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Apontamentos sobre os inícios da Reforma Protestante na Alemanha 1

Lauri Emilio Wirth 2


No que segue pretendo fornecer alguns subsídios sobre o contexto histórico que
possibilitou a eclosão do movimento da Reforma Protestante, na Alemanha do século
XVI. Delimitado o contexto, abordarei alguns temas teológicos da Reforma Protestante,
com ênfase nas controvérsias teológicas e suas implicações para a teologia e a sociedade.
Este procedimento, é bom frisar, aponta para uma opção epistemológica. Os textos e as
demais linguagens que propagaram o ideal reformador (poesias, pinturas, músicas etc)
precisam ser entendidos primeiramente a partir do contexto histórico que lhes era próprio,
relacionados aos problemas que tentaram solucionar a seu tempo, para, a partir daí, extrair
possíveis legados para o tempo que a nos cabe viver e para fundamentar as opções que
somos instigados a tomar.
Neste sentido, é necessário lembrar que estamos tratando de um período histórico
marcado por profundas transformações. Antes do século XVI, o mundo era constituído
por diferentes centros culturais, por civilizações e sistemas econômicos pouco conectados
entre si. Assim, havia alguns contatos entre a Europa, a Ásia e a África. Contudo, eram
relações pouco significativas para a vida das pessoas em cada um destes continentes. O
continente posteriormente chamado de América Latina não mantinha contato algum com
os outros continentes. Aqui conviviam diferentes culturas e visões de mundo, altamente
desenvolvidas para os padrões da época, embora profundamente distintas daquelas da
Europa que paulatinamente passou a ocupá-las e colonizá-las.
Por volta do século XVI, impõe-se um fenômeno até então único na história. Um único
sistema, potencialmente hegemônico, passa a impor-se sobre toda a humanidade. Neste
sistema, as relações econômicas são fundamentais, a cultura europeia, branca e cristã
lentamente passa a ser o único paradigma de civilização. Aqui é necessário ao menos
apontar para uma questão ainda pouco discutida nos debates sobre o contexto da Reforma
Protestante. Trata-se da contemporaneidade entre dois processos históricos que incidem
decisivamente sobre os rumos do que depois seria designado de mundo moderno: a
Reforma Protestante e o assim chamado descobrimento da América. Ou seja, quando
Lutero, em 31 de outubro de 1517, passou a divulgar suas 95 teses, que se transformariam
rapidamente no estopim do movimento reformador, espanhóis e portugueses estavam se
apropriando do continente depois chamado de América Latina, como a primeira colônia
europeia no mundo moderno, uma tendência posteriormente seguida por quase todos os
Estados nacionais europeus em processo de consolidação como países soberanos. Esta
relação entre Reforma – o que também inclui a Reforma Católica referenciada no Concílio
de Trento – e colonialismo é fundamental para se entender, não só o perfil do cristianismo
que emerge deste processo e que se espalha por todos os continentes, organicamente
vinculado à Europa em expansão, mas também para se entender as razões de fundo que
transformam uma Europa periférica no centro do moderno sistema mundial. A Reforma
Protestante é um dos movimentos que está na origem deste processo que posteriormente

1
Publicado em: CAVALCANTE, Ronaldo; BONOME, José Roberto. 500 anos de Reforma Protestante:
história, cultura e sociedade. São Paulo, Edições Terceira Via, 2017, p. 15-34.
2
Doutor em Teologia, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo - UMESP.
convencionou-se chamar de modernidade, sendo uma de suas causas, mas sofrendo
também suas consequências. A compreensão da Reforma Protestante requer, portanto, o
diálogo com este contexto marcado por rupturas, adaptações e continuidades.
Uma última observação introdutória refere-se ao aspecto especificamente religioso deste
processo. No século XVI, a Europa ainda é um continente referenciado na religião. Todo
o cosmos ainda era visto como uma linguagem falada por Deus e a igreja ainda tem a
pretensão de ser, como o fora em toda a assim chamada Idade Média, a voz
incondicionada e não mediada de Deus no mundo. Nesta conjuntura, a teologia não se
restringia à esfera propriamente religiosa, no sentido de um discurso restrito a instituições
ou movimentos religiosos. Neste contexto, a religião não pode ser entendida como um
aspecto da cultura, como ela passou a ser compreendida no mundo moderno, pois ela
ainda era aceita como uma referência estruturadora de toda a sociedade, uma visão de
mundo ainda hegemônica, embora em profunda crise. Só assim se pode entender o
impacto da Reforma Protestante, não restrito ao campo religioso, com profundas
consequências na economia, na política, na cultura etc. Ou seja, o questionamento da
religião implicava os próprios fundamentos da sociedade.
Sintomas de uma crise de longa duração
A sociedade medieval da qual emerge a Reforma Protestante pode ser caracterizada como
uma cristandade. As origens históricas da cristandade remontam ao século IV. Em 313 o
imperador Constantino concedia liberdade de culto a todas as religiões no império
romano, pelo Edito de Milão, o que favoreceu especialmente ao cristianismo. A partir daí
os grupos dominantes do cristianismo, suas autoridades superiores, paulatinamente
passaram a integrar a organização do Estado, conferindo-lhe um caráter religioso cristão.
Desenvolve-se, assim, uma noção de complementariedade entre os poderes político e
religioso como forma básica de organização da vida, de compreensão do mundo e do ser
humano. Portanto, a premissa fundamental da cristandade é justamente esta integração
entre Igreja e Estado.
Esta constelação de poderes teve muitos deslocamentos e rearranjos ao longo dos séculos
e se consolidou numa estrutura ancorada em dois pilares: o papa e o imperador, que eram
vistos como os dois braços através dos quais Deus governava o mundo. Um dos sintomas
da crise de longa duração é perceptível justamente quando esta relação entre o poder civil
e o poder religioso entra em crise. Dito de forma um tanto simplória, a crise se manifestou
numa série de conflitos de poder entre os papas e os imperadores, para saber quem estava
subordinado ao quem. A bula Unam Sanctam, do papa Bonifácio VIII, publicada em
novembro de 1302, nos dá uma ideia da dimensão deste conflito:
“Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é
isso o que ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade
testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o
esposo no Cântico: ‘Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe
que a gerou’ (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus
é a cabeça de Cristo. Nela existe ‘um só Senhor, uma só fé e um só batismo’ (Ef 4,5). De
fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da
única Igreja; encerrada com ‘um côvado’ (Gn 6,16), teve um único piloto e um único
chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído” 3.

Mais que religioso, o conflito que se evidencia é político. As pretensões de poder absoluto
da hierarquia da igreja se chocam com o poder real das monarquias locais em franco
processo de expansão, o que posteriormente viria a se materializar na consolidação dos
Estados Nacionais, ou seja, da Europa como uma comunidade de países soberanos. Mas
a realidade concreta não impede que os papas afirmem suas pretensões de poder no plano
retórico, como se pode ver nesta passagem da citada bula:

“As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as
duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última
deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O
espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e
cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar
subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade
espiritual” 4.

De 1309 a 1377, Avignon, na França, tornou-se a sede da Cúria Romana, o que mostra
na prática o poder dos reis da França. O que se seguiu, entre 1309 e 1317, ficou conhecido
como a grande crise da cristandade, quando a igreja contou com o governo de dois papas,
um em Roma e outro em Avignon, sendo que um excomungara os seguidores do outro e
vice-versa. Se pensarmos que a sociedade da época, toda ela referenciada na religião,
imagina a pregação da igreja como a voz direta de Deus no mundo, não será difícil intuir
as dimensões da crise que se instalara.

Outros eventos históricos de longa duração apontam para a intensidade da crise em que
se encontra a cristandade medieval. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre a França
e a Inglaterra, prenuncia o surgimento dos nacionalismos, que pressupõe o pertencimento
de diferentes grupos sociais a uma mesma nação. Os estados nacionais têm como base a
aliança entre as autoridades regionais e a burguesia emergente, uma conjugação de poder
que lentamente irá se sobrepor ao poder centralizado dos imperadores e dos papas. São
arranjos que respondem às necessidades de novos atores sociais que têm no mercado
emergente o mediador de suas relações. Surgem assim uma infinidade de regras e acordos
para proteger o comércio, combater o banditismo e a pirataria, regulamentar a moeda,
interferir nos conflitos entre pequenos vizinhos etc.
Por outro lado, os diferentes ciclos da peste negra, que em determinadas circunstância
chegavam a dizimar a metade da população das aldeias em que eclodiam, contribuíam
decisivamente para o espírito de uma época que Jean Delumeau caracterizou como a
“desvalorização espantosa da vida material e das preocupações cotidianas”, para dar lugar
ao “horror” do pecado e à “obsessão” da danação 5. Em síntese pode-se dizer que o
transcorrer da vida em sociedade suscitava questões e questionamentos aos quais os
poderes constituídos, sejam eles civis ou religiosos, não eram mais capazes de responder.

3
Papa Bonifácio VIII - "Bula Unam Sanctam" . Disponível em (http://www.catholic-
forum.com/saints/pope0193a.htm.
4
Papa Bonifácio VIII - "Bula Unam Sanctam" . Disponível em (http://www.catholic-
forum.com/saints/pope0193a.htm Acesso em 16/09/11, às 02h53min. O grifo é meu.
5
DELUMEAU, Jean. O Pecado e o medo: a culpabilização do ocidente (séclos 13-18). Vl. 1, Bauru:
EDUSC, 2003, p. 12.
A incapacidade dos poderes instituídos em responder de forma crível aos desafios que a
realidade em profunda transformação suscitava abria espaços para que diferentes setores
da sociedade chamassem a si esta responsabilidade. É assim que podemos entender a
emergência de figuras como John Wiclif (1328 – 1383), um professor de teologia e
filosofia na universidade de Oxford, e John Hus (1369? -1415), professor de teologia na
universidade de Praga. Ambos entraram para a história como precursores da Reforma
Protestante. Isto evidencia a repercussão das reivindicações que ambos já então
formulavam: a tradução da Bíblia para a língua do povo, a autoridade da Bíblia como
única norma de fé, o questionamento da autoridade de papas e concílios etc.

Pouco conhecidos em nosso contexto são indivíduos e movimentos populares que, a


exemplo dos porta-vozes do mundo acadêmico, também denunciavam problemas e
faziam reivindicações que posteriormente se tornariam centrais na Reforma Protestante.
É o caso dos movimentos de autoflagelo, também conhecidos como flagelantes. Trata-se
um movimento que mobilizou massas populares em amplos espaços geográficos do
continente europeu e irrompeu simultaneamente em diferentes lugares. Seu surgimento
coincide com a introdução de técnicas “modernas” na produção agrícola e com o
crescente uso do dinheiro como meio de troca em substituição às permutas entre espécies.
As mudanças nas técnicas de produção e nas relações de troca favoreceram a
estratificação social, aumentando o número de despossuídos no campo, bem como de
trabalhadores diaristas. Os conflitos sociais decorrentes da estratificação social eram
agravados pelas já mencionadas epidemias de peste negra e por diferentes guerras, sendo
a principal a já mencionada Guerra dos Cem Anos. De forma geral os flagelantes podem
ser considerados um movimento que unia os pobres das cidades e dos povoados que
acabaram voltando-se contra os senhores feudais.

No que se refere especificamente ao aspecto religioso, a convergência com a Reforma


Protestante fica evidente. Os flagelantes acusavam a igreja de ser negligente com seus
deveres, por isto ameaçavam em tornar supérflua a hierarquia eclesiástica. O movimento
queria pregadores leigos, cantos que narrassem os sofrimentos de Jesus na língua materna,
além de sustentar que cada um pode adquirir a graça sem a mediação da igreja, sem
confessar-se a um sacerdote e sem a indulgência. Aboliam a instituição divina do
sacerdócio, a disciplina sacramental e a vida social da igreja. Também eram acusados de
abandonar em massa as propriedades e as oficinas e de serem hostis frente ao comércio e
a usura. Assim, o movimento pode ser considerado uma rebelião contra a ordem feudal,
cada vez mais opressiva em consequência da nova economia progressivamente fundada
no dinheiro, que também viria a ser um tema central no contexto da Reforma Protestante 6.

Outro indício de como temas que se tornariam centrais na Reforma Protestante, foram
gestados no cotidiano popular, temos nas pregações de um camponês alemão chamado
Hans Böhm. Seus discursos foram pronunciados no início de 1476, na região do
Taubertal, no sul da Alemanha, na localidade de Niklashausen. Segundo relatos da época,
suas pregações atraiam “dezenas de milhares” de operários em manufaturas e
trabalhadores rurais. Nas peregrinações ao Taubertal, a maioria dos peregrinos não tinha
com que se sustentar pelo caminho, mas eles recebiam apoio por onde passavam. Böhm

6
SZÉKELY, G. El movimiento de los flagelantes en el siglo XIV: su caracter e sus causas. In: LE
GOFF, Jacques (comp.). Herejias y sociedades en la Europa preindustrial, siglos XI- XVIII. 3.ed.,
México, Siglo veintiuno, 1996, p. 175-182
polemizava contra a usura, os juros praticados pelo clero, a corrupção do direito praticado
pelos príncipes, a perda do acesso a terras públicas (Allmenderecht), contra o dízimo, os
impostos, as indulgências etc. No dia 19 de julho de 1476, Hans Böhm foi queimado por
ordem do príncipe e bispo de Würzburg. Segue a tradução 7 de parte de um relatório sobre
seus discursos, anotado em 1476:
“Em primeiro lugar ele se atreve a pregar sem trégua ao povo, dizendo o que segue:
Como a Virgem Maria, Mãe de Deus, lhe teria aparecido e lhe revelado a ira de Deus
contra a humanidade e principalmente contra o clero. Por isto Deus teria querido dizimar
o vinho e os cereais através do frio, na Sexta-Feira da Paixão (Kreuztag), mas ele o teria
impedido através da oração.
Que em Taubertal haveria graça perfeita e ainda maior que em Roma ou em qualquer
outro lugar.
Que todo aquele que viesse a Taubertal alcançaria a graça perfeita e quando morresse iria
direto para o céu.
Também aquele que não conseguisse entrar na igreja, por ser ela pequena, alcançaria a
graça.
Para tal empenharia sua honra. E mesmo que uma alma se encontrasse no inferno, pela
mão a conduziria para fora.
Como o imperador seria um malvado e o papa uma nulidade.
O imperador autorizaria os príncipes, condes, cavaleiros e empregados, religiosos e
seculares, a cobrar do povo simples impostos e taxas alfandegárias. Ai de vós, seus
imbecis.
O clero detém muitas prebendas, isto não deve ser assim. Não deveriam ter mais que o
necessário de um dia para o outro. Eles serão abatidos. E o tempo está próximo em que o
padre vai querer tapar sua careca com a mão para não ser reconhecido.
Como o peixe na água e a caça no campo deveriam pertencer ao bem comum.
Que os príncipes, seculares e religiosos, também condes e cavaleiros têm muitas posses.
Se elas pertencessem às pessoas comuns, assim logo teríamos todos o suficiente. E assim
realmente deverá acontecer.
Também ocorrerá que príncipes e senhores trabalharão como diaristas.
Ao papa atribui pouca importância, assim como ao imperador. Se o papa for uma pessoa
correta e for encontrado em retidão no fim de sua vida, o mesmo se aplica ao imperador,
então irão diretamente ao céu; caso sejam encontrados em maldade, irão diretamente para
o inferno. Portanto, desconsidera o purgatório.
Antes intenciona melhorar os judeus que o clero e os eruditos ...
Os padres dizem ser eu um herege e querem me queimar. Se soubessem o que é um
herege, saberiam que hereges são eles e não eu. Caso me queimarem, ai deles! Certamente
perceberão o que fizeram, e pagarão pelo estrago que fizeram!
Em Holzkirchen alguém do povo se ajoelhou em sua frente. Ele o absolveu e então o
enviou ao padre em Niklashuasen. A mãe de Deus estaria querendo ser venerada mais em
Niklaushausen que em qualquer outro lugar.
Diz que a excomunhão nada significa e que os padres autorizam o divórcio, o que
ninguém pode fazer senão Deus. Tudo isto e muito mais escrivães conhecidos e
testemunhas ouviram e anotaram”.

7
Estas informações foram por mim traduzidas do alemão conf. edição de MOKROSCH, Reinold; WALZ,
Herbert. Kirchen-und Theologiegeschichte in Quellen. Vol. 2: Mittelalter. Neukirchen-Vluyn, 1980, p.
232-233.
A Alemanha como palco da Reforma Luterana
A Alemanha de Lutero do século XVI era uma região fértil, no sentido lato do termo:
terras fortes, recursos materiais poderosos, cidades importantes e com boas oportunidades
de trabalho. Sua carência fundamental era a falta de uma unidade moral e política.
Neste contexto, o verdadeiro poder estava na mão dos príncipes e das cidades. Quando
Lutero entrou em cena, está em curso nas diversas unidades territoriais que compunham
a Alemanha de então, um vigoroso esforço de concentração política e territorial.
Concorrendo entre si, várias regiões perseguiam estados sólidos e menos fragmentados.
Neste ambiente, não raro, príncipes eram sagrados bispos e podiam estender seu poder
para mais de um bispado. É o que ocorreu com a sagração do jovem príncipe Albrecht de
Brandenburgo, como arcebispo de Magdeburgo e de Mogúncia, uma questão política que
contribui decisivamente para a eclosão do movimento da Reforma, como veremos mais
adiante.
Um mundo paralelo e, não raro, em conflito com o poder dos príncipes se configura nas
cidades autônomas: Augsburgo, centro de comércio exterior e do capital financeiro;
Nürnberg, avançado centro tecnológico focado nas navegações mundiais, Frankfurt e suas
feiras, entre várias outras. A burguesia emergente nestas cidades se beneficiava da perda
de hegemonia das cidades do norte italiano no comércio mundial. Investimentos alemães
se espalham por toda parte, como os Welser, de Augsburgo, ativos na navegação
portuguesa, inclusive com embarcações engajadas no comércio das Índias e com
possessões na Venezuela. Os Fugger, grandes comerciantes e financistas poderosos,
pretendiam estabelecer-se no Chile etc. Ou seja, a expansão da Europa como um todo,
seu deslocamento para o centro do mundo, parece ser um aspecto decisivo que influiu nos
rumos da Reforma Protestante então em curso, o que indica para a relação entre estes
processos locais e a expansão da Europa sobre a América Latina, a África e a Ásia neste
novo sistema mundial em gestação, como apontado acima.
No plano estrito do contexto alemão, as cidades livres, politicamente independentes,
rivalizavam entre si e com os príncipes em fase de consolidação do seu poder, mas deles
dependiam para garantir as rotas comerciais. Não raro podiam tornar-se reféns “do
fidalgote de província que as despoja e escarnece do alto do seu ninho de águia
inexpugnável para milícias burguesas” 8. As cidades configuravam, assim, “civilizações
de oásis”, circundadas por “camponeses incultos e grosseiros, miseráveis às vezes,
prontos para a revolta, rosnando sob o jugo, de todo modo estrangeiros à cultura urbana
...” 9.
Está em curso, portanto, um processo propício para inquietações sociais, na medida em
que a velha mentalidade artesã da Idade Média entra em crise e abre espaço a relações de
troca típicas do capitalismo emergente, mas que ainda não são percebidas como tal:

8
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 125, (Tradução:
Dorothée de Bruchard)
9
Idem, p. 124.
“Quantos homens e mulheres, nas cidades, vivem da agiotagem, enriquecem pela
abominável exploração dos camponeses, praticam com sorrateira tenacidade as mais
novas formas de roubo e, no entanto, dominados pelas antigas ideias, sem ter ideia da
coesão que une todos os meios da exploração capitalista, são os primeiros a clamar contra
os grandes banqueiros e os grandes comerciantes, seus legítimos líderes, seus pretextos
vivos, mas que eles ainda não sabem reconhecer como tais...” 10.
Segundo Febvre, neste “amálgama confuso de cidades autônomas e dinastias mais ou
menos poderosas” era praticamente impossível pensar-se numa reforma da nação
mediante a conquista do poder político. Mas é justamente neste “mapa moral e político”
da Alemanha de então que o protesto de Lutero assume uma função catalizadora. A noção
do sacerdócio universal de todos os crentes questionava a legitimidade de velhas
hierarquias religiosamente legitimadas e colocava todos em pé de igualdade, não na vida
real, mas no plano subjetivo, ontológico, enquanto dignos diante de Deus. A defesa da
liberdade de pensar e escrever encantava intelectuais e humanistas, o que, num primeiro
momento, aproximou Lutero e Erasmo, cidadão da cristandade erudita, que pretendia
reformar a sociedade pela Filosofia de Cristo. Os camponeses rebeldes viam em Lutero
um conselheiro em suas reivindicações por mais liberdade e direitos aqui e agora.
No início de 1519, morreu o imperador Maximiliano. A disputa por seu sucessor, que já
estava em curso quando Lutero divulgou suas 95 teses, agora se radicaliza. Aliás, era
justamente esta indefinição política que impedia às autoridades de agir contra Lutero,
conferindo às causas dos protestantes um espaço de manobra fundamental. Em 28 de
junho de 1919, Carlos de Habsburgo é eleito imperador, com o título de Carlos V. Depois
de várias idas e vindas, em 1521, Lutero é chamado a se explicar diante do imperador,
mais precisamente, é intimado a renegar seus escritos. É quando teria pronunciado a
célebre frase, disponível em diferentes versões ao longo da história: “A menos que me
convençam, por testemunhos das Escrituras ou por uma evidência da razão (pois não
acredito apenas no papa e nos concílios: está provado que por vezes demais erraram e se
contradisseram), tenho um compromisso com os textos que produzi; minha consciência é
cativa das palavras de Deus. Não posso e nem quero revogar o que quer que seja, porque
agir contra a própria consciência não é seguro nem honesto. Que Deus me ajude,
Amém!” 11.
Este episódio não revela apenas um ato de extraordinária coragem de um jovem monge
rebelde – Lutero tinha então 36 anos de idade - como se costuma ressaltar nas narrativas
do senso comum. Ele revela o confronto entre dois caminhos opostos, ambos convictos
do seu caráter verdadeiro. O imperador fala e age a partir de quem se sabe investido de
poder, de quem tem a prerrogativa e a obrigação de zelar por aquilo que é considerado
verdadeiro. Ou seja, o imperador representa o pensamento, ainda hegemônico, de que a
verdade emana da autoridade. Proteger e preservar a verdade era, pois, função inerente
aos detentores do poder, ainda que o fizessem apenas no plano retórico e na defesa de
interesses específicos. Lutero, neste episódio, prenuncia um outro caminho, que se
tornaria hegemônico no mundo moderno: a convicção de que a verdade não é algo dado,
perene e acabado, mas que precisa ser constantemente construída e conquistada pelo

10
Idem, p. 132.
11
Citado segundo FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 201.
debate e pelo convencimento racional, a partir de fundamentos compartilhados e
minimamente consensuais: “A menos que me convençam, por testemunhos das Escrituras
ou por uma evidência da razão ...”. Dois paradigmas se chocam. O confronto entre o
imperador e Lutero não se limita à controvérsia entre os dois atores em cena. Ele expressa
um movimento em curso em toda a sociedade de então.
Em 03 de janeiro de 1521, é publicada a bula Decet Romanum Pontificem que decreta a
excomunhão de Lutero que agora deveria ser entregue às autoridades para ser proscrito.
Ameaçado de ser preso, Lutero abandonou Worms no dia 26 de abril, de 1521. No
caminho de volta a Wittenberg, foi sequestrado por ordem de Frederico, o sábio, de quem
era súdito, e mantido em sigilo no castelo de Wartburgo, durante aproximadamente um
ano. Em 26 de maio de 1521, Lutero foi proscrito pelo imperador Carlos V, pelo Edito de
Worms. As determinações do edito só começaram a ser aplicadas em 1524, em alguns
principados que se mantiveram fiéis a Roma. Em 1526, uma assembleia dos príncipes
alemães determinou que cada príncipe estaria livre para agir em seu território em relação
à questão religiosa, até que um Concílio, que nunca ocorreu, definisse a questão. Em
1529, uma assembleia de príncipes exigia a recatolização da Alemanha. Os príncipes fiéis
à Reforma divulgaram um protesto formal contra esta pretensão. Desde então os adeptos
da Reforma são conhecidos como protestantes. A estas alturas as fronteiras contra e a
favor da Reforma estavam delimitadas. Uma guerra entre católicos e protestantes parecia
eminente. Em 1530 o imperador volta à Alemanha. Os protestantes apresentaram um
documento com os fundamentos de sua fé ao imperador, na cidade de Augsburgo. A
Confissão de Augsburgo até hoje é tida como o principal escrito confessional dos
luteranos.
A estas alturas o processo desencadeado em 1517 já havia se generalizado. Um emissário
da Cúria Romana enviado à Alemanha para publicar a bula de excomunhão, fazia a
seguinte constatação: “Nove em dez alemães estão gritando: ‘Viva Lutero’, e o resto,
embora não o seguindo, junta-se ao corpo para gritar: ‘Morte a Roma’” 12. A conjuntura,
contudo, não era promissora. A grande convergência dos anos iniciais do movimento
agora revelava suas fissuras internas, contradições profundas e ambiguidades, como o
mostram, entre outros, a ruptura entre Lutero e Erasmo e a clara opção de Lutero pelos
príncipes no massacre de um levante camponês sem precedentes na história da Alemanha.
E Lutero? Estrai das adversidades sua força para avançar. É o que revela a seguinte
passagem, de 1518, exemplar para muitas outras de semelhante sentido: “Quanto mais
fúria eles demonstram, mais eu avanço! Abandono minhas primeiras posições para que
eles latam para elas; transfiro-me para as mais avançadas, para que latam também”. É o
que o historiador francês Lucien Febvre parece identificar como o destino de Lutero: a
obsessão de saber-se incumbido de uma missão irresistível, não sua, mas revelada por
uma força superior: “Longe de conduzir-me, meu Deus me arrasta, meu Deus me impele
para frente. Não sou senhor de mim mesmo. Anseio pelo repouso, e eis-me empurrado
para o centro da peleja ...” 13.
Como é amplamente conhecido, a revolta de Lutero contra a ordem instituída, decorre
inicialmente como questionamento à venda de indulgências. Em 31 de outubro de 1517,

12
Idem, p. 181.
13
Idem, p. 138.
Lutero convocou um evento acadêmico na universidade de Wittenberg, onde era docente,
intitulado “Debate para o esclarecimento do valor das indulgências” 14. O debate nunca
aconteceu, mas o movimento desencadeado pela rápida divulgação do conteúdo de suas
teses entrou para a história como o início do protestantismo.
Um fator político e religioso foi decisivo para a eclosão do movimento da Reforma. Um
jovem aristocrata de 23 anos, Albrecht de Brandenburgo, havia sido sagrado arcebispo de
Magdeburgo e de Mogúncia. Para arcar com os custos devidos ao Vaticano por tais
concessões, recebera do papa autorização para vender indulgências, uma prática secular
de piedade popular, de difícil reconstituição.
As indulgências originalmente se fundamentam no imaginário da existência de um
tesouro celestial, composto pelo excedente da graça deixada por Jesus e pelos Santos, ou
seja, pelos méritos abundantes angariados diante de Deus por vidas santas e exemplares.
Cabia exclusivamente à igreja a administração deste fundo, com o qual compensava o
déficit dos seres humanos comuns, sempre em débito com a justiça divina. O acesso aos
créditos de tal tesouro pressupunha a confissão do fiel e o cumprimento das penitências
estabelecidas pelo confessor. Trata-se de um método que conferia um sentido subjetivo à
rotina cotidiana, através de uma relação de reciprocidade com o transcendente, mediada
pela igreja e reconhecida socialmente como forma de reintegração de faltosos ao convívio
social. Com o passar dos séculos, esta prática de piedade popular se transformaria em
verdadeiro mecanismo de controle das consciências, transformado pela igreja em
estratégias de acumulação, na medida em que as relações humanas se transformavam em
relações de mercado. É o que está ocorrendo na Alemanha, quando Lutero convoca o
debate para esclarecer o real valor das indulgências, motivado pela campanha
arrecadatória instituída pelo jovem bispo de Magdeburgo e Mogúncia. Segundo Lucien
Febvre, esta é a ocasião em que...
“perante o hediondo tráfico, perante a afirmação sem mil vezes
proferida por traficantes vestindo o hábito religioso, de que, com
dinheiro, os piores pecados podiam ser pagos, Lutero clamou enfim,
com voz vingadora, uma indignação havia muito tempo reprimida” 15.
Coerente com o fundamento que orientava sua rebeldia, a crítica de Lutero não se voltava
contra a venda das indulgências em si, mas atacava a falsa segurança que através delas se
propagava aos fiéis. Num sermão pregado em 1516 Lutero já formulava esta crítica de
forma cristalina:
“Os comissários e subcomissários incumbidos de pregar indulgências
nunca fazem mais que alardear seus benefícios ao povo e incitá-los a
compra-las. Jamais os ouvimos explicar a sua plateia o que é de fato a
indulgência, a que se aplica e quais são os seus efeitos. Pouco se lhes

14
Versão em língua portuguesa: LUTERO, Martinho. Debate para o esclarecimento do valor das
indulgências. In: Obras Selecionadas. Volume 1: Os primórdios – escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo:
Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora, 1987, p. 21-29.
15
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 35.
dá se os cristãos iludidos acreditam que já estão salvos tão logo
adquirem seu pedaço de pergaminho” 16.
No âmbito das 95 teses, a crítica avança em radicalidade. Já ali Lutero introduz dois
conceitos que serão chaves no desenvolvimento do pensamento da Reforma a partir do
novo espírito de época que se prenunciava, qual seja, a relação entre necessidade e amor,
por um lado, e o espírito de ganância e acumulação ilimitada, por outro:
“... por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo
amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de
todas as causas – se redime um número infinito de almas por causa do
funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa
tão insignificante?” 17.
Para dar uma pequena amostra das preocupações que pautavam a teologia de Lutero,
aponto a seguir para as publicações do ano de 1520, o ano imediatamente anterior à
excomunhão e ao banimento. Em maio deste ano Lutero publicou o livreto: “Das boas
obras” 18. Este aprofunda a relação entre justificação pela fé e as obras daí decorrentes. É
uma reação contra a compreensão superficial da tese, de que só a fé justifica a pessoa
diante de Deus. Em muitos setores sociais, este enunciado justificava o combate a
qualquer obrigação diante dos poderes civis. Nesta obra o pensamento fundamental é o
seguinte: a fé produz boas obras. Tudo o que decorre da fé é bom. Tudo o que acontece
sem a fé, não tem valor algum, ainda que cumpra plenamente as exigências dos
mandamentos. Este texto é importante por ser o primeiro posicionamento de Lutero, a
partir de sua teologia, sobre o cotidiano dos fiéis, seja na igreja ou fora dela. É o primeiro
fundamento para uma ética evangélica que derruba os fundamentos da antiga ética que
entendia as obras como meritórias diante de Deus, e as classificava como menos ou mais
meritórias dependendo de quem as praticasse.
Em agosto de 1520, Lutero publica o tratado intitulado “À nobreza cristã da nação alemã,
acerca da melhoria do estamento cristão” 19. A primeira edição, de 4000 exemplares,
esgotou-se em uma semana. Somente em 1520, este tratado foi reeditado onze vezes, em
Wittenberg, Leipzig, Basiléia e Estrasburgo. Trata-se de uma proposta de reestruturação
do Estado alemão que pode ser considerado como a expressão do rompimento de Lutero
com a Cúria Romana e com a doutrina que fundamenta a ordem eclesiástica do império.
É o texto chave para se entender a doutrina do sacerdócio geral de todos os crentes, que
seculariza a noção do sacerdócio, além de apontar para uma nova relação entre Igreja e
Estado.
Em outubro de 1520, Lutero publica um livro intitulado “Do cativeiro babilônico da
Igreja, um prelúdio” 20. Já o título sugere um paralelo entre o Israel cativo no Egito e a
situação da igreja de então. São três os cativeiros dos quais fala Lutero nesta obra: a
negação do cálice aos leigos, a doutrina da transubstanciação e a missa como sacrifício.

16
Citado por FEBVRE, 2012, p. 110.
17
LUTERO, Tese 82, Obras Selecionadas. Volume 1, p. 28.
18
LUTERO, Martinho. O Programa da Reforma: Escritos de 1520. Obras Selecionadas, vol. 2, São
Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora, 1989, p.97-170.
19
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 277-340.
20
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 341-424.
Este tratado pode ser considerado a resposta de Lutero à bula Exsurge Domine, publicada
três meses antes, que o acusava de heresia e ameaçava de excomunhão. Este escrito pode
ser considerado como a ruptura teológica definitiva da Reforma com a teologia normativa
da época.
Em novembro de 1520, Lutero publicou seu famoso tratado sobre a liberdade dos cristãos.
Em termos políticos, o tratado é parte de um aceno de conciliação, uma espécie de
articulação de bastidores que evidencia alguns dos meandros internos das estruturas de
poder de então. O dominicano João Eck (1486-1543), professor na universidade de
Ingolstadt, era tido como o responsável pela publicação da ameaça de excomunhão. Por
outro lado, o núncio apostólico Carlos von Miltitz (1490-1529) vislumbrava uma
possibilidade de reconciliação entre Lutero e o papa Leão X, o que, aparentemente, revela
uma disputa interna por influenciar os rumos do processo, com expectativas de projeção
política dos propositores das estratégias vitoriosas. Assim, Lutero foi instigado a dedicar
seu tratado ao papa, acompanhado de uma carta em que distingue entre a pessoa do
Pontífice e a instituição do papado, como fica explícito nesta passagem:
“... sempre lamentei, excelentíssimo Leão, que foste feito pontífice
nesta época, pois eras digno de tempos melhores. Já a Cúria Romana
não merece a ti nem pessoas semelhantes, e sim ao próprio Satanás, que,
na verdade, reina mais do que tu nessa Babilônia” 21.
No que se refere ao conteúdo do tratado, o monge rebelde assim o sintetiza: “É uma coisa
pequena, se se considera o volume. No entanto, a menos que eu me engane, é a suma da
vida cristã exposta resumidamente, se se capta o sentido” 22.
Lutero inicia este tratado com duas afirmações aparentemente excludentes:
“Um ser humano cristão é um senhor livre sobre todas as coisas e não se submete a
ninguém. Um ser humano cristão é um súdito e servidor de todas as coisas e se submete
a todos” 23.
Comecemos pelo primeiro enunciado. Um ser humano cristão é um ser livre. Liberdade
aqui significa, antes de qualquer outra coisa, liberdade de consciência: “Voltemo-nos,
pois, primeiramente, à pessoa interior, para ver o que faz com que ela se torne justa, livre
e verdadeiramente cristã...” 24. Como uma dimensão da consciência, a liberdade é uma
questão ontológica, um modo de ser, uma fé que perfaz um fundamento, materializado
num perfil de vida: “Aquele que não quer o batismo, que o deixe para lá”. E mais ainda:
“Aquele que quiser passar sem a comunhão tem direito a tanto. Direito tem também

21
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 428.
22
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 433.
23
Conf. LUTHER, Martin. Studienausgabe, Band 2. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1982, p. 265. A
tradução é minha. Roberto Romano prefaciou uma edição bilíngue do tratado sobre a liberdade, cuja
publicação integra ainda prefácios de Lutero à Bíblia. Sobre o conteúdo destes escritos, Romano afirma
o seguinte: “Nesses escritos Lutero modificou a língua, o imaginário, os valores do cristianismo. Deste
modo, ele abriu caminho para as formas do pensamento moderno, instaurando a subjetividade que
dissolveu a Tradição (...). O divino, após Lutero, encontra-se de modo privilegiado na consciência
humana”. In: LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão (1520): prefácio à Bíblia. São Paulo, Fundação
Editora da UNESP, 1998, p. 7.
24
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 437.
aquele que não quiser se confessar”. E no mesmo sentido: “A fé é algo absolutamente
livre... Não há como forçar os corações, nem mesmo com muito afinco. Conseguiremos,
no máximo, obrigar os fracos a mentir, a falar diversamente daquilo que de fato
pensam” 25. Na mesma linha de argumentação, Lutero se manifesta num debate, no mesmo
ano da publicação do tratado sobre a liberdade dos cristãos:
“Quero ser livre. Não quero tornar-me escravo de autoridade alguma,
seja ela de um concílio, ou de qualquer poder, ou da universidade, ou
do papa. Pois ei de proclamar, confiante, o que acredito ser a verdade,
seja [ela] anunciada por um católico ou um herético, seja [ela] aprovada
ou rejeitada por qualquer autoridade” 26.
Não sendo uma conquista, a liberdade decorre da consciência da liberdade, como uma
condição a priori, fundamentada na fé que crê num Deus que se humaniza e, torna-se
humano, funde-se com a condição humana, assume os limites da condição humana...
“para que fique claro, que à pessoa cristã basta a sua fé para tudo, e que
não tem necessidade de obras para ser justificada. Se não precisa de
obras, também não precisa da lei; é certo que está livre da lei (...). Esta
é a liberdade cristã, nossa fé, que não faz que sejamos ociosos ou
vivamos mal, mas que ninguém necessite da lei ou de obras para a
justiça e a salvação” 27.
Já não se propaga mais o imaginário de uma Igreja perfeita, como noiva imaculada de
Cristo, como recorrente na cristandade medieval, mas é o crente que assume sua condição
de finitude e imperfeição e a mescla com o divino, pela graça da fé. Assim ...
“a alma é copulada com Cristo como a noiva com o noivo (...). Daí
segue que tudo se lhes torna comum, tanto as coisas boas como as más,
de modo que a alma fiel pode apropriar-se e gloriar-se de tudo que
Cristo possui como sendo seu, e tudo que tem a alma Cristo se apropria
como se fosse seu” 28.
Este encantamento da vida, que implica na consciência da dignidade humana como algo
incondicional e livre de qualquer contingência, segundo Roberto Romano, “ajuda as
pessoas de crença, ou simplesmente honestas, na tarefa de expulsar da consciência o pior
malefício, a renúncia à liberdade em nome do econômico, do político, do social,
entendidos na sua face mais diabolicamente ‘realista’” 29.
Isto, contudo, não significa que o ser humano cristão seja um ser indiferente em relação
à sociedade em que vive. Pois é justamente na relação com o econômico, com o político
e o social que a fé se evidencia como modo de vida. É na relação entre fé e vida em
sociedade que entra em jogo a segunda parte do enunciado que introduz o tratado sobre a
liberdade: “Um ser humano cristão é um súdito e servidor de todas as coisas e se submete
a todos”. Se a liberdade tem a fé como fundamento, a prática do amor é sua consequência

25
Apud FEBVRE, 2012, p. 186.
26
Apude FEBVRE, 2012, p. 187.
27
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 441.
28
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 442.
29
Prefácio a LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão, 1998, p. 20.
inevitável e necessária. Em outras palavras, a liberdade pela fé tem como consequência
um escravo do amor. O cristão liberto pela fé, não pode não amar, não como uma lei, mas
como concretização de sua liberdade de consciência.
Assim, o engajamento das pessoas de boa vontade pelo bem comum – um conceito
moderno, mas perfeitamente aplicável ao assunto em pauta – não decorre do desejo por
reconhecimento. Da mesma forma, a qualidade deste engajamento não depende dos
resultados mensuráveis que ele produz, e sim, dependem do espírito que fundamenta este
engajamento, em termos atuais, poderíamos dizer, dependem do fundamento ético que as
sustenta. Pois, “o cristão, consagrado por sua fé, faz boas obras, mas por meio delas não
se torna mais consagrado ou cristão, pois isto é assunto exclusivo da fé ...” 30. Ou seja,
pela fé o ser humano é livre para planejar, estabelecer metas, acertar e errar, sem que sua
dignidade e sua humanidade dependam dos resultados alcançados ou não. Assim ...
“as obras não justificam a ninguém, e visto que é necessário que a
pessoa seja justa antes que faça o bem, está manifestíssimo que a fé
sozinha que, por mera misericórdia de Deus, por meio de Cristo, em sua
palavra, justifica e salva a pessoa de modo digno e suficiente, e que para
a salvação não há necessidade nenhuma de obra, de nenhuma lei para a
pessoa cristã, uma vez que pela fé está livre de toda a lei e faz tudo por
mera liberdade, gratuitamente, qualquer coisa que faça, não buscando
seu proveito ou salvação – uma vez que já está satisfeita e salva pela
graça de Deus a partir de sua fé ...” 31
Portanto, para Lutero, o ser humano é portador de uma dignidade a priori, não decorrente
do que faz ou deixa de fazer, uma dignidade que fundamenta a sua liberdade. Esta
dignidade é uma questão de consciência e, como tal, é algo dado incondicionalmente, que
não carece de justificação alguma. De onde viria então o impulso, a motivação, para o
livre, mas necessário, engajamento pelo bem comum? A resposta requer o debate de um
tema central no pensamento de Lutero, que só pode ser tangenciado no espaço limitado
desta reflexão. Refiro-me ao que se convencionou chamar de teologia da cruz 32. Em
síntese, esta teologia vincula necessariamente a noção subjetiva de liberdade à prática
objetiva da caridade, de tal forma que uma não pode existir sem a outra. Só é verdadeira
a liberdade que se concretiza na prática do amor ao próximo. Em outras palavra, a pessoa
livre pela fé se torna necessariamente escrava do amor: “... a pessoa deve, em todas as
suas obras, estar orientada por esta ideia e visar somente isto: servir ao outro e ser lhe útil,
em tudo o que faz, nada tendo em vista senão a necessidade e a vantagem do próximo” 33.
Emerge, assim, um critério que soluciona o paradoxo humano de se saber livre e escravo
ao mesmo tempo: a liberdade se efetiva na resposta do ser humano à necessidade do outro,
que o interpela e requer sua solidariedade. Quando referenciado em sua própria
racionalidade, cativo de seus próprios desejos e dependente de seus limitados méritos, o
ser humano é confrontado com a finitude de sua condição. Mas é justamente a consciência

30
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 449.
31
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 449.
32
A respeito, ver WESTHELLE, Vitor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Editora
Sinodal, 2008.
33
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 452.
dos limites da sua condição que abre espaço, pela fé, à confiança na misericórdia de Deus,
que não lhe imputa suas limitações e o liberta para tornar-se um Deus para os outros,
como veículo e sinal da graça divina, um carregador de cruzes alheias, como expressão
de liberdade de quem se sabe dependente incondicionalmente da graça de Deus: “Assim
me porei à disposição do meu próximo como um Cristo, do mesmo modo como Cristo se
ofereceu a mim, nada me proponho a fazer nesta vida a não ser o que vejo ser necessário,
vantajoso e salutar a meu próximo ...” 34. Abre-se assim o horizonte de uma comunidade
imaginada, cujo relacionamento humano se pauta fundamentalmente pela reciprocidade,
em que os cristãs são “mutuamente um Cristo para o outro” 35.
Com isto espero ter indicado brevemente alguns temas centrais do pensamento teológico
de Lutero. Sua obra, contudo, é muito mais abrangente do que estes breves comentários
poderiam sugerir. A edição de Weimar, a única edição das obras completas de Lutero,
iniciou em 1883, por ocasião dos 400 anos do nascimento de seu nascimento, e só foi
concluída em 2009. Os textos do próprio Lutero abrangem 80 volumes. Cartas, traduções
da Bíblia, anotações de seus ouvintes, conhecidas como conversas à mesa e
correspondências perfazem outros 40 volumes.
Da reforma da igreja à revolução da sociedade
Embora estes apontamentos sobre a Reforma Protestante na Alemanha nem de longe
tenham a pretensão de completude, há um tema sobre o qual não se pode silenciar, por
sua importância para os rumos, não só do movimento da Reforma em si, mas
principalmente no que se refere às esperanças despertadas nos meios populares. Refiro-
me à principal tendência que tentou aplicar as descobertas teológicas às relações sociais
da época e, por isto mesmo, entrou para a história como a Reforma Radical.
Trata-se de um movimento de curta duração, algo em torno de 1521 a 1525. Em termos
hermenêuticos, suas lideranças relativizavam o texto bíblico como fonte da revelação
divina, dando primazia à “voz interior” e à inspiração direta do Espírito Santo. Em termos
de vivência prática do Evangelho, propunham a implantação da Reforma pela força,
quando a adesão não se dava livremente. O teólogo Thomas Müntzer (1489-1525) foi o
principal mentor intelectual do movimento, a partir de sua atuação pastoral junto à
camponeses e mineiros. Müntzer foi um dos muitos sacerdotes populares que aderiram à
Reforma, mas rompeu com Lutero por entender suas posturas em meio ao conflito social
demasiadamente conciliadoras. Sua teologia se caracterizava por três ênfases: 1)
Acreditava na revelação interior, contra o princípio do exclusivismo bíblico de Lutero; 2)
Cria na volta eminente de Cristo, por isto pregava a separação entre “joio e trigo”, se
necessário através da luta armada; 3) Nutria grande preocupação pelos pobres de seu
tempo, incorporando os temas da justiça social em sua elaboração teológica e incitando
os pobres a realizarem uma redistribuição das riquezas injustamente acumuladas. Três
das principais obras de Müntzer estão disponíveis em português 36. Trata-se do Manifesto
de Praga, primeiro escrito político de Müntzer, não por acaso, levado ao conhecimento
do público na terra em que Jahn Hus, um século antes, levantava sua voz contra a igreja

34
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 453.
35
Obras Selecionadas, vol. 2, p. 454.
36
DE BONI, Luis Alberto (org). Escritos seletos de Martinho Lutero, Tomás Müntzer e João Calvino.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 175-226.
da época; Interpretação do segundo capítulo do profeta Daniel, em que instiga aos
príncipes a cederem pacificamente às reivindicações dos camponeses rebelados, caso
contrário seriam destituídos pela força de suas posições de mando; o Pronunciamento de
defesa altamente motivado, em que polemiza contra Lutero e sua teologia. Müntzer
também é considerado o mentor intelectual dos 12 Artigos dos Camponeses da Suábia,
uma síntese das principais reivindicações dos camponeses. Em maio de 1525, o levante
camponês foi massacrado pelo exército a serviço de uma coligação de príncipes. Müntzer
foi condenado à morte. O fim trágico da Reforma Radical também marcou o fim da
Reforma Protestante como um movimento de amplas bases populares. A partir daí, a
Reforma se desdobraria em diferentes tendências, predominantemente focados na
institucionalização da igreja.
Em síntese: Reforma Protestante, um fenômeno plural
Pelo exposto até aqui, fica claro que a Reforma Protestante não cabe numa única escola
teológica e que estamos tratando de um fenômeno complexo e plural. Temas
relativamente consensuais são a autoridade exclusiva da Bíblia em matéria de fé, a
salvação como obra exclusiva da graça de Deus, o sacerdócio universal de todos os
crentes. As maiores controvérsias situam-se na apropriação destes temas pelos diferentes
setores da sociedade. A Reforma Radical, como referido acima, tirou consequências
políticas de longo alcance da teologia dos reformadores, reivindicando não só a reforma
da igreja, mas de toda a sociedade. Os remanescentes da Reforma Radical encontraram
espaço de sobrevivência nas comunidades anabatistas, que se consideravam a
comunidade dos verdadeiramente salvos, longe da ingerência do Estado em questões
religiosas. Os Anabatistas foram protagonistas de um novo modelo eclesiológico, com a
prática do batismo de adultos, o que tinha a fé do batizando como pressuposto.
O conflito político de maior alcance envolvendo a Reforma Protestante foi a Guerra dos
Trinta anos, que culminou com a Paz de Westfália, assinada em 24 de outubro de 1648.
Importante para a teologia foi o princípio da tolerância religiosa que reconhecia a
existência de três denominações religiosas definitivamente marcadas pelo longo processo
desencadeado em 1517: luteranos, católicos e calvinistas. Trata-se de uma paz religiosa
instituída a partir de um princípio excludente, pois não contemplava certas dissidências
religiosas, como os Anabatistas, por exemplo.
A polêmica entre os grupos religiosos definitivamente instituídos com a Paz de Westfalia
ficou conhecida como ortodoxia e significou o esforço de cada grupo em definir seu
corpus doutrinário específico. Trata-se de uma teologia conservadora e que tendia a
reduzir a Bíblia a um Códex da revelação de doutrinas. A racionalidade característica da
ortodoxia levou a um alto grau de sistematização teológica, ao mesmo tempo em que
produziu certa estagnação do espírito dinâmico e criativo da Reforma. Além da
elaboração sistemática da teologia, a hinologia é um legado permanente da ortodoxia,
principalmente no campo luterano. Embora sua fidelidade aos parâmetros do pensamento
ortodoxo, esta hinologia transformou-se num constante estímulo à religiosidade. Neste
sentido pode-se dizer que ela se situa entre a elaboração teológica sistemática e a literatura
de edificação espiritual, que retoma a mística e a experiência religiosa, contribuindo,
assim, para o surgimento do pietismo, já no século XVIII.

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