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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

JULIO CESAR MOREIRA

Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega


aos primeiros diálogos de Platão

São Paulo
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

JULIO CESAR MOREIRA

Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega


aos primeiros diálogos de Platão

Doutorado em Filosofia

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Marcelo Perine.

São Paulo
2019
Banca examinadora

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À Y. M.
In memoriam
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Número do Processo: 88887.162861/2018-00.
AGRADECIMENTOS

Fundamentalmente à minha família, em especial meus pais, por todo o suporte,


compreensão e amor. À Nina, obrigado pela generosidade, atenção e carinho. Em especial à
Beatriz Oliveira, cujas contribuições, apoio e revisões foram decisivos para a boa conclusão
deste trabalho.
À PUC-SP, instituição que possibilitou a concretização deste trabalho, e que me
proporcionou inestimáveis encontros e elos de amizade. A todos os funcionários do
departamento e do Programa de Pós-graduação, quem sempre me deram o suporte necessário,
aliviando-me ao máximo dos fardos burocráticos. À professora Rachel Gazolla, que me acolheu
sob sua orientação e acima de tudo depositou sua confiança e interesse nos meus esforços desde
o mestrado. Ao professor Marcelo Perine por ter aceitado orientar esta pesquisa, pela confiança
e diligente presteza.
À agência de fomento CAPES, pelo financiamento parcial da pesquisa que contou com
bolsa de doutorado-sanduíche no exterior pelo PDSE-Capes.
À Universidade de Iowa e a todos os seus funcionários do departamento de Classics que
amavelmente me recepcionaram para o desenvolvimento de nossas investigações, e à
supervisão do professor John Finamore, a quem dedico um agradecimento especial.
Não tenho como deixar de destacar o apoio de estimados amigos e familiares que atuam
e/ou me acompanham nessa árdua e infindável busca por saber e que ao longo desses anos de
doutorado contribuíram, nas mais variadas sinergias, de alguma forma especial. Meus
agradecimentos a Rafael Moreira, Dom Anselmo (a.k.a. Rogério), Claudiano Avelino dos
Santos, Bruno Conte, André Braga, Giovanni Vella, Luciene Felix, Carolina Paraíso, Daniela
Nascimento, Leonardo Rapussi, José Maria Nieva, Ed Keogh, Jonathan Young.
Tenho em meu coração tantas outras pessoas, eventos e fatores que gostaria de destacar,
porém agradecer a tudo e a todos que foram imprescindíveis para a elaboração deste trabalho é
uma tarefa impossível. Misteriosas são as Moiras para nós que em nossa parcialidade somos
incapazes de apreender e pontuar tudo aquilo que determina nossas trajetórias. Sinto-me,
portanto, apenas um instrumento entre tudo o que fez este trabalho possível. Reverencio, enfim,
a toda a Tradição que desde os tempos antigos perpetua esta corrente de saber, e humildemente
peço licença para oferecer minha mínima contribuição.
...κάλλιστα γὰρ δὴ τοῦτο καὶ λέγεται καὶ
λελέξεται, ὅτι τὸ μὲν ὠφέλιμον καλόν, τὸ
δὲ βλαβερὸν αἰσχρόν.

“...pois que o benéfico é belo, enquanto o


prejudicial é feio, é e sempre será o mais
nobre a se dizer.”
Platão, República, 457b
RESUMO

MOREIRA, Julio Cesar. Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega aos primeiros diálogos de
Platão. 2019. 170p. Tese de Doutorado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2019.

Esta investigação tem como objetivo determinar qual o conteúdo semântico-histórico


que Platão herda ao se apropriar dos vocábulos εἶδος e ἰδέα e como ele inicialmente utiliza essa
herança na elaboração da sua filosofia. Estes termos continuam sendo objetos de estudo
polêmicos entre os mais conceituados estudiosos do pensamento de Platão, em especial no que
concerne à filosofia das Formas. Nesse sentido, em relação aos seus diálogos de juventude,
destacam-se as disputas a respeito de um desenvolvimentismo ou unitarismo da filosofia das
Formas e se o uso filosófico desses termos nesses diálogos foi ou não uma inovação
propriamente platônica. Para além do uso filosófico, Platão não deixa de empregar as várias
facetas semânticas já contidas em ambas as palavras, que tampouco estão livres de contestação.
Em contribuição ao esclarecimento dessas e outras questões relacionadas, propomos um estudo
dos termos εἶδος e ἰδέα desde suas origens na literatura grega aos primeiros diálogos platônicos,
ditos de juventude. Desenvolvemos, num primeiro momento, um estudo crítico, de caráter geral
filológico, em perspectiva diacrônica, da semântica de ambas as palavras desde as suas origens
na literatura grega aos fragmentos dos filósofos pré-socráticos, traçando os desenvolvimentos
semânticos que serão herdados por Platão. Chegando a Sócrates, deparamo-nos com a questão
de como abordar sua filosofia e figura histórica. Por último, analisamos esse vocabulário das
formas nos diálogos de juventude de Platão, onde a análise filosófica do conteúdo desfruta da
prerrogativa metodológica, e a importância concedida à dimensão filológica está subordinada à
filosófica. Argumentamos que Sócrates nunca usou εἶδος e ἰδέα em relação a sua pergunta “τί
ἐστι X?”, e a inclusão deste vocabulário das formas a esta indagação seria, então, uma inovação
própria de Platão. Distinguimos, ainda, todas as significações de uso corrente dos vocábulos,
discernindo em que medida há nos primeiros escritos de Platão uma continuidade ou distinção
em relação aos diversos âmbitos literários anteriores. No que tange à filosofia das Formas,
nossos resultados vão ao encontro da interpretação unitarista.

Palavras-chave: Eidos. Idea. Chorismos. Formas. Pré-socráticos. Sócrates. Platão. Metafísica.


ABSTRACT

MOREIRA, Julio Cesar. Εἶδος and ἰδέα: from origins in Greek literature to the first dialogues
of Plato. 2019. 170p. Ph.D. Thesis – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2019.

The aim of this investigation is to determine the historical semantic content that Plato
inherits from the words εἶδος and ἰδέα and the ways he initially employs this heritage in the
development of his philosophy. These terms are still a matter of dispute among the most
reputable scholars on Plato’s thought, especially in respect to the philosophy of Forms. In this
sense, regarding Plato’s early dialogues, currently the main debate among scholars is between
a developmentalist or unitarian approach to the philosophy of Forms. Another debate, among
many issues, is whether the philosophical use of these words in the early dialogues are indeed
a Platonic novelty. In addition to the philosophical use, Plato does not cease to employ many
of the semantic aspects already inherent in both words, which are also not free of disputes about
them. Seeking to shed more light on the previously mentioned and other related issues, we
propose a study of the words εἶδος and ἰδέα from their origins in Greek literature to the Plato’s
so-called early dialogues. First, we develop a diachronic study of the general philological and
semantic aspects of εἶδος and ἰδέα from their first appearances in Greek literature to the
fragments of the Presocratic philosophers, outlining the semantic development of the words as
Plato would later inherit them. Then, we address Socrates and the issue of how to properly
approach his philosophy and historical figure. Finally, we analyze this vocabulary of forms in
Plato's early dialogues, giving the philosophical analysis methodological priority over
philological analysis. We argue that Socrates never used εἶδος and ἰδέα in relation to his
question “τί ἐστι X?” and that the inclusion of this vocabulary in this Socratic inquiry would
thus be an addition by Plato. Furthermore, we distinguish, in the early works of Plato, all the
commonly used meanings of the words while verifying to what extent Plato is consistent or
different in the way he employs them when compared to the usage of the words in previous
literary fields. Regarding the philosophy of Forms, our results are in line with the unitarian
theory.

Keywords: Eidos. Idea. Chorismos. Forms. Presocratics. Socrates. Plato. Metaphysics.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Diels-Kranz DIELS, H.; KRANZ, W. (Eds.). Die Fragmente der Vorsokratiker. 6 aufl.
Dublin, Zurich: Weidmannsche Buchhandlung, 1951-1952.

LSJ LIDDELL, H. G. et al. A Greek-English lexicon. Rev. and augm. throughout


ed. Oxford: New York: Clarendon Press; Oxford University Press, 1996.

Vidas DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução


do grego, introdução e notas de Mário da Gama Cury. Brasília: Universidade
de Brasília, 1988.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 21

1 DAS ORIGENS DE ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ 25

1.1 A Dramaturgia Grega 32

1.2 O Corpus Hippocraticum 36

1.3 Os Filósofos Pré-socráticos 39

2 SÓCRATES E A FILOSOFIA DAS FORMAS 55

2.1 O Sócrates de Aristófanes 58

2.2 O Sócrates de Xenofonte 60

2.3 O Sócrates de Platão 62

2.3.1 Vlastos e a questão das Formas nos diálogos de juventude e maturidade 66

2.3.2 A ordenação cronológica e alguns impasses da abordagem desenvolvimentista 68

2.3.2.1 A crítica de Charles H. Kahn 75

2.4 O Relato de Aristóteles sobre Sócrates e a Filosofia das Formas 79

2.5 A Controvérsia sobre o Relato de Aristóteles e a Separação das Formas Platônicas 83

2.5.1 Gail Fine e o testemunho de Aristóteles 88

2.5.2 Aitia como “explanatory fator” 94

2.6 Aristóteles e a Anterioridade Ontológica das Formas Platônicas 97

2.6.1 Que a anterioridade ontológica das Formas se dá pela causalidade 99

3 ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ NOS DIÁLOGOS DE JUVENTUDE DE PLATÃO 101

3.1 As Ocorrências e suas Classificações Semânticas 102

3.2 Apontamentos Preliminares 107

3.2.1 Houve uma busca de Sócrates pelas formas? 109

3.2.2 A questão do estatuto das formas “paradigmáticas” nos diálogos de juventude 110
4 A FILOSOFIA DAS FORMAS NOS PRIMEIROS DIÁLOGOS DE PLATÃO 113

4.1 Hípias Maior 113

4.1.1 O debate sobre a autenticidade do diálogo 113

4.1.2 O εἶδος de 289d 116

4.1.2.1 A primeira resposta de Hípias: uma bela donzela casta 116

4.1.2.2 A segunda resposta de Hípias: o ouro 119

4.1.2.2.1 Fédon, 100d 120

4.1.2.3 O estatuto da causalidade do Belo em si 121

4.1.2.4 A ontologia do Belo em si 122

4.1.3 A explicação de Hípias da continuidade da οὐσία 125

4.2 Mênon 131

4.2.1 A definição de οὐσία 131

4.2.2 O εἶδος da Virtude em si por si 133

4.2.3 A anterioridade ontológica da οὐσία 136

4.3 Eutífron 139

4.3.1 O εἶδος e a ἰδέα da Piedade em si por si 140

4.3.2 A οὐσία separada 143

CONCLUSÃO 147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 157


21

INTRODUÇÃO

É nos escritos de Platão que se encontram os primeiros registros do uso filosófico dos
termos εἶδος e ἰδέα, no que ficou conhecido como a sua teoria das Ideias/Formas. Desde essa
primeira aplicação surgem, como bem se sabe, críticas e controvérsias como a de seu colega
socrático Antístenes, ou de seus discípulos, sendo, sem dúvida, a crítica mais influente e seminal
a esse respeito a de Aristóteles 1. As Formas platônicas e as palavras associadas a elas nunca
deixaram de ser um tema polêmico dentre os mais conceituados platonistas, platônicos e
estudiosos afins. Do mesmo modo, há uma severa controvérsia a respeito desse momento em
que os termos são introduzidos numa investigação filosófica. Entre os debates atuais, duvida-
se, até mesmo, do uso filosófico desses termos enquanto uma inovação propriamente platônica 2.
Destaca-se, ainda, como uma das mais contundentes disputas atuais a questão entre a corrente
interpretativa unitarista, sustentando, em linhas gerais, que todos os escritos de Platão contêm
a mesma filosofia das Formas, e a desenvolvimentista, que enfatiza haver grandes diferenças
entre os diálogos de juventude e as obras de maturidade. Para além desse uso, Platão não deixa,
também, de utilizar várias facetas semânticas já contidas em ambas as palavras, que são também
valiosas para a interpretação dos seus textos. Apesar da menor importância dada a essas outras
significações, tampouco estão livres de contestação, como mostram estudos recentes e
traduções imprecisas ou mal interpretadas dos usos correntes destas palavras, mesmo nas
traduções mais consagradas, em toda a literatura anterior a Platão.
Determinar qual o conteúdo semântico-histórico que Platão herda ao se apropriar dos
vocábulos εἶδος e ἰδέα por meio de um estudo diacrônico destes termos desde suas origens na
literatura grega aos primeiros diálogos platônicos, ditos de juventude, é a nossa proposta para
melhor compreender como ele inicialmente utiliza essa herança na elaboração da sua filosofia
e contribuir para o esclarecimento dessas e outras questões relacionadas.
Desse modo, dedicamos o primeiro capítulo a um estudo crítico, em perspectiva
diacrônica, da semântica dos termos εἶδος e ἰδέα desde as suas origens na literatura grega aos
fragmentos dos filósofos pré-socráticos. Para isso, é feito o levantamento das ocorrências desses
termos nos escritos dos diversos autores da Grécia antiga desse período, os quais são agrupados
em seus devidos âmbitos literários. Partindo, primeiramente, de estudos bem estabelecidos na
área, analisa-se mais cuidadosamente alguns pontos críticos que surgem ao longo dessa

1
A respeito dessas críticas e controvérsias, vide cap. 2.
2
Como se vê no cap. 2, é por influência das teses de Gregory Vlastos que se tem como a maior disputa atual a
hipótese de que essa inovação tenha sido de Sócrates.
22

trajetória. A metodologia adotada confere a este estudo um caráter filológico que por sua vez
serve como padrão para traçar os desenvolvimentos semânticos que serão herdados por Platão
ao adotar esses vocábulos para a sua filosofia.
Na sequência do traçado cronológico, no capítulo 2, chegamos a Sócrates, e com isso
nos defrontamos imediatamente com a questão de como abordar sua filosofia e figura histórica.
Nesse capítulo, juntar-nos-emos brevemente nessa empreitada, em que, entre a gama de tópicos
nos estudos socráticos 3, focamos naquele que é mais pertinente para esta pesquisa, a chamada
“questão socrática”, a qual consiste no debate sobre a possibilidade de reconstruir o pensamento
do Sócrates “histórico”.
Sem dúvida, um dos trabalhos contemporâneos mais importantes no tema dos estudos
socráticos é o de Gregory Vlastos, chamado Socrates: Ironist and Moral Philosopher (1991),
que fez despontar um renascimento no interesse à filosofia socrática por conter teses
provocativas e notáveis no sentido de desvendar o Sócrates “histórico”. Muitos outros
acadêmicos se inspiraram em Vlastos e no começo da década de 1990 surgiu uma nova onda
de estudos sobre a vida e pensamento do filósofo. Porém, essa busca se desvaneceu alguns anos
depois num certo consenso de que não era possível avançar sem mais evidências, com alguns
estudiosos opinando, inclusive, que a “questão socrática” era uma fantasia, pois suas principais
fontes – Xenofonte e Platão – escreviam sobre Sócrates com bastante liberdade e criatividade.
Os textos que tratam de Sócrates, os sokratikoi logoi – assunto em que nos deteremos com mais
cuidado –, apesar de serem um testemunho valioso não podem ser considerados como um relato
da voz genuína do Sócrates histórico. Frente a isso, sugere-se que a importância dos estudos
socráticos não é tanto desvendar o Sócrates histórico, mas a reconstrução do legado que inspirou
diversas tradições filosóficas posteriores. Sendo assim, nossa investigação se volta à questão
do uso filosófico do vocabulário das formas, o qual é encontrado somente nos escritos de Platão,
como já dito. Focamos, então, nossa análise, mais detalhadamente, nos relatos de Aristóteles,
encontrados principalmente na sua obra Metafísica, uma vez que são um dos únicos
testemunhos em que normalmente se deposita confiança para discernir, nos sokratikoi logoi, o
conteúdo que é propriamente socrático. São, portanto, evidências determinantes utilizadas para
se estabelecer em quais diálogos de Platão se encontram os mais significativos registros da
filosofia socrática.

3
Incluem, entre outros, o método socrático, a sinceridade (ou ironia) com que Sócrates professa sua ignorância, a
(im)possibilidade de akrasia, a necessidade do conhecimento para a boa vida, e a importância da virtude para a
felicidade.
23

O capítulo 3 inicia da delimitação resultante do estudo realizado no capítulo anterior,


definindo os diálogos considerados da juventude de Platão, também chamados socráticos, nos
quais ele ainda não teria desenvolvido sua filosofia das Formas e seu conteúdo estaria, ainda,
muito próximo do pensamento de seu mestre. O passo seguinte de nossa pesquisa é a análise
desse vocabulário das formas justamente nesses diálogos de juventude, sem contudo a pretensão
de encontrar algo definitivo em relação ao uso desse vocabulário por parte de Sócrates,
considerando que estamos lidando com obras escritas por Platão. Essa análise é feita com base
no importante e exaustivo estudo de εἶδος e ἰδέα nos diálogos de Platão realizado pelo Centre
d'études aristotéliciennes de l’Université de Liège (MOTTE et al., 2003), do qual debatemos
todas as ocorrências desses termos nos diálogos em questão, organizando-as segundo os nossos
resultados de classificação semântica. Destaca-se, a partir disso, uma novidade considerada
distintamente platônica, nomeada preliminarmente como “forma paradigmática”, mas que,
supostamente, ainda não se configura no uso dos termos em um sentido de Formas “separadas”
das instâncias particulares. É aqui que concentramos nossos esforços, no total de 8 ocorrências
encontradas nos diálogos Hípias Maior, Mênon e Eutífron, os quais são os objetos de estudo do
capítulo 4.
Nesse último capítulo, a análise filosófica do conteúdo desfruta da prerrogativa
metodológica, e a importância concedida à dimensão filológica está subordinada à filosófica.
No que tange à filosofia das Formas, nossos resultados contribuem com a corrente unitarista no
sentido de que as Formas, já nos primeiros diálogos de Platão, enquanto uma inovação própria
de Platão à questão socrática “τί ἐστι X?”, referem-se a uma essência ontologicamente outra,
anterior e de existência independente das suas instâncias particulares, das quais é causa
produtora. Desse modo, a prévia denominação “forma paradigmática” é descartada, afirmando-
se que essas ocorrências devam ser denominadas, propriamente, de Formas com sentido
“ontológico”.
Note-se que todas as traduções de textos em outros idiomas são de nossa autoria, exceto
quando afirmado contrário. Há indicação das nossas próprias traduções somente quando feitas
diretamente dos textos de autores das fontes primárias de língua grega. Diferenciamos, ainda,
“Formas”, com “F” maiúsculo, como sendo este último sentido “ontológico” dos vocábulos
εἶδος e ἰδέα, em distinção às “formas”, com “f” minúsculo, que diz respeito a todos os outros
sentidos.
25

1 DAS ORIGENS DE ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ

Inicia-se esta pesquisa em busca das origens das primeiras ocorrências das palavras
εἶδος e ἰδέα na literatura grega, na intenção de erguer, a partir deste alicerce propriamente
fundacional, as estruturas de um cenário histórico-filosófico compreensivo dos usos e
significações de ambas estas palavras até os primeiros filósofos, ditos pré-socráticos. No
entanto, antes de iniciar de fato a análise das ocorrências destas palavras, um breve apontamento
sobre o que as suas etimologias informam se faz necessário.
Os estudos etimológicos e a gramática comparativa das palavras εἶδος e ἰδέα já
prefiguram uma determinada epistemologia. Ensinam uma raiz comum indo-europeia, que faz
com que estas palavras, na sua origem, evoquem conjuntamente as noções de ver e saber 4. O
vocábulo parte da raiz *wid- /*weid-, de onde se desdobra, ao mesmo tempo, o grego *Ϝἰδεῖν
(ver), e o latim vidēre (ver); e, ainda, as palavras gregas *Ϝειδέναι (saber) e *Ϝοἶδα (eu sei). O
sânscrito confirma e complementa esta cadeia: veda significa conhecimento; vidvam designa o
vidente e/ou douto (“quem vê e quem sabe”).
O primeiro registro que temos da palavra εἶδος está em Homero 5, e sempre com o
significado “aparência exterior”, em especial a “bela aparência exterior” 6. E o mesmo ocorre
em Hesíodo 7, que emprega a palavra com esses mesmos significados 8. Bernabé explica 9, mais
precisamente, que neste período o significado de “aparência exterior”, ou “aspecto exterior”,
como ele nomeia, ocorre quando a palavra é aplicada a seres vivos, mais frequentemente à
figura humana, e em muitos destes casos o termo é utilizado como acusativo de relação
acompanhando adjetivos qualificativos. Já para significar a “bela aparência exterior” a palavra
necessariamente acompanha um adjetivo qualificativo. Explica ainda que, nas palavras
compostas por εἶδος, i.e., adjetivos formados pelo sufixo -ειδής, persiste o sentido de ser algo
relacionado a “aparência exterior”.
Ἰδέα, por sua vez, não é jamais empregada nem por Homero nem por Hesíodo. Os dois
mais antigos usos conhecidos remontam aos meados do séc. VI a.C. O primeiro com o poeta

4
Todos os mais conhecidos dicionários especializados corroboram com essa mesma hipótese. Vide: SIHLER,
1995, p. 178; MANN, 1984, fasc. 10, s.v. weid- (uid-); BOISACQ, 1916, s.v. εἶδος, p. 220; s.v. ἰδέα p. 365;
CHANTRAINE, 2009, s.v. εἶδος, p. 316-317; s.v. ἰδέα, p. 455; ERNOUTT; MEILLET, 2001, s.v. uideō, p. 733.
5
São dezenove as ocorrências na Ilíada, sendo a primeira em II, 58 (cf. PRENDERGAST, 1875, p. 127.), e vinte
e três ocorrências na Odisséia (cf. DUNBAR, 1883, p. 106).
6
Vide AUTENRIETH, 1958, p. 86; CUNLIFFE, 2012, p. 107.
7
Com vinte ocorrências da palavra em todo o seu corpus sobrevivente, sendo três ocorrências na “Teogonia”, duas
em “As Obras e os Dias”, e quinze em fragmentos (cf. MINTON, 1976, p. 87).
8
Cf. HOFINGER, 1976, p. 179.
9
BERNABÉ, 2013, p. 92-93.
26

lírico Teógnis de Megara (ca. séc. VI a.C.), em suas Elegias, 128: ao falar sobre a falsidade dos
homens e mulheres explica que não se deve confiar em suas aparências, pois, segundo ele,
“muitas vezes as aparências (ἰδέαι) enganam o julgamento (πολλάκι γὰρ γνώμην ἐξαπατῶσ᾿
ἰδέαι)” 10. Essa mesma máxima de cautela com as pessoas é comumente enfatizada ainda nos
dias de hoje: “as aparências enganam”; e se entende, assim como quis Teógnis, que a aparência
abrange diversas instâncias do que é perceptível da pessoa, tanto a sua forma física quanto seu
comportamento. Na sua segunda ocorrência mais antiga a palavra se apresenta também no
plural, e está no famoso fragmento de Xenófanes (ca. 570 a.C. – 475 a.C.), citado por Clemente
de Alexandria, onde aplica a estratégia do reductio ad absurdum para falar do aspecto que
teriam os deuses dos animais caso as vacas, cavalos e leões tivessem a possibilidades de os
imaginar e os desenhar:

ἀλλ’ εἰ χεῖρας ἔχον βόες <ἵπποι τ’> ἠὲ λέοντες, ἢ γράψαι χείρεσσι καὶ ἔργα
τελεῖν ἅπερ ἄνδρες, ἵπποι μέν θ’ ἵπποισι, βόες δέ τε βουσὶν ὁμοίας καί <κε>
θεῶν ἰδέας ἔγραφον καὶ σώματ’ ἐποίουν τοιαῦθ’ οἷόν περ καὐτοὶ δέμας εἶχον
ἕκαστοι.
Mas se bois, <cavalos> ou leões tivessem mãos e pudessem desenhar com
suas mãos e criar obras como os homens, então os cavalos desenhariam as
formas (ἰδέας) dos deuses como cavalos, e os bois como bois, fariam os
mesmos corpos tais quais eles próprios possuem. 11 (fr. B15 12)

A interpretação mais aceita dessa passagem é a exposta por Werner Jaeger 13, que afirma
que Xenófanes, nessa passagem, teve o intuito de persuadir seus contemporâneos a renunciar
ao velho mundo de deuses antropomórficos criados por Homero. Contudo, é importante notar
o apontamento feito por Bernabé (2011), que essa aplicação da palavra ἰδέα, apesar de ter
relação direta com a aparência que se percebe visualmente, refere-se a uma aparência
impossível de se constatar pelos sentidos, porém imaginável, a do aspecto dos deuses.
Em Píndaro (c. 522 – c. 443 a.C.), nas Olímpicas, X.103, é onde se tem o primeiro uso
reconhecidamente datado da palavra ἰδέα, e que se encontra a palavra sendo usada no sentido
de designar a bela aparência física, do mesmo modo que εἶδος. Píndaro diz de Hagesidamos,

10
Da tradução para o inglês de GERBER, 1999, p. 190-191.
11
Da tradução para o inglês de LAKS et al., 2016, p. 30-31.
12
Em toda a pesquisa utilizamos as referências de Diels-Kranz para os fragmentos dos pré-socráticos.
13
Vide JAEGER, 1995, p. 213-214; Ibid., 1947, p. 47.
27

em razão da sua vitória no campeonato de pugilismo em 476 a.C., que ele é “ἰδέᾳ τε καλὸν”, o
que pode ser interpretado como: “belo pelo que se vê dele”.
É pouco depois da metade do século V, com Heródoto (c. 484 – c. 425 a.C.), que a
palavra ἰδέα faz a sua entrada na prosa grega, e aqui se faz necessária uma atenção mais
minuciosa às ocorrências de ambas as palavras εἶδος e ἰδέα, dado que, segundo o estudo de
Henry Dominique Saffrey (1990), é com aquele autor que um novo significado se estabelece
para ἰδέα, sem a perda, no entanto, do seu sentido anterior. Há, porém, de se avaliar com mais
detalhes se de fato esta mudança ocorre e como ela se dá, uma vez que o estudo de Saffrey
aponta as passagens em que se encontra essa novidade, porém não demonstra a validade de sua
afirmação.
O uso de εἶδος em Heródoto é dominante, são 25 empregos de εἶδος e 8 de ἰδέα 14, e
εἶδος parece ainda manter seu sentido original de aspecto ou aparência, porém, nota-se que o
seu uso não se restringe mais apenas aos seres vivos, mas agora já inclui os deuses 15, e até
mesmo seres inanimados. É desse modo, então, que Heródoto fala, em 2.53, das εἴδεα dos
deuses, e de como Hesíodo e Homero “foram os que fizeram uma teogonia para os gregos,
deram aos deuses seus epítetos, dotaram-lhe seus ímpetos e competências, e determinaram suas
aparências (εἴδεα)” 16. Ou, em 8.113, diz das εἴδεα humanas, relatando que Mardomio, ao chegar
em Tessália, recrutou dentre alguns povos aliados aos persas somente aqueles guerreiros que
ele via como melhor aparentados (ἐκ δὲ τῶν ἄλλων συμμάχων ἐξελέγετο κατ’ ὀλίγους, τοῖσι
εἴδεά τε ὑπῆρχε διαλέγων). Diz também das εἴδεα dos animais: tanto em 2.69, ao escrever a
respeito dos grandes lagartos do deserto egípcio, onde afirma que os Jônios os chamam de
crocodilos devido à semelhança em aparência aos crocodilos que existem no seu próprio país
(κροκόδειλους δὲ Ἴωνες ὠνόμασιν, εἰκάζοντες αὐτῶν τὰ εἴδεα τοῖσι παρὰ σφίσι γιγνομένοισι
κροκοδείλοισι.); como em 3.107, descrevendo as serpentes aladas que habitam a Arábia como
sendo pequenas em tamanho e de aparência multicolor (σμικροὶ τὰ μεγάθεα, ποικίλοι τὰ εἴδεα).
E também em 3.102, comparando uma raça de formigas gigantes da Índia como sendo similar
às formigas da Grécia no que diz respeito a aparência (εἰσὶ δὲ καὶ τὸ εἶδος ὁμοιότατοι). Usa
ainda εἶδος para falar da aparência de uma coisa inanimada, como o sal. Em 4.185, discorrendo
a respeito da produção de sal no oeste da Líbia, afirma que o sal extraído lá é tanto branco como
também púrpura em aparência (ὁ δὲ ἃλς αὐτόθι καὶ λευκὸς καὶ πορφυρέος τὸ εἶδος ὀρύσσεται.).

14
Cf. POWELL, 1938, s.v. εἶδος, p. 100; s.v. ἰδέα, p. 170.
15
Ao modo como Xenófanes utilizou ἰδέα (B15).
16
[Ἡσίοδος γὰρ καὶ Ὅμηρός] εἰσι οἱ ποιήσαντες θεογονίην Ἕλλησι καὶ τοῖσι θεοῖσι τὰς ἐπωνυμίας δόντες καὶ
τιμάς τε καὶ τέχνας διέλοντες καὶ εἴδεα αὐτῶν σημήναντες. Tradução nossa.
28

Vê-se que em todos esses casos εἶδος ainda se refere à aparência exterior de algo, mas ao falar
do εἶδος de um ser inanimado, e das εἴδεα dos deuses, ao modo como Xenófanes se referiu às
θεῶν ἰδέας, Heródoto apresenta um uso mais abrangente da palavra em relação aos seus
antecessores.
Ἰδέα, por sua vez, é também, primeiramente, utilizada no seu sentido concreto de
aspecto/aparência de maneira um tanto indistinta de εἶδος. É desse modo, portanto, que
Heródoto, em 1.80, afirma que o cavalo teme o camelo e não suporta nem seu
aspecto/aparência, nem seu cheiro (κάμηλον ἵππος φοβέεται καὶ οὐκ ἀνέχεται οὔτε τὴν ἰδέην
αὐτῆς ὁρέων οὔτε τὴν ὀδμὴν ὀσφραινόμενος.); ou então, em 2.71, propõe-se a descrever o
aspecto/aparência natural dos hipopótamos 17 (φύσιν δὲ παρέχονται ἰδέης); ou descreve, em
2.92, o fruto de um tipo de lírio como tendo um aspecto que se aparenta ao de um vespeiro (ἔστι
δὲ καὶ ἄλλα κρίνεα ῥόδοισι ἐμφερέα, ἐν τῷ ποταμῷ γινόμενα καὶ ταῦτα, ἐξ ὧν ὁ καρπὸς ἐν
ἄλλῃ κάλυκι παραφυομένῃ ἐκ τῆς ῥίζης γίνεται, κηρίῳ σφηκῶν ἰδέην ὁμοιότατον·); ou afirma,
em 4.109, que duas tribos, os Gélons e Boudins, são bastante diferentes tanto em aparência
como na cor (οὐδὲν τὴν ἰδέην ὅμοιοι οὐδὲ τὸ χρῶμα).
Parece ser, entretanto, nos escritos de Heródoto que se vê uma ampliação da carga
semântica da palavra ἰδέα. Segundo Saffrey, essa nova carga semântica denota “um sentido
abstrato” que deriva do primeiro, um “sentido classificatório” de “modo ou tipo”, “quando um
mesmo aspecto é encontrado em muitos indivíduos, eles formam uma classe” (SAFFREY,
1990, p. 3). É dessa maneira que, em 1.203, Heródoto fala que na floresta do Cáucaso há árvores
que fornecem folhas de um “tipo” tal que, ao serem esmagadas e adicionadas à água, fabrica-
se uma tinta: “ἐν τοῖσι καὶ δένδρεα φύλλα τοιῆσδε ἰδέης παρεχόμενα εἶναι λέγεται παρεχόμενα
εἶναι λέγεται, τὰ τρίβοντάς τε καὶ παραμίσγοντας ὕδωρ ζῷα ἑωυτοῖσι ἐς τὴν ἐσθῆτα ἐγγράφειν”.
Vejamos a seguir três traduções 18 muito bem estabelecidas de coleções influentes para essa
passagem, e como elas lidam com a palavra ἰδέα, começando pela tradução de A. D. Godley na
Loeb Classical Library: “Here, it is said, are trees growing leaves that men crush and mix with
water and use for the painting of figures on their clothing” (td. GODLEY, 1920, p. 257). Note
como a palavra em questão simplesmente é ignorada. Já, na tradução espanhola de Carlos
Schrader pela Gredos: “Tambien se dice que entre estos pueblos se dan unos arboles que
producen hojas de la siguiente índole: al triturarlas y mezclarlas con agua, pueden pintar con

17
Na primeira descrição deste animal registrada na história.
18
Nos exemplos apresentados, bem como nos próximos, ateremo-nos a uma variedade limitada de traduções de
grande renome, influência e acessibilidade ao público acadêmico de vários continentes, e, portanto,
suficientemente representativas do que mais comumente o leitor ou estudioso se deparará.
29

ellas figuras en sus vestidos” (td. SCHRADER, 1977, p. 260). “Índole” é a escolha do tradutor,
e certamente denota o sentido classificatório de “tipo” em espanhol. E por fim, a tradução de
Philippe-Ernest Legrand, pela Belles Lettres, onde o sentido classificatório de “tipo” já está
explicitamente assumido: “Il y a aussi chez eux, dit-on, des arbres fournissant des feuilles de
telle sorte, qu’écrasées et additionnées d’eau elles leur permettent de peindre sur leurs
vêtements des figures” (td. LEGRAND, 1946, p. 195).
Numa análise mais minuciosa dessa questão, não há dúvidas que o significado de ἰδέα
não é mais somente o de aparência, uma vez que τοιῆσδε (“tal” / “tal como” 19), o pronome
demonstrativo que indica (e denota identidade) a ἰδέα das folhas, faz referência não à aparência
delas, e sim à propriedade e função que elas possuem em comum. Ἰδέα tem, portanto, nesse
caso, uma função classificatória, pois não mais denota a aparência de algo, mas sim a
característica/propriedade comum que permite agrupar vários particulares que possuem esse
mesmo “tipo” de característica/propriedade 20.
A próxima passagem na qual Saffrey afirma encontrar ἰδέα denotando esse mesmo
sentido classificatório é 6.119. Ali, Heródoto relata um certo poço que proporciona três ἰδέαι
distintas: asfalto, sal e óleo (ἀπὸ τοῦ φρέατος τὸ παρέχεται τριφασίας ἰδέας· καὶ γὰρ ἄσφαλτον
καὶ ἅλας καὶ ἔλαιον ἀρύσσονται ἐξ αὐτοῦ τρόπῳ τοιῷδε·). Essa ocorrência de ἰδέα é, todavia,
um tanto complicada de se avaliar. Não há um genitivo qualificador que de fato indique a que
as ἰδέαι se referem. Pelo contexto que segue, compreende-se que seriam as três substâncias
citadas, mas não há apontamentos claros que permitam afirmar que ἰδέα esteja se referindo a
um agrupamento dessas substâncias sob diferentes aspectos que as distinguem, ou seja, não há
como afirmar com segurança uma orientação classificatória como quer Saffrey. No entanto,
Heródoto prossegue descrevendo como de uma só substância que é retirada do poço são
processadas essas três outras e, então, conclui descrevendo o aspecto do óleo como negro e
malcheiroso (ἔστι δὲ μέλαν καὶ ὀδμὴν). Parece-nos, portanto, mais seguro afirmar que o poço
forneça três substâncias de diferentes “aspectos”, mesmo que não soe muito adequado. É difícil,
todavia, constatar qual a precisão semântica de ἰδέα nessa passagem.
Por fim, Saffrey aponta um uso de ἰδέα com sentido classificatório de “modo” em 6.100,
onde Heródoto discorre sobre como o conselho dos eretrianos estava divido entre dois “modos”
de ação (τῶν δὲ Ἐρετριέων ἦν ἄρα οὐδὲν ὑγιὲς βούλευμα, οἳ μετεπέμποντο μὲν Ἀθηναίους,
ἐφρόνεον δὲ διφασίας ἰδέας.). Em consideração às possíveis distinções entre os termos “tipo”

19
Vide LSJ, s.v.: “such as this”.
20
Que essa passagem de Heródoto é a primeira vez na história que ἰδέα apresenta a noção classificatória não só
foi apresentada por Saffrey (1990) como é ainda atualmente reatestado por Alberto Bernabé (2011, p. 22).
30

e “modo”, entendemos que num contexto coloquial a palavra “modo”, enquanto “forma de se
fazer algo”, adequa-se bem ao sentido da frase, e, provavelmente, tenha sido esse o motivo de
Saffrey admitir o termo junto a “tipo” como traduções indistintamente adequadas a esse sentido
classificatório de εἶδος. Contudo, a palavra “modo”, do latim mŏdus, e do grego μήδεα, denota,
primariamente, “medida”. A palavra “tipo”, por sua vez, do grego τύπος, traz na sua etimologia
o significado de “golpe”, denotando, primariamente, a “impressão” resultante de um golpe,
sendo esse sentido que desenvolve a semântica da palavra grega 21. Por esse motivo,
consideramos a palavra “tipo” como a tradução mais adequada para expressar esse significado
classificatório de εἶδος, que faz referência às características distintas comuns a uma
multiplicidade de particulares, assim como se distingue diferentes golpes pelas suas diferentes
impressões.
Falta ainda ser analisada uma última ocorrência de ἰδέα que merece um pouco mais de
atenção. Na passagem de 2.76, Heródoto parece, à primeira vista, intercambiar o uso e
significação das palavras εἶδος e ἰδέα para se referir a aparência da íbis preta: “εἶδος δὲ τῆς
ἴβιος τόδε· μέλαινα δεινῶς πᾶσα, σκέλεα δὲ φορέει γεράνου, πρόσωπον δὲ ἐς τὰ μάλιστα
ἐπίγρυπον, μέγαθος ὅσον κρέξ. τῶν μὲν δὴ μελαινέων τῶν μαχομένων πρὸς τοὺς ὄφις ἥδε ἰδέη”.
Novamente recorrendo às traduções da Loeb, Gredos, e Belles Lettres, é possível notar que é
exatamente no sentido de intercambialidade de significações que comumente se interpretam as
palavras εἶδος e ἰδέα nesta passagem. Primeiramente a tradução inglesa: “Now this is the
appearance of the ibis. It is all deep black, with legs like a crane's, and a beak strongly hooked;
its size is that of a landrail. Such is the outward form of the ibis which fights with the serpents”
(td. GODLEY, 1920, p. 363). A tradução espanhola:

He aqui, por cierto, el aspecto de la ibis: toda ella es intensamente negra,


tiene patas de grulla, un pico sumamente curvo y, aproximadamente, el
tamano de un rascon. Esta es, en suma, la fisonomia de las ibis negras, que
son las que luchan contra las serpientes. (td. SCHRADER, 1977, p. 365)

E a francesa: “Voici quel est l’aspect de l’ibis: il est tout entier d’un noir foncé; il a les pattes
de la grue, le bec nettement recourbé; sa taille est celle du râle d’eau. Telle est l’apparence
des ibis noirs, de ceux qui combattent les serpents” (td. LEGRAND, 1936, p. 116).

21
Vide LSJ, s.v.
31

Há, de fato, uma relação semântica entre as palavras, que, ao serem lidas como idênticas,
faz de Heródoto o primeiro autor a explicitar um uso intercambiável das duas palavras. No
entanto, outra leitura parece possível, e até mesmo mais coerente ao atentar para o que se segue
à passagem. Aplicando o sentido classificatório de ἰδέα, a sentença “τῶν μὲν δὴ μελαινέων τῶν
μαχομένων πρὸς τοὺς ὄφις ἥδε ἰδέη” pode ser lida como: “tal é o tipo negro que luta contra as
serpentes”. Essa leitura parece endossada pela sentença seguinte, onde Heródoto inclui a
cláusula parentética: “διξαὶ γὰρ δή εἰσι ἴβιες (de fato, de dois tipos são as íbis)”. Em todas as
traduções citadas, o adjetivo nominal διξαὶ é sempre interpretado como “dois tipos”. A tradução
espanhola: “pues en realidad hay dos clases de íbis”; a inglesa: “for the ibis is of two kinds”; e
a francesa: “car il y a des íbis de deux sortes”. É curioso notar que tanto a edição inglesa como
a espanhola ressaltam, em nota in loco, que Heródoto se refere a duas espécies de íbis. A edição
da Loeb cita, inclusive, quais são as duas espécies a que Heródoto se refere: “Geronticus Calvus
and Ibis Aethiopica” (GODLEY, 1920, p. 363, n. 1). Já a edição da Gredos afirma que Heródoto
“pone gran cuidado en su descripcion de los dos tipos de ibis” (SCHRADER, 1977, n. 296, p.
365). Parece-nos válido, pois, apresentar uma sugestão interpretativa: no começo da sentença
em questão, Heródoto utiliza o termo εἶδος, traduzido como “aparência” ou “aspecto”, o que é
adequado uma vez que ele prossegue descrevendo as características físicas da íbis. O autor,
então, encerra a sentença mencionando ἰδέα, que, na tradução espanhola, é considerada
“fisionomia”; porém, se anteriormente, como já atestamos, Heródoto utiliza ἰδέα com sentido
classificatório (“tipo”), não seria possível que esse também fosse o caso?
Na sentença “τῶν μὲν δὴ μελαινέων τῶν μαχομένων πρὸς τοὺς ὄφις ἥδε ἰδέη”, não há
nenhuma indicação de que ἰδέα se refira às informações anteriores sobre a aparência da íbis, o
que definitivamente lhe conferiria o sentido de “fisionomia”. O que se descreve na sentença é
uma característica particular da íbis negra – a que luta contra as serpentes. Caso tomemos essa
última alternativa, ἰδέα adquire sentido classificatório. Essa é, no entanto, apenas uma sugestão
interpretativa, não havendo evidências fortes que sustentem essa leitura como definitiva. O que
se pode afirmar deste caso particular, todavia, é que apesar de ambas as palavras serem
utilizadas historicamente para falar a respeito do aspecto ou aparência de algo, não se encontra
nenhum autor até então explicitando a intercambialidade de seus significados. Há, ao que tudo
indica, uma certa ressalva em se fazer tal coisa, e se há alguma nuance para o uso de uma ou de
outra palavra no seu sentido de aspecto/aparência, isso não aparece em nossa análise.
Independentemente de como seja interpretado o uso da palavra ἰδέα nesta passagem, a novidade
introduzida por Heródoto ao usá-la com um sentido classificatório de “tipo”, não é afetada por
essa questão.
32

Vale notar ainda que, de acordo com Saffrey (1990, p. 2-3), este novo sentido
classificatório encontrado em Heródoto se relaciona igualmente à formação dos adjetivos
constituídos pelo sufixo -ειδής, significando “o εἶδος ou a ἰδέα de...”, “com aparência de...”.
Formação esta que ao longo da história da língua grega ampliou-se de modo que o próprio
sufixo -ειδής acabou se fundindo com sufixo -ώδης e a formação de adjetivos com esses sufixos
continuou constituindo muitas centenas de adjetivos empregados no grego clássico 22. Ademais,
como já visto, desde Homero esta formação retinha exclusivamente a noção de “aparência
externa”, mas, a partir de Heródoto, estará imbuída também deste novo significado
classificatório.

1.1 A Dramaturgia Grega

Neste momento, é importante focar em outro âmbito literário da época, a dramaturgia


grega, pois aí se faz notar que, apesar de a palavra ἰδέα já estar sendo bem incorporada ao
vocabulário da prosa grega do século V, isso não ocorre entre os poetas trágicos, onde a palavra
εἶδος, homérica, continua a ser preferida. Assim, nem Ésquilo (c. 525/524 a.C. – 456/455 a.C.)
nem Sófocles (496 a. C. – 406 a. C.) oferecem um só exemplo do uso da palavra ἰδέα. Encontra-
se somente uma única ocorrência da palavra em Eurípides (c. 480 – c. 406 a.C.) 23, na sua última
peça, As Bacantes, composta em 405 a.C., no diálogo entre Penteu e Dionísio, que imita o estilo
de linguagem falada. A palavra é utilizada para questionar a respeito dos “tipos” de ritos que
praticam os seguidores de Dionísio: “τὰ ὄργι ἐστὶ τίν᾽ ἰδέαν ἔχοντά σοι; (de que tipo são seus
ritos?)” 24.
Que ἰδέα era então parte integrante da linguagem comum da época se confirma ao
verificar que, por um lado, se a tragédia praticamente excluiu do seu idioma a palavra, por
outro, a comédia, que faz uso livre da língua falada, utiliza-a com naturalidade. Em Aristófanes
(444 a.C. – 385 a.C.), encontra-se apenas 2 ocorrências da palavra εἶδος e 7 de ἰδέα 25.
Primeiramente, nas Nuvens, encenada em 423 a.C., o Coro das Nuvens fala, em 288, de
suas formas imortais (ἀθανάτας ἰδέας). E em 547, o autor, na pessoa de Corifeu, gaba-se de sua
habilidade de sempre apresentar novas formas de comédia (ἀλλ᾿ ἀεὶ καινὰς ἰδέας εἰσφέρων

22
Cf. CHANTRAINE, 2009, p. 430-432; BUCK; PETERSEN, 1945, s.v. -ειδής, p. 703-707, s.v. -ώδης p. 708-
715. Sobre a evolução do sentido dado ao sufixo -ώδης no século V ver O’BRIEN, 1985, p. 266-270.
23
Cf. ALLEN; ITALIE, 1954, p. 298.
24
Tomamos como decisiva a análise de E. R. Dodds (1986, p. 137) a respeito do significado de ἰδέα nessa
passagem.
25
Cf. TODD, 1932, s.v. εἶδος, p. 68 e s.v. ἰδέα, p. 104.
33

σοφίζομαι). Nas Rãs, apresentada ao público na Leneana, um dos festivais dedicados a Dionísio
em Atenas, no ano de 405 a.C., o Coro, em 382, pede para que se mude a entoação para uma
outra forma de hino (ἑτέραν ὕμνων ἰδέαν) em honra a Demeter. Nas Aves, atuada em 414 a.C.,
quando Méton entra em cena (993), Pistêtairo lhe pergunta: “Qual o tipo da sua proposta? (τίς
ἰδέα βουλεύματος;)” 26. Em seguida (1000-1001), o mesmo Méton explicando o que são suas
ferramentas, diz: “em forma, o ar é como a tampa de um forno (ἀήρ ἐστι τὴν ἰδέαν ὅλος κατὰ
πνιγέα μάλιστα)” 27. Finalmente, em Pluto, a última peça de Aristófanes, composta em 388 a.C.,
a Pobreza reivindica ser a verdadeira benfeitora dos seres humanos, diz ela: “Mais do que Pluto
(Riqueza), eu faço dos homens superiores em inteligência e forma (καὶ τὴν γνώμην καὶ τὴν
ἰδέαν)” 28; aqui ἰδέα toma o sentido de aparência visível de um homem que é a forma do seu
corpo físico. Assim, em Aristófanes, a mesma palavra, ἰδέα, pode designar as formas das nuvens
e o corpo físico de um homem, mas também formas outras as quais não se veem com os olhos,
como as de hinos, de comédias e de propostas, que pode ser traduzida como “formas” ou “tipos
de...”, e que se enquadra perfeitamente no sentido classificatório da palavra. Nenhuma
novidade, portanto, quanto ao seu uso e significação.
Εἶδος, por sua vez, na primeira de suas 2 únicas ocorrências, é apresentado, nas
Tesmoforiantes, 267, com o sentido tradicional de aspecto exterior. Eurípides fala de seu
parente, que está se travestindo, que ele de fato parece uma mulher, ao menos em εἶδος
(aparência): “ἁνὴρ μὲν ἡμῖν οὑτοσὶ καὶ δὴ γυνὴ τό γ᾿ εἶδος”. E logo em seguida pede para que
ele tente disfarçar também a sua voz.
Já a segunda ocorrência apresenta uma significação outra, de difícil tradução. Em Pluto,
317, a personagem Carião pede ao Coro para que se faça uma mudança de εἶδος. O contexto se
desdobra numa série de troca de personificações (μιμέομαι) entre Carião e o Coro, sendo que
Carião sempre acaba levando a pior, até que finalmente ele decide ir embora, onde surge a
seguinte frase: “ὑμεῖς ἐπ᾽ ἄλλ᾽ εἶδος τρέπεσθ᾽”. Vemos as traduções existentes tentando se
adaptar ao contexto, mas sempre incapazes de qualquer fidelidade à sentença original.
Novamente recorrendo a renomadas coleções: Jeffrey Henderson (2002, p. 469) pela inglesa
Loeb Classical Library traduz como “form up a different dance”; Luis M. Macía Aparicio
(2007, p. 449) pela espanhola Gredos traduz como “disponeos a otra cosa”; e Pascal Thiercy
pela Bibliothèque de la Pléiade das Éditions Gallimard (1997, p. 918) traduz como “et tournez-
vous donc vers un autre genre”. Thiercy explica (1997, p. 1325, n. 5) que o que está sendo

26
Tradução nossa.
27
Tr. idem.
28
Tr. idem.
34

pedido por Corião é um novo canto ao coro, mas que isso não foi preservado nos manuscritos
e, portanto, εἶδος, nessa passagem, estaria se referindo a uma mudança de “gênero musical”.
Sua tradução é improvável, pois não só implicaria numa inovação de Aristófanes no uso de
εἶδος, como a justificativa para sua interpretação e tradução se pauta numa suposta lacuna nos
manuscritos de Pluto da qual não há referências. Não só em sua bibliografia não constam os
manuscritos da obra, como nas edições críticas modernas, que ele referencia, essa lacuna não é
indicada. Ademais, a tradição dos manuscritos de Pluto conta com aproximadamente duzentos
testemunhos, do qual só um pequeno número tem sido considerado pelos editores 29, e Thiercy
não apresenta nenhum estudo, seu ou de outrem, que sustente esta sua afirmação.
Nenhuma dessas traduções parece, portanto, satisfazer plenamente o significado de
εἶδος nessa passagem. Todavia, ao investigar a literatura contemporânea a Aristófanes, surge
uma nova pista quanto a essa aplicação específica da palavra que parece estar contida numa
expressão idiomática. Encontra-se a mesma construção do substantivo εἶδος com o verbo
τρέπεσθαι em Tucídides (460 - 395 a. C.). Vale, portanto, analisar o uso e significado que faz
Tucídides nesse caso. São duas as ocorrências dessa expressão idiomática na sua História da
Guerra do Peloponeso, em 6.77.2, e em 8.56.2. A primeira se apresenta num discurso de
Hermócrates de Siracusa:

ἢ μένομεν ἕως ἂν ἕκαστοι κατὰ πόλεις ληφθῶμεν, εἰδότες ὅτι ταύτῃ μόνον
ἁλωτοί ἐσμεν καὶ ὁρῶντες αὐτοὺς ἐπὶ τοῦτο τὸ εἶδος τρεπομένους ὥστε...
Ou devemos esperar até que sejamos derrotados, cidade após cidade, sabendo
que essa é a única maneira de sermos conquistados, e vê-los se voltando
justamente a esse εἶδος, a saber... 30

Hermócrates prossegue explicando, basicamente, a estratégia de dividir e conquistar que foi


utilizada pelos Atenienses para derrotar e escravizar os povos vizinhos. E a segunda, em 8.56,
2:

Ἀλκιβιάδης δέ (...) τρέπεται ἐπὶ τοιόνδε εἶδος ὥστε τὸν Τισσαφέρνην ὡς


μέγιστα αἰτοῦντα παρὰ τῶν Ἀθηναίων μὴ ξυμβῆναι.

29
A respeito da história do texto e discussão sobre a edição crítica vide: D. M. Cisterna (2012); N. G. Wilson
(2007, p. 1-14); G. Zanetto (2010, p. 203-225); M. R. Di Blasi (1997); K. J. Dover (1988, p. 223-265).
30
Tradução nossa.
35

Alcibíades voltou-se para este εἶδος, a saber, que Tissafernes deveria exigir
demais dos Atenienses e assim não entraria em acordo com eles.31

Dentre as traduções verificadas, na primeira passagem parece ser unânime a tradução


de εἶδος como “política”. A tradução inglesa por Charles Smith, pela coleção da Loeb Classical
Library (2006, p. 319) “resorting to this policy”; a brasileira de Mário da Gama Kury (2001, p.
400) “recorrer a esta política”; a espanhola de Juan José Torres Esbarranch pela Gredos (1992,
p. 273): “ponen en práctica contra nosotros esa política”; e a francesa de Louis Bodin pela
Belles Lettres: “et quand nous les voyons adopter ce système avec nous” (1963, p. 57).
Já na segunda passagem, alguns destes mesmos tradutores variam um pouco e tentam
interpretar a expressão como um todo. Mário da Gama Kury (2001, p. 508) traduz como:
“resolveu aconselhar”; e Charles Smith (2006, p. 289): “recourse to this device”. Apenas as
traduções da Belles Lettres, dessa vez por Raymond Weil, “il recourut à un système” (1972, p.
46), e a de Juan Torres Esbarranch, “recurrió a una política” (1992, p. 264), reiteram o sentido
adotado na primeira passagem. Nesta ocasião, Esbarranch explica em nota (323) que o sentido
de “política” que ele emprega é similar a “≪tendencia≫ o ≪regimen≫ (politeía)”, e até mesmo
“kosmos, ≪orden≫”, além de afirmar que esta seria exatamente a mesma significação de εἶδος
na passagem 6.77.2. Note-se que este sentido forte de “política” é bem diferente do sentido de
“policy” adotado na tradução inglesa para a primeira passagem, a qual remete a um sentido mais
próximo de “diretriz” ou “modo de ação”.
Ainda assim, nenhuma dessas alternativas de tradução parecem se adequar ao uso da
expressão em Aristófanes. Elas se tornam muito menos razoáveis ao se isolar as traduções
atribuídas a εἶδος (política, device, sistema, conselho) da expressão como um todo. O sentido
forte de política adotado pela tradução espanhola parece ser o mais distante e inadequado,
dotando a palavra de noções de regime, ordem e administração da pólis, ainda mais
considerando o apanhado histórico dos usos e significações de εἶδος realizados nesta pesquisa
até então. A tradução inglesa como policy, no entanto, traz uma interessante intuição se a
interpretarmos figurativamente como “modo de ação”. De maneira semelhante, propomos que
εἶδος associado ao verbo τρέπεσθαι deva ser traduzido como “postura/conduta”, no sentido de
“comportamento/atitude”. Atribuir essa significação a εἶδος apresenta-se aqui como uma
novidade histórica 32.

31
Tr. idem.
32
Pode haver alguma semelhança, no entanto, com a primeira ocorrência da palavra ἰδέα em Teógnis, já imbuída
com as mesmas significações de comportamento/atitude, e que ainda as contêm dentro de uma noção ampla de
aparência. Vide também Heródoto, 6.100.
36

Ademais, nota-se que o historiador corrobora a inversão na proporção do uso das duas
palavras como visto com seu contemporâneo Aristófanes. Em suas obras encontram-se 7
empregos de εἶδος para 14 de ἰδέα 33. Esta confirmação de uma inversão na proporção do uso
das duas palavras é bem relevante, pois aqui já estamos lidando com um período contemporâneo
a Sócrates (469-399 a.C.) e a Platão (428 a.C.-347 a.C.), sendo este último, como bem se sabe,
e será analisado, o responsável por uma determinante inovação no uso e significação de ambas
as palavras, culminando naquilo que ficou conhecido como a Teoria das Formas/Ideias.
Deve-se, no entanto, observar que todo esse percurso traçado até agora margeou uma
grande revolução científica que estava ocorrendo na Grécia antiga. Os assim chamados
filósofos pré-socráticos e a ciência médica, ao longo de todo seu percurso histórico e do
desenvolvimento do seu saber, depararam-se com a necessidade de expressar suas novas visões
de mundo dentro de um vocabulário que os limitava e que, portanto, precisou ser inovado.
Para se entender o uso e as significações das palavras εἶδος e ἰδέα nesse núcleo de saber
da época já não é mais necessário prosseguir com o mesmo método de análise pelo qual a
pesquisa se desenvolveu até agora, pois estudos exaustivos e consagrados já o fizeram, alguns,
inclusive, muito recentes, e aqui serão criticamente apresentados seus resultados.

1.2 O Corpus Hippocraticum

A evolução do pensamento médico em prol de uma explicação natural das doenças levou
a uma mudança na terapêutica na Grécia antiga. O Corpus Hippocraticum surge como a
primeira coleção de livros de medicina dessa nova techné iatriké, que se pautava na íntima
associação entre conhecimento e experiência, não mais aceitando curas por feitiços ou magias
baseadas na crendice 34.
Há, contudo, um grande e inconclusivo debate na comunidade acadêmica a respeito da
autoria e data de composição dos tratados que compõem o Corpus 35. É sabido que,

33
Cf. BÉTANT, 1961, vol. I, s.v. εἶδος, p. 294 e vol. II, s.v. ἰδέα, p. 5. À parte dessa novidade analisada no uso de
εἶδος em conjunto ao verbo τρέπεσθαι, ambas continuarão com os mesmos significados encontrados até agora.
34
Falando a respeito do tratado Περὶ Ἀρχαίας Ἰατρικῆς, Schiefsky (2005, p. 65–66) afirma que o método lá
proposto “could certainly be characterized as an empirical one", preferindo os efeitos da dieta como observados
pelos sentidos às especulações cosmológicas. No entanto, “unlike the Empiricists, the author does not claim that
the doctor's knowledge is limited to what can be observed by the senses. On the contrary, he requires the doctor
to have quite extensive knowledge of aspects of the human constitution that cannot be observed directly, such as
the state of the patient's humors and internal organs” (SCHIEFSKY, 2005, p. 350).
35
Isso implica, ainda, em sequer haver um acordo sobre quais os tratados que de fato compõem o Corpus. Dentre
os grandes estudiosos tem-se C. G. Gual defendendo 53 tratados organizados em 72 livros; J. Jouanna, que segue
a organização dos textos a partir da organização feita por Erotiano no séc. I a.C., admite 62 livros. Já, Émile Littré,
organiza as obras da coleção em dez volumes, reunindo 60 livros. Para uma apresentação mais detalhada dessa
37

fundamentalmente, os tratados que compõem o Corpus Hippocraticum são produto da


investigação e do ensinamento, não só do próprio Hipócrates, mas dos seus discípulos e da
geração subsequente, de médicos atuantes nos decênios finais do séc. V a.C. e nos primeiros do
séc. IV a.C. A respeito desse impasse acadêmico nos estudos do Corpus Hippocraticum vale
citar o comentário feito por G. E. R. Lloyd:

A questão de determinar as obras genuínas de Hipócrates, um tópico já muito


discutido pelos comentaristas da antiguidade, continua sendo ativamente
debatida, ainda que as discordâncias entre os acadêmicos permaneçam,
aparentemente, mais amplas do que nunca. (LLOYD, 1975, p. 171) 36

Sabe-se, no entanto, com alguma segurança, que alguns dos tratados antecedem, se não
Heródoto, ao menos Tucídides, e que outros são contemporâneos a Platão e até mesmo
posteriores a ele, chegando até a época romana e cristã 37.
Isso tudo faz muito arbitrária qualquer seleção de tratados do Corpus Hippocraticum
para serem analisados como sendo pré-socráticos. Ademais, a ampla abrangência histórica do
Corpus faz com que a busca de desenvolvimentos semânticos e qualquer conclusão a seu
respeito sejam prejudicados. No entanto, não se pode relevar o fato de que a influência do
vocabulário médico na linguagem de um povo é altamente contagiante 38, e a respeito dos usos
e significações das palavras εἶδος e ἰδέα há alguns consagrados estudos que lidaram com essa
questão dentro do Corpus, e mostram resultados bem coerentes com o que a presente pesquisa
tem apresentado até aqui. Sendo assim, levando em conta todas essas ressalvas, apresentaremos
resumidamente os resultados dos esforços já feitos nesse sentido.

problemática vide ensaio introdutório de W. H. S. Jones (1923, p. xlviii et seq.) no vol. 148 da coleção Loeb
Classical Library.
36
Em nota (1), aponta 86 trabalhos como “as mais importantes contribuições desde 1930” para este debate. Vê-se
também, mais recentemente, P. Potter reafirmando esse impasse na sua introdução da edição da Loeb Classical
Library (vols. 5 e 6 de Hippocrates): “These volumes contain the most important Hippocratic works on the
pathology of internal diseases (…) About the Treatises’ interdependencies, authors, and relative dates of
composition, nothing can be said with any degree of certainty. There is neither any evidence that would confirm,
nor any evidence that would call into doubt, their traditional time of origin about 400 bc.” (POTTER, 1988, p. ix-
xii).
37
Cf. JOUANNA, 1999, Appendix 3, p. 373-416.
38
Quanto ao uso de εἶδος e ἰδέα no período pré-platônico um caso já bem comentado é o de Tucídides que apresenta
diversos paralelos a alguns usos hipocráticos dos termos. Isso é apontado no debate de Gillespie (1912, p. 179 et
seq.) com A.E. Taylor (1911), o qual abordaremos adiante; também no estudo de K. Weidauer (1954, p. 26 et
seq.). Vide como a formulação mais recorrente de Tucídides para a palavra ἰδέα, “ἰδέα πᾶσα”, é muito
frequentemente seguida por palavras significando morte (θανάτου, ὀλέθρου): cf. II. 19. 1; III. 81. 5, 83. 1, 98. 3;
VII. 29.5.
38

Em todo o Corpus o número das ocorrências da palavra ἰδέα é de 37, enquanto que de
εἶδος chega a 97 39. A. E. Taylor (1911, p. 178-267) foi o primeiro a estudar o uso de εἶδος e
ἰδέα no Corpus Hippocraticum e concluiu que ali já se encontraria uma antecipação do uso
socrático/platônico dessas palavras. Segundo sua interpretação, já haveria diversas passagens
no Corpus onde essas palavras estariam sendo utilizadas com o significado de “substâncias
elementares primárias” – à semelhança das ἀρχαί dos filósofos pré-socráticos –, a partir das
quais todas as coisas são formadas. Porém, diferente da filosofia platônica, essas substâncias
não seriam transcendentes à realidade sensível.
Esta tese de Taylor foi refutada de imediato por Gillespie (1912), no que foi o primeiro
e é até então o único artigo exclusivamente dedicado ao uso dessas duas palavras no Corpus
Hippocraticum, que reexaminou detalhadamente εἶδος e ἰδέα nos tratados, complementando
em alguns casos específicos o material selecionado por Taylor no Corpus Hippocraticum. Seus
resultados provaram que, ao contrário de Taylor, εἶδος e ἰδέα não traziam nenhuma novidade
em relação às significações em vigor na época. Segundo Gillespie, nos tratados do Corpus
Hippocraticum até a época de Sócrates, estes vocábulos significam não só a forma visível de
um objeto corpóreo, mas, sobretudo, uma “classe” de enfermidades ou um “tipo” de
constituição física que a pessoa tem, reconfirmando, portanto, a significação classificatória. No
que diz respeito à palavra ἰδέα, a presente pesquisa verificou, desde Homero até então, esses
mesmos significados, porém agora, em relação à εἶδος, tem-se uma novidade semântica.
Segundo Gillespie: “Que a palavra εἶδος, por diversas vezes, tem um sentido classificatório em
Hipócrates, pode ser facilmente demonstrado” (GILLESPIE, 1912, p. 184) 40; mas apresenta a
seguinte ressalva:

Eu concordo com o prof. Taylor que a palavra não significa uma classe lógica
em Hipócrates: mas ela tem frequentemente um uso classificatório, assim
como em inglês falamos ‘desses tipos de caráter’, ‘uma forma maligna da
doença’ (...) e esse tanto pode ser concedido ao prof. Taylor, isto é, que a
classificação é, mais apropriadamente, divisão; não é considerada como
coletar e distribuir as coisas de acordo com suas qualidades em comum, mas,
em vez disso, considerar uma unidade (não explicitamente pensada como uma
unidade lógica, mas em última instância analisável dentro dela, como via

39
Cf. MALONEY; FROHN, 1984.
40
Seus exemplos são: 3, II.30 K., 7, II.34 K., 8, II.34 K.
39

Platão) e dividi-la. Ainda assim, a ideia classificatória sempre está próxima, e


às vezes predominante (GILLESPIE, 1912, p. 183)

Εἶδος assume, portanto, a noção classificatória que até então só havia sido encontrada em ἰδέα.
A interpretação de Gillespie se estabeleceu como consenso desde então, tendo estudos
subsequentes apontado para a mesma direção de seus resultados 41. Vale citar a sua própria
síntese de conclusões:

Meu exame parece indicar que, na época de Sócrates, as palavras εἶδος e ἰδέα
demonstram duas tendências de significado no vocabulário geral da ciência.
A primeira é principalmente física, mas sem associações matemáticas -
incluindo muitas gradações de significado, do popular ao técnico – a forma de
um objeto corpóreo – ocasionalmente usada para o objeto corpóreo em si,
como as nossas palavras forma e formato, mas sempre distinta de σώμα: por
vezes a forma ou o formato visível externo: frequentemente a forma interna,
a estrutura, natureza, φύσις, uma concepção especialmente física:
frequentemente estendida à natureza dos objetos em vez do corpo: passando,
em um tratado de caráter retórico, quase, senão um pouco, para a noção
metafísica de essência. A segunda é meio lógica, classificatória; usada
especialmente em contextos tais como ‘existem quatro formas, tipos’ de
alguma coisa, seja uma substância como o ‘úmido’, seja uma doença ou
semelhantes. (GILLESPIE, 1912, p. 202)

1.3 Os Filósofos Pré-socráticos

Há de se supor que os filósofos pré-socráticos se apresentem como um núcleo de


pensamento de maior importância para o desenvolvimento filosófico dos termos εἶδος e ἰδέα
em direção ao uso platônico. Isso se deve em primeiro lugar às suas novas propostas de
explicação da realidade que fundaram o próprio pensamento filosófico grego, em segundo
lugar, à necessidade de configurar também um novo vocabulário para as expressar. Desse modo,
não só esses pensadores criaram neologismos, como atribuíram novos sentidos a muitas
palavras usuais. Todavia, devido ao caráter fragmentário dos textos pré-socráticos, e ao fato de
que estes filósofos não praticavam a definição dos termos, uma interpretação conclusiva de

41
Vide Else (1936) e Baldry (1937). Vê-se mais recentemente a interpretação de Gillespie sendo assumida como
conclusiva por estudiosos como Saffrey (1990, p. 5-6) e Enrico Berti (MOTTE et al., 2003, p. 653-654).
40

qualquer análise semântica num cenário desses requer não só uma minuciosa análise filológica,
como também um conhecimento filosófico muito bem estruturado e de muita intimidade com
os pensamentos desses sábios pré-socráticos. Muito recentemente dois estudos realizaram tal
façanha, excedendo em completude qualquer trabalho previamente realizado sobre os termos
em questão 42, e para isso foram recrutados esforços coletivos de grandes acadêmicos na área,
oriundos de diversos países.
O primeiro é o trabalho realizado pelo Centre d'études aristotéliciennes de l’Université
de Liège, publicado em 2003, sob a edição de A. Motte, C. Rutten, P. Somville, L. Bauloye, A.
Lefka e A. Stevens. Nele, encontra-se uma análise e interpretação de todas as instâncias dos
substantivos εἶδος, ἰδέα e μορφή nos escritos dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles, sob o
título “Philosophie de la Forme. Eidos, Idea, Morphe dans la philosophie grecque des origines
à Aristote”. Dentre os 23 grandes nomes cujos esforços foram coordenados estão Richard
Bodéüs, Enrico Berti, Carlos Steel, e Gerd Van Riel. Como resultado, além do levantamento e
organização de todas as ocorrências das palavras, apresentam-se valiosos apontamentos
gramaticais e estilísticos, e análises semânticas meticulosas. Por esses motivos, esse precioso
trabalho será um companheiro próximo da presente pesquisa por todo o seu trajeto, não só como
uma lista de referências, mas por suas ótimas conclusões e interpretações.
No que tange os pré-socráticos, foram analisadas todas as ocorrências das palavras,
encontradas nos escritos de Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.), Parmênides (530 a.C. – 460 a.C.),
Anaxágoras (c. 500 a.C. – 428 a.C.), Diógenes de Apolônia (499 a.C. – 428 a.C.), Protágoras
(490 a.C. – c. 420 a.C.), Empédocles (490 a.C. – 430 a.C.), Górgias (485 a.C. – c. 375 a.C.),
Melisso (470 a.C – 430 a.C), Filolau (c. 470 a.C. – c. 385 a.C.), Crítias (460 a.C. – 403 a.C.),
Demócrito (c. 460 a.C. – 370 a.C.), e Arquitas (428 a.C. – 347 a.C.) 43. Para o levantamento das
ocorrências, foram examinados os fragmentos reputados como autênticos e os testemunhos
doxográficos 44 recolhidos e organizados por H. Diels e W. Kranz. No total são 32 ocorrências
de εἶδος 45 e 10 de ἰδέα 46. Destacam-se, dentre todos, Empédocles e Demócrito, o primeiro com
um total de 8 ocorrências de εἶδος e o segundo com 9 de εἶδος e 5 de ἰδέα, pois em relação aos

42
Como BROMMER, 1940; ELSE, 1938; SANDOZ, 1972.
43
É curioso notar a ausência de ocorrências de ambas as palavras em Heráclito, como ressalta André Motte
(MOTTE et al., 2003, p. 60-63).
44
Os testemunhos doxográficos foram considerados suplementares, adotados “na medida em que possam fornecer
explicações úteis junto aos índices de emprego de tal palavra com tal filósofo” (MOTTE et al., 2003, p. 19).
45
Das quais 16 ocorrem em fragmentos e 16 em doxografias adotadas como suplementares.
46
7 ocorrências e 3 suplementares doxográficas.
41

demais, quando algum desses termos estão presentes, em sua grande maioria se limitam a 1 ou
2 ocorrências 47. A conclusão geral desse estudo é apresentada por E. Berti:

Os filósofos que servem de objeto de pesquisa e de exposição de A. Motte,


mostram como, ao lado da significação comum de εἶδος como forma corporal,
ou seja, aspecto visível, já se tem com os primeiros filósofos duas
significações mais técnicas do termo, tal como, por exemplo, as partículas ou
os elementos primordiais de Empédocles, as formas dos números (par e ímpar)
com Filolau e Arquitas, as formas do ser em Melisso. Todas estas
significações são redutíveis à do instrumento de classificação, isto é,
“espécie”. Neste caso, as palavras εἶδος e ἰδέα parecem intercambiáveis,
enquanto μορφή parece indicar somente o aspecto concreto. Mais
característico é o emprego de ἰδέα com Demócrito, onde significa a forma dos
átomos, que Motte interpreta, no entanto, diferente de Alfieri e de Wisman,
como forma no sentido físico. (MOTTE et al., 2003, p. 652)

Conclui, portanto, que a respeito dos pré-socráticos é possível distinguir três significações para
ambas as palavras, εἶδος e ἰδέα:

1. a de figura ou de aspecto sensível, que é a significação mais comum e não


tem nada de técnica, nem do ponto de vista filosófico nem do
ponto de vista científico;
2. a de um signo, ou de marca característica que, pertencendo à uma
pluralidade de casos particulares ou de indivíduos, permite classifica-los sob
um título comum;
3. a de uma espécie ou de grupo ou de classe, formada por todos os casos
particulares que têm em comum a mesma marca característica. (MOTTE et
al., 2003, p. 653-654)

Ainda que a equipe coordenada por Motte et al. (2003) tenha realizado um trabalho
notável para a questão, e, no geral, seus resultados sejam bem coerentes com as conotações já
atestadas pela presente pesquisa em outros âmbitos literários da Grécia antiga, muito
recentemente, Alberto Bernabé (2011; 2013), partindo dos resultados e levantamentos feitos
por essa equipe, realizou avanços significativos sobre a questão, publicados praticamente uma

47
Vide a tabela de ocorrências detalhadas em cada autor em MOTTE et al., 2003, p. 20-21.
42

década após o trabalho de Motte et al. (2003). Seu trabalho apresenta resultados que
acrescentam ricos detalhes ao estudo já realizado sobre o usos e significações de εἶδος e ἰδέα
nos pré-socráticos. Vale, portanto, avaliar os pormenores de sua análise considerando as
diferentes significações de εἶδος e ἰδέα apresentadas acima por Enrico Berti:
(1) Reserva-se o uso exclusivo de εἶδος para significar formas visíveis que se apresentam
no mundo sensível. Os exemplos são muitos e encontrados em diversos autores, como, por
exemplo, Empédocles que fala das “formas semelhantes a todas as coisas (τῶν εἴδεα πᾶσιν
ἀλίγκια πορσύνουσι)” 48, como árvores, homens e mulheres etc., que os pintores representam
pictoricamente (fr. B23.5); ou, em B71 e B73, falando a respeito de como as formas (εἴδη /
εἴδεα) dos seres são moldados por Cípria-Afrodite a partir dos elementos 49. Ainda Empédocles
fala de como a forma em que alguns seres foram modelados (εἴδεσιν ἐκμακτοῖσι) faz com que
sejam incompatíveis com outros 50. Ou das diferentes “configurações de formas mortais,
variadas no tempo (φυομένους παντοῖα διὰ χρόνου εἴδεα θνητῶν)” nas quais se introduzem os
daímones (fr. B115.6-8). E, também, da transformação do aspecto (εἴδεα) do cadáver em
relação aos vivos 51. Melisso afirma que a forma (εἴδη) é algo que as coisas têm, uma
propriedade das coisas, como a solidez, porém exterior 52. Ademais dessas ocorrências, ainda
no sentido de forma exterior visível, vê-se outras significando mais especificamente a beleza
de uma forma, como em Górgias (fr. B22), que diz que “não a beleza, mas a boa reputação da
mulher deve ser conhecida por muitos (κελεύων μὴ τὸ εἶδος ἀλλὰ τὴν δόξαν εἶναι πολλοῖς
γνώριμον τῆς γυναικός.)”; ou Crítias (fr. B48) que diz que “a forma feminina é a mais bela nos
varões, e nas mulheres, o contrário (ὅτι κάλλιστον ἔφη εἶδος ἐν τοῖς ἄρρεσι τὸ θῆλυ, ἐν δ᾿ αὖ
ταῖς θηλείαις τοὐναντίον)”. Pitágoras (fr. C3) afirma que “a saúde é a conservação da forma e
a doença a destruição desta (ὑγίειαν τὴν τοῦ εἴδους διαμονήν, νόσον τὴν τούτου φθοράν.)”. E,

48
Todas as traduções dos fragmentos pré-socráticos nesta seção são propostas por Bernabé (2011; 2013) em
espanhol.
49
Fr. B71: πῶς ὕδατος γαίης τε καὶ αἰθέρος ἠελίου τε κιρναμένων εἴδη τε γενοίατο χροῖά τε θνητῶν τοῖ’ ὅσα νῦν
γεγάασι συναρμοσθέντ’ Ἀφροδίτῃ ... (No combinar-se água, terra, éter e sol, sugiram formas e cores dos mortais
seres tantos como agora surgem, moldados por Afrodite...). Fr. B 73: ὡς δὲ τότε χθόνα Κύπρις, ἐπεί τ’ ἐδίηνεν ἐν
ὄμβρῳ, εἴδεα ποιπνύουσα θοῷ πυρὶ δῶκε κρατῦναι (Cípria, então, uma vez que havia intumescido terra com chuva,
entregou ao fogo ligeiro, para lhes fortalecer, as formas que ia modelando.).
50
Fr. B22.7 et seq: ἐχθρὰ <δ’ ἃ> πλεῖστον ἀπ’ ἀλλήλων διέχουσι μάλιστα γέννῃ τε κρήσει τε καὶ εἴδεσιν
ἐκμακτοῖσι (Os mais hostis são os que mais diferem um do outro em raça, em mescla e na forma em que se estão
modelados).
51
Fr. B125: ἐκ μὲν γὰρ ζωῶν ἐτίθει νεκρὰ εἴδε’ ἀμείβων (Aos vivos lhes tornavam em cadáveres, transformando
seu aspecto).
52
Fr B8: φαμένοις γὰρ εἶναι πολλὰ καὶ ἀίδια καὶ εἴδη τε καὶ ἰσχὺν ἔχοντα πάντα ἑτεροιοῦσθαι ἡμῖν δοκεῖ καὶ
μεταπίπτειν ἐκ τοῦ ἑκάστοτε ὁρωμένου· (A nós, que asseguramos que há muitas coisas eternas, dotadas de forma
e solidez, parece-nos que todas elas se alteram e se transformam).
43

novamente, Empédocles, que fala da “esplêndida forma/figura do sol (ὴελίοιο ὰγλαὸν εἶδος.)”
(fr. B27).
Como visto, são exatamente esses dois significados que se encontram nos primórdios
da palavra εἶδος com Homero e Hesíodo. Os filósofos pré-socráticos, ao que tudo indica,
tiveram o cuidado de não carregar nenhum desses sentidos à ἰδέα. Bernabé demonstrou,
contrário à opinião estabelecida desde Wilamowitz (1962, p. 249-250) 53, que ἰδέα não é
empregada em nenhum caso dentre os pré-socráticos para designar o aspecto exterior visível
das coisas. (2) Pelo contrário, quando é aplicada para se referir ao aspecto/aparência de algo, é
sempre a um tipo de forma que não se pode constatar pela vista, mas que só se pode imaginar,
ou ser concebida por meio da razão. Vê-se com isso Xenófanes, na passagem já citada nesta
pesquisa (B15), falando a respeito das formas dos deuses imaginados pelos animais, bem como
Protágoras também falando das formas dos deuses, afirmando sua incognoscibilidade:

περὶ μὲν θεῶν οὐκ ἔχω εἰδέναι, οὔθ᾽ ὡς εἰσὶν οὔθ᾽ ὡς οὐκ εἰσὶν οὔθ᾽ ὁποῖοί
τινες ἰδέαν.
Acerca dos deuses não posso saber nem que são nem que não são nem quantos
são naquilo que se refere a sua forma. (fr. B4)

Anaxágoras é explícito ao dizer que é algo que “é preciso pensar” para se compreender:

τούτων δὲ οὕτως ἐχόντων χρὴ δοκεῖν ἐνεῖναι πολλά τε καὶ παντοῖα ἐν πᾶσι
τοῖς συγκρινομένοις καὶ σπέρματα πάντων χρημάτων καὶ ἰδέας παντοίας
ἔχοντα καὶ χροιὰς καὶ ἡδονάς.
Nessa situação, é preciso pensar que em todos os compostos que se estão
formando há muitas e variadas coisas, assim como sementes de todas as
coisas, possuidoras de variadas formas, cores e sabores. (fr. B4)

E em Diógenes de Apolônia também é compreendido como um entendimento resultado


de uma inferência:

ἅτε οὖν πολυτρόπου ἐούσης τῆς ἑτεροιώσιος πολύτροπα καὶ τὰ ζῶια καὶ
πολλὰ καὶ οὔτε ἰδέαν ἀλλήλοις ἐοικότα οὔτε δίαιταν οὔτε νόησιν ὑπὸ τοῦ
πλήθεος τῶν ἑτεροιώσεων.

53
E também defendida por André Motte no caso das formas dos átomos de Demócrito como formas no sentido
físico, como já citado.
44

Dado que a diferenciação é multiforme, também são multiformes os animais


e numerosos, e não se assemelham uns aos outros nem em aspecto nem em
gênero de vida, nem em entendimento, por causa da multiplicidade das
diferenciações. (fr. B5)

Demócrito utiliza ἰδέα para denominar os átomos: “εἶναι δὲ πάντα τὰς ‘ἀτόμους ἰδέας’
ὑπ᾽ αὐτοῦ καλουμένας (Que todas as coisas são o que é chamado de ‘formas indivisíveis’)” (fr.
B167). Esta passagem, no entanto, apresenta-se bem controversa entre os estudiosos de
Demócrito, no que tange à qualificação das ἄτομοι ἰδέαι enquanto formas materiais visíveis ou
não. Bernabé se esquiva dessa questão, e assim comenta esse fragmento:

O uso de ἰδέαι para se referir aos átomos se encontra no mesmo terreno que
estamos pisando até agora. Não se trata de formas visíveis, como tampouco é
evidente para o conhecimento sensível que existam formas indivisíveis. Trata-
se de realidades que são alcançadas somente como resultado de uma operação
mental, de um postulado derivado de premissas racionais. (BERNABÉ, 2011,
p. 26)

A. Motte as classifica como “formas materiais invisíveis a olho nu” 54, e diz corroborar J. Salem
ao sustentar que essas são formas no sentido “físico” 55. Com essa afirmação, Salem está
combatendo acima de tudo a posição assumida por Hegel, em suas Lições sobre a História da
Filosofia, de que “o átomo pode ser concebido em um sentido material, mas é, apesar disso,
algo não sensível, puramente intelectual” 56, que sugere, como diz Salem, uma história das ἰδέαι
“totalmente redigida em um futuro anterior”, fazendo de Demócrito um tipo de “profeta
platônico”, assim como faz Carlos Diano, que considera as ἄτομοι ἰδέαι seres separados do
devir e conclui que o que faz Platão é uma “duplicação” das ἄτομοι ἰδέαι democritianas, uma
vez que “uma parte se despedaça com o ser do Meden [não-ser] 57 para constituir a << matéria
>>, a outra passa a constituir o mundo inteligível da essência” (DIANO, 1970a, p. 27). Desse
mesmo modo, Salem rejeita a interpretação de Alfieri, que afirma que as ἄτομοι ἰδέαι são

54
MOTTE et al., 2003, p. 54
55
Vide MOTTE et al., 2003, p. 40; SALEM, 1996, p. 40.
56
Da tradução para o espanhol de Wenceslao Roces Suárez (2002, p. 280).
57
Diano (1970a, p. 22) relaciona meden com a chora do Timeu de Platão, e em outro lugar explica: “É poiché
essere del non-essere non può esserlo se non in quanto, rispetto al non-essere essendo essere, rispetto all'essere
sia a sua volta non-essere e cioè in quanto essa sia insieme essere del non-essere e non essere dell'essere, essa
obbedisce in pieno alla logica dell'<< Uno che non è >> e di quel <<non-essere è non meno dell'essere>> che
è la chora” (DIANO, 1970b, p. 331).
45

“...visíveis, evidentemente, somente para a visão do intelecto” 58, e critica também a posição de
H. Wismann que afirma que “o átomo não é mais um corpo”, e que constitui sobretudo uma
“projeção intuitiva da realidade indivisível do um” 59. Não obstante, critica ainda Wisniewski
por adotar uma forçosa interpretação das ἄτομοι ἰδέαι, forjando uma expressão que não se
encontra em Demócrito ao combinar o adjetivo νοητά (“inteligível") com o substantivo σώματα
(“corpo"): “os átomos, cuja sede é o mundo abstrato, são corpos intelectuais” 60. Essa sua crítica
a Wisniewski é pertinente, pois é, sem dúvida, uma leitura forçadamente anacrônica afirmar
que essas ἰδέαι já seriam algo como as formas platônicas separadas do devir e constituidoras de
um mundo inteligível de essências. No entanto, para defender sua posição, Salem não só usará,
dentre outros exemplos, as ἰδέαι dos deuses de Xenófanes (B15) e de Protágoras (B4), as quais
obviamente não são formas “físicas”, além de fazer um recolhimento extremamente arbitrário
e de amostragem insuficiente para afirmar que a sua filologia demonstrou ser “natural” para
Demócrito assumir as ἰδέαι num “sentido físico” 61. A. Motte concorda sem nenhuma crítica ou
análise dos estudos de Salem ou daqueles com quem ele discorda, e toma sua posição apenas
no resguardo de evitar a possibilidade de se assumir a imaterialidade das ἄτομοι ἰδέαι e dar
razão para fazer de Demócrito essa temida antecipação platônica das ἰδέαι 62. O mais prudente,
dentre todos, parece Bernabé ao simplesmente afirmar que as ἄτομοι ἰδέαι são “realidades a
las que sólo se accede como resultado de una operación mental, de un postulado derivado de
premisas racionales”.
Em outro fragmento (B11) Demócrito se refere às formas de que pode ter o
conhecimento, as quais, obviamente, tampouco são perceptíveis visivelmente: “γνώμης δὲ δύο
εἰσὶν ἰδέαι, ἡ μὲν γνησίη, ἡ δὲ σκοτίη (Há duas formas de conhecimento, uma genuína, e a outra
bastarda)”.
Nota-se, portanto, como em nenhum dos exemplos as ἰδέαι podem ser constatadas
sensivelmente. Como afirma Bernabé: “O termo se utiliza, pois, em todos os casos no terreno
do imaginado, do deduzido, do suposto, não no do visto nem constatado com os sentidos”
(BERNABÉ, 2011, p. 27), e reforça mais adiante:

Seu uso é apenas solidário com a declaração de que o conhecimento real das
coisas é impossível, entendido como resultado da verificação pelos sentidos,

58
ALFIERI, 1953, p. 53.
59
WISMANN, 1980, p. 71-73.
60
cf. WISNIEWSKI, 1973 (especialmente p. 115, 117 e p. 119, n. 7).
61
SALEM, 1996, p. 40.
62
Vide MOTTE et al., 2003, p. 40.
46

de modo que ἰδέας são, em si mesmas, não-verificáveis. (BERNABÉ, 2011,


p. 28)

(3) O sentido classificatório foi atestado para ambas as palavras, contudo, Bernabé notou
sutis tendências delimitadoras de uso e aplicação, que não estão isentas de algumas raras
exceções, como se verá. (3.1) Observou que ἰδέα, especialmente no plural, acompanhada por
adjetivos que indicam variedade ou multiplicidade, é utilizada para realidades “que configuram
repertório, como se se referisse a uma classe dentro de um grupo de elementos diversos”
(BERNABÉ, 2011, p. 27). Para esses casos, ἰδέα possui valor classificatório, sempre
relacionado a um “inventário aberto” 63. Assim, Bernabé remete novamente ao fragmento de
Xenófanes (B15), onde cada grupo (ἕκαστοι) de animais pintaria uma imagem distinta de seu
deus. Ou, também, na passagem já citada de Protágoras (B4), ἰδέαν é um acusativo de relação
que se refere a uma pluralidade indistinta e supõe que cada deus teria sua própria ἰδέα.
Empédocles fala de μυρία (inumeráveis) e παντοίαις ἰδέηισιν (toda classe de formas), ao se
referir ao modo em que se produzem os seres mortais a partir das raízes:

τῶν δέ τε μισγομένων χεῖτ᾽ ἔθνεα μυρία θνητῶν, παντοίαις ἰδέηισιν ἀρηρότα,


θαῦμα ἰδέσθαι.
E como resultado de sua união se difundem inumeráveis estirpes de mortais,
ajustadas em toda classe de formas, maravilha de ver. (fr. B35.17)

Anaxágoras também se utiliza de παντοίας, na sua descrição da maneira pela qual o vórtice
configura os diversos seres existentes no mundo:

τούτων δὲ οὕτως ἐχόντων χρὴ δοκεῖν ἐνεῖναι πολλά τε καὶ παντοῖα ἐν πᾶσι
τοῖς συγκρινομένοις καὶ σπέρματα πάντων χρημάτων καὶ ἰδέας παντοίας
ἔχοντα καὶ χροιὰς καὶ ἡδονάς.
Nessa situação, é preciso pensar que em todos os compostos que se estão
formando há muitas e variadas coisas, assim como sementes de todas as
coisas, possuidoras de variadas formas, cores e sabores. (fr. B4)

E também Demócrito usa o mesmo adjetivo παντοῖος para se referir às formas dos átomos,
usando o modelo do turbilhão (δῖνος) para explicar a maneira em que se configuram os diversos

63
Cf. BERNABÉ, 2011; 2013, p. 102-103.
47

seres do mundo: “δῖνον ἀπὸ τοῦ παντὸς ἀποκριθῆναι παντοίων ἰδεῶν (Do todo se segregou um
turbilhão de variadas formas.)” (fr. B167). E ainda Diógenes de Apolônia, em um contexto
muito similar, o da formação dos seres, fala de animais πολύτροπα que não se parecem em sua
ἰδέα devido à multiplicidade das diferenciações da matéria (ὑπὸ τοῦ πλήθεος τῶν
ἑτεροιώσεων):

ἅτε οὖν πολυτρόπου ἐούσης τῆς ἑτεροιώσιος πολύτροπα καὶ τὰ ζῶια καὶ
πολλὰ καὶ οὔτε ἰδέαν ἀλλήλοις ἐοικότα οὔτε δίαιταν οὔτε νόησιν ὑπὸ τοῦ
πλήθεος τῶν ἑτεροιώσεων.
Dado que a diferenciação é multiforme, também são multiformes os animais
e numerosos, e não se assemelham uns aos outros nem em aspecto nem em
gênero de vida, nem em entendimento, por causa da multiplicidade das
diferenciações. (fr. B5)

Apesar de Bernabé enxergar uma forte tendência em distinguir o uso de ἰδέα quando
acompanhada por adjetivos que indicam variedade ou multiplicidade em contextos em que se
fala a respeito de um repertório indefinido de elementos, não vemos como isso implica que a
palavra denote sentido classificatório. Em todos os casos acima o sentido é de aspecto, como
bem reconhece Bernabé 64, e o fato de se tratar de uma multiplicidade de aspectos não justifica
um sentido classificatório, porém justifica sua indefinição, fazendo dessa multiplicidade
idealizável apenas, não constatável visivelmente, corroborando a distinção entre as teses 1 e 2.
Não se agrupa essa variedade sob alguma característica ou atributo que possibilite uma
classificação, a indistinção da variedade é, na verdade, um impeditivo para a classificação.
Há, contudo, uma única ocorrência onde atestamos, de fato, o sentido classificatório de
“tipo”, e justamente esta ocorrência se faz exceção na tese de Bernabé. Demócrito utiliza ἰδέα
para indicar que o conhecimento pode ser de dois tipos: “γνώμης δὲ δύο εἰσὶν ἰδέαι, ἡ μὲν
γνησίη, ἡ δὲ σκοτίη (Há duas formas de conhecimento, uma genuína, a outra bastarda)” (fr.
B11). As duas formas em questão são classificatórias enquanto “tipo”, cada qual agrupando
conhecimentos com uma certa característica distinta específica. A respeito dessa discrepância
na sua tese Bernabé comenta:

Neste caso Demócrito não usa ἰδέα para se referir aos átomos, mas para
designar as duas formas que o conhecimento pode ter, que tampouco são

64
Que não vê impedimento em atribuir mais de uma denotação semântica em uma mesma aplicação das palavras.
48

perceptíveis pela vista, mas que se referem a uma abstração. Neste caso
predomina sobre qualquer outro o valor classificatório do termo. (BERNABÉ,
2011, p. 27)

Verifica-se, portanto, com a própria explicação de Bernabé, que apenas a distinção entre as
teses 1 e 2 é corroborada.
(3.2) Εἶδος, segundo Bernabé, ao apresentar o sentido classificatório, na grande maioria
das ocorrências, refere-se a “inventários fechados” 65. Tem-se, com isso, Crítias, no já citado
fragmento B48, falando das formas feminina e masculina. Todavia, atestamos somente seu
sentido de aspecto, pois não se trata de uma classificação de dois tipos de formas distintas, mas
de uma relação comparativa da beleza entre dois diferentes aspectos.
Em Filolau εἶδος se refere a classificação fechada dos números, par, ímpar ou par-ímpar:

ὅ γα μὰν ἀριθμὸς ἔχει δύο μὲν ἴδια εἴδη, περισσὸν καὶ ἄρτιον, τρίτον δὲ ἀπ’
ἀμφοτέρων μιχθέντων, ἀρτιοπέριττον. ἑκατέρω δὲ τῶ εἴδεος πολλαὶ μορφαί,
ἃς ἕκαστον αὐταυτὸ σημαίνει.
De fato, o número tem duas classes (eidos) próprias, par e ímpar e uma terceira
de ambos mesclados par-ímpar. De cada classe (eidos) há muitas formas
(morphe), que cada uma assinala por si mesma. (fr. A29)

André Motte sugere que nesse fragmento está “prefigurada a distinção entre gênero (número),
espécie (εἶδος: ímpar e par) e indivíduos, cada um com sua μορφή própria” (MOTTE et. al., p.
56; cf. ibid., p. 29). De fato, de acordo com o que foi elaborado até então neste presente estudo,
esse fragmento se apresenta como um passo mais próximo na linha de desenvolvimento da
noção classificatória científica de “espécie”. Considerando uma certa estrutura organizada,
compreendemos que esta ocorrência de εἶδος possa até denotar um novo sentido classificatório
de “classe” 66, assim como traduz Bernabé. Ainda assim, parece-nos que εἶδος é propriamente
aplicado de acordo com o sentido classificatório corrente de “tipo”, pois faz referência ao
atributo comum que permite classificar uma multiplicidade variada de números e não a uma
categoria relativa à estrutura que agrupa esses elementos.

65
Cf. BERNABÉ, 2013, p. 102-103.
66
Como vimos anteriormente, “tipo”, primariamente, faz referência às características distintas de algo. “Classe”,
do latim classis, e raízes cal-, cla-, de clamo, grego καλέω, indicando a convocação de pessoas, e, portanto, pessoas
reunidas, denota, primariamente, divisões militares, como a frota marinha ou a terrestre, ou de classes sociais,
como a divisão do povo romano em seis classes feita por Sérvio Túlio (†539 a.C.). Refere-se, assim, propriamente,
a grupo ou agrupamento de diversos elementos sob uma categoria orientada por uma estrutura organizada.
49

Em Empédocles, no fragmento B23 já citado, onde menciona que os pintores podem


pintar formas semelhantes a todas as coisas (πασιν άλίγκια), está manifesta também a conotação
de aspecto, mas Bernabé trata essa ocorrência como também como portando um sentido
classificador, por se referir a um inventário fechado que é determinada pelo próprio filósofo ao
elencar as árvores, seres humanos, feras, pássaros, peixes e deuses. Essa lista, no entanto, refere-
se à πασιν άλίγκια e não às εἴδεα que se assemelham a elas. Ademais, com o próprio
Empédocles se encontram exceções à tese de Bernabé. São dois casos onde não se discerne se
está se referindo a um inventário aberto ou fechado. A dos seres incompatíveis:

ἐχθρὰ <δ’ ἃ> πλεῖστον ἀπ’ ἀλλήλων διέχουσι μάλιστα γέννῃ τε κρήσει τε καὶ
εἴδεσιν ἐκμακτοῖσι
Os mais hostis são os que mais diferem um do outro em raça, em mescla e na
forma em que se estão modelados. (fr. B22.7 et seq.)

E das formas de carne: “ἐκ τῶν αἷμά τε γέντο καὶ ἄλλης εἴδεα σαρκός (Deles surgiram o sangue
e as formas diferentes de carnes)” (fr. B98.5).
Há ainda um caso apenas em que Empédocles usa εἶδος para se referir a formas que são
παντοῖα, o adjetivo que normalmente é usado para inventários abertos:

τρίς μιν μυρίας ὧρας ἀπὸ μακάρων ἀλάλησθαι, φυομένους παντοῖα διὰ
χρόνου εἴδεα θνητῶν ἀργαλέας βιότοιο μεταλλάσσοντα κελεύθους.
Há de vagar por tempos três vezes incontáveis, longe dos felizes, na beleza
das formas mortais, variadas no tempo, enquanto vai alternando os
tempestuosos rumos da vida. (fr. B115.6-8)

Essa última exceção explicita, no entanto, o que nos parece ser o primordial discernimento de
uso das palavras. A passagem fala da “beleza das formas mortais”, que como visto em diversos
filósofos pré-socráticos, é de uso e significação exclusivos de εἴδος, e aqui, apesar de serem
παντοῖα, ainda se manteve o uso de εἴδος. Indica, desse modo, ser mais relevante para os pré-
socráticos que não se atribua a ἰδέα o sentido de (beleza da) forma exterior visível, mantendo a
exclusividade desse sentido a εἴδος. Isso, na verdade, explica todas as exceções encontradas por
Bernabé no uso classificatório de ambas as palavras. Quando Empédocles diz das “formas
50

diferentes de carne” 67 em B98.5, ou, em B22, das diferentes formas que as “raças” (γέννῃ)
foram modeladas, apesar da indefinição dos inventários nesses casos, é muito óbvio que estão
se referindo a formas visíveis que se apresentam no mundo sensível, o sentido 1 aqui
apresentado como exclusivo para εἴδος. O caso de Demócrito (B11), que usa ἰδέα para indicar
os dois tipos de conhecimento, apenas corrobora para entender essa distinção primordial das
palavras para os pré-socráticos, pois apesar de ser um inventário fechado é uma forma
conceitualizada, o sentido 2 exclusivo de ἰδέα. Esse ponto, não notado por Bernabé, reforça
ainda mais seus achados 1 e 2 e acrescenta a eles, na medida em que se explicita a primazia
dada pelos pré-socráticos em se referir a uma forma concreta como εἶδος e a uma forma
conceitualizada, ἰδέα.
Atestamos, portanto, o sentido classificatório de “tipo” para apenas uma ocorrência de
ἰδέα (fr. B11) e uma de εἶδος (fr. A29), ambas se referindo a inventários fechados e realidades
conceitualizadas, não visíveis. Não corroboramos às teses 3.1 e 3.2 de Bernabé, mas reforçamos
a 1 e a 2. Tem-se, contudo, o uso de εἶδος por Filolau como uma exceção à distinção 2. Quanto
a isso, há de se levar em conta o caráter idiossincrático e sectarista da comunidade pitagórica 68,
o que justificaria não empregarem a mesma distinção de uso que outros pré-socráticos estavam
fazendo. Ademais, observando que havíamos recolhido um registro de tal uso da palavra por
Heródoto, em História, 2.53, falando das εἴδεα dos deuses, nota-se que essa não era uma norma
de distinção necessária da língua em si, e sim uma arbitrariedade de um certo grupo de
pensadores.
(4) Bernabé identifica, ainda, que “ambos os termos aparecem em contextos
cosmogônicos e com um sentido configurador da matéria” (BERNABÉ, 2013, p. 103). Nesse
contexto, ele também reconhece que a aplicação de cada palavra apresenta uma sutil diferença.
(4.1) Quando se menciona uma divindade que atua como um demiurgo é usada a palavra εῖδη.
Os exemplos, já citados, são todos de Empédocles. A de Cípria-Afrodite que modela a matéria
(B71; B73), a dos pintores que manifestam formas pictóricas semelhantes a todas as coisas
(B23.5), e por último o Ódio que provoca a decomposição do cadáver (B125). (4.2) Já, quando
a ação sobre a matéria se exerce por agentes outros como a união das raízes (ῥιζώματα) de

67
Tanto André Motte como Alberto Bernabé concordam que “formas diferentes de carne” denotam formas
corporais. Motte, no entanto, sem justificar sua interpretação, atribui à εἶδος o significado de “espécie”: “diversité
des espèces corporelles” (A. MOTTE et al., 2003, p. 32). Desse modo, Empédocles estaria se valendo de uma
concepção técnica de classificação científica das diversas formas de carne, da qual não há no fragmento qualquer
indicação que justifique essa tradução. Bernabé por sua vez, parece-nos mais sensato ao afirmar o sentido
classificatório de “tipo” para εἶδος nessa passagem: “Parece que lo más verosímil es considerar que «carnes» se
refiere a diversos tipos de cuerpos de animales” (BERNABÉ, 2013, p. 100).
68
A esse respeito vide CORNELLI, 2011.
51

Empédocles (B35), ou as sementes (σπέρματα) em Anaxágoras (B4), ou o turbilhão (δῖνος) de


Demócrito (B167), os pré-socráticos utilizam sempre ἰδέα. A respeito dessa diferenciação de
usos das palavras no sentido configurador da matéria Bernabé comenta:

O motivo poderia ser que, enquanto se acredita que a atuação da divindade


demiúrgica criou o conjunto dos seres visíveis e conhecidos (pelo menos neste
estágio cosmogônico em que estamos), considera-se que os agentes aos quais
acabei de me referir têm infinitas possibilidades abertas para gerar inúmeras
formas, visíveis e conhecidas ou simplesmente imagináveis. (BERNABÉ,
2013, p. 103-104)

Não concordamos que as formas em questão possuam um sentido configurador da


matéria, mas apenas se encontram inseridas em um contexto cosmogônico em que a matéria é
configurada em diversos aspectos. Ademais, como se vê no trecho citado acima, o próprio
Bernabé acaba por apontar que o que de fato se passa é a primazia da distinção entre os usos 1
e 2.
Aqui já se tem um cenário concluído do que fizeram os filósofos pré-socráticos quanto
aos usos e significações de εἶδος e ἰδέα. Vê-se, com tudo o que foi recolhido e analisado nesses
pensadores uma importante e inovadora contribuição a esse vocabulário da forma, aplicada de
a formas de elementos principiais dentro de um contexto cosmológico. Até então, εἶδος e ἰδέα
jamais designaram os elementos primordiais (e até mesmo imateriais) de algo, nem mesmo no
outro grande âmbito científico da época, o da medicina, encontrado nos tratados do Corpus
Hippocraticum 69.
Essa nova aplicação em um contexto cosmológico é íntima ao núcleo fundacional de
uma tendência que se reconhece aflorando com os pré-socráticos. Isso se vê incipiente nas
críticas de Xenófanes e Protágoras, ao afirmarem que as ἰδέαι dos deuses são ficcionais ou
inacessíveis ao conhecimento, lembrando que os deuses são, pela tradição, princípios
cosmológicos. O quadro se completa com uso que fazem dessa nova significação ao
expressarem intelecções como: as quatro raízes de Empédocles, que são qualitativamente
imutáveis e são reunidas em proporções diversas por uma divindade (Afrodite) que modela os
seres vivos; os elementos primordiais numa infinidade de números, que são os átomos de
Demócrito; ou as formas dos números com Filolau. Ver a mesma significação dos termos num
aparente contraste filosófico de rejeição das formas principiais em Xenófanes e Protágoras e as

69
Como nota BOURGEY, 1953, p. 34.
52

constatações dessas formas por outros filósofos é o que explicita muito bem esta tendência
comum dentre os pré-socráticos. A inovação no vocabulário da forma surge justamente para
expressar suas novas propostas de não mais explicar a realidade em formas principiais
inacessíveis ao conhecimento, como os deuses mitológicos, para, então, encontrar formas de
elementos principiais acessíveis ao conhecimento, fundando, assim, o próprio pensamento
filosófico grego e ocidental.
Se se admite a proposta de Enrico Berti, que só se pode verdadeiramente falar de uma
filosofia da forma a partir de Platão, pois é onde se manifesta não mais somente “a tendência a
explicar todo fenômeno sensível por meio de um princípio inteligível, mas a fazer deste
princípio inteligível uma realidade, a realidade mais plena e a mais importante” 70, a importância
da contribuição filosófica desses pensadores ditos pré-socráticos no uso e significação do
vocabulário da forma é mais que evidente.
As significações do vocabulário da forma de εἶδος e ἰδέα se desenvolvem das suas raízes
de uma noção de aspecto/aparência, seja de seres sensíveis ou não, animados ou inanimados,
sem nunca as abandonar, apenas agregando novas significações que daí derivam. Começando
com a noção classificatória, que surge justamente da aparência das formas, na ordem do
sensível, que denota caráteres distintivos e comuns, identificando seres em tipos e classes, num
processo natural quase-técnico-intelectual de classificação, determinante para a importante
função filosófica que terá as formas como fator de identidade na diferença. Aqui, no entanto,
temos uma ressalva a ser feita no que tange à noção classificatória de “espécie” atribuída aos
pré-socráticos por Enrico Berti e André Motte nos seus esforços conjuntos: nosso estudo não
apresentou nenhuma evidência que corrobore essa afirmação. Verifica-se, desse modo, que
Enrico Berti, para adotar essa denominação, respalda-se numa afirmação equivocada de que
Gillespie já havia identificado essa significação classificatória de “espécie” nos escritos do
Corpus Hippocraticum (MOTTE et. al., 2003, p. 653) 71. Além disso, como visto, André Motte,
quem de fato realiza a análise dos fragmentos pré-socráticos, apresenta somente em um único
fragmento – Filolau, A29 – a sucinta interpretação de que ali se apresenta uma “prefiguração”
da noção de “espécie”, e, com isso, aplica, irrestritamente e sem maiores justificativas,
“espécie” em outras traduções tanto de εἶδος como ἰδέα. Entre a prefiguração e a sua realização

70
Nas conclusões gerais do volume de MOTTE et al., 2003, p. 660.
71
Assim diz Gillespie: “These examples, I submit, show that in the Hippocratean usage εἶδος has advanced much
further in the direction of the purely logical meaning of kind or class than Prof. Taylor allows. The writers are not
far removed from the attitude of the modern unmetaphysical Englishman, who applies such words as 'kind,' 'sort,'
'form,' 'type,' 'class,' without very much difference, but still in a vague, unconscious manner chooses the one that
he feels to be most appropriate.” (GILLESPIE, 1912, p. 186). Note que em nenhum momento a palavra “espécie”
é mencionada.
53

existe, todavia, a diferença do desenvolvimento de uma organização comparativa e relacional


tal, que faz com que seja anacrônico assumir essa noção de classificação científica em qualquer
uma das ocorrências verificadas. Esse fragmento de Filolau, em especial, apresenta-se, contudo,
como o exemplo mais próximo da noção de espécie constatado até então pela presente pesquisa.
Nos moldes das definições de significações de εἶδος e ἰδέα apresentadas por Enrico Berti, não
admitimos, portanto, a denominação de “espécie” para a última categoria apresentada,
tampouco “classe” 72, segundo nosso entendimento. Ademais, a presente pesquisa revelou uma
noção comportamental, de atitude perante outra pessoa ou uma situação, para ambos os termos.
Essa é, portanto, a carga semântica que Platão herdará para desenvolver sua filosofia da Forma.

72
Vide nota 66 acima.
55

2 SÓCRATES E A FILOSOFIA DAS FORMAS

A questão proposta de se entender como teria sido o papel de Sócrates em relação ao


desenvolvimento do vocabulário das formas traz à tona muitas dificuldades, começando pelo
fato de que não há obras ou registros da autoria de Sócrates que tenham sobrevivido até os dias
de hoje; a tradição alega que Sócrates não deixou nada escrito. Por esse motivo, estudiosos se
voltaram aos escritos de Platão, Xenofonte e, em alguns casos, também de Aristófanes como as
principais fontes de credibilidade em relação à filosofia de Sócrates, tomando como base relatos
de Aristóteles a respeito dos Σωκρατικοι λογοι (discursos socráticos). As dificuldades, no
entanto, continuam numerosas.
Na conclusão de seu capítulo a respeito de Sócrates, Diógenes Laércio (Vidas, II.47)
afirma que de todos os sucessores de Sócrates, os chamados socráticos, sete são os mais
famosos: Platão, Xenofonte, Antístenes, Aisquines, todos esses de Atenas, e também Fédon de
Elis, Euclides de Megara 73, e Aristipo de Cirene. Destaca, entretanto, os três primeiros como
sendo os mais importantes. Diferentemente de seu mestre, todos os sete deixaram escritos, mas
só se preservaram os de Platão e Xenofonte 74. É por esse motivo que, atualmente, ao se falar
dos socráticos, tem-se, primariamente, esses dois autores em mente. No entanto, estudiosos
dedicaram-se em recolher e tentar reconstruir através de testemunhos de outros autores da
antiguidade o que poderia ser aprendido dos ensinamentos dos pensadores cujas obras se
perderam 75. Mas, como explica Klaus Döring:

Como já mencionado, somente os diálogos de Platão e Xenofonte foram


preservados; de quase todos os outros, nada é conhecido a não ser os títulos.
Existem alguns poucos diálogos dos quais podemos pelos menos construir o
enredo de modo muito precário (DÖRING, 2011, p. 25).

Tais condições fazem da exegese da literatura socrática um campo especulativo um tanto


obscuro, muitas vezes divergente e até contraditório devido às discordâncias sobre as insolúveis
discrepâncias e confiabilidade das fontes. Como afirma Dorion (2011), é impossível qualquer

73
Não confundir com o famoso matemático que viveu em Alexandria 100 anos depois.
74
De acordo com Boys-Stones e Rowe (2013, p. vii), há em torno de duzentos trabalhos conhecidos escritos por
aqueles que eram, de algum modo, seguidores de Sócrates, mas que não chegaram até os dias atuais, muitos dos
quais escritos na década após a morte de Sócrates e antes da fundação da Academia.
75
Todos os fragmentos e testemunhos sobre Sócrates e o movimento socrático encontram-se na coleção “Socratis
et Socraticorum reliquiae” de Gabriele Giannantoni (1990). Para um apanhado do quanto se apreende das vidas,
escritos e ensinamentos dos sete socráticos vide DÖRING, 1998.
56

tentativa de harmonização dos vários logoi: há contradições inconciliáveis entre Platão e


Xenofonte, por exemplo, o fato de que o Sócrates de Xenofonte “raramente pratica o elenchus,
nunca admite sua ignorância em relação aos assuntos mais importantes e, em contraste com o
Sócrates de Platão, nunca identifica uma missão filosófica” (DORION, 2011, p. 9-10); qualquer
conciliação superficial pode “mascarar discrepâncias mais fundamentais” (DORION, 2011, p.
10). O fato é que os escritos desses autores certamente são, dentre outras coisas, também
inspirados por ambições literárias, o que eclipsa o tema do “Sócrates histórico” e do pensamento
socrático em geral, prejudicando qualquer avaliação adequada da herança filosófica de Sócrates
como tal. A questão da “natureza fictícia dos logoi sokratikoi” foi primeiramente exposta por
Karl Joël na Alemanha no fim do séc. XIX (1895 - 1896) 76.
Praticamente, toda investigação que diz respeito a Sócrates depende de relatos indiretos
registrados nos assim chamados Σωκρατικοι λογοι, identificados a partir da descrição de
Aristóteles da filosofia do Sócrates histórico e seus discursos. Na sua obra Poética (1447b9 et
seq.), ele define os Σωκρατικοι λογοι como um gênero literário em que a ποίησις do diálogo
socrático se assemelha às μίμησις 77 que faziam Sófron e seu filho Xenarco, autores das
comédias sicilianas 78. Há, ainda, uma definição mais abrangente em outro lugar:

Ἠθικὴν δὲ χρὴ τὴν διήγησιν εἶναι: ἔσται δὲ τοῦτο, ἂν εἰδῶμεν τί ἦθος ποιεῖ.
ἓν μὲν δὴ τὸ προαίρεσιν δηλοῦν, ποιὸν δὲ τὸ ἦθος τῷ ποιὰν ταύτην, ἡ δὲ
προαίρεσις ποιὰ τῷ τέλει: διὰ τοῦτο δ᾽ οὐκ ἔχουσιν οἱ μαθηματικοὶ λόγοι ἤθη,
ὅτι οὐδὲ προαίρεσιν (τὸ γὰρ οὗ ἕνεκα οὐκ ἔχουσιν), ἀλλ᾽ οἱ Σωκρατικοί: περὶ
τοιούτων γὰρ λέγουσιν.
E a narrativa deve ser de caráter moral, e de fato será assim, se soubermos o
efeito disso. Uma coisa é deixar claro o nosso propósito moral; pois assim
como é o propósito moral, é também o caráter, e assim como é a finalidade,
também é o propósito moral. Por essa razão os tratados matemáticos não
possuem caráter algum, pois também não possuem propósito moral; pois não
possuem finalidade moral. Mas os diálogos Socráticos têm; pois eles discutem
tais questões. (ARISTÓTELES, Retórica, 1417a) 79

76
Como explica DORION, 2011, p. 7.
77
Contudo, Aristóteles deixa claro que as semelhanças se limitam às μίμησις, não havendo qualquer outra
afinidade estilística.
78
Sófron e seu filho Xenarco de Siracusa (século V a.C.) foram autores de prosa rítmica que representava
momentos cotidianos de homens e mulheres de maneira caricatural. Conforme o relato de Diógenes Laércio (Vidas,
III.18), Sófron teve uma grande influência sobre Platão, diz ele: “segundo consta, achou-se um exemplar dos
Mimos sob seu travesseiro”. Todas as traduções de Diógenes Laércio nesta pesquisa são de Mário da Gama Kury
(1988).
79
Da tradução para o inglês de J. H. Freese (2006) no vol. 193 da coleção Loeb Classical Library.
57

Aristóteles considera, então, que os traços morais de caráter (ἦθος) são cruciais para
esse gênero literário dos Σωκρατικοι λογοι. Enfatizando a fala de Aristóteles, Ford (2008, p.
35) afirma que a presença dos ἠθοποιοί é o que distingue os diálogos socráticos em comparação
com os outros e, de modo mais abrangente, confere a particularidade dos Σωκρατικοι λογοι. A
função dos ἠθοποιοί é lidar com os atributos do caráter (ἦθος) de maneira representável através
do diálogo.
Apesar do testemunho de Aristóteles ser uma fonte fundamental para essa questão, há
de se lembrar que ele nunca teve contato direto com Sócrates, mas sim com seus discípulos,
fato que exige cautela quanto à confiabilidade de seus relatos 80. Ainda assim, seus
apontamentos são a principal fonte para reconhecer a adaptação que Platão fez da “doutrina
socrática” em seus textos. Nesta presente pesquisa, consideramos que ainda somos dependentes
de representações literárias de Sócrates. Nelas, pode-se até investigar indícios dos pensamentos
da figura histórica, tendo em vista que qualquer reconstrução feita a partir de uma personagem
não será confiável e nem realista, e o mesmo se aplica à versão de Sócrates que escreve Platão.
Essas representações são literárias e devem ser tratadas como tal e, por esse motivo, uma
investigação do vocabulário das formas não se faz válida no caso de Sócrates. Reconhecemos,
no entanto, que muito provavelmente os discípulos honrariam seu mestre consagrando uma
fidedignidade nuclear à sua personagem, o que torna possível uma abordagem comparativa das
diferentes representações de Sócrates a fim de encontrar traços indicativos significantes de sua
filosofia 81. Desse modo, mesmo as disparidades e contradições devem ser consideradas como
tais por se apresentarem como representantes de discussões muito provavelmente propostas
pelo mestre.

...os logoi sokratikoi nos oferecem somente uma “difração” do caráter e das
ideias de Sócrates ou, noutras palavras, das interpretações diversas e muitas

80
Dorion (2011, p. 11) critica a esperança de Karl Joël de que se possa utilizar o relato de Aristóteles para resolver
o problema das disparidades e falta de consenso dos sokratikoi logoi. A esperança de Karl Joël se pauta no fato de
Aristóteles não estar produzindo um sokratikos logos e, portanto, apresenta um relato objetivo de Sócrates. Dorion
refuta essa ideia explicando que o relato de Aristóteles não é nem objetivo, tampouco imparcial, além de ter um
“escopo extremamente estreito”, sendo silencioso a respeito de temas como o daimon, a enkrateia, a piedade, o
elenchus, o engajamento político, o gnôthi seauton, e a lex talionis.
81
Para Dorion (2011, p. 20): “…comparative exegesis is rather, on the historical level, the most appropriate
approach given the nature of the logoi sokratikoi. If the various Socratics composed the logoi sokratikoi not only
from an apologetic perspective but also in order to promote their own respective representations of Socrates in
opposition to representations put forth by other Socratics, only comparative exegesis, freed from the Socratic
problem, is really up to the task of grasping and interpreting the differences among the logoi sokratikoi that are,
in a way, the very reason for their existence and diversity.”
58

vezes conflituosas que seus discípulos forneceram de sua vida e ideias.


Somente a exegese comparativa parece estar numa posição adequada para
identificar os temas socráticos que foram a fonte de tal difração e, acima de
tudo, relatar de modo compreensivo cada uma das interpretações divergentes
sobre cada tema encontrado na literatura socrática. (DORION, 2011, p. 20-
21) 82

Assim sendo, essa é a abordagem que adotaremos para avaliar o papel de Sócrates no
desenvolvimento da filosofia das formas, tendo em conta, primariamente, os Σωκρατικοι λογοι
considerados como principais representantes desses textos: Xenofonte e Platão. Há, ainda,
dentre os recolhimentos já realizados dos ensinamentos perdidos dos socráticos, um importante
aspecto da filosofia de Antístenes em relação a epistemologia que se faz relevante e que também
será levado em consideração 83. Antes, contudo, faz-se necessário verificar não só em que
medida esses escritos oferecem representações válidas de Sócrates, e nisso incluímos
Aristófanes, mas, também, de que modo esses escritos podem ser considerados para o propósito
de nossa investigação em relação à filosofia das formas. Nesse sentido veremos que os relatos
de Aristóteles são, novamente, fundamentais, e, portanto, devem também ser considerados.

2.1 O Sócrates de Aristófanes

Supõe-se que Aristófanes seja o primeiro a deixar evidência literária sobre a vida de
Sócrates, ainda que de maneira caricatural. Porém, a tradição antiga não o considera uma fonte
confiável, uma vez que sua representação cômica de Sócrates difere da maioria dos relatos
socráticos e muito provavelmente contribuiu em larga escala para o seu desprestígio. Apesar
de todos os aspectos difamatórios, alguns estudiosos acreditam ser possível extrair algum valor
dela por ser quase certo que ele já produzia sua caricatura literária de Sócrates enquanto este
ainda era vivo 84. Nesse sentido, Clay (1994) afirma que é possível encontrar resquícios do
diálogo socrático nos textos de Aristófanes, dados alguns traços também apresentados por
outros socráticos:

82
Kahn (1990, p. 287), Morrison (2000b, p. 780) e Vander Waerdt (1993, p. 4–5) também argumentam a favor
desse projeto de exegese comparativa.
83
Adiante em 3.3. Sobre Antístenes em geral vide: BLAISE et al., 1986; DORING, 1998, p. 268–280; TSOUNA,
1994, p. 369–377; KALOUCHE, 1999. Para os fragmentos e testemunhos sobreviventes vide: GIANNANTONI,
1990, v.2, p. 137-226, e tradução comentada de PRINCE, 2015.
84
Supostamente, a comédia Nuvens, que apresenta uma caricatura cômica de Sócrates, teve duas edições nos anos
423 e 421 a.C. (cf. DOVER, 1989, p. XXIX); Sócrates morreu duas décadas depois, em 399 a.C.
59

O caráter da representação de Aristófanes da indagação socrática é coerente


com o que sabemos sobre suas conversas conforme relatadas pelos socráticos
que escreveram num período posterior. Sócrates trabalha por pergunta e
resposta em vez de discursos longos e retóricos; ele prefere a βραχυλογία e
sua preocupação é com a rapidez do aprendizado e a memória daqueles que
viriam a ser seus associados. (CLAY, 1994, p. 38)

Porém, em que medida é possível distinguir um conteúdo potencialmente alinhado ao


Sócrates histórico em obras que são ficcionais, de teor cômico e concebidas para esse efeito,
como as de Aristófanes? N’As Nuvens, alguns estudiosos atribuem ao pensamento socrático o
que enxergam como um indício de nova concepção de alma (ψυχή) na obra de Aristófanes 85.
Assim Eric Havelock explica a esse respeito: “psyche, em seus significados relacionados de
fantasma, espírito, coragem, sangue vital, sempre foi praticamente a fonte da vida no ser
animado” (HAVELOCK, 1972, p. 9) 86. No entanto, no decorrer da peça, o termo ganha um
significado diferenciado 87. Segundo Havelock, “no grego clássico, até os dias de Sócrates,
[psyche] certamente tinha muitas propriedades, mas a capacidade de usar a inteligência e de
pensar não estava dentre elas” (HAVELOCK, 1972, p. 16). Ele demonstra, ainda, que se pode
ver um novo uso do pronome reflexivo αὐτόν / ἑαυτόν; ele considera essa novidade como
paródia de uma sintaxe verbal de origem muito provavelmente socrática, uma vez que
Aristófanes era contemporâneo de Sócrates, e que “os mesmos papéis são atribuídos ao
pronome reflexivo, os mesmos verbos de intelecção reaparecem para conectar o sujeito com o
si-mesmo enquanto objeto” (HAVELOCK, 1972, p. 15). Havelock acrescenta ainda que, se
existem paródias de tragédias, por que não existiriam também do discurso filosófico, tendo a
linguagem da elite intelectual da época como inspiração? 88
Como explica Konstan (2011), enquanto personagem literária de Aristófanes, Sócrates
parece um aglomerado de características reconhecíveis em figuras distintas, “dentre eles Damon
(métrica, cf. A República, 400a), Protágoras (gramática), Hípon de Régio (céu como uma
tampa), e Diógenes de Apolônia, que mantinha o ar como o princípio fundamental de todas as
coisas” (KONSTAN, 2011, p. 86). Desse modo, o Sócrates de Aristófanes é, na verdade, “uma
contrafigura para as novas correntes de pensamento crítico de maneira geral” (ibid., p. 87).

85
E.g. HAVELOCK, 1972; SARRI, 1997.
86
Cf., por exemplo, Os Acarnânios, 357; Os Cavaleiros, 457.
87
As Nuvens, 319, 415, 420, 712, 719, 1049.
88
Cf. HAVELOCK, 1972, p. 16–17.
60

Paul Vander Waerdt (1994, p. 61), defende que, mais especificamente, n’As Nuvens,
Sócrates é representado como seguidor das ideias de Diógenes de Apolônia, e considera ainda
que isso é representativo do verdadeiro Sócrates histórico no período em que As Nuvens foi
escrito, quando este estaria mais interessado não em ética, mas na filosofia física (cf. VANDER
WAERDT, 1994, p. 65-75). Há, de fato, uma breve passagem no Fédon (96a-97b) em que o
Sócrates jovem (νέος) é retratado com um fascínio pela “sabedoria que eles chamam de
investigação da natureza (τῆς σοφίας ἣν δὴ καλοῦσι περὶ φύσεως ἱστορίαν)” 89, mas que, por
apenas encontrar explicações que lhe trouxeram uma grande dessatisfação, logo chegou à
conclusão de que era inapto (ἀφυὴς) para esses estudos que tanto o intrigavam. Alguns
estudiosos consideram o interesse do Sócrates de Aristófanes na cosmologia e outras ciências
como um reflexo desse entusiasmo juvenil, ainda que reconheçam a origem diversa de muitas
das doutrinas atribuídas a Sócrates 90.
Porém, como aponta Konstan (2011, p. 85), o Sócrates maduro de Platão e de Xenofonte
explicitamente se distancia dessa opinião. Em forte contradição com a tendência de associar o
Sócrates histórico ao de Aristófanes, em alguns diálogos da juventude de Platão, como na
Apologia (e também cf. Xenofonte, Symposium, 6 e Oeconomicus, 11), é bem clara a refutação
de que Sócrates nutria qualquer interesse pelas filosofias naturais. Além disso, contrário ao que
afirma Vander Waerdt, no período de composição d’As Nuvens Sócrates teria em torno de 45
anos de idade, já distante do que poderia ser considerado jovem. Sendo assim, considerar
Aristófanes como fonte para entender o pensamento de Sócrates invalida o que é encontrado
nos escritos de Platão e vice-versa – parece não haver consenso possível. A opinião de Konstan
soa a mais sensata: Aristófanes, de fato, misturou diversos aspectos da busca intelectual, “da
argumentação eurística à especulação sobre os deuses, astronomia, fenômenos metereológicos,
biologia, poesia, e gramática” (KONSTAN , 2011, p. 85), para compor a personagem de
Sócrates que, embora não tenha ele mesmo escrito qualquer coisa, é plausível que tenha
participado ativamente de discussões sobre temas variados, de modo que esse pastiche
caricatural viesse a calhar muito bem como entretenimento a seus contemporâneos.

2.2 O Sócrates de Xenofonte

89
Tradução nossa.
90
Vide GELZER, 1956, p. 69-69, 83-84; e mais recentemente MORALES TRONCOSO, 2001.
61

De acordo com o relato de Diógenes Laércio, Xenofonte foi supostamente o primeiro


socrático a publicar alguns exemplos da forma dialógica socrática, tais como Apologia,
Simpósio e Memorabilia 91. Nesses textos, pode-se encontrar evidência das conversas de
Sócrates com seus companheiros em que a forma dialógica ocorre com frequência, e é possível
considerá-los como sendo os primeiros textos do gênero de memórias pessoais na literatura
socrática. Xenofonte foi, por um período significativo, considerado o autor socrático de maior
credibilidade. Até o séc. XVIII, o consenso era de que o Sócrates de Xenofonte seria mais
próximo de uma figura “histórica” do que aquele representado por Platão. Essa abordagem se
originou na tradição helenística, para a qual o Sócrates de Xenofonte era “mais útil”, já que os
doxógrafos da época buscavam diversos métodos de relacionar Sócrates com a filosofia
helenista. A afeição de Sócrates pelas questões éticas ou pelas práticas filosóficas lhes pareciam
“mais atraentes”, e o relato de Xenofonte se encaixa bem nesse propósito.
A hegemonia do Sócrates de Xenofonte como base para a construção histórica
permaneceu até a metade do século XIX. A partir de uma dúvida suscitada por Schleiermacher,
os estudiosos passaram então a tratar seus escritos com maior reserva. Na sua visão romântica,
Schleiermacher não considerava a representação de Sócrates feita por Xenofonte suficiente ou
sequer palpável, pois o interesse nas questões éticas que ela incorpora não eram úteis para o
desenvolvimento do discurso filosófico. Sua busca era por um Sócrates mais fascinante,
literário, mais filosófico. Dorion (2011), que aponta as teses de Schleiermacher como platônicas
e erráticas, resume:

Porém, onde Schleiermacher tenciona encontrar essa outra dimensão de


Sócrates que supostamente está faltando nos textos de Xenofonte?
Schleiermacher pretende encontrar a dimensão mais filosófica de Sócrates –
filosófica no sentido moderno e especulativo do termo – em Platão, é claro.
(DORION, 2011, p. 4)

91
Diógenes Laércio diz a esse respeito: “Conta-se que Sócrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastão
para barrar-lhe o caminho, enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espécie de alimentos. Obtida a resposta
Sócrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tomavam excelentes. Diante da perplexidade de Xenofonte,
Sócrates disse: ‘Segue-me, então, e aprende.’ Desde esse momento ele passou a ser discípulo de Sócrates. Foi o
primeiro a tomar notas das conversas do mestre e publicá-las, numa obra intitulada Memorabilia
(Ἀπομνημονευματα)” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, II.48).
62

Apesar da tendência romântica, “Über den Werth des Sokrates als Philosophen”
(1818) 92, o texto de Schleiermacher tem influenciado os estudos socráticos desde a sua
publicação. Recentemente, contrário a esse ponto de vista, Leo Strauss foi quem, no fim de sua
vida, dedicou três livros e um grande número de artigos a Xenofonte no intuito de resgatá-lo do
“forte preconceito que surgiu no decorrer do século XIX e que está firmemente estabelecido
nos dias de hoje”, que o considera “tão simplório e mente-fechada ou filisteu que não pode
haver compreendido o cerne ou a profundidade do pensamento de Sócrates”. (STRAUSS, 1973,
p. 83). Assim sendo, ao nos afastarmos das pressuposições tendenciosas de Schleiermacher e
assumirmos Xenofonte como uma fonte válida para aquilo que concerne à presente
investigação, verifica-se que não há, no Sócrates de Xenofonte, traços de uma filosofia das
formas. Assim sendo, é esta evidência que por si se apresenta relevante para nossa investigação
a respeito da filosofia socrática e maiores detalhes a esse respeito serão retomados adiante 93.

2.3 O Sócrates de Platão

Gregory Vlastos é, sem dúvida, o decano dos socraticistas contemporâneos. Ele é


influente tanto por determinar a questão “desenvolvimentista” do pensamento de Platão, a que
Fronterotta (2007, p. 37) se refere como “quase unânime” entre os acadêmicos de língua
inglesa, quanto por estabelecer as bases da organização cronológica dos textos de Platão
dominante nos estudos contemporâneos. Vlastos fornece uma argumentação muito bem
elaborada para a afirmação de que Platão, nos primeiros diálogos de sua juventude, tinha uma
posição filosófica diferente daquela tomada nos diálogos do período de sua maturidade. Numa
série de artigos seminais e então no seu livro “Socrates: Ironist and Moral Philosopher” (1991),
sustentou que no primeiro período a filosofia dos diálogos é puramente socrática, derivada do
Sócrates histórico, e que aos poucos se desenvolve e somente a partir de um segundo momento,
na sua maturidade, encontra-se uma filosofia propriamente platônica 94. Diz o próprio Vlastos a

92
Utilizamos nesta pesquisa a tradução para o inglês com o título “On the Worth of Socrates as Philosophy”
publicada em PLATON. The Apology of Socrates, the Crito and part of the Phaedo, ed. W. Smith. Londres: John
Murray, 1876.
93
Vide cap. 3.2.1.
94
Schleiermacher (1836, p. 16, 44) foi o primeiro a afirmar, sem fornecer embasamentos, que alguns dos diálogos
de Platão são “juvenis” e foram escritos “na mocidade”, e dentre esses estavam incluídos o Fedro, o Protágoras e
o Parmênides. Quase um século depois, Burnet sustenta que: “I have tried to show that what are known as the
‘Socratic dialogues’ of Plato were written in the years just after the death of Socrates—I cannot believe that any
of them were written before that—and that his chief purpose in them was to give as complete and faithful a picture
as he could of his master’s personality and teaching” (BURNET, 1928, p. 48). Dentre os muitos seguidores de
Burnet, Guthrie (1975, p. 67) tem maior destaque. Atualmente, Taylor resume da seguinte forma o que ele assume
como sendo o “paradigma atual” para se entender Sócrates e Platão: “Plato’s immediate reaction to Socrates’
63

respeito dessas posições filosóficas: “...são tão diversas entre si em método e conteúdo que a
comparação entre ambas é tão contrastante quanto se comparadas a uma terceira filosofia,
começando pela de Aristóteles” (VLASTOS, 1991, p. 46). Apresenta, assim, sua organização
do corpus platônico como segue 95:

1. Diálogos do período inicial de Platão, cujas subdivisões são:


a) Diálogos elênticos: Apologia, Cármides, Críton, Eutífron, Górgias, Hípias
Menor, Íon, Laques, Protágoras e República I;
b) Diálogos transicionais: Eutidemo, Hípias Maior, Lísias, Menexeno, e
Mênon.
2. Diálogos médios: o Crátilo, Fédon, Simpósio, República II-X, Fedro,
Parmênides e Teeteto.
3. Diálogos tardios: o Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis.

Dando embasamento à sua tese, ele lista dez pontos de contraste entre a filosofia
socrática, “encontrada somente nos diálogos de juventude”, e a platônica, “encontrada somente
nos diálogos de maturidade” (VLASTOS, 1991, p. 46) 96. Por comodidade, utiliza-se das
nomenclaturas “SocratesE” e “SocratesM” referindo-se, respectivamente, à personagem
Sócrates dos diálogos de juventude e de maturidade, à filosofia socrática em comparação com
a platônica. São os contrastes:
1 - SocratesE é um filósofo moral, exclusivamente; já SocratesM é metafísico, filósofo
da ciência, epistemologista, além de versar sobre diversas outras áreas de conhecimento da sua
época. 2 - SocratesM possui uma teoria metafísica das Formas separadas das instâncias
sensíveis, assim como uma teoria da alma separada; SocratesE, não. 3 - SocratesE busca o
conhecimento de modo elêntico, afirmando nada saber, enquanto SocratesM busca o
conhecimento demonstrativo, e declara tê-lo encontrado. 4 - SocratesM tem uma teoria da alma
tripartida; enquanto SocratesE não só não tem, como essa teoria enfraquece sua crença de que
a akrasia é impossível. 5 - SocratesE não demonstra interesse algum por matemática, enquanto
SocratesM tem grande domínio sobre o conhecimento matemático de sua época. 6 - SocratesE

death was to compose a series of works (Apology, Crito, Gorgias, Euthyphro, and Meno) linked by their content
more or less immediately to Socrates’ trial and its aftermath” (TAYLOR, 2002, p. 77). Vale notar que Taylor
simplesmente omite o Fédon, o qual não é menos imediatamente relacionado ao julgamento e morte de Sócrates
que os diálogos anteriormente listados.
95
Cf. VLASTOS, 1991, p. 46-47.
96
Afirma ainda que poderia ter listado muitos outros contrastes “se [ele] pretendesse completude” (VLASTOS,
1991, p. 82).
64

tem uma concepção de filosofia populista; SocratesM, elitista. 7 - SocratesM tem uma teoria
política elaborada que SocratesE não possui. 8 - SocratesE evidencia o homoerotismo na sua
concepção de amor; para SocratesM, o amor tem um fundamento metafísico na Forma da
Beleza. 9 - Para SocratesE a piedade é a servidão dos homens a uma divindade de caráter
rigorosamente ético e exigente. Sua religião pessoal é prática; para SocratesM, a religião é
mística, focada na contemplação, e centrada na comunhão com as Formas. 10 - SocratesE tem
um método adversativo de fazer filosofia; SocratesM é didático, esclarece a verdade para seus
interlocutores, e tem a sua teoria metafísica sujeita a críticas no Parmênides, o que o faz
recomeçar esse seu pensamento no Teeteto.
Vlastos compreende que somente através da análise dos diálogos platônicos não seria
possível mostrar que o Sócrates dos diálogos de juventude (SocratesE) e o Sócrates da
maturidade (SocratesM) representam as filosofias de duas figuras históricas diferentes em vez
de duas filosofias diferentes que o próprio Platão sustentou em momentos distintos de sua vida.
Para isso, se apoia também no testemunho de Aristóteles e Xenofonte para afirmar que
SocratesE é, de fato, uma representação do Sócrates histórico. Muito ciente e honesto a respeito
da dificuldade que tem em mãos, Vlastos expõe que os testemunhos de ambos pensadores
somente apoiam as quatro primeiras teses; nas seis remanescentes, ele não oferece nenhuma
evidência externa para fundamentá-las 97.
Em suma, para Vlastos, a característica distinta dos diálogos platônicos é que Sócrates
tem o papel de um companheiro que sempre se apresenta no diálogo com certa opinião pessoal
(δόξα) ou convicção acerca de determinado exemplo de virtude. O Sócrates de Platão examina,
então, o conhecimento (ἐπιστήμη) de seu interlocutor e, finalmente, ao fazer questionamentos
buscando respostas, juntos eles geralmente chegam a uma situação aporética, ponto esse no
qual a maioria dos diálogos de juventude se encerra. Essa conclusão aporética de um diálogo
serve como inspiração; através desse prisma de falta do conhecimento, o Sócrates de Platão
encoraja seus companheiros a uma dúvida perseverante de suas próprias opiniões (δόξαι), que,
em muitos casos, nem são suas próprias, mas irrefletidamente apropriadas de outrem. O
questionamento de Sócrates intenta conduzi-los a uma diligência consigo mesmos (ἐπιμέλεια
ἑαυτοῦ), o que é parte crucial de sua concepção do viver uma “vida examinada”.
No centro das atenções da versão platônica do diálogo socrático não só se encontra,
portanto, uma empreitada em busca do conhecimento (ἐπιστήμη), ou um mero exercício e

97
Cf. VLASTOS, 1991, p. 81-106. Dorion (2011, p. 14-6), no entanto, argumenta que Vlastos faz uso equivocado
da evidência de Xenofonte e Aristóteles com o intuito de fortalecer sua hipótese de que SocratesE é o Sócrates
histórico.
65

aperfeiçoamento de uma arte ou habilidade (τέχνη), mas pode-se verificar nos diálogos de
juventude de Platão um método através do qual Sócrates elabora esse tipo de exame, o
conhecido elenchus (ἔλεγχος) 98. Vlastos o definiu da seguinte maneira:

O elenchus socrático é uma busca pela verdade moral usando argumentação


adversa por pergunta-e-resposta, na qual uma tese é debatida somente se for
apurada como sendo a crença de quem responde e é somente considerada
refutada se sua negação é deduzida de suas próprias crenças. (VLASTOS,
1994, p. 4).

Ele afirma, também, que o “conhecimento elêntico”, a busca que é característica do SocratesE
mas não do SocratesM, é “fundamental para sua interpretação de Sócrates”. (VLASTOS, 1991,
p. 111, n. 23).
O elenchus permite que Sócrates efetivamente conduza uma conversa na qual ele
examina tanto seu interlocutor quanto a si mesmo, levando a um conhecimento derivado da
exposição e análise das inconsistências e contradições nos pontos de vista dos interlocutores de
Sócrates. Podemos encontrar no Laques, um diálogo considerado de juventude, um exemplo de
uma conversa tipicamente socrática esclarecendo o propósito de examinar os traços de caráter
do interlocutor. No diálogo entre Nícias e Lisímaco, o primeiro diz ao segundo que qualquer
pessoa que trave um diálogo com Sócrates se percebe, dentro de algum tempo, sob escrutínio
quanto a seu caráter e modo de vida 99; essa passagem demonstra o método de Sócrates para
examinar caráteres, o que usa de auxílio para buscar a “verdade” (ἀλήθεια) ética. Essa é a
verdade de que o próprio Sócrates não possui conhecimento (ἐπιστήμη) e que ele não pode
expressar em palavras. A investigação dessa verdade é levada aos mínimos detalhes e o diálogo
termina em aporia. Vlastos distingue o ἔλεγχος de Sócrates dos outros métodos usados noutras
esferas do conhecimento, as quais não são relacionadas ao caráter humano dos participantes da
investigação, como, por exemplo, a esfera abstrata da matemática 100. O Sócrates de Platão,
nessas discussões, rejeita o uso de respostas longas, o que faz com que uma das condições para
se levar uma conversa elêntica, seja a βραχυλογίᾱ. A brevidade do discurso (βραχυλογίᾱ) é
muito típica como parte do objetivo socrático de revelar a verdade (ἀλήθεια) em seu sentido

98
Vlastos (1994, p. 2) ressalta que o Sócrates de Platão não define de fato o termo elenchus, apesar de fazer
algumas alusões. Elenchus enquanto método de refutação atribuído à maneira que Sócrates conduzia uma
conversa, foi nomeado e definido muito posteriormente, na modernidade.
99
Laques, 187e-188a.
100
Cf. VLASTOS, 1994, p. 5.
66

moral e no que diz respeito a conhecer a si mesmo (γνῶθι σαυτόν). No Protágoras, outro
diálogo de Platão considerado por Vlastos como de juventude, é nesse contexto que Sócrates
fala sobre um ideal de “brevidade lacônica” 101; também no Górgias, vê-se a ênfase de Sócrates
a essa mesma condição 102. Segundo Vlastos, esses métodos socráticos são característicos de
todos os diálogos de juventude de Platão. É, portanto, fundamentalmente com base em sua
interpretação do método de refutação de Sócrates (ἔλεγχος) que Vlastos divide os diálogos de
Platão em três grupos: de “juventude” (para o qual ele elabora as subdivisões “elênticos” e
“transicionais”), de “maturidade” e “velhice” 103.

2.3.1 Vlastos e a questão das Formas nos diálogos de juventude e maturidade

A posição de Vlastos é, portanto, a de que SocratesE não é um filósofo metafísico e sim


“exclusivamente um filósofo da moral” (VLASTOS, 1991, p. 47), uma vez que esse carece da
teoria metafísica que SocratesM apresenta. Ele se refere a essa tese como “a mais forte das dez”,
e afirma que “a diferença irreconciliável entre SocratesE e SocratesM poderia ter-se estabelecido
através desse critério, ainda que de forma isolada” (ibid. p. 53).
Com isso, para demonstrar que SocratesE não possuía a teoria metafísica do SocratesM,
ele começa constatando que nos diálogos de juventude εἶδος e ἰδέα servem apenas a um
“trabalho estritamente de definições” (ibid. p. 53). Ele, então, cita dois princípios para esse
trabalho de definições, exemplificados no Eutífron: a) o definiens deve ser verdadeiro para todas
as ocorrências do definiendum; b) o definiens deve revelar a razão pela qual algo é uma instância
do definiendum (ibid. p. 56-57). A seguir, Vlastos admite algo um tanto contrastante:

Ao assumir que essas duas condições podem ser cumpridas, SE faz um


compromisso ontológico substancial. Ele sugere que aquilo que é contém não
só itens espaço-temporais, tais como indivíduos e eventos, mas também

101
Protágoras, 343a-343b.
102
Górgias, 449c.
103
Cf. VLASTOS, 1991, p. 46-7. Diz ainda em nota que o “commitment to the elenctic method as the final arbiter
of truth in the moral domain (…) is common and peculiar to the ten dialogues which, for miscellaneous reasons,
have been often thought by a wide variety of scholars to constitute the earliest segment of the Platonic corpus
which I have called Plato’s ‘Elenctic Dialogues’ in contradistinction to the ‘Transitional’ ones, in which the
elenctic method is discarded while consistency of moral doctrine with their predecessors is maintained”
(VLASTOS, 1991, p. 115, n. 39). No entanto, Kahn (1992, p. 251) argumenta, em sua análise do livro de Vlastos,
que apesar dessa caracterização das crenças morais de Sócrates se adequarem ao argumento com Polo e Cálicles
no Górgias, e com o seu argumento contra Trasímaco no livro I da República, não se encaixa com o uso do
elenchus em nenhum dos diálogos de definição. Pois nesses, o que é revelado pelo exame de Sócrates a seus
interlocutores não são falácias morais, opostas às quais são as verdades morais, cujo conhecimento Sócrates busca,
mas sim a ignorância em relação às definições das Formas morais, como piedade, temperança, coragem e outras.
67

entidades de outro tipo, cujas condições de identidade são notavelmente


diferentes uma vez que são “as mesmas” em pessoas e ações que não são os
mesmos: justiça aqui e justiça acolá e novamente noutro lugar, a mesma em
indivíduos e ocorrências diferentes, real em cada um deles, mas real de um
modo diferente do qual eles são reais, sua própria realidade evidenciada
somente pelo fato de que ela pode ser instanciada identicamente a si mesma
em acontecimentos distribuídos amplamente pelo tempo e espaço, de forma
que, se a justiça for definida corretamente por um só instante que seja, o
definiens será verdadeiro para toda e cada instância de justiça já ocorrida ou
que virá a ocorrer, em qualquer lugar. (…) O fato de existirem coisas que
cumprem com essa condição severa é um pedaço de ontologia fixado
fortemente no discurso e pensamento do SocratesE. Ele possui essa ontologia.
(VLASTOS, 1991, p. 57–8)

Ao afirmar a distinção ontológica de uma entidade que pode continuar sendo uma só e
a mesma enquanto, ao mesmo tempo, apresenta diversas e variadas instanciações espalhadas
pelo espaço-tempo, Vlastos está claramente atribuindo um aspecto metafísico de distinção
ontológica do princípio do “um sobre muitos” a SocratesE. Todavia, Vlastos ainda insiste que
SocratesE é apenas “um moralista e nada mais – não é metafísico, não é ontologista”
(VLASTOS, 1991, p. 58), pois, segundo ele, SocratesE nunca

pergunta que tipo de coisas as formas devem ser (…). A busca pelas
propriedades gerais das formas, que as distinguem sistematicamente das não-
formas, nunca aparece em seus objetivos elênticos. Ele pergunta: Qual a forma
da piedade? Qual a forma da beleza? E assim por diante. O que é forma? Ele
nunca pergunta. (VLASTOS, 1991, p. 58).

Para Vlastos o sentido em que Sócrates e seus interlocutores dos diálogos de juventude
aceitam as formas é apenas linguístico, semântico e ético, mas não se desenvolve num
pensamento ontológico (cf. VLASTOS, 1991, p. 63). Em contraposição, Vlastos postula quatro
características “categóricas” da orientação metafísica das Formas de SocratesM: elas são
inacessíveis aos sentidos; absolutamente imutáveis; incorpóreas; e existem “por elas mesmas”,
independente daqueles que nelas participam (VLASTOS, 1991, p. 66-73). Por outro lado, ao
questionar onde as Formas de SocratesE existem, a resposta é, segundo Vlastos: “nos corpos”
68

(VLASTOS, 1991, p. 74). A independência ontológica das Formas de SocratesM é o que


Aristóteles chama “separação” (χωρισμός). Vlastos assim sintetiza:

Este é o cerne da metafísica de Platão: o postulamento de um mundo eterno,


auto-existente, que transcende o nosso em tudo, livre das flutuações e
vicissitudes que afligem todas as criaturas no mundo temporal, contendo a
Forma de tudo o que é valoroso e conhecível, purgado de todo conteúdo
sensorial. (VLASTOS, 1991, p. 76)

Essa metafísica dos dois mundos é completada pela teoria da alma imortal, transmigratória, e
pela doutrina da anamnese, o que resulta, segundo Vlastos, numa visão mística da realidade:
“O misticismo da Forma de Platão é profundamente de outro mundo. A ontologia das Formas
não-sensíveis, eternas, incorpóreas, auto-existentes, contempláveis (…) tem implicações de
grande alcance”. (VLASTOS, 1991, p. 79). E, então, conclui:

Com muita dificuldade pode-se imaginar uma visão de mundo que seja mais
alheia a Sócrates do que essa. Ele é não-mundano: pouco se preocupa com
dinheiro, reputação, segurança, a vida em si, de fato, com qualquer coisa
exceto o conhecimento da virtude e da moral. Mas ele não é de outro mundo:
o mundo eterno com o qual Platão busca união mística é desconhecido a ele.
Para Sócrates, a realidade – o conhecimento real, a virtude real, a felicidade
real – é o mundo no qual ele vive. O além, para ele, é um bônus e, de qualquer
maneira, somente questão de fé e esperança. As certezas passionais de sua
vida estão no aqui e agora. (VLASTOS, 1991, p. 79-80)

Assim, o Sócrates dos diálogos de juventude, SocratesE, que era exclusivamente um filósofo
moral, torna-se SocratesM, que, dentre outras coisas, é um metafísico com uma teoria
“grandiosa” das “Formas que existem separadamente”. Segundo Vlastos, esses dois Sócrates
têm filosofias tão diferentes que não se pode afirmar que se trata de uma mesma mente, a menos
que “tenha sido a mente de um esquizofrênico” (VLASTOS, 1991, p. 46).

2.3.2 A ordenação cronológica e alguns impasses da abordagem desenvolvimentista

Um grave problema no caso defendido por Vlastos é que ele deve também mostrar que
o Sócrates dos diálogos de juventude condiz de fato com a figura histórica, ou, pelo menos, que
69

a filosofia representada nos diálogos de juventude é a filosofia do Sócrates histórico. Como já


discutido acima, considerar uma personagem ficcional como representante fidedigno da figura
histórica é simplesmente uma posição insustentável. Ainda que, por vezes, a Apologia seja
defendida como uma possível exceção pelo fato de ter sido escrita relativamente perto do
momento do evento descrito na obra e Platão quase certamente ter participado dele
pessoalmente, não há necessidade de perder tempo explicando os detalhes de como isso é
descabido: basta lembrar que temos outra Apologia, a de Xenofonte, de conteúdo bem
diferente 104. Não há dúvidas de que Platão, além de filósofo, tinha um grande talento literário,
e que essas duas ambições certamente sobrepunham-se a qualquer fidelidade de representação
histórica do discurso de Sócrates. No entanto, vê-se tal teoria ainda sendo ecoada atualmente,
como no caso de G. M. A. Grube que, na sua edição e tradução de “Five Dialogues by Plato”,
afirma que “os argumentos principais e o tom geral da defesa devem certamente ser fiéis ao
original” (GRUBE, 2002, p. 21). Donald Morrison (2000a), recentemente, dedicou um estudo
específico a essa questão, intitulado “On the Alleged Historical Reliability of Plato's Apology”,
chegando à seguinte conclusão:

Eu mesmo não daria 40% de chance de qualquer interpretação detalhada sobre


a ignorância de Sócrates estar correta, e não acredito que seja provável que o
objetivo de Platão fosse um retrato preciso de Sócrates, ou que ele o tenha
feito de maneira correta. Porém, um estudioso mais otimista do que eu, um
Vlastos ou um Döring ou um Kahn, pode muito bem considerar essas
estimativas. Ainda assim, em tal visão otimista, nosso estudioso imaginário
deve admitir que as chances do relato da ignorância socrática ser verdadeiro
para o Sócrates histórico é de meros 40% multiplicado por 60% multiplicado
por 60%, ou 14,4%. Um número não muito inspirador. (MORRISON, 2000a,
p. 264)

Todavia, considerando que Vlastos esteja correto, devemos provavelmente supor que
Platão desenvolveu suas teorias numa linearidade evolutiva e em perfeita concordância com a
sua produção literária. Essa suposição não só vai em desencontro com o que relata a tradição
da Antiguidade a respeito de como Platão compunha suas obras e a abordagem interpretativa
que adotavam, como, ainda, desde o século XIX, quando a questão da cronologia começou a

104
A respeito dessa discussão vide GUTHRIE, 1975, p. 71–80. Guthrie afirma que essa visão a respeito da
Apologia era prevalente na época de Zeller (ibid., n. 3, p. 72), e cita G. Grote que diz que a Apologia “is a report,
more or less exact, of the real defense of Sokrates” (1888, p. 158 n. u. apud GUTHRIE, 1975, p. 72).
70

ser indagada, até os dias atuais, nunca houve um consenso de como se chegar a alguma forma
segura de arranjo cronológico dos diálogos pelo seu desenvolvimento filosófico 105.
Trasilo de Alexandria (†36 d.C.) foi quem na Antiguidade estabeleceu o cânone do que
foi reconhecido como o mais confiável e aceitável por quase dois milênios. Diógenes Laércio
(Vidas, 3.56-62) afirma que, de acordo com Trasilo, Platão organizou seus diálogos em
tetralogias, como faziam os autores de tragédia que competiam nos festivais com três tragédias
e uma peça satírica. Aristófanes de Bizâncio, o bibliotecário de Alexandria (c. 257–180 a.C.),
antes sequer de Trasilo, já havia agrupado os diálogos em trilogias. Já naquela época as distintas
organizações buscavam algo além das ênfases que alguns diálogos fazem em referência uns aos
outros formando sequências que se desenvolvem dramaticamente 106. Além da organização
“trágica” dos diálogos, Diógenes relata que preferia uma outra ordenação que Trasilo havia
sugerido que enfatizava o caráter filosófico-pedagógico em conjunto com o assunto tratado
(Vidas, 3.50).
Ademais, há um relato de Dionísio de Halicarnasso (fl. c. 20 a.C.) que afirma, como
sendo de conhecimento comum para os estudiosos da época, que Platão passou sua vida
revisitando e reeditando suas obras.

ὁ δὲ Πλάτων τοὺς ἑαυτοῦ διαλόγους κτενίζων καὶ βοστρυχίζων καὶ πάντα


τρόπον ἀναπλέκων οὐ διέλειπεν ὀγδοήκοντα γεγονὼς ἔτη· πᾶσι γὰρ δήπου
τοῖς φιλολόγοις γνώριμα τὰ περὶ τῆς φιλοπονίας τἀνδρὸς ἱστορούμενα τά τε
ἄλλα καὶ δὴ καὶ τὰ περὶ τὴν δέλτον, ἣν τελευτήσαντος αὐτοῦ λέγουσιν
εὑρεθῆναι ποικίλως μετακειμένην τὴν ἀρχὴν τῆς Πολιτείας ἔχουσαν τήνδε
῾Κατέβην χθὲς εἰς Πειραιᾶ μετὰ Γλαύκωνος τοῦ Ἀρίστωνος.᾿
Platão, mesmo aos oitenta anos, nunca deixou de pentear e cachear seus
diálogos, e retrançá-los de todas as formas. Claro, todo estudioso está
familiarizado com as histórias sobre a produção de Platão, em especial aquela
que se conta sobre sua placa de escrever a qual, dizem, foi encontrada após
sua morte contendo as palavras de abertura d’A República dispostas de
diversas maneiras (“Eu fui ontem ao Piraeu com Glauco, o filho de Aríston.”).
(DIONÍSIO DE HALICARNASSO, De Compositione Verborum, 25) 107

105
Vide THESLEFF, 1982 (Studies in Platonic Chronology), uma extensa pesquisa de mais de um século de
esforços aos pressupostos dos cronologistas.
106
Como, por exemplo: República, Timeu e Crítias; Leis e Epínomis; Teeteto, Eutífron, Sofista, Político, Apologia,
Críton e Fédon.
107
Da tradução para o inglês de Stephen Usher (1985) no vol. 466 da coleção Loeb Classical Library.
71

Como se pode notar, Dionísio parece bem seguro ao afirmar o hábito que Platão manteve
por toda a vida de revisar e reescrever seus diálogos, e que essas suas práticas são de
conhecimento geral dentre os estudiosos. Apesar de “pentear e cachear” sugerirem somente
ajustes mais cosméticos ao texto, “retrançá-los de todas as maneiras” já implica alterações mais
complexas, para além do estilo, e que incluem tramas básicas dos diálogos e suas inter-relações.
Sob essa perspectiva, a imagem de um Platão muito idoso remodelando o início d’A República,
tida por muitos cronologistas contemporâneos como um escrito da sua juventude, transparece
algo da dedicação que manteve ao longo de toda sua vida à revisão e reedição de suas obras.
Nota-se, ainda, que no conjunto tradicional das nove tetralogias de Trasilo somente em
cinco delas Sócrates não é o interlocutor principal – Parmênides, Timeu, Sofista, Leis e as
Cartas 108. Além disso, a personagem Sócrates n’A República ou no Filebo ou no Teeteto não é
outra diferente do Sócrates do Eutífron ou da Apologia, mas, supostamente, de acordo com
Vlastos, esse último se encaixa na proposta de expor a filosofia de Sócrates e, o primeiro, a de
Platão. Ainda mais interessante é o fato de que, se considerarmos o ponto de vista dramático,
os dois últimos diálogos são posteriores aos três primeiros. De maneira semelhante, enquanto
o Fédon supostamente contém a filosofia de Platão e o Críton, junto com a Apologia, contém
filosofia socrática, a conexão dramática entre esses três é ainda mais próxima 109. Eles
constituem uma trilogia dramática (sendo o Teeteto e o Eutífron possíveis “prévias” 110)
narrando diálogos das últimas semanas da vida de Sócrates. Dentre os estudiosos
contemporâneos, é bem aceito que o Fédon foi escrito muito depois da Apologia e do Críton, e
assim tentam sugerir, não sem muito esforço, que estes diálogos, que são ligados na cronologia

108
Sem levar em consideração o problema de distinguir os diálogos autênticos de Platão daqueles que foram
erroneamente atribuídos a ele ou cuja procedência é duvidosa, as nove tetralogias compreendem todo o corpus
platônico, incluindo as Cartas e também os textos de autoria controversa ou ilegítima. A respeito da divisão do
corpus platônico por Trasilo, vide TARRANT, 1993 e DUNN, 1976.
109
Como argumenta Charles Griswold (1999), essa “cronologia fictícia” dos diálogos, isto é, sua ordenação de
acordo com as datas da vida de Sócrates no enredo tem uma relevância limitada. Ele assume que, com isso, Platão
pretendia uma ordem pedagógica onde, por exemplo, a leitura do Teeteto deve ter a função de preparar o leitor
para o Eutífron; ou então o Parmênides, um diálogo que provavelmente foi escrito muito após outros considerados
“socráticos”, deve ser o primeiro a ser lido. Nesse último caso, onde um Sócrates muito jovem já expressa sua
convicção na teoria das Formas, Griswold (1999, p. 388) explica que Platão assim o fez por não intencionar que
as críticas à teoria fossem levadas muito a sério. Ele admite, também, que a filosofia platônica é restrita ao conteúdo
do diálogo, no entanto deixa a cargo do leitor-intérprete buscar pistas sobre como lidar com a sua ordenação.
Charles H. Kahn, na virada do milênio, entrou em debate com Griswold sobre suas teorias, o qual se encontra nas
seguintes publicações: GRISWOLD, 1999; KAHN, 2000; GRISWOLD, 2000.
110
A datação dramática do Teeteto, que de acordo com o seu enredo precede o Eutífron, deve se situar no último
ano da vida de Sócrates. Parece haver razões suficientes para crer que Teeteto de fato morreu na Guerra de Corinto
em 392 a.C. ou 391 a.C. e não, como alguns estudiosos acreditavam, numa batalha posterior em 369 a.C. (vide
NAILS, 2002, p. 275-77). Desse modo, pelo menos esta razão que sustentava a datação do diálogo após 369 a.C.
parece equivocada. Mas a ordenação dramática dos diálogos também parece ser um bom argumento contra a
classificação do Teeteto como um diálogo do período “médio”, que apresenta a própria visão de Platão sobre o
conhecimento, e o Eutífron como um diálogo “inicial”, apresentando a visão filosófica de Sócrates.
72

dramática, supostamente contêm doutrinas diferentes (não-socrática e socrática). Contudo,


além desta possível diferenciação de conteúdo doutrinário dos diálogos não parece haver mais
evidências que sustentem essa interpretação.
Haja vista os esquemas interpretativos antigos observados acima, a suposição de
compreender o pensamento de Platão através da ordem cronológica de seus escritos se faz
inaplicável perante um arranjo dramático-literário-filosófico de um corpus elaborado e revisto
ao longo de toda a vida pelo autor. Nessa perspectiva, questões desenvolvimentistas são
simplesmente irrelevantes, pois tinha-se a necessidade de uma interpretação inter-relacional dos
diálogos muito mais rica do que as lineares sugeridas pelos esquemas desenvolvimentistas.
Traçavam, assim, muitas conexões e comparações a fim de compreender a unidade de cada
diálogo como pedaços de uma conversação onde a necessária incompletude de cada diálogo
permite apreciar as maneiras pelas quais ele aponta além de si, para outros diálogos que podem
ajudar a completá-lo, não porque esses outros sejam mais completos ou uma continuação, mas
porque os horizontes deles são diferentes. Desse modo, pode ser que cada diálogo se relacione
e esteja envolvido de alguma maneira em todos os outros.
Charles Griswold indica, numa abordagem semelhante a essa dos antigos, que não se
deve esperar encontrar noutros diálogos a resposta para questões colocadas num diálogo
específico. Os diálogos são, antes de tudo, provocativos: fundamentalmente, eles estimulam a
reflexão do leitor, seja no conjunto da obra ou em cada diálogo por si.

Cada diálogo pode ser visto como aberto a todos os outros e a toda a esfera da
obra de Platão, mas a partir de sua perspectiva individual. Qualquer
interpretação começaria, necessariamente, dessa perspectiva; assim, o diálogo
individual teria prioridade metodológica em relação ao corpus, e os aspectos
prolépticos do diálogo seriam secundários na metodologia. (GRISWOLD,
1990, p. 257).

A abordagem cronológica contemporânea sofre justamente com a sua ambição de


organizar um arranjo dos diálogos que explique um desenvolvimento filosófico linear do
pensamento de Platão. A inconclusiva divergência acadêmica se encontra tanto nos critérios
utilizados para esses fins como também nos resultados filosóficos que são encontrados a partir
deles. Acontece que a mudança nesses critérios reorganiza os diálogos nos âmbitos da
cronologia e temática, sem nunca se ter chegado próximo a um resultado seguro. O que se vê
são arranjos cronológicos hipotéticos organizados por uma inferência imediata que parte de
73

uma ordenação desenvolvimentista filosófica. Um exemplo é a questão da tripartição da alma


que muitos tentam ordenar como evoluindo de uma psicologia unificada. Essa, portanto, seria
uma justificativa para se posicionar a República como supostamente escrita antes do Fédon e
do Protágoras. Assim como o Fedro, que implicitamente, em forma de mito, faz referência à
alma tripartida, supostamente teria sido escrito após a República. Também o Timeu, que
explicitamente menciona a parte imortal da alma, e por isso deve, portanto, assumir a tripartição
da alma e ser posterior à República, a qual já afirma com certa ambiguidade a imortalidade de
uma das partes da alma tripartida. No que concerne às Formas, os cronologistas geralmente
assumem, em grande parte com base no testemunho de Aristóteles, que Platão separou as
Formas do sensível, e Sócrates, não. Portanto, muito grosseiramente, os diálogos sem
referências explícitas ou implícitas a formas separadas do sensível são os ditos de “juventude”,
e os que discutem as Formas separadas são os de “maturidade” ou “médios”. Para os
socraticistas, esses diálogos de juventude representam a filosofia de Sócrates.
Perante a profunda discórdia de como se chegar a alguma forma segura de arranjo
cronológico dos diálogos pelo seu desenvolvimento filosófico, muitos acadêmicos têm se
esforçado para encontrar outros critérios como base além do filosófico. O grande método em
voga é a análise estilométrica 111 – a análise estatística do estilo de um autor como ferramenta
de datação –, que envolve uma tentativa de descobrir mudanças significativas, por muitas vezes
sutis, no estilo de composição do grego de Platão. Esse método foi bastante refinado ao longo
do século passado desde a sua criação, particularmente com a invenção da análise assistida por
computador. Os resultados não são surpreendentes nem particularmente esclarecedores. Tem,
até certo ponto, fomentado ou confirmado o grupo de diálogos supostamente de velhice –
Sofista, Político, Timeu, Crítias, Filebo e as Leis – como tendo certas características estilísticas
em comum, incluindo a maneira sistemática de evitar o hiato entre as palavras, resultado que
teve grande repercussão. Desse grupo, pelo menos que as Leis era produto da velhice de Platão,
de fato, o último, já era um consenso na antiguidade. Outro grupo – República, Teeteto,
Parmênides e Fedro – apresentou uma quantidade suficiente dessas mesmas características para
os diálogos serem classificados como, de algum modo, transicionais do período médio para o
período tardio. Mas isso é tudo o que se pode determinar a partir dos resultados de análise
estilométrica. Não há qualquer evidência estilística que permita traçar a distinção entre os

111
Para pesquisas recentes, especialmente em relação ao quanto podemos esperar aprender com a estilometria,
vide: YOUNG, 1994; KAHN, 2002a.
74

diálogos que seriam de “juventude” e os do período “médio” 112. Os diálogos remanescentes não
podem ser convincentemente ordenados com base em evidências estilísticas, fazendo com que
se volte às preconcepções já mais estabelecidas sobre como a filosofia de Platão teria se
desenvolvido. É adequado, ainda, notar que não se tem resultados demonstrando que mudanças
filosóficas fundamentais coincidam com mudanças detectáveis no estilo de escrita. Dada toda
essa inconcludente problemática, têm surgido recentemente algumas propostas de abandono de
toda a estrutura cronológica 113.
Talvez uma alternativa mais sensata nesse caso, mas que não é posição defendida por
Vlastos, seria supor que quando Platão escreveu os ditos diálogos de juventude restringiu seu
ponto de vista metafísico – o qual, recordemos, supostamente diverge consideravelmente da
posição do Sócrates histórico – enquanto pretendia representar outros pontos de vista através
do Sócrates dos diálogos de juventude. Nessa linha, pode-se afirmar que no Eutífron, Apologia
e Críton, bem como noutros diálogos de juventude, a intenção de Platão pode ter sido
simplesmente representar a filosofia do Sócrates histórico na personagem. Ele poderia ter
inserido suas próprias posições metafísicas a qualquer momento, mas escolheu não o fazer para
ser fiel à memória de Sócrates e à sua filosofia única. Ainda assim, considerando essa
possibilidade, vide como, recentemente, um número de estudiosos tem defendido que nesses
diálogos é simplesmente falso que Sócrates é somente um filósofo cuja única preocupação é a
busca pelas definições universais e alheio à metafísica 114.
Contudo, a ordenação cronológica nas bases definidas por Vlastos é dominante, de
modo que mesmo os críticos ao desenvolvimentismo, os chamados unitaristas, em grande parte
a adotam. Dentre os proponentes mais ilustres de um desenvolvimentismo do pensamento de
Platão encontram-se: Terry Irwin (1979), Richard Kraut (1984), Christopher Taylor (1992),

112
Vide LEDGER, 1989, p. 222–24, sobre a proximidade da composição da Apologia e Fédon segundo bases
estilométricas. Vide KAHN, 2002a, p. 94, sobre a similaridade estilística do Fédon com a Apologia, Cármides,
Críton, Crátilo, Eutidemo, Eutífron, Górgias, Hípias Maior, Hípias Menor, Íon, Laques, Lísis, Menexeno, Ménon,
Protágoras e Banquete. Fala-se, ainda, ao modo como entendiam os antigos (vide tópico 2.3.2 acima), sobre
algumas das obras de Platão terem sido escritas ao longo de sua vida e continuamente reeditadas. Vide, por
exemplo, o estudo de Debra Nails (1998) sobre a República a esse respeito.
113
Como Howland (1991), Kahn (1996), e Annas (2002).
114
No caso do Eutífron, vide os estudos de Allen (1970); Prior (2004); e Fronterotta (2007) também para o Hípias
Maior. Morrison (2000a, p. 245-248) argumenta que é muito problemática a tentativa de deduzir quais eram os
argumentos e compromissos filosóficos do Sócrates histórico ou dar qualquer justificativa para os seus pontos de
vista com base nas evidências que se possui, pois são vagas a ponto de serem inconclusivas. Simplesmente não se
sabe por que o Sócrates histórico sustentava que se deve ter o comprometimento com a prática do bem, ou o que
exatamente ele ignorava, ou que o cuidado com a alma é imprescindível. Já Platão fornece motivos
epistemológicos e metafísicos para tais direcionamentos. Deixar o Sócrates histórico de fora dessas razões é
justificável pela falta de evidências, porém é muito diferente de fabricar justificativas não platônicas ou até mesmo
anti-platônicas para esses motivos. Ainda nessa linha, vide Kennedy (2011, p. 249) e Dorion (2011, p. 17-18) para
argumentação contra a leitura da Apologia como evidência do ponto de vista do Sócrates histórico.
75

Gail Fine (1993), Thomas Brickhouse e Nicholas Smith (1994), Mark McPherran (1996), John
Cooper (1999), Hugh Benson (2000), Russel Dancy (2004), George Rudebusch (2009) e Terry
Penner (2010). Em posição contrária a todos esses existe a corrente unitarista dos estudos
platônicos, da qual podemos citar o professor de Harold Cherniss, Paul Shorey, como seu
proeminente partidário 115. De maneira simplificada, a corrente unitarista sustenta que Platão já
tinha sua filosofia bem clara para si, se não desde a primeira, ao menos desde a fase inicial de
suas obras, mantendo-se consistente ao longo da vida. Shorey aceita, todavia, a divisão
cronológica dos diálogos nas três fases de vida de Platão e afirma não ser “contra todas as
investigações críticas sóbrias do difícil problema da cronologia de Platão. Porém, a tentativa de
embasar tal cronologia nas variações e desenvolvimentos da doutrina de Platão levou a um
exagero da inconsistência de Platão que viola todos os princípios sensatos de interpretação
literária, e é fatal para toda inteligência genuína sobre o seu significado” (SHOREY, 1903, p.
5).

2.3.2.1 A crítica de Charles H. Kahn

Recentemente, Charles H. Kahn, que compartilha desse ponto de vista unitarista,


argumentou rejeitando a abordagem cronológica para os diálogos e suas divisões entre
“juventude”, “maturidade” e “velhice”. Propõe como alternativa que os diálogos sejam
divididos em três grupos que apresentam diferenças estilísticas marcantes entre eles. “O que
ocorreu no estudo da cronologia platônica desde 1986 foi (temo) em sua maioria confusão, e
não progresso”, afirma Kahn (1996, p. 44). Aponta, em contrapartida, que em quase um século
de estudos estilísticos independentes os resultados se demonstraram sólidos e consistentes, e,
sinteticamente, explica que

no decorrer de sua longa carreira, o estilo de Platão mudou basicamente duas


vezes: uma vez quando ele se pôs a escrever A República, uma composição
em escala completamente nova; e mais uma vez quando ele começou a
sistematicamente evitar hiatos e, consequentemente, a adotar ordens de
palavra e estruturas de sentença menos naturais. (Essa mudança se deu entre
o Teeteto e o Sofista, assinalando o intervalo entre os Grupos II e III.) Mas
não há, realmente, razão alguma para supor que o estilo de Platão mudasse
significantemente toda vez que ele escrevia um novo diálogo, e razão alguma

115
Vide SHOREY, 1903; 1973.
76

para excluir a possibilidade de que ele trabalhava em muitos diálogos ao


mesmo tempo. (KAHN, 1996, p. 45)

Assim Kahn organiza os diálogos em grupos estilísticos 116:

Grupo I – Apologia, Críton, Íon, Hípias Menor, Górgias, Menexeno, Laques,


Cármides, Eutífron, Protágoras, Mênon, Lísias, Eutidemo, Simpósio, Fédon,
Crátilo;
Grupo II – República, Fedro, Parmênides, Teeteto;
Grupo III – Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias, Leis.

Seria precipitado afirmar que essa divisão em três grupos estilísticos confirma a teoria
desenvolvimentista observando que os diálogos considerados “socráticos” encontram-se todos
no primeiro grupo. Nesse caso, características que são consideradas como pertencendo ao
período de “maturidade” estão, em realidade, também presentes em alguns diálogos do Grupo
I e do Grupo II 117; o Parmênides e o Teeteto, que são comumente atribuídos ao período de
“velhice”, encontram-se no Grupo II; por outro lado, o primeiro grupo também inclui o
Simpósio, Fédon e Crátilo, que não são diálogos de “juventude”. Como explica Kahn (2002a,
p. 96): “Um desenvolvimentista tradicional que reconhece que a divisão estilística é cronológica
deve aceitar, simplesmente, o fato de que o estilo e o desenvolvimento filosófico de Platão não
progridem no mesmo passo”.
Seu unitarismo é autodenominado “moderado”, e ele assim o explica:

...existe uma única visão platônica de mundo, mas nenhuma expressão dele.
Mesmo que haja um ponto de vista de deus, esse ponto de vista não é
disponível aos humanos. Desse modo, nenhuma formulação específica pode
dar a última palavra – nem mesmo as Doutrinas Não Escritas sobre as quais
ouvimos boatos. (KAHN, 2002b, §3)

Expõe, ainda, uma fundamental diferença entre a sua abordagem unitarista e a


abordagem desenvolvimentista:

116
Cf. KAHN, 1996, p. 47-48. Ressalta, ainda, que “a ordem dos diálogos dentro de cada grupo é uma questão de
conjectura pessoal” (ibid., p. 47), e não implica em um desenvolvimento do pensamento de Platão.
117
Vide KAHN, 1996, p. 42-48.
77

Particularmente, presumo que os diálogos são bem diferentes dos tratados,


cadernos ou textos de diários, e que Platão não escreve para clarear a mente,
registrar seus pensamentos momentâneos, ou fazer experimentos com ideias
que ele ainda não havia deliberado totalmente. Os diálogos são obras de arte,
produtos finais de um escritor cuidadoso. Eles passam a impressão de que
Platão sempre sabia para onde queria ir, de que ele escreve para causar um
certo impacto nos leitores, para atraí-los à filosofia ao debater questões que
esses considerariam importantes e ao desafiar suas pressuposições de costume
(KAHN, 2002b, §3)

Fundamental, contudo, é a metodologia que adota para sua abordagem:

Minha hipótese é interpretar todos os diálogos a partir da posição filosófica


definida no Fédon e n’A República, ou ao menos lê-los todos como
compatíveis com esse posicionamento. Mas essa proposta nada implica em
relação à cronologia de composição. (KAHN, 2002b, §5)

Platão, segundo Kahn, foi desde cedo um pensador com firmes posicionamentos
filosóficos dos quais ao longo de sua vida ele raramente desviou. Assim, ele conscientemente
elaborou ao longo dos anos a melhor forma e arranjo literário para apresentá-los. O
desenvolvimento apresentado nos diálogos segue, portanto, um esquema muito bem planejado
do “uso filosófico de uma forma literária”. Desse modo, Kahn argumenta que Platão dividiu
suas teses em unidades bem articuladas em grande parte de suas obras, especificamente nos
dezoito diálogos da Apologia ao Fedro, conforme a ordem listada acima. Kahn não descarta,
contudo, que tenha havido produção de diálogos socráticos. Ele, na verdade, afirma que
“qualquer relato histórico da filosofia de Sócrates (enquanto distinta de suas ações, aparência e
caráter pessoal) deve ser retirado somente dos escritos de Platão” (KAHN, 1996, p. 88). Estes,
no entanto, limitam-se a apenas quatro: Apologia, Críton, Íon, Hípias Menor (cf. ibid., p. 93).
Deve ser ressaltado, todavia, que aqui há um confronto a um dos pontos fundamentais
da ordenação cronológica. Apesar de toda discórdia dentre os cronologistas sobre o arranjo dos
diálogos e também sobre a questão socrática, como anteriormente se viu de modo resumido, há
o mínimo consenso de que se encontram os mais significativos registros da filosofia socrática
nos diálogos platônicos de juventude, sendo esses registros os critérios que determinam alguns
78

específicos diálogos enquanto tais 118. Parece-nos, contudo, que nesse quesito essencial Kahn
não apresenta uma argumentação tão convincente. Para evitar a cronologia, ele baseia sua
hipótese na suposição, que nomeia “minimal view”, de que a Apologia seria um “documento
quase-histórico” (KAHN, 1996, p. 88), e somente esse diálogo pode ser usado como referência
para se apreender a filosofia do Sócrates histórico nos diálogos de Platão. A partir disso,
identifica apenas os outros três diálogos citados como coerentes com a filosofia expressa na
Apologia. Contudo, como já argumentado, não corroboramos com essa posição; ademais, seus
resultados entram em conflito com o que relata Aristóteles a respeito da filosofia de Sócrates,
que, como já dito, é a principal fonte para se distinguir os diálogos socráticos.

Além do uso de argumentos indutivos ou analógicos (epagōgē), muito bem


documentado na literatura socrática, existem três pontos principais no relato
de Aristóteles sobre Sócrates:

1. A busca por definições universais


2. A identificação da virtude com o conhecimento
3. A negação da akrasia.

São essas três declarações aristotélicas, junto a alguns paralelos em


Xenofonte, que formam a base textual para nossa visão tradicional do Sócrates
histórico. Pois são precisamente essas declarações que permitiram aos
acadêmicos modernos encontrar um reflexo crível da prática de Sócrates no
Protágoras e nos diálogos de definição. (KAHN, 1996, p. 83-84)

Sendo assim, a estratégia de Kahn é desmerecer o relato de Aristóteles como não sendo
“historicamente confiável” (KAHN, 1996, p. 41 n. 10). Sua única justificativa para isso é acusá-
lo de não ser um historiador da filosofia confiável, dados seus tendenciosos relatos a respeito
dos pré-socráticos (cf. ibid., p. 79-87).
Comenta, ainda, mais especificamente a passagem da Metafísica, A.6, 987a32-b12,
onde Aristóteles fala a respeito da origem da filosofia das Formas de Platão.

118
Em geral, dentre as discórdias, o pouco de consenso dentre os cronologistas é que Platão começou,
provavelmente, logo após a execução de Sócrates em 399 a.C., lançando-se ao modo já corrente de escrever
diálogos socráticos, capturar e manter vivo aquilo que houve de único e inspirador sobre a conduta de seu mestre
Sócrates, em seu modo de conversar com as pessoas e fazê-las repensar suas próprias vidas e valores. Em algum
momento, assim continua o consenso, Platão tornou-se mais assertivo do que Sócrates sobre como encontrar
respostas às questões das virtudes e conhecimento, e usando a figura do mestre prosseguiu sustentando cada vez
mais doutrinas positivas sobre a alma e sobre a natureza metafísica da realidade, um processo que culminou na
postulação de um reino imaterial de entidades de existência separada, independente do sensível, as Formas, e isso
constitui seu período intermediário de maturidade. O seu período tardio seria marcado por uma variedade de
características, como: o desaparecimento de Sócrates do papel principal na maioria dos diálogos, uma nova
preocupação com a análise conceitual sistemática pelo método de divisão, a incursão no estudo da física em seu
diálogo Timeu, dentre outras.
79

Muitos historiadores da filosofia seguiram esse relato sobre a origem da teoria


das Formas de Platão. Eu mantenho, contudo, que é tão arbitrário e
esquemático quanto o relato de Aristóteles sobre os predecessores de Platão.
Não há razão para supor que Aristóteles possuía qualquer prova para o
desenvolvimento inicial do pensamento de Platão. (KAHN, 1996, p. 81)

Assim se posiciona pois presume que, pelo fato de Aristóteles ter entrado na Academia
aos seus 17 anos e conhecido Platão já sexagenário, ele não teria como ter acesso a esse tipo de
informação. Mesmo em 20 anos de convivência e estudos, um jovem ávido por conhecimento
não teria questionado o próprio Platão ou outros membros da Academia. Kahn rejeita esse
cenário como sendo “entirely gratuitous” (KAHN, 1996, p. 82) e, assim, conclui que desse
relato de Aristóteles “a única partícula sólida de informação aqui é que a teoria das Formas
pertence a Platão e não a Sócrates” (KAHN, 1996, p. 82).
Apesar da forte crítica aos estudos cronológicos frente aos sólidos resultados dos
estudos estilísticos, nesse quesito dos diálogos socráticos a argumentação de Kahn menospreza
evidências contundentes e não se faz convincente 119. Sendo assim, considerando as ressalvas
feitas a respeito dos problemas e dificuldades pertinentes à questão desenvolvimentista,
reconhecemos que uma convergência de critérios muito bem pensados faz da maioria dos
diálogos elegidos pelos cronologistas como sendo da juventude de Platão a alternativa mais
apropriada de se recolher e analisar possíveis traços do que foi o pensamento socrático e das
possíveis primeiras exposições da filosofia das Formas 120. Em relação a essas últimas, como
visto, são as evidências fornecidas pelos testemunhos de Aristóteles que embasam a divisão
cronológica dos diálogos de juventude e, portanto, são esses que analisaremos na sequência.

2.4 O Relato de Aristóteles sobre Sócrates e a Filosofia das Formas

Encontramos as referências mais importantes à filosofia socrática feitas por Aristóteles


na Metafísica 121. As passagens A.6, M.4 e M.9 são muito conhecidas e, considerando o tema
tratado (as Formas), pode-se especular que seu conteúdo pode ter sido mais bem elaborado em

119
Ademais, dada sua abordagem metodológica dependente de diálogos que estão fora do nosso escopo de pesquisa
(Fédon e República), grande parte da pesquisa de Kahn não se faz pertinente para o nosso presente estudo, que se
limita aos diálogos de juventude.
120
Com exceção da radical posição de Christopher Rowe que abordaremos adiante (cap. 2.5), que os diálogos de
juventude são representativos da filosofia socrática é um dos poucos consensos dentre os cronologistas.
121
Todas as traduções da Metafísica são de Giovanni Reale, traduzidas do italiano para o português por Marcelo
Perine (2014), exceto quando indicado.
80

outra obra aristotélica, o Περὶ ἰδεῶν, que não sobreviveu aos séculos. Nesses três trechos
Aristóteles atribui o advento das Formas separadas das instâncias no sensível a Platão, sendo
que nos dois últimos ele é bem expressivo ao afirmar que Sócrates não separava as definições
universais que ele buscava das instâncias no sensível. Aristóteles é claro ao testemunhar que
esse é um desenvolvimento platônico e, no entanto, ele não identifica nenhum grupo específico
de diálogos como detentores da filosofia de Platão em contraste com o ponto de vista de
Sócrates 122. Nota-se, ainda, que em nenhuma das três passagens Aristóteles parece conferir
muita atenção à figura de Sócrates, e se refere a ele somente como um precursor do
desenvolvimento feito por Platão. Pode-se deduzir que o motivo para isso seja o fato de que
esses relatos estão sendo expostos sob o tratado da Metafísica e, segundo o próprio relato
aristotélico, tal âmbito não é abordado por Sócrates, que se ocupava das “questões éticas e não
da natureza em sua totalidade” (A.6.987b1-2).
Vejamos, então, os três parágrafos que nos interessam aqui com mais detalhes: em
A.6.987a-32-987b9, Aristóteles relata que Platão já era amigo de Crátilo quando conheceu
Sócrates e suas doutrinas, tendo, dessa prévia influência, herdado e mantido as doutrinas
heraclitianas “segundo as quais todas as coisas sensíveis estão em contínuo fluxo e das quais
não se pode fazer ciência”. Foi, portanto, essa a influência sincretizada que fez das “definições
universais” que buscava Sócrates se tornarem, com Platão, realidades que não poderiam
pertencer ao âmbito sensível que estava em constante mudança. Apesar de aderir à busca
socrática, Platão levou a questão adiante e “chamou essas outras realidades de Ideias (ἰδέας),
afirmando que os sensíveis existem ao lado delas (παρὰ) e delas recebem seus nomes”. Em
M.4.1078b27-29, acrescenta a informação de que a base da ciência socrática para a busca das
definições universais se dava por meio do raciocínio indutivo (ἐπακτικοὺς λόγους), e reafirma
que elas só foram entendidas como separadas (χωριστός) do sensível com Platão. O relato
aristotélico é uma clara afirmação de que a teoria das Formas platônica se originou como um
amálgama epistemológico das filosofias de Sócrates e Heráclito(-Crátilo).
Ainda em A.6 (987b22-33), Aristóteles fala sobre a relação do pensamento pitagórico
com as Formas de Platão, já que, para ambos, os números são “a causa da substância de outras
coisas”; porém, enquanto os pitagóricos consideravam que “os Números são as próprias coisas”
de modo imanente, Platão os desprende dos sensíveis e coloca os entes matemáticos como
intermediários entre as Formas causais e a realidade sensível. Aristóteles assim expressa essas
diferenças: “O fato de ter posto o Um e os números fora das coisas (παρὰ τὰ πράγματα), à

122
Terence H. Irwin (2008, p. 78-79) afirma, no entanto, sem argumentações, que a distinção de Aristóteles entre
o ponto de vista socrático e o de Platão são reflexos da distinção entre os diálogos de “juventude” e “maturidade”.
81

diferença dos pitagóricos, e também ter introduzido as Formas foram as consequências da


investigação fundada nas puras noções (διὰ τὴν ἐν τοῖς λόγοις ἐγένετο σκέψιν), que é própria
de Platão, pois os predecessores não conheciam a dialética”. Mais uma vez reforçando a
afirmação de que as Formas separadas não são de origem socrática, nem pitagórica, mas sim
platônica.
Aristóteles fornece um relato mais extenso de como Platão foi influenciado por Sócrates
em M.4 (1078b9-34), mas dessa vez sem mencionar seu nome diretamente, nem o de Crátilo, e
refere-se à doutrina das Formas sem a relação com os números, “mas considerando-a da
maneira pela qual, no início, a conceberam aqueles que primeiro sustentaram a existência das
Ideias”. Muito se repete do que foi descrito em A.6 sobre como Platão somou a doutrina
heraclitiana do fluxo dos sensíveis com a busca socrática dos universais para chegar a uma
realidade estável, não-sensível, do conhecimento; e também reitera que a preocupação de
Sócrates eram as virtudes morais e que foi ele o primeiro a tentar defini-las. Aristóteles também
adiciona que, ao contrário das definições rudimentares de Demócrito e aritméticas dos
pitagóricos, Sócrates

ἐκεῖνος δ᾽ εὐλόγως ἐζήτει τὸ τί ἐστιν: συλλογίζεσθαι γὰρ ἐζήτει, ἀρχὴ δὲ τῶν


συλλογισμῶν τὸ τί ἐστιν: διαλεκτικὴ γὰρ ἰσχὺς οὔπω τότ᾽ ἦν ὥστε δύνασθαι
καὶ χωρὶς τοῦ τί ἐστι τἀναντία ἐπισκοπεῖν, καὶ τῶν ἐναντίων εἰ ἡ αὐτὴ
ἐπιστήμη: δύο γάρ ἐστιν ἅ τις ἂν ἀποδοίη Σωκράτει δικαίως, τούς τ᾽
ἐπακτικοὺς λόγους καὶ τὸ ὁρίζεσθαι καθόλου: ταῦτα γάρ ἐστιν ἄμφω περὶ
ἀρχὴν ἐπιστήμης: ἀλλ᾽ ὁ μὲν Σωκράτης τὰ καθόλου οὐ χωριστὰ ἐποίει οὐδὲ
τοὺς ὁρισμούς: οἱ δ᾽ ἐχώρισαν, καὶ τὰ τοιαῦτα τῶν ὄντων ἰδέας
προσηγόρευσαν,
buscava a essência das coisas e com razão: de fato, ele tentava seguir o
pensamento silogístico, e o princípio dos silogismos é, justamente, a essência.
A dialética, naquele tempo, ainda não era forte para proceder ao exame dos
contrários independentemente da essência, e estabelecer se a mesma ciência
trata dos contrários 123. Com efeito, duas são as descobertas que se podem
atribuir com razão a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição universal:
estas descobertas constituem a base da ciência. Sócrates não afirmou as

123
Segundo o relato de Diógenes Laércio, Aristóteles, na sua obra Sofista, atribuiu a Zenão a invenção da dialética:
“Aristóteles diz no Sofista que Empédocles foi o inventor da retórica, e Zenão da dialética” (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas, VIII.57 = Sophistes, fr.1 [Ross]). Dizer, então, que esta ainda não era forte o suficiente na época
de Sócrates deixa claro que Aristóteles enaltece a dialética que desenvolveu Platão como muito mais sofisticada
se comparada à de Zenão.
82

definições e os universais separados das coisas; mas outros pensadores o


fizeram, e a essas realidades deram o nome de Ideias. (ARISTÓTELES,
Metafísica, M.4.1078b24 – 1078b33)

Em M.9 (1086b3-5), ele reitera esse pensamento: “Sócrates, porém, não separava as definições
das coisas particulares (οὐ μὴν ἐχώρισέ γε τῶν καθ᾽ ἕκαστον: καὶ τοῦτο ὀρθῶς ἐνόησεν οὐ
χωρίσας)”, isto é, não as considerava como sendo de outra substância, apesar de ter sido ele
quem iniciou esse modo de raciocínio.
É importante notar que Aristóteles caracteriza as definições socráticas com seus próprios
termos técnicos: τὸ καθόλου (A.6.987b3), τὰ καθόλου (M.4.1078b3) e τὸ τί ἐστιν (M.4.1078
b23-26). Dentre essas, καθόλου é utilizada por Platão somente uma vez e de maneira
despretensiosa 124, mas nunca por Xenofonte. Apesar de “τί ἐστιν” ser a expressão por
excelência da busca socrática, em que se é afirmada a realidade da existência de tais definições
“universais”, Aristóteles formaliza essa questão básica de Sócrates acrescentando o artigo
definido “το” antes da questão “τί ἐστιν”, criando a sua própria expressão “τὸ τί ἐστιν” – “o que
a coisa é”, frequentemente traduzido na tradição escolástica como “quididade”, ou, como é mais
estabelecido atualmente, “essência” 125.
O relato mais detalhado de Aristóteles sobre a busca de Sócrates pelas definições do ser
das virtudes se encontra, todavia, em outra de suas obras, na Ética a Eudemo:

Σωκράτης μὲν οὖν ὁ πρεσβύτης ᾤετ᾽ εἶναι τέλος τὸ γινώσκειν τὴν ἀρετήν, καὶ
ἐπεζήτει τί ἐστιν ἡ δικαιοσύνη καὶ τί ἡ ἀνδρεία καὶ ἕκαστον τῶν μορίων
αὐτῆς. ἐποίει γὰρ ταῦτ᾽ εὐλόγως. ἐπιστήμας γὰρ ᾤετ᾽ εἶναι πάσας τὰς ἀρετάς,
ὥσθ᾽ ἅμα συμβαίνειν εἰδέναι τε τὴν δικαιοσύνην καὶ εἶναι δίκαιον. ἅμα μὲν
γὰρ μεμαθήκαμεν τὴν γεωμετρίαν καὶ οἰκοδομίαν καὶ ἐσμὲν οἰκοδόμοι καὶ
γεωμέτραι. διόπερ ἐζήτει τί ἐστιν ἀρετή, ἀλλ᾽ οὐ πῶς γίνεται καὶ ἐκ τίνων.
Quando mais velho, Sócrates achava que o conhecimento da virtude é a
finalidade, e ele então questionava o que é a justiça, a coragem e cada uma de

124
Mênon, 77a: “κατά όλου εϊπών άρε της πέμ ότι έστίν”.
125
Vide Long (2004, p. 63 ff.) argumentando que a questão socrática ti estin se desenvolve na filosofia do to ti ēn
einai aristotélico por meio da destreza de Aristóteles em transformar a estrutura gramatical de uma sentença em
um termo técnico ao acrescentar um artigo definido à frente: “The appropriate answer to the question ti estin, what
is it? is the what-it-was-for-that-thing-to-be—to ti ēn einai” (LONG, 2004, p. 63). Seu estudo busca demonstrar
como “the vocabulary of to ti ēn einai can be seen to carry in itself the concerns of its originator—Socrates. In
both passages referring to Socrates in the Metaphysics, Aristotle emphasizes that Socrates developed the ti estin
question in relation to the ethical matters. Thus the origin of this, perhaps the most important term of Western
ontology, can be traced back to the Socratic discussions of matters of the utmost ethical significance.” (LONG,
2004, p. 64).
83

suas partes. Ele fazia essas questões com boa razão, pois pensava que todas as
virtudes são ciências e acontece que, se se conhece a justiça, simultaneamente
é-se justo; quando aprendemos geometria e construção, somos construtores e
geômetras. Era por essa razão que ele buscava o que é a excelência, e não
como ela vem a ser e a partir de que. (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo,
I.1216b2-10) 126

Essa passagem é a mais esclarecedora referência a Sócrates nos trabalhos de Aristóteles


que sobreviveram aos dias atuais. Ao mesmo tempo, exemplifica o uso da “indução” e revela
que o primeiro princípio de seu pensamento e razão para a sua busca pelas definições universais
era a convicção que a finalidade da vida humana é o conhecimento de algo específico que “é”,
a virtude, e que, ao conhecê-la, torna-se virtuoso, mas nada diz a respeito disso que “é” ser uma
forma (εἶδος ou ἰδέα).
Tais são, por fim, os relatos de Aristóteles, que, em geral, têm como intuito apresentar
os detalhes sobre Sócrates somente enquanto provedor dos fundamentos inquisitivos a partir
dos quais Platão desenvolveu sua teoria das Formas. Não há nenhum indício em seus relatos do
uso dos termos εἶδος e ἰδέα por parte de Sócrates. Nota-se, inclusive, como Aristóteles evita
atribuir o vocabulário de εἶδος e ἰδέα àquilo que buscava Sócrates, utilizando-se de seus
próprios termos técnicos, καθόλου e τὸ τί ἐστιν, para dar sua explicação a respeito disso.
Entretanto, para saber em que medida o Sócrates dos diálogos de juventude de Platão trata essas
“definições universais” como formas e se separadas dos indivíduos (animados ou não) dos quais
são a causa e mais reais do que eles, ou de alguma outra maneira, é algo que será investigado.

2.5 A Controvérsia sobre o Relato de Aristóteles e a Separação das Formas Platônicas

Antes de prosseguirmos para a análise de εἶδος e ἰδέα nos diálogos de juventude de


Platão, faz-se necessário buscar um melhor entendimento da questão que, segundo o relato de
Aristóteles, parece demarcar a passagem da investigação socrática para a platônica no que tange
a questão “τί ἐστι X?”: a separação das Formas.
Como vimos, em M.4, Aristóteles explicitamente declara que Sócrates nunca fez dos
universais entidades separadas, embora seja fonte do estímulo ao desenvolvimento de tal
doutrina. Isso se repete em M.9: “Como já dissemos anteriormente, esse modo de raciocinar foi
iniciado por Sócrates mediante as definições; Sócrates, porém, não separava as definições das

126
Tradução nossa.
84

coisas particulares. E ele tinha plena razão nisso” (ARISTÓTELES, Metafísica, 1086b2-5). Na
visão de Aristóteles, é Platão, portanto, quem fez esse infeliz passo e, assim, tornou toda a
doutrina problemática 127. Que o próprio Sócrates nunca separou os universais é uma afirmação
que Aristóteles não poderia ter feito apenas lendo os diálogos de Platão, pois neles, como bem
se sabe, é o próprio Sócrates quem propõe a doutrina das Formas e se refere a ela como uma
teoria sua já bem conhecida 128. O testemunho categórico de Aristóteles em M.4 é a fonte
primordial para distinguir o Sócrates platônico do Sócrates “histórico” nesse quesito. Agora,
se, de fato, Platão concebia as Ideias separadas, e em que sentido, é uma forte controvérsia entre
os estudiosos. Adiante veremos mais a esse respeito. O que se tem de fato é que, nos seus
escritos, o próprio Platão faz Parmênides argumentar ao jovem Sócrates que a doutrina da
separação das Formas leva a absurdos (cf. PLATÃO, Parmênides, 130b ff.). Além desse
diálogo, Platão não usa o vocabulário da separação (χωρίζω) para as Formas, embora o use para
indicar a independência da existência da alma em relação ao corpo 129. Todavia, o fato de Platão
achar necessário criticar o jovem Sócrates no Parmênides a respeito das Formas serem
separadas das coisas sensíveis, suscita uma reflexão mais profunda do assunto, que, no entanto,
está fora do escopo dessa investigação 130.
É bem provável que Aristóteles realmente tenha sido o mais proeminente aluno da
Academia de Platão, mas, como já vimos com Charles Kahn, não é por isso que seu testemunho
pode ser considerado plenamente fidedigno. Assim como Aristóteles interpretou os pré-
socráticos com a sua própria teoria das causas, alguns estudiosos duvidam de sua crítica à teoria
platônica da existência separada das Formas, admitindo a possibilidade de Platão nunca ter tido
tal teoria, e esse relato ser apenas interpretação de Aristóteles sob seus próprios termos. Isso foi
bem exposto por Gonzalez (2002, p. 46-47), ao explicar que os indícios no texto de Aristóteles
que sustentam essa dúvida vêm dos próprios incômodos do autor com a falta de clareza de
Platão em fornecer respostas às questões fundamentais a respeito da teoria das Formas.
Na Metafísica encontra-se a seguinte queixa: “Dizer que as Formas são paradigmas
(παραδείγματα) e que as coisas sensíveis participam (μετέχειν) delas significa falar sem dizer
nada e recorrer a meras metáforas poéticas” (ARISTÓTELES, Metafísica, 991a20-22) 131. E

127
Veremos adiante aspectos de sua crítica no tangente à separação das Formas/Ideias.
128
Isto é assim no Fédon, República, e, também, no Parmênides onde a doutrina é proposta por Sócrates ainda
jovem.
129
Cf. Fédon, 67c, 67d. Em 100c-102b Platão faz uso frequente do vocabulário da participação (μετέχειν,
μεταλαμβάνειν) em relação às Formas, mas deixa em aberto como essa relação deve ser entendida.
130
Em que medida é possível entender as “Formas” (ιδέαι ou είδη) como entidades separadas e que as muitas
coisas particulares existem por “participação” nessas Formas será um dos pontos a serem analisados mais adiante
nos diálogos ditos de juventude.
131
Tradução de Giovanni Reale (2014) modificada.
85

adiante reitera: “De fato, a expressão ‘participar’ (μετέχειν), como dissemos acima, não
significa nada” (ibid., 992a28-29). Ainda no começo de sua discussão a respeito das Formas
platônicas, ele diz que Platão foi descuidado em não explicar o que seria a “participação
(μέθεξις) ou imitação (μίμησις) das Formas” (ibid., 987b13-14). Até que ponto o que Platão diz
sobre as Formas é meramente metafórico é questão disputada ainda hoje 132. Além disso, nota-
se que Aristóteles, que, ao distinguir o pensamento de Sócrates e Platão, parece apontar a
separação como sendo o ponto central da teoria das Formas platônica, é incapaz de extrair
qualquer sentido da “participação” enquanto explicação dada para o modo pelo qual as Formas
são ousiai dos fenômenos.
A última prova importante é o fato de Aristóteles se embasar nas suas próprias
categorias filosóficas para explicar a teoria das Formas de Platão (a mesma coisa que faz
duvidar da fidelidade de sua exposição a respeito dos pré-socráticos).

Mas os que afirmam a existência das Formas, sob certo aspecto, têm razão de
apresentá-las como separadas, se as formas são substâncias (οὐσίαι); mas, sob
outro aspecto, não têm razão, porque chamam Forma a unidade que se refere
a uma multiplicidade (ὅτι τὸ ἓν ἐπὶ πολλῶν εἶδος). (ARISTÓTELES,
Metafísica, 1040b28-30)

É dessa passagem da Metafísica que Gonzalez explica o sentido da crítica de Aristóteles ao


problema da separação platônica das Formas

Uma vez que Aristóteles também considera que Platão descreve as formas
como ousiai, conclui que elas são separadas do mesmo modo que as
substâncias, em seu ponto de vista, são separadas: elas são coisas individuais
que existem por si mesmas e não em alguma outra coisa. E Aristóteles enxerga
que os platonistas justificam-se ao separar as formas se eles assim o fazem por
considerar que as formas são substâncias. Ele contesta, entretanto, que se as
formas são separadas nesse sentido então não podem ser comuns a ou estarem
em uma pluralidade de coisas e, portanto, não podem ser universais. Assim,
ele coloca os platonistas num dilema: se consideram as formas substâncias,

132
Como, por exemplo, Wedberg (1971, p. 47): “The metaphysical status of Ideas is explained by Plato mostly in
metaphorical terms, and it is difficult to know in how far his statements in this respect are meant to be taken
seriously”. E também Wolfgang Wieland que assume a representação dos “dois-mundos” como sendo “ein bloßes
Veranschaulichungsmittel” (WIELAND, 1999, p. 136), e que a “participação” é “eine Metaphorik” (ibid., p. 139).
86

devem separá-las de modo que seja incompatível de essas serem universais.


(GONZALEZ, 2002, p. 47)

De acordo com Gonzalez, o problema é, portanto, a aparente suposição de Aristóteles


de que, como Platão considera as formas ousiai, ele também deve considerá-las separadas no
sentido de serem coisas individuais com existência independente e, sendo assim, não podem
ser universais. Aristóteles, de fato, insiste que nada pode ser ao mesmo tempo um universal e
um particular (vide, e.g., Metafísica, 1086b10-13). Desse impasse parece haver dois caminhos
distintos de críticas ao relato apresentado por Aristóteles, sendo que o primeiro afirma que
Aristóteles estaria equivocado ao tratar as Formas platônicas como universais. Como exemplo
dessa linha crítica podemos citar Christopher Rowe, que de forma muito sucinta explica que

essas coisas, “coisas em si mesmas”, “naturezas reais”, “formas”, não são –


meros – universais, ainda que eles se comportem em alguns aspectos como
universais; se eles estão “presentes nos” particulares por conta do
relacionamento de “participação”, o que está realmente “nos” particulares não
é mais que uma sombra ou “imagem”, “cópia”, da coisa real. (ROWE, 2007,
p. 275)

Ele, todavia, não oferece nenhuma alternativa positiva do que elas seriam.
Christopher Rowe assume uma posição unitarista um tanto diferenciada, defendida,
sobretudo, em seu livro de 2007: “Plato and the Art of Philosophical Writing”. Contrário à
visão de que os diálogos de Platão teriam a filosofia de Sócrates numa parte e sua própria
filosofia noutra (2007, p. viii), ele argumenta que todos os diálogos são socráticos, no sentido
de que em todos eles Platão representa a filosofia de Sócrates (ibid., p. 13) e o que aparenta ser
uma mudança no pensamento de Platão é, em realidade, somente uma mudança de estratégia,
apenas apresentando novas rotas de abordagem (ibid., p. 26). Nesse “unitarismo socrático”,
assume a seguinte posição a respeito da questão do Sócrates histórico: “Não vejo qualquer
obstáculo à suposição de que o retrato geral de Sócrates feito por Platão seja fiel à sua própria
visão do original” (ROWE, 2007, p. 16), no sentido de que o Sócrates de Platão “pode
legitimamente ser identificado como pertencente àquela imagem verdadeira das coisas que ele
– a pessoa histórica – havia começado a esboçar” (ROWE, 2007, p. 16, n. 48). Admite, ainda,
a cronologia da composição dos diálogos de Platão, mas com a ressalva de serem apenas “útil
para se saber algo sobre a ordem da composição dos diálogos para o propósito de identificar
87

referências cruzadas, a maioria das quais estando necessariamente implícitas”, e, obviamente,


descarta a divisão dos diálogos – primeiros (socráticos), médios (platônicos), e tardios
(platônicos) –, com a justificativa de que não é necessário seguir o relato de Aristóteles (cf.
ROWE, 2007, p. 49).
A argumentação de Rowe é desenvolvida por uma série de diálogos que incluem a
Apologia, Fédon, Menon, Fedro, Teeteto e o Timeu. Seu foco maior é com os diálogos médios
da cronologia 133, em especial a República, obviamente pelo fato de que seria nesses diálogos
onde seus oponentes “desenvolvimentistas” distinguem a filosofia platônica da socrática. Sua
empreitada é particularmente complicada no que tange à epistemologia, à metafísica (teoria das
Formas), e à psicologia, como o próprio Rowe afirma (ibid., p. 49). Naquilo que interessa à
presente pesquisa, que são as Formas, Rowe se posiciona, desde publicações anteriores,
declaradamente contra Kahn e Vlastos a respeito daquilo que ele rotula como sendo uma
“versão grosseira da interpretação dos ‘dois-mundos’” (ROWE, 2005, p. 228). Assim
apresentou sumariamente sua posição, contrária a esses que rotula como sendo “intérpretes
modernos sem sofisticação” (ROWE, 2005, p. 216 n. 4):

Em resumo, formas “separadas” não constituem uma “teoria metafísica


grandiosa”; embora a “separação” (o que quer que isso implique) (...)
provavelmente tenha sido ao menos implícita em quaisquer pontos de vista
que nós, finalmente, atribuímos a Sócrates. (ROWE, 2002, §24)

Ele, todavia, oferece a sua explicação do que implica “separação”:

Um dos pontos sobre os quais Platão torna seu Sócrates mais insistente é que
as Formas não devem ser confundidas com os particulares: o Belo não é o
mesmo que, digamos, as coisas que vemos, ouvimos, ou cheiramos e
chamamos de belas. Essa é certamente o que há por trás da ideia de
“separação”. (ROWE, 2005, p. 228)

Mas, apesar de admitir e explicar que para Platão as Formas são ontologicamente outras
que os particulares, “como entidades distintas, uma categoria distinta de onta” (ROWE, 2005,
p. 228), e admitir também que essas “naturezas reais da beleza, justiça, humanidade,
conhecimento, governança (...) não dependem do intelecto – até mesmo um intelecto divino –

133
Âmbito que excede o escopo da presente pesquisa.
88

para a sua existência” (ROWE, 2007, p. 275), seu argumento é apenas sempre insistir que isso
não implica em “remover as Formas deste mundo para algum outro” (ROWE, 2005, p. 228),
sem dar uma explicação do que seria o seu próprio entendimento a esse respeito. A alternativa
oferecida por Rowe é no mínimo frustrante. Rowe ignora completamente o problema da
“participação” das Formas nos particulares, e afirma que as Formas seriam, portanto, “como se
fossem um universal aristotélico” (ROWE, 2007, p. 251.) mas “não exatamente” (ROWE, 2007,
p. 252), e assumidamente afirma que não oferecerá nenhum esclarecimento do que isso seria:
“eu terei muito pouco a oferecer além de algumas observações sugestivas” (ROWE, 2007, p.
252, n. 48). Sua conclusão a respeito das Formas é mais bem resumida por ele mesmo: “mesmo
após tanta discussão, ainda permanece consideravelmente menos que claro o que é acreditar ou
colocar a existência das Formas platônicas” (ROWE, 2005, p. 231). Para Rowe (2005, p. 230),
“o que precisamos filosoficamente é a existência de um Platão sem as Formas” 134.
A outra linha interpretativa contrária ao relato de Aristóteles sustenta que as Formas
platônicas seriam de fato universais aristotélicos, e, dessa maneira, busca um contraponto ao
“equívoco” de Aristóteles em atribuir a Platão que a ousia é separada. Como o próprio Gonzalez
aponta (2002, p. 75, n. 76), Gail Fine é a representante dessa tentativa de oposição. A seguir,
analisaremos sua argumentação conforme expressa no seu livro de 1993, “On Ideas”.

2.5.1 Gail Fine e o testemunho de Aristóteles

Embora o estudo de Fine seja sobre o tratado perdido de Aristóteles, o Peri Ideôn, do
qual só existem evidências textuais fragmentárias, ela também lida diretamente com as
passagens do relato de Aristóteles a respeito de Sócrates e a origem da ontologia das Formas
platônicas 135, e elabora sua própria tese a partir delas.
Em suma, Gail Fine defende que Sócrates e Platão teriam uma mesma teoria das Formas,
sendo que em todo o corpus platônico, com exceção do Timeu, as Formas seriam universais

134
Rowe evita fornecer o seu próprio esclarecimento a respeito das Formas com a justificativa da impossibilidade
de conhecimento delas (cf. ROWE, 2005).
135
Todas as três passagens da Metafísica: A.6, 987a29–b8; M.4, 1078b12–32; M.9, 1086a32–b13 (cf. FINE, 1993,
p. 44-46).
89

aristotélicos 136 no sentido de que dependem das instâncias particulares sensíveis 137 para sua
existência, e, portanto, “propriedades”, em virtude de seu “papel explanatório”, o que
justificaria o sentido em que elas são autopredicativas e paradigmas.
A separação das formas platônicas como relatada por Aristóteles se torna o grande
problema a ser combatido pela sua tese, pois, como ela mesma explica: “Mas do modo como
eu (seguindo Aristóteles) entendo a separação, a declaração de que formas – universais – são
separadas é simplesmente declarar que elas podem existir havendo ou não qualquer particular
sensível correspondente” (FINE, 1993, p. 61) 138. É exatamente por esse entendimento de
separação que o Timeu será uma anomalia em sua tese, uma vez que, como ela mesma afirma,
nesse diálogo,

Platão parece estar comprometido com a separação. Pois ele diz que as formas
são eternas e que o cosmos não é eterno; a forma do homem sempre existiu,
mas homens particulares não existiram sempre. Segue-se que a forma do
homem existia antes do cosmos vir a ser, então ela existia quando não havia
nenhum homem particular sensível; desse modo, ela pode existir caso eles
[homens particulares] existam ou não, então é separada. Mas ele não diz que
o cosmos não é eterno, então a rota para a separação não é mencionada no

136
“Aristotle believes that a universal exists when and only when it is instantiated; see e.g. Cat. 14a7-10” (FINE,
1993, p. 247). Sobre a definição terminológica de um universal: “The Peri Ideon also speaks of what is predicated
in common of particulars (to koinos kategoroumenon ton kath' hekasta', 81. 9-10; cf. 84. 22-3); and in DI 17a39-
40 (which I discuss further below) Aristotle defines katholou in very similar terms, as 'what is naturally predicated
of more than one thing'. So I assume that 'what is predicated in common of particulars' also denotes universals.
In SE 22 (179a8-9) Aristotle uses 'to para tous pollous hen ti' for what is predicated in common, hence presumably
for a universal. Cf. also APo. 77a1, hen ti para ta polla; 100a7, hen para ta polla; in Met., 80.14, hen epipollois.
(I use 'one over many' for these and related locutions—such as 'hen kata pollon' and 'hen epi pleionon' (APo. 77a5-
9) — since the phrase is so well entrenched and since Aristotle does not seem to have any systematic distinction
in mind in using the various locutions.) For more on Aristotle's use of the phrase 'one over many', see Ch. 5.2 and
Ch. 8.2. For more on ways of referring to universals, see Ch. 3 n. 69.” (FINE, 1993, p. 246).
137
Sobre a diferença entre particulares e universais, Fine (1993, p. 23) primeiramente cita Aristóteles em De
Interpretatione 7: “Algumas coisas (pragmata) são universais (katholou), outras são particulares (kath' hekaston).
Por 'universal', quero dizer o que é naturalmente predicado de mais de uma coisa; por 'particular', o que não é.
Homem, por exemplo, é um universal, Cálias um particular.” (17a38-51, tr. Gail Fine). A seguir, se referindo a
Metafísica, 1040b25-6, diz que “Aristotle also sometimes says that unlike particulars, universals can
simultaneously be in more than one place at a time” (FINE, 1993, p. 23 – 24). E assim conclui: “None of these
ways of differentiating between particulars and universals is entirely satisfactory, and I have no new criterion to
offer in their stead” (FINE, 1993, p. 24).
138
Como já havia demonstrado R. E. Allen: “At Categories, 1a, 24-25, Aristotle remarks that ‘By “in a subject” I
mean what is in something, not as a part, and cannot exist separately (χωρίς) from what it is in’. This text, along
with Aristotle’s subsequent remark that ‘Nothing prevents [what is individual and one in number] from being
present in a subject’ (1b 7-8), suggests that separation implies existential independence as well as numerical
distinctness. This independence must be construed as distributive, not collective; for by ‘in a subject’ Aristotle
means, not merely ‘cannot exist apart from some subject’, but ‘cannot exist apart from the particular subject it is
in’. In claiming that the Ideas are separate, then, Aristotle means that they are individuals, and that they exist
independently of any given instances.” (ALLEN, 1970, p. 131-132).
90

Timeu. De fato, nada que é dito nos diálogos médios me parece envolver um
comprometimento claro com a separação. Ainda assim, a separação se encaixa
bem com o tom dos diálogos médios, e a maneira casual com que a separação
emerge no Timeu sugere, talvez, que Platão a menosprezava. Então, eu assumo
que Aristóteles está correto em dizer que Platão separava as formas, embora
seja importante esclarecer que Platão nunca argumenta, ou sequer diz, que as
formas são separadas. (FINE, 1993, p. 61)

Mesmo aceitando a separação das Formas no Timeu, em sua conclusão, ela insiste que
são apenas alguns mínimos detalhes que diferenciam as filosofias das Formas de Platão e
Sócrates. Eles discordam naquilo que Platão diz das Formas serem não-sensíveis e perfeitas,
mas nessas diferenças

Platão não está guinando para uma direção radicalmente nova. Em vez disso,
ele oferece o que ele considera ser a defesa mais plausível a Sócrates, ou o
desenvolvimento dos pontos de vista de Sócrates no que ele considera ser o
modo mais plausível. Particularmente, as formas platônicas não são entidades
diferentes das formas socráticas. Em vez disso, Platão tenta oferecer o que ele
enxerga como um relato melhor das mesmas entidades. (FINE, 1993, p. 64)

Em geral, sua tese se pauta em uma argumentação um tanto frágil. Desses pontos
críticos, atentar-nos-emos àqueles que nos compete analisar segundo o escopo da presente
pesquisa. Fine é muito direta ao informar qual entendimento, em sua opinião, se extrai sobre a
filosofia socrática dos testemunhos de Aristóteles:

Sócrates acredita que respostas corretas a perguntas sobre “o que é F?”


especificam as formas; as formas são os objetos de definição em que, como
vimos, definições são definições reais. Os correlatos ontológicos das
definições reais são as essências reais, universais não-linguísticos que
explicam por que as coisas são como são. (FINE, 1993, p. 49)

Já, de imediato, sua tese se mostra problemática ao atribuir falaciosamente a Aristóteles


o relato de que Sócrates tinha para si as “formas” como universais, quando, na verdade, o que
de fato Aristóteles relata é que Sócrates pautou suas investigações nas virtudes éticas e buscou
os “universais” no âmbito dessas questões, com foco nas “definições”, mas que ele não
91

“separou” os universais que ele buscava definir. Como visto, Aristóteles diz, então, que Platão,
por sua vez, separou os universais, chamando-os de Formas. Ela insiste, ainda sem
embasamento, em atribuir a Aristóteles tal relato de que Sócrates tinha as “formas” como
universais e desenvolve, agora se pautando em duas passagens dos diálogos de juventude de
Platão (Eutidemo, 5d1-5; Mênon, 72c7), que: “Aristóteles considera que as formas socráticas
são universais não só no sentido em que elas estão ou pode estar em mais de uma coisa ao
mesmo tempo, mas também no sentido em que elas são essências reais, propriedades
explanatórias” (FINE, 1993, p. 50). Desse modo, Sócrates teria uma concepção realista dos
universais e as formas seriam “propriedades”. Sobre esse último ponto ela explica:

Propriedades são por vezes distinguidas das espécies e tipos. Eu uso


“propriedade” de modo mais abrangente, para incluir todos esses tipos de
entidades. (...) O ponto crucial para os nossos propósitos é que, na concepção
realista, os universais são entidades explanatórias aproximadamente do tipo
que as propriedades concebidas num molde realista foram consideradas.
Usarei a palavra “propriedade”, “propriedade explanatória”, e “propriedade
genuína” de modo intercambiável. (FINE, 1993, p. 247)

Ainda nessa linha de raciocínio, ela discorre mais a respeito de três características que
determinariam as supostas formas socráticas: elas não são separadas das instâncias sensíveis, e
são autopredicativas e paradigmas. No que diz respeito à separação, ela apenas sustenta que
Sócrates nunca afirmou que as formas são “separadas”, e que outras evidências pró ou contra
são indeterminadas (FINE, 1993, p. 52). Na questão da autopredicação, ela começa explicando
como a forma de F não pode ser tanto F quanto não-F. Pode ser, no entanto, que a forma seja
não-F da mesma maneira que seus participantes; “pode ser F de um modo sui generis,
simplesmente em virtude de seu papel explicativo” (FINE, 1993, p. 52-3). Ela, então, associa a
autopredicação com paradigmatismo:

Quando Sócrates diz que as formas são paradigmas, ele parece querer dizer
somente que elas são modelos no sentido de que para saber se x é F, deve-se
saber, e referir-se, à forma de F. Pois x é F se e somente se tiver a propriedade,
i.e., forma, de F; então para saber se x é F, precisa-se saber o que é F e usar
esse conhecimento ao explicar como é que x é F. (Portanto paradigmatismo e
autopredicação estão intimamente relacionados. A forma de F é F porque
92

explica a F-dade das coisas; as formas são também paradigmas por conta de
seu papel explanatório.) (FINE, 1993, p. 53)

E assim a autora resume seu entendimento das formas socráticas:

As formas socráticas são universais no sentido de serem propriedades


explanatórias. O fato de que eles são paradigmas autopredicativos não
compromete seu status como propriedades explanatórias; pelo contrário, eles
são paradigmas autopredicativos porque são propriedades explanatórias.
(FINE, 1993, p. 54)

Segundo Fine, as formas socráticas seriam, portanto, essências reais, universais, e paradigmas
autopredicativos, na medida em que são “propriedades explanatórias”. Defende ainda que estas
não seriam separadas de seus participantes, mesmo afirmando que evidências a esse respeito
são “indeterminadas” 139.
No que concerne à diferença das formas socráticas em relação às platônicas é onde a
tese de Gail Fine conflita com o relato de Aristóteles. O ponto de partida de Fine é a relação da
teoria das formas com o heraclitismo de Platão. Como tradicionalmente interpretado, e
resumido de maneira muito simplista, o heraclitismo platônico não admite conhecimento
possível do sensível por este estar em constante mudança. Fine, por sua vez, distingue duas
versões de heraclitismo: uma versão radical, essa que acabamos de falar, de acordo com a qual
os objetos mudam em todos os aspectos em cada momento, e que ela rejeita afirmando que
Platão nunca aceitou esse tipo extremo de heraclitismo (FINE, 1993, p. 56); e uma versão
moderada, segundo a qual os objetos mudam em algum aspecto a cada momento, e também a
mudança definida como uma sucessão de opostos. A esses dois, ela acrescenta um terceiro tipo
de mudança: mudança substancial, geração e corrupção das coisas (FINE, 1993, p. 54).
Todavia, para explicar que tipo de heraclitismo ele aceitou, além da sucessão de opostos, Fine
acrescenta à discussão a copresença de opostos. É sabido que Platão negou que os sensíveis
pudessem ser objetos de conhecimento porque eram ao mesmo tempo ambos F e não-F 140. Esta
é a copresença de opostos. Fine a trata como uma forma de heraclitismo (FINE, 1993, p. 56-
57) e afirma que é o argumento que leva Platão a postular as formas como os “objetos básicos

139
Cf. FINE, 1993, p. 52.
140
E.g.: Fédon, 74b-c; República, 479a-d, 523-525.
93

do conhecimento”: “...deve-se conhecê-los para se ter qualquer conhecimento. Não procede que
as formas sejam os únicos objetos de conhecimento” (FINE, 1993, p. 59). Afirma ainda que:

O argumento da copresença mostra que as formas são diferentes de ambos os


particulares sensíveis e as propriedades sensíveis. Mas não mostra que as
formas são separadas: isto é, que elas podem existir caso os particulares
sensíveis correspondentes existam ou não. (FINE, 1993, p. 60).

Sua conclusão de que seria da copresença dos opostos que Platão concebeu a existência
de formas não sensíveis, mas que isso não implica na separação, é baseada na sua interpretação
do que ela chama de “a famosa passagem da aitia” no Fédon (96a ff.):

Em sua visão, se x é F e não-F, não pode explicar por que qualquer coisa é F;
não pode, noutras palavras, ser aquilo pelo qual qualquer coisa é F. Uma vez
que algumas propriedades sensíveis de F sofrem a copresença, referir-se a elas
não explica por que qualquer coisa é F, e então eles não podem ser o que é a
F-dade. Uma vez que a explicação é possível, nesses casos as coisas são F em
virtude de uma propriedade não-sensível, a forma de F. (...) Em Platão, a visão
socrática de que a forma de F é a única coisa pela qual todos os Fs são F torna-
se a visão de que as formas são aitiai, fatores explanatórios ou causais – ao
menos em alguns casos, as coisas são como são porque elas participam nas
formas não-sensíveis que escapam à copresença. (FINE, 1993, p. 58)

Toda a argumentação de Gail Fine para evitar a separação das formas se sustenta,
portanto, na sua tradução/interpretação de aitia como “explanatory fator”. Desse modo, ela
reduz a etiologia daquilo que ela chama de “metafísica” em Platão a ter somente “repercussões
epistemológicas” (FINE, 1993, p. 57) 141.
Em relação à questão da separação nos diálogos médios, já foi visto que Fine defende
não haver um comprometimento com a separação, e que isso só aparecerá no Timeu 142. Sobre
a autopredicação e o paradigmatismo das formas, a autora argumenta que nos diálogos médios
Platão avança nessas teorias, mas sem deixar de ser consistente com as formas socráticas dos
diálogos de juventude. Ela identifica, no entanto, duas formas de autopredicação: a primeira
que ela chama de narrow self-predication (NSP), segundo a qual as formas são F do mesmo

141
A seguir, em 2.5.2, abordamos com mais detalhes esse ponto fundamental de sua tese.
142
Cf. FINE, 1993, p. 61.
94

modo que os seus participantes são, e a outra é nomeada de broad self-predication (BSP),
segundo a qual as formas são F de um modo diferente que os seus participantes seriam. Nesse
último caso, as formas são F porque elas “explicam” a maneira pela qual as coisas F são F.
Novamente, a estratégia de Fine para evitar que as formas sejam particulares devido à sua
autopredicatividade é fundamentada na sua tese de que as formas são “entidades explicativas”,
“propriedades”, evitando assim uma das principais razões para se pensar nas formas como
particulares 143. Ademais, diferente de Sócrates, Platão faz das formas paradigmas perfeitos,
enquanto seus participantes são Fs imperfeitos e derivados (da forma). Desse modo, “enquanto
Sócrates aceita somente o paradigmatismo fraco, Platão aceita o paradigmatismo perfeito”
(FINE, 1993, p. 63). Mas nenhuma dessas inovações comprometem o status das formas
enquanto universais.
Assim, portanto, a autora conclui que as formas socráticas e platônicas são mais
semelhantes do que se acreditava até então. Ambas são “universais ou propriedades”,
“introduzidas por razões metafísicas e epistemológicas”; elas não são particulares perfeitos,
nem significados. Tanto Sócrates como Platão aceitam a autopredicação das formas, mas a sua
versão é mais bem interpretada como BSP (FINE, 1993, p. 64).

2.5.2 Aitia como “explanatory fator”

Como se viu, toda a tese de Gail Fine para evitar a separação das Formas platônicas
depende completamente da sua interpretação de aitia como “explanatory fator”, e desse modo
assumir as Formas como “propriedades”, ou “entidades explicativas”. Essa tradução de aitia
foi sugerida pela primeira vez por Julius Moravcsik (1974; 1975) como um termo que melhor
expressaria “causa” na teoria aristotélica das quatro causas. Isso já deixa explícito como essa é
uma abordagem interpretativa de aitia em Platão sob a ótica conceitual aristotélica. A questão
de se a causalidade das Formas/Ideias platônicas deve ser entendida no âmbito da produção ou
somente da explanação tem sido debatida desde a seminal publicação de Vlastos, “Reasons and
Causes in the Phaedo” (1969). Sua tese é a de que a causalidade das Formas consiste apenas
em uma “explicação lógica”, que permite somente classificar um determinado ser sensível sob
uma determinada classe ou categoria. Formas como explicações nos permitem entender os seres
sensíveis que são imperfeitamente semelhantes a elas, mas elas não possuem “eficácia causal”
(VLASTOS, 1969, p. 295). Desde então muitos estudiosos, principalmente da língua inglesa,

143
Cf. FINE, 1993, p. 62-63.
95

passaram a adotar a tese de Vlastos. Outros importantes estudiosos são, no entanto, contrários
a ela, e defendem que Platão, ao falar sobre as Formas/Ideias, usa uma linguagem que implica
as noções de produção e geração 144. Sustentam, assim, que as Ideias transferem, de algum
modo, as características determinantes para os seres sensíveis, exercendo uma espécie de
causalidade “eficiente”.
Como já dito, uma das principais críticas à interpretação de Aristóteles sobre a filosofia
de seus antecessores é justamente o fato de ele se embasar nas suas próprias categorias
filosóficas para explicá-las. O argumento que leva Vlastos e os intérpretes que o seguem a
aplicarem as noções aristotélicas de causalidade a Platão é a suposição de que a distinção que
faz Aristóteles das quatro causas é apenas um recolhimento direto do uso comum da linguagem
do século IV a.C., e que Aristóteles estaria apenas fazendo um registro. Esta é a premissa,
portanto, que lhes justifica interpretar a causalidade das Formas/Ideias de Platão através da ótica
conceitual de Aristóteles 145, a argumentação basilar que sustenta toda essa linha interpretativa.
No caso de Fine, ter que se pautar em tal argumentação já se mostra suspeitamente tendencioso,
pois ao mesmo tempo em que, por um lado, utiliza-se de Aristóteles como plenamente confiável
no seu “mero recolhimento” de distinção das quatro causas, por outro, ele teria se equivocado
no seu relato a respeito da causalidade das Formas em Platão. Não só na Metafísica, em 998a,
Aristóteles afirma que em sua explicação sobre causa ele está expressando um melhor
entendimento do que todos aqueles que o antecederam, pois esses o fizeram “de uma maneira
confusa (ἀμυδρῶς)”, como, também, uma das críticas diretas a Platão nesse sentido é
justamente sobre o fato de ele ter atribuído causalidade “eficiente” às Formas (A.9,991a1-5 –
referindo-se diretamente ao Fédon; cf., também, Z.8,1033b26-8) 146.
Recentemente, Carlos Natali (2013) investigou e analisou os fundamentos dessa
suposição interpretativa de Vlastos e seus seguidores, e demonstrou um cenário bem
incompatível com essa tese. Na sua empreitada, Natali analisa com detalhes a complexidade da
concepção filosófica de Platão e Aristóteles de causa, bem como o uso comum de aitia na época.
E assim explica a diferença conceitual de Aristóteles e seus antecessores:

Em primeiro lugar, Aristóteles critica as Ideias porque, sendo separadas, não


podem realizar a função que Platão designa a elas. Além disso, Aristóteles
introduz a forma na matéria e separa a função eficiente da função formal,

144
Como, por exemplo, Fronterotta (2001a, p. 216-222; 2007, p. 53-54); Ferrari (2001, p. 8-19; 2003, p. 99-101);
Dixsaut (1991, p. 375-80); Natali (2013).
145
Cf. VLASTOS, 1969, p. 292-296.
146
Vide nota 153 adiante.
96

atribuindo um tipo diferente de causalidade a cada uma delas. O mesmo


acontece com a noção pré-socrática de matéria. Aristóteles separa a função do
substrato daquela da função formal, as quais eram unidas na visão dos
filósofos pré-socráticos. Na realidade, em Metaph. A 3, Aristóteles nos conta
que alguns pré-socráticos – os pluralistas – atribuíam à matéria uma espécie
de função eficiente (984b 6-8). Por esse motivo, Platão havia estabelecido um
debate polêmico com eles, como já vimos. Platão acusa os pré-socráticos de
ter fundido a causa material com a causa eficiente, e apoia a ideia de uma
causa material sem as funções eficientes (cf. Phys. II 1, 193a 9-28). É por isso
que em Aristóteles não há conflito entre matéria e forma enquanto causas
como ocorre em Platão, uma vez que elas não possuem causas eficientes.
Podemos dizer que Aristóteles desconstruiu um conceito complexo ao dividir
em dois o que tanto Platão quanto alguns pré-socráticos consideravam como
noções unificadas. (NATALI, 2013, p. 56)

Conclui, portanto, que a noção de aitia aristotélica se diferencia da de Platão na medida em que

Aristóteles conduz uma “desconstrução” da causa platônica, separando as


funções motriz e produtiva da função do paradeigma e da função material;
além disso, ele concilia as causalidades pré-socráticas e platônica: matéria e
forma podem coexistir uma vez que ambas são privadas da função eficiente.
(NATALI, 2013, p. 67)

Ademais, o apanhado histórico de sua investigação trouxe à luz mais evidências que
apontam em uma direção diretamente contrária à premissa argumentativa de Vlastos e seus
seguidores, indicando que Aristóteles estaria de fato apresentando a sua própria posição dentro
de uma discussão corrente na Academia no que tange a sua teoria das causas. Ressalta como
dentre os discípulos de Platão a questão da existência das Ideias e sua causalidade parece ter se
desdobrado em duas principais ramificações: uma com Xenócrates admitindo a função causal
produtiva das Ideias, e outra com Espeusipo e Aristóteles a negando (nota: cf. NATALI, 2013,
p. 51-52). Esclarece ainda que:

Na realidade, o platonismo exerce uma influência forte na teoria das causas


nas filosofias helenísticas e, em particular, no estoicismo (Moreau, 1939, p.
160; Solmsen, 1963, p. 495; Kraemer, 1971, p. 108-131). Nesse sentido, a
teoria das causas de Aristóteles, que é uma teoria da causalidade enquanto
97

dependência e não enquanto produção, parece ser um caso isolado no


pensamento antigo. Em Platão e na filosofia helenística, a noção de causa era
identificada com a noção de um produtor, e a abordagem peripatética não era
aceita por outras escolas. Mais adiante na história do pensamento ocidental,
entretanto, houve muitos outros relatos de dependência da noção de
causalidade. (NATALI, 2013, p. 68)

Tais evidências demonstram uma certa polêmica a respeito desse tema na época,
incompatíveis, portanto, com a premissa de que o conceito de aitia elaborado por Aristóteles
seria apenas uma exposição do senso comum do séc. IV a.C, e, então, aplicável a Platão. Natali
apresenta ainda outras evidências que se somam a esse cenário e faz da premissa argumentativa
de Vlastos e seus seguidores um tanto improvável. Dentre elas, argumenta que nem para se
entender as causas em Aristóteles é possível traduzir aitia como “explanação”, pois isso implica
em atribuir à causa uma função principalmente epistemológica, o que, ao seu ver, não é
correto 147. Ou demonstra, ainda, como o vocabulário aristotélico para se referir às quatro causas
era inexistente antes dele e passará a ser usado apenas após seus escritos (cf. ibid., p. 56). Sob
a luz desses argumentos, interpretar a causalidade das Formas em Platão pelas teorias
aristotélicas é uma empreitada anacrônica e insustentável.

2.6 Aristóteles e a Anterioridade Ontológica das Formas Platônicas

Tendo em conta o estudo apresentado nas seções anteriores, podemos concluir que a
tese desenvolvida por Gail Fine é pautada em suposições um tanto frágeis. Primeiro, por clamar
falaciosamente que Aristóteles afirmou que Sócrates respondeu a sua questão τί ἐστιν com as
formas. Segundo, por argumentar que as supostas formas socráticas não são separadas mesmo
afirmando que argumentos que sustentem isso são indeterminados. E, terceiro, por sua
argumentação da não separação das Formas platônicas se pautar na questionável interpretação
de αιτία como “explanatory fator”. Fine diz ainda não saber a razão pela qual Platão teria

147
Seguindo Sedley (1998, p. 122); Sorabji (1983, p. 40), que preferem dizer que a aitia de Aristóteles “is what
provides an explanation”, contra o entendimento de “explanatory factor” de Moravcsik e Fine.
98

postulado a separação das Formas, que ela admite expressa apenas no Timeu 148, mas é silenciosa
a respeito das razões apresentadas por Aristóteles atribuídas a Platão 149.
Allen (1970, p. 132-133), todavia, já havia apontado uma afirmação categórica de
Aristóteles de que para Platão a separação das Formas se deve à necessidade da anterioridade
ontológica da οὐσία em relação ao que lhe é posterior. Vê-se isso expresso na seguinte
passagem:

τὰ μὲν δὴ οὕτω λέγεται πρότερα καὶ ὕστερα, τὰ δὲ κατὰ φύσιν καὶ οὐσίαν,
ὅσα ἐνδέχεται εἶναι ἄνευ ἄλλων, ἐκεῖνα δὲ ἄνευ ἐκείνων μή: ᾗ διαιρέσει
ἐχρήσατο Πλάτων.
Ademais, algumas coisas se dizem anteriores e posteriores no sentido visto,
enquanto outras se dizem anteriores e posteriores segundo a natureza 150 e
segundo a substância: são assim todas as coisas que podem existir
independentemente de outras, enquanto essas outras não podem existir sem
aquelas: dessa distinção se valia Platão. (ARISTÓTELES, Metafísica,
1019a1-4)

Nenhum intérprete soube dizer com precisão onde essa referência estaria expressa nas
obras de Platão, relegando-a, portanto, às chamadas “doutrinas não-escritas de Platão”151.
Todavia, a coerência entre este conceito e alguns temas presentes na obra platônica clama por
uma explicitação ou esclarecimento sobre a precisa relação dessa dependência unilateral que
liga o posterior ao anterior 152. O fato é que, no que concerne às Formas, essa passagem por si
só é insuficiente para dar um sentido preciso no modo em que essa anterioridade se dá.
Entretanto, em vista de toda a discussão anterior, sabemos que o próprio Aristóteles apresenta
um esclarecimento mais preciso dessa relação de anterioridade ontológica das Formas
platônicas.

148
“I think Aristotle is right not to claim that Plato argues from the flux sensibles to the separation of forms; at
least, Plato never does so explicitly. But is Aristotle right to say that Plato takes forms to be separate, if for other
reasons? It is difficult to be sure. For one thing, Plato never says that forms are separate; he never, that is, uses
any form or cognate of 'chorizein' of forms, at least not in the relevant sense. Nor do any of his explicit arguments
imply that forms are separate.” (FINE, 1998, p. 60).
149
Justamente onde sua tese entra em conflito direto com o relato de Aristóteles.
150
Que um dos sentidos de φύσις é justamente enquanto οὐσία, vide: Metafísica, 1014b35ff. Sobre como
Aristóteles utiliza φύσις para se referir às Formas platônicas num contexto onde critica a teoria delas serem “φύσεις
παρὰ τὰς ἐν τῷ οὐρανῷ” em 997b6, vide AUBENQUE, 2012, p. 292 e n. 23. A significação do ὑπερουράνιος
τόπος apresentado por Platão ao longo de uma descrição mítica no Fédon (247c; cf. 235c-d) é mais uma discussão
bem controversa.
151
Vide REALE, 2014, v.3, p. 253, n. 12.
152
Vide, por exemplo, Elisabetta Cattanei (2005, p. 350ff.) que seguindo R.A.H Waterfield atribui a anterioridade
ontológica à aritmética.
99

2.6.1 Que a anterioridade ontológica das Formas se dá pela causalidade

ἔτι δόξειεν ἂν ἀδύνατον εἶναι χωρὶς τὴν οὐσίαν καὶ οὗ ἡ οὐσία: ὥστε πῶς ἂν
αἱ ἰδέαι οὐσίαι τῶν πραγμάτων οὖσαι χωρὶς εἶεν; ἐν δὲ τῷ Φαίδωνι οὕτω
λέγεται, ὡς καὶ τοῦ εἶναι καὶ τοῦ γίγνεσθαι αἴτια τὰ εἴδη ἐστίν:
E mais, parece impossível que a substância exista separadamente daquilo de
que é substância; consequentemente, se são substâncias das coisas, como
podem as Ideias existirem separadamente delas. Mas no Fédon é afirmado
justamente isso: que as Formas são causa do ser e do devir das coisas.
(ARISTÓTELES, Metafísica, 991b1-4)

Ao ler essa passagem isoladamente, há um salto de raciocínio ao criticar que a οὐσία


não pode existir de modo separado e que é justamente isso que Platão afirmava no Fédon ao
dizer que as Formas “são causa do ser e do devir das coisas”. Está claro que Aristóteles relaciona
a separação das Formas à sua condição etiológica, mas, aparentemente, assume como
subentendidas as razões dessa relação. O conceito da separação pela anterioridade ontológica,
no entanto, parece complementar essa passagem. Tem-se, então, que Aristóteles atribui a Platão
que a anterioridade das Formas se dá em termos etiológicos. E a sequência dessa passagem
completa o tratamento dessa questão, pois é justamente esta etiologia que Aristóteles critica
alegando uma incoerência de Platão em atribuir às Formas a capacidade de causa eficiente 153.
Dessa crítica, deduz-se, então, que Platão tinha para si uma etiologia das Formas
necessariamente atrelada a uma noção de αιτία que sempre indica uma causa produtora.
A amarração lógica não dá espaço para brechas, uma vez que Aristóteles afirma que,
para Platão, a οὐσία sendo anterior, implica, necessariamente, em ser separada, no sentido de
sua existência ser independente da existência daquilo que a ela é posterior, afirmando também

153
“Contudo, mesmo concedendo que as Formas existam, as coisas que delas participam não se produziriam se
não existisse a causa motora” (ARISTÓTELES, Metafísica, 991b4-6). Para Aristóteles, as Formas platônicas
falham no papel de causa eficiente como definido por ele na Física: “de onde provém o começo primeiro da
mudança ou do repouso” (ARISTÓTELES, Física, 194b30, tr. Lucas Angioni, 2009). Na Metafísica, a primeira
crítica sobre a falta de causalidade eficiente das Formas encontra-se na seguinte passagem: “Que vantagem trazem
as Formas aos seres sensíveis, seja aos sensíveis eternos, seja aos que estão sujeitos à geração e à corrupção? De
fato, com relação a esses seres as Formas não são causa nem de movimento nem de qualquer mudança”
(ARISTÓTELES, Metafísica, 991a8-10). Em Sobre a Geração e a Corrupção, novamente se referindo ao Fédon,
Aristóteles enfatiza seu ponto com exemplos: “Se as formas são causas, por que razão não geram sempre,
continuamente, mas umas vezes sim e outras não, já que tanto as formas como as coisas que delas participam
existem sempre? Além disso, podemos ver que, em alguns casos, a causa é outra: o médico produz saúde e o
sapiente produz saber, ainda que a saúde em si e o saber em si existam, bem como as coisas que deles participam”
(ARISTÓTELES, Sobre a Geração e a Corrupção, 335b18-23, tr. Francisco Chorão, 2009).
100

que as Formas, para Platão, enquanto “causa do ser e do devir das coisas” são οὐσίαι separadas.
Ao avançar na questão sobre o modo em que essa produtividade se dá, é justamente onde entra
a crítica de Aristóteles sobre a falta de esclarecimento de Platão, de que suas respostas a esse
respeito teriam sido apenas metafóricas, não tendo, portanto, apresentado argumentação lógica,
deixando a questão em aberto. Tem-se, com isso, todas as peças apresentadas por Aristóteles
que configuram as razões pelas quais Platão separou as Formas.
Em suma, de toda a análise decorrida dos testemunhos de Aristóteles que são utilizados
como fonte para a organização cronológica dos diálogos platônicos, naquilo que concerne às
formas, apreende-se que: foi Platão quem utilizou o vocabulário das formas (εἶδος e ἰδέα) para
avançar a pergunta socrática “τί ἐστι X?” e que essas Formas postuladas por Platão seriam
οὐσίαι separadas, no sentido de existirem independentemente de suas instâncias particulares
sensíveis, dada sua anterioridade enquanto causa produtora.
101

3 ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ NOS DIÁLOGOS DE JUVENTUDE DE PLATÃO

Os diálogos que por vezes são elegíveis como sendo socráticos, e que teriam sido
escritos na juventude de Platão entre 399 e 385 a.C., são, em ordem alfabética: Apologia,
Cármides (sobre a moderação), Críton (sobre o dever), Eutidemo (sobre os discursos erísticos),
Eutífron (sobre a piedade), Górgias (sobre a retórica), Hípias Maior (sobre o belo), Hípias
Menor (sobre a falsidade), Íon (sobre a Ilíada), Laques (sobre a coragem), Lísis (sobre a
amizade), Menexeno (sátira da retórica), Mênon (sobre a virtude) e Protágoras (sobre os
sofistas) 154.
Os diálogos desse grupo representam quase metade dos diálogos considerados
autênticos, que somam 29; no entanto, ali se encontram apenas 17 ocorrências de εἶδος e 9 de
ἰδέα, uma frequência muito pequena se comparada com as 411 ocorrências de εἶδος e 97 de
ἰδέα no total dos 29 diálogos 155. Esse fato já indica, superficialmente, um aumento considerável
na discussão sobre o tema da forma nos diálogos posteriores. Ainda dentro do referido grupo,
nota-se que em 5 desses diálogos – Hípias Menor, Apologia, Íon, Menexeno e Eutidemo – não
há nenhuma ocorrência de εἶδος ou ἰδέα 156.

154
Uma vez que não há uma cronologia segura para os diálogos, assume-se, para a continuidade desta pesquisa, o
grupo elegível acima como os ditos socráticos de juventude. Seguimos a seleção de diálogos socráticos sugerido
por Terry Penner (2010, p. 124) com exceção do Livro I da República, pois, além de não haver nenhuma ocorrência
de εἶδος ou ἰδέα neste Livro, Holger Thesleff, que elaborou uma forte defesa da sua separação em relação ao resto
da República, datando-o por volta de 390 a.C. (THESLEFF, 1982, p. 107-111), admite posteriormente que seu
esforço “rests on somewhat precarious grounds” (THESLEFF, 1989, p. 14) e que “the absolute date remains very
much a matter for conjecture” (ibid., p. 15). É importante ressaltar, ainda, que há uma tendência, novamente
liderada por Vlastos (1991), de por vezes considerar alguns desses diálogos como sendo “transicionais” (vide cap.
2.3), ou seja, diálogos de transição entre a fase de juventude para o período de maturidade. A seleção de quais
diálogos compõem o período “transicional” é muito variável, e essa classificação está longe de ser algo
estabelecido. Além disso, até hoje não há consenso algum quanto à datação e posicionamento de nenhum desses
diálogos no corpus platônico. Na realidade, Vlastos usa esse artifício para acomodar várias dessas obras nos
conformes de sua teoria. A mudança mais óbvia a se notar das diferenças em estilo e conteúdo filosófico para uma
transição dos períodos de juventude e o médio estaria no modo como Platão parece caracterizar Sócrates: Nos
primeiros diálogos, encontramos Sócrates simplesmente fazendo perguntas, expondo as confusões de seus
interlocutores, enquanto professa sua própria incapacidade de lançar qualquer luz positiva sobre o assunto; já nos
diálogos do período médio, Sócrates surge disposto a afirmar e defender suas próprias teorias sobre muitos assuntos
importantes. Ademais, nos primeiros diálogos, Sócrates discute principalmente assuntos éticos com seus
interlocutores – com algumas opiniões religiosas, metodológicas e epistemológicas relacionadas dispersas nas
discussões principalmente éticas. No período médio, os interesses do Sócrates de Platão expandem-se para quase
todas as áreas de conhecimento.
155
Os resultados aqui apresentados são recolhidos do estudo coordenado por Motte et al. (2003, p. 67-330).
156
No caso do Íon, Menexeno e Eutidemo, A. Lefka e A. Motte (MOTTE et al., 2003, p. 274-275) não os
consideram como diálogos de juventude, porém não dão maiores explicações: “nous n'entendons pas entrer ici
dans un débat complexe que les seuls critères mis en évidence par notre enquête n'autorisent pas, de toute
évidence, à trancher” (ibid., p. 274). Quanto à ausência de ocorrências das palavras nesses três diálogos, afirmam
que isso se deve pelo fato dos temas abordados nesses diálogos não incluírem nada que se refira ou contribua à
discussão das formas (cf. ibid., p. 274-5).
102

Toma-se, ainda, como base de análise, os resultados do estudo exaustivo das ocorrências
de εἶδος e ἰδέα nos diálogos platônicos coordenados por Motte et al. (2003, p. 67-332) 157. Esse
recente estudo realizado por uma equipe de alta competência 158, além de exaustivo, supera em
completude e minúcia qualquer estudo anterior com essa mesma proposta 159, analisando a
estilística, semântica e gramática de cada ocorrência. Com isso, dialogam diretamente com
outros trabalhos já muito bem estabelecidos no tema. Ressalta-se, todavia, que a respeito do
pensamento socrático tem-se bem esclarecido o fato de já estarmos lidando com solo platônico.

3.1 As Ocorrências e suas Classificações Semânticas

A primeira e originária significação de aspecto sensível é encontrada 6 vezes para εἶδος


e 5 para ἰδέα em quatro diálogos, Alcibíades I, Lísias, Cármides, Protágoras, Mênon. Em duas
ocorrências, εἶδος designa a aparência visível do corpo humano 160; nas ocorrências restantes,
mais particularmente, ambas as palavras são adjetivadas belas 161. A esse respeito G. Roskam
conclui:

...no Alcibíades I, Lísias e Cármides, os termos εἶδος e ἰδέα, que podem ser
considerados sinônimos, são sempre utilizados no sentido da beleza. Ela
sempre se apresenta como visível e beleza externa, ou seja, como beleza
corporal, oposta à beleza da alma. Pode-se facilmente reconhecê-la, de modo
que sua presença em um indivíduo não é jamais contestada, nem por seus
companheiros, nem por Sócrates. A beleza do corpo é geralmente considerada
como uma qualidade importante, mas é sempre menos essencial do que a
beleza da alma. Esta é a única que Sócrates quer examinar em primeiro lugar.
(MOTTE et al., 2003, p. 71)

A segunda significação é a de marca característica, caráter comum próprio a uma


pluralidade de realidades que permite classificá-las sob uma designação comum. Aqui,
trataremos semanticamente como “tipo” 162. Classificaram uma ocorrência de εἶδος no

157
E. Berti organizou os resultados das classificações semânticas das ocorrências de todos os diálogos. A crítica
final dos resultados ficou a cabo de A. Lefka e A. Motte.
158
Como já abordado no cap. 1.3.
159
Como o de BROMMER, 1940; ELSE, 1938; SANDOZ, 1971; PLACES, 1970.
160
Protágoras, 352a2; Mênon, 80a5.
161
Alcibíades I, 119c3 (ἰδέα); Lísias, 204e5 e 222a3 (εἶδος); Cármides, 154d5; 154e6 (εἶδος); 157d2; 158b1; 175d7
(ἰδέα); Protágoras, 315d8-e2 (ἰδέα).
162
Cf. cap. 1.
103

Protágoras sob essa orientação semântica. Em 338a, a seguinte tradução é proposta por G.
Jeanmart (MOTTE et al., 2003, p. 78): “esse caráter rigoroso de diálogo” (tὸ ἀκριβὲς τοῦτο εἶδος
τῶν διαλόγων). A. Lefka e A. Motte (ibid., p. 270) endossam a tradução de εἶδος por “caráter”
e enquadram essa ocorrência de εἶδος sob essa orientação semântica. Uma vez que a forma se
refere ao diálogo especificamente qualificado pelo caráter distintivo de “rigoroso”, não há,
portanto, maiores considerações a serem desenvolvidas no que concerne a essa classificação.
A seguir, uma possível segunda ocorrência suscitou certo desacordo entre os
pesquisadores. No Hípias Maior, em 297b, Sócrates afirma que, se o belo é a causa do bem,
seria em relação a ele ἐv πατρός τινος ἰδέᾳ. G. Roskam entende que ἐν ἰδέᾳ poderia ser uma
expressão correspondente a “de algum modo”, e, portanto, traduz como: “por assim dizer, o pai
do bem” (MOTTE et al., 2003, p. 72). Afirma A. Lefka e A. Motte (ibid., p. 270, n. 17) que ao
se traduzir desse modo esta ocorrência se enquadraria sob a orientação semântica de “classe”,
e por sua vez, A. Lefka e A. Motte dão ênfase ao pronome indefinido τινος e traduzem como:
“no papel de um tipo de pai” (ibid., p. 270). A tradução de ἰδέᾳ por “tipo” visa enfatizar a
contribuição que pai faz enquanto marca distintiva e faria essa uma segunda ocorrência sob essa
significação. Parece-nos adequado corroborar com A. Lefka e A. Motte em sua tradução de
ἰδέᾳ por “tipo”, dando ênfase a τινος, apesar de considerarmos desnecessário acrescentar que o
belo estaria “no papel de” um tipo de pai, uma vez que a personagem de Sócrates já deixa clara
sua hesitação em construir essa analogia como uma conclusão: “καὶ κινδυνεύει ἐξ ὧν
εὑρίσκομεν ἐν πατρός τινος ἰδέᾳ εἶναι τὸ καλὸν τοῦ ἀγαθοῦ” (PLATÃO, Hípias Maior, 297b
6-7). O fato de Sócrates parar um passo antes da conclusão ao dizer que é “arriscado
encontrarmos” (κινδυνεύει... εὑρίσκομεν) o belo como um tipo de pai do bem, indicando
distanciamento de uma analogia ainda não segura, demonstra sua cautela ao afirmar que o belo
seria “pai” da mesma maneira que outros, apesar de conter características que se assemelhem
aos pais como um todo. Isso é reforçado pelo pronome indefinido τινος, o qual sugere
justamente que o belo não seja exatamente descrito pela “classe” dos pais, mas sim “um tipo
qualquer” disso, cuja precisão não foi alcançada até aquele ponto. Por esses motivos,
corroboramos com A. Lefka e A. Motte em sua tradução de ἰδέᾳ por “tipo”, dando ênfase a
τινος, mas com a ressalva de considerarmos desnecessário acrescentar que o belo estaria “no
papel de” um tipo de pai. Considerando esses pontos acima, sugerimos a seguinte tradução para
o trecho em questão: “E, a partir disso, é arriscado encontrarmos que o belo é um tipo qualquer
de pai do bem”.
A terceira classificação é a que denominam “classe” ou “espécie”, “formada por todos
os casos particulares que têm em comum a mesma marca característica”. Constataram uma
104

ocorrência no Laques (191d), onde Sócrates, interessado não em exemplos particulares, mas
naquilo que eles têm em comum, almeja encontrar uma definição de coragem que seja válida
não só para os hoplitas, mas também para os cavaleiros e “para toda classe de combatentes” (ἐν
σύμπαντι τῷ πολεμικῷ εἴδει). Concordamos com a tradução por “classe” pelo fato das εἴδει se
referirem ao agrupamento da totalidade dos diferentes tipos de combatentes, indicado pelo
advérbio σύμπαντι 163.
Também, no Górgias, em 454e, Sócrates pergunta ao sofista se ele quer que se postule
“dois tipos de persuasão (δύο εἴδη θῶμεν πειθοῦς), uma que forneça crença (πίστις) sem
conhecê-la (είδέναι), e outra que forneça ciência (ἐπιστήμη)?". É, portanto, a característica
distintiva que está sendo referenciada para que se determinem as diferentes formas de
persuasão. Sendo exatamente esse o caso que se enquadra sob a classificação semântica de
“tipo”, assim como explicamos anteriormente, a ocorrência recai sob essa orientação, e não de
“classe” ou, muito menos, “espécie”, como querem A. Lefka e A. Motte. Apesar de G. Jeanmart
(MOTTE et al., 2003, p. 80) sugerir a tradução de εἶδος por “tipo”, A. Lefka e A. Motte insistem
em “duas espécies de persuasão” (ibid., p. 270, grifo nosso). E, mais uma vez, sem apresentar
nenhuma justificativa para o uso do termo “espécie”. Corroboramos, portanto, com a sugestão
de G. Jeanmart, e não reconhecemos nenhum indício de que εἶδος, nessa passagem, esteja
apresentando uma inovação do vocabulário enquanto classificação científica.
Ainda no Górgias, constataram uma terceira ocorrência em 473e: em reação ao escárnio
do seu interlocutor Polo, Sócrates indaga se isto é um novo tipo de refutação (ἄλλο αὖ τοῦτο
εἶδος ἐλέγχου) – o de zombar sem dar argumentos. O εἶδος em questão é distinguido pela sua
contribuição característica, devendo, portanto, ser classificado semanticamente como “tipo”.
Em consideração aos resultados apresentados até o momento, nota E. Berti (MOTTE et
al., 2003, p. 654) que essas três significações já se encontram anteriormente a Platão.
Contestamos, todavia, esta afirmação no que tange à terceira classificação. Não só não
encontramos o sentido de “classe” nos escritos anteriores a Platão, como o sentido de “espécie”
não foi atestado em nenhuma das ocorrências analisadas 164. Denominamos, portanto, essa
orientação semântica exclusivamente como “classe”.
Há, contudo, uma quarta significação, que surge de uma inovação propriamente
platônica, e é denominada pelo grupo de pesquisadores como: “forma comum, ideia (com “i”

163
Cf. cap. 1, n. 66.
164
Encerramos, portanto, o escopo da pesquisa sem nenhuma ocorrência dessa significação de “espécie” que tanto
E. Berti como A. Lefka e A. Motte assumem em continuidade do que entendem como já atestado desde o Corpus
Hippocraticum (cf. MOTTE et al., 2003, p. 270, 654-655).
105

minúsculo), modelo, ou paradigma” 165. Nessa classificação semântica, as palavras εἶδος e ἰδέα
não exprimem mais somente um caráter comum a uma pluralidade de seres, mas fazem deste
um paradigma graças ao qual as coisas que lhe remetem são ditas possuir tal qualidade comum.
Seguindo esse estudo, aqui, chamaremos essa classificação de “forma paradigmática”. São 3
ocorrências de εἶδος no Mênon, 3 de ἰδέα e 1 de εἶδος no Eutífron, 2 de εἶδος no Hípias Maior
e 1 de εἶδος no Górgias, analisadas a seguir.
Primeiramente, no Hípias Maior, em 289d, aquilo que interessa a Sócrates não são os
exemplos particulares, mas o Belo em si (αὐτὸ τὸ καλόν); é a cada vez que essa forma se anexa
(προσγένηται ἐκεῖνο τὸ εἶδος) às coisas que elas são belas. Em 298b, Sócrates, que acabara de
definir o belo como um prazer causado pela audição e pela visão, observa que esta definição
não pode servir, uma vez que não serve para o que dizem ser os belos costumes e as belas leis,
“porque elas têm outro εἶδος” de beleza. Essa última ocorrência, no entanto, não parece
caracterizar uma “forma paradigmática”, como afirma o grupo de pesquisadores, mas
aproxima-se muito mais de “aspecto”. Nessa passagem, Sócrates refuta como sendo o Belo em
si o que encontrou na sua discussão com Hípias justamente pelo fato dessa definição não
abranger as formas particulares das leis e dos costumes. O εἶδος de 298b trata-se, então, do
εἶδος belo dos costumes ou o εἶδος belo das leis, que são, portanto, instâncias particulares de
“aspecto” belo, das quais Sócrates busca a forma “paradigmática”, o Belo em si de 289d.
Ademais, apesar de não se tratar de uma ocorrência de forma “paradigmática”, essa passagem
parece insinuar que a definição de beleza que Sócrates busca deve abranger até mesmo coisas
que não são sensíveis.
O segundo diálogo é o Eutífron. Em 5d, Sócrates conclui que assim como a piedade é a
mesma em todas as ações, a impiedade, que é seu oposto, é também similar a si mesma (αὐτὸ
αὑτῷ ὅμοιον) e possui somente uma única forma enquanto ímpia (ἔχον μίαν τινὰ ἰδέαν κατὰ
τὴν ἀνοσιότητα). Em 6d-e, Sócrates espera de Eutífron que o ensine “esta mesma forma pela
qual todas as coisas piedosas são piedosas (ἐκεῖνο αὐτὸ τὸ εἶδος ᾧ πάντα τὰ ὅσια ὅσιά ἐστιν)”,
porque ele admite que “é por uma forma (μίᾳ ἰδέᾳ) que as coisas ímpias são ímpias e as coisas
piedosas, piedosas”. É justamente desta mesma maneira que Eutífron deve ensinar-lhe aquilo
que é (Ταύτην τοίνυν με αὐτὴν δίδαξον τὴν ἰδέαν τίς ποτέ ἐστιν), para que o olhar se volte para
esta forma (εἰς ἐκείνην ἀποβλέπων) e se sirva dela como um paradigma (χρώμενος αὐτῇ
παραδείγματι), e ele possa dizer que piedoso é aquilo que alguém realiza de tal.

165
Cf. MOTTE et al., 2003, p. 264-265; 271.
106

Veem-se ainda no Mênon exemplos significativos de εἶδος nesse sentido semântico. Em


72c, Sócrates afirma que embora as virtudes sejam numerosas e diversas, elas, no entanto,
possuem uma certa forma única e comum (ἕν γέ τι εἶδος ταὐτὸν ἅπασαι) que as fazem virtudes.
É esta forma à qual o olhar deve estar voltado (εἰς ὃ ἀποβλέψαντα) para se fazer ver o que é
uma virtude. Ou em 72d, quando questiona se a saúde não tem a mesma forma (ταὐτὸν εἶδος)
em todo lugar, seja num homem ou em qualquer outro ser. Similarmente, em 72e, afirma que,
se uma mulher é forte, é pela mesma forma (τῷ αὐτῷ εἴδει) que o homem o será. Essas
passagens do Mênon mostram εἶδος designando uma determinação essencial, objeto de
definição, que certas realidades têm em comum e que é causa do que elas realmente são.
É, por último, no Górgias, 503e, onde se tem a primeira aplicação do vocabulário da
forma numa analogia artesanal 166. É dito que o bom homem procede à maneira dos “pintores,
arquitetos, construtores navais e todos os demais artífices (τοὺς ζωγράφους, τοὺς οἰκοδόμους,
τοὺς ναυπηγούς, τοὺς ἄλλους πάντας δημιουργούς)”: cada um deles, com o olhar fixado sobre
seu próprio trabalho (βλέποντες πρὸς τὸ αὑτῶν ἔργον), não escolhe aleatoriamente o que ele
concretiza, mas o faz de modo que o trabalho que ele realiza tenha uma certa forma (εἶδος τι)
na qual ele está trabalhando (ἐργάζεται). Para isso, o artífice

ὡς εἰς τάξιν τινὰ ἕκαστος ἕκαστον τίθησιν ὃ ἂν τιθῇ, καὶ προσαναγκάζει τὸ


ἕτερον τῷ ἑτέρῳ πρέπον τε εἶναι καὶ ἁρμόττειν, ἕως ἂν τὸ ἅπαν συστήσηται
τεταγμένον τε καὶ κεκοσμημένον πρᾶγμα
confere certo arranjo a cada um dos componentes, e força que uma coisa se
adéque e harmonize à outra até que tudo esteja bem arranjado e ordenado em
seu conjunto. (PLATÃO, Górgias, 503e-504a) 167

Esta passagem, embora não apresente a ideia de um “paradigma comum a várias


realidades”, é mesmo assim enquadrada nessa classificação semântica pelos pesquisadores,
segundo G. Jeanmart (MOTTE et al., 2003, p. 83, n. 4) e, posteriormente, endossado por A.
Lefka e A. Motte (ibid., p. 272). Assim justificam: “fica claro a partir do contexto que o εἶδος
em questão não é uma forma qualquer que seria devido ao acaso, mas uma estrutura operatória,
devidamente pensada, que realmente faz a obra ser o que ela é”. Note, porém, que, segundo o
processo de fabricação apresentado na metáfora artesanal, é em seu próprio trabalho que o
artesão mantém o foco do seu olhar para a realização da forma. Essa pode muito bem ser

166
O vocabulário das formas é também utilizado em contextos de analogias artesanais no Crátilo, 389a-c e na
República, 596b-598c.
167
Tradução de Daniel R. N. Lopes (2016).
107

entendida como uma aparência ou aspecto visível, uma vez que nada é dito sobre a referência
ou modelo para a produção; pode-se inclusive elucubrar que o modelo seja outro objeto que o
artesão está apenas replicando. Desse modo, a forma em questão seria apenas um paradigma
para a própria réplica e não para uma multiplicidade variada de realidades. Nota-se, ainda, que
o enfoque dado para a realização da forma específica (εἶδος τι) em que o artesão está
trabalhando encontra-se no arranjo das partes de acordo com uma certa ordem (τάξις), harmonia
(ἀρμόττω) e beleza (κοσμέω) 168, e o seu olhar está fixado sobre seu próprio trabalho (βλέποντες
πρὸς τὸ αὑτῶν ἔργον). Em nenhum momento se aponta para outra direção que não o sensível
nessa passagem, além de não haver indícios dessa forma ser um “paradigma comum a várias
realidades” a não ser essa própria na qual o artesão está trabalhando. Apenas o fato de ser “une
structure opératoire, dûment pensée, qui fait vraiment que l'oeuvre est ce qu'elle est”, não é
justificativa suficiente para classificar εἶδος nessa passagem sob a orientação semântica de
forma “paradigmática”. A forma em questão é tão somente pensada enquanto uma estrutura
operatória de configuração das partes que a compõem enquanto um aspecto específico, e nada
mais. E essa interpretação parece ter o suporte de Terrance H. Irwin, que no comentário de sua
tradução do Górgias sugere a interpretação de εἶδος nessa passagem por “character”: “o artesão
mantém seu olhar sobre seu próprio intencionado produto, e trabalha para que o material
adquira a “forma” (ou ‘caráter’, eidos) e ‘estrutura’ (taxis) corretas” (IRWIN, 1979, p. 214).
Pode-se argumentar, ainda, que a ênfase a uma ordem específica e no arranjo das partes, assim
como o uso do substantivo τι em conjunto com εἶδος, sugerem que Sócrates esteja se referindo
a um certo “tipo” de objeto, em vez de uma “aparência” qualquer. A reprodução seria, portanto,
de um produto de características específicas. Por esses motivos, assumimos, aqui, que sua
significação seja a de “tipo”.

3.2 Apontamentos Preliminares

Como resultado deste exame do grupo de diálogos ditos de juventude, vê-se de imediato
que dentre as quatro classificações semânticas, a primeira, originária, de aspecto sensível, e a
quarta, tipicamente platônica, são de longe as com maior representação.
(1) Sobre a orientação semântica de “aspecto”, verifica-se na nova ocorrência revelada
pela nossa pesquisa, Hípias Maior, 298b, que Platão, ao falar de εἶδος como aspecto de algo

168
Como sugerem Vlastos (1975, p. 3-5) e Irwin (1979, p. 214-215), kosmos, nessa passagem, pode ter a intenção
de denotar uma ordem elegante e atraente (cf. κοσμητικός).
108

invisível e imaterial, descarta completamente a distinção do uso de εἶδος e ἰδέα que faziam os
pré-socráticos nesse sentido de aspecto 169. Pode ser, até mesmo, uma possível influência
pitagórica, a única exceção entre os pré-socráticos a fazer tal uso da palavra 170.
(2) Dentre as outras duas orientações semânticas de sentido classificatório, (2.1) a de
“tipo” é a que, segundo nossos resultados, tem o maior índice de ocorrências, cinco 171, incluindo
Górgias 503e, (2.2) e apenas uma de εἶδος que diz respeito ao sentido de “classe” 172.
(3) A grande novidade socrática(-platônica) no uso dos termos é, como já visto,
classificada como “paradigmática” 173. Enrico Berti, na conclusão geral do estudo, afirma a
respeito da significação de forma “paradigmática” que assumem tanto εἶδος quanto ἰδέα nos
diálogos de juventude que

assistimos a passagem progressiva da noção comum de eidos como aspecto


sensível, em particular como beleza, à noção “filosófica” ou “científica” de
caráter comum a uma multiplicidade, ou seja, como universal, que constitui
não somente uma espécie ou classe, mas também um “modelo” (παράδειγμα),
ou seja, a “Ideia”, e é esta última que designa, na sua significação tipicamente
platônica. (MOTTE et al., 2003, p. 654)

Nessa quarta classificação nota-se a ausência do plural, o que na verdade explicita bem
a sua orientação semântica, oriunda da investigação filosófica voltada para a busca da unidade
comum à multiplicidade. Os primeiros avanços semânticos da significação da forma
“paradigmática” de ἰδέα e εἶδος aparecem inicialmente em dois diálogos de juventude
dedicados à busca de uma definição, essencialmente na área do pensamento ético 174. Todavia,
há pelo menos quatro outros diálogos dedicados ao mesmo tipo de busca onde as duas palavras
não aparecem com esse significado, o Hípias Menor, o Lísias, o Cármides e o Laques. Isso
pode ser um indício de que o próprio Sócrates não fazia uso desta orientação semântica do
vocabulário da forma.

169
Nosso estudo atestou, portanto, as seguintes ocorrências sob a orientação semântica (1) “aspecto”: Alcibíades
I, 119c3 (ἰδέα); Lísias, 204e5 e 222a3 (εἶδος); Cármides, 154d5; 154e6 (εἶδος); 157d2; 158b1; 175d7 (ἰδέα);
Protágoras, 315d8-e2 (ἰδέα) e 352a2 (εἶδος); Mênon, 80a5 (εἶδος); Hípias Maior, 298b4 (εἶδος).
170
Além de Heródoto, em História, 2.53, como visto no cap. 1.
171
Sob a orientação semântica (2.1) “tipo”, atestamos: Protágoras, 338a1 (εἶδος); Hípias Maior, 297b6 (ἰδέα);
Górgias, 454e3, 473e2 e 503e4 (εἶδος).
172
Laques, 191d3.
173
Sob a orientação semântica (3) “paradigmática”, atestamos: Hípias Maior, 289d4 (εἶδος); Eutífron, 5d4, 6d11
e 6e3 (ἰδέα), 6d11 (εἶδος); Mênon, 72c7, 72d8 e 72e5 (εἶδος).
174
O que não é surpresa, visto que estes foram critérios utilizados para a organização dos diálogos socráticos de
juventude, pautados no relato já citado de Aristóteles de que essa foi a abordagem filosófica inventada por Sócrates.
109

3.2.1 Houve uma busca de Sócrates pelas formas?

Esse discreto indício que acabamos de notar dos diálogos de juventude de Platão ganha
força ao resgatar o que havíamos constatado em Xenofonte, mais bem exposto por Coxon
(1999, p. 10-17) em seu estudo analítico sobre a filosofia de Sócrates em Xenofonte. Segundo
Coxon (1999, p. 16-17), as “realidades” (τί ἐστιν) que Sócrates investigava “não são nomeadas
como ‘formas’ ou ‘causas’ em lugar algum por Xenofonte, mas classificadas como ‘coisas
humanas’”.

αὐτὸς δὲ περὶ τῶν ἀνθρωπείων ἀεὶ διελέγετο σκοπῶν τί εὐσεβές, τί ἀσεβές, τί


καλόν, τί αἰσχρόν, τί δίκαιον, τί ἄδικον, τί σωφροσύνη, τί μανία, τί ἀνδρεία,
τί δειλία, τί πόλις, τί πολιτικός, τί ἀρχὴ ἀνθρώπων, τί ἀρχικὸς ἀνθρώπων, καὶ
περὶ τῶν ἄλλων, ἃ τοὺς μὲν εἰδότας ἡγεῖτο καλοὺς κἀγαθοὺς εἶναι, τοὺς δ᾽
ἀγνοοῦντας ἀνδραποδώδεις ἂν δικαίως κεκλῆσθαι.
Ele mesmo sempre discorreu sobre as coisas humanas, considerando o que é
a piedade, a impiedade, o belo, o feio, o justo, o injusto, a sanidade moral, a
loucura, a coragem, a covardia, o que é uma cidade, o que é um bom cidadão,
o que é o governo dos homens, o que é alguém adequado para governar os
homens, e sobre outros tópicos, cujo conhecimento ele pensava fazer dos
homens honoráveis, e cuja ignorância os fazia merecedores de serem
nomeados de escravos. (XENOFONTE, Memorabilia, 1.1,16) 175

Ademais, parece haver indícios que apontam na mesma direção nos três mais
importantes socráticos listados por Diógenes Laércio. Lembrando que do pensamento de
Antístenes só restaram relatos, porém, do pouco que se reconstruiu, tem-se uma valiosa
informação relativa à epistemologia, âmbito em que Antístenes foi um declarado oponente de
Platão 176. Esse embate é muito bem representado no que parece ter se tornado uma antiga
anedota: uma vez, em um debate com Platão, Antístenes assim o contestou: “Vejo um cavalo,
Platão; mas não vejo, no entanto, a cavalidade”, ao que Platão replicou: “Sim, pois tens o olho
pelo qual um cavalo é visto, mas não te concedeste ainda o olho para ver a cavalidade” 177.
Antístenes achava, portanto, um grande erro a hipótese das Ideias de Platão servirem de resposta

175
Da tradução de Coxon (1999, p. 30) para o inglês. Vide, também, Memorabilia, 4.5,11; 4.6,1.
176
Sobre a epistemologia de Antístenes vide: Döring (1985), Celluprica (1987), Brancacci (1990; 2005), e
Giannantoni (1990, v.2, V A.152;148;154).
177
Ἀντισθένης, ὅς ποτε Πλάτωνι διαμφισβητῶν "ὦ Πλάτων, ἔφη, ἵππον μὲν ὁρῶ, ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ"˙ καὶ ὃς
εἶπεν˙ "ὅτι ἔχεις μὲν ᾧ ἵππος ὁρᾶται τόδε τὸ ὄμμα, ᾧ δὲ ἱππότης θεωρεῖται, οὐδέπω κέκτησαι (SIMPLÍCIO, In
Aristotelis Categorias Commentarius, p. 208, 28-32). Cf. ibid., p. 211, 18-21.
110

para as definições. Aristóteles apresenta o que alguns estudiosos entendem como sendo o ponto
de vista de Antístenes a esse respeito: “a dificuldade levantada pelos seguidores de Antístenes
e outros pensadores desse gênero tem certa pertinência. Eles sustentam que não é possível
definir o que a coisa é (τὸ τί ἔστιν), por ser a definição constituída por uma longa série de
palavras, mas só é possível ensinar como ela é (ποῖον τί ἐστιν); assim, por exemplo, não é
possível definir o que é a prata, mas pode-se dizer que é semelhante ao chumbo” (Metafísica,
H.1043b23–28) 178. Desse testemunho de Aristóteles, Döring afirma que: “Tudo o que
Antístenes acreditava ser possível era descrever as características das coisas por um processo
de comparação, e, portanto, tentar entender sua natureza, ao menos, aproximadamente”
(DÖRING, 2011, p. 42).
Infelizmente, devido à insuficiência e disparidade das evidências que restaram, não há
esclarecimentos seguros de maiores detalhes desenvolvidos por Antístenes a respeito do seu
ponto de vista, ou de como ele tentou refutar Platão. Esse é um tópico muito controverso, e
elaborar mais a esse respeito excede o escopo de nossa pesquisa. Porém, nesse breve apanhado
já se tem uma informação bem significativa: a polêmica gerada pela hipótese das Ideias de
Platão dentre os mais importantes socráticos; mais um forte indício de que o próprio Sócrates
nunca avançou nessa direção.
Há, por último, Aristóteles, que, como já visto, visa definir com seus próprios termos
técnicos aquilo que Sócrates buscava. Essas evidências em conjunto demonstram o fato de que,
muito provavelmente, a busca socrática envolvesse tão somente a questão “τί ἐστι X?”, o único
termo em comum atestado por Xenofonte, Aristóteles e Platão. Ainda, o confrontamento de
Antístenes, opondo-se à inclusão do vocabulário das formas na indagação do mestre, deixa claro
que esse passo já se trataria, portanto, de um incremento feito pelo próprio Platão. Parece-me
que, ao expor sua própria teoria pela figura de Sócrates 179, Platão demonstra que ele não se vê
tomando uma direção radicalmente nova. Em vez disso, está desenvolvendo a investigação
socrática da maneira que entende como sendo a mais plausível, defendendo o que entende ser
a genuína continuidade de seu mestre.

3.2.2 A questão do estatuto das formas “paradigmáticas” nos diálogos de juventude

Segundo a análise realizada por MOTTE et al. (2003), neste grupo de diálogos, εἶδος e
ἰδέα ainda não designam “Formas” no sentido metafísico de realidades inteligíveis que têm uma

178
Tradução de Giovanni Reale (2014) modificada.
179
Inclusive um Sócrates jovem como no Parmênides.
111

existência em si mesma e separada das instâncias sensíveis 180. No entanto, há ressalvas a serem
feitas a respeito de algumas dessas ocorrências classificadas sob a orientação semântica de
“forma paradigmática”.
Primeiramente, tomando como exemplo os diálogos Hípias Maior e Eutífron, vê-se
Sócrates em busca do εἶδος ou da ἰδέα, respectivamente, do belo e do piedoso. Os dois termos
estão no centro da questão prioritária dos diálogos. Eles denotam aquilo que permanece
invariável, idêntico a si mesmo apesar das diversas e variadas instâncias concretas de beleza ou
de piedade, e que faz de cada caso particular ser o que é. Desse modo, a Piedade em si mesma
(αύτό tò όσιον) faz com que todas as coisas piedosas sejam piedosas, e o Belo em si (αύτό το
καλόν) faz de todas as coisas belas, belas. Nesse sentido, no Eutífron, Platão fala da forma como
um modelo (παράδειγμα), uma vez que tudo o que está em conformidade com a forma da
piedade é piedoso. Todavia, surgem divergências entre os estudiosos ao se abordar questões
ontológicas em relação a essas formas “paradigmáticas”. É certo que os termos είδος e ἰδέα
referem-se a um estatuto ontológico de existência. No Hípias Maior, Sócrates conduz Hípias a
admitir explicitamente que o Belo é algo (287c8 - d2) e, um pouco mais adiante, o próprio
Sócrates enfatiza que o Belo em si (αὐτὸ τὸ καλόν) existe (288a9-11). No Eutífron, Sócrates
distingue a οὐσία de πάθος (11a6-b1). Ele não está interessado em nenhuma incidência (πάθος)
que ocorra sobre a piedade (no caso, ser amado pelos deuses), mas na essência (οὐσία) dela, ou
seja, Sócrates busca o que realmente é a piedade. Uma semelhante distinção é encontrada
também no Mênon (72a6-72b), dessa vez em busca do que a virtude realmente é.
Nota-se, de imediato, que nos diálogos de juventude os debates têm a suposição
fundamental de que a “forma paradigmática” que se procura de fato existe. Entretanto, de que
modo essas formas existem é o ponto de divergência dentre os estudiosos, e que será abordado
no próximo capítulo. As grandes semelhanças na terminologia levam muitos comentaristas à
convicção de que todos os escritos de Platão, mesmo estes do primeiro período, contêm a
mesma doutrina das Ideias 181. Outros, como bem se viu, enfatizam que há grandes diferenças
que podem ser encontradas entre os diálogos de juventude e as obras de maturidade, e concluem
que a teoria das Ideias como concebida por Platão em sua maturidade ainda não está
desenvolvida nos primeiros diálogos 182. E, realmente, não se encontram elaboradas nesses

180
A. Lefka e A. Motte (MOTTE et al., 2003, p. 272) afirmam ainda que, além disso, esta doutrina não parece ser
atestada em outras passagens dessas obras.
181
Alguns outros exemplos além dos já discutidos no cap. 2 são: J.A. Stewart (1909, p. 17, n. 1); J. Burnet (1977,
p. 111); P. Shorey (1973, p. 75, 79 – sobre Eutífron; p. 92, 93 – sobre Hípias Maior); H. Cherniss (1962, p. 4-5);
P. Friedlander (1964, p. 85-86 – sobre Eutífron); V. Cousin (1985, p. 20).
182
Alguns outros exemplos além dos já discutidos no cap. 2 são: WA. Heidel (1908, p. 48, p. 54-55); J.E. Raven
(1985, p. 38-41); W.K.C. Guthrie (1975, p. 114-121); P. Woodruff (1978); L. Versenyi (1982, p. 45-49).
112

primeiros diálogos reflexões metafísicas de uma “teoria dos dois mundos” encontrada em obras
posteriores. Nenhuma explícita distinção é feita entre o reino do ser e o vir-a-ser, entre realidade
e aparência, entre ἐπιστήμη e δόξα. Muitos, todavia, encontram indícios no Mênon, ao
considerar as doutrinas da ἀνάμνησις e a favor da imortalidade da alma 183. Falta a essa disputa
o porquê de tais questões não serem expressamente abordadas nesses diálogos. Ainda que se
considere que não há uma reflexão metafísica das Formas, seria por Platão deliberadamente
omiti-la no intuito de representar a filosofia socrática e não a sua, ou por qualquer outro motivo,
ou pelo fato de ainda não ter desenvolvido seu pensamento metafísico? A despeito dessas
questões, do ponto de vista do arranjo cronológico que aqui se analisa, já fica claro um avanço
de significação dos termos ao explicitar “uma única forma” invariável de algo que “é” e que
faz das múltiplas e variadas instâncias serem o que são. Há no mínimo aqui um “solo nutritivo
já bem semeado” (MOTTE et al., 2003, p. 272) para a elaboração da teoria metafísica das
Formas 184, e que nos impele a uma análise mais minuciosa dessa questão a seguir.

183
Vide os influentes estudos de Jakob Klein (1979) e Domic Scott (2006). Em contraposição a esses, vide Gail
Fine (2008).
184
A respeito desses diálogos como “transicionais”, cf. n. 154 acima.
113

4 A FILOSOFIA DAS FORMAS NOS DIÁLOGOS DE JUVENTUDE

Uma vez delimitadas as ocorrências da novidade histórica de uma referência ontológica


para os termos εἶδος e ἰδέα introduzida por Platão nos seus diálogos de juventude,
preliminarmente classificadas “paradigmáticas” no capítulo anterior, pretende-se, agora, uma
análise dos diálogos Hípias Maior, Mênon e Eutífron, a fim de avaliar detalhadamente cada
uma dessas ocorrências dentro do âmbito filosófico-literário em que se encontram.

4.1 Hípias Maior

4.1.1 O debate sobre a autenticidade do diálogo

Desde o início do século XIX, diversas obras de Platão que viveram mais de dois
milênios sob sua autoria passaram a ter sua autenticidade questionada por demonstrações
filológicas cuja relevância foi muito discutida. Com o tempo, os debates se acalmaram e a
maioria dos filólogos concordou em reconhecer ou negar a Platão a paternidade desse ou
daquele diálogo, mas alguns continuam gerando polêmicas. No caso do Hípias Maior, apesar
das primeiras manifestações de oposição à sua autenticidade ter ocorrido nessa época, foi
apenas na década de 1920 que um edificante debate entre Dorothy Tarrant (1928) e George M.
A. Grube (1929), a primeira contestando a autenticidade e o segundo a defendendo,
desenvolveu os argumentos pró e contra nos quais, essencialmente, todos os estudiosos
posteriores se pautarão 185. Não nos compete aqui abordar todos os elementos dessa disputa,
como, por exemplo, se Platão dedicaria dois diálogos a Hípias, se Aristóteles reconhece ou não
o Hípias Maior, ou o que passagens paralelas de outros diálogos podem ou não indicar da data
de composição do diálogo. Todos esses estão bem registrados pela bibliografia dos proponentes
dessa disputa aqui indicada. O fato é que, entre todos, apenas dois aspectos são mais
controversos.
O primeiro aspecto diz respeito a argumentos literários ou dramáticos, supostas
incongruências estilísticas que, por sua vez, denunciariam outra mão que a de Platão. Mas como
Paul Woodruff (1982) sinopticamente observa, as várias objeções ao estilo da peça como não-
platônica – a forma rude como Hípias é tratado e retratado, a alta frequência de trocadilhos e o
estilo excepcionalmente poético – não são totalmente independentes umas das outras, já que

185
Cf. PRADEAU; FRONTEROTTA, 2005, p. 17.
114

“elas são todas aspectos de uma mesma estranheza central do Hípias Maior – que é fazer do
interlocutor de Sócrates uma pessoa capaz de suportar um ridículo excepcionalmente mordaz”
(WOODRUFF, 1982, p. 100). Essa estranheza tem sido motivo central para duvidar da autoria
de Platão do diálogo desde o século XIX. Quando Schleiermacher (1809), que aceitava o
diálogo como autêntico, apontou essas características como motivo para um ceticismo, foi então
Friedrich Ast (1816) o primeiro a defender que a obra era espúria. A queixa contra o diálogo é
a de que ele é muito “cômico” para Platão, e a caracterização de Hípias é o aspecto duvidoso
nesse sentido: ao mesmo tempo em que ele é “impiedosamente ridicularizado” como
“estúpido”, há a inconsistência da caracterização em que, apesar de sua estupidez, ele faz
“sugestões de primeira linha”. Na mais recente iteração desse debate, Woodruff defende a
caracterização de Hípias afirmando que ele “não é representado no diálogo como um homem
estúpido, mas como alguém que é inteligente de um modo não filosófico, equivocado”
(WOODRUFF, 1982, p. 97). Sua abordagem visa resgatar Hípias do ridículo fazendo com que
seu retrato pareça mais equilibrado, eliminando a suposta inconsistência, uma vez que Hípias
não sendo, afinal, estúpido, não há nada de problemático no fato de ele fazer sugestões
inteligentes. Kahn, o atual proeminente opositor da autenticidade do diálogo, desdenha da
defesa de Woodruff relegando seus argumentos a um mero “espírito de caridade” e à
“generosidade hermenêutica” de Woodruff 186. Para Kahn, Hípias é retratado como
irremediavelmente “estúpido” (KAHN,1996, p. 118) 187.
O segundo aspecto, o qual se apresenta de maior relevância para a presente pesquisa, é
o argumento de Dorothy Tarrant (1928), que se baseia em uma pressuposição em relação às
Formas que é tanto cronológica como doutrinal. Em primeiro lugar, Tarrant parte do
pressuposto que Platão escreveu seus diálogos sucessivamente e que os “primeiros diálogos”
não incluem qualquer menção ao que se tornará sua grande intuição filosófica, a teoria das
Ideias e a participação. Com base na hipótese cronológica, Dorothy Tarrant afirma que os
“primeiros” diálogos platônicos não propõem “nada além da teoria socrática de conceitos”
(TARRANT, 1928, p.liii), e que só a partir do Fédon Platão concebe e expõe o que viria a se
tornar a sua “teoria das Ideias”. Todavia, no Hípias Maior, o modo como essa teoria é evocada,
ao aludir um “papel metafísico” ao “Belo em si”, revela um conhecimento que só estaria
exposto no Fédon. Seria, portanto, seu conhecimento da doutrina posterior de Platão que

186
KAHN, 1985, p. 264.
187
Vide mais recentemente Franco V. Trivigno (2016), que, defendendo a autenticidade do diálogo, argumenta
por um meio termo entre a estupidez de Hípias defendida por Kahn e a ingenuidade filosófica defendida por
Woodruff.
115

eventualmente denuncia o autor do Hípias Maior como sendo um falsificador, mas um não
muito bom. Sua imitação é falha na medida em que expõe uma má-interpretação da “teoria das
Ideias”. O que sustenta Tarrant é que a teoria das Ideias se pauta na concepção de uma realidade
suprassensível, uma “οὐσία transcendente” (cf. TARRANT, 1928, p.lxii), que não tem seu
equivalente no Hípias Maior, onde, o que o autor desenvolveu, na verdade, foi “uma doutrina
de ‘imanência’ desajeitada e não muito explicitamente expressa por uma variedade de verbos e
preposições, mas evidentemente implicada” (TARRANT, 1928, p.lx).
No que concerne à “transcendência”, ela admite a “separação” das Formas nos moldes
afirmados por Aristóteles, que, como já visto, refere-se à existência independente de suas
instâncias particulares 188. Segundo ela, essa teria sido a “tentativa” de Platão “de levar ao seu
recém-explorado domínio da metafísica um método concebido por Sócrates no domínio da
lógica” (TARRANT, 1928, p.lviii). A respeito do sentido de “imanência”, refere-se às Formas
desprovidas dessa “separação”, sendo elas, assim, correspondentes a um “mero καθόλου
lógico” do “sistema de Aristóteles” 189. A isso soma o fato de que, como a maioria dos oponentes
da autenticidade apontam, há uma série de semelhanças de certas passagens do Hípias Maior
com outros diálogos de Platão, e interpretam como se o falsário tivesse tentado
desajeitadamente forçar a semelhança de seu texto com seus modelos tomando emprestado
muito literalmente passagens ou argumentos. No fim, o que esse falsário acabou por concretizar
foi um pastiche de diálogos “socráticos”, ou seja, da juventude de Platão, junto a elementos de
uma doutrina muio mais tardia, que apareceriam apenas com a publicação do Fédon. Assim,
Dorothy Tarrant conclui que este é um diálogo apócrifo. Reconhece, todavia, a qualidade do
falsário e sua extrema fidelidade acadêmica ao modelo imitado, o que poderia sugerir que essa
imitação foi escrita por um discípulo de Platão enquanto seu mestre ainda estava vivo.
Apesar dessas críticas causarem alguma controvérsia, o fato é que, como explica Jean-
François Pradeau, a autenticidade do Hípias Maior “é apenas marginalmente contestada hoje
em dia” (PRADEAU; FRONTEROTTA, 2005, p. 16) 190. Se faz redundante, todavia, uma
apresentação detalhada dessa discussão, pois, como já dito, tem-se isso muito bem registrado
na bibliografia aqui referenciada. O mero fato da ampla aceitação da sua autenticidade já se
apresenta como motivo forte o suficiente para considerarmos esse diálogo em nossa pesquisa.

188
Cf. TARRANT, 1928, p.lviii.
189
Cf. TARRANT, 1928, p.lix.
190
Pradeau e Fronterotta que defendem a autenticidade do diálogo, na sua recente tradução da obra, apresentam
um recolhimento de alguns dos principais proponentes dessa disputa, bem como suas posições, desde
Schleiermacher (1809) a B. Vancamp (1995), aos quais os nomes de E. R. Dodds (1959) e W. K. C. Guthrie (1975),
que também defendem a autenticidade, merecem ser adicionados. Vide PRADEAU; FRONTEROTTA, 2005,
Anexo I.
116

Vale, contudo, ressaltar que, como contraponto importante ao primeiro aspecto apresentado, as
análises estilométricas confirmam de maneira consistente a autenticidade do diálogo 191. Em
relação ao segundo aspecto, o contraponto mais forte apresentado pelos defensores da
autenticidade se dá justamente na crítica ao caráter doutrinário e cronológico adotado por
Dorothy Tarrant 192. A abordagem cronológica por ela utilizada vai, no entanto, ao encontro de
nosso estudo, desse modo, a fim de discernir em que medida o que se encontra no Hípias Maior
é uma “desajeitada” doutrina de “imanência” das Formas, sua crítica será considerada no que
segue.

4.1.2 O εἶδος de 289d

Para analisar a ocorrência do εἶδος do Belo em si encontrada em 289d, parte-se do


levantamento da trama do diálogo iniciado por volta de 287e, que culmina nessa ocorrência.

4.1.2.1 A primeira resposta de Hípias: uma bela donzela casta

Sob o pretexto de poupar o ridículo de uma fala incorreta perante um conhecido (o


“Refutador”), o qual já o havia colocado numa situação difícil em uma discussão anteriormente,
a personagem de Sócrates pede por auxílio e propõe uma questão a Hípias 193: poderia ele
explicar precisamente o que é o Belo pelo qual todas as coisas são belas, de modo que a resposta
não seja refutada? (286d-e, 287c-d) Hípias, num primeiro momento, não compreende o
direcionamento de Sócrates para a definição do Belo (enquanto substantivo) e se espanta,
perguntando se a questão trata de saber o que é belo (enquanto adjetivo) e não vê a diferença
entre ambos (287c-e). Sócrates chama sua atenção para esse deslize, ao que Hípias sugere sua
primeira resposta que supostamente não pode ser refutada: “a bela donzela casta é belo
(παρθένος καλὴ καλόν)” (PLATÃO, Hípias Maior, 287e4) 194. A seguir, Sócrates se esforça em
explanar a questão novamente a Hípias, sob o manto de que seu amigo refutador diria, a seguir,
que também a bela casta é bela “pela causa através da qual [todas] estas [coisas belas] são belas
(ἔστι δι᾽ ὃ ταῦτ᾽ ἂν εἴη καλά)” (PLATÃO, Hípias Maior, 288a10-11) 195. Nota-se o uso de διά

191
Cf. BRANDWOOD, 1976, p.xvii; SORETH, 1953, p. 4.
192
Vide PRADEAU; FRONTEROTTA, 2005, p. 15-26.
193
No diálogo, a personagem de Hípias é retratada como um sofista de alto prestígio por sua oratória mas
constantemente ironizada por Sócrates que, ao mesmo tempo em que não mede elogios à sua sabedoria e grandeza,
consegue refutá-lo em todas as respostas que ele propõe ao longo da narrativa.
194
Tradução nossa.
195
Tr. idem.
117

seguido por acusativo afirmando a ação causal: aquilo “pelo que” as coisas belas são belas. Não
se explicita, todavia, uma precisão do estatuto da causa. É justamente essa a grande questão
disputada pelos intérpretes do diálogo no que concerne às Formas, sendo que a maioria,
seguindo Vlastos 196, defende que essa causalidade seja meramente uma explicação “lógica” em
oposição à possibilidade de ser uma causalidade “produtora”. O pertinente comentário de Paul
Woodruff 197 a essa passagem é uma influente representação dessa corrente: “O que refuta
Hípias não é o estatuto ontológico do belo, mas o seu papel como uma causa lógica”
(WOODRUFF, 1982, p. 168). Ou seja, para Woodruff, é apenas possível apreender dessa
refutação a lógica de que a bela jovem não é a causa de todas as outras coisas serem belas, um
raciocínio de âmbito epistemológico, e não ontológico.
Na sequência do diálogo, mais uma vez, Hípias não alcança a indicação da busca pela
síntese do que seria o Belo que Sócrates pretende, fornecendo, em vez disso, um exemplo de
algo que é belo, e mostra resistência na defesa do seu próprio argumento ao perguntar se por
acaso esse amigo discordaria de que uma bela jovem é, de fato, bela. Sócrates diz que ele
tentaria fazê-lo, sim, e dá o exemplo de uma bela égua (que o próprio deus elogiou através do
oráculo), uma bela lira, uma bela panela, que também seriam irrefutavelmente belas. Com esse
último, Hípias se espanta que o Refutador use um exemplo que lhe parece tão vulgar e, embora
admita que esse é, também, irrefutavelmente belo, diz que não merece ser comparado a “um
belo cavalo, uma bela donzela casta e todas as outras coisas belas (ὂν καλὸν πρὸς ἵππον τε καὶ
παρθένον καὶ τἆλλα πάντα τὰ καλά)” (PLATÃO, Hípias Maior, 288e8-9) 198. Pode-se notar, a
esta altura, que ao reagir com espanto e indignação à menção da panela a personagem de Hípias
parece deixar claro que falar sobre a beleza é um assunto de maior importância, um tanto
sagrado, onde não cabe a vulgaridade dos objetos. Ambos os outros exemplos, aceitos de
imediato como belos por Hípias, têm relação direta com o divino 199. A bela égua assim é,
irrefutavelmente, uma vez que isso foi afirmado pela própria divindade. A lira, por sua vez, é
um instrumento musical estimado pelo deus Apolo, e comumente associado à harmonia e à
ordem; é ainda, com frequência, usada como metáfora para a poesia lírica. Parecem ser essas

196
Como visto (cap. 2.5.2), a hipótese de uma causalidade meramente “lógica” é introduzida por Gregory Vlastos
em seu artigo “Reasons and Causes in the Phaedo” (1969), defendendo a distinção entre o estatuto “metafísico”
da causa e seu estatuto “lógico”. Segundo ele, a causalidade “metafísica” implica numa etiologia por
“participação”, a qual Vlastos defende não exisitir nos diálogos de juventude. E o que se econtra nos “primeiros”
diálogos é apenas uma causalidade do tipo “lógico”, que se distingue e não implica numa causalidade “eficiente”.
197
Woodruff defende que a teoria etiológica encontrada nos diálogos de juventude se resume a explicar que “F
things are F because the F (a form or a character) is present in them” (WOODRUFF, 1982, p. 152).
198
Tradução nossa.
199
Assim como a donzela casta, uma vez que παρθένος é também o epíteto das deusas virgens na mitologia Grega:
Atenas, Ártemis, Hera, Perséfone etc.
118

as razões que fazem com que Hípias imediatamente concorde que esses sejam exemplos do
belo, diferentemente da panela. Apesar de Sócrates, em última instância, fazê-lo concordar que
uma panela bem feita é bela, esse momento de discórdia dá vazão a uma sagaz analogia de
relatividade da beleza que Sócrates faz, citando Heráclito, ao falar que “o mais belo dos
macacos é feio comparado com a raça do homem (πιθήκων ὁ κάλλιστος αἰσχρὸς ἀνθρώπων
γένει συμϐάλλειν)” (PLATÃO, Hípias Maior, 289a3-4) 200, e que “o mais sábio dos homens, se
comparado a um deus, parecerá um macaco, em sabedoria, beleza, e todo o resto (ἀνθρώπων ὁ
σοφώτατος πρὸς θεὸν πίθηκος φανεῖται καὶ σοφίᾳ καὶ κάλλει καὶ τοῖς ἄλλοις πᾶσιν)”
(PLATÃO, Hípias Maior, 289b4-5) 201. Desse modo, formula a próxima questão: ainda que seja
a mais bela panela, torna-se feia se comparada a uma bela donzela casta; e essa última, se
comparada aos deuses, também parecerá feia? 202
A personagem de Sócrates usou, então, astutamente, a relativização da beleza para
comparar o mais “nobre/belo” 203 exemplo que Hípias consegue pensar (i.e., a bela donzela
casta) com os deuses, que certamente pertencem a uma classe superior, assim como a bela
panela em relação à bela casta. Aqui, Sócrates parece chegar no ponto mais alto de uma suposta
escala argumentativa do que é mais belo e mais uma vez há uma indicação de sua relação com
o divino. A lógica dessa refutação sugere mais uma possibilidade para o Belo em si, um ser de
beleza última: um deus. Nesse momento, encontra-se uma oportunidade de uma possível
relação ontológica do Belo em si com o divino, mas essa argumentação não é desenvolvida,
permanecendo implícita para o leitor. Platão faz com que Hípias não sugira essa resposta e,
aparentemente, é pela maneira com que Sócrates reformula a pergunta que isso (não) acontece.
Não parece, no entanto, que Platão se desviou da questão por ingenuidade (ou por ainda não ter
desenvolvido sua metafísica das Formas). Como visto, a relação entre o Belo em si e o divino
já vinha sendo traçada, mas sua decisão de não abordar esse aspecto ontológico provavelmente
se dá pelo caráter do diálogo: Hípias, apesar de sua inteligência, representa o elo com a opinião
dos muitos e a resistência fundamental ao questionamento filosófico. A personagem de Sócrates
não tem sucesso em corrigir seu raciocínio porque Hípias está muito ligado às convenções e ao
que seria irrefutável de acordo com a opinião dos muitos, o que se faz ver em suas justificativas
para as respostas que sugere 204. Retoma-se então a questão principal, que ainda não foi

200
= HERÁCLITO, fr. B82. Tradução nossa.
201
= HERÁCLITO, fr. B83. Tradução nossa.
202
Cf. 289a-289b.
203
Καλός normalmente traduzido como “belo” pode também significar “nobre”, “primoroso”, “digno de
admiração”, entre outras conotações similares.
204
Vide como exemplo: 288a3-5; 288b1-3; 289b8; 289e5-7.
119

devidamente respondida, já que todas as tentativas até o momento apontavam para exemplos
de coisas belas, e não para o Belo em si.

4.1.2.2 A segunda resposta de Hípias: o ouro

Desta vez, Sócrates acrescenta mais um dado para conduzir o raciocínio de Hípias, que
é a Forma (εἶδος) do Belo em si (αὐτὸ τὸ καλόν) que se adiciona (προσγένηται) às coisas,
fazendo-as belas:

ἔτι δὲ καὶ δοκεῖ σοι αὐτὸ τὸ καλόν, ᾧ καὶ τἆλλα πάντα κοσμεῖται καὶ καλὰ
φαίνεται, ἐπειδὰν προσγένηται ἐκεῖνο τὸ εἶδος, τοῦτ᾽ εἶναι παρθένος ἢ ἵππος
ἢ λύρα
Mas você ainda acha que o Belo em si, pelo qual todas as outras coisas são
adornadas e feitas belas em aparência, quando sua Forma a elas se anexa, é
isto uma donzela casta, uma égua ou uma lira? (PLATÃO, Hípias Maior,
289d2-5) 205

O uso do dativo instrumental (ᾧ) afirma, outra vez, a causalidade do αὐτὸ τὸ καλόν “pelo qual”
as coisas belas são feitas belas. Todavia, apesar da indicação de causalidade, novamente, nada
demonstra o seu estatuto. Assim comenta Paul Woodruff: “O problema com a bela garota de
Hípias é que ela não explica as muitas coisas que são belas da maneira que uma causa lógica
deveria, pois ela não ocorre em todas as coisas belas” (WOODRUFF, 1982, p. 168), e conclui
que o ponto é direto e não tem nada a ver com o estatuto ontológico do belo, mas que o belo é
anterior epistemologicamente.
Mais uma vez ainda, Hípias é incapaz de compreender o ponto exato da pergunta de
Sócrates. Sua confusão é especialmente explícita ao ignorar a palavra εἶδος quando faz uma
paráfrase da questão antes de respondê-la (289d6-8): “ἀλλὰ μέντοι, ὦ Σώκρατες, εἰ τοῦτό γε
ζητεῖ, πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι αὐτῷ τί ἐστι τὸ καλὸν ᾧ καὶ τὰ ἄλλα πάντα κοσμεῖται καὶ
προσγενομένου αὐτοῦ καλὰ φαίνεται”. Em 289e, ele fornece, então, uma resposta ligada ao
senso comum e escolhe um objeto de particular beleza em vez de concentrar-se na Forma do
Belo em si: o ouro.
Na passagem 288d, o verbo προσγίγνεσθαι é de grande interesse. O léxico LSJ (s.v.)
apresenta os seguintes significados para a palavra: 1. attach oneself to another; 2. mais

205
Tradução nossa.
120

geralmente: to be added, accrue. Lat. accedere; 3. come to, happen to; 4. become in addition.
O tempo verbal aoristo na voz média faz dessa ação impossível de ser traduzida precisamente.
Pode-se fazer uma aproximação ao pensá-lo como um modo reflexivo (anexa-se), mas ainda
assim de modo insatisfatório para esse caso específico.
Sobre o modo como esse verbo indica a relação que a Forma tem com os particulares,
tem-se a leitura estabelecida de W. D. Ross, que o lista entre vários outros verbos que Platão
usa para caracterizar essa relação. A lista é dividida em dois grupos que ele assume como
“implicando ou sugerindo a imanência das Formas, e um grupo implicando ou sugerindo sua
transcendência” (ROSS, 1951, p. 228), e προσγίγνεσθαι é tido por ele como denotando
imanência. Todavia, é Henry Teloh (1981) quem argumenta com mais detalhes que essa
imanência se deve pelo sufixo προσ- indicar movimento, e, segundo ele, pelo Timeu (52a-c)
afirmar que “as Formas separadas não entram no espaço, nestes termos seria inapropriado
enfatizar a natureza não-espacial das Formas” (TELOH, 1981, p. 81). Sua conclusão é a de que
o Belo em si “não existe independentemente” (ibid., 1981, p. 82) e é, portanto, imanente, sujeito
às transformações do sensível. Todavia, a analogia que o próprio Platão apresenta pela resposta
de Hípias parece não corroborar essa ideia, pois mostra um objeto A (ouro) sendo anexado a B,
sendo que A existe independentemente de B. A se apresenta, ainda, como sendo um agente
passivo, que se anexa sendo anexado, uma ação possibilitada pela voz média 206. Além do mais,
o ouro não sofre nenhuma transformação em seu estado e continua sendo o que é, o que
corrobora ainda mais a categorização passiva dessa ação: “Cláusulas [médias] passivas podem
ou não envolver uma mudança de estado do sujeito” (ALLAN, 2003, p. 60).
Ademais, vale notar como na própria lista elaborada por Ross citada anteriormente
Platão usa linguagem sugestiva de imanência nos mesmos diálogos em que ele usa linguagem
sugestiva de transcendência 207. Ainda de acordo com essa lista, vê-se que a única outra
ocorrência desse verbo caracterizando a relação entre Forma e particulares em outro diálogo é
encontrado no Fédon, em 100d6 208.

4.1.2.2.1 Fédon, 100d

É consenso que, dos argumentos que tratam da imortalidade da alma no Fédon, Platão
parece ter dado mais importância à passagem 95b – 107a, o argumento final em que as Formas

206
Cf. Allan, 2003, p. 59. Casos desse tipo são por ele nomeados como “Passive Middle”.
207
Vide ROSS, 1951, p. 228-230.
208
Cf. ibid. p. 229.
121

são tratadas como causas. Ali, ele cita os diversos modos através dos quais a relação entre as
coisas belas e o Belo em si pode ser descrita: participação (μετέχει; 100c5), presença (παρουσία;
100d5), ou comunhão (κοινωνία; 100d5), “de qualquer modo que ele [o Belo em si] se anexe
(ὅπῃ δὴ καὶ ὅπως προσγενομένη)”. Vê-se, nessa passagem, que é também tratando do Belo em
si (αὐτὸ τὸ καλόν) que Platão utiliza novamente o verbo προσγίγνεσθαι, justamente na tentativa
de apresentar um vocabulário mais específico para a relação da Forma com o particular, porém
sem chegar numa definição 209.
Nota-se que o Fédon é justamente o diálogo que Aristóteles expõe como representativo
da “separação” da Forma platônica e sua causalidade eficiente 210. Também, A. Motte e A. Lefka
reconhecem que no Fédon, diferentemente do Hípias Maior, as Formas já são abordadas num
contexto metafísico: “Este é certamente um dos primeiros diálogos onde a teoria das Ideias é
claramente exposta no seu âmbito metafísico” (MOTTE et al., 2003, p. 277) 211. Uma discussão
a respeito do Fédon, no entanto, está além do escopo de nossa pesquisa. Sendo assim, levando
em consideração o que foi visto até agora, se isolarmos a questão da Forma no Hípias Maior,
parece não haver nenhuma elaboração do estatuto ontológico do Belo em si. Todavia, nota-se
evidências que apontam para o fato de que Platão já estava bem ciente de sua orientação
metafísica, tanto pelos apontamentos de sua identificação com o divino no próprio diálogo,
quanto pela relação demonstrada com o Fédon. Ainda assim, esses indícios são dependentes do
intérprete considerar a filosofia das Formas nos demais diálogos para traçar possíveis relações
metafísicas.

4.1.2.3 O estatuto da causalidade do Belo em si

Como visto, é afirmado no diálogo que é “pelo” Belo em si que as coisas qualificadas
belas assim as são. Contudo, a exata compreensão do estatuto dessa causalidade é um ponto de
disputa entre os intérpretes, sendo que a maioria, seguidores de Vlastos, consideram que seja
uma causalidade meramente “lógica” ou “explicativa”, como já observado. Desse modo, os
defensores de uma leitura “evolucionista” dos diálogos platônicos inibem, em defesa de seus

209
Na sua edição do Fédon, Rowe (1993, p. 249-250) pressupõe Sócrates como “deliberately leaving aside” a
relação da Forma com o particular.
210
Metafísica, A.9,991a1-5; 991b1-4; Sobre a Geração e a Corrupção, 335b18-23.
211
Encontra-se no Fédon uma extensiva gama de atributos e funções determinantes da metafísica das Formas. Há,
por exemplo, uma relação entre esses e as características compartilhadas pelas almas: “divinas, imortais,
inteligíveis, uniformes, indissolúveis e eternas (θείῳ καὶ ἀθανάτῳ καὶ νοητῷ καὶ μονοειδεῖ καὶ ἀδιαλύτῳ καὶ ἀεὶ)”
(80b). Além disso: a) imutáveis (78c10-d9); b) eternas (79d2); c) inteligíveis (79a1-5); d) divinas (80a3-b1); e)
causas do ser (100c-d).
122

princípios, que as Formas separadas apareçam “antes” dos diálogos de maturidade. De fato,
apenas as referências terminológicas apresentadas até então não são suficientes para que se
demonstre uma causalidade produtora. A alternativa em aberto é: ou a forma é uma causa
explanatória ou é uma causa produtora (motriz/eficiente), mas o diálogo deixa claro ser o último
caso. Acontece que os intérpretes que seguem Vlastos nessa questão etiológica
convenientemente ignoram o fato de que, no diálogo, Platão explicita estar em busca de uma
causa produtora. Em 294b5-c2, enfatiza que, uma vez que estão em busca do Belo (εἴπερ τὸ
καλὸν ζητοῦμεν), devem tentar dizer tanto a causa pela qual todas as coisas belas são belas (ᾧ
καλὰ πάντα ἐστίν), como aquilo que faz as coisas serem belas (τὸ δὲ ποιοῦν εἶναι καλά), quer
elas pareçam ou não (ἐάντε φαίνηται ἐάντε μή). Toda a formulação da passagem de 294b-c2 é
especificada pelo uso do termo ποιεῖν, que significa “produzir”, mas, também, e mais
geralmente, “fazer” 212, e, sem dúvida, estabelece a causa como produtora. Assim comenta
Pradeau e Fronterotta a respeito dessa passagem:

O estatuto de "produtor", assim escolhido à qualidade, certamente não tem o


sentido forte e imediatamente eficiente que nossa linguagem atribui ao verbo
"produzir". Que a qualidade "produz" a coisa bela pode simplesmente
significar que é a causa, até a explicação, sem implicar que a qualidade se
engaje em uma atividade do tipo artesanal que consistiria na fabricação do
belo. Por outro lado, o Hípias Maior tira proveito de uma distinção ainda mais
precisa, quando Sócrates pergunta qual dessas duas operações convém ao
belo: o que consiste em fazer bela a coisa bela ou aquela que consiste em fazê-
la parecer bela. Aqui estão duas operações das quais 294b-c explica que elas
não podem ser realizadas por uma mesma realidade, e parece que eles são dois
poderes distintos. O caráter verdadeiramente agente do belo encontra
expressão nessa capacidade de fazer uma coisa ser bela; quer a beleza dessa
coisa seja percebida ou não, quer pareça ou não. (PRADEAU;
FRONTEROTTA, 2005, p. 239)

Além disso, Sócrates, um pouco adiante, é ainda mais enfático nesse sentido ao explicar:
“pois aquilo que cria não é outra coisa senão a causa (τὸ ποιοῦν δέ γ᾽ ἐστὶν οὐκ ἄλλο τι ἢ τὸ
αἴτιον)” (PLATÃO, Hípias Maior, 296e 8-9) 213. Essa precisão etiológica indica que o Belo em

212
O verbo foi usado no início do diálogo (em particular em 283c-e) para designar os meios que podem “fazer
melhores”, “fazer vir a ser bons” os jovens.
213
Tradução nossa.
123

si não só produz a qualificação da beleza nas coisas mas, também, que existe
independentemente da coisa que ele qualifica, uma vez que, em conformidade com o relato de
Aristóteles, uma causa produtora implica na sua “separação” devido a sua anterioridade
ontológica.

4.1.2.4 A ontologia do Belo em si

O estatuto ontológico do Belo é mais do que explicitamente afirmado por Platão na


passagem de 287c-287e1, que precede todo o desenvolvimento da trama abordada
anteriormente. Sócrates interroga Hípias, sob a voz do Refutador, se não é pela Justiça que os
justos são justos (δίκαιοί εἰσιν οἱ δίκαιοι; ἀπόκριναι δή); pergunta que Hípias imediatamente
concorda. Citamos a sequência do diálogo:

Σωκράτης⸳ ‘οὐκοῦν ἔστι τι τοῦτο, ἡ δικαιοσύνη;’ – Ἱππίας⸳ πάνυ γε. –


Σωκράτης⸳ ‘οὐκοῦν καὶ σοφίᾳ οἱ σοφοί εἰσι σοφοὶ καὶ τῷ ἀγαθῷ πάντα τἀγαθὰ
ἀγαθά;’ – Ἱππίας⸳ πῶς δ᾽ οὔ; – Σωκράτης⸳ ‘οὖσί γέ τισι τούτοις: οὐ γὰρ δήπου
μὴ οὖσί γε.’ – Ἱππίας⸳ οὖσι μέντοι. – Σωκράτης⸳ ‘ἆρ᾽ οὖν οὐ καὶ τὰ καλὰ πάντα
τῷ καλῷ’ ἐστι καλά;’ – Ἱππίας⸳ ναί, τῷ καλῷ. – Σωκράτης⸳ ‘ὄντι γέ τινι
τούτῳ;’ – Ἱππίας⸳ ὄντι…
Sócrates: Portanto, não é a Justiça algo específico?
Hípias: Certamente.
Sócrates: Consequentemente, é também pela Sabedoria que os sábios são
sábios, e pelo Bem que todas as coisas boas são boas?
Hípias: Como não?
Sócrates: Estas são, portanto, coisas específicas, ou, pelo contrário, talvez não
sejam?
Hípias: De fato são.
Sócrates: Desse modo, não é pelo Belo que todas as coisas belas são belas?
Hípias: Sim, pelo Belo.
Sócrates: É [o Belo], então, algo específico?
Hípias: É...
(PLATÃO, Hípias Maior, 287c4-287d2) 214

214
Tradução nossa.
124

Sócrates conclui esse raciocínio afirmando que quer saber “οὐ τί ἐστι καλόν, ἀλλ᾽ ὅτι
ἐστὶ τὸ καλόν” (PLATÃO, Hípias Maior, 287d11-e1). Nota-se que para enfatizar a distinção
da qualidade que é um atributo de um particular sensível e a condição ontológica da qualidade
em si, Platão substantiva o adjetivo, assim como faz com o Belo (τὸ καλόν). Verifica-se, ainda,
as primeiras ocorrências do dativo instrumental atribuindo condição etiológica à qualidade
substantivada 215. Ademais, Platão adiciona a esta qualidade substantivada o pronome reflexivo
αὐτὸ 216, indicando não só que ela é uma existência própria, mas, também, a sua mesmidade.
Sendo determinada apenas em relação a si mesma, a qualidade substantivada é, dessa maneira,
considerada como sendo “em si”. Como, então, defender uma posição que nega a ontologia
disso que Platão tão enfaticamente afirma “ser algo específico em si”, assumindo que se trate
apenas de um atributo lógico como querem Vlastos e seus seguidores? Vejamos o
representativo comentário de Paul Woodruff a essa passagem:

Devo, portanto, descartar como irrelevante a considerável evidência em


Hípias Maior 287cd que compromete Sócrates com a existência de coisas
como a justiça e o belo. Tais comprometimentos não têm nada a ver com
ontologia e não são controversos. Qualquer discussão pressupõe a existência
dos assuntos em discussão; mas poucas discussões comprometem-se a uma
teoria ontológica sobre seus assuntos. (WOODRUFF, 1982, p. 163-164)

Ele prossegue:

A busca de Sócrates pelo belo não é mais ontologicamente significante que


um discurso de uma pessoa qualquer invectivando contra injustiça. Este
último fala da injustiça e não vacilaria em admitir (com pesar) que ela existe;
mas ele não precisa ter ideia sobre se a injustiça é um universal (...). Se nosso
orador fosse um filósofo falando de injustiça, e, mais ainda, um filósofo
engajado na ontologia, então ele seria obrigado a ter uma teoria que pudesse
acomodar a injustiça em algum modo ontológico – como um universal, ou
como queira. (WOODRUFF, 1982, p. 164)

215
Οἱ δίκαιοι, οἱ σοφοί, τῷ ἀγαθῷ e τῷ καλῷ. Efetivamente, o emprego do dativo instrumental com esse mesmo
propósito se repete com uma certa frequência ao longo do diálogo. Vide, por exemplo: 287c2, 287c5, 287c8,
294b1-2.
216
O emprego do pronome reflexivo ao Belo substantivado é frequente ao longo do diálogo, tendo sido introduzido
mesmo antes dessa passagem em questão. Vide, por exemplo: 286d8, 288a9, 289c3, 289d2, 292c9, 292d3, 293e4
e 303a10.
125

Woodruff já havia iniciado esse tópico de seu comentário afirmando que a questão de
ser um universal é uma exigência particular sua para considerar que o assunto se trata de uma
ontologia 217. Contudo, a universalidade da qualidade substantivada é justamente uma condição
distintamente demarcada nesse trecho. Vê-se enfatizado que é pelo Belo que “todas (πάντα)”
as coisas belas são belas, assim como “τῷ ἀγαθῷ πάντα τἀγαθὰ ἀγαθά”.
Apesar de explícita a condição de universalidade, Woodruff convenientemente a ignora.
No entanto, no decorrer do seu comentário à obra, inevitavelmente acaba expondo e afirmando
a condição de universalidade do Belo em si, mas sem nenhuma retratação. Em 292e2, Platão,
mais uma vez ao longo do diálogo, explicita e reafirma a universalidade do Belo em si, e parece
ainda afirmar sua eternidade, pois é belo “para todos e sempre (ὃ πᾶσι καλὸν καὶ ἀεί ἐστι)”
(PLATÃO, Hípias Maior, 292e2). Woodruff comenta que ἀεί não indica temporalidade mas
denota “qualquer coisa (anything)”, e “para todos” denota “em toda instância” (WOODRUFF,
1982, p. 61). Nesse momento, seu comentário irremediavelmente acaba por afirmar a
universalidade do Belo em si e o quanto essa questão é determinante para o desdobramento do
diálogo, pois declara que tanto essa passagem como a segunda resposta de Hípias a respeito do
ouro (291c) são problemáticas pelo fato de não ser belo “em toda instância” (ibidem) 218. Ou
seja, é inegável que a exigência de Woodruff para atribuir ao Belo em si um estatuto ontológico
está mais do que explícita ao longo de toda a obra.
Estando, portanto, bem postulado o estatuto ontológico do Belo, reafirma-se que sua
relação etiológica com as instâncias implica, necessariamente (conforme Aristóteles), na sua
“separação” devido à sua anterioridade ontológica.

4.1.3 A explicação de Hípias da continuidade da οὐσία

Há quatro ocorrências de οὐσία no Hípias Maior, todas encontradas numa mesma seção
do diálogo (300c9 - 303d10) que diz respeito a uma digressão de Sócrates sugerindo, numa
complexa argumentação, que o Belo possa ser o prazer apreendido pela visão e audição 219.
Sendo belo o prazer da visão e belo o prazer da audição, juntos ambos são belos 220; ambos
(ἀμφότεραι) são, portanto, afetados (πεπόνθασιν) por esse mesmo algo em comum (τὸ κοινὸν

217
“Ontology, I shall say, is a distinctly philosophical matter. It shows up in the distinction between universals
and particulars (…). Ontology asks whether there are universals, for example, but it leaves to zoology the question
of whether there are Loch Ness Monsters” (WOODRUFF, 1982, p. 163).
218
Woodruff também admite ser esse o motivo de discordância da primeira resposta de Hípias sobre a bela donzela,
como já citado.
219
Cf. PLATÃO, Hípias Maior, 298a6-7; 299b8-c2.
220
Cf. ibid., 299c8-9.
126

τοῦτο) seja juntos ou individualmente (ὃ καὶ ἀμφοτέραις αὐταῖς ἔπεστι κοινῇ ’ἑκατέρᾳ ἰδίᾳ) 221.
Hípias concorda com essa teoria, e, então, Sócrates, prossegue notando dessa conclusão a
possibilidade de ambos serem afetados por uma qualidade que não afeta cada um deles em
particular, mas apenas quando juntos 222. Hípias fica completamente revoltado com tal
possibilidade: “pois nunca encontrarás o que quer que seja que não afete nem a mim nem a ti
mas que afete ambos [juntos] (οὐ γὰρ μήποτε εὕρῃς, ὃ μήτ᾽ ἐγὼ πέπονθα μήτε σύ, τοῦτ᾽
ἀμφοτέρους ἡμᾶς πεπονθότας)” (PLATÃO, Hípias Maior, 300d7-8); “tão ilógica, sem
reflexão, ingênua e sem inteligência a sua consideração (οὕτως ἀλογίστως καὶ ἀσκέπτως καὶ
εὐήθως καὶ ἀδιανοήτως διάκεισθε)” (PLATÃO, Hípias Maior, 301c2-3) 223. Como pode: se
ambos, juntos, Sócrates e Hípias, são justos ou injustos, ou saudáveis etc., cada um deles por si
também deve sê-lo 224.
De acordo com Hípias, Sócrates e seus habituais interlocutores não consideram o todo
do assunto (τὰ μὲν ὅλα τῶν πραγμάτων οὐ σκοπεῖς) em seu método investigativo, mas isolam
o belo e fatiam cada coisa que existe (ἕκαστον τῶν ὄντων ἐν τοῖς λόγοις κατατέμνοντες) 225.
Seguem-se, assim, as duas primeiras ocorrências de οὐσία:

διὰ ταῦτα οὕτω μεγάλα ὑμᾶς λανθάνει καὶ διανεκῆ σώματα τῆς οὐσίας
πεφυκότα. καὶ νῦν τοσοῦτόν σε λέληθεν, ὥστε οἴει εἶναί τι ἢ πάθος ἢ οὐσίαν,
ἣ περὶ μὲν ἀμφότερα ταῦτα ἔστιν ἅμα, περὶ δὲ ἑκάτερον οὔ, ἢ αὖ περὶ μὲν
ἑκάτερον, περὶ δὲ ἀμφότερα οὔ
Por essa razão você falha enormemente em notar também a continuidade dos
corpos das οὐσίας que dá natureza [às coisas]. E agora falha tanto quanto, na
medida que supõe haver algum πάθος ou οὐσίαν que seja de ambos [juntos],
mas não de cada um individualmente, ou novamente de cada um, mas não de
ambos. (PLATÃO, Hípias Maior, 301b6-301c2) 226

Dorothy Tarrant, a respeito dessa passagem, pressupõe que há uma “confusão de οὐσία
com πάθος” por parte do autor: “οὐσία como ‘natureza essencial’ muito dificilmente pode ser
uma alternativa válida para πάθος, ‘condição acidental’” (TARRANT, 1928, p.lxii) 227. Em sua

221
Cf. ibid., 300a10-b5.
222
Cf. ibid., 300b.
223
Traduções nossa.
224
Cf. ibid., 300e8 - 301a7.
225
Cf. ibid., 301b2-5.
226
Tradução nossa.
227
A respeito de σώματα τής ουσίας, afirma que, nesse caso, οὐσία denota um “sentido coletivo” de “ser em geral”
(TARRANT, 1928, p. 79). Retornaremos a respeito desse termo logo adiante.
127

crítica, Tarrant ignora completamente a trama literária, desse modo, toma a frase como se fosse
uma confusão de um autor falsário tentando representar a teoria das Ideias de Platão, e, como
visto, faz disso um importante argumento para a sua contestação à autenticidade do diálogo.
Para abordarmos essa questão, primeiramente, é importante verificar a bem
documentada história da palavra οὐσία 228, a fim de situar o entendimento do sentido que Hípias
atribui à palavra de acordo com o contexto da época. Sabe-se que antes de Platão a palavra já
existia no grego ático, podendo ser encontrada entre os escritos dos dramaturgos, historiadores
e oradores a partir do séc. V a.C., com significado de “propriedade”. André Motte denomina
essa orientação semântica como “sentido econômico” de οὐσία, e insiste que, nesse sentido, “a
palavra sempre tem um significado concreto; refere-se a bens materiais que possuímos e que
adquirimos por herança, por atividade pessoal, por doação, pela espoliação do inimigo ou ainda
por decisão judicial” (MOTTE et al., 2008, p. 16-17). Nota-se, com isso, que, se uma palavra
derivada do infinitivo do verbo “ser” é usada para se referir aos meus bens materiais enquanto
nome, minha οὐσία, a referência não é ao ser desses bens em si, mas sim ao meu próprio ser e,
portanto, ao papel desses bens enquanto pertencentes a mim. Tem-se, assim, outra derivação
semântica encontrada nos escritos científicos do período pré-platônico 229 com o sentido de uma
propriedade elementar constitutiva e definidora do ser, mas que não se configura “nem no
sentido econômico, nem em um sentido ontológico 230” (MOTTE et al., 2008, p. 32). São estes,
por exemplo, os elementos água, ar, fogo e éter, ou os números, ou os átomos 231. Embora uma
discussão a respeito da história da palavra esteja além do escopo de nossa pesquisa, é necessário
discernir como ela está sendo utilizada por Platão nas ocorrências em questão 232.
Tendo em mente esse contexto histórico, vê-se que, na continuidade do diálogo, o
próprio Sócrates, após ter aceitado a crítica de Hípias, em 301e3-6, segue desenvolvendo sua
busca do Belo em si a partir da proposta de οὐσία defendida por Hípias, e assim coloca:

228
Vide o estudo exaustivo das ocorrências da palavra οὐσία, das origens a Aristóteles, também realizado pelo
Centre d'études aristotéliciennes de l'Université de Liège (MOTTE et al., 2008).
229
Os escritos dos pré-socráticos e do Corpus Hippocraticum.
230
“On est dès lors surpris de constater qu'aucun fragment d'un philosophe préclassique n'atteste à coup sûr
l'emploi d'οὐσία dans un sens ontologique” (MOTTE et al., 2008, p. 40).
231
Para maiores detalhes vide MOTTE et al., 2008, p. 21-37.
232
Como é bem sabido, com Platão essa palavra assume uma importantíssima carga ontológica e filosófica, mas
basta uma verificação ao léxico LSJ (s.v., I.) para saber que há, pelo menos, duas ocorrências de οὐσία no seu
sentido ático comum nos diálogos de juventude de Platão: Críton, 44e5, 53b2, Górgias, 486c1. Vide, ainda, o
estudo de Debra Nails, “Ousia in the Platonic Dialogues” (1979), que também distingue nos escritos de Platão
três sentidos de οὐσία: “Property (wealth)”; “as a property of an activity, an object, or a person”; “as a component
of the ontological ordering”.
128

οὐ γὰρ οἷόν τε διανεκεῖ λόγῳ τῆς οὐσίας κατὰ Ἱππίαν ἄλλως ἔχειν, ἀλλ᾽ ὃ ἂν
ἀμφότερα ᾖ, τοῦτο καὶ ἑκάτερον, καὶ ὃ ἑκάτερον, ἀμφότερα εἶναι.
πεπεισμένος δὴ νῦν ἐγὼ ὑπὸ σοῦ ἐνθάδε κάθημαι.
Não poderá ser de outra maneira, de acordo com a explicação de Hípias da
continuidade da οὐσία: o que são ambos, cada um terá de ser, e o que cada um
é em particular, ambos também serão” (PLATÃO, Hípias Maior, 301e3-6) 233.

Assim se dá a terceira ocorrência, óbvia e explicitamente no sentido proposto anteriormente por


Hípias. A seguir, Sócrates recua estrategicamente admitindo sua própria ingenuidade e, então,
concordando com Hípias, aponta para o fato de que, de acordo com essa proposição, se ambos,
ele e Hípias, juntos, são dois, então cada um individualmente também será dois. Da mesma
forma, se cada um é um, ambos, juntos, também serão um. Mas, como Hípias é forçado a
admitir, esse não é o caso. Cada um deles individualmente é um e ímpar, enquanto juntos são
dois e par. Tal evento não é admitido pela “explicação da continuidade da οὐσία” de Hípias.
Como pode ser que dois, que é par, venha a ser a partir do um, que é ímpar, e outro um, que
também é ímpar?
Vê-se no Fédon (96a - 102a) que o próprio Sócrates, quando jovem (νέος), ao buscar “a
sabedoria que eles chamam de investigação da natureza (τῆς σοφίας ἣν δὴ καλοῦσι περὶ φύσεως
ἱστορίαν)” deparou-se com essa mesma perplexidade de como um e um vêm a ser dois etc., a
ponto de ser uma das provocações que o afastou desse caminho investigativo que tenta
compreender as causas através de explições estritamente “materialistas”:

...e tentasse seguidamente expor nestes termos as causas de cada uma das
coisas que faço: primeiro, que estou agora aqui sentado pela razão de que o
meu corpo é constituído por músculos e ossos; que esses ossos são sólidos e
separados entre si por articulações, enquanto os músculos, feitos de molde a
contrair-se e a distender-se, rodeiam por completo os ossos com a carne e a
pele, que os contém juntamente; que sendo, pois, os ossos dotados de
mobilidade dentro das respectivas articulações, os músculos, à medida que se
distendem e contraem, possibilitam que eu dobre os membros ... E eis a causa
de me encontrar agora sentado, com o corpo dobrado nesta posição! E
idênticas causas serviriam para explicar o facto de me encontrar aqui a falar
convosco — a voz, o ar, o ouvido e mil outras causas do género, esquecendo,
em fim de contas, o essencial, ou seja que, uma vez que os Atenienses acharam

233
Tradução nossa.
129

por bem condenar-me, também eu, pelas mesmas razões, achei por bem e mais
justo ficar aqui sentado, aguardando a vez de me sujeitar à pena que me
infligiram. Porque — pelo cão! — ou muito me engano ou há muito que estes
mesmos ossos e músculos estariam lá para as bandas de Mégara ou da Beócia,
levados por uma certa noção do «melhor», se eu não estivesse convicto de que
era mais justo e mais belo submeter-se às leis da cidade, qualquer que fosse a
pena que me é imposta, de preferência a evadir-me e fugir. (PLATÂO, Fédon,
98c-98e) 234

É, no entanto, justamente no contexto daqueles que investigam a natureza que se tem o


sentido de οὐσία como uma propriedade elementar do ser, mas que não se trata de uma
ontologia. Ao aplicarmos essa orientação semântica de οὐσία nas ocorrências do Hípias Maior
explica-se a razão pela qual Hípias é incrédulo com a sugestão de Sócrates de que certas
afecções se aplicam a duas coisas juntas, mas não a cada uma individualmente, e elimina-se a
suposta “confusão de οὐσία com πάθος” criticada por Dorothy Tarrant. Para Hípias, é a
continuidade dos corpos elementares constituintes do ser que dá natureza às coisas (διανεκῆ
σώματα τῆς οὐσίας πεφυκότα) 235. Ainda, lendo em retrospecto a fala de Hípias em 301a, esse
sentido de οὐσία também se confirma:

σκόπει γάρ: πότερον εἰ ἀμφότεροι δίκαιοί ἐσμεν, οὐ καὶ ἑκάτερος ἡμῶν εἴη
ἄν, ἢ εἰ ἄδικος ἑκάτερος, οὐ καὶ ἀμφότεροι, ἢ εἰ ὑγιαίνοντες, οὐ καὶ ἑκάτερος;
ἢ εἰ κεκμηκώς τι ἢ τετρωμένος ἢ πεπληγμένος ἢ ἄλλ᾽ ὁτιοῦν πεπονθὼς
ἑκάτερος ἡμῶν εἴη, οὐ καὶ ἀμφότεροι αὖ ἂν τοῦτο πεπόνθοιμεν; ἔτι τοίνυν εἰ
χρυσοῖ ἢ ἀργυροῖ ἢ ἐλεφάντινοι, εἰ δὲ βούλει, γενναῖοι ἢ σοφοὶ ἢ τίμιοι ἢ
γέροντές γε ἢ νέοι ἢ ἄλλο ὅτι βούλει τῶν ἐν ἀνθρώποις ἀμφότεροι τύχοιμεν
ὄντες, ἆρ᾽ οὐ μεγάλη ἀνάγκη καὶ ἑκάτερον ἡμῶν τοῦτο εἶναι;
Pois veja: se ambos [juntos] somos justos, não seríamos cada um de nós
também justos, e se cada um fosse injusto, não seríamos ambos também
injustos, ou se ambos somos saudáveis, não será cada um também? Ou se
individualmente estivermos cansados ou feridos ou estarrecidos ou afetados
de qualquer outra maneira que seja, não seríamos ambos [juntos] afetados da
mesma maneira? Sendo ainda assim, se ambos [juntos] somos de ouro, ou

234
Tradução de Maria Teresa Schiappa de Azevedo (1983).
235
Debra Nails (1979), apesar de não desenvolver nenhuma argumentação diretamente sobre esse diálogo,
acertadamente, em nosso entendimento, classifica o uso de οὐσία no Hípias Maior “as a property of an actity, an
object, or a person” (NAILS, 1979, p. 72).
130

prata, ou marfim, ou, caso queira, bem-nascidos, ou sábios, ou honoráveis, ou


velhos, ou jovens, ou qualquer coisa que queira que advenha ao homem, não
é sumamente necessário que também sejamos cada um de nós
individualmente? (PLATÃO, Hípias Maior, 300e8-301a) 236

É Hípias, portanto, quem considera sumamente necessário (μεγάλη ἀνάγκη) que tanto
as propriedades da pessoa (ser de ouro, prata, nobre, sábio etc.), de suas afecções (cansado,
ferido, estarrecido etc.), bem como as virtudes, estejam sujeitas a essa condição de continuidade
(διηνεκής): se ambos juntos o são cada um individualmente deverá o ser. Não há confusão de
“natureza essencial” com “condição acidental” como acusa Dorothy Tarrant. Ela não só se
equivoca com o sentido de οὐσία como ignora a trama literária e o fato de que, além dessa ser
uma proposição de Hípias, Sócrates argumenta contra ela.
Na continuidade do diálogo, apesar da revoltosa resistência de Hípias, quando Sócrates
aponta que juntos são dois e par enquanto cada um individualmente é um e ímpar, Hípias é
forçado a admitir que existem certas afecções que se aplicam a ambos, mas não a cada um.
Todavia, em 302b, Hípias ainda insiste no seu ponto de vista, afirmando que isso se aplica
apenas para esses tipos de coisas mas não para as outras que ele havia mencionado
anteriormente. Com isso, a investigação não procede na direção que Sócrates apontou, pois
toma como suficiente a constatação de que “algumas coisas parecem ser assim, outras, não
(ἐπειδὴ τὰ μὲν οὕτω φαίνεται, τὰ δ᾽ οὐχ οὕτως ἔχοντα)” (PLATÃO, Hípias Maior, 302b5-6) 237.
E, como Hípias havia concordado, nesse caso específico do prazer pela vista e pela audição,
ambos e cada um são belos (διότι συνεχώρεις ἀμφοτέρας τε αὐτὰς εἶναι καλὰς καὶ ἑκατέραν).

τούτου δὴ ἕνεκα τῇ οὐσίᾳ τῇ ἐπ᾽ ἀμφότερα ἑπομένῃ ᾤμην, εἴπερ ἀμφότερά


ἐστι καλά, ταύτῃ δεῖν αὐτὰ καλὰ εἶναι, τῇ δὲ κατὰ τὰ ἕτερα ἀπολειπομένῃ μή:
Por esse motivo supunha que, se realmente ambos [juntos] são belos, é pela
οὐσίᾳ que incide sobre ambos; é por causa dela que eles devem ser belos, e
não por causa de algo que estaria faltando a um deles. (PLATÃO, Hípias
Maior, 302c4-7) 238

Encontra-se nessa passagem a última ocorrência de οὐσία, ainda na mesma orientação


semântica das outras ocorrências, mas que Dorothy Tarrant critica, afirmando que “em 302C

236
Tradução nossa.
237
Tr. idem.
238
Tr. idem.
131

οὐσία parece ser usado simplesmente como um atributo lógico”. Não há qualquer indicação de
que Sócrates pudesse repentinamente estar assumindo outra conotação para o termo. Dorothy
Tarrant convenientemente ignora o contexto do diálogo e o fato de que esse “mero atributo
lógico” havia sido uma proposição de Hípias, para assim concluir que essa não é uma obra
escrita por Platão, pois: “Platão, uma vez que estabelece a teoria das Ideias, não usa ουσία da
Ideia como presente em um particular, mas como uma substância transcendente; e.g. Phaedo
78 C” (TARRANT, 1928, p.lxii).
Em conclusão, considerando tudo o que foi exposto acima, parece-nos claro que
Sócrates alude a um afastamento da investigação do Belo em si como sendo uma οὐσία no
sentido de uma propriedade elementar das coisas, em direção a uma investigação ontológica
inteligível, de uma causa produtora imutável, universal e eterna 239, que não está contida nos
particulares sensíveis, pois é diferente daquilo que produz, assim como a sequência final do
diálogo reforça: “como vimos, o produtor e o produto são duas coisas distintas (τὸ δὲ ποιοῦν
καὶ τὸ ποιούμενον ἕτερον νυνδὴ ἐφάνη)” (PLATÃO, Hípias Maior, 303e2) 240. O εἶδος, por sua
vez, identifica-se com o Belo em si, mas é referido especificamente como aquilo que se anexa
às coisas belas fazendo-as belas. Essa anexação é uma afecção (πάσχειν) e não se porta como
quer “a explicação de Hípias da continuidade da οὐσία”, pois não se trata de uma propriedade
elementar do particular sensível.

4.2 Mênon

As três ocorrências de εἶδος, classificadas “paradigmáticas” no capítulo anterior, são


encontradas, sucessivamente, num breve trecho do diálogo (72c5–73a5) que é, todavia,
precedido por uma passagem de fundamental importância para a sua devida compreensão, onde
Platão introduz uma nova concepção de οὐσία.

4.2.1 A definição de οὐσία

Em busca do que é a “virtude” (ἀρετή), a personagem Sócrates insiste que uma lista das
suas instâncias particulares não constitui uma resposta válida, assim como Mênon havia lhe

239
Se se considerar ἀεί de 292e2 como eternidade.
240
Tradução nossa.
132

apresentado 241. Com isso, em 72a6–73b, Platão define οὐσία nos seus próprios termos,
significando “o que alguma coisa é”:

Σωκράτης⸳ πολλῇ γέ τινι εὐτυχίᾳ ἔοικα κεχρῆσθαι, ὦ Μένων, εἰ μίαν ζητῶν


ἀρετὴν σμῆνός τι ἀνηύρηκα ἀρετῶν παρὰ σοὶ κείμενον. ἀτάρ, ὦ Μένων, κατὰ
ταύτην τὴν εἰκόνα τὴν περὶ τὰ σμήνη, εἴ μου ἐρομένου μελίττης περὶ οὐσίας
ὅτι ποτ’ ἐστίν, πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἔλεγες αὐτὰς εἶναι, τί ἂν ἀπεκρίνω μοι,
εἴ σε ἠρόμην· ‘ ἆρα τούτῳ φῂς πολλὰς καὶ παντοδαπὰς εἶναι καὶ διαφερούσας
ἀλλήλων, τῷ μελίττας εἶναι; ἢ τούτῳ μὲν οὐδὲν διαφέρουσιν, ἄλλῳ δέ τῳ,
οἷον ἢ κάλλει ἢ μεγέθει ἢ ἄλλῳ τῳ τῶν τοιούτων; ’ εἰπέ, τί ἂν ἀπεκρίνω οὕτως
ἐρωτηθείς;
Μένων⸳ τοῦτ’ ἔγωγε, ὅτι οὐδὲν διαφέρουσιν, ᾗ μέλιτται εἰσίν, ἡ ἑτέρα τῆς
ἑτέρας.
SO. Uma sorte bem grande parece que tive, Mênon, se, procurando uma só
virtude, encontrei um enxame delas pousado junto a ti. Entretanto, Mênon, a
propósito dessa imagem, essa sobre o enxame, se, perguntando eu, sobre a
οὐσία da abelha, o que ela é, dissesses que elas são muitas e variadas, o que
me responderías se te perguntasse: “dizes serem elas muitas e variadas e
diferentes umas das outras quanto ao serem elas abelhas? Ou quanto a isso
elas não diferem nada, mas sim quanto a outra coisa, por exemplo quanto à
beleza, ou ao tamanho, ou quanto a qualquer outra coisa desse tipo? Dize: que
responderías, sendo interrogado assim?
MEN. Eu, de minha parte, diria que, quanto a serem abelhas, não diferem nada
umas das outras. (PLATÃO, Mênon, 72a6–72b)242

Observa-se que οὐσία se apresenta justaposta à ὅτι ποτ᾽ ἐστίν (“o que é”), como uma
pergunta indireta (πότε), definindo, de modo suficiente, o sentido em que ele quer que o
substantivo οὐσία seja interpretado: οὐσία é “o que algo é”, sua “essência” 243. Como afirma A.

241
Cf. PLATÃO, Mênon, 71e1-72a5.
242
Tradução de Maura Iglésias (2001) levemente modificada.
243
Maura Iglésias (2001) adota a tradução “ser” para οὐσία nessa passagem. Preferimos, no entanto, traduzir por
“essência”. Essa passagem por si já demonstra a relação de similaridade etimológica do substantivo οὐσία com o
particípio singular feminino do verbo εἶναι (οὖσα, “ser”), que Platão parece fazer uso ao atribuir esse novo
significado de “o que a coisa é”. “Essência”, todavia, foi a tradução escolhida pelos romanos (essentia), um
neologismo criado por Cícero que justamente faz paralelo a essa relação de οὐσία com εἶναι, dada a relação de
essentia com esse. Traduz-se, por vezes, οὐσία por “substância”, mas, como nota L. Bodson (MOTTE et al., 2008,
p. 294-295), a palavra substantia introduzida por Sêneca na língua latina não se referia a οὐσία nem a nenhum
outro termo grego. “Essência” é, portanto, a tradução que melhor parece representar a similaridade etimológica
com “ser”, mantendo, assim, a ênfase do novo sentido semântico que Platão lhe atribui.
133

Lefka: “a única ocorrência de οὐσία no Mênon pode ser claramente compreendida, então, num
sentido ontológico” (MOTTE et. al., 2008, p. 65). Pode-se notar, ainda, que Platão
conscientemente está introduzindo o seu próprio significado para a palavra pela frase μου
ἐρομένου μελίττης πέρι, que poderia ser imediatamente seguida da pergunta indireta ὅτι ποτ’
ἐστίν e a sintaxe estaria completa: “quando perguntei sobre uma abelha, o que ela é…”. O
acréscimo de οὐσίας não se trata apenas de uma redundância estilística, é isso que confere um
novo significado ontológico para a palavra. Essa redundância exclui, ainda, qualquer
ambiguidade ou incerteza quanto ao sentido que se quer dar ao termo.
Também significativo é o fato de οὐσία ser contrastada com ὁποῖος 244. Lendo em
retrospecto a passagem de 71b, sabendo que Sócrates tinha em mente o sentido de οὐσία como
essência, “o que algo é”, nota-se a contraposição com “qual sua qualidade é” (ὁποῖος γέ τι):

...καὶ ἐμαυτὸν καταμέμφομαι ὡς οὐκ εἰδὼς περὶ ἀρετῆς τὸ παράπαν: ὃ δὲ μὴ


οἶδα τί ἐστιν, πῶς ἂν ὁποῖόν γέ τι εἰδείην; ἢ δοκεῖ σοι οἷόν τε εἶναι, ὅστις
Μένωνα μὴ γιγνώσκει τὸ παράπαν ὅστις ἐστίν, τοῦτον εἰδέναι εἴτε καλὸς εἴτε
πλούσιος εἴτε καὶ γενναῖός ἐστιν, εἴτε καὶ τἀναντία τούτων; δοκεῖ σοι οἷόν τ᾽
εἶναι;
...e me censuro a mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre a
virtude. E, quem não sabe o que uma coisa é, como podería saber de qual
qualidade é? Ou te parece ser possível alguém que não conhece absolutamente
quem é Mênon, esse alguém saber se ele é belo, se é rico e ainda se é nobre,
ou se é mesmo o contrário dessas coisas? Parece-te ser isso possível?
(PLATÃO, Mênon, 71b2-8) 245

A οὐσία que Platão define e busca enquanto o que uma coisa é, sua essência, difere, não
só da οὐσία que buscava o saber científico de sua época, a constituição elementar de um
particular sensível 246, mas, também, de suas qualidades.

4.2.2 O εἶδος da Virtude em si por si

244
Lat. qualis.
245
Tradução de Maura Iglésias (2001) levemente modificada.
246
Conforme visto em 4.1.3.
134

Imediatamente após a passagem sobre a οὐσία citada acima, onde, em sua busca pela
ἀρετή, Sócrates perguntou a Mênon o que é a οὐσία de uma abelha, Mênon confirma que pode
lhe dizer o que todas as abelhas qua abelhas têm em comum. Sócrates, então, prossegue:

Σωκράτης⸳ οὕτω δὴ καὶ περὶ τῶν ἀρετῶν: κἂν εἰ πολλαὶ καὶ παντοδαπαί εἰσιν,
ἕν γέ τι εἶδος ταὐτὸν ἅπασαι ἔχουσιν δι᾽ ὃ εἰσὶν ἀρεταί, εἰς ὃ καλῶς που ἔχει
ἀποβλέψαντα τὸν ἀποκρινόμενον τῷ ἐρωτήσαντι ἐκεῖνο δηλῶσαι, ὃ τυγχάνει
οὖσα ἀρετή: ἢ οὐ μανθάνεις ὅτι λέγω;
Μένων⸳ δοκῶ γέ μοι μανθάνειν: οὐ μέντοι ὡς βούλομαί γέ πω κατέχω τὸ
ἐρωτώμενον.
Σωκράτης⸳ πότερον δὲ περὶ ἀρετῆς μόνον σοι οὕτω δοκεῖ, ὦ Μένων, ἄλλη μὲν
ἀνδρὸς εἶναι, ἄλλη δὲ γυναικὸς καὶ τῶν ἄλλων, ἢ καὶ περὶ ὑγιείας καὶ περὶ
μεγέθους καὶ περὶ ἰσχύος ὡσαύτως; ἄλλη μὲν ἀνδρὸς δοκεῖ σοι εἶναι ὑγίεια,
ἄλλη δὲ γυναικός; ἢ ταὐτὸν πανταχοῦ εἶδός ἐστιν, ἐάνπερ ὑγίεια ᾖ, ἐάντε ἐν
ἀνδρὶ ἐάντε ἐν ἄλλῳ ὁτῳοῦν ᾖ;
Μένων⸳ ἡ αὐτή μοι δοκεῖ ὑγίειά γε εἶναι καὶ ἀνδρὸς καὶ γυναικός.
Σωκράτης⸳ οὐκοῦν καὶ μέγεθος καὶ ἰσχύς; ἐάνπερ ἰσχυρὰ γυνὴ ᾖ, τῷ αὐτῷ
εἴδει καὶ τῇ αὐτῇ ἰσχύϊ ἰσχυρὰ ἔσται; τὸ γὰρ τῇ αὐτῇ τοῦτο λέγω: οὐδὲν
διαφέρει πρὸς τὸ ἰσχὺς εἶναι ἡ ἰσχύς, ἐάντε ἐν ἀνδρὶ ᾖ ἐάντε ἐν γυναικί. ἢ
δοκεῖ τί σοι διαφέρειν;
Μένων⸳ οὐκ ἔμοιγε.
Σωκράτης⸳ ἡ δὲ ἀρετὴ πρὸς τὸ ἀρετὴ εἶναι διοίσει τι, ἐάντε ἐν παιδὶ ᾖ ἐάντε
ἐν πρεσβύτῃ, ἐάντε ἐν γυναικὶ ἐάντε ἐν ἀνδρί;
Μένων⸳ ἔμοιγέ πως δοκεῖ, ὦ Σώκρατες, τοῦτο οὐκέτι ὅμοιον εἶναι τοῖς ἄλλοις
τούτοις.
SO. Ora, é assim também no que se refere às virtudes. Embora sejam muitas
e assumam todos os tipos de variedades, têm todas um εἶδος único, <que é> o
mesmo, graças ao qual são virtudes, para o qual, tendo voltado seu olhar, a
alguém que está respondendo é perfeitamente possível, penso, fazer ver, a
quem lhe fez a pergunta, o que vem a ser a virtude. Ou não entendes o que
digo?
MEN. Acho que entendo sim. Contudo, ainda não apreendo, como quero pelo
menos, aquilo que é perguntado.
SO. Mas é só a propósito da virtude que te parece ser assim, Mênon: que a
virtude do homem é diferente da virtude da mulher, e da dos outros? Ou passa-
se a mesma coisa também com a saúde, com o tamanho e com a força? Parece-
135

te ser uma a saúde do homem, outra a da mulher? Ou por toda parte é o mesmo
εἶδός, se realmente for saúde, quer esteja no homem quer esteja em quem quer
que seja?
MEN. A saúde, ela, parece-me ser a mesma, tanto a do homem quanto a da
mulher.
SO. Também o tamanho e a força, não é verdade? Caso a mulher seja forte, é
graças à mesma εἴδει e graças à mesma força que será forte, não é? Pois por
“a mesma” quero dizer isso: que em nada difere a força, no que concerne ao
ser forte, quer esteja no homem quer na mulher. Ou pensas que de alguma
maneira difere?
MEN. Eu não.
SO. Mas a virtude, quanto ao ser virtude, diferirá em alguma coisa, quer esteja
numa criança ou num velho, quer numa mulher ou num homem?
MEN. A mim pelo menos parece, de alguma maneira, Sócrates, que esse caso
já não é parecido com aqueles outros. (PLATÃO, Mênon, 72c5–73a5) 247

Como afirma A. Lefka, “Sócrates se servirá dos termos ἕν γέ τι εἶδος ταὐτὸν ἅπασαι
como sinônimos de οὐσία”, e assim explica:

Nessa única menção a esse termo, Platão põe em evidência o fato de que
Sócrates aceita a existência de uma essência comum a todos os indivíduos que
fazem parte de uma espécie. A investigação dialética é dedicada a descobrir a
verdade sobre essa essência. (MOTTE et al., 2008, p. 66)

Há, portanto, uma relação de identificação entre o εἶδος da virtude e a essência. Ademais, a
conjunção subordinativa concessiva κἂν, que inicia a sentença, expressa que o εἶδος, termo
principal da oração, não se refere à multiplicidade e diversidade de tipos das instâncias
particulares de abelhas (εἰ πολλαὶ καὶ παντοδαπαί εἰσιν). Com isso, Platão descarta, de
imediato, os sentidos de aspecto e classificatório para o εἶδος. Logo em seguida, afirma que
esse εἶδος essencial, que não é aparência, nem tipo, é propriedade (ἔχουσιν) enquanto causa

247
Tradução de Maura Iglésias (2011) levemente modificada. Maura traduz εἶδος por “caráter”, declarando que o
termo, “provavelmente”, ainda não tenha o uso platônico de “um sentido técnico de realidade em si, por si,
separada das coisas que dela participam”. Afirma, ainda, que, “provavelmente”, seja o sentido utilizado pelo
“próprio Sócrates histórico — é aquilo que é comum a todas as coisas chamadas (não por acaso) pelo mesmo nome
(substantivo ou adjetivo, não importa: belo, justo, homem, etc.)”, atribuindo, equivocadamente, essa informação a
respeito do uso do vocabulário da forma pelo Sócrates histórico ao relato Aristóteles na Metafìsica, M.4.1078b,25-
30 (cf. IGLÉSIAS, 2001, n. 2, p. 115).
136

(διά seguido por acusativo) comum e invariável das diversas instâncias particulares de virtude
(δι᾽ ὃ εἰσὶν ἀρεταί). Platão, por fim, usando o dativo instrumental, reforça essa qualidade
etiológica da Forma e, ainda, sua identidade (τῷ αὐτῷ εἴδει) e distinção em relação a
multiplicidade diversa e variável das instâncias particulares sensíveis. Com isso, reforça
também sua identificação com o novo sentido de essência que atribuiu à οὐσία e a distinção
com o sentido de qualidade das coisas sensíveis.
Com tudo o que se viu até agora, tem-se que Sócrates está em busca de um εἶδος, que é
uma propriedade essencial, universal e invariável, causa de todas as variedades e diversidades
das instâncias particulares de virtudes. Elimina-se, portanto, qualquer possibilidade de
considerar essa etiologia como sendo uma mera explicação lógica sem implicações ontológicas,
como querem Vlastos e seus seguidores.

4.2.3 A anterioridade ontológica da οὐσία

Ainda, no fim do diálogo, em 100b, falando a respeito da virtude, Platão indica a


anterioridade ontológica da οὐσία:

ἐκ μὲν τοίνυν τούτου τοῦ λογισμοῦ, ὦ Μένων, θείᾳ μοίρᾳ ἡμῖν φαίνεται
παραγιγνομένη ἡ ἀρετὴ οἷς ἂν παραγίγνηται: τὸ δὲ σαφὲς περὶ αὐτοῦ εἰσόμεθα
τότε, ὅταν πρὶν ᾧτινι τρόπῳ τοῖς ἀνθρώποις παραγίγνεται ἀρετή, πρότερον
ἐπιχειρήσωμεν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ ζητεῖν τί ποτ᾽ ἔστιν ἀρετή.
Assim sendo, seguindo esse raciocínio, Mênon, é por concessão divina que a
virtude nos aparece como advindo, àqueles a quem advenha. Mas o que é certo
sobre isso saberemos quando, antes de <empreendermos saber> de que
maneira a virtude advém aos homens, primeiro empreendermos pesquisar o
que é afinal a virtude em si e por si mesma. (PLATÃO, Mênon, 100b2-4) 248

Também nesse diálogo se aponta para a relação da Forma com o divino. É a partilha
divina (θείᾳ μοίρᾳ), portanto, que confere a virtude ao particular sensível. Apesar de não se ter
plena clareza (σαφὲς) desse modo pelo qual a virtude advém aos homens, a necessidade lógica
de um terceiro elemento intermediário, divino, para que a coisa “em si por si” se manifeste
enquanto instância em um particular sensível, faz clara a distinção ontológica entre os dois
extremos. Resultou-se este como o melhor (κάλλιστα) λογισμός alcançado, uma vez que, com

248
Tradução de Maura Iglésias (2001).
137

ele, Sócrates se dá por satisfeito encerrando o diálogo. Nota-se como, desse modo, uma
investigação da causa da instância necessariamente remete a essa “origem” que é
ontologicamente outra, visto que se trata de uma propriedade atribuída “de fora” e não inerente
ao particular sensível.
Para deixar claro que essa essência que Sócrates busca deve sua existência apenas a si
mesmo, sendo, portanto, independente dos particulares sensíveis, Platão cunha uma frase
encontrada em muitos diálogos, a qual redobra o pronome reflexivo para falar da “coisa em
si” 249, afirmando um modo de existência independente, invariável e auto-subsistente, “em si
por si” (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ), completamente distinto do que se encontra na realidade sensível. Essa
terminologia não só permite que Platão sintetize toda uma discussão sobre a distinção
ontológica entre o que é “em si” e “por si” e suas instâncias particulares ou as qualidades de um
particular sensível, como o desencarrega da responsabilidade lógica de argumentar
detalhadamente a respeito dessas pressuposições ontológicas a cada vez que precisa se referir a
elas. É indigno especular que essa terminologia, no mínimo chamativa, tenha sido apresentada
bem ao fim do diálogo pelo fato de Platão ainda não ter desenvolvido seu raciocínio das suas
implicações ontológicas, e que estas só teriam sido desenvolvidas quando apresentadas em
maiores detalhes nos diálogos ditos posteriores. Tem-se ao longo da obra todos os elementos
que implicam na “separação” das Formas conforme a relação de anterioridade ontológica
relatada por Aristóteles. O diálogo se encerra apresentando um resultado suficiente e coerente
com a sua proposta inicial. Exigir que fosse desenvolvida uma argumentação metafísica a
respeito da “separação” ontológica da virtude em si por si é desconsiderar o contexto dramático
e histórico em que ele está inserido.
Destacando o primeiro e o último parágrafo da obra, após exatas 30 páginas de
Stephanus, vê-se claramente que a questão inicial proposta por Mênon foi respondida:

Μένων⸳ ἔχεις μοι εἰπεῖν, ὦ Σώκρατες, ἆρα διδακτὸν ἡ ἀρετή; ἢ οὐ διδακτὸν


ἀλλ᾽ ἀσκητόν; ἢ οὔτε ἀσκητὸν οὔτε μαθητόν, ἀλλὰ φύσει παραγίγνεται τοῖς
ἀνθρώποις ἢ ἄλλῳ τινὶ τρόπῳ;
MEN. Podes dizer-me, Sócrates: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é
coisa que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se
adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém aos
homens por natureza ou por alguma outra maneira?
(PLATÃO, Mênon, 70a1-4)

249
Cf. cap. 4.1.2.4.
138

Σωκράτης⸳ (...) εἰ δὲ νῦν ἡμεῖς ἐν παντὶ τῷ λόγῳ τούτῳ καλῶς ἐζητήσαμέν τε


καὶ ἐλέγομεν, ἀρετὴ ἂν εἴη οὔτε φύσει οὔτε διδακτόν, ἀλλὰ θείᾳ μοίρᾳ
παραγιγνομένη ἄνευ νοῦ οἷς ἂν παραγίγνηται (...)
Μένων⸳ κάλλιστα δοκεῖς μοι λέγειν, ὦ Σώκρατες.
Σωκράτης⸳ ἐκ μὲν τοίνυν τούτου τοῦ λογισμοῦ, ὦ Μένων, θείᾳ μοίρᾳ ἡμῖν
φαίνεται παραγιγνομένη ἡ ἀρετὴ οἷς ἂν παραγίγνηται: τὸ δὲ σαφὲς περὶ αὐτοῦ
εἰσόμεθα τότε, ὅταν πρὶν ᾧτινι τρόπῳ τοῖς ἀνθρώποις παραγίγνεται ἀρετή,
πρότερον ἐπιχειρήσωμεν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ ζητεῖν τί ποτ᾽ ἔστιν ἀρετή.
SO. (...) Mas se nós, agora, em toda essa discussão, pesquisamos e
discorremos acertadamente, a virtude não seria nem por natureza nem coisa
que se ensina, mas sim por concessão divina, que advém sem inteligência
àqueles aos quais advenha...
MEN. Parece-me que falas perfeitamente, Sócrates.
SO. Assim sendo, seguindo esse raciocínio, Mênon, é por concessão divina
que a virtude nos aparece como advindo, àqueles a quem advenha.
(PLATÃO, Mênon, 99e4-100b4) 250

Sendo bem-sucedido em conduzir o pupilo de Górgias ao consentimento de que a


virtude é uma concessão divina, e, portanto, não é ensinável, Sócrates se dá por satisfeito. Há,
ainda, outros elementos de ordem histórica que fazem da questão metafísica da virtude ser
apenas um sutil detalhe em segundo plano, como por exemplo: 1 - a questão sobre a virtude ser
ou não ensinável era um problema em voga naquela época 251; 2 - Ânito, um dos interlocutores
do diálogo e anfitrião de Mênon, por ser um importante político e aristocrata ateniense foi a
figura mais determinante a ter processado Sócrates na acusação que o sentenciou à morte 252.
Nota-se, com isso, que, dramaticamente, é justamente no meio de uma argumentação de
Sócrates refutando que a virtude possa ser ensinada que Ânito se sente ofendido e se retira da
conversa deixando implícita uma advertência ameaçadora a Sócrates (89e6-95a). Ao fim do
diálogo, Mênon ressalta como esse clima de tensão de Ânito para com Sócrates está crítico
(99e1-2), e mesmo assim Sócrates não deixa de fazer uma última provocação desqualificando
Ânito 253:

250
Traduções de Maura Iglésias (2001).
251
Vide Nehamas (1994, p. 222-223).
252
A respeito de Ânito vide: Nails (2002, p. 37-38); Klein (1979, p. 223-226).
253
Note que Ânito, apesar de ser anfitrião de Mênon (cf. 90b), abomina os sofistas (cf. 91c, 92e).
139

νῦν δ᾽ ἐμοὶ μὲν ὥρα ποι ἰέναι, σὺ δὲ ταὐτὰ ταῦτα ἅπερ αὐτὸς πέπεισαι πεῖθε
καὶ τὸν ξένον τόνδε Ἄνυτον, ἵνα πρᾳότερος ᾖ: ὡς ἐὰν πείσῃς τοῦτον, ἔστιν ὅτι
καὶ Ἀθηναίους ὀνήσεις.
Mas agora, é hora para mim de ir a outra parte; tu, porém, destas coisas de que
estás persuadido, persuade também este teu anfitrião, Ânito, para que fique
mais calmo. Pois, se o persuadires, terás prestado um serviço também aos
atenienses. (PLATÃO, Mênon, 100b7-c2) 254

O sucesso em ter persuadido o pupilo de um sofista de alta reputação a uma resposta


para essa questão polêmica da época é obviamente um belo encerramento. Ter aberto a
provocação de que há um problema ainda mais profundo nessa questão, a de se investigar o que
é a Virtude em si por si, é a demonstração de como Platão estava à frente nessa questão. Em
meio a isso, ainda se encontra uma afronta crítica a Ânito, figura chave da condenação de
Sócrates. Com tudo isso, exigir uma continuidade do diálogo com o desenvolvimento de uma
argumentação ontológica detalhada da virtude acabaria dando outra caracterização e foco a toda
essa trama, e sequer parece fazer sentido que isso fosse empreendido com esses interlocutores.
Ainda assim, Platão deixa um gancho para essa reflexão com todos os elementos necessários
para a articulação metafísica da anterioridade ontológica da οὐσία conforme expressa por
Aristóteles.
Em suma, as três ocorrências de εἶδος analisadas no Mênon se referem, portanto, a uma
essência que é causa distinta, imutável, auto-subsistente e de existência independente das suas
múltiplas e variadas instâncias que advêm ao particular sensível por concessão divina.

4.3 Eutífron

O Eutífron é um diálogo aporético em busca do que é piedade. A datação dramática se


passa nas semanas que antecedem o julgamento de Sócrates (ocorrido historicamente em 399
a.C). O encontro de Sócrates e Eutífron acontece perto da corte do arconte basileu onde Sócrates
acabara de se apresentar para as audições preliminares de seu julgamento, e Eutífron lá esteve
tentando prestar queixas contra seu próprio pai por homicídio culposo (2a–4d). Sócrates fica
perplexo com a autoconfiança de Eutífron em seu julgamento crítico do que seria piedade (τὸ
ὅσιον) e impiedade (τὸ ἀνόσιον) a ponto de ser capaz de acusar e prestar queixas contra o seu

254
Tradução de Maura Iglésias (2001).
140

próprio pai 255. Eutífron, no entanto, apenas confirma sua presunção afirmando que domina tais
assuntos. Em vista disso, Sócrates, em um exemplo de sua famosa ironia, expressa sua
esperança de tornar-se discípulo (μαθητὴς) de Eutífron e aprender a respeito desses assuntos
para que possa se defender apropriadamente no seu julgamento em que o acusaram de
impiedade. Desse modo, Sócrates conduz Eutífron a prestar-lhe uma explicação do que é
piedade (4e-5c).

4.3.1 O εἶδος e a ἰδέα da Piedade em si por si

Em 5d, Sócrates, a respeito de assassinato e outras coisas (περὶ φόνου καὶ περὶ τῶν
ἄλλων), pergunta:

ἢ οὐ ταὐτόν ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ, καὶ τὸ ἀνόσιον αὖ τοῦ
μὲν ὁσίου παντὸς ἐναντίον, αὐτὸ δὲ αὑτῷ ὅμοιον καὶ ἔχον μίαν τινὰ ἰδέαν
κατὰ τὴν ἀνοσιότητα πᾶν ὅτιπερ ἂν μέλλῃ ἀνόσιον εἶναι;
Εὐθύφρων⸳ πάντως δήπου, ὦ Σώκρατες.
Σωκράτης⸳ λέγε δή, τί φῂς εἶναι τὸ ὅσιον καὶ τί τὸ ἀνόσιον;
Não é a piedade em si por si idêntica em todas as ações, e a impiedade, que
por um lado é de todo oposta à piedade, mas por outro, igualmente em si por
si, portadora de uma única ἰδέα específica segundo a qual toda impiedade é
ímpia?
Eutífron: Certamente, Sócrates.
Sócrates: Diga-me, então, o que é a piedade e a impiedade?
(PLATÃO, Eutífron, 5d1-7) 256

Esse pequeno trecho condensa muitos detalhes que devem ser analisados aos poucos e
na sua sequência. De imediato, Sócrates afirma que busca a (im)piedade “em si” e “por si”
(αὐτὸ αὑτῷ). Discorremos a respeito dessa expressão que aparece no fim do Mênon e como
essa terminologia pressupõe e sintetiza uma densa carga ontológica. Porém, diferentemente do
Mênon, no Eutífron essa terminologia se apresenta logo no início do diálogo e, com isso, nota-

255
Lembrando que a legislação ateniense permitia apenas que parentes da vítima prestassem queixas do
assassinato: “A proclamação do assassino deve ser feita na ágora por um parente dentre os graus de primo e primo
de primeiro grau, agregando a causa primos e filhos de primos e genros e sogros e membros do clã (Προειπεῖν τῷ
κτείναντι ἐν ἀγορᾷ ἐντὸς ἀνεψιότητος καὶ ἀνεψιοῦ, συνδιώκειν δὲ καὶ ἀνεψιοὺς καὶ ἀνεψιῶν παῖδας καὶ γαμβροὺς
καὶ πενθεροὺς καὶ φράτερας.)” (Lei citada por DEMOSTENES, XLIII Contra Macartatus, 57, tradução nossa).
256
Tradução nossa.
141

se o fato de Platão introduzi-la sem qualquer discussão prévia que possa dar indícios das suas
pressuposições. Isso não só parece corroborar a ideia que propusemos anteriormente, de que
essa terminologia serve para sintetizar toda uma argumentação a esse respeito, mas, também,
parece ser um indício de que essa terminologia já era conhecida pelo seu público-alvo. Mesmo
para um leitor analítico que de antemão não saiba das implicações ontológicas ali contidas, esse
enfático redobro do pronome reflexivo será no mínimo um detalhe bem chamativo e suscitará
reflexão. A despeito dessas especulações, prosseguimos nossa análise com o fato de que o
diálogo ainda não embasa as implicações ontológicas do termo. Desse modo, o que se nota a
seguir é a afirmação da universalidade e imutabilidade dessa (im)piedade em si por si que, ao
mesmo tempo em que não se trata de nenhuma manifestação de (im)piedade, ela é idêntica
(ταὐτός) em todas (παντὸς) as manifestações (im)piedosas. É dito, ainda, que a (im)piedade em
si por si é “possuidora” (ἔχον) de uma única forma específica (μίαν τινὰ ἰδέαν). Ἰδέα é, portanto,
propriedade da coisa em si por si. Num só fôlego, tem-se uma oração subordinada adverbial
conformativa introduzida pela conjunção κατὰ que atribui a essa única ἰδέα específica a
condição conformadora de toda instância particular, definindo, desse modo, uma nova
orientação semântica para ἰδέα num sentido da “forma conformativa” 257.
Na sequência do diálogo (5d–6d) Eutífron apresenta sua primeira resposta: piedade é
prestar queixas de um crime quer quem seja que o tenha cometido. Ele embasa sua resposta
usando histórias dos deuses e suas disputas como exemplos. Em meio a isso, Sócrates faz um
breve questionamento a respeito da visão convencional dos gregos sobre os deuses e acaba por
rejeitar a resposta de Eutífron por terem sido apenas exemplos de piedade o que foi apresentado.
Sócrates explica novamente o que quer saber:

Σωκράτης⸳ μέμνησαι οὖν ὅτι οὐ τοῦτό σοι διεκελευόμην, ἕν τι ἢ δύο με


διδάξαι τῶν πολλῶν ὁσίων, ἀλλ᾽ ἐκεῖνο αὐτὸ τὸ εἶδος ᾧ πάντα τὰ ὅσια ὅσιά
ἐστιν; ἔφησθα γάρ που μιᾷ ἰδέᾳ τά τε ἀνόσια ἀνόσια εἶναι καὶ τὰ ὅσια ὅσια: ἢ
οὐ μνημονεύεις;
Εὐθύφρων⸳ ἔγωγε.
Σωκράτης⸳ ταύτην τοίνυν με αὐτὴν δίδαξον τὴν ἰδέαν τίς ποτέ ἐστιν, ἵνα εἰς
ἐκείνην ἀποβλέπων καὶ χρώμενος αὐτῇ παραδείγματι, ὃ μὲν ἂν τοιοῦτον ᾖ ὧν
ἂν ἢ σὺ ἢ ἄλλος τις πράττῃ φῶ ὅσιον εἶναι, ὃ δ᾽ ἂν μὴ τοιοῦτον, μὴ φῶ.

257
Poderia se argumentar que a função conformativa é atribuível a praticamente todos os outros sentidos de ἰδέα
já recolhidos em Platão – tanto “aspecto”, como “tipo” ou “classe” –, no entanto, a condição de ser uma ἰδέα única
determinante de todas as suas variações existentes (unidade sobre a multiplicidade) distingue essa ocorrência como
uma nova orientação semântica.
142

Sócrates: Lembra-te de que não era isso o que te perguntava, que eu fosse
instruído em uma qualquer ou duas ou as muitas piedades, mas o εἶδος em si
pelo qual todas as piedades são piedades; pois dizias, creio eu, as únicas ἰδέᾳ
[segundo as quais] tanto as impiedades são impiedades como as piedades,
piedades.
Eutífron: Lembro.
Sócrates: Explica-me, então, o que é esta ἰδέα em si, para que, com o olhar
fixo sobre ela e consultada como, em si, paradigma, posso afirmar ser piedoso
qualquer ato teu ou de outra pessoa por se conformar com ela, ou não, caso
não se conforme.
(PLATÃO, Eutífron, 6d-6e) 258

Reforça, portanto, que não se trata de nenhuma das diversas e variadas instâncias
particulares de piedade, mas do αὐτὸ τὸ εἶδος pelo qual (ᾧ) todas as instâncias da piedade são
piedosas. De modo consistente com os outros diálogos de juventude, o εἶδος essencial aparece
em sua função causal, porém, no Eutífron é afirmado sua mesmidade com o pronome reflexivo
reforçando sua distinção em relação às instâncias, as quais, por sua vez, são múltiplas e
variadas. Nesse momento, os seguidores de Vlastos que lidam com esse diálogo clamam por
uma “caridade interpretativa” 259 que justifique o uso do dativo instrumental como sendo uma
mera explicação lógica, distorcendo, ou até mesmo negando, o sentido causal explicitamente
expresso 260. Sem necessidade de caridade alguma, o que se tem é a afirmação de uma relação
causal das múltiplas instâncias particulares que são posteriores e que dependem unilateralmente
de outra coisa que lhe é anterior, distinta e independente, pois é “em si por si”. Já estão
postulados, aqui, todos os elementos necessários e suficientes para a formulação da
anterioridade ontológica como relatada por Aristóteles. Mesmo que até o momento apenas a
terminologia apresentada não seja suficiente para que se faça clara esta implicação ontológica,
adiante, como veremos, Platão, define οὐσία no seu sentido ontológico de essência e a faz
sinônimo disso que é “em si por si”, esclarecendo que a relação de causalidade se dá num âmbito
ontológico e não somente epistemológico. No que segue desta passagem, Sócrates relembra que
o que Eutífron ficou de lhe explicar seria a ἰδέα única da (im)piedade, distinguindo-a novamente
da multiplicidade variada das instâncias, e insiste na sua função conformativa ao identificá-la
tanto como sendo um παραδείγμα e, logo a seguir, explicitando a condicional de universalidade

258
Tradução nossa.
259
Vide FEREJOHN, 2006, p. 150.
260
E.g. RIST, 1975, p. 337-342; DORION, 1997, p. 303; DANCY, 2006, p. 75.
143

para que, em si, a ἰδέα seja paradigma: que as múltiplas instâncias podem ser afirmadas o que
são por serem “tais como” (τοιοῦτον). Ademais, os enfáticos usos do pronome reflexivo, que
raramente são encontrados nas traduções, atribuem, de maneira consistente, mesmidade
também para ἰδέα.
Destaca-se uma precisão de terminologias que distinguem as funções de εἶδος e ἰδέα.
Εἶδος é a causa “pela qual”, ἰδέα é o paradigma “segundo o qual”. O primeiro tem função
produtiva, o outro, função conformativa. Ademais, verifica-se como nunca há o redobro do
pronome reflexivo para nenhum dos termos, ambos são ditos apenas “em si”. Dado que ἰδέα foi
dita ser uma “propriedade” (ἔχον) da “piedade em si por si”, entende-se que a ἰδέα não é “por
si”; e o mesmo pode ser inferido de εἶδος.

4.3.2 A οὐσία separada

A discussão que segue leva Eutífron a propor que: “Piedade é o que todos os deuses
amam; e o contrário disso, o que todos os deuses odeiam, é impiedade (εἶναι τὸ ὅσιον ὃ ἂν
πάντες οἱ θεοὶφιλῶσιν, καὶ τὸ ἐναντίον, ὃ ἂνπάντες θεοὶ μισῶσιν, ἀνόσιον.)” (PLATÃO,
Eutífron, 9e1-3) 261. É nesse momento que o dilema mais representativo do diálogo é
apresentado, no qual Sócrates pergunta a Eutífron: “Então, a piedade é amada pelos deuses
porque é piedade, ou é piedade porque é amada pelos deuses? (ἆρα τὸ ὅσιον ὅτι ὅσιόν ἐστιν
φιλεῖται ὑπὸ τῶν θεῶν, ἢ ὅτι φιλεῖται ὅσιόν ἐστιν;)” (PLATÃO, Eutífron, 10a2-3)262.
Desenvolve logo adiante: “O que é amado é uma coisa, e o que ama é outra. (οὐκοῦν καὶ
φιλούμενόν τί ἐστιν καὶ τούτου ἕτερον τὸ φιλοῦν;)” (PLATÃO, Eutífron, 10d6-7) 263. Então,
conclui: “Logo, por ser piedosa, é amada, não o inverso: seria piedosa por ser amada? (διότι
ἄρα ὅσιόν ἐστιν φιλεῖται, ἀλλ᾽ οὐχ ὅτι φιλεῖται, διὰ τοῦτο ὅσιόν ἐστιν;)” (PLATÃO, Eutífron,
10a10-11) 264. Ou seja, posto de um modo diferente: os deuses amam a piedade porque é
piedade, não é o amor dos deuses que faz da piedade, piedade. Há não só imutabilidade e
independência da piedade que é “em si” e “por si” em distinção às suas instâncias particulares,
mas também independência do amor dos deuses para ser e existir 265. Também nesse diálogo

261
Tradução nossa.
262
Tradução de Carlos Alberto Nunes.
263
Tr. idem.
264
Tr. idem.
265
Pode-se, talvez, já se pensar nessa independência como um indício coerente a uma leitura como, por exemplo,
a de Paul Ricoeur da relação dos deuses com as Ideias nos diálogos de maturidade de Platão: “Não parece haver
dúvida de que o platonismo seja uma filosofia que subordina a personalidade do demiurgo à exemplaridade das
Ideias e, nessa medida, uma filosofia que subordina Deus ao divino (...). É aqui que assumem todo seu sentido as
palavras do Fedro: “A alma se recorda, de acordo com suas forças, das coisas que fazem Deus ser divino” (294 c).
144

Platão aponta que isso que busca Sócrates tem uma referência divina. Ao final desse
desenvolvimento, Sócrates expõe sua insatisfação e reelabora sua questão incluindo, dessa vez,
o termo οὐσία:

καὶ κινδυνεύεις, ὦ Εὐθύφρων, ἐρωτώμενος τὸ ὅσιον ὅτι ποτ’ ἐστίν, τὴν μὲν
οὐσίαν μοι αὐτοῦ οὐ βούλεσθαι δηλῶσαι, πάθος δέ τι περὶ αὐτοῦ λέγειν, ὅτι
πέπονθε τοῦτο τὸ ὅσιον, φιλεῖσθαι ὑπὸ πάντων θεῶν· ὅτι δὲ ὄν, οὔπω εἶπες. εἰ
οὖν σοι φίλον, μή με ἀποκρύψῃ ἀλλὰ πάλιν εἰπὲ ἐξ ἀρχῆς τί ποτε ὂν τὸ ὅσιον
εἴτε φιλεῖται ὑπὸ θεῶν εἴτε ὁτιδὴ πάσχει – οὐ γὰρ περὶ τούτου διοισόμεθα –
ἀλλ’ εἰπὲ προθύμως τί ἐστιν τό τε ὅσιον καὶ τὸ ἀνόσιον;
E arrisca, ó Eutífron, indagado sobre o que é a piedade, não querer me revelar
a sua οὐσία, mas dizer, em contrapartida, a respeito de um πάθος seu, algo que
acontece a esta piedade: ser amada por todos os deuses. Mas o que é, ainda
não disseste. Assim, se lhe aprouver, não a deixe escondida de mim, mas
retoma desde o início e diz o que é a piedade, seja ela amada pelos deuses ou
qualquer outra coisa que ocorra a ela – pois não discordamos a respeito disso.
Mas diz-me, resolutamente, o que é a piedade e a impiedade?
(PLATÃO, Eutífron, 11a6–b5) 266

Assim como no Mênon, essa ocorrência de οὐσία vêm acompanhada da pergunta


indireta ὅτι ποτ’ ἐστίν, e as mesmas considerações feitas antes são aplicáveis aqui. Com isso,
Platão quer especificar o sentido ontológico que quer de οὐσία como sendo “o que a coisa é”, e
dessa vez em explícita contraposição a πάθος, que ele mesmo define como sendo “algo que
afeta a coisa” (ὅτι πέπονθε τοῦτο). Πάθος é referido, aqui, não enquanto um atributo das
instâncias particulares, mas sim da própria piedade. Apontamos, no entanto, que ἰδέα seria uma
propriedade da piedade em si por si, por que, então, Platão rejeita esses atributos, de “ser amado
pelos deuses” ou “qualquer outra coisa que ocorra a ela”, como válidos? Como já explicamos,
Sócrates insiste que a piedade é algo “em si” e “por si”, desse modo, diferentemente da ἰδέα
que é uma propriedade que a coisa “em si por si” tem por ela mesma, o πάθος é uma incidência
decorrente de uma alteridade. A insistência de sua independência com qualquer alteridade deixa
absolutamente claro que essa οὐσία é, portanto, “separada”.

Deus é divino porque contempla as Ideias e o Bem; sua divindade é, nesse sentido último da palavra, participada;
sem dúvida que para ele mesmo é verdadeira a tese da República de que o Bem possibilita que as Ideias sejam
conhecidas e que as Inteligências conheçam; Deus existe em benefício do ser, da divindade do ser.” (RICOEUR,
2014, p. 145, tr. Rosemary Costhek Abilio).
266
Tradução nossa.
145

Apesar de todos os termos, εἶδος, ἰδέα, e οὐσία, referirem-se indistintamente ao que


Sócrates pede para que Eutífron lhe explique em relação a sua questão do que é a (im)piedade
(“em si por si”), verifica-se sutis nuances que diferenciam o que esses termos representam.
Οὐσία enquanto “o que a coisa é”, não é imbuída de nenhuma outra determinação, ou seja, é
puramente essência, e, desse modo, parece identificar-se diretamente com a coisa “em si por
si”. Εἶδος e ἰδέα, como já visto, parecem ser diferentes modos de expressão da coisa “em si por
si”, sendo a primeira enquanto causa produtora e a segunda enquanto paradigma conformativo
das suas várias e diversas instâncias particulares. Apesar das diferenças funcionais, ambos os
termos se identificam como uma mesma essência única, auto-subsistente e independente, que
tanto é causa produtora como paradigma universal e imutável das suas múltiplas e variadas
instâncias particulares.
147

CONCLUSÃO

Nosso percurso partiu da primeira e originária significação de εἶδος e ἰδέα, a de


“aparência/aspecto” exterior, seja de seres sensíveis ou não, animados ou não. As significações
de ambas as palavras do vocabulário das formas se desenvolvem dessa raiz sem nunca a
abandonar, apenas agregando novas significações que derivam dessa noção fundamental. Se há
alguma distinção universal para o uso de uma ou de outra palavra no seu sentido de
aspecto/aparência, isso não apareceu em nossa análise. O que se nota é que no período antes de
Platão há quase uma exclusividade do uso de εἶδος quando se fala, de modo mais específico,
da beleza de uma forma – frequentemente da figura humana –, sendo Píndaro a única exceção
ao falar da bela ἰδέα do pugilista 267. Corroboramos, ainda nesse sentido, a distinção de uso dos
filósofos pré-socráticos conforme demonstrado por Bernabé (2011, 2013), contrário à opinião
estabelecida desde Wilamowitz (1962) 268. Verificamos que, de fato, nos fragmentos dos
filósofos pré-socráticos, a palavra ἰδέα, apesar de ter relação direta com a aparência que se
percebe visualmente, refere-se a um aspecto impossível de se constatar pelos sentidos, porém
imaginável, ou concebível por meio da razão. Já εἶδος é reservado para designar o aspecto
exterior visível das coisas, à exceção de Filolau (fr. A29), o que não parece comprometer a
validade desses achados 269. Há de se deixar, no entanto, a ressalva de que o caráter fragmentário
e doxográfico dos textos dos pré-socráticos fragilizam uma afirmação contundente dessa
distinção. Platão, por sua vez, faz uso indistinto das palavras nesse sentido 270, inclusive para
falar da beleza da aparência.
O primeiro desdobramento semântico se iniciou com ἰδέα em uma noção classificatória,
a qual denominamos “tipo”, que surge justamente da aparência das formas e identifica caráteres
distintivos e comuns de elementos diversos de modo a agrupá-los por essa identidade na
diferença. É somente nos escritos médicos do Corpus Hippocraticum que se verifica esta noção
classificatória para εἶδος 271, bem como em um fragmento (A29) do pitagórico Filolau. Já nos
diálogos de juventude de Platão, o uso de εἶδος no sentido classificatório é dominante, sendo
apenas um de ἰδέα 272. A respeito de alguma distinção de uso das palavras ou diferentes sentidos
classificatórios, encontramos apenas uma ocorrência de εἶδος em Platão, que remete a uma

267
Olímpicas, X.103.
268
Cf. cap. 1.3.
269
Vide cap. 1.3, n. 65.
270
Atestamos 12 ocorrências nesse sentido, 7 para εἶδος e 5 para ἰδέα em cinco diálogos – vide cap. 3.2, n. 169.
271
Devido à problemática de datação dos tratados, tratamos os resultados de consagrados estudos a respeito dos
usos e significações das palavras εἶδος e ἰδέα no Corpus Hippocraticum como suplementares. Cf. cap. 1.2.
272
Cf. cap. 3.1, 3.2.
148

segunda noção mais estruturada de “classe” ao se referir a uma categoria que agrupe a totalidade
dos diferentes tipos de combatentes 273. Não corroboramos a distinção de uso proposta por
Bernabé (2011, 2013) a respeito dos filósofos pré-socráticos utilizarem εἶδος com sentido
classificatório apenas em contextos que se referem a um repertório definido de elementos, ou
ἰδέα para repertório indefinido. Na grande maioria das ocorrências apontadas por Bernabé, não
encontramos sequer um sentido classificatório para os termos, pois, mesmo se tratando de uma
multiplicidade de formas, não se agrupa essa variedade sob alguma característica ou atributo
que possibilite uma classificação. Ademais, as exceções encontradas pelo seu próprio estudo
nos confirmaram que a distinção abordada acima sob a orientação de aspecto é a que, de fato,
é aplicada 274. Tampouco encontramos um sentido classificatório distinto de “espécie” como
afirmou a pesquisa do Centre d'études aristotéliciennes de l’Université de Liège (MOTTE et
al., 2003) 275.
Nossa pesquisa revelou uma terceira orientação semântica para εἶδος quando utilizado
em uma aparente expressão idiomática associando a palavra ao verbo τρέπεσθαι, encontrado
em dois âmbitos literários distintos nos escritos dos contemporâneos Aristófanes e
Tucídedes 276. Propomos que essa expressão como um todo signifique: “mudança de
postura/atitude”.
Um outro sentido identificado por Bernabé (2013, p. 103) nos filósofos pré-socráticos
para esses termos enquanto “configurador da matéria” não foi atestado por nosso estudo 277.
Verificamos, no entanto, a fundamental contribuição desses pensadores para o desenvolvimento
filosófico a respeito das formas nas aplicações de ἰδέα com Demócrito, em B167, ao falar das
formas dos átomos (ἀτόμους ἰδέας), ou Anaxágoras, em B4, a respeito das formas das sementes
(σπέρματα), e de εἶδος com Filolau, em A29, sobre as formas dos números (ἀριθμὸς). Apesar
do vocabulário das formas ainda apresentar nesses fragmentos os significados de aparência
(ἰδέα) ou classificatório (εἶδος), ao ser aplicado em referência a esses elementos principiais –
num contexto íntimo ao núcleo fundacional do próprio pensamento filosófico grego de
explicação da realidade de um modo acessível ao conhecimento – acaba carregando uma
importante e inovadora contribuição para o desenvolvimento filosófico dos termos εἶδος e ἰδέα
em direção ao uso platônico. Como visto, é dialogando diretamente em contraposição a esses

273
Laques, 191d3. Cf. cap. 3.1.
274
Cf. cap. 1.3.
275
Cf. cap. 1.3, n. 68 e cap. 3.1.
276
Cf. cap. 1.1.
277
Cf. cap. 1.3.
149

elementos primordiais que Platão introduz a sua inovação de um sentido ontológico para esse
vocabulário das formas, sobre a qual discorreremos com mais detalhes adiante.
Ao abordar as questões a respeito de Sócrates, o foco de nossa investigação tornou-se a
filosofia das formas nos diálogos de juventude de Platão 278. Por sermos dependentes de
representações literárias de Sócrates, que devem ser tratadas como tal, qualquer reconstrução
feita a partir de uma personagem não será confiável e nem realista. Todavia, reconhecemos que
muito provavelmente os discípulos de Sócrates honrariam seu mestre consagrando uma
fidedignidade nuclear à sua personagem em seus Σωκρατικοι λογοι, o que valida uma
abordagem comparativa das diferentes representações de Sócrates a fim de investigar indícios
de sua filosofia. Por esses motivos, uma investigação do vocabulário das formas não se faz
válida no caso de Sócrates, mas a questão sobre uma filosofia das formas, sim. Considerando,
então, as ressalvas feitas à abordagem desenvolvimentista e também sobre a questão
socrática 279, reconhecemos que, para os nossos propósitos a respeito de um desenvolvimento
filosófico em relação às formas, os mais significativos registros do pensamento socrático são
encontrados nos diálogos platônicos de juventude, uma vez que outras fontes pertinentes a esta
questão não nos oferecem indícios a este respeito. Sendo os testemunhos de Aristóteles sobre
como Platão desenvolveu sua filosofia das Formas “separadas” a evidência determinante para
a organização desses primeiros diálogos de Platão, nossa análise a respeito desses testemunhos
e das principais controvérsias atuais em relação a eles nos explicou que, segundo Aristóteles, a
inovação de Platão a respeito das formas foi fazer delas essências (οὐσίαι) separadas, no sentido
de existirem independentemente de suas instâncias particulares das quais são a causa produtora
e, portanto, ontologicamente anteriores 280.

Da Aparência à Essência

Após uma primeira verificação exaustiva das ocorrências de εἶδος e ἰδέα nos diálogos
de juventude, pudemos reconhecer e classificar cada uma delas sob as distintas significações
dos termos utilizadas por Platão. Mesmo nos dois usos correntes abordados acima dos quais
Platão faz uso – aspecto e classificatório –, tivemos ocorrências que nos demandaram uma
análise de maior cuidado, pois, como visto, não estão livres de contestação e disputas a respeito

278
Cf. cap. 2.
279
Cf. cap. 2; especialmente cap. 2.3.2.
280
Cf. cap. 2.4, 2.5 e 2.6.
150

de seus significados 281. No entanto, a grande disputa que exigiu investigações mais complexas
nos âmbitos filosófico e literário dos diálogos se encontra no momento em que Platão passa a
usar o vocabulário εἶδος e ἰδέα em relação à pergunta socrática “τί ἐστι X?” 282. Preliminarmente
havíamos nomeado essas ocorrências de “formas paradigmáticas” 283, seguindo as análises do
Centre d'études aristotéliciennes de l’Université de Liège (MOTTE et al., 2003), que distinguiu
nos escritos de Platão duas novas significações para ambas as palavras: a primeira, que aparece
nesses diálogos de juventude mais o Crátilo, distingue-se tanto do sentido classificatório, por
exprimir “um paradigma graças ao qual as coisas que lhe remetem são ditas possuir tal
qualidade comum” (MOTTE et al., 2003, p. 264-265), como também da segunda, nomeada de
“Ideia transcendente” por A. Lefka e A. Motte (MOTTE et al., 2003, p. 265), que é encontrada
a partir do Fédon e “não se refere mais ou somente a uma realidade presente nas coisas sensíveis
ou no espírito do homem, mas a uma realidade inteligível existente eternamente em si mesma,
separada do sensível” (MOTTE et al., 2003, p. 265). Apesar de num primeiro momento termos
adotado a denominação de “formas paradigmáticas”, nosso estudo não corroborou que essa
possa ser a atribuição geral que define a orientação semântica de ambas as palavras quando
utilizadas nesse contexto da questão socrática. Como visto, nesse contexto, a função
paradigmática é um atributo específico de ἰδέα e não se confunde com a atribuição de εἶδος
enquanto causa produtora. Apesar das diferenças funcionais, ambos os termos se identificam
como uma mesma essência (οὐσία) única, auto-subsistente e independente que é a coisa em si
(e por si). Nota-se que esse sentido de οὐσία enquanto essência também se apresenta como uma
novidade de Platão, e justamente surge de uma disputa direta com as propriedades elementares
daqueles pré-socráticos que vimos aplicar esse vocabulário das formas em referência a elas 284.
Nomeamos, portanto, essa nova orientação dos vocábulos ἰδέα e εἶδος de sentido “ontológico”,
justamente por se referirem a essa essência (οὐσία) platônica.
Assumindo, portanto, que essas sejam as primeiras ocorrências desta significação dentro
do corpus platônico, verificamos que há um cuidado consistente de Platão em definir cada um
dos termos de modo distinto: εἶδος é aquilo pelo que algo é aquilo que é dito ser; ἰδέα é aquilo
segundo o qual algo pode ser dito ser o que é. Ambos são universais e invariáveis. Dessa
diferença, nota-se que é o εἶδος que “se anexa” (προσγενομένου) 285 ao particular sensível como

281
Vide nossos resultados no cap. 3.
282
Atestamos um total de 8 ocorrências (5 de εἶδος e 3 de ἰδέα) encontradas em 3 diálogos: Hípias Maior, Mênon
e Eutífron. Cf. cap. 3.1, 3.2 e 4.
283
Cf. cap. 3.
284
Cf. cap. 4.1.3.
285
Cf. PLATÃO, Hípias Maior, 289d2-5. Vide especialmente cap. 4.1.2.2. Avançando para a referência feita ao
Fédon no Hípias Maior vimos que essa anexação pode ser uma participação (μετέχει; 100c5), presença (παρουσία;
151

uma afecção (πάσχειν) 286 enquanto propriedade essencial da instanciação da essência287,


provendo ao particular sensível a atribuição desta essência com a qual o εἶδος se identifica; não
se portando como quer “a explicação de Hípias da continuidade da οὐσία” 288, mas advindo por
partilha divina (θείᾳ μοίρᾳ) 289. Ἰδέα é o modelo (παραδείγμα) para o qual se olha (ἀποβλέπων)
e se consulta (χρώμενος) para verificação de conformidade da instância particular com a
essência 290. Por essa diferenciação, nota-se que εἶδος é aplicado de maneira consistente em
todos os diálogos em que Platão usou o vocabulário das formas no sentido ontológico, e ἰδέα
aparece apenas no Eutífron. Lembrando que Aristóteles explica que, para Platão, ser causa
produtora é o elemento determinante para a explicação da anterioridade da οὐσία, a falta dessa
informação para sua audiência, ou apenas apresentar ἰδέα enquanto forma paradigmática, não
implicaria na sua “separação” 291. Desse modo, nosso estudo demonstrou que há, ao longo de
todos os diálogos em que essa orientação semântica dos termos ocorre, todos os elementos que
implicam na “separação” das Formas conforme a relação de anterioridade ontológica relatada
por Aristóteles. Estes resultados confirmam, então, a conclusão preliminar de que a inclusão
deste vocabulário das formas nesta investigação socrática seria uma inovação própria de
Platão 292. Não se pode falar, portanto, de uma filosofia das formas socrática como querem os
desenvolvimentistas. Nesse quesito das Formas, nossa pesquisa vai, portanto, ao encontro da
corrente interpretativa unitarista, da qual destacam-se os estudos de Reginald E. Allen e
Francesco Fronterotta.
R. E. Allen é o mais proeminente defensor contemporâneo da tese de que nos primeiros
diálogos platônicos há uma teoria das Formas. Sua tese se encontra em duas publicações:
“Plato’s ‘Euthyphro’ and the Earlier Theory of Forms” (1970) e “Plato’s Earlier Theory of
Forms” (1971). Allen defende que há uma primeira versão da teoria das Formas nesses diálogos
que é similar mas não idêntica à teoria dos diálogos de maturidade, e a nomeia, portanto, de
“earlier theory of Forms”. Sua fundamentação se encontra, essencialmente, em duas passagens

100d5), ou comunhão (κοινωνία; 100d5); cf. cap. 4.1.2.2.1. Ademais, ainda que haja essa anexação do εἶδος ao
particular sensível, a referência da forma é a essência, que é ontologicamente outra, anterior e independente.
Podemos exercitar uma analogia nesse sentido ao se pensar como, por exemplo, é o “aspecto” de um pai no filho
que indica que, de fato, o filho é daquele pai. No entanto, sem o pai é impossível de validar esse aspecto, pois o
pai não está contido no filho, é um ser distinto e independente, e a referência do aspecto é, de fato, o pai, que é
ontologicamente anterior, independente e causa produtora do filho.
286
PLATÃO, Hípias Maior, 300a10-b5. Vide cap. 4.1.3.
287
PLATÃO, Mênon, 72c5–d1. Vide cap. 4.2.2.
288
PLATÃO, Hípias Maior, 301e3-6. Vide cap. 4.1.3.
289
PLATÃO, Mênon, 100b2-4. Vide cap. 4.2.3.
290
PLATÃO, Eutífron, 6d-6e. Vide cap. 4.3.1.
291
Vemos, com isso, o motivo do estudo da Universidade de Liège (MOTTE et al., 2003) focar apenas na função
paradigmática para explicar todas essas ocorrências dos diálogos de juventude.
292
Cf. cap. 3.2.1.
152

do Eutífron (5c-d; 6d-e), de onde reconhece que as formas são ali apresentadas como causas 293,
universais, paradigmas autopredicativos e essências 294. Segundo Allen, isso faz com que
Sócrates esteja em busca da “definição real” 295. Allen rejeita, portanto, que “não há qualquer
compromisso com a existência das Formas nos diálogos de juventude, e que a discussão sobre
elas é ‘meramente uma questão de linguagem’” (ALLEN, 1971, p. 329). Desse modo, então,
pode-se falar propriamente de “uma teoria das Formas” (ALLEN, 1971, p. 328), mas que não
é a teoria das Formas dos diálogos de maturidade. Para Allen, as formas dessa primeira teoria
já são “separadas” (ALLEN, 1970, p. 136; cf. 147), no entendimento que Aristóteles nos passa
sobre “separação” 296; porém, há uma diferença entre os períodos no modo como essa
“separação” é concebida:

A verdade sobre o assunto é que, num sentido forte do termo, as Formas são
tão “separadas” de suas instâncias nos primeiros diálogos quanto nos períodos
posteriores. Pois elas não são idênticas às suas instâncias, e são
ontologicamente anteriores às suas instâncias. Isto é, elas existem
“separadamente”. A diferença entre a teoria das Formas nos primeiros
diálogos e nos diálogos subsequentes não consiste no fato da separação, mas
na maneira que a separação é concebida. Os diálogos médios apresentam uma
consideração revisada do status ontológico, uma consideração que se volta a
uma teoria sobre o modo que as Formas são. (ALLEN, 1970, p. 147)

Ele rejeita, portanto, a visão de que o pensamento de Platão é uma unidade num sentido
forte, invariável. Há um desenvolvimento no pensamento ontológico de Platão:

Os diálogos médios não abandonam a questão ‘O que é?’. Eles a buscam sob
a luz de uma nova ontologia. A teoria das Formas nos diálogos médios, então,
não é nem a mesma teoria dos primeiros diálogos e nem uma teoria diferente.
Não é diferente porque contém a teoria anterior como parte de si. Não é a
mesma porque está direcionada a questões que os primeiros diálogos não
levantam. (ALLEN, 1971, p. 334) 297

293
As formas “are causes in the sense that they are that by which things are what they are. They therefore affect
the career of the world, in that if they did not exist, the world would not be what it is” (ALLEN, 1970, p. 125).
294
A essência de algo é “the nature of something which is” (ALLEN, 1971, p. 328).
295
Segundo Allen, a definição real se distingue da nominal por ser “analysis of essence, rather than stipulation as
to how words are used or a report as to how they are in fact used” (ALLEN, 1971, p. 327).
296
Vide cap. 2.5.1, n. 138; e cap. 2.6.
297
Cf., também, ALLEN, 1970, p. 163-164.
153

Em ambas as teorias das Formas, dos primeiros diálogos e dos médios, as Formas são
separadas no sentido de que são ontologicamente outras e anteriores às suas instâncias.

Porém os diálogos médios expandem essa separação em uma nova visão do


universo, envolvendo uma doutrina dos Dois Mundos, separados por um
abismo de deficiência e irrealidade. Associada a isso está uma atitude religiosa
diferente de qualquer coisa mostrada nos primeiros diálogos.
(ALLEN, 1970, p. 154).

Nossa principal discordância com Allen é que ele sustenta haver uma teoria socrática
das Formas 298. Ele se atém à teoria cronológico-desenvolvimentista sustentando que esses
primeiros diálogos correspondem à filosofia de Sócrates, e, em prol da coerência de sua tese,
desmerece a autoridade do testemunho de Aristóteles de que a separação das Formas foi uma
inovação de Platão, não, porém, sem muitos desconcertos (cf. ALLEN, 1970, p. 133-145).
Fronterotta é crítico da interpretação de que haja um desenvolvimento da ontologia dos
primeiros diálogos nos diálogos de maturidade, e se autointitula um “anti-desenvolvimentista”
(FRONTEROTTA, 2007, p. 40, 60). Ele distingue dois tipos de desenvolvimentismo: o
primeiro que afirma não haver uma teoria das Formas/Ideias nos primeiros diálogos de
Platão 299; e o segundo, que ele reconhece como sendo defendido por R. E. Allen, “um dos raros
estudiosos que, apesar de tudo, reconheceu um sentido verdadeiramente fiilosófico na teoria
das Ideias dos diálogos de definição” (FRONTEROTTA, 2007, p. 57). Fronterotta concorda
com Allen (e Prior 300) de que haja uma teoria das Formas nos primeiros diálogos de Platão
(FRONTEROTTA, 2007, p. 38), mas diverge por sustentar que essas Formas são separadas dos
particulares sensíveis do mesmo modo como são as Formas dos diálogos de maturidade; não
há um desenvolvimento no pensamento ontológico de Platão. Afirma, desse modo, “que a
diferença entre as Ideias e as coisas sensíveis, nos primeiros diálogos, já consiste numa
separação real e concreta entre os dois tipos de seres” (FRONTEROTTA, 2007, p. 57). Ele
admite que a separação “jamais toma a forma ‘mítica’ da justaposição entre dois mundos
separados” 301, mas para ele “isso representa no máximo uma mudança na narrativa” um
“aumento” da epistemologia e ontologia de Platão “de um ponto de vista ‘geográfico’”

298
Assim como faz Prior (2004), o proponente atual dessa linha de uma “metafísica socrática” de Allen.
299
Cf. FRONTEROTTA, 2007, p. 55-56, para seus argumentos contra este tipo de desenvolvimentismo.
300
Vide nota 296 acima.
301
Assim como verificamos em nossa pesquisa. Cf. 3.2.2.
154

(FRONTEROTTA, 2007, p. 57). Ou seja, para Fronterotta, a doutrina dos “dois mundos” dos
diálogos de maturidade é a exposição de uma doutrina pré-existente da separação. “Pois se o
objeto a ser definido e conhecido deve ser universal, imutável, e estável, obviamente não
pertence ao mundo físico” (FRONTEROTTA, 2007, p. 57).
No que tange à questão socrática, sustenta que a tentativa de encontrar o Sócrates
histórico nos diálogos de juventude de Platão é baseada num “preconceito exegético implícito
que muitos estudiosos compartilham, o qual consiste na presunção dogmática de que os
diálogos de juventude de Platão representam um retrato fiel da atividade filosófica de Sócrates”
(FRONTEROTTA, 2007, p. 58). Esse preconceito exige a eliminação de todas as referências à
teoria das Formas dos primeiros diálogos de Platão e o estabelecimento de uma distinção clara
entre os diálogos de juventude e os de maturidade. Quando deixamos esse preconceito de lado,
fica claro como “Platão já inaugura uma tendência filosófica original a partir dos primeiros
diálogos, especialmente no que diz respeito ao contexto onto-epistemológico da teoria das
Ideias” (FRONTEROTTA, 2007, p. 59). Nesse sentido, nos aproximamos mais da leitura de
Fronterotta do que a de Allen (e Prior), porém, diferentemente de nosso estudo, Fronterotta não
admite distinção de “significação linguística e filosófica” para os termos 302.
No que concerne ao uso do vocabulário das formas nos diálogos de definição, seu foco
é o Híppias Maior e o Eutífron 303, onde uma ontologia das Formas é primeiro apresentada. No

302
“Je considere que les termes ἰδέα (idée) e εἶδος (forme) ne diferente pas quant à leur signification linguistique
et philosophique” (FRONTEROTTA, 2001b, p. 137, n. 1). Não corroboramos, ainda, a distinção que faz Jean-
François Pradeau de que εἶδος seja o aspecto ou figura da essência e a ἰδέα a essência ela mesma (PRADEAU,
2001, p. 17-54). Também não podemos afirmar nesses diálogos a distinção que faz Peter Brommer (1940). Sua
tese é a de que εἶδος, do Mênon em diante, significa “Estrutura real”, ou seja, a essência da qual há existência
concreta e da qual nossas almas tiveram conhecimento. Ele afirma que εἶδος é imanente ou separado dependendo
do nosso ponto de vista pois, “em sua própria imanência é separado e é imanente por causa de sua separação”
(BROMMER, 1940, p. 266). Enquanto ἰδέα tem dois significados, tanto “a imagem primária que é a fonte da
realidade” quanto “a imagem concomitante que representa a estrutura do real na alma” (BROMMER, 1940, p. 68).
Ἰδέα é fundamentalmente real e engendra o εἶδος no mundo físico e a ἰδέα em nossas mentes (cf. BROMMER,
1940, p. 267), é, ademais, o conteúdo, produto ou manifestação do Nous que, de algum modo, se identifica com a
Ideia do Bem (cf. BROMMER, 1940, p. 71, 73, 89, 252 e 274). Não nos compete uma discussão completa da sua
tese pois esta depende de uma análise integrada de todo o corpus platônico, o que está fora de nosso escopo. Vide,
em contrapartida, a crítica de Cherniss (1947, p. 126-133) ao estudo de Brommer.
303
De fato, Fronterotta toma como foco quatro “diálogos de definição (definitional dialogues)”: Cármides, Laques,
Hípias Maior e Eutífron. Nos quatro diálogos não se chega a uma definição dos termos buscados, no entanto, há
uma progressão na exigência de definição dos dois primeiros para os dois últimos. Nesse sentido parece haver um
desenvolvimentismo na tese de Fronterotta, a não ser que se admita um deliberado intuito pedagógico-literário de
Platão para essa progressão. No Cármides e no Laques as definições não são alcançadas por não serem
propriamente universais: são fornecidos apenas exemplos em vez de uma formulação universal. Enquanto no
Cármides e no Laques a exigência de definição se dá em termos de uma extensionalidade entre definiens e
definiendum, no Hípias Maior há de ser em termos de uma “universalidade causal-ontológica”. O Eutífron
corrobora a virada causal-ontológica do Hípias Maior acrescentando a informação da Forma enquanto παραδείγμα
(cf. FRONTEROTTA, 2007, p. 40-46). Fronterotta chega à mesma conclusão de uma progressão entre esses
diálogos analisando-os do ponto de vista da ὁμολογία entre os interlocutores. Ele reconhece três diferentes níveis
de ὁμολογία nesses diálogos: o primeiro nível, básico para sequer começar a discussão, “in that it presupposes an
adequate clarification of the use of linguistic tools, which is a necessary condition for a constructive or simply
155

entanto, como dito, diferentemente de Allen, para Fronterotta uma vez que as Formas são
apresentadas permanecem ao longo de toda a produção literária de Platão com a mesma
ontologia.

As Ideias existem, portanto, de modo independente do ato de definição lógica


e intelectual e do conhecimento por um sujeito, por serem distintas,
autônomas, e anteriores à multiplicidade de coisas particulares das quais elas
representam o próprio ser (FRONTEROTTA, 2007, 54).

Teriam as Formas dos diálogos de maturidade as mesmas características que analisamos


nesta presente pesquisa? Parece que a questão se encontra no que tange à “separação”. Allen
definiu dois modos distintos de “separação”: primeiro, em termos da existência independente
das Formas em relação às suas instâncias particulares, e segundo, em termos do “abismo de
deficiência” entre as Formas e os particulares sensíveis 304. Fronterotta não reconhece esse
segundo tipo de separação como sendo diferente do primeiro e refere-se àquele como sendo
uma expressão “mitológica” ou uma formulação “geográfica” de um ponto de vista ontológico.
Enfim, no que tange ao Hípias Maior, Mênon e Eutífron, nossos resultados concordam
com ambos Allen e Fronterotta 305, contrário à tese de Vlastos de que nesses diálogos as Formas
não teriam independência ontológica, tratando-se apenas de uma definição linguístico-
semântica e, portanto, meramente lógica ou epistemológica. Tampouco corroboramos com a
hipótese de Vlastos de que a causalidade das Formas se trate de uma explanação 306 e, também
por isso, nos posicionamos de modo contrário à tese de Gail Fine de que elas sejam
“propriedades explanatórias” 307. Assumindo os testemunhos de Aristóteles como dignos de
autoridade 308, bem como nossa interpretação a respeito deles 309, ficou demonstrado como a

intelligible dialogue”, é “a purely linguistic agreement on the meaning of words used to indicate the object to be
defined” (FRONTEROTTA, 2007, p. 47). O segundo nível visa a uma concordância epistemológica como requisito
para se alcançar conhecimento do definiendum. É este segundo nível de ὁμολογία que se busca no Cármides e no
Laques, todavia, sem sucesso (cf. ibid.). No terceiro nível, a ὁμολογία “depends on the ontological status of the
definiendum” (FRONTEROTTA, 2007, p. 48). O que Sócrates busca é o que Allen nomeou de “real definition,
i.e. one that shows the very nature of the object to be defined” (FRONTEROTTA, 2007, p. 52), e não uma definição
nominal (cf. FRONTEROTTA, 2007, p. 52, n. 21). É este o nível de ὁμολογία que se busca no Hípias Maior e no
Eutífron, também, sem sucesso.
304
Prior (2004), seguindo Allen, toma como foco este segundo tipo de separação.
305
No entanto, nem Allen, nem Fronterotta apresentaram análises comprovando as Formas separadas no Mênon.
Lembrando, ainda, que nos aproximamos mais de Fronterotta devido à “questão socrática”.
306
Cf. cap. 2.5.2.
307
Cf. cap. 2.5.1.
308
Diferentemente do que faz Charles Kahn, não minimizamos a importância do fato de que Aristóteles conviveu
e se educou com Platão por 20 anos. Cf. cap. 2.3.2.1.
309
Cf. cap. 2.6; 2.6.1.
156

condição ontológica das Formas nesses diálogos não só se faz claramente demarcada pela οὐσία
enquanto essência, mas também pela sua condição enquanto causalidade produtora, o que
determina, ainda, sua anterioridade e, portanto, separação. Tem-se nesses diálogos todos os
elementos relatados por Aristóteles como sendo os fundamentos de Platão para a separação das
Formas. Ademais, segundo nossa análise desses testemunhos, parece não haver para Platão
outro modo de se pensar a separação a não ser pela anterioridade ontológica enquanto causa
produtora. Se Aristóteles for, de fato, a fonte mais segura a esse respeito, ao avançarmos para
a questão da separação das Formas nos diálogos médios, talvez Fronterotta tenha mais razão
que Allen. Todavia, encerramos aqui o escopo de nossa pesquisa, sendo esta uma discussão
para uma próxima investigação.
157

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