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Anabatistas: uma proposta religiosa de revolução social

Bianca Daéb’s Seixas Almeida*

Resumo

A Reforma Protestante, com seu advento e suas conseqüências sociais, políticas e culturais
abre espaço para a expressão de grupos que até então não se fazia notar, até por que, em sua
maioria, eram compostos por camponeses e artesãos, cuja representação política era mínima.
Eles ganham visibilidade no século XVI e XVII ao apropriarem-se do texto bíblico e se
valerem da livre interpretação para legitimarem a luta por uma sociedade mais justa. A
participação dos anabatistas na história da Reforma do século XVI deve ser considerada
espetacular. Os anabatistas procuraram alternativas para uma Igreja carente de mudanças. Tais
alternativas foram procuradas em oposição à Igreja de Roma, mas também em relação às
Igrejas da Reforma luterana e ao emergente calvinismo. Estas últimas não estavam dispostas a
romper os laços do modelo de cristandade em que estavam unidos Igreja e Estado,
comunidade e burguesia. Dessas alternativas, surgiu um terceiro modelo de cristianismo no
Ocidente do século XVI. No anabatismo, vamos encontrar o protesto evangélico, tão forte,
que alguns historiadores designam seu modelo de "Reforma por meio de provocação."

Palavras-chave: História da Igreja. Anabatistas. Reforma Protestante.

Anabaptists: a proposal religious of social revolution

Abstracts

Due to the rise of the protestant reform with its social, political and cultural consequences, the
voice of groups that went unheard until then, in particular since in its majority they were
composed of peasants and craftsmen whose political representation were minimal, began to be
heard. They gain visibility during the XVIth and XVIIth centuries by taking possession of the
biblical text and by freely interpreting its writings try to legitimize the fight for a more just
society. The Anabaptists’ participation in the Reform should be considered as spectacular.
The Anabaptists sought alternatives for a church in dire need of changes. Those alternatives
were sought in opposition to the Church of Rome, as well as, in regards to the Church of the
Lutheran Reform and the emerging Calvinism. The latter did not want to break with the
Christian model in which the Church and the State, the community and the bourgeois were
united. From these alternatives a third Christian model emerges during the XVIth century. In
Abaptism we will find a strong evangelical protest, so strong that some historians dubbed its
model as “Reform by Provocation”.

Key words: History of the Church. Anabaptists. Protestant Reform.

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1 INTRODUÇÃO

Onde quer que se tenha contado a história de uma determina sociedade, ali também se
observou a importância do fator religioso no processo de organização social e política desta
comunidade. Além de uma linguagem mítica que fundamenta em tempos idos a existência e a
identidade de sociedades e indivíduos, o sagrado inerente à religião, costuma, através dos
mitos, ritos e tabus, instaurar ou legitimar o código moral destas sociedades. Assim sendo,
quem detém o discurso do sagrado personifica um grande poder político.

Foi assim entre os egípcios, em que o faraó personificava o próprio Deus; entre os
judeus, para quem cabia ao sacerdote, indicar e legitimar o Rei. Durante a Idade Média, a
Igreja primitiva e perseguida pelo imperador romano, depois de um golpe político; a
conversão de Constantino sai das catacumbas, para tornar-se a Veneranda Senhora Feudal. E,
reinou quase absoluta durante séculos, até que, de suas engendragens, surgissem novos
movimentos, renascimento, humanismo, Reformas, etc.

Os movimentos de reforma foram, sem dúvida, religiosos, mas, sobretudo, políticos; não
há sequer uma atitude, na esfera do Sagrado, que não repercuta na área política e social; resta
saber a quem pertence a voz do Sagrado que ecoa nas comunidades, o que elas dizem, a quem
e o que legitimam. A que interesses atendem.

2 A REFORMA

Os movimentos de reforma religiosa dos séculos XV e XVI não podem ser explicados
apenas como um fator religioso, é preciso levar em conta os fatores políticos, sociais e
econômicos que estimularam e alavancaram esses movimentos na Igreja Católica, que já
claudicava. A mensagem evangélica, a qual, Lutero e outros deram expressão em seus dias,
não foi sua criação. Ela recebeu forma na cela monástica, na cátedra universitária, nas
discussões e nos debates, contudo, sua ideologia, segundo Martin Dreher (1996), não é
produzida nas discussões com a Igreja medieval, com as massas populares e com a burguesia.
Por isso, a mensagem da Reforma não pode ser deduzida apenas do processo histórico. Não
estamos, com isso, negando que o processo histórico tenha sido importante no auxílio, na
redescoberta da mensagem evangélica. Dizemos, apenas, que A Reforma beneficiou-se do
processo histórico. E que também sofreu suas conseqüências.

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A Reforma teve grandes vantagens no momento histórico em que ocorreu. De fato, o
momento histórico lhe proporcionou o acontecimento. Lutero é uma figura ímpar no
movimento de reforma. Sua coragem e seu destemor ao enfrentar a Igreja, hierarquicamente
constituída, não podem ser esquecidos, mas devemos nos lembrar de que o movimento por ele
desencadeado só pôde realmente vingar nos anos que antecederam e sucederam a morte de
Maximiliano I. A Reforma beneficiou-se, em muito, das guerras de Carlos e de Francisco I,
das conquistas políticas dos senhores territoriais, do fato de papado preferir aliar-se a
Francisco I e os turcos estarem fazendo constantes avanços.

O Humanismo auxiliou, em muito, a Reforma. Seus avanços exigiam uma reforma do


sistema universitário. E a Reforma também se beneficiou do fato, porque, na Alemanha, essa
reforma universitária foi feita, atendendo os reclamos dos adeptos da "nova fé". Mas o
Humanismo também, se beneficiou da Reforma: o estudo das línguas antigas recebeu total
apoio e passou a ser fundamental para a formação da nova geração de clérigos.

No 62ª de suas 95 teses, de 31 de outubro de 1517, Lutero (apud BETTENSON, 2000) afirma
que "[...] o verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de
Deus.” Quem quiser argumentar com essa tese e dizer que a Reforma colocou o Evangelho
novamente em seu devido lugar só o poderá fazer, caso entender a Reforma não como um
acontecimento encerrado a ser festejado, mas como algo que tem que acontecer sempre. Em
razão dos acontecimentos políticos e de seus aspectos culturais, é possível fazer a afirmação
de que a Reforma conseguiu, seu espaço e seus objetivos. Mas, é fato que o Evangelho e a
Igreja, que pretendia ser reformadas, sofreram grande desgaste. A Igreja fragmentou-se em
Igrejas Territoriais, que, em seu interior, muitas vezes não souberam manifestar a liberdade
evangélica.

Na Alemanha, a Reforma protestante liderada por Lutero, com o apoio dos príncipes de
Witemberg, tinha por princípios: Somente a fé, a Escritura e a graça de Deus. Eesses
princípios abrem caminho para aquilo que talvez seja um dos maiores legados da história da
Reforma protestante: O Sacerdócio Universal dos Crentes. Essa doutrina, aliada ao evento da
criação da imprensa, faz com que o texto sagrado, até então propriedade de uns poucos
sacerdotes e acadêmicos, que o interpretava ao sabor de interesses políticos públicos ou
pessoais, e regurgitava para o povo, estivessem, agora, ao alcance de homens e mulheres,
camponeses e artesãos; eles e elas queriam mais que ler as Escrituras encontrarem-se dentro
delas.

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Não só na Alemanha, mas, sobretudo, na Inglaterra dos Tudor, Segundo Hill (2003), o
texto bíblico tornou-se uma instituição, a base de uma autoridade monárquica da
independência protestante na Inglaterra, o livro da moralidade e da submissão social. Sua
centralidade tornou-se um campo de batalha entre várias ideologias – nacionalismo inglês
contra catolicismo romano, episcopado contra presbiterianismo e sectarismo. A sociedade
estava agitada e esperava-se que a Bíblia oferecesse soluções para os problemas que
assolavam. A tradução da Bíblia tornou-se acessível a novos grupos sociais, incluindo
artesãos e mulheres que liam sobre seus próprios problemas e possíveis soluções no Texto
Sagrado.

No século XVII, a Bíblia era aceita como um elemento central a todas as esferas da vida
intelectual, não era apenas um livro “religioso” no sentido restrito da palavra. A Igreja e o
Estado na Inglaterra dos Tudor, era um só; a Bíblia era, ou deveria ser o fundamento de todos
os aspectos da cultura inglesa .

Segundo Hill (2003), os ingleses tiveram de enfrentar situações revolucionárias


inesperadas durante os anos de 1640 e 1650, sem nenhuma orientação teórica, como a que
Rousseau e Marx deram a seus sucessores franceses e russos, e sem experiência de
acontecimentos anteriores que pudessem ser chamados de revoluções. Eles tiveram que
improvisar. A Bíblia, em inglês, foi o livro ao qual naturalmente voltaram-se em busca de
orientação. Era a palavra de Deus, cuja autoridade ninguém podia rejeitar. E era o maior
patrimônio da nação inglesa protestante. Sua edição impressa apenas, encontrava-se
disponível graças aos conflitos e martírios da reforma inglesa, numa fase essencial da pré-
história revolucionária.

A disponibilidade da Bíblia, em inglês, foi um grande estimulo ao aprendizado da


leitura; que estimulou a publicação barata e a distribuição de livros. Foi uma revolução
cultural de proporções sem precedentes, cuja conseqüência não pode ser estimada. O acesso
direto ao Texto Sagrado deu aos leitores uma sensação de segurança que antes lhe faltava, o
que serviu para fortalecer criticas à Igreja e ao Clero.

Henrique VIII tentou, por decreto, abolir a diversidade de opiniões, mas sem sucesso.
As mulheres (exceto as nobres), os artesãos e aristocratas, os agricultores , os trabalhadores e
os servos estavam proibidos de ler o novo testamento ou de discutí-lo em publico. A livre
interpretação do texto bíblico poderia ser extremamente danosa do ponto de vista político
eclesiástico. Reformadores como Jonh Wyclif e Tyndale tinham consciência da importância

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dos seus trabalhos de tradução do texto bíblico, pois sabiam a força que tinham esses textos na
sociedade inglesa e o seu potencial revolucionário.

3 ANABATISTAS

Com o advento da reforma e suas conseqüências sociais, políticas e culturais abre-se


espaço para a expressão de grupos que até então, não se fazia notar, até por que em sua
maioria eram compostos por camponeses e artesãos, cuja representação política era mínima.
Eles ganharam visibilidade no século XVI e XVII ao apropriarem-se do Texto Bíblico e
valerem-se da livre interpretação para legitimarem a luta por uma sociedade mais justa.

A participação dos anabatistas na história da Reforma do século XVI, deve ser


considerada “espetacular”. Os anabatistas procuraram alternativas para uma Igreja carente de
mudanças. Tais alternativas foram procuradas em oposição à Igreja de Roma mas, também,
em relação às Igrejas da Reforma luterana e ao emergente calvinismo. Estas últimas não
estavam dispostas a romper os laços do modelo de cristandade em que estavam unidos Igreja
e Estado, comunidade e burguesia. Dessas alternativas surgiu um terceiro modelo de
cristianismo no Ocidente do século XVI. No anabatismo, vamos encontrar o protesto
evangélico, tão forte que alguns historiadores designam seu modelo de "Reforma por meio de
provocação". Nele, encontramos elementos da Teologia e piedade medievais, das teologias de
Lutero, de Zwínglio e de Calvino, mas também temos que admitir que não é nem católica
tampouco protestante. O anabatismo é uma alternativa a católicos e protestantes.

O anabatismo não é uniforme. Houve diversos movimentos anabatistas. E Segundo o


historiador Martin Dreher (1996) seus primórdios devem ser localizados no início da década
de vinte do século XVI. São os anos do "crescimento anárquico" da Reforma. É um período
de grande descontentamento em relação ao clero, de agitação anticlerical, de reformas sem
perspectivas muito claras. Segundo Dreher(1996), encontravam-se e desencontravam-se
personalidades, tradições e situações as mais diversas. O fator de união era a unanimidade no
ataque aos abusos eclesiais que tiravam a credibilidade da fé cristã. Formavam uma "frente"
político-eclesiástica.

Os argumentos que formavam a base para sua crítica eram os mais distintos; como
também, distintas eram as propostas para uma Igreja e para uma sociedade melhoradas. Por
isso, a "frente" veio muito rapidamente a se dissolver em diversos "movimentos", que, muitas
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vezes, brigavam e para alguns teólogos e historiadores acabavam por tirar da Reforma seu
vigor primitivo. Penso o contrário. Que tais brigas e cismas são frutos de um processo mais
amplo de interpretação do texto bíblico, onde a verdade absoluta cede lugar para a diversidade
de pensamento e ação, que garante a liberdade de expressão de grupos antes desconhecidos e
marginalizados pelas forças política e eclesiástica hegemônicas.

Quando, da dissolução da frente, surgiram movimentos que quiseram partir para


reformas radicais, porque consideravam que o andamento da Reforma era tímido demais e
carente de decisão. Com suas exigências, provocavam as autoridades eclesiásticas e
temporais, e buscaram também aliar-se às forças revolucionárias do ano de 1525. Dessas
forças revolucionárias, surgiriam ainda outros movimentos de anabatistas, cujo ponto de
intercessão era a crítica à prática usual do batismo de crianças e a adoção de um batismo de
pessoa adulta, antecedido por confissão de fé. Por essa razão, foram chamados de
"anabatistas" ou "batistas". Comum a eles era, também, o fato de que, onde apareciam, havia
"perturbação da ordem pública", de modo que sempre vamos encontrar a polícia perseguindo-os.

Muitos anabatistas reuniam-se às ocultas, em casas abandonadas, em barcos no meio do


rio, na mata, e liam a Bíblia sem acompanhamento "oficial". As perseguições que sofreram
foram terríveis. Eram homens, viúvas, jovens, mulheres grávidas, que, lançados em prisões,
apodreciam, na maioria das vezes, sem renunciar a suas convicções. Eram marginais,
sofrendo o martírio. É verdade, que, as bases doutrinais para sua prática batismal, para o
martírio e a perseguição que sofriam eram tão distintas, que não forneciam base para um
consenso mínimo. Restou para eles o estigma de reformadores anárquicos. Mas não se pode
negar que nele se gestava a luta moderna por liberdade de opinião e de consciência.

O anabatismo não se originou de uma única raiz teológica, mas de diversas. Podemos situá-las
na reforma zwingliana de Zurique, no pensamento de Thomas Müntzer ou nas teorias
carismático-apocalípticas difundidas em Estrasburgo. De fato, não podemos falar de uma
origem única dos anabatistas.

3.1 Anabatismo primitivo

Em sua obra, “Teólogo da Revolução”, Bloch (1975), nos conta que a forma mais antiga
do anabatismo surgiu em Zurique. Ali, sacerdotes, monges, professores universitários e
artesãos haviam se reunido em torno de Ulrico Zwínglio. Desse movimento, resultou a
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decisão do Conselho da cidade de Zurique de introduzir a Reforma. Do círculo de seguidores
de Zwínglio saem os primeiros anabatistas.

Segundo ele, uma das características da reforma de Zurique foi o uso de meios não
convencionais para advogar ostensivamente a liberdade cristã. Basta lembrar a cena de 1522,
em que Zwínglio e convivas comeram lingüiça em plena época da Quaresma, na casa do
impressor Froschauer. O Conselho da cidade acabou mantendo a abstinência de carne na
Quaresma, mas deu poderes a Zwínglio para iniciar a Reforma na cidade. Porém, disse-lhe
com toda a clareza que, ao fazer uso da liberdade cristã, não deveria provocar escândalo
público.

Pouco tempo depois, o humanista Konrad Grebel e alguns companheiros interromperam


pregações de monges que animavam seus ouvintes a venerarem os santos. O grupo foi
chamado à prefeitura, onde recebeu uma advertência formal. Grebel, porém, protestou contra
a advertência, bateu a porta e foi embora. O Conselho da cidade não conseguiu se impor e
teve que publicar um decreto, obrigando os monges a pregarem de acordo com a Escritura. O
resultado foi que o clima anticlerical. cresceu.

Mais tarde, mas ainda em 1522, Simon Stumpf negou-se a pagar o dízimo. O convento
de Wettingen, a quem o dízimo era devido, exigiu medidas do Bispo de Constança. O
Conselho de Zurique, porém, aproveitou a deixa: negou competência ao Bispo e resolveu
decidir a questão, assumindo, assim, prerrogativas eclesiásticas. Zwínglio aproveitou-se do
caso Stumpf para ampliar seus planos reformistas. No Natal de 1522, a comunidade de
Witikon contratou, por conta própria, Wilhelm Reublin como pregador. O procedimento era
ilegal, mas a vontade da comunidade acabou prevalecendo. Zwínglio soube, mais uma vez,
aproveitar-se da situação. Tendências mais radicais desenvolviam-se sob o manto de
Zwínglio, mais conciliador, mas um hábil político.

As coisas, então, começaram a precipitar-se. Lideradas por Wilhelm Reublin, diversas


comunidades negavam-se a pagar o dízimo aos padres da catedral de Zurique. Argumentavam
que o dízimo, na forma cobrada, não era bíblico. O Conselho da cidade manteve o dízimo,
mas prometeu eliminar os abusos cometidos em relação ao mesmo. Dessa vez, Zwínglio
colocou-se ao lado do Conselho, afirmando que a autoridade civil tinha competência para
legislar em questões pertinentes à ordem eclesial. Konrad Grebel, que vinha de más
experiências com o Conselho, fez diversas críticas a Zwínglio e solidarizou-se com as
comunidades. Ele queria que a Igreja fosse reformada a partir da palavra de Deus e não a
partir da autoridade civil. Grebel recebeu o apoio de Stumpf, que extrapolou em sua crítica: a
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Reforma não prosperará, a menos que se matem todos os padres. Os radicais sentiam-se
abandonados por Zwínglio.

No Sudeste da Alemanha e na região do Bodensee, os camponeses começaram a agitar-


se. Curiosamente, suas reivindicações tinham aspectos semelhantes às dos radicais da reforma
de Zurique: eliminação do dízimo e eleição dos próprios párocos. Rejeitados por Zwínglio, os
radicais aliaram-se aos camponeses. O movimento começava a transformar-se num
movimento religioso-sócio-revolucionário.

Os radicais passaram a acentuar que a reforma deveria ser iniciada pelas comunidades
locais, e não por governos centrais. A missa deveria ser eliminada imediatamente. A
conseqüência foi uma série de campanhas iconoclastas. Os radicais providenciavam a
operação-limpeza na Igreja. Daí, originou-se um novo choque. Mesmo que Zwínglio estivesse
convicto de que a missa e o culto às imagens não correspondiam ao ensinamento da Bíblia,
ele afirmou que competia ao Conselho da cidade a execução das medidas necessárias. Este,
porém, vacilou. Então os radicais sentiram-se chamados à desobediência e buscaram apoio
entre os camponeses revoltosos. O levante camponês ganhava, assim, definitivamente um
componente religioso. O movimento de reforma religiosa transformava-se em movimento
popular.

Nas áreas rurais camponesas surgiu, como passo seguinte, a decisão de não mais
solicitar o batismo para crianças. A decisão era anti-clerical; buscava-se tirar os pequeninos
do controle da antiga Igreja. A questão foi discutida em um debate, promovido pelo Conselho
da cidade de Zurique, em 15 de janeiro de 1525. Os radicais foram considerados perdedores,
mas em 25 de janeiro de 1525 realizaram, em Zollikon, o primeiro anabatismo. Houve o
rompimento institucional com a reforma de Zurique. Os radicais passavam a ser anabatistas.
O Conselho, por sua vez, começou a publicar leis contra os mesmos. Em 6 de março de 1526,
publicou o primeiro decreto, que determinava a pena de morte para os anabatistas. Dez meses
mais tarde, Félix Mantz foi processado e afogado no Liminat.

Os primórdios do anabatismo mostram-no como um movimento dinâmico, religioso,


sócio-revolucionário. Trata-se de um movimento em busca de liberdade radical na Igreja e na
sociedade. Como tal, soube atrair muita gente. Após suas decepções com Zwínglio e com o
Conselho de Zurique, os anabatistas romperam com a Igreja oficial. Na área rural, aliaram-se
mais e mais com os deserdados do campo, os camponeses, e almejavam mais do que uma
reforma da Igreja: uma reforma da sociedade. Seu modelo eclesiológico passou a ser o da
minoria, num mundo de maiorias, principalmente após a catástrofe dos camponeses. Desde
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então, o anabatismo não era mais necessário para dar uma fundamentação religiosa à
revolução camponesa, pois essa deixava de existir. O próprio anabatismo deixava de ter
ressonância e perdia sua base mais ampla. Passava a ser um grupo pequeno com o ônus de ter
que definir-se como movimento reformatório. Tal definição aconteceu em 1527, em
Schleitheim, quando foi criada a Associação Fraterna.

3.2 Associação faterna

Nos artigos da Associação Fraterna, estão dispostas as afirmações básicas dos


anabatistas: batismo de fé, excomunhão, negativa ao juramento, negativa à prestação do
serviço militar, comunidade formada pelos verdadeiramente crentes, livre eleição dos
pastores, a Santa Ceia como expressão da comunhão cristã, separação do mundo. Todas as
afirmações devem ser interpretadas a partir dessa "separação do mundo". Os anabatistas não
se sentiam chamados nem chamavam pessoas para evitar isso ou aquilo no mundo, mas
separavam-se do mundo. Há o reino da luz e o reino das trevas. Há o reino de Cristo e o reino
do diabo. O reino do diabo vai terminar em sofrimentos; o reino de Cristo já é agora o
"templo de Deus". As pessoas que vivem no reino de Cristo não têm nada a ver com as que
vivem no reino do diabo. Isso não significa que os anabatistas se separam rigorosamente do
mundo, mas que vê a possibilidade da construção de um paraíso na terra que os leva a busca
concreta de uma sociedade mais justa. O diabo também ganha personificação no movimento;
ele se configura a medida que o opressor político religioso se define em meio as suas lutas.

Inicialmente, sua separação acontece em relação à Igreja oficial; no caso de Zurique, à Igreja
da Reforma. Seu objetivo é criar Igreja, que surge a partir da livre decisão de seus membros e
que rompe com as regulamentações impostas pela autoridade civil. Para eles, essa Igreja é a
reintrodução da Igreja primitiva de Jerusalém, e tem como norma o que Cristo dispôs em
Mateus 18:15-17

Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele só; se te
ouvir, ganhaste a teu irmão. Mas se não te ouvir, leva ainda contigo ´um ou
dois, para que, pela boca de duas ou três testemunhas, toda a palavra seja
confirmada. E, se não as escutar, dize-o a igreja; e, se também não escutar a
igreja, considera-o como um gentil e publicano. (BIBLIA. N. T. Mateus,
XVIII, 15-17, 1999, p. 1126).

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na "regra de Cristo”. Depois, a separação acontece em relação à sociedade civil, em relação ao
"mundo". Assim, a comunidade cristã anabatista transforma-se em uma espécie de
“antimundo", um protótipo de uma sociedade melhor. A partir do ano em que são formulados
os artigos de Schleitheim - ano posterior à catástrofe dos camponeses - podemos deduzir
também que, pelo menos, para aquele grupo, a separação é também separação em relação às
anteriores aspirações sócio-revolucionárias. Sua reforma não ocorreu a partir de cima, com o
auxilio da autoridade civil, nem a partir de baixo, com o auxílio dos camponeses
revolucionários. Seguiram por um terceiro caminho. Mesmo assim, o distanciamento em
relação aos camponeses não foi radical. Aconteceu uma releitura das exigências sócio-
revolucionárias. Camponeses e anabatistas exigiam a livre escolha de pastores, negavam-se a
pagar o dízimo e negavam-se a jurar obediência à autoridade civil. Formalmente, camponeses
e anabatistas valeram-se de "artigos" para formular suas reivindicações e programas.
Camponeses e anabatistas chamavam-se de "irmãos" e constituíram-se como fraternidades. Os
camponeses excomungaram todos aqueles que não se aliaram a eles, na sociedade civil. Os
anabatistas fizeram o mesmo em relação à Igreja. Internamente, usaram a excomunhão para
manter a "pureza" da comunidade.

3.3 Thomas Müntzer

Não podemos falar da história dos anabatistas, sem falarmos daquele que foi um dos
maiores ícones deste movimento. Thomas Müntzer. Nasceu em 1490, em Solberg na
Alemanha. Sua família pertencia a burguesia financeiramente bem situada daquela cidade.
Pouco se sabe sobre seus estudos em Leipzig (1506) e em Frankfurt na der order (1512). Em
1514, foi ordenado sacerdote. Terminou seus estudos em Frankfut, em 1516. Entre 1517 e
1520 tornou-se adepto da causa luterana e por indicação de Lutero tornou-se pregador do
Evangelho na cidade de Zwickau.

Embora tenha sido discípulo de Lutero, Müntzer também foi influenciado pela leitura de
místicos alemães como João Tauler e Henrique Suso. Não demorou muito a romper com a
causa luterana; o conceito de Igreja visível e invisível, que admite ao lado da visão de uma
Igreja invisível. A existência autônoma do Estado e da sociedade, contrastava radicalmente
com seu conceito de Igreja. Igreja para Müntzer era união dos eleitos através da experiência
direta do Espírito e da vontade de Deus, é o estado perfeito da humanidade, sem instituição

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estatal, sem propriedade, realizado aqui na terra. Igreja é o Reino de Deus implantado de
maneira definitiva.

Em Zwickau, Müntzer rompe com Lutero de forma definitiva e torna-se um dos maiores
críticos da causa luterana. Em Allstedt, para onde Müntzer vai depois do rompimento em
Zwickau, atraia multidões, vinham muitas pessoas dos Estados vizinhos ouvirem suas
pregações, o que provocou a ira dos príncipes, que proibiam seus súditos de viajarem para
Allstedt. Muntzer respondeu aos príncipes que, caso continuassem, faria uma oposição total a
eles e não os reconheceriam como autoridades.

Thomas Muntzez não era apenas um teórico da fé, mas também, um teólogo que
praticava sua fé. Acreditava que era um profeta de Deus e que neste papel, mais que a
implantação do Reino de Deus mediada pela conversão do povo, era seu dever denunciar e
executar as sentenças para aqueles que se mostrarem infiéis, sobretudo os governantes. Em
suas pregações ficava clara sua opção pela revolução e não pela evolução sugerida por Lutero.
O fim da “velha Igreja” deve marcar o inicio de uma nova ordem social.

O preço a ser pago para instaurar a nova ordem mundial, passa por uma leitura radical
do texto bíblico. Thomas Muntzez. (apud DREHER, 1996, p. 83) entendia que a lei divina
exigia: “[...] matem os governantes ímpios, especialmente os freis e monges que nos infamam
o Evangelho como uma heresia” . Para que a verdade prevaleça os príncipes devem agir como
Nabucodonozor, conforme relato narrado no livro de Daniel, no final do capítulo 2, quando
ele chama Daniel coloca-o diante de todos os sábios e lhe entrega o governo da província da
Babilônia. Com esse discurso, Muntzer apontava para si próprio como líder político e
religioso.

Em suas pregações aos fiéis Muntzer (apud DREHER, 1996) os convocava e preparava
para a “luta do Senhor”. Ele anunciava: “O Deus eternamente vivo nos ordenou destronar-te
com a força que nos foi autorgada.” (apud DREHER, 1996, p. 90), e exortou os camponeses a
não terem piedade: “Adiante, adiante, enquanto o fogo ainda arde. Não permitais que vossas
espadas percam a cor do sangue.” (apud DREHER, 1996, p. 91). Animava-os à guerra
dizendo: “Mesmo que houvesse apenas três de vós que, entregues a Deus, só buscassem seu
nome e honra não temereis a cem mil.” (apud DREHER, 1996, p. 91). Inspirado nos líderes,
políticos e religiosos de Israel, Josué, Elias, Davi e Gideão eram seus referenciais. Muntzer se
percebia como servo de Deus, profeta do juízo e líder dos eleitos. Ele transformou-se no mais
importante pregador e agitador dos camponeses da Turingia. Todavia faltava-lhe
conhecimento militar e político para liderar os camponeses em sua revolução; na batalha de
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Frankenhausen, levaram oito pequenos canhões e nenhuma munição. Orientou aos
camponeses que ostentasse uma espada e uma grande bandeira de seda branca onde estava
desenhado o arco-íris, sinal da aliança de Deus com os eleitos.

Durante a batalha, Muntzer pregava enquanto os camponeses cantavam “Vem Santo


Espírito”. Foram mortos 5000 camponeses e seis soldados das tropas dos príncipes. Müntzer
foi aprisionado, torturado e decapitado em 27 de maio de 1525.

Normalmente, a Teologia cristã não se sente muito atraída pelas revoluções. E o


marxismo pouco consegue elaborar com a Teologia. Thomas Müntzer era um misto de
teólogo e revolucionário, procurou fundamentar teologicamente a revolução. Propunha uma
revolução social, sem a qual não poderia haver reforma religiosa. O reino de Deus deve está
presente na concretude do cotidiano, restaurando a dignidade de homens e mulheres, num
Reino de Deus que se instauraria no aqui e agora daquele momento.

4 CONCLUSÃO

Em seu livro “As Guerras Camponesas na Alemanha” Engels (1977) argumenta que,
apesar das experiências feitas em datas mais recentes (verão de 1850), a ideologia alemã
queria ver nas lutas que deram cabo na Idade Média, apenas uma ardorosa disputa teológica.
Segundo diziam os mestres das histórias da Alemanha e os sábios de gabinete, as pessoas
daquele tempo não teriam motivo de lutar por coisas desse mundo se tivessem podido
concordar sobre assuntos celestiais. “Nossos ideólogos não querem saber da luta de classe que
se decide naqueles movimentos e que não faz mais do que se expressar superficialmente nas
reivindicações políticas que lhe servem” de bandeira.

Para Engels (1977), igualmente, nas chamadas guerras religiosas do século VI, tratava-
se, sobretudo, de interesses materiais e de classe muito positivos, e estas guerras foram lutas
de classes, do mesmo modo que os conflitos internos ocorridos posteriormente na França e na
Inglaterra. O fato destas lutas de classes travarem-se com pretexto religioso e dos interesses,
reenvidicações e necessidades das diversas classes ocultam-se sob o manto da religião, em
nada muda os seus fundamentos e se explica facilmente pelas circunstância de época.

Para Engels, a política doutrinária de Müntzer procede diretamente de seu pensamento


religioso revolucionário e adiantava-se a situação social e política de sua época da mesma
maneira que sua teologia às idéias e conceitos corrente. Se a filosofia religiosa de Müntzer se

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aproximava do ateísmo, seu programa político tinha afinidades com o comunismo. Em seu
programa, o resumo das reivindicações plebéias aparece menos importante do que a
antecipação do elemento proletário que apenas acabava de fazer sua aparição entre os plebeus.

Tal programa exigia o estabelecimento imediato do Reino de Deus, do reino milenário


de felicidade, tantas vezes anunciadas pela volta da Igreja à sua origem, e pela supressão de
todas as instituições que se achassem em contradição com esse cristianismo que se dizia
primitivo e que na realidade era Altamente moderno.

Em Müntzer, o céu não é coisa do além. Temos que procurá-lo nesta vida. Ao crente
compete a missão de estabelecer esse céu. O Reino de Deus sobre a terra. Assim, depois da
morte não há céu nem tampouco inferno ou condenação eterna. E não há autoridade, outro
diabo, senão a cobiça e concupiscência dos homens.

Percebemos que o discurso religioso estava sempre imbuído com o discurso político.
Que legitimava ou instaurava uma ordem social. Os sacerdotes e acadêmicos via de regra
eram quem detinham o privilégio de ler e o poder de interpretar as Escrituras Sagradas. Mas o
advento dos movimentos de Reforma associado ao evento da imprensa, trouxeram a homens,
mulheres, camponeses e artesão a condição de possibilidade da leitura do texto bíblico, que,
aliada a idéia de sacerdócio universal dos crentes, cunhou espaços para o movimento
teológico revolucionário, como os Anabatistas, que interpretavam o texto bíblico a partir de
uma leitura sócio-política-revolucionária.

Os anabatistas fizeram do discurso religioso, elaborado a partir da realidade social em


que estavam inseridos seus manifestos mais radicais, cujas propostas faziam tremer as
autoridades políticas e eclesiásticas da Europa. A leitura que os anabatistas fazem através da
religião da condição social em que se encontravam os excluídos de várias comunidades
européias, nos faz pensar que estereotipar a religião como fator de alienação social e política
é, no mínimo, desconhecer eventos históricos como esses. Segundo, que propor a eliminação
radical das manifestações religiosas em determinadas sociedades a fim de bem governá-las é
uma precipitação ingênua. As religiões normalmente fazem parte da formação da identidade
de indivíduos e sociedades. Se pretendemos conhecê-los melhor, é bom não desprezá-la.

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REFERÊNCIAS

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BLOCH, Ernest. Thomas Muntzer: teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1973.

DREHER, Martin N. A Crise e a renovação da Igreja no período da Reforma. São


Leopoldo: Sinodal, 1996. v. 3.

______. O profeta Thomas Muntzer. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 42, n. 165,
1982.

ENGELS, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo, 1977.

GONZÁLEZ, Justo. A era dos reformadores: uma história ilustrada do cristianismo. São
Paulo, Vida Nova, 1980. v. 6.

HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2003.

MATEUS. Português. In: BÍBLIA de Estudos de Genebra. Tradução de João Ferreira de


Almeida. São Paulo: Cultura Cristã; Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. p. 1126.

BIANCA DAÉB’S SEIXAS ALMEIDA


*Professora da Faculdade Batista Brasileira. Mestranda em História pela UFBA.
E-mail: biancadaebs@yahoo.com.br

Artigo recebido para publicação em 24/05/2005.

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