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O ESTADO EM MAQUIAVEL

Caleb Bentes Monteiro Dias1


Carlos Alberto Simioni2

RESUMO
Com o agrupamento dos seres humanos em busca da sobrevivência e a
necessidade da ordem da vida em sociedade o Estado se desenvolveu de
maneira natural; o seu surgimento data de muito tempo, desde os gregos
antigos já se teorizava sobre sua estrutura, papel e configuração - derivado da
Polis; de Heródoto à Platão, Políbio, Santo Agostinho, Maquiavel, Hobbes,
Marx, Weber até os tempos atuais. Hoje ele é robusto e complexo, mas outrora
não. Dos avanços do período clássico à inércia do desenvolvimento teórico do
Estado no período do medievo, chega-se em Maquiavel, que foi filósofo
político, estadista, diplomata, historiador, dramaturgo, exilado e escritor nascido
na República Florentina em meados do século XV e falecido no século XVI.
Seus escritos podem ser divididos em dois eixos - Ação Política, em que trata
principalmente no livro O Príncipe; e Teoria Política, no livro Comentários sobre
a primeira década de Tito Lívio, sendo indissociavelmente complementares e
dependentes.

Palavras-chave: Estado. Maquiavel. Filosofia. Poder. Teoria.

1 INTRODUÇÃO

Com o avançar da história e a crescente complexidade da vida em


sociedade o Estado tomou diversas formas, cada uma de acordo com os
aspectos de sua época; não sendo apenas o homem produto de seu tempo,
mas o próprio Estado também. O Estado em Maquiavel respondeu as
necessidades e os aspectos históricos de sua época e região, se configurando
de maneira que representou um rompimento com a antiga ideia de Estado e
abriu caminho para uma nova fase do seu desenvolvimento. É importante
1
Caleb Bentes M. Dias é graduando em Ciência Política no Centro Universitário Uninter e
estudante de Direito na Unoesc.
2
Carlos Alberto Simioni é Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR; Mestre em
Sociologia pela UFPR; e Graduado em Ciências Sociais pela UFPR.
ressaltar que estes fatos se deram durante o século 16, no período
denominado Renascentista, um movimento artístico, cultural, econômico e
político inspirado nos valores da Antiguidade greco-romana.
A mudança na forma do Estado é notada no decorrer da história, seja por
inconformidade das novas gerações ou pelos novos desafios políticos. Ora
mais autoritário, ora menos. Maquiavel se propõe a resolver o problema dos
príncipes de Florença e a falta de êxito nos seus governos. Político e teórico
experiente Nicolau desenvolveu alguns escritos sobre a política de sua época e
passada, nelas podem-se extrair características principais dos Estados que
alcançaram a glória.

2 SÍNTESE DO ESTADO DO PERÍODO CLÁSSICO AO PRÉ-MODERNO

O Estado como instituição reguladora da vida em sociedade se deu com


o avançar da história, de maneira gradual e constante, o debate sobre a
origem, natureza e conceito dessa estrutura social é bastante extenso
(Almeida, 2015, p.44). A título didático para a construção teórica desta
pesquisa será tomado como ponto de partida o período da Antiguidade
Clássica, onde alguns autores afirmam ter sido quando nasceu o Estado,
principalmente em Aristóteles com a promoção da vida humana no espaço
público que é a cidade (Almeida, 2015, p.44). É importante destacar que antes
de Aristóteles, a construção da política e da ideia de Estado já estava
fortemente presente na sociedade grega como pode ser observado na obra de
Heródoto - História - o debate acerca da sua melhor configuração; escrito anos
antes da sistematização teórica feita por Platão e Aristóteles (Bobbio, 2017,
p.17).
Platão e Aristóteles sistematizaram teoricamente as possíveis formas de
se estruturar o Estado, classificando de maneira descritiva as melhores e
piores, ou, ruins e menos ruins formas de governo - como em Platão.
Aristóteles aprofunda ainda mais o desenvolvimento teórico com a tentativa de
elaborar formas de pensar a cidade - que era a extensão do Estado à época -
de modo a alcançar a plenitude da realização humana. Conforme Almeida
(2015, p.60) citando Châtelet (2000, p.14):
Quando, no início de A POLÍTICA (Livro I, 2; 1252 A 24-1253 A
37), Aristóteles quer definir CIDADE, ele opõe as duas outras
formas de agrupamento animal: a família, que reúne os
indivíduos do mesmo sangue, e a aldeia, que agrupa os
vizinhos em função do mesmo interesse. Nesses dois casos, o
objetivo é a sobrevivência. A cidade, por seu turno, tem como
fim o EU ZEÍN, o que significa: VIVER COMO CONVÉM QUE
UM HOMEM VIVA.

A teoria política clássica pensa o Estado a partir de uma concepção de


bem que norteia a vida dos indivíduos, buscando a sua realização plena que é
identificada como um bem supremo, logo, possuindo uma objetividade. Essa
objetividade esteve presente em todos os momentos da história do Estado,
variando de acordo com diversos aspectos como o contexto histórico, político,
cultural, econômico, militar, social e da perspectiva do grupo detentor do poder.
Com o fim do período clássico - da antiguidade - marcado pela queda do
Império Romano do Ocidente e o início do período do medievo - da idade
média - marcado pela ascensão e domínio da Igreja Católica como principal
instituição reguladora da vida em sociedade mudou-se drasticamente a forma
de pensar o Estado e do agir do homem, portanto, mudando-se a sua
objetividade. Devido ao fato de o Estado ainda não ser plenamente concebido
e teoricamente abstrato submeteu-se com maior facilidade ao emparelhamento
de uma estrutura organizada e robusta que era a Igreja Católica, passando a
atender aos seus interesses.
Durante a idade média alguns autores se propuseram a pensar o
Estado, dentre eles Santo Agostinho que apresenta uma visão diferente do
período clássico, partindo da dicotomia entre o divino e o humano, entre a
Cidade de Deus e a Cidade dos Homens e apresentando o Estado como o
meio que se deve aspirar a Cidade de Deus em meio a natureza humana.
O período da idade média que durou por cerca de 1.000 anos – do
século V ao século XV – teve seu esgotamento com as permanentes crises
sociais, políticas e comerciais. O emparelhamento do Estado à Igreja Católica
resultou em uma composição Monarquista Papal, que pode ser ilustrada de
maneira simplória e unicamente a título didático como a ONU - Organização
das Nações Unidas – com o diferencial de a Igreja Católica à época ser
absoluta e soberana sobre todas as outras cidades-Estados ao seu alcance.

2 O ESTADO E O RENASCENTISMO

Toda mudança sistemática de formas e sistemas de governo respondem


não somente a vontade de um grupo que propõe uma visão diferente, mas
também a problemas intrínsecos e permanentes em um dado período do
cotidiano de determinada sociedade.
O movimento Renascentista surge, resumidamente, pela insatisfação
com o domínio absoluto da Igreja Católica sobre todas as áreas da vida o que
resultou em crises sociais recorrentes, pouca liberdade individual, baixíssima
qualidade de vida e quase que obtuso desenvolvimento social – aspectos que
não eram mensurados estatisticamente no período.
Regado por movimentos paralelos e surgido no âmago da Idade Média,
o Renascentismo aflorou uma onda intelectual, cultural, política e comercial na
Europa, a partir da Itália, que propunha a sobreposição do irracionalismo
religioso propagado pela Igreja Católica por um racionalismo humano,
resultando, consequentemente em novas formas de pensar o Estado.

2.1 Renascentismo e Maquiavel

Maquiavel via na hegemonia da Igreja Católica o principal motivo da


fragmentação italiana, segundo Bhattacharya (1991, p. 418 – 419, tradução
nossa)¹ “ele via a Igreja como uma força reacionária e retrograda, a mesma
que impedia o surgimento de um Estado Italiano harmonioso, mantendo a Itália
dividida e fraca, assim o seu poder e hegemonia não seria erodido.”

He looked upon the Church as a reactionary and retrograde


force, the one that prevented the emergency of a United Italian
State and kept Italy divided and weak so that it’s own power
and hegemony may not be eroded.
Insatisfeito com esse modelo de submissão política encabeçou o
desenvolvimento teórico de uma nova forma de pensar o Estado e as relações
políticas onde se apoiava na análise de fatos reais. Ele via no modo medieval
de pensar o Estado fortes aspectos idealistas, afirmando, como contraponto, os
fundamentos da sua ciência a partir da ideia de que é melhor que se busque a
verdade efetiva das coisas, portanto, que se busque entender as coisas como
elas são. Nas palavras de Raquel Kritsch (2001, p. 05) “[...] recomenda
Maquiavel, é mais conveniente procurar a veritá effetuale delle cose”.
Observa-se neste ponto um distanciamento do pensamento político
medieval e uma busca pela forma racional de pensar o Estado. Maquiavel se
destaca como teórico político por ter sido um dos precursores da Ciência
Política tendo adotado técnicas de pesquisa e forma de análise empregadas
pela ciência política contemporânea (Quadros, 2016, p. 56).

3 O ESTADO EM MAQUIAVEL

Devido ao declínio da Igreja Católica como principal Instituição


reguladora da vida política e social os países da Europa buscavam formas de
se organizar e superar as dificuldades deixadas pelo regime de submissão à
Igreja Católica que vinha aos poucos sendo questionado e abandonado. O
desequilíbrio de poder gerou uma busca por autonomia e soberania que levou
à disputa territorial e tentativa de consolidação hegemônica de diversos países
da Europa.
A Itália se encontrava micro fragmentada e não era um país concebido
e uno plenamente, seu território era dividido em diversas províncias que se
denominavam Repúblicas - sendo a República Florentina a terra natal de
Nicolau Maquiavel. O território italiano se tornou palco das principais disputas
do século XVI sendo disputado por estados medievais externos e internos à
Itália.
Neste cenário que se desenvolveu o pensamento de Maquiavel.
Nacionalista, crítico do regime vigente, republicano e a favor da unificação do
território Italiano.
Norberto Bobbio começa o capítulo VI do livro A Teoria das Formas de
Governo comentando brevemente sobre as obras de Maquiavel, e cabe aqui a
transcrição integral do trecho inicial:
Com Maquiavel têm início muitas coisas importantes na história
do pensamento político, inclusive uma nova classificação das
formas de governo. Das formas de governo Maquiavel trata
tanto em O Príncipe quanto nos Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio. [...] A análise acusa a diferença entre
elas, de política militante a primeira, de teoria política, mais
destacada dos acontecimentos do tempo, a segunda. (Bobbio,
2017, p. 71)

Como o objetivo do presente artigo não é se ater as formas de governo,


mas sim às características da estrutura do Estado em Maquiavel, não será
dado enfoque na teoria das formas de governo, mas nos eixos teóricos de seus
escritos. Pode-se dividir os escritos de Maquiavel em dois principais eixos -
Ação Política e Teoria Política.
No eixo da ação política Maquiavel distancia os estudos políticos da
matriz do direito público, fugindo do ponto de vista institucional e se voltando
para a perspectiva comportamental (Quadros, 2016, p. 57). A principal obra em
que trata do comportamento necessário ao governante que queira alcançar o
êxito da ação política é O Príncipe, que aborda temas complementares entre si.
Classificação dos Estados, formas de conquista, papel dos militares e
manutenção do poder.
Quanto a classificação dos Estados, segundo Maquiavel (2008, p. 23),
“todos os Estados, todos os governos que tiveram ou têm domínio sobre os
homens, foram e são repúblicas e principados”. O autor desenvolve somente
as ramificações dos principados, tendo em vista que a república já houvera
sido tratada no escrito do eixo da Teoria Política. Estes principados podem ser
conquistados, novos ou mistos. Nota-se na abordagem maquiavélica
divergências classificatórias em relação a abordagem Aristotélica-polibiana,
conforme Norberto Bobbio (2017, p.72):
Pelas linhas citadas, vê-se logo que Maquiavel substitui a
tripartição clássica, aristotélico-polibiana, pela bipartição. As
formas de governo passaram de três a duas: principados e
repúblicas. O principado corresponde ao reino, a república
compreende tanto a aristocracia quanto a democracia. A
diferença continua a ser quantitativa (e não só quantitativa),
mas é simplificada: os estados são governados por um ou por
vários.

Quanto as formas de conquista podem ser quatro, conforme Raquel


Kritsch (2001, p. 02), “I) Pela Virtú; 2) pela Fortuna; 3) pela violência celerada
4) com o consentimento dos cidadãos” - aqui entende-se Virtú como
habilidades do governante e Fortuna como sorte. Sobre os principados novos
Maquiavel (2008, p.60) destaca que, “é preciso considerar que não há nada
mais difícil de dirigir, mais dúbio de sucesso e mais perigoso de manejar que a
introdução de novas ordens”.
Quanto ao papel dos militares Doacir Gonçalves de Quadros (2016,
p.61) resume da seguinte maneira, transcrito integralmente:
De acordo com Maquiavel (1998, p.87), podemos compreender
que, para governar, o príncipe precisa lançar mão de boas leis:
“um príncipe deve bem alicerçar o seu poderio; de outra
maneira, arruinar-se-á sem remédio. Os principais alicerces de
todos os Estados, tanto os novos como os antigos e os mistos,
são as boas leis e as boas armas”.
Entretanto, as leis não são suficientes para a eficiência das
decisões do governante. Maquiavel (1998, p. III) afirma:
“Deveis, pois, saber que há duas maneiras de combater: uma,
com a lei, outra, com a força. A primeira é própria do homem; a
segunda, dos animais. Como, porém, a primeira muitas vezes
não seja suficiente, convém recorrer à segunda.

Quanto a manutenção do poder Maquiavel expõe a diferença prática


entre virtú e fortuna. É necessário que o bom governante, mestre da arte de
governar e detentor das rédeas da ação política desenvolva suas virtudes e
não dependa da sorte, mas que saiba usá-la a seu favor, ou, se prepare para
enfrentá-la quando esta mudar de sentido. Maquiavel (2008, p. 208):
Acredito que a sorte governe metade das nossas ações,
deixando que a outra metade, ou quase, seja por nós
governada. Eu a comparo a um rio torrencial que, enraivecido,
inunda as planícies, destrói árvores e edifícios e desloca terras
de um lado para o outro. [...] Embora esse fato não possa ser
evitado, isso não impede que, em épocas de calmaria, os
homens providenciem anteparos e diques para que, na época
da cheia, as águas do rio possam escoar por um canal ou
quebrar o ímpeto para que o rio não seja tão descontrolado ou
tão avassalador. Assim também ocorre com a sorte, que
demonstra o seu poder onde não há obstáculos para refreá-la.

No eixo da teoria política Maquiavel analisa a república como forma de


governo e fundamenta uma base teórica em prol da inserção política e
liberdade do povo. Tendo em vista que as cidades eram compostas por
estruturas sociais claramente distintas e distantes o autor destaca que por
vezes encontrava-se o impasse entre os anseios dos nobres e do povo, do
primeiro em oprimir e do segundo em não ser oprimido; isso decorreria da
natureza imunda, egoísta e falha do homem e que desta mesma natureza
advinha um dos motivos do declínio e fracasso dos grandes impérios e países,
portanto, se fazia necessário superar este obstáculo. Em resposta a isso
Maquiavel observou na experiência histórica o que viria a servir de base teórica
para futuros pensadores como Alexis de Tocqueville. Segundo Maquiavel
(1994, p 25) “se o príncipe, o aristocrata e o povo governam em conjunto o
Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente”.
A liberdade e participação política do povo representava para Maquiavel
tanto uma necessidade para a estabilização e equilíbrio do poder, propondo a
troca do pilar que fundamentava as ações do Estado - a Igreja Católica - por
um novo - o povo; quanto atendia a necessidade de o Estado se desenvolver,
percebida na experiência histórica da antiguidade greco-romana como um vetor
do desenvolvimento como pôde ser observado na República Romana.
Maquiavel argumenta sobre a importância de instituições que dialoguem
e canalizem os anseios e protestos do povo para a preservação harmônica do
Estado. Na tentativa de lidar com as calúnias que poderiam se apresentar
como nocivas ao Estado assim como apresentou riscos à República Romana, é
posto como exemplo o caso de Mânlio Capitolino que movido por inveja
espalhou calúnias sobre seu rival, Camilo Furius, e tão logo fora reprimido pelo
Estado romano por meio de método institucionalizado. No capítulo oitavo da
primeira parte do livro Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio,
Maquiavel (1994, p.45) afirma que “este episódio mostra claramente que a
calúnia deve ser detestada, nas cidades que vivem sobre o império da
liberdade – e como é importante criar instituições capazes de reprimi-la. Para
isto, o melhor meio é abrir caminho às denúncias”.
A liberdade e participação política do povo pode ser entendida, então,
como ponto ideal a ser alcançado pelo Estado, mas, para Maquiavel, por não
se tratar do objetivo central do Estado, existem cenários em que esse ponto
ideal deve ser rejeitado. Maquiavel (1994, p. 77):
Transparece a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de
manter o governo republicano numa cidade corrompida, ou de
ali estabelecê-lo. De qualquer maneira, mais vale a monarquia
do que o estado popular para assegurar que os indivíduos cuja
insolência as leis não podem reprimir sejam subjugados por
uma autoridade real.

No Estado de Maquiavel o eixo da ação política é indissociavelmente


complementar ao eixo da teoria política, pois não deve haver ação política
racional que não deva ser fundamentada e em desacordo com a teoria política.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como pode ser observado na construção teórica do artigo, o


surgimento e evolução do Estado é em parte abstrato, complexo e em muito
regado pela filosofia política. Em toda sua evolução até o período moderno
destaca-se o fato da grande quebra de paradigma teórico e prático para com o
período medieval. Em Maquiavel pôde-se atentar a densidade e extensão dos
escritos em prol de um Estado maquiavélico, não no sentido popular da
palavra, mas no sentido fatídico.
Das tantas características do Estado que se apresentaram como
variáveis - como as formas do Estado - chega-se à conclusão de que a
característica central dos Estados bem-sucedidos da história foi e é a
capacidade de fragmentação e centralização do poder do Estado, que sob o
comando de bons governantes souberam responder as circunstâncias do
período histórico com a devida autonomia concedida ou centralidade
necessária, como foi o caso da Grécia Antiga, de Roma, do Império Mongol, e
no contexto contemporâneo, a antiga União Soviética, hoje Rússia e China.
REFERÊNCIAS

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