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Filosofia política na idade média

Influências e impactos das teorias de Santo Agostinho e Santo Tomás de


Aquino

Os vieses da filosofia política abrangem diversas eras do mundo humano.


Desde seu prelúdio inicial na Grécia antiga até os ideais duvidosos do mundo
atual, podemos observar o desenvolvimento da política juntamente com cada
período histórico. Esse desenvolvimento acompanha a evolução das
organizações sociais que culminam, por fim, no nosso Estado Moderno.

Cada parcela da caminhada humana rumo ao distanciamento do caos social


coincide com eras de produção filosófica e intelectuais memoráveis: cada
conjunto de séculos trouxe o mais requintado pensamento, a mais rica
observação social, a mais justa, a mais correta. Isto, óbvio, para aqueles (as)
incumbidos de liderar no degrau mais alto do poder.

Apesar de advindos de séculos de distância, filósofos da era clássica como


Sócrates, Platão e Aristóteles têm sido referência e base para toda uma parcela
relativamente mais “moderna” da filosofia. Suas ideias sobre política,
organização social, visão de mundo e, de certo modo, religião, correm pelas
entrelinhas de obras dos gigantes pensadores da nossa sociedade.

Essa linha contínua de aperfeiçoamento de ideias, reciclando-as para que se


encaixem no formato da coletividade (ou das características de tal coletivo),
pode ser observada até mesmo nos sórdidos anos que compreendem a idade
média. Para muitos considerado o vácuo do desenvolvimento, o período entre
os séculos V e XV que compreende esta fase foi sim progenitor de diversos
pensadores filosóficos.

A idade média foi o intervalo de séculos que contribuiu para a formação do


Estado moderno e da burguesia liberalista: com a ascensão e queda do sistema
feudal, assim como da abrangência em certo ponto totalitária da igreja católica,
as atividades e acontecimentos que tornaram possível o desmantelamento deste
antigo sistema são processos repletos de diversas etapas, atos e realizações; não
pode ser excluída aqui a produção intelectual. Ela foi de extrema importância
para a solidificação e, mais tarde, justificar a manutenção do poder e influência
exercidos pela igreja católica apostólica romana.

O conjunto de frutos filosóficos da era medieval pode ser dividido em dois


grupos, denominados de “patrística” e “escolástica”, que compreendem
respectivamente a primeira e última fase da idade média europeia. Ambas
“escolas” comportam dois que são os principais filósofos políticos de seu
tempo: Santo Agostinho e Santo Tomás De Aquino. Seus nomes e
personalidades religiosas são conhecidos até hoje, e seus ideais impactaram em
grande escala a época em que viveram.

Representante notável da patrística, o católico Santo Agostinho foi um célebre


pensador dos primeiros séculos da idade média. Suas obras, recheadas de
referências a filosofia de Platão, assim como de outros autores posteriores,
serviram de base para justificar diversos pontos da igreja católica, assim como
a protestante. Tem uma vasta produção, com cerca de 200 cartas, 113 tratados
e mais de 500 sermões.
Porém, Santo Agostinho nem sempre foi católico. Narra em seu livro
“Confissões” a trajetória de seus dias juvenis, pincelando sua infância,
adolescência, juventude e fase adulta. Retratou o desenvolvimento de sua
formação intelectual e sua conversão, expondo seu autocontrole perante um
mundo tão pecaminoso e devasso.

Já em sua obra mais importante, conhecida como “A cidade de Deus”,


comporta a reflexão mais significativa de seu autor: a divisão maniqueísta do
mundo entre a “cidade de Deus” e a “cidade dos homens”. Essas duas
classificações ligam-se com a história humana terrena. O primeiro termo vem a
exemplificar a pureza e santidade, sendo supostamente fundada por
descendentes de Abel; ali, comportam-se todos aqueles que vivem próximos ao
reino dos céus, em espírito. A “cidade dos homens” é o indivíduo pecador e
impuro, que se desvirtua dos ideais da igreja; essa “cidade” supostamente seria
fundada por Caim e seus descendentes.

Não são cidades físicas: a alegoria de Santo Agostinho não detalhava locais
mitológicos, mas fazia uma alegoria sucinta a organização de poder e classe
durante a idade das trevas. O lado divino e santo seria representado, na nossa
realidade terrena, pela santa Igreja católica. Ela é responsável por garantir os
interesses celestiais, reinando soberana sobre todos os aspectos impuros da
terra dos homens comuns; aqui está incluído os aspectos do Estado, ou a
organização que tende a formá-lo. Para os homens pecaminosos, pertencente
ao Estado e seus conjuntos, resta assegurar as coisas materiais humanas.
Ambas coexistem no mundo social da época, mas Agostinho encontra aqui
uma resposta para justificar os interesses da religião por sobre os interesses
políticos, por assim dizer. Seu trabalho consolidou o poder católico, sua
predominância e influência sobre esmagadora parte da época medieval.

Porém, nos últimos séculos deste período, a crise do sistema feudal trouxe a
necessidade de legitimar a soberania católica em outros meios. Para garantir
seu poder numa sociedade prestes a se desmantelar, outra “escola” filosófica
trouxe para a idade média seus ideais de organização política — a escolástica.

Nasceu de um meio conturbado: a crise feudal estava prestes a eclodir, a


burguesia e sua influência ascendiam cada vez mais por sobre outros
componentes sociais, a igreja, lutando para manter-se em meio a suas reformas
internas, necessitava desesperadamente de uma nova justificativa política. É
dela, das cruzadas e de outras ações comandadas pelas autoridades católicas,
que surge o segundo ápice de produção intelectual desta época.

A filosofia política escolástica teve por finalidade o intuito de reafirmar os


dogmas cristãos dentre a ascensão monárquica e burguesa de algumas
localidades europeias. Estas duas classes ameaçaram sua soberania, uma vez
tão geral e irrestrita, forçando uma nova visão que colocava em evidência o
pensamento filosófico baseado na fé.

Seu maior representante foi Santo Tomás de Aquino. Utilizou, assim como seu
antecessor, um representante da antiguidade clássica para fundamentar suas
teorias. Baseando-se em Aristóteles, ele lançou um novo olhar sobre o
racionalismo em seu tempo. Ao contrário de Santo Agostinho, que defendia a
fé como base e preceito para qualquer pensamento e atividade, Santo Tomás de
Aquino fundiu a legitimidade da filosofia com a teologia dogmática —
exprimindo este insight intelectual em uma memorável obra, conhecida por
“Suma Teológica” (Summa Theologica).

Não obstante, suas teorias também abrangeram um estudo da formação do


Estado pelos homens, não mais acorrentados ao pecado, mas como seres
provenientes da vontade divina, tal qual seus pensamentos. Aqui, Aquino não
deixa o cristianismo em segundo plano: as leis divinas continuam soberanas e
originárias, sendo base para todas as ações; porém o indivíduo tem, no seu
racionalismo, certa autonomia para realizar seus feitos pessoais em prol da
estabilidade social (lê-se aqui criação e formatação de um Estado, ou qualquer
outro sistema de divisões que exija a movimentação social desconectada do
peso esmagador da igreja católica).

Aparentando uma baixa produção intelectual, é admirável reconhecer o


potencial racional da filosofia durante o período da idade média. Mesmo
extremamente influenciada pelas visões católicas, as produções políticas
encontraram um meio de emergir. Observando, agora, de um período muito
distante dos autores citados, suas obras não foram apenas meios e justificativas
para a abrangência do poder eclesiástico — apesar de o serem, durante sua
época — mas exprimiram a realidade social, política e cultural de um conjunto
conturbado de séculos.

Os raciocínios observados nas obras citadas refletem não só a capacidade


humana de adaptação e evolução como abrilhanta ainda mais os grandes
pensadores do passado. Seus princípios são constantemente ciclados num
organismo político que deita sobre as eras, estica-se sobre as diferentes
civilizações e dobra-se dentre os diferentes ideais. E tal não é restrito apenas
aos titãs clássicos: todos aqueles que contribuíram para esculpir a forma do
pensamento moderno (o ponto não é um “modelo único”, mas justamente sua
miscelânea), representando com convicção a realidade das quais presenciaram,
farão parte deste sistema orgânico, enredando-se nos novos pensamentos, que
no fim concebem um conjunto prismático de raciocínios que compreendem
toda uma humanidade.

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