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ANTONIO GOUVÊA MENDONÇA

O protestantismo
no Brasil e suas
encruzilhadas
ANTONIO GOUVÊA
MENDONÇA é professor
da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
“A utopia só O título deste artigo exige desde logo um

esclarecimento preliminar sob pena de cair na


trabalha em prol confusão reinante quando se trata de estudar o

do presente a campo religioso brasileiro sob qualquer ponto

ser alcançado, e
de vista. Nunca se viu uma diversidade religiosa

tão grande como a que se nota atualmente no

assim o presente, Brasil. Para complicar mais ainda, a dinâmica

sendo a ausência
interna desse campo, que demonstra intensa

itinerância entre grupos religiosos, assim como


dedistanciamento as variações numéricas indicadas no último censo

intencionada para (2000) apontam para a necessidade de se buscar

conceitos mais atuais e capazes de estabelecer


o fim, estará, no distâncias e aproximações entre os diversos gru-

final, borrifado por pos que disputam o espaço religioso.

Estamos diante do conceito de protestantismo


todos os intervalos brasileiro, usado sem maiores preocupações pe-

utópicos” (Ernst los primeiros estudiosos do assunto. Entre eles, o

Bloch, O Princípio
respeitável historiador francês Émile G. Léonard

que, estando no Brasil por dois anos (1948-49)

Esperança). como professor contratado pela Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras da Univer- cristãos não-católicos e não se aplica de
sidade de São Paulo, fez observações e maneira adequada ao vasto grupo dos assim
pesquisas que lhe permitiram publicar o chamados pentecostais e neopentecostais.
seu O Protestantismo Brasileiro, hoje já É claro que deixa de lado também todas as
na terceira edição (2002). Léonard, que igrejas cristãs não romanas como as cha-
publicou na França outros trabalhos sobre madas em geral por orientais ou ortodoxas.
o protestantismo no Brasil, é também autor Assim, quando se fala em protestantismo
da monumental obra Histoire Générale du brasileiro vem logo à tona a necessidade
Protestantisme, em três volumes, a partir de definir, estabelecer o conceito com
de 1961. No último volume aparecem no- clareza. O que é protestantismo e o que é
tas a respeito do Brasil. De certo modo, o protestantismo brasileiro? Ainda, o que é
conceito de protestantismo brasileiro ganha um protestante?
legitimidade com Léonard para expressar o
cristianismo não-católico no Brasil, embora
já fosse usado por outros antes dele.
Em 1973, com a publicação do livro O QUE É PROTESTANTISMO?
Católicos, Protestantes, Espíritas por Cân-
dido Procópio F. de Camargo, o conceito, O protestantismo é um dos três prin-
incluído entre duas outras religiões (cató- cipais ramos do cristianismo ao lado do
licos e espíritas), assume caráter distintivo. catolicismo romano e das igrejas orientais
Note-se aqui que os próprios protestantes, ou ortodoxas. Essa categorização, muito
desde o início de sua presença no Brasil, ampla e abrangente, é a adotada por J. L.
ainda no século XIX, preferiam o conceito Dunstan (1980, p. 7). Justamente por sua
“evangélico”. Bastam dois exemplos: o pri- amplitude, a categorização desse autor
meiro jornal protestante publicado no Brasil, deixa logo em aberto um problema: onde
que circulou de 1864 a 1892, chamou-se colocar o anglicanismo, hoje estendido
Imprensa Evangélica, como também a Con- por todo o mundo como uma comunidade
federação Evangélica do Brasil, fundada que extrapola o Reino Unido? A Igreja da
em 1934 e extinta nos primeiros anos da Inglaterra resulta, sem dúvida, da Reforma
década de 60 do século passado. Desde os Religiosa, mas, como se diz com freqüên-
primeiros tempos os cristãos não-católicos cia, ficou a meio caminho entre Roma e as
no Brasil se identificam como evangélicos, igrejas protestantes, tanto luteranas como
aliás a auto-identificação oriunda mesmo calvinistas. De fato, a ala propriamente dita
desde os primórdios da Reforma conforme anglicana recusa o título de protestante.
atesta o historiador Martin N. Dreher (1999, Desse modo, seria melhor estabelecer qua-
pp. 216 e segs.) (1). Não fosse a diversidade tro categorias de igrejas cristãs mundiais:
confusa do campo religioso brasileiro, o romana, ortodoxas ou orientais, anglicana e
conceito evangélico, hoje usado de modo protestantes. Embora a ala chamada Evan-
universal pelos não-evangélicos, como a gélica da Igreja Anglicana seja significativa
Igreja Católica e a mídia, caberia perfeita- por se aproximar bastante dos protestantes
mente ao grupo cristão oriundo da Reforma em geral, creio não se justificar uma outra
do século XVI. Mas não cabe. O conceito categoria, vez que o anglicanismo, apesar
traz consigo enorme confusão, a não ser disso, mantém sua unidade.
para aqueles que, mesmo trabalhando com Interessa-nos agora a Reforma propria-
categorias científicas, insistem em colocar mente dita. Em outro lugar (Mendonça &
1 Como nos chama a atenção sob a mesma categoria todos os grupos Velasques Filho, 2002, , cap. 1) propus a
esse autor, não confundir com
os evangélicos de vertente
cristãos não-católicos. divisão da Reforma em três ramos: angli-
inglesa mais moderna que de- Assim, pergunta-se: o que é mesmo isso cano, luterano e calvinista, ou reformado
signam a ala conservadora do
protestantismo contemporâneo que se chama “protestantismo brasileiro”? propriamente dito. Feita aquela ressalva
e que estão sendo identificados É o mesmo que evangélico? É e não é. O quanto ao anglicanismo, os protestantes
atualmente pelo neologismo
“evangelical”. conceito evangélico aplica-se à parte dos propriamente ditos são os luteranos e cal-

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vinistas que se espalham pelo mundo em centro mesmo da Reforma Luterana, isto é,
numerosa diversificação, particularmente a Europa alemã. Por essas razões, quando
estes últimos. Então, protestantes seriam se fala em protestantismo brasileiro, creio
aquelas igrejas que se originaram da Refor- que se deve entender por protestantismo
ma ou que, embora surgidas posteriormente, no Brasil.
guardam os princípios gerais do movimento.
Essas igrejas compõem a grande família da
Reforma: luteranas, presbiterianas, meto-
distas, congregacionais e batistas. Estas O QUE É UM PROTESTANTE,
últimas, as batistas, também resistem ao
conceito de protestantes por razões de ordem O QUE É SER PROTESTANTE?
histórica, embora mantenham os princípios
da Reforma. Creio não ser, por isso, neces- O grande e maior princípio da Reforma
sário criar para elas uma categoria à parte. é o da liberdade e está explícito no talvez
São integrantes do protestantismo chamado menor dos livros de Martim Lutero (2)
tradicional ou histórico, tanto sob o ponto e mesmo de toda a literatura reformada.
de vista teológico como eclesiológico. Diz Lutero que o cristão é “senhor livre
Esses cinco ramos ou famílias da sobre todas as coisas e não está sujeito a
Reforma multiplicam-se em numerosos ninguém”, mas completa: “um cristão é um
sub-ramos, recebendo os mais diferentes servo prestativo em todas as coisas e está
nomes, mas que, ao guardar os princípios sujeito a todos”. Essa aparente contradição
fundantes, podem ser incluídos no universo se resolve assim: o cristão é livre para fazer
do protestantismo propriamente dito. e não fazer ou, ainda, o cristão não está
debaixo de nenhuma mediação e se refere
diretamente a Deus pela fé, instrumento de
sua salvação. A salvação é individual e sua
O QUE É PROTESTANTISMO vida religiosa é pautada exclusivamente
pela Bíblia cuja leitura é direta e também
BRASILEIRO? não mediada. Como pontifica Dunstan, o
homem é o centro de sua religião.
Talvez a pergunta mais adequada seja Em suma, o protestante é o homem que
esta: podemos falar em protestantismo se sente liberto por Cristo, segue exclusi-
brasileiro? Ou seria melhor falar em “pro- vamente a Bíblia “como única regra de fé
testantismo no Brasil” precisamente quando e prática”, cultiva uma ética racional de
a referência recai sobre as igrejas acima desempenho para contribuir para a glória
mencionadas? Embora seja certo que as re- de Deus e vive moralmente segundo os
ligiões universais, como são as protestantes, “10 mandamentos” e os padrões da moral
sempre assimilam ou mantêm traços das burguesa vitoriana. A conversão, que no
culturas locais, como me é permitido falar período do Grande Despertamento (3) era
em catolicismo brasileiro, por exemplo, o mais propriamente uma “reconsagração”
protestantismo que chegou ao Brasil jamais à vida devota, reajustava o indivíduo ao
se identificou com a cultura brasileira. Con- modelo burguês vitoriano acompanhado
tinua sendo um protestantismo norte-ame- da ética do trabalho apropriada à ideologia
2 Da Liberdade Cristã, escrito
ricano com suas matrizes denominacionais do progresso. A preguiça, a ociosidade e a em 1520 (Lutero, 2004). Ver
também: Altmann, 1994.
e dependência teológica. Por isso, prefiro falta de objetividade na vida, assim como
3 Grande Despertamento ou
falar em “protestantismo no Brasil” e não desregramentos sexuais e desorganização Grandes Avivamentos desig-
em protestantismo brasileiro. O mesmo vale familiar, eram pecados graves para os vi- nam movimentos esparsos de
renascimento de vitalidade
para o que talvez fosse exceção, isto é, o torianos (4). O protestantismo, principal- religiosa que ocorreram na
luteranismo. Apesar de proceder de verten- mente o calvinismo posterior, privilegiou América do Norte a partir dos
primeiros anos do século XIX.
tes geográficas e culturais diferentes, ambos as relações sociais e econômico-políticas
4 Quanto a isso é muito interessan-
os luteranismos brasileiros vinculam-se ao no sentido horizontal, buscando pôr de te ver: Gay, 2000 e 2005.

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lado todo tipo de dependência piramidal Este artigo trata exclusivamente do
ou vertical. Em suma, uma desconfiança grupo de protestantes ou evangélicos que
permanente de monarquias absolutas em abrange aquelas igrejas já mencionadas,
favor de repúblicas democráticas. Isso ga- tanto as do chamado protestantismo de
nhou muita força após a independência das missão ou conversão, quanto as do pro-
colônias norte-americanas e da expansão testantismo de imigração. Propomo-nos
protestante durante o século XIX (5). a analisar, dentro dos limites impostos, as
Não é necessário que nos alonguemos na idas e vindas desse tipo de protestantismo
discussão a respeito da chamada ideologia no Brasil em suas relações históricas e
norte-americana protestante da inter-relação dialeticamente relacionais com o universo
íntima entre evangelizar e civilizar. Outros político brasileiro e internacional durante os
autores já trataram dessa questão. Contu- cerca de 180 anos de sua presença no país.
do, é oportuno lembrar que essa ideologia Tomaremos como ponto de intersecção his-
não é exclusiva do protestantismo porque tórica a chamada Conferência do Nordeste,
o mesmo papel que os Estados Unidos se realizada no Recife (PE), em 1962, último
propunham, e ainda se propõem, de expandir momento de convergência identitária desse
o seu próprio modelo civilizatório, isto é, protestantismo antes do seu isolacionismo
o reino de Deus terreno, já empolgava, na denominacional. Não serão levadas em
oratória de Antonio Vieira, o velho Por- conta as questões e crises internas que, por
tugal seiscentista. Não obstante, há que vezes, agitaram as igrejas, mas exclusiva-
se estabelecer as diferenças entre os dois mente como elas reagiram ao impacto dos
modelos: o reino de Deus por Portugal era momentos históricos externos.
um reino caracterizado pelo modelo de Propomos a seguinte periodização: de
cristandade, vertical e monárquico, ao passo 1824 a 1916, período de implantação do
que o norte-americano era, e é, democrático protestantismo no Brasil; de 1916 a 1952,
republicano, horizontal e contratual. desenvolvimento do projeto de coopera-
Em suma, o protestante é um indivíduo ção ou pan-protestantismo e a chegada de
que professa uma religião individual, de “um bando de teologias novas”; de 1952 a
consciência, que se inspira na interpretação 1962, crise política e religiosa, ensaio de
direta e pessoal da Bíblia, pauta suas ações politização do protestantismo e impacto do
na ética racional do trabalho e na moral pentecostalismo; de 1962 a 1983, período
burguesa vitoriana. Sua racionalidade pro- de repressão no interior do protestantismo,
cura manter a distância a interferência do da revolução neopentecostal, fortalecimento
extraordinário no cotidiano, assim como sua do denominacionismo e o isolacionismo
individualidade o situa nos limites mínimos das igrejas.
do poder sacerdotal ou eclesiástico. É uma
religião quase secularizada e se aproxima,
mesmo quando institucionalizada, de uma
religião civil. As igrejas são comunidades PERÍODO DE IMPLANTAÇÃO:
de fé e aprendizado religioso mútuo. A
disciplina, que se prende mais a questões DE 1824 A 1916
5 Bastaria, neste ponto, assinalar de ética, principalmente de moral, tende
o testemunho da missionária
educadora metodista Martha a se tornar elástica na medida em que, no Até o final do século XIX todas as de-
Watts (1881-1908), fundadora gradiente seita-igreja, a comunidade se nominações protestantes tradicionais ou
do Colégio Piracicabano,
em carta de abril de 1890, aproxima mais desta. históricas estavam estabelecidas no Brasil,
logo após a proclamação da
República: “O Brasil está indo Este é o modelo, por que não dizer tipo sendo a última a Igreja Protestante Episco-
para frente, e devemos seguir ideal, do protestante histórico ou tradicional, pal, mais adiante conhecida simplesmente
com ele, carregando a religião
do Evangelho […]” (Mesquita, ao qual se aplica bem, como já foi dito, o por Igreja Episcopal. Dada sua origem
2001, p. 90).
conceito de evangélico, mas que implica anglicana, hoje se chama Igreja Episcopal
6 Ver o artigo de Calvani, “ O dificuldades quando generalizado para todos Anglicana do Brasil (6). No sistema de
Anglicanismo no Brasil”, neste
Dossiê. os cristãos não-católicos. classificação ainda adotado, os episcopais

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anglicanos são incluídos entre as igrejas no Brasil acabou sendo mais expressiva
do chamado protestantismo de missão ou através de quem não tinha diretamente essa
conversão que engloba congregacionais (7), intenção. De fato, é significativa a contri-
presbiterianos, metodistas e batistas. Toda- buição dos “confederados” que emigraram
via, não se pode deixar de lado o fato de que, para a região de Santa Bárbara, tanto para
na verdadeira origem, os episcopais angli- a agricultura como para a indústria. Há já
canos ligam-se à tradição do anglicanismo expressiva literatura a respeito que merece
precocemente instalado no Brasil ainda no ser levada em conta quando se estuda imi-
período que antecedeu ao Império, isto é, gração e religião no Brasil. Deixamos para a
após os tratados feitos com a Inglaterra por Bibliografia a relação dos livros que tratam
D. João VI em 1810 (Aliança e Amizade e do assunto. Mas é também curioso o fato de
Comércio e Navegação). A partir de 1820, que até hoje descendentes daqueles confede-
os ingleses passaram a realizar cultos no rados ainda se reúnem quatro vezes por ano
templo construído no Rio de Janeiro e, mais nas cercanias da hoje Santa Bárbara d’Oeste
tarde, em outras partes do Brasil, notada- (SP) para relembrar os velhos tempos. Numa
mente em São Paulo, pelos empregados pequena capela, perto de um antigo cemitério,
da Estrada de Ferro que se construía entre em meio a um canavial, cantam os velhos
Santos e Jundiaí (Ribeiro, 1973). hinos dos avivamentos religiosos do século
Assim considerados, os ingleses angli- XIX, ouvem o sermão de costume e parti-
canos constituem o primeiro grupo do cha- cipam de um jantar com os pratos típicos
mado protestantismo de imigração, embora do “Velho Sul” dos Estados Unidos. Assim
com a ressalva já feita de que eles mesmos narram, pitorescamente, os autores do mais
não se consideram protestantes (seria me- recente livro publicado sobre a presença
lhor colocá-los no conceito generalizante desses imigrantes norte-americanos no Brasil
de não-católicos). Outro grupo importante, (Dawsey e outros, 2005, p. 37).
completamente esquecido no sistema de Assim, ao lado dos imigrantes protes-
classificação, é o composto pelos chama- tantes alemães que começaram a chegar
dos “confederados” norte-americanos que ao Brasil em 1824 e os anglicanos ingleses
se estabeleceram principalmente em Santa que os antecederam, é necessário colocar os
Bárbara (SP) logo após a Guerra Civil. Esses confederados norte-americanos que, apesar
imigrantes, principalmente procedentes do de não terem criado uma igreja própria,
Sul dos Estados Unidos, eram compostos contribuíram para a presença protestante
por protestantes de praticamente todas as no Brasil. Ainda, a respeito do protestan-
denominações norte-americanas. Fundaram tismo de imigração, é oportuno mencionar
a cidade de Americana e construíram sua os grupos que vieram já no século XX e
igreja comum. Embora eles mesmos não ob- que ainda mantêm cultos segundo suas
jetivassem a propagação de sua fé religiosa, tradições denominacionais: reformados
de modo indireto contribuíram para isso, húngaros, holandeses, franceses e suíços,
principalmente porque provocaram a vinda batistas russos e letões, e os recentes pres-
de pastores para atendê-los que acabaram, biterianos chineses e coreanos. São grupos
alguns, por exercer atividade missionária que já merecem estudos à parte.
entre brasileiros. Entre eles, presbiterianos Mas voltemos ao período histórico em
do Sul dos Estados Unidos que se estabele- questão a fim de tentarmos pontuar o sistema
ceram em Campinas (SP), metodistas que de ideais religiosos que o caracterizaria.
ampliaram suas atividades para além dos Neste ponto, o pensamento básico deve ser 7 As igrejas congregacionais che-
garam ao Brasil em 1858 com
limites do “território confederado” e batistas procurado no grupo do chamado protestan- o missionário Robert Reid Kalley.
que acabaram fundando sua primeira igreja tismo de missão ou conversão, pois que foi Os congregacionais originam-
se principalmente da Escócia,
em Salvador (BA) recebendo como primeiro este que se inseriu, na medida do possível, quando grupos aderentes da
Reforma calvinista lutavam
membro um ex-padre brasileiro. na sociedade brasileira e esteve mais perto, pela separação entre igreja
É curioso que a ação civilizatória que embora com prudência, das instâncias políti- e estado (não-conformistas ou
independentes). Ver: Cardoso,
as missões protestantes pretendiam realizar cas. Os imigrantes alemães, não interessados 2001.

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em propagar a fé, limitaram-se inicialmente folheto publicado por um pastor presbi-
à prática da piedade e do culto. teriano brasileiro contrário à escravidão
A não ser os congregacionais proce- (Pereira, 1886). O fato é que a doutrina da
dentes da missão de um escocês, todos os Igreja Espiritual permaneceu distintiva no
demais protestantes de missão originaram- protestantismo no Brasil distanciando-o
se do protestantismo norte-americano. sempre das atividades políticas e sociais.
Como já tentamos demonstrar em outro Era muito comum entre os protestantes a
trabalho (Mendonça, 1995, parte, cap.1), expressão: o crente não deve se meter em
o movimento religioso norte-americano política. Parece também ter contribuído
ocorrido no século XIX conhecido por bastante para essa atitude o pré-milena-
Grande Despertamento produzira um sis- rismo que se instalou nele, expresso num
tema teológico mais ou menos uniforme messianismo de espera que tornava o fiel
que se superpunha às particularidades de- protestante indiferente diante das “coisas
nominacionais. Resumidamente, esse sis- deste mundo” (Mendonça, 2001) .
tema consistia em dois pontos principais: Nesse período, o sentimento nacionalista
o princípio da conversão, que se apoiava que envolvia alguns dos mais influentes
na regeneração, ou novo nascimento, que pensadores e políticos brasileiros, como
tinha como resultado a salvação individual Eduardo Prado (1860-1901), principalmen-
(Graham, 1973, cap. 11), e a devoção à te em A Ilusão Americana (1893), provocou
ética do trabalho assim como à disciplina velados conflitos entre os protestantes de
moral. Duas alavancas para a ideologia do origem missionária norte-americana. Em-
progresso, como já foi dito. bora velados nos princípios, os conflitos se
Mas há ainda outro fator de ordem teo- tornaram evidentes entre os presbiterianos,
lógica que, embora contraditório no interior particularmente em dois momentos. O
do protestantismo, veio marcar fortemente primeiro foi a extinção da Imprensa Evan-
o protestantismo no Brasil. A controvérsia gélica, em 1892. Fundado em 1864, esse
a respeito da abolição do sistema escravista jornal, que circulou durante vinte e oito anos,
abalara as igrejas americanas e provocara alcançando inclusive o universo católico, foi
cisões no interior de algumas delas, levan- encerrado por ordem das missões presbite-
do-as a se dividir entre norte e sul. Surgiu, rianas que, além de fechá-lo, negaram aos
assim, entre os conservadores, a idéia de brasileiros o direito de fundar outro com o
não comprometer a igreja com a questão mesmo nome. Sob a camuflagem de desen-
escravista. A solução foi racionalizar a contros com a maçonaria, o nacionalismo
escravidão através de uma doutrina nova também provocou o primeiro cisma entre
que ficou conhecida por Teologia da Igreja protestantes no Brasil que deu origem, em
Espiritual. Com base no preceito bíblico “dai 1903, à Igreja Presbiteriana Independente
a César o que é de César e a Deus o que é do Brasil sob o signo do antimaçonismo.
de Deus”, a Teologia da Igreja Espiritual O protestantismo, valendo-se das difi-
insistia em que à igreja importavam as ques- culdades que enfrentava a Igreja Católica
tões espirituais e as materiais e políticas ao por causa de fatores como o regalismo e o
Estado (Mendonça, 1995, p. 59). galicanismo, que buscavam o afastamento
Buscando espaço na sociedade brasilei- cada vez maior da centralidade vaticana,
ra, o protestantismo, embora criticando com assim como de conflitos com a maçonaria,
insistência a religião oficial, manteve-se o teve, em números absolutos, crescimento
quanto possível afastado de questões de significativo. Os presbiterianos foram os
ordem social e política, sendo parcos os que avançaram mais até os vinte anos sub-
pronunciamentos a respeito da abolição seqüentes à Proclamação da República,
da escravidão. Parece ter contribuído para quando começaram a perder para os batistas.
isso a composição do corpo missionário Ganharam espaço também na atividade
que punha lado a lado nortistas e sulistas. educacional em que investiram bastante, o
Por isso, causou mal-estar entre eles um que causou também dificuldades no interior

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das próprias igrejas. Para muitos protestantes, manteve a política de Edimburgo ao decidir
a prioridade era converter pessoas ao pro- pela prudência em relação à Igreja Católica.
testantismo e promover o crescimento das A mensagem final do congresso recomen-
igrejas; para outros, era necessário “educar dou que a ação missionária deveria buscar
para civilizar”, causa que era óbvia na men- áreas não atendidas pela Igreja Católica,
talidade missionária norte-americana. Um principalmente entre os índios.
protestantismo entusiasta e em desenvolvi- O pastor e educador presbiteriano bra-
mento, mas já com crises internas, caracteriza sileiro Erasmo Braga (1877-1932), consi-
esse primeiro período. Crises principalmente derado um dos pioneiros do movimento
geradas por mentalidades diferentes e com ecumênico, foi encarregado de resumir e
prioridades divergentes. publicar o pensamento oficial do congres-
so, isto é, o movimento pela unidade dos
cristãos latino-americanos, o que fez em
seguida escrevendo a obra emblemática
PROJETO DE COOPERAÇÃO do evento Panamericanismo, Aspecto Reli-
gioso, publicada em Nova York (1916) em
E UNIONISMO: DE 1916 A 1952 português e espanhol. A idéia de unidade
dos cristãos, aqui entendida como unidade
Momento histórico importante para dos protestantes, foi posta em ação pela
o protestantismo no Brasil e na América organização, em 1917, da Comissão Bra-
Latina foi o Congresso da Obra Cristã sileira de Cooperação. Fizeram parte da
na América Latina, realizado na Zona do comissão presbiterianos, presbiterianos
Canal do Panamá, em fevereiro de 1916. independentes, metodistas, congregacionais
Esse congresso, conhecido simplesmente e episcopais, e o objetivo era produzir litera-
por Congresso do Panamá, foi uma reação tura religiosa em português, uma imprensa
à Conferência Missionária de Edimburgo, e livraria no Rio de Janeiro, uma revista da
Escócia, realizada em 1910. Essa conferên- família, uma universidade protestante e um
cia, influenciada pela amplitude colonialista orfanato (Pierson, s/d).
da Inglaterra, firmou o princípio de que as Esse ambicioso projeto, com fundos
missões só deveriam ter como objetivo o que excediam um milhão de dólares, era
mundo não-cristão, o que excluía as áreas inteiramente subsidiado pelas igrejas norte-
ocupadas pela Igreja Católica e punha em americanas. Parte do projeto foi realizada,
xeque todo o arcabouço missionário pro- principalmente a partir da fundação da
testante na América Latina. Confederação Evangélica do Brasil, em
Mas a história, muitas vezes irônica, 1934, embora já houvesse fracassado o Se-
pregou mais uma vez uma de suas peças. minário Unido do Rio de Janeiro (1918-33),
O Panamá, que pretendia firmar o princípio talvez o que viria ser semente da sonhada
de que era necessário fazer missão também Universidade Protestante. Sempre em pauta
nos países católicos por razões de ordem a disputa entre brasileiros e missionários
teológica, não contava com outras razões, norte-americanos. Contudo, sob a tutela
estas de caráter mais forte porque geradas da confederação, foram publicados vários
no âmbito político internacional, e acabou textos de instrução religiosa, principalmente
provocando um impasse dentro do próprio revistas para as escolas dominicais mediante
protestantismo latino-americano. A políti- trabalho exaustivo do educador Erasmo
ca do pan-americanismo, provocada pelo Braga. Buscava-se a unidade dentro da
presidente norte-americano James Monroe diversidade do protestantismo.
(1817-25), não desejava desagradar os De fato, durante muitos anos foi possível
países latino-americanos, todos católicos, participar de cultos e escolas dominicais
alguns ainda mantendo a ligação Igreja- da maioria das igrejas no Brasil portando a
Estado. Assim, a pauta do congresso, toda mesma versão da Bíblia, o mesmo livro de
preparada nos Estados Unidos, praticamente hinos e a mesma revista de escola domini-

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Reprodução

cal. Outro sonho era chegar a unir em uma Sobrelevando as diferenças teológicas, as
só todas as igrejas protestantes no Brasil. igrejas passaram a desenvolver programas
O grande defensor desse sonho em vigília evangelísticos visando ao próprio cresci-
foi o auxiliar de Erasmo Braga, o pastor mento a partir de uma mensagem religiosa
presbiteriano independente Epaminondas unificada em torno da conversão individual
Melo do Amaral (1893-1962), que escreveu e mudança de vida, muito semelhantes ao
o livro clássico do chamado “unionismo”, Grande Despertamento havido nos Estados
O Magno Problema (1934), em que, entre Unidos no século anterior. Substituía-se
outras coisas, critica o protestantismo bra- o sermão tradicional, ou a usual homilia,
sileiro por ter copiado o modelo norte-ame- pela “conferência” religiosa. Um cará-
ricano com suas inúmeras denominações. ter mais secular envolvia as reuniões de
O unionismo, como a educação teológica culto. Para essas conferências as igrejas
comum, fracassou. Não obstante, a reunião envolviam os grandes pregadores da época,
das igrejas protestantes na Confederação mais pelos dotes oratórios do que por suas
Evangélica chegou a dar alguns resulta- tradições denominacionais. Alguns nomes
dos, ao menos na representatividade dos estrangeiros como Edwin Orr e Stanley
protestantes em algumas instituições bra- Jones percorreram as igrejas fazendo con-
sileiras, como aconteceu com a nomeação ferências. Destacaram-se brasileiros como
de capelães para servir ao Exército durante os batistas Rubens Lopes e Rafael Gioia
a Segunda Guerra Mundial. Martins, os presbiterianos Miguel Rizzo Jr.
O período, com a cooperação e muitas e José Borges dos Santos Jr. e os metodistas
das idéias do “unionismo”, promoveu a Almir dos Santos e Natanael Inocêncio do
aproximação entre as igrejas no Brasil. Nascimento.

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Dentre esses clássicos pregadores brasi- como ácida, réplica do jesuíta Leonel Franca
leiros, herdeiros do melhor púlpito cristão, publicada no mesmo ano: A Igreja, a Refor-
um deles merece destaque porque se dife- ma e a Civilização. A douta polêmica durou
rencia dos demais quanto à direção de sua alguns anos tendo, de um lado, Franca, e
pregação: enquanto os outros seguiam a tra- de outro, vários oponentes que assumiram
dição do “Despertamento”, que procurava o lugar de Pereira, todos presbiterianos.
trazer convertidos para o interior da igreja, Pastores de outras denominações também
Rizzo empenhava-se em levar a fé religiosa ajudaram a incrementar o debate através de
àqueles que normalmente relutavam em artigos em revistas e jornais. O conflito entre
entrar num templo protestante. Para isso, a religião hegemônica e o protestantismo
usava espaços não sagrados como teatros emergente, de início limitado à disputa por
e salões de conferências em geral. Fundou fiéis e território, agora guindara o plano da
também o Instituto de Cultura Religiosa que erudição histórica e teológica
publicou revistas com o mesmo objetivo. No interior das denominações, dois
Sua produção literário-religiosa visava cha- outros eventos históricos ocorreram nesse
mar a atenção para o Jesus varão-modelo período, ambos tendo como motivo as
e não teologizado, muito semelhante ao relações entre nacionais e missionários es-
descrito pelos teólogos do protestantismo trangeiros. Em 1925, os batistas brasileiros,
liberal que preconizavam o “seguir a Je- através do movimento conhecido como
sus” como essência do “ser cristão”. Não “Questão Radical”, obtiveram parcial auto-
é injusto pensar que o ideal de Rizzo seria, nomia na gestão de fundos, movimento que
embora com muita antecipação no Brasil, o prosseguiu sempre na direção da autonomia
de um cristianismo anterior à religião. Essa completa e de maneira complicada, dado o
hipótese, para ser demonstrada, demandaria princípio batista da autonomia absoluta das
um estudo mais aprofundado de sua obra, igrejas locais. Por esse princípio, acordos
mas não deixa de ser atraente. de cúpula, sejam através de comissões ou
A tolerância, e mesmo respeito, para convenções, não as obrigam necessariamen-
com o catolicismo latino-americano por te (Pereira, 1982, cap. 12; Reily, 2003, pp.
parte do Congresso do Panamá gerou forte 182 e segs.). Ainda dentro do contexto do
reação por parte de alguns líderes brasilei- movimento nacionalista, a Igreja Metodista
ros, ambos presbiterianos. Eduardo Carlos do Brasil obteve sua autonomia em 1930
Pereira, respeitado gramático e pastor da (Josgrilberg, 1998).
então recém-criada Igreja Presbiteriana Não podemos encerrar esse período,
Independente, e Álvaro Reis, notável ora- muito rico em mudanças no protestantismo
dor sacro e pastor da Igreja Presbiteriana mundial, especialmente no norte-ameri-
no Rio, encabeçaram séria oposição à ala cano, sem mencionar, embora em traços
mais aberta do congresso, cujo principal largos, algumas de suas repercussões no
representante foi o também brasileiro e Brasil. Um desses movimentos foi o do
presbiteriano Erasmo Braga. Evangelho Social, que se liga diretamente
Eduardo Carlos Pereira, cuja moção ao pastor batista norte-americano Walter
contrária à política do pan-americanismo Rauschenbusch (1861-1918). Ligado ao
religioso sequer entrara na pauta do con- protestantismo liberal, Rauschenbusch,
gresso, publicou em 1920 o livro mais após estudos na Alemanha, desenvolveu seu
polêmico contra a Igreja Católica: O Pro- ministério pastoral entre imigrantes alemães
blema Religioso da América Latina, com numa das áreas mais pobres de Nova York,
o subtítulo Estudo Dogmático Histórico. e entrou num debate sobre os direitos das
Erudito, crítico e por vezes muito ácido, classes trabalhadoras. Convencido de que
Pereira conclui o livro grafando em desta- o pecado era tanto social como individual,
que: “fora de Roma, dentro do cristianismo”. talvez mais social, Rauschenbusch aban-
Falecendo em 1923, Pereira por pouco não donou, como os liberais, toda teologia
viu a volumosa e também erudita, assim metafísica em favor de uma teologia de-

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dicada ao reino de Deus neste mundo em

Reprodução
lugar de uma meta ultraterrena. Traços do
marxismo, sem dúvida, estão presentes no
pensamento do Evangelho Social quando,
de modo mais direto, o protestantismo
passa a pensar também nas relações entre
os indivíduos.
O Evangelho Social, enquanto corrente
teológica, foi bloqueado no Brasil. Contu-
do, um dos seus projetos relativos ao reino
de Deus, chamado nos Estados Unidos de
settlement houses, ou centros sociais, surgiu
nas igrejas locais maiores visando ajudar as
pessoas de seus bairros através de serviços
sociais, recreação, bibliotecas, orfanatos,
creches, hospitais e assim por diante. Al-
gumas dessas instituições sobreviveram
aos seus idealizadores e suas idéias. Hoje,
o Evangelho Social é visto como grande
heresia, pois o reino de Deus voltou a ser
visto como algo para além da história. O
clássico livro do Evangelho Social foi Nos
Passos de Jesus (In His Steps), de Charles
M. Sheldon, escrito em 1896. Consta ser
um dos livros mais lidos no mundo e labora
em torno da pergunta: em cada ação como
agiria Jesus?
Se o Evangelho Social foi uma das ex-
pressões diretas do liberalismo teológico
protestante, o fundamentalismo surgiu como
uma reação também direta à acolhida que
o liberalismo dava aos preceitos e méto- (International Council of Christian Chur-
dos da ciência moderna, principalmente à ches), pela voz de seu fundador, chamado
influência crescente do evolucionismo. O pelos seus adversários de “apóstolo da
ponto de partida do fundamentalismo foi discórdia”, promoveu crises internas nas
dado na célebre Conferência Bíblica de igrejas. As brasileiras, mormente as pres-
Niágara, em 1878. Em poucas palavras, o biterianas, não ficaram imunes à pregação
fundamentalismo se define pela defesa da de McIntire, que esteve no Brasil ao menos
ortodoxia protestante a respeito da Bíblia duas vezes, e acabou influindo na criação de
como infalível e acima de qualquer rein- uma Federação de Igrejas Fundamentalistas
terpretação que parta da ciência moderna, que publicou durante bom tempo um jornal
principalmente do evolucionismo. O fun- intitulado O Presbiteriano Bíblico.
damentalismo institucionalizou-se como O curioso é que na mesma semana e na
movimento internacional após a Segunda mesma cidade de Amsterdã fundava-se o
Guerra Mundial com a fundação do Con- Conselho Mundial de Igrejas (WCC – World
selho Internacional de Igrejas Cristãs, em Council of Churches), fruto de longa expe-
1948, em Amsterdã, sob a liderança do riência de convívio entre cristãos de várias
pastor presbiteriano norte-americano Carl tradições e denominações. Esse convívio,
McIntire (1906-2002). Voltando-se princi- sem dúvida sob a inspiração do liberalismo
palmente contra o movimento ecumênico, da chamada Escola da História das Reli-
que também se institucionalizava, o ICCC giões, só aguardou o término da guerra para

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ganhar corpo e institucionalizar-se. Um dos Evangélica. Não obstante ter a redação do
grandes inspiradores do movimento ecu- material ficado sob a responsabilidade de
mênico foi o arcebispo luterano da Suécia pastores brasileiros, como o competente
Nathan Söderblom (1866-1931), professor educador Erasmo Braga, o modelo vinha
de história da religião em Upsala. Söder- dos Estados Unidos e era aqui traduzido
blom conseguiu ultrapassar sua formação e adaptado. Era incongruente com a reali-
evangélica avivalista ao encontrar-se com dade brasileira porque retratava o padrão
a teologia liberal protestante e, no seu ideal burguês da cultura norte-americana. As
de união dos cristãos, ultrapassou ambas as crianças, principalmente, viam e aprendiam
correntes. De fato, o movimento ecumênico, na igreja coisas que pouco ou nada tinham
então institucionalizado, pretendia estar a ver com suas vidas, embora as casas dos
acima das divisões tanto eclesiásticas como protestantes, em geral de classe média ou
teológicas dos cristãos ao firmar-se sobre em ascensão, ostentassem traços sensíveis
os princípios essenciais do cristianismo que de algo próximo ao wasp (8). João do Rio
pudessem ser aceitos por todos. (1976, p. 87) parece ter sido o primeiro a
Nesse ponto, estava armado todo o observar e registrar em suas deliciosas crô-
cenário confuso e contraditório do protes- nicas esse traço curioso do protestantismo
tantismo no Brasil. Várias alternativas, ver- ainda incipiente no Brasil. Autonomia po-
dadeiras encruzilhadas, se lhe ofereceriam lítica (poder), mas não cultural, era o que,
a partir dos anos seguintes. de fato, as igrejas ostentavam.
Vargas, deposto em 1945, logo após o fim
da guerra, deixara uma herança mesclada de
alguns avanços, como as leis trabalhistas,
PERÍODO DE 1952 A 1962: o início da industrialização, bem como um
atraso político que ameaçava o país com a
A CHEGADA DE “UM BANDO DE volta das mazelas da Primeira República.
Embora a Constituição de 1946 fosse re-
TEOLOGIAS NOVAS” conhecida como boa, grandes mudanças
sociais exigiam reformas econômicas e
Entre as diversas encruzilhadas do políticas de base. Nova consciência política
protestantismo no Brasil, esse período de brota entre intelectuais e jovens estudantes
dez anos representa de fato a grande e de- que passam a clamar pelas chamadas então
cisiva encruzilhada desse protestantismo, o “reformas de base”. O nacionalismo volta
momento decisivo em que ele poderia ter com muita força e exige um desenvolvi-
assumido a realidade brasileira e passado a mento econômico e social autônomo. A in-
participar da história do país. Fatores his- dustrialização e o conseqüente crescimento
tóricos, muitos de natureza internacional, das cidades geram tensões entre as classes
interromperam o processo, que culmina em médias rurais e urbanas, ao mesmo tempo
1962 com a Conferência do Nordeste e tem em que fazem aumentar a pobreza nas pe-
seu melancólico fim nos anos 70. riferias das grandes cidades. Esse cenário,
No período anterior, que transcorre em propício para uma profunda revolução so-
sua maior parte na Era Vargas, caracterizado cial, iria afetar muito de perto, parece que
pelo movimento unionista, o nacionalismo pela primeira vez em nossa história, o quadro
protestante girou em torno de movimentos religioso incluindo o protestantismo.
de autonomia administrativa das igrejas, O protestantismo, já em sua terceira
mas não abriu caminhos para a autonomia geração no Brasil, formara em seu seio
cultural ou, melhor dizendo, para que seu uma juventude burguesa intelectualizada
rosto se voltasse para o lado brasileiro. pelo acesso às universidades que foram
Exemplo disso foi a literatura destinada à surgindo no período anterior. Treinados
educação religiosa, unificada e usada pe- para liderança em suas igrejas, esses jo-
8 Wasp: white, anglo-saxon and
las igrejas participantes da Confederação vens começaram a ter logo parte ativa nos protestant.

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quadros estudantis que formavam os cen- fé e encontrar seu caminho no mundo”.
tros acadêmicos nas escolas superiores e, Shaull foi além, dialogando com a UNE
assim, passaram a ver a realidade sob outro (União Nacional de Estudantes) e com as
ângulo, ou melhor, voltariam suas faces para UEEs (Faria, 2002, p. 105).
o mundo real. Perceberam o quanto suas Estava aí a liderança intelectual e prática
igrejas estavam alheias ao que se passava que os jovens protestantes brasileiros de-
fora de suas portas. Passaram a falar outra sejavam. Quanto ao pensamento teológico,
língua e se abriu um vazio entre eles e as Shaull introduziu seus alunos no mundo
lideranças eclesiásticas. então desconhecido da teologia européia,
É nesse cenário que surge o “bando de pensamento produzido no turbilhão da
teologias novas” (9) que atinge primeiro o guerra e do pós-guerra. O principal nome
Seminário Presbiteriano do Sul, em Cam- que surge no cenário seria o do reformado
pinas (SP), e se alastra por outros em pouco Karl Barth (1886-1968), tido como o maior
tempo. Ao mesmo tempo em que uma nova teólogo do século XX. Sua obra, conhecida
realidade histórico-social se abria para os por “teologia dialética” ou “teologia da Pa-
jovens leigos das igrejas, aragens frescas lavra de Deus”, posteriormente englobada
do pensamento teológico passaram a entrar sob o título mais geral de “neo-ortodoxia”,
pelas janelas dos seminários. apontava para a ação contínua de Deus
A história do ensino de teologia nos na história e com a qual o homem devia
seminários brasileiros, talvez com exceção colaborar. A leitura de Barth, notável por
dos de tradição luterana européia, mostra- sua oposição ao nazismo, representava, no
va uma prática repetitiva de segunda mão pós-guerra, um apelo aos cristãos para que
com base em manuais clássicos de teologia superassem o conformismo e avançassem na
metafísica. Fórmulas frias e distantes. Nos direção da construção de um mundo justo.
seminários presbiterianos, por exemplo, Mais ou menos na mesma linha, passaram a
circulavam os manuais de A. B. Berkhof, circular outros teólogos como Emil Brunner
de 1933, e o de A. H. Strong, de 1907, o que (1889-1966) e Rudolf Bultmann (1884-
deveria ocorrer também em outros. 1976). O que despertou mais paixão entre os
Em 1952, chega ao Brasil – e foi para o estudantes de teologia no Brasil foi Dietrich
Seminário Presbiteriano do Sul, em 1953 Bonhoeffer (1906-1945), enforcado pelos
– o missionário norte-americano Richard nazistas em um campo de concentração nos
Shaull (1919-2002) para assumir um pos- últimos dias da guerra. Bonhoeffer, em suas
to no corpo de professores. Então com 33 famosas cartas escritas da prisão, refletia
anos de idade, Shaull já se envolvera com o sobre a possibilidade de ser cristão num
movimento estudantil através da Federação mundo secularizado, superando a religião
Mundial de Estudantes Cristãos (Fumec) e mesmo a igreja. Esse pensamento iria
em sua 1a Conferência Latino-Americana, avançar pela década seguinte com o título
realizada em São Paulo, em 1952. A Fumec genérico de Teologia Radical.
dedicava-se à evangelização de jovens Richard Shaull, além de levar a chamada
universitários e ao estudo da Bíblia em teologia moderna para o ambiente em que
profundidade e “cuja fé deveria expressar-se atuava, ele mesmo passou a pôr em prática
no meio das lutas sociais” (Shaull, 2003, p. uma teologia da ação e no estilo aberto e
94). Encontra-se com o pastor presbiteriano ecumênico. Shaull aponta para a natureza
Jorge César Mota, que dirigia a incipiente dinâmica de Deus e para o fato de que sua
União Cristã de Estudantes do Brasil (Uceb), atividade na história estava prosseguindo
e vai, durante os anos seguintes, exercer rumo a um alvo. Essa postura de Shaull foi
forte influência nesse organismo. Shaull, logo vista como uma crítica e um desafio
como ele mesmo diz em suas memórias, às igrejas para que saíssem da inércia e do
9 Referência à expressão “um
bando de idéias novas” usada acreditava na “potencialidade desse mo- conformismo e tomassem parte e responsa-
por João Cruz Costa em Con- vimento como resposta à nova geração de bilidade diante de um mundo em mudança.
tribuição à História das Idéias
no Brasil. protestantes ansiosos para aprofundar sua Passou a ser incômodo.

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A influência de Shaull sobre estudantes Igreja do Evangelho Quadrangular, igreja
universitários e alunos de seminários deu pentecostal originada no Sul dos Estados
como resultado um distanciamento entre Unidos e que sustentava quatro princípios:
a juventude das igrejas, insatisfeita com a salvação da alma, batismo com o Espírito
maneira como elas se comportavam perante Santo, cura divina e segunda vinda de Cristo.
o chamado “estado revolucionário” do Brasil, Vê-se que eram mantidas doutrinas comuns
e as autoridades que receavam subverter-se a ao cristianismo protestante, como a salvação
disciplina eclesiástica. Mas, mesmo assim, o individual e o pré-milenarismo, assim como
Setor de Responsabilidade Social da Igreja, o batismo dos pentecostais tradicionais. A
órgão da Confederação Evangélica, pros- novidade era a nova ênfase na cura divina.
seguia em suas atividades, principalmente Ao lado da cura divina, como complemento,
sob a influência da Segunda Assembléia do vinha o exorcismo de demônios. O histo-
Conselho Mundial de Igrejas realizada em riador desse movimento, ele mesmo um
Evanston, Estados Unidos, em 1954. dos seus pastores (Rosa, 1977, Introdução),
A Conferência de Evanston praticamen- queixa-se do desequilíbro dos quatro pilares
te acirrou a crise nas igrejas brasileiras, provocado pela ênfase exagerada na cura
principalmente porque participaram dela divina. Todavia, para uma população de
representantes das igrejas russas, o que um lado insatisfeita com a falta de atrativo
serviu para que o Conselho Mundial de em suas igrejas e, de outro, necessitada de
Igrejas fosse acusado de estar se abrindo apoio para o desamparo social em que vi-
para o comunismo. Desabrochava o conflito via, a cura divina, entendida no seu sentido
entre o fundamentalismo representando mais amplo, constituía de fato a principal
pelo Conselho Internacional de Igrejas atração simbólica.
Cristãs e o ecumenismo representado pelo A cruzada atingiu as igrejas tradicionais,
Conselho Mundial de Igrejas, com intensos bem como as pentecostais clássicas. Muitos
reflexos nas igrejas brasileiras. Mesmo pastores e leigos dessas igrejas, influencia-
assim, o Setor de Responsabilidade Social dos pela nova prática religiosa, vieram a
da Igreja realizou três reuniões de estudos fundar várias igrejas no mesmo estilo. Na
que antecederam a Conferência do Nordes- verdade, a Cruzada Nacional de Evangeli-
te, em 1962. Em suma, o período mostra zação foi a origem do neopentecostais.
progressiva politização da juventude das O período se fecha com as igrejas tradi-
igrejas protestantes. cionais situadas perante três vias opostas a
Outro impacto que as igrejas sofreram elas mesmas e entre si: o pentecostalismo
no período considerado foi a explosão de cura divina, o fundamentalismo e o
pentecostal no início dos anos 50. A in- ecumenismo incipiente.
dustrialização e o crescimento das cidades
decorrente da migração campo-cidade
provocaram, ao mesmo tempo, desajustes
sociais, bem como certo descompromisso PERÍODO DE REPRESSÃO E
dos migrantes em relação às suas igrejas
de origem. A migração geográfica trouxe ISOLACIONISMO DAS IGREJAS:
consigo uma migração religiosa em busca
de religiões mais práticas e que tivessem a 1962 A 1983
ver com o cotidiano das pessoas.
A explosão pentecostal teve como ponto Mesmo já com dificuldades internas e
de partida o movimento de “tendas de cura externas por causa de reações das cúpulas
divina” promovido pela chamada Cruzada das igrejas contra o avanço da autonomia
Nacional de Evangelização que alcançou de setores leigos dentro da Confederação
o país todo. Foi um movimento religioso Evangélica, o Setor de Responsabilidade
tipicamente urbano que começou em São Social da Igreja caminhou na direção da
Paulo em 1953. A cruzada era um braço da realização da sua quarta reunião de estudos

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que viria a ser conhecida por Conferência do A representação da conferência avizi-
Nordeste. A organização dessa conferência, nhava-se, pela sua composição, da utopia
decisiva quanto aos rumos do protestantis- unionista dos criadores da Confederação
mo no Brasil, contou com a forte liderança Evangélica. Todas as igrejas históricas do
do leigo presbiteriano Waldo César e a ins- protestantismo nacional estavam represen-
piração sempre presente de Richard Shaull, tadas. Duas utopias: a acima, expressa por
que já não era mais professor no Seminário Waldo César, e a união protestante em torno
Presbiteriano do Sul. dela. Veremos, mais adiante, que as forças
A Conferência do Nordeste, que teve ideológicas, que iriam logo se desencadear,
como tema “Cristo e o Processo Revolu- seriam mais fortes e venceriam. Quem de-
cionário Brasileiro”, realizada de 22 a 29 nunciou isso alguns anos adiante foi o jovem
de julho de 1962 na cidade do Recife, já Rubem Alves, um dos presentes na confe-
incorporava a crítica ao modelo econômi- rência, ao publicar um artigo que se tornou
co-político desenvolvimentista da década muito conhecido nas décadas seguintes.
anterior. Para os mentores da conferência, O artigo trazia o título “O Protestantismo
o Brasil estava dentro de um processo Latino-americano: sua Função Ideológica e
revolucionário diante do qual as igrejas suas Possibilidades Utópicas”. Esse artigo,
não poderiam se omitir. Por isso, a agenda publicado em inglês (Alves, 1970), em 1970,
da conferência contava com dois aspectos imediatamente começou a circular, traduzido
complementares: de um lado, uma análise e mimeografado, nos seminários brasileiros.
de conjuntura que seria processada por Bem mais tarde saiu numa coletânea do
sociólogos e economistas neutros, isto é, próprio Rubem Alves (1982).
que nada tinham a ver com as igrejas e, As análises de conjuntura, cujo espaço
de outro, propostas teológicas no sentido era tomado pelas questões sociais provo-
de chamar a atenção das igrejas para o seu cadas pela industrialização e pela crise do
papel na situação histórica pela qual o país campesinato, foram feitas por Gilberto
passava. Freyre, Celso Furtado, Paulo Singer e Jua-
Há, pelo menos, dois documentos im- rez Rubem Brandão Lopes. A chamada
portantes sobre essa conferência. Um deles, à responsabilidade das igrejas diante do
escrito por Waldo César (1962a), secretário “estado revolucionário” ficou a cargo de
executivo do Setor de Responsabilidade pastores envolvidos com as “novas teolo-
Social da Igreja, da Confederação Evan- gias”, como o luterano Ernst Schlieper, o
gélica do Brasil, é um diário, uma crônica metodista Almir dos Santos, os presbiteria-
leve mas cheia de informações sobre os nos Joaquim Beato, João Dias de Araújo e
bastidores da conferência, seus conflitos e Sebastião Gomes Moreira, e os episcopais
aproximações, enfim, a dinâmica interna anglicanos Edmund Knox Sherrill (bispo)
de um encontro de tantas personalidades e e Curt Kleemann.
tendências diferentes. O outro é a publica- A Conferência do Nordeste, com re-
ção oficial do evento com o mesmo título percussão nacional e internacional, causou
e que traz os textos das conferências e os grande impacto dentro das igrejas. A situa-
relatórios dos diferentes grupos de estudos ção agravou-se com a chegada de novo
(César, 1962b). Na Introdução a esse vo- “bando de teologias novas”, a intensificação
lume, escrita por Waldo César, aparece em do conflito entre fundamentalismo e ecu-
poucas linhas, e in totum, o projeto utópico menismo e o golpe militar de 64.
que animava o setor jovem e politizado das A década de 60 foi uma época revolu-
igrejas protestantes no Brasil: “A Conferên- cionária com o impacto das novas tecnolo-
cia do Nordeste foi, antes de tudo, grande gias e conseqüentes mudanças sociais e o
esforço neste sentido: levar a Igreja a falar surgimento do tema “esperança” nos vários
a linguagem da época em que vivemos e a setores da vida intelectual. Na filosofia o
encontrar-se com a sociedade brasileira” tema aparece em Ernst Bloch (1855-1977)
(César, 1962b, p. xi). com O Princípio Esperança (1959), só

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agora publicado em português, e na teolo- enquanto dois outros, também norte-ame-
gia surge Jürgen Moltmann (1926-) com ricanos, William Hamilton e Thomas J. J.
sua monumental Teologia da Esperança, Altizer, levantam a bandeira da “teologia
primeira edição em 1968. Em português radical”, também chamada “teologia da
acaba de sair a 3 a edição. Em 1969, o morte de Deus”. Entram também por essa
teólogo presbiteriano brasileiro, um dos via Gabriel Vahanian (The Death of God,
participantes da conferência, Rubem Alves, 1961) e o bispo anglicano que causou sen-
publica sua tese de doutorado nos Estados sação com Honest to God, 1963. Por sua
Unidos intitulada A Theology of Human vez, o teólogo católico Robert Adolfs chega
Hope. Essa obra só saiu em português em ao extremo da crítica à igreja acusando-a de
1987 com o título Da Esperança depois de ser “túmulo de Deus”. Em resumo, a massa
ter sido publicada antes em outras línguas. da produção teológica desse período, tanto
Vale considerar que o tema perpassa com protestante como católica, procura mostrar
igual intensidade o universo intelectual que num mundo secularizado e aberto a
católico como, por exemplo, em J. B. Metz, mudanças, vez que destruído pela guerra, era
que, passando pelo tema da secularização e necessário buscar novas formas de religião
por uma teologia do mundo, chega a uma ou até mesmo superar a religião. A teologia
teologia política. Nem mesmo a sociologia radical, ou da morte de Deus, por certo não
ficou alheia ao movimento porque Henri era atéia, mas tinha implícita a idéia de que
Desroche (1914-1994) publicou Sociologie o Deus da tradição havia “morrido na cul-
de L’Espérance, em 1973. A tradução em tura”. As igrejas o haviam enterrado com
português saiu em 1985. suas fórmulas antiquadas e emperradas. Era
Duas outras correntes, paralelas por Nietzsche chamado à liça com o célebre
sinal, empolgam esse período. O teólogo diálogo entre Zaratustra e o velho papa
norte-americano Harvey Cox (The Secular “fora de serviço”, fora de serviço porque
City, 1965-66) trabalha o tema da relação sua instituição havia acabado. Estavam em
entre a urbanização e a secularização, jogo estrutura e poder das igrejas.

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Na América Latina dois acontecimentos particularmente o brasileiro, mal chegou
iriam centralizar o grande debate em torno aos umbrais da Teologia da Libertação. Mas
da situação social, econômica e política. A mesmo a simples aproximação dela através
ideologia desenvolvimentista seria ques- do movimento de Isal foi suficiente para o
tionada pela tese da dependência elaborada endurecimento das igrejas e o início de um
por Fernando Henrique Cardoso e Enzo processo de repressão, especialmente pela
Faletto (Dependência e Desenvolvimento identificação que as alas conservadoras das
na América Latina, 1965-67). A teoria se igrejas faziam entre ecumenismo e comu-
completava com a obra de Celso Furtado, nismo e a pressão fundamentalista tanto
já citada, sobre as origens do subdesenvol- interna como externa. Além de tudo, por trás
vimento. Nesse ponto, tanto alguns setores estava já o período de repressão do regime
das igrejas protestantes quanto da Igreja militar. A pressão fundamentalista externa,
Católica avançaram mais ou menos na mes- representada pela presença cada vez maior
ma direção, isto é, no sentido de envolver no Brasil das chamadas missões paraecle-
as igrejas na luta pela conquista de uma siásticas, ou missões de fé, assim como
sociedade mais justa diante de um cenário os clarões ainda visíveis do macarthismo
aberto a profundas mudanças. provocaram o expurgo progressivo da ala
Assim, no cenário protestante surge, em chamada liberal ou modernista das igrejas
1961, a Junta Latino-Americana Igreja e representada por estudantes universitários,
Sociedade com o fim de promover consultas seminaristas e jovens pastores. Em 1968,
sobre a responsabilidade social das igrejas ao menos dois seminários presbiterianos
evangélicas na América Latina. Isal, como e um metodista foram fechados e seus
passou a ser conhecida, passou a publicar, alunos expulsos. Colaborou bastante, sem
em Montevidéu, a revista Cristianismo y dúvida, a generalização do movimento de
Sociedad, que teve larga circulação em toda “contracultura” com seus reflexos entre os
a América Latina. Essa revista, que servia estudantes brasileiros.
de elo entre os protestantes da “esquerda Há, pelo menos, três trabalhos que
teológica latino-americana”, migrou por retratam bem esse período de repressão
vários países até se extinguir melancolica- em algumas das igrejas protestantes brasi-
mente . Muitos brasileiros participaram de leiras: de João Dias de Araújo, Inquisição
Isal, entre eles, com atuação saliente, Rubem sem Fogueiras (1976), de Rubem Alves,
Alves. Richard Shaull, mesmo não sendo Protestantismo e Repressão (1979), e um
latino-americano, foi um dos seus principais artigo bem elaborado e documentado de
nomes. No cenário católico, o aggiorna- Leonildo Silveira Campos (2002).
mento proposto pelo Concílio Vaticano II O conflito também significativo desse
iria culminar na Segunda Conferência do período aconteceu entre o ecumenismo,
Episcopado Latino-Americano, em Me- acirrado pela Assembléia do Conselho
dellin, Colômbia, 1968, com a declaração Mundial de Igrejas (CMI), em Nova Délhi,
da opção preferencial pelos pobres, ponto Índia, e o Conselho Internacional de Igrejas
de partida para a Teologia da Libertação Cristãs, expressão do fundamentalismo
que se desenvolveria na década seguinte. Os protestante. A Assembléia de Nova Délhi,
mais conhecidos nomes brasileiros inseridos realizada entre 19 de novembro e 5 de
nessa corrente teológica foram os católicos dezembro de 1961, com a presença de 577
Leonardo Boff e Hugo Assmann. Do lado delegados de 197 igrejas membros, decidiu,
protestante, ao menos nos seus inícios, o entre outras coisas, pela aproximação de
nome de Rubem Alves seria arrolado como outras religiões, compreendendo-as melhor
um dos seus precursores. Mais tarde ele se e, principalmente, por tomar conhecimen-
afastaria tomando outros caminhos, princi- to dos problemas econômicos e políticos
palmente quanto ao método e à linguagem decorrentes das rápidas mudanças sociais,
da teologia (Cervantes-Ortiz, s/d). particularmente do Terceiro Mundo. A rea-
O protestantismo latino-americano, ção do Conselho Internacional de Igrejas

64 REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 48-67, setembro/novembro 2005


Cristãs foi imediata acusando o CMI de da Vida, Vencedores por Cristo e Jovens
tentar aproximar-se da Igreja Católica e de da Verdade tinham o mesmo objetivo de
abrir espaço para o comunismo. atrair a juventude, paradoxalmente, a das
Algumas igrejas brasileiras já se haviam próprias igrejas.
filiado ao Conselho Mundial de Igrejas e Talvez a maior expressão da direita po-
colaboravam com seus projetos indiferentes lítica e religiosa tenha sido o IRD (Institute
ao conflito. Outras, porém, principalmente on Religion and Democracy), fundado em
as presbiterianas, dividiram-se interna- 1981 por Michael Novak e outros, a fim
mente com grandes prejuízos pela perda de resistir à linha progressista de organi-
de quadros, principalmente de intelectuais zações cristãs como o National Council of
que tiveram de abandoná-las procurando Churches e sua ala ecumênica favorável ao
espaços nas universidades. Duas dessas Conselho Mundial de Igrejas. Um dos seus
igrejas assumiram posição de eqüidistância membros fundadores, o pastor luterano Ri-
entre as duas instituições internacionais em chard J. Neuhaus, afirmou que o IRD tinha
confronto a fim de não entrar abertamente uma agenda política específica que era a
na disputa. Contudo, as evidências futuras América Central e o combate à Teologia da
apontam para uma decisão não-oficial, de Libertação (11). No governo Reagan o IRD
consciência, em favor da ala mais conserva- operava muito próximo do Departamento
dora que recusava o ecumenismo e, por isso, de Estado, em Washington.
promoveu expurgos em seus quadros. Um dos mais influentes membros do
O cenário internacional desse período, IRD é o conhecido sociólogo Peter Berger
que tinha por principal personagem a Guerra (1923-), também teólogo leigo. Outro, que
Fria, ajudava o bloco capitalista conservador se tornou conhecido no Brasil, foi o teólogo
a manter aceso nas igrejas o sentimento an- católico Michael Novak, já mencionado.
tiecumênico e anticomunista, que ganhava, Novak, em suas conferências em São Paulo,
sob o verniz de verdades religiosas, foros de em meados dos anos 80, provocou reações
“guerra de dois mundos”, particularmente negativas. Num encontro com professores
com o “Armagedon” (10) escatologista do curso de ciências da religião da Univer-
no governo Reagan. Em dado momento, sidade Metodista de São Paulo, ao criticar
os teleevangelistas, como Jimmy Swagart a Teologia da Libertação e a teoria da de-
por exemplo, alcançando vários países com pendência, provocou um debate acirrado
suas mensagens televisivas, anunciavam “o que terminou em constrangimento.
reino de Deus pela América”. Pregavam O IRD, pelo seu apoio intelectual e
o “Kingdom Now”. O ímpeto dos telee- logístico aos “contra” na América Central,
vangelistas foi contido pelos escândalos foi denunciado e combatido pelas esquerdas
promovidos por alguns deles, inclusive o latino-americanas (Escurra, 1982).
próprio Swagart, e revelados pela imprensa. O chamado Movimento Evangelical,
Algumas organizações chamadas “missões conservador e voltado para a conversão
de fé”, porque não faziam parte de igrejas pessoal, com sua presença subjacente, mas
oficiais, estenderam braços conservadores forte nas igrejas, vem colaborando para o
para a América Latina e ajudaram a arre- “quietismo” que as isola do cenário social.
fecer os possíveis ímpetos renovadores O símbolo do “evangelicalismo” atual é
da juventude protestante. Uma delas foi a o Pacto de Lausanne, firmado no grande
Campus Crusade for Christ, fundada pelo Congresso Internacional de Evangelização
norte-americano Bill Bright (1921-2003), Mundial realizado naquela cidade suíça em 10 Nome de um campo de ba-
talha profético, onde os reis
cujo braço no Brasil se chamou Cruzada 1974. Dela participou o conhecido evange- de toda a Terra se reunirão
Estudantil e Profissional para Cristo. Ob- lista Billy Graham. para uma batalha no grande
dia do Deus Todo-poderoso
jetivava, como o próprio nome diz, atrair O último e grande desafio às igrejas (Apocalipse 16,16) (John D.
estudantes universitários. Semelhante seria protestantes históricas nesse período foi Davis, Dicionário da Bíblia).

a ABU (Aliança Bíblica Universitária). o avanço do movimento carismático no 11 htttp://rightweb.irc-on-line.


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Outras muito conhecidas como Palavra interior delas mesmas gerando divisões (12/9/2005).

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que produziram as chamadas igrejas “re- e indiferença pela realidade. Voltaram-se
novadas”. O neopentecostalismo, como para o interior de si mesmas e construíram
se sabe, provocou verdadeira devastação nichos de salvação.
nessas igrejas. As causas são múltiplas e não caberia
levantá-las exaustivamente neste ponto.
Contudo, parece ser suficiente apontar para
duas, uma externa e outra interna. A externa
CONSIDERAÇÕES FINAIS é a dependência de matrizes de pensamento
geradas em outro lugar ou, usando o já co-
A trajetória histórica das chamadas igre- nhecido bordão, de “idéias fora do lugar”. A
jas protestantes tradicionais, particularmen- interna é a histórica repressão da construção
te as oriundas das missões norte-americanas, de um pensamento crítico que, começando
mostra um confronto permanente entre nos anos 40, vem exilando os intelectuais
dependência e autonomia. A autonomia de modo a impedir que a autonomia vença a
política e administrativa foi sendo obtida dependência. Os quadros, enfraquecidos pela
ao longo do tempo, mas a financeira ainda ausência de pensamento vigoroso e livre, mal
exerce forte ascendência em alguns setores ensaiam o debate em torno de novas idéias.
da vida dessas igrejas, o que não deixa de Contudo, a abertura legal para a criação de
influir na dependência de idéias e projetos. cursos superiores de teologia com reconheci-
As aproximações e distanciamentos perió- mento oficial, inclusive pelas universidades,
dicos entre utopias e ideologias, como pode descortinar um horizonte novo para o
lembrou Rubem Alves, sempre acabaram pensamento filosófico-teológico que venha
neutralizando o pensamento utópico e as a contaminar as igrejas e abrir aos poucos
levaram a uma espécie de recolhimento campo para a sua autonomia.

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