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Ofícios de Cristo

Tanto em seu estado de humilhação como no de exaltação, Cristo tem desempenhado três
ofícios, que é a forma de se falar a respeito da obra de Cristo. Embora alguns dos chamados
pais primitivos da igreja já falassem dos diferentes ofícios de Cristo, Calvino foi o primeiro a
reconhecer a importância de distinguir os três ofícios do Mediador. As confissões reformadas,
tais como o Catecismo de Heidelberg, prontamente aceiraram esta formulação. Entre os
luteranos já houve mais resistências. O homem, como foi criado por Deus, devia exercer o
papel de profeta, sacerdote e rei. Daí ter sido dotado de conhecimento e entendimento, de
retidão e santidade, e de domínio sobre a criação inferior. A entrada do pecado no mundo
afetou o homem todo e o impossibilitou de funcionar propriamente na sua tríplice capacidade
de profeta, sacerdote e rei, ficando assim sujeito ao pecado, ao engano, ao erro e a morte.
Mas Jesus veio como homem ideal e com o propósito de restaurar o homem à sua condição
original. Desse modo, Ele deveria exercer também esses ofícios. Através do exercício desses
ofícios são revelados os efeitos e as virtudes de Jesus, necessários para que as pessoas possam
crer nEle. É preciso conhecer Sua vida e o que Ele fez pelo pecador para que assim todos os
que o receberam descansem seguros, confiando plenamente que a Sua Obra foi completa em
prol da Salvação. Para Calvino existe uma grande dificuldade em discriminar claramente as
ações distintas de cada um dos ofícios em Jesus, sendo que Ele os exerce todos
simultaneamente de maneira completa. Assim, ao separá-los corre-se o risco de exaltar um em
detrimento dos outros. Assegurar a distinção dos três ofícios em Cristo é assegurar a distinção
das duas naturezas em Cristo, sem ambiguidades, sem confusão, sem conversão e sem
composição, de modo que as duas naturezas em sua totalidade são perfeitas e distintas, a
Deidade e a humanidade de Cristo.

Charles Hodge explica que os elementos necessários para se alcançar esse grande objetivo
estão divididos em duas classes, a saber: aqueles que dizem respeito a Deus e aqueles que
dizem respeito aos homens. “No tocante a Deus é absolutamente necessário para se obter a
reconciliação é necessário que o Mediador aplaque o justo desprazer de Deus fazendo
expiação da culpa do pecado e apresentar súplicas em favor deles; esta ação é primordial a fim
de que sejam aceitos pelo Pai. Aos homens é absolutamente necessário que o Mediador lhes
revele a verdade concernente a Deus, suas relações com Ele, bem como as condições para que
o serviço seja aceitável; que Ele os persuada e os capacite a receberem a verdade revelada e O
obedeçam.”

Segundo a exposição de Emil Brunner, não foi por acidente que a teologia reformada, na sua
doutrina dos “ofícios” de Cristo, sublinhou essa afirmação originalmente bíblica da salvação
histórica, que, no período do escolasticismo medieval fora perdida. A obra de Jesus é o
cumprimento da Antiga Aliança (pacto das obras). Na doutrina dos três “ofícios de Cristo nos
relembramos novamente a verdade que conhecemos Jesus através da ação de Deus nEle; isto
já foi sugerido nos varies títulos dados a Jesus na Igreja Primitiva todos os quais têm um
caráter” funcional “e sugerem Sua Obra antes que Sua Pessoa”. Quando os teólogos
reformados falam do triplo “ofício” ou obra de Cristo eles têm em mente as três figuras
teocráticas que existiam sob o antigo pacto: o profeta, o sacerdote e orei. Em Jesus todas essas
três representações foram cumpridas, e elas se fundem em uma completa unidade na Sua
Pessoa, dando completa significação à Sua Obra. Assim também por meio de Sua encarnação
Ele exerceria os ofícios a Ele atribuídos em várias passagens do Antigo Testamento, conforme
veremos a seguir, a fim de confirmá-los diante do seu povo e atestar a veracidade bíblica,
cumprindo-a como sinais visíveis para aqueles que esperavam a restauração de Israel através
de seu libertador.
1. Profeta

Nos tempos de Moisés fora profetizado que surgiria no futuro, dentre os judeus, um profeta
semelhante a ele, a fim de revelar toda a vontade de Deus para o Seu povo (Dt 18.15,18),
Moisés, servo íntegro ao Senhor, conduziu o povo de Deus por mais de quarenta anos e lhes
ensinou a vontade de Deus. Para isso Deus utilizou Seu servo, Moisés, para ser o mediador
entre Ele e Seu povo. Moisés recebeu a revelação direta de Deus, concretizada nos
mandamentos, no monte Sinai (Ex 20: 1-21). É interessante observar que o povo tinha medo
de Deus, a semelhança de Adão; preferia tratar com Moisés a tratar diretamente com Deus.
Este medo é causado pela presença do pecado em nós.

Ao povo cabia obedecer a Deus ou não (Dt 11.26-32), sabendo que a vontade de Deus é boa e
perfeita, a qual conduz a quem a seguir a uma vida tranqüila e livre de problemas,
principalmente em relação ao Legislador e a qualquer ação judicial condenatória, visto que a
Lei do Senhor é superior a qualquer lei humana. Esta é a característica marcante da
superioridade da Lei Mosaica; ela é divina.

Moisés, como profeta anunciou aquilo que ele recebeu de Deus: sua lei. E Jesus trouxe aos
homens a revelação da vontade de Deus, sendo considerado por muitos como sendo o
“profeta” anunciado por Moisés (Mt 16:14; 21.11; Lc 24.44; Jo 7.40), mas Jesus era superior
aos outros profetas. Jesus é superior aos profetas, porque esses traziam palavras de Deus: e
Jesus é a própria Palavra de Deus (logos; Jo 1.1,2) revelada a todos, e todos O admiravam, pois
Ele os ensina como quem tem autoridade; Jesus não legitimava suas palavras como os antigos
profetas dizendo: “assim diz o Senhor...”; mas Ele dizia: “em verdade, em verdade Eu vos digo”
(Mt 18.3).

Para Emil Brunner Jesus como profeta não é um profeta a semelhança dos antigos profetas
porque Ele possuía autoridade. E Sua autoridade está firmada em Sua própria pessoa. “Sua
Palavra não pode ser separada de Sua Pessoa, enquanto para o profeta o que importa é a
Palavra que lhe é dada por Deus, Sua personalidade não tem importância. Por isso é que Jesus
fala com autoridade absoluta, Eu vos digo, Ele não reclama inspiração pelo contrário, em Suas
Palavras Ele freqüentemente se aponta como quem anuncia o novo dia, o dia que aponta para
o fim, o mundo celestial. Sua autoridade repousa no fato de que Ele autoafirma que Ele veio
do Pai (Mt 20.28; Mc 1.0.45; Jo 1.11; 5.43; 6.44; 8.42; 16.28)”.

Sua mensagem revela a verdade que estava sendo aguardada desde a promessa à mulher no
paraíso. Sua mensagem anuncia que o Reino está entre eles, presente, atuante. Jesus é a
mensagem viva da revelação divina, aguardada pelos profetas. Sua proclamação aponta
sempre para além do ensino. Ela aponta para Ele próprio, ou seja, para a revelação de que Ele
é o Messias, o Emanuel, para aquele em que Deus está presente em pessoa, não apenas pela
ação do Espírito Santo sobre Ele, mas também por ele ser o próprio Deus, agindo entre o povo.

Jesus é a revelação viva de Deus, não escrita, mas viva e presente na história das pessoas e
atuante no cotidiano deles, interferino, agindo em prol deste povo. Por onde quer que Jesus
passava, uma multidão sempre o estava seguindo (Mt 5.1; Mc 3.7; Lc 22.47), pois Ele as
ensinava com autoridade, ora exortando, ora dando esperança, ora dando conforto (Mt 7.29;
Lc 4.32). Sua autoridade não era dada por homens, ou por alguma classe religiosa; sua
autoridade lhe fora dada pelo próprio Pai (Mt 9.6; 28.18; Mc 2.10; 5.24; Jo 5.27), e isto marca
seu ministério profético entre o povo, pois Ele revelava e ensinava o povo com amor e poder,
em virtude da sede que o povo tinha de justiça e amor. Jesus dá respostas corretas para eles
dizendo-lhes: “vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, pois Eu vos aliviarei” (Mt
11.28).

O profeta possui esta virtude de ora exortar o povo para o arrependimento, ora dar esperança
ao povo. Ele os sustenta e os vivifica por meio de Sua Palavra. A Palavra do Senhor restaura a
alma (Sl 19.7), a Palavra do Senhor é luz para o caminho dos fiéis, dando-lhes orientações
corretas em suas atitudes (Sl 119:105), a Palavra do Senhor trás vida (Jo 5.39; Fp 2.16). Jesus é
o Logos (Jo 1.1). Ele é a Palavra viva de Deus, porque é o próprio Deus falando aos corações
cansados e aos pecadores, trazendo-lhes mensagem de paz e não de guerra.

Para João Calvino, Jesus Cristo é profeta porque Ele cumpriu todas as profecias referentes à
Sua Pessoa. Esta era a expectativa profética, anunciada desde os mais remotos tempos em
Israel. Jesus ensinou todas as coisas aos judeus (Jo 4.25) e esta é a razão de Jesus ser o profeta,
não para anunciar suas próprias palavras, mas para anunciar a Palavra de Deus aos homens, a
fim de que creiam ser Ele o Messias prometido; Assim a ênfase de Sua Palavra era Sua auto-
revelação, não explicita, mas implicitamente, por meio de suas ações e Palavras. Para Calvino,
a anunciação da Palavra de Jesus por meio dEle ia além das palavras utilizadas para anunciar
um fato ocorrido ou de um conto ilustrativo para anunciar uma verdade; a Sua palavra
declarava Sua virtude e natureza divina, e, por isso, as multidões se maravilhavam.

O profeta só pode dar ao povo aquilo que ele recebe de Deus. O papel principal do profeta do
Antigo Testamento era receber a Palavra de Deus e revelar a vontade de Deus ao povo,
interpretar a lei em seus aspectos morais e espirituais, protestar contra o formalismo e o
pecado, chamando o povo de volta ao caminho do dever, e dirigir-lhe a atenção para as
promessas gloriosas de Deus para o futuro.

Na vida ministerial de Jesus, percebe-se claramente o exercício pleno desses ofícios em Sua
Pessoa. Nas muitas discussões que houve entre Jesus e a classe dos clérigos, a mensagem
contra eles era sempre dura, principalmente contra o formalismo e a hipocrisia. No ofício
profético, Jesus não é apenas aquele que proclama com palavras a vontade de Deus, mas está
interagindo em comum acordo com o Pai e o Espírito Santo, pois obedeceu a Deus
voluntariamente. A mensagem profética como visto anteriormente consta da exortação ao
arrependimento e o retorno do povo para o caminho de Deus, e Jesus anuncia aos pecadores o
arrependimento porque está próximo o Reino do Céu (Mt 3.2). Sua intenção era proporcionar
ao arrependido uma nova vida e uma nova oportunidade para ser feliz neste mundo temporal.
Esta era a mensagem que Jesus anunciava, sempre com esta conotação vivificante aos seus
ouvintes, Não era carregada de obrigações e ordenanças como as dos fariseus; antes
valorizava o ser humano como criatura digna de receber o tratamento de Deus. Como
dissemos anteriormente, seu propósito é restaurar a comunhão de Deus para com os
pecadores e elevá-los ao padrão de Deus.

A Palavra de Jesus tocava as pessoas em suas necessidades com autoridade e Poder; bem sabia
o apóstolo Paulo a respeito disso, quando disse: “não vim entre vós com sabedoria humana a
fim de vos convencer, mas vim pelo poder de Deus (1Ts 1.5)”. Assim também a ação da Palavra
de Jesus é cheia de Poder e autoridade muito diferente dos antigos profetas.

O ministério profético de Cristo continua ainda pela operação do Espírito Santo através dos
ensinos dos apóstolos (Jo 14.26; 16.12-14). Jesus estando à direita do Pai o enviou para que o
Espírito Santo testificasse e ensinasse tudo a respeito de Jesus e Sua mensagem (cf 16.1- 15). A
respeito da ação do Espírito Santo, declara Berkhof: “E hoje opera pela iluminação espiritual
dos crentes na leitura bíblica e meditação da mesma”.
2. Sacerdote

Deus estabelece os sacerdotes na história do povo de Israel com a escolha de Arão e seus
filhos (cf Ex 28.1), e como tais, eles deveriam servir como mediadores entre Deus e os homens,
como sacerdotes e representantes de um Deus Santo, eles participavam da santidade do
tabernáculo e tinham que seguir os padrões rigorosos da pureza ritualista impostas por Deus
(cf Lv 21.1-22.16). Além dos seus deveres cerimoniais – tais como: oferecer sacrifícios e
cuidarem do lugar de adoração – eles atuavam ainda como juízes (cf Dt 17.8-13), dispensavam
bênçãos (Nm 6.22-27), apresentavam oráculos (Nm 27.21) e ensinavam a lei divina ao povo (Dt
33.10). Os sacerdotes a priori deviam ser os responsáveis pela verdadeira religiosidade do
povo, a fim de que o culto prestado a Deus fosse legítimo e sem mácula.

O ofício sacerdotal de maior relevância para o povo hebreu era a expiação do pecado nacional
diante de Deus, uma vez por ano (cf Lv 16.29-34). Pois era consagrada a Deus a festa anual das
expiações, pois o povo sabia que muitas das “maldições” que estavam sobre ele eram
decorrentes dos pecados das pessoas que não queriam servir a Deus com sinceridade. Deus
possibilitou a substituição dos pecadores pelo bode emissário (cf Lv 16 1-10), para que ele
levasse sobre si todo o pecado nacional e, vagando pelas terras de Israel levasse os pecados
para longe da vista do povo, simbolizando, é claro, que Deus estava lançando os pecados deles
sobre o animal inocente e levando-os para longe deles; à semelhança de Jesus, como
profetizou Isaías no capítulo 53:5, 6, 11, Ele levou sobre si nossos pecados. Como sacerdote
perfeito, Jesus apresentou a oferta perfeita da qual Deus se agradou (cf Hb 7:20-28). Seu
sacerdócio não tem fim, é eterno, por isso superior aos demais sacerdotes de Israel. Com a
apresentação da oferta perfeita a Deus, Ele aplacou definitivamente o pecado humano (Mt
20.28). A morte de Jesus na cruz é o ponto máximo da revelação divina, pois é por meio deste
ato que os pecadores podem ser salvos e perdoados. Na cruz, Jesus levou sobre si o pecado de
todo o mundo, suficiente para aplacar a todos, porém este ato é válido somente para os
eleitos de Deus para a salvação.

No sistema religioso judaico, as oferendas já estavam contaminadas pela ganância sacerdotal


sendo veementemente repreendidos por Jesus. Quando entra no templo, atirando todos os
cambistas para fora do templo do Senhor. Jesus ali demonstrou toda a ira divina contra esta
corrupção e pecado cometido pelos sacerdotes judaicos (cf Mt 21.12).

O povo não tinha mais como ser purificado diante de Deus, pois os sacerdotes eram corruptos
e as ofertas não eram mais tão perfeitas como antigamente. Assim, Deus se manifestou no
tempo oportuno para trazer paz e perdão ao seu povo, em vista de tão grande decadência
religiosa em Israel. Jesus veio exercer Seu ofício sacerdotal como o Sacerdote perfeito, sem
pecado e capaz de trazer ao povo o perdão tão esperado, como diz o salmista no salmo 32: 3-
4: “eis que meus ossos estão envelhecendo pelos constantes gemidos dos meus pecados...” O
povo gemia por causa de seus pecados, o povo se maravilhava com Jesus porque Ele trazia paz
e perdão aos pecadores: eis que o Filho do homem tem poder para perdoar os pecados das
pessoas (cf Lc 5.22-24). Como sacerdote, Ele tinha autoridade para expiar os pecados das
pessoas pela Sua palavra.

Como sacerdote, Ele viveu uma vida dedicada totalmente a Deus, era consagrado ao serviço de
Deus, era aquele que, além de revelar as maravilhas de Deus às pessoas, vivia
ininterruptamente cumprindo as ordenanças de Deus de modo voluntário e prazeroso: “eis
que a minha comida e bebida é fazer a vontade de meu Pai, (Jo 4.34)”. Como sacerdote
perfeito apresentou a oferta perfeita a fim de levar sobre si os pecados de todos (cf Is 53.5- 6,
10- 11), Ele é o cordeiro que tira o pecado do mundo (cf Jo 1.29).
O sacrifício de Jesus Cristo na cruz era inevitável, precisava acontecer para que o pecado fosse
perdoado. Era necessário propiciar uma oferta que agradaria a Deus para sempre, em vista da
corrupção sacerdotal. Nas palavras de Emil Brunner o ponto essencial do sacrifício de Cristo é
que “era preciso” acontecer, aquela necessidade que relaciona aquela transformação da
situação humana de mal para bem, da tragédia para a vitória, com a morte de Jesus na cruz,
como ato revelador, expiador e redentor de Deus. O mistério do sacrifício e expiação, da
punição vicária, de pagamento da dívida, do resgate da escravidão aos poderes das trevas é
revelar o ato salvador de Deus na Pessoa de Jesus Cristo morto na cruz.

A cruz de Cristo revela-nos que, pertencendo ao pecado, a situação do homem em relação a


Deus é perigosa, sinistra e desastrosa. O homem não pode alterar essa situação, então Deus,
somente Deus, pode fazer isso; e Ele o fez em Jesus Cristo, por meio de sua morte na cruz.
Nele, agora, obtivemos a paz com Deus, por meio de Seu sangue derramado na cruz (Cl 1.19).

Com o início do ministério de Jesus, uma nova mensagem foi inserida no contexto judaico,
uma mensagem proclamada e esperada, uma mensagem de esperança, de restauração para a
nação de Israel, na qual seria revivido o glorioso dia do rei Davi. Porém o Reino anunciado de
Jesus não é carnal, mas, sim, espiritual, conforme diz João Calvino, um reino que será
completado, como vislumbrado por João no livro de Apocalipse, que será concretizado de fato
como governo divino sobre seus eleitos e sobre o “mundo”. Jesus é o rei, hoje, de Sua Igreja,
porque Ele é o cabeça de seu corpo (cf Cl 1.15). Agora passaremos a discorrer sobre Jesus,
exercendo o ofício de Rei.

3. Rei

A mensagem profética no Antigo Testamento é a anunciação do governo de Deus sobre o povo


de Israel. Desde que Israel rejeitou o governo de Deus por meio de Seus sacerdotes, o povo
estava se enterrando cada dia mais em meio aos problemas (I Sm 8:7). Mesmo com o governo
de Davi, o povo passou por muitas dificuldades, ainda que Davi era um homem segundo o
coração de Deus (cf At 13.22). Emil Brunner nos dá uma rica contribuição, dizendo que,
quando Jesus começou a pregar, a Sua mensagem logo foi ligada com estas idéias
fundamentais da mensagem dos profetas, que foram intensificadas e se fizeram mais urgente
através da pregação de João Batista.

O reino de Deus que está vindo, a nova era, contraste com a era presente. Esta é a razão por
que, em muitas das parábolas contadas por Jesus, o tema de um Rei (Mt 18.23; 22.2) é
enfatizado. Este é o alvo de toda a história: que por fim a vontade de Deus será feita; que por
fim o Rei terá um povo obediente. Se atentarmos para as palavras dos sábios vindos do
oriente, na época do nascimento de Jesus, observamos que eles o tratam como sendo o Rei
dos Judeus (cf Mt 2.2). Isto nos alerta para este ofício de Jesus como Rei, mesmo sendo de
uma família humilde como a de José e Maria.

Se Jesus tivesse proclamado apenas o Reino de Deus e a obediência à vontade de Deus como
condição de participação no Reino, então Ele teria sido mais um dos profetas. Porém Jesus não
proclamou meramente esta vinda do Reino de Deus, ao mesmo tempo Ele inaugurou a nova
era e representou-a em Sua própria Pessoa. Ele próprio, em Sua pessoa, é a aurora deste Reino
de Deus.

Na pessoa de Jesus, a soberana autoridade de Deus está presente de um modo totalmente


diferente dos modelos até então conhecidos de um governo teocêntrico. Em Sua pessoa como
amostra do que será o governo eterno de Deus sobre o Seu povo, é inevitável a confrontação
do modelo governamental exercido pelos homens até então. No governo teocêntrico está
explicito que a direção é exclusivamente prerrogativa da vontade santa e soberana de Deus. O
reino anunciado por Jesus é um reino onde existe verdadeiramente a presença libertadora,
restauradora e perdoadora do amor de Deus, amor este que facilita a comunhão para todos
aqueles que O encontram. Neste reino, não existe a opressão de um rei dominador ou
opressor, que tira a vida e a alegria de seus súditos. Pelo contrário neste reino divino é
manifesto o Seu amor santo, que vence o mal. É o governo de alguém que derrama Sua vida
em serviço amorável, que quebra a resistência por uma vitória interior.

Fomos transportados do domínio das trevas para o Reino do Seu Filho amado (Cl 1.13), reino
este onde o pecador encontra perdão, onde o cansado encontra alento, o rejeitado encontra
valor. Neste reino, as pessoas são chamadas para uma nova vida, uma vida restaurada ao
projeto inicial que Deus tinha para o homem: ser imagem e semelhança de Deus (cf Gn 1.26).
Este é o reino de Deus, libertador, restaurador, e Jesus é o Rei, que se deu em favor de Seu
povo, deu sua vida em resgate de Seu povo. Jesus conquistou este direito na cruz, esvaziando
todo o Seu Ser em nosso favor.

A autoridade de Jesus Cristo é, portanto, uma realidade somente onde os homens realmente
dobram o joelho diante dele, isto é, na Igreja. A Igreja consiste daqueles que reconhecem Jesus
Cristo como seu Senhor e na obediência da fé, e no amor, servem como seu Senhor o fez. A
autoridade de Cristo significa que por meio de Sua Palavra e Seu Espírito ele realmente
governa sobre os “homens” (os salvos). Jesus não é apenas um Rei que simplesmente
reivindica Seus direitos, mas aquele a quem a Igreja realmente se submete. Ele é a cabeça do
Corpo da Igreja (Cl 1.18). Ele é realmente a autoridade em uma comunidade de pessoas que
realmente obedecem A Sua vontade. Jesus como rei de Seu povo nos protege contra todo tipo
de ataque do inimigo. À semelhança dos reinos humanos que se julgam prósperos pela
abundância e proteção contra seus inimigos, muito mais é Jesus como nosso rei, pois Ele nos
protege contra o ataque dos nossos inimigos espirituais, de onde deduzimos que Ele reina
mais por causa de nós que por Si mesmo, tanto por dentro como por fora, para enriquecer-nos
com os dons do Espírito, que naturalmente nos orientam para edificarmos a comunhão de Sua
Igreja (Ef 1.22,23).

Jesus é rei eternamente, como ensina explicitamente a passagem de Sl 45.6, em conformidade


com Hb 1.8; Is 9.7; Dn 2.44: Cristo nunca deixará de ser a Cabeça da Sua Igreja, jamais a
deixará como um corpo sem cabeça, assim como Ele é sacerdote para sempre segundo a
ordem de Melquisedeque.

Não teria muito sentido Deus se tornar homem, na Pessoa de Jesus, e, depois, na eternidade,
onde será estabelecido realmente o Seu Reino, deixar de exercer a sua realeza, visivelmente,
deixar de conviver com seus súditos. Ele estará entre nós porque Ele é o Deus conosco. Seu
governo será justo, governará com cetro de ferro, sem opressão, mas com amor; Seu povo o
louvará para sempre, à semelhança dos vinte e quatro anciãos no Apocalipse de João.

Jesus geralmente ensinou como os rabinos judaicos por meio de ditos breves, ao invés de
extensos discursos, e muitos de seus mais importantes ditos são constituídos de parábolas,
provérbios e pronunciamentos isolados, respondendo a perguntas e reagindo a situações. Sua
autoridade foi reconhecida por todos seus ouvintes (Mt 7.28,29). Como se utilizava de
parábolas, sua compreensão era difícil para muitos e até mesmo para seus discípulos, para
quem Jesus as explicava, em particular. Dos ensinos de Jesus brotam três ênfases principais:
(a) a primeira ênfase recai sobre seu Pai divino, pois Jesus queria que seus discípulos se
relacionassem com o Pai com intimidade familiar, não com formalismos e ritualismos; (b) a
segunda ênfase era dada a possibilidade de uma nova vida aos seus ouvintes por meio do
arrependimento; (c) e a terceira ênfase dizia respeito a Si mesmo como Filho do Homem e o
Messias de Israel; através de Seus sinais e Suas palavras àqueles que atentassem descobririam
que Jesus é o Restaurador tanto de Israel como de todos aqueles que o recebiam como o
Messias de Deus. Portanto, atentar para os ensinos de Jesus constitui a melhor maneira de
perceber o ato reconciliador que Ele realizou por meio de suas atitudes e palavras, em uma
sociedade corrompida e vazia em sua vida espiritual, apesar de sua intensa religiosidade para
com Deus, por meio de seus constantes sacrifícios. Não podemos dividir estes ofícios.
Recebemos não apenas as consolações que advém do Sacerdócio de Cristo, mas as exigências
de arrependimento e fé que Ele nos faz como Profeta, e como Rei a exigência de toda nossa
vida, contra idéias antinomistas e de “crentes carnais”.

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