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A INFLUÊNCIA DAS IDEIAS DE JOÃO DE PARIS (JOÃO QUIDORT) E DE

MARCÍLIO DE PÁDUA NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO


MODERNO*

THE INFLUENCE OF THE IDEAS OF JOHN OF PARIS (JOHN QUIDORT)


AND MARCILIUS OF PADUA IN THE CONSTRUCTION OF THE MODERN
POLITICAL THOUGHT.

Leonardo Varella Giannetti

RESUMO

Cresce o estudo pela filosofia medieval, pois a Idade Moderna possui suas raízes na
Idade Média. Nesse período, as relações entre Igreja e Estado provocaram debates
prolongados e acesos. As ideias que João de Paris e Marcílio de Pádua formularam para
combater a pretensão do Papa na plenitude do poder ajudaram na construção de
conceitos que foram utilizados séculos depois, como o de soberania popular e Estado
laico. João de Paris entende que o Estado possui um fim em si mesmo e que era possível
uma autoridade civil se ocupar apenas com as coisas terrenas, inclusive de julgá-las,
despreocupada com os preceitos religiosos. Marcílio de Pádua, vinte anos depois,
mantém tal debate, alegando que a paz, entendida aqui como a ausência de conflito no
interior da sociedade civil, é constantemente ameaçada pela pretensão papal à plenitude
do poder.

PALAVRAS-CHAVES: IGREJA; ESTADO; MARCÍLIO DE PÁDUA; JOÃO DE


PARIS (QUIDORT); PLENITUDO POTESTATIS.

ABSTRACT

The study of medieval philosophy has increased, because the Modern Age has its roots
in the Middle ages. During this period, the relations between Church and State had
caused excited debates. The ideas that John of Paris and Marcilius of Padua had
formulated to fight against the Pope's desire in fulfillment of power helped in building
concepts that had been used centuries later, as popular sovereignty and secular State.
John of Paris understands that the State has a purpose in itself and the civil authority
could be occupied just with the mundane things, also to judge them, and could be
unconcerned with the religious rules. Marcilius of Padua, twenty years later, keeps such
debate, claiming that the peace, understood here as the absence of conflict in the interior
of the civil society, is constantly threatened by the pope’s pretension to the fullness of
the power.

KEYWORDS: CHURCH; STATE; MARCILIUS OF PADUA; JOHN OF PARIS


(QUIDORT); PLENITUDO POTESTATIS.

*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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1. Introdução

Atualmente, cresce o interesse pela Filosofia Medieval e a repercussão das


ideias construídas no medievo, vinculando-as também ao estudo da Política, da História,
da Antropologia e do Direito. Aos poucos, diversos estudos comprovam que o Estado
Moderno possui raízes na Baixa Idade Média. [1] DE BONI consigna que por muitos
anos se pensou que a Filosofia Moderna teria surgido quase de si própria, sem possuir
qualquer relação com os tempos que a precederam (2000, p. 10). Contudo,
principalmente a partir do século XIX, percebeu-se que a Idade Média “constituía a
chave de compreensão da cultura ocidental.” (DE BONI, 2000, p. 11).

Da mesma forma, VILANI nos mostra que os principais fundamentos da


democracia moderna têm suas origens no pensamento político que surgiu na Europa,
entre os séculos XIII e XIV (2000, p. 13).

Esse período é caracterizado pelo embate entre o Império e o Papado na


justificativa de quem seria o titular do poder, ou quem o teria em sua plenitude, pois
crescia, em ambas as instituições, a tendência a uma unificação. Segundo SIMONE
GOYARD-FABRE, “a noção de Poder político foi geralmente, na história, ligada à
idéia do comando ditado por aquele ou aqueles que detêm a autoridade” (2002, p. 55).
Essa disputa pelo poder incluía, também, a luta por terras, direitos e privilégios, que
incluía, logicamente, a tributação: a entidade eclesiástica buscando manter o direito às
imposições fiscais e os reinos e o Império buscando acabar ou reduzir a imunidade da
Igreja. [2]

E foi neste clima político tenso entre os governos civis e a cúpula da Igreja que
surgem diversas doutrinas de filosofia política. Sobre o tema, nomes como Egídio
Romano, João de Paris (ou João Quidort), Marcílio de Pádua e Guilherme de Ockham
(ou Occam, segundo alguns autores) são sempre citados pela doutrina nacional e
internacional, em razão da influência que suas ideias, com suas respectivas
características, trouxeram na construção do pensamento moderno, que culminará nas
revoluções burguesas do século XVIII.

Este trabalho enfocará, principalmente, as ideias principais de João de Paris e


de Marcílio de Pádua que influenciaram a formação do pensamento político moderno e
na própria construção deste Estado. Antes, contudo, é importante consignar algumas
teorias de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino que, em cada época específica,
foram adotadas pela Igreja e que influenciaram toda construção do Poder político.

2. A influência de Santo Agostinho e o panorama político da Alta Idade


Média.

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Com os Imperadores Licínio (no Oriente) e Constantino (no Ocidente), através
do Édito de Milão, em 313 d.c, e depois apenas com Constantino, com o Édito de
Nicéia, em 325 d.c, torna-se permitido o culto livre à religião católica. A Igreja, começa,
assim, a ter sua estrutura, adaptando-se à do Império, “aproveitando o quadro
administrativo para sua organização, mantendo bispos nas cidades e fazendo coincidir
a metrópole eclesiástica com a província” (NUNES, 2005, p. 118). [3]

Mesmo com a queda do Império Romano, a Igreja Católica permanece forte e


em ascensão, sendo o mundo feudal caracterizado essencialmente pelo predomínio e
controle eclesiástico, que irão influenciar a dinâmica da sociedade, as tradições e os
valores culturais e as formas de exercício do poder político (WOLKMER, 2005, p. 15).

Nessa época surge Santo Agostinho (354-430), um dos primeiros teóricos que trata da
conexão entre os reinos da política e da religião. Elabora uma doutrina do conhecimento
pela iluminação divina, de matriz ainda platônica [4], mas totalmente cristã. Basta
lembrar que a justiça, para ele, era sinônimo de Deus (O que Deus quer); que não só a
justiça, mas todo o direito residiam na lei eterna (VILLEY, 2005, p. 85); e as Sagradas
Escrituras representavam a única fonte autêntica.

Sua principal obra, a Cidade de Deus, influencia toda a Idade Média e começa
a ser superada apenas no século XIII, com a obra de Tomás de Aquino. É
profundamente influenciado pelo idealismo de Platão. A visão do Bispo de Hipona parte
da divisão entre corpo e alma. Os anjos, seres perfeitos, não possuem corpo, mas apenas
alma. Contudo, em razão do pecado original de Adão e Eva, o corpo tornou-se a prisão
da alma e o objetivo principal da vida moral é nos libertar deste pecado (LOPES, 2008,
p. 4). [5]

Teríamos, assim, duas cidades, a terrena e a divida. Ambas coexistem, porém com
funções distintas. A cidade que temos diante de nós é a terrena, idealizada no Império
Romano, cujos destinos são “frágeis, provisórios, seus bens enganosos, sua justiça
falsa, não merecendo apego de nosso coração” (VILLEY, 2005, p. 82). Nossa pátria é
a cidade de Deus, que é um mito, mas que se encarna historicamente na Igreja Cristã.
Apesar de Agostinho entender que a origem das comunidades políticas está no pecado
original, ele também não condena sua existência. Afinal, Deus assim determinou.
MICHEL VILLEY sintetiza muito bem essa ideia do teólogo:

Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa ‘peregrinação terrestre’ e enquanto


o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das duas cidades elas
coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria cidade terrena tem, na história,
sua razão de ser; é obra, como todas as coisas, da providência divina e cumpre certa
função em nosso caminho para a salvação. Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas
cidades humanas históricas – cujo valor é questionado e que é preciso confrontar com os
da cidade celeste – serão tratados por santo Agostinho do ponto de vista de nossa
salvação. (2005, p. 83)

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Assim, a cidade terrena e suas instituições (entre elas o Direito) eram vistas
apenas como algo útil em razão de um fim específico, que é a salvação. Segundo
CASSIRER:

Mesmo no Estado ideal, descrito por Platão, S. Agostinho não conseguia encontrar um
pólo fixo, um ponto sobre o que pousar. O Estado, mesmo o Estado mais perfeito, não
pode satisfazer os nossos desejos. O único repouso verdadeiro para o homem é o
repouso em Deus. (2003, p. 104)

A imagem de um homem decaído, que está na cidade terrena (imperfeita) apenas como
passagem para conseguir a salvação na cidade de Deus (perfeição) é uma síntese que
domina a Alta Idade Média e que irá influenciar as doutrinas que irão, mais tarde,
buscar justificar a plenitude do poder papal. [6]

Afinal, a Igreja, como detentora do conhecimento e a única autorizada a


interpretar as Sagradas Escrituras, era quem poderia encaminhar e ajudar o homem a
alcançar a revelação divina. E no campo político, o que existia era um poder
pulverizado em múltiplas esferas de governo.

Assim, se até o Século IV o Imperador Romano era, ao mesmo tempo, a


autoridade secular e espiritual, a partir do Século V começa a ocorrer uma separação
desses poderes, tendo merecido destaque o Papa Gelásio I, que viveu no final do século
V e que apresentou, segundo DUMONT, “uma fantástica teoria da relação entre a
Igreja e o imperador, o qual foi em seguida acolhida na tradição e abundantemente
utilizada. (1985, p. 54) [7]. Em uma carta dirigida ao imperador Anastácio, o pontífice
disse o seguinte:

Há principalmente duas coisas, augusto imperador, pelas quais este mundo é governado:
a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real. Destas duas coisas, os sacerdotes são
portadores de uma responsabilidade tanto maior como porquanto devem prestar contas
ao Senhor até dos atos dos reis, submetendo-os ao julgamento divino … Deveis curvar
uma cabeça submissa perante os ministros das coisas divinas e … é deles que deveis
receber os meios de vossa salvação.”

Nas coisas respeitantes à disciplina pública, os chefes religiosos entendem que o poder
imperial vos foi conferido do alto e eles próprios obedecem às vossas leis, temendo
parecer que são contrários à vossa vontade nos negócios do mundo. (apud DUMONT,
1985, p. 55)

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Nota-se, assim, que há uma distinção entre a autoridade do papa (autoridade
moral e religiosa) e o poder do imperador (o poder material, o império). Para
DUMONT, o sacerdote estava submetido ao rei apenas nos assuntos terrenos, que
dizem respeito à ordem pública. Mas o primeiro era superior ao imperador, pois
somente no nível inferior (secular) é que o sacerdote estava submetido ao poder
imperial.

Dessa forma, conclui o autor francês que não se trata de simples correlação nem de
submissão dos reis aos sacerdotes, “mas de uma complementaridade hierárquica”
(DUMONT, 1985, p. 55).

A Alta Idade Média é marcada pela fragmentação do poder político civil,


período em que os reinos buscaram alianças com a Igreja que, assim, se fortaleceu e
passou a deter muitos direitos e privilégios (CREVELD, 2004, p. 85).

Do século XI ao XIII são travadas constantes disputas entre a cúpula da Igreja e


os príncipes dos Reinos ou com o Pontificado e o Imperador do Sacro Império Romano
Germânico. Com Gregório VII (final do século XI), aprofunda-se a defesa da
superioridade do poder papal sobre o secular. Isso porque, para essa doutrina, em razão
da origem e instituição divina do poder espiritual, este deveria ser considerado superior,
podendo o Papa influenciar e interferir no poder do Príncipe sobre os súditos (NUNES,
2005, p. 121; CREVELD, 2004, p. 85). O poder da Igreja foi aos poucos só aumentando
(cesaropapismo), chegando ao ápice com o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) que, em
1302, publicou a bula Unam sanctum Ecclesiam, documento que será visto com mais
detalhe no tópico a seguir.

DUMONT consigna acertadamente que, na essência, verifica-se no final da


Alta Idade Média e no começo da Baixa Idade Média um movimento dos Papas em
arrogarem para si uma função política (1985, p. 59). Sobre esse período, o antropólogo
francês assim conclui:

Do nosso ponto de vista, o que importa aqui, em primeiro lugar, é a mudança ideológica
que assim se vê começar e que será plenamente desenvolvida mais tarde, de um modo
totalmente independente do futuro reservado, de fato, à pretensão papal. Com a
reivindicação de um direito inerente ao poder político, introduz-se uma mudança na
relação entre o divino e o terreno: o divino pretende agora reinar sobre o mundo por
intermédio da Igreja, e a Igreja torna-se mundana num sentido em que não o era até
então. Os Papas, por uma opção histórica, anularam a formulação lógica por Gelásio da
relação entre a função religiosa e a função política e escolheram uma outra. A diarquia
hierárquica de Gelásio é substituída por uma monarquia de um tipo sem precedentes,
uma monarquia espiritual. Os dois domínios ou funções são reunidos e sua distinção é
relegada do nível fundamental para um nível secundário, como se divergissem não em
natureza mas tão-somente em grau. É a distinção entre espiritual e temporal, tal como a
conhecemos desde então, e o campo é unificado, de modo que podemos falar em
“poderes” espiritual e temporal. É característico que o espiritual seja concebido como
superior ao temporal, mesmo em nível temporal, como se fosse um grau superior do
temporal, ou, por assim dizer, temporal elevado a uma potência superior. É segundo

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esse eixo que, mais tarde, o Papa poderá ser concebido como a autoridade que “delega”
o poder temporal ao imperador como seu representante. (DUMONT, 1985, p. 59/60)

Será nesse contexto que irão surgir doutrinas contrárias à pretensão papal,
teorias estas que, apoiadas e financiadas pelos príncipes e imperadores, irão
fundamentar o pensamento político moderno.

Entretanto, faz-se necessário antes tecermos algumas considerações sobre as


ideias de Tomás de Aquino, que irão trazer inovações importantes e irão influenciar
também esses teóricos.

3. Síntese do pensamento de Santo Tomás de Aquino

Como bem demonstra CASSIRER, “quanto mais os pensadores medievais


conheciam as obras dos pensadores antigos, tanto menos podiam persistir na sua
atitude meramente negativa em relação à ordem social” (2003, p. 138). Certamente
existia um elemento mítico não podia ser superado, qual seja, o pecado original.
Duvidar do mesmo era inconcebível. Por outro lado, a natureza decaída do homem
desafiava o pensamento da Baixa Idade Média, pois desprezava completamente a
racionalidade humana.

Santo Tomás de Aquino foi um dos mais influentes escritores da Baixa Idade Média.
Ele procurou harmonizar razão e fé, tendo sido fortemente influenciado pela obra de
Aristóteles. Todavia, ele não se desligou completamente da visão agostiniana. Como
bem sintetiza LIMA, “Tomás assimila as virtudes aristotélicas, mas pela visão advinda
dos estóicos, por meio de Agostinho” (2005, p. 249).

A razão não seria inteiramente corrupta. Conservava um direito e uma esfera própria.
Passa-se a valorar o mundo empírico e o conhecimento filosófico, não apenas o
teológico. A razão seria o meio pela qual se chegaria à revelação. [8]

O Doutor Angélico busca também superar a ideia de divisão entre corpo e alma
e comprovar que o homem é uma unidade orgânica e atua como tal. Racionalidade e
percepção estão inseridas na atividade de conhecimento. A concepção organista é
frequente nos textos do Aquinate, o que remete à influência de Aristóteles.

No que tange à concepção política, Santo Tomás não aceita a corrente


doutrinária de que o Estado é uma instituição divina autorizada por Deus servindo como
um simples remédio para o pecado humano (CASSIRER, 2003, p. 143).

Para ele, o Estado nasce do instinto social do homem. Revive, aqui, a ideia
aristoteliana de que o homem é um animal social. Não é um produto apenas natural, mas
também racional, e que depende de uma atividade consciente e livre. Apesar do pecado

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original, a natureza humana manteve sua integridade constitutiva que impulsiona o
homem viver e se desenvolver em sociedade.

Logicamente, como frisa CASSIRER, Deus ainda é a causa remota do Estado.


Mas será o homem, por seu próprio esforço, construir a ordem e a justiça. Não há, mais,
assim, um abismo entre o reino temporal e celestial, tal como concebia Santo
Agostinho, mas uma fusão em uma unidade perfeita. ERNTS CASSIRER bem sintetiza
a ideia de Tomás de Aquino:

S. Tomás de Aquino está convencido de que o mais alto bem, o summum bonum dos
antigos filósofos, não podia ser alcançado unicamente pela razão. A visio beatifica, a
visão mística de Deus, continua sendo o objetivo absoluto – e esse objetivo depende
sempre de um ato de graça divina. Mas o próprio homem deve começar a obra e a
preparação para esse evento. O direito divino não revoga o direito humano originado na
razão. A graça não destrói a natureza: aperfeiçoa-a (Gratia naturam non tollit, sed
perficit). A despeito da queda, portanto, o homem não perdeu a faculdade de usar as
suas forças devidamente, preparando-se assim para a sua própria salvação. Ele não
desempenha um papel passivo no grande drama religioso; a sua contribuição ativa é
reclamada, e, na verdade, indispensável. Nessa concepção, a vida política do homem
ganhou nova dignidade. O Estado terreno e a Cidade de Deus já não são pólos opostos;
relacionam-se e completam-se um ao outro. (2003, p. 144)

É sempre importante lembrar que, apesar de o Estado ser uma sociedade perfeita, uma
vez que é a reunião de muitos para fazer algo em comum, Deus é o fim último do
homem. Logo, enquanto para Aristóteles o homem realiza-se completamente na vida
política terrena, o Aquinate defende um fim eterno ao homem (a bem-aventurança
eterna), que precisa ultrapassar os limites da ordem temporal (COSTA, SANTOS, 2007,
p. 4). [9]

Tomás mantém, ainda, uma moral teológica da sociedade, pois, para se


alcançar a paz e a justiça, é necessário o convívio de amizade entre o homem e o seu
criador, sendo que o primeiro deverá ser portador das virtudes teológicas (fé, esperança
e caridade) (LIMA, 2005, p. 250).

Ainda assim, a concepção de que o Estado é fruto da própria natureza humana


irá influenciar muito os doutrinadores que irão contestar a plenitude do poder papal. O
próprio Santo Tomás já enunciava que há uma separação entre ambos e que não merecia
vingar a tese da hierocracia.

Além disso, enuncia também o entendimento de que o poder espiritual não


constitui o temporal e que a titularidade do poder está em Cristo, e não no papa. Este
seria apenas um ministro. JOÃO JIVALDO LIMA bem sintetiza esse entendimento:

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O Aquinate é partidário da coexistência de “duas cidades” — a temporal e a espiritual
— e de seus cidadãos. Os fins precípuos de cada uma são distintos, sendo a finalidade
da cidade temporal o bem-viver e o fim da cidade espiritual a salvação eterna, a fruição
de Deus. Assim, seus dirigentes possuem missões específicas, consoante a natureza de
cada uma das “cidades” ou comunidades, ao potentado terreno cabe levar a bom termo a
finalidade da Comunidade Política, ao potentado espiritual cabe levar a bom termo a
possibilidade de todos alcançarem a Beatitude Eterna. A questão específica que se
coloca neste momento é que o potentado terreno é aquele legitimamente colocado no
poder, enquanto o potentado espiritual não é o papa, mas Cristo. Portanto, na concepção
da relação entre a esfera político-temporal e a esfera da administração religiosa, Tomás
afirma que Jesus Cristo é como que uma contraparte espiritual do rei terreno, abalando
— indireta, mas efetivamente — a tese da autoridade política do papa. Como, por
analogia, o potentado é o soberano, a cabeça da Comunidade Política, assim Cristo é o
soberano, a cabeça da Igreja. O lugar, pois, determinado ao papa — por conseqüência
— não é o de fonte do poder, mas é o de ministro, não de soberano, e, por conseguinte,
nunca um termo de comparação com o rei. O verdadeiro rei espiritual é Jesus Cristo,
que efetivamente leva os homens à vida sobrenatural oferecendo os meios proporcionais
que lhes permitem sua consecução, como ao rei cabe fazê-lo na ordem natural, no
tocante à obtenção do Bem Comum Político. (2005, p. 252/253)

Contudo, apesar da autonomia entre ambos e de estarem submetidos ao


Poder de Deus, “o poder espiritual precede em dignidade ao temporal, pelo fato de
aquele se relacionar como Fim Último Verdadeiro do homem que é a vida
sobrenatural, enquanto o poder secular vincula-se ao fim imediato e subalterno.”
(LIMA, 2005, p. 253).

Apesar disso tudo, o Estado irá se tornar mais secular em sua esfera de ação e a
Igreja mais espiritual e menos terrena e, a partir de então, o caminho da separação entre
as duas instituições tenderá a crescer cada vez mais.

4. João de Paris e o embate com a doutrina de Bonifácio VIII e Egídio


Romano.

João de Paris, também chamado de João Quidort, é um autor não muito


conhecido, mas de grande importância. [10] Este dominicano buscou, antes de Marcílio
da Pádua e Guilherme de Ockham, justamente promover a distinção entre o poder
imperial e o espiritual. Sua principal obra – De Regia Potestate et Papali (Sobre o poder
régio e papal) foi escrita em 1302 – podendo ter sido estendida até meados de 1303 -
[11] e, historicamente, estava inserida no amplo debate entre o Papa Bonifácio VIII e
Filipe, o Belo, Rei da França. [12]

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Entre os autores que o francês critica, merece destaque Egídio Romano. Este
era ex-aluno de São Tomás de Aquino e pertencia à ordem dos Agostinianos. Apesar de
transitar bem entre o Papa e o Rei (DE BONI, 2003, p. 140), ele acabou ficando do lado
de Bonifácio VIII e escreveu, entre 1301 e 1302, a obra De ecclesiastica potestate.

Tal obra irá buscar definir a “relação entre o poder eclesiástico e o civil na
constituição de novos estados soberanos”, pois “é necessário redefinir competências
entre as autoridades religiosas supranacionais e as autoridades civis nacionais que
nesse momento se afirmam” (DE BONI, 2003, p. 142).

Logo após sua publicação, Bonifácio VIII edita a bula Unam sanctam, cujo
teor, em linhas gerais, concorda com a obra de Egídio (DE BONI, 2003, p. 143), e que,
amparado nas Sagradas Escrituras, defende a plenitude do poder papal [13]:

Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é
isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade
testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o
esposo no Cântico: "Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe
que a gerou" (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus
é a cabeça de Cristo. Nela existe "um só Senhor, uma só fé e um só batismo" (Ef 4,5).
De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada
da única Igreja; encerrada com "um côvado" (Gn 6,16), teve um único piloto e um único
chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: "Salva minha
vida da espada, meu único ser, da pata do cão" (Sl 21,21). Ao mesmo tempo que Ele
pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu
corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé,
nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19,23) do Salvador, que
não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e
uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o
sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: "Apascenta as
minhas ovelhas" (Jo 21,17). Disse "minhas" em geral e não "esta" ou "aquela" em
particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas.

Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus
sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois
o Senhor disse no evangelho de São João: "Há um só rebanho e um só Pastor" (Jo
10,16).

As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as
duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última
deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O
espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e
cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar
subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade
espiritual. O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder
terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais nitidamente percebemos que as coisas

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espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode
estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se
desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será
julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus poderá
julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: "O homem espiritual julga a
respeito de tudo e por ninguém é julgado" (1Cor 2,15).

Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é
humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus
sucessores Naquele que ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: "Tudo o
que ligares..." (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder determinado por Deus
"resiste à ordem de Deus" (Rm 13,2), a menos que não esteja imaginando dois
princípios, como fez Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme
Moisés, não é "nos princípios", mas "no princípio Deus criou o céu e a terra" (Gn 1,1).

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é a absolutamente


necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.

Dada no Vaticano, no oitavo ano de nosso pontificado [18 de novembro de 1302].

Ao dizer que a “espada temporal” deve ser utilizada para a Igreja e que a
“espada espiritual” deve ser utilizada pela Igreja, enfatiza o Pontífice que o Poder
secular está submetido ao Poder da Igreja.

Egídio defende que o Estado, apesar de ser uma exigência da natureza, é


voltado para o fim superior da natureza: a salvação do homem. Ele seria apenas um
momento intermediário, transitório, que o homem passaria apenas para verem satisfeitas
suas necessidades terrenas. Sem a Igreja, o Estado não possuiria qualquer fim, sendo
mero meio, instrumento para a salvação. Alia a tudo isso a afirmação de que é o poder
espiritual que dá existência ao temporal (DE BONI, 2003, p. 150).

João de Paris é contrário a tal posição. Teoricamente se fundamenta em


Aristóteles e nos autores estóicos para explicar o governo civil, e, como não podia
deixar de ser, busca elementos na Bíblia para compreender o poder eclesiástico.
Contudo, o Direito também é uma fonte usada em sua obra. DE BONI enfatiza que o
autor conhecia o pensamento jurídico de sua época e que foi o primeiro teólogo que
incorporou algumas teorias jurídicas, há mais tempo existentes, sobre a soberania do
Concílio no governo da Igreja (2003, p. 171).

O autor francês faz três observações: a primeira é sobre a origem e intuito do


poder civil e eclesiástico; a segunda, exclui a ideia de governo universal, pois o poder
civil só aparece, quando há poder de coerção adaptada a cada povo em relação a seus
usos e costumes. E por fim, ele insere algumas concepções aristotélicas-tomistas à
Igreja, desenvolvendo um poder organizado de bases fortes, que terá como objetivo o
bem comum, em que todos possam compartilhar do poder e com isso democratizar a
instituição eclesiástica. É visível, portanto, a sua intenção em separar poder real do
poder eclesiástico, antecedendo bastante os tempos modernos.

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João de Paris resgata a influência de Aristóteles, renovada por Santo Tomás de
Aquino, que o homem é um animal político. Porém, o homem não vive sozinho; é
necessário que o mesmo viva em cidades, reinos, forme uma comunidade, em que as
pessoas busquem seus interesses. Tal comunidade ele chamará de multidão perfeita. Tal
construção exigia esforço e argumentação. Os que a aceitavam, ligavam-se por leis
gerais e vinculadas à vida comum. Essas leis eram humanas e não decorrentes de um
direito natural, e, segundo DE BONI, era, na terminologia medieval, amparada no
direito das gentes. (2003, p. 172) [14]. Assim expressa João de Paris:

E como os homens, pela comunidade de palavras, não conseguiam passar da vida


animal para a vida comum correspondente à sua natureza (…), então, alguns homens,
que faziam maior uso da razão e sofriam sob a falta de rumo de seus semelhantes,
empreenderam a obra de, através de argumentos persuasivos, convencer os demais a
partir para uma vida comum ordenada, sob a direção de um único chefe, conforme narra
Cícero. Os que concordaram, foram ligados por certas leis relativas à vida comum, que
aqui são chamadas direito das gentes. (apud DE BONI, 2003, p. 172).

Segundo DE BONI, para o autor parisiense, apesar de a política não ser o fim
último do homem, ainda assim é possível que o agir social possua uma finalidade
própria que não seja de figurar como um meio para a salvação. Em outras palavras, a
vida política não existe em função de um outro fim e é possível viver com virtude na
cidade (2003, p. 174):

Viver segundo a virtude, que é a finalidade da polis conforme Aristóteles, não implica,
de modo algum, o atrelamento do poder político ao religioso, como se coubesse a
alguma autoridade fora e acima do Estado – e da constituição racional deste – indicar o
que é a virtude. O Estado é uma construção da natureza racional do homem e, como tal,
pode ser pensado e realizado com o empenho único e exclusivo da razão. Quidort
observa com precisão a respeito que “as virtudes morais podem ser perfeitamente
adquiridas sem as teologias, e não são aperfeiçoadas por estas a não ser de modo
acidental (…). Portanto, também sem a direção de Cristo pode haver a justiça
verdadeira e perfeita que se requer para o reino, pois o reino ordena-se a viver segundo
a virtude moral adquirida.” (c. XVIII ad 27). (DE BONI, 2003, p. 174)

Assim, o autor francês entende que o Estado possui um fim em si mesmo


(influência tomista), sendo que era possível uma autoridade civil, cuja função era ampla,
ocupando-se com as coisas terrenas, inclusive de julgá-las, despreocupada com os
preceitos religiosos e que não se fundamentava na instituição divina. Como bem
expressa PIEREZAN:

Segundo Joahnnes Quidort, qualquer reino poderia alcançar a virtude máxima e a


finalidade natural a que foi destinado: proporcionar aos súditos o viver segundo a

7038
virtude e a moral que lhe são próprias. Tal máxima considera essas virtudes
independentes do beneplácito da Igreja e dos poderes sobrenaturais. …

Nesse sentido, a legitimidade do reino está garantida por um princípio de origem, já que
advém da natureza e da razão humanas. Essa característica do argumento propõe que o
reino, dessa forma, dependa única e exclusivamente dos indivíduos, em face de uma
moral natural. … O que até então se concebia como hierocracia, não entra na lógica do
pensamento político de Quidort, pois o reino necessita tão somente da virtude moral e
natural do sábio rei para distinguir o que deve ser mantido e rejeitado. (2008, p. 192)

Tal postura abre caminho à laicização dos séculos seguintes. Contudo, o


homem não só se ordena para o bem que pode ser adquirido normalmente, mas também
se guia para um fim transcendental, sobrenatural, que é a vida eterna. Porém, o
responsável por tal fim é Jesus Cristo, sendo que, da mesma forma que Tomás de
Aquino [15] o Papa era mero ministro, nunca um rei (DE BONI, 2003, p. 181/182).

Logo, João de Paris separa totalmente as esferas de poder, como ele próprio diz
no capítulo V do De Regia Potestate et Papali:

“Assim, pois, o poder secular é superior ao espiritual em algumas coisas, isto é, nas
coisas temporais, e neste assunto não se encontra sujeito em nada ao espiritual, pois não
procede dele, mas ambos provêm imediatamente de um só poder supremo, que é divino,
e por isto o poder inferior não está sujeito ao superior em todas as coisas, mas apenas
naquelas em que o poder supremo o colocou sob o superior.” (apud DE BONI, 2003, p.
187).

Contudo, DE BONI alerta para um fato importante, que o diferencia de seu mestre:
João de Paris não equaciona os dois poderes dentro de uma mesma cristandade, mas
busca “situá-los em duas instituições diferentes, independentes e correlatas”. O Estado
agora se torna mundano, apesar de Deus ser o princípio remoto do poder real (2003, p.
188; LIMA, 2006, p. 143). E esse poder político não vem pela via descendente, ou seja,
de Deus diretamente aos detentores do poder e destes aos seus ministros e delegatários.
Ao contrário, a visão de João de Paris é ascendente, ou seja, de que o poder vem de
Deus para o povo e deste ao monarca ou à família da qual este sairá (LIMA, 2006, p.
144).

Tal posição configura um prenúncio da participação popular. Os membros da


comunidade seriam responsáveis pela eleição do seu governante, cuja responsabilidade
será, sempre, a procura, ou a busca pelo bem comum. Este bem, para João de Paris, não
se equivalia ao bem particular do dirigente eleito, mas sim um bem ético, adequado à
multidão perfeita, que atrairá e orientará a atividade dos membros da comunidade
política e evitará que esta se dissolva por interesses egoísticos particulares. [16]

7039
Uma questão também importante na obra de João de Paris e que o difere de seu mestre
é a preocupação com o homem como indivíduo inserido na sociedade. Esse homem é o
homem econômico, que irá organizar o Estado (Reino). Neste haverá uma divergência
de interesses, que só se mantém graças à força da autoridade. A perspectiva individual,
que irá surgir mais tarde com todo fôlego, já se faz presente na obra do dominicano.
[17]

Esse pretenso individualismo influencia a concepção de sociedade para João de


Paris. Esta não é uma unidade superior e diferente do conjunto dos indivíduos. Ela é a
soma de seus componentes, que delegaram a uma autoridade a prerrogativa de lhes
governar.

Outra perspectiva da obra de João de Paris é o fato de que a sociedade é


formada por um pacto. Tal pacto possui vínculo com ideias estóicas, sendo diverso do
que será tratado na modernidade, inclusive por Rousseau. [18] Mas Quidort já indicava
que a aquisição de bens e a proteção da propriedade constituem o motivo pelo qual “foi
instituído pelo povo um príncipe, que como juiz preside nesses casos, discernindo entre
o justo e o injusto, punindo a apropriação indébita’ (c. VIII)” (DE BONI, 2003, p.
173).

Em suma, a obra de João de Paris não ousou, em nenhum momento, suprimir o


poder eclesiástico, mas procurou encontrar um equilíbrio entre os dois poderes em
conflito, aparando os erros das demais teorias: o erro daqueles que exaltavam em
demasia a autoridade universal e hierocrática e o erro dos que propunham como fim
único e verdadeiro o poder do rei (PIEREZAN, 2008, p. 8).

Ela surgiu justamente no momento de maior combate à hierocracia, na qual o


dominicano adaptou as teorias políticas à nova realidade ao dizer que o poder régio é
legítimo e apto, inclusive, para solicitar a deposição do Papa.

5. Marsílio de Pádua e o Defensor da Paz

Marcílio Mainardini, ou Marcílio de Pádua (em razão da cidade italiana), foi


um filósofo medieval cujas ideias foram muito importantes para a construção dos
poderes régios. Certamente tomou conhecimento da obra de João de Paris, pois, da
mesma forma que o antecessor, ele foi reitor da Universidade de Paris (1312-1313). Sua
obra mais importante foi o Defensor da Paz, feita em 1324. [19] Posteriormente, por
volta de 1340, escreveu o Defensor Minor.

O contexto histórico da época ainda era o embate sobre quem teria a plenitude
do poder (plenitudo potestatis). Os atores, contudo, eram distintos. Agora, o confronto
era entre o Papa João XXII e Luiz (ou Ludovico) da Baviera, ou seja, entre o Papado e o
Santo Império Romano Germânico.

7040
Marcílio, como os demais de sua época, não é um pensador moderno, pois
ainda está vinculado às tradições cristãs. Porém, é um crítico da Igreja, tendo se
refugiado na Corte do Imperador Luis da Baviera.

Apesar de não ser original, a obra de Marcílio representa um protesto contra a


pretensão do Papa de obter a plenitude do poder. Para tanto, buscou forte suporte em
Aristóteles e Cícero. [20]

Contudo, a inovação trazida por Marcílio começa quando o mesmo alega que a
paz, entendida aqui como a ausência de conflito no interior da sociedade civil [21], é
constantemente ameaçada pela pretensão papal à plenitude do poder:

"Daí ser necessário desmascarar o sofisma que existe por detrás daquela causa já
mencionada [a plenitude do poder pontifícia], única em sua espécie, geradora das
disputas que ameaçam todas as comunidades e reinos com prejuízos
incomensuráveis.Qualquer pessoa tem a obrigação de saber que a utilidade e o bem
comum são necessidades indispensáveis a todos, e por isso, a sociedade em geral deve
ter um cuidado e solicitude diligentes para consegui-los. Assim sendo, se este sofisma
não for desmascarado, essa peste com seus efeitos perniciosos não serão evitados e
tampouco extirpados de todos os reinos ou sociedades civis." DP, I, I, 4, p.70 e 71
(TÔRRES, 2003, p. 09)

Apesar da paz não ser o fim último da atividade política, ela é de grande
importância para a construção de uma vida fundada no “bem viver” [22], que ocorrerá
na cidade, na dimensão terrestre. Marcílio sustenta que o bom governo e a “suficiência
da vida” são os “frutos da paz e da tranquilidade.” (apud SKINNER, 1996, p. 77). E
TÔRRES, com amparo em MAIRET, afirma que a finalidade única da civitas “é prover
necessidades materiais e trocar mutuamente os bens capazes de satisfazê-las.” (2003,
p. 16).

Marcílio entende que há uma inclinação da natureza do homem e o Estado é


naturalmente necessário, sendo que, a partir da união do homem e da mulher,
inicialmente na formação do lar, chegaremos à constituição de uma sociedade
politicamente organizada e vivendo em uma cidade. Nela, restará configurará a “vida
perfeita”. Ou seja, há a evolução de uma estrutura mais simples para uma mais
complexa e perfeita. [23] Como bem assinala VILANI, essa comunidade civil
representa uma totalidade orgânica, composta de dimensões físicas e éticas, que são
necessárias para uma vida organizada e plena de virtude (2000, p. 47;48).

Essa vida em sociedade, portanto, não possui conteúdo teológico. Contudo,


como não poderia ser diferente em razão do contexto histórico no qual estava inserido, o
autor também não desconhece que Deus é a causa remota de todo poder. Mas, como
adverte VILANI, Deus não interfere na esfera temporal, “deixando a razão humana
decidir sobre como o organizar a vida coletiva” (2000, p. 48). Salvação eterna é
assunto espiritual, a ser tratado pela Igreja. Essa orientação não era nova. Mas para o
paduano, a perfeição era alcançada em uma cidade.

Na cidade, os indivíduos procuram exercer alguma atividade que lhes


proporciona viver bem. Mas essas funções não são exercidas isoladamente. Elas se

7041
integram num único corpo, o político (BARBALHO, 2008, p. 72). A sociedade é
composta por seis partes que estão organicamente unidas ao todo da cidade. São elas:

“… a agricultura, destinada a “produzir e manter as ações nutritivas”; o artesanato,


responsável pela adaptação do homem ao mundo e a criação de melhores condições de
existência; a parte judicial ou conciliativa, encarregada de “regular os excessos dos atos
produzidos pela inteligência e vontade”; o exército, responsável pela segurança externa
e a ordem interna; a financista, encarregada de administração das riquezas, a provisão
das necessidades futuras e o gerenciamento das atividades internas; e, por último, o
clero: embora sua existência não corresponda a nenhuma necessidade vital neste mundo,
tem uma utilidade moral na medida em que infunde a idéia de que Deus “atribuirá um
prêmio aos bons e um castigo aos maus”. (AMES, 2003, p. 3).

Marsílio mantém o clero inserido na sua idéia de Estado. Afinal, os cidadãos


são fiéis. Mesmo que todos os fins perseguidos pelo Estado sejam mundanos, não se
pode deixar de se preocupar com os seus membros. O agir reto, a “saúde” das suas
almas, coincide com o agir adequado neste mundo.

A paz e tranquilidade, contudo, são mantidas pela observância das leis humanas, que
irá prever o que justo ou injusto, útil ou não. Descumprida, deve-se exigir a aplicação
do poder coercitivo. Marcílio não desconhece nem descarta a lei divina, contudo,
entende que a mesma não trata de assuntos humanos e temporais, mas buscam apenas
orientar a vida das pessoas para garantir a vida eterna. Somente a lei humana pode
regrar a vida na esfera secular, incluindo a previsão de sanções:

No entanto, a lei considerada propriamente é um preceito coercitivo permitindo ou


proibindo fazer determinadas ações e com a capacidade de infligir um castigo aos seus
transgressores. A Lei Divina é um preceito coercitivo estabelecido imediatamente por
Deus, sem nenhuma participação humana, com o propósito de levar as criaturas
humanas a alcançar o fim último da vida futura e capaz de infligir um castigo aos seus
transgressores apenas na outra vida, não nesta. Ao contrário, a lei humana é um preceito
coercitivo, procedente de modo imediato da vontade ou decisão humana, com o
propósito de se alcançar um objetivo neste mundo, cujos infratores serão castigados
aqui na terra somente. (DM,XIII,3, p.:87) (apud TÔRRES, 2003, p. 21)

JOSÉ OLIVEIRA BARBALHO, em tese de doutorado sobre a obra de Marcílio, traz


as seguintes considerações:

Posto que a comunidade política é uma sociedade humana legalmente organizada, o


estudo da lei é indispensável à sua compreensão. As leis humanas são fundamentais na
estruturação da civitas. Elas tratam do justo ou do útil, e do injusto ou do nocivo à
comunidade dos cidadãos. A partir dela, efetua-se o julgamento dos atos humanos. Se o
cidadão age corretamente neste mundo, é porque ele não se opôs às leis da vida

7042
presente, da civitas. O bom cidadão, igualmente o governante, “(...) não pode agir
arbitrariamente e à margem das leis ao julgar ou fazer outras coisas”

As obrigações e costumes religiosos que ele assume para conquistar a vida depois da
morte não definem o que é justo para comunidade perfeita. Ele pode pensar
equivocadamente que o indivíduo correto é aquele que segue os mandamentos de Deus,
mas a verdade é que no interior do corpo político o justo é aquele que, distanciando-se
de seus sentimentos egoístas, segue as determinações da comunidade política referente
ao viver bem neste mundo. Essas determinações ordenam ou proíbem fazer certas
coisas. Se alguém não as obedece é punido. Constituem um tipo de regra que “(...) deve
estar isenta de qualquer motivo perverso, pois não é elaborada para favorecer a um
amigo ou prejudicar a um inimigo, mas para ter uma aplicação universal, quer dizer, a
todo cidadão que age bem ou mal”. (2008, p. 76)

Marcílio, inclusive, legitima a tributação dos clérigos, pois “os tributos são
necessários para garantir muitos benefícios à comunidade” (BARBALHO, 2008, p.
81).

Como bem reconhece WOLKMER, a perspectiva adotada por pelo patavino o revela
como um “precursor da moderna concepção de secularização e positivação do Direito,
fundado no poder político e não na vontade de uma pessoa” (2005, p. 28). Nota-se,
portanto, na obra de Marcílio, que o poder político não possui qualquer vinculação ou
influência eclesiástica. Era sua intenção excluir realmente qualquer pretensão papal de
atuação na ordem política.

Mas quem terá legitimidade para criar esta lei humana? Para Marcílio, toda autoridade
política está no povo, sendo o governante mero depositário:

O supremo legislador humano, desde a época de Cristo, e talvez mesmo há algum


tempo antes, até hoje, é e deve ser o conjunto de todos os homens ou sua parte mais
relevante em cada uma das regiões e províncias, os quais têm de estar subordinados aos
preceitos coercitivos da lei (Defensor Minor, Cap. XII). (Apud VILANI, 2000, p. 49)

Logicamente, “povo”, no contexto, não possuía o sentido moderno e atual, mas


representava o conjunto de cidadãos, cristãos ou não, leigos ou sacerdotes, excluindo-se
as mulheres, os servos e escravos. Assim, o ordenamento do corpo social é resultante da
ação conjunta do povo (universitas civium) ou de sua parte mais relevante (valentiors
pars). A lei nasce, assim, do consenso e irá reger a comunidade. Segundo VILANI:

Para o pensador patavino é no povo que reside a garantia da paz civil e da comunidade
perfeita. A cidade deve sua existência à dinâmica da natureza, mas quem dá vida a esse

7043
corpo natural é a vontade popular. Ela decide quem governa e quais são as leis que
estabelecem as regras da conduta social. (2000, p. 50)

Entretanto, quem irá aplicar a lei será o governante eleito. É importante


enfatizar que há não só uma nítida separação entre a função legislativa e a executiva,
como uma superioridade da primeira sobre a segunda. Isso porque o governante, além
de indicado, é limitado na sua atividade, cabendo apenas aplicar a lei. O príncipe de
Marcílio não é um tirano ou déspota. Possui o mesmo um papel instrumental.

Marcílio também adverte que o povo apenas delega o poder; ele não transfere
o direito ao exercício de sua soberania para o princípio ou regente. A autoridade última
permanece nas mãos do povo, que irá controlar o governante, podendo destituí-lo se
este não observar a lei e agir com excesso de poderes (SKINNER, 1996, p. 83 e 84).

Assim, a legitimidade do regente está no consenso, e seu poder é limitado pela


lei criada pelo supremo legislador humano. Não será a eventual virtude que fará
determinada pessoa ser um príncipe. Ele pode ter todas as características e predicados
para ser um governante perfeito, mas deverá, para ter autoridade, ser eleito (AMES,
2003, p. 5).

Cumpre ainda dizer que Marcílio não desconsidera o sacerdócio, pois este é um
ofício de grande utilidade que não pode desaparecer na vida dos cidadãos. Afinal,
mesmo antes de Cristo, as outras religiões orientavam os seus sacerdotes, cidadãos de
boa reputação, a buscarem a tranqüilidade. Contudo, é uma classe que compõe e está
submetida ao Estado. Como frisa VILANI, “todos os assuntos que dizem respeito à
vida social, inclusive os morais e religiosos, devem situar-se dentro da esfera de
controle do Estado.” (2000, p. 53).

A própria Igreja perde sua força, pois o autor italiano nega autoridade ao papa – pois
não havia hierarquia entre os apóstolos de Cristo - e a entende como uma comunidade
de fiéis (universitas fidelium), fazendo um paralelo com comunidade de cidadãos
(universitas civium).[24]

Marcílio acaba tendo uma concepção monolítica do poder. Ao estruturar suas


ideias dentro de uma visão organicista aristotélica, finda por qualquer divisão ou
diferença de jurisdição. Ele não admitia a interferência da Igreja nos assuntos temporais
– até porque, segundo o autor, esta era uma das causas de intranquilidade – mas o
Imperador seria a única autoridade, mandante de todas as leis e ministro de Deus.

VILANI conclui que Marsílio, apesar de propor novas ideias para os problemas
de seu tempo, ainda está atrelado a algumas concepções medievais. Ele não nega a
cristandade nem a plenitude do poder, que seria posta na pessoa do Imperador. A
comunidade seria dirigida por “um príncipe cristão, com plenitude do poder, agindo
por delegação do ‘legislador humano’. O governante era, ao mesmo tempo, mandatário
do povo e ministro de Deus sobre a terra.” (VILANI, 2000, p. 54 e 55).

Sua obra não contempla uma sociedade não cristã, ou governada por um príncipe não
cristão e nem uma sociedade pluralista e com liberdade civil, já inicialmente idealizada

7044
por seu contemporâneo, Guilherme de Ockham. Mas, de qualquer forma, ela é bastante
relevante, pois, como bem sintetiza SIMONE GOYARD-FABRE “o reconhecimento de
uma ordem sociopolítica independente da ordem eclesiástica abria, assim, caminho
para a concepção do Estado moderno, cuja soberania logo será apresentada como
‘forma’ ou a ‘essência’” (2002, p. 9). [25]

6. Conclusão

Como restou visto no trabalho, o estudo do pensamento medieval possui


grande importância e mostra como a Idade Moderna foi influenciada por ideias surgidas
na Baixa Idade Média. Conceitos como lei, soberania popular, liberdade, propriedade,
governo, foram tratados por teóricos que não eram desconhecidos para autores como
Hobbes, Locke e Grotius (DE BONI, 2003, p. 12).

Esse grande movimento de mudança não partiu de revoltas ou revoluções, mas


a partir de lentas percepções que alteraram as ações e as ideias do homem medieval.
Este começou a defender um sentimento de comunidade política em torno de interesses
comuns e mundanos, reconhecendo que sua existência na terra fazia sentido e que nela
ele poderia alcançar a felicidade. Aos poucos, a perspectiva teológica deixa de guiar os
passos do homem na terra, fazendo com que apareça o humanismo antropocêntrico, que,
mais tarde, vingará no individualismo.

As ideias de João de Paris e Marcílio de Pádua foram de grande importância,


na medida em que combateram a pretensão do papa à plenitude do poder. Na construção
de suas teorias, resgatam algumas ideias clássicas, especialmente de Aristóteles e
Cícero, e as incorporam ao contexto cristão, fomentando, assim, o surgimento do Estado
Moderno - em especial a superação e influência da Igreja no Estado - permitindo que o
mesmo tenha um governo eleito pelo povo, e não imposto por uma autoridade que se
diz divina.

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[1] É referência sobre o tema a obra de Quentin Skinner, denominada As fundações do


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reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Para uma abordagem que envolva
a discussão da soberania, conferir: KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um
conceito. São Paulo: Humanitas/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, 2002.

[2] Nessa época, até o século XVIII, teremos o Estado Patrimonial. Este possui duas
características principais: primeiro, a de se fundar nas rendas patrimoniais ou dominiais
do príncipe; segundo, a total confusão da esfera pública com a privada. Sobre o tema,
conferir TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no
Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

[3] Segundo Martin Van Creveld, no período da Alta Idade Média, especialmente na
época do Império Carolíngio, “a Igreja herdara a língua do Império Romano ocidental
bem como muitas de suas tradições jurídicas e políticas. Durante séculos, exerceu um
monopólio quase total sobre a educação, o que tornava seus serviços indispensáveis
para qualquer governante secular cujos territórios fossem vastos e que desejasse
transformá-lo em algo mais do que mero domínio ou feudo.” (Ascensão e declínio do
Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 84)

7048
[4] Ernst Cassirer aponta, contudo, as diferenças da teoria de Santo Agostinho e de
Platão, especialmente na concepção do Estado (O mito do Estado. Trad. Álvaro
Cabral. São Paulo: Conex, 2003, p. 103/123; 134/144)

[5] Conferir, também, VILANI, Maria Cristina Seixas. Origens medievais da


democracia moderna. Belo Horizonte: Inédita, 2000, p. 30/35.

[6] Richard Tarnas consigna o seguinte: “a visão decisiva de Agostinho em relação à


natureza humana teve um corolário em sua avaliação da história secular. Como bispo
influente em sua época, no final da vida Agostinho foi dominado por duas preocurações
urgentes: de um lado, a preservação da unidade da Igreja e da uniformidade
doutrinária em relação à influência entrópica dos diversos grandes movimentos
heréticos; de outro, o embate histórico da queda do Império Romano sob as invasões
bárbaras. Diante do império que desmoronava e o aparente fim da própria civilização,
Agostinho não via grandes possibilidades de algum genuíno progresso histórico neste
mundo. Nos males, crueldades, guerras e assassinatos manifestos, na cobiça,
arrogância, licenciosidade, vícios, ignorância e sofrimentos que todos os seres
humanos estavam obrigados a sentir, ele via a demonstração da força absoluta e
permanente do Pecado Original, que fazia desta vida um tormento, um inferno na
Terra, do qual Cristo poderia salvar o Homem. Agostinho respondeu à grande crítica
dos pagãos romanos sobreviventes à religião cristã, de que a cristandade teria
solapado a integridade do poder imperial romano e assim aberto caminho para o
triunfo bárbaro, com um diferente conjunto de valores e diferente visão da História:
todo o progresso verdadeiro era necessariamente espiritual e transcendia este mundo e
seu destino negativo. O importante para o bem-estar do Homem não era o império
secular, mas a Igreja Católica. A divina Providência e a salvação espiritual eram os
fatores fundamentais na existência humana, o que reduzia o significado da história
secular, com seus valores efêmeros e seu progresso flutuante e em geral negativo.” (A
epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que moldaram
nossa visão de mundo. Tradução Beatriz Sidou. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005, p. 167/168).

[7] Conferir também VILANI, ob. cit. p. 35/36.

[8] Sobre o tema verificar também VILLEY, Michel. A formação do pensamento


jurídico moderno. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, p. 181/198;
WOLKMER, Antônio Carlos. O Direito como parte da ordem divina: Justiniano, Santo
Tomás de Aquino e Marcílio de Pádua. in Fundamentos do humanismo jurídico do
ocidente. Org. Antônio Carlos Wolkmer. São Paulo: Manole, Florianópolis: Fundação
José Arthur Boiteux, 2005, p. 22/27;

[9] João Jivaldo Lima possui a mesma conclusão: Na senda de Agostinho, Tomás
coloca na sociedade humana a necessidade de encontrar a paz, não a paz humana, mas
a que advém da amizade do homem com Deus, o que está muito além das perspectivas
previstas por Aristóteles, para quem os horizontes das relações humanas não vão além
dos limites da pólis. [Da Política à Ética: O Itinerário de Santo Tomás de Aquino.
2005, Tese, 266 fl. (Doutorado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, p. 250].

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[10] Sobre o autor e sua obra, conferir tese de doutorado em História de Alexandre
Pierezan, com o título De Regia Potestate et Papali. O equilíbrio de poderes segundo
Johannes Quidort (1270?-1306). 2008. 233 fl. Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro.
http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2008_PIEREZAN_Alexandre-S.pdf, acesso
em 17 de julho de 2009; MIETHKE, Jürgen. João Quidort de Paris: De Regia Potestate
et Papali. Ocasião e caráter de um escrito polêmico. in A Cidade dos Homens e a
Cidade de Deus. Org. Ernildo Stein. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 123/132.

[11] Conferir DE BONI, Luis Alberto. De Aberlardo a Lutero. Estudos sobre


filosofia prática da Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 164.

[12] Sobre o embate entre o papa e o rei, conferir STREFLING, Sérgio Ricardo. A
disputa entre o Papa Bonifácio VIII e o Rei Filipe IV no final do século XIII.
Teocomunicações, vol. 37, n. 157, set. 2007. Porto Alegre, p. 409/419.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2721/2069, acesso
em 15 de julho de 2009.

[13] Papa Bonifácio VIII – Bula Unam Sanctam. Montfort Associação Cultural.

[14] Também nesse sentido: “Em suma, o frade parisiense tem que o princípio de sua
‘multidão perfeita’ é a natureza comum aos homens, sua causa eficiente principal é a
vontade positiva daqueles que persuadiram os demais a se associarem; a causa
eficiente instrumental é a persuasão efetivada nos primórdios da história; a causa
material são os próprios indivíduos consorciados; a causa formal é a vontade
permanente de assim permanecerem e se darem leis e a causa final é o bem comum da
sua ‘cidade’. (LIMA, José Jivaldo. O poder temporal em João Quidort. Dissertatio n°
24. Universidade Federal de Pelotas, verão de 2006, p. 136.
http://ich.ufpel.edu.br/depfil/filesdis/dissertatio24.pdf, acesso em 19 de julho de 2009.)

[15] Conferir o seguinte trecho da tese de doutorado de João Jivaldo Lima, orientada
pelo Prof. Dr. Luis Alberto de Boni:

Por conseguinte, na visão tomasiana, a distinção quanto à dignidade dos dois poderes
não advém de uma relação causal entre ambos, o temporal advindo do espiritual ou
inversamente. Na concepção do Angélico, o poder papal não é causa instituidora do
poder secular, aliás — por conseqüência — o poder papal não institui qualquer outro
poder, mesmo o poder espiritual, o papa apenas exerce o poder sacerdotal em grau
máximo, o qual foi instituído por Jesus Cristo e não por ele, quer dizer, não foi o
primeiro Papa, o Apóstolo Pedro, que instituiu os demais Apóstolos e lhes deu poderes
e enviou-os a pregar. O Papa não chega até mesmo a ser o intermediário na
distribuição do poder e da jurisdição espiritual para os demais bispos, mas apenas o
ministro para dirigir a Igreja. O meio é o Sacramento da Ordem, que todos os bispos,
inclusive o Romano Pontífice, o possuem em plenitude, no entanto, o poder sacramental
vem diretamente de Cristo e não lhes outorga, por isso, algum poder temporal.

A argumentação de Santo Tomás de Aquino se constitui, pois, na superação da aporia


entre Hierocracia e Teocracia Régia sem fazer concessões comprometedoras a uma ou
a outra tendência político-religiosa de sua época, cujas origens e extensões
transcendem o seu tempo. O Aquinate é consciente disso e enceta esse caminho por

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opção, coerente aos seus postulados cristãos, filosóficos e políticos hauridos nas já
referidas fontes disponíveis então. E não poderia se de outro modo para este frade
dominicano, aluno de Alberto Magno, leitor dos Padres da Igreja e de Aristóteles e de
espírito independente. (LIMA, ob. cit. 2005, p. 253/254)

[16] João Quidort entende que – positivamente - a competência do potentado secular é


guiar os súditos ao bem comum, discernindo o justo do injusto, legislando sobre o que
convém ao reino, possibilitando a prática das virtudes, estipulando os devidos
impostos89, punindo os roubos ou furtos, legislando sobre os bens dos cidadãos,
depondo acidentalmente o soberano pontífice em caso de necessidade. E negativamente
“removendo os impedimentos que se opõem no caminho do fim (...)”.

Em suma, o “bem comum” intramundano no tratado Sobre o Poder Régio e Papal é a


causa final do poder secular - com o que concorda o Aquinate -, mas já não é um bem
formalmente de toda a “multidão perfeita”, é um bem que se identifica com a soma dos
bens particulares dos pactuados - o que não podemos afirmar do Angélico sem
contradizer seu pensamento.” (LIMA, ob.cit. 2006, p. 153/154)

[17] Conferir LIMA, ob. cit. 2006, p. 148/151, em que o autor comenta a relação de
bem particular e bem público.

[18] Conferir LIMA, ob. cit. 2006, p. 139/142.

[19] Há alguns autores, como WOLKMER, que dizem que tal obra foi escrita com a
colaboração de Juan de Jandún. (ob.cit., p. 27).

[20] Para JOSÉ LUIZ AMES, o paduano buscou “suavizar” o naturalismo aristotélico,
tendo admitido o impulso natural até o Estado, mas se omitindo sobre sua existência por
natureza (Estado e Governo no pensamento de Marsílio de Pádua: raízes medievais de
uma teoria moderna. in Revista Ética & Filosofia Política, Volume 6, Número 2,
Novembro/2003. http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/6_2_joseluiz.htm, acesso em 20 de
julho de 2009.)

[21] “Em Marsílio o conceito de paz (pax) integra-se com o de cidade (civitas), uma vez
que a primeira é simultaneamente instrumento e condição da vida suficiente fundada
sobre o "bem viver", ou seja, instrumento e condição do estado de saúde da civitas.”
(TÔRRES, Moisés Romanazzi. A Filosofia Política de Marsílio de Pádua: Os Novos
Conceitos de Pax, de Civitas e de Lex. Mirabilia - Revista Eletrônica de História
Antiga e Medieval, vol. 3. Dezembro de 2003.
http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num3/artigos/art9.htm, acesso em 19 de
julho de 2009).

[22] “Todo reino deve buscar a tranqüilidade, pois ela proporciona o desenvolvimento
da população e salvaguarda o interesse das nações. De fato, a paz é a causa total da
beleza, das artes e das ciências. É ela que, multiplicando a raça dos mortais, mediante
uma sucessão regenerada, aperfeiçoa as possibilidades e cultiva os costumes,
sugerindo-nos a idéia de que o ignorante desconhece tais bens porque jamais os
procurou.’ (CASSIODORO, VARIAE,I,1,MGH,AA,XII,10. Apud MARSÍLIO DE
PÁDUA, DP, I,I,1,p.67” (TÔRRES, ob. cit., p. 8).

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[23] “A vida civil perfeita só se realiza na Cidade, comunidade natural e auto-suficiente
que serve à finalidade humana do ‘bem viver’. (VILANI, ob. cit. p. 47)

[24] Sobre as críticas de Marcílio à Igreja e à hierocracia, conferir STREFLING, Sérgio


Ricardo. O desmantelamento do poder papal na eclesiologia de Marcílio de Pádua. in A
Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Org. Ernildo Stein. Porto Alegre: EST
Edições, 2007, p. 166/173.

[25] SKINNER também assinala que “a doutrina da soberania popular assim


desenvolvida por Marsílio e Bartolo estava fadada a representar papel de destaque na
constituição das versões mais radicais do constitucionalismo de inícios dos tempos
modernos.” (ob. cit. p. 85)

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