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Uma das obras que hoje nos é mais familiar e mais característica da época
clássica dos gregos é a representação das imagens nos vasos cerâmicos,
especialmente nos vasos áticos em figuras vermelhas. Isto a tal ponto que, quando
queremos dar a compreender “quem eram e como viviam os gregos”, muitas vezes
escolhemos estas figuras a título de ilustração, apelando para uma experiência
“fotográfica” da imagem. Porém, se como senso comum esta forma de aproximação é
aceitável, em termos de análise histórica e social a compreensão da representação
imagética não se resolve assim facilmente. De fato, se os pintores gregos tiveram a
eles não o fizeram, portanto, a partir dos mesmos pressupostos , dos mesmos valores,
nem da mesma experiência do real como objeto de representação. Como, então,
devemos interpretar a iconografia dos vasos gregos? Este problema não é novo: há
pelo menos duas décadas a interpretação da imagem constitui-se como uma questão
amplamente debatida, entre historiadores e estudiosos da arte; e não há como não
derivar esse movimento daquele que inaugura, por um lado, uma percepção da arte
como fenômeno social, e, por outro lado, uma acentuação da dimensão simbólica da
cultura, e seu correlato, uma análise semiológica da produção cultural (Lissarrague,
1990b; Bérard, 1983; Rede,1993).
habitado.
A participação ativa da mulher em todos os momentos em que a pólis ganha
para os atenienses o sentido de patrís, é patente, por exemplo, no âmbito do teatro: as
tragédias, e, em grande medida as comédias do século V a. C., exploram de diversas
maneiras esta conexão, produzindo efeitos tão inusitados quanto à irrupção da palavra
feminina no cerne das questões políticas: guerra e paz (Lisístrata, de Aristófanes,
Ifigênia em Aulis, Heraclidas, de Eurípides), justiça e lei (Hécuba, de Eurípides,
dos vasos como tentativa de retratar a vida cotidiana. Afirmar a perspectiva doméstica
na partida e armamento do guerreiro é propor, ao mesmo tempo, que a guerra emerge,
no século V a. C. em sua relação com a família, e que para o estabelecimento desta
correlação a presença da mulher é fundamental. Mas por que o interesse pela
dimensão familiar da partida, por que se ressalta o pathos dessa partida, nos gestos
femininos, nas palavras do ancião? Poder-se-ia até mesmo ampliar um tal
questionamento, propondo ainda que se interprete o porquê da valorização familiar da
E ainda:
a) As imagens
FIGURAS:
1- -2
3a -
3b -
3c -
4- 5-
b) A proposta de interpretação
como emblema para o valor social da reprodução de cidadãos, que a mulher, como
esposa legítima, tem a função de garantir.
Pode-se lembrar, com razão, que em Autour du Guerrier Lissarrague não se
compromete com uma análise iconográfica, visando apenas a apresentação dos temas
tal como aparecem ao leigo, na iconografia. Mas o confronto com este exemplo de
abordagem é válido, na medida em que nos auxilia a melhor delimitar o nosso campo
visual. A interpretação dos elementos da representação como emblemas3 para
categorias como “autoridade política”, confere uma tal entonação à imagem, que se
acaba por afastar dela mesma — de seu contexto — outros sentidos possíveis: ao
invés de prestarmos atenção, por exemplo, à correlação de uma ação feminina à
práticas masculinas, a uma recriação de espaço e ação domésticos, retornamos a um
lugar-comum sobre a cidade dos atenienses, que consiste na enunciação do valor da
cidadania masculina, na figura do hoplita. Portanto, na interpretação de F.
Lissarrague, as imagens mais típicas da iconografia da partida do guerreiro emergem
como uma construção de elementos valorativos (o velho / autoridade política; o
hoplita / jovem / caçador; etc), e se apresentam em uma leitura pré-estabelecida de
significados coletivos, remetendo para categorias sociais gerais, e reproduzindo
aquilo que a sociedade dos atenienses parece exclamar em uníssono: a prática política
do homem livre. Com isso, todo o foco da leitura proposta pelo estudioso é colocado
sobre o guerreiro como hoplita, sendo o contexto da imagem um texto “de apoio” à
afirmação política e social do cidadão-soldado.
Compreendamos o contexto da imagem como o conjunto das interações
propostas pelo discurso imagético, ou seja, pelo conjunto de suas enunciações: modos
de “dizer” que supõem o encontro do usuário de um desses vasos com uma série de
mensagens superpostas que são para ele, ao mesmo tempo, óbvias e ocultas, em uma
palavra, que ele compreende sem se perguntar como ou por que. O que podemos
inferir desse contexto?
Primeiro, sobre a localização. Sugeri, por uma observação primária, a
possibilidade de situar-se as cenas em um espaço doméstico. Entretanto, analisando
cada uma das figuras, percebemos não haver nelas nenhum cuidado em representar o
espaço doméstico em si, como lugar objetivo: nenhum dos atributos materiais
próprios do espaço doméstico na iconografia, como por exemplo as colunas e as
portas, estão presentes nas figuras apresentadas aqui. Estas chamam propositalmente
a atenção para o fato de que a esfera doméstica, ou seja, a esfera da oikías, se constrói
intrinsecamente, no comércio das personagens entre si; é a partir desta interação entre
as personagens que se sugere “lugar”: o fechamento do campo espacial em torno do
guerreiro é um exemplo disso, já que a delimitação desse campo é efetuada pela
disposição de figuras humanas, mais frequentemente de um homem mais velho e de
uma mulher; além disso, a participação ativa da mulher liga o acontecimento ao
espaço onde esta atuação é importante e efetiva — espaço da casa, esfera da família
(oikías). O cuidado na representação de um cachorro relaciona a cena a um plano de
vivência familiar, e indica ainda uma atividade de caça da qual se desvincula o jovem
que se arma como hoplita.
Isto nos introduz em um segundo elemento da representação: a indicação de
passagem, de tempo. Se o cachorro, e às vezes a ambiguidade das vestimentas do
jovem que se arma — em hábitos de caçador, como na figura 4 — sugerem uma
passagem de estatuto do ponto de vista masculino, todo o conjunto da cena sugere,
senão passagem de tempo, ao menos produção de temporalidade. Como somos
levados a ver isso?
Na cena principal da figura 1, o campo visual é centralizado pelo guerreiro
armado, a tal ponto que ele parece se sobressair na própria “moldura”. Esta intenção
de apresentar o guerreiro de forma destacada, acaba por separar neste espaço do vaso
dois campos diferentes: para um desses campos o guerreiro está voltado, e representa-
se um agora que é o da libação. Do outro lado abre-se um espaço indiferente entre o
guerreiro e o homem mais velho: as relações encontram-se suspensas, e o homem
olha para trás, aumentando a distância entre ele mesmo — sua apresentação na cena
— e a libação. Porém, o homem ali está, em suspensão do ponto de vista temporal,
mas atuando em cena, do ponto de vista do usuário que observa o vaso.
observam a ação dos guerreiros, aguardando: a mulher traz à mão os artefatos usados
na libação. Na face seguinte, uma cena de guerra pode estar concluíndo ou
perpassando todo o campo de percepção da imagem: trata-se de um futuro para o
guerreiro que se arma, assim como este último poderia ser o destino do jovem à
cavalo? Ou se trata do destino intemporal, do destino mítico de todo homem, e de
todo chefe de família, o destino da atividade guerreira? De qualquer maneira, o cerne
desta enunciação de tempo não está na evocação da ascendência e da descendência
(embora isto não seja suficiente para desconsiderar as figuras da mulher e do homem
mais velho, representados como que “à espera”) ; neste vaso, mais que nos outros
apresentados, se narra uma passagem, uma mudança de estatuto: é o destino do rapaz
que se diz, ainda do ponto de vista da oikías.
Oikías: Palavra que significa, ao mesmo tempo, família, habitação-morada, e
habitação como consequência do ato de habitar . Esta experiência de habitar torna
possível a remissão da imagem a um lugar, ao qual se está ligado porque se habita, o
qual se experimenta cotidianamente porque nele se vive. Este lugar de experiências
cotidianas produz seus efeitos em termos de modulação das relações sociais, e em
termos de representações políticas e religiosas. Para os fins a que este estudo se
propõe, cabe realçar este ponto, mostrando, por exemplo, um cuidado, geralmente
raro na iconografia, em fazer representar no espaço aberto do jovem montado à
cavalo um “solo” apresentado esquematicamente por uma linha horizontal, mas ainda
assim uma representação do chão. A passagem da idade tomada como transformação
das virtudes sociais do futuro guerreiro é uma “intromissão” do tópico da “terra
habitada” no tópico das “virtudes masculinas”, fazendo emergir aos olhos dos
espectadores casuais da iconografia dos vasos um masculino apropriado pela sua
casa.
Na figura 4, a atuação da figura feminina é acentuada: no corpo do vaso a
cena representa a mulher, o armamento, e o jovem caçador a quem a mulher apresenta
uma espada, e, com a espada, uma injunção a armar-se, a transformar-se em
guerreiro. Mais uma vez, a passagem se constrói não mais como narrativa, , mas
— Hipóteses a Investigar
período. A participação ativa da mulher na cena poderia então promover esse pathos
da partida, colocada em termos de família, ascendência e descendência, em uma
palavra, lugar e duração. Por isso emergiria a pátria, já que a relação com a terra “dos
pais” traz consigo a ligação emotiva a um espaço vivido, porque habitado;
3) trata-se de uma prerrogativa real ligada ao estatuto da mulher na casa e na
cidade. Da partida e do armamento do guerreiro como um ritual de passagem
doméstico, a mulher teria assim um controle efetivo. Primeiro por caber a ela a
chamada à participação dos deuses, na medida em que ela traz os apetrechos da
libação. Mas ainda, por caber à mulher o envio do rapaz não simplesmente à guerra,
mas a um espaço de convívio que já não é mais doméstico e familiar: o espaço
público. Chegaríamos então a uma mediação feminina entre os espaços da família e
da pólis.
Seriam estas respostas excludentes?
Seja como for, a evocação religiosa e emotiva, a participação ativa da mulher,
as marcas da passagem das classes de idade, assim como da passagem de um tempo
que é o das gerações que forjam a família, apontam para a escolha em mostrar a si e
aos outros uma cidade / pátria. E compreender essa pátria é, para nós, uma tarefa
fundamental na abertura de novos campos de investigação sobre a cultura e a
sociedade da Atenas clássica, em seu encontro com o mundo antigo.
- Figura 1:
ENCICLOPEDIA DELL’ARTE ANTICA. Roma: 1960, p. 373. (München,
Museum Antiquer Kleinkunst).
- Figura 2:
BAZANT, J. Les Citoyens sur les Vases Athéniens du 6e. Au 4e. Siècle av. J-
C.. Praga: Academia, 1985, pr. VII. (London, Brittish Museum E448).
- Figura 3:
CORPUS VASORUM ANTIQUORUM - The Brittish Museum, fasc. 9; Great
Britain, fasc. 17. Brittish Museum Press:1993. Pr. 43 e 44.
- Figura 4:
LISSARRAGUE, F. Femmes au Figuré. IN: DUBY, G. & PERROT, M.
Histoire des Femmes en Occident. Paris: Plon, 1990a, vol I, p. 198. (München,
Antikensammlung).
- Figura 5:
LISSARRAGUE, F. Femmes au Figuré. IN: DUBY, G. & PERROT, M.
Histoire des Femmes en Occident. Paris: Plon, 1990a, vol I, p. 197. (Palermo, Museo
Archeologico).
- ____________. Les Citoyens sur les Vases Athéniens du 6e. Au 4e. Siècle av. J- C..
Praga: Academia, 1985.
- _________________. “Vingt ans de vases grecs”. Métis, V 1-2, 1990b, pp. 205-224.
- SPARKES, B. A. The Red and The Black. Studies in greek pottery. London:
Routledge, 1996.
- ZEITLIN, F. Playing the Other. Gender and Society in Classical Greek Literature.
Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
1
-- Pátria ou patrís. Traduz-se a expressão grega como “terra ancestral”. O lugar da patrís nas
representações políticas, religiosas e sociais dos atenienses é considerável e, como procurei demonstrar
em minha dissertação de mestrado, o papel do gênero feminino nos rituais, discursos e situações
envolvendo a vivência de uma relação com a cidade a partir da compreensão de uma “terra ancestral” é
imprescindível (Andrade, 1994). Deve-se ter cautela, entretanto, para não compreender patri‰ß em
conjunto com qualquer idéia de fronteiras nacionais, de nação.
2
- “(…)A partir do começo do 5º século o tema do adeus, assim como aquele do armamento, situa-se
na casa do guerreiro. Para além dos signos estandardizados da casa — coluna, altar, estela, árvore,
cadeira (klismos), banqueta (difros) — fazia-se uma alusão ao thalamos, o aposento onde as armas
eram conservadas (…)” (Bazant, 1985: 12).
3
- Prefiro usar termos não comprometidos com um método de análise iconográfica na referência ao
estudo de F. Lissarrague. Poder-se-ia substituir “emblemas” por “significantes”, mas conferiria com
isso à interpretação de F. Lissarrague uma perspectiva semiológica que, a rigor, ela não tem, ao menos
no estudo em questão — Autour du Guerrier (1984).