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I. História e Poesia
Está na Poética. É uma observação que poderia passar como um simples exemplo
vinculado a um debate sobre retórica presente na época de Aristóteles; e contudo, ela se
enraíza na problemática da poesia, da imitação e do mito. Aristóteles percebe na abordagem
trágica do mito, de fato, um "quê" de investigação histórica: o argumento, a narrativa, o foco
em praticantes, a construção de caracteres e a duração limitada que caracterizam o todo
formado pelas 6 partes da tragédia (mito, caractere, espetáculo, palavra, canto e pensamento)
levam o filósofo a articular uma diferenciação que seja mais essencial do que a diversidade
formal entre prosa e verso. Então, ele afirma que a poesia é universal (kat'holos, "em acordo
com o todo"), e portanto mais filosófica e séria que a história. Esta última lida com o
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particular (kat'hekastos, "em acordo com cada um"), ou seja, com o que "Alcibíades fez ou
sofreu". É claro que muito do que defendemos hoje ser a história já não condiziria de modo
algum com essa definição de particularidade. É claro, também, que já não cogitamos, até
estranhamos mesmo, que se compare história e poesia. Mas o centro do problema naquele
momento lá de Aristóteles era o mito e a imitação poética do mito. Naquele momento, isto é o
que nos interessa por enquanto, poesia e história podiam ser confundidas na prerrogativa de
imitar o mito estetizando a vida e o passado a sua maneira. A Poética resguarda a mimese
para a poesia, pois a mimese não é a mera imitação de um ou outro, mas a produção universal,
possível e necessária, de um modelo. Retornarei a isso.
Note-se que aqui ainda não está em questão a separação entre realidade (social) e
ficção. A poesia é tão verdadeira quanto a história, por isso ainda podem se confundir e tal
confusão justifica a intervenção do filósofo na Poética, justamente para tornar mais clara e
mais "séria" a diferença.
quais lutas, quais conciliações e combinações para que esta ou aquela região "com história"
chegasse a configurações atuais ou passadas que "clamam" por lembrança. Isto não deixou de
ser particular porque não mais nos referimos a este ou aquele indivíduo. Ainda lidamos com
singularidades e em grande maioria somos mesmo avessos a quaisquer atributos universais a
que chamamos conceitos, paradigmas, etc. Não à toa tal inquietação é trazida por Ginzburg,
por exemplo, em seu Relações de Força: onde encontrar universais, como fazer ciência a
partir da exposição de detalhes, indícios particulares e infinitamente pequenos em documentos
eles mesmos particulares? Enfim, qual o estatuto de nossa "prova"?
No modo como pensamos a História e sua relação com o campo científico da
produção de saber sobre as sociedades humanas no tempo, persiste o desconforto entre o que
pretendemos como "ciência" e o que discutimos, nosso "objeto" em particular. A questão que
quero trazer para cá se endereça a esse entremeio, "particular" e "universal", "local" e
"global", "individuo", "sociedade"... porque como historiadores, nós nos deparamos
concretamente com "bibelôs de época", parafraseando Paul Veyne em seu "Foucault
revoluciona a história", e com eles lidamos, singularizando-os pelo próprio gesto de formar
com eles um corpus documental, por mais seriado que possa ser (cada um dos nossos
documentos de inventário cartoriais, o sabemos, é um caso particular de manuseio, leitura,
anotações). Essa intervenção não quer dar conta dessa experiência, não quer necessariamente
propor um novo método. Mas é que, talvez, para compreender atualmente o que na
historiografia remete a história ao universal seja preciso retornar à questão do tempo e do
devir, e não propriamente continuar utilizando imagens como a da separação (dialética,
mecânica, funcional, etc.) entre teoria e prática, conceito e realidade. Acredito que as
inquietações expressas por Nietzsche e Benjamin podem ser juntadas aqui num esforço de
reconsideração sobre o tempo, a história e a mutação (ou o imobilismo). O que quer que a
história tenha de universal, parafraseando Nietzsche, só pode advir de seu serviço à vida.1
Mas o que, na historiografia, serve à vida?
I- O "Trágico"
1
(...) precisamos dela [da História] para a vida e para a ação (...). Somente na medida em que a história serve à
vida queremos servi-la (...)" (Nietzsche, CEII, p. 5).
4
no teatro trágico dos gregos (1984: 127-8) A crítica de Benjamin procede e nos apraz: de fato,
característica perigosa do romantismo alemão é esta que aposta todas as suas fichas no
temperamento de um além-homem. Somos historiadores, conhecemos o que se passou com
Nietzsche e outros autores alemães quando suas sentenças foram interpretadas e encapsuladas
no contexto do nacional-socialismo. Mas se seguirmos de perto o problema em si e não tanto
as imagens com que costumam se confundir — homens mais-que-humanos, iluminações
psicossubjetivas, ética e temperamento individuais — perceberemos que Nietzsche não falava
sobre tais indivíduos. Tanto quanto Benjamin também não falava para indivíduos-membros
de uma classe revolucionária embora esteja claramente imerso na tempestade da revolução.
Ambos, por diferentes meios e interesses, convergem na atenção e cuidado com a aposta da
subjetividade no movimento do devir: onde a ação se lança e se perde, destrói e constrói
refazendo combinações, imitações, vida (material).
Segundo Jean-Pierre Vernant, é próprio ao teatro trágico dos gregos o olhar sobre o
instante de decisão. Quando o herói se pergunta: "que fazer?", lançado no destino, não se
conecta a uma cadeia da qual possa se intitular autor ou origem das ações, e portanto causa de
certos efeitos. A pergunta lança o herói numa trama, numa saga que o ultrapassa e que implica
sua linhagem e a relação com os deuses. A saga é conhecida por todos, é contada e recontada
pelos mitos e não há inventividade singular na ação do herói. A pergunta é dramática,
contudo: "que fazer?" Trata-se ao mesmo tempo da única pergunta que pode ser feita pelo
agente ou praticante, a única que lhe pertence como sujeito e que o imerge imediatamente
nesse rio em que não podemos nos banhar duas vezes. E ao mesmo tempo, ela o extrapola, é
feita a uma comunidade atuando em cena como coro e presente no teatro, os observadores do
espetáculo. O instante em que se pergunta é também aquele em que o protagonista arrisca a
sua própria condução; dá-se a reviravolta. Destruição de uma cadeia, recondução trágica ao
destino, dionisíaco e apolíneo.
Claro, estou a fazer aqui uma redução medonha. Em O Nascimento da Tragédia,
Nietzsche guia nossa atenção à própria experiência do trágico como terror e piedade através
dos movimentos apolíneo e dionisíaco do espetáculo e da música, movimento estético,
portanto, que não nos interessa muito aqui segundo tal ponto de vista. Em termos
arquetípicos, apolínea é a doação da forma e dionisíaca é a destruição fática, a dança dos
dados. Apolíneo e dionisíaco caminham juntos, em synoikia. Não se trata de dialética, não se
trata sequer de uma dinâmica reconhecível a um relojoeiro qualquer, mas de um par de
potências que só podem presidir juntas o devir, daí o termo: synoikia, coabitação: Apolo e
Dioniso coabitam, fora do tempo.
5
As imagens de Benjamin são diferentes. Porque ele não se conduz pela potência do
espetáculo propriamente, mas pela potência histórica do trágico. Com efeito, não me ocorre
que Nietzsche tenha em algum momento retomado o apolíneo e o dionisíaco numa reflexão
sobre devir e história. "Trágico" permaneceu uma qualidade do destino, sentida como amor
fati e avaliada no ponto de encontro entre vida e obra do homem: ecce homo, para todos e
para ninguém. Isto não é uma crítica, mas, antes, chamo a atenção para a diversidade dos
pontos de vista. Benjamin lamenta o fato de Nietzsche atrelar ao fenômeno da arte o apolíneo
e o dionisíaco, quando se trata do movimento da vida e daquilo que, nela, aflora como
subjetividade histórica num instante de perigo. O interesse aqui não aponta na direção do ser-
aí do homem diante do qual se abre o instante decisivo. Em Benjamin, há um ser-aí, mas eu
arriscaria dizer que a pré-sença está mais para um ser-com, um viver-com do que para um
próprio. Arrisco, mas não muito, já que Agamben trata desse assunto à exaustão em seus
textos (O Aberto, A Comunidade que Vem, Profanações, O Rosto, etc) que eu ainda não li à
exaustão.
A poesia trágica se baseia na ideia do sacrifício. Mas o sacrifício trágico difere em seu
objeto — o herói — de qualquer outro, e é ao mesmo tempo um sacrifício inaugural e
terminal. Terminal, porque é uma expiação devida aos deuses, guardiães de um antigo
direito; inaugural, porque é uma ação que anuncia novos conteúdos da vida popular, e em
nome dela é praticada. Esses conteúdos, que ao contrário das velhas obrigações não
emanam de um decreto superior, mas da própria vida do herói, o destroem, porque são
desproporcionais à vontade do indivíduo, e só convêm a uma comunidade popular ainda
virtual. A morte trágica tem um sentido duplo: anular o velho direito dos deuses olímpicos,
e sacrificar o herói, precursor de uma humanidade futura, ao desconhecido p. 129.
A passagem é clara para mim e traz algumas nuances à forma como Vernant vê o
questionamento da tragédia enraizado na problemática da decisão livre. Está em questão não
propriamente a história contada do destino individual de uma personagem exemplar mas a
maneira como uma comunidade virtual representa, na figura do herói entre dois mundos, a sua
própria presença e o seu advento. Isto não como um programa consciente de indivíduos ou
grupos, mas na materialidade da vida: é uma realidade histórica que está em questão e não
propriamente uma reflexão ou representação sobre as experiências compartilhadas atenienses.
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O herói padece de história, tanto em seu desconhecimento dela quanto em sua imersão no
devir-comunidade bem real e singular; e contudo, não se fala aqui do hiato entre real e
representação, pois a comunidade que vem, essa comunidade popular ainda virtual, não é em
nenhum momento a totalização conceptual de um empírico vivido como tal. A comunidade
que vem inscreve-se num devir que ultrapassa as conjunturas, ela é aspiração social, no bom
sentido que Aristóteles dá ao telos do vivente político: uma comunidade em construção que
envolve em sua elaboração a partir da convergência e da igualdade dos cidadãos uma
aspiração, um porvir que não se corporifica em lugar nenhum. É um elã, uma linha, um fio
condutor extenso o bastante para desenrolar-se ainda. Nesse sentido, o herói padece em nome
da obediência poética (trágica) ao destino comunitário do homem. E, mais uma vez, isto não
está na consciência das pessoas, não é o tema das conversações e das obras. O materialismo
histórico, Benjamin afirma na primeira tese, é o autômato que ganha todas as partidas contra
os jogadores humanos na máquina de xadrez. Mas o condutor oculto do autômato é um anão
escondido sob a mesa, um anão chamado "teologia". A tragédia compõe-se inteira para ser o
recontar de uma saga e não dispõe um homem qualquer na encruzilhada de uma decisão. Ela é
o primeiro passo dado no interior de uma tradição cultural para a emergência do sujeito em
comunidade, também no interior de uma tradição cultural, entendido aqui não à maneira de
um senhor soberano do cogito (tal como se firmou depois disso, nos séculos XVII-XVIII,
premissa racional da responsabilidade civil) mas como agente responsável pelo destino
histórico da comunidade.
p. 132. O decisivo confronto dos gregos com a ordem demoníaca do mundo imprime
também na poesia trágica a sua assinatura histórico-filosófica. O trágico se relaciona com o
demoníaco como o paradoxo com a ambiguidade
daimon para o homem — "morada" é outra acepção arcaica do termo ethos — ele flui
ambíguo entre a evidente ligação do ato ao agente e a também evidente conexão entre todos
os atos humanos e o destino e necessidade inumanos, aquilo que toca os deuses. Ora, a justiça
movida pela comunidade exige saber quem é o autor (do crime, da falta com relação à vida
comum)2; a ordem divina do mundo reconhece como autores apenas os próprios deuses, e os
homens não dominam nem o tempo, nem a saga, nem os desdobramentos de seus atos. Eis o
paradoxo em que se coloca a tragédia; e eis a ambiguidade em que o demoníaco envolve a
ação.
pp. 132-133 - (...) na tragédia o homem pagão percebe que é melhor que os deuses e, ao
percebê-lo, perde o uso da palavra, condenando ao silêncio esse conhecimento. Esse saber
procura, em segredo, reunir suas forças... Não se trata de restaurar a ordem moral do
mundo, e sim de uma tentativa por parte do homem moral, ainda mudo, ainda imaturo —
por isso ele se chama herói — de se reerguer entre as convulsões de um mundo torturado.
2
- Ver a análise de Foucault para Édipo Rei em A Verdade e as Formas Jurídicas.
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2. História e subjetividade
3
- "A imagem do movimento dos ponteiros, como demonstrou Bergson, é indispensável para a representação do
tempo recorrente e não qualitativo da ciência matemática. É nesse tempo que estão inscritos não só a vida
orgânica dos homens, como as manobras do cortesão e as ações do Príncipe, que segundo o modelo de um
Deus que governa, intervindo em ocasiões específicas, interfere de forma imediata nos negócios do Estado, a
fim de ordenar os dados do processo histórico numa sequência regular, harmônica, e por assim dizer
espacialmente mensurável." (Benjamin, DB, p. 119).
4
- Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de
uma reminiscência, tal como ela relampeja num instante de perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma
imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha
consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o
perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar
a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem
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Existe um quadro de Klee intitulado: Angelus Novus". Nele está representado um anjo, que
parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão
arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de
parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos
aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa
escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-
se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade
que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o
amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nos chamamos de progresso é
essa tempestade. (Tese IX)
também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio
exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E
esse inimigo não tem cessado de vencer. (Benjamin, TH VI)
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universal é, com efeito, nada mais que o exemplo hegemônico de um homem em particular:
masculino, europeu, branco, cristão e de classe média... Mas é a isto mesmo que devemos
estar atentos, quer dizer, devemos substituir em nossos textos o homem com H maiúsculo
pelo homem europeu ou pela mulher negra ou pelos camponeses russos? Bem, é certamente
muito urgente reconfigurar a linha férrea da história universal pluralizando os objetos. Ou,
como parece pensar Benjamin quando tem em vista a pragmática de seu questionamento, é
urgente construir outros trilhos que conduzam o comboio não da burguesia mas da classe
operária. E depois? Quando os trilhos forem refeitos e múltiplas ferrovias disputarem a gare
central, não teremos multiplicado o problema do universal e do particular, do ideal e do real,
do indivíduo e da sociedade ao invés de reposicionar politicamente a História? Há algo mais
nas teses de Benjamin do que pragmatismo político, ou melhor, há algo mais político do que o
pragmatismo, há algo mais político na teologia do que no materialismo histórico.
A espera escatológica é sempre vã, o que não quer dizer que ela não esteja no fundo
do olhar daquele que se abriga da passagem do tempo na narrativa de sua saga: na lembrança,
na memória de seus feitos. Se o anjo da história revolve a tempestade com suas asas para a
passagem de um outro, este outro é o sujeito que devem, a subjetividade que irrompe na
história. Mas como passar do objeto homem tal e qual particular ao sujeito que devem?
Tanto quanto Nietzsche e Benjamin, não vamos compreender aqui nem sujeito nem
subjetividade como atributos de um indivíduo: consciência, linguagem, auto-representação,
nada disso corresponde ao problema do ethos que se impôs desde o começo desse texto que
vem indagando sobre tragédia e história.
O ethos é daimon para o homem. Para o homem, a força vital que o conduz chama-se
ethos: caráter, morada, hábito. A partir desse ponto, ao invocar a palavra subjetividade, não
me referirei a nenhum indivíduo em particular, mas a um modelo de conduta, isto é, um fio
condutor que não é a essência subjacente ao indivíduo mas, ao contrário, reivindica
adjacências a cada um, em acordo com o todo. A preocupação com esta ética aparece como
um ponto central nas teses de Benjamin como nas considerações intempestivas de Nietzsche,
por motivos diferentes. Mas o fato do tema ser o mesmo, a preocupação com uma conduta
que destitui o indivíduo e restitui uma espécie de sintonia no que tange ao tempo histórico —
o "tempo do agora"5 — eis o que precisamos compreender ainda.
O texto da segunda consideração intempestiva é extenso. Em geral, guardamos dele o
estabelecimento de três paradigmas positivos e negativos da historiografia antiquaria,
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Vide tese XIV: (...) a história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e
vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (...) (Jetzteit). Tb XV, XVI.
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monumental e crítica, do que não me ocuparei aqui. Considerando que o traço positivo em
seus exemplos é a história colocada à serviço da vida (e não do conhecimento neutro e frio do
passado), parece que a meta das considerações intempestivas é restituir à a vida e à cultura
viva o devir-sujeito, quer dizer, a subjetividade como potência, ética e temperamento. Assim
interpreto muitas das passagens de "Da Utilidade e da Inutilidade da História para a Vida",
como por exemplo:
subjetividade / potência:
p. 13. Este é o estado mais injusto do mundo, estreito, ingrato frente ao que passou, cego
para os perigos, surdo em relação às advertências, um pequeno e vivo redemoinho em um
mar morto de noite e esquecimento: e contudo esse estado — a-histórico, contra-histórico
de ponta a ponta — é o ventre não apenas de um feito injusto, mas muito mais de todo e
qualquer feito reto; e nenhum artista alcançará a sua pintura, nenhum general a suas vitória,
nenhum povo a sua liberdade, sem ter antes desejado e almejado vivenciar cada uma delas
em meio a um tal estado.
subjetividade / ética:
subjetividade / temperamento:
"(...) nós somos sem cultura, mais ainda, estamos estragados para a vida, para o ver e o
ouvir corretos e simples, para a apreensão feliz do que há de mais próximo e natural, e não
temos até agora nem mesmo o fundamento de uma cultura, porque não estamos
convencidos de termos uma vida verdadeira em nós. Esfacelado e despedaçado,
decomposto no todo em um dentro e um fora, de maneira semimecânica, coberto com
conceitos como com dentes de dragão, produzindo dragões conceituais, sofrendo, além
disso, de uma doença das palavras sem confiança em qualquer sensação própria que ainda
não esteja selada com palavras, como uma tal fábrica de conceitos e palavras sem vida e,
entretanto, estranhamente ativa, talvez ainda tenha o direito de dizer de mim cogito, ergo
sum, mas não vivo, ergo cogito. O "ser" vazio, não a "vida" plena e verdejante me é
garantida; minha sensação originária assegura-me apenas que sou um ser pensante, não de
que sou um vivente, de que eu não sou nenhum animal, mas no máximo um ser cogitante."
(p. 94)
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Sim, mas é só uma parte do problema que proponho aqui. A parte que diz respeito a
uma sintonia entre a melodia do cotidiano e o símbolo abrangente, ou o eidos: a ideia, o
modelo. Mais uma vez, voltarei a isso. Ainda há a segunda parte, e a parte central. Com
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- Com a palavra "a-histórico" denomino a arte e a força de poder esquecer e de se inserir em um horizonte
limitado; com a palavra "supra-histórico" denomino os poderes que desviam o olhar do vir a ser e o dirigem ao
que dá à existência o caráter do eterno e do estável em sua significação, para a arte e a religião. A ciência (...)
vê nessa força, nesses poderes, forças e poderes contrários; pois ela só toma por verdadeira e correta, ou seja,
por científica, a consideração das coisas que vê por toda parte algo que veio a ser, algo histórico, e nunca vê
um ente, algo eterno (...) (Nietzsche, CEII, p. 95).
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Nietzsche, podemos remeter história à poesia. Mas ainda não podemos implicar a
subjetividade, a não ser passivamente, a se engajar no movimento da vida como vivente. A
questão aqui ainda é o "trágico", ou história e tragédia, vale dizer, a atividade do herói. O
herói trágico, segundo Aristóteles, é um praticante e o ethos o define apenas secundariamente
na trama de uma (boa) tragédia. Ora, ethos não é o vivente, o homem como estirpe nem este
ou aquele homem em particular e assim a mimese na tragédia não deve tentar imitar
caracteres. Ethos é um exemplo, uma ideia, uma morada e um destino fora do homem, mas
com o qual ele entra em sintonia como se tomasse um caminho. Então, fazer com que a
história sirva à vida não é uma tarefa que se esgote na potência artística de um criador, pois
esta potência artística fala sobre a forma mas não sobre a própria tomada decisiva de um
caminho. A imersão amorosa nos dados empíricos diz muito sobre o temperamento daquele
que se dispõe em sintonia com o seu tempo extemporaneamente, mas precisamos ainda
conduzir o amor, a criatividade e a arte para mais longe ainda e o mais longe possível de um
autor que possa, não por Nietzsche mas por certas apropriações infelizes apesar de possíveis
como todos nós sabemos, compreender-se ainda como um indivíduo que tem nas mãos o
destino de um povo eleito. Por isso a forma como Benjamin retoma a teologia me parece
imprescindível. A teologia foge efetivamente desse mundo cronológico, e por esse motivo a
redenção não pode, nem que se queira assim, nem que se busque muito no âmago do
inconsciente de cada indivíduo civilizado, encontrar um só autor. Numa teologia sem deus, o
ethos é, com propriedade, o destino, quer dizer, o demônio para o homem. Ele destrói a
autoria e refaz a potência, pois nenhum homem em particular pode dominar nem seu destino
nem seu demônio.
"a luta de classes que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos é uma
luta pelas coisas brutas e materiais sem as quais não há coisas finas e espirituais. Apesar
disso, estas últimas estão presentes na luta de classes de outra maneira que a da
representação de uma presa que toca ao vencedor. Elas estão vivas nessa luta como
confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade, e elas retroagem
ao fundo longínquo do tempo [grifo meu]. Elas porão incessantemente em questão cada
vitória que couber aos dominantes. Como flores que voltam suas corolas para o sol, assim o
que foi aspira, por um secreto heliotropismo, a voltar-se para o sol que está a se levantar no
céu da história. Essa mudança, a mais imperceptível de todas, o materialista histórico tem
que saber discernir".
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