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FORMAÇÃO POLÍTICA E INTENCIONALIDADE EDUCATIVA NO

TEATRO GREGO: SÓFOCLES COMO EDUCADOR NA GRÉCIA


CLASSICA

ROCHA, Alessandro Santos da – (GTSEAM/UEM)


SOUZA, Paulo Rogério – (FOCO/GTSEAM/UEM)

Introdução

As mudanças ocorridas no período de transição da Grécia Arcaica para a Grécia


Clássica contribuíram para formar novas concepções de mundo, de homem e de sociedade
entre os gregos. Naquele mundo, surgia um novo ideal de homem que, aos poucos extinguia o
modelo heróico, caracterizado pelos costumes da sociedade que até então eram vigentes.
Era um cenário de inovações, onde os homens se puseram a refletir sobre a sociedade
e a expressavam nas mais diversas formas de pensamento, seja na política, na filosofia ou na
literatura. As tragédias foi uma entre tantas formas artísticas que aquela sociedade concebeu e
que retratam algumas destas transformações.
Sendo fruto de um período de transição, o espetáculo trágico fez-se portador dos ideais
requeridos pelos novos homens. A importância da tragédia grega não assume apenas
contornos artísticos, para além, a história da educação nos dá prova de que a mesma foi
utilizada para inculcar nos seus espectadores as preocupações que afligiam os habitantes da
polis. Por meio do teatro, os dramaturgos gregos encontraram a possibilidade de falar aquilo
que afligia a sociedade da qual participavam e, nada mais os preocupavam do que a política
nascente na cidade-Estado de Atenas do século V a.C.
Nesse ambiente, encontramos a figura de Sófocles, um dos tragediográfos que inseriu
nas suas obras as características de um momento histórico que se firmava. Mas até onde
Sófocles tinha intencionalidade educativa, estritamente pedagógica? Ou a potencialidade
educativa era apenas complemento para chamar atenção dos seus espectadores ao processo de
transformação social que requeria um novo modo de pensar e agir decorrente da sociedade em
transição?

1
Na tentativa de responder as questões acima, esse trabalho versará sobre duas peças do
teatro sofocleano, a saber, Édipo Rei e Antígona. Já a escolha do gênero trágico, justifica-se
na sua vertente pedagógica e no seu reconhecimento enquanto um espetáculo voltado para
toda a sociedade helênica.
Desenvolvimento

O teatro visto como meio de refletir sobre os homens, tende a auxiliar na formação de
conceitos para a sociedade na qual se insere. Colabora, por assim dizer, com uma postura
educacional bastante exemplar. E não é de hoje que o teatro assume tal função, na
antiguidade, especialmente nas tragédias gregas, encontra-se um tipo de espetáculo que
responde aos ideais daquela sociedade que se refazia e erguia outros modelos, tanto políticos,
como culturais. Era um cenário peculiar, que traçava normas de conduta para os homens que
iriam assumir o domínio da democracia no século V a.C.
A Grécia do momento da tragédia estava se firmando como uma sociedade em que as
normas religiosas se dissociavam aos poucos das leis que o Estado passava a ditar. É
importante mencionar que mesmo com as concepções de mundo sendo alterado, o mito ainda
se fazia presente, no entanto, com menor vigor quando comparado com o período anterior.
Para Vernant & Vidal-Naquet:

[...] o momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, no coração da


experiência social, uma distância bastante grande para que, entre o
pensamento jurídico e social de um lado e as tradições míticas e heróicas de
outro, as oposições se delineiem claramente (VERNAT; VIDAL-NAQUET,
1977, 19).

O percurso histórico feito pela tragédia, também a mostra que em seu início era vista
como um espetáculo que envolvia dança, festejos e alegorias. Num primeiro momento, até
sendo relegada a uma festividade imprópria, pois estava ligado ao mito do deus Dionísio e era
compreendida como um espetáculo marginalizado e que não podia responder com a postura
da camada aristocrática que se firmava, sendo até mesmo incompatível com os ideais
necessários para ordenar uma sociedade.
As diferentes categorias que fundamentaram a tragédia, sobretudo seu caráter religioso
e festivo, fizeram com que o Estado a percebesse como meio de alcançar o público e servir de
instrumento para inculcar os novos ideais que estavam emergindo. Segundo Albyn Lesky,

2
houve o reconhecimento dos espetáculos trágicos, como uma forma artística que se
popularizou a ponto da cidade parar para assisti-los. Para o autor, foi o governo de Pisístrato
que compreendeu a potencialidade política da tragédia e foi “[...] obra sua o magnífico
aperfeiçoamento da festa dentro do culto do Estado” (LESKY, 1996, p. 76).
Ressalta-se que a tragédia grega acompanhou esse processo de transição de uma
sociedade gentílica para uma sociedade democrática, contudo, o que se sobressai é o ideário
de um novo homem que assumia o poder político da Grécia e orientava sua reflexão para as
novas necessidades que a sociedade lhe atribuía.

Na verdade, a tragédia não é outra coisa que a resposta do povo ateniense,


dada em verbo poético, às pressões históricas que fizeram desse povo o que
ele é: o defensor da democracia - por pequena que seja a sua base nessa
época - e da liberdade dos cidadãos (BONNARD, 1968, p. 8).

Na tragédia o povo grego tinha a possibilidade de refletir sobre os conflitos, sobre os


medos, sobre o que lhe era estranho, sobre o que devia exaltar e o que devia rejeitar. O teatro
trágico discutia os riscos que a discórdia entre os cidadãos causava para a cidade; discutia
também a base moral das ações humanas. Com todos estes atributos, o espetáculo dramático
de Atenas se integrava na vida da cidade e se constituía na forma de arte mais característica da
pólis.
Para alcançar os seus objetivos, a tragédia deveria obedecer a uma norma de
estruturação. Aristóteles, que apresenta na obra A poética um primeiro estudo do gênero
trágico, diz ser a tragédia uma imitação, onde a narrativa interpretada pelos atores trágicos
tendia a interferir nas emoções e revelar o efeito catártico1.

Uma delas é a que leva à catarse, à purificação. É, pois, a tragédia imitação


de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem
ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas
diversas partes do drama, imitação que se efetua não por narrativa, mas
mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a
purificação dessas emoções (ARISTÓTELES, 1994, p. 110).

Ainda que a interpretação de Aristóteles revele uma reflexão por meio da catarse, não
se pode deixar de considerar que a tragédia ia ao encontro das tensões dos homens gregos; e
1
Os estudos do trágico apontam para o efeito catártico onde o público do teatro se comovia com o
enredo das peças apresentadas. Essa comoção, denominada de Catarses, para alguns estudiosos
que tomam como referência a Poética de Aristóteles, tinha por objetivo “expurgar os sentimentos” que
eram repreendidos.

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os mesmos percebiam sua realidade representada num palco. A partir do que foi dito,
podemos perceber que o espetáculo trágico adentrou na mentalidade do povo grego,
alcançando uma significativa participação no contexto político da cidade-Estado, porém, para
o seu devido reconhecimento, eram necessárias algumas potencialidades que a distinguia
como exponencial de formadora de comportamentos. Assim, buscaremos traçar a figura do
novo cidadão grego, partindo de uma leitura de duas obras trágicas de autoria de Sófocles -
um dos tragediógrafos de grande renome do teatro grego - são elas: Édipo Rei e Antígona.

Sófocles: a formação do homem grego pela tragédia

Sófocles nasceu em Colono, em aproximadamente 497/6 a.C., e em sua trajetória pôde


vivenciar o apogeu de Atenas. A Atenas de Sófocles era vista como local de esplendor para os
gregos, palco do surgimento do regime político democrático, do enaltecimento das artes. Todo
esse crescimento foi seguido pelas divergências entre a antiga aristocracia gentílica e os
cidadãos da pólis, que posteriormente se tornariam a nova aristocracia, diferenciada por
homens que buscavam a participação no seio da política nascente, ao invés de serem guiados
pelos desígnios dos deuses.
Sófocles, sendo um homem desse período, presenciou estas transformações, de modo
que participava atuando a frente de cargos públicos, onde alcançou destaque como tesoureiro
dos fundos da Confederação Marítima (443 a.C.), e ainda como estrategos da Guerra de
Samos (441 a.C.), cargo do qual foi designado por seu contemporâneo, Péricles (495 a.C. a
429 a.C.). No entanto, foi na tragédia que encontrou maior prestígio.

O poeta participou ativamente da vida política de sua pátria; foi tesoureiro-


geral de Atenas em 443/2 e foi eleito no mínimo duas vezes estratego. Nessa
atividade ele ficou muito aquém, em termos de renome, de sua excelência
como poeta (KURY, 2001, p. 7).

A leitura das tragédias de Sófocles não pode deixar escapar a observação dos
resquícios da velha sociedade que ainda estavam presentes, porém, deve se voltar para as
reflexões que exibem o homem enquanto organizador de seus interesses e atitudes perante o
quadro que se ensaiava. O autor não era incrédulo das antigas tradições, mas estava carregado
do sentimento que brotava no solo grego. “Também Sófocles tem uma piedade
profundamente enraizada. Mas as suas obras não são em primeiro lugar a expressão dessa fé”
(JAEGER, 1994, p. 317).

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Todas estas peculiaridades responsabilizadas a Sófocles são visíveis quando o autor
expõe em sua obra o mito dos Labdácidas, sendo que três de suas produções referem-se a esse
génos. Estas tragédias compõem a Trilogia Tebana, que consiste no seqüenciamento de três
peças: Édipo Rei (ap. 430 a.C.), Édipo em Colono (401 a.C.) e Antígona (ap. 441 a.C.).
Na peça Édipo Rei, encontramos a figura de Édipo na posição de governante que vê
sua cidade ameaçada por uma praga que se abatia sobre os cidadãos de Tebas. Édipo,
cumprindo com seu papel de defender a cidade, busca desvendar os motivos de tamanha
mácula. O esclarecimento é dado por Tirésias, um sacerdote que faz revelações sobre um
crime que outrora havia sido cometido e que causara tamanha desgraça.
Na intenção de descobrir o assassino que seria o culpado pelas mazelas, Édipo se
depara com um crime que ele mesmo cometeu. Senão bastasse, descobre ainda que havia
matado seu pai, Laio, e casado com a própria mãe, Jocasta, que ao descobrir do infortúnio, se
dá conta do casamento incestuoso e enforca-se. Do incesto ainda foram gerados filhos que
também passariam a carregar a desdita do génos de Édipo.
Os filhos do casamento incestuoso são Etéocles, Polínices, Ismene e Antígona. Essa
última é a heroína da peça que leva o seu nome. A peça narra a luta de Antígona para fazer
valer os antigos costumes pertencentes à sociedade grega, do qual deveria prestar honras
fúnebres aos mortos. Assim, a personagem duela contra o edito real, homologado por seu tio
Creonte, que impossibilita de velar Polínices - irmão de Antígona e filho de Édipo que havia
sido considerado desertor de Tebas após guerrear com seu irmão Etéocles pelo trono tebano, o
que culminou com a morte de ambos.
Creonte foi quem assumiu o poder, e em uma atitude tirânica ordenou que o corpo de
Polínices fosse deixado para os pássaros, sem merecer um enterro digno. Em contra-ataque,
Antígona decidiu prestar honras ao cadáver do irmão, afrontando Creonte, que além de ser seu
tio e rei de Tebas, também era pai de seu noivo Hêmon.
Antígona ao transgredir o edito real foi sentenciada a morte. Todavia, o adivinho
Tirésias, ao ser convocado por Creonte, previu as desgraças decorrentes do edito real que não
favorecia aos interesses da maioria dos tebanos, pois ainda acreditavam nos costumes
tradicionais. Após relutar, Creonte volta atrás, mas já é tarde, uma vez que Antígona foi
exilada numa e se enforcou, deixando Hêmon em desespero.
Em ambas as peças, Sófocles narra temas que envolvem questões de ordem política.
Em Édipo Rei se encontra a figura de um governante em busca de elucidar um crime que

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assola sua cidade. Já em Antígona, temos a figura de um legislador com atitudes ousadas
diante dos costumes presente na sociedade em que governava.
Sófocles descreve Édipo como um homem portador dos ideais que estavam firmando
conceitos para a pólis, a exemplo do pensamento racional. O personagem é um exímio
questionador em busca de solucionar problemas que afetavam a todos na pólis. Conforme
pode ser encontrado na peça, Édipo era um astuto que decifrou o enigma da esfinge2 e lutaria
pra desvendar o crime ainda obscuro.

ÉDIPO
[...] Pois eu cheguei, sem nada conhecer, eu, Édipo,
e impus silêncio à Esfinge; veio a solução
de minha mente e não das aves agoureiras.
[...] Creio que a purificação dessa cidade
há de custar-vos caro, a ti e ao teu comparsa!
(SÓFOCLES, 2001,3 p. 37)

Esse distintivo que desvenda uma perspectiva racionalista nascente na Grécia, é


discutido pelo helenista Bernard Knox, como uma visão cientifica do mundo. O conceito de
visão científica tem referências num paralelo entre o caráter indagador de Édipo, que busca
respostas para os mistérios de sua vida, ao mesmo tempo em que tenta trazer a benesse para
sua cidade. Knox observa o personagem como portador desse ideário que legou a Grécia o
título de berço do pensamento racional.

A atitude e a atividade de Édipo são imagens do Espírito crítico e das


grandes realizações intelectuais de uma geração de sofistas, cientistas e
filósofos. Édipo investiga, examina, questiona, infere; usa a inteligência, a
mente, o pensamento; ele sabe, descobre, revela, esclarece, demonstra,
aprende e ensina; e seu relacionamento com seus semelhantes é o de um
libertador e salvador [...] (KNOX, 2002, p. 102).

Entendido desta maneira, a personagem era uma representação do homem político e


questionador. Era a reprodução cênica dos homens que viveram num período em que a Atenas
clássica os conclamava para fazer política. Não bastava governar, mas governar em prol da
pólis, no sentido mais estrito da palavra.

2
No mito de Édipo, a Esfinge é vista como uma criatura que traz malefícios para a cidade de Tebas,
onde os cidadãos não conseguiam decifrar seu enigma. Édipo foi o único que respondeu a questão
enigmática, que indagava: "Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde
tem três?". A resposta é o Homem (BRANDÃO, 1985, p. 39).
3
ÉDIPO REI, vv. 477-483

6
O vínculo político entre cidadão e pólis é revelado ainda por outro legislador de
Sófocles: Creonte. Contudo, este não carrega as mesmas características heróicas, se
comparado com Édipo. Creonte é um legislador que passa por cima das crenças vigentes na
sociedade para impor o peso da lei escrita. O personagem revela um perfil que se desvincula
da tradição mítico-religiosa, fazendo um contraponto com Antígona, que deseja fazer valer as
antigas tradições, evidenciando o embate entre as duas personagens.
Creonte é apresentado como o homem formulador de leis, representando os indivíduos
que buscavam ascensão por meio da política e visavam à participação na vida pública,
enquanto na heroína Antígona deposita-se a tentativa de recuperar o espaço perdido e fazer
prevalecer às leis dos deuses.

ANTÍGONA
Esse é o decreto imposto pelo bom Creonte
a mim e a ti (melhor dizendo: a mim somente);
vê-lo ás aparecer dentro de pouco tempo
a fim de alardear o edito claramente
a quem ainda o desconhece. Ele não dá
pouca importância ao caso: impõe aos transgressores
a pena de apedrejamento até a morte
perante o povo todo. Agora sabes disso
e muito breve irás tu mesma demonstrar
se és bem-nascida ou filha indigna de pais nobres 4
(SÓFOCLES, 2001, p. 202).

As atitudes do Estado, figurado por Creonte, correspondem ao poder individual, ou


caso se prefira, o poder tirânico; porém Sófocles chama a atenção para os malefícios que
podem ocasionar decisões irrefletidas, próprias de um governo tirânico.
Percebe-se ainda que o novo cenário causava espanto, ou mesmo, resistência por parte
dos homens, principalmente por aqueles que não eram beneficiados pela ordem imposta. A
postura adotada pela personagem Antígona exprime a grandeza do homem que luta por seus
interesses. Importante lembrar que Sófocles valoriza tais ideais, fazendo ver que as intenções
humanas movem os interesses de cada um.
Em comparação com a noção contemporânea de política, pode se dizer que Creonte
desvenda a perspicácia de um chefe de Estado, que busca moldar os componentes de sua
sociedade conforme com as necessidades de uma prática política que impõe leis, as quais nem

4
ANTÍGONA, vv. 35-44

7
sempre estão de acordo com o pensamento que reside na mentalidade dos que obedecerão a
lei.
Sófocles atribuiu a Creonte o papel do homem que reprimia a desordem, papel pelo
qual mandos e desmandos explicam a manutenção da ordem, sem a preocupação com as
crenças individuais.

O tirano mostra-se assim um verdadeiro ‘político’: fomenta nos cidadãos o


sentimento da grandeza e do valor da Pátria. Não era novo, certamente, o
interesse público por estas coisas; mas aumentou subitamente, de modo
assombroso, com o incitamento do poder e com o emprego de grandes
meios. O interesse do Estado pela cultura é sinal inequívoco do amor dos
tiranos pelo povo (JAEGER, 1994, p. 278).

Sófocles exemplifica essa situação no diálogo estabelecido entre Hêmon e Creonte,


quando o primeiro acusa o pai de não respeitar os interesses gerais de seus concidadãos. Na
fala do personagem Hêmon encontra-se a razoabilidade de escutar a todos dentro do regime
democrático. Ao debater com seu pai, o personagem mostra um discurso que consiste no
ouvir a opinião dos demais habitantes da pólis.
A postura adotada por Hêmon vai contra o perfil tirânico de seu pai. Creonte é visto
numa posição de governo que não pensa nos desejos da maioria, além disso coloca um peso
muito maior no edito que promulga do que nas velhas tradições que ainda imperavam entre os
cidadãos.

HÊMON
Os deuses, pai, implantaram no homem a razão
- o bem maior de todos. Se falaste certo
acerca dessas coisas, não posso dizer
(jamais em minha vida eu seja capaz disso!)
Mas outros também podem ter boas idéias.
É meu dever notar por ti, naturalmente,
tudo que os outros dizem, fazem ou censuram,
pois o teu cenho inspirador de medo impede
os homens simples de pronunciar palavras
que firam teus ouvidos. Eu, porém, na sombra,
ouço o murmúrio, escuto as queixas da cidade5
(SÓFOCLES, 2001, p. 230-231)

5
ANTÍGONA, vv. 776-784

8
Sófocles, ao defender os interesses dos indivíduos por meio da fala de Hêmon, mostra
o desprezo de Creonte pelas leis naturais, assim como alerta que por mais que se tivesse
alterado a forma de governo com a participação do cidadão na política, não se podia perder o
que havia sido consagrado pela tradição. A oposição entre os que impõem o domínio por meio
da força e aqueles a quem cabe se submeter, desvela ainda a autoridade política que também é
fruto da Grécia.
A força trágica desta peça sofocleana se manifesta na punição imposta por Creonte a
Antígona, uma vez que traz como conseqüência a morte de seu filho, Hêmon, e de sua esposa,
Eurídice. As profecias do adivinho Tirésias não foram suficientes para demovê-lo de
transgredir as leis divinas, uma vez que quando percebeu a sua ação, já era tarde. Novamente
o teatro se mostra como pedagogo ao alertar para posicionamentos impensados.
Assim, em Antígona, percebe que os valores arcaicos não se ajustavam aos homens da
Grécia Clássica. Dessa forma, estava em pauta tanto a desdita de Creonte, que vê sua família
entregue à morte trágica, devido às suas decisões que contrariavam os deuses, quanto a
infelicidade de Antígona, que justifica seu ato alegando obediência às normas eternas e
irrevogáveis. Antígona mostra que os mandos de Creonte estão em desacordo com a vontade
dos deuses e com os costumes seguidos pela maioria dos tebanos.

ANTÍGONA
Mas Zeus não foi o arauto delas para mim,
nem essas leis são as ditadas entre os homens
pela Justiça, companheira de morada
dos deuses infernais; e não me pareceu
que tuas determinações tivessem força
para impor aos mortais até a obrigação
de transgredir normas divinas, não escritas,
inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,
é desde os tempos mais remotos que elas vigem,
sem que ninguém possa dizer quando surgiram6
(SÓFOCLES, 2001, p. 219).

A personagem deixava ao público algumas reflexões próprias do momento de


transição, como por exemplo, o ideal de homem político para a democracia. Além da
contradição exposta nas figuras de Creonte e Antígona, Sófocles também imprimiu na peça,
aspectos relevantes sobre a questão da democracia, sobretudo na figura de Hêmom que instiga
o direito do cidadão em opinar nas decisões da cidade-Estado.

6
ANTÍGONA, vv. 511-520

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Sendo assim, governar no quadro de transformação vivenciadas na Grécia, era
sinônimo de raciocinar em prol da pólis. E tanto em Édipo quanto em Antígona, Sófocles
exprime tais conceitos, que serviam para a reflexão do regime que passava a dominar a
Grécia: o regime democrático.

Considerações finais

Diante das transformações ocorridas no período de transição da Grécia arcaica para a


clássica, a mentalidade grega passou por um processo de inovações até então desconhecidas,
sobretudo, no que tange a racionalidade. A partir do pensar a sua realidade e olhar para si, foi
possível ao homem grego conhecer as artes, a filosofia, o teatro. No ínterim dessas mudanças,
o homem grego podia ver que sua prática em sociedade requeria a participação nos ditames da
sociedade. Não cabia mais seguir apenas ao mito, ao desconhecido. Era seu papel tomar as
rédeas da sociedade e defender seus interesses pessoais, conseqüentemente, os interesses da
pólis.
Deixar de lado o perfil heróico, próprio da sociedade arcaica e heróica era dar uma
resposta às necessidades que se forjavam. A maneira que os gregos encontraram foi através de
formar o homem dentro das suas necessidades.

O homem, tomado historicamente, expressa uma época. Os conceitos, as


definições, as concepções substancialmente interessadas em entender a
materialidade das condições nas quais as idéias se gestam. O pensamento é
filho do tempo [...] (NAGEL, 2002, p. 35).

Para um povo que outrora estava repleto por deuses e rituais, talvez nada seria mais
eficaz do que unir o útil ao agradável, ou seja, a força formadora do teatro com o interesse que
aquele povo tinha nos ritos que envolviam a antiga religião mítica.
Sófocles entendeu bem esse universo ao ponto de encená-lo em cima do palco na
forma de tragédia. Afinal, existe maior tragédia do que recusar as crenças e tradições
arraigadas no seio da sociedade para adotar uma postura imposta pela sociedade?
Voltando o enfoque para Édipo, certamente se descobrir como assassino do próprio
pai foi algo que não agradou ao personagem, porém seu compromisso para com a sua
sociedade falou mais alto. Era necessário proteger a pólis e o bom governo, tão logo, se
evidencia um perfil em que ser político era a ordem do dia.

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Em Antígona também está presente este novo mundo racional e político. Creonte é um
legislador e supostamente lança editos contra seu sobrinho que julgava como um traidor da
cidade. Entretanto, sua atitude foi tirânica e o que os gregos mais colocavam como nobre era
o regime político democrático.
Sófocles, habilmente conduziu suas obras de maneira a mostrar as inquietudes que
afetavam aquela sociedade em transição. Tanto na peça Édipo Rei, quanto na peça Antígona,
fica evidente que o autor estava imbuído de toda a discussão política do momento.
Afirmar que a tragédia tinha por finalidade apenas instruir o publico para como
deveria ser o homem na Grécia clássica, pode ser um tanto quanto perigoso, uma vez que
incorreria no erro de retirá-la do plano artístico/cultural e relegá-la apenas a função educativa.
Entretanto não seria demasiado dizer que ao assistir uma obra de Sófocles, os espectadores
podiam sentir o que as atitudes humanas podem gerar para a vida em sociedade. Enfim, com o
objetivo de recusar a idéia de pensar a história da Grécia e da sua produção artística como
distante e perdida no tempo é que retomamos a tragédia ateniense como paradigma educativo,
que devidamente adaptada, pode contribuir com outras experiências formativas em qualquer
tempo e lugar.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A Poética. Trad. Eudoro de Souza. Brasília: Imprensa Nacional / Casa da


Moeda, 1994.

BONNARD, A. Civilização grega: de Antígona a Sócrates. Trad. José Saramago. Lisboa:


Estudios Cor, 1968. v. II.

BRANDÃO, J. S. Teatro Grego: tragédia e comédia. 6. ed. Petrópolis: vozes, 1985.

JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1994.

KNOX, B. Édipo em Tebas. Trad. Margarida Goldsztyn. São Paulo: Editora Perspectiva,
2002.

KURY, Mário Gama. Introdução. In: SÓFOCLES. SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo
Rei, Édipo em Colono e Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 2001. p. 7-16.

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LESKY, A. A tragédia grega. Trad. J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto
Guzik. São Paulo: Perspectiva, 1996.

NAGEL, L. Paganismo e cristianismo: concepção de homem e educação. In: OLIVEIRA, T.


(Org.). Luzes sobre a Idade Média. Maringá: EDUEM, 2002, p. 35-45.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Trad. Mario da
Gama Kury. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001.

VERNANT, J.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Duas
Cidades, 1977.

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