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A GOTA D’ÁGUA OU A MEDEIA EM NÓS: (RE)VISITANDO

NARRATIVAS DE GÊNERO E USOS DO PASSADO

Marta Mega de Andrade


Instituto de História – UFRJ
mmegan@ufrj.br

Resumo:

Neste trabalho, evoco três tempos da minha pesquisa em história das mulheres, tendo
como foco a politização da ação, inação, voz e silêncio das mulheres no contexto da
pólis ateniense clássica: o tempo da condução da história das mulheres e relações de
gênero a uma abordagem da pólis ateniense clássica sob a imagem de uma possível
“cidade das mulheres”; o tempo do cruzamento entre a produção oitocentista da
antiguidade clássica e a construção binária do gênero e da sexualidade “normal” nas
disputas pelo protagonismo feminino entre o público e o privado; e o tempo, por fim, da
disposição das linhas de interpretação que, entre antigos e modernos, tendem a modelar
nossas expectativas sobre a História e os silenciamentos da história das mulheres. Alego
que a formação discursiva do binarismo heterossexual moderno é um construto
“ocidentalista” e eurocêntrico; e que ao abordar a problemática das mulheres e do
gênero na sociedade políade, a história das mulheres tem que desordenar esse construto
para poder escapar dessa longa linha do tempo que mantem intactas a natureza biológica
dos corpos e a distinção funcional dos espaços de cidadania e exclusão.

Palavras-chave: Atenas Clássica, História das Mulheres, Política

1. A cidade das mulheres

“Eu não sou feminista”.


Esta frase foi escrita na conclusão de minha dissertação de mestrado
defendida em 1994. Publicada em 2001 com o título A cidade das mulheres:
cidadania e alteridade feminina na Atenas clássica, a dissertação refletia o apelo
inesperado da palavra das mulheres — ou sobre as mulheres — na minha pesquisa.
Como muitos outros indivíduos de minha geração, eu esperava uma pólis tão
silenciosa sobre as mulheres quanto aquela que aparecia para mim na literatura dos
estudos clássicos do século XX; mas acabei encontrando uma filosofia e uma poesia
radicadas em Atenas bastante prolixas em torno da inclusão/exclusão feminina,
praticamente uma ideia fixa na discussão da vida política, no debate sobre a atuação
problemática do sujeito que era homem público e privado como cidadão.

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Do ponto de vista de uma jovem em formação, era constrangedor que eu
estivesse sendo levada a afirmar contra todas as evidências do bom senso que havia
uma “cidadania feminina” possível na pólis ateniense clássica. Minha palavra era um
risco, e o mínimo que eu podia fazer em 1994 era defender a neutralidade do trabalho,
sua verdade, reafirmando “eu não sou feminista”, como quem enfatiza não ter
nenhuma agenda do nosso tempo por trás da tese. “Não, não estou politizando nem
poetizando a história pois não tenho outro interesse senão adicionar uma personagem
que, no mínimo, torna pensável um lado obscuro da política, uma faceta pouco
conhecida da pólis que seria, nesse caso, a de organizar uma experiência de vida
coletiva com a exclusão de um sujeito que não pode ser excluído e, assim, pensar os
limites da exclusão e do poder”. Desse modo, “suplementando”, como diria Joan
Scott (1992, p. 63-95) a história da pólis, eu imaginava poder me livrar do incomodo
que era, para um historiador social “sério”, entrar para a história das mulheres.
Nessa fase que corresponde a minha primeira formação em mestrado e
doutorado, creio ter procurado mostrar que a pólis podia ser pensada como um espaço
aberto e tensionado, já que a cidade como pólis para uma politeía era um manifesto
artifício, uma obra humana instável cuja instabilidade os cidadãos tinham por tarefa
gerir (ANDRADE, 2002). Esse é um marco de fundação do que se transformou na
pesquisa de uma vida. De lá até aqui, são mais de 25 anos de pesquisas. Estudos, que
me levaram da história antiga grega à filosofia e à filosofia da história, de volta à
história antiga grega para despensá-la, como diz Vlassopoulos (2007), e nesses mais
de 25 anos a questão nunca deixou de girar em torno das mulheres, da subjetividade
histórica das mulheres, ou seja, da ação política que perpassa o campo das relações
sociais, definindo papéis como os de gênero (binário) e desestabilizando, porque a
política e o poder no que se refere às mulheres na História são instabilidade e
conflito, não gerenciamento do status quo. Isso foi o que aprendi.

2. A vida comum

O salto para fora da problemática aparentemente insolúvel da cidadania


feminina como atividade política plena veio com a compreensão da dimensão

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cotidiana da vida comum, e posteriormente com as leituras de Lefebvre (1973),
Vlassopoulos (2007) e Negri (1999) e outros autores voltados para a filosofia e a
política. Minha referência deixava de ser a pólis como centro e eixo das relações
políticas dos atenienses para assentar-se definitivamente e com maior clareza no que
eu chamara “política do cotidiano”, acompanhando para isso as “invenções do
cotidiano”, de Michel de Certeau (1998): formação de comunidades, solidariedades,
redes cujo vetor era a política ou literalmente a prática da pólis, isto é, a conformação
de uma comunidade territorial governada por um corpo de cidadãos. Parafraseando
Fábio Morales (SOARES, 2014) o trabalho vivo da pólis, a política como
constituinte, não necessariamente constituída, em outras palavras, esse magma do que
é “possível” (ver ANDRADE 2004, 2018, 2019).
Contudo, a noção de gênero sempre foi problemática para mim. A
transformação da categoria gênero em conceito (invariante) em história, comum a
muitos trabalhos na área de Antiga e criticada por nossos colegas de contemporânea,
contribuía para estabelecer um falso sentido de continuidade em um instrumento de
dominação cuja operação começa, de fato, na contemporaneidade, a meu ver no âmbito
do mesmo dispositivo da sexualidade de que fala Foucault em A Vontade de Saber:
normalização da heterossexualidade, naturalização dos corpos “normais” feminino e
masculino, medicalização das diferenças e, por fim, determinação biológica do sujeito
pelo sexo e pela sexualidade (FOUCAULT, 1988, p. 73-124). Ao atrelar mulheres-
homens numa dialética da dominação subjetiva e domesticação do corpo
individualizado, gênero — como conceito — oblitera uma questão de fundo: quem é
mulher, esse sujeito de história? O que significa buscar a subjetividade histórica das
mulheres se eu procuro justamente a desnaturalização do binarismo de gênero? Pode o
invariante “mulher” ser pensado sem o saber do gênero? Mas o gênero não estaria a
aprisionar a “mulher” no indivíduo, no corpo individual em suas capacidades
individuais e em seu sexo, um círculo vicioso em torno da sexualidade como
dispositivo de subjetivação? Quem é a mulher, ela existe?

3. Nós e o Outro

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Para ativar essa questão, precisei entrar na problemática da construção de uma
imagem “nacional” da pólis como cidade-estado e sua concomitante relação com a
separação estrita entre as esferas masculina (pública e política) e feminina (privada e
doméstica), ao longo do século XIX. A mulher que existe e cuja agência buscamos na
história nasce, de fato, nessa época — mas tudo o que desejamos é que ela ultrapasse a
época e, portanto o heterossexualismo do gênero, seu próprio dispositivo de
constituição. Essa mulher que existe é uma figura do iluminismo e, ao mesmo tempo,
uma figura da exclusão e do binarismo no seio de uma sociedade europeia ocidental
normal — e isso para não falar das outras perspectivas do poder sobre o corpo e a
subjetividade, como a raça e a classe, religião, etnicidade, por aí vai. Seus atributos de
rainha do lar, mãe, etc, não estão entre os gregos, ao menos não estão lá senão sob as
lentes dos leitores do século XIX, particularmente interessados na educação feminina
para o fortalecimento da nação. Belo sexo, sexo frágil, corpo doente, apequenado, voz
menor, subjetividade colonizada em busca de emancipação. Essa mulher é de origem
europeia branca, classe media, e vem já há algum tempo compreendendo a
parcialidade de seu ponto de vista e a necessária parcialidade do testemunho possível
de sua história. Mas nessa parcialidade, é ela mesma que busca, entre os gregos
antigos, uma história das mulheres como herdeira que é, não tanto de um passado mas
de uma luta.
Nessa afirmação não vai nenhuma denúncia. Se há algo que nós já entendemos
em termos de escrever história é a de que as histórias são outras, muitas, possíveis e
plurais. Então, aqui eu vou falar desse fio, dessa linha que, ao se aproximar dessa
Grécia Antiga no mediterrâneo de milênios, acaba por se desfigurar como linha para se
configurar como rizoma.

4. “Mirem-se no exemplo”

Eis uma boa oportunidade para retomar o tema Medéia/Gota d’Água, objeto
do capítulo de livro A Gota d’Água ou a Medeia em nós que publiquei em 2008. A
versão trágica "original" de Medeia (quero dizer, o texto de Eurípides tal como
chegou até nós) serve de “grade de leitura” para uma análise da tragédia moderna A

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Gota d'Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975).
Medeia é a única tragédia que conheço onde a protagonista declama um
monólogo (v. 214-266) em que a condição feminina em contraponto às benesses de
ser um homem é abordada: não poder escolher o marido e ter de aceitá-lo ficando
somente com ele, enquanto ele pode se divertir com outros; morrer no parto como
pior destino que morrer na guerra, etc. Com os argumentos de seu monólogo, Medeia
consegue a cumplicidade do coro de mulheres coríntias para efetuar sua vingança, e
embora elas lamentem o tempo todo e sofram com a monstruosidade dos planos de
Medeia, vão com ela até o fim. Daí se segue o primeiro canto coral, onde as coríntias
levantam a voz para “contra ecoar” o hino masculino do descrédito feminino" (v.410-
430), sendo as ações das mulheres do coro instauradoras uma verdadeira guerra de
gêneros, virando ao avesso toda a tradição poética de censura às mulheres (ver
ANDRADE 2009 e 2020).
Eis alguns fatos: a sociedade ateniense era uma sociedade patriarcal. Em
família, as mulheres eram marcadas por um estatuto de minoridade legal como
subordinadas e incapazes; precisavam socialmente de um senhor que falasse por elas,
pai, irmão, marido, tio... E a tragédia de Eurípides explora isso. Não é um final feliz o
êxito de Medeia, é trágico para o que realmente importa: Jasão não terá mais
descendentes, seus filhos foram mortos pelas mãos da mãe. Mas então, nesse mundo
patriarcal em que as mulheres provocavam tragédias, a tragédia de Medeia
representava o sucesso das mulheres em atacar duas condições de suma importância
para elas mesmas: primeiro, o casamento e o juramento do leito (o estatuto legítimo
de esposa); depois, a condição de mãe dos filhos do marido.
Como os autores de A Gota d'Água adaptam Medeia? Enfatizam a impotência
individual e o apaziguamento coletivo. Diferentemente, a história de Medeia era uma
história de sucesso feminino na vingança e ao mesmo tempo um aviso aos homens
para temer as mulheres. Em nenhum momento há solipsismo, em nenhum momento
apaziguamento, conformação. A linha de ação segue em direção à síntese: o conjunto
de mulheres assume uma voz ativa e provoca um grande desastre. Essa é uma
característica do patriarcado clássico, ao menos nos textos atenienses: as mulheres
são mais temidas que submetidas, e precisam ser submetidas pelo poder maior, pelo

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kratos, pela violência. Não se espera apaziguamento senão pelo exercício da força.
Medeia é capaz de muitos males, é feiticeira e é ardilosa. Como outras heroínas
trágicas, transforma a impotência inicial em ato final.
A Gota d'Água, por outro lado, é justamente sobre a impotência de um povo
que não consegue fazer a síntese no ato final, não consegue solidarizar-se e resolver
dialeticamente seu destino. É, portanto, sobre a potência do dominador (e não
necessariamente sobre a violência) de dobrar a vontade, de docilizar. A ação política
de submeter pela captura, de anular a força de um sujeito pela captura da
subjetividade, pacificar a ação, isso é violência subjetiva. E a peça magistral de Chico
Buarque e Paulo Pontes mostra isso, como um povo vai se dissolvendo nas doçuras
da coerção da subjetividade, alienando sua capacidade de ação histórica.
Nesse trajeto, me deparo novamente com a música: “Mirem-se no exemplo
daquelas mulheres de Atenas...”, na voz comovida e ao mesmo tempo irônica de
Chico Buarque de Holanda. Se a canção toma a forma da denúncia — e assim, mirar-
se no exemplo seria tomar consciência das nossas condições de submissão — ela foi
feita para Lisa, A libertadora, peça inspirada na Lisístrata, de Aristófanes na qual as
mulheres gregas se unem pan-helenicamente para acabar com a guerra entre gregos.
Nesse sentido, podemos pensar na ironia tomando novos ou outros rumos, podemos
imaginar, por exemplo, um chamado literal a mirar-se num exemplo forte, como
Lisístrata, Medeia, Antígona e tantas outras heroínas do teatro ateniense, mulheres
que desafiam poderes constituídos, poderes políticos, e poderes explicitamente
masculinos. Como no caso de Antígona, cujo nome mesmo marca o desafio de uma
moça virgem anti-geração. Moça virgem, que opta por morrer antes do casamento e
busca a glória e o renome em seu ato que, segundo suas palavras, é apoiado pelos
cidadãos acovardados e silenciados diante da figura do tirano Creonte. Ismênia, a
irmã, tenta demover Antígona: somos mulheres, diz ela, frágeis diante do poder do
senhor; devemos submeter-nos, voltar para dentro de casa... Ao fim e ao cabo,
Antígona, sua palavra e seus atos, parece esperar e confirmar-se pelo apoio dos
deuses e pelos rumores das ruas da cidade. Quando Creonte volta atrás, já é tarde
demais.
Não consigo lembrar de exemplos entre as mulheres heroínas no teatro

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ateniense que não desafiem o hino masculino e que, no desafio, não completem seus
atos, mesmo ao custo da própria vida. Antígona, Medeia, Fedra, Lisístrata, Praxágora,
Ifigênia, Clitemnestra, Electra, a lista é enorme. A fixação dos poetas por essas
figuras femininas fortes surpreenderia...
Mas nossas desculpas para tal são óbvias. Trazemos no corpo a inscrição de
um ser vivo fragilizado, reportamos essa fragilidade e esse papel coadjuvante e
figurante ao patriarcado e aceitamos dizeres como “as armas dos fracos são armas
fracas” (BOURDIEU, 1999, p.52) — que eu particularmente não suporto — como se
fossem sentenças sobre os fatos. Assim, desculpamos a fortaleza das heroínas do
teatro grego pela pressuposto de serem suas ações “figmentos” da imaginação
poética, como quem balança a cabeça e diz “é ficção” supondo-se entendido quanto
ao não dito — “não é história”. Afinal, não são mulheres “de verdade”, são
representações masculinizadas do feminino, homens cujas reais intenções são
determinadas pelo olhar/poder patriarcal. Por causa da naturalidade com que nos
deparamos com esses pressupostos, é preciso refazer o caminho; é urgente fazer o
trem descarrilar. É importante rever, reler, dispensar...

5. Considerações finais sobre o método

Por conta disso, esse trabalho não é propriamente sobre as fontes e a pesquisa,
mas sobre o olhar e o método; perspectiva e instrumento. Sobre isso, tenho algo a
dizer, mas vou fazê-lo sintetizando pontos que podem ser encontrados mais
detalhadamente nos textos que publiquei até o presente, muitos deles referidos aqui:
a) O lugar da “voz”. A primeira problemática: quem fala? Durante
muito tempo, desqualificamos a possibilidade de se ouvir a voz
feminina, genuinamente feminina, tão cara à história das mulheres
nas fontes literárias gregas (digo, literárias para nós).
Encontraríamos nessa literatura grega, de acordo com Nicole
Loraux (1985), representações do feminino sob um ponto de vista
masculino e, principalmente, político. Em parte, trata-se de um
problema ultrapassado quando pensamos em relações de gênero e

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desnaturalizamos os seres “homem” e “mulher”: sendo o gênero
produção de saber, discurso, sua operação afetiva e cognitiva
constrói masculino e feminino independentemente das vozes e dos
indivíduos. Em outras palavras, o gênero definido como construção
social dentro de um projeto de hegemonia patriarcal, dá a falar e dá
a ver independentemente do sexo do corpo. Mas a pergunta
retorna: homens (dominadores) são vozes legítimas para uma
história das mulheres? Minha resposta é: sim. Não por causa do
caráter cultural do construto de gênero, contudo. Por que a
racionalidade de um discurso não deve ser procurada na
racionalidade do autor, mas na racionalidade do campo, melhor
dizendo, nas estratégias e táticas de um campo de batalha. O autor,
nesse caso, é um foco, um ponto nodal perpassado por práticas, não
um ponto de origem. Por isso, quando Medeia fala da condição
feminina, devemos ouvir, como provavelmente Eurípides ouviu,
citações de vozes banais, cotidianas, impessoais, lamúrias,
reclamações capazes de criar laços de solidariedade entre mulheres
independentemente de seu estatuto cidadão; mulheres que se unem
para proteger-se, por exemplo, do “leito traído”, como em Medeia.
Vou parar nesse exemplo mas sugiro que vocês façam um teste
com outras peças e mesmo alguns textos, como o do Econômico de
Xenofonte, por exemplo. Quanto mais emudecidas são as
mulheres, maior a necessidade de buscar seu logos além ou aquém
dos métodos da “literatura” (ANDRADE, 2020);
b) Segunda problemática: ficção, representação e discurso. Vou tentar
falar rapidamente sobre um assunto muito complicado, dizendo
inicialmente que tudo não é discurso. Nem o discurso precisa ser
discurso. Os enunciados, as formações discursivas, tópicos, meias
palavras, podem ser vistos como formas de agir numa arena
política em que a palavra e a verdade são valor e moeda de troca.
Teatro, portanto, não precisa estar ancorado nem na literatura, nem

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nas artes e nem na ficção, até mesmo porque não era ficção, era
mimese. Mas não vou entrar nesse vespeiro, reservo-me apenas
uma parte que é aquela em que me explico sobre a opção por não
falar em representação como troca do real pelo discurso, ou pelo
que se fala do real, seja o concreto pensado, seja a visão de mundo,
consciência ou alienação. Sob o enfoque do trabalho que realizo, as
mulheres de Atenas não podem estar nos projetos discursivos dos
atenienses somente representadas, nem elas nem o feminino ou
masculino. Elas estão lá como mais como pontos de aplicação.
Quando Eurípides faz Medeia falar ele se traveste, usa a visão de
outrem e toma emprestado um falar social, um falar originado na
conexão do que se diz com a polemologia da vida comum. Ele
pode puxar, repuxar, moldar, até medir palavras, pode concluir,
pesar, julgar. Pode ser poeta e autor. Mas, primeiro e antes de tudo,
ele precisa conduzir um espetáculo e agir sobre um público, como
poeta e autor. Ele precisa criar, ou co-criar, para um público e sob
determinadas regras, dentro de um contexto, um mito pela mimese.
Nesse sentido, isto é, no sentido da ação discursiva e da
polemologia cotidiana — ou das relações de poder e verdade — as
palavras femininas e sobre mulheres escritas e faladas por homens
não representam apenas uma visão falocêntrica ilegítima sobre
mulheres, elas representam para um campo político tensionado
pelo gênero e fabricado para homens o lugar efetivo das batalhas a
travar, das arestas a aparar, dos cuidados a tomar. E para nós, que
pesquisamos e historicizamos, abrem buracos numa parede e nos
possibilitam escutar. O que me leva ao terceiro e último ponto.
c) As leituras cruzadas. Para falar sobre isso que não é um conceito
mas uma espécie de tradução para uma prática, fui buscar
antecedentes e encontrei alguns em títulos de livros que tratam
efetivamente do cruzamento de disciplinas (como história e
literatura), do cruzamento de leituras (literatura comparada) e do

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cruzamento de ideias. É sempre difícil arrumar em uma expressão
aquilo que se faz na prática e eu já me acostumei com a ideia de
que sou muito pouco original na onda de criar essas expressões.
Então, leituras cruzadas, isso já existe. Mas nenhuma dessas
acepções — interdisciplinaridade, literatura comparada, leitura
comparada — abarca o que tentei explicar que fazia. De fato, o que
faço é uma leitura histórica (MENESES, 1998), mas isso seria
óbvio, não? É preciso compreender a leitura histórica como uma
leitura cruzada, e daí vou explicar o que compreendo por leitura
cruzada: formas de “descronificar”, de criar um canteiro de obras
“contratemporal”, anacrônico, graças aos deuses, desamarrando
dois tempos, dois contextos para o possível, com o intuito, no
mínimo, de pluralizar os sentidos, os contextos, os sujeitos. Sob
essa perspectiva, Medeia e A Gota d’Água não são simplesmente
textos comparáveis mas obras cuja comparação, sob a perspectiva
do historiador, abre e revela contextos históricos distintos, por
exemplo, para formas como gênero é capaz de significar relações
de poder, formas que não enxergaríamos não houvéssemos
dobrado o tempo e feito um contexto/texto intervir em nosso
interesse pelo outro. Existe aqui uma triangulação como
movimento anterior à abertura para possibilidades diversas,
estreladas (MOLINO, 1989) e não propriamente especulares, de
construção contextual. A triangulação liga um e outro através de
um ponto, envolvendo diversos passados, diversas
contemporaneidades numa tessitura, numa obra, numa pesquisa
que é inevitavelmente parte de uma escolha e parte de problemas,
questões, inquietações inscritas num sujeito, gente como a gente,
gente como eu. Distanciar-se nunca foi uma opção, mesmo que
acreditemos muito na força científica do distanciamento.
Finalizando me vem a recordação do capítulo “Caminhadas pela cidade”, das
Práticas de Espaço de Michel de Certeau (1998). Aquele em que o autor explora o

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contraste entre a visão de conjunto generalizante do sujeito panóptico disposto no alto
do World Trade Center, senhor de um saber que abarca a totalidade da cidade, porém
de uma “cidade” sem vida, sem contratempos, versus o pedestre, formiga humana
transitando pelas ruas, perfazendo o caminho enquanto anda — “Descendo a ladeira da
Memória até o vale do Anhangabaú, quanta gente!”. As leituras cruzadas atravessam a
ladeira da memória, atravessando textos, artefatos, sítios arqueológicos — e talvez
sejam até mais visíveis em sítios arqueológicos do que na comparação de textos.
Nossas leituras atravessam textos como os transeuntes utilizam o espaço concebido e
construído para revivê-lo e retomá-lo ao contratempo. Se não no todo, certamente na
parte, em parte. A parte das mulheres, subordinadas ao tempo público dos poderes de
estado, é a que me interessa. Eu sou feminista.

Bibliografia:

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BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, 1999
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