REFORMA PROTESTANTE E PROTESTANTISMO EM TERRAS BRASILEIRAS
I – Sementes da Reforma
A Reforma Protestante do século 16 foi um movimento que desafiou e a
igreja ocidental a realinhar seu sistema de crenças, moralidades e estruturas aos fundamentos bíblicos. A igreja não vivia em um vácuo, mas dentro de um contexto político e social com o qual tinha interações, mas este fato não diminui as causas e muito menos o valor intrínseco da Reforma; pelo contrário, confirma a soberania de Deus ensinada em sua palavra, confirma o que os próprios reformadores vão pregar: Deus é o Senhor da história. Antecedentes importantes apontavam para uma crescente pressão por uma reforma na igreja cristã que, neste período, sofria com crises internas e externas de grandes proporções.
Crises internas da igreja na idade média: Internamente havia uma crise
vocacional, a igreja, se afastara do seu cerne como uma comunidade de irmãos em Cristo, e se tornara uma grande força latifundiária e uma poderosa força religiosa/política, grande parte da vida econômica girava em torno das igrejas paroquiais. Havia uma crise moral da liderança que abrangia desde o mais alto clero até o seu mais humilde membro. Um exemplo disto foi o Papa Alexandre VI ter comprado seu papado em 1492, mesmo sendo público o fato de que tinha diversas amantes e filhos ilegítimos. Monastérios eram preenchidos por jovens trazidos por seus pais como um investimento ambicioso no status social de suas famílias, e eram normalmente descritos como antros infestados de promiscuidade sexual. Em toda parte, cresceram as críticas às extravagâncias e ao luxo da corte papal. O chamado “Grande Cisma”, momento em que houve dois e posteriormente três papas rivais em Roma, Avinhão e Pisa (1378-1417) escancarou por completo a decadência do papado e aumentou o clamor por reformas. Havia uma crise teológica visto que um dos principais movimentos de reflexão teológica da igreja neste período, o escolasticismo, se perdera em discussões filosóficas complexas e irrelevantes. O exemplo do debate sobre quantos anjos caberiam numa cabeça de um alfinete, ilustra a inútil e árida especulação intelectual a respeito de trivialidades em que a igreja se envolvera. Havia uma crise devocional visto que a igreja fracassava no pastoreio espiritual do rebanho. O confessionário era meticuloso e induzia os fiéis a realizarem boas obras para compensarem o sentimento de culpa, o que era ineficiente. O culto se tornara um ritual frio e apenas externo, repleto de superstições.
Crises externas da igreja na idade média: Externamente havia uma
crise política e econômica de grandes proporções. As autoridades civis estavam cada vez mais insatisfeitas com a ingerência papal em seus negócios. Os “Estados Nacionais” nasceram e as modernas nações europeias surgiram com grande ameaça as ambições do papado. Na Alemanha, França e Inglaterra medidas foram tomadas para que o poder fosse descentralizado do imperador e fortes tensões surgiram entre a igreja e o estado. O Surgimento das cidades e de uma próspera classe média urbana criou um espírito novo de individualismo, estes começaram a entender a injustiça de uma ordem social em que eram oprimidos por uma minoria. O final da Idade Média foi marcado por muitas convulsões políticas, sociais e religiosas. Entre as políticas destacou-se a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre a Inglaterra e a França. Houve também muitas revoltas camponesas, o declínio do feudalismo, a expansão das cidades e o surgimento do capitalismo. Havia uma crise social, fomes periódicas e o terrível flagelo da peste bubônica ou peste negra (1348). As guerras, epidemias e outros males produziam morte, devastação e desordem, ou seja, a ruptura da vida social e pessoal. O sentimento dominante era de insegurança, ansiedade, melancolia e pessimismo. Havia também uma crise intelectual, pois o Renascimento trouxe uma postura crítica de muitas mentes lúcidas quanto a vida religiosa proposta pela igreja romana. Estes humanistas visava um retorno as fontes, as obras da Antiguidade, o que levou os humanistas bíblicos de volta as línguas originais. O de maior destaque foi o holandês Erasmo de Roterdã (1466?-1536), “o príncipe dos humanistas”, que publicou uma edição crítica do Novo Testamento grego com uma tradução latina, talvez a obra mais importante publicada no século 16, que muito influenciou os reformadores e serviu de base para as traduções de Lutero, Tyndale e Lefèvre e contribuindo significativamente para a Reforma.
Pré-reformadores. Antes de se mencionar os pré-reformadores e
importante destacar uma igreja protestante anterior a Reforma do Sec. XVI, ela nasceu do movimento do valdenses, liderado por Pedro Valdo ou Valdes († c.1205), de Lião, cujos seguidores ficaram conhecidos como “homens pobres de Lião”. Tinham um estilo de vida comunitário, ensinavam as Escrituras no vernáculo (enfatizando o Sermão do Monte), incentivavam a pregação de leigos e de mulheres, negavam o purgatório. Condenados pelo Concílio de Verona em 1184, foram muito perseguidos, refugiando-se em vales remotos e quase inacessíveis dos alpes italianos, mais tarde, abraçaram também a Reforma. Geralmente entende-se que João Wycliff (1325?-1384) foi o primeiro pre- reformador. Ele foi um sacerdote e professor da Universidade de Oxford na Inglaterra que atacou as irregularidades do clero, as superstições, bem como a transubstanciação, o purgatório, as indulgências, o celibato clerical e as pretensões papais. Seus seguidores, conhecidos como os lolardos, tinham a Bíblia como norma de fé que todos devem ler e interpretar. Outro pré-reformador foi João Hus (c.1372-1415), um sacerdote e professor da Universidade de Praga, na Boêmia, foi influenciado pelos escritos de Wycliff. Definia a igreja por uma vida semelhante à de Cristo, e não pelos sacramentos. Dizia que todos os eleitos são membros da igreja e que o seu cabeça é Cristo, não o papa. Insistia na autoridade suprema das Escrituras. Hus foi condenado à fogueira pelo Concílio de Constança. Seus seguidores ficaram conhecidos como Irmãos Boêmios (1457) e foram muito perseguidos. Foram os precursores dos Irmãos Morávios, outro grupo protestante cujas raízes são anteriores à Reforma do século 16. Outro incluído entre os pré-reformadores foi Jerônimo Savonarola (1452- 1498), um frade dominicano de Florença, na Itália, que pregou contra a imoralidade na sociedade e na Igreja, inclusive no papado. Governou a cidade por algum tempo, mas finalmente foi excomungado e enforcado como herege. II – Raízes da Reforma
A Reforma começou mais notadamente no dia 31 de outubro de 1517 quando
o frade agostiniano Martinho Lutero, inconformado com a venda de indulgências e com outras distorções da igreja romana, afixou à porta da igreja de Wittenberg as suas Noventa e Cinco Teses, a maneira usual de convidar-se uma comunidade acadêmica para debater algum assunto. Logo, uma cópia das teses chegou às mãos do arcebispo, que as enviou a Roma. No ano seguinte, Lutero foi convocado para ir a Roma a fim de responder à acusação de heresia. Recusando-se a ir, foi entrevistado pelo cardeal Cajetano e manteve as suas posições. Em 1519, Lutero participou de um debate em Leipzig com o dominicano João Eck, no qual defendeu o pré-reformador João Hus e afirmou que os concílios e os papas podiam errar. Em 1520, a bula papal Exsurge Domine (= “Levanta-te, Senhor”) deu-lhe sessenta dias para retratar-se ou ser excomungado. Os estudantes e professores da universidade queimaram a bula e um exemplar da lei canônica em praça pública. Nesse mesmo ano, Lutero escreveu várias obras importantes, especialmente três: À Nobreza Cristã da Nação Alemã, O Cativeiro Babilônico da Igreja e A Liberdade do Cristão. Isso lhe deu notoriedade imediata em toda a Europa e aumentou a sua popularidade na Alemanha. No início de 1521, foi publicada a bula de excomunhão, Decet Pontificem Romanum. Nesse ano, Lutero compareceu a uma reunião do parlamento, a Dieta de Worms, onde reafirmou as suas ideias. Foi promulgado contra ele o Edito de Worms, que o levou a refugiar-se no castelo de Wartburgo, sob a proteção do príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio. Ali, Lutero começou a produzir uma obra-prima da literatura alemã, a sua tradução das Escrituras. A Reforma Protestante, mesmo que condicionada ao contexto social, político e econômico de sua época, foi além de tudo um movimento soberano de Deus que moveu homens em direção a uma volta a palavra de Deus e aos alicerces da igreja primitiva. A igreja tinha colocado sua confiança no poder, no dinheiro e em seus próprios entendimentos e tradições deixando a Bíblia de lado e o Espírito Santo esquecido. Os Reformadores levantaram acima de tudo o resgate de cinco importantes pilares da Fé Cristã. Abaixo uma breve descrição do ensino central de cada um dos “cinco solas” e a ilustração na vida de cinco personagens importantes da Reforma.
1) Somente a Fé. Um monge chamado Lutero – Sola Fide
Martinho Lutero nasceu em 1483 na pequena cidade de Eisleben, na Turíngia, em um lar muito religioso. Seu pai trabalhava nas minas e a família tinha uma vida confortável. Inicialmente, o jovem pretendeu seguir a carreira jurídica, mas em 1505 defrontou-se com a morte em uma tempestade e resolveu abraçar a vida religiosa. Ingressou no mosteiro agostiniano de Erfurt, onde se dedicou a uma intensa busca da salvação. Em 1512, tornou-se professor da Universidade de Wittenberg, onde passou a ministrar cursos sobre vários livros da Bíblia, como Gálatas e Romanos. Seu contato com a Palavra de Deus e com os escritos de Agostinho proporcionaram uma mudança radical na sua teologia. Lutero resgatou a importante doutrina da justificação somente pela fé. Justificação. Lutero anteriormente considerava a obra humana como pré- requisito para a justificação, mas fora convencido pelo apóstolo Paulo em Romanos e pelas reflexões de Agostinho de que ninguém teria condições de justificar-se com suas obras. Logo, considerava a “justiça de Deus” como algo apenas punitivo. No entanto, ele descobriu o “novo” sentido para a expressão “justiça de Deus” como uma justiça que Deus concede ao pecador. Deus concede a justiça aos pecadores que eles precisam para serem justificados. Ou seja, as boas novas do evangelho é que Cristo satisfez o pré-requisito em nosso lugar para sermos salvos, Ele é a nossa justiça. Lutero então discerniu que o Deus do evangelho cristão não é um juiz impiedoso que recompensa os indivíduos de acordo com seus méritos, mas sim um Deus bondoso e misericordioso que concede a justiça como uma dádiva aos pecadores. Somente pela fé. Lutero afirma que “a razão pela qual algumas pessoas não entendem porque somente a fé justifica é por não entender o que é a fé”. Três entendimentos importantes aqui sobre a fé: 1. A fé possui uma dimensão pessoal e não puramente histórica. Uma fé que apenas sustenta como confiável o fato histórico dos evangelhos não justifica, mas a fé salvadora envolve o ato de crer e confiar em Cristo que nasceu por nós de uma maneira pessoal e realizou por nós uma obra de salvação; 2. A fé significa confiança, ou seja, não é apenas crer que algo é verdade; é estar preparado para agir de acordo com essa crença, depositando nela sua confiança. Lutero usa a analogia do navio: a fé não se restringe apenas a acreditar que o navio existe – mas significa estar pronto para subir a bordo deste navio, confiando nossa vida a ele; 3. A fé une o cristão a Cristo. A fé não é a aceitação de um conjunto de crenças abstratas mas um relacionamento com o próprio Cristo. Conforme afirma a Declaração de Cambridge, reafirmamos que a justificação é somente pela graça, somente por intermédio da fé, somente por causa de Cristo. Na justificação a retidão de Cristo nos é imputada como o único meio possível de satisfazer a perfeita justiça de Deus. Negamos que a justificação se baseie em qualquer mérito que em nós possa ser achado, ou com base numa infusão da justiça de Cristo em nós; ou que uma instituição que reivindique ser igreja mas negue ou condene sola fide possa ser reconhecida como igreja legítima.
2) Somente Cristo. Um padre chamado Zuínglio – Solus Christus
Ulrico Zuínglio recebeu uma educação esmerada, com forte influência humanista. Inicialmente, foi sacerdote em Glarus (1506) e em Einsiedeln (1516). Influenciado pelo Novo Testamento publicado por Erasmo de Roterdã, tornou-se um estudioso das Escrituras e um pregador bíblico. Com isso, foi chamado para trabalhar na catedral de Zurique em 1518. Zwinglio enxergou que somente a Bíblia possui a doutrina necessária para a salvação e viu a necessidade de deixar de lado os ensinamentos humanos e “aprender a doutrina de Deus diretamente de Sua própria Palavra”. Partindo desse pressuposto, Zwuinglio elaborou 67 artigos de fé. “Cristo é o único caminho para a salvação, para todos os que já existiram, existem e existirão” afirma Zwinglio no seu terceiro artigo destacando o Solus Chistus. Cristo era o verbo encarnado que nos redimiu da morte e nos reconciliou com Deus por Sua inocência, o único caminho para a salvação. Zuinglio reforçou o importante resgate da doutrina da salvação somente em Cristo, se opôs ao culto de imagens, as relíquias e aos santos, atacou a doutrina sacramental romana e o celibato do clero. Zuinglio e outros reformadores redescobriram que o centro de todas as coisas é o Senhor Jesus (Cl. 1:16-19). Conforme afirma a Declaração de Cambridge, reafirmamos que nossa salvação é realizada unicamente pela obra mediatória do Cristo histórico. Sua vida sem pecado e sua expiação por si só são suficientes para nossa justificação e reconciliação com o Pai. Negamos que o evangelho esteja sendo pregado se a obra substitutiva de Cristo não estiver sendo declarada e a fé em Cristo e sua obra não estiver sendo invocada.
3) Somente a Graça. Um estudioso chamado Calvino - Sola Gratia
João Calvino nasceu em Noyon, no nordeste da França. Seu pai, Gérard Cauvin, era secretário do bispo e advogado da igreja local e sua mãe Jeanne Lefranc, morreu quando ele ainda era uma criança. Após os primeiros estudos em sua cidade, Calvino seguiu para Paris, onde estudou teologia e humanidades (1523-1528). Depois foi estudar direito nas cidades de Orléans e Bourges (1528- 1531) por determinação de seu pai. Com a morte do pai, retornou a Paris e deu prosseguimento aos estudos humanísticos, publicando sua primeira obra, um comentário do tratado de Sêneca Sobre a Clemência. Calvino converteu-se provavelmente em 1533. Neste mesmo ano Calvino foi considerado o co-autor do discurso repleto de ideias protestantes que seu amigo Nicholas Cop pronunciou na Universidade de Paris e os dois amigos tiveram de fugir para salvar a vida. Calvino foi para a cidade de Angouleme, onde começou a escrever a sua obra mais importante, Instituição da Religião Cristã ou Institutas, publicada em Basiléia em 1536. Após voltar por breve tempo ao seu país, Calvino decidiu fixar- se na cidade protestante de Estrasburgo, onde atuava o reformador Martin Butzer (1491-1551). No caminho, ocorreu um episódio marcante. Impossibilitado de seguir diretamente para Estrasburgo por causa de guerra entre a França e a Alemanha, Calvino fez um longo desvio, passando por Genebra, na Suíça francesa. Essa cidade havia abraçado o protestantismo reformado há apenas dois meses (maio de 1536), sob a liderança de Guilherme Farel (1489-1565). Este, sabendo que o autor das Institutas estava de passagem pela cidade, o “convenceu” a permanecer ali e ajudá-lo. Mas Calvino e Farel enfrentaram conflitos com os magistrados de Genebra e ele acabou indo para Estrasburgo onde ficou três anos, pastoreou uma igreja de refugiados franceses, casou-se, lecionou e escreveu algumas obras importantes. Genebra o chamou de volta e depois de certa resistência ele retornou para esta cidade onde implantou uma grande reforma na intenção de transforma-la numa cidade cristã modelo. Calvino foi notável erudito escrevendo comentários sobre quase todos os livros do Noto Testamento e muitos do Velho Testamento. Sua maior obra foi As Institutas onde procurou expor todos os aspectos da doutrina cristã. Calvino reforça a salvação como um ato de pura graça de Deus, um favor totalmente imerecido. Calvino afirma: “Pois esta é nossa confiança, esta nossa glória, a única âncora de nossa salvação: que Cristo, o Filho de Deus, é nosso, e nós, por nossa vez, nele somos filhos de Deus e herdeiros do reino celeste, chamados à esperança da bem-aventurança eterna pela benignidade de Deus, não por nossa dignidade”. Conforme afirma a Declaração de Cambridge, reafirmamos que na salvação somos resgatados da ira de Deus unicamente pela sua graça. A obra sobrenatural do Espírito Santo é que nos leva a Cristo, soltando-nos de nossa servidão ao pecado e erguendo-nos da morte espiritual à vida espiritual. Negamos que a salvação seja em qualquer sentido obra humana. Os métodos, técnicas ou estratégias humanas por si só não podem realizar essa transformação. A fé não é produzida pela nossa natureza não-regenerada.
4) Somente a Bíblia. Um professor chamado Knox - Sola Scriptura
John Knox empenhou grande esforço para o progresso do evangelho na Escócia. Ordenado sacerdote católico tornou-se discípulo de George Wishart que introduzira os ideais da reforma na Escócia. Wishart foi queimado em 1546. Knox pregou para soldados protestantes e acabou preso pelo exercito francês, trabalhou 19 meses como escravo. Evitou voltar a Escócia devido a perseguição indo para a Inglaterra onde tornou-se ministro e pregador. Foi capelão real e um dos pregadores da corte inglesa. Com a ascensão de Maria Tudor ao poder na Inglaterra fugiu para Genebra onde passou algum tempo como aluno de Calvino. Em dezembro de 1557, os nobres escoceses fizeram um pacto de usar suas vidas e bens para estabelecer a “Palavra de Deus” na Escócia. Em 1559 John Knox retornou ao seu país onde foi usado por Deus para liderar a Reforma naquele país e influenciar todo o continente. Participou da composição da Confissão Escocesa e ajudou a esboçar o livro de Disciplina onde defende como marcas da igreja verdadeira: a correta pregação da Palavra de Deus, a administração correta dos sacramentos e o exercício correto da disciplina eclesiástica. Knox via a si mesmo como um pregador e não como um teólogo acadêmico. Entendia que sua função era a de “tocar a trombeta do seu mestre”. Seus sermões eram caracterizados pela exposição bíblica e pela preferência pelo Antigo Testamento, atacando a idolatria e a corrupção do culto cristão. Knox seguia à risca o princípio da sola Scriptura, tendo a Bíblia como a única base autorizada em que a doutrina pode ser fundamentada. John Knox afirma: “A idolatria principal é quando defendemos as nossas próprias invenções como justas à vista de Deus por achar que elas são boas, louváveis, e agradáveis. Não devemos pensar que sejamos tão livres ou tão sábios que possamos fazer a Deus, e à Sua glória, aquilo que pensamos que é apropriado. Não! Deus ordena o contrário, dizendo: “Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando” (Dt. 4:2).” Conforme afirma a Declaração de Cambridge, reafirmamos a Escritura inerrante como fonte única de revelação divina escrita, única para constranger a consciência. A Bíblia sozinha ensina tudo o que é necessário para nossa salvação do pecado, e é o padrão pelo qual todo comportamento cristão deve ser avaliado. Negamos que qualquer credo, concílio ou indivíduo possa constranger a consciência de um crente, que o Espírito Santo fale independentemente de, ou contrariando, o que está exposto na Bíblia, ou que a experiência pessoal possa ser veículo de revelação.
5) Só a Deus toda Glória. Um rei chamado Henrique VIII - Soli Deo
Gloria Um quinto pilar reforçado pela Reforma foi o ensino bíblico de que toda a glória pertence somente a Deus (1 Co 10:31). E Deus não abre mão de sua glória mesmo que homens tentem trazê-la para si mesmos. E foi justamente no contexto de duas forças humanas reivindicando glória para si, um papa e um rei, que a Inglaterra experimentou um movimento rumo a Reforma. A Reforma Protestante foi liderada por piedosos e corajosos cristãos em várias regiões da Europa, mas na Inglaterra o principal responsável pelo movimento de reforma da igreja foi o monarca Henrique VIII, da dinastia Tudor, o mais importante de todos os reis absolutistas ingleses. Henrique (1491-1547) pediu o divórcio de sua esposa Catarina de Aragão para casar-se com outra mulher. Ele tivera uma filha com Catarina, a futura rainha Maria Tudor, mas desejava ter um herdeiro para o seu trono. Entretanto o papa Clemente VII negou o pedido de divórcio do rei Henrique e lhe ameaçou de excomunhão caso se casasse de novo. O papa intencionava manter diplomacia com o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina de Aragão, cujo exército cercava Roma. A resposta de Henrique foi declarar a independência da Inglaterra, não só como nação-Estado, mas como província separada da igreja – e a autonomia do rei inglês. Houve então uma reforma imposta de cima para baixo na Inglaterra com o objetivo de desenvolver uma forma inglesa de catolicismo sem a tradicional submissão ao papa mas uma submissão ao rei. Apesar de ainda se manter católico e desagradar tanto a igreja romana que o excomungou, quanto os reformadores que esperavam mudanças muito maiores, ainda no tempo de Henrique, Oliver Crown, vigário geral do rei, colocou uma bíblia em latim e outra em inglês em cada igreja para que qualquer pessoa pudesse ler, começou a preparar o que viria a ser o Livro de Oração Comum, mantendo intensa correspondência com Melanchton, Calvino, Bucero e Pedro Mártir Vermigli. Neste Livro de Oração Comum, já não foi mais adotado a doutrina da transubstanciação, ou a reserva da espécie, nem a adoração do Santíssimo Sacramento e a oração pelos mortos, nem a unção dos recém- nascidos e dos doentes. O rei Henrique VIII morreu em 1547 e seu filho Eduardo VI assumiu o trono. Apoiado por reformadores da corte, ele sim traria uma ruptura mais radical com o passado, saindo da ambiguidade teológica dos últimos anos no reinado de seu pai Henrique. Nem o rei Henrique VIII e nem o Papa Clemente VII puderam garantir seus poderes obre a igreja, antes a história testemunha o poder Soberano de Deus que merece toda glória. Conforme afirmaria a Declaração de Cambridge, reafirmamos que, como a salvação é de Deus e realizada por Deus, ela é para a glória de Deus e devemos glorificá-lo sempre. Devemos viver nossa vida inteira perante a face de Deus, sob a autoridade de Deus, e para sua glória somente. Negamos que possamos apropriadamente glorificar a Deus se nosso culto for confundido com entretenimento, se negligenciarmos ou a Lei ou o Evangelho em nossa pregação, ou se permitirmos que o afeiçoamento próprio, a autoestima e a auto realização se tornem opções alternativas ao evangelho.
III. Ramos da Reforma
Reformados e a luta pela sã doutrina.
Os reformadores entenderam a importância de se voltarem para a Bíblia e as doutrinas somente nela presentes. Lutero é questionado em Worms por John Eck, o eloquente representante do Imperador: “como ousa desafiar toda a igreja e como podia concluir o único certo e todos os demais errados; como todos os papas podiam estar errados, todos os cardeais, toda a história da igreja?”. John Eck continua: "Se seus primeiros livros foram ruins, os últimos são piores ainda. Você precisa renunciar agora a sua heresia. Você é a mesma coisa que Wycliffe e Huss; agora, será que você, sem muitas desculpas, nega os seus livros e os retira? É o momento de sua última chance de renunciar aos seus erros. Negue estes livros!". Lutero se dirige ao Imperador e a todos aqueles líderes que estavam ali e responde: "Não vou usar de mais argumentos e a menos que seja convencido pela Bíblia, não aceito a autoridade papal, nem os concílios de tradição católicos. Todos eles se contradizem. Minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Tudo que posso fazer é não negar os meus livros, pois não posso ir de encontro a minha consciência. Ajuda-me Senhor Deus! Amém”. A Reforma trouxe uma discussão importante acerca da autoridade e interpretação da Bíblia. Ela não estava interessada no estabelecimento de uma tradição cristã inédita, mas antes na renovação e correção da tradição existente. Os reformadores defendiam o retorno as Escrituras como fonte primária e essencial da teologia cristã. O protestante inglês do séc. 17, William Chillingworth afirma: “A Bíblia e somente a Bíblia, digo eu, é a religião dos protestantes”. Calvino afirma claramente: “Que seja este então um axioma inequívoco: nada pode ser admitido na igreja como palavra de Deus senão aquilo que está contido, primeiro na Lei e nos Profetas, e depois nos escritos dos Apóstolos; e não há nenhum outro método de ensina na igreja senão aquele de acordo com a prescrição e regra dessa Palavra”. Para que as Igrejas Evangélicas atuais possam manter-se fiéis à sua vocação, é preciso que julguem tudo pelas Escrituras, acolhendo o que é bom e lançando fora o que é mau. Os reformadores nos mostraram que o critério da verdade não são os ensinos humanos, nem a experiência espiritual subjetiva, mas o Espírito Santo falando na Palavra e pela Palavra.
Huguenotes e a semente do evangelho
Na França o movimento reformado surgiu por volta de 1530 debaixo da oposição de Henrique I e de forma mais severa por Henrique II. Em 1559 reuniu- se o primeiro sínodo nacional da Igreja Reformada da França, que aprovou a Confissão Galicana. Em 1561, havia duas mil congregações reformadas no país, compostas de artesãos, comerciantes e até mesmo de algumas famílias nobres. Os reformados franceses, conhecidos como huguenotes, estavam concentrados principalmente no oeste e sudoeste do país, e recebiam apoio de Genebra. Um dos marcos da perseguição aos huguenotes foi o Massacre do Dia de São Bartolomeu (24-08-1572). Centenas de huguenotes achavam-se em Paris para o casamento da filha de Catarina com o nobre protestante Henrique de Navarra. Na calada da noite, os huguenotes foram assassinados à traição enquanto dormiam, entre eles o seu principal líder, almirante Gaspard de Coligny. Nos dias seguintes, muitos milhares foram mortos no interior da França. Mais tarde, quando o nobre huguenote tornou-se rei, com o título de Henrique IV, ele promulgou em favor dos seus correligionários o Edito de Nantes (1598), concedendo-lhes uma tolerância limitada. Esse edito seria revogado pelo rei Luís XIV em 1685, dando início a um novo período de duras provações para os reformados franceses. Alguns fugiram para Inglaterra, outros para os países baixos, e outros até para as Américas. Inclusive a história registra huguenotes chegando ao Brasil colonial em março de 1557, participando na bacia de Guanabara do que muitos afirmam ter sido o primeiro culto protestante ocorrido no Novo Mundo.
Puritanos e a missão do povo de Deus
Na Inglaterra, além da igreja anglicana (a igreja do estado), haviam outros grupos de protestantes, como os puritanos, presbiterianos e congregacionais. Os puritanos surgiram no reinado de Elizabete e foram assim chamados porque reivindicavam uma igreja pura em sua doutrina, culto e forma de governo. Reprimidos na Inglaterra, muitos puritanos foram para a América do Norte, estabelecendo-se em Plymouth (1620) e Boston (1630), na Nova Inglaterra. O primeiro esforço missionário dos protestantes na Inglaterra eclodiu do solo da esperança puritana. Eles tinham uma profunda confiança na soberania de Deus e de que Cristo conquistaria corações em cada nação e seria glorificado por todas as pessoas da terra. 150 anos antes de William Carey marcar o movimento missionário moderno, milhares de puritanos emigraram para a América, e no brasão dos colonizadores da Baía de Massachusetts tinha sobre ele um índio norte-americano com estas palavras saindo de sua boca: “Passa à Macedônia e ajuda-nos”, extraídas de Atos 16.9. Piper bem observa que isso mostra que, em geral, os puritanos viram sua imigração para a América como parte da estratégia missionária de Deus para estender seu reino entre as nações. O ensino do puritano John Eliot, missionário entre os índios americanos do século 17, ilustra a visão puritana da missão: Deus e ninguém mais é o soberano Senhor das missões; Deus se utiliza de meios para atingir a redenção do homem e o homem é responsável por aceitar ou rejeitar o evangelho.
Irmãos Morávios e o avivamento missionário
"Venceu o nosso Cordeiro. Vamos segui-Lo", este era o lema da igreja morávia. Depois de muita perseguição no seu país de origem, Boemia - Morávia, no centro da Europa, um pequeno grupo escapou para a Alemanha oriental (1722). Cinco anos depois, na vila de Herrnhut (abrigo do Senhor), na propriedade rural do Conde de Zinzendorf, Deus derramou sobre eles seu Espírito Santo de uma maneira especial (1727). Não é que houve milagres e línguas, mas muito quebrantamento verdadeiro e uma consciência profunda de ser uma comunhão ao redor do Cordeiro de Deus. Iniciaram o que seria a reunião de oração mais longa da história, cem anos de intercessão ininterrupta. Um grupo de jovens começou a preparar-se para missões após o dia de trabalho árduo de colono, estudando a Bíblia, línguas, geografia e medicina. Mas cinco anos depois, o Conde estava em Copenhagen na festa de coroação de um rei dinamarquês. Ali ele recebeu duas chamadas, uma para trabalhar entre os escravos numa ilha dinamarquesa no Caribe, outra para ajudar na evangelização entre os esquimós na Groenlândia. Voltando para casa, a sua igreja aceitou o desafio, iniciando o imenso trabalho missionário moraviano. Os Moravianos eram profundamente dedicados ao Senhor Jesus Cristo e eram extremamente cristocêntricos. Zinzendorf aconselhava os missionários que saíam: “Vocês devem ir, direto, ao ponto e falar-lhes a respeito da vida e da morte de Cristo”. Avivamento Inglês e Americano No século XVII houve um declínio do anglicanismo com a forte influência do Estado, o secularismo e o deísmo. Dentre alguns movimentos de revitalização destacou-se a obra de John Wesley (1703-1791) e a criação do metodismo. Junto com seu irmão Charles Wesley, George Withifield e outros amigos foi criado o “Clube Santo” em Oxford na intenção de buscarem crescimento espiritual. Depois de uma experiência missionária frustrante na América, Wesley retornou a Inglaterra e passou por sua famosa conversão na Rua Aldesgate (1738). Logo depois conheceu o conde Zinzendorf em Hernhunt e foi muito influenciado pelo movimento morávio. Wesley foi um grande pregador, escritor e organizador. De seu ministério nasceu o movimento metodista que se estende até hoje. George Whitefield (!714-1770), inicialmente um companheiro de Wesley, destacou-se como extraordinário pregador e evangelista, fazendo várias viagens à América do Norte e influenciando o Grande Despertamento, o avivamento americano (1740). Carinhosamente, foi concedido pelos historiadores os títulos de "Príncipe dos Pregadores ao Ar Livre" e "O Apóstolo do Império Britânico", porque pregou em média dez vezes por semana durante trinta e quatro anos, e na maioria das vezes, a natureza foi o seu templo. Na América do Norte, o seu ministério foi contemporâneo e colaborou com o avivamento encabeçado por Jonathan Edwards, promovendo o Grande Despertamento. Jonathan Edwards foi uma das figuras mais extraordinárias da história norte-americana. Certamente o teólogo mais brilhante nascido na América, Edwards foi um atencioso pastor, um renomado pregador, missionário, biógrafo, filósofo, presidente de Universidade, marido amoroso e pai afetuoso de onze filhos. A maior contribuição de Jonathan Edwards para a igreja evangélica está nos importantes livros que escreveu como teólogo e intérprete do avivamento. O Dr. Lloyd-Jones diz que Edwards lutou em duas frentes: contra os adversários do avivamento e contra os extremistas; contra o perigo de extinguir o Espírito e contra o perigo de deixar-se levar pela carne e ser iludido por Satanás. Sua obra mais amadurecida sobre o assunto foi o Tratado sobre as Afeições Religiosas (resultou de uma série de sermões sobre 1 Pedro 1:8), no qual argumentou que o cristianismo verdadeiro não se evidencia pela quantidade ou intensidade das emoções religiosas, mas por um coração transformado que ama a Deus e busca o seu prazer.
Protestantismo em terras brasileiras
Pouco mais de meio século depois da descoberta do Brasil (1555), 38 anos depois da proclamação da Reforma Protestante e apenas 6 anos depois da chegada dos jesuítas na Bahia, aportou no Brasil uma caravana ecumênica procedente da França. Um grupo de franceses liderados por Nicolas Durand de Villegagnon instalou-se em uma das ilhas da Baía da Guanabara. Um ano e meio mais tarde, chegou à “França Antártica” um grupo de colonos e pastores reformados enviados pelo próprio João Calvino, em resposta a um pedido de Villegagnon. No dia 10 de março de 1557 esses evangélicos realizaram o primeiro culto protestante do Brasil, e possivelmente do Novo Mundo. Escreveram a “Confissão de Fé da Guanabara”, mas com base nessa declaração, três deles foram executados e outro foi poupado por ser o único alfaiate da colônia. O quinto autor da confissão de fé, Jacques le Baleur, conseguiu fugir, mas foi preso e mais tarde enforcado. Entre os que conseguiram retornar para a França estava o sapateiro Jean de Léry, que mais tarde tornou-se pastor e escreveu a célebre obra Viagem à Terra do Brasil (1578). Em 1568 as Províncias Unidas dos Países Baixos tornaram-se independentes da Espanha. A nova e próspera nação criou em 1621 a Companhia das Índias Ocidentais, em 1630 a Companhia das Índias Ocidentais tomou Recife e Olinda e dentro de cinco anos apossou-se de grande parte do nordeste brasileiro. O maior líder do Brasil holandês foi o príncipe João Maurício de Nassau-Siegen, que concedeu uma boa medida de liberdade religiosa aos habitantes católicos e judeus do Brasil holandês. Os holandeses criaram sua própria igreja estatal nos moldes da Igreja Reformada da Holanda. Durante os 24 anos de dominação, foram organizadas 22 igrejas e congregações. As igrejas destacaram-se pela sua atuação beneficente e sua ação missionária junto aos índios. Em 1645 houve a revolta dos portugueses e brasileiros contra os invasores, que finalmente foram expulsos em 1654. No restante do período colonial, o Brasil manteve-se isolado, sendo inteiramente vedada a entrada de protestantes. Somente em 1808 com a transferência da família real portuguesa, abriram-se as portas do país para a entrada legal dos primeiros protestantes (anglicanos ingleses). Durante quase 350 anos a presença quase absoluta do catolicismo no Brasil aliado a uma presença protestante estrangeira e tímida, mais empenhada em conservar a fé de seu próprio povo e sem ímpeto de evangelizar os nativos brasileiros, fez com que não houvesse a fundação de igrejas protestantes nacionais. Mas o movimento missionário do século XIX trouxe com seus desdobramentos o notável médico escocês Robert Reid Kalley com sua esposa Sarah Kalley (1855) e a primeira a primeira denominação inteiramente nacional (não sujeita a nenhuma junta missionária) foi fundada, a Igreja Congregacional. Registra-se outros missionários chegando ao Brasil como Ashbel G. Simonton, pioneiro da igreja presbiteriana no Brasil (1859), os metodistas chegaram efetivamente com um projeto de permanência e alcance missionário em 1867 com o missionário Justus Spauding, e os batistas efetivamente com um projeto de permanência e alcance missionário em 1880. Os ingleses fundaram missões para atuar na América do Sul: Help for Brazil (criada em 1892 por iniciativa de Sarah Kalley e outros), South American Evangelical Mission (Argentina) e Regions Beyond Missionary Union (Peru). Após a Conferência de Edimburgo (1910), essas missões vieram a constituir a União Evangélica Sul-Americana – UESA (1911). Neste contexto, nasceu a Igreja Cristã Evangélica. O canadense Reginald Young, juntamente com seu filho na fé e companheiro de jornada, o engenheiro inglês Frederick Glass, fundaram a primeira igreja da ICEB em São Paulo, a Igreja Cristã Evangélica Paulistana (1901). Fundaram um Instituto Bíblico, e seguiu-se com seus esforços e de seus alunos uma admirável expansão do evangelho para os estados de Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Goiás. O Sr. Glass transformou-se em destemido colportor e deu início às suas famosas expedições com a Bíblia pelo Brasil. Em 1904, a The South American EvangelizationMission (A Missão Evangelizadora da América do Sul), sob a liderança do Pr. Bryce Ranken, após transferir a sede do campo de Buenos Aires para São Paulo, teve enorme influência sobre o avanço administrativo e evangelístico da ICEB. CONCLUSÃO: SEMPRE RERFORMANDO
O primeiro concílio da igreja cristã em Atos 15, devido à controvérsia da
conversão de não judeus (polarizada entre os apóstolos Paulo e Pedro), já revelava uma verdade que ainda hoje precisamos nos lembrar: a palavra de Deus é imutável e infalível, mas nós como intérpretes, somos mutáveis e falíveis. A palavra de Deus é profunda e extremamente rica, mas nós somos rasos de compreensão e pobres de entendimento. O mandamento de amar a Deus com “todo o nosso entendimento” continua um desafio. Daí se justificar que a cada domingo um expositor dedicado da Bíblia pode nos surpreender com percepções da verdade de Deus, implicações surpreendentes e aplicações contextuais mais adequadas ao nosso tempo. A Bíblia é a verdade de Deus, mas nós não a conheceremos completamente em nossa breve vida terrena. Desde as divergências de interpretações e aplicações no tempo da igreja primitiva até os nossos dias, a Palavra de Deus continua uma fonte inesgotável em nossa hermenêutica diária. Além do engano interpretativo de Pedro, outros incontáveis exemplos ilustram a importância de não se subestimar a riqueza da Palavra de Deus. É preciso cuidado para não limitá-la a uma percepção precipitada e temporal, sem a devida profundidade em seu estudo e sem a devida contextualização de sua aplicabilidade. Como exemplo, observemos as frases de dois nativos registradas no processo de evangelização realizado por missionários ocidentais. Um evangelista indiano chamado Murthi afirmou: “não nos traga o evangelho com uma planta em um vaso. Traga-nos a semente do evangelho para plantarmos em nosso solo” . William Towsend ouviu de um índio na Guatemala: “Se o seu Deus é tão esperto porque ele não aprendeu a nossa língua?”, esta pergunta o levou a dedicar treze anos de sua vida na tradução da Bíblia para a língua dos índios cakchiquel e posteriormente fundar a Missão de Tradução da Bíblia Wycliffe . O princípio Sola Scriptura (só a Bíblia como regra de fé e prática), corretamente relembrado na reforma, não deve ser entendido simploriamente. Só a Escritura no sentido de ser somente ela como nossa base primordial de vida cristã. Mas, nunca Só a Escritura como se ela fosse um simples livro de receitas. Por exemplo, apesar dos reformadores destacarem o sacerdócio universal dos crentes e o princípio de qualquer pessoa poderia ter acesso a Bíblia e a sua compreensão clara, os reformadores e seus sucessores entenderam que um grupo seleto de estudiosos da palavra deveria pesquisá-la a fundo e facilitar seu entendimento para os leigos. É perigoso se entender que as compreensões e implicações da Palavra são facilmente dedutíveis e consensuais. Não tem sido assim em toda a história da igreja. Alister McGrath faz uma leitura interessante deste aspecto do protestantismo: “Ser protestante é sair em uma peregrinação intelectual e espiritual que nunca está completa. Cada ambiente, cada geração, cada desafio força a comunidade de fé a reler a Bíblia, perguntando-se o que ela tem a dizer nessa situação que não disse em outra. Para o puritano Robinson, nenhuma pessoa, nenhuma era poderia jamais perscrutar totalmente as profundezas da Escritura. Por meio da orientação do Espírito Santo, novos desafios poderiam levar a novas percepções; acima de tudo, em relação às estruturas e à política da igreja. O que pode ser correto em uma situação ou para uma era pode não ser em outra ou para outra” A igreja evangélica brasileira tem características diversificadas, assim como a igreja nativa africana e asiática. Somos fruto de uma dinâmica interação do protestantismo europeu e americano. Reformados, luteranos, anabatistas, anglicanos, metodistas, presbiterianos, congregacionais, episcopais, e, mais recentemente, o movimento pentecostal, transplantado dos Estados Unidos e adaptado em nossa cultura. Fica cada vez mais evidente que algumas ideias protestantes tradicionais a respeito de arquitetura da igreja, estrutura denominacional, padrões de adoração, e até determinados valores e comportamentos morais (vestuário, cinema, futebol, namoro, teatro, dança e música já foram sem exceção, pecado em determinados momentos), com frequência, são pouco mais que construções culturais refletindo a bigorna de uma época antiga da cultura europeia ocidental e não a compreensão completa da verdade bíblica. O caráter de Cristo expresso nas bem aventuranças é atemporal, mas as implicações externas dele são expressas em códigos compreensíveis de nosso tempo. Exemplo: uma mulher ficar em silencio na igreja de Corinto supria naquele contexto a demonstração de um bom testemunho cristão. Hoje na mesma região o testemunho seria manifesto de outra forma. Diante disto, o que significa ser “padrão de procedimento para os fiéis” (1 Tm 4:12) aqui no Brasil, nas Filipinas, na Nigéria, na Coréia do Sul, etc., qual é a essência e a forma deste padrão? Neste sentido, quanto à aplicabilidade dos princípios cristãos, devemos pensar no protestantismo como “semper reformandum”, sempre sendo reformado. Ou seja, o protestantismo localiza sua identidade no constante autoexame à luz da Bíblia e em sua disposição de se corrigir quando tomar a direção errada ou a situação mudar. O protestantismo seria visto como um método de aplicabilidade bíblica no contexto em que está. Mergulhemos nas profundezas ricas da Palavra de Deus, conservando seus princípios fundamentais, o credo cristão. Uma base para igrejas históricas deve ser os estudos bíblicos presentes nas confissões de fé registradas na história da igreja protestante e reformada, mas sem perder de vista uma construção teológica nacional sólida e bem fundamentada. Também submetamos nossas estruturas denominacionais, eclesiológicas e estratégicas a constante avaliação de sua fidelidade aos princípios bíblicos e suas implicações em nossa cultura. Ao nos lembrarmos da Reforma Protestante, lembremo-nos de que ainda não terminou. Semper Reformandum.
Pr. Tiago Leite
Citações de Alister McGrath, Hermisten Maia, Élben César, Franklin Ferreira,
John Piper, João Batista Cavalcante e Alderi Matos.