as privações no sentido
econômico são interligadas com outras formas de privação. A pobreza extrema
torna alguém vulnerável para a violação de outros tipos de liberdade, “a
privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social,
assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma,
gerar a privação de liberdade econômica”. Mais uma vez sua teoria realça a
multiplicidade e a complexidade da vida humana e das formas de vivê-la com
dignidade (Sen, 2000, p. 23).
Nesse contexto, é importante destacar que liberdade e capacidade são
termos intensamente presentes nas obras de Sen e Nussbaum, entrecruzando-
-se e compondo suas teorias sobre justiça. O economista pressupõe que o
senso de justiça de um determinado ato pode ser apurado a partir da sua
capacidade em promover a liberdade humana. Considerando que a liberdade
é o meio para se alcançar o desenvolvimento, bem como o seu fim primordial,
podemos afirmar que justiça e desenvolvimento estão inter-relacionados na
teoria do autor.
Por outro lado, quando verificamos a pertinências da teoria da filósofa
norte-americana Nussbaum (2013), observamos que a autora desenvolve uma
teoria voltada para a formulação de uma lista de capacidades humanas com o
objetivo de tratar de questões referentes à justiça social. O enfoque defendido
por Nussbaum é único, pois parte de uma crítica às teorias contratualistas e
adota uma concepção de indivíduo/pessoa diferente da adotada por outros
autores.

152
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

Considerando os apontamos anteriores realizados por Sen, Nussbaum


(2013) utiliza a abordagem das capacidades para explicar as garantias humanas
centrais que devem ser efetivadas pelo Estado e pela comunidade para todos
os indivíduos. Essa explicação foca nas capacidades humanas, no que as
pessoas são capazes, de fato, de fazer e ser, instruídas pela ideia intuitiva de
uma vida apropriada à dignidade do ser humano. A autora elabora uma lista
de dez capacidades como exigências para que o indivíduo possua uma vida
com dignidade, considerando a ideia de justiça social, ou seja, a sociedade que
não garante essas capacidades em um nível mínimo não pode ser considerada
justa.
Os autores em análise entendem que o modelo de desenvolvimento
econômico, que prioriza o lucro, ignora a igualdade distributiva e social,
os requisitos para uma democracia estável, as relações raciais e de gênero
compatíveis e a qualidade de vida da pessoa humana. A abordagem das
capacidades é fundamental para criticar a perspectiva das necessidades
básicas que não considera as desigualdades distributivas, assim como o
enfoque do desenvolvimento, que não é capaz de atentar para a heterogenei-
dade de situações individuais, e o problema da distribuição igual de recursos,
que não leva em conta o princípio de equidade para atender indivíduos,
conhecendo seus diferentes níveis de necessidades para atingir um estado
de bem-estar.
Nesse contexto, retomando o problema de pesquisa apresentado
inicialmente, cabe agora analisar a relevância dos programas de acesso
à renda para se atingir, minimamente, a noção de capacidade abordada,
considerando que a “segurança de renda é fundamental para a promoção do
desenvolvimento econômico, estimulando a demanda agregada e atuando
como estabilizadora social em momentos de crise.” A renda representa
parte importante para a difusão do “desenvolvimento social, pois promove
igualdade de oportunidades, contribuindo para a redução da pobreza e da
desigualdade.” É preciso considerar, porém, que “a visão da segurança de
renda enquanto direito não é sempre utilizada como base para justificar a
existência e manutenção dos programas de transferências de renda” (Fiocruz,
2023).

153
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

A maioria dos auxílios são direcionados à população segurada pela


previdência social. Indivíduos “que contribuem financeiramente para o sistema
(por exemplo, os empregados, os trabalhadores autônomos e avulsos, entre
outros), sendo de conhecimento o fato de que parte significativa da população
está excluída do regime próprio ou geral de previdência social”4.
Em alguns casos, todavia, o acesso a uma renda mínima também está
assegurado para aqueles que não contribuem, desde que se enquadrem
em determinadas categorias; são as denominadas “transferências não
contributivas”. Como exemplo dessas modalidades podemos citar o Benefício
de Prestação Continuada (BPC), que garante mensalmente um salário mínimo
“à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família
(Artigo 203, V, CF 88)”. (Fiocruz, 2023).
Para aqueles cidadãos que não são protegidos por esses programas,
resta o mecanismo público de transferência de renda denominado Bolsa
Família. Referido programa foi criado em 2003 e “[...] ajudou a reduzir em
16% a mortalidade de crianças de um a quatro anos [...] Em famílias com mães
negras e em municípios pobres, a redução chegou a 26% e 28%, respectiva-
mente” (Cátedra Josué de Castro, 2022). O Bolsa Família possibilitou que o
Brasil, pela primeira vez na História, desse uma resposta as suas populações
mais vulneráveis e garantisse, minimamente, os direitos sociais.
Conforme informações retiradas do site do Governo Federal –
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome,
para garantir acesso ao atual valor de R$ 600,00 do programa Bolsa Família é
preciso preencher alguns requisitos:
A principal regra é que a renda de cada pessoa da família seja de, no
máximo, R$ 218 por mês. Ou seja, se um integrante da família recebe
um salário mínimo (R$ 1.302), e nessa família há seis pessoas, a renda
de cada um é de R$ 217. Como está abaixo do limite de R$ 218 por
pessoa, essa família tem o direito de receber o benefício.
A nova estrutura do Bolsa Família conta com: Cada família recebe,
no mínimo, R$ 600; Benefício Primeira Infância (0 a 6 anos): R$ 150
por criança; Benefício Variável Familiar: R$ 50 para gestantes, crianças

4
Conforme destaca a Fiocruz (2023), “há casos, ainda, em que as prestações previdenciárias podem não
prover renda bastante aos beneficiários, de modo a protegê-los do estado de exclusão social. Assim,
tanto em um caso quanto no outro, o direito a renda suficiente não está assegurado.”

154
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

e adolescentes (7 a 18 anos); As famílias beneficiárias devem cumprir


compromissos nas áreas de saúde e de educação para reforçar o
acesso aos direitos sociais básicos. Acompanhamento pré-natal;
Acompanhamento do calendário de vacinação; Acompanhamento do
estado nutricional das crianças menores de sete anos; Para as crianças
de quatro a cinco anos, frequência escolar mínima de 60% e 75% para os
beneficiários de seis a 18 anos incompletos que não tenham concluído
a educação básica; Ao matricular a criança na escola e ao vaciná-la
no posto de saúde, é preciso informar que a família é beneficiária
do Programa Bolsa Família. Regra de proteção: Garante que, mesmo
conseguindo um emprego e melhorando a renda, a família possa
permanecer no programa por até dois anos, desde que cada integrante
receba o equivalente a até meio salário mínimo (R$ 660) (Brasil, 2023).

Assim, referido mecanismo tem colaborado para garantir uma renda mínima
para milhões de brasileiros. Segundo dados do governo federal, o Novo Bolsa Família,
instituído pelo Medida Provisória Nº 1.164, de 2 de março de 2023, mais de 18,52
milhões de famílias foram retiradas da linha da pobreza no mês de junho/2023.
Tais informações podem ser consultadas nas páginas oficiais, conforme
demonstra a imagem a seguir.
Figura 2 – Novo Bolsa Família

Fonte: Governo Federal (Brasil, 2023).

155
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

Assim, resta evidenciada a importância, no Brasil, dos programas de


transferência de renda, como é o caso do Programa Bolsa Família, tendo
em vista que as raízes da desigualdade no país são históricas e estruturais,
vinculadas a questões culturais, políticas e sociais. Seu enfrentamento, por
meio de ações estatais é fundamental para se garantir a efetividade dos direitos
humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do estudo analisamos a relevância dos programas de
transferência de renda na proteção social e de garantia dos direitos humanos,
considerando que as vulnerabilidades são problemas de ordem multidimen-
sional, podendo estar associadas a raça, classe, gênero, etnia, território, idade,
participação, poder, etc., e requer transitar por todas essas interseccionali-
dades.
O Programa de Transferência de Renda Bolsa Família, como mecanismo
público de garantia de uma renda mínima, foi a referência para toda a
construção teórica, uma tentativa de responder qual seu impacto como
meio de transferência de renda nas condições de bem-estar e promoção da
dignidade dos cidadãos.
Como hipótese, consideramos que no Brasil os programas de
transferência de renda, como é o caso do Programa Bolsa Família, são
fundamentais para garantir direitos sociais mínimos para as populações mais
vulneráveis.
Considerando que no seu desenvolvimento o estudo utilizou o método
de abordagem hipotético-dedutivo, resta comprovada a hipótese inicial de
solução do problema, visto que o aumento das vulnerabilidades sociais,
atravessado por interseccionalidades, requer mecanismos públicos de garantia
de bem-estar e promoção da dignidade, possível a partir dos programas de
transferência de renda mínima como o Bolsa Família.
As desigualdades sociais, a pobreza e a fome/insegurança alimentar
representam muito mais que desequilíbrios sociais, interferem de forma
significativa na realização das necessidades humanas fundamentais com vistas
a uma vida digna de ser vivida. São o reflexo de estratégias desenvolvimentistas
tradicionais, que dominam o campo socioeconômico e que naturalizam os
processos de exclusão histórico-estruturais.

156
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

O caminho para a justiça social requer o estabelecimento de condições


mínimas para uma vida digna, como a garantia de acesso a bens, oportunidades
e direitos. O combate às graves desigualdades é imprescindível para que se
possa promover o mínimo de bem-estar numa perspectiva multidimensional e,
nesse caminho, reafirmamos a importância dos programas sociais, com ênfase
no Bolsa Família, uma garantia de acesso à renda mínima para a população
brasileira mais vulnerável e respeito aos direitos humanos fundamentais.

RFEFERÊNCIAS
AGÊNCIA BRASIL. Insegurança alimentar atinge 70 milhões de brasileiros.
Relatório da ONU destaca agravamento do problema após pandemia. Disponível
em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-07/inseguranca-alimentar-
atinge-70-milhoes-de-brasileiros. Acesso em: 28 jul. 2023.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate
à Fome. Bolsa Família retira 18,5 milhões de pessoas da linha da pobreza.
Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2023/07/
bolsa-familia-amplia-cardapio-e-horizontes-de-amanda-e-dos-oito-filhos-em-
garibaldi-rs. Acesso em: 29 jul. 2023.
CÁTEDRA JOSUÉ DE CASTRO. Filhas da mesma agonia: fome, pobreza e
desigualdades. In: CAMPELLO, Tereza; BORTOLETTO, Ana Paula. Da fome à fome:
diálogos com Josué de Castro. São Paulo: Elefante, 2022. p. 155-162.
CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre: un desafío para la democracia.
Barcelona: Espasa Libros, 2017.
DOWBOR, Ladislau. Fome, uma decisão política e corporativa. In: CAMPELLO,
Tereza; BORTOLETTO, Ana Paula. Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro.
São Paulo: Elefante, 2022. p. 181-193.
FIOCRUZ. Bolsa Família: um direito humano ao qual não se admite retrocessos.
Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/bolsa-familia-um-direito-humano-ao-
qual-nao-se-admite-retrocessos/. Acesso em: 29 jul. 2023.
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade,
pertencimento à espécie. Tradução Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes,
2013.
NUSSBAUM, Martha C. Educação e justiça social. Tradução Graça Lami. Portugal:
Pedago, 2014.

157
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, PROTEÇÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Anna Paula Bagetti Zeifert

REDE PENSSAN. II Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar no Brasil no


Contexto da Covid-19. Vigisan, 2., 2022. Disponível em: https://www12.senado.
leg.br/noticias/arquivos/2022/10/14/olheestados-diagramacao-v4-r01-1-14-09-2022.
pdf. Acesso em: 27 jul. 2023.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Ricardo Doninelli Mendes e Denise
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

158
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO
COM SUSTENTABILIDADE E A GARANTIA DO
DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL

Daniel Rubens Cenci

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No contexto da crise ambiental, falar em sustentabilidade requer um
pressuposto de coerência na análise de verdades reconhecidas pela sociedade,
entretanto repassadas sem a devida responsabilidade, constituindo este o
problema fundamental do presente texto, ou seja, a urgência da construção
de uma racionalidade biocêntrica e um outro modelo de desenvolvimento,
como condição fundamental para a sustentabilidade. O objetivo igualmente
adere ao tema ao perquirir as bases da racionalidade econômica e antropocên-
trica, interrogando o sentido do atual contexto vivido, nas perspectivas social,
econômica ambiental e civilizacional, diante dos reconhecidos limites do
planeta, cujo nível de extrativismo extrapola a capacidade de resiliência, não
havendo nenhuma razão para seguir difundindo as ideias para um modelo de
desenvolvimento centrado no crescimento econômico infinito. Questiona-se
a modernidade e seus fundamentos perante um contexto histórico de
liberalismo e neoliberalismo que na promessa da liberdade faz perdurar os
sistemas de dominação, exclusão e mantença da segregação de classes, em
seus signos mais negativos da História.
A sustentabilidade, portanto, emerge como novo princípio de existência
para o presente e o futuro das gerações, com a inclusão de novas ideias,
de outra racionalidade e de novas práticas em direção à possibilidade de
decrescimento como garantia de futuro, cuja racionalidade requer profundas
mudanças epistemológicas e de paradigmas, reposicionando a própria
presença humana na visão de mundo, não mais antropocêntrica, mas em

159
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

relação horizontal e biocêntrica, redefinir as escolhas para o presente e o


futuro. Em tal contexto, o tema do decrescimento e da construção de uma
racionalidade biocêntrica emerge como condição ética e postulado de
coerência para dar substancialidade ao debate da sustentabilidade. A crise
climática atual, conforme se analisará, aponta para uma abolição de modelos
cartesianos, construindo uma perspectiva de base histórica e sistêmica
para outro momento civilizatório e existencial. Do ponto de vista jurídico
reposiciona-se o significado do princípio da ubiquidade, para compreender
que o ambiente não pertence aos sujeitos do tempo presente, tampouco
se fragmenta em divisas de propriedade privada ou se apresenta como
possibilidade nos limites da soberania das nações.
O escopo do texto evidencia ainda os propósitos da agenda global
proposta no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU – Agenda
2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, também constituinte da
base de inúmeros trabalhos investigativos realizados no âmbito do Mestrado
e Doutorado em Direitos Humanos, no Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (Unijuí), no âmbito da linha de pesquisa Democracia, Direitos Humanos
e Desenvolvimento do PPGD e do grupo de pesquisas com enfoque em
Direitos Humanos, Justiça Social e na Sustentabilidade em diferentes contextos
da América Latina. Para além de um espaço institucional, o tema em voga
contempla a decisão da ONU de 28 de julho de 2022, dando status de direito
humano fundamental ao denominado direito ao meio ambiente saudável.

1 RACIONALIDADE ECONÔMICA, MODERNIDADE E DOMINAÇÃO:


UM PROCESSO PARADOXAL DE JUSTIFICAÇÃO E DA MANUTENÇÃO
DA EXPLORAÇÃO
A homogeneização da racionalidade econômica pode ser compreendida
como decorrente da nova fase do capitalismo ao longo do século 20 e como
fortalecimento da sociedade econômica formada com a classe burguesa que
fomentou o capitalismo sem mensurar forças no processo de acumulação
e reinvestimento de capital, impulsionando a indústria e o comércio. O
comércio, nesse sentido, acompanhou e deu vazão ao processo de crescente
industrialização por meio de uma expansão internacional de mercados
consumidores. Esse processo que ocorre desde o final do século 19 se

160
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

consolida na sociedade de consumo do pós-Guerra, estimulada principalmente


pela inserção de políticas neoliberais a partir da década de 70 e pela
globalização que promove uma economia e um mercado consumidor globais
(Faria, 1996, p. 134).
A racionalidade mercadológica expande-se de forma global e procura
homogeneizar tudo a partir de um ponto de vista econômico, não respeitando
nem mesmo os limites ambientais, observando-se que os grandes desastres
ambientais do século 20 apenas servem para frear por um tempo a corrida
rumo ao crescimento econômico. O que ocorre é que existe uma crise de
percepção que não consegue visualizar nada além das questões meramente
econômicas, ou seja, uma percepção fragmentada das relações existentes
na sociedade e que por falta de amplitude não consegue dar respostas
eficientes para os problemas apresentados. Capra defende que existe solução
para grande parte dos problemas presentes na atualidade, mas a resolução
destes exige uma mudança radical de concepções, pensamento e valores,
compreendendo a vida de forma sistêmica (Capra, 2011, p. 277).
Ao mesmo tempo, a focalização da racionalidade econômica
procura atacar a consolidação de valores e de necessidades dos indivíduos,
promovendo constantemente novos valores e novas necessidades, todas
disponíveis para serem adquiridas. Assim, inova-se tudo à procura de novos
consumidores, mas principalmente a inovação procura criar necessidades
ao público consumidor, um novo contexto no qual os cidadãos do Estado
deram lugar aos consumidores do mercado que, ao contrário dos primeiros,
estabelecem relações baseadas em poder de compra das mercadorias
oferecidas.
Faria, ao identificar algumas ações dessa racionalidade, afirma que
a desregulação dos capitais, a geração de formas cooperativas de
interdependência econômica, a unificação monetária, a flexibilização
dos sistemas de produção, a padronização e a homogeneização dos
mercados, criação de grandes blocos comerciais, a emergência do
Leste Europeu como novo mercado consumidor e a defesa dos cortes
drásticos nos gastos públicos dos Estados nacionais, acompanhado
da desformalização de muitas de suas obrigações funcionais, e da
privatização de determinados serviços públicos essenciais, como
estratégia de neutralização da crise fiscal e restauração das condições
“mínimas” de governabilidade (1996, p. 134).

161
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

Esse processo acaba transformando tudo em mercadoria disponível,


enfraquecendo os vínculos sociais entre os indivíduos e o Estado, e, em
decorrência disso, dos espaços inequívocos de direitos e deveres. Conforme
Faria, o Estado perde a centralidade do poder para os mecanismos de
autorregulação da economia, o que torna as decisões políticas condicionadas
por equilíbrios macroeconômicos que representam “um verdadeiro princípio
normativo responsável pela fixação de rigorosos limites às intervenções
reguladoras dos Estados nacionais” (Faria, 1996, p. 142). Essa diretriz
proporciona uma decisão privatizada e despolitizada que não necessita de
legitimação por parte dos cidadãos por não haver vínculos entre as carências,
os direitos almejados e as leis estabelecidas. As fronteiras de um espaço
monetário parecem ser mais importantes do que as fronteiras territoriais da
unidade política.
No mesmo sentido Enrique Leff lembra que essa racionalidade se encontra
infiltrada até mesmo no discurso do desenvolvimento sustentável, sendo difícil se
desvincular da ideologia salvacionista apregoada pelo mercado, pois,
a teoria e as políticas econômicas procuram eludir o limite e acelerar
o processo de crescimento, montando um dispositivo ideológico e
uma estratégia de poder para capitalizar a natureza. Daí emergem o
discurso neoliberal e a geopolítica do desenvolvimento sustentável,
reafirmando o livre mercado como mecanismo mais clarividente e
eficaz para ajustar os desequilíbrios ecológicos e as desigualdades
sociais (Leff, 2006, p. 225).

Essa perspectiva está presente em algumas teorias que pretendem


suavizar os efeitos maléficos causados pela industrialização e pelo crescimento
econômico desmedidos por meio de tecnologias “verdes” ou “mais limpas”. A
tecnologia em si não é a causadora dos males ambientais, mas sim os efeitos
da tecnologia produzida em escala, a partir de uma lógica de expropriação
dos elementos da natureza, visto que o aumento da população provoca o
aumento da demanda por bens, que por sua vez faz aumentar a produção que
requer então uma maior quantidade de recursos naturais e joga mais dejetos
no meio ambiente. Ou seja, a organização voraz da racionalidade econômica
compromete os elementos naturais, seja por seus mecanismos de produção,
seja por suas estratégias de propagação de bens a serem consumidos por
novos mercados.

162
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

Do mesmo modo, os reflexos da desigualdade econômica expressam


os índices crescentes de desemprego estrutural, de pobreza, de violência e de
miséria, problemas identificados como externalidades do sistema capitalista,
porém apresentados como elementos inerentes à realização do desenvolvi-
mento. Além disso, esses elementos são analisados de forma fragmentada, não
sendo possível obter uma satisfatória compreensão, por exemplo, a pobreza e
a miséria que, ao invés de serem tidas como a privação das capacidades básicas
dos seres humanos, são avaliadas meramente como um índice econômico que
constata o baixo nível de renda e de consumo. Essa é uma das características
da racionalidade econômica, no sentido de transformar pessoas e situações em
apenas números e índices estatísticos, segundo o parâmetro da lucratividade.
Acompanhando essa lógica, identifica-se o problema crescente do
desemprego estrutural que se relaciona diretamente com a terceira revolução
industrial – mediante o emprego de novos materiais químicos, bioquímicos
e genéticos, além da produção generalizada da informática e de novas formas
de organização dos processos de gestão (Capella, 1997, p. 124). As inovações
tecnológicas constantes subtraem o indivíduo do processo produtivo a ponto
de torná-lo apenas parte desse processo do qual é criador, o que provoca
uma nova relação de dependência que o instrumentaliza e, por conseguinte,
o condiciona a um quadro de incerteza de continuar no mercado de trabalho
e na sociedade de consumo. Em outras palavras, estabelece-se um cenário no
qual a única certeza é de que tudo é transitório, e as certezas, as regras e os
valores de hoje podem ser substituídos a qualquer tempo pelas decisões e
interesses econômicos transnacionais.
Seguindo os preceitos da racionalidade econômica formam-se
os conglomerados que produzem muitos tipos diferentes de bens e
serviços, principalmente por disporem de uma flexibilidade organizacional
(utilizando-se dos fluxos via rede de computadores, o que desobriga a presença
de equipes no mesmo local de trabalho) e de um potencial de movimentação
expressiva, que trabalha em rede, possibilitando a “deslocalização” dos
processos produtivos, que podem ser mudados de um lugar a outro, ou de um
país a outro, em busca de melhores condições, entre elas legislação trabalhista,
fiscal e do meio ambiente, mão de obra capacitada, facilidade de financiamento
estatal, condições de estabilidade política e econômica.

163
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

Essa nova organização propõe a desmaterialização de certos mercados


que passam a operar a partir de sistemas virtuais, como a venda de uma
quantidade da colheita de café de 2022, ou da oferta de um seguro que cobrirá
uma eventual perda sobre esta mesma safra (Leff, 2006, p. 243). Em outras
palavras, o que se comprova é que o mercado e a racionalidade econômica
podem permear todos os aspectos da vida humana, tanto em condições
presentes como em eventos futuros, ou é uma questão de apenas acomodar-se
a um regime planetário permanentemente organizado em torno desse lucro
oficiosamente reconhecido como lícito, prioritário, detentor de todos os
direitos e gerente de toda a cena mundial (Leff, 2006, p. 271).
Dessa forma, o trabalho vivo (realizado pelo ser humano) perde boa
parte do valor que possuíra nas lutas sociais do período das revoluções
industriais anteriores, principalmente por que o capital aumenta seu ritmo
de exploração. Aos trabalhadores resta apenas a flexibilização que sujeita o
emprego às conveniências dos empregadores, promove a instabilidade nos
postos de trabalho, bem como a redução constante, e a desregulação, que
exaustivamente eliminam obrigações legais por parte dos empresários e em
detrimento dos trabalhadores. Sachs identifica nesse aspecto a produção de
arquipélagos industriais de alta produtividade nas economias periféricas,
imersas em verdadeiros oceanos de atividades de produtividade baixa ou
muito baixa. Aponta que a maioria das pessoas tenta sobreviver nadando em
torno desses arquipélagos na esperança de salvação (Sachs, 2004, p. 20).
Do mesmo modo, é relevante considerar que essas diretrizes não são
invenções exclusivas da “mão invisível” do mercado, mas fazem parte do
pacote de medidas patrocinadas e defendidas pelos órgãos de financiamento
internacional que pautam as políticas neoliberais do Consenso de Washington.
Essas diretrizes geram grande capacidade de coerção econômica que, ao menor
movimento, coloca em xeque mate um rol de direitos adquiridos em épocas
anteriores, resultantes de prolongadas lutas sociais (Sachs, 2004, p. 53). A
percepção da perda de poder pelas classes subalternas resume a racionalidade
econômica e sedimenta os princípios da sociedade capitalista e seu modelo
extrativista de exploração, matriz do contexto de exclusão, cujos impactos
se materializam nas múltiplas externalidades no campo social, econômico,
ambiental, ético, cultural, jurídico, entre outros.

164
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

Para analisar o contexto do liberalismo e neoliberalismo decorrentes


deste pensamento centrado na economia, em detrimento das pessoas e do
meio ambiente, cabe a indagação nos termos propostos por David Harvey:
Por que ocorreu a virada neoliberal em tantos países? As motivações para esta
busca são claras. Mais que um plano de ações, oculto nas práticas da gestão
das políticas internacionais, permite afirmar hoje que se trata da fórmula
contundente de ação do capital internacional, suplantando os sistemas sociais,
econômicos e mesmo jurídicos locais, na consagração da onda denominada
globalização (Harvey, 2014, p. 19)
Os (des)arranjos das décadas de 70 e 80 representam mais que
um novo modelo econômico de liberação do mercado, um laboratório
de experimentação, suficiente para perceber que a própria liberalização
dos mercados exige algumas normas. Com o intuito de fixar tais normas
orientadoras da atuação do capital, surge o denominado Consenso de
Washington, segundo Harvey (2014, p. 23) um documento ortodoxo, que
buscou estabelecer alguns princípios comuns para países que, embora
considerando-se neoliberais tinham experiências muito distintas de idas
e vindas e mesmo caóticas na sua organização econômica. A partir deste
documento, muito importante para o liberalismo, os países passam a
perceber-se iguais e neoliberais. Especialmente no campo utópico do
discurso neoliberal e seus princípios e promessas sociais, a América Latina
tem sido testemunha de que em situações que conflitam com a necessidade
de resultados, e os resultados prometidos são visivelmente impossíveis, o
liberalismo tem demonstrado sua rápida opção por sustentar o poder das
elites, abandonando ou distorcendo seus princípios.
Os desejos de consolidar uma teoria neoliberal começam a tomar
forma no chamado documento de Mont Pelerin, que por um lado pretendia
retomar a agenda do liberalismo clássico, e por outro consolidar uma renovada
visão para a clássica compreensão de que a mão invisível do mercado seria o
instrumento mais adequado para atender aos desejos humanos da gula, da
ambição e a expectativa de riqueza. As bases da análise propunham a crise
moral da sociedade, na qual os valores centrais da civilização se acham em
perigo. E referindo-se aos regimes autoritários, de esquerda e de direita, veem
que os valores fundamentais da liberdade e da dignidade humanas estão se
perdendo. Entre as distintas iniciativas de dar visibilidade ao pensamento

165
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

liberal o grupo Rockefeller Center gravou em seu portal, numa pedra, a frase
“O valor supremo do indivíduo”. Na versão japonesa deste pensamento,
falava-se que “a sociedade não existe, apenas homens e mulheres”. Harvey,
entretanto, alerta para as diferenças e os riscos apresentados pelas diferenças
entre a teoria do neoliberalismo e o que ele chama de “pragmática concreta da
liberalização”, produzida no afã de fugir de todos os regramentos e interven-
cionismos postos pelo Estado em muitos países, no período após a Segunda
Guerra Mundial (Harvey, 2014, p. 28).
Outro fator fundamental para a caracterização do neoliberalismo é a
conversão dos ativos da economia em ações do mercado de valores, operando
fundamentalmente pelas bolsas de valores. Com o mercado controlado
amplamente pela economia americana, tal conversão centraliza facilmente
em grandes corporações transnacionais, alto poder financeiro, mediante o qual
se estabelecerão os apoios e as dependências dos países em desenvolvimento.
Este processo consolida dois aspectos, sendo um deles a concentração das
fortunas nas mãos de poucas pessoas e de empresas, e por outro lado, esvazia
de poder o Estado, com a total financeirização da economia. Tal processo
efetivamente retira o poder do Estado e permite ao capital financeiro circular
por países nos quais a produção se torna mais atrativa e rentável e ao mesmo
tempo favorece a pura especulação financeira. No âmbito interno, os países
neoliberais também experimentam do próprio veneno do liberalismo, que
na lógica de mercado, esvazia os investimentos na economia local, gerando
estagnação e desconfiança em relação à própria capacidade do mercado de
gerar desenvolvimento (Dowbor, 2017, p. 136).
Harvey afirma que “numa sociedade complexa o significado da
liberdade se torna tão contraditório e tão frágil quanto são estimulantes suas
injunções a agir”. Observa o referido autor que há dois tipos de liberdade,
um bom e outro ruim. Entre estes últimos, a liberdade de explorar o
semelhante, ou a liberdade de obter ganhos extraordinários sem prestar um
serviço comensurável à comunidade, a liberdade de impedir que as invenções
tecnológicas sejam utilizadas para o benefício público ou a liberdade de obter
lucros de calamidades públicas secretamente planejadas para vantagens
privadas; mas também se produziram liberdades que prezamos muito, como
a liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião,

166
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

liberdade de associação, liberdade de escolher o próprio emprego. Estas


liberdades, mesmo entre controvérsias, foram subproduto da mesma economia
que também é responsável pelas más liberdades (Harvey, 2014, p. 32).
A passagem da economia de mercado pode tornar-se o começo de uma
era de liberdade sem precedentes. Mais do que em qualquer outra época,
pode-se ampliar e tornar mais gerais a liberdade jurídica e a liberdade real; a
regulação e o controle podem obter liberdade não só para uns poucos, mas
para todos. A liberdade não como concessão de privilégios, maculada na fonte,
mas como direito prescritivo que ultrapassa as limitações da esfera pública e
alcança a organização do próprio tecido social. Assim, antigas liberdades e
antigos direitos cívicos se somarão ao fundo de novas liberdades geradas pelo
tempo livre e pela segurança que a sociedade industrial oferece a todos. Uma
sociedade tal tem condições de ser ao mesmo tempo justa e livre.
Neste campo é pertinente retomar os inúmeros textos que se
referem aos valores da liberdade como valor fundamental para a agenda do
neoliberalismo, todavia é importante diferenciar o valor moral do liberalismo
e a diferença semântica da terminologia original. O que é possível perceber
no contexto contemporâneo não é suficiente para erigir o discurso do
neoliberalismo, especialmente pela contradição de que os exemplos de
sucesso neoliberal frequentemente são identificáveis com a chamada liberdade
ruim (Harvey, 2014, p. 46).
Segundo a visão liberal pragmática, a interpretação de que o
planejamento e o controle são atacados como a negação da liberdade. O livre
empreendimento e a propriedade privada são declarados fundamentais para
a liberdade, afirmando que nenhuma sociedade com outros fundamentos
que não esses pode ser considerada livre, a liberdade que a regulação cria
é denunciada como não liberdade; a justiça, a liberdade e o bem estar que
oferece são reduzidos a camuflagem da escravidão (Harvey, 2014, p. 54).
Conforme Harvey, o neoliberalismo degenera a ideia de liberdade,
para garantir a “plenitude da liberdade para aqueles que não precisam de
melhoria em sua renda, seu tempo livre e sua segurança”, e se esvazia de
significados, revelando-se “um mero verniz para o povo que pode tentar em
vão usar seus direitos democráticos para proteger-se do poder daqueles que
detêm a propriedade”. Como este contexto não permite uma liberdade real
para todos, necessita manter-se como utopia e para isso, apoia-se na força,

167
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

na violência e no autoritarismo. Assim, o utopismo neoliberal está fadado à


frustração pelo autoritarismo ou mesmo pelo fascismo declarado. Perdem-se
as boas liberdades e as más liberdades assumem o controle. Tais características
permitem compreender por que o discurso neoliberal e a prática das violações
de liberdade pelo mundo, do autoritarismo, da violência, das armas, tem se
mostrado inerente às políticas neoliberais. Na prática tais violências excluem
do acesso aos avanços tecnológicos, da saúde, da medicina, dos lucros,
submetendo povos à miséria e à exposição a todo o risco das catástrofes sociais
e ambientais e por outro lado garantindo a liberdade e o aumento de poder
e de lucros aos grandes grupos econômicos. Mais ainda, escancara que este
modelo neoliberal garante liberdade apenas àqueles que não precisam lutar
por melhoria de renda, seu tempo livre e sua segurança.

2 BIOCENTRISMO E SUSTENTABILIDADE: POSSIBILIDADES PARA


TORNAR POSSÍVEL O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
A primeira grande conferência da Organização das Nações Unidas –
ONU, Estocolmo – 1972, institui as bases do conceito de sustentabilidade.
A significação da possibilidade de atender às necessidades das presentes
gerações, sem comprometer as possibilidades de que as futuras gerações
possam, igualmente, saciar suas necessidades, em condições não inferiores
àquelas garantidas às presentes gerações, requer uma análise ética intergera-
cional. Nesse sentido a sustentabilidade não pode nutrir-se apenas de uma
epistemologia antropocêntrica, mas exige uma compreensão sistêmica
transpassando os diferentes elementos que sustentam a vida humana e não
humana, suas interdependências e inseparabilidades.
A Conferência, atenta à necessidade de critérios e de princípios comuns
capazes de proporcionar aos povos do mundo inspiração e guia para preservar
e melhorar o meio ambiente, proclamou em seu preâmbulo, item de número
5, que o crescimento natural da população coloca continuamente problemas
relativos à preservação do meio ambiente, e é necessário adotar as normas e
medidas apropriadas para enfrentar esses problemas. De todas as coisas do
mundo, os seres humanos são a mais valiosa. Eles são os que promovem o
progresso social, criam riqueza social, desenvolvem a ciência e a tecnologia
e, com seu árduo trabalho, transformam continuamente o meio ambiente

168
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

humano. Com o progresso social e os avanços da produção, da ciência e da


tecnologia, a capacidade do homem de melhorar o meio ambiente aumenta
a cada dia que passa.
Afirma o referido documento que os países em desenvolvimento
devem dirigir seus esforços tendo presente suas prioridades e a necessidade
de salvaguardar e melhorar o meio ambiente. Com o mesmo fim, os países
industrializados devem esforçar-se para reduzir a distância que os separa
dos países em desenvolvimento. Nos países industrializados, os problemas
ambientais estão geralmente relacionados com a industrialização e o desenvol-
vimento tecnológico. Já no primeiro princípio sugere que o ser humano possa
desfrutar de um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida
digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar
o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. Referido princípio
é contundente ao afirmar que as políticas que promovem ou perpetuam o
apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras
formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser
eliminadas. Tal quadro de denúncia e de exortação às mudanças persiste,
motivos para retomar uma análise crítica da racionalidade econômica e
construir aproximações com elementos da racionalidade biocêntrica (Leff,
1998) e as possibilidades do decrescimento como estratégias fundamentais
para a sustentabilidade (Latouche, 2012).
Interrogar e problematizar os elementos constitutivos das bases
conceituais do modelo hegemônico de desenvolvimento como processo
linear, ininterrupto, associado à dominação da natureza e ao extrativismo,
promotor de acúmulo de riquezas, produção de mercadorias alimentadoras da
sociedade de consumo e da maximização de lucros é hoje tarefa fundamental.
Para tais objetivos é necessário olhar criticamente para os paradoxos do
binômio crescimento/decrescimento mediante uma perspectiva crítica e
interdisciplinar buscando questionar a fetichização da técnica, da tecnologia,
da biotecnologia e da inovação, como campos de conhecimento e ação
como bases estruturantes do processo de industrialização, promotores do
extrativismo ilimitado e dos benefícios concentrados, contrapondo com a
perspectiva da solidariedade, da sustentabilidade e do bem-estar para todos,
como novas experiências que a humanidade pode adotar, ressignificando o
desenvolvimento e construindo sociedades sustentáveis.

169
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

A conscientização diante da crise ambiental busca formas de promover


o desenvolvimento sem destruir o meio ambiente e nem comprometer o
futuro, sacrificando a população e seu direto de desfrutar do meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Observa-se no mundo dos negócios uma elevação
da economia, aceleração do comércio e uma relativa elevação da qualidade
de vida das pessoas. Tal preocupação fundamenta o termo sustentabilidade,
entrelaçando elementos da biodiversidade, da economia com solidariedade
como valores morais para uma sociedade sustentável.
Novos valores para reposicionar conceitos e condutas que conduzem
para a qualidade de vida, com a sensibilidade de um olhar humano e atento às
necessidades que o meio social e ambiental requerem. Enrique Leff afirma que
o conceito de qualidade de vida está mobilizando a sociedade civil
para promover novos direitos dos trabalhadores e da cidadania em
geral, em torno da saúde no trabalho, da saúde reprodutiva e de uma
vida sadia e produtiva da população. A qualidade de vida não é a
quantidade de vida. Isto supõe uma dimensão ética na valorização e
sentido da existência, que se reflete em controvérsia que vão desde
os direitos à vida até a autogestão da eutanásia. Na qualidade de vida
articulam-se a sobrevivência com as necessidades de emancipação e a
construção de novas utopias; o real com o simbólico; o objetivo com
o subjetivo (2011, p. 325-326).

A qualidade de vida não se mede por quantidades e sim por meios


qualitativos. A humanidade clama por ajuda, por novos olhares que tragam
sensibilidade de direitos humanos, em que se possa pensar em sobrevivência
e vida digna. Superar paradigmas econômicos e tecnológicos exige outros
sentimentos, pensamentos e condutas, comprometidos com a vida saudável
e digna que a humanidade deve ter para garantir sua existência, que vai
além de aspectos ambientais, mas que também evidenciam a importância de
resgatar as práticas em que exista a valorização do trabalho humano como fator
existencial, vez que o desenvolvimento econômico e tecnológico substitui o
trabalho das pessoas por máquinas, em que “a técnica, sabemos bem, não é
neutra: é parte do processo de valorização do capital, o que torna nociva em
vários aspectos e desenvolve-se em função das demandas de acumulação”
(Acosta, 2016, p. 37). Nesse sentido, os direitos humanos e dignidade estão
sendo desidratados e ofuscados, demonstrando que:

170
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

Os seres humanos, ao que parece, nos transformamos em simples


ferramentas para as máquinas, quando a relação deveria ser inversa.
Para que exista outro tipo de técnica, portanto, é necessário
transformar as condições de sua produção social. A busca de novas
formas de vida implica revitalizar a discussão política, ofuscada pela
visão economicista sobre os fins e os meios. Ao endeusar a atividade
econômica e, particularmente, o mercado, abandonou-se muitos
instrumentos não econômicos indispensáveis para melhorar as
condições de vida das pessoas (Acosta, 2016, p. 37).

Um mundo que valoriza as coisas em detrimento das pessoas, cujos


valores não se identificam com princípios de direitos humanos, deve ser
revisto. O desenvolvimento deve abranger inúmeros aspectos importantes,
práticas dominadoras de ideologias econômicas e tecnológicas dispensam
aquela prática que exige o envolvimento das famílias, dos grupos sociais, dos
trabalhadores que dignificam sua capacidade em produzir alimentos, cuidar
e trazer o necessário que se mostra essencial no meio em que vivem. São
fundamentais outras relações e outras técnicas, que possibilitem um desenvol-
vimento com respeito a vida harmoniosa, saudável e digna. A sensibilidade
mais profunda de cada ser humano deve perceber que é inaceitável que um
grupo reduzido da população goze de um estilo de vida confortável enquanto
o restante, a maioria, sofre para sustentar a opulência de um segmento
privilegiado e opressor. Esta é a realidade do regime de desenvolvimento
atual, uma realidade própria do sistema capitalista (Acosta, 2016, p. 198).
O mundo requer ousadia e um pensamento que reconheça direitos
humanos e inclusão social entrelaçado com a perspectiva ecológica.
Rever concepções de desenvolvimento é também pensar fundamentos e
possibilidades ao bem viver, no espaço no qual as pessoas estão inseridas,
como uma análise da realidade social, com o reconhecimento de valores,
construindo novos saberes capazes de promover qualidade de vida para todos,
deixando implícitas a igualdade e a solidariedade como valores necessários
como fatores das mudanças sonhadas.
Uma concepção biocêntrica permite recolocar a natureza, inclusive a
humana, no centro das preocupações, rompendo com o paradigma dominante
de vertente eurocêntrica e capitalista, que considera o ser humano como
superior, podendo explorar os recursos naturais como assim desejar. Nesse
horizonte, o que as populações tradicionais têm a ensinar é que “el aire

171
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

no puede ser mercadería, el água no puede ser mercadería. Una parte de


eso llamado naturaleza no puede ser mercadería, por qué no puede ser
mercadería, porque entonces no existiríamos” (Quijano, 2010, p. 14).
Conforme já esboçado, o bem viver, “buen vivir”, emerge como
possibilidade, ancorada nas culturas comunitárias e a partir da positivação
nos novos constitucionalismos, trazendo à baila essa concepção, a qual é
fundamentada em tradições ancestrais, e que foi desprezada desde o processo
de colonização, o que não somente encobriu sujeitos, mas encobriu a natureza
como um todo. A perspectiva biocêntrica resgata tais elementos. Diante da
impossibilidade de ruptura entre humano e natureza, reafirma-se a conexão
entre o humano e sua interdependência com todas as formas de vida.
A garantia do direito ao ambiente equilibrado e saudável, como direito
fundamental para presentes e futuras gerações, traduz os conteúdos expressos
no primeiro conceito de desenvolvimento sustentável, numa referência
clara que alertava para a incapacidade do planeta Terra de dar suporte ao
crescimento infinito, num contexto de planeta finito (ONU, 1988). Nos termos
daquele período, alertava-se para a importância de adotar crescimento zero
para garantir meio ambiente saudável às futuras gerações (ONU, 1988, p.
12-14).
O programa da sociedade de crescimento não é outro senão o da
modernidade, ou seja, a maior felicidade para o maior número, ainda que
com a defesa da liberdade e a possibilidade de melhorar as condições de vida
e bem-estar pessoal, numa perspectiva eminentemente individual. Emerge a
ideologia da felicidade assentada no crescimento do consumo de bem-estar,
criando o terreno favorável para a eclosão de novas necessidades (Lipovetsky,
2006, p. 262).
A essência da sustentabilidade no contexto atual constitui-se como
um princípio amplo, impulsionador de um processo de transformação no
qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação
do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam
e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades
e aspirações humanas no presente e no futuro, e neste sentido que são
propostos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS –
compondo a Agenda 2030, como agenda global a ser efetivada mundialmente
(Ipea, 2018, p. 13).

172
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

Tal conceito de sustentabilidade aponta para uma bela utopia que,


se não irá se realizar plenamente, poderá, pelo menos, corrigir os rumos
socioeconômicos e ambientais da humanidade. O sentido difuso dos
documentos internacionais, indicando atitudes, por vezes vacilantes, diante
dos grandes impasses que o tema coloca para o sistema econômico vigente e
para os países, tanto os desenvolvidos quanto os em desenvolvimento, reflete
o profundo grau de paradoxo entre a ideia de desenvolvimento vigente e as
perspectivas de decrescimento.
Tomando o atual contexto de crise socioambiental global e local, seus
impactos do passado e presente, pode-se enfrentar as diferentes análises que
apontam, dia após dia com mais clareza, a contribuição humana para tal crise,
indicando um futuro de colapso, caso não ocorra uma profunda mudança
paradigmática e epistemológica.
Quando se trata de prospecção o mesmo autor retoma dimensão da
“tradição libertária”, cujas propostas se fundamentam na solidariedade e na
igualdade, presentes nas lutas sociais e na defesa da auto-organização das
sociedades, incluindo todos os grupos sociais, da autogestão, da democracia
e da ação direta, com destaque para o apoio mútuo. Caminhos que podem
significar a esperança diante da barbárie produzida pela lógica do mercado.
O princípio da ubiquidade oriundo do Direito Ambiental internacional
marca a ressignificação necessária do ambiente, porquanto não cabe a
redução do direito ao meio ambiente saudável aos sujeitos da atualidade,
ou ao tempo presente, tampouco se restringe aos limites geográficos e
políticos estabelecidos. Une, assim, sujeitos, tempos e territórios, tamanha a
profundidade da sustentabilidade tomada como princípio de sustentação do
presente e do futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta de análise desenvolvida neste ensaio buscou colocar alguns
postulados inerentes ao processo de construção do conhecimento, portanto
postulados teóricos e metodológicos, bem como aspectos substanciais e
fundamentais para uma nova racionalidade, de superação da visão desenvol-
vimentista e extrativista vigente, para uma nova postura ética e prática, em
sintonia com a sustentabilidade. A efetivação da sustentabilidade requer
nova racionalidade em perspectiva biocêntrica e de estilo de vida distinto do

173
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

atual, com mudanças de visão de mundo e de consumo. Requer mudança


comportamental que somente acontecerá como resultante da redefinição de
valores e informações, processo possível na construção cultural que o ser
humano desenvolve a cada dia. A consolidação de valores alcançará dimensões
éticas da cultura e do viver humano. O desejo de que o espaço seja adequado
à vida da coletividade, assegurando não apenas a saciedade, mas sobretudo
a felicidade, concebida como vida plena de significado, em que para além
do sobreviver e garantir a satisfação das necessidades de ordem biológica,
somos capazes de agir, pensar, amar, conviver, fazer escolhas e participar
politicamente. Tal perspectiva pode refazer a esperança e o empenho por
pactos e contratos entre as distintas partes do mundo, em verdadeiro pacto
por sustentabilidade.
Valorizar tais condutas requer um cidadão ressignificado, buscando
suplantar a racionalidade econômica, individualista e de consumo, para um
conjunto de saberes do bem viver, da solidariedade da erotização pela natureza
e pelo outro, em busca de uma racionalidade ambiental com perspectiva
biocêntrica. Quem sabe essa racionalidade seja capaz de reconstruir a tradição
perdida e alcançar a modernidade ainda inacessível, de efetiva construção
da interculturalidade, da solidariedade e de compromissos intergeracionais.
Tais mudanças não viriam para conformar outro modelo encapsulado de
conhecimentos, mas um processo permanente de diversidade e de construção
de uma inteligência coletiva para viver bem.
A crise multicausal do presente constitui-se em crise também
civilizacional, requer mudanças profundas, capazes de construir laços
de convivialidade como prioridade, tornando efetiva e prática, política e
econômica, estrutural e individual, capaz de caracterizar novos rumos para o
desenvolvimento, a ciência e a técnica, reposicionadas e ressignificadas como
meio e não como fim. Uma perspectiva no sentido do desenvolvimento, não
em apequenar o ser humano e suas possibilidades de realização, porém que
tal condição não seja a custa do sistema mundo e ao sacrifício dos sistemas
vivos. Em tal perspectiva de princípios, pode a sustentabilidade ser o termo
de referência e de sustentação do presente e do futuro.
Diante do quadro de crises complexas, as alternativas apontam para
e presença do ser humano, dando nova conotação às soluções possíveis de
transição ecossocial, revendo processos que estão a abolir a ação e a vida

174
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

humana, priorizando o capital ao humano, o consumo à preservação da


biodiversidade e processos burocráticos em detrimento das alternativas de
convivência.
A descrença na ação humana, especialmente na perspectiva
extrativista na relação com a natureza, requer novos valores, novos saberes,
outros movimentos para alimentar novos horizontes. A sustentabilidade se
fortalece como conceito articulador do futuro desejado, como princípio e
fundamento constitucional que transcende dimensões ecológicas para alcançar
a perspectiva de democratizar o acesso ao desenvolvimento e bem-estar,
que resulta de valores e de sujeitos sociais, éticos, econômicos, ambientais,
jurídicos, políticos e civilizacionais.

REFERÊNCIAS
ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
Tradução Tadeu Breda. São Paulo. Editora Elefante, 2016.
CAPELLA, Juan Ramón. Fruta prohibida: una aproximación histórico-teorética al
estudio del derecho y del estado. Madrid: Trotta, 1997.
CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo:
Cultrix, 2011.
DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia
Literária, 2017.
FARIA, José Eduardo (org.). Direito e globalização econômica: implicações e
perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1996.
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. Tradução Adail Sobral
e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loiola, 2014.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Agenda 2030 – ODS – Metas
nacionais dos objetivos de desenvolvimento sustentável. São Paulo: Ipea, 2018.
LATOUCHE, Serge. O desafio do decrescimento. Tradução Antônio Viegas. Lisboa:
Instituto Piaget; Economia e Política, 2012.
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade,
poder. Tradução Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 1998.
LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do
hiperconsumo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2006.

175
NOVAS EPISTEMOLOGIAS PARA UM FUTURO COM SUSTENTABILIDADE
E A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Daniel Rubens Cenci

ONU. Organização das Nações Unidas. Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: FGV, 1988.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do sul. São
Paulo: Cortez, 2010. p. 84-130.
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento, includente, sustentável e sustentado. Rio de
Janeiro: Garamond, 2004.

176
A CIDADE :
Território de Confrontação Ativa
e de Concretização do Direito Humano à Cidade

Elenise Felzke Schonardie

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao longo do tempo, muito já se tem produzido a respeito da origem e
funções da cidade. As referências históricas indicam sua existência há mais de
7 mil anos. Nesse sentido, podemos afirmar que a cidade é uma das criações
humanas mais bem-sucedidas. E cumpre indagarmos a respeito de seu
protagonismo no processo de afirmação dos direitos humanos na contempora-
neidade, na medida em que as cidades, em especial as maiores, têm vivenciado
um contínuo e crescente processo de adensamento populacional, tanto em
escala nacional quanto mundial.1
Há uma expressão alemã, utilizada desde o fim da Idade Média, que
pode explicar, em parte, o fascínio que a cidade exerce sobre as pessoas.
“Stadluft macht frei”, ou seja, “o ar da cidade liberta”. A expressão ainda
se aplica aos nossos dias, na medida em que o contingente populacional
urbano tem aumentado consideravelmente nessas três primeiras décadas do
século, muitos em busca de uma pretensa liberdade que somente a cidade
é capaz de oferecer. Esse aumento da população urbana ocorre por vários
fatores, mas em específico destacaremos as migrações do meio rural para
o urbano, das pequenas comunidades para as grandes cidades e regiões
metropolitanas e o deslocamento de sujeitos economicamente desfavorecidos

1
Segundo a Organização das Nações Unidas estima-se que 70% da população mundial viverá em cidades
até 2050 (ONU, 2023a). A estimativa do IBGE para 2022 era de 87% da população brasileira vivendo
em cidades.

177
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

de diferentes nações (em desenvolvimento, em situação de conflito armado


ou em situação de emergência climática) em busca de melhores condições
de vida nas cidades.
Considerando a cidade como local estratégico para a concretização dos
direitos humanos, o presente texto visa a analisar o direito à cidade como um
direito humano, a partir da crescente presença de diferentes grupos sociais
sobre um mesmo território. A questão que orienta o estudo está centrada na
seguinte indagação: A cidade como território de expressão da diversidade
social e cultural pode ser o cenário para a afirmação de direitos humanos,
em especial dos estratos socialmente desfavorecidos? A hipótese inicialmente
delineada para o estudo é afirmativa, considerando as migrações internas e
externas que se intensificaram nas últimas décadas motivadas pela busca por
melhores condições de vida.
Para confirmar a hipótese levantada o texto foi estruturado em três
seções que buscam demonstrar teoricamente a viabilidade das proposições
trazidas para reflexão. A primeira seção ocupa-se da análise da cidade como
território no qual estão presentes diferentes estratos socais e culturais
que, embora apresentem um certo nível de coesão social, têm diferentes
reivindicações em razão das desigualdades sociais que os separam. A segunda
seção dedica-se à análise do direito à cidade como conceito e movimento
em prol dos direitos humanos. E, por fim a terceira seção aborda o direito à
cidade como importante instrumento de efetivação dos direitos humanos no
século 21.

1 A CIDADE COMO TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA


A cidade como obra coletiva é o lugar da convivência de diferentes
sujeitos que pertencem a culturas e estratos sociais diversos que estão
localizados em um mesmo território. Aliás, como refere Richard Sennett
(2018), a cidade só existe onde há heterogeneidade social.
As cidades das sociedades ocidentais têm apresentado, cada vez
mais, o desafio de aprender a conviver com pessoas de diferentes origens
(cultural, social e econômica) em razão do fenômeno da globalização. Sim,
a presença de imigrantes estrangeiros é cada vez mais frequente em nossas
cidades e, paralelamente a isto, a migração interna do campo para a cidade
permanece intensa. O crescimento demográfico das grandes cidades e regiões

178
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

metropolitanas brasileiras, porém, tem ocorrido (desde seu princípio) com


certo descompasso entre a infraestrutura básica necessária nessas cidades e
regiões para acolher uma população cada vez maior que acaba por alocar-se
em áreas periféricas não contempladas pela infraestrutura urbana e os serviços
urbanos básicos.
Essa espécie de êxodo para as regiões mais urbanizadas tem produzido
uma situação contrafactual, na medida em que o anseio por melhores
condições de vida nem sempre ocorre de modo direto, automático ou possível.
Para David Harvey (2014, p. 46), “a qualidade de vida urbana tornou-se uma
mercadoria para os que têm dinheiro, como aconteceu com a própria cidade
em um mundo no qual o consumismo, o turismo, as atividades culturais
[...] tornaram-se aspectos fundamentais da economia política urbana [...]”.
O sistema econômico capitalista em sua versão neoliberal tem transformado
nossas cidades em territórios cada vez mais divididos, fragmentados e
propensos a conflitos.
Por óbvio, nem todos as pessoas que se deslocaram de seus espaços
de origem para as cidades encontram condições dignas de vida e de trabalho.
Aliás, um contingente considerável de sujeitos desfavorecidos (uma espécie
de nova classe de pobres urbanos) jamais encontrou nas cidades um posto
formal e legal de trabalho e de morada. Esses são excluídos do mercado e da
vida na cidade legal, sobrevivem com a violação de direitos entendidos como
fundamentais para a dignidade humana.
Nesse aspecto a urbanização, ou melhor, o novo urbanismo (Harvey,
2014), representa de um lado a produção de espaços sociais, territoriais e
culturais privilegiados para uma pequena parcela da população e, de outro,
uma aglomeração desordenada do espaço, desprovida de riquezas e de
infraestrutura básica à qual está submetida grande parcela da população. São
estas profundas desigualdades sociais, espaciais, econômicas e culturais que
fazem da pobreza, no caso brasileiro, não apenas o modelo socioeconômico,
mas também o espacial predominante no país (Santos, 2009).
Como resposta a essas diferentes dinâmicas e reposicionamentos
oriundos da globalização econômica em sua versão neoliberal, a cidade pode
se constituir como um local de confrontação ativa, para o movimento ou
ação reivindicativa dos sujeitos desfavorecidos (pobres urbanos, como as
mães solteiras, afrodescendentes, imigrantes latinos e asiáticos que não se

179
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

enquadram no estereótipo do homem branco europeu ou norte-americano).


Essa nova classe de desfavorecidos urbanos compreende uma mistura de
indivíduos, categorias populacionais e organizações. Essas pessoas constituem
uma grande maioria nas cidades e não têm mobilidade, pois não fazem parte
de uma classe transnacional viajante ou da nova sociedade civil global de
elites transnacionais, são sujeitos invisibilizados pelo grande capital global,
mas contraditoriamente participam de algumas formas da globalidade como
mão de obra de baixa qualificação (Sassen, 2010).
Esses sujeitos desfavorecidos são os novos usuários da cidade e,
mesmo estando em situação de desvantagem, fazem do espaço urbano não
apenas um local de passagem, mas de formação de novas reivindicações.
Isto porque a reprodução do capital passa por processos de urbanização de
muitas maneiras (Harvey, 2014), seja pela dominação da classe detentora do
capital (transnacional) dos aparelhos de Estado, seja pela dominação sobre
populações inteiras (por meio do estilo de vida, capacidade de trabalho,
valores culturais e políticos e visão de mundo). E o nível de controle da
dominação não é absoluto, por isso a cidade e o processo urbano que a
produz constituem importantes locais de luta política e social em prol dos
direitos humanos. Também porque na análise de Harvey (2014) os sujeitos
desfavorecidos (trabalhadores informais ou de baixa qualificação) que criam
um cotidiano comunitário interessante e estimulante acabam por perdê-lo
para as práticas predatórias dos agentes imobiliários, dos financistas e
consumidores de classe alta, que carecem de qualquer imaginação social
criadora. Por esses motivos, a reivindicação de direitos que integram o direito
à cidade é imperativa.

2 O DIREITO À CIDADE: COMO MOVIMENTO,


REVOLUÇÃO E CONCEITO JURÍDICO LEGAL
A cidade é espaço e política. Henri Lefebvre (2016), ao teorizar a
respeito do espaço, lembra-nos que há vários métodos e distintas abordagens
possíveis. No que concerne ao espaço social, refere que é um produto da
sociedade, constatável e dependente da descrição empírica antes de qualquer
teorização. O espaço como mediação não seria um ponto de partida, nem um
ponto de chegada, mas um tal espaço instrumental que permite tanto impor
uma certa coesão quanto dissimular as contradições da realidade. Do mesmo

180
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

modo, o espaço pode ser compreendido como algo essencialmente ligado à


reprodução das relações sociais de produção. E, desse modo, o espaço seria
“uma espécie de esquema num sentido dinâmico comum às atividades diversas,
aos trabalhos divididos, à cotidianidade, às artes, aos espaços efetuados pelos
arquitetos e pelos urbanistas. Seria uma relação e um suporte de inerências
na dissociação, de inclusão na separação” (Lefebvre, 2016, p. 47). E, nesse
espaço ao mesmo tempo abstrato e concreto, homogêneo e desarticulado que
se deveria se reencontrar nas novas cidades. Para o autor, “a cidade é também
e sobretudo uma obra, e a análise das relações entre o homem e as obras nas
e pelas quais realiza sua natureza” (Lefebvre, 2016, p. 12).
Dito isso, é possível avançar nossa análise, lembrando que a cidade
se forma em razão da presença da heterogeneidade (de sujeitos, de ideias,
de culturas). E tal desencadeia novas e complexas relações sociais que irão
produzir os mais diversos efeitos, fazendo-se necessárias novas reflexões em
busca de alternativas para esse complexo espaço que se denominou de urbano
e que sofre a ação do tempo.
Com a intensificação da densidade populacional nas cidades, há uma
nova realidade social e espacial, na qual emergem novos direitos que abrangem
a organização e forma de ocupação do território urbano e, principalmente, a
qualidade de vida das pessoas que passaram a povoá-lo. Na intenção de regular
esse local de múltiplas e dinâmicas complexidades, no qual a vida das pessoas
se desenvolve, surge o direito à cidade.
O direito à cidade é um movimento em direção à constituição de uma
democracia concreta, que implica “a constituição ou reconstituição de uma
unidade espaçotemporal” (Lefebvre, 2016, p. 13). O direito à cidade é muito
mais do que juridicamente encarar problemáticas urbanas e ambientais. Para
além das relações jurídicas do espaço urbano, o direito à cidade é tangenciado
por outras áreas do conhecimento, como a geografia, a sociologia, a economia,
a arquitetura, o urbanismo e a biologia, por exemplo. E isso exige um olhar
multidisciplinar sobre esse espaço que é social, político e cultural, que
denominamos cidade.
Assim, a cidade torna-se, do ponto de vista teórico, uma categoria cujo
conceito e significado faz-se necessário explicitar. Pode-se adiantar, contudo,
que a cidade é uma das estruturas mais complexas criada pelos seres humanos.
Entre os diferentes ângulos sobre os quais pode-se abordar sua conceituação,

181
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

podemos referir que a cidade é um conjunto denso e definido de edificações,


que segundo Raquel Rolnik (2004, p. 13) “exerce uma predominância sobre
o campo, na medida em que a garantia de domínio sobre esse espaço está na
apropriação material e ritual do território”.
A cidade é uma criação que convida as pessoas, mas é a criação de
uma outra natureza, artificial, sobre a natureza primordial e unitária que
era concebida como obra divina. A cidade também pode ser definida como
escrita, na medida em que se constitui de uma nova relação homem/natureza,
mediada por uma estrutura racional e abstrata. Essa nova relação necessita
de memorização e a escrita proporciona que as obras, entre elas a própria
cidade vista, ela mesma, como obra, não se perca no tempo e marque a história
(Rolnik, 2004).
Concomitantemente, a cidade pode ser compreendida como política e
como mercado. Como política na medida em que, ao mesmo tempo, organiza
o território e desenvolve relações políticas que dirigem os fluxos (movimentos
e percursos) da aglomeração densa de sujeitos. E, como mercado, possibilita
a troca e colaboração entre esses atores, potencializando sua capacidade
produtiva, na medida em que se trata de um espaço no qual há concentração
e aglomeração de indivíduos. Se o conjunto de indivíduos for entendido como
massa, podemos entender que os movimentos e percursos são permanentes e,
por essa razão, faz-se necessária a regulação de fluxos no cotidiano das cidades.
Esta regulação é realizada pelo poder urbano que nasce da necessidade de
organização da vida pública na cidade, autoridade político-administrativa que
é encarregada da gestão da cidade. Nesse sentido, é possível perceber a cidade
como local de participação dos cidadãos da vida pública.
Pragmaticamente, a cidade é uma mediação entre as mediações, a
qual contém a ordem (instituições) e é, também, o local onde sustentam-se
relações de produção e propriedade, ou melhor, é o local de sua produção
(Rolnik, 2004). Nas cidades, contudo, observamos a constituição de territórios
separados para cada grupo social, a segregação, oriunda da concentração
do capital e de suas consequências, as desigualdades sociais, espaciais e
econômicas como resultado e efeito do modelo de produção e reprodução
do capital. E, nesse aspecto Harvey (2014) menciona a existência de uma
ligação íntima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização,
fazendo com que o direito à cidade venha cair nas mãos de interesses privados

182
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

ou predominantemente privados. “Reivindicar o direito à cidade no sentido


que aqui proponho equivale a reivindicar algum tipo de poder configurador
sobre os processos de urbanização, sobre o modo como as cidades são feitas e
refeitas, e pressupõe fazê-lo de maneira radical e fundamental” (Harvey, 2014,
p. 30). Na visão do autor, o direito à cidade, tal como se expressa, encontra-se
confinado, na maior parte dos casos, nas mãos de uma pequena elite política
e econômica (globalizada e transnacionalizada) com condições de moldar a
cidade segundo suas necessidades particulares e financeiras.
Não obstante, na sociedade urbana brasileira o direito à cidade
corresponde à efetivação do direito à dignidade humana dos sujeitos que
integram a classe de desfavorecidos urbanos mencionados anteriormente e
encontra-se imbricada a uma série de outros direitos de cunho social, como
o direito à moradia, à educação, à saúde, ao lazer, ao trabalho, ao equilíbrio
entre o ambiente natural e artificial,2 à preservação do patrimônio cultural
e acesso aos serviços públicos, por exemplo, o saneamento básico, fruto de
reivindicações coletivas urbanas daqueles sujeitos que não conseguiam, e
ainda não conseguem, obter acesso à terra urbana e a infraestrutura urbana
básica.
Dessa maneira, direito à cidade surge no Brasil envolto no conjunto das
propostas defendidas por meio da emenda popular de reforma urbana,3 que
influenciou a Assembleia Constituinte e, culminou no texto da Constituição
Federal de 1988, nos artigos 182 e 183, que instituíram as bases da política
urbana brasileira. A regulamentação dos referidos dispositivos constitucionais,
todavia, demorou 13 anos para ocorrer. No ano de 2001 foi publicada a Lei nº
10.257, que criou o Estatuto da Cidade, instrumento legislativo responsável
pelo regulamento das diretrizes para a política urbana brasileira, redefinindo
os limites do exercício do direito à propriedade, visando ao usufruto equitativo
das cidades pelos citadinos e estabelecendo princípios de sustentabilidade e
justiça social que foram reafirmados pela Carta Mundial pelo Direito à Cidade,

2
Meio ambiente artificial corresponde ao ambiente construído: integra os edifícios, equipamentos
urbanos, comunitários, arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca e instalação científica similar.
3
Essa emenda popular de reforma urbana foi apresentada ao projeto de Constituição e foi subscrita por
131.000 eleitores, sendo apresentada pelo Articulação Nacional do Solo Urbano – Ansur – Movimento
de Defesa do Favelado – MDF – Federação Nacional dos Arquitetos – FNA – entre outras organizações
da sociedade civil. (Saule Jr., 2007, p. 32).

183
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

aprovada no 3º Fórum Social Mundial de 2005, na cidade de Porto Alegre,


capital do Estado do Rio Grande do Sul. Assim, a partir da edição do Estatuto
da Cidade, o direito à cidade tornou-se um referencial legal e institucional
para a realidade das cidades brasileiras.
A Carta da Cidades, em sua Parte I, artigo 1º, refere que o direito à
cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos, incluindo, portanto, os direitos civis, políticos, sociais,
econômicos, ambientais e culturais, todos já regulamentos em documentos
internacionais e também em âmbito jurídico interno brasileiro. O exercício
desses direitos, via de regra, opera-se nos espaços urbanos e rurais que
integram o território das cidades.
O direito à cidade inclui o “direito ao desenvolvimento, a um meio
ambiente sadio, ao desfrute e preservação dos recursos naturais, à participação
no planejamento e gestão urbanos e à herança histórica e cultural” (Saule Jr.,
2007, p. 68). A cidade é um espaço coletivo culturalmente rico e diversificado
que pertence a todos os seus habitantes, ou seja, a todos os cidadãos que nela
habitam de forma transitória ou permanente, e deve ser um local de realização
dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
É oportuno mencionar que as reflexões sobre o espaço social urbano
devem sempre partir da realidade local, porquanto o espaço público deve
ser referência para a construção e efetivação das políticas urbanas locais,
considerando-se o tempo e os diferentes atores sociais que o integram. Em
relação à função social das cidades, assinalamos a justiça social e sustenta-
bilidade ambiental desse meio construído – segunda natureza – que nos
leva à verificação dos inúmeros conflitos que envolvem e fazem parte da vida
urbana, como o acesso à moradia, o desemprego, acesso à energia e água
potável, à falta ou precariedade de infraestrutura básica e à mobilidade urbana
para grande parcela da população que é empurrada para as áreas periféricas,
nas quais a infraestrutura e os serviços básicos urbanos ou inexistem ou são
insuficientes para atender à população.
A ausência de condições ideais para a realização dos direitos humanos,
a desigualdade social e a expansão da pobreza tornam ainda mais conflitivos
os espaços das cidades. Apesar de o processo de urbanização no Brasil ter
ocorrido de forma tardia, no terceiro quartel do século 20 (Santos, 2009),
o mesmo deu-se em bases de desigualdades socioeconômicas e espaciais

184
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

muito contrastantes que ainda persistem no cenário das nossas cidades. Isso
torna o processo de urbanização ainda mais complexo e dinâmico, muitas
vezes à margem de qualquer forma de controle por parte das autoridades
político-administrativas. Nesse cenário o direito à cidade surge não apenas
como reivindicação, mas como revolução. Uma revolução no nosso modo
de pensar e construir a cidade, não como mercadoria, mas como local para
a concretização de direitos. Neste sentido, pensar a cidade é desafiar-se em
ambientes dinâmicos e mutáveis, sendo a própria cidade, considerada como
um todo, um ambiente objeto de múltiplas e complexas inquirições.

3 O DIREITO À CIDADE COMO INSTRUMENTO


PARA A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
No aspecto formal pode-se afirmar que o país tem observado
os conteúdos dos documentos internacionais de proteção dos direitos
humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966,4 a
Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969,5 o Protocolo Adicional
à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1988. 6 A adoção desses documentos
internacionais, no entanto, não se mostrou suficiente para a redução das
desigualdades e melhoria das condições de vida da grande maioria da
população mundial.
No afã de melhoria das condições de vida das populações urbanas
a comunidade internacional cria na década de 90 a Agenda 21, um plano
de ação analítico com cerca de 500 recomendações para a realização do
desenvolvimento sustentável no século 21 a ser efetivado nas cidades, por
meio de comitês locais que deveriam auxiliar a administração pública local no

4
Adotado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 16/12/1966,
mas ratificado pelo Brasil somente em 24/1/1992.
5
Adotada e aberta para assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos,
em San José da Costa Rica, em 22/11/1969, mas ratificada pelo Brasil em 25/9/1992.
6
Adotado pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 17/11/1988 e ratificada
pelo Brasil em 21/8/1996, conhecido como Pacto de San Salvador.

185
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

direcionamento de ações e políticas públicas locais. Infelizmente, nem todos


os Estados-membros e suas respectivas cidades observaram as recomendações,
pelos mais diversos motivos.
Mais recentemente, na segunda década do século 21, a comunidade
internacional, por intermédio da Organização das Nações Unidas (ONU),
estabelece em razão do incremento das desigualdades e da emergência
climática novo plano de ação local, a Agenda 2030. Esta nova agenda estabelece
“17 objetivos ambiciosos e interconectados que abordam os principais desafios
de desenvolvimento enfrentados por pessoas no Brasil e no mundo” (ONU,
2023b). Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) são um
apelo global à atuação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente
e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar
de paz e de prosperidade (ONU, 2023b). Entre os 17 ODSs propostos, o
de nº 11 é o que se refere às cidades, pois objetiva “Tornar as cidades e os
assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis” (ONU,
2023b). Em outras palavras, visa a proporcionar uma vida digna em cidades
sustentáveis, não fragmentadas, divididas ou propensas ao conflito. A realidade
socioeconômica e espacial brasileira, no entanto, mostra as distâncias entre
o modelo ideal de uma cidade legal e a vida concreta de significativa parcela
da população e suas fragilidades e violações de direitos decorrentes de um
processo de urbanização tardio marcado pelas desigualdades sociais, espaciais,
econômicas e culturais.
Nesse cenário, a complexidade das demandas que surgem nos
contextos urbanos brasileiros é ampla, observando-se que sua resolução
pode ter início pela adoção de ações com enfoque multidisciplinar e políticas
administrativas voltadas para o atendimento das necessidades mais emergentes
e urgentes dessa população que se encontra à margem das cidades legais,
de acordo com as proposições do ODS nº 17. A inclusão do contingente
populacional excluído das condições básicas de vida, como moradia digna,
saneamento, trabalho e mobilidade urbana, capazes de garantir-lhes a
dignidade nas periferias das cidades brasileiras, deve ser objeto imediato de
ações programáticas a serem instituídas pela administração pública local em
conjunto com a sociedade e os movimentos sociais, com base no direito à
cidade.

186
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

Outrora, essa pauta reivindicativa já havia sido formalmente observada


pelo Estado brasileiro, por ocasião da instituição do Programa Nacional
de Direitos Humanos, o qual previa que, quanto às ações programáticas
as instituições deveriam, entre outras ações: apoiar ações que tenham
como princípio o direito a cidades inclusivas e acessíveis como elemento
fundamental da efetivação de políticas urbanas; fortalecer espaços
institucionais democráticos, participativos e de apoio aos municípios para a
elaboração de planos diretores que atendam aos preceitos da política urbana
estabelecidos no Estatuto da Cidade.
Desse modo, as reivindicações dos estratos sociais mais desfavorecidos
para que haja cidades mais justas, humanas, sustentáveis e democráticas
continua atual e urgente. Para tal, é necessário incorporar os direitos humanos
à pauta da governança das cidades, visando à eliminação das desigualdades
sociais, da segregação do espaço urbano e das discriminações em razão do tipo
de moradia e da localização dos assentamentos humanos – que em muitos
locais são entendidos como depósitos humanos. No Brasil, segundo o Censo
de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a primeira
década deste século apontou um crescimento em ordem de 30% (trinta pontos
percentuais) da população em moradias subnormais. Ainda não conhecemos
de forma consolidada os números do Censo de 2022, mas a julgar pelas crises
econômica e pandêmica vivenciada nos últimos anos, as estimativas ventiladas
apontam para um agravamento da situação.
As cidades, como espaços sociais, devem oferecer condições e
oportunidades equitativas aos seus habitantes, de viverem com dignidade,
independentemente das condições sociais, étnicas, culturais, etárias e de
gênero. Ainda estamos longe de oferecer condições básicas de vida mais
equitativas em relação a todas as pessoas que vivem nas cidades, em especial
no que concerne à realidade brasileira e latino-americana, no entanto essa
realidade pode ser modificada, pois há grupos sociais, movimentos populares,
instituições religiosas, gestores públicos e até alguns partidos políticos
engajados na melhoria da qualidade de vida nas cidades, mas não em uma
cidade mercadoria, gourmetizada pelo capital transnacional, mas sim em uma
cidade aberta, voltada para a convivência coletiva rica em sua heterogeneidade.

187
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

Podemos igualmente fazer referência à Declaração das Nações Unidas


Sobre o Meio Ambiente de 1972, a qual afirma que o princípio do direito
humano fundamental7 deve ser observado pelos países em suas regulamen-
tações internas. Nessa mesma direção, a Declaração do Rio de 1992 em seu
princípio 1º,8 reafirmou o princípio do direito humano fundamental, assim
como as declarações internacionais posteriores, Johannesburg em 2002 e Rio
+ 20 em 2012, por exemplo.
Em tempo, é apropriado lembrar que a dignidade humana constitui um
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, expressamente
mencionado na Constituição Federal em seus artigos 1º, 170, 182, 183 e 225,
respectivamente. Isso significa que o principal instrumento jurídico legal do
Estado brasileiro assume o compromisso político e jurídico para uma vida
digna aos seus cidadãos. Não obstante, a busca por condições dignas de vida
nas cidades torna-se importante para a efetivação dos direitos humanos no
meio urbano, local das complexidades, do encontro dos diferentes grupos
sociais, étnicos, econômicos e culturais, da heterogeneidade que dá vida à
cidade e que visam a uma vida humana digna, em um ambiente adequado,
livre dos efeitos nocivos da desigualdade social, da degradação ambiental, do
desenvolvimento econômico desigual que produz a segregação, a divisão, a
fragmentação e os conflitos e disputas pelo acesso à terra urbana, à cidade.
Sem dúvida a vulnerabilidade social a que estão sujeitos milhões de
brasileiros é produto negativo das relações econômicas e de poder que se
estabelecem entre a disponibilidade de recursos materiais, para determinados
indivíduos ou grupos e o respectivo acesso às oportunidades dadas no meio
socioeconômico e cultural procedentes das autoridades político-administra-
tivas que representam o Estado, ou que comandam o mercado e estabelecem o
modelo socioeconômico e espacial desigual. Para Miriam Abramovay (2002), os

7
Princípio 1 – O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições
de vida adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem-estar e
tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras. A este
respeito as políticas que promovam ou perpetuem o apartheid, a segregação racial, a discriminação,
a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira continuam condenadas e
devem ser eliminadas. (Silva, 2003, p. 59-60).
8
“Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento
sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com o meio ambiente”.

188
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

problemas urbanos desencadeados pelo desenvolvimento desigual oriundos


do modelo de desenvolvimento econômico, da pobreza urbana e da deficiência
da saúde pública e dos demais serviços básicos, educação, saneamento básico,
coleta de resíduos – lixo, além da carência econômica das comunidades
periféricas, demonstram a estreita relação que há entre indicadores de pobreza
e a presença de doenças associadas à falta de saneamento básico, na maioria
das cidades.
Muitas vezes, contudo, essas desigualdades sociais podem ser
apresentadas como manifestações inequívocas de fatalidade, carências,
heranças, quando não responsabilidades daqueles que dependem de medidas
de assistência, previdência, segurança ou repressão. Em diversas regiões do
globo encontramos experiências de lutas sociais para modificar os modos de
governar, planejar e desenvolver as cidades, de tal maneira que seus habitantes
possam apropriar-se e usufruir a riqueza, tanto em seus aspectos econômicos
quanto na produção do conhecimento e da cultura (Saule Jr., 2007).
Do ponto de vista legal, o direito à cidade no Brasil tem como objetivos
a efetivação das funções da cidade que estão intrinsecamente imbricadas com
o princípio da dignidade humana. Essas funções dizem respeito ao direito à
terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,
ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para todos os
habitantes das cidades. A cidade é um espaço coletivo culturalmente rico e
diversificado que pertence a todos os seus habitantes, ou seja, a todos os
cidadãos que nela habitam de forma transitória ou permanente e deve ser um
local para a realização de direitos humanos e liberdades fundamentais.
Na realidade brasileira, todavia, a problemática das cidades consiste
em buscar dar efetividade social e jurídica ao direito à cidade – gerando
a transformação social em prol da efetivação dos direitos humanos. Em
muitas cidades, no entanto, as favelas9 e vilas10 passam a ser um local de

9
Locais cuja ocupação do solo se deu sem quaisquer formas de planejamento e infraestrutura urbana
básica, à margem da cidade legal. Atualmente, as favelas têm sido chamadas de comunidades, na tentativa
de não estigmatização das pessoas que lá vivem.
10
Vilas é a denominação utilizada no sul do Brasil para as aglomerações subnormais conhecidas nas outras
regiões brasileiras como favelas.

189
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

“armazenamento humano”, no qual se aglomeram aqueles que não encontram


um lugar nos bairros das cidades, no mercado de trabalho, na sociedade de
consumo da cidade legal.
O paradoxo que se apresenta aos olhos daqueles que miram perplexos
esse cenário de violação dos direitos humanos, tentando elucidar suas causas
e, talvez, saná-las ou minorar seus impactos, relaciona-se ao descompasso
que há entre o atual nível de desenvolvimento econômico alcançado pela
humanidade e o crescimento das desigualdades sociais, das migrações, da
segregação espacial e dos conflitos. Cabe lembrar que a Declaração Universal
dos Direitos dos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica e o Protocolo de
San Salvador trazem em seu cerne a proteção aos direitos humanos e o direito
à cidade passa a ser um importante instrumento de ação para a efetivação
desses direitos.
O ambiente urbano atrai as pessoas e tem sido o local de sua
concentração. E é nele, por meio do direito à cidade, que ocorrerá a
transformação social para realização de cidades mais inclusivas, sustentáveis
e democráticas nas quais os valores inerentes à dignidade humana, à moradia
(à terra urbana), ao saneamento ambiental, ao trabalho e lazer, bem como
ao transporte urbano e mobilidade, acesso à infraestrutura urbana e serviços
essenciais possam alcançar a população urbana como um todo e não apenas
parcelas ou fragmentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crescimento populacional das cidades, em especial das maiores, é
um fato que vem acompanhado de uma série de problemas e complexidades
inerentes ao fenômeno da globalização. O adensamento populacional nos
territórios urbanos, por um lado aponta para a necessidade de adoção de
medidas sustentáveis e de respeito à diversidade cultural, mas de outro
lado tem deixado à mostra a fragmentação, a divisão e os conflitos na cidade
pela falta de planejamento, ou um planejamento retardado, ou insuficiente
que não atende às necessidades da massa populacional alocada, na grande
maioria irregularmente em espaços desprovidos de condições físicas, materiais
e culturais capazes de garantir a dignidade humana.

190
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

As cidades têm protagonizado em seu cenário a violação de direitos


humanos básicos para a grande maioria de seus habitantes. A produção de
espaços sociais, territoriais e culturais privilegiados tem sido usufruído de
modo desigual por uma pequena parcela da população economicamente
privilegiada. O estrato social dos desfavorecidos, formados pelos pobres
urbanos, mães solteiras, afrodescendentes e imigrantes latinos e asiáticos estão
excluídos da cidade legal.
Ao longo do texto procuramos demonstrar que a cidade é espaço
social, um território de expressão da diversidade social e cultural que não
apenas pode, mas deve ser o cenário para a afirmação de direitos humanos
dos seus habitantes, em especial dos sujeitos socialmente desfavorecidos. As
pessoas migram para as cidades em busca de melhores condições de vida,
pois nela há uma enorme diversidade e complexidade de sujeitos, atividades
e instituições que são vistas como uma oportunidade para uma vida com
melhores condições materiais de sobrevivência.
Como a melhoria das condições de vida não está acessível para todos
os habitantes urbanos, a cidade se constitui, também, como um território
conflitivo dos diferentes estratos sociais e culturais que a habitam. Em busca
da efetivação dos direitos humanos básicos dos desfavorecidos o direito
à cidade aparece como um movimento em direção à constituição de uma
democracia concreta, que implica a constituição ou reconstituição de uma
unidade espaçotemporal no entendimento lefebvreviano, que não se limita
juridicamente a encarar problemáticas urbanas e ambientais. Na perspectiva
harveyniana, o direito à cidade equivale a reivindicar algum tipo de poder
configurador dos processos de urbanização, sobre o modo como nossas
cidades são feitas e refeitas. Nesta perspectiva o direito à cidade constitui
uma revolução na forma de ver, perceber e fazer e refazer a cidade.
No contexto brasileiro, o direito à cidade é resultado de manifestações
populares e de grupos organizados que elaboraram conjuntamente a proposta
de reforma urbana que corresponde à efetivação do direito à dignidade
humana dos habitantes da cidade, conectado a uma série de outros direitos
de cunho social, como o direito à moradia, à educação, à saúde, ao lazer, ao
trabalho, ao equilíbrio entre o ambiente natural e artificial, à preservação do
patrimônio cultural e acesso aos serviços públicos. A cidade é um espaço

191
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

coletivo culturalmente rico e diversificado que pertence a todos os seus


habitantes e, como tal, deve ser o local de realização dos direitos humanos e
liberdades fundamentais.
Afinal, se o ar da cidade liberta, que possa nos libertar da pobreza
sistêmica, da falta de acesso às condições dignas de vida dos desfavorecidos
urbanos que buscam nas cidades uma vida melhor. As cidades estão em
constante movimento e transformação, podendo o direito à cidade ser um
divisor de águas rumo a deferência da heterogeneidade das cidades, sua
diversidade cultural, bem como um relevante instrumento de reivindicação
política e jurídica de mutação da realidade urbana dos desfavorecidos e
concretização de direitos.

REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, Miriam. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América
Latina: desafios para políticas públicas. Brasília: Unesco – BID, 2002. p. 29.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. In: Legislação de direito ambiental. São
Paulo: Saraiva, 2020a.
BRASIL. Lei 10.257 de 2001 que institui o Estatuto da Cidade. In: Legislação de
direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2020b.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São
Paulo: Martins Fontes, 2014.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: http://www.
ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=sp‎. Acesso em: 20 dez. 2014.
LEFEBVRE, Henri. Espaço e política: o direito à cidade II. 2. ed. rev. ampl. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2016.
ONU. Organização das Nações Unidas. Sem decisões ousadas, mundo não
cumprirá metas de moradia até 2030. In: Perspectiva Global Reportagens
Humanas. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2023/07/1817582. Acesso
em: 30 jul. 2023a.
ONU. Organização das Nações Unidas. Objetivos de desenvolvimento sustentável.
Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 30 jul. 2023b.
ROLNIK, R. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 2004.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. 2 reimpr. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo, 2009.
SASSEN, Saskia. Sociologia da globalização. Porto Alegre: Artmed, 2010.

192
A CIDADE : TERRITÓRIO DE CONFRONTAÇÃO ATIVA E DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À CIDADE
Elenise Felzke Schonardie

SAULE JR., Nelson. Direito urbanístico: via jurídicas das políticas urbanas. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007.
SCHONARDIE, Elenise; RICOTTA, Giuseppe; CANABARRO, Ivo. Os múltiplos
olhares sobre as cidades: controle social, memória e direitos humanos. 2. ed.
ampl. atual e rev. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2019.
SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de
Janeiro: Record, 2018.
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros,
2003.

193
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES
POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
Uma Reflexão a Partir da Obra de Norberto Bobbio

Gilmar Antonio Bedin

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A obra de Norberto Bobbio possui uma grande complexidade temática
e pode ser caracterizada, em certo sentido, como uma espécie de labirinto.1
No que se refere ao tema dos direitos humanos, contudo, o conjunto de
seus textos possui, pelo menos, quatro linhas condutoras fundamentais.
Estas linhas são as seguintes: 1ª) Os direitos humanos não são naturais e
sim, na verdade, direitos historicamente construídos; 2ª) Os direitos humanos
nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista
de sociedade; 3ª) Os direitos humanos não precisam, neste momento, serem
novamente fundamentados, e sim protegidos; 4ª) Os direitos humanos são os
principais indicadores do progresso ético de uma sociedade.
A preocupação deste texto é com a análise, mesmo que muitas vezes
indireta, da segunda linha condutora, ou seja, com a ideia de que os direitos
humanos nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção
individualista de sociedade. Por isso, o ponto de partida deste trabalho é a
afirmação – talvez bastante simples, mas fundamental – de que a ideia de
que os homens possuem direitos constitui-se uma invenção moderna, tendo
surgido no decorrer do século 18.

1
Neste sentido, ver a obra de Mario G. Losano (2022) sobre a trajetória intelectual de Norberto Bobbio.

195
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

Nesse sentido, o seu surgimento constitui-se, no que se refere à História, em


verdadeira ruptura com o passado. O caráter de ruptura com o passado presente
na emergência da ideia de direitos humanos deve-se ao fato de que a figura
deôntica originária é o dever e não o direito. Com efeito, como nos esclarecem
Celso Lafer (1991) e Norberto Bobbio (1992), os grandes monumentos
legislativos da Antiguidade, como as Leis Eshunna, o Código de Hamurabi, os
Dez Mandamentos e a Lei das XII Tábuas estabelecem deveres e não direitos
como as declarações moderna.
As declarações de direitos de 1776 (Declaração da Virgínia) e de 1789
(Declaração da França) são, assim, os dois primeiros grandes marcos dessa
“revolução copernicana”.2 Nesse sentido, a preocupação do presente texto
é com a seguinte indagação: Qual foi a mutação histórica que se processou
nas sociedades dos séculos 17 e 18 que tornou possível esta inversão entre
deveres e direitos?
Estamos convencidos, juntamente com Norberto Bobbio, de que uma
das respostas possíveis à questão colocada pode ser encontrada no fato de que
no decorrer do período mencionado produziu-se, após uma longa maturação
histórica, um novo modelo de sociedade. O modelo de sociedade reconhecido
e aceito até então pode ser denominado de organicista ou holista3 e possuía
como tese central a crença de que o todo (Estado) era anterior e superior
às partes (os indivíduos). Os seus primeiros grandes expoentes foram, sem
sombra de dúvida, Aristóteles e Platão.
O modelo de sociedade surgido nos séculos 17 e 18 pode, ao contrário,
ser denominado de individualista ou atomista4 e possui como tese central
o fato de considerar as partes (indivíduos) anteriores e superiores ao todo
(Estado). Os seus primeiros grandes teóricos foram Hobbes, Locke e Rousseau.
A comparação entre estes dois modelos perpassa todo o presente texto e

2
A expressão revolução copernicana é utilizada neste trabalho no sentido de inversão do ângulo de
análise ou da perspectiva prevalecente.
3
Este modelo pode também ser chamado de aristotélico devido à importância de seu primeiro grande
expoente: Aristóteles. Neste sentido, ver Bobbio, Norberto. Sociedade e estado na filosofia política
moderna. São Paulo: Brasiliense, 1987.
4
Este modelo pode também ser denominado de jusnaturalista ou de hobbesiano. Neste último caso,
devido à influência de seu primeiro grande expoente: Thomas Hobbes. Neste sentido, ver Bobbio,
Norberto. Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo: Brasiliense, 1987.

196
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

serve como instrumento para pôr em evidência as novidades trazidas com o


modelo individualista de sociedade. Assim, a pesquisa gira em torno de cinco
grandes inversões.
Em primeiro lugar, demonstra-se que o centro do mundo político a
partir dos séculos 17 e 18 não é mais o Estado (o todo), como fora durante
vários séculos, mas sim os indivíduos (as partes). As partes, portanto, passam a
anteceder o todo e não mais o todo antecede as partes, como queria Aristóteles.
Em segundo lugar, destaca-se que essa “revolução copernicana” entre o Estado
e os indivíduos traz consigo a inversão entre a ideia da desigualdade e a ideia
da igualdade entre os homens. Os homens, a partir desse período, passam a
ser vistos como seres iguais, pelo menos em dignidade e direitos.
Indica-se, na sequência, que a inversão entre o Estado e os indivíduos
conduz também ao câmbio entre a crença na origem natural do Estado e a
crença na sua origem contratual. O Estado passa a ser compreendido não
mais como sendo o resultado do desdobramento de comunidades menores,
mas sim de um acordo entre os indivíduos (Aristóteles, 1985). Em quarto
lugar, demonstra-se que a inversão entre o Estado e os indivíduos desloca
ainda o fundamento do poder. Até os séculos 17 e 18 o fundamento do poder
residia em Deus ou na tradição. A partir desse período passa a ser alicerçado
no consenso dos indivíduos, ou seja, o poder somente será legítimo quando
oriundo da nação. Por fim, demonstramos que todas estas inversões na
representação do mundo político conduzem a uma profunda mudança no
mundo jurídico. Deixa-se, a partir de então, de privilegiar os deveres para
declarar os direitos. Daí, portanto, o surgimento das Declarações de Direitos.

1 DO ESTADO PARA O INDIVÍDUO


A concepção de que o todo (Estado) é anterior e superior às partes
(indivíduos) é, sem sombra de dúvida, bastante antiga. Foi formalizada, pela
primeira vez, na Grécia clássica por Aristóteles. Daí, portanto, sua afirmação de que
“na ordem natural a cidade tem precedência sobre cada um de nós individualmente,
pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes; com efeito,
quando o todo é destruído pé e mão já não existem...” (Aristóteles, 1985, p. 15).
Esta concepção, no entanto, não se restringiu a Aristóteles e a seu
tempo. Perpassou toda a Idade Média e chegou, inclusive, ao limiar do mundo
contemporâneo. Senão vejamos. No entender de Dante Alighieri (1988),

197
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

é no todo que a parte encontra seu fim e perfeição. É na ordem do


todo que reside o fim e a perfeição da ordem da parte. Do que resulta
que a bondade de uma ordem parcial não supera a bondade da ordem
total, e que, ao invés, não chega à altura desta... (p. 198).

Nas expressões de Burke, “os indivíduos passam como sombras, mas


o Estado é fixo e estável” (apud Bobbio, 1992, p. 59). Nas palavras de Hegel,
“segundo a natureza o povo precede o indivíduo” (apud Bobbio, 1989a, p. 31).
O certo é que esta maneira de pensar a relação do todo (Estado) e das partes
(indivíduos) predominou durante vários séculos e somente entrou em declínio
com as transformações econômicas, políticas e teóricas dos séculos 17 e 18.
Os séculos 17 e 18 podem ser vistos, portanto, como um divisor de águas
entre o modelo organicista ou holista e o modelo individualista ou atomista de
sociedade. Em outras palavras, podem ser entendidos como marco histórico
que divide as sociedades em tradicionais e modernas.5 É desta mesma opinião,
por exemplo, Norberto Bobbio. É por isto, afirma ele, que “toda a história do
pensamento político está dominada por uma grande dicotomia: organicismo
(holismo) e individualismo (atomismo)” (Bobbio, 1990, p. 45).
Desta forma, pode-se dizer, mesmo que o movimento não seja retilíneo,
“... que o organicismo é antigo e o individualismo moderno” (Bobbio, 1990 ,
p. 45). Entendermos que isto é fundamental, pois, como afirma Louis Dumont
(1985), o individualismo é o valor central da sociedade moderna. Além disso,
como veremos mais adiante, foi justamente o surgimento do individualismo
(perspectiva ex parte populi), o que possibilitou a emergência dos direitos
humanos.

2 DA DESIGUALDADE À IGUALDADE
A convicção de que os homens são desiguais prevaleceu durante longo
período da história da humanidade. Uma das primeiras formulações explícitas
– talvez a mais bela – de tal ideia foi feita por Platão em sua obra A República,
ao afirmar que

5
Com esta afirmação não estamos querendo dizer que após os séculos 17 e 18 não existiram algumas
versões organicistas. Ao contrário, estamos apenas indicando que as posições individualistas são
prevalecentes no mundo moderno e as posições organicistas no mundo antigo.

198
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

... cidadãos (...) sois todos irmãos, porém os deuses vos formaram de
maneira diversa. Alguns dentre vós têm poder de mando, e em sua
composição fizeram eles entrar ouro, motivo pelo qual valem mais
do que ninguém; a outros fizeram de prata, para serem auxiliares;
outros ainda, que se destinam a serem lavradores e artesões, foram
compostos de ferro e bronze... ([19--?], p. 135).

A defesa desta ideia, no entanto, a exemplo do tema visto no item


anterior, não se restringiu a Platão e à Grécia Clássica. Perpassou todo o
período medieval e chegou, inclusive, a fazer parte do debate sobre as
virtudes e os excessos da Revolução Francesa.6 O Papa Gregório, o Grande,
por exemplo, defendia, no final do século 6º, que a própria ordem celeste
era desigual, possuindo, assim, superiores e inferiores. Daí, portanto, sua
opinião de que
a providência institui graus diversos e ordens distintas, para que
os inferiores testemunhem respeito aos superiores e os superiores
gratifiquem com amor os inferiores, e se realize a verdadeira
concórdia e conjunção, a partir da diversidade. De qualquer maneira
a comunidade não poderia em verdade subsistir, se a ordem global da
disparidade não a preservasse. Que a criação não pode governar-se em
igualdade é o que nos demonstra o exemplo das milícias celestes: há
anjos e arcanjos que manifestamente são desiguais, diferindo uns dos
outros pelo poder e pela ordem (apud Duby, 1982, p. 15).

Edmund Burke, por sua vez, era tão preconceituoso e anti-igualitário


que chegou a afirmar, em pleno século ‘8, que se as “classes servis” chegassem
ao poder estaria configurada uma guerra civil contra a natureza. Em suas
palavras:
Quando se diz que algo é nobre, implica-se afirmar também que é
digno de uma distinção qualquer. A ocupação de um cabeleireiro ou
de um operário fabricante de vela – para não falar de muitas outras
ocupações mais servis – não pode ser motivo de honra para pessoa
alguma. Quem exerce profissões como essas não deve, sem dúvida,

6
Referimo-nos ao debate estabelecido entre Thomas Paine e Edmund Burke. Neste sentido, ver Burke,
Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: UnB, 1982, e Paine, Thomas. Os direitos do
homem. Petrópolis: Vozes, 1989.

199
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

sofrer opressão do Estado; o Estado, contudo, será oprimido se se


permitir que aqueles de sua classe, individual ou coletivamente,
cheguem a governá-lo. Ao chamá-los ao poder, o senhor imagina estar
combatendo a discriminação, mas está, na verdade, colocando-se em
guerra civil contra a natureza (Burke, 1982, p. 81).

Nesse contexto, o importante é observarmos que esta crença na


desigualdade entre os homens é tão antiga e persistente quanto o é o modelo
organicista ou holista de sociedade. Daí, portanto, esta ideia ter-se mantido
enquanto o referido modelo era prevalecente.7 A convicção na igualdade entre
os homens, por sua vez, pode ser vista como a primeira grande consequência
da afirmação do indivíduo e do modelo individualista. Por isto, afirma
Norberto Bobbio que
... enquanto os indivíduos eram considerados como sendo originaria-
mente membros de um grupo social natural, como a família (que
era um grupo organizado hierarquicamente), não nasciam nem livres,
já que eram submetidos à autoridade paterna, nem iguais, já que a
relação entre pai e filho é a relação de um superior com um inferior...
(1992, p. 118).

Assim, não é por acaso que encontraremos na tradição do cristianismo,


mesma tradição que põe, de maneira pioneira, em destaque o indivíduo,
as primeiras manifestações em defesa da igualdade entre os homens. Esta
constatação pode ser encontrada, por exemplo, nos ensinamentos de Paulo,
que afirmava que “não há mais judeu nem grego, não há escravo nem homem
livre, não há homem ou mulher. Vocês todos pertencem a um só: Cristo Jesus”
(apud Bíblia Fácil, [19--?], p. 422). Ou, então, nas palavras de Lactâncio, que
sustentava que “ninguém, aos olhos de Deus, é escravo ou senhor (...) Todos
nós somos (...) seus filhos” (apud Dumont, 1985, p. 51).
Estas manifestações antigas em defesa da igualdade possuem, contudo,
um limite bastante claro. São manifestações igualitárias extramundanas,
ou seja, só valem na relação do homem com Deus. Daí, portanto, a Igreja
ter podido defender, durante toda a Idade Média, a trifuncionalidade da

7
Com esta colocação não estamos sugerindo que a crença na desigualdade entre os homens desapareceu
por completo no decorrer dos séculos 17 e 18. Estamos, ao contrário, apontando que houve neste
período uma inversão de princípio.

200
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

ordem social, isto é, ter podido defender que a ordem social era composta,
de maneira hierárquica, pelos que oram, pelos que combatem e pelos que
trabalham (Duby, 1982).
A reivindicação igualitária progrediu da esfera extramundana para a
mundana, mais uma vez, por meio dos reformadores protestantes. Lutero
foi seu agente. Este, entre outras coisas, afirmava que não existem diferenças
entre os homens “espirituais” e os homens “temporais”, e que a doutrina
hierárquica da Igreja nada mais é do que um instrumento de dominação do
poder papal. Desta forma, é possível perceber que estamos diante de uma
das primeiras formulações claras da ideia de igualdade entre os homens neste
mundo (Dumont, 1985).
A completa inversão entre desigualdade e igualdade, no entanto,
somente se concretizou com os pensadores políticos dos séculos 17 e 18.
Foram eles, portanto, os primeiros a sustentarem a ideia de igualdade entre
os homens como um elemento constitutivo da nova sociedade.
Nas palavras de Hobbes,
a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do
espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente
mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo
assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um
e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer
um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não
possa também aspirar, como ele... (1988, p. 74).

Segundo Locke:
estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer poder e
jurisdição, ninguém tendo mais do que qualquer outro; nada havendo
de mais evidente que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem,
nascidas promiscuamente a todas as mesmas vantagens da natureza e
ao uso das mesmas faculdades tenham também de ser iguais umas às
outras sem subordinação ou sujeição... (1983, p. 35).

No entender de Rousseau:
Terminarei este capítulo e este livro fazendo uma observação que
deve servir de base a todo sistema social. Quero referir-me que, longe
de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, pelo

201
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

contrário, uma igualdade moral e legítima no que a natureza deu de


desigualdade física aos homens que podendo ser desiguais em força ou
engenho, tornam-se, por convenção e de direito, iguais ([19--?], p. 50).
Esta unanimidade na defesa da igualdade no mundo moderno foi
reconhecida também pelos legisladores que elaboraram as Declarações de
Direitos de 1789 e de 1948, pois prescreveram no artigo 1º de cada uma
das declarações que todos os homens nascem livres e iguais em direitos e
dignidade.8

3 DA ORIGEM NATURAL À ORIGEM CONTRATUAL DO ESTADO


Além destas duas concepções – o Estado (todo) é anterior e superior
aos indivíduos (partes) e a ideia que os homens são desiguais – teve uma
longa aceitação na História ainda a crença que afirma ter o Estado surgido
naturalmente do desdobramento de comunidades menores. Segundo esta
ideia, teríamos em primeiro lugar as famílias. Estas, em conjunto, formariam
as aldeias. As aldeias, por sua vez, quando reunidas, formariam o Estado.
Aristóteles, mais uma vez, constitui-se no primeiro e bom exemplo, pois
afirma em sua obra denominada Política:
... a comunidade formada naturalmente para as necessidades diárias é
a casa (...) A primeira comunidade de várias famílias para a satisfação
de algo mais que as simples necessidades diárias constitui um povoado
(...) A comunidade constituída de vários povoados é a Cidade ... (1985,
p. 14-15).

Além de Aristóteles, vários outros autores, durante a Idade Média e o


início da Idade Moderna, continuaram a defender essa versão sobre a origem
do Estado. Vejamos alguns exemplos. Bodin, por exemplo, ao definir o Estado,
sustentava que “por Estado deve-se entender o governo justo que se exerce,
com poder soberano, sobre diversas famílias e sobre tudo o que elas têm de
comum entre si” (apud Bobbio, 1991 , p. 5).

8
Com isto não estamos afirmando que não existiram/existem posturas que defendiam/defendem o
fundamento teológico ou histórico do poder após os séculos 17 e 18. Ao contrário, estamos indicando
apenas a inversão do princípio prevalecente.

202
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

Campanella, por sua vez, sustentava que


... a primeira união ou comunidade é a do macho e a da fêmea. A
segunda, a dos geradores e dos filhos. A terceira, a dos senhores e dos
servidores. A quarta é de uma família. A quinta, de mais de uma família
numa vila. A sexta é de mais de uma vila em uma cidade. A sétima de
mais de uma cidade numa província. A oitava, de várias províncias
em um reino. A nona é de mais de um reino sob um império... (apud
Bobbio, 1987, p. 41).

Althusius, apesar de ser normalmente colocado entre os contratualistas,


ao se referir ao Estado ou ao reino, afirmava que
... essa sociedade mista, constituída parcialmente por sociedades
voluntárias privadas, naturais e necessárias, e em parte por sociedades
públicas, denomina-se associação universal. É uma associação pública
no sentido mais pleno, um domínio, um reino, uma comunidade e
um povo unido em um só corpo – por acordo das muitas associações
de simbiose e corpos particulares reunidos sob a mesma lei.
Pois as famílias, as cidades e as províncias existem por natureza,
anteriormente aos reinos, e a eles deram origem (1993, p. 46).

Esta maneira de compreender a origem do Estado, como se pode


concluir pelas próprias citações anteriormente feitas, se manteve, a exemplo
da crença na desigualdade entre os homens, enquanto não foi abandonado o
modelo organicista ou holista de sociedade. Daí, portanto, a manifestação de
surpresa de Norberto Bobbio (1991) com a sua durabilidade, continuidade,
estabilidade e vitalidade.
A nova versão sobre a origem do Estado surgiu no decorrer dos
séculos 17 e 18, e pode ser vista como mais uma consequência do modelo
individualista ou atomista de sociedade. O núcleo central desta nova versão
constitui-se no fato de que, para seus defensores, o Estado é criado, por meio
de um contrato, pelo consenso dos indivíduos, ou seja, que o Estado é uma
pessoa artificial criada pela vontade humana. Esta nova versão sobre a origem
do Estado representa, portanto,
... uma verdadeira reviravolta na história do pensamento político,
dominada pelo organicismo, na medida em que, subvertendo as
relações entre indivíduo e sociedade, faz da sociedade não mais um

203
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

fato natural, a existir independentemente da vontade dos indivíduos,


mas um corpo artificial, criado pelos indivíduos à sua imagem e
semelhança (Bobbio, 1990 , p. 15-16).

Os primeiros grandes expoentes a defenderem essa ideia foram,


novamente, Hobbes, Locke e Rousseau. Nas palavras de Hobbes,
a única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de
defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos
outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que,
mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam
alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a
um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir
suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.
O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de
homens como representante de suas pessoas, considerando-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele
que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o
que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo
assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões
à sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é
uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa,
realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de
um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo
e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,
ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele
teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.
Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado,
em latim civitas (1988, p. 105-106).

No entender de Locke:
A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à
liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em
concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade
para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras,
gozando garantidamente das propriedades que tiveram e desfrutando
de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.
Qualquer número de homens pode fazê-lo, porque não prejudica a
liberdade dos demais; ficam como estavam na liberdade do estado
de natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse

204
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam, de fato, a


ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem
o direito de agir e resolver por todos (1983, p. 71).

Nas expressões de Rousseau:


Naquele instante [o do contrato], no lugar da pessoa particular de
cada contratante este ato de associação produz um corpo moral e
coletivo, composto de tantos membros como a assembléia de votantes,
o qual recebe deste mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida
e sua vontade. Esta pessoa pública que se forma assim pela união de
todas as outras, recebeu antes o nome de cidade e agora recebe o de
república ou de corpo político, chamado por seus membros Estado,
quando é passivo; soberano, quando é ativo, poder, comparando-o
com seus semelhantes ([19--?], p. 41-42).

Temos, assim, delineada, na opinião dos três grandes pensadores


políticos dos séculos 17 e 18, a nova versão sobre a origem do Estado. O
Estado é criado, por meio de um contrato, pelo consenso dos indivíduos. Em
consequência, o Estado torna-se uma construção humana.

4 DO FUNDAMENTO DIVINO AO FUNDAMENTO POPULAR DO PODER


Demonstradas as inversões entre Estado e indivíduo, entre desigualdade
e igualdade e entre origem natural e origem contratual do Estado, agora é
importante verificar que o modelo individualista de sociedade desloca também
o fundamento do poder ou sua fonte de legitimidade. A preocupação com
o fundamento do poder, a exemplo dos temas vistos nos itens anteriores, é
bastante antiga e a ela foram dadas várias respostas. Estas respostas podem ser
resumidas, apesar de sua multiplicidade, como nos indica Norberto Bobbio
(1984), em três versões:
a) versão do fundamento teológico do poder;
b) versão do fundamento histórico do poder;
c) versão de fundamento voluntarista ou popular do poder.
A primeira resposta – versão teológica – sustentava que o poder de um
homem sobre outro homem somente era legítimo à medida que se constituía
na manifestação do poder de Deus. Os seus defensores entendiam, assim, que
o poder político provinha de Deus e que era ele a sua fonte de legitimidade.
Nas palavras de Bobbio,

205
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

segundo os autores que seguem estas teorias, o poder soberano deriva


de Deus, no sentido que o poder máximo que um homem tem sobre
os outros pode encontrar a sua própria justificação somente no fato de
que ele é uma manifestação do poder que Deus tem sobre o mundo...
(1984, p. 178).

Um dos primeiros a formular explicitamente tal princípio foi São Paulo,


em suas Cartas aos Romanos, ao afirmar que “toda a autoridade (...) recebe
de Deus a missão de dirigir. Foi Deus quem determinou esta autoridade (...)
Portanto, aquele que é contra as autoridades é contra o sistema que Deus
estabeleceu” (in Bíblia Fácil, [19--?], p. 507). São Paulo, no entanto, não
foi o único autor a defender tal fundamento do poder. Dante Alighieri, por
exemplo, é outro pensador convicto na defesa dessa ideia. Daí a sua afirmação
de que é “evidente que a autoridade temporal do monarca desce sobre ele
desde a fonte da autoridade universal, que é Deus” (1988, p. 223).
A segunda resposta – versão histórica do fundamento do poder –
afirmava, por sua vez, ser legítimo o poder apenas quando fosse estabelecido
pela tradição. Assim, o poder não é estabelecido ou gerado pela vontade
divina, mas é “o resultado de determinado acontecimento histórico ou de
determinada direção do desenvolvimento histórico, que encontra numa
pessoa, numa classe, num povo, a força para governar os outros homens”
(Bobbio, 1984, p. 18).
Edmund Burke é, sem sombra de dúvida, um dos melhores defensores
dessa versão. Daí, portanto, sua afirmação de que “a simples idéia de fabricar
um novo governo é suficiente para nos encher de repulsa e horror” (1982, p.
67). Além disso, não podemos esquecer que, segundo ele, quando a Inglaterra
fez suas revoluções não foi para criar coisas novas, mas sim para resgatar a
herança legada pelos seus antepassados. Por isso, sua afirmação de que todas as
... reformas que fizemos até hoje foram realizadas a partir de
referências ao passado; e espero, ou melhor, estou convencido
de que todas as reformas que possamos realizar no futuro estão
cuidadosamente construídas sobre precedentes análogos, sobre a
autoridade, sobre a experiência... (1982, p. 67-68).

A terceira resposta – versão voluntarista ou popular do poder –


sustenta, por último, que o poder somente será legítimo quando estabelecido
pela vontade soberana dos indivíduos. Daí, portanto, estabelecer o artigo 2º da

206
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

Declaração de Direitos de 1776 que toda a autoridade pertence ao povo e por


consequência dele emana, e o artigo 3º da Declaração de 1789 que o princípio
da soberania reside essencialmente na nação; nenhuma corporação, nenhum
indivíduo pode exercer autoridade que não emane dela.9
O surgimento desta terceira resposta, segundo entendemos,
representou uma grande novidade histórica. Com efeito, somente foi
formulada de maneira clara e explícita no decorrer dos séculos 17 e 18. Até
aí prevaleceram as posições que sustentavam ser legítimo o poder somente
quando derivava de Deus ou era estabelecido pela tradição. Assim, podemos
afirmar que estas últimas são versões antigas do fundamento do poder e
podem ser vistas como teorias típicas do modelo organicista de sociedade.
A resposta baseada no consenso dos indivíduos, por sua vez, pode ser
compreendida como versão moderna do fundamento do poder e, portanto,
pode ser vista como mais uma consequência do modelo individualista de
sociedade. Daí a afirmação de Celso Lafer de que “a idéia de que os homens
podem organizar o Estado e a sociedade de acordo com a sua vontade e a
sua razão, pondo de lado a tradição e os costumes, foi a grande novidade da
Ilustração” (1988, p. 123).

5 DOS DEVERES PARA OS DIREITOS


As inversões na representação política analisadas, nos itens anteriores,
quando vistas em conjunto, estabelecem o que chamamos de um novo modelo
de sociedade ou, para usar as expressões de Bobbio (1992), inauguram uma
nova perspectiva de análise das relações políticas: a perspectiva ex parte
populi. O modelo tradicional ou a perspectiva tradicional colocava-se, entre
outros motivos, por defender que o todo é anterior e superior às partes, do
ponto de vista dos governantes, ou seja, ex parte principis.
Fundada a partir deste ângulo, esta perspectiva ou este modelo, que
vai do Político de Platão até, excluindo, o Leviatã de Hobbes, sempre teve
como preocupação central as questões referentes ao Estado ou ao governo.
Daí, portanto, serem os seus temas essenciais

9
As declarações referidas podem ser encontradas na obra Os direitos do homem e o neoliberalismo
(Bedin, 2002).

207
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

... a arte de bem governar, as virtudes ou habilidades ou capacidades


que se exige de um bom governante, as várias formas de governo, a
distinção entre o bom e o mau governo, a fenomenologia da tirania
em todas as suas diversas formas, direitos, deveres e prerrogativas dos
governantes, as diversas funções do Estado e os poderes necessários
para cumpri-las adequadamente, os vários ramos da administração...
(Bobbio, 1988, p. 63).

A nova perspectiva ou o novo modelo, inaugurado com as inversões


anteriormente referidas, ao contrário, coloca-se, entre outros motivos, por
defender que as partes são anteriores e superiores ao todo, do ponto de vista
dos governados, ou seja, ex parte populi. Daí, portanto, possuir como temas
essenciais a questão do indivíduo, da igualdade, do contrato e da soberania
popular.
Esta inversão da perspectiva de análise das relações políticas é
fundamental, pois estabelece um divisor de águas entre as sociedades
tradicionais e a sociedade moderna. Além disto, constitui-se, no que se refere
ao mundo jurídico, na condição de possibilidade da existência dos direitos
humanos. Sem esta inversão, portanto, não há como se falar em direitos
humanos, mas simplesmente em deveres.
Por essa razão, enquanto prevaleceu o modelo organicista (perspectiva
ex parte principis), como afirma Norberto Bobbio, a figura deôntica
privilegiada era o dever e não o direito. Em suas palavras “o ponto de vista
tradicional tinha por efeito a atribuição aos indivíduos não de direitos, mas
sobretudo de obrigações, a começar pela obrigação da obediência às leis, isto
é, às ordens do soberano” (1992, p. 100-101).
Esta inversão entre os deveres e os direitos representa, neste sentido,
“o triunfo do individualismo no sentido mais amplo” (Lafer, 1991, p. 36), ou
seja, representa a supremacia da perspectiva ex parte populi ou do modelo
individualista de sociedade. As declarações de direitos de 1776 (Declaração
da Virgínia) e de 1789 (Declaração da França) constituem-se, portanto, na
expressão jurídica da “revolução copernicana” estabelecida entre a perspectiva
dos governantes e a perspectiva dos governados. Isto inaugura uma nova
maneira de organização do mundo.

208
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, é possível perceber que a tradição de se estabelecer deveres
chegou até o início do século 18 e foi, sem dúvida, sustentada, no decorrer
de toda a sua trajetória histórica, pelo modelo organicista ou pela perspectiva
de análise das relações políticas denominada de ex parte principis.
A Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e a Declaração de Direitos
do Homem e do Cidadão (1789) são, nesse sentido, os primeiros dois grandes
indicadores de uma profunda mutação histórica: a da emergência de um novo
modelo de sociedade – modelo denominado de individualista – ou uma nova
perspectiva de análise das relações políticas – denominada perspectiva ex
parte populi.
A emergência deste novo modelo ou desta nova perspectiva de análise
foi, assim, em síntese, o que possibilitou o surgimento dos direitos humanos e,
com isto, poderíamos dizer, inaugurou-se uma nova era, nas felizes expressões
de Norberto Bobbio (1992), a Era dos Direitos.

REFERÊNCIAS
ALIGHIERI, Dante. Monarquia. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
ALTHUSIUS, Joahannes. Política e associação humana. In: KRISCHKE, Paulo. O
contrato social ontem e hoje. São Paulo: Cortez, 1993.
ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1985.
BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. Ijuí: Editora
Unijuí, 2002.
BÍBLIA FÁCIL. São Paulo: Centro Bíblico, [19--?].
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília:
UNB, 1984.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil, Estado. São
Paulo: Brasiliense, 1989a.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989b.

209
OS DIREITOS HUMANOS E AS CONDIÇÕES POLÍTICAS DE SUA EMERGÊNCIA HISTÓRICA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DA OBRA DE NORBERTO BOBBIO
Gilmar Antonio Bedin

BOBBIO, Norberto. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. São Paulo:


Brasiliense, 1987.
BURKE, Edmund. Reflexões sobre revolução em França. Brasília: UnB, 1982.
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa,
1982.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico
e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
LAFER, Celso. Ensaios liberais. São Paulo: Siciliano, 1991.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
LOSANO, Mario G. Norberto Bobbio: uma biografia cultural. São Paulo: Editora
da Unesp, 2022.
PAINE, Thomas. Os direitos do homem. Petrópolis: Vozes, 1989.
PLATÃO. A República. São Paulo: Tecnoprint, [19--?].
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [19--?].

210
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL:
Considerações Sobre a Violação
dos Direitos Humanos no Tempo Presente

Ivo dos Santos Canabarro

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A expressão “patrimônio da dor” é uma categoria explicativa muito
utilizada na antropologia e na sociologia, mas pode ser plenamente empregada
para as ciências sociais em sua totalidade. O seu uso requer cuidados para
tornar-se explicativa, é empregada para os casos em que a dor dos seres
humanos pode ser entendida como um objeto de pesquisa. É sempre algo
complexo trabalhar com a dor, aqui no nosso caso específico, as dores
sofridas pelas violações aos direitos humanos. As violações causam a dor e o
sofrimento de populações vulneráveis e/ou perseguidas politicamente, as quais
têm os seus direitos subtraídos pelos mecanismos de Estado, ou mesmo por
outros grupos sociais. O sofrimento é uma marca de violação das garantias da
liberdade de expressão num Estado Democrático de Direito, como também
manifestada pela falta das condições mínimas de garantia da dignidade da
pessoa humana.
Trabalhar o patrimônio da dor significa mexer com as os sofrimentos,
com as sensibilidades, tanto individuais quanto coletivas. As sensibilidades
são dimensões pouco exploradas como objetos de pesquisa, mas compõem
os imaginários sociais e as práticas efetivas nos contextos contemporâneos. Da
complexidade das sensibilidades e da dor para a configuração de um objeto de
pesquisa requer do investigador um cuidado para construir uma abordagem
que contemple tanto as representações quanto as práticas efetivas. Sendo
assim, procuramos mapear representações efetivas do patrimônio da dor,
sendo essas representações construídas no tempo presente brasileiro. Não

211
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

temos a intenção de fazer uma abordagem psicanalítica, pois não comporta


em nossos objetos de pesquisa essa dimensão. É uma abordagem explicativa
e dialética que nos propicia entendermos os significados das representações
no contexto brasileiro.
O delineamento do patrimônio da dor que pretendemos seguir
neste trabalho começa com o estabelecimento das relações com a memória
subterrânea. Entendemos que a explicitação da memória é fundamental para
entendermos o tempo presente, uma vez que muitos elementos da memória
permanecem implícitos na sociedade brasileira, pois notamos que a negação
da memória é inclusive um recurso político de determinados segmentos
sociais. Sendo assim procuramos, num primeiro momento, recuperarmos a
importância da memória subterrânea, para entendermos momentos marcantes
na História do Brasil, em que houve um certo negacionismo propagado por
determinados grupos sociais. A memória subterrânea emerge dos segmentos
oprimidos que tiveram seus direitos negados, mas que numa determinada
ocasião tornaram o não dizível em dizível, trazendo à tona o não dito
reprimido por muito tempo.
Ao recuperamos a memória subterrânea dentro do patrimônio da dor,
vamos trazer à tona a elucidação dos elementos trabalhados na Comissão
Nacional da Verdade (CNV, 2014), os quais são extremamente importantes
para entendermos a noção de uma possível verdade histórica no Brasil
(1948-1988), período que compreendeu as investigações da Comissão. Os
elementos elucidativos são fundamentais para a explicitação da memória que
permaneceu durante muito tempo como não dito, e volta-se na contempo-
raneidade com uma possibilidade de entendimento das dores das pessoas
que foram presas, perseguidas, desaparecidas e/ou mortas durante da
ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Somente com a CNV foi possível
elucidar a memória subterrânea das pessoas atingidas pela ditadura no Brasil.
Os elementos pesquisados e que constam nos relatórios são de extrema
importância para a construção de um discurso histórico mais próximo ao que
realmente aconteceu.
O texto aborda a relação do patrimônio da dor com casos mais
específicos de violações dos direitos humanos, sofridas nas práticas de
torturas no Brasil, que foram uma verdadeira prática escancarada da tortura.
Os ocultamentos foram tentativas de manter no não dito as memórias

212
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

subterrâneas dos torturados e suas famílias, e somente mais recentemente


foi possível conhecer com mais detalhes as práticas de torturas no Brasil. Ao
recuperamos as memórias podemos construir todo um panorama da História
brasileira, mesmo nos sofrimentos e na dor é possível pensarmos um tempo
presente marcado por violações. O grande legado para as próximas gerações
é que isso não volte a se repetir na sociedade brasileira, são exemplos de
autoritarismos que vivemos no passado ainda muito recente, uma verdadeira
ferida aberta no patrimônio da dor.
A seguir na nossa narrativa, a abordagem diz respeito ao patrimônio da
dor e os sofrimentos e violações de direitos dos povos indígenas brasileiros.
Todas as violações de direitos sofridas durante a ditadura civil-militar e
que ainda permanecem com as constantes violências sofridas no tempo
presente. A forma como os povos indígenas são tratados reflete um total
estranhamento de suas identidades como povos originários, suas formas
de vida são singulares, com características próprias de cada etnia, o que os
torna singulares. Essa singularidade é de difícil compreensão no Brasil, pois
os constantes ataques sofridos são violações de seus direitos. Com casos
extremos de dizimação da população indígena, casos como a Guerrilha do
Araguaia, um verdadeiro genocídio durante a ditadura militar, bem como
as demais violações de apropriações de suas terras, tudo isso configurando
como um patrimônio da dor, extremamente dilacerado, pois estende-se até
o contexto presente.
Na sequência final da narrativa abordaremos a questão do patrimônio
da dor na pandemia de Covid 19. A pandemia no Brasil atingiu um número
exorbitante de mortes, o que causou muita dor para os familiares que
perderam seus entes nesse período recente. Foi uma verdadeira história do
medo revisitada, pois o mundo já passou por outras pandemias e epidemias,
mas a da Covid 19 foi uma das mais cruéis, com o número de mortes em
tão pouco tempo. O que resultou em conjuntos de memórias e traumas
de sofrimentos pela perda de pessoas, são memórias ainda em construção,
em alguns lugares no Brasil pensam em construir memoriais pelas vítimas
da Covid 19, uma forma de perpetuar a memória em pequenos espaços
simbólicos.

213
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

1 O PATRIMÔNIO DA DOR E A MEMÓRIA SUBTERRÂNEA


Revisitar o patrimônio da dor no Brasil é uma temática delicada, quase
intangível, até para os pesquisadores, pois há uma tendência de relegar
ao esquecimento tudo o que causou dor e sofrimento em indivíduos e/ou
grupos. A memória e os esquecimento parecem conceitos polares, afinal
opta-se por um deles em detrimento do outro, ou seja, para alguns grupos
é melhor esquecer o que aconteceu, para não reabrir as fraturas do passado.
O patrimônio da dor, porém, está no não dito, no indizível, naquilo que
deve ser mantido em segredo, guardado apenas nas memórias subterrâneas,
pois muitos indivíduos somente conseguem confessar a si mesmos. Revisitar
memórias vinculadas a episódios da dor, seja ela física ou mental, requer a
consciência de que trazer à tona pode causar muito sofrimento. Então, o
patrimônio da dor é essa dimensão composta por todo o sofrimento e as
práticas que o causaram. Desvendar essas práticas é trazê-las ao dizível,
portanto, à memória social.
Muitas questões intangíveis na sociedade brasileira, principalmente em
períodos autoritários, podem se tornar analiticamente tangíveis, a partir de
uma perspectiva crítico-histórica. Sendo assim, questões como o patrimônio
da dor podem ser explicadas a partir de conceitos e categorias analíticas. Nesta
primeira parte da narrativa vamos buscar as noções de memória subterrânea
para elucidar o sofrimento do não dizível até tornar-se algo dizível, na
perspectiva de compor um campo de análise para dar conta dos sofrimentos
que pessoas e/ou grupos passam por longos períodos até a elucidação de suas
experiências de dor. Sendo assim, a explicitação do sofrimento é uma forma
de torná-lo dizível e passível de se constituir como objeto do conhecimento.
Existe um momento de conexão do patrimônio da dor com as
memórias subterrâneas, pois essas são essencialmente memórias das dores,
das dores que permanecem como indizíveis por muito tempo. Sempre à espera
de uma escuta confiável para tornar-se dizível, é um longo processo, às vezes
permanecem para sempre como indizíveis, pois muitas pessoas e/ou grupos
não têm coragem nem de confessarem para si mesmos. Por isso a importância
do entrelaçamento da memória individual com a memória coletiva. Nesse
sentido observa Pollak (1989) que para que nossa memória se beneficie da dos
outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos, é necessário também
que eles não tenham deixado de concordar com suas memórias, para que a

214
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

lembrança que os outros nos tragam possa ser reconstruída. Sendo assim,
existe sempre uma negociação entre a memória individual com a coletiva,
fazendo entremeios necessários como uma possível mediação entre ambos.
Pollak (1989), contudo, ainda observou que a consideração sobre
memórias subterrâneas surgiu após a configuração da história oral, uma
fonte documental construída pelo pesquisador, capaz de recuperar dimensões
significativas do mundo social ao qual os indivíduos e/ou grupos pertencem.
O mesmo autor evidencia que ao privilegiar a análise dos excluídos, dos
considerados como marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou
a importância de memórias subterrâneas, que, como partes integrantes das
culturas minoritárias e dominadas, se opõem à memória oficial. Este processo
foi considerado um grande salto qualitativo para a recuperação das memórias,
pois esses grupos considerados minorias muitas vezes não possuem registros
escritos e imagéticos de suas memórias, permanecendo apenas na oralidade.
Por isso a importância da história oral para recuperação de suas experiências
e vivências, tanto as cotidianas quanto as traumáticas.
Na continuação de suas observações Pollak (1989) ainda salienta que a
memória subterrânea reabilita a periferia e a considerada marginalidade dos
atores sociais, por um lado acentuando o caráter destruidor, uniformizador
e opressor da memória coletiva nacional. Por outo lado, as memórias
subterrâneas prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira
imperceptível aflorando em momentos de crises em sobressaltos bruscos
e exacerbados. A memória permanece em disputa, existindo um conflito e
competições entre as memórias. Existe por parte dos pesquisadores uma
predileção de trabalhar com os conflitos e disputas em detrimento de
continuidades e estabilidades. Cabe ressaltar que as memórias sempre estão
em disputa, em muitos casos até uma tentativa de negação das memórias que
podem comprometer a imagem de determinados grupos sociais.
No caso mais específico das memórias subterrâneas existe uma
tendência em permanecer em silêncio, as vítimas têm medo de compartilhar
suas lembranças, preferindo guardar em silêncio para não se comprometer.
Têm medo de serem mal-entendidas sobre alguma questão considerada
grave, tendo uma propensão ao esquecimento. Pollak (1989) salienta que em
muitos casos o silêncio tem razões bastante complexas, para poder relatar seus
sofrimentos uma pessoa precisa inicialmente encontrar uma escuta confiável.

215
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

O medo é sempre latente por isso permanecem com essa dor como indizível,
muitas vezes as pessoas e/ou grupos carregam essa dor por toda a sua vida,
inclusive morrendo com essa memória subterrânea. Esse processo pode ser
para algumas pessoas muito lento e demorado, em casos proeminentes de
morte esses testemunhos oculares querem inscrever suas lembranças contra
o esquecimento.
Afinal, o que é esse não dito para Pollak (1989)? O autor relata que
existem lembranças de uns e de outros, verdadeiras zonas de sombras,
silêncios, os verdadeiros não ditos. Ele ainda destaca que as fronteiras desses
silêncios e não ditos com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente
não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.
Nas palavras do autor sempre resta um fio de esperança de que esses não
ditos podem vir à tona em algum momento da vida dessas pessoas, o qual
pode acontecer a qualquer momento. O autor ainda observou que existe
uma angústia de não encontrar uma escuta de ser punido por aquilo que
se diz, ou pelo menos ser mal-entendido. Por isso o fio que liga a memória
ao esquecimento é muito tênue, algumas pessoas preferem esquecer o que
aconteceu e permanecerem para sempre com esse não dito.
O que é a fronteira entre o dizível e o indizível? Para Pollak (1989) a
fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa
em nossos exemplos uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil
dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada
que resume a imagem que uma sociedade ou Estado deseja passar ou impor.
Voltando no caso específico aqui, as disputas da memória, o Estado com seu
poder simbólico de imposição nos coloca uma memória oficial excluindo os
indesejáveis. Sendo assim, sempre vai existir uma memória que permanecerá
como subterrânea, uma dor que é difícil de se curar pelo processo de torná-la
dizível, neste sentido, uma memória subterrânea que compõe o patrimônio
da dor de cada grupo, de cada sociedade.

2 O PATRIMÔNIO DA DOR RETRATANDO A TORTURA


NA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE
A Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2014) foi instalada no Brasil
no final de 2011, no governo da presidenta Dilma Rousseff, e teve como
função principal a reconciliação do Estado com a sociedade brasileira.

216
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

Tratava-se de uma tentativa de recuperar a memória daqueles atingidos pelos


processos de violação dos direitos humanos. O período de trabalho da CNV
compreendeu de 1948 a 1988. Para tanto foram realizados trabalhos em todo
o Brasil, visando a coletar depoimentos de pessoas que foram atingidas nos
períodos autoritários, principalmente durante a ditadura civil-militar brasileira
(1964-1985). A CNV desenvolveu atividades com parceria de várias entidades
de proteção aos direitos fundamentais em todo o Brasil, cujo trabalho
consistiu na cooperação para a recuperação da verdade históricas nos períodos
marcados pelo autoritarismo do Estado.
A memória subterrânea é fundamental para o entendimento dos
períodos autoritários, segundo Canabarro (2014), formada por um conjunto
de dados que abordam os mais diferentes sentimentos ou sequelas do
autoritarismo deixados na sociedade contemporânea, tais como: atos
de violações de direitos; cicatrizes marcadas no corpo e na alma dos que
sofreram com as violações. Tais atos sofridos ficaram guardados na memória
dos que foram torturados e presos, na dor das famílias que tiveram pais e
filhos desaparecidos sem nenhuma informação do seu paradeiro; famílias
ainda esperam notícias dos seus desaparecidos. É uma memória subterrânea
traumatizante, por um lado, para a família dos desaparecidos e, por outro,
para o Estado que permitiu esse tipo de violação de direitos.
O papel principal da CNV foi compreender as memórias subterrâneas
das pessoas e/ou grupos que foram vítimas da violação dos direitos humanos
nos períodos autoritários no Brasil, com ênfase maior para o período da
ditadura civil-militar. Tratou-se de uma tarefa delicada, pois lidou com as
emoções das pessoas, com os não ditos reprimidos há muito tempo. Muitos
depoentes tiveram seus sentimentos traumatizantes trazidos à tona, momentos
de raras emoções reprimidas pelos longos silêncios da História recente do
Brasil. Os depoentes fizeram exposições do que passaram nas torturas e
prisões, toda a dor e trauma reprimidos; muitos também perderam familiares
ou nunca tiveram notícias de seus desaparecidos. Muitas pessoas que foram
mortas eram enterradas em cemitérios clandestinos em lugares nos quais
nunca mais foram encontrados os corpos. Os depoimentos colhidos pela CNV
são extremamente comoventes pelo fato de que as pessoas se emocionaram
muito ao lembrarem de suas memórias subterrâneas.

217
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

Não é possível recuperar uma verdade histórica sem pensar nos atores
sociais envolvidos neste processo, são pessoas de ambas as posições: de um
lado, os que sofreram com as violações dos direitos humanos, ou mesmo
desaparecidos; de outro, os responsáveis pelas prisões, torturas e mortes.
Os responsáveis pelas torturas apoiaram-se na razão instrumental do Estado
para justificar seus atos criminosos, não respondendo por si próprios, mas
pelo papel que desempenhavam nas instituições. A tarefa mais difícil da CNV
foi conseguir os depoimentos dos torturadores, pois eles se negaram a falar
para a Comissão. Os depoimentos obtidos contaram com a colaboração de
vítimas da ditadura e familiares de mortos e desaparecidos. A recuperação
da documentação sobre a ditadura no Brasil foi um trabalho desafiador, pois
muitos deles foram queimados por militares, os depoimentos foram uma das
principais fontes recuperadas.
Os depoimentos prestados à CNV foram extremamente esclarecedores.
Conforme Canabarro (2014), um dos membros do DOI-Codi de São Paulo que
ingressou no Exército em 1965 e integrou a Companhia da Polícia do Exército
informou que somente trabalhava com a análise de informações. Salientou
que nunca participou diretamente de operações de prisões, torturas, mortes
e desaparecimentos de pessoas contrárias ao regime imposto pelos militares.
Nas observações do depoente, já a partir de 1967 a polícia do Exército foi
responsável pelo processo de repressão às organizações de luta armada.
O referido órgão produzia documentos, informes e relatórios relativos às
operações clandestinas de sequestros, cárcere privado, torturas e mortes de
pessoas envolvidas em movimentos de reivindicações no período da ditadura
civil-militar.
Segundo informações encontradas no Relatório da CNV, a prática
escancarada da tortura já teve início nos primeiros da ditadura civil-militar; os
dados informam que já a partir de 1968, com o AI-5, a tortura tornou-se uma
política de Estado, servindo de instrumento de controle social, os opositores
foram torturados na tentativa de confessarem os planos dos mecanismos de
oposição. Nas observações encontradas na CNV (2014), a tortura foi utilizada
com regularidade nos vários órgãos de estrutura repressiva em todo o Brasil,
nas delegacias, nos estabelecimentos militares, bem como em estabeleci-
mentos clandestinos espalhados por todos os Estados brasileiros.

218
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

As pessoas torturadas, segundo Chuquel e Canabarro (2019), eram


oriundas das mais variadas classes sociais, tais como sindicalistas, esposas de
aprisionados, professores universitários e/ou da Educação Básica, políticos,
mulheres grávidas, estudantes, crianças, profissionais liberais, membros
da Igreja Católica, jornalistas, artistas e demais pessoas que fossem contra
o regime militar estabelecido no Brasil. Como se pode observar as pessoas
torturadas eram de diferentes procedências, não existiam restrições, bastava
fazer qualquer forma de oposição ao regime para ser enquadrado. O
enquadramento das pessoas era muitas vezes por motivos torpes, bastava ser
casado com alguém suspeito que era chamado para depor e/ou mesmo sendo
aplicada a tortura como forma de confessar alguma coisa para incriminar
determinada pessoa.
Por outro lado, o perfil dos torturadores era mais específico,
trabalhavam nos mecanismos de Estado, eram funcionários públicos tais como:
enfermeiros, médicos, médicos legistas, militares e outros sempre atuando
em estrito cumprimento do dever legal e em prol do que se denominava de
“segurança nacional”. Segundo os dados da CNV (2014), os agentes públicos
não se contentavam em causar dores físicas nos torturados, mas sim em mexer
com o emocional, como se a dor fizesse entrar em conflito com o próprio
espírito. Por outro lado, favorecendo o desempenho do sistema repressivo,
configurando sua sentença condenatória. Prosseguindo com os dados da
CNV (2014), os familiares diretos das vítimas de graves violações dos direitos
humanos podem ser considerados também como vítimas. As autoridades
sempre omitiam a tortura, fazendo com que os familiares das vítimas sofressem
em detrimento de sua integridade psíquica e moral. Os danos causados foram
irreparáveis, tanto os torturados quando seus familiares foram todos vítimas
de um sistema repressor.
Os casos de violência de gênero foram muito comuns nos casos de
torturas com mulheres e meninas, inclusive configurando abusos até sexuais
das vítimas por pertencerem ao sexo feminino. Os mais graves atos de violência
de gênero ocorriam quando as mulheres torturadas estavam grávidas, pois
a situação se agravava um pouco mais, as mulheres sentiam-se ainda mais
vulneráveis do que os homens. A violência de gênero foi explícita, posto que
a tortura atingia também as crianças indefesas; nos casos mais específicos de
esposas de prisioneiros, que também foram aprisionadas pois consistiam em

219
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

alvo fácil de aplicação de práticas de torturas. A tortura dessas mulheres era


vista como uma certa urgência em obter informações, visto que sua vulnerabi-
lidade era ainda maior, a tortura visava a imprimir na vítima a destruição moral
pela ruptura dos limites emocionais, pois carregavam relações emocionais de
parentesco.
Segundo Canabarro (2021), as práticas de torturas durante a ditadura
civil-militar brasileira marcaram de forma drástica a vida de todos que foram
submetidos a elas, foi uma das formas utilizadas para que as pessoas falassem
sobre os movimentos a que pertenciam e/ou fizessem delações sobre
companheiros que permaneciam como clandestinos nos movimentos sociais.
Nos casos mais específicos de mulheres presas, algumas eram militantes e
outras eram companheiras ou familiares de líderes políticos. Ainda que a
prática da tortura já fosse considerada como algo extremamente violento e
desumano, capaz de causar sequelas para toda a vida do torturado, foram
ferramentas comuns de repressão. Quando praticada em mulheres, as
torturas representavam um duplo processo de violação de direitos, pois
além da violência física e psíquica, configura-se como uma violência de
gênero.
Ainda com as observações de Canabarro (2021), nos casos mais
específicos de torturas praticadas contra mulheres, a violência de gênero
chegou a patamares discrepantes, pois confinadas em prisões e casas de
morte, não tinham como defender-se da violência praticada por homens.
Foram ações que mostraram com clareza a violência praticada por um homem
contra uma mulher, decorrente não somente por uma ação contra o corpo
físico, mas essencialmente contra sua condição psíquica. A violência sexual
e as humilhações mostram o papel vulnerável a que as mulheres estavam
condicionadas. Foi uma violência de gênero que cerceou a liberdade das
mulheres, pois ficavam confinadas nas prisões, exércitos e demais órgãos
repressores do Estado. Muitas ações foram realizadas no Brasil após a criação
da CNV e com auxílio da Anistia Internacional, no sentido de dar algum tipo de
suporte e/ou reparação às pessoas e familiares de vítimas da tortura praticada
nos períodos autoritários.

220
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

3 O PATRIMÔNIO DA DOR E O GENOCÍDIO INDÍGENA NO BRASIL


O sofrimento dos povos indígenas no Brasil sempre foi algo ocultado
da memória oficial, foi preciso explorar as dimensões da memória subterrânea
para trazer à tona o sofrimento e as dores dos nativos ao longo de todo o
processo colonizador até o tempo presente brasileiro. Podemos tratar como
genocídio dado ao número de populações dizimadas ao longo da nossa
História, os índios sempre tratados com desigualdade perante os povos
colonizadores. Vamos nos deter nos casos mais recentes de genocídios
indígenas que ainda são permanências na História do Brasil, sendo ocultados
de uma memória oficial, permanecendo no esquecimento, muito recorrentes
nos processos de constituição de uma possível igualdade social brasileira.
A partir da CNV no Brasil foi possível a reconstrução de alguns
elementos da memória dos povos indígenas, as investigações começadas
pela Guerrilha do Araguaia. Na Comissão deram início aos desdobramentos
de questões significativas até então desconsideradas. A violação dos direitos
humanos dos povos indígenas sempre foi uma prática recorrente no Brasil, nos
períodos autoritários chegou-se a configurar como um verdadeiro genocídio.
Os trabalhos da Comissão sobre a Guerrilha do Araguaia foram instigantes,
os seus membros conseguiram visitar os camponeses e índios da etnia Surui,
e segundo Canabarro (2014) foi possível visitar cemitérios locais e a Serra
das Andorinhas, na tentativa de mapear um possível número de mortos na
ditadura. A Comissão teve a oportunidade de conhecer não apenas os abusos
sofridos pela população da região no período de repressão à guerrilha, mas
também as condições das populações na atualidade. O sofrimento atual da
população deve-se em grande medida em razão das perdas materiais que
lhes foram impostas pela aliança entre militares e latifundiários da região do
conflito.
A CNV conseguiu obter depoimentos de camponeses e indígenas do
Araguaia que foram vítimas de violação de direitos humanos durante a ditadura
civil-militar brasileira. Muitas pessoas foram presas e torturadas e os índios
mortos pelos militares. O legado da Guerrilha do Araguaia permanece vivo
na memória do tempo presente e por meio dos depoimentos foi possível a
recuperação da memória subterrânea de pessoas envolvidas pelo conflito.
Foi um verdadeiro massacre, um genocídio, dada a quantidade de mortes
e desaparecimento de indígenas que habitavam a região, os quais lutaram

221
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

pela permanência em suas terras. As torturas, as prisões e as mortes foram


implacáveis e todos os acusados de lutar ou apoiar o movimento foram presos,
torturados e dados como desaparecidos, ou seja, mortos, pois nunca mais
foram encontrados.
A questão indígena no Brasil permanece à margem de uma abordagem
que consiga trazer à tona o indizível, as memórias permanecem como não
ditas, os massacres que essas populações sofrem cotidianamente é algo
assustador e não narrado por uma historiografia oficial. Tratados como
minorias, são excluídos de uma narrativa nacional, às vezes até vistos como
povos folclóricos dado a seu estilo de vida muito peculiar a sua cultura. A
vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil deu margem para serem
tratados como minorias, suas dores e sofrimentos são recorrentes desde o
início da colonização do Brasil, quando eram tratados como coisas, nem como
pessoas eram considerados. Com essas peculiaridades de tratamento foram
duramente atingidos durante a ditadura civil-militar brasileira. Uma verdadeira
coisificação do índio, ou seja, eram tratados como coisas, dando margem a
uma inferioridade discrepante na sociedade brasileira.
Os povos indígenas sofreram constantes ataques as suas terras durante
a ditadura civil-militar brasileira, os governos desse período não hesitaram nas
expulsões, tornando os índios cada vez mais vulneráveis. Conforme Meier,
Chuquel e Canabarro (2023), os governos militares, além de expulsar os
povos indígenas, continuavam a fazer as falsas demarcações, que na verdade
só beneficiava os próprios militares e seus parceiros. Além das terras que não
haviam sido demarcadas, os governos militares faziam pactos com os Estados
brasileiros para a retirada de indígenas de seus territórios. Isso acabou gerando
uma série de conflitos entre o governo e índios, o que causou a morte de
índios nos conflitos estabelecidos entre eles e os posseiros.
A ditadura civil-militar estabeleceu uma massiva violação em relação
aos territórios indígenas, pois incontáveis povos foram violados pelo corrupto
sistema de “esbulho legalizado”, praticado por militares. Como consequência
povos inteiros acabavam sendo expropriados de onde viviam, na maioria das
vezes por atos de violência constantemente utilizados por militares. Esses atos
de violência foram constantes, ocasionando muitas mortes de indígenas, pois
eram violentamente atacados sem condições de defesa de sua integridade física
e/ou de seu território de pertencimento. A expulsão dos povos indígenas era

222
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

vista como necessária para que as terras fossem desocupadas e o avanço do


agronegócio e do latifúndio fosse concretizado. Neste contexto ditatorial, os
povos indígenas brasileiros eram considerados empecilhos ao governo militar,
o que fez crescer a prática de expulsão de suas terras, dessa forma acirrando
ainda mais os conflitos e as mortes.
Ainda segundo Meier, Chuquel e Canabarro (2023), a vida dos povos
indígenas no período da ditadura (1964-1985) tornou-se um verdadeiro
martírio – não que anteriormente fosse tranquila e harmoniosa – em
decorrência dos descalabros protagonizados pelos golpistas, fossem eles civis
e/ou militares. Nesse período a expulsão dos índios de seus territórios se
agravou e os conflitos tornaram-se mais intensos. Ocorreu a perda das garantias
das terras pertencentes aos indígenas, juntamente com a ocupação e grilagem
desses vastos espaços, afastando o direito pertencente aos povos originários.
A luta pelas demarcações tornou-se mais intensa, os indígenas cada vez mais
desapropriados de suas terras, agravando a situação de vulnerabilidade social
desses povos. A vulnerabilidade tornou-se mais intensa, o agravamento da
pobreza aumentou, ocorreu a expropriação de seus territórios e violações
de seus direitos fundamentais. Tudo isso contribuiu para o acirramento de
conflitos entre índios/governo/posseiros, causando mais vulnerabilidade e
mortes, configurando um verdadeiro genocídio indígena durante a ditadura
civil-militar brasileira.

4 O PATRIMÔNIO DA DOR NA PANDEMIA DO COVID 19 NO BRASIL


O mundo viveu no limiar do século 21 uma nova pandemia, uma
verdadeira história do medo revisitada. Conforme Canabarro, Strucker e
Hann (2020), o mundo viveu um novo medo da morte pelo coronavírus,
o medo se alastrou rapidamente, pois as notícias notificavam o crescente
número de mortes a cada dia que passava. Uma pandemia mostrou nossa
fragilidade, ameaçou nossa existência de forma cruel, a morte nunca esteve
tão perto para muitas famílias que perderam seus entes queridos. O avanço
crescente da pandemia nos revelou o perigo nos países e regiões mais pobres,
onde as condições sanitárias são mais precárias e expuseram grande parte de
populações ao perigo do contágio. Em locais com conglomerações humanas
acentuou os riscos de contágios e mortes, o que tornou mais difícil manter

223
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

o isolamento social. A própria organização dos espaços urbanos colocou as


pessoas em situação de risco, os subúrbios das cidades não apresentam lugares
seguros de distanciamento, ou seja, são na verdade grandes conglomerados.
O medo coletivo rondou os imaginários sociais, várias representações
foram elaboradas com a finalidade de dar respostas às indagações e vazios
existenciais que cada ser humano carrega dentro de si. As práticas sociais
e a convivência com muitas mortes mostraram que o medo voltou a fazer
parte do cotidiano das pessoas durante a pandemia. Conforme Canabarro,
Strucker e Hann (2020), o medo da morte está presente em cada um de nós,
ele apresentou-se num imaginário muito próximo, propagado por diferentes
religiões e credos ele chegou cada vez mais próximo da população, os que a
fez agir com uma certa fragilidade perante a morte. Somente a descoberta das
vacinas foi algo que colocou uma certa certeza de que a pandemia poderia ser
controlada, antes das vacinas o medo foi propagado no mundo inteiro, pois
a pandemia atingiu todos os continentes.
A história do medo, ou mais especificamente do medo da morte
numa pandemia, pode ser analisado em duas dimensões: o medo individual
e o coletivo, salientando que ambos são permeados pelos sentimentos
e entrelaçados por representações que são coletivas. Mesmo estudos
psicanalíticos têm dificuldades de estabelecer as barreiras da mente humana
em relação ao medo, afirma Delumeau (2009), que embora na contempora-
neidade haja mais sensibilidade em relação ao medo, não foi apenas a covardia
que era determinada socialmente, o medo pode ser considerado como um
componente da experiência humana. Fazemos esforços contínuos para
superá-lo, mas ele está dentro de cada um de nós, indivíduos historicamente
datados numa determinada sociedade. E numa sociedade marcada por uma
pandemia tudo isso agravou-se de forma acentuada, reforçando o medo da
doença e da morte constantemente.
Conforme Canabarro (2022), a pandemia da Covid-19 mudou os
arranjos espaciais nas cidades brasileiras, os espaços privados passaram a ser
os principais locais de convivências em oposição aos espaços públicos. Esses
novos arranjos transformaram-se, num primeiro momento, num lugar de
isolamento espacial e social. Alguns lugares públicos foram considerados como
não lugares, pois eram proibidas as convivências públicas. O não lugar era
onde não se permitia conviver, ou até mesmo o lugar onde ninguém gostaria

224
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

de estar, por exemplo nos hospitais. Criou-se uma verdadeira dicotomia entre
o lugar e o não lugar, uma oposição de onde se gostaria de estar e onde
temia-se estar. A pandemia da Covid-19 vitimou aproximadamente 700.000
mil mortes somente no Brasil, foi assustadoramente construído um novo
patrimônio da dor no Brasil pelas perdas de pessoas e seus familiares. É
preciso estudar com mais afinco esse patrimônio da dor para que consigamos
entender a real dimensão da pandemia no nosso país, que deixou um legado
de dor e sofrimento nas famílias brasileiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo o patrimônio da dor é uma testemunha de sofrimento, capaz de
nos trazer fragmentos de reminiscências daquilo que não se quer na história,
por meio de elementos tanto da memória individual quanto coletiva. Essas
memórias permeiam os imaginários coletivos e por receio da dor, muitas
vezes são esquecidas, deixadas somente no não dizível. É nesse ponto
de intersecção, todavia, que se encontram os pesquisadores que trazem
à tona o que permaneceu por muito tempo como não dito. No processo
de reconstrução das memórias, de revisitar episódios traumáticos, sejam
eles experienciados individualmente ou em grupos, é preciso ter coragem
e confiança para expô-las, afinal, analisar essas permanências pode causar
sofrimentos no decorrer das falas e das escutas. Por outro lado, também é um
momento de libertação dos traumas psíquicos que atormentam indivíduos e/
ou grupos sociais, além da retomada de sujeito de suas próprias histórias, ao
poder contar suas memórias tornando o não dito em algo dito.
As configurações do patrimônio da dor revelados por meio da
memória subterrânea é uma forma de trazer à tona um conjunto consistente
de representações que permeiam nossos imaginários e práticas sociais. As
representações das memórias subterrâneas dizem respeito a tudo aquilo
que permaneceu como não dito durante muito tempo, aquilo que parecia
inconfessável torna-se algo dizível quando encontra uma escuta segura e
confiável. As práticas de torturas no Brasil permaneceram por muito tempo
como algo velado, uma memória para ser esquecida, mas a CNV nos trouxe
à tona um conjunto significativo de memórias subterrâneas que precisam
ser desveladas e fazerem parte de uma memória social brasileira. A questão
indígena no Brasil também nos aparece como uma incógnita, um sofrimento

225
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

coletivo de populações que são simplesmente relegadas ao esquecimento. A


questão de uma memória sobre a pandemia da Covid-19 ainda é algo muito
recente, mas configura-se como uma memória que compõe um patrimônio
da dor a ser desvelado.
Em uma perspectiva pós-estruturalista a questão do patrimônio da dor
apresenta-se como um objeto de múltiplas possibilidades de entendimentos,
pois desloca-se de estruturas já estabelecidas para as intersecções entre os
estudos da memória nas Ciências Sociais contemporâneas. A atitude dos
pesquisadores brasileiros em trabalhar com objetos de estudos que remetem
a um conjunto de sofrimentos consiste em um desafio constante. Nós
pesquisadores dos direitos humanos muitas vezes nos deparamos mais com
a violação dos direitos do que suas efetivações, é preciso ir ao rés do chão
e descobrir as fissuras que permeiam a memória brasileira. Muitas vezes o
ocultamento das memórias é essencialmente uma disputa de poder que atinge
as formas de construção do conhecimento.

REFERÊNCIAS
CANABARRO, I. S.; SILVA, J. B.; STRUCKER, B. O patrimônio da dor revisitado:
como a justiça de transição e a Comissão Nacional da Verdade (CNV ) contribuem
para a construção da memória subterrânea dos atingidos pela Guerrilha do
Araguaia. Revista da Faculdade Mineira de Direito, v. 24, PUC Minas, p. 213-234,
2022. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/
view/27478
CANABARRO, I. S.; SCHONARDIE, E. F.; STRUCKER, B. A ressignificação do lugar
e do não-lugar: considerações sobre as dimensões dos lugares em um período
de pandemia no Brasil. Revista Direito da Cidade, Rio de Janeiro: Uerj, v. 14, p.
1-26, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdc/a/bmFD6k3r3g4Hg4P6sJP
74Lc/?format=pdf&lang=pt
CANABARRO, I. S.; STRUCKER, B.; HANN, N. B. A história do medo revisita: ética
da alteridade frente a Covid-19 como uma pandemia do século XXI. Revista
Estudos Teológicos, EST, São Leopoldo, RS, v. 60, n. 2, p. 404-417, 2020. Disponível
em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos

226
O PATRIMÔNIO DA DOR NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TEMPO PRESENTE
Ivo dos Santos Canabarro

CANABARRO, I. S. A pequena história da mulher que foi para a casa da morte e


sobreviveu para contar suas memórias: Inês Etienne Romeu a testemunha ocular
dos horrores da ditadura militar brasileira. Revista História: Debates e Tendências,
Passo Fundo, RS: UPF, v. 21, p. 44-66, 2021. Disponível em: https://seer.upf.br/
index.php/rhdt/issue/view/720
CANABARRO, I. S. Caminhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV ): memórias
em construção. Revista Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis,
SC: UFSC, v. 35, n. 69, p. 215-234, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.
br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2014v35n69p215
CHUQUEL, L. F.; CANABARRO, I. S. A prática escancarada da tortura: as violações
dos direitos humanos durante a ditadura civil/militar brasileira. Revista Brasileira
de Direitos e Garantias Fundamentais, Conpedi, v. 4, 2019. Disponível em:
https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/index
CNV. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da
Verdade. 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/
DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MEIER, A. F.; CHUQUEL, L. F.; CANABARRO, I. S. Violações dos direitos humanos
dos povos indígenas na ditadura civil-militar brasileira. Revista Interdisciplinar
de Direitos Humanos, Bauru, SP, v. 11, n. 1, p. 209-227, 2023. Disponível em:
https://www2.faac.unesp.br/ridh3/index.php/ridh
POLLAK, Michel. Memória esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos,
Rio de Janeiro: CPDOC-FGV, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

227
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS
DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
Da Vigilância Deletéria no Contexto Global

Mateus de Oliveira Fornasier

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O colonialismo digital é uma expressão utilizada para descrever a forma
como as empresas e governos de países desenvolvidos usam a tecnologia
para controlar e explorar países em desenvolvimento, com estratégias como
o monopólio do acesso à tecnologia (infraestrutura de Internet e hardware
de computador), o controle do fluxo de informações (acesso a websites e
redes sociais), extração de dados pessoais, controle da propriedade intelectual
e exploração da mão de obra barata em países em desenvolvimento. Esse
fenômeno é devastador para a igualdade no mundo, pois assim se impede
que os países em desenvolvimento atinjam seu pleno potencial econômico e
social, o que contribui diretamente para a pobreza, a fome e, por conseguinte,
instabilidade política.
A África, por exemplo, é o continente mais pobre do mundo, e também
com a menor penetração da Internet, o que significa que os africanos têm
menos acesso à informação, educação e oportunidades de emprego. Nos
países em desenvolvimento da América Latina e da Ásia o problema também se
apresenta complicado, pois esses países têm uma população jovem e crescente
que está sendo deixada para trás na economia digital, o que potencializa ainda
mais o aumento da desigualdade e da instabilidade social.
Como problema motivador desta pesquisa, pode-se identificar o
seguinte questionamento: Que feições o colonialismo assume no atual
cenário de altas tecnologias sendo utilizadas para a vigilância individual e
populacional? Como hipótese, tem-se que o colonialismo, já tão estudado

229
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

em outras searas do conhecimento, atualmente tem feições avançadas


nas comunicações digitais, com os países centrais valendo-se do domínio
econômico, jurídico e político para manter os periféricos na sua dependência,
e isso faz com que populações vulneráveis desses últimos países quedem-se
ainda mais explorados e marginalizados.
Este texto objetiva compreender o fenômeno do colonialismo digital
no contexto da contraposição entre os países do chamado Norte Global e do
Sul Global. Para a consecução desse desiderato, dividiu-se a pesquisa em dois
momentos, cada qual correspondente a um objetivo específico seu. O primeiro
deles ocupa-se da conceituação do colonialismo digital, concentrando-se nos
seus principais elementos teóricos característicos. Já o segundo contextualizará
o fenômeno no âmbito da vigilância, seja de populações vulneráveis dentro de
um mesmo país, seja de um país em relação à população de outros, sempre
focando-se no colonialismo mediado por altas Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs).
Metodologicamente, trata-se de pesquisa exploratória que se vale do
procedimento hipotético-dedutivo, com abordagem qualitativa e técnica de
pesquisa bibliográfica e documental.

1 CONCEITUANDO O COLONIALISMO DIGITAL


As Tecnologias de Informação e Comunicação, a inovação em IA e a
capacidade de estabelecer sistemas e infraestrutura em mercados emergentes
de modo muito rápido estão concentradas em poucos países (nomeadamente,
EUA e China), que competem pelo primeiro lugar em tais capacidades.
Nesse contexto, Pinto (2018) elenca três elementos, escassos (ou ausentes)
nos países em desenvolvimento, que são dominados pelas empresas que se
encontram em tais países: a) recursos de capital (propriedade e controle de
infraestruturas de hardware, software e dados) e intelectuais (instituições
técnicas e de pesquisa); b) arquitetura jurídica (nacional e internacional) que
oblitera as possibilidades de adoção, pelos países mais fracos, de políticas
favoráveis à produção e à compra de bens e serviços produzidos internamente
(principalmente sanções internacionais pela adoção de medidas anticompe-
titivas, sistema artificialmente restritivo em relação ao compartilhamento do
conhecimento e à capacidade de inovar em etapas avançadas); c) disponibi-
lidade de capital financeiro para experimentar e projetar novos modelos

230
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

(posto que países em desenvolvimento estão, geralmente, com austeridade


nas finanças, o que explicita a desigualdade digital na educação e na pesquisa,
levando à dependência tecnológica absoluta).
Essa dependência tecnológica da maioria dos países do mundo, e
principalmente daqueles ainda não considerados desenvolvidos, engendra
uma situação que pode ser denominada, entre outras nomenclaturas análogas,
colonialismo digital. Conforme explica Kwet (2022), colonialismo digital é
o uso da tecnologia digital para controle (político, econômico e social) de
uma nação ou território estrangeiro, o que se alcança, mormente, mediante
controle e propriedade do ecossistema digital (software, hardware e
conectividade de rede) projetado para lucro e pilhagem, incluindo a extração
de renda e dados. É complementado e integrado a fontes e circuitos de poder
mais tradicionais, tais como capital financeiro, dominação de sistemas jurídicos
e exploração do trabalho em cadeias globais de commodities.
O principal personagem nesse colonialismo são os EUA, hegemônicos
sobre a sociedade global mediante o poder de empresas transnacionais neles
sediadas que dominam a maioria dos setores e funções no ecossistema digital,
como mecanismos de busca, navegadores da web, sistemas operacionais de
smartphones e tablets, desktop e laptop, chips de computador, software de
escritório, infraestrutura e serviços em nuvem, plataformas (de redes sociais,
transporte, entretenimento e publicidade on-line, entre outros produtos e
serviços.
A China seria o segundo maior protagonista, mas suas empresas
de tecnologia são controladas nacionalmente e exercem poder dentro das
suas fronteiras. Fora do continente, a China tem participação de mercado
substancial em algumas áreas, como 5G, câmeras de circuito fechado de TV,
smartphones e contratos de cidades inteligentes. A China, no entanto, está
bem atrás dos EUA, representando pouca ameaça ao domínio americano na
economia digital global.
Couldry e Mejías (2018) apontam os principais elementos teóricos
do colonialismo digital. A exemplo do que ocorria com recursos naturais
no colonialismo que se deu entre os séculos 16 e 20, a “naturalização da
abundância” é o principal meio de funcionamento do colonialismo digital. Até
então, colocava-se que as terras conquistadas eram simplesmente res nullius,
devendo ser apropriadas e utilizadas nos processos econômicos. Quanto

231
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

aos dados, são visualizados como gratuitos, simplesmente compartilhados,


não tendo valor per se. É claro que essas são construções necessárias para o
embasamento jurídico-filosófico da apropriação colonialista.
Já o principal ator desse colonialismo são as organizações do chamado
“setor de quantificação social”, capazes de capturarem dados produzidos no
cotidiano das plataformas, motores de busca e outros meios de interação em
rede, em dados organizados de modo quantificado, traduzindo-os assim em
análises a partir das quais é possível a geração de lucro. Os melhores exemplos
desses atores são, atualmente, as chamadas Big techs, tais como Amazon,
Google, Meta e Alibaba – porém, há outras organizações menores em outros
setores (de saúde, de segurança pública, etc.) capazes dessa forma de tradução
de dados em ganhos financeiros. A exemplo dos documentos de requisição
que colonizadores apresentavam aos nativos dos territórios coloniais, cuja
autoridade recaía na força física e tecnológica daqueles (navios, armas de
fogo), atualmente tais atores valem-se da concentração do poder econômico
por detrás dos termos de uso das plataformas para subjugar seus usuários.
O principal meio de extração, assim, é a plataforma, a qual, para além
de mera invenção pontual, permite a tradução de toda a vida social em relações
em rede. Assim, são o meio no qual as informações produzidas a partir de
interações e novas formas de organização social são disponibilizadas. Não é,
porém, o único meio para tal: a imensa quantidade de logísticas guardadas
por dados (data-driven), coletando e processando em grandes quantidades
e em tempo real os dados produzidos, na grande maioria das vezes, a partir
de trabalho não remunerado (postagens, operações realizadas na Internet em
geral), corroboram para essa extração. Em terceiro lugar, essa extração se dá a
partir dos meios de mapeamento e coleta de dados realizados pelos próprios
indivíduos (self-tracking) em aplicativos e vestíveis como relógios inteligentes,
telefones celulares e assistentes pessoais.
A partir dos meios de extração promovidos pelos atores desse
colonialismo, embasados na naturalização da abundância de dados, novas
formas de socialização surgem. O atrelamento de tais relações a julgamentos
baseados em dados é uma delas. Todo fato ou ação é traduzido em postagens
e coletas de dados, os quais são julgados pelas redes (ocasionando reações
como likes, shares e RTs, por exemplo), fazendo com que incentivos (nudges)
influenciem as decisões dos indivíduos. Assim, a própria personalidade é

232
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

colonizada. Indivíduos tornam-se sujeitos de dados, perfilados conforme


informações organizadas pelos próprios atores desse colonialismo, e que
direcionarão a eles suas ações de acordo com meios de vigilância de dados.
Kwet (2019) expõe que o chamado Norte Global (principalmente
representado pelos EUA) está reinventando o colonialismo no Sul Global
por meio do domínio da tecnologia digital. Empresas oriundas desse Norte
controlam de modo imperial a arquitetura do ecossistema digital (software,
hardware e conectividade de rede), originando novas formas de dominação.
A dominação econômica, representada pelo monopólio da atividade por parte
de tais empresas é usado para extração de recursos por meio de aluguel e
vigilância. Já o controle imperial ocorre porque tais empresas controlam as
experiências mediadas por computador, o que lhes confere poder direto sobre
os domínios políticos, econômicos e culturais da vida dos usuários. Por sua
vez, desenvolve-se um sistema de capitalismo de vigilância global cuja peça
central, o Big Data, viola o direito fundamental à privacidade dos indivíduos
e concentra o poder econômico nas mãos de tais empresas. Intensifica-se
esse sistema com a associação das agências de inteligência do Norte Global
às empresas em questão, realizando-se a vigilância em massa e direcionada
no Sul Global. As elites dos EUA persuadiram as pessoas de que a sociedade
deve proceder de acordo com as concepções de classe dominante do mundo
digital, estabelecendo as bases para a hegemonia tecnológica.
Segundo Figueiredo (2021), há tensões geopolíticas atuais envolvendo
diretamente o desenvolvimento e a instituição de infraestruturas das mídias,
destacando-se que as infraestruturas de cabos submarinos de fibra óptica
relacionam-se a tais tensões – que envolvem também questões ligadas a
território, espionagem, imperialismo infraestrutural e colonialismo de dados.
Os cabos submarinos deveriam, assim, também ser entendidos como recurso
comum, administrado a partir do interesse público e de modelos alternativos
ao de domínio estatal ou privado.
Lippold e Faustino (2022) consideram o colonialismo um fenômeno do
neocolonialismo tardio do capitalismo. Ele seria apresentado como potência
neutra e benevolente proveniente do Vale do Silício californiano, assumindo
a ideologia de tal ambiente contornos imperialistas, incluindo as contradições
de classe e raça de lá provenientes.

233
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

Nesse contexto, as tecnologias informacionais têm velozmente


expulsado cada vez mais trabalho vivo do interior das fábricas, havendo assim,
no atual estágio de acumulação capitalista, uma tendência à conversão das
forças produtivas em forças destrutivas.
A queima de trabalho vivo atual também passa a ser lucrativa, se
devidamente controlada em territórios malditos, delimitados por grandes
interesses imperialistas de acumulação. E o racismo segue tendo a função
econômica de distinguir aqueles que podem ser excluídos sem implicações
éticas por parte daqueles cuja cor será tomada como parâmetro universal.
A incorporação da IA em diversos campos tem gerado problemas
de exclusão e desigualdade social. Há algoritmos que estigmatizam negros,
que concedem menos crédito às mulheres em razão do seu gênero e que
impossibilitam diretamente o acesso a empregos por vários motivos. Não
se trata de um problema somente de base de dados que serve de substrato
para o sistema de IA, mas também da decisão sobre quem define ordens e
ações dos programadores. Se algoritmos, porém, decidem sobre as pessoas
(liberdade, trabalho, acesso a seguros, saúde e outras questões fundamentais
da vida), é fundamental a sua regulação. Apesar da quase obviedade da
premissa anterior, as instituições que estabelecem as regras da economia
mundial, principalmente a Organização Mundial do Comércio (OMC), levam
a crer que se trata de uma tarefa árdua. Direitos de propriedade intelectual
são controversos, pois é forte demais o argumento da geração de renda
adicional para reinvestir para defender sua existência. Há argumentos apoiados
em evidências empíricas, porém, de que a humanidade estaria melhor sem
eles. Por exemplo, desde o final de 2020 vários países e organizações sociais
reivindicam na OMC a extinção da regulamentação de propriedade intelectual
de vacinas contra a Covid-19 para garantir acesso, fabricação e distribuição
para toda a humanidade, salvando vidas em troca do sacrifício dos lucros
extraordinários de algumas empresas farmacêuticas. Ademais, a ideia de que a
inexistência dessas regras acabaria com a inovação é falsa: elas existem na OMC
há pouco mais de 25 anos, e a inovação tecnológica tem sido experimentada
pela humanidade há muito mais tempo do que isso. Tais regras limitam
não apenas o acesso às vacinas, mas também a possibilidade de acesso aos
códigos-fonte da IA. As empresas responsáveis por tais atividades se protegem

234
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

com um véu de sigilo e poder, mas decidem sobre a vida das pessoas sem a
possibilidade de conhecer os critérios de seleção, os dados considerados ou
se houve discriminação ativa (Scasserra, 2021).
Sendo assim, tem-se que as Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs), juntamente com a inovação em Inteligência Artificial (IA) e a capacidade
de estabelecer rapidamente sistemas e infraestrutura em mercados emergentes,
estão concentradas em alguns países, como os Estados Unidos e a China, que
competem pela liderança nesses campos. Essas nações dominantes controlam
recursos de capital e intelectuais, além de possuírem uma arquitetura jurídica
que limita as possibilidades de adoção de políticas favoráveis aos países em
desenvolvimento. A disponibilidade de capital financeiro para experimentação
e desenvolvimento de novos modelos também é escassa nesses países mais
fracos, resultando em uma desigualdade digital na educação e pesquisa, o
que leva a uma dependência tecnológica absoluta. Essa dependência pode ser
considerada uma forma de colonialismo digital, em que o controle político,
econômico e social é exercido por meio da tecnologia digital, com empresas
transnacionais dos EUA desempenhando um papel dominante nesse processo.
A China também tem participação significativa, mas principalmente dentro
de suas fronteiras. O colonialismo digital baseia-se na extração de recursos
e dados, utilizando plataformas e algoritmos que impactam a vida social e
personalidade dos indivíduos. As infraestruturas de cabos submarinos de fibra
óptica também são pontos de tensão geopolítica, envolvendo questões de
território, espionagem e colonialismo de dados. Esse cenário é impulsionado
por um sistema de capitalismo de vigilância global, em que grandes empresas
controlam o ecossistema digital e violam o direito à privacidade. A IA
também apresenta problemas de exclusão e desigualdade, com algoritmos
que reproduzem estigmas e discriminações. A regulação é essencial, mas
instituições como a Organização Mundial do Comércio enfrentam dificuldades
em lidar com essas questões, devido aos interesses de propriedade intelectual
e geração de lucro. Há, no entanto, argumentos a favor da extinção dessas
regras, como no caso das vacinas contra a Covid-19, que poderiam salvar vidas
se fossem amplamente acessíveis. As empresas que controlam essas tecnologias
mantêm um véu de sigilo e poder, tomando decisões que afetam a vida das
pessoas sem transparência.

235
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

2 IA, VIGILÂNCIA E COLONIALISMO DIGITAL


No entendimento de Morris (2023), as agências de aplicação da lei
tornaram-se cada vez mais dependentes da tecnologia de reconhecimento
facial como uma poderosa ferramenta de vigilância na luta contra o crime.
Tal tecnologia, porém, desenvolveu-se num ritmo muito maior do que o
Direito e a política, o que resultou, em muitos lugares, em supervigilância não
regulamentada, gerando dúvidas sobre má conduta policial e discriminação
étnica, inclusive mediante viés algorítmico racial contra comunidades
tradicionais do Sul Global. Nesse sentido, a vigilância digital tem atuado,
muitas vezes, em detrimento dos direitos humanos e da privacidade.
Assim, as políticas de utilização de ferramentas digitais tão úteis e
poderosas quanto as de reconhecimento facial devem não apenas incluir
garantias para a colaboração ativa das comunidades tradicionais, mas também
de que essa colaboração permanecerá por longo prazo, incluindo não apenas
o monitoramento do resultado produtivo da aplicação das tecnologias,
mas também de eventuais danos colaterais que sua aplicação meramente
colonialista possa estar causando. Ou seja, sistemas éticos de coleta e
gerenciamento de dados, baseados também em fundamentos jurídicos do
Sul Global, devem ser desenvolvidos para o desmantelamento de práticas
colonialistas.
É claro que os conceitos de “norte” e “sul”, no que respeita ao
colonialismo digital – assim como ocorre com o colonialismo que ocorreu até
o século 20 – não se confundem com noções geográficas do termo. Segundo
Mann e Daly (2019), por exemplo, a Austrália pode ser considerada um “norte
no sul” no que tange a tais práticas coloniais. Particularmente no que concerne
às práticas do seu Estado para com os povos indígenas que nela habitam, esses
indícios se confirmam, bem como quando se observa suas interações para com
seus vizinhos do Sul Global.
Toda a população australiana é vigiada por meio da participação do
país na chamada Aliança Cinco Olhos, que integra junto com Canadá, Nova
Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos, com fulcro na cooperação entre as
inteligências de tais Estados. Ademais, leis e políticas domésticas enunciam
a retenção compulsória de dados. Como não há uma proteção abrangente
dos direitos humanos nesse âmbito, a coleta de dados não encontra óbices
significativos. Agrava a situação, porém, o fato de algumas políticas de dados

236
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

australianas visarem a grupos marginalizados e minoritários internamente


e na fronteira, bem como para com países vizinhos mais pobres da região.
Assim, pode-se levantar uma hipótese de o Big Data estar sendo usado para
a perpetração de preconceitos contra tais grupos, especialmente pessoas
de cor e de baixa renda. Em tais práticas os indivíduos são expropriados de
seus dados, o que é intensificado contra os grupos marginalizados, eis que
nenhuma forma de soberania (inclusive digital) aos povos colonizados foi
reconhecida por aquele Estado.
Barabas (2023) estuda detalhadamente o caso do software Verus,
serviço de transcrição de voz baseado em Inteligência Artificial (IA) para
reforçar a percepção da necessidade de instituições penais durante os
primeiros meses da pandemia de Covid-19. Duas eram as principais ocasiões
que os funcionários do governo usaram tal ferramenta em meio à crescente
pressão para libertar prisões e cadeias: (1) produzindo narrativas para
caracterizar pessoas encarceradas vulneráveis e suas comunidades como
perigosas e, portanto, descartáveis, e (2) protegendo as instituições carcerárias
contra a responsabilização por eventuais negligências sistemáticas, forjando
evidências contrárias a tais alegações.
As tecnologias baseadas em dados, para a autora, tornam-se veículos
para captura de movimento e reprodução de lógicas prisionais que permitem
modos de exploração econômica racializada estendendo-se muito além da
economia de inovação de alta tecnologia. Sistemas como o Verus advêm
de reformas administrativas que visam à sustentação da natureza orientada
para o futuro do capitalismo racial como prática social inovadora que se
reinventa continuamente diante de circunstâncias em mudança. Assim,
quando a crítica confronta tais sistemas com desafios ao status quo,
eles permanecem resilientes por meio de processos complementares de
demonização e sanitização racializada – ou seja, estabiliza-os funcionalmente.
Essa funcionalidade estabilizadora é elemento central para o trabalho no
colonialismo digital, pois exige o reconhecimento dos modos pelos quais
as ideias de cárcere e de criminalização sustentam formas contínuas de
acumulação de capital e de desigualdade social.
O caso de Verus destaca as maneiras pelas quais os sistemas orientados
a dados propagam danos coletivos distintos a serviço do fortalecimento de
hierarquias sociais instáveis. Como resultado, devemos pensar além das

237
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

estratégias liberais de propriedade de dados ou governança de plataforma


descentralizada, para descobrir as maneiras pelas quais as economias de dados
possibilitam formas comunais de criminalização e banimento racial. Quando
essas conexões são colocadas em primeiro plano, é possível desenvolver
estratégias mais robustas para identificar e transformar relações econômicas
exploradoras decorrentes de economias de dados.
Young (2019) destaca que a introdução das TICs nas comunidades
indígenas pode exercer violência epistêmica contra os sistemas de
conhecimento locais. Isso porque o envolvimento digital corrói os principais
componentes do sistema de conhecimento tradicional, incluindo práticas
sociais dentro das comunidades, viagens fora da comunidade e aprendizado
experimental fora da comunidade.
Tecnologias digitais mediam a comunicação de modos enviesados,
não sendo neutras. Práticas e arquiteturas digitais moldam de modo sutil
as interações e as representações do conhecimento de cada indivíduo. O
engajamento digital mina dois aspectos cruciais dos sistemas de conhecimento
tradicional, quais sejam, a socialização incorporada e o aprendizado
experiencial na terra em que habitam. Pode ocorrer de tais fatores físicos
serem substituídos por horas em frente a dispositivos eletrônicos conectados
a redes sociais, por exemplo.
Não se trata, aqui, de simplesmente eliminar o digital da vida dessas
comunidades, mas sim, do desenvolvimento de políticas para que um
equilíbrio entre os sistemas tradicionais de conhecimento e o engajamento
digital – o que, se conduzido de forma adequada, pode até mesmo fazer
com que as TICs auxiliem na preservação do conhecimento tradicional por
meio do armazenamento e do rápido acesso, por exemplo. Ademais, pode
causar maior diversidade do desenvolvimento de conteúdo digital, tornando
o conhecimento desenvolvido de formas diversas da digital-colonialista
disponível, incluindo esse conhecimento no manancial da conectividade ao
invés de marginalizá-lo.
Tem-se, assim, que as agências de aplicação da lei têm se tornado
cada vez mais dependentes da tecnologia de reconhecimento facial como
ferramenta de vigilância. A rápida evolução dessa tecnologia, no entanto,
tem superado os avanços legais e políticos, resultando em supervigilância
não regulamentada, levantando preocupações sobre má conduta policial e

238
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

discriminação étnica, incluindo viés algorítmico racial. A vigilância digital


muitas vezes compromete os direitos humanos e a privacidade. É necessário
desenvolver políticas que incluam garantias de colaboração das comunidades
afetadas e que abordem os danos causados pela aplicação colonialista dessas
tecnologias. O caso do software Verus ilustra como as tecnologias baseadas
em dados podem ser usadas para perpetuar o sistema prisional e ampliar a
exploração econômica racializada. É importante reconhecer como as ideias
de encarceramento e criminalização sustentam a acumulação de capital e a
desigualdade social, além de buscar estratégias para identificar e transformar
essas relações exploradoras. A introdução das Tecnologias da Informação e
Comunicação (TICs) nas comunidades indígenas pode resultar na erosão dos
sistemas de conhecimento tradicional, prejudicando a socialização incorporada
e o aprendizado experiencial na terra em que habitam. É necessário encontrar
um equilíbrio entre os sistemas tradicionais de conhecimento e o engajamento
digital, para preservar o conhecimento tradicional e promover a diversidade
no desenvolvimento de conteúdo digital.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Empresas localizadas em poucos países do mundo – notadamente EUA
e China – detêm recursos e dominam a arquitetura jurídica que impedem o
desenvolvimento, por parte de países em crescimento, de estruturas diversas,
o que leva à dependência tecnológica e ao aumento de desigualdade no acesso
aos capitais tecnológico e intelectual. Essa estrutura exprime uma situação
de colonialismo digital, que enfraquece a soberania de tais países também
no plano tecnológico, com drásticas consequências para o desenvolvimento
humano e institucional para os cidadãos de tais países.
Muito daquilo que se vislumbra no colonialismo característico
dos quatro séculos anteriores ao atual pode ser vislumbrado no chamado
colonialismo digital. A plataformização, os meios de quantificação para a
tradução de dados em lucro e a naturalização dessa abundância de dados
produzidos como trabalho sem qualquer contrapartida significativa permitem
o controle e a apropriação de todos os aspectos da vida humana em sociedade
por atores que não encontram significativos entraves regulatórios.

239
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

O Norte Global, representado principalmente na figura de grandes


empresas dos EUA, reinventa o colonialismo no Sul Global mediante o
domínio da tecnologia, controlando o ecossistema digital, resultando assim
em uma dominação econômica (monopólio e extração de recursos) e controle
imperial (das experiências de vida mediadas por computador). Desenvolve-se
dessa forma um capitalismo de vigilância global violador da privacidade
individual e concentrador de poder econômico nas mãos de poucas Big Techs.
Nessa senda, colonialismo digital pode ser entendido como uma versão
imperialista da ideologia do Vale do Silício estadunidense, dstacando-se que
a destruição das forças produtivas vivas gera uma massa de excluídos que,
devidamente controlada dentro de territórios delimitados pelos interesses
de acumulação capitalista, pode gerar lucros. E o racismo, nesse contexto,
agrega em si a função econômica de criar distinção entre aqueles que podem
ser excluídos por aqueles cujo padrão de vida (inclusive a aparência) será
tomado como parâmetro universal.
Para além das questões dos algoritmos e do Big Data, há outras tensões
infraestruturais do colonialismo de dados a serem consideradas. Entre elas, a
conscientização de que a ideia da “nuvem” é uma metáfora talvez inadequada,
pois os dados do Big Data circulam até em infraestruturas localizadas em
países do Norte Global, mediante cabos submarinos de fibra ótica também
administrados dessa forma territorialista e colonialista.
Regras internacionais protegem a propriedade intelectual de poucas
empresas sobre códigos-fonte de algoritmos da IA que decidem sobre a
liberdade, a saúde, o acesso a empregos, saúde e crédito das pessoas. Embora
seja muito forte o argumento de que a inovação só é possível em razão do
reinvestimento da renda obtida pela exploração de tais direitos, trata-se de
argumento falho, pois tais regras internacionais vigoram há apenas cerca de
um quarto de século na OMC, mas a inovação vem sendo experimentada pela
humanidade ao longo de toda a sua História.
A rápida marcha do desenvolvimento de tecnologias de vigilância de
dados não vem sendo acompanhada pelo desenvolvimento incremental do
Direito e da política. Nesse sentido, a utilização de tecnologias digitais para
a vigilância de populações tem sido muitas vezes aplicada com prejuízos a
comunidades do Sul Global, principalmente em razão do viés algorítmico
racial contra elas, o que é uma prática colonialista. Sendo assim, o desenvol-

240
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

vimento de formas éticas de controle dos vieses de tais ferramentas, baseadas


inclusive nos fundamentos jurídicos dos países e comunidades nos quais são
utilizadas, é um modo de desmantelar práticas colonialistas de dados.
O colonialismo de dados não opera apenas nas relações entre o Norte
Global e o Sul Global, mas internamente dentro dos países integrantes do
Norte, contra suas populações vulneráveis – principalmente nos sentidos
racial e econômico. Encarceramento, criminalização e os modos pelos quais
ferramentas digitais são utilizadas contra tais populações têm uma função
de estabilização do capitalismo de vigilância, naturalizando-o como algo
identificado com uma “marcha para o futuro” quando, muitas vezes, funciona
com a manutenção dos mesmos preconceitos e prejuízos do colonialismo
que imperou até o século 20, porém, desta vez, com base na leitura das
informações extenuantemente produzidas no Big Data a partir do qual
sistemas de IA aprendem a perpetrar visões enviesadas.
Os conceitos de Norte Global e Sul Global, na prática, não se
confundem com as noções geográficas desses termos, observando-se que
países como a Austrália, geograficamente ao Sul, realiza práticas colonialistas
de dados contra povos marginalizados e minoritários dentro de suas fronteiras,
bem como contra vizinhos mais pobres, principalmente quando se considera
a sua integração na Aliança Cinco Olhos, de colaboração entre inteligências da
Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos.
Ademais, tem-se que a comunicação digital não é neutra. Ela ressignifica
sutilmente as interações e as representações de mundo, o que pode acabar
com sistemas de conhecimento desenvolvidos de forma diversa daquela
do Norte Global. Por outro lado, as comunidades do Sul Global tornam-se
ainda mais marginalizadas se privadas do engajamento digital. Sendo assim,
equilíbrios entre a manutenção do conhecimento produzido de forma não
digital e esse engajamento devem ser desenvolvidas.

REFERÊNCIAS
BARABAS, Chelsea. Care as (re)capture: Data colonialism and race during
times of crisis. New Media & Society, p. 1-20, maio 2023. DOI: https://doi.
org/10.1177/14614448231165902.

241
COLONIALISMO DIGITAL E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
DA VIGILÂNCIA DELETÉRIA NO CONTEXTO GLOBAL
Mateus de Oliveira Fornasier

COULDRY, Nick; MEJÍAS, Ulises. Data colonialism: rethinking big data’s relation
to the contemporary subject. Television and New Media, v. 20, n. 4, 2018. DOI:
https://doi.org/10.1177/15274764187966
FIGUEIREDO, Ruy. Cabos submarinos, imperialismo e colonialismo de dados:
situando a geopolítica das infraestruturas. Revista Eptic, v. 23, n. 2, p. 139-157,
2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/15549. Acesso
em: 2 jun 2023.
KWET, Michael. Digital Colonialism and Infrastructure-as-Debt. In: DREISER,
Anja R.; SAMIMI, Cyrus (ed.). Frontiers in African Digital Research. Bayreuth:
University of Bayreuth African Studies Online, p. 65-77, 2022. V. 9. DOI: https://
doi.org/10.15495/EPub_UBT_00005720
KWET, Michael. Digital colonialism: US empire and the new imperialism in
the Global South. Race & Class, v. 60, n. 4, p. 3-26, 2019. DOI: https://doi.
org/10.1177/0306396818823172
LIPPOLD, Walter; FAUSTINO, Deividson. Colonialismo digital, racismo e a
acumulação primitiva de dados. Germinal: marxismo e educação em debate,
Salvador, v. 14, n. 2, p. 56-78, 2022. DOI: http://doi.org/10.9771/gmed.v14i2.49760
MANN, Monique; DALY, Angela. (Big) Data and the North-in-South: Australia’s
Informational Imperialism and Digital Colonialism. Television & New Media, 2019,
v. 20, n. 4, p. 379-395, 2019. DOI: https://doi.org/10.1177/1527476418806091
MORRIS, Alex. The Dilemma of Digital Colonialism: unmasking facial recognition
technology and data sovereignty in Aotearoa New Zealand. Policy Quarterly, v.
19, n. 1, p. 80-87, February 2023. DOI: https://doi.org/10.26686/pq.v19i1.8109
PINTO. ¿Soberanía digital o colonialismo digital? Nuevas tensiones alrededor de la
privacidad, la seguridad y las políticas nacionales. Sur, v. 15, n. 27, p. 15-28, 2018.
SCASSERRA, Sofía. La desigualdad automatizada: Industrialización, exclusión
y colonialismo digital. Nueva Sociedad, n. 294, jul./ago. 2021. Disponível em:
https://nuso.org/articulo/la-desigualdad-automatizada/. Acesso em: 13 jun 2023.
YOUNG, Jason C. The new knowledge politics of digital colonialism. EPA:
Economy and Space, v. 51, n. 7, p. 1.424-1.441, 2019. DOI: https://doi.
org/10.1177/0308518X19858998

242
SOBRE OS AUTORES

ANNA PAULA BAGETTI ZEIFERT


Possui Doutorado em Filosofia pela PUCRS (2018), com estágio
Pós-Doutoral em Desigualdades Globais e Justiça Social: Diálogos Sul e
Norte pela UnB (2020). É mestra em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania
pela Unijuí (2004), especialista em Direito pela Unijuí (2002) e Graduada
em Direito pela mesma Universidade (2001). Atua no projeto de pesquisa
“Justiça Social: Os Desafios das Políticas Sociais na Realização das Necessidades
Humanas Fundamentais”. anna.paula@unijui.edu.br
ANDRÉ LEONARDO COPETTI SANTOS
Possui Doutorado em Direito pela Unisinos (2004), com estágio
Pós-Doutoral na mesma Universidade (2014). É mestre em Direito pela
Unisinos (1999), especialista em Direito e Processo Civil pela Unicruz (1994) e
graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Unicruz (1988). Atua nos projetos
de pesquisa “Controle Social, Política Criminal e Democracia: a Expansão do
Sistema Penal Brasileiro e Sua Adequação ao Estado Democrático de Direito”
e “Os Direitos Humanos e a Proteção Jurídica das Diferenças Identitárias nas
Decisões Contemporâneas do STF”. andre.leonardo@unijui.edu.br
DANIEL RUBENS CENCI
Possui Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR
(2009), com estágio Pós-Doutoral em Geopolítica Ambiental Latino-Americana
pela Universidade de Santiago do Chile (2018). É mestre em Direito pela
Unisc (2003), especialista em Administração dos Serviços de Saúde pela
Unaerp (1991) e graduado em Direito pela Unijuí (1998). Atua nos projetos
de pesquisa “O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado no
Contexto da Sociedade de Risco: em Busca da Justiça Ambiental e da Sustenta-
bilidade” e “Sistemas Socioambientais, Sociedades Sustentáveis e Interdiscipli-
naridade”. danielr@unijui.edu.br

243
SOBRE OS AUTORES

DOGLAS CESAR LUCAS


Possui Doutorado em Direito pela Unisinos (2008), com estágio
Pós-Doutoral na Università Degli Studi di Roma TRE (2012). É mestre em
Direito pela UFSC (2001) e graduado em Direito pela Unijuí (1998). Atua no
projeto de pesquisa “Os Direitos Humanos e a Proteção Jurídica das Diferenças
Identitárias nas Decisões Contemporâneas do STF”. doglasl@unijui.edu.br
ELENISE FELZKE SCHONARDIE
Possui Doutorado em Ciências Sociais pela Unisinos (2010). É mestra
em Direito pela Unisc (2001) e graduada em Direito pela Unijuí (1997).
Atua nos projetos de pesquisa “As Cidades e Os Impactos da Globalização:
Desigualdade Social e Desenvolvimento” e “Direito à Moradia, Neoliberalismo
e Vulnerabilidade: a Violação de Direitos Humanos e As Consequências
Ambientais”. elenise.schonardie@unijui.edu.br
GILMAR ANTONIO BEDIN
Possui Doutorado em Direito pela UFSC (2001), com estágio
Pós-Doutoral em Teoria Política Contemporânea pela Universidade de Santiago
do Chile (2015). É mestre em Direito pela UFSC (1994) e graduado em Direito
pela Unisc (1989). Atua nos projetos de pesquisa “A Sociedade Internacional
e a Paz por Meio do Direito: Uma Leitura a Partir das Obras de Hans Kelsen e
de Norberto Bobbio” e “Direito à Moradia, Neoliberalismo e Vulnerabilidade:
a Violação de Direitos Humanos e As Consequências Ambientais”. gilmarb@
unijui.edu.br
IVO DOS SANTOS CANABARRO
Possui Doutorado em História pela UFF (2004), com estágio
Pós-Doutoral em História pela mesma Universidade (2015). É mestre em
História pela UFRGS (1996), graduado em História pela Unijuí (1990) e em
Estudos Sociais pela Unijuí (1987). Atua nos projetos de pesquisa “A História
Pela Fotografia – Fase II”, “Entre Memória e Esquecimento: a Desconside-
ração dos Direitos Humanos nas Ditaduras Militares” e “Direito à Moradia,
Neoliberalismo e Vulnerabilidade: a Violação de Direitos Humanos e As
Consequências Ambientais”. ivo.canabarro@unijui.edu.br

244
SOBRE OS AUTORES

JANAÍNA MACHADO STURZA


Possui Doutorado em Direito pela Università Degli Studi di Roma La
Sapienza (2010), com estágio Pós-Doutoral na Unisinos (2016). É mestra em
Direito pela Unisc (2008), especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas
pela Unisc (2006) e graduada em Direito pela Unisc (2006). Atua nos projetos
de pesquisa “Eficiência, Efetividade e Economicidade nas Políticas de Segurança
Pública Com Utilização de Monitoração Eletrônica e Integração de Bancos de
Dados”, “Pessoas com Deficiência no Ensino de Pós-Graduação Stricto Sensu no
Brasil: a ética da alteridade na construção de políticas públicas de inclusão” e
“Saúde e Trabalho: a Inclusão Social de Migrantes a Partir dos Marcos Legais e das
Políticas Públicas Existentes no Brasil e na Itália”. janaina.sturza@unijui.edu.br
JOICE GRACIELE NIELSSON
Possui Doutorado em Direito pela Unisinos (2017). É mestra em
Desenvolvimento pela Unijuí (2012) e graduada em Direito pela Unijuí (2010).
Atua nos projetos de pesquisa “Eficiência, Efetividade e Economicidade nas
Políticas de Segurança Pública Com Utilização de Monitoração Eletrônica
e Integração de Bancos de Dados”, “Pessoas com Deficiência no Ensino de
Pós-Graduação Stricto Sensu no Brasil: a ética da alteridade na construção
de políticas públicas de inclusão” e “Saúde e Trabalho: a Inclusão Social de
Migrantes a Partir dos Marcos Legais e das Políticas Públicas Existentes no
Brasil e na Itália.” joice.nielsson@unijui.edu.br
MAIQUEL ÂNGELO DEZORDI WERMUTH
Possui Doutorado em Direito pela Unisinos (2014), com estágio
Pós-Doutoral pela USP (2023). É mestre em Direito pela Unisinos (2010),
especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Unijuí (2008) e graduado
em Direito pela Unijuí (2007). Atua nos projetos de pesquisa “Eficiência,
Efetividade e Economicidade nas Políticas de Segurança Pública Com Utilização
de Monitoração Eletrônica e Integração de Bancos de Dados”, “Pessoas com
Deficiência no Ensino de Pós-Graduação Stricto Sensu no Brasil: a ética
da alteridade na construção de políticas públicas de inclusão” e “Saúde e
Trabalho: a Inclusão Social de Migrantes a Partir dos Marcos Legais e das
Políticas Públicas Existentes no Brasil e na Itália”. É bolsista de produtividade
do CNPq. maiquel.wermuth@unijui.edu.br

245
SOBRE OS AUTORES

MATEUS DE OLIVEIRA FORNASIER


Possui Doutorado em Direito pela Unisinos (2013), com estágio
Pós-Doutoral pela University of Westminster (2019). É mestre em Desenvol-
vimento pela Unijuí (2009), especialista em Direito pela Unijuí (2008) e
graduado em Direito pela mesma universidade (2006). Atua no projeto de
pesquisa “Direitos Humanos, Novas Tecnologias e Responsabilidade”. mateus.
fornasier@unijui.edu.br
ROSANE TERESINHA CARVALHO PORTO
Possui Doutorado em Direito pela Unisc (2016), com estágio
Pós-Doutoral em Direito e Sociedade pela Unilasalle (2020). É mestra em
Direito pela Unisc (2008), especialista em Docência do Ensino Superior pela
PUCRS (2018) e graduada em Direito pela Unisc (2005). Atua nos projetos de
pesquisa “Eficiência, Efetividade e Economicidade nas Políticas de Segurança
Pública Com Utilização de Monitoração Eletrônica e Integração de Bancos de
Dados”, “Formas Alternativas de Acesso à Justiça: História e Fundamentos”,
“Pessoas com Deficiência no Ensino de Pós-Graduação Stricto Sensu no Brasil:
a ética da alteridade na construção de políticas públicas de inclusão” e “Saúde
e Trabalho: a Inclusão Social de Migrantes a Partir dos Marcos Legais e das
Políticas Públicas Existentes no Brasil e na Itália”. rosane.cp@unijui.edu.br

246

Você também pode gostar