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C.

René Padilla

2011
Rio de Janeiro
1ª edição
Copyright © Ediciones Kairós, 2003
Título original: Economía Humana y Economía del Reino de Dios
© Editora Novos Diálogos, 2011
Equipe Editorial
Clemir Fernandes | Flávio Conrado | Wagner Guimarães
Capa e Diagramação
Oliverartelucas
Tradução
Wagner Guimarães
Os textos das referências bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revis-
ta e Atualizada (Sociedade Bíblica do Brasil), salvo indicações específicas.
Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados.

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Padilla, René C.
Deus e mamon: economia do Reino na era da globali-
P123d zação / René C. Padilla ; tradução de Wagner Guimarães.-
Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011.-
Título original espanhol: Economía humana y economia
del Reino de Dios.

112 p. ; 21cm.

ISBN: 978-85-64181-03-8
1. Globalização—-Aspectos religiosos . I. Título.

CDD 291.1785

Índice para catálogo sistemático:


1. Reino de Deus: 231.72
Sumário
Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Capítulo 1
A ética reformada e a mordomia
dos bens materiais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Capítulo 2
Vigência do Jubileu no
mundo atual (Levítico 25). . . . . . . . . . . . . . . . 31

Capítulo 3
Economia e plenitude de vida . . . . . . . . . . . . . 61

Capítulo 4
Uma resposta cristã à globalização . . . . . . . . . . 79

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Apresentação
AO TER NA MÃO um livro como este, muitos podem se per-
guntar: o que a teologia tem a ver com a economia? Um teólogo
escrever sobre economia, a partir da perspectiva teológica, não
seria misturar campos distintos? Afinal, a teologia não deveria
tratar das coisas “sagradas”, como Deus, Igreja e outros temas do
campo religioso; enquanto que a economia e política deveriam
ser tratadas por ciências “seculares”?
Este tipo de pergunta é muito comum mesmo entre cristãos e
pessoas de outras crenças que se preocupam com a “responsabili-
dade social” das igrejas e das religiões. Na vida prática, articulam
a sua vivência religiosa com ações voltadas para solucionar ou
minorar os problemas sociais; mas na hora de explicar a sua fé
ou de dialogar sobre teologia ou doutrinas, acabam por separar
a realidade em que vivemos entre o campo religioso e o campo
secular.
Na verdade, esta separação entre o que é religioso e o que é
secular é uma invenção do mundo moderno ocidental. Antes,
não havia essa separação. Teólogos importantes como Tomás de
Aquino, Lutero e Calvino escreveram tratados sobre Deus, Igre-
ja, o Estado e até sobre juros cobrados em empréstimos finan-
ceiros. Neste sentido, a religião como entendemos hoje, isto é,
como algo completamente separado das questões “seculares”, é
uma invenção do mundo moderno Ocidental.
Além disso, a teologia não deve ser entendida como uma re-
flexão (logos) sobre Deus (theós), como é apresentada em muitos
livros de introdução à teologia. Isso por diversas razões. Aqui cito
somente duas. Primeiro, porque quando fazemos de Deus um
objeto da nossa reflexão teórica, estamos reduzindo Deus a um
“objeto” que pode ser definido (estabelecer limites) pelas nossas
teorias e isso é negar uma das suas características fundamentais: a
infinitude. Segundo, quando pensamos a teologia como reflexão
sobre Deus, ou mesmo sobre as doutrinas sobre Deus, corremos
o risco — como nos alerta René Padilla neste livro — de divor-
ciá-la da vida prática. A teologia deve ser compreendida como
uma reflexão crítica sobre a nossa vivência de fé cristã, sobre o
nosso seguimento à pessoa de Jesus Cristo no mundo de hoje.
Para isso, devemos sempre nos voltar para a tradição bíblica e
as tradições teológicas do cristianismo e das nossas igrejas para
aprendermos com elas essa perspectiva crítica.
Cientistas e estudiosos da religião fazem do campo religioso
o seu objeto de pesquisa e estudo. Mas a teologia é um tipo de
conhecimento diferente. É claro que teólogos também podem e
devem estudar o campo religioso, mas a diferença específica da
teologia é “olhar” o mundo e as nossas vidas na perspectiva da fé.
E o olhar crítico da fé não fica restrito aos assuntos “religiosos”,
mas se volta para todas as questões importantes na vida das pes-
soas e da sociedade, especialmente no caminho do seguimento
de Jesus.
É por isso que René Padilla volta o seu olhar, a sua capacidade
de reflexão crítica, ao campo da economia. Não para discutir ques-
tões técnicas econômicas a partir das ciências econômicas, mas
para, a partir da teologia, analisar a dimensão ética e espiritual do

8 Deus e Mamom
atual sistema capitalista global, já que em torno da economia está
em jogo a vida de bilhões de pessoas por todo o mundo.
Uma reflexão teológica que queira ser relevante para o mundo
de hoje, para os grandes desafios e temas do século vinte e um,
precisa enfrentar a tarefa de desmascarar a dimensão idolátrica
do atual sistema econômico e o atual processo de globalização. E
o conceito de idolatria aqui não é no sentido meramente meta-
fórico, mas é no sentido plenamente teológico. O próprio título
deste livro aponta para isso: “Deus e Mamon”. Quando Jesus
colocou a disjuntiva Deus ou Mamom, ele não estava se refe-
rindo simplesmente ao dinheiro, como se um pessoa fiel a Deus
devesse se opor ao dinheiro, mas estava criticando a elevação do
dinheiro à categoria de deus (ídolo), que se opõe aos valores do
Reino de Deus.
Idolatrias, como adoração a (falsos) deuses, geram espiritu-
alidade, valores morais e justificam sistemas sociais e religiosos
opressivos que exigem sacrifícios de vidas humanas. Diante de
um sistema econômico injusto que, através da cultura de consu-
mo, fascina o povo com suas mentiras e falsas promessas, Padilla
afirma com coragem:
Para os cristãos, [...] a resistência à sociedade de consumo, um
sistema construído sobre falsos pressupostos e valores distor-
cidos, não é opcional. Os problemas que o capitalismo global
põe não são meramente, nem mesmo principalmente, econô-
micos ou técnicos, mas morais e espirituais. [...] o chamado
para amar o próximo como a si mesmo inclui um chamado
para subverter as estruturas de exploração e para forjar alter-
nativas fidedignas. [...] atrás do materialismo que caracteriza a
sociedade de consumo estão os poderes de destruição ao qual o
Novo Testamento se refere (p. 103).

Esta referência ao Novo Testamente não pode ser interpretada


no sentido de que a religião e a fé cristã, por si só, teriam solu-

Apresentação 9
ções para os problemas sociais, econômicos e ecológicos do nosso
tempo. Da Palavra, devemos buscar a força espiritual, o sentido
mais profundo das nossas vidas e luzes para o nosso caminhar.
Mas, as reflexões teológicas devem dialogar também com outros
tipos de conhecimentos — tais como ciências sociais, economia,
antropologia etc. — na sua tarefa de melhor iluminar as nossas
vidas. A partir dessas reflexões, Padilla afirma com propriedade:
Se algo comprova que o sistema econômico atual, domina-
do pela ideologia neoliberal, precisa de uma transformação
drástica, é a agudização dos problemas econômicos de nosso
tempo: a contaminação ambiental e a pobreza, agravada pelo
desemprego. Trata-se de problemas estruturais cuja solução
exige uma vontade política baseada no reconhecimento de que
a vida humana não depende de posse de muitas coisas (p.33).

Reflexões teológicas como as apresentadas neste livro mos-


tram que o cristianismo tem algo de relevante e significativo
para o mundo de hoje como um todo, e não somente para os
“crentes”. Teologias cristãs sérias, competentes e críticas — no
sentido de ir além das aparências do mundo e dos textos, além da
“zona de conforto” dos assuntos religiosos e eclesiásticos — são
alimentos vitais para a vida das comunidades cristãs e das pesso-
as de “boa vontade” que ainda conseguem se indignar frente às
injustiças e aos pecados do mundo.
Teologias assim estão sempre acima das classificações em es-
colas ou correntes teológicas. René Padilla, por exemplo, um
dos principais nomes da chamada Teologia da Missão Integral,
utiliza-se neste livro também de reflexões de alguns autores da
Teologia da Libertação latino-americana, como Hugo Assmann,
Franz Hinkelammert ou Leonardo Boff; assim como no seu livro
clássico Missão integral: ensaios sobre o reino e a igreja já dialogava
com o pensamento de Juan Luis Segundo (um teólogo da liber-
tação, jesuíta). É por isso que eu, um católico formado na tradi-

10 Deus e Mamom
ção da Teologia da Libertação, me sinto muito “em casa” quan-
do leio livros de autores como René Padilla (que, aliás, escreveu
uma bonita “recomendação” ao meu livro Teologia e Economia):
porque são livros que nos ajudam a enxergar a “verdade que está
prisioneira das mentiras e injustiças do mundo” (cf. Romanos
1.18).
E o encontro com essa Verdade nos liberta; leva-nos a lutar
pela libertação das pessoas submetidas às injustiças e opressões
do mundo; e nos possibilita experienciar a presença do Amor de
Deus, do seu Reinado entre nós.

Jung Mo Sung
Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo
Dezembro de 2010

Apresentação 11
Prefácio
UM DOS DESAFIOS CARACTERÍSTICOS assumidos pela Fra-
ternidade Teológica Latino-americana (FTL) foi o esforço em
articular uma teologia que fosse fiel à revelação bíblica e ao mes-
mo tempo pertinente à situação latino-americana. Com este fim,
desde seu início em 1970, estimulou o diálogo com as ciências
humanas, tais como a economia, a sociologia, a política, a an-
tropologia e a psicologia. Este pequeno livro é uma mostra desse
esforço no campo econômico.
Dos quatro ensaios incluídos, dois já haviam sido publicados
previamente em espanhol; um foi publicado pela primeira vez
na edição original deste livro e o quarto foi publicado apenas
em inglês. O primeiro ensaio, “A ética reformada e a mordomia
dos bens materiais”, apareceu no no 53 da revista Iglesia y Misión
(julho-setembro de 1995). Foi originalmente uma apresentação
feita em uma consulta de teologia reformada que se realizou uns
meses antes no Centro Kairós de Buenos Aires. O segundo ensaio,
“Vigência do Jubileu no mundo atual (Levítico 25)”, foi publi-
cado no no. 53 do Boletín Teológico (julho-setembro de 1996). O
terceiro ensaio,“Economia e plenitude de vida”, antecede os ou-
tros dois: foi uma das palestras apresentadas no contexto de todo
um processo de reflexão sobre “Os cristãos frente à dependência
econômica e à dívida externa da América latina”, auspiciado pela
FTL em 1990. O quarto e último ensaio, “Uma resposta cristã à
globalização”, foi publicado originalmente em inglês, junto com
outros dois ensaios de minha autoria, em Transforming Church
and Mission, livro editado especialmente para o Fórum de Evan-
gelização Mundial que foi realizado na Tailândia em setembro de
2004, auspiciado pelo Movimento de Lausanne.
O leitor compreenderá minhas reservas ao disponibilizar es-
tes ensaios mais amplamente, pela simples razão de que não sou
economista de profissão. Com certeza, não faltarão economistas
profissionais que, se lessem este livro, recorreriam ao que, em
lógica, denomina-se “o prurido do especialista” para desqualifi-
car minhas críticas ao atual sistema econômico. Admito minhas
limitações. No entanto, me animo a incursionar em temas de
economia, não porque tenha propostas técnicas para a solução
dos problemas, mas porque considero que a economia, como
todas as ciências humanas, tem uma dimensão ética cuja defi-
nição não pode ser deixada exclusivamente nas mãos de pessoas
especializadas em economia. O critério para avaliar um sistema
econômico não são os ganhos dos investidores mas a qualidade
de vida de todas as pessoas a quem esse sistema afeta direta ou
indiretamente, tenham ou não investimentos.
Para conhecer esses resultados, basta observar o opulento
estilo de vida dos beneficiários do sistema — que são a minoria
—, por um lado, e a triste situação daqueles que sofrem as con-
sequências do mesmo sistema — que são as grandes maiorias
—, por outro. E para interpretá-los, nada melhor que a análise
de economistas profissionais que, como Joseph Stiglitz, Prêmio
Nobel de Economia em 2001, criticam o modelo econômico
atual — o fundamentalismo de mercado — porque creem na
necessidade de intervenções dos governos nos mercados com

14 Deus e Mamom
“medidas que podem guiar o crescimento e melhorar a situação
de todos”.
Além disso, é bom recordar que há economistas cristãos,
como Bob Goudzwaard e Harry de Lange, a quem cito nos en-
saios sobre o Jubileu e sobre a globalização, que mostraram as
possibilidades de corrigir o sistema econômico que hoje domi-
na o mundo, a partir de uma análise mais integral da realidade,
para que se ajuste aos ideais bíblicos de justiça e solidariedade.
O mínimo que se pode dizer é que isto demonstra que o que
determina a política econômica que alguém apoia não é a ciência
econômica, à qual supostamente só tem acesso os economistas,
mas sim o compromisso ideológico que alguém adota, informa-
do ou não por valores éticos.

C. René Padilla
Bueno Aires, 9 de novembro de 2002

Prefácio 15
CAPÍTULO 1

A ética reformada
e a mordomia dos
bens materiais
A ESTREITA RELAÇÃO ENTRE a doutrina que se professa e
a ética que se pratica é uma premissa fundamental da fé cristã.
João Calvino expressa isso com grande clareza em seu excelente
tratado sobre a vida cristã, que faz parte do livro III de suas Ins-
titutas:
Porque o evangelho não é uma doutrina de língua, mas de
vida. E, diferentemente das outras disciplinas, não se apreende
só pela mente e pela memória, mas deve envolver e dominar a
alma e ter como sede e receptáculo as profundezas do coração.
De outra forma, o evangelho não será recebido adequadamen-
te como deve ser (III.vi.4 [2006]).

Para Calvino, como para os demais reformadores, a pureza


da doutrina era um assunto de suma importância, não como um
fim em si mesmo mas como o fundamento para uma vida digna
do evangelho. A doutrina devia “envolver e dominar a alma e ter
como sede e receptáculo as profundezas do coração”, a fim de dar
fruto em termos de santidade na vida prática. E esta integração
da fé e da conduta tinha que se dar em todas as áreas da vida,
sem exceção.
Temos aí já um importante motivo para dizer que somos pes-
soas consagradas e dedicadas a Deus para que não pensemos,
nem meditemos, nem façamos coisa alguma que não seja para
a sua glória. Porque não é lícito aplicar algo sagrado a uso pro-
fano (Institutas, III. vii.1).

Visando ilustrar a maneira com que a teologia reformada se


ocupou no passado de relacionar o ensinamento bíblico com a
conduta prática, exploraremos no presente capítulo um tema
que mereceu consideração cuidadosa por parte de vários autores
desta tradição e que segue sendo um tema da atualidade: a mor-
domia dos bens materiais.
Como afirma o pastor Pierre Courthial, a grande originalida-
de da Reforma foi o não querer ser original mas buscar um re-
torno à Palavra de Deus (1967: 30). Nosso propósito é destacar,
para nosso próprio aprendizado, algumas das linhas de reflexão
ética que, em torno do tema mencionado e à luz do ensinamento
bíblico, foram traçadas na tradição reformada no diálogo com
o contexto histórico. Para isso, analisaremos a obra intitulada
Riches increased by giving (que pode ser traduzida como Riquezas
acrescentadas pelo dar) escrita por um pastor e autor puritano,
Thomas Gouge (1605-1681). Aqui, nos ocuparemos dela por
considerá-la de muita solidez bíblica e de grande atualidade para
nosso tempo.
Cabe ressaltar que a situação em que viveu este destacado
servo de Deus, na Inglaterra do século dezessete, se carac-
terizou, entre outras coisas, por uma profunda desigualdade
entre os ricos e os pobres. Enquanto os poderosos recebiam
todo tipo de privilégios por parte da Coroa, o custo de vida
não tinha relação com o poder aquisitivo dos trabalhadores

18 Deus e Mamom
que recebiam pagamento diário ou eram assalariados, e gran-
de parte da população não encontrava maneira de satisfazer
suas necessidades básicas (cf. Gonzáles, 1982: 63). Nestas cir-
cunstâncias, Gouge se sentiu compelido a repreender o povo
de Deus, em geral, e seus membros mais ricos, em particular.
Para este propósito recorreu às Escrituras e, a partir delas, for-
jou seu ensino de rico conteúdo ético e de grande pertinência
à sua situação.

~
Martim Lutero e Joao Calvino:
suas atitudes diante dos bens materiais
Um estudo mais amplo de nosso tema teria que dar conta
dos antecedentes do ensinamento ético de Gouge na história do
pensamento reformado. Basta mencionar aqui que tanto Lutero
como Calvino mostraram uma preocupação especial pelas ques-
tões econômicas e se esforçaram para entendê-las à luz da Pala-
vra de Deus, em função da coerência entre a doutrina e a vida
prática.
O teólogo brasileiro Ricardo W. Rieth, em sua tese de dou-
torado para a Universidade de Leipzig, pesquisou com afinco o
pensamento econômico de Lutero e mostrou como, a partir das
Escrituras, o reformador alemão opôs a ganância à fé, e o culto
a Mamom à adoração ao Deus verdadeiro. Em dois artigos que
resumem suas descobertas, Rieth afirma:
A ganância assumiu um significado central no pensamento
teológico de Lutero quando, por um lado, a equiparou à in-
credulidade. Neste contexto, compreendeu a incredulidade em
oposição à fé como confiança na ajuda de Deus. Por outro
lado, também identificou a ganância com a idolatria ou o culto
às riquezas, em oposição à verdadeira adoração, ao verdadeiro
culto a Deus (...) A ganância destrói o princípio básico pelo
qual deve ser definida a posição diante das posses e do dinheiro

A ética reformada e a mordomia dos bens materiais 19


na relação de cada um consigo mesmo e com os que o rodeiam.
Esse princípio básico para o investimento das posses e do di-
nheiro, por sua vez, é criado pela fé e moldado pelo amor ao
próximo. Em consequência, a ganância para Lutero só poderia
ser combatida a partir da fé (1993: 161; 1994: 73).

W. Fred Graham, por sua vez, mostrou de maneira lúcida o


caráter revolucionário do pensamento socioeconômico de Calvi-
no em seu contexto histórico. Na perspectiva deste autor,
se há algum tema central no pensamento social e econômico
de Calvino, este é que a riqueza vem de Deus com o propósito
de que se use para ajudar nossos irmãos. A solidariedade da
comunidade humana é tal que é inaceitável que uns tenham
abundância e outros estejam em necessidade (1978: 68).

Tanto em sua pregação como em seus escritos, o célebre refor-


mador atacou em muitas oportunidades a exploração econômica
dos pobres por parte dos ricos e pôs em dúvida a autenticidade
da fé dos exploradores. Como exemplo, Graham cita a seguinte
denúncia articulada por Calvino no púlpito da Igreja de Saint-
-Pierre, em Genebra:
Se pudessem, [os ricos] reservariam o sol para eles sozinhos
para dizer que os outros não têm nada em comum com eles. Se
pudessem, certamente mudariam a ordem de Deus e a nature-
za a fim de absorver tudo. Mas, no entanto, que cristãos! Sim,
eles são se alguém quiser crer nisto!

Segundo o estudioso mencionado, é claro que para Calvino


os bens materiais só cumprem sua função quando se usam para
um bem comum, em conformidade com a lei do amor, posto
que “o uso legítimo dos bens recebidos consiste em compartilhá-
-los fraternal e liberalmente, visando ao bem do nosso próximo”
(Institutas). A base para tal “compartilhar” não é outra senão a
vocação que Deus deu ao ser humano, a saber, a mordomia da
criação:

20 Deus e Mamom

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