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Isto não é Filosofia

Isto não é um Curso de História da Filosofia


Prof. Vitor Ferreira Lima
Licenciado em Filosofia (UFRRJ)

Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 2
1. Humanismo renascentista ............................................................................................. 3
1.1 A Escola de Atenas...................................................................................................... 5
1.2 A Política renascentista ............................................................................................... 5
1.2.1 Nicolau Maquiavel................................................................................................. 6
2. Reforma Protestante ....................................................................................................... 7
3. Revolução Científica ....................................................................................................... 8
3.1 Metodologia científica .................................................................................................. 9
Bibliografia ............................................................................................................................ 11

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Introdução

O conceito de modernidade está relacionado ao de mudança, transformação e


progresso. Etimologicamente, provém do advérbio latino “modo”, que significa agora
mesmo, neste instante. Assim, moderno é aquilo que é do tempo atual, traçando uma
linha que separa este tempo do tempo anterior.
Em História da Filosofia, comumente atribui-se o período moderno aos séc. XVII-
XIX. Tal periodização origina-se do filósofo alemão Hegel (1770-1831), que foi o
primeiro a conceber a história da filosofia não como um relato das doutrinas e correntes
no tempo, mas como seguindo um princípio unificador e com uma finalidade definida.
Em suas Lições de história da filosofia, empreende uma história desde uma
perspectiva filosófica e não meramente historiográfica 1. Porém, do ponto de vista
cronológico, o uso do termo ‘moderno’ antecede o período compreendido pelo séc. XVII.
Nos primeiros séculos do cristianismo, a oposição antiqui e moderni já estava
posta. Os primeiros eram considerados aqueles que vieram antes de Cristo. Os
segundos, posteriores a Cristo – contemporâneos dos que utilizavam o termo, portanto.
O termo ‘moderno’ também era usado na Idade Média. Designava um movimento
na lógica a partir do séc. XII, logica modernorum (lógica nova), que se colocava em
oposição à tradição, chamada de logica vetus (lógica velha). Ockham e seus
seguidores serão conhecidos como defensores da via moderna em lógica.
Na últimas décadas do séc. XVII, os meios literários franceses passaram pela
querela dos antigos e dos modernos (les anciens et les modernes). De um lado,
adeptos da tradição clássica defendiam as referências greco-romanas. De outro,
adeptos da ideia de progresso nas artes e nas letras, bem como nas ciências. Nessa
controvérsia, enfatizou-se a superioridade do novo – em oposição ao velho – e rejeitou-
se a autoridade da tradição.
Todo esse movimento serviu para o uso que Hegel concede ao termo –
designando o atual, o presente, o que rompe com a tradição. Duas são as ideias
principais aqui: progresso e indivíduo. O novo passa a ser considerado mais avançado
que o antigo. A subjetividade passa ser encarada como o lugar da verdade, da origem
dos valores, em oposição ao saber adquirido na tradição e à autoridade externa. A
origem histórica da filosofia moderna pode ser desdobrada em três eventos:

• Humanismo renascentista (séc. XV)


• Reforma Protestante (séc. XVI)
• Revolução Científica (séc. XVII)

1
“É nessa obra, fundamentalmente, que Hegel estabelece a periodização que adotamos até hoje,
dividindo a história da filosofia em três período distintos, cada um com suas características específicas e
fazendo parte de um mesmo processo: o antigo, o medieval e, em suas palavras, ‘a filosofia do novo
tempo’ (Neuzeit), que, segundo ele, ‘consolidou-se apenas ao tempo da Guerra dos Trinta Anos (séc. XVII)
com Bacon, Jacob Boehme e Descartes’, dando especial ênfase a Descartes e à sua ‘filosofia do cogito’.”
(MARCONDES, 2017, p. 142)

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1. Humanismo renascentista

A Filosofia do Renascimento rompe com a Escolástica Medieval, mas não se


confunde com a Filosofia Moderna. Seu traço mais característico é o humanismo2.
Partindo da valorização dos clássicos, foi tirar seu lema do sofista Protágoras: “o homem
é a medida de todas as coisas”3. Ruptura mais clara com o período medieval não poderia
haver4.
O movimento renascentista surge em uma das regiões mais ricas da Europa à
época, a cidade de Florença, no séc. XV. A cidade era uma república, administrada por
governantes e chanceleres, não raro, cultos e que se preocupavam com a reconstrução
da cidade e de uma nova identidade. Artesãos e banqueiros haviam construído sua
riqueza no século precedente, e parte dos frutos dessa acumulação se traduziu em
incentivo às artes plásticas, à literatura, à filosofia.
Trata-se de uma arte voltada ao homem comum – artesão, artífice, cidadão.
Retratam-se com certa frequência as cenas domésticas e os burgueses que
patrocinavam os artistas. O retrato mais famoso do período, a Mona Lisa, de Leonardo
da Vinci (c. 1503) não é inspirado numa deusa ou em qualquer figura mitológica, mas
na esposa do comerciante Giocondo, que o encomendou.
Na literatura, o maior nome é Francesco Petrarca (1304-74), precursor do
movimento. Poeta, foi um dos primeiros a escrever poemas em língua italiana e a
defender a retomada dos clássicos, sobretudo de Cícero, e a valorizar a retórica, a moral
e a política.

2
“humanismo (do lat. humanistas) Movimento intelectual que apareceu no Renascimento. Lutando
contra a esclerose da filosofia escolástica e aproveitando-se de um melhor conhecimento da civilização
greco-latina, os humanistas (Erasmo, Tomás Morus, etc.) se esforçaram por mostrar a dignidade do
espírito humano e inauguraram um movimento de confiança na razão e no espírito crítico. Por uma
espécie de deslocamento, o termo ‘humanismo’ tomou dois sentidos particulares: a) na filosofia, designa
toda doutrina que situa o homem no centro de sua reflexão e se propõe por objetivo procurar os meios
de sua realização; b) na linguagem universitária, designa a ideia segundo a qual toda formação sólida
repousa na cultura clássica (chamada de humanidades). Numa palavra, o humanismo é a atitude filosófica
que faz do homem o valor supremo e que vê nele a medida de todas as coisas. Herdeiro de Kant, o
humanismo contemporâneo, notadamente dos existencialistas e de certas correntes marxistas, define o
homem como o ser que é o criador de seu próprio ser, pois o humano, através de sua história, gera sua
própria natureza.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 123-4)
3
Ver nossa Aula 03 – Sofistas e Sócrates, especialmente a sessão 1.1.
4
“É nesse contexto que o tema da dignitas hominis (‘dignidade do homem’) adquire um novo sentido,
opondo-se ao tema medieval da miséria hominis (‘a miséria do homem’), o ser caído descendente de
Adão, marcado pelo pecado original. Giannozzo Manetti foi autor (1452-53) de um dos primeiros tratados
sobre A dignidade e a excelência do homem. Nicolau de Cusa escreve em seu De conjecturis (1433): ‘O
homem é um Deus não em um sentido absoluto, porque é homem, mas é um Deus humano.’ E o
humanista Giovanni Pico dela Mirandola, provavelmente influenciado por Nicolau de Cusa, foi autor de
uma Oração sobre a dignidade do homem (1486). Essas obras, de caráter ético, valorizam a liberdade
humana, veem o homem como centro da Criação, e lhe atribuem uma dignidade natural, inerente à sua
própria natureza enquanto ser humano. O homem é um microcosmo, que reproduz em si a harmonia do
cosmo.” (MARCONDES, 2017, p. 144).

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Em Filosofia5, sob a influência de Gemisto Pletão (1355-1452)6, cria-se em


Florença a Academia Platônica – ou Academia Florentina –, sob a direção a Marsílio
Ficino (1433-1499)7. Nela, reuniram-se os mais brilhantes pensadores, artistas e
políticos da época: de Lorenzo de Médici a Michelangelo. É nesse momento que se
traduz para o latim e se reedita as Vidas dos filósofos, de Diógenes Laércio8, abrindo
caminho para a retomada dos filósofos gregos – estoicos, epicuristas e céticos. A lógica
aristotélica, identificada com as sutilezas dos argumentos escolásticos e a defesa dos
dogmas cede lugar à gramática e às artes de falar em público em geral. Um Platão mais
ligado a seus dotes literários, estilísticos, dialéticos é enfatizado – principalmente aquele
já depurado pelo neoplatonismo.

5
“Um dos principais pontos de partida do humanismo foi o Grande Concílio Ecumênico que se realizou
em Florença em 1431, sob a inspiração de Cosme de Médici, seu governante, visando aproximar a Igreja
católica romana da Igreja ortodoxa grega, ou seja, o mundo europeu ocidental do Imperio Bizantino, o
grande herdeiro da Roma imperial e da cultura grega, agora decadente e ameaçada pelos turcos. O
imperador bizantino João Paleólogo compareceu pessoalmente levando consigo teólogos e filósofos
como Bessario e Gemisto. O concílio não foi bem-sucedido, mas intensificou o fluxo de especialistas
gregos para o Ocidente, o que se deu até a queda de Constantinopla (1453). Várias obras de Platão,
Aristóteles e de outros filósofos e poetas foram traduzidas para o latim, discutidas e reinterpretadas.
Cosme de Médici foi um grande colecionador de manuscritos e criou a Biblioteca de são Marcos para
conservá-los. A invenção da imprensa por Gutemberg, na Alemanha, tornou possível logo em seguida a
edição e divulgação de muitas dessas obras.” (MARCONDES, 2017, p. 145).
6
“Jorge Gemisto (cerca de 1355-1450), nascido em Constantinopla, que se fez denominar Pleton, [...]
considerou Zoroastro o autor dos Oráculos Caldeus e, indo para a Itália por ocasião do Concílio de
Florença, ministrou lições sobre Platão e sobre as doutrinas dos Oráculos, acreditando-os como expressão
do pensamento de Zoroastro e suscitando notável interesse pelos mesmos. Zoroastro foi, portanto,
considerado profeta (“priscus theologus”), e por vezes apresentado até como anterior a Hermes ou como
primeiro por cronologia e dignidade com ele. Na realidade, Zoroastro (=Zaratustra) foi reformador
religioso iraniano do século VII/VI a.C., que nada tem a ver com os Oráculos Caldeus. Esse [...] equívoco
[...] contribuiu grandemente para a difusão da mentalidade mágica da Renascença. (ANTISERI, REALE,
2004, p. 17)
7
“Ficino, Marsílio (1433-1499) No plano das ideias, o filósofo e humanista Marsílio Ficino (nascido perto
de Florença, Itália) encontra-se na origem do movimento renascentista. Ao traduzir para o latim o Corpus
hermeticum e, pela primeira vez, as obras completas de Platão e do neoplatônico Plotino, tornou-os
acessíveis a um grande público. Em sua interpretação filosófica desses textos, Ficino insuflou vida nova
em vários de seus conceitos, notadamente no de ‘luz original’, que deu nascimento ao mundo e continua
a iluminar o universo. Ao inverter os valores neoplatônicos, Ficino torna a vida presente mais preciosa,
pois ela se ilumina de uma luz interior. Contudo, não aspiramos a essa ‘luz original’, pois seu reflexo se
torna mais importante, e se chama beleza. Preocupado ainda em ‘demonstrar’ a imortalidade da alma e
em estabelecer a harmonia entre razão e a fé revelada, Ficino parte em busca de uma ‘paz da fé’,
resultante de uma união das crenças cristãs com a tradição grega depurada de seus elementos estranhos.
Converte-se, assim, num defensor da unidade da religião através da variedade dos ritos religiosos. Sua
mensagem essencial consiste em dizer que tanto o sagrado quanto o sublime, o misterioso, o
incognoscível e o ‘para-além’ se revelam a nós na beleza deste mundo presente. Porque é a beleza que
nos dá testemunho da luz e nos revela este mundo regido por forças maravilhosas. A obra essencial de
Ficino consiste em 18 livros intitulados Theologia platonica (escritos entre 1469 e 1474)”. (JAPIASSÚ,
MARCONDES, 1990, p. 98-99)
8
“Diógenes Laércio Biógrafo grego do século III da era cristã; escreveu uma obra (em dez volumes) sobre
os filósofos gregos, conhecida sob o título de Vida, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, que é a
única fonte de informações sobre muitos dos filósofos ali mencionados.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990,
p. 73)

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1.1 A Escola de Atenas

Toda essa retomada clássica é acompanhada por uma alta dose de ecletismo.
Uma boa ilustração dessa situação é a valorização de dois personagens que
originalmente foram claramente antagônicos: Platão e Protágoras. Não defendem o
mesmo, em essência, mas no Renascimento são colocados em patamares
equivalentes, ao mesmo tempo que entra em declínio a figura de Aristóteles – associado
à filosofia Escolástica.
A redescoberta dos clássicos e sua interpretação diversa daquela feita
anteriormente é bem representada também pelo afresco de Rafael Sanzio, A Escola
de Atenas (1510), pintado no Vaticano para o Papa Júlio II. Nela, estão reunidos os
mais importantes filósofos gregos da Antiguidade.
No centro: Platão e Aristóteles. Platão aponta para o alto e segura o texto do
Timeu . As cores de suas vestimentas são alaranjadas e avermelhadas – cores que
9

remetem ao fogo e à simbologia daquilo que se direciona aos céus, que vai às alturas.
Aristóteles estende a mão aberta para o chão e segura a Ética. As cores de suas
vestimentas são azuladas, remetendo à água e aquilo que está próximo à terra, ao chão.
Os outros personagens vestem mais ou menos as mesmas cores das duas figuras
centrais.
Os demais pensadores se dividem em dois grupos. De um lado, a tendência à
abstração e à espiritualidade, Pitágoras e Parmênides próximos a Platão, acima do qual
está a estátua de Apolo.
De outro lado, a tendência a se interessar pelas coisas práticas e pelo
conhecimento que vem por meio dos cinco sentidos, Euclides e Ptolomeu, próximos a
Aristóteles, acima do qual se encontra a deusa Atena.

1.2 A Política renascentista

O humanismo teve igualmente uma grande importância na política. A rejeição da


tradição escolástica – do saber adquirido, da autoridade imposta pelos costumes e pela
hierarquia do kósmos –, em favor de uma recuperação do que há de virtuoso e
espontâneo na natureza humana serviu de ponto de partida para uma nova ordem. Dois
autores expressam esse ideário, cada um a seu modo: Erasmo e Morus. Ambos
buscaram aplicar os princípios inspirados na moral estoica e epicurista no campo da
política – principalmente as réguas do equilíbrio e da moderação.
Erasmo de Rotterdam (1466-1533) é o autor de um manual, A educação de um
príncipe cristão (1516), dedicado ao futuro imperador Carlos V. Sua obra mais célebre,
porém, é O elogio da loucura (1511), em que, em estilo irônico, questiona a escolástica
aristotélica, defendendo uma sabedoria menos baseada em silogismos e
demonstrações.

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O Timeu tem caráter teológico e descreve uma cosmogonia, isto é, a criação do universo, envolvendo
também a criação do ser humano.

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Thomas Morus (1478-1535) escreveu A utopia (1516). Talvez uma das obras
mais célebres e influentes desse período, usa da ironia para formular a imagem de um
estado ideal, em que não há propriedade privada, defendendo a tolerância religiosa,
criticando o autoritarismo dos reis e da Igreja.

1.2.1 Nicolau Maquiavel

O pensador político mais original e conhecido dessa época, entretanto, é


Nicolau Maquiavel (1469-1527). Autor de O príncipe (1513, publicado em 1532),
Maquiavel foi membro da chancelaria de Florença, onde ganhou experiência política e
pode observar as práticas de seus contemporâneos. Dedicado a Lorenzo de Médici, o
livro é um manual na arte de assegurar e manter o poder político.
A metodologia do livro é eminentemente via contação de histórias, que servem
de exemplo para o que o autor quer provar. São investigadas diferentes situações em
que governantes chegaram ao poder – e ou o mantiveram ou o perderam. O objetivo é
separar a política do âmbito estrito da ética, isto é, apartar o que é a dinâmica de
obtenção e preservação do poder de o que deve ser essa prática.
Diante da inescapável Fortuna10, isto é, o acaso responsável por pelo menos
metade dos eventos com os quais nos deparamos, é preciso assumir uma postura ativa.
No caso dos governantes, tal postura ativa é praticar a virtú11. Esse conceito não se
confunde com a virtude cristã – piedade, humildade, caridade. Antes, aponta para a
habilidade de manter o poder: coragem, persistência adaptabilidade.
Os conselhos de Maquiavel em O príncipe não seguem necessariamente a moral
vigente. Por esse motivo, a obra causou escândalo, dando origem ao termo depreciativo
“maquiavelismo” e ao adjetivo “maquiavélico”. Contemporaneamente, essa
denominação tem sido reavaliada, principalmente devido ao pioneirismo de Maquiavel
em tratar assuntos da política de modo separado dos assuntos da ética. Muitos o
consideram, por isso, o precursor da Ciência Política, enquanto campo autônomo da
Filosofia política. Ao tratar a política como ela é, não como ela deve ser, o autor insere
um campo de estudos que hoje se denomina realismo político.

10
Fortuna é a deusa romana do acaso ou da sorte – a e sorte é tanto boa, quanto má, diferentemente do
que hoje comumente consideramos.
11
“A virtú, que ele evita traduzir para o italiano, para não confundi-la com as virtudes cristãs, diz respeito
à capacidade do ator político de agir de maneira adequada no momento adequado. Essa maneira de
apresentar o conceito pode aproximá-lo perigosamente de um outro frequentemente usado pelos
autores da Antiguidade – o de prudência. Também nesse caso estamos diante da capacidade do ator
político de agir em conformidade com a situação, sem que para isso tenha-se de recorrer a um saber de
cunho estritamente teórico. A prudência, no entanto, para ficar com seu sentido mais próximo do
significado que lhe atribui Aristóteles, deve ser entendida no contexto de uma ética que coloca como
finalidade última de todas as ações a busca da felicidade. A virtú maquiaveliana não possui os mesmo
objetivos. Mais modestamente, nosso autor exige a habilidade de seus atores apenas para ganhar e
conservar o poder, mas não atribui a isso nenhuma finalidade que transcenda à própria busca de uma
posição de mando na sociedade.” (BIGNOTTO, 2003, p. 24-5)

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2. Reforma Protestante

O episódio em que Lutero prega suas noventa e cinco teses contra os teólogos
católicos da universidade contra o Papa Leão X (1517) nas portas da Igreja de Todos
os Santos em Wittenberg marca o início da Reforma Protestante. A ruptura provocada
por esse movimento é um dos propulsores da modernidade, porque inseriu a ideia de
que a fé é suficiente para que o indivíduo compreenda a mensagem divina nos textos
sagrados. Embora possa parecer algo restrito ao âmbito religioso, não se trata apenas
disso. A regra da fé, como ficou conhecida, preceitua a não necessidade da Igreja – e
com ela dos teólogos e dos concílios – para a adequada compreensão da mensagem
divina. Em outras palavras, trata-se de uma retomada da relação íntima do indivíduo
com a sua fé, independentemente de intermediação de uma autoridade externa. Nada
mais moderno – e agostiniano – em sua raiz.
Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Alemanha, estudou
Direito e entrou para a ordem dos agostinianos. Formou-se em Teologia em Wittenberg.
Conta a história que, revoltado com a corrupção que acontecia na sede da Igreja, em
Roma, passou a defender a necessidade de uma reforma na instituição. Tornou-se
radical aos poucos até ser identificado como o líder da Reforma e ser condenado por
Roma. Recebe, então, a proteção do imperador Frederico da Alemanha. Em 1522 inicia
sua Tradução da Bíblia para o alemão, obra que só é concluída em 1534. O objetivo era
tornar o texto sagrado acessível a um público maior que os clérigos que dominavam os
idiomas antigos.
O protestantismo se difunde. Ulrich Zwingli (1484-1531) na Suíça. Calvino
(1509-1564) em Genebra. Como reação, o imperador Carlos V combate o
protestantismo e condena Lutero na Dieta de Worms (1521)12. Muitos nobres,
entretanto, aderem à Reforma, fazendo com que o movimento ganhe cada vez mais
força e se consolide com o tempo e, em pouco menos de 50 anos, o panorama político
e religioso europeu altera-se profundamente. Em 1527, é criada a primeira universidade
protestante em Marburg. Em 1566, o Sínodo de Antuérpia estabelece a Igreja calvinista
como religião oficial da República da Holanda. Os protestantes franceses – os
huguenotes – tornam-se uma importante força política na França, participando de uma
guerra civil. A Igreja Anglicana é criada na Inglaterra (1534), e a Escócia se converte ao
calvinismo (1560).
Perante seu julgamento na Dieta de Worms, Lutero recusa retratar-se:
Vossa Majestade Imperial e Vossas Excelências exigem uma resposta simples. Aqui está ela
simples e sem adornos. A menos que eu seja convencido de estar errado pelo testemunho das
Escrituras (pois não confio na autoridade sem sustentação do papa e dos concílios, uma vez que
é óbvio que em muitas ocasiões eles erraram e se contradisseram) ou por um raciocínio manifesto
eu seja condenado pelas Escrituras a que faço meu apelo, e minha consciência se torne cativa da
palavra de Deus, eu não posso retratar-me e não me retratarei acerca de nada, já que agir contra

12
A Dieta de Worms (1521) foi uma assembleia do Sacro Império Romano Germânico realizada na cidade
de Worms. Tratou-se de um órgão deliberativo formal, com suas decisões valendo para o Império. Seu
Édito visou às ideias de Martinho Lutero e as consequências da Reforma Protestante.

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a própria consciência não é seguro para nós, nem depende de nós. Isto é o que sustento. Não
posso fazê-lo de outra forma. Que deus me ajude. Amém.13

A ênfase dada por Lutero à consciência certamente prenuncia a filosofia


moderna como um todo. O espírito crítico, que é a marca da modernidade, de certo
modo tem em Lutero um dos seus ícones na modernidade.

3. Revolução Científica

A revolução científica moderna tem seu ponto de partida na obra de Nicolau


Copérnico14 (1473-1543), Sobre a revolução dos orbes celestes (1543). Nesse livro, o
autor defende, por meio de cálculos dos movimentos dos corpos celestes, um modelo
de universo em que o sol é o centro – o famoso modelo heliocêntrico.
No mesmo período, o astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601),
porém, propõe um sistema um pouco diferente. O chamado sistema ticônico preceitua
que a Terra se localiza no centro do universo, o Sol gira ao seu redor, e os planetas
giram em torno do Sol.
Em 1609, o astrônomo alemão Johanes Kepler (1571-1630), discípulo de
Brahe, defende, na obra Nova astronomia ou física celeste, a ideia de que o universo é
regido por leis matemáticas, inspirado em uma concepção platônico-pitagórica.
Entretanto, é Galileu Galilei (1564-1642), cientista italiano, em seu livro O
ensaiador, quem afirma: “A natureza é um livro escrito em linguagem geométrica; para
compreendê-la é necessário apenas aprender a ler esta linguagem”. No século XVII,
demonstra empiricamente o modelo de Copérnico, em virtude do uso do telescópio.
Inicialmente usado para fins militares, Galileu aperfeiçoa o instrumento e o aponta para
os céus. Observa, então, as luas do planeta Júpiter, modelo em miniatura do sistema
solar, segundo pensava.
Porém, por que defender essa concepção heliocêntrica é algo revolucionário?
O esquema que tinha adesão majoritária antes era o de Cláudio Ptolomeu (90-
168). Segundo o filósofo grego, a Terra se encontra imóvel em lugar centralizado no

13
“Lutero diante da Dieta de Worms”, citado em Documents of the Christian Church, p. 285 apud
MARCONDES, 2017, p. 153.
14
“Copérnico, Nicolau (1473-1543) Considerado o fundador da moderna astronomia e um dos criadores
da nova concepção de universo desenvolvida pela ciência moderna, Copérnico nasceu na Polônia, tendo
estudado na Universidade de Cracóvia e depois na Itália. Criticou o sistema geocêntrico ptolomaico, então
universalmente aceito, desenvolvendo um sistema heliocêntrico inspirado no astrônomo grego Aristarco
de Samos (século III a.C.). Em sua obra principal, Sobre a revolução das órbitas celestes (1543), procurou
demonstrar matematicamente as hipóteses de que a Terra é redonda e gira em torno do Sol através de
um movimento uniforme. Suas teorias encontraram forte reação, sobretudo por parte da Igreja e das
doutrinas escolásticas, por abalarem a visão tradicional de mundo da Idade Média, principalmente ao
manter que a Terra não é o centro do universo, o que trazia graves e profundas consequências políticas e
religiosas para a ordem hierárquica então em vigor. A ‘revolução copernicana’ foi realizada por Galileu.”
(JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 59)

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universo – o célebre esquema geocêntrico. Tal sistema é afim – embora não igual – ao
do próprio Aristóteles e à concepção cristã, defendida durante toda a Idade Média.
Simbolicamente, tratava-se de um kósmos regulado por Deus, que tinha escolhido
justamente o lugar mais importante para abrigar suas criaturas mais especiais – os seres
materiais, viventes, animados, racionais, isto é, os homens na concepção tomístico-
aristotélica. Quando Copérnico defende que a Terra é apenas mais um planeta entre
vários que orbitam ao redor do sol, há uma ruptura não só com o geocentrismo. A quebra
acontece em relação à autoimagem cultivada tanto pelo homem antigo, quanto pelo
medieval.
É verdade que Ptolomeu já criticava a concepção aristotélica de kósmos,
segundo a qual o céu é constituído por esferas homocêntricas, isto é, de centro
comum. Segundo Ptolomeu e os astrônomos de Alexandria, o esquema aristotélico não
representava adequadamente aquilo que as observações astronômicas e os cálculos
matemáticos revelavam. A experiência indicava que um modelo que partisse de esferas
excêntricas, ou seja, com diferentes centros, melhor explicaria toda a dinâmica celeste.
Isso porque o modelo do Estagirita era eminentemente especulativo, baseado em sua
visão de uma hierarquia perfeita constituinte da totalidade das coisas. Mas o que
significa isso?
As esferas homocêntricas eram uma exigência de uma premissa: o kósmos é
estruturado e harmonioso. Os fenômenos podem fornecer indícios que servem para
compor uma teoria, porém, caso as evidências sensíveis contrariem a premissa original
– a da estruturação e harmonia intrínsecas ao universo –, então a prevalência será do
primeiro princípio não da observação. Eis o que significa partir de uma concepção
especulativa da natureza. Não significa ignorar os fenômenos, mas preteri-los, caso
ponham em risco a concepção mais abrangente de ordenação perfeita de tudo o que
há15.
A maior ilustração de como essa concepção poderia se traduzir em resistência
à mudança é a condenação da obra Copérnico pela Inquisição em 1616. Um dos
argumentos utilizados é que o personagem Josué pede a Jeová que faça o Sol parar no
céu até a derrota de seus inimigos (Josué, 10, 11-13).

3.1 Metodologia científica

A maior transformação da revolução científica foi inverter essa ordem de


prioridades. O que isso quer dizer? A ciência moderna insere a noção de que a
concepção experimental de natureza se sobrepõe à concepção especulativa de
natureza.

15
“São Tomás de Aquino (Suma teológica I, questão 32, art. 1), por exemplo, defende Aristóteles contra
os astrônomos de Alexandria, sustentando que, enquanto esses astrônomos baseavam suas hipóteses em
observações e cálculos, a teoria aristotélica era deduzida de primeiros princípios, sendo, portanto, mais
verdadeira. [...] Segundo essa visão, é mais importante salvar a física aristotélica – e portanto seu sistema
como um todo, sua unidade e coerência interna – do que salvar os fenômenos.” (MARCONDES, 2017, p.
155).

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Obviamente, trata-se de algo que acontece durante um longo processo e não de


modo abrupto, semelhante ao que ocorreu na passagem do mythos ao lógos, que
estudamos na Aula 01 – Os pré-socráticos. Vimos que os primeiros filósofos – e mesmo
Sócrates, Platão e Aristóteles – ainda faziam uso em larga escala da linguagem mítica,
seja como alegoria para ilustrar seus argumentos, seja como alicerce de onde partiam
para construir suas visões de mundo.
Para falar de modo abrangente e pouco rigoroso, o lógos especulativo era o
mais adotado pelos filósofos antigos – baseado em primeiros princípios a partir dos
quais se construíam suas teorias. O que acontece na modernidade é a troca – de modo
paulatino e não do dia para a noite16 – dessa concepção lógica por outra: o lógos
experimental passa a se consolidar cada vez mais como paradigma de racionalidade
a ser adotado.
O pensamento moderno – é importante que se diga – não constitui um todo
orgânico. As novas teorias científicas tiveram inspiração platônica, pitagórica e até
mesmo mística.
Kepler interessava-se por astrologia e fazia horóscopos.
Newton também se interessava por astrologia, bem como por alquimia.
Descartes era Rosa Cruz.
Paracelso (1493-1541), o grande alquimista, foi contemporâneo dos
renascentistas.
Hermes Trismegisto17 (viveu por volta de 1.330 a.C. no Egito), considerado uma
encarnação do deus egípcio Thot, teve seu nome tornado célebre nessa época, devido
a uma tradução do corpus hermeticum, por Marsílio Ficino. Trata-se de textos de

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Dois exemplos da permanência do lógos especulativo no nascente lógos experimental é a adoção de
uma concepção de kósmos fechado (tendo como limite a esfera das estrelas fixas, típico da visão antiga),
por Ptolomeu e de órbitas circulares, por Galileu. De fato, a ideia de um kósmos aberto tem origem numa
concepção mais especulativa que experimental, principalmente com Nicolau de Cusa, um cardeal alemão,
cuja obra de inspiração neoplatônica, Sobre a sábia ignorância (1440), introduz a ideia de universo sem
limites e sem centro de circunferência. Também influenciado pelo neoplatonismo, Giordano Bruno, em
sua obra Sobre o universo infinito (1583), corrobora a visão. Nenhum dos dois, porém, empreendeu
cálculos matemáticos, tampouco conduziu experimentos para avançar tal hipótese. Por outro lado, Kepler
para quem a matemática representava uma concepção formal de inspiração platônica e pitagórica, já
havia descrito as órbitas dos planetas como elípticas, como são aceitas hoje, enquanto Galileu não
renunciava às órbitas circulares, tipicamente aristotélico-tomistas.
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“Hermes Trismegisto é figura mítica, que nunca existiu. Essa figura mítica indica o deus Thoth dos
antigos egípcios, considerado inventor das letras do alfabeto e da escrita, escriba dos deuses e, portanto,
revelador, profeta e intérprete da sabedoria divina e do logos divino. Quando tomaram conhecimento
desse deus egípcio, os gregos acharam que ele apresentava muitas analogias com seu deus Hermes (= o
deus Mercúrio dos romanos), intérprete e mensageiro dos deuses, qualificando-o então com o adjetivo
‘Trismegisto’, que significa ‘três vezes grande’. [...] Entre os numerosos escritos atribuídos a Hermes
Trismegisto, o grupo claramente mais interessante constitui-se de dezessete tratados (o primeiro dos
quais leva o título de Pimandro), mais um escrito que só chegou até nós apenas em uma versão latina
(que, no passado, era atribuído a Apuleio), intitulado Asclépio (talvez elaborado no séc. IV d.C.). É
precisamente esse grupo de escritos que se denomina Corpus Hermeticum (= corpo dos escritos postos
sob o nome de Hermes).” (ANTISERI, REALE, 2004, p. 16)

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Isto não é Filosofia
Isto não é um Curso de História da Filosofia
Prof. Vitor Ferreira Lima
Licenciado em Filosofia (UFRRJ)

caráter místico com uma sabedoria que combina questões cosmológicas e teológicas
em uma linguagem poética e oracular. A obra serviu de inspiração para a ruptura com
a escolástica. Em 1617, o erudito Isaac Casaubon (1559-1614) revelou serem textos
apócrifos, originados em um período bastante posterior, próximos ao cristianismo
nascente.

Bibliografia

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Coleção Passo a Passo, 29. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
CASTAGNOLA, Luis, PADOVANI, Umberto. História da Filosofia. 15º ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1990.
JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 2ª ed. rev., ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
KENNY, Anthony. Uma nova História da Filosofia Ocidental (vol. 2) - Filosofia
Medieval. 2ª ed. Tradução de Edson Bini. Revisão de Marcelo Perine. São Paulo:
Edições Loyola, 2012.
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dário. História da Filosofia (vol. 3) – do Humanismo a
Descartes. Coleção História da Filosofia. Tradução de Ivo Storniolo. 1ª ed. [2004]. 5ª
reimpressão [2018]. São Paulo: Paulus, 2018.

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