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Masculino e Feminino: da escolha entre a Patrís e a Pólis nas imagens

de partida e armamento do guerreiro.


Por Marta Mega de Andrade*

“ Que de mim e de meus descendentes seja afastada essa imagem apavorante,


sentadas com seus afazeres, ricas lídias, esposas frígias, que uma a outra se
perguntam: ' quem será aquele a agarrar meus belos cabelos, levando-me às
lágrimas, para me arrancar como uma planta do solo de minha pátria em
ruínas?' […]” (Eurípides, Ifigênia em Aulis, vv. 783-789.)

Uma das obras que hoje nos é mais familiar e mais característica da época
clássica dos gregos é a representação das imagens nos vasos cerâmicos,
especialmente nos vasos áticos em figuras vermelhas. Isto a tal ponto que, quando
queremos dar a compreender “quem eram e como viviam os gregos”, muitas vezes
escolhemos estas figuras a título de ilustração, apelando para uma experiência
“fotográfica” da imagem. Porém, se como senso comum esta forma de aproximação é
aceitável, em termos de análise histórica e social a compreensão da representação
imagética não se resolve assim facilmente. De fato, se os pintores gregos tiveram a

intenção de deixar na superfície dos vasos testemunhos de momentos da vida real,


eles não o fizeram como nós pintaríamos um quadro ou tiraríamos uma fotografia;

eles não o fizeram, portanto, a partir dos mesmos pressupostos , dos mesmos valores,
nem da mesma experiência do real como objeto de representação. Como, então,
devemos interpretar a iconografia dos vasos gregos? Este problema não é novo: há
pelo menos duas décadas a interpretação da imagem constitui-se como uma questão
amplamente debatida, entre historiadores e estudiosos da arte; e não há como não
derivar esse movimento daquele que inaugura, por um lado, uma percepção da arte
como fenômeno social, e, por outro lado, uma acentuação da dimensão simbólica da
cultura, e seu correlato, uma análise semiológica da produção cultural (Lissarrague,
1990b; Bérard, 1983; Rede,1993).

* Professora Assistente da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Entretanto, a perspectiva orientadora deste artigo não é a da problemática da
imagem e de sua interpretação de modo geral, mas antes pretende ser um exercício

particular de abordagem. Foi escolhido um tema iconográfico — o da partida e


armamento do guerreiro —, tema extremamente difundido nos vasos atenienses do
século V a.C. O enfoque desta série temática deve contribuir para movimentar a
discussão do como interpretar: se os pintores dos vasos procuravam representar a
“vida” dos atenienses do período clássico, quais sãos as possibilidades de leitura e
compreensão dessas imagens para nós, na medida em que pretendemos conferir
visibilidade a certas dimensões dessa “vida”?A imagem pode ser apreendida como
ilustração do real? Pode ser decodificada, na medida em que é produto de um
universo simbólico inconsciente e coletivo? Funciona culturalmente como uma
espécie de linguagem ?
Se a iconografia é uma forma de linguagem, ela nos interessará, neste artigo,
por abrir o horizonte daquilo que é possível compreender sobre a sociedade grega
antiga, através de seus “modos de dizer” específicos (imagéticos, plásticos, visuais,
táteis, etc). Assim, as representações iconográficas do armamento e da partida do
guerreiro nos atrairão por traduzirem não tanto concepções sobre a guerra, modelos
de ação do homem guerreiro, ou momentos reais da vida de um cidadão, mas pela
visibilidade que elas conferem a certas práticas, a certas experiências sociais que
perpassam o contexto, e que formam, na imagem um subtexto, um não-dito. Indicarei,
neste estudo, apenas a envergadura de uma das questões em foco, quando se tem em
vista um tal subtexto: trata-se da problemática da presença, pertença e participação da
mulher na cidade dos atenienses, tal como nos aparece na tradução de uma
experiência da cidade como patrís1, ou seja, como terra ancestral e território

habitado.
A participação ativa da mulher em todos os momentos em que a pólis ganha
para os atenienses o sentido de patrís, é patente, por exemplo, no âmbito do teatro: as
tragédias, e, em grande medida as comédias do século V a. C., exploram de diversas
maneiras esta conexão, produzindo efeitos tão inusitados quanto à irrupção da palavra
feminina no cerne das questões políticas: guerra e paz (Lisístrata, de Aristófanes,
Ifigênia em Aulis, Heraclidas, de Eurípides), justiça e lei (Hécuba, de Eurípides,

Antígona, de Sófocles), governo da cidade (Assembléia de Mulheres, Tesmofórias, a


própria Lisístrata de Aristófanes), e, principalmente, consequências da guerra para a
família e a vida cotidiana (As Troianas, além das peças de Aristófanes já citadas).
Além disso, sabemos da importância da “cidadã” (asté) ateniense na prática dos ritos
religiosos, momento em que as mulheres assumem sua parte igual (Lisístrata) na
cidade e podem, ao efetuar-se o ritual e a festa, assegurar a fertilidade, tanto na esfera
da reprodução biológica, como na esfera da reprodução cultural da cidade. Na
atualização dessa vivência religiosa do espaço da cidade, os atenienses como um
conjunto de homens e de mulheres, celebravam a pólis como terra de famílias, e como
comunidade de famílias proprietárias de terras.
Na iconografia da partida e armamento do guerreiro, quero levar o leitor à
compreender que perpassa também uma mensagem sobre a patrís , e sugerir as
implicações que a percepção desta mensagem pode trazer para o levantamento de
uma perspectiva feminina sobre os negócios da cidade, e da sociedade ateniense.
Assumindo que a iconografia traduz uma forma particular de discurso social, deve-se
estar atento à presença da mulher nas cenas de partida e sua relação com outras
figuras, mas também com objetos, à ambientação da circunstância representada, e,
enfim, ao tipo de comunicação que esses elementos proporcionam, dando a
reconhecer uma dimensão da vida social ateniense aos próprios atenienses e ao
mundo grego (e mediterrânico) como um todo: em uma palavra, trata-se da relação
entre a iconografia da partida e armamento do guerreiro, e a experiência (social) da
pólis como pátria, através da mediação do elemento feminino.

— As imagens e sua interpretação

O tema da “partida e armamento do guerreiro” surge no repertório dos vasos


áticos ainda no século VI a. C., conhecendo-se alguns exemplos em figuras negras.
Neste caso, a temática associa a figura de um guerreiro armado ou armando-se a
figuras divinas como Palas Atena e Hermes. Durante o século V a. C., os motivos

representados se transformaram sensivelmente, para incluir, além do momento do


armamento, a partida, a saudação e a admoestação (do pai?), a libação, o sacrifício e a
hieroscopia (leitura de presságios nas vísceras de vítimas sacrificadas), enfim, toda
uma diversidade de tematizações possíveis, demonstrando uma maior atenção à
situação de “partida” do que propriamente ao elogio das virtudes masculinas na
guerra.
Isto se torna mais claro ao constatarmos quais são as figuras humanas, as
estratégias espaciais, os objetos, enfim, os elementos que dão substância ao contexto
representado. Algumas vezes mantêm-se as figuras divinas; em outras aparecem
figuras que podem ser escravos (uma estatura inferior com relação às demais figuras
representadas pode ter este sentido, além de muitos outros, como, por exemplo, de
perspectiva, ou de faixa de idade menor), sendo frequente a representação de cães, e
rara, porém existente, a de animais como veados, ou leões. Mas em sua forma típica,
o guerreiro que se arma, que faz o sacrifício ou a libação, é cercado por ao menos
duas figuras: a de um velho (identificado como o pai), e a de uma mulher (a mãe ou a
esposa). Esta configuração nos induz a conceber a iconografia da partida do guerreiro
no século V como um modo de representar alguns dos momentos mais marcantes do
2
acontecimento doméstico da ida dos filhos e maridos para a guerra. No caso dos
jovens, muitas vezes a passagem a homem adulto é tematizada como o despir-se das
vestes de caçador e o vestir-se da armadura e do elmo do hoplita.
Entretanto, afirmar que se trata da representação de um acontecimento
doméstico é ressaltar uma perspectiva, e não corroborar a abordagem da iconografia

dos vasos como tentativa de retratar a vida cotidiana. Afirmar a perspectiva doméstica
na partida e armamento do guerreiro é propor, ao mesmo tempo, que a guerra emerge,
no século V a. C. em sua relação com a família, e que para o estabelecimento desta
correlação a presença da mulher é fundamental. Mas por que o interesse pela
dimensão familiar da partida, por que se ressalta o pathos dessa partida, nos gestos
femininos, nas palavras do ancião? Poder-se-ia até mesmo ampliar um tal
questionamento, propondo ainda que se interprete o porquê da valorização familiar da

guerra e não a manifestação viril das virtudes próprias ao cidadão guerreiro, em um


momento em que a vida pública parece ocupar a totalidade da experiência masculina
da cidade democrática.
Para que se tenha em mente a importância dessas questões, deve-se
compreender em termos de circulação cultural essa produção da cerâmica ática no
período clássico. Se, por um lado, as fontes escritas contribuem para construir um
modelo de cidade a partir do comprometimento de cada cidadão com o interesse
comum, a partir da paideia como exemplo de uma formação voltada para a cidadania
e para a vida pública, e se nossos textos nos mostram a pólis como um espaço quase
ideal de relacionamentos masculinos, a iconografia, por outro lado, oculta em seus
temas o espaço da política, e ocupa-se de narrativas míticas ou representações atuais
que dizem respeito a vida diária dos atenienses (Bazant, 1984). Esta profusão de
imagens — míticas ou não —, viaja pelo mundo grego e por todo o mar
Mediterrâneo, alcançando as paragens ocidentais, onde o estilo ático “fará escola” na
cerâmica etrusca em um determinado período, mas principalmente na cerâmica
italiota do século IV a.C. Nessa troca entre gregos e não gregos, nessa circulação em
que os temas representados mostravam uma sociedade viva como modelo, além de
um modelo para uma sociedade viva, qual era a “mercadoria” que circulava em
termos culturais? Como diz J. Bazant,

“Em busca de sua identidade (…) os Gregos voltavam-se assim


para a arte, sobretudo para a representação da vida em pintura.
Não somente as atitudes ‘nacionalistas’ encontravam aí sua
expressão mais adequada, mas ainda essas imagens se tornavam
seu veículo preferido. Por que? Porque os vasos pintados eram
os objetos preferidos da troca social (…)”

E ainda:

“Em razão dessas circunstâncias, as relações com os outros nos


mínimos detalhes da vida cotidiana — ganhavam uma extrema
importância. Como a identidade de nosso ateniense não estava
dada de uma vez por todas, era preciso manifestá-la novamente
aos olhos de todos a cada nova manhã (…)” (Bazant, 1985: 59-
60).

Situando a iconografia dos vasos no contexto da negociação cotidiana e social


das identidades de um grupo, pode-se indagar, portanto, o porquê dessa perspectiva

doméstica passar a operar nas imagens do guerreiro no século V a.C. no sentido da


produção de um lugar de discurso dos atenienses para eles mesmos e para os outros, e
assim começar a propor uma interpretação para essas imagens.

a) As imagens

A figura 1 provem de uma ânfora atribuída ao pintor de Kleofrades, de


aproximadamente 500 a.C . Trata-se de um exemplo de transição: embora seja um
vaso de figuras vermelhas, o modo de representação ainda se adequa melhor às
figuras negras. Refiro-me mais diretamente ao costume de traçar uma moldura
decorada em torno da imagem no corpo do vaso. Esta moldura enquadra uma cena
maior — ou principal — em que se representa o momento da libação. Nela, um
homem mais velho, barbado, segura um bastão e olha para trás, enquanto um jovem
armado, no centro, estende uma taça à mulher que a enche para a libação. O ato da
mulher é acompanhado de um gesto que se assemelha ao levantamento de um manto.
Para completar a cena, um cachorro fareja o “chão” (que não é representado). A
pintura do vaso se completa com a tampa, onde se representam cenas de caça.
A figura 2 reatualiza o mesmo tema da primeira. Trata-se de um stamnos,
possivelmente da primeira metade do século V a.C, em que se pecebe uma
transformação no que concerne ao “estilo” da representação. A cena principal não é
mais enquadrada em moldura, embora ainda seja delimitada por folhagens
decorativas. Desta vez o guerreiro ao centro, totalmente armado, aperta a mão de um
homem barbado mais velho, que segura um bastão. Do lado oposto uma mulher
aguarda o desfecho da cena, ou esperando para fazer a libação, ou já a tendo feito.
Novamente é representado um cão.

As figuras 3 a, b e c correspondem ao todo das representações em uma taça de


aproximadamente 470 a.C: no interior (a) um jovem anda à cavalo; na primeira face
lateral (b), representa-se o armamento de dois guerreiros, neste caso a mulher espera
para a libação, enquanto um homem mais velho e calvo olha o armamento dos
guerreiros; dois outros personagens masculinos, que podem ser escravos ou
simplesmente homens mais novos, participam da cena; na segunda face lateral (c),
apresenta-se uma cena de batalha.
As figuras 4 e 5, enfim, são diferentes das primeiras. Na figura 4 a posição
central no corpo de uma ânfora de 440 a.C é ocupada pelo armamento, cercado por
um jovem em trajes de caçador, e por uma mulher que lhe estende uma espada.
Nenhuma outra referência é representada, e não há limites à figura. Na figura 5,
aumenta a indeterminação espacial da cena: uma mulher corre carregando uma
armadura, e fazendo da superfície do vaso um traçado na medida de seu andar; trata-
se de um lécito datando de 460 a.C .

FIGURAS:
1- -2
3a -

3b -

3c -
4- 5-

b) A proposta de interpretação

Em seu estudo intitulado Autour du Guerrier (1984), François Lissarrague


propõe uma interpretação para o código iconográfico das imagens de partida e
armamento do guerreiro, que seria interessante debater aqui. O autor afirma que se
“justapõem” aí personagens, de um modo “relativamente simples”:

“(…) além do hoplita, reconhecível por suas armas, podemos


encontrar o arqueiro (…). Do lado daqueles que não fazem a
guerra, que permanecem na cidade, a imagem coloca em cena a
mulher, cujo lugar é central, o velho, outrora hoplita,
presentemente depositário da autoridade política. Aqui ainda
nenhuma decoração, mas o simples confronto daqueles que,
colocados assim em presença, constituem categorias essenciais
da sociedade grega aos olhos daqueles que a colocam em cena.”
(p. 41)
Nas palavras de Lissarrague, fica claro que este autor faz uma leitura
superficial de elementos que estão na cena, por seu conteúdo significativo isolado; e,
portanto, haveria, segundo ele, uma justaposição de personagens, que se explicaria
pelo peso das categorias sociais que eles representam: o velho, que já foi hoplita,
representaria a autoridade política, sendo algumas vezes substituído por Atena. F.
Lissarrague não se detem na figuração do elemento feminino, mas se seguimos a
lógica de sua análise atenta para modelos sociais, imaginamos sua presença na cena

como emblema para o valor social da reprodução de cidadãos, que a mulher, como
esposa legítima, tem a função de garantir.
Pode-se lembrar, com razão, que em Autour du Guerrier Lissarrague não se
compromete com uma análise iconográfica, visando apenas a apresentação dos temas
tal como aparecem ao leigo, na iconografia. Mas o confronto com este exemplo de
abordagem é válido, na medida em que nos auxilia a melhor delimitar o nosso campo
visual. A interpretação dos elementos da representação como emblemas3 para
categorias como “autoridade política”, confere uma tal entonação à imagem, que se
acaba por afastar dela mesma — de seu contexto — outros sentidos possíveis: ao
invés de prestarmos atenção, por exemplo, à correlação de uma ação feminina à
práticas masculinas, a uma recriação de espaço e ação domésticos, retornamos a um
lugar-comum sobre a cidade dos atenienses, que consiste na enunciação do valor da
cidadania masculina, na figura do hoplita. Portanto, na interpretação de F.
Lissarrague, as imagens mais típicas da iconografia da partida do guerreiro emergem
como uma construção de elementos valorativos (o velho / autoridade política; o
hoplita / jovem / caçador; etc), e se apresentam em uma leitura pré-estabelecida de
significados coletivos, remetendo para categorias sociais gerais, e reproduzindo
aquilo que a sociedade dos atenienses parece exclamar em uníssono: a prática política
do homem livre. Com isso, todo o foco da leitura proposta pelo estudioso é colocado
sobre o guerreiro como hoplita, sendo o contexto da imagem um texto “de apoio” à
afirmação política e social do cidadão-soldado.
Compreendamos o contexto da imagem como o conjunto das interações

propostas pelo discurso imagético, ou seja, pelo conjunto de suas enunciações: modos
de “dizer” que supõem o encontro do usuário de um desses vasos com uma série de
mensagens superpostas que são para ele, ao mesmo tempo, óbvias e ocultas, em uma
palavra, que ele compreende sem se perguntar como ou por que. O que podemos
inferir desse contexto?
Primeiro, sobre a localização. Sugeri, por uma observação primária, a
possibilidade de situar-se as cenas em um espaço doméstico. Entretanto, analisando

cada uma das figuras, percebemos não haver nelas nenhum cuidado em representar o
espaço doméstico em si, como lugar objetivo: nenhum dos atributos materiais
próprios do espaço doméstico na iconografia, como por exemplo as colunas e as
portas, estão presentes nas figuras apresentadas aqui. Estas chamam propositalmente
a atenção para o fato de que a esfera doméstica, ou seja, a esfera da oikías, se constrói
intrinsecamente, no comércio das personagens entre si; é a partir desta interação entre
as personagens que se sugere “lugar”: o fechamento do campo espacial em torno do
guerreiro é um exemplo disso, já que a delimitação desse campo é efetuada pela
disposição de figuras humanas, mais frequentemente de um homem mais velho e de
uma mulher; além disso, a participação ativa da mulher liga o acontecimento ao
espaço onde esta atuação é importante e efetiva — espaço da casa, esfera da família
(oikías). O cuidado na representação de um cachorro relaciona a cena a um plano de
vivência familiar, e indica ainda uma atividade de caça da qual se desvincula o jovem
que se arma como hoplita.
Isto nos introduz em um segundo elemento da representação: a indicação de
passagem, de tempo. Se o cachorro, e às vezes a ambiguidade das vestimentas do
jovem que se arma — em hábitos de caçador, como na figura 4 — sugerem uma
passagem de estatuto do ponto de vista masculino, todo o conjunto da cena sugere,
senão passagem de tempo, ao menos produção de temporalidade. Como somos
levados a ver isso?
Na cena principal da figura 1, o campo visual é centralizado pelo guerreiro
armado, a tal ponto que ele parece se sobressair na própria “moldura”. Esta intenção

de apresentar o guerreiro de forma destacada, acaba por separar neste espaço do vaso
dois campos diferentes: para um desses campos o guerreiro está voltado, e representa-
se um agora que é o da libação. Do outro lado abre-se um espaço indiferente entre o
guerreiro e o homem mais velho: as relações encontram-se suspensas, e o homem
olha para trás, aumentando a distância entre ele mesmo — sua apresentação na cena
— e a libação. Porém, o homem ali está, em suspensão do ponto de vista temporal,
mas atuando em cena, do ponto de vista do usuário que observa o vaso.

Na figura 2, embora se repita o mesmo esquema, os momentos são inversos.


Do lado esquerdo vemos o guerreiro apertar a mão do homem mais velho, enquanto a
mulher, embora participante na medida em que observa o ato, espera. Pode-se sugerir
quanto a essas duas imagens, por exemplo, o cuidado em marcar uma ordem de
procedimentos a serem realizados. Nesta ordem, o velho e a mulher não são
apresentados em um mesmo momento sequencial. Sustentam, com sua própria
presença, um antes e um depois. Certamente, pode-se compreender este “antes” e este
“depois” como indicações de sequência de tempo para uma tarefa, ou talvez seja
melhor dizer, para um ritual; mas se passarmos do ponto de vista de uma
representação do real para a perspectiva de uma experiência social da família, pode-se
ir um pouco mais longe, e sobrepor à pura sequência dos procedimentos uma relação
entre atividade guerreira, ascendência, e descendência.
As figuras 3 a, b e c mostram três faces de um mesmo vaso, e em cada um dos
espaços de representação disponíveis foram pintadas cenas que, encadeadas,
constituem uma narrativa: o interior da taça mostra um jovem nú, montado em um
cavalo que anda a passos lentos. Dois elementos — a árvore, e a linha horizontal que
marca o solo — configuram o lugar aberto, o ar-livre como suporte da ação. Em uma
das faces laterais o tema é o armamento de dois guerreiros. No centro da
representação um homem barbado veste a armadura, cercado por (talvez) dois
servidores, um deles trazendo à mão uma lança. A lança produz uma segmentação no
espaço da representação, de modo que o segundo guerreiro, mais moço e ainda nú,
tem o seu próprio plano na cena. Do lado oposto, o homem calvo e a mulher

observam a ação dos guerreiros, aguardando: a mulher traz à mão os artefatos usados
na libação. Na face seguinte, uma cena de guerra pode estar concluíndo ou
perpassando todo o campo de percepção da imagem: trata-se de um futuro para o
guerreiro que se arma, assim como este último poderia ser o destino do jovem à
cavalo? Ou se trata do destino intemporal, do destino mítico de todo homem, e de
todo chefe de família, o destino da atividade guerreira? De qualquer maneira, o cerne
desta enunciação de tempo não está na evocação da ascendência e da descendência

(embora isto não seja suficiente para desconsiderar as figuras da mulher e do homem
mais velho, representados como que “à espera”) ; neste vaso, mais que nos outros
apresentados, se narra uma passagem, uma mudança de estatuto: é o destino do rapaz
que se diz, ainda do ponto de vista da oikías.
Oikías: Palavra que significa, ao mesmo tempo, família, habitação-morada, e
habitação como consequência do ato de habitar . Esta experiência de habitar torna
possível a remissão da imagem a um lugar, ao qual se está ligado porque se habita, o
qual se experimenta cotidianamente porque nele se vive. Este lugar de experiências
cotidianas produz seus efeitos em termos de modulação das relações sociais, e em
termos de representações políticas e religiosas. Para os fins a que este estudo se
propõe, cabe realçar este ponto, mostrando, por exemplo, um cuidado, geralmente
raro na iconografia, em fazer representar no espaço aberto do jovem montado à
cavalo um “solo” apresentado esquematicamente por uma linha horizontal, mas ainda
assim uma representação do chão. A passagem da idade tomada como transformação
das virtudes sociais do futuro guerreiro é uma “intromissão” do tópico da “terra
habitada” no tópico das “virtudes masculinas”, fazendo emergir aos olhos dos
espectadores casuais da iconografia dos vasos um masculino apropriado pela sua
casa.
Na figura 4, a atuação da figura feminina é acentuada: no corpo do vaso a
cena representa a mulher, o armamento, e o jovem caçador a quem a mulher apresenta
uma espada, e, com a espada, uma injunção a armar-se, a transformar-se em
guerreiro. Mais uma vez, a passagem se constrói não mais como narrativa, , mas

como um único momento no qual a atitude mais incisiva é feminina. A tendência do


período clássico (460-400 a.C) a minimizar os objetos e as referências espaciais ajuda
a centralizar a atenção nessa atitude feminina, a partir do momento em que a cena se
produz em um espaço indeterminado, isto é, em um espaço que é o da superfície do
vaso, e não um lugar representado. Ora, a não representação de lugar obriga a
percepção a concentrar-se na ação entre as figuras na cena, e é a partir desta ação que
se constróem referências para o reconhecimento da imagem e interpretação das

possíveis mensagens. Esta tendência a marcar pela ação elementos de tempo, de


espaço e de movimento é explícita na figura 5, na qual do tema do armamento do
guerreiro restam apenas a mulher, a armadura, e todo o espaço do virtualmente
possível (como virtual é a corrida da mulher em direção a um destino, ou uma tarefa).
O que nos leva ao terceiro ponto: a presença e atuação de figuras femininas
em grande parte dos vasos áticos em que o tema da partida e armamento do guerreiro
é representado. Sugeriu-se para as figuras 1 e 2 uma compreensão em termos de
ascendência / descendência, e de ordenação de certos procedimentos rituais. Mas as
figuras 4 e 5 não se enquadram nesta proposta de leitura. Nelas, a economia da cena
promove a importância e a centralidade da ação feminina no armamento e na partida
do guerreiro. São conhecidas cenas de armamento nas quais não há mulheres, assim
como são conhecidas cenas de armamento e partida do guerreiro em que não intervem
uma figura masculina mais velha. Mas evocação do armamento em que não há um
guerreiro, apenas uma mulher que carrega a arma? Que laço pode ser tão estreito a
ponto de unir a mulher ao armamento e, principalmente, ao armar-se?

— Hipóteses a Investigar

Responder esta questão é, em certa medida, sair do âmbito dessas cenas de


partida do guerreiro, e procurar mais indícios que esclareçam a importância de uma
atuação, talvez de uma justificativa ou apropriação feminina da guerra. Embora não
seja o espaço deste estudo totalmente adequado a uma extrapolação de nosso

exercício de abordagem iconográfica, pode-se situar os caminhos em que uma


resposta é possível:
1) trata-se de uma intromissão do estatuto religioso das mulheres, conferindo
às imagens de preparação de um guerreiro no espaço doméstico um caráter votivo,
propiciatório, meio “mágico”;
2) trata-se de uma forma de “propaganda” encorajando a dedicação guerreira,
jogando com o elemento emocional da patrís, tanto quanto o teatro o faz no mesmo

período. A participação ativa da mulher na cena poderia então promover esse pathos
da partida, colocada em termos de família, ascendência e descendência, em uma
palavra, lugar e duração. Por isso emergiria a pátria, já que a relação com a terra “dos
pais” traz consigo a ligação emotiva a um espaço vivido, porque habitado;
3) trata-se de uma prerrogativa real ligada ao estatuto da mulher na casa e na
cidade. Da partida e do armamento do guerreiro como um ritual de passagem
doméstico, a mulher teria assim um controle efetivo. Primeiro por caber a ela a
chamada à participação dos deuses, na medida em que ela traz os apetrechos da
libação. Mas ainda, por caber à mulher o envio do rapaz não simplesmente à guerra,
mas a um espaço de convívio que já não é mais doméstico e familiar: o espaço
público. Chegaríamos então a uma mediação feminina entre os espaços da família e
da pólis.
Seriam estas respostas excludentes?
Seja como for, a evocação religiosa e emotiva, a participação ativa da mulher,
as marcas da passagem das classes de idade, assim como da passagem de um tempo
que é o das gerações que forjam a família, apontam para a escolha em mostrar a si e
aos outros uma cidade / pátria. E compreender essa pátria é, para nós, uma tarefa
fundamental na abertura de novos campos de investigação sobre a cultura e a
sociedade da Atenas clássica, em seu encontro com o mundo antigo.

Referências Bibliográficas das Fontes:

- Figura 1:
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- Figura 2:
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- Figura 3:
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Britain, fasc. 17. Brittish Museum Press:1993. Pr. 43 e 44.

- Figura 4:
LISSARRAGUE, F. Femmes au Figuré. IN: DUBY, G. & PERROT, M.
Histoire des Femmes en Occident. Paris: Plon, 1990a, vol I, p. 198. (München,
Antikensammlung).

- Figura 5:
LISSARRAGUE, F. Femmes au Figuré. IN: DUBY, G. & PERROT, M.
Histoire des Femmes en Occident. Paris: Plon, 1990a, vol I, p. 197. (Palermo, Museo
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Obras Citadas e de Referência:

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Universidade Federal Fluminense.

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1
-- Pátria ou patrís. Traduz-se a expressão grega como “terra ancestral”. O lugar da patrís nas
representações políticas, religiosas e sociais dos atenienses é considerável e, como procurei demonstrar
em minha dissertação de mestrado, o papel do gênero feminino nos rituais, discursos e situações
envolvendo a vivência de uma relação com a cidade a partir da compreensão de uma “terra ancestral” é
imprescindível (Andrade, 1994). Deve-se ter cautela, entretanto, para não compreender patri‰ß em
conjunto com qualquer idéia de fronteiras nacionais, de nação.
2
- “(…)A partir do começo do 5º século o tema do adeus, assim como aquele do armamento, situa-se
na casa do guerreiro. Para além dos signos estandardizados da casa — coluna, altar, estela, árvore,
cadeira (klismos), banqueta (difros) — fazia-se uma alusão ao thalamos, o aposento onde as armas
eram conservadas (…)” (Bazant, 1985: 12).
3
- Prefiro usar termos não comprometidos com um método de análise iconográfica na referência ao
estudo de F. Lissarrague. Poder-se-ia substituir “emblemas” por “significantes”, mas conferiria com
isso à interpretação de F. Lissarrague uma perspectiva semiológica que, a rigor, ela não tem, ao menos
no estudo em questão — Autour du Guerrier (1984).

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