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Veremos hoje:

1. REVELAÇÃO E AUTORIDADE

1.1 UMA ABORDAGEM TEOLÓGICA


1.2 O CONHECIMENTO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

2. TEMA UNIFICADOR

2.1 A IDENTIFICAÇÃO DE UM CENTRO TEOLÓGICO

3.DEUS DE ALIANÇA

3.1 CONCEITO DE ALIANÇA


3.2 ALIANÇA ABRAÂMICA
3.3 ALIANÇA MOSAICA

4.DEUS DE RELACIONAMENTO

4.1 ALIANÇA PALESTINIANA


4.2 ALIANÇA DAVÍDICA
4.3 NOVA ALIANÇA
4.4 O RELACIONAMENTO DAS ALIANÇAS
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1. REVELAÇÃO E AUTORIDADE

“Eu não venho ao Antigo Testamento para aprender a respeito de um Deus de


alguém, mas sobre o Deus que nós confessamos, que se fez conhecer a Israel, a
Abraão, a Isaque e a Jacó.” Brevard Childs

1.1. UMA ABORDAGEM TEOLÓGICA

Teologia do Antigo Testamento é a disciplina da Teologia Bíblica que estuda a


pessoa, atributos, revelação de Deus, e sua aliança com o povo eleito
considerando a progressividade da revelação, os escritos e estilos literários do
cânon do Antigo Testamento. Se entendermos “teologia” como sendo “o estudo
de Deus e de sua revelação ao homem”, consequentemente a Teologia do
Antigo Testamento será “o estudo de Deus e de sua revelação ao homem no
Antigo Testamento”.

Revelação e inspiração são os dois termos teológicos fundamentais que


expressam a singularidade do Antigo Testamento, bem como de toda a Bíblia.
Conforme afirma o escritor Ralph Smith: “Uma afirmação da revelação é
absolutamente necessária para a fé cristã; de outro modo, teríamos uma série
de ideias que elaboramos por nós mesmos" (SMITH, 2001)

Revelação se refere à manifestação (desvendar) da verdade por Deus nas


Escrituras; inspiração se relaciona à recepção inicial, pelo homem, dessa
verdade mostrada pelo Espírito Santo. Os dois termos podem ser entendidos de
modo adequado somente à medida que entendemos o que a própria Bíblia diz
sobre eles.

• A revelação

[...] pois não cessará o ensino da lei pelo sacerdote nem o conselho do sábio
nem a mensagem do profeta. (Jr 18.18)

O profeta Jeremias lista três canais humanos da revelação divina no antigo


Israel:

• Os sacerdotes, que davam ao povo instrução (Torah) sobre assuntos


religiosos e éticos.
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• Os sábios, que ofereciam conselhos a cerca dos problemas da vida aos


reis e ao povo comum.
• Os profetas, que proferiam mensagens que expressavam os propósitos de
Deus para o povo.

Esses três grupos tinham basicamente um ministério oral: o Antigo Testamento,


nas suas três divisões de Lei, Profetas e Escritos, é em sua essência o registro
escrito das tradições faladas desses grupos. De modo semelhante, o judaísmo
antigo e o Novo Testamento também confirmam esse registro como Escritura.

Nos tempos do Antigo Testamento, esses três grupos eram aceitos como
mediadores da vontade de Deus para a comunidade dos crentes. Eram agentes
da comunicação da verdade divina. Isso é mais óbvio no caso dos profetas.
Todo o conjunto do vocabulário de comunicação é usado para designar o
testemunho deles, resumido na descrição de que Deus falou “muitas vezes e de
várias maneiras[...] por meio dos profetas” (Hb 1.1). em Jeremias 1.9 há uma
garantia divina ao profeta: O Senhor estendeu a mão, tocou a minha boca e
disse-me: "Agora ponho em sua boca as minhas palavras.” Isaías 40 – 48 é
especialmente rico em referencias à revelação oral de Deus aos exilados: por
meio dos profetas, Deus relata, declara às pessoas de modo que elas possam
saber; proclama de modo que possam ouvir; anuncia e fala.

No Antigo Testamento, há declarações para reflexão, que convidam o leitor a


parar e ponderar sobre esse conceito de revelação divina: “Certamente o
SENHOR Soberano não faz coisa alguma sem revelar o seu plano aos seus
servos, os profetas” (Amós 3.7). Por meio da revelação profética, Deus revelou a
Israel os eventos futuros e seu significado.

O ministério dos profetas não era o único meio de revelação divina. Existe um
testemunho nesses termos a favor da Torá ou Lei, em Deuteronômio 29.29: “As
coisas encobertas pertencem ao Senhor, ao nosso Deus, mas as reveladas
pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as
palavras desta lei”. De modo semelhante, Salmos 147.19 celebra o privilégio
singular de Israel como receptor da Torá: “Ele revela a sua palavra a Jacó, os
seus decretos e ordenanças a Israel.” A tradição da sabedoria também tinha a
função de revelação, de acordo com provérbios 2.6: “Pois o Senhor é quem dá
sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o discernimento.” O
movimento da sabedoria, por toda sua ênfase em discussão e reflexão,
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reconhecem a origem de suas percepções em Deus. Suas descobertas


duramente obtidas eram em última análise a revelação do Deus de toda
sabedoria.

Outra reivindicação canônica semelhante fica evidente em Deuteronômio 34.10:


“Em Israel nunca mais se levantou profeta como Moisés, a quem o Senhor
conheceu face a face.” A Torá é celebrada em seu final como fruto de uma
relação íntima especial entre Deus e seu redator humano. Como consequência,
textos posteriores do Antigo Testamento puderam chamar a Torá não só Lei de
Moisés, mas a “Lei do Senhor” e a “Lei de Deus”.

“Como é feliz aquele que não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta
dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores! Ao contrário, sua
satisfação está na lei do Senhor, e nessa lei medita dia e noite” (Salmos 1.1,2).

O conceito de revelação divina foi expandindo da forma oral das mensagens de


um profeta para a forma escrita, e então aplicado a ela como um todo literário.

• A inspiração

“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão,
para a correção e para a instrução na justiça” (2Timóteo 3.16).

A voz dos mediadores humanos escolhidos foi usada para transmitir as


verdades que Deus pretendia revelar a Israel. A interação positiva entre o
revelador divino e os porta-vozes humanos exigiu inspiração. A inspiração é
basicamente uma qualidade que se relaciona a pessoas, mas pode também se
tornar uma característica do livro, como produto de pessoas inspiradas. O
apóstolo Paulo refletiu sobre essa qualidade do Antigo Testamento e seu papel
nos propósitos de Deus de edificar os cristãos em sua fé e postura ética (2Tm
3.16).

Em 2Timóteo 3.16 diz que o Antigo Testamento, sobre o qual Timóteo tinha sido
ensinado, é “inspirado por Deus”. O significado disso pode ser traduzido de uma
declaração paralela acerca do estágio oral da seção profética do Antigo
Testamento: “Pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas
homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” (2Pedro 1.21).
A palavra de 2Timóteo 3.16 traduzida por “Inspirada por Deus” pode ser
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literalmente traduzida por “insuflada por Deus”: alude a obra do Espírito Santo
como agente da inspiração.

O conceito é emprestado do próprio Antigo Testamento, em que a profecia pré-


exílica é descrita da seguinte maneira: “[...] as palavras que o Senhor dos
Exércitos tinha falado pelo seu Espírito por meio dos antigos profetas.” (Zc
7.12); “[...] Mediante o teu Espírito os advertiste por meio de teus profetas” (Ne
9.30). Essa inspiração é a operação do Espírito pela qual os profetas eram
capacitados para proferir a Palavra de Deus. A Palavra era o conteúdo de suas
mensagens, enquanto o Espírito de Deus er ao poder transcendente que os
capacitava a aprendê-la e proclamá-la.

Foi dentro da comunidade de Israel e em repostas a suas necessidades


sucessivas que os livros do Antigo Testamento atingiram o estado atual.
Nenhum autor profético isolado ou redator final pode receber o crédito da
inspiração.

1.2. O CONHECIMENTO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

O Israel antigo não defendia a existência de Deus nem tentava prová-la; o povo
simplesmente aceitava que Deus existe e se revela aos homens. Deus é
pressuposto no Antigo Testamento. Jamais ocorreu a qualquer profeta ou
escritor do Antigo Testamento provar a existência de Deus. Deus é à base de
todas as coisas, e tudo o que existe só existe por sua vontade. Além disso, a
existência de Deus jamais é questionada.

O conhecimento de Deus, no sentido de realidade divina, é encontrado em


todas as partes do Antigo Testamento. A natureza foi criada para proclamar seu
poder (SI 148.9-13). Mesmo o pecado proclama a existência de Deus por
contraste. O fato da existência Deus é tão normal que não temos no Antigo
Testamento indícios de especulação sobre a origem ou evolução de Deus. A
grande dádiva de Israel para a humanidade é simplesmente esta: Deus é. Sua
existência para o escritor israelita é completamente manifesta, sempre
pressuposta e jamais questionada. A doutrina bíblica repousa na crença de que
"o Deus oculto à nossa vista se revela ao homem” (SMITH, 2001).

O Antigo Testamento não só pressupõe que Deus pode ser conhecido; também
afirma claramente que ele se faz conhecido:
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“Ele manifestou os seus caminhos a Moisés, os seus feitos aos israelitas” (Sl
103.7).

E Ele disse: "Ouçam as minhas palavras: Quando entre vocês há um profeta do


Senhor, a ele me revelo em visões, em sonhos falo com ele. Não é assim, porém,
com meu servo Moisés, que é fiel em toda a minha casa. Com ele falo face a
face, claramente, e não por enigmas; e ele vê a forma do Senhor. Por que não
temeram criticar meu servo Moisés? " (Nm 12. 6-8).

E diga a eles: ‘Assim diz o Soberano Senhor: No dia em que escolhi Israel, jurei
com mão erguida aos descendentes da família de Jacó e me revelei a eles no
Egito. Com mão erguida eu lhes disse: "Eu sou o Senhor, o seu Deus" (Ez 20.5).

O conhecimento no Antigo Testamento é bem diferente de nosso entendimento


do termo. Para nós, conhecimento implica compreender coisas pela razão,
analisar e buscar relações de causa e efeito. No Antigo Testamento,
conhecimento significa "comunhão", "familiaridade íntima com alguém ou algo".

“Conhecer a Deus” é ser obediente a ele, ter um compromisso com ele. "Não
conhecer a Deus" significava "se rebelar contra Ele", "negar o compromisso com
Ele". Em Oséias, o significado do termo "conhecimento de Deus" é ampliado
para incluir a moralidade do israelita como indivíduo. O conhecimento de Deus
pode ser identificado como a prática da moralidade hebraica tradicional.
Conforme Oséias 4. 1-2:

“Israelitas, ouçam a palavra do Senhor, porque o Senhor tem uma acusação


contra vocês que vivem nesta terra: A fidelidade e o amor desapareceram desta
terra, como também o conhecimento de Deus. Só se veem maldição, mentira e
assassinatos, roubo e mais roubo, adultério mais adultério; ultrapassam todos os
limites! E o derramamento de sangue é constante.”

A expressão hebraica "o conhecimento de Deus" traz assim pelo menos três
conotações:

• Sentido intelectual.
• Sentido emocional.
• Sentido volitivo.
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O verbo "conhecer" (yãda‘) se refere basicamente ao que chamamos atividade


intelectual, cognitiva; mas a psicologia hebraica não conhecia uma faculdade
específica que compreendesse o intelecto ou a razão.

O hebraico não possui uma palavra que signifique "cérebro". A palavra mais
comum usada em lugar de "mente" em hebraico é "coração", (lebb) (1Sm 24.
5,6; Is 46.8; Gn 6.6; Dt 29.4,3). O coração é considerado sede do intelecto, bem
como da vontade e das emoções. O hebraico antigo não supunha que as
pessoas pensavam com a mente, sentiam com as emoções e tomavam decisões
com a vontade. Todas essas atividades eram desempenhadas pela pessoa como
um todo.

"Conhecer a Deus" significava ter um entendimento intelectual de quem ele era,


ter um relacionamento pessoal e emocional com ele e ser obediente à sua
aliança e mandamentos. Um verdadeiro conhecimento de Deus sempre
resultava numa conduta ética. Jeremias disse ao perverso rei Jeoiaquim a
respeito de seu pai justo:

“Você acha que acumular cedro faz de você um rei? O seu pai não teve comida
e bebida? Ele fez o que era justo e certo, e tudo ia bem com ele. Ele defendeu a
causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que
significa conhecer-me?, declara o Senhor.”

"Não conhecer a Deus" no Antigo Testamento não significa necessariamente


ignorância acerca de Deus; às vezes significa falta de disposição para obedecê-
lo.
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2. TEMA UNIFICADOR

2.1. A IDENTIFICAÇÃO DE UM CENTRO TEOLÓGICO

Uma questão de discussão no estudo da teologia do Antigo Testamento sempre


foi a existência de um tema central que una os livros do Antigo Testamento. A
exploração ultrapassa a busca de temas principais e chega à questão:

Haveria um plano literário com o qual cada autor contribuiu propositadamente?

A incapacidade de encontrar este centro não implica a falta de coerência ou


mesmo falta de unidade, mas se esse centro existe, certamente seria útil
estabelecer a Bíblia como obra completa, não como coleção de livros.
Entretanto, é essencial que o tema seja encontrado pelo exame do próprio texto
e não por uma imposição a ele.

Apesar de muitos teólogos da atualidade afirmarem não haver um centro


perceptível, outros defendem temas como “aliança”, “soberania” ou “promessa”
como possíveis opções. Alguns outros exemplos são:

• Aliança – W. Eichrodt
• Promessa – Walter Kaiser
• A Soberania de Deus - Eugene H. Merrill
• Santidade de Deus – E. Sellin
• Eleição de Israel como povo de Deus – H. Wildberger
• Governo de Deus – Horst Seebass
• Reino de Deus – Günther Klein
• Deus como Guerreiro – T. Longman

Embora todos devam ser considerados temas centrais, ainda é difícil provar que
qualquer um deles tenha sido abordado conscientemente por todos os autores
do Antigo Testamento. Livros como Ester, Jó, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos,
Naum e Obadias apresentam desafios enormes a quem procura defender um
programa central.

• O “Centro” na perspectiva de Walter C. Kaiser Jr


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O autor e especialista em Antigo Testamento Walter C. Kaiser Jr, sugere que


existe, sim, um centro unificador da teologia e da mensagem da Bíblia indicado
e afirmado pelas próprias Escrituras. Esse centro é a promessa de Deus. De
abrangência universal, esta promessa de vida através do Messias envolve toda a
história de salvação do Antigo e Novo Testamentos, trazendo coesão e unidade
às diferentes partes da Bíblia. Acerca do centro teológico o autor afirma como
muita veemência,

Embora o Novo Testamento finalmente se referisse a esse ponto central


do ensino do Antigo Testamento como sendo a promessa, o Antigo
Testamento o conheceu sob uma constelação de palavras, tais como
promessa, juramento, bênção, descanso e semente (KAISER, 2011).

Kaiser acrescenta que atrelado ao conceito de centro encontra-se o conceito de


unidade intertestamentária. Os escritos reunidos na Bíblia não são desconexos e
soltos, como se fosse uma colcha de retalhos. Na verdade, há unidade explícita
entre os dois testamentos. O Novo Testamento aponta para o Antigo
Testamento, sob o verbete “promessas” ou de uma forma mais específica
“promessa”, demonstrando que não há várias teologias bíblicas, mas uma só,
com um único centro unificador dos dois testamentos, onde cada escritor
assenta e acresce mais conteúdo revelacional com base no que já fora
registrado e escrito anteriormente pelos escritores canônicos que o
precederam. De maneira que a cada momento histórico em que a promessa vai
se ampliando, vai se apontando para um clímax de cumprimento, o qual ocorre
no Novo Testamento (KAISER, 2011).

Em explanação sobre o tema unificador do Antigo Testamento Kaiser expõe


que a promessa divina foi feita aos patriarcas, Abraão, Isaque e Jacó, em
Gênesis. Ela prosseguiu e foi renovada na narrativa do Êxodo, enfatizando que a
nova nação de Israel era filha de Javé e seu povo, e que ela se tornaria um reino
de sacerdotes e nação santa em benefício de toda a humanidade. Todavia,
dessa “semente” sairia o Messias de Deus para o mundo todo. A mesma
promessa é reafirmada e renovada com Davi ao ser-lhe dito que a ele e à sua
“semente” seriam dados um “trono”, uma “dinastia” e um “reino” (2Sm 7.16) que
serviriam de “lei/contrato para toda a humanidade” (2Sm 7.19). Dos tempos de
Davi em diante uma corrente de profetas-escritores compôs os Salmos, os livros
históricos bem com os livros dos profetas. Eles também insistiram em recorrer
ao plano da promessa que Deus dera aos patriarcas e a Davi e fizeram dele
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igualmente coração e alma da mensagem que deixaram para os seus dias e


também para os nossos (KAISER, 2011).

Kaiser é criticado por alguns autores, o qual propõem que Kaiser praticamente
não tem nada a dizer sobre a “teologia da criação”, além disto, a adoção de um
tema como “a promessa” levou outros temas a se tornarem marginais em sua
teologia, tais como o tema do culto. Finalizam dizendo: “a proposta por Kaiser
por meio do tema ou centro da ‘bênção-promessa’ não parece reunir a riqueza
dos temas e materiais do Antigo Testamento” (HASEL, 2015).

• O “Centro” na perspectiva de Walther Eichrodt

Em sua obra Theologie des Alten Testaments, de 1933, com reedição em 2004
para o português, sob o título de Teologia do Antigo Testamento, Walther
Eichrodt indica um “centro” estrutural e tendência básica teológica do Antigo
Testamento sustentando a relação do povo com Yahweh, e vice-versa, pelo
tema da “Aliança” ou “Pacto de Yahweh para com Israel” como unidade bíblica
e compreensão de sua estrutura.

Como afirma Eichrodt, “a aliança entre Yahweh e Israel é um elemento original


em todas as fontes, mesmo que elas se apresentem, em parte, de maneira muito
fragmentada”. Esse tema estava imensamente atrelado à fé do povo hebreu,
como fundamento incomparável ou contrastante às outras nações
circunvizinhas ao Oriente Próximo, a saber:

Apesar de todas as objeções que nos fizeram, seguimos mantendo como


conceito central aquele da aliança. A partir deste conceito, explicamos a
unidade estrutural e a tendência básica permanente da mensagem do
Antigo Testamento. Pois nessa aliança se resume a convicção básica de
Israel estar em uma relação especial com Deus (EICHRODT, 2004).

Essa escolha é logo identificada pelo índice de sua obra, arrolando quase todos
os títulos e subtítulos à palavra “Aliança”, apontando ainda, para uma
continuidade que termina no Novo Testamento. Walther afirma:

O Novo Testamento, justamente no que é seu conteúdo central, nos


remete ao testemunho de Deus na antiga aliança”. Estrutura-se, assim,
um diálogo bíblico evolutivo e relacional da religião hebraica [judaísmo] e
cristã apresentando a realidade divina em cada época entrelaçada e
embasada pela “Aliança” (EICHRODT, 2004)
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• O “Centro” na perspectiva de Eugene H. Merrill

Eugene H. Merril nasceu em 1934, nos Estados Unidos, é professor no Dallas


Theological Seminary de Antigo Testamento e considerado atualmente uma das
maiores autoridades em estudos do Antigo Testamento. Em sua obra
Everlasting dominion: A theology the Old Testament de 2006, traduzida para o
português como Teologia do Antigo Testamento, com publicação em 2009,
Eugene H. Merril sustenta o tema “soberania” de Javé como o “centro”, em cuja
plataforma de sua teologia é norteada pelas ponderações da Revelação e agir
de Yahweh tanto na esfera espiritual quanto terrena:

A soberania de Deus é um importante tema da revelação do Antigo


Testamento. Na verdade, não é incorreto considerá-la o principal tema da
revelação, o princípio prioritário do pensamento bíblico em torno do qual
tudo o mais gira. Qualquer percepção de Deus que lhe atribua algum
outro papel que não o de soberano sobre toda a criação resulta em
dualismo ontológico, no qual ele é de natureza igual ao universo material
e/ou espiritual ou, no mínimo, apresenta-o limitado em alguns aspectos
de sua natureza e obra (MERRIL, 2009).

Essa escolha de Merrill se deu na percepção que o autor teve na forma como
Yahweh se revela a partir da narrativa da criação no livro de Gênesis e que se
processa em todo o Cânon do Antigo Testamento, como governante de tudo
que Ele criou e fez. Essa ponderação temática de Merrill se relaciona numa
plataforma de operação de Javé na história com seus propósitos inevitáveis
com a participação humana em gerenciar a Sua obra e representá-Lo a indicar
uma redenção e reconciliação.

• Uma Visão Diferente

Até que mais desafios sejam transpostos na descoberta de centro derivado por
indução do estudo cuidadoso do texto, é preferível contentar-se com a
integração coerente encontrada pela identificação dos principais temas
recorrentes mesmo que alguns livros não se refiram a eles.

Com isso em mente, em nosso curso abordaremos a análise proposta pelo autor
e professor Carlos Osvaldo Pinto sobre o Antigo Testamento.
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O autor propõe um princípio organizador, um tema abrangente o bastante para


englobar toda a revelação veterotestamentária. Esse princípio enfatiza uma
preocupação com o conceito mediatório de Deus na história sob dois focos:

• A restauração da soberania mediada: A soberania de Deus foi delegada ao


homem para que ele governasse sobre a Terra.
• Bem-estar da criatura sob autoridade e para glória de Deus

Sob este “guarda-chuva” teológico se enquadram linhas de ação que serão


abordadas em nossas aulas.

1. A permissão do mal
2. O juízo conta o mal
3. Libertação do juízo para os eleitos (as vezes os eleitos são objetos desse
livramento e em outros momentos eles são instrumentos desse
livramento)
4. Benção dos eleitos
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3. DEUS DE ALIANÇA

O Senhor confia os seus segredos aos que o temem, e os leva a conhecer a sua
aliança. Salmos 25.14

3.1. CONCEITO DE ALIANÇA

No dicionário da Língua Portuguesa três palavras são usadas para definir o


significado do substantivo aliança: “ajuste” “convenção” ou “contrato”. Esses
três substantivos também são usados para definir a palavra pacto. Diferentes
versões da Bíblia em português usam os substantivos pacto, aliança, acordo e
concerto para traduzir o substantivo hebraico berith que aparece cerca de 290
vezes no Antigo Testamento. Para todos esses sinônimos a ideia básica é a de
união entre duas partes, um pacto ou acordo bilateral.

No entanto, até mesmo a etimologia do substantivo berith é grandemente


discutida. Basta verificar alguns dicionários de teologia ou livros que tratem
especificamente do assunto para verificar que há entre os estudiosos grande
discordância. As posições mais defendidas são:

• O substantivo berith é derivado do assírio birtu, que significa "laço",


"vínculo".
• O substantivo tem origem na raiz de barah, "comer," que aparece poucas
vezes no Antigo Testamento (2Sm 3.35; 12.17;13.5; 13.6; 13.10; Lm 4.10), e
está relacionado com a cerimônia que selava um acordo ou
relacionamento entre partes.
• O substantivo está ligado à preposição hebraica bein "entre."

De todas estas posições a mais aceita entre os estudiosos do Antigo


Testamento é que a palavra hebraica berith significa "laço / vínculo/ ligar, atar,
aliançar". Conforme encontrada em Salmos 25.10 “Todos os caminhos do Senhor
são amor e fidelidade para com os que cumprem os preceitos da Sua aliança
(berith).”

Da própria dificuldade em se estabelecer a origem e significado do termo berith


surgem as primeiras divisões entre daqueles que defendem o estudo das
alianças ou a teologia pactual. Por exemplo, exatamente o que se quer dizer
13

quando se fala em acordo? Isto implica em que as alianças bíblicas são


"bilaterais"?

Não se pode negar que a ideia de pacto traga consigo, no seu sentido mais
natural, a bilateralidade, ou seja, duas partes são envolvidas em um pacto.
Vários pactos acontecem entre duas pessoas, nações ou grupos na narrativa
bíblica (ver Js 9.15; 1 Sm 20.16; 2 Sm 3.12-21; 5.1-3; 1 Rs 5.12); em certos casos um
pacto é feito para resolver uma disputa entre partes (Gn 21.22-32;26.26-33;
31.43-54).

Centenas de vezes o substantivo aparece no contexto de uma aliança entre


Deus e os homens. Como, nesse contexto, entender a bilateralidade? Um pacto
implica sempre em igualdade entre as partes? Certamente que não. A
bilateralidade, no contexto do pacto entre Deus e homens, implica tão somente
em que duas partes estão envolvidas, mas não que exista a igualdade entre
essas partes.

Teólogos têm chamado esse tipo de aliança “unilateral”, ou seja, iniciada e


garantida por Deus nos seus termos. Portanto, estamos falando de uma aliança
que não envolve um acordo de duas partes, na qual não existe negociação de
direitos e obrigações. Nesse sentido a aliança divino-humana é unilateral. É um
compromisso feito pela iniciativa de Deus com relação à sua criação.

O ser humano é um receptor da aliança divina. Isso se torna evidente no texto


de Gênesis 17.2, que é traduzido para o português na versão Almeida Revisada e
Atualizada como — "Farei uma aliança entre mim e ti” — onde o verbo traduzido
como "fazer" tem por raiz no hebraico o verbo "dar" (nathan), que nos daria, se
traduzido literalmente, uma sentença sem sentido. No entanto, a força do
argumento está no fato de que a raiz do verbo traduzido por "fazer" em
português envolve algo que é dado: um pacto. O texto não reflete um acordo
de duas partes iguais, com os mesmos direitos.

Esse tipo de pacto não é algo sem referência na história. Ele é ilustrado pelos
pactos do antigo Oriente Próximo entre conquistadores e conquistados, reis e
vassalos. Nesses casos, os conquistados, quando entravam em pacto com os
conquistadores, não tinham o direito de propor qualquer coisa nos termos do
pacto.
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Este tipo de pacto pressupõe afigura de uma parte "soberana". Um dos lados
tem a vantagem do domínio e se propõe a cumprir um determinado papel; o
outro, tendo também um papel a cumprir, se submete às exigências pactuais.
No pacto divino-humano encontramos a relação criador-criatura, rei soberano-
servo.

Vários paralelos entre os pactos bíblicos e os pactos do antigo Oriente Próximo


foram cuidadosamente descritos pelo teólogo Meredith Kline e servem como
uma valiosa ajuda para entendermos os termos e significado do pacto entre
Deus e a humanidade. Um dos exemplos dados por Kline é a narrativa em
Gênesis 15 do pacto com Abrão. Nos primeiros versículos o texto narra que
Yahweh aparece a Abrão e faz com ele uma aliança. Depois de colocados os
termos da aliança, o texto narra nos versos 13-17 o desfecho:

Então o Senhor lhe disse: "Saiba que os seus descendentes serão


estrangeiros numa terra que não lhes pertencerá, onde também serão
escravizados e oprimidos por quatrocentos anos. Mas eu castigarei a
nação a quem servirão como escravos e, depois de tudo, sairão com
muitos bens. Você, porém, irá em paz a seus antepassados e será
sepultado em boa velhice. Na quarta geração, os seus descendentes
voltarão para cá, porque a maldade dos amorreus ainda não atingiu a
medida completa". Depois que o sol se pôs e veio a escuridão, eis que um
fogareiro esfumaçante, com uma tocha acesa, passou por entre os
pedaços dos animais (BÍBLIA, NVI)

Todas as promessas são feitas por Deus a Abrão, do Rei soberano para o
vassalo, do criador para a criatura. O ritual apresentado no versículo 17, em que
Deus passa por entre os pedaços dos animais, é uma característica da forma
como os pactos do Oriente Próximo, entre soberanos e vassalos, eram selados.

A diferença fundamental entre os pactos humanos e o pacto divino-humano


encontra-se na motivação do soberano Criador, que se propôs a criar e
sustentar a sua criação, estabelecendo assim um vínculo que, segundo a própria
Escritura, só pode ser um vínculo de amor.

3.2. ALIANÇA ABRAÂMICA

Abraão é o personagem mais importantes do mundo antigo. Três religiões


mundiais— o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo —o reconhecem como pai
na fé. Arqueólogos exploraram sua cidade de origem, seguiram os passos de
15

sua jornada, pesquisaram as ruínas de cidades mencionadas em Gênesis e


reconstruíram um retrato impressionante da vida desse homem que viveu 2 mil
anos antes de Cristo, confirmando a exatidão dos relatos do Antigo Testamento.

Mas o que torna Abraão tão importante não é o respeito e a reverência que lhe
devotam. A importância de Abraão em Gênesis é que por meio desse homem
Deus revela seu propósito e seu plano em relação ao universo.

A passagem de Gênesis 15.18 foi a primeira referência à aliança de Deus com


Abraão, mas ela está pressuposta no chamado de Gênesis 12, passagem em que
Abraão foi escolhido como o receptor da aliança. O caminho para a seleção de
Abraão foi preparado no registro da genealogia de Sem que culminou em
Abrão, um descendente de Héber (o heberita ou hebreu; Gn 11.10- 26; 10.21).
Sem nenhum indício de alguma base sobre a qual Abraão foi qualificado, ele foi
simplesmente guiado pelo Senhor a abandonar sua terra e ir para um país que o
Senhor lhe mostraria (Gn 12.1). Ela faria de Abraão um grande povo e fonte de
benção para todas as nações (Gn 12.2,3; 22.18; 27.29).

A única condição para a aliança era a disposição de Abraão de aceitar seu


chamado. Nada na promessa, em Gn 12 ou em outras passagens, exigia algum
pré-requisito comportamental do patriarca nem mesmo que preservasse o
compromisso a fim de que o acordo permanecesse. A aliança era, em todos os
aspectos, uma concessão real, uma dádiva concedida pelo grande Rei a um
indivíduo que escolheu pela liberalidade/generosidade de sua graça.

Quando a aliança foi tratada em Gn 15, seus termos foram revelados a Abraão
em um sonho. Ele ficou preocupado com sua falta de descendência, uma vez
que a promessa era que a semente dele abençoaria todas as nações. Por isso, o
Senhor lhe mostrou incontáveis estrelas e disse que os descendentes de Abraão
também seriam incontáveis. Além disso, ele possuiria a terra de Canaã como
herança permanente. A seguir, o Senhor ordenou que Abraão matasse animais
de sacrifício e dividisse a carcaça deles em duas filas. Depois disso, o Senhor,
simbolizado por uma tocha acesa, andou entre as pilhas de carcaça. A ousadia
dessa metáfora é quase incompreensível, mas ela transmite a firmeza do
compromisso de Deus que não mente

Como já foi explicado, no mundo antigo, a aliança era um contrato. As partes


envolvidas no acordo comprometiam-se a seguir os regulamentos da aliança.
Havia várias formas de consolidar a aliança, mas a que indicava maior
16

compromisso era a “aliança de sangue”. Animais eram mortos e divididos (daí o


termo “cortar”, uma aliança), e os que estavam fazendo o acordo passavam
entre os pedaços do animal cortado, comprometendo-se em cumprir todas as
cláusulas.

O mais significativo na cena de Gênesis 15 não é tanto a conformidade com os


costumes antigos, mas a natureza unilateral da promessa. Em uma aliança
normal, ambas as partes se comprometiam sob condições. Se um dos
envolvidos falhasse em cumprir as cláusulas estabelecidas, o outro estava
desobrigado de cumprir os regulamentos. Mas a Bíblia relata que Deus fez um
sono profundo cair sobre Abraão e somente o Senhor passou pelo meio dos
pedaços (Gn15.12)

Deus anunciou seu propósito, e nenhum ato humano poderia alterá-lo.


Confirmou-o por meio da promessa, e certamente seria alcançado por meio dos
descendentes de Abraão.

Não foram impostas condições a Abraão ou a seus descendentes. Deus, e


somente Ele, imprimiu o próprio selo no contrato e foi testemunha naquele dia.
Sobre isso, o autor aos Hebreus comenta:

Quando Deus fez a sua promessa a Abraão, por não haver ninguém
superior por quem jurar, jurou por si mesmo, dizendo: "Esteja certo de
que o abençoarei e farei seus descendentes numerosos" [...] Os homens
juram por alguém superior a si mesmos, e o juramento confirma o que foi
dito, pondo fim a toda discussão. Querendo mostrar de forma bem clara
a natureza imutável do seu propósito para com os herdeiros da
promessa, Deus o confirmou com juramento, para que, por meio de duas
coisas imutáveis nas quais é impossível que Deus minta, sejamos
firmemente encorajados, nós, que nos refugiamos nele para tomar posse
da esperança a nós proposta (Hb 6.13,14,16-18).

A promessa é muito clara. O propósito de Deus confirmado com juramento — e


que começou a tomar forma na promessa a Abraão — é certo e imutável.
Portanto, tratava-se de uma aliança incondicional, ou seja, que não exigia de
Abraão uma atitude. Deus garantiria o cumprimento de cada palavra.

Gênesis 17 expõe a aliança de Deus e a responsabilidade de Abraão diante dela


por meio de duas colocações introdutórias: “de minha parte” (Gn 17.4) e “de sua
parte” (Gn 17.9). Da parte de Deus, além de reafirmar uma descendência
numerosa (Gn 17.2), Deus introduz um novo elemento dizendo que Abraão seria
17

pai de mais de uma nação – “muitas nações” (Gn 17.4,6) – de modo que seu
nome foi mudado para se adaptar à realidade prometida (Gn 17.5). Na verdade,
o próprio livro de Gênesis mostra essa promessa se cumprindo, por exemplo, na
própria nação de Israel, ao lado da nação de Edom (Gn 25.23-26), e dos
ismaelitas (Gn 25.12).

Abraão, além de receber orientação de “andar com Deus e ser íntegro” (Gn 17.1),
tinha o dever de manter o sinal da aliança que Deus fez com ele: a circuncisão
de todos os homens da linhagem de Abraão, incluindo os escravos que
habitassem entre eles (Gn 17.9-14). As duas ordens – procedimento e circuncisão
– existem, aqui, em consequência da aliança e não como cláusula condicionante
dos seus termos.

Aspectos da aliança feita com Abraão a partir de Gênesis.

• Uma grande nação surgiria de Abraão: Israel (12.2; 13.16; 15.5; 17.1-27; 22.17).
• Ele recebeu a promessa de uma terra específica: a terra de Canaã (12.1,5-7;
13.14-15,17; 15.18-21; 17.8).
• O próprio Abraão seria abençoado (12.2; 15.6; 22.15-17).
• O nome de Abraão seria grande (12.2).
• Abraão seria uma benção para os outros (12.2).
• Os que o abençoassem seriam abençoados (12.3).
• Os que o amaldiçoassem seriam amaldiçoados (12.3).
• Em Abraão todos os habitantes da terra seriam abençoados já que era
uma promessa que se estenderia a todos os povos (12.3; 22.18).
• Abraão teria um filho com sua esposa, Sara (15.1 -4; 17.1 ó-21).
• Seus descendentes seriam escravos no Egito (15.13-14).
• Assim como Israel, outras nações surgiriam de Abraão (17.3-4,6).
• Seu nome seria mudado de Abrão para Abraão (17.5).
• O nome de Sarai seria mudado para Sara (17.15).
• Haveria um sinal da aliança – a circuncisão (17.9-14). De acordo com a
Aliança Abraâmica, a circuncisão era uma identificação do que é ser judeu.

O conceito dessa aliança, a ideia de que Deus escolheu Israel e lhe fez
promessas eternas, são predominantes no Antigo Testamento. E porque os
propósitos de Deus são expressos nas promessas, são imutáveis. Devemos
18

examinar o Antigo Testamento para entender uma série de eventos que


acontecem nos dias de hoje.

O conceito dessa aliança também nos ajuda no estudo do restante do livro de


Gênesis.

As histórias dos dois patriarcas Isaque e Jacó, não foram contadas


simplesmente porque eram homens “interessantes” ou só porque eram fiéis,
cujas experiências nos ensinam a andar com Deus. Não, Isaque e Jacó são
significativos em Gênesis porque são herdeiros das promessas divinas. Vemos
neles a preservação das promessas, e por meio deles o povo de Israel recebeu a
posse da Terra Prometida e sua identidade como povo de Deus.

Mas tarde, quando uma multidão de pessoas conseguiu se libertar da escravidão


do Egito, Moisés lembrou ao povo de Israel suas origens e seu destino. Os filhos
de Abraão, Isaque e Jacó/Israel, se tornariam uma nação designada para revelar
Deus ao mundo, o qual vivia sem entendimento e esperança.

3.3. ALIANÇA MOSAICA

O surgimento da nação de Israel não foi um acidente histórico; ao contrário,


esse evento era a principal peça do programa de Deus de redenção mundial. A
raça humana, composta de todas as nações, estava irremediavelmente separada
do Senhor por causa da Queda; por isso, Deus, por sua iniciativa soberana e
graciosa, chamou Abraão para ser pai de uma nação que seria o meio designado
por Deus para efetuar o plano de salvação.

A aliança abraâmica dirige a história da salvação devido ao teor das suas


promessas. A aliança mosaica, por sua vez, dirige o relacionamento entre Deus e
Israel no Antigo Testamento. Ela ocupa uma grande parte dos escritos de
Moisés e dos profetas. É impossível compreender o Antigo Testamento sem se
levar em consideração essa aliança. Por causa dela e dos estatutos que ela
estabeleceu, os livros de Moisés (Pentateuco) são conhecidos como “Lei” (tôrá),
pois não há como ignorar o grande volume que a lei ocupa nesses escritos.

Ainda que tratar todo o Pentateuco sob o nome de “lei” seja


desconsiderar as porções narrativas e até poéticas, a lei é uma tônica
muito grande nos escritos mosaicos. Por isso, no Antigo Testamento o
Pentateuco é chamado de “lei” (Js 8.34), “livro da lei” (Js 1.8), “livro da lei
de Moisés” (Js 8.31), “lei do Senhor” (Ed 7.10), “lei de Deus” (Ne 10.28,29),
19

“livro da lei de Deus” (Js 24.26), “livro da lei do Senhor" (2Cr 17.9), “livro
da lei do Senhor seu Deus” (Ne 9.3) e “lei de Moisés servo de Deus” (Dn
9.11). O Novo Testamento reconhece tal característica nomeando-o como
“livro da lei” (G1 3.10), “lei” (Mt 12.5), “lei de Moisés” (Lc 2.22) e “lei do
Senhor” (Lc 2.23,24) (SANTOS, 2014).

A maioria dos leitores do Antigo Testamento já viu tais expressões e sabe da


existência da lei. O que nem todo mundo sabe é a “razão” da existência dessa lei
e sua serventia dentro do eterno propósito de Deus. As respostas a essas
questões estão ligadas à compreensão da aliança mosaica.

Três meses após saírem do Egito, os israelitas chegaram ao monte Sinai (Ex
19.1). Ali, Deus entrou em aliança com Israel. O Senhor se apresenta como o
Deus poderoso que os tirou do Egito (Êx 19.4). Com isso, ele recorda a
preservação milagrosa por meio do mar, já que somente ele poderia promover
algo assim, comparando-a a ação de uma águia que leva seus filhotes onde eles
não poderiam ir sozinhos. Ao dizer “os trouxe para junto de mim”, percebe-se a
disposição do Senhor de nutrir um relacionamento amoroso e bondoso com a
nação de Israel.

O Senhor apresenta sua proposta: “Agora, se me obedecerem fielmente e


guardarem a minha aliança, vocês serão o meu tesouro pessoal dentre todas as
nações” (Êx.19.5). A conjunção “se” (im, em hebraico), fornece uma
característica única dentro das alianças: um caráter condicional. Por esse
motivo, diferente de todas as outras alianças, os benefícios divinos estavam
atrelados a certas condições a serem cumpridas por Israel. Mas note bem: não é
a validade da aliança que é condicional, mas os benefícios que ela proverá.

Portanto, feita a proposta, Deus oferece os benefícios (Ex 19.5-6). Como


“tesouro pessoal”, os israelitas teriam um relacionamento especial com Deus e
ocupariam um lugar ímpar dentro do seu plano. Como “reino de sacerdotes”,
eles desempenhariam uma função mediadora entre Deus e as outras nações,
seja por meio do testemunho que deveriam dar no relacionamento com Deus,
seja por meio da obra de alcance mundial por meio de Jesus Cristo. E como
“nação santa”, eles foram “separados” das nações do mundo a fim de andar
como um a nação “separada” para o serviço e para a glória de Deus.

Por ser uma aliança diferente daquelas que Deus se comprometeu


unilateralmente, esse acordo condicional precisava da participação voluntária
20

do povo de Israel e do seu comprometimento oficial. Sendo assim, Moisés


“convocou as autoridades do povo e lhes expôs tudo o que o Senhor havia-lhe
mandado falar” (Êx 19.7). Essa não era uma decisão que Moisés podia tomar
sozinho, pois sozinho não poderia cumprir a aliança. O povo todo respondeu
unânime: "Faremos tudo o que o Senhor ordenou". E Moisés levou ao Senhor a
resposta do povo” (Êx 19.8).

Com esse acordo prévio, a aliança foi formulada. Imediatamente, foi acordado
entre Deus e Israel o que pode ser chamado de “aliança sinaítica” (Êx 20; Nm
10), visto que foi celebrada no Sinai; essa é a primeira parte da aliança mosaica.
A segunda parte foi acordada quatro décadas depois com a segunda geração
de israelitas, pois a primeira se rebelou (Nm 14) e morreu no deserto; ficou
conhecida como “aliança palestiniana” (Deuteronômio), já que foi celebrada na
Palestina, mais precisamente em Moabe, na Transjordânia.

O formato utilizado para fazer essa aliança era conhecido das pessoas do antigo
Oriente Médio. Assim como Deus usou um modo contratual corrente nos dias de
Abraão para entrar em aliança com ele, fez o mesmo no caso dos israelitas
lançando mão da estrutura de um “tratado de suserania”.

Esse tipo de tratado era utilizado entre nações, no caso de uma nação mais
forte exigir obediência de outra mais fraca. O mais forte era o “suserano”, e o
mais fraco, o “vassalo”. Os termos contratuais visavam fazer o forte não destruir
o fraco, mas a subjugá-lo. Dadas as circunstâncias, o tratado beneficiava os dois
lados: o suserano garantia a supremacia, e o vassalo, além de não ser destruído,
tinha benefícios, como ser protegido de inimigos externos.

Nos dias de Moisés, os hititas usavam desse expediente. O tratado de suserania


do império Hitita (1450—1200 a.C.) — contemporâneo do êxodo (1406 a.C.) —
continha os seguintes componentes:

1. Preâmbulo
2. Prólogo histórico
3. Estipulações
4. Garantia
5. Leitura
6. Testemunhos
7. Maldições
8. Bênçãos
21

O livro da aliança (Êx 20—23) e suas adições podem ser vistos da seguinte
maneira:

1. Título/preâmbulo (20.1)
2. Prólogo histórico (20.2)
3. Estipulações (20.3-17,22-26; 21-23; 25-31)
4. Texto de garantia (25.16)
5. Leitura (24.7)
6. Testemunhos (Êx 24.1-4)
7. Bênçãos (não em Êx; cf. Lv 26.3-13)
8. Maldições (Lv 26.14-43)

Deuteronômio:

1. Título/preâmbulo (1.1-5)
2. Prólogo histórico (1.6—3.29)
3. Estipulações (6-11,12-26)
4. Texto de garantia (31.9,24-26)
5. Leitura (31.9-13)
6. Testemunhos (31.19-22,26; 32)
7. Bênçãos (28.1-14)
8. Maldições (28.15-68)

Os Dez Mandamentos

A unidade central da seção Estipulações gerais da aliança do Sinai (Êx 20.3- 17)
consiste de dez estatutos ou mandamentos (hebraico, “dez palavras”; Dt 10.4)
que compreendem o fundamento legal, moral e espiritual da vida da nação.
Tudo o mais da lei é a interpretação e a aplicação desses princípios básicos. E
até mesmo estes são revistos na versão deuteronômica a apenas uma confissão
e estipulação central: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor.
Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de
todas as suas forças” (Dt 6.4,5). Jesus, citando Levítico 19.18, acrescentou a esta
a ordem com dimensões horizontais: “Ame o seu próximo como a si mesmo”
(Mc 12.31). Ele continuou e observou: “Não existe mandamento maior do que
estes”; ou conforme Mateus apresenta: “Destes dois mandamentos dependem
toda a Lei e os profetas” (Mt 22.40).
22

O restante do livro de Êxodo e todo o de Levítico e Números contém adições,


ampliações, interpretações e aplicações dos preceitos da aliança recém-
anunciados no livro da aliança de Êxodo 20—23. Deve-se considerar o livro de
Deuteronômio como um caso por si mesmo, pois não era essencialmente um
adendo ao livro da aliança, mas uma reformulação dele em termos apropriados
para a renovação da aliança, a nação deve se submeter a entrar na terra de
Canaã e conquistá-la.

A versão sinaítica da aliança tinha o desígnio de esboçar as prescrições para a


vida civil e religiosa de uma comunidade em transição. A versão de Moabe, por
sua vez, fala para uma comunidade, e a respeito dela, que estava se tornando
um estado monárquico urbano com todas as complexidades que a aliança
sinaítica não tratara nem poderia tratar. Ao mesmo tempo, os princípios e as
práticas fundamentais da vida da aliança explicitados no livro da aliança e nos
capítulos seguintes do livro de Êxodo não foram anulados nem muito alterados
daí em diante. Elas ou eram apropriadas, sem comentários, na versão
deuteronômica ou eram mais elucidadas pela necessidade deuteronômica de
reaplicá-las para as novas condições que o livro de Deuteronômio pressupõe.

Os elementos da aliança do Sinai, que eram um desdobramento natural e


necessário dos princípios e estipulações enunciadas nela, estavam
fundamentalmente limitados aos rituais de Israel, à organização de seu modo de
adoração e aos aspectos constituintes que lhe concedem uma estrutura na qual
funcionar. Na verdade, as nuanças teológicas deles são ricas e devem ser
extraídas com cuidado da complexidade de detalhes que formam sua descrição
no texto sagrado. Esses elementos incluem especialmente:

• Lugar sagrado
• Sacerdotes
• Tempos e períodos sagrados
• Atos sagrados.

No decorrer de nossas aulas lidaremos com cada um desses elementos vistos na


aliança Mosaica.
23

4.DEUS DE RELACIONAMENTO

4.1. ALIANÇA PALESTINIANA

Israel, após quarenta anos no deserto do Sinai, chegou às planícies de Moabe,


logo a leste do rio Jordão e de Jericó. Lá, eles acamparam até o momento
propício para atravessar o rio e empreenderem a conquista e a ocupação da
Terra Prometida. Antes disso acontecer, Moisés morreu, tendo antes feito um
último discurso para a nação que consistia de muita orientação e de muito
conselho formando o que é mais bem descrito como documento de renovação
da aliança.

A necessidade desse texto é evidente. A aliança do Sinai, cujo foco estava no


livro da aliança (Êx 20—23), mas elaborada no resto do livro de Êxodo, de
Levítico e de Números, tinha o intuito de satisfazer as necessidades da
comunidade do deserto em trânsito para Canaã, embora obviamente o
decálogo e outros princípios fundamentais continuassem, e continuam a ter
relevância. Contudo, agora, os dias de peregrinação tinham terminado, e Israel
estava para entrar em um novo ambiente e começar uma forma de vida
radicalmente distinta da que já vivenciara.

Ainda mais importante, a geração adulta para a qual a aliança do Sinai fora
concedida saíra de cena impedida de entrar na terra por causa de seu pecado
(Nm 14.32; cf. Dt 2.14,15). Uma nova geração surgiu, uma que não fazia parte do
concerto da aliança do Sinai. Essa geração também teve de prometer ao Senhor
fidelidade à aliança quando ele concordou em os trazer para a mesma
comunhão e responsabilidade da aliança como fizera com os pais deles.

O Senhor prometera a Abraão que a nação da qual seria pai seria um povo
servo do Senhor para sempre, promessa que para ser efetiva precisava ser
aplicada a cada geração por vir dessa nação.

O livro de Deuteronômio, embora apresentado como uma série de discursos de


despedida de Moisés, na verdade, é um documento de renovação da aliança.

Às estipulações específicas da aliança (Dt 12.1—26.5), seguem-se, primeiro, um


resumo do conteúdo da aliança e uma exortação à obediência dela (Dt 26.16-19)
e, depois, listas das maldições e bênçãos características de alianças desse tipo.
Moisés ordenou que seus ouvintes “sigam esses decretos e ordenanças” (ou
24

seja, as estipulações da aliança) e que façam isso “de todo o seu coração e de
toda a sua alma” (v. 16), declaração que lembra o Shemá, a soma total de tudo
que Deus ordena.

Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Dt 6.4

A seguir, Moisés assegurou ao povo que o Senhor declarou naquele dia que eles
eram seu povo, uma afirmação não de algo novo, mas de seu compromisso
renovado com eles de ser seu Deus e de, à medida que fossem obedientes,
torná-los a nação mais exaltada da terra.

Deuteronômio 29—30 fornece uma breve revisão da história de Israel da época


do êxodo até o dia da reunião em Moabe (Dt 29.1-8) e, depois, apresenta uma
série de exortações para que obedecessem à aliança oferecida naquele dia. Não
é uma aliança, declarou Moisés, “somente com vocês que estão aqui conosco na
presença do SENHOR, o nosso Deus, mas também com aqueles que não estão
aqui hoje” (14,15). Em outras palavras, a aliança foi destinada para as futuras
gerações e também para a atual.

No futuro, o texto da aliança devia ser lido em público a cada sete anos como
parte da celebração da festa das cabanas. Isso devia ser feito na presença do
“Senhor, o seu Deus, no local que ele escolher” (Dt 31.11), sugerindo, assim, que a
nação devia renovar seu compromisso com a aliança, pelo menos, com essa
frequência.

4.2. ALIANÇA DAVÍDICA

Quando a sua vida chegar ao fim e você descansar com os seus antepassados,
escolherei um dos seus filhos para sucedê-lo, um fruto do seu próprio corpo, e
eu estabelecerei o reino dele. Será ele quem construirá um templo em honra do
meu nome, e eu firmarei o trono dele para sempre. Eu serei seu pai, e ele será
meu filho. Quando ele cometer algum erro, eu o punirei com o castigo dos
homens, com açoites aplicados por homens. Mas nunca retirarei dele o meu
amor, como retirei de Saul, a quem tirei do seu caminho. Quanto a você, sua
dinastia e seu reino permanecerão para sempre diante de mim; o seu trono será
estabelecido para sempre".2 Sm 7.12-16

O surgimento da monarquia provocou uma mudança na ideia de aliança. O rei


precisava da aprovação e do sustento divino. Deus fez uma aliança com Davi,
25

pela qual um de seus descendentes sempre ocuparia seu trono (2Sm7.12-16). A


palavra aliança não ocorre nessa passagem, mas aparece nas "últimas palavras
de Davi" (2Sm 23.5). A aliança de Deus com Davi era dupla:

• O reino de Davi seria estabelecido para sempre (SI 18.50; 89.3- 4, 35-37; Is
55.3)
• Jerusalém ou Sião seria morada de Deus para sempre (1Rs 8.12-13; SI
78.68-69; 132.13-14).

Se a aliança abraâmica prometeu aos israelitas uma “terra”, a aliança davídica


prometeu a Davi e ao povo de Israel um “trono” e uma “descendência real” (SI
89.3-4). Na verdade, essa aliança nada mais é do que uma especificação da
aliança abraâmica, já que ela já havia anunciado a existência de uma monarquia
israelita.

A aliança davídica também não substitui a abraâmica, mas se soma a ela no que
se refere à liderança política de Israel. Se a aliança abraâmica previu reis vindos
da tribo de Judá (Gn 17.6,16; 49.10), a aliança do Senhor com Davi identificou a
linhagem davídica como a dinastia específica pela qual o reino israelita seria
dirigido. O que há de marcante nessa promessa é a duração desse reinado:
“perpétuo”, assim como a posse da terra prometida a Abraão.

A recusa divina de receber de Davi a construção de um templo— isso só ocorreu


no reinado de Salomão, filho de Davi — serviu para frisar que a aliança davídica
não era uma troca de favores, mas uma promessa unilateral iniciada pelo
próprio Senhor de maneira incondicional, ou seja, não dependia de condições
humanas para que fosse levada a cabo. Assim, depois de dizer “lhe estabelecerei
uma dinastia”, Deus continuou: “Quando a sua vida chegar ao fim e você
descansar com os seus antepassados, escolherei um dos seus filhos para
sucedê-lo, um fruto do seu próprio corpo, e eu estabelecerei o reino dele. Será
ele quem construirá um templo em honra do meu nome, e eu firmarei o trono
dele para sempre (2 Sm7.12,13).

A parte menos importante desse trecho é a que mais chama atenção: “Será ele
quem construirá um templo em honra do meu nome”. Entretanto, esse não é o
centro dessa aliança. Deus mesmo frisou a verdade de que ele nunca habitou
em uma casa entre os israelitas, mas sempre andou entre eles no tabernáculo
26

(2Sm 7.6). Apesar disso, o filho de Davi realizaria esse empreendimento que
Davi desejou. Se o templo não era o centro da aliança, qual era?

A resposta tem a ver com a descendência real de Davi. Deus garantiu ao rei que
levantaria seu descendente e “estabeleceria o seu reino”. Diferente do que
ocorreu a Saul, o reinado de Israel não passaria a outra dinastia. E mais: Deus
estabeleceria “para sempre o trono do seu reino”. Essa é a garantia
incondicional de um trono “perpétuo” da linhagem davídica.

Apesar da incondicionalidade da promessa, um fator condicional está presente,


nem tanto pela promessa do trono em si, mas por apontar para israelitas que
estavam sob o tratamento condicional da aliança mosaica. Assim, o Senhor fala
do filho de Davi algo que vale para toda a linhagem: “. Quando ele cometer
algum erro, eu o punirei com o castigo dos homens, com açoites aplicados por
homens” (2Sm 7.14). O que o Senhor faz aqui nada mais é que reafirmar as
maldições da aliança mosaica pela desobediência (cf. Lv 26.17,25,29,32-34,38; Dt
28.25,36,48-57).

Entretanto, apesar do tratamento condicional da aliança mosaica, o benefício da


aliança davídica —- a garantia do “trono perpétuo” — jamais seria esquecido ou
rejeitado, pelo que Deus garante na sequência:

“Mas nunca retirarei dele o meu amor, como retirei de Saul, a quem tirei do seu
caminho. Quanto a você, sua dinastia e seu reino permanecerão para sempre
diante de mim; o seu trono será estabelecido para sempre” (2Samuel 7.15,16).

Essa é a garantia de que até o final da história da humanidade haverá um


descendente real da casa de Davi e um trono em Israel onde esse rei exercerá
seu poder governamental.

Essa mesma dinâmica — punição dos indivíduos pecadores da dinastia da


aliança, mas a garantia do trono e do reino perpetuamente — se vê no salmo 89.
Ele anuncia a punição dos reis pecadores (SI 89.30-32). Entretanto, garante:

Mas não afastarei dele o meu amor; jamais desistirei da minha fidelidade.
Não violarei a minha aliança nem modificarei as promessas dos meus
lábios. De uma vez para sempre jurei pela minha santidade, e não
mentirei a Davi, que a sua linhagem permanecerá para sempre, e o seu
trono durará como o sol; e será estabelecido para sempre como a lua, a
fiel testemunha no céu (Salmos 89.33-37).
27

O Antigo Testamento vê a aliança davídica se cumprir plenamente em um rei


especial, nascido em Belém, conforme profetizado por Miqueias: Mas tu, Belém-
Efrata, embora sejas pequena entre os clãs de Judá, de ti virá para mim aquele
que será o governante sobre Israel. Suas origens estão no passado distante, em
tempos antigos (Mq.5.2). Isaías também profetizou acerca desse rei (Is 9.6-7).
Jeremias associa esse reinado ao governo da nação israelita (Jr 23.5-6; 33.15-17).
Ele viria somente depois de a linhagem de Davi ser, de fato, punida conforme a
própria prescrição da aliança. Sobre isso, Miqueias 5.1 diz: “Reúna suas tropas, ó
cidade das tropas, pois há um cerco contra nós. O líder de Israel será ferido na
face, com uma vara.” Essa profecia cumpriu-se em 587 a.C. com o
destronamento de Zedequias, o último rei da casa de Davi a reinar em Israel,
depois do qual reinaria o Rei eterno (Mq 5.2).

O Novo Testamento identifica Jesus como o herdeiro do trono davídico e


garante seu futuro reinado na mesma função ocupada pelo antecessor, o rei
Davi, pelo que o anjo garante a Maria: “Ele será grande e será chamado Filho do
Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi” (Lc 1.32). Para que
não se confunda o caráter desse reinado, o anjo completa: e ele reinará para
sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.33). Esse é o
pleno cumprimento da aliança davídica.

Se hoje não há um rei da dinastia de Davi reinando em Jerusalém sobre a nação


de Israel é por causa do tratamento condicional disciplinar que essa aliança
previu. Mas a garantia do trono existe e, no momento que Deus preparou para
isso, Jesus retornará e assumirá seu lugar no trono de Davi, cumprindo a aliança
de caráter perpétuo.

4.3. NOVA ALIANÇA

Estão chegando os dias, declara o Senhor, quando farei uma nova aliança com a
comunidade de Israel e com a comunidade de Judá. Não será como a aliança
que fiz com os seus antepassados quando os tomei pela mão para tirá-los do
Egito; porque quebraram a minha aliança, apesar de eu ser o Senhor deles, diz o
Senhor. Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles
dias, declara o Senhor: Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus
corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. Ninguém mais ensinará
ao seu próximo nem ao seu irmão, dizendo: Conheça ao Senhor, porque todos
28

eles me conhecerão, desde o menor até o maior, diz o Senhor. Porque eu lhes
perdoarei a maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados (Jr 31.31-34).

A última aliança anunciada no Antigo Testamento é a “nova aliança”. Para


entendê-la é necessário compreender a dinâmica da promessa de purificação de
Israel seguida do estabelecimento pleno e definitivo da nação na terra
prometida e sob o trono anunciado.

Em Isaías 2, o Senhor promete um futuro restaurado e glorioso para Israel e para


todas as nações por meio de seu povo (Is 2.2-4).

Porém, as condições de Israel nos dias de Isaías não condizem com a realidade
da promessa futura, pois o povo é injusto e idólatra (Is 2.6-8). Por isso, o juízo
do Senhor também punirá os israelitas incrédulos e pecadores, cheios de
orgulho e de malícia (Is 2.9-22). Por essa razão, o estabelecimento pleno sempre
é anunciado na forma de livramento e restauração. Pela aliança mosaica, o
pecado de Israel produz inevitável juízo.

Assim, os profetas primeiro anunciam o juízo nacional (pela condicionalidade da


aliança mosaica) e depois, para consolo e esperança do remanescente fiel,
anunciam a restauração da nação na terra prometida (pela incondicionalidade
da aliança abraâmica). Como a aliança davídica também é incondicional e está
diretamente ligada à abraâmica, os profetas também anunciam, mediante a
restauração nacional, o estabelecimento do trono justo, santo e perpétuo do rei
eterno.

A restauração geopolítica não pode acontecer sem uma restauração espiritual


nacional. Não há bênçãos para uma nação rebelde, orgulhosa e distante de
Deus. Por isso, a promessa de Isaías 2.2-4 é seguida do convite: “Venha, ó
descendência de Jacó, andemos na luz do Senhor!” (Is 2.5).

Nesse mesmo contexto, Jeremias, em meio ao anúncio de uma punição iminente


por meio da destruição de Jerusalém e do exílio dos israelitas, apresenta a
mensagem de esperança em redenção e restauração plena no futuro,
promovendo um novo modo de relacionamento entre Israel e Deus, uma “uma
nova aliança com a comunidade de Israel e com a comunidade de Judá” (Jr
31.31).
29

Por que “nova”? Se essa é a nova, qual é a velha?”. O contexto responde: “Não
será como a aliança que fiz com os seus antepassados quando os tomei pela
mão para tirá-los do Egito; porque quebraram a minha aliança, apesar de eu ser
o Senhor deles", diz o Senhor” (Jr 31.32). A nova aliança é diferente da aliança
mosaica e uma contraposição a esta, envelhecida pelo surgimento da nova.
“Chamando "nova" esta aliança, ele tornou antiquada a primeira; e o que se
torna antiquado e envelhecido, está a ponto de desaparecer” (Hb 8.13).

Os israelitas anularam a aliança mosaica, e Deus diz como reverterá esse


afastamento por meio da nova aliança: “Porei a minha lei no íntimo deles e a
escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo” (Jr
31.33). A apostasia será substituída por uma atitude de fidelidade a Deus. A
cobrança divina de obediência permanece, mas Deus lhes concede a obediência.

A lei mosaica foi gravada em tábuas de pedra (Êx 32.15-16), que continham um
código legal justo que o povo não guardou, trazendo sobre si condenação. Por
fim, o efeito prático da velha aliança foi trazer conhecimento do pecado (Rm
3.20; 7.7), produz a ira (Rm 4.15), aumentar a ofensa (Rm 5.20) e produzir morte
(Rm 7.10), também foi chamada de “ministério da morte gravado com letras em
pedras” (2Co 3.7).

Seria a lei ruim? Não, mas o pecado torna a lei inútil para salvar quem quer que
seja (Rm 7.13-14). Ela não produz justiça, mas condenação. A utilidade da lei na
salvação do perdido é mostrar ao pecador a necessidade que ele tem de Cristo.

“Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a promessa,


que é pela fé em Jesus Cristo, fosse dada aos que crêem. Antes que viesse esta
fé, estávamos sob a custódia da lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de
vir fosse revelada. Assim, a lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos
justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob
o controle do tutor” (G1 3.22-25).

Já que por obediência voluntária os israelitas não se achegaram a Deus, então


Ele os transformaria e produziria servos verdadeiros ao lhes dar uma nova
natureza, contrária ao pecado, ao orgulho e à rebeldia. O Senhor trabalharia na
fonte a fim de aproximar a si o Israel que se perdeu no pecado. Assim, “o Senhor
exige que seu povo se arrependa dos seus pecados [...], mas Ele fornece a graça
necessária para fazer isso.” Essa é uma descrição figurada de uma
transformação pessoal e espiritual, que chamamos “conversão”.
30

Mas o resultado será não apenas conversão de alguns israelitas, mas de todo o
povo a Deus, de modo que não haverá mais um “remanescente fiel”, mas uma
nação fiel (Jr 31.34). No cumprimento dessa promessa há também a restauração
da nação como tal a ponto de reverter os efeitos da desobediência na forma das
maldições previstas na lei. Sendo assim, se tivéssemos que resumir o centro da
promessa da nova aliança, esta seria: “a conversão e restauração nacional de
Israel”.

Essa é uma aliança incondicional, pois não olha para a desobediência e


incredulidade dos israelitas, mas para a fidelidade de Deus à sua palavra
empenhada para produzir os resultados finais (Jr 31.35-37).

Nesse sentido, Ezequiel 36 tem um lugar especial na compreensão dessa


aliança. Deus promete: “Aspergirei água pura sobre vocês, e vocês ficarão
puros; eu os purificarei de todas as suas impurezas e de os seus ídolos (Ez
36.25). A figura da água provê a ideia da purificação dos pecados dos israelitas,
produzindo também justificação.

Unido a isso, está a ideia da conversão e transformação: “Darei a vocês um


coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de
pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 36.26). Até mesmo traços da
conversão vivenciada pela igreja atualmente se farão ver em Israel como a
habitação do Espírito Santo e a santificação de vida: “Porei o meu Espírito em
vocês e os levarei a agirem segundo os meus decretos e a obedecerem
fielmente às minhas leis” (Ez 36.27). Essa é a descrição de uma conversão e uma
transformação espiritual.

Joel 2 também enfatiza o caráter espiritual da futura restauração israelita.


Depois de anunciar a vinda do Dia do Senhor e de, mediante a mensagem de
juízo, convidar a um arrependimento verdadeiro, fruto de quebrantamento de
coração, o Senhor anuncia “a inauguração de um novo tempo no
relacionamento de Deus com seu povo” (J1 2.28-32).

A bênção espiritual da nova aliança não é desatrelada da concessão de bênçãos


temporais como a reunião dos israelitas espalhados pelo mundo em
consequência das maldições da lei na terra que lhes foi prometida. Isso fica
claro no texto anterior e posterior de Ezequiel 36.25-27, em que a conversão
nacional é prometida (Ez 36.24,28). Jeremias e Joel fazem o mesmo (Jr 31.8-9;
J1 3.1,20).
31

É fácil perceber a relação da nova aliança com a abraâmica (promessa da posse


perpétua da terra prometida), de modo que o cumprimento da nova garante o
cumprimento da abraâmica. Na verdade, nesse momento também se cumprirá a
aliança davídica (trono perpétuo do descendente de Davi), pois tanto a
conversão como o retorno à terra se dão debaixo da atuação do rei prometido e
esperado, Jesus (Mq 5.2,4; cf. Ez 34.23-24).

Por fim, Ezequiel une o cumprimento das três alianças ao prometer conversão,
posse da terra em um reino unificado sob o rei davídico — a quem Ezequiel
chama Davi —, apontando, assim, para a restauração da dinastia davídica (Ez
37.21-26).

4.4. RELACIONAMENTO DAS ALIANÇAS

1. Aliança Abraâmica (Gn 12, 15 e 17)

• Nome engrandecido.
• Semente numerosa.
• Benção para todas as nações pela Semente.
• Terra em possessão perpétua.
• Reis descenderiam dele
• Incondicional.

2. Aliança Mosaica (Ex 19)

• Celebrada no Sinai.
• Regulamentava a vida do povo da aliança.
• Dava as condições para o desfrute da benção da presença de Deus.
• Deveria ser renovada regularmente.
• Condicional.

3. Aliança Palestiniana (Dt 4, 28)

• Celebrada nas planícies de Moabe.


• Aplicava a aliança mosaica à vida na Terra Prometida.
• Obediência à aliança trazia paz, prosperidade e permanência na Terra
Prometida para cada geração.
• Condicional.
32

4. Aliança Davídica (2Sm 7)

• Celebrada no Monte Sião.


• Iniciada por Deus e garantida unilateralmente por Ele.
• Promessa de uma dinastia contínua e de um herdeiro eterno.
• Promessa de um trono eterno.
• Promessa de disciplina temporal em acordo com a Aliança Palestiniana.
• Incondicional.

5. Nova Aliança (Jr 31, Ez 36, Jl 2)

• A ser celebrada no futuro com o povo de Israel.


• Iniciada por Deus e garantida por Ele.
• Em tudo diferente da Aliança Mosaica.
• Garantirá o cumprimento da promessa da posse perpétua da terra.
• Dará a Israel uma nova relação com Deus.
• Incondicional.
33
34

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

KAISER, JR. O Plano da Promessa de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2011.

HASEL, G. Teologia do Antigo e Novo Testamento: questões básicas no debate


atual. São Paulo: Academia Cristã, 2015.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

EICHRODT, W. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2004.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

SMITH S, R Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2001.

SANTOS, T. Fundamentos da Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Mundo


Cristão, 2014.
Veremos hoje:

1. A TEOLOGIA DE GÊNESIS

1.1 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS EM GÊNESIS


1.2 O DEUS QUE CRIA

2. O DEUS QUE JULGA E PROTEGE

2.1 A QUEDA
2.2 DILÚVIO E BABEL

3. A HISTÓRIA PATRIARCAL

3.1 ABRAÃO E ISAQUE


3.2 JACÓ E JOSÉ

4. AS QUATROS LINHAS DE ATUAÇÃO DE DEUS

4.1 O DECRETO DE PERMITIR O MAL


4.2 A AÇÃO DE JULGAR O MAL
4.3 A LIBERTAÇÃO DO JUÍZO PARA OS/PELOS ELEITOS
4.4 O DECRETO DE ABENÇOAR OS ELEITOS
1

1. A TEOLOGIA DE GÊNESIS

1.1. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS EM GÊNESIS

Gênesis fica bem no início do cânon e do Pentateuco. Na condição de primeiro


livro da Bíblia, Gênesis apresenta o Senhor, Israel e sua importância, e a maneira
como a aliança com Deus cria obrigações mútuas entre o Senhor e Israel.
Também mostra Deus como único Criador, sustentador e juiz de todas as
pessoas, qualquer que seja sua raça ou nacionalidade.

Sendo o primeiro livro do Pentateuco, Gênesis funciona como uma introdução


na qual se apresentam as bases para o maior líder de Israel (Moisés), o evento
mais crucial de Israel (Êxodo), o momento determinante de Israel (Sinai) e o
futuro imediato de Israel (a conquista de Canaã). Revela tanto as raízes e frutos
da revolta universal contra Deus quanto o papel de Israel na solução dessa
revolta. No entanto, acima de todas essas ideias vitais e determinantes
encontra-se a apresentação serena do Deus único que sozinho cria e governa
todas as coisas. Assim, Gênesis possui um testemunho teológico singular que
contribui para o Pentateuco e a unidade teológica do Antigo Testamento.

A mensagem de Gênesis

É muito difícil tentar resumir um livro de cinquenta capítulos em único


parágrafo, mas tal resumo da mensagem do livro é importante como ferramenta
para trabalhar com passagens isoladas sem perder a noção do todo.

Para o autor Carlos Osvaldo, a mensagem de Gênesis pode ser resumida da


seguinte maneira:

A eleição e separação de Israel como povo pactual de Deus deram-se em


um contexto de conflito entre o propósito benevolente do Criador e a
vontade rebelde das criaturas, a quem Ele pune em justiça e restaura em
amor (PINTO, 2006).

O título português do livro é derivado do título adotado pela versão grega do


Antigo Testamento, a chamada Septuaginta. O termo genesis (do hebraico ‫תלדה‬,
transliterado como toladah ou tôledhôth) é encontrado em Gênesis 2.4 (“livro
da geração”). Toladah é um substantivo feminino que significa geração. “Esta
importante palavra hebraica traz consigo a noção de tudo o que se impõe à vida
2

de uma pessoa e à de seus descendentes. No plural, é usada para indicar a


marcha cronológica da história tal como moldada pelos seres humanos” (BÍBLIA
PALAVRAS CHAVE).

A Bíblia Hebraica, por sua vez, usa como título a primeira palavra do livro, “no
princípio”. A autoria de Gênesis é atribuída a Moisés, provavelmente durante a
jornada do Egito para Canaã.

A pessoa e o caráter de Deus em Gênesis

• Deus é poderoso

O poder e a majestade de Deus manifestam-se em Seu trabalho de criar,


ordenar o universo e torná-lo habitável para o homem (caps.1 e 2). Seu poder
também se evidencia nas forças cataclísmicas que Ele reúne e desencadeia para
julgar a humanidade pecadora (caps.6-8), na maneira simples, mas engenhosa,
pela qual Ele dispersa a geração pós-diluviana devido à desobediência à ordem
divina para que se espalhassem e enchessem a terra (cap.11).

O poder de Deus é mais sutilmente demonstrado na capacitação a Abraão a


Sara para que, mediante a fé, gerassem a semente prometida (caps. 18, 21).

Em contraste com isso, vê-se o poder devastador da ira de Deus no juízo contra
Sodoma e Gomorra (cap. 19). As palavras de José para seus irmãos em Gênesis
50.19-21 demonstram o ponto de vista mosaico sobre o poder de Deus à luz da
história da nação. O que o homem pecador tenciona para o mal, Javé promove
para Seus propósitos de bênção e bem-estar para o povo de Sua aliança de
maneira soberana.

• Deus é Justo

A justiça de Javé reflete-se não tanto em declarações sobre Seu caráter quanto
nos meios simples e diretos pelos quais Ele julga a falta de conformidade do
homem com o padrão de conduta prescrito pelo Criador. Tal é o caso com Seu
padrão de avaliar o relacionamento do homem com Ele no jardim (2.16), no
julgamento imediato contra a rebelião do homem (3.8-19), em seu trato com o
crime de Caim e as justificativas pessoais apresentadas por este (4.1-16), no juízo
do Dilúvio contra um mundo cuja inclinação e ações estavam em flagrante
violação de seu caráter (6.1-7), na destruição de Sodoma e Gomorra por sua
3

depravação e seu estilo de vida egoísta (19.1-29), assim como em juízos


individuais contra homens como Er e Omã (38.6-10).

• Deus é gracioso

A graça de Deus lança uma luz brilhante sobre algumas das páginas mais
sombrias da história humana. Quando Sua bondade original foi desprezada no
jardim do Éden em troca da independência que as criaturas queriam dEle, foi
Deus quem tomou a iniciativa de buscar o homem (3.8,9), de prometer a vitória
definitiva sobre a serpente pela semente da mulher (3.15) e de remediar a nudez
e a vergonha do primeiro casal (3.21).

Quando a corrupção engolfou a humanidade, Noé [...] achou graça aos olhos do
Senhor (6.8), e quando as águas do Dilúvio ameaçavam destruir os
sobreviventes, Deus lembrou-se de Noé (8.1).

A graça intensifica-se quando o pacto de Javé com a humanidade se focaliza


em Abraão e sua linhagem. Ló e preservado pela graça (19.1-31), Isaque é
poupado pela graça (cap. 22), Jacó é escolhido por sua graça (25.19-23; cf Rm
9.11,12), assim como toda família patriarcal é liberada da corrupção e
miscigenação em Canaã pela provisão graciosa que Javé lhes faz de José como
vice-regente do Egito (caps. 37-50).

• Deus é singular

Os dois primeiros capítulos do livro de Gênesis apontam para a transcendência


de Deus, pois O revelam como Criador que existe eternamente e age
soberanamente criando e sustentando todo o universo. Ele é independente e
pré-existente.

A singularidade de Javé aparece mais especificamente no fato de que Ele é um


Deus que, apesar de transcendente e todo-poderoso, busca um relacionamento
com suas criaturas e a elas se revela. Ele estabelece alianças (9.8-17; 15.9-21; 17.1-
27) e garante seu cumprimento ao prover, milagrosamente a semente que havia
prometido (18.13-15; 22.15-18; 25.21).

1.2. O DEUS QUE CRIA: GÊNESIS 1 E 2


4

“No princípio Deus criou os céus e a terra. Era a terra sem forma e vazia; trevas
cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das
águas” Gn 1.1 ,2

Gênesis é verdadeiramente um livro de origens. Moisés tinha como objetivo


oferecer aos israelitas não apenas um conhecimento de seu passado nacional,
mas uma percepção de como esse passado se conectava à história primeva da
humanidade e até mesmo à origem do universo.

Logo no primeiro versículo do cânon despontam a unidade e a soberania de


Deus. “No princípio” um só Deus cria os céus e a terra. Nenhuma outra
divindade questiona o direito divino de criar; nenhuma outra divindade ajuda
Deus a criar nem se opõe à sua atividade criadora. Desde o princípio, ou desde a
origem do tempo e da história, só Deus existe ou age. Só o Espírito de Deus
paira sobre o caos de trevas aquosas. Tudo o mais que está implícito em
Gênesis 1.1,2 certamente apresenta Deus como auto existente, não-criado por
qualquer outro ser, atemporal e capaz de gerar os céus e a terra sem qualquer
ajuda.

A palavra no hebraico utilizada para criação é ‫ברא‬, transliterado como bãrã. Este
termo é um verbo quase universalmente traduzido por criado. Há apenas cerca
de cinquenta ocorrências do verbo com esse sentido e sempre tendo Deus
como sujeito. Por conseguinte, a evidência léxica sugere que apenas Deus pode
criar e cria, o esforço criativo dos seres humanos é expresso por meio de outros
verbos, alguns dos quais, na verdade, aparecem em paralelismo sinônimo com
bãrã.

O Senhor cria noite e dia, terra e água, animais e pessoas. Gênesis 1.1—2.3
apresenta a ordem criada como o resultado de atividade intencional da parte do
Deus único.

Dias da Criação
Do 1º ao 3º dia Obras de Deus Do 4º ao 6º dia Obras de Deus
A terra estava Deus organiza A terra estava Deus povoa
“sem forma” “vazia”
1º Luz e trevas/ dia 4º Sol. Lua e estrelas
e noite (1.3) (1.14)
2º Céu e mares (1.7) 5º Pássaros e peixes
5

(1.21)
3º Terra seca (1.9) 6º Animais terrestres
Vegetação (1.11) (1. 24)
Homem e Mulher
(1.27)

7º dia – Deus descansou

A soberania, conhecimento, bondade pessoal e resolução divina produzem um


mundo ordeiro que elimina o caos e o vazio mencionados em Gênesis 1.2. Cada
criatura tem seu lugar neste mundo com dignidade própria por Deus assegurar
que toda a criação é “boa”, completa e apropriada para seu propósito.

Os seres humanos ocupam um lugar único entre as criaturas (1.26). Então disse
Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.
Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais
grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente
ao chão".

Só eles são feitos à “imagem e semelhança” de Deus e recebem a ordem de


“dominar e subjugar” a terra, o que parece explicar pelo menos parcialmente o
que a “imagem de Deus” significa. Semelhantemente a Deus, os seres humanos
têm a capacidade de tomar decisões que afetam positiva ou negativamente a
terra e seus moradores. Receberam a terra toda para sustentá-los (1.29,30) e
não o contrário, contudo é óbvio que o domínio sábio será necessário para que
da terra os seres humanos extraiam sustento.

Têm sido propostas outras interpretações para “imagem de Deus”, a maioria das
quais pode-se basear em Gênesis 1 e 2. Por exemplo, a imagem de Deus pode
incluir a capacidade de se relacionar com o Senhor (1.28- 30; 2.15-25). Em
passagem alguma das Escrituras está implícito que Deus tem esse tipo de
relacionamento com animais ou plantas. Só pessoas conversam com Deus; só
pessoas são consideradas responsáveis aos olhos de Deus pelas ações
praticadas; só pessoas recebem padrões pelos quais devem escolher viver. Cada
um desses elementos deixa implícito o relacionamento entre personalidades
reflexivas, responsáveis e comunicativas. A menos que exista tal
relacionamento, é impossível que as pessoas ajam como representantes ou
mordomos de Deus na terra.
6

Em sua ocupação o homem recebe de Deus liberdade total, com uma exceção:
ele não pode comer “da árvore do conhecimento do bem e do mal”. E a morte
é-lhe prometida, caso quebre esse mandamento (2.17). Fica, então, claro que o
favor divino não é incondicional no sentido de que Adão pode fazer o que bem
entende e continuar desfrutando as bênçãos divinas. Pelo contrário, deve
observar esse código simples da lei para continuar da maneira como começou.
Para fazê-lo, deve confiar na palavra de Deus e acreditar em sua advertência. Fé
é exigida.

A esta altura em Gênesis, não há qualquer motivo para esperar algo que não
seja um domínio sábio. De modo mais simples, os seres humanos são
representantes de Deus na terra. Ao formar a mulher a partir do corpo do
homem (2.21,22), Deus completa a raça humana.

Adão reconhece sua íntima conexão com Eva, e Moisés acrescenta o comentário
de que essa união é a base para o ser humano abandonar todos os
relacionamentos familiares prévios e dedicar lealdade exclusiva à esposa.

“Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se
tornarão uma só carne. O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam
vergonha.” Gn 2. 23,24

Dificilmente se conseguiria imaginar uma cena mais feliz. O primeiro casal


estava perfeitamente à vontade um com o outro, pois “viviam nus, e não
sentiam vergonha”. Não há qualquer divisão, nem dor emocional, nem disputa
entre eles. Presumivelmente eles cumprirão o mandamento divino de se
multiplicar sobre a terra (1.28), o que indica que a sexualidade tem um papel
importante nos relacionamentos humanos. Também não há quaisquer
problemas nessa área.

O Deus Criador terminou sua tarefa: Terra, seres humanos e vida vegetal e
animal são todos bons, apropriados para suas funções. Os seres humanos
expressam a “imagem” de Deus ao se relacionar com o Criador e dominar os
animais e a terra de acordo com o mandamento do Senhor. Impecável no
projeto, perfeita no propósito, a criação reflete a genialidade e unidade do
Criador. O tempo e a história humana começaram com a decisão espontânea de
Deus de criá-los pela sua simples palavra.
7

Síntese canônica: criação

O relato da criação em Gênesis é utilizado para uma variedade de propósitos


canônicos no restante do Antigo Testamento. Vamos observar alguns textos
para demonstrar como a criação influencia outros livros.

Nos Profetas

A criação serve de prova tanto da preocupação de Deus com Israel e o restante


da raça humana quanto do fato de que o Senhor tem todo o direito de julgar
cada criatura viva.

• Isaías afirma que o fato de Yahweh criar os céus e a terra significa que ele
nunca se cansa e está sempre pronto a consolar o povo que sofre e se
cansou da opressão assíria (Is 40.12-31). Além disso, Isaías estabelece
vínculos entre a noção de que Deus sozinho fez a terra e a soberania e
redenção de Yahweh em relação a Israel (Is 44.24). Isaías também declara
que a terra, outrora boa, pode fazer jorrar salvação e retidão (Is 45.8).
• Amós, contudo, utiliza três hinos sobre a criação para intercalar denúncias
e ameaças de castigo certo para o pecado (Am 4.13; 5.8,9; 9.5,6). Com
certeza o Senhor que criou a terra e seu povo pode avaliar os
acontecimentos da história humana. Arrepender-se e voltar-se para o
Criador é a única maneira de evitar a devastação vindoura (Am 5.8,9).

Nos Salmos

• Vários Salmos celebram Yahweh como Criador com o objetivo de


ressaltar a incomparabilidade de Deus, a dignidade da raça humana,
criada à imagem de Yahweh, a redenção de Israel e a constância da
absoluta dedicação divina a Davi e sua linhagem. Estes dois últimos temas
aparecem com proeminência nos salmos 136 e 89.
• Os salmos 8, 47, 91 e 93—99 proclamam a grandeza de Deus transcende e
ao mesmo tempo permeia a terra e que ele também confia às pessoas
tarefas grandes e desafiadoras que demonstram a dignidade de ser
criaturas de Deus. Em todas essas passagens Deus permanece supremo
como o único Deus documentado.

Jó 28 e Provérbios 8: alegam que as habilidades de Deus como Criador provam


sua inigualável sabedoria.
8

• De acordo com Jó, somente Deus possui a compreensão das profundezas


da sabedoria porque só Ele criou forças misteriosas como vento, água,
relâmpagos e trovões (Jó 28.25,26). Visto que a sabedoria divina
ultrapassa a de qualquer ser humano, o autor aconselha o leitor a
desenvolver um saudável respeito ou temor do Senhor (Jó 28.28).
• Provérbios 8.22-36 investiga a origem da sabedoria, chegando até a
criação de todas as coisas, pois Yahweh usou sabedoria infinita na criação.

Essa ênfase conclui o quadro bíblico de Deus que inclui imagens dele como
Criador, juiz, Senhor e sábio. Essas ideias implicam que o Senhor possui
capacidades de criação, decisão, supervisão e pensamento que nenhum outro
ser possui.
9

2. O DEUS QUE JULGA E PROTEGE

Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o


descendente dela; este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar".
Gênesis 3.15

2.1 A QUEDA: GÊNESIS 3 E 4

Quando os leitores terminam de ler Gênesis 2, têm uma sensação de bem-estar


que quase resvala para a euforia. Afinal, o Deus incomparável criou o mundo
ideal para a raça humana plenamente racional, relacional e funcional, que por
sua vez tem prazer no trabalho, no sexo e nas ocupações espirituais. A única
regra divina, a proibição de comer da “árvore do conhecimento do bem e do
mal”, tem sido obedecida até agora.

O que acontece em seguida destrói essa serenidade. A mulher encontra outro


ser criado, a serpente, sutil, manhosa e verbalmente combativa. É importante
realçar que a serpente não passa de uma criatura sem poder igual ao de Deus.
Mais tarde as Escrituras analisam como a serpente tornou-se quem tenta fazer
as pessoas se voltar contra Deus (v. Is 14.12-17; Ez 28.2-5), mas aqui não há
qualquer explicação do gênero. É claro, no entanto, que a serpente representa
interesses diametralmente opostos aos declarados por Deus em Gênesis 2.16,17.
Uma vez que Gênesis 1 e 2 contam que tudo o que foi criado é “bom”, parece
provável que a serpente represente um ser que corrompeu seu bom propósito e
não que Deus a tenha criado corrupta desde o princípio.

A conversa entre a mulher e a serpente começa com o questionamento bem


dissimulado do mandamento único e simples dado por Deus, passa para a
negação frontal das consequências da desobediência anunciadas em Gênesis
2.17 e conclui com a tentação ostensiva baseada no ataque ao caráter do criador
(3.1-6). Depois de considerar os argumentos da serpente, a mulher come, como
também o faz o marido (3.6).

Essa quebra do mandamento do Senhor constitui pecado. O mandamento não


era difícil demais de entender, como também não era a consequência dessa
ação. Na verdade, comer a fruta equivale a confiar no tentador e não no Criador
e ao desejo destrutivo de conhecimento.
10

Imediatamente após seu pecado, os seres humanos experimentam o castigo


pela desobediência.

• A naturalidade com que se dão um com o outro é destruída, pois cobrem


sua nudez (3.7).
• A comunhão com Deus é quebrada, e escondem-se de quem os criou à
Sua imagem (3.8,9).
• Sua compreensão da verdade enfraquece, pois culpam outros pelo que
cada um fez (3.10-13).
• Fissuras na amizade, comunhão e integridade são baixas causadas pelo
pecado.

O pecado começa com:

• A falta de confiança em Deus


• Inclui o desejo pelo que causa dano próprio
• Ignora a revelação da verdade
• Termina em destruição

Crer em mentiras devido à falta de fé não pode produzir obediência ao Criador.

A queda da humanidade no pecado e o afastamento dela de Deus produziu


extensas consequências que jamais seriam imaginadas pelo primeiro casal.

• Deus condena a serpente a comer pó e a saber com certeza que duelará


com os seres humanos para, no final, ser esmagada (3.14,15).
Corretamente tem-se considerado esse texto o protoevangelho ou
primeira declaração das boas novas, pois garante aos leitores que o mal
não dominará os seres humanos para sempre. Com o desenvolvimento do
cânon, essa promessa cresce para incluir conceitos messiânicos.
Entretanto, mesmo nesta etapa inicial, a noção surge como alívio. O
Criador permanece no controle até mesmo dos setores revoltosos da
criação.
• A mulher recebe dois castigos por suas ações. Um é físico e o outro é
relacional. Dores acompanharão o parto (3.16), o que indica a
impossibilidade de restrição dos efeitos do pecado a alguma área
espiritual da vida humana. Pelo contrário, o pecado também afeta o lado
físico da mulher, forçando-a a, durante o que deveria ser um momento
11

jubiloso da vida, lembrar-se de seu fracasso. Por mais duro que seja esse
castigo, afeta menos do que o segundo. O pecado da mulher também traz
o castigo de frustração no relacionamento com o marido (3.16).
• Adão não se sai melhor. Além dos problemas que enfrentará devido ao
castigo dado à serpente e à mulher, ele aprende que nem sempre será
bem-sucedido no trabalho. Ele suará e trabalhará arduamente, contudo
enfrentará lutas e revezes em seu esforço por fazer a terra produzir. O
trabalho não é o castigo, pois em Gênesis 1.28 Deus diz aos seres humanos
para trabalhar. De maneira que o pecado não torna as coisas mais fáceis
para Adão, pois ele tem de lutar com a serpente, lidar com as frustrações
que ele e sua família criam e também encarar a certeza de que jamais
haverá certeza de sucesso no trabalho.

Com as consequências do pecado claramente expressas e com a promessa de


que serpente será derrotada a longo prazo, Deus age com misericórdia ao
amparar o casal caído (3.21).

• Deus os veste (3.21).


• O Senhor também os retira do jardim para protegê-los de comer da
árvore da vida, que não lhes fora proibida anteriormente, para que não
vivam eternamente na condição de pecado (3.22-24).

Nem mesmo o pecado deles é capaz de separá-los da preocupação e do


compromisso total de Deus com o bem-estar das pessoas que criou.

Quem é responsável por todo esse conflito (pecado)?

É fundamental concluir que o indivíduo é responsável por suas ações. Embora


Deus tenha criado a serpente, esta não recebeu ordens para tentar os seres
humanos.

Deus advertiu as pessoas a não comer do fruto de uma árvore, mas a Adão e
Eva faltou a fé necessária para crer no Senhor em vez de na serpente.

Quando têm de crer em Deus o bastante para obedecer uma única lei, os seres
humanos fracassam. Esse fracasso é, no entanto, responsabilidade exclusiva
deles, visto que foram advertidos e a serpente não possuía poder algum de
coerção física.
12

Quão contínuo é esse pecado? Quão ininterrupto é?

Depois de Gênesis 3 nenhum ser humano evita o pecado. Ninguém é sem


pecado; todos são afetados por viverem no mundo pecaminoso. Por
nascimento, por escolha ou por ambos, o resultado continua sendo que cada ser
humano peca e sofre espiritual, física, emocional, relacional e vocacionalmente
por causa desse pecado.

Rápida e inexoravelmente o pecado se espalha. Eva dá à luz dois filhos, Caim e


Abel, que crescem e se tornam agricultor e pastor de ovelhas, respectivamente
(4.1,2). Embora o texto não explique como sabem fazê-lo, ambos trazem
oferendas apropriadas às suas profissões.

Novamente sem dizer exatamente o porquê, o texto conta que o Senhor aceita
o sacrifício de Abel, mas não o de Caim. Deus o alerta sobre o pecado, mas
Caim ignora o alerta do Senhor e mata seu irmão (4.5-8). Aqui o pecado se
revela como violência, assassinato cruel e a sangue frio, como injustiça.
Obviamente também um dos resultados do pecado é a possibilidade de
sofrimento da parte inocente por causa dos pecados de outros.

Qual a importância da prevalência do pecado no restante do cânon do Antigo


Testamento?

Num sentido bem real, o restante das Escrituras trata da solução para o
problema do pecado.

• No Pentateuco, Moisés intermedeia uma aliança que inclui sacrifícios


oferecidos com fé por pecadores penitentes por seus pecados.
• Os Profetas apresentam uma descrição de como o pecado continuado e
habitual, não-contestado, gradualmente empurra Israel para a destruição.
Profetas como Isaías e Jeremias lamentam estar no meio de um povo
impuro (Is 6.5) e ser alguém com um coração corrompido e enfermo (Jr
17.9). Isaías 13—27, Jeremias 46—51, Ezequiel 25—32, Amós 1.2—2.3 e
outras passagens anunciam a pecaminosidade de todas as nações.
• Os salmistas declaram não haver pessoas retas (SI 14.1-3; 53.1- 3; 140.3).
• Jó e Provérbios aconselham sabedoria à luz do erro e tolice humanos.
• O restante dos Escritos descreve os efeitos do pecado nos exilados de
Israel (Ester e Daniel) e a tentativa de a nação vencer o próprio pecado
(Eclesiastes, Ezequiel, Neemias, 1 e 2Crônicas).
13

Assim, o pecado nunca poupa — seja uma geração, seja um único indivíduo. É
possível que essas histórias específicas sejam recontadas não com o objetivo de
explicar o motivo do implacável pecado humano, mas a partir desta passagem o
cânon certamente se debate com os resultados desses relatos.

O ponto de partida, o lugar onde o pecado entra na raça humana, é Gênesis 3,


fato que em Romanos 5.17,18 Paulo realça como contraste com a obra de Cristo.

“Se pela transgressão de um só a morte reinou por meio dele, muito mais
aqueles que recebem de Deus a imensa provisão da graça e a dádiva da justiça
reinarão em vida por meio de um único homem, Jesus Cristo.
Consequentemente, assim como uma só transgressão resultou na condenação
de todos os homens, assim também um só ato de justiça resultou na justificação
que traz vida a todos os homens.”

2.2. DILÚVIO E BABEL: GÊNESIS 6 - 11

A queda de Adão e Eva, exposta pelo pecado de seu filho mais velho, no fim,
alcançou proporções tão universais que Moisés menciona desalentado que “o
senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a
inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal”
(Gn 6.5). As coisas chegaram a tal ponto que o Senhor decidiu destruir a terra e
toda coisa viva que existisse nela a fim de empreender uma obra de recriação.

Depois de ver (6.5), Deus agora sente tristeza e dor diante do que as pessoas
estão a fazer. O poder de Deus e a capacidade que ele tem de ver todas as
coisas conduz à emoção apropriada, não à insensibilidade, ou pessimismo ou
brutalidade. O Senhor percebendo a ação má do homem, decide, não de
maneira reativa, mas soberana, intervir na raça humana decretando seu juízo
sobre ela.

Deus, portanto, decide castigar os perversos, mas poupar Noé, homem que age
de modo diferente dos demais e, por isso mesmo, evita o castigo que lhes é
destinado (6.8).

Noé torna-se o catalisador da misericórdia e juízo divinos. Deus decide castigar


o pecado no mundo inteiro, eliminando os pecadores mediante o dilúvio
generalizado (6.13). Noé será poupado mediante a construção de um barco e
14

salvará a família e os animais ao conduzi-los para dentro da embarcação (6.14-


22).

Por meio desse processo concretizam-se os planos divinos de castigar o pecado


e poupar uma minoria justa, ou remanescente. A família de Noé torna-se, desse
modo, o meio pelo qual o Deus misericordioso preserva a raça humana e
também o símbolo visível de como o Deus justo e bom faz distinção entre fiéis e
desobedientes. Assim que o dilúvio acaba e Noé sai do barco, ele adora a Deus
mediante a oferta de sacrifícios (8.20). Deus responde favorável e
graciosamente à devoção de Noé. A despeito da pecaminosidade da raça
humana, o Senhor promete nunca mais destruir pecadores como no dilúvio
(8.21,22).

O relato dos descendentes de Noé revela como mais uma vez a humanidade
passou de uma posição de aliança sob autoridade de Deus para um estado de
degradação, rebelião e maldição (9.18; 11.26).

• Uma descrição dos três filhos de Noé os relaciona à futura população do


mundo (9.18,19).
• A reação irreverente de Cam à vergonha causada pela embriaguez de seu
pai trouxe uma maldição sobre sua linhagem, de acordo com o caráter
que ele transmitiria a ela (9.20-25).
• A resposta de Noé à reação de reverência de Sem e Jafé para com sua
vergonha foi abençoá-la com o domínio e um relacionamento especial
com Javé (9.26,27).
• O relato dos filhos de Noé descreve como seus descendentes se dividiram
na população do mundo.

A despeito de tudo o que o Senhor fez para criar, suster, corrigir e renovar a
terra e a raça humana, o pecado avança. Imaginam-se novas maneiras de pecar.
À medida em que o povo se multiplica e se espalha, eles concentram a
população na “planície em Sinear” (11.1). Ali, utilizam suas habilidades
tecnológicas para construir uma cidade e uma torre com o objetivo expresso de
honrar a si mesmos e furtar ao mandamento divino de encher e dominar a terra
(11.24; v. 1.28; 9.7). Babel foi o local onde Deus reduziu o orgulho humano a mero
barulho, e a unidade humana, à dispersão.
15

3. A HISTÓRIA PATRIARCAL

Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por


meio de você todos os povos da terra serão abençoados". Gênesis 12.3

Os primeiros capítulos de Gênesis realçam a criação da terra e da humanidade.


Agora, os próximos (capítulos 12- 50) ressaltam a criação divina de um clã ou
uma nação especial. Esse grupo de pessoas escolhidas desempenha vários
papéis estratégicos.

1. A eleição dessa família é a chave para solucionar o problema do pecado,


descrito de modo tão infatigável em Gênesis 3—11.
2. Elas são para o mundo o símbolo visível da graça divina perdoadora para
seres humanos pecadores.
3. Demonstram a necessidade de dedicação total e fidelidade ao único Deus
Criador.
4. Ilustram a necessidade de exercer fé no relacionamento com o Senhor.

Estes capítulos assinalam o início de textos canônicos que se pode datar com
alguma precisão histórica e esclarecer com dados provenientes de fontes
extrabíblicas. A maioria dos estudiosos concorda que os patriarcas (Abraão,
Isaque e Jacó) viveram em aproximadamente 2100- 1700 a.C. Essa capacidade
de vincular texto e história não apenas amplia o conhecimento dos intérpretes
sobre o pano de fundo bíblico, mas também mostra como a teologia se forjou
tanto na vida cotidiana quanto em acontecimentos de enorme impacto.

A teologia deixou suas marcas na vida das pessoas daquela época tanto quanto
deixa nas de hoje.

3.1. ABRAÃO E ISAQUE

O relato de Gênesis 12.1-9 se torna o ponto de convergência da lida divina com a


raça humana. Mediante um ato de revelação direta e pessoal, o Senhor ordena a
Abrão que saia de sua terra natal e da casa de seu pai e se dirija a um local
indeterminado que ser-lhe-á mostrado (12.1). Como resposta ao ato de fé de
Abrão, Deus promete certas bênçãos:

• Abrão tornar-se-á uma grande nação (12.2), uma promessa significativa


feita a um homem cuja mulher já fora identificada como estéril (v.11.30).
16

• Abrão será abençoado com uma grande reputação (12.2), proteção (12.3);
ele abençoará todas as nações (12.3).
• A bênção de uma pátria, implícita em 12.1, torna-se explícita em 12.7, onde
Deus conta a Abrão que Canaã pertencerá à sua semente ou
“descendência”.

A escolha divina de Abrão também dá início à constante prática de Deus eleger.


É possível que Deus também tenha elegido Noé, mas o texto pelo menos insinua
que na era de Noé o Senhor não tinha mais ninguém para escolher. Aqui, Deus
escolhe Abrão em meio às pessoas iguais ao patriarca, embora seja possível que
Abrão possuísse qualidades especiais para a tarefa que lhe foi dada.

O Senhor escolhe Abrão da mesma maneira como decide criar os céus e a terra,
ou seja, a partir da liberdade absoluta resultante de ele ser o Deus único, todo-
suficiente e independente. O Senhor também escolhe o que é bom e benéfico
para a criação. Aqui a eleição não exclui nem condena ninguém. Pelo contrário,
ela opera exclusivamente em benefício do mundo que não tem intenção alguma
de fazer o que é certo. Neste caso a eleição demonstra a misericordiosa
bondade de Deus com o mundo e não apenas com Abrão.

Embora, em resposta às ordens divinas, Abrão saia de Harã, nem sempre


exercita a fé em cada situação que enfrenta:

• No Egito, esquece-se da promessa divina de proteção e procura proteger-


se por conta própria, dizendo que Sarai é sua irmã (12.10-20).
• Tem um filho com Hagar, Ismael (16.1-16).
• Mente pela segunda vez em relação a Sarai ser sua esposa (20.1-18).
• Questiona se algum dia chegará a ter um filho com a esposa (17.17,18).

Contudo, Abrão claramente demonstra fé em Deus em momentos cruciais:

• Deixa que seu sobrinho Ló tenha prioridade na escolha ao repartir a terra


(13.1-18).
• Salva Ló de sequestradores e rejeita a recompensa oferecida pelo rei de
Sodoma (14.1-24).
• Adota a prática da circuncisão como sinal do compromisso total de sua
família com o Senhor (17.1-27).
• Ora para que o Senhor poupe Sodoma e Ló do juízo iminente (18.16- 33).
17

Devido à fé de Abraão, Deus considera-o justo, ou corretamente relacionado


com Deus, desse modo seguro no Senhor, embora Abrão não tenha
tecnicamente feito nada. A fé de Abrão não é uma obra, mas exige um desejo
de pôr de lado claras evidências físicas (ausência de filhos) a favor da promessa
clara e direta de Deus que percebe o valor e a natureza enérgica da fé e
reconhece que ela é o primeiro passo rumo à ação de obediência.

A fé fornece, portanto, a base para a aliança entre Deus e Abrão, implícita em


Gênesis 12—14 e explícita em Gênesis 15. Sem fé não pode existir justiça. No
entanto, onde a fé existe, seguir-se-ão mais e mais ações justas, à medida que o
relacionamento humano-divino se desenrola.

Anos após a formalização dessa aliança baseada na fé, Abrão, agora chamado
Abraão (“pai de nações”), se depara com o “teste” (22.1) mais importante de sua
fé em Deus. Tendo adotado a circuncisão como sinal da aliança (17) e tendo
recebido o herdeiro depois de 25 anos de espera (21.1-8), Abraão é provado
quando Deus lhe ordena sacrificar Isaque, o filho da promessa (22.1-2). Sem
hesitar, Abraão leva o menino para um lugar de sacrifício e então prepara-se
para sacrificá-lo (22.3-10). Deus interrompe-o, declarando que aquela ação
prova que Abraão “teme” a Deus, outra maneira de dizer que ele baseia sua vida
em Deus. Aqui “fé” e “temor” equivalem à mesma coisa: obediência.

A própria natureza da fé de Abraão é um convite à reflexão sobre o caráter do


Deus em quem ele confia:

1. Em cada uma das narrativas patriarcais é sempre um único Deus que lida
e fala com as pessoas, de modo que o Senhor que cria, sustém, julga e
renova também elege, chama, sustém, promete, testa e abençoa.
2. Este Deus único relaciona-se pessoalmente com indivíduos, comunicando
ordens, fazendo promessas e dando orientação contínua.
3. As promessas de herdeiro, terra, nação e bênção internacional exigem fé
da parte de Abraão, o qual deve fundamentar sua segurança em Deus e
não em circunstâncias flutuantes.
4. As promessas de Deus a Abraão fornecem um arcabouço para o restante
do Antigo Testamento, de fato, para o restante da Bíblia.

Com a morte de Abraão seu filho Isaque torna-se a personagem central da


história, ainda que por umas poucas páginas. Este Isaque é o herdeiro escolhido
da fé (17.15-21), o filho por quem Abraão esperou 25 anos (21.1-4), o filho que
18

Abraão amou, mas recusando-se a amá-lo mais do que a Deus (22.1-11). Isaque
testemunhou e experimentou, o teste maior de fé de seu pai e, por isso, sabia
que fé exige obediência. Ele também sabia que Deus provê para o fiel (22.13,14).

O Senhor aparece a Isaque de maneira não especificada e ordena-lhe


permanecer na Terra Prometida em vez de fugir para o Egito (26. 1-5). Em troca
Deus promete três coisas:

• O Senhor “estará com” Isaque, expressão que indica presença contínua.


• Deus abençoará Isaque da mesma maneira como Abraão foi abençoado.
• O Senhor multiplicará seus descendentes.

O estilo de vida de Isaque demonstra que ele age com fé nas promessas de
Deus. Ele sabe que as garantias divinas fornecem o necessário vínculo teológico
entre ele próprio e Abraão.

Como seu pai, Isaque está longe de ser perfeito e, no entanto, como seu pai, ele
se recusa a fugir do processo trabalhoso de viver numa Terra Prometida não
possuída. Sua paciência e resistência são testemunho da presença divina com
ele em cada área de sua vida (26.28,29).

De igual modo, como seu pai, Isaque experimenta dor dentro da família; em seu
caso específico a dor deve-se à rivalidade entre os filhos gêmeos (25.19-34; 27.1-
40). Em sua dor maior, Isaque tenta abençoar com a aliança do Senhor o filho
mais velho e favorito, Esaú (27.1-4). Sua tentativa enfrenta a predição divina,
feita quando do nascimento dos gêmeos (25.23), e no fim fracassa devido ao
engano perpetrado por Jacó e a mãe (27.5-31).

Embora em Gênesis 27 Isaque acredite na iminência de sua morte, na verdade o


patriarca vive por mais dois decênios, não falecendo do que o afligia senão em
Gênesis 36.27-29. A doença prolongada de Isaque leva Jacó a assumir o papel
de personagem principal da história antes da morte do pai.

Síntese canônica: Abraão e o Novo Testamento

Os textos de Gênesis 12.1-9; 15.6 e 22.1-19 recebem um tratamento significativo


no Novo Testamento. Paulo conclui que Jesus é o cumprimento da promessa de
bênção internacional, pois ele é a descendência Abraâmica que media salvação
para todos (G1 3.16). Nas palavras de Edward John Carnell: “Abraão é uma
19

bênção para todas as nações porque Jesus Cristo é o verdadeiro descendente


de Abraão.”

O apóstolo Paulo alega que na vida de Abraão a fé produziu justiça que levou o
patriarca a aceitar a circuncisão, o que significa que a salvação ocorre sem
obras de justiça (Rm 4.1-15). Portanto, a única maneira de as promessas de Deus
tornarem-se realidade é o exercício da fé, não a prática de obras (Rm 4.16-25).

Ao analisar a vida de Abraão, Tiago declara que a fé mencionada em Gênesis


15.6 é demonstrada no desejo de sacrificar em Gênesis 22.1 (Tg 2.18-25). O
ministério de Paulo exige um destaque para o fato de que obras sem fé são
mortas, ao passo que o de Tiago requer o comentário enfático: “a fé sem obras
é morta”.

Tanto Paulo quanto Tiago deram prioridade à fé, pois sabiam qual texto aparece
primeiro no cânon (Rm 4.10; Tg 2.23). Ambos reconheceram que a fé funciona
como alicerce. Ambos perceberam ter brotado dessa fé uma obediência lógica,
essencial, histórica e prática.

Sem fé, promessas não passam de palavras. Sem obediência, “fé” é um


assentimento meramente mental, emocional ou verbal, desse modo não
possuindo substância real alguma. A fé de Abraão possuía substância. Os
escritores do Novo Testamento procuraram garantir que ninguém que afirmasse
ser da linhagem de Abraão deixasse de ter a fé substantiva de seu antepassado.

3.2. JACÓ E JOSÉ

No centro do livro de Gênesis se configura a história do terceiro patriarca, uma


história marcada por conflitos e enganos. A família patriarcal estava morando
em Berseba, sul de Canaã, quando Jacó enganou o pai, já idoso e cego, fez-se
passar por Esaú e roubou deste a bênção patriarcal (Gn 25- 27). O terceiro
patriarca parece possuir pouquíssimo ou mesmo nada do caráter exibido por
Abraão e Isaque.

Lenta, perceptível, até mesmo infalivelmente, o Senhor torna Jacó uma pessoa
de fé, mas a empreitada não é nem rápida nem fácil. Deus começa a obra da
mesma maneira como fez com Abraão e Isaque. Cada promessa feita a Abraão e
Isaque é oferecida a Jacó:
20

• Posse da Terra Prometida (28.13).


• Descendentes (28.14).
• Ser bênção para todos os povos da terra (28.14).
• Presença divina ininterrupta (28.15).

As circunstâncias na vida de Jacó acentuam as consequências de querer


bênçãos sem oferecer uma fé obediente e sem ressalvas. Ao mesmo tempo
revelam que os propósitos e as promessas de Deus acontecerão, não
importando quão difícil seja seu cumprimento. Por exemplo, em algum
momento no futuro Jacó tem doze filhos e uma filha. Os doze filhos tornam-se o
começo das doze tribos de Israel e, dessa forma, o elemento catalisador para
Deus cumprir as promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó de que uma grande
nação descenderia deles. Jacó aprende, sem ter dúvida alguma, o significado de
possuir o direito de primogenitura e a bênção da família de Abraão.

Na seção de Gênesis 37 – 50 a família de Jacó vê-se diante de uma fome que


não poupa ninguém, imprevista e insuperável, o que significa a necessidade da
ajuda do Deus conhecedor do futuro, que prepara para a catástrofe e tem sob
seu controle pessoas, acontecimentos e a natureza. O fato da existência desse
Deus é a ênfase principal do restante de Gênesis.

Lutas na família e fome constituem o arcabouço improvável para os atos


preservadores do Senhor. Jacó mantém seu papel de portador da aliança
Abraâmica; contudo seu filho José que domina estes capítulos e no final salva a
família da catástrofe. Esta seção final de Gênesis dá sequência à ênfase do texto
na eleição, introduz a preocupação ininterrupta das Escrituras com o sofrimento
injusto, inicia o tema do livramento divino de Israel e, de modo conclusivo,
mostra que o Senhor cumpriu todas as promessas feitas a Abraão, Isaque e
Jacó.
21

4. AS QUATRO LINHAS DE ATUAÇÃO DE DEUS

O plano de Deus na história inclui Seu decreto de permitir o mal, Sua ação de
julgar o mal, o livramento do mal por meio de uma semente escolhida e o
decreto de abençoar os eleitos a quem libertou. O livro de Gênesis é a
sementeira de todas essas ideias nas Escrituras, elas encontram expressão
genuína nesse livro em que grandes divisões da humanidade estão
estabelecidas de acordo com seu relacionamento para o Deus que Se
autorrevela.

4.1. O DECRETO DE PERMITIR O MAL

“Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o
ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo". Gênesis 4.7

É preciso admitir que embora Deus jamais aceite responsabilidade pela prática
do mal, Ele é implicitamente afirma ser o autor da possibilidade de pecado pelo
simples fato de ter oferecido ao homem uma condição de obediência (2.8,9, 15-
17) pela qual a santidade de que o homem era dotado como criatura pudesse
ser exercida e desenvolvida. A presença e um animal que se rebela contra sua
posição na Criação e permite tornar-se um agente de uma vontade oposta à de
Deus é indicação de que o mal espreitava à porta da perfeita criação divina, mas
não fora de Seu conhecimento ou autoridade (cap. 3).

Assim, um conflito se estabelece. Caim e Abel e, depois, Caim e Sete são parte
desse conflito, que se alarga e aprofunda a ponto de incluir toda a humanidade
em Gênesis 6. Depois do Dilúvio, o conflito irrompe uma vez mais originando a
maldição dos cananeus.

Em última análise, este é um conflito entre a vontade rebelde das criaturas e a


vontade soberana do Criador, conforme evidenciado na torre de Babel, em que
o orgulho humano procura suplantar as intenções divinas para a humanidade na
terra.

O fator de desapontamento, que Moisés sem dúvida queria que seus leitores
percebessem para levá-los a depender de Javé, demonstra-se na maneira pela
qual o mal se insinua na linhagem escolhida:

• O incidente com Agar.


22

• As trapaças de Jacó e a alienação de Esaú.


• Vários incidentes de perversão moral, de desonestidade e de ódio dentro
do clã de Jacó.

Por meio de todas essas circunstâncias, Javé apontava para Si mesmo como a
única esperança de vitória sobre o mal, pois os patriarcas, na tarefa de dominar
o mal, haviam sido tão falhos quanto Adão, Caim e Noé (4.7).

4.2. A AÇÃO DE JULGAR O MAL

Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o


descendente dela; este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar".
Gênesis 3.15

Esta linha do plano de Deus encontra seu início no chamado protoevangelho de


Gênesis 3.15. O triunfo prometido da semente da mulher é o tema central, cujo
cumprimento é sempre aguardado no desenvolvimento do livro e, no entanto,
jamais se realiza, mesmo quando as possibilidades de escolha da semente se
limitam a uma das famílias no clã de Jacó.

O juízo de Deus contra o pecado aparece em todo o livro, desde as maldições


pronunciadas no jardim do Éden até a disciplina criativa imposta por José a seus
irmãos trapaceiros. Tal juízo, todavia, é sempre temperado com a misericórdia
de Javé, por meio da qual Suas criaturas caídas encontram graça e esperança.

4.3. A LIBERTAÇÃO DO JUÍZO PARA OS/PELOS ELEITOS

"Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e


você será uma bênção.

Gênesis 12.2

Vários incidentes em Gênesis ilustram esta parte do programa divino na História:

• O nascimento da Sete (4.25) em substituição a Abel aparece como o


primeiro exemplo, resultando na preservação do verdadeiro culto a Deus
no contexto de uma civilização pagã desenvolvida pelos descendentes de
Caim (4.16-24).
23

• A chamada de Noé do meio de uma geração incurável corrupta, para que


fosse o agente da preservação da raça humana do juízo universal do
Dilúvio (6.8).
• Quando a população da terra pós-diluviana se recusa a obedecer aos
mandamentos de Deus e é julgada com a divisão das línguas.

A chamada de Abraão (11. 27-12.3) oferece uma nova fase no plano redentor de
Javé. Plano que é desenvolvido é desenvolvido por meio de Isaque e Jacó, cuja
descendência é salva da miscigenação corruptora com os cananeus pagãos por
meio do agente final de libertação em Gênesis, José.

Uma vez que o livro termina com o registro da morte de José e de seu
sepultamento no Egito, Moisés tencionava que seus leitores percebessem que a
saga da Semente da mulher ainda não acabara e que a tarefa de libertar o
mundo do mal seria passada a outros instrumentos, até que a verdadeira
Semente surgisse na História.

4.4. O DECRETO DE ABENÇOAR OS ELEITOS

Então o Senhor disse a Abrão: "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e
da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. "Farei de você um
grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma
bênção. Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o
amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados"
Gênesis 12.1-3

Gênesis começa com uma progressão do caos (Gn 1.2) à benção, à medida que
toda criação divina é pronunciada boa, e o homem, como governante
mediatório de Deus, é abençoado com vitalidade e fertilidade com as quais deve
encher a terra e desfrutar Deus e sua criação (1.28-31).

A partir da Queda, benção e maldição coexistem, nunca pacificamente, e o mal


progride a ponto de quase eliminar a possibilidade de benção. A essa altura,
Javé intervém graciosamente e seleciona Noé como canal pelo qual a benção
divina fluirá para uma humanidade renovada (apesar de ainda corrupta).

Gradativamente, o decreto de abençoar vai adquirindo forma mais definida.


Sem é declarado herdeiro de um relacionamento especial com Javé (9.26), e sua
24

linhagem é escolhida para receber e mediar a bênção. Essa linhagem passa por
Héber a Terá, e desde a Abraão (11.20-26).

A essa altura, chega-se a um ponto culminante, e uma promessa específica de


bênção é anunciada (12.1-3); essa promessa é depois ampliada de suserania e
vassalagem (17.1-27), que prendem a bênção de Javé à semente de Abraão,
primeiro como recipiente, e depois como canal (12.3).

Fracasso do Homem Benção da parte de Deus


A Queda (Gn 3) A promessa da Semente (Gn 3.15)
O Dilúvio (Gn 6-8) A promessa de que Deus habitaria nas
tendas de Sem (Gn 9.25-27)
A Dispersão (Gn 11) A promessa de benção em escala
mundial (Gn 12.1-3).

Quando Gênesis termina, muitos temas teológicos estão firmemente fixados e


certamente tornou-se visível um retrato nítido de Deus:

• Ele é a única divindade que atua nesses relatos. Só Deus cria, de maneira
que só ele julga o pecado, chama, dirige e abençoa Abraão e seus
descendentes. Protege e livra em todas as circunstâncias o povo agora
chamado Israel.
• Esse Deus comunica-se com o povo, alternadamente emanando ordens,
fazendo promessas e dando orientação, e ele trabalha para tirar o pecado
que atribula toda a raça humana.
• Esse Deus não tem qualquer começo, rival, limites de tempo ou espaço,
falha moral, ou interesses ocultos.

Também se tornou visível um retrato da raça humana:

• As pessoas são feitas à imagem de Deus, mas assim mesmo não estão
satisfeitas com essa posição exaltada.
• Querem ser Deus no sentido de que desobedecem à palavra de Deus,
desse modo tentando apoderar-se da autoridade divina.
• Contudo também possuem a capacidade de ouvir as promessas divinas e
de agir com fé, e, por mais vacilante e míope que ela seja, ainda assim é fé,
não em imagens que se pode roubar e enterrar, mas no único Deus que
cria, comunica-se e redime.
25

• A raça humana está claramente no melhor de si quando seus membros


creem em Deus e, pela fé, obedecem aos padrões comunicados.

O Deus Criador é a única esperança da raça humana conseguir expressar


plenamente seu potencial, sujeitando a terra criada.
26

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.
Veremos hoje:
1. A TEOLOGIA DE ÊXODO

1.1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

1.2 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

2. O ÊXODO

2.1 O DEUS QUE VÊ E SE LEMBRA

2.2 O LIVRAMENTO DIVINO

3. O POVO NO DESERTO

3.1 OS PADRÕES REVELADOS

3.2 O DEUS QUE HABITA COM ISRAEL

3.3 O INCIDENTE DO BEZERRO DE OURO

3.4 ANTEVISÃO DE CRISTO EM ÊXODO

4. AS QUATROS LINHAS DE ATUAÇÃO DE DEUS

4.1 O DECRETO DE PERMITIR O MAL

4.2 A AÇÃO DE JULGAR O MAL

4.3 A LIBERTAÇÃO DO JUÍZO PARA OS/PELOS ELEITOS

4.4 O DECRETO DE ABENÇOAR OS ELEITOS


1

1. TEOLOGIA DE ÊXODO

1.1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Êxodo é um livro de libertação e estabelecimento. Nessa porção das Escrituras,


a aliança estabelecida em Gênesis com os patriarcas se transforma na aliança da
história de Israel, à medida que Javé irrompe no tempo e no espaço a fim de
libertar Israel do cativeiro e estabelecê-lo como nação com uma regra de vida
para a existência em Canaã e com a presença de Deus em seu meio.

O título do livro é uma palavra grega ἔξοδος, éxodos que significa “partida”,
“saída”. Deriva de ek, “para fora de”, e hodos, “entrada”. O título em hebraico
corresponde às primeiras palavras do texto original ‫ ִמצ ְָריְמָה‬,‫ ַה ָב ִאים‬e significa “estes
são os nomes de” (BÍBLIA PALAVRAS CHAVE).

A ênfase principal do livro de Gênesis estava na família de Abraão, mas Êxodo


concentra-se no desenvolvimento da nação de Israel. Empregam-se Abraão,
Isaque, Jacó e José como lembretes do que já aconteceu e ainda ocorrerá. Ao
mesmo tempo, Deus usa novas pessoas, como Moisés, Arão, Miriã, o faraó e
outros, para fazer a história e a revelação avançar. Novas questões teológicas
também surgem, como o papel da instrução divina, ou lei, na vida de Israel e de
outras nações, a natureza da escolha divina de Israel como povo especial e o
meio de conseguir perdão para o pecado.

• Data e autoria

Há abundante evidência de que Moisés foi o autor do livro de Êxodo. Passagens


como 17.14; 24.4; e 34.27 claramente afirmam isso. Além do mais, Josué 8.31 faz
referência ao mandamento de Êxodo 20.25, conforme “escrito no Livro da Lei
de Moisés”. Ainda mais importante, o Senhor Jesus Cristo fez referência a
passagens de Êxodo como se tivessem de fato sido escritas por Moisés (Mc 7.10;
12.26).

O texto indica que o autor estava muito bem familiarizado com os eventos e os
lugares mencionados no livro. Detalhes como a forma, a cor e o sabor do maná
(16.31), o fato de que os filisteus ocupavam a faixa litorânea entre o Egito e
Canaã (13.17) e a menção de animais e plantas encontrados na península do
2

Sinai e próximo a ela (25.5) sugerem que o autor de Êxodo foi contemporâneo
dos eventos que descreveu.

A questão da data, uma vez aceita a autoria mosaica, dependerá da data


preferida para a saída do Egito. Vamos utilizar a data recuada em torno de 1445
a.C. para o êxodo.

• Características Literárias

Ao contrário de Gênesis, Êxodo não possui um arranjo literário fácil de perceber.


O livro contém três narrativas (caps. 1-18, 32-34 e 39.32 -40.38) e duas seções
legais (19.1 – 31.18 e 35.1 – 39.31), caracterizando assim os interesses históricos e
legal que deram a Israel sua estrutura nacional básica.

Para o autor Carlos Osvaldo, a mensagem de Êxodo pode ser resumida da


seguinte maneira:

A preservação do relacionamento entre Javé e Israel como nação


escolhida exigia a libertação do povo do cativeiro e sua obediência
corporativa a Ele mediante as estipulações da aliança mosaica (PINTO,
2006).

1.2. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Se Gênesis foi a sementeira para os conceitos que resumiam a concretização


dos propósitos de Deus na história da humana, Êxodo poderia ser retratado
como o veio do qual se extraíram as joias teológicas do Antigo Testamento no
que diz respeito ao caráter de Deus e ao Seu relacionamento com o povo
escolhido. As constantes referências dos profetas ao livro e seus eventos são
provas suficientes desta afirmação. No livro de Êxodo, alguns dos atributos e
manifestações mais marcantes de Deus são os seguintes:
3

• Deus é soberano

Exemplos desta afirmação são numerosos em Êxodo. O crescimento numérico


dos israelitas sob opressão (1.12), a sobrevivência de Moisés e sua adoção pela
filha de Faraó (2.10), bem como a flagrante obstinação de Faraó, são exemplos
que antecedem ao êxodo. Mais tarde o afogamento do mais poderoso exército
da terra (15.22 – 16.18) revelam em grande escala o poder e a autoridade de
Javé. Sua soberania também se manifesta, com o diminuto maná que não caía
no sábado (16.26,27) e apodreceria quando deixado sem cozinhar do sexto para
o sétimo dia.

• Deus é Santo

Isto se vê no fato de que o próprio solo em que sua autorrevelação acontece é


declarado santo (3.5). A santidade de Deus é demonstrada no padrão moral de
Sua aliança e na separação e obediência exigidas de Seu povo (19.6). A Lei
oferecia uma expressão verbal da santidade de Deus, ao passo que o
tabernáculo uma expressão visual da mesma que se aproximava de sede da
glória residente, o Santo dos Santos.

• Deus é justo

A santidade divina se manifesta em justos juízos contra aqueles que violam a


expressão de Seu caráter e vontade, quer revelada oralmente perante Faraó,
quer gravada em placas de pedra. Mesmo Moisés em sua crença relutante,
incorre na ira santa de Javé (4.14). Os exércitos do Egito são afogados pela
manifestação da ira de Javé (15.8-12), e o povo da aliança é severamente
disciplinado quando seu comportamento viola as recém-outorgadas “Palavras”
que resumiam a vontade moral de Javé para o Seu povo (32.7-10, 25-35).

A justiça de Deus é, assim, relacionada a Seu zelo (25.4; 34.14). O caráter santo
de Deus e Sua reputação perante o mundo não podem ser tratados
levianamente.

• Deus é apaziguável

As ideias de justiça e da ira de Deus podem comunicar a impressão de que não


há esperança para o indivíduo ou grupo que deixe de cumprir Seus padrões. O
4

termo apaziguável é aqui empregado intencionalmente para indicar a interação


da ira santa e da graça misericordiosa de Javé.

Mesmo Faraó, o gentio e idólatra, reconhece que o Deus dos hebreus pode ser
abordado em busca de misericórdia (10.16,17). Quando Israel pecou gravemente
em idolatria e imoralidade, o furor da ira de Javé (32.9,10) teria consumido toda
a nação, a não ser pela humilde intercessão de Moisés (32. 11-14). Mais adiante, o
livro de Levítico apresentará em detalhes a maneira precisa pela qual um
israelita crente se aproxima de Javé para obter propiciação. Este ato de tornar
Deus favorável nunca foi um simples suborno em Israel; Deus impunha as
condições e oferecia os meios; Israel tinha apenas de responder em fé.

• Deus é autoexistente

Disse Deus a Moisés: "Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu
Sou me enviou a vocês.” Êxodo 3.14

A revelação concernente ao nome Javé (3.14) não está completamente clara


para os estudiosos bíblicos. A expressão em hebraico ‫ ֶא ְהי ֶה אֲ שֶר ֶא ְְה‬que significa “Eu
Sou o que Sou”, parece estar intimamente relacionada ao nome pessoal de
Deus, Javé (6.3; ou Yahweh, ou YHWH, que aparece mais de seis mil vezes no
Antigo Testamento. Contudo, a forma abreviada de Yahweh é Yãh,
frequentemente traduzida por “Senhor”). Assim, o significado de Javé não está
completamente claro para os teólogos, ainda que parece sugerir a
atemporalidade de Deus, que é origem de toda a existência.

Para o autor Carlos Osvaldo, a expressão “Eu Sou” não introduziu um nome
novo, pelo menos no que diz respeito ao sentido denotativo da palavra. A
novidade estava no sentido conotativo, pois Javé, o Deus que sempre era e
seria, entrava na História para demonstrar que “se lembrava” de Seus
compromissos passados.

As implicações possíveis dessa frase, ainda que enigmática, são a soberania de


Javé em revelar-Se ao homem e a singularidade de Javé como Deus que
realmente existe.
5

2. O ÊXODO

Ouviu Deus o lamento deles e lembrou-se da aliança que fizera com Abraão,
Isaque e Jacó. Deus olhou para os israelitas e viu qual era a situação deles.
Êxodo 2.24,25

Provavelmente nenhum outro evento na história de Israel rivaliza com o Êxodo


em sua importância teológica. Esse livramento histórico do povo escolhido de
Deus atua como paradigma maior da salvação, sendo tanto a evidência do amor
divino por Israel quanto, no restante das Escrituras, estímulo à obediência
amorosa por parte do povo de Deus.

A magnitude do evento é acentuada pela luta precedente e pelos desafios


seguintes. Desse modo o valor maior desse acontecimento vem à tona mediante
a análise teológica cuidadosa que vincula Gênesis e Êxodo e comenta sobre
como Êxodo faz a história bíblica avançar.

2.1. O DEUS QUE VÊ E SE LEMBRA – ÊXODO 1-4

Êxodo começa esperançoso. Conquanto Israel continue no Egito, o povo


prospera e cresce, tornando-se um grande grupo em seu país adotivo (1.1-7).
Essa expansão numérica dos clãs dos doze filhos de Jacó cumpre a promessa
divina a Abraão de multiplicar seus descendentes até que mal se consiga contá-
los. Desse modo deve-se ler os versículos iniciais como uma afirmação teológica
da fidelidade, bondade e provisão constantes de Deus para com Abraão, Isaque
e Jacó.

Infelizmente logo o sofrimento entra de novo na história e, desta vez, alcança


todo o Israel. Essa reviravolta nos acontecimentos começa com a ascensão de
um novo faraó sem quaisquer laços com José (1.8). Esse faraó provavelmente
pertence a uma etnia diferente da do faraó de José, possuindo objetivos
políticos e econômicos diferentes e julgando os israelitas uma ameaça à
segurança nacional (1.9,10).

1. Procura limitar seu crescimento, escravizando-os, mas conseguindo


apenas aumentar-lhes o número.
2. Ordena a morte de todos os meninos israelitas recém-nascidos, plano
frustrado por parteiras tementes a Deus (1.17).
6

Mesmo em meio a dias terríveis, o povo não é abandonado por Deus. Como nas
narrativas de José, aqui o sofrimento é real e ameaçador, contudo isso não
significa que o Criador, o Deus que promete, dirige e livra, tenha perdido poder
ou se deparado com um adversário indestrutível, seja ele natural, humano ou
divino. Entretanto, o sofrimento tem seu papel aqui, conforme demonstrado em
relatos subsequentes. Não dissuadido, o faraó ordena que cada menino israelita
seja atirado no rio Nilo (1.22).

Apesar da aparente falta de solução para esta situação terrível, o cânon já deu
dicas de que este dilema será resolvido. De acordo com Gênesis 15.13-16, depois
de Abrão crer em Deus e de essa crença ter sido considerada justiça (15.6) e
depois de Abrão perguntar como poderá saber que Canaã será dada a seus
descendentes (15.8), Deus revela o futuro para Abrão, contando-lhe que seus
descendentes viverão quatrocentos anos num país estrangeiro, sofrendo
durante parte desse tempo (15.13). Mas, depois disso sairão daquela terra (15.14).
Com base nessa informação, a dor do povo não é sem propósito. O sofrimento é
definitivamente terrível, contudo funciona como as dores de parto de uma
nação.

Essa conscientização canônica não minimiza o problema do sofrimento injusto


mais do que a crença de José de que sua dor ocorreu por um motivo redentor
(Gn 50.20), mas demonstra que Deus ainda está com o povo da aliança.

Duas questões teológicas, o livramento de Israel do Egito e seu reassentamento


em Canaã e o sofrimento de Israel, agora dão estrutura ao relato. Em meio a
essas duas questões surge alguém que se revela fundamental na solução dos
dois assuntos, Moisés.

O plano de Javé para a libertação de Seu povo incluía a preparação de um líder


capaz (2.1 – 4.31).

1. O nascimento e a proteção sobrenatural de Moisés lhe trouxeram, ao


mesmo tempo, uma criação hebraica e instrução na corte egípcia.
2. A preparação de Moisés para a liderança exigia um “treinamento no
deserto” de Midiã por quarenta anos (2. 11-22).
• A preparação de Moisés incluía a rejeição da sua primeira tentativa
de providenciar livramento (2.11-14).
7

• A preparação de Moisés incluía a ruptura com a vida e costumes


egípcios, quando Faraó tentou matá-lo por traição (2.15).
• A preparação de Moisés incluía a adoção de um estilo de vida
nômade, como homem casado e pastor em Midiã (2.16-22).

A resposta de Javé à opressão crescente aos israelitas foi Sua revelação a


Moisés e o chamado para que ele se tornasse o libertador de Israel (2.23 – 4.17),
chamado que acontece em Horebe, onde Javé Se manifesta a ele como o Deus
da aliança (3.1-10). Em Horebe:

• A singularidade de Javé é revelada na extraordinária visão da sarça


ardente.
• Javé Se apresenta como o Deus da aliança patriarcal, preocupado e
envolvido com Seu povo para cumprir Suas promessas feitas a esse povo.
• Moisés é designado como enviado de Deus a Faraó para libertar os
israelitas.

No encontro de Moisés com Javé destaca-se a referência feita a santidade:


Então disse Deus: "Não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em
que você está é terra santa" (3.5). Essa referência à santidade dá início à
generalizada ênfase da Lei à santidade divina, à santidade do povo e à natureza
da santidade na adoração.

Em seu uso mais simples a palavra santo significa “separado para um propósito
específico”, “diferente” ou “singular”. Aqui aplicam-se essas definições básicas,
visto que o próprio lugar é “singular” ou “separado” pela própria existência do
arbusto extraordinário. Outros lugares, especialmente os “separados” para ser
locais de adoração, serão chamados santos mais tarde no livro (25 -31;35-40).

Contudo, o que realmente torna santo o lugar é o fato de Deus estar ali, falando
com Moisés, afirmando ser o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Assim como Deus
“esteve com” essas pessoas, agora Deus “está com” Moisés, tornando a
presença divina conhecida e sentida por meios visuais e auditivos (3.6).

É claro que o chamado divino surpreende Moisés. Este faz duas perguntas que,
na prática, são motivos pelos quais Deus não deveria tê-lo escolhido.

Primeira pergunta: “Quem sou eu para apresentar-me ao faraó e tirar os


israelitas do Egito?” (3.11).
8

A resposta divina estabelece vínculos canônicos entre Abraão, Isaque, Jacó e


Moisés. Como em Gênesis 17.4 (Abraão), 26.3 (Isaque) e 28.15 (Jacó), o Senhor
compromete-se a “estar com” Moisés, com o significado de que,
semelhantemente aos patriarcas, a missão de Moisés não pode resultar em
fracasso.

A presença divina assegura sustento e sucesso. Na hipótese de esta promessa


não ser suficiente para Moisés, ele também recebe um sinal: após o livramento
de Israel o povo adorará neste mesmo monte de revelação, promessa e
chamado (3.12). Tais promessas requerem fé por parte de Moisés, assim como as
promessas feitas aos patriarcas a exigiram. Promessa e fé estão
inextricavelmente ligadas. Está claro que a questão não é quem é Moisés, mas
quem estará com Moisés.

Segunda pergunta: "Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O


Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é
o nome dele?’ Que lhes direi? " Disse Deus a Moisés: "Eu Sou o que Sou. É isto
que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês" (13,14).

A revelação do nome de Deus enfatiza a presença divina ativa, criadora,


constante e acessível na história humana concreta. Assim como Deus dirigiu,
abençoou e corrigiu Abraão, Isaque e Jacó, da mesma maneira ele agora
pretende trabalhar na história diária de Moisés e seus contemporâneos.

Síntese Canônica: “Eu Sou”

O Antigo Testamento também emprega o nome Yahweh e as expressões “Eu


Sou”, “Eu sou Yahweh” e “Eu, o Senhor, [...] sou eu mesmo” de maneira bastante
reminiscente de Êxodo 3.14.

Por exemplo, Deuteronômio 32.39 cita Deus dizendo: “Vejam agora que eu sou
o único, eu mesmo. Não há Deus além de mim”. Essa declaração separa o
Senhor dos chamados deuses, que não possuem qualquer poder para salvar
seus adoradores (Dt 32.39). Essas afirmações monoteístas aparecem no final da
carreira de Moisés e desse modo funcionam, junto com seu chamado, como
parênteses que demarcam a teologia mosaica.

Autores posteriores não têm dúvida alguma de que Yahweh é o único Deus que
Moisés tem em mente em qualquer de seus ensinos.
9

• Oséias 13.4 e Joel 2.27 afirmam que Yahweh é o Deus de Israel porque
Yahweh libertou o povo e, na verdade, não existe nenhum outro deus para
libertar ou livrar quem quer que seja.
• Isaías, forja as conexões mais próximas com os textos mosaicos. Algumas
passagens dessa profecia apresentam atributos específicos de Yahweh na
primeira pessoa, num linguajar semelhante ao de Êxodo 3.14. Duas dessas
declarações incluem a expressão literal: “Eu sou Yahweh [...] eu sou ele
mesmo” (Is 41.4; 43.11-13), ao passo que a outra traz “Eu sou Yahweh”
(45.18). Os outros cinco textos (43.25; 46.4; 48.12,13; 51.12; 52.6)
apresentam o Senhor dizendo, numa tradução também literal, “eu sou ele
mesmo”, embora o fato de que esses versículos citem Yahweh signifique
que a identidade divina está subentendida.

O Novo Testamento emprega as afirmações de Êxodo e Isaías sobre Yahweh


como o “Eu Sou” para realçar a unidade de Jesus com o Pai e a natureza pré-
existente de Jesus.

Quando indagado em Marcos 14.61 se ele é o Messias prometido, Jesus responde


“Eu Sou”, um equivalente verbal direto de Êxodo 3.14. Jesus passa então a
afirmar que reinará com Deus (Mc 14.62). Em face disso os líderes judeus
acusam-no de blasfêmia, uma indicação clara de que, no entendimento deles,
tais afirmações mostram que Jesus acredita que ele próprio é igual a Deus.

O evangelho de João é ainda mais específico neste ponto. Em João 8.24,28


Jesus diz duas vezes “Eu Sou”, o que ressoa o uso messiânico daquela
expressão. Aqui a declaração de Jesus “Eu Sou” inclui a afirmação de que ele
julgará o mundo depois de sua morte, ressurreição e ascensão. Quando
pressionado a declarar sua identidade, assim como aconteceu com Yahweh na
história de Moisés, e quando conclamado a declarar como Abraão poderia crer
nele, Jesus assevera: “Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão
existisse, Eu Sou” (Jo 8.58).

2.2. O LIVRAMENTO DIVINO – ÊXODO 5-17

Embora extremamente relutante a princípio, Moisés é persuadido a voltar ao


Egito como representante de Javé com uma dupla missão: revelar a Israel a
nova maneira pela qual Javé se relacionaria com a nação, como “Eu sou o que
sou”, o Deus, que faz aliança, e para exigir que Faraó liberte os israelitas.
10

Seu retorno ao Egito é marcado, conforme Javé predissera, pela oposição de


Faraó, uma vez que o propósito de Javé era demonstrar-Se superior aos falsos
deuses do Egito, educando assim Israel no monoteísmo depois de quatrocentos
anos de exposição ao denso politeísmo no Egito. Este objetivo foi alcançado por
uma série de calamidades que atingiram o Egito em um intervalo de
aproximadamente um ano, despedaçando a economia do império egípcio e
expondo a impotência dos deuses egípcios.

A completa humilhação do Egito vem por meio de uma série de dez


julgamentos com os quais Javé demonstra Sua superioridade sobre os deuses
do Egito (7.6 – 11.10).

PRAGAS HUMILHAÇÃO ASSOCIAÇÃO


CONTRA

Rio Nilo em sangue deuses khnum; Hapi; O rio que sustentava


Osíris; Neith e a vida do Egito
Hathor.

Das Rãs deusa Heqt Prosperidade

Dos Piolhos deus Seth e Purificação


sacerdotes

Das Moscas deuses Uatchit Beleza e proteção

Dos Animais deuses Ptah; Apis; Propriedades


Hathor;Minevis; Rá pessoais

Das Úlceras deuses Sekmet; deuses de cura


Imhotep

Granizo deuses Nut; Osíris; Propriedade na


Seth agricultura

Dos Gafanhotos deuses Nut e Osíris Proteção à


agricultura

Das Trevas deuses Ra; Hórus e deus do sol, estrelas


Nut e lua

Dos Primogênitos Faraó Herança do trono e a


crença do deus-rei

O plano de libertação de Javé para a libertação de Seu povo incluía a


celebração do livramento por meio de um sacrifício vicário na ocasião em que o
juízo divino (a décima praga) era sentido em todo o Egito.
11

• As instruções para escapar do juízo da morte dos primogênitos envolvem


um sacrifício vicário de um cordeiro cujo sangue, esfregado nos umbrais
das portas, assinalaria a proteção divina contra a morte naquela casa,
onde a Páscoa havia sido celebrada (12.1-13).
• As instruções para a celebração do livramento oferecido por Deus
incluíam uma festa de sete dias de duração (a festa dos pães ázimos)
depois da Páscoa (12.14-20).
• A celebração da Páscoa é descrita e prescrita como memorial perpétuo
(12.21-39).
• O cumprimento das predições divinas de libertação do Egito com a
riqueza da terra acontece quando todos os primogênitos do Egito
morrem (12.29-36). A morte dos primogênitos criou o caos em todo o
Egito.

Após as dez pragas produzirem a soltura de Israel, sinais miraculosos dirigem os


passos do povo enquanto dirigem-se para a Terra Prometida (13.20-22).
Transportando os ossos de José consigo, Moisés e seus seguidores partem, mas
são seguidos pelo faraó, cujo coração endurece uma última vez (14.5-9).

Quando os egípcios se aproximam, Moisés pede ao povo que creia, que tenha fé
de que Deus livrará uma última vez (14.13,14). De forma conclusiva Deus
pretende demonstrar sua identidade (14.18) e atinge esse objetivo ao dividir o
mar, permitindo assim que Israel atravesse intacto e então afogando no mar os
egípcios em perseguição (14.19-30). Este milagre derradeiro inspira temor, fé e
obediência no povo (14.31).

A jornada do mar de Juncos ao Sinai é marcada pela provisão fiel de Deus a


despeito das atitudes lamentáveis de Israel (15. 22 - 17.1-7).

• Javé fielmente provê água potável e promete bem-estar como


recompensa pela obediência depois da nação extravasar sua frustação
contra Moisés pelas águas amargas de Mara (15.22-27).
• Javé fielmente provê codornizes e maná em resposta à murmuração do
povo pelos alimentos de sua escravidão no Egito (16.1-36).
• Javé pacientemente proveu água saída da rocha para o povo a despeito
de sua obstinada murmuração contra Ele e Moisés (17. 1-7).
12

3. O POVO NO DESERTO

“Agora, se me obedecerem fielmente e guardarem a minha aliança, vocês serão


o meu tesouro pessoal dentre todas as nações. Embora toda a terra seja minha,
vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. Essas são as
palavras que você dirá aos israelitas". Êxodo 19.5,6

3.1. OS PADRÕES REVELADOS – ÊXODO 19 – 24

Estes capítulos descrevem um dos grandes momentos de definição da história


israelita e das teologias do Antigo Testamento. Deste ponto em diante a história
de Israel é, na realidade, um mero comentário sobre o grau de fidelidade com
que Israel aderiu a essa vocação outorgada no Sinai. O que Deus e Israel dizem
aqui une linhas de pensamento retentivos que anteriormente apareceram no
cânon e ao mesmo tempo estabelece a direção futura do povo escolhido.

Com base no que vem ocorrendo desde a época dos patriarcas Javé explica, no
Sinai, o futuro de Israel. Deus escolheu Israel, toda a casa de Jacó, sustentou-os
e ajudou-os a se multiplicar num grande povo, agora libertou-os do Egito e
trouxe-os para perto de si (19.4). Em outras palavras, a graça de Deus criou um
relacionamento especial entre Israel e Javé que permite aos israelitas conhecer
e experimentar o poder e a presença do Senhor. Fica claro que a ação de Deus e
o relacionamento divino-humano são intencionais e inseparáveis.

O propósito e a função desse relacionamento

1. Deus anuncia que o propósito do relacionamento é estabelecer uma


aliança com toda a nação (19.5).

Anteriormente Deus fizera aliança com Noé (v. Gn 9.8-11) e Abraão (v. Gn 12.1-9;
Êx 2.23-25). Agora, sem tirar nada das promessas feitas a Abraão, Javé esforça-
se por ter uma amizade especial não apenas com uma só pessoa ou com um
único clã, mas com toda uma nação constituída de descendentes de Abraão.

A aliança vem com certas obrigações, da mesma forma como exigiu-se fé, ação
e dedicação quando Abraão abraçou a aliança com Yahweh (v. Gn 12.1-9; 15.6;
22.1-11). Por isso, a aliança de agora tem grande semelhança com alianças
anteriores baseadas na fé e voltadas para a obediência.
13

2. Deus declara que a função da aliança é separar Israel como uma nação
que pode mediar a identidade divina para todas as famílias da Terra.

Pelo fato de toda a terra pertencer a Javé Israel será “um reino de sacerdotes e
uma nação santa” (19.6). Todas as três expressões “tesouro pessoal”, “reino de
sacerdotes” e “nação santa” referem-se a promessas prévias de Deus a Abraão.
Os israelitas são escolhidos em Abraão (“tesouro pessoal”; Gn 12.1-9).

Dentre toda a terra Abraão foi chamado para participar da redenção humana; o
mesmo ocorre com Israel. Os israelitas aceitam essa oportunidade de
desempenhar sua função ministerial redentora ao extrair forças de seu
relacionamento singular com o Javé (19.7,8).

Depois de relembrar a natureza do caráter divino e de assinalar claramente o


propósito e função de Israel dentro da aliança proposta, os conteúdos iniciais da
aliança são declarados.

Deus começa os Dez Mandamentos, vinculando os padrões revelados no Êxodo.


O Deus que redimiu Israel oferece agora a instrução básica consequente da
aliança (20.1,2). A ordem dos mandamentos é relevante do ponto de vista
teológico.

Dos dez, os dois primeiros, os que têm a ver com a singularidade de Deus, são
os mais importantes, pois a menos que eles sejam observados e até que o
sejam, todos os outros não têm verdadeira relevância.

O terceiro mandamento lida com um aspecto, ou representação, de Deus e


forma uma ligação com a observação do sábado, um momento de introspecção
e celebração no qual o povo de Deus reflete a respeito dele e de suas obras.

Os últimos sete mandamentos são de natureza mais interpessoal, começando


com o reconhecimento apropriado da posição e da autoridade dos pais e, a
seguir, passando cada vez mais da transgressão evidente e objetiva em relação
outros seres humanos à atitude puramente interna, ou subjetiva, em relação a
eles no décimo mandamento, cobiçando e desejando o que não tem ou não
pode ter.
14

Figura 3.1 - Infográfico Os 10Mandamentos. Fonte: Voltemos ao Evangelho (2016).

O decálogo (Êx 20.1-17) é a primeira parte do Livro da Aliança (Êx 20.18—


23.33). O restante dele consiste dos princípios da aliança que explicam e
aplicam os princípios enunciados nos mandamentos. As instruções variam de
assunto e conteúdo e estão agrupadas em quatro amplas categorias.

1. A lei do altar (20.23-26)


2. Os juízos (21.1—22.20)
3. Mandamentos e deveres morais (22.21—23.9)
4. Temas sabáticos e calendário de festas (23.10-19)

As exigências da aliança divina vêm acompanhadas de promessas. Como


retribuição à sua fé e obediência, Israel receberá a Terra Prometida há muito
tempo (23.20-33). Uma vez mais o elemento chave para o recebimento da
15

promessa é aderência exclusiva a Javé (23.24,32,33), pois só Javé consegue


operar os milagres necessários para alcançar sucesso (23.20-23,27).

Síntese Canônica: Os padrões básicos da aliança

Não há como descrever adequadamente as implicações canônicas de Êxodo


19—24. Todos, Moisés (Dt 5.6-11), Jeremias (Jr 7.1- 15), Jesus (Mt 5—7), Pedro
(1Pe 2.9) e qualquer outro escritor bíblico que tenha algo a dizer sobre aliança,
moralidade e relacionamento com Deus argumenta direta ou indiretamente
sobre esta passagem. O mesmo vale para boa parte do restante do Pentateuco,
tão basilares que são esses capítulos para a teologia bíblica. Sendo assim,
destacaremos três questões essenciais:

1. Jesus resume a lei, citando Levítico 19.18 e Deuteronômio 6.4-9 (Mc 12.29-
31; Mt 22.34-40). Aliás, ele afirma que “destes dois mandamentos
dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.40).
2. Paulo enfatiza que a lei põe à mostra o pecado humano, assim revelando a
necessidade que cada um tem de salvação divina (Rm 7.7-25; G1 3 e 4).
Sem dúvida alguma, Paulo em particular capta o uso que os profetas
fazem da aliança.
3. Vários salmos, mas mais ostensivamente o salmo 119, comemoram a lei
como uma dádiva em vez de queixosamente considerarem-na um peso.
Para o escritor do salmo 119 a lei oferece direção, força, pureza e
confiança. Ela corrige, mas também dá alegria e oferece provas da
compaixão de Javé (SI 119-156).

Não há dúvida de que a lei se torna um peso quando alguém não a guarda no
coração (Dt 6.4-9; Mq 6.6-8) ou substitui a fé pela lei como o fundamento do
relacionamento com Deus (Rm 9.31,32). Mas, corretamente compreendida, a lei
é a graça de Deus para uma raça humana aflita por um já milenar problema do
pecado, o qual ela não consegue resolver. A própria gênese da lei é a graça,
pois é instituída por Javé, que tirou Israel do Egito com base não no mérito
intrínseco de Israel, mas antes com base nas promessas de Javé a Abraão (Êx
2.23-25). Os que tentam tornar a aliança apenas uma obrigação não entendem o
que o cânon fez a esta altura do relato.

3.2. O DEUS QUE HABITA COM ISRAEL – ÊXODO 25-31


16

Esta seção de Êxodo fornece instruções preliminares sobre o centro de


adoração, os sacerdotes ministrantes ali e as razões para a existência do centro
e dos sacerdotes. São essas razões que importam mais para a teologia do
Antigo Testamento. A principal dentre elas é que Deus habitará no meio do
povo escolhido, isto é, estará com ele. Todos os demais detalhes sobre o centro
de adoração e o sacerdócio derivam deste tema. Outros dois conceitos marcam
os vários tópicos principais nesses capítulos.

• A santidade do Deus que habita e a santidade do povo que adora.


• O valor da comunhão entre o povo e seu Deus.

Deus ordena que Moisés levante uma oferta para construir um tabernáculo, cujo
propósito será o de ser um símbolo visível de que Deus habita no meio deles
(25.1-8). Esse tabernáculo deve ser exatamente com o modelo revelado por
Deus (25.9), de maneira que se compreenda e se experimente verdadeiramente
a presença de Deus.

Três utensílios de adoração do tabernáculo:

• A arca do pacto e seu propiciatório são descritos e apresentados como o


lugar onde o testemunho da aliança seria guardado e Javé Se manifestaria
a Israel.
• A mesa dos pães da presença é descrita e apresentada como o lugar onde
Israel se consagraria a Javé e se declararia dependente de Sua provisão.
• O candelabro que representava a vida que Deus dava a Israel.

Sempre que o povo via essa área de adoração, era lembrado de que Deus mora
no meio do povo escolhido. Israel viu o suficiente do poder de Deus no Sinai
para saber que Javé não habita nem precisa habitar no santuário. É impossível
limitar Deus a um lugar. Deus pode escolher morar num lugar por causa de um
desejo misericordioso de relacionar-se com pessoas, mas é prerrogativa Dele
fazê-lo ou não. Assim, este local da presença tinha o propósito de assegurar a
Israel do compromisso contínuo e voluntário que Deus tem com eles.

Instruções quanto aos sacerdotes:

A família de Arão é escolhida como a família sacerdotal. Tinham a


responsabilidade de fazer o tabernáculo funcionar e de transportá-lo de um
lugar a outro enquanto Israel viaja. Suas vestimentas eram apropriadas para seu
17

trabalho e simbólicas de sua posição e foram empossados permanentemente


como sacerdotes de Javé (29.1-9).

Como sacerdotes permanentes ofereciam sacrifícios pelos próprios pecados e


pelos pecados do povo (29.10—30.10). Assim como Moisés media a presença de
Deus ao apresentar os padrões revelados de Javé, de igual forma Arão e os
filhos mediarão a presença de Deus ao retirar a barreira de pecado, que existe
entre o Deus infalivelmente santo e a raça humana infalivelmente imperfeita.

Por que Deus chama sacerdotes? Por que Deus capacita homens para construir
o centro de adoração e fabricar seus utensílios (31.1-11)?

• Deus separa sacerdotes para que Israel conheça seu Deus e tenha certeza
de que Yahweh não os deixou sozinhos (29.44,45).
• Deus quer que o povo escolhido saiba ter sido escolhido, resgatado do
Egito e trazido até este momento de sua história a fim de que Javé, o Eu
Sou, veio “habitar no meio deles” (29.46).
• O Criador, sustentador e redentor de todas as pessoas e coisas criadas,
sustentadas e redimidas deseja ter comunhão e amizade com Israel.
• Tudo o que ocorreu de Gênesis 12 a Êxodo 31 foi feito para restaurar a
interação entre Deus e os homens, perdida em Gênesis 3.

3.3. O INCIDENTE DO BEZERRO DE OURO

Israel interpreta que os quarenta dias de ausência de Moisés, período em que ele
esteve no monte (Êx 24.18), indicam que ele talvez não volte (32.1). Assim
pressionam Arão a fazer deuses “de verdade”, deuses que eles podem ver, que
eles podem adorar (32.1). É interessante ver que aqui há um pedido do povo de
que fosse feito um bezerro, mas eles remetiam ao próprio Deus que havia tirado
o povo do Egito. Não se trata de uma substituição, mas de uma contaminação.
Obviamente, está conectado aos deuses egípcios. Arão cede (32.2-4), anuncia
que o ídolo resultante é o deus que fez Israel sair do Egito (32.4) e anuncia uma
festa que se transforma em total decadência (32.5,6). O povo escolhido
esqueceu-se de quem o resgatara e voltou atrás em sua promessa de cumprir a
aliança. Eles quebraram pelo menos os três primeiros dos Dez Mandamentos.
18

Adorar ídolos também leva a outros pecados (32.6). Amnésia e rebelião


espirituais instalaram-se depois de apenas poucas semanas. Essa é, nos
acontecimentos humanos, a natureza bastante resistente do pecado.

A idolatria e a imoralidade que se seguiram à fabricação do bezerro de ouro são


provenientes da familiaridade com os ídolos e rituais egípcios.

A intercessão de Moisés baseada no caráter de Javé e em Sua aliança com os


patriarcas, evita o derramamento da justa ira divina sobre Israel.

A ira de Yahweh é justificada? Tal ciúme (Êx 20.4-6) é apropriado a um Deus


santo?

A resposta é afirmativa por pelo menos três motivos básicos:

1. Javé redimiu Israel e merece ser obedecido nas condições estabelecidas


por Deus e não pelos homens (Êx 20.1,2).
2. O ciúme é apropriado quando protege um relacionamento válido de uma
desagregação prejudicial, o caso aqui.
3. Israel adorar qualquer outro deus é adorar o vazio, nulo, inexistente.

Por isso, qualquer medida que Javé tome para ajudar os israelitas ou quem quer
que seja a adorar o Deus descrito no cânon equivale à misericórdia. Adorar
ídolos é, na melhor das hipóteses, perda de tempo. Na pior delas é um insulto ao
único Deus verdadeiro e constitui uma forma de maltratar-se intelectual e
espiritualmente. O ciúme de Javé opera claramente a favor de Israel, não sendo
fruto de irascibilidade.

3.4. ANTEVISÃO DE CRISTO EM ÊXODO

Apesar de Êxodo não apresentar profecias claras acerca de Cristo, é farto em


tipos que prefiguram a pessoa e obra do Salvador.

• Moisés tipificou Cristo de diversas maneiras: sacrificou sua posição real a


fim de libertar o povo (Fl 2.5-10; Hb 11. 24-26); foi rejeitado por seu povo a
princípio, tendo sido mais tarde recebido como libertador e governante
(At 7.35); teve posição singular de profeta e sacerdote (Dt 18.15; Êx 24.6).
• Arão, o sumo sacerdote, tipificou Cristo em muitos aspectos do
sacerdócio (Hb 5 e 7).
19

• O cordeiro da Páscoa foi, no Antigo Testamento, um notável tipo de


Cristo como Cordeiro de Deus, que derramou seu sangue para a salvação
do mundo (Jo 1.29; 1Co5.7).
• Cristo declarou que o maná era um tipo Dele, dádiva gratuita dos céus a
ser recebida pelo povo para o sustento e vida espiritual (Jo 6.32, 33 e 58).
.
20

4. AS QUATRO LINHAS DE ATUAÇÃO DE DEUS

4.1. O DECRETO DE PERMITIR O MAL

Êxodo tem várias circunstâncias nas quais Deus permite que o mal tenha livre
curso até que Seus propósitos sejam alcançados. O livro começa com a família
que virou nação sendo oprimida, um mal que Deus permite para finalmente
fazê-los voltar a Ele como seu Deus pactual, de acordo com a promessa feita a
Abraão.

Mesmo o fardo adicional lançado sobre os trabalhadores israelitas devido à


obstinada oposição de Faraó ao pedido de Moisés foi mais tarde interpretado
pelo salmista como um meio divino de preparar Seu povo para desfrutar a vida
na Terra Prometida (Sl 105.37).

A atitude do coração de Faraó está intimamente ligada ao decreto divino de


permitir o mal. A ação divina das negativas de Faraó (3.19) não elimina o
exercício da vontade pessoal do monarca ao manter Israel sob cativeiro, antes a
confirma em obstinada incredulidade até que o Egito esteja maduro para o juízo
e Israel pronto para o livramento (Rm 1.28).

Na ocasião em que a Lei está sendo outorgada, Israel chafurda no culto imoral
que absorvera durante sua permanência no Egito, mas mesmo este incidente é
permitido por Deus para purificar Israel e melhor prepará-lo para ser o Seu povo
pactual.

4.2. A AÇÃO DE JULGAR O MAL

Esta é, a verdadeiramente, a ênfase da primeira parte do livro. As parteiras


tementes a Deus, ao desobedecerem a Faraó e manterem vivos os meninos
israelitas, agem em Seu lugar, e Ele abençoa sua fidelidade (apesar de não
aprovar seus métodos).

O chamado de Moisés é o ato inicial pelo qual a promessa patriarcal de retorno


a Canaã será cumprida. Seus atos milagrosos servem não apenas como
libertação para Israel, mas também como juízo divino sobre o mal da idolatria
egípcia, cujos ídolos e deuses animísticos são humilhados perante o Deus de
Israel durante as pragas e nas águas do mar de Juncos. Tais atos são o
21

cumprimento, a curto prazo, de promessas encontradas nos primeiros capítulos


do livro.

Outro elemento dessa ação divina de julgar o mal, embora indiretamente, é a


promulgação do Código da Aliança, cuja primeira parte s encontra em Êxodo. A
vida sob a promessa seria assim regulada e o mal julgado de acordo com o
caráter de Javé, conforme manifesto na Lei.

Em Êxodo 32 temos o episódio do bezerro de ouro. A disciplina contra a


idolatria de Israel significou a perda da vida para alguns e a perda da presença
imediata de Javé para todos.

4.3. A LIBERTAÇÃO DO JUÍZO PARA OS/PELOS ELEITOS

Moisés aparece no livro como instrumento de Deus para a libertação, preparado


por Deus em toda ciência e conhecimento do Egito, como também ensinado na
escola da humildade nos áridos sertões de Midiã e do Sinai.

Em certo sentido, Moisés não pertencia à linhagem profeticamente designada


para trazer a semente escolhida. Sendo, contudo, um descendente de Abraão,
estava qualificado para continuar a missão mais genérica de trazer a benção a
todas as famílias da terra, o que de fato fez primeiramente por seu papel
legislador.

Êxodo lança a base teológica sobre a qual os conceitos de salvação no Antigo


Testamento foram desenvolvidos. O conceito básico era a ideia de libertação,
que descreve o ato de retirar Israel do Egito. O Deus que se relaciona em aliança
é Aquele que providenciou a redenção por meio do cordeiro pascal. Esta
redenção será mais tarde om padrão com o qual Isaías descreverá a futura
restauração de Israel em termos de um segundo Êxodo (Is 43.1).

4.4. O DECRETO DE ABENÇOAR OS ELEITOS

Exemplos dessa parte do propósito de Deus estão geralmente ligados às


revelações prévias de seu plano concernente a Israel, primeiramente às
promessas de Gênesis 15. 12-21. Assim, Êxodo 3.8, 20, 22 e 6.1, 6,8 referem-se a
manifestações divinas anteriores e a promessas pactuais de dar a Israel a terra
de Canaã.
22

Em última análise, Êxodo contemplava a redenção definitiva, constituída não


apenas de libertação do Egito, mas no estabelecimento na terra (15.17), e no
exercício da soberania de Javé como rei (15.18). Para experimentar plenamente
tais bênçãos, Israel teria de honrar a aliança feita no Sinai, tornando-se assim
“propriedade peculiar” de Javé entre as nações (19.3). Isto não era uma
substituição da aliança abraãmica, mas uma definição mais focalizada das
condições sob as quais essas bênçãos seriam desfrutadas pela semente de
Abraão.

Êxodo 19 é importante também por apresentar a maneira pela qual a segunda


parte da benção abraãmica seria cumprida. Obedecendo à aliança, Israel se
tornaria um “reino de sacerdotes”, sendo, desse modo, o canal pelo qual a
benção da soberania restaurada de Deus se estenderia a todas as nações.
23

BIBLIOGRAFIA

BARR, M. Os Dez Mandamentos: Infográfico. Traduzido por Lucas Gonçalves.


Disponível em: voltemosaoevangelho.com/blog/2016/01/os-dez-mandamentos-
infografico-teologia-visual. Acesso em: 20.nov.2017.

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.
Veremos hoje:

1. A TEOLOGIA DE LEVÍTICO

1.1 O PROPÓSITO DE LEVÍTICO


1.2 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

2. O PAPEL DOS SACRIFÍCIOS EM LEVÍTICO

2.1 O PERDÃO E OS SACRIFÍCIOS


2.2 SÍNTESE CANÔNICA: PECADO E SACRIFÍCIO

3. O PAPEL DOS SACERDOTES EM LEVÍTICO

3.1 MINISTROS SANTOS


3.2 A PUREZA NECESSÁRIA
3.3 O DEUS QUE PERDOA TODO O PECADO

4. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

4.1 SANTIDADE E FIDELIDADE


4.2 FESTAS DE ISRAEL E JESUS
4.3 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS
1

1. TEOLOGIA DE LEVÍTICO
Diga o seguinte a toda comunidade de Israel: sejam santos porque eu, o senhor,
o Deus de vocês, sou santo. Levítico 19.2

1.1. O PROPÓSITO DE LEVÍTICO

Em contraste com Gênesis e Êxodo, em que as narrativas produziam farto


material dos quais se poderiam derivar traços do caráter divino ou de princípios
divinos de ação, Levítico tem um mínimo de narrativa e um máximo de
legislação. Estes, no entanto, oferecem percepções significativas da pessoa e do
caráter de Deus em Seu relacionamento com o povo e na provisão que faz para
que a comunhão pactual seja preservada.

Uma simples reflexão sobre Levítico demonstra rapidamente que esse é um dos
livros de maior inclinação teológica nas Escrituras. O livro trata detalhadamente
como Deus define o pecado, perdoa o pecado e ajuda as pessoas a evitar o
pecado. Analisa como a vontade de Deus se revela e como se pode assegurar a
presença de Deus. Levítico também descreve como o povo de Deus pode ser
declarado santo, o que Deus imaginou para eles desde o começo (Ex 19.6).

O professor e pesquisador do Pentateuco Jacob Milgrom, declarou “teologia é


por excelência o assunto de Levítico. Ela permeia cada capítulo e cada versículo.
[...]De fato, cada ato, seja movimento, manipulação ou gesto, está impregnado
de significado” (HOUSE, 2005).

Um esboço cuidadoso do livro realça aspectos específicos do caráter de Deus e


suas interações com os seres humanos.

• Levítico 1—7 analisa o processo pelo qual adoradores oferecem sacrifícios


por seu pecado. Esta seção enfatiza inquestionavelmente o perdão divino
para quem, pela fé, traz os sacrifícios exigidos por Deus.
• Levítico 8—10 detalha a ordenação e as atividades iniciais dos primeiros
sacerdotes. Deus consagra, separa, os que servem no santuário, um local
separado (“santo”).
• Levítico 11—15 destaca como o povo de Deus pode ficar “puro” ou
preparado para aparecer perante o Senhor. Deus que explica estilos de
vida e hábitos apropriados para o povo escolhido.
2

• Levítico 16 provê um sacrifício que remove os pecados de todos os fiéis


uma vez por ano.
• Levítico 17—27 apresenta vastos regulamentos para os que desejam
cumprir o propósito de Israel de ser uma nação santa.

A santidade de Deus permeia Levítico. Começando pelo santuário sagrado e


seus utensílios santos, passando pela santidade do comportamento obediente, e
indo até a própria essência do Senhor, a realidade da santidade, como um
princípio ideal e também como uma realidade concreta, jamais se afasta do
livro.

O Título

O título do terceiro livro do Pentateuco é, de certa forma, equivocado, uma vez


que o adjetivo grego levition, usado pelos tradutores da Septuaginta como
título para o livro, significa “aquilo que diz respeito aos levitas”, que quase não
são mencionados no livro. As traduções latinas e das diversas línguas ocidentais
preservaram o título grego por meio de simples transliteração.

O título hebraico é “ele [Yahweh] chamou”. O título em si não é descritivo, mas


oferece indícios do alto conteúdo revelacional do livro, no qual Yahweh fala
diretamente a Moisés e/ou Arão nada menos do que 38 vezes.

O Autor

Embora Moisés nunca seja mencionado em Levítico como autor do livro ou de


partes dele, em contraste com Êxodo, por exemplo, seu nome aparece várias
vezes como recipiente de revelação direta de Yahweh (cf. 1.1; 4.1; 6.1; 7.22; 8.1
etc.).

Razões pelas quais Moisés deveria ser considerado o autor:

1. O material em Levítico dá continuidade natural ao conteúdo dos capítulos


finais de Êxodo, dedicados ao tabernáculo. Isto é confirmado pela cláusula
inicial do livro (Lv 1.1).
2. O material contido no livro foi revelado no Sinai (7.37; 26.46; 27.34).
3. A única seção histórica em Levítico (8.1 − 10.20) segue-se logicamente à
cerimônia de consagração de Êxodo 40, em que a ênfase recaía sobre o
tabernáculo, ao passo que em Levítico recai sobre os sacerdotes.
3

Data

A data do livro é praticamente a mesma de Êxodo, uma vez que um intervalo de


um mês e meio pode ser postulado entre a consagração do tabernáculo em
Êxodo 40.17 (1 de Nisã, 1445 a.C.) e a partida de Israel do monte Sinai (20 de
Iyyar, 1445 a.C.). A comunicação das leis e normas a Moisés deve ter ocorrido
durante o ano que o povo passou ao pé do monte Sinai, enquanto o tabernáculo
estava sendo construído.

Mensagem

A mensagem de Levítico precisa ser entendida à luz da situação histórica em


que o livro foi apresentado a Israel, durante o ano que transcorreu entre a
chegada ao monte Sinai e a partida em direção a Canaã, enquanto o
tabernáculo estava sendo construído. Era de esperar que o Deus que oferecera
projetos tão minuciosos para cada peça do tabernáculo, no qual habitaria entre
Seu povo, oferecesse igualmente instruções detalhadas para o culto que
possibilitaria a Israel aproximar-se dEle.

À luz do contexto histórico em que o livro foi escrito, o autor Carlos Osvaldo
Pinto atribui o seguinte propósito ao livro de Levítico:

Promover reverência nacional e individual à santidade de Yahweh,


apresentando as condições que permitem a Israel aproximar-se dEle e
preservar a Sua presença santa entre o povo escolhido (PINTO, 2006)

A ênfase evidente do livro é a santidade de Yahweh e a exigência daí derivada


de que Israel seja santo em todos os seus relacionamentos, tendo em vista sua
vida como povo da aliança em Canaã. De fato, em certo sentido, Levítico
completa Êxodo ao apresentar uma lista de bênçãos e maldições (cap. 26), que
era uma característica dos já famosos tratados de suserania.

Associado ao conceito de santidade há outra ideia essencial no livro: a presença


de Deus entre o povo, um assunto que se tornou mais vital desde o incidente do
bezerro de ouro. Só quando Israel alcança as expectativas divinas de santidade
é que o povo pode esperar alcançar e desfrutar a presença do Senhor.

Estes dois princípios teológicos gêmeos decorrem logicamente de Êxodo, visto


que Êxodo 25—31 introduz o santuário, o altar e os sacerdotes, enquanto Êxodo
32—40 analisa as bases primeiras sobre as quais Yahweh estará presente no
4

meio de Israel. Assim, parece correto concluir que as cerimônias de Levítico têm
o propósito de fomentar a comunhão entre Deus e Israel e que essa comunhão
se baseia em quão bem o compromisso de Israel com a santidade está à altura
da santidade inerente de Yahweh.

1.2. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Deus é Santo

O versículo-chave do livro é um mandamento claro de Yahweh: Diga o seguinte


a toda comunidade de Israel: Sejam santos porque eu, o Senhor, o Deus de
vocês, sou Santo (19.2). Santidade significa separação de alguma coisa para um
propósito ou uso. No caso de Deus, significa Sua separação do mal em toda e
qualquer de suas formas.

A presença santa de Yahweh entre o Seu povo exige separação nacional de


toda sorte de impureza e a consagração obediente de toda a vida a Ele. Por
exemplo, quando alguém sofria de uma doença, significava que estava
ritualmente impura, ainda que a doença não fosse necessariamente uma
indicação do castigo de Deus, nem que a impureza significasse falha moral ou
de caráter.

Assim, a comunhão desejada (ou melhor, ordenada) por Deus com Seu povo
dependia da assimilação de Seu conceito de santidade pelos israelitas. Esse
conceito era radicalmente oposto ao uso da “santidade” pelos cananeus, para
quem ser “santo” significava envolver-se com as formas mais degradantes de
imoralidade, como ser prostituto ou prostituta cultual.

Israel, ao buscar os padrões divinos de santidade, teria de deixar para trás a


forma de ser “comum” ou “profana”, ir além do termo “limpo”, para chegar à
vida de identificação positiva com a pureza, a vida “santa”. Em muitos casos, a
santidade era relacionada ao status cerimonial na comunidade, e o indivíduo e,
até mesmo, toda a comunidade poderiam ter que progredir da forma de vida
mais baixa, “impura”, para cima, em direção ao perdão e aceitação de Yahweh.

Deus é Imanente

O propósito de Deus, expresso nas palavras de Êxodo 25.8, era viver entre o Seu
povo. As instruções detalhadas concernentes ao lugar de Sua manifestação,
5

oferecidas em Êxodo, são seguidas de instruções igualmente detalhadas sobre


como preservar o privilégio de Sua presença, encontradas em Levítico.

Outras nações do Oriente Médio antigo compartilhavam o conceito de ter a


divindade nacional habitando no meio do povo. Israel, todavia, se destacava
entre elas por desfrutar da presença de Yahweh por meio de um culto puro –
cerimonial e eticamente puro – de modo a refletir o caráter santo de seu Deus.

Outro aspecto merece ser observado, pois além da presença gloriosa


manifestada acima da arca da aliança no Santo dos Santos, havia uma presença
geral, santificadora, que afetava e impunha exigências sobre a religião de Israel
(21–24), sobre os padrões de comportamento sexual (18 e 20), e sobre as
relações interpessoais (19 e 25) dos israelitas.

Deus é Gracioso

Em Levítico, nove vezes a frase “e ele será perdoado” apresenta a maravilhosa


realidade de que Deus havia providenciado o perdão para algum tipo de
deficiência (4.20, 26, 31, 35; 5.10, 13, 16, 18; 6.7). Isso aponta para o fato de que
havia uma eficácia espiritual nos sacrifícios que Yahweh graciosamente
planejara e revelara a Israel.

Uma vez que Seu propósito não era simplesmente libertar Israel do caos e da
desordem da escravidão corporal no Egito, mas também do caos e da
desordem de uma vida dominada pelo pecado, pela doença e pela morte, o
sistema sacrificial transmitido à nação por Moisés englobava cada aspecto da
vida e fazia provisão para impurezas morais e cerimoniais por meio do princípio
de expiação vicária (substitutiva).

O perdão de Yahweh sempre foi gratuito, mas nunca barato, já que sempre
envolveu a entrega de uma vida em lugar de outra, com o benefício sendo
apropriado mediante a fé. A gravidade do pecado era revelada na gravidade da
sentença. O preço do pecado era a morte, por isso somente haveria expiação
com a morte.

O ponto culminante da graça de Yahweh na vida da nação ocorria no chamado


“Dia da Expiação,” (23.27), quando os pecados de todo o ano eram expiados e,
figurativamente, “despachados” para o deserto, removidos da vista da
congregação. O retorno do sumo sacerdote do Santo dos Santos significava que
6

Yahweh havia graciosamente estendido a Sua presença e proteção sobre a


nação por mais um ano.
7

2. O PAPEL DOS SACRIFÍCIOS EM LEVÍTICO

Os descendentes de Arão queimarão tudo isso em cima do holocausto que


está sobre a lenha acesa no altar como oferta preparada no fogo, de aroma
agradável ao Senhor. Levítico 3.5

2.1. O PERDÃO E OS SACRIFÍCIOS: LEVÍTICO 1—7

Pouquíssimos trechos das Escrituras confundem os leitores modernos mais do


que este. Não familiarizados com tais rituais, tudo o que algumas pessoas
colhem desses capítulos é uma repulsa quanto a animais mortos e a noção de
que Yahweh exigia tais atividades. O que, no entanto, deve-se lembrar é que
esses sacrifícios não soavam tão estranhos para o público original. Pelo
contrário, pareciam lógicos, organizados e até mesmo simples em comparação
com algumas das complicadas religiões existentes nos tempos antigos.

É importante lembrar que Êxodo 32—34 claramente indica que seres humanos
pecam e que um Deus justo e santo não pode tolerar pecado. Desse modo,
parece lógico para a narrativa revelar como o pecado pode ser perdoado.

Na essência do sistema sacrificial encontram-se princípios, como:

• A santidade de Deus
• A depravação humana
• O altíssimo preço do pecado
• A natureza pessoal do pecado
• A disposição divina de perdoar

Embora a maneira de apresentar essas verdades bíblicas comuns seja diferente


hoje em dia, os leitores ainda podem reconhecer a importância do que o texto
diz.

Pode-se dividir Levítico 1—7 em três partes distintas:

• Levítico 1—3 trata de ofertas queimadas


• Levítico 4 e 5 descreve ofertas pela culpa
• Levítico 6 e 7 analisa como os sacerdotes devem receber e oficiar esses
sacrifícios
8

Cada tipo de oferta tem um propósito específico, mas o denominador comum é


a seriedade do pecado e a alegria do perdão da culpa resultante do pecado.
Cada oferta é de natureza substituinte e é também instrutiva para o ofertante.

Os sacrifícios do Antigo Testamento

Sacrifício Referências Elementos Finalidade

Holocausto Lv 1; 6.8-13; 8.18-21 Touro, carneiro ou ave Ato voluntário de


16.21 (pombas ou caso dos adoração; expressão
pobres); totalmente de devoção,
consumidos; sem dedicação e entrega
defeito completa a Deus.

Oferta de Cereal Lv 2; 6.14-23 Grãos, farinha fina, Ato voluntário de


azeite, incenso, pães adoração;
assados (redondos ou reconhecimento de
achatados), sal; bondade e
nenhum fermento nem providência de Deus;
mel acompanhava o devoção a Deus.
holocausto e a oferta
de comunhão

Oferta de comunhão Lv 3; 7.11-36 Qualquer animal sem Ato voluntário de


defeito das manadas adoração; ações de
ou dos rebanhos; graças e comunhão
variedades de pães (incluía uma refeição
comunitária)

Oferta pelo pecado Lv 4.1—5.13; 6.24- Novilho: pelo sumo Expiação obrigatória
30;8.14-17;16.3-22 sacerdote e pela por pecado específico
congregação. não intencional;
confissão de pecado;
Bode: por um líder purificação da
Cabra ou cordeiro: por impureza
uma pessoa comum

Rolinha ou pombinho:
pelos pobres.

Um jarro da melhor
9

farinha: pelos muito


pobres.

Oferta pela culpa Lv 4.14—6.7; 1.1-6 Carneiro ou cordeiro Expiação obrigatória


por pecado;
purificação da
impureza; restituição.

Duas ofertas semelhantes são descritas em Levítico 2 e 3 e novamente em 6.14-


23 e 7.11-36. À semelhança do holocausto, as ofertas de cereal e de comunhão
são voluntariamente trazidas por suplicantes que desejam agradar a Deus (2.2;
3.5).

A principal diferença entre esses sacrifícios e o holocausto é que os sacerdotes


podem comer parte do cereal (2.3) e parte da oferta de comunhão (7.28-36).
Esses sacrifícios acentuam a natureza comunal da adoração de Israel.
Sacerdotes e suplicantes desfrutam juntos as bênçãos do perdão, e, visto que os
sacerdotes representam o Senhor, por extensão o povo desfruta comunhão com
Deus.

O professor do Antigo Testamento Elmer A. Martens, explica esse princípio ao


afirmar que

O sacrifício israelita não é uma questão de servir a Deus ou obter


benefícios. Um entendimento mais bíblico de sacrifício [...] é que
mediante sacrifício se estabelece comunhão com Deus. O holocausto
simbolizava ação de graças e era recebido por Deus como uma doce
expressão de gratidão. A refeição sacrificial, junto com a participação do
ofertante no sacrifício [...] tinha especialmente o sentido de comunhão e
companheirismo com Deus (HOUSE, 2005).

Nem todos os pecados são desconhecidos ao pecador, e nem todos os


sacrifícios são oferecidos por consequência de uma obediência a Deus e de uma
preocupação com o bem-estar dos sacerdotes. Pelo contrário, alguns pecados
são específica e claramente contrários aos “mandamentos do Senhor” (4.2).
Com frequência esse tipo de transgressão defrauda a Deus e ao próximo. Por
isso, os próximos dois tipos de ofertas fazem propiciação por esse
comportamento incorreto.

Ofertas pelos pecados devem ser trazidos por indivíduos (4.1,2), sacerdotes
(4.3-12), toda a comunidade (4.13-21) e líderes (4.22-26). Qualquer um desses
10

tem o potencial de quebrar os mandamentos de Yahweh e incorrer em culpa


(4.2,13,22). Assim que tem consciência dessa culpa, cada pessoa ou grupo traz,
dependendo de sua condição financeira, o animal ou comida necessários, o que
Deus aceita como propiciação que resulta em perdão (4.20,26,31,35; 5.6,10,13).
Como nenhum segmento da comunidade israelita pode pecar sem impunidade,
de igual maneira nenhum segmento está fora do domínio da graça.

A quebra da aliança pode ser perdoada quando os israelitas acreditam nos


padrões revelados, obedecem a esse padrão ao trazer o que Deus exige e agem
humildemente como Yahweh deseja.

Ofertas pela culpa também fazem propiciação por pecado consciente contra
padrões revelados por Deus. A diferença é que eles tratam de pecados que são
contra Deus e o próximo e que exigem restituição (5.16; 6.5). O perdão não é
sem preço em quaisquer desses cinco sacrifícios, mas a oferta pela culpa implica
o mais custoso de todos.

Na oferta pela culpa a propiciação ocorre por meio da oferta apropriada e do


pagamento à parte ofendida, o que indica que o processo de confissão deve ter
alcance tão amplo quanto o próprio pecado cometido. O perdão pode ser
essencialmente uma questão entre Deus e o suplicante, mas o meio de alcançar
o favor divino não é um assunto exclusivamente pessoal. O fato de que o
sacerdote pode comer parte desse sacrifício também salienta a natureza
comunal e o alcance inclusivo dessa oferta.

• O Princípio da Propiciação

Propiciação é uma palavra derivada de “propício”, que significa favorável.


Assim, propiciação é o ato de tornar alguém favorável. No que se refere a Deus,
esse ato envolve um sacrifício. Então, propiciação é o ato de se oferecer a Deus
um sacrifício, com o fim de torná-lo favorável.

Nos tempos antigos as pessoas ofereciam sacrifícios aos deuses pagãos para se
tornarem favoráveis a eles. Por exemplo se quisessem fertilidade ofereciam
sacrifícios de propiciação para tornar os deuses da fertilidade propícios a eles e
terem seus desejos atendidos. Se fossem viajar pelo mar, faziam sacrifício de
propiciação para tornar os deuses dos mares favoráveis a eles durante a viajem,
afastando assim sua ira e ganhando seu favor. Se havia um deus qualquer
11

furioso, deveriam sacrificar algo em propiciação para afastar sua ira e ganhar
seu favor.

O princípio da propiciação verdadeiramente bíblico se distingue das ideias


pagãs em três pontos cruciais, relacionados ao motivo da necessidade da
propiciação, quem a fez e o que ela é.

1. O motivo pelo qual a propiciação é necessária é que o pecado suscita a ira


de Deus. Isso não quer dizer que ele é capaz de explodir à mais trivial
provocação, muito menos que ele perde o controle por qualquer motivo. Pois
nada há de caprichoso ou arbitrário em Deus. Nem jamais Ele é irascível,
malicioso, rancoroso ou vingativo. A ira dele não é misteriosa nem irracional.
Jamais é imprevisível, mas sempre previsível por ser provocada pelo mal e pelo
mal somente. A ira de Deus é o seu antagonismo firme, constante, contínuo e
descomprometido para com o pecado em todas as suas formas e
manifestações. Em resumo, a ira de Deus está mundos à parte da nossa. O que
provoca a nossa ira (a vaidade ferida) jamais provoca a dele; o que provoca a ira
Dele (o mal) raramente provoca a nossa.

2. Quem faz a propiciação? Num contexto pagão é sempre seres humanos que
procuram desviar a ira divina mediante a realização meticulosa de rituais, ou
através da recitação de fórmulas mágicas, ou por meio de oferecimento de
sacrifícios (vegetais, animais e até mesmo humanos). Pensam que tais práticas
aplaquem a divindade ofendida. Mas a Bíblia deixa claro que nada do que
possamos fazer, dizer, oferecer ou até mesmo dar pode compensar os nossos
pecados nem afastar a ira divina. Não há possibilidade alguma de bajularmos,
subornarmos ou persuadirmos Deus a nos perdoar, pois nada merecemos das
suas mãos a não ser o julgamento. Foi o próprio Deus que, em sua misericórdia
e graça, tomou a iniciativa de nos perdoar. Pois todos pecaram e estão
destituídos da glória de Deus (Rm 3.23).

Esse fato já estava claro no Antigo Testamento, pois nele os sacrifícios eram
reconhecidos não como obras humanas, mas como dádivas divinas. Eles não
tornavam a Deus gracioso; eram providos por um gracioso Deus a fim de que
pudesse agir graciosamente para com o seu povo pecaminoso. “Pois a vida da
carne está no sangue, e eu o dei a vocês para fazerem propiciação por si
mesmos no altar; é o sangue que faz propiciação pela vida (Lv 17.11). E o
Novo Testamento reconhece essa verdade com mais clareza. O próprio Deus
12

"ofereceu" a Jesus Cristo como sacrifício propiciatório (Rm 3.25). Nisto consiste
o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou
e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. (1Jo 4.10).

Não podemos enfatizar demais que o amor de Deus é a fonte, e não a


conseqüência da expiação. Como o expressou John Stott: "A expiação não
assegurou a graça, mas fluiu dela". Deus não nos ama porque Cristo morreu por
nós; Cristo morreu por nós porque Deus nos amou. É a ira de Deus que
necessitava ser propiciada, é o amor de Deus que fez a propiciação. Se
pudermos dizer que a propiciação "mudou a Deus" ou que por meio dela ele
mudou a si mesmo, esclareçamos que a sua mudança não foi da ira para o amor,
da inimizade para a graça, visto que o seu caráter é imutável. O que a
propiciação mudou foi o Seu tratamento para conosco. A distinção está "entre
uma mudança de sentimento e uma mudança de tratamento”. O sentimento de
Deus para conosco jamais necessitou mudar. Mas o tratamento de Deus com
relação a nós, o relacionamento prático de Deus para conosco — esse teve de
mudar". Ele nos perdoou e nos recebeu em Sua família.

3. Qual foi o sacrifício propiciatório? Não foi animal, vegetal nem mineral. Não
foi uma coisa, mas uma pessoa. E a pessoa que Deus ofereceu não foi alguém
mais, uma pessoa humana ou um anjo, nem mesmo o seu Filho considerado
como alguém distinto dele ou exterior a si mesmo. Não, ele ofereceu-se a si
mesmo. Ao dar o seu Filho, ele estava dando a si mesmo. Por exemplo, o fato de
que foi o Filho de Deus, de que foi o próprio Deus, quem tomou o nosso lugar
no Gólgota e, através desse ato, nos libertou da ira e do juízo divino, revela
primeiro a implicação total da ira de Deus e a sua justiça condenadora e
punitiva. Conforme Stott afirma,

Porque foi o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus, que tomou o


nosso lugar na cruz, para que a substituição fosse eficaz e pudesse
assegurar-nos a reconciliação com o Deus justo. . . Somente Deus,
nosso Senhor e Criador, poderia se colocar como nossa segurança,
poderia tomar o nosso lugar, poderia sofrer a morte em nosso lugar
como consequência de nossos pecados de tal modo que ela fosse
finalmente sofrida e vencida (STOTT, 2006).

Portanto, o próprio Deus está no coração das respostas às três perguntas


acerca da propiciação divina. É o próprio Deus que, em ira santa, necessita ser
propiciado, o próprio Deus que, em santo amor, resolveu fazer a propiciação, e
13

o próprio Deus que, na pessoa do seu Filho, morreu pela propiciação dos nossos
pecados. Assim, Deus tomou a sua própria iniciativa amorosa de apaziguar sua
própria ira justa levando-a em seu próprio Ser no Seu próprio Filho ao tomar o
nosso lugar e morrer por nós.

2.2. SÍNTESE CANÔNICA: PECADO E SACRIFÍCIO

Podemos afirmar 7 princípios com respeito aos sacrifícios instituídos em


Levíticos.

1. Os sacrifícios foram meios suficientes e necessários dados por Deus para


que Israel mantivesse comunhão com Ele. Sua significância eterna está
além de seu próprio escopo, dependendo da provisão maior feita por
Deus em Cristo.
2. Os sacrifícios tinham uma natureza dupla, pois operavam tanto na esfera
pactual nacional quanto na esfera individual.
3. Os sacrifícios mosaicos eram válidos na esfera pessoal apenas quando
motivados por fé em Yahweh, como o Perdoador de pecados, em uma
atitude de obediência à Sua revelação.
4. Os sacrifícios eram aceitos sem a necessidade de fé pessoal na esfera de
participação cerimonial na comunidade da aliança.
5. Os sacrifícios eram limitados em seu escopo e eficácia a atos pecaminosos
e a culpa deles decorrente até a ocasião em que eram oferecidos, mas não
tinham qualquer eficácia contra a culpa imputada ou a natureza
pecaminosa.
6. Pecados premeditados ou violações deliberadas das estipulações pactuais
não podiam ser expiados por sacrifícios regulares, e seu perdão era
questão exclusiva da graça divina em resposta ao arrependimento,
operando por meio da provisão do Dia da Expiação
7. A eficácia dos sacrifícios era derivativa, sendo confirmada por Deus na
base do sacrifício perfeito que seria oferecido na cruz do Calvário.

Passagens nos Profetas, nos Salmos e no Novo Testamento indicam a


importância de sacrifícios corretos e trazidos com a devida humildade para a
efetivação do perdão.

1 e 2 Reis fazem um sumário da queda de Israel, assinalando que o povo rompeu


a aliança com Deus ao adorar em locais não autorizados e de maneiras não
14

autorizadas, o que por sua vez conduziu à idolatria e até mesmo a sacrifícios
humanos (2Rs 17.7-23).

Isaías 1.10-17, Jeremias 7.21-26 e Malaquias 1.6-9 relatam que o povo não é
sincero ao trazer suas ofertas, não há arrependimento, pois, o comportamento
deles nunca muda. Sacrifícios feitos sem fé, arrependimento e humildade não
são sacrifícios feitos com obediência.

O perdão não é resultado de um animal ser abatido por costume. Propiciação


não é um ritual mágico. É um meio pelo qual Israel pode desfrutar um
relacionamento com o Senhor.

Salmos 51.16-19 concorda que confissão e um coração contrito devem preceder


o sacrifício para este ser eficaz, um sentimento que Salmos 40.6- 8 descreve
como um desejo de fazer a vontade de Deus. Esse desejo ressalta a integridade
humana, necessária em ritos sacrificiais a fim de estar à altura da integridade
divina intrínseca no oferecimento de perdão.

Isaías 52.13—53.12 fornece um importante vínculo entre o sistema sacrificial do


Antigo Testamento e a convicção neotestamentária de que a morte de Jesus
Cristo faz propiciação pelo pecado. Isaías 53 descreve o sofrimento de alguém
chamado o Servo, cuja morte ocorre a favor de outros. De fato, Isaías 53.10
chama o servo sofredor de “uma oferta pela culpa”, empregando uma palavra
comum em Levítico 5—7. Segundo o autor Diether Kellerman,

Este texto não apenas compara o servo a um cordeiro levado para o


matadouro (53.7), mas também diz que ele faz da sua alma um ’asham,
“oferta pelo pecado”. O sofrimento vicário do justo é a oferta pela culpa
de muitos. Como oferta pela culpa, a morte do Servo resulta em
propiciação, o ato de salvar pecadores da morte (HOUSE, 2003).

Os escritores do Novo Testamento viram uma conexão clara entre os sacrifícios


de Levítico 1—7, o Servo/oferta pela culpa de Isaías 53 e a morte de Jesus.
Hebreus 9.11-15 “simplesmente” apresenta Jesus como o substituto de todos os
sacrifícios e pecados, ideia implícita em Isaias 53.10.

Hebreus comenta sobre o sistema sacrificial mais explicitamente do que


qualquer outro livro do Novo Testamento. Em Hebreus 10.1-18 encontramos em
um sumário toda a argumentação do autor sobre como o sacrifício de Jesus é
superior à natureza perpétua das ofertas de Levítico. Cristo resolve a questão
15

da propiciação num único ato, enquanto o sistema antigo exige atos constantes
de sacrifício.

A obra de Cristo substitui o sistema do Antigo Testamento ao torná-lo ineficaz


em comparação com a morte de Cristo. Porém, mais importante ainda, por
decreto divino e pelo sacrifício divino, a obra de Cristo tornou-o obsoleto (Hb
10.12-18). Depois da morte de Cristo, o velho sistema não mais se aplica ao povo
da fé.

Mas, quando este sacerdote acabou de oferecer, para sempre, um único


sacrifício pelos pecados, assentou-se à direita de Deus. Daí em diante, ele
está esperando até que os seus inimigos sejam colocados como estrado dos
seus pés; porque, por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para
sempre os que estão sendo santificados. O Espírito Santo também nos
testifica a este respeito. Primeiro ele diz: "Esta é a aliança que farei com
eles, depois daqueles dias, diz o Senhor. Porei as minhas leis em seus
corações e as escreverei em suas mentes"; e acrescenta: "Dos seus pecados
e iniquidades não me lembrarei mais". Onde essas coisas foram perdoadas,
não há mais necessidade de sacrifício pelo pecado. Hb 10.12-18
16

3. O PAPEL DOS SACERDOTES EM LEVÍTICO

Vocês têm que fazer separação entre o santo e o profano, entre o puro e o
impuro, e ensinar aos israelitas todos os decretos que o Senhor lhes deu por
meio de Moisés" Levítico 10.10,11

3.1. MINISTROS SANTOS: LEVÍTICO 8—10

O texto de Êxodo 35—40 redireciona a atenção de Israel para a construção de


um local sagrado onde pode-se desfrutar da presença de Deus. Levítico 1—7
explica os sacrifícios que Yahweh aceita em lugar do pecado humano, os quais
se contrapõem ao culto ilegítimo do bezerro de ouro. Agora, Moisés segue as
diretrizes do Senhor para os sacerdotes.

Inicialmente mencionadas em Êxodo 29.1-37, essas instruções mostram que os


ministros de Deus devem ser separados para servir a um povo separado (Lv 8),
devem servir exatamente como Deus determinou (Lv 9) e devem, como o povo,
esperar o juízo de Deus quando esses mandamentos são ignorados, usados
erradamente ou tratados com pouco caso (Lv 10). Ser sacerdote significa
aceitar mais responsabilidade de santidade do que o membro comum da nação
santa, mas isso de modo algum dá aos sacerdotes licença especial para pecar
nem o direito de oprimir “pecadores comuns” mediante manipulação dos rituais
de adoração.

Levítico 9 e 10 revela a alegria, a admiração e a seriedade envolvidos na


atividade sacerdotal. Quando os sacerdotes começam a dirigir a adoração que
Deus ordenou, no início eles obedecem perfeitamente (9.1-22). A fidelidade
deles à palavra de Deus leva à aprovação pelo Senhor, o que nesse caso fica
demonstrado com o encontro da glória de Deus com o povo.

Em Êxodo 40.34,35 o Senhor demonstrou aprovar a conclusão do tabernáculo


ao encher o centro de adoração com glória na forma de nuvem, ao passo que
aqui fogo “procede da glória” e consome os sacrifícios (9.23,24). O povo se
alegra com essa demonstração tanto da aceitação divina desses sacrifícios
iniciais quanto da presença pessoal de Deus.

A alegria transforma-se em tristeza em Levítico 10.1: Nadabe e Abiú, filhos de


Arão, pegaram cada um o seu incensário, nos quais acenderam fogo,
acrescentaram incenso, e trouxeram fogo profano perante o Senhor, sem
17

que tivessem sido autorizados. Diante do atrevimento deles, a presença do


Senhor produz um segundo fogo (9.23,24), mas essas chamas matam os dois
(10.2).

O texto não especifica qual é a ofensa cometida pelos dois jovens sacerdotes;
simplesmente declara que trouxeram uma oferta que não foi especificamente
ordenada. Essa é de fato a questão. Os sacerdotes desobedeceram à palavra de
Deus e, desse modo, cometeram o pecado básico da raça humana.

O fato é que os sacerdotes não demonstraram a santidade de Deus com suas


ações, de modo que o próprio Yahweh revelou-se santo aos olhos do povo ao
atingir os ofensores (10.3). Fica claro que o dever do sacerdote é preservar o
entendimento que o povo tem da santidade de Yahweh. As mortes demonstram
a seriedade da tarefa dos levitas quer para eles próprios quer para o povo.

Os levitas são todos os pertencentes à tribo de Levi, uma das doze tribos de
Israel. Deus poupou os primogênitos de Israel na última praga contra o Egito (Ex
11.4—12.13), todos os filhos primogênitos e todos os animais primogênitos
pertenciam a Deus. Os levitas foram nomeados por Deus para tomarem o lugar
dos primogênitos no serviço a Ele. Uma família ou clã de levitas, a família de
Arão, foi separada para o sacerdócio. O restante dos levitas daria assistência
aos sacerdotes. Entre seus deveres estavam o cuidado do Tabernáculo e
posteriormente o cuidado do Templo, bem como as funções de mestre, escriba,
músicos, oficiais e juízes (1Cr.23).

Duas razões que têm a ver com a importância teológica do sacerdócio.

1. Levítico 10.10,11 realça o papel dos sacerdotes de ensinar a revelação


divina ao povo. Não são meros funcionários. São, pelo contrário, pontes
de revelação. Assim como Deus revelou esses padrões a Moisés, e este
por sua vez passou-os adiante aos sacerdotes, de igual forma os
sacerdotes devem ensinar os mandamentos divinos aos israelitas e como
obedecê-los. Os próprios rituais ilustram esse princípio de ensino, visto
que o trabalho do sacerdote é ajudar o adorador no sacrifício e não fazer
o sacrifício em lugar do adorador. Além disso, Levítico 11—15 amplia o
trabalho do sacerdote como instrutor.
2. Os sacerdotes não apenas compartilham a revelação de Yahweh, mas
também facilitam a propiciação pelos pecados (10.17), um papel cuja
18

importância é difícil de exagerar. A seriedade com que os sacerdotes


veem sua tarefa deve equiparar-se à seriedade com que Yahweh vê o
pecado e a propiciação. A gravidade disso se mistura com a alegria do
perdão, mas permanece vital de qualquer maneira.

Por que vocês não comeram a carne da oferta pelo pecado no Lugar Santo?
É santíssima; foi-lhes dada para retirar a culpa da comunidade e fazer
propiciação por ela perante o Senhor. Levítico 10.17

3.2. A PUREZA NECESSÁRIA: LEVÍTICO 11—15

De todas as leis do Pentateuco, é com as desta seção que leitores de hoje em


dia ficam possivelmente mais admirados. Surge no texto uma série de ações que
tornam os israelitas “puros” e “impuros”. Levítico 10.10,11 já declarou que os
sacerdotes devem “fazer separação entre o santo e o profano, entre o puro e o
impuro” e ensinar o povo a como fazer o mesmo. As quatro palavras puro,
impuro, santo e profano são as ênfases principais de Levítico 11—27.

Nos capítulos anteriores já se falou bastante sobre santidade. Deus é santo,


separado e especial tanto na natureza quanto no caráter, e Israel foi chamado a
ser uma nação santa, um reino de sacerdotes (Ex 19.5,6). Mais sobre esse
conceito e seu inverso, o que é comum, aparece em Levítico 17—27. Porém,
agora o Senhor destaca as ideias de “puro” e “impuro”, expressões que às vezes
são entendidas como “limpo” e “não-limpo”. A questão, no entanto, é de que
maneira pureza ou impureza acontecem e o propósito disso.

Várias atividades tornam impuro o povo de Deus.

• Comer certos animais (Lv 11)


• Dar à luz (Lv 12)
• Algumas doenças da pele (Lv 13 e 14)
• secreções dos órgãos sexuais (Lv 15)

Impureza não é uma condição permanente, pois é possível remover cada


exemplo de impureza, assim tornando puro o adorador. Fica claro nesses textos
que os impuros estão impuros para manter atividades normais com outros
israelitas e para adorar no santuário. Mulheres que acabaram de dar à luz (12.4),
vítimas de doenças de pele (14.1-32) e os que tiveram excreções pelos órgãos
sexuais (15.31) devem permanecer à distância do santuário ou de outras pessoas
19

por um ou mais dias. O tempo e o ritual podem sarar e restaurar a pessoa à


plena vida comunitária.

Por que Deus exige tanto cuidado na conduta do povo?

O autor Paul R. House assinala seis possíveis resposta para essa questão:

1. Essas leis, ao banir alimentos não-saudáveis, promovem boa saúde.


2. Essas leis têm significado alegórico ou simbólico.
3. Essas leis não devem ser explicadas. São simplesmente a vontade de
Deus.
4. Essas leis têm o propósito de limitar a violência humana contra os animais
e, portanto, ajudam a estimular um sentimento generalizado de reverência
pela vida.
5. Essas leis protegem a comunidade de Yahweh contra forças demoníacas.
6. Essas leis são parte da maneira de o Israel antigo encarar a unidade e
inteireza sociais.

Análise das repostas:

Sobre a primeira opção, é certo que Deus está interessado na saúde de Israel,
mas, por mais válida que seja essa afirmação, ela não explica o suficiente, pois
não deixa claro como tais leis torna Israel santo no sentido que Êxodo 19.5,6
espera.

A segunda opção não é muito aceita pelos estudiosos atuais do Antigo


Testamento, ao passo que os que apoiam a terceira hipótese afirmam
acertadamente que se trata da vontade de Deus sem dar qualquer explicação
detalhada sobre a razão que está por trás dessas leis. Com muita facilidade tais
abordagens abrem mão da tarefa de entender os ensinos do cânon sobre o
assunto.

A quarta hipótese associa as leis sobre alimentação à proibição anterior de


matança desnecessária em Gênesis 9.5 e à proibição posterior de beber sangue
em Levítico 17.10-14.35. Essas leis limitam excessos humanos, contudo essa
opção não oferece uma solução suficiente sobre como a obediência a esses
mandamentos diz respeito à santidade de Yahweh e Israel.

Desde o surgimento da abordagem de história das religiões à teologia do


Antigo Testamento, vários autores vêm apoiando a quinta opção. Existem vários
20

problemas com essa proposta, mas o mais gritante é que no texto em si não há
qualquer menção explícita ou implícita a forças demoníacas. Não se emprega
rito mágico algum para afastar enfermidades. Não se faz tentativa alguma de
implorar que Yahweh expulse espíritos malévolos. O tempo e o sacrifício usual
curam a impureza porque o Senhor assim o declara.

A sexta hipótese parece se aproximar mais da natureza do propósito dessas leis.

Levítico 11.44,45, situado no final do segmento sobre animais impuros, explica


que se deve guardar essas leis para que Israel possa ser santo (Ex 19.5,6) da
mesma maneira como Deus é santo (Êx 32—34). Em outras palavras, essas leis
são mais uma maneira de Israel e Yahweh consolidar seu relacionamento.
Também são mais uma maneira de Israel poder começar a se destacar entre
outras nações. Não comer certos alimentos evitará que Israel participe dos
rituais politeístas das nações vizinhas.

Além disso, Levítico 12.4 afirma que a mulher que recentemente deu à luz deve
esperar alguns dias antes de entrar no santuário. Outra maneira de expressar a
regra é que ela não tem de retomar seus deveres regulares até que ela e a
criança tenham se recuperado do parto. Separar nascimento e santuário
também evita que Israel vincule ritos de fertilidade à sua prática religiosa, um
traço particularmente comum em religiões cananeias.

Finalmente, Levítico 15.31 adverte que quebrar as leis de pureza e impureza


levará à morte. Tais ações profanam o santuário, o símbolo principal da
presença de Deus entre os israelitas, e se deve expiá-las mediante
reconhecimento do pecado seguido de sacrifício. Certamente Israel quer evitar
uma repetição da tragédia de Êxodo 32. O povo está preparado para aceitar o
fato de que Yahweh determina o que promove e o que restringe sua presença e
de que Israel depende totalmente da misericórdia divina em questões de
pecado, santidade, perdão e pureza.

Resumindo, essas instruções separam Israel como uma nação que possui leis
especiais de pureza, leis que ligam o povo intimamente a Deus. Esses princípios
trazem muitos benefícios, mas o benefício maior é a presença de Deus no meio
deles, uma realidade que por sua vez os coloca à parte de outras nações.

Observar esses princípios protege Israel de religiões politeístas. Também lança


Israel à misericórdia do Senhor. O texto se concentra na singularidade de Deus,
21

em Israel desfrutar a condição de eleito, na santidade e misericórdia de Deus e


na revelação de Deus. Deus está uma vez mais determinado a criar um povo que
será o cumprimento das promessas feitas a Abraão.

3.3. 0 DEUS QUE PERDOA TODO PECADO: LEVÍTICO 16

Levítico 16 apresenta a essência da teologia do livro. Aqui se unem a santidade e


misericórdia de Deus, a eleição de Israel e sua necessidade de perdão e a ênfase
do livro na pureza e propiciação. Todos esses detalhes se juntam numa mesma
cerimônia que ocorre no “Dia da Propiciação”. Nesse dia tem lugar “a
propiciação sacrificial por todo pecado, exceto blasfêmia contra Deus” (v. Nm
15.30). Assim, a confissão de pecado, o sacrifício, o trabalho dos sacerdotes e a
pureza — tudo isso cumpre-se num único evento. Em nenhum outro lugar do
Antigo Testamento se vê quadro mais nítido da graça divina, da fé humana
nessa graça e da sua aceitação.

O “Dia da Propiciação” nos dias de hoje é chamado de Yom Kipur. O Yom Kipur
ou Kippur (‫ )יום כיפור‬é um dos dias mais importantes do judaísmo. No calendário
judaico começa no entardecer que inicia o décimo dia do mês judaico de Tishrei
(que coincide com setembro ou outubro), continuando até ao seguinte pôr do
sol. Os judeus tradicionalmente observam esse feriado com um período de jejum
de 24 horas, leituras bíblicas e oração intensa. Na ausência do Templo e do
sacerdote os judeus vão à sinagoga e realizam suas orações para obter a
expiação e o perdão para o Povo Judeu.

O Dia da Propiciação causa primeiramente impacto no sacerdócio para depois


trazer benefício ao povo, eles devem seguir certas normas para o dia especial.

• O sumo sacerdote deve aprender que não pode entrar na sala mais
sagrada do santuário quando bem entender (16.1,2). Aventurar-se a isso
conduzirá à morte, pois a presença de Deus paira acima da arca da aliança
de uma forma especialmente poderosa.
• O sumo sacerdote tem de usar roupas diferentes das que ele
normalmente usa (16.3-5). Perante Deus, nesse dia especial o sumo
sacerdote se coloca como um pecador ministrando a pecadores, despido
de orgulho ou privilégio.
• O sacerdote tem de “fazer propiciação por si mesmo e por sua família”
(16.6). Uma vez mais o fato é que mesmo sacerdotes (ou talvez
22

especificamente eles) têm de se purificar, pois a diferença entre vida e


morte, espiritual ou física, é resultado do cuidado dispensado a essa
questão pelo sacerdote.
• O sacerdote deve escolher dois bodes, um será uma oferta pelo pecado
do povo e o outro será o que o hebraico chama de azazel, a oferta viva
enviada ao deserto como propiciação (16.7-10).
• O sacerdote deve matar um novilho como oferta própria e então levar
incenso e um pouco do sangue do novilho na sala santíssima. Deve-se
aspergir o sangue sobre a tampa da arca depois da fumaça do incenso
cobrir a tampa (16.11-14). Esse processo remove o pecado do sumo
sacerdote e demonstra devida reverência pela presença do Senhor, dois
atos que lhe preservam a vida (16.13).

Agora, o sumo sacerdote pode agir em favor do povo.

1. O sacerdote abate um bode pelos pecados da comunidade toda e borrifa


um pouco do sangue do animal sobre a tampa da arca (16.15). Esse ato
purifica o lugar santíssimo em particular e o santuário todo em geral. Os
pecados de Israel, quer sejam quebras das leis de pureza quer sejam
rebelião frontal contra Deus (16.16), “contaminam um tanto quanto o
santuário”. O pecado afeta todas as áreas, mas esse sacrifício remove a
culpa de todos os tipos de transgressão.
2. O sacerdote fará propiciação pelo altar localizado fora do santuário,
aspergindo sangue do novilho sobre ele (16.18,19). O objetivo é de novo
purificar o altar da impureza de Israel, que neste caso pode ser a possível
falta de sinceridade deles na adoração (16.19).
3. o sacerdote coloca as mãos sobre a cabeça do bode vivo, com isso
transferindo os pecados do povo para o animal, e envia o bode ao deserto
(16.21).

Dessa forma, os pecados do povo são removidos, qualquer que seja a natureza
deles (16.22).

Levítico 16.29-34 ordena claramente que esse evento aconteça anualmente. O


autor aos Hebreus declara que esse é o problema com o “Dia da Propiciação”,
sua repetição anual não possibilita ao adorador uma da consciência
permanentemente limpa (Hb 9.7-9). Por essa razão, essas regras foram válidas
23

só até a morte de Cristo fazer propiciação por todos os pecados cometidos pelo
povo de Deus (Hb 9.10-12).

Antes da propiciação permanente se revelar, o sistema de Levítico oferecia,


numa base anual, propiciação pelos pecados e apresentava um quadro de um
sacrifício maior e vindouro (Hb 9.6-8). O Dia da Propiciação presumivelmente
ajudava a incutir nos israelitas fiéis um forte desejo de um perdão permanente
para o pecado. Depois da cruz, no entanto, à semelhança dos demais sacrifícios,
o Dia da Propiciação está incluído no pagamento único e abrangente que, na
cruz, Jesus fez pelos pecados.
24

4. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

4.1. SANTIDADE E FIDELIDADE: LEVÍTICO 17—27

A santidade e fidelidade são os princípios fundamentais nesse trecho de


Levítico. Israel deve ser diferente das nações cananeias que expulsará (18.1-5).
Os israelitas devem ser santos porque seu Deus é santo (19.2; 20.7,26) e os
separou como povo santo e escolhido (20.26). Deus baseia na santidade pessoal
em Seus princípios (21.23), torna santas as próprias regras (22.16), torna santo o
povo (22.31-33) e torna santas festas religiosas especialmente escolhidas (23.1—
25.54). Os mandamentos destes capítulos têm o propósito de tornar Israel o
povo distinto e separado que Deus escolheu e libertou.

Como santidade e fidelidade estariam presentes entro o povo? Através do


compromisso com Yahweh não apenas na adoração cultual, mas também nas
áreas de sexualidade, relacionamentos e práticas comerciais. Nenhuma área
significativa da vida escapa do chamado à santidade. Conforme Paul House,

A santidade à qual somos chamados não é uma simples questão de


piedade pessoal, nem mesmo uma mera participação na adoração
pública, mas todo um estilo de vida, envolvendo cada aspecto de
compromisso pessoal, familiar e social. A santidade divina impõe
um padrão completo de comportamento moral e social sobre quem
ele escolheu (HOUSE, 2005).

Israel só pode ser santo à medida que obedece à palavra do Santo que os
escolheu e livrou. A santidade deles deriva do relacionamento com Yahweh e se
estende às atividades e relacionamentos com outros seres humanos.

Não haveria razão para Deus livrar Israel a fim de que o povo escolhido se
envolvesse nas mesmas práticas que levam o mundo a afundar numa
depravação cada vez maior. Mais uma nação como todas as outras dificilmente
contribui para melhorar o clima moral da terra. Desse modo os mandamentos de
Levítico 17—19 destacam o fato de que Israel deve ser diferente das nações que
conquistará, deve ser mais santo do que elas. Sua adoração (17.1-16) e práticas
sexuais (18.1-30) devem ser de qualidade superior à dos cananeus. Em vez de
tomar nações corrompidas como modelo, Israel deve igualar o caráter e
consequente comportamento de seu Deus (19.1-37).
25

Levítico 17 renova a escolha divina do tabernáculo como o local próprio para


adoração. No tabernáculo o povo deve fazer seus sacrifícios (17.1-9) e
corretamente utilizar o sangue animal (17.10-12). Ter cuidado nestas questões
evitará que Israel venere deuses falsos (17.7) e se envolva em rituais em que o
participante bebe sangue para adquirir poder divino.

Levítico 18 entra em maior profundidade na vida pessoal dos israelitas. Viver


como povo santo de Deus inclui evitar práticas sexuais que egípcios e cananeus
adotavam em sua adoração e na vida diária (18.1-3). Neste capítulo mencionam-
se cinco questões relacionadas à sexualidade humana, e cada uma das cinco diz
respeito a interação entre adoração e ética.

1. Levítico 18.6 afirma que os israelitas não devem ter relações sexuais com
“uma parenta próxima”; os versículos 7-19 definem essa proibição e
também quem são familiares próximos e familiares distantes, definição
que, por sua vez, permitirá que Israel mantenha a posse da Terra
Prometida (v. 18.24-28). Essas proibições contra atividades sexuais
incestuosas demonstram que Deus se opõe a abusos sexuais, ao uso
errado da autoridade para tirar vantagem sexual, à quebra da confiança
relacional nas famílias e ao uso de qualquer pessoa, não importa o sexo,
como objeto de satisfação de quaisquer desejos desenfreados de alguém.

Outras nações talvez encarem a sexualidade como uma sede que se pode saciar
da maneira como os seres humanos bem entenderem, mas o povo de Deus deve
ter uma abordagem diferente, santa, frente a essas questões. Sexo não é uma
arma a ser empregada para obter vantagens na família ou na sociedade.

2. Yahweh lembra o povo de que o adultério é proibido (18.20). Dentre


outras coisas, o adultério torna impuros os que o cometem (18.20),
enfraquece os laços de família, destrói ou pelo menos prejudica a
confiança do cônjuge e da comunidade e é uma quebra da aliança feita
com Yahweh, cuja fidelidade e apego para com Israel jamais se coloca em
dúvida.
3. Não se deve sacrificar as crianças israelitas a Moloque (18.21), um deus
antigo que frequentemente era representado por uma estátua de bronze
oca e podia ser aquecida, tinha uma cabeça de touro e braços estendidos
para receber crianças a ser sacrificadas. As crianças israelitas não são
alimento para os deuses, nem tampouco é aceitável se livra delas quando
26

criá-las causar algum inconveniente. A fidelidade teológica inclui


responsabilidade dos pais.
4. A homossexualidade é proibida (18.22). Rituais de culto que empregavam
prostitutos sacros homossexuais eram, sem dúvida alguma, “uma prática
de longa tradição em todo o antigo Oriente Próximo em tempos pré-
israelitas” (HOUSE,2005). Tais práticas são “detestáveis”, “uma atividade
que Deus abomina”. A homossexualidade, à semelhança dos pecados já
mencionados, destrói a unidade familiar que Deus institui e deseja
abençoar com a permanência na Terra Prometida. Uma vez mais, a
teologia causa impacto na atividade sexual.
5. Deus denuncia a bestialidade (18.23). A bestialidade é mencionada em
fontes egípcias, cananeias e hititas. Havia um ritual cultual na região
oriental do rio Nilo que envolvia a coabitação de mulheres e bodes.
Ramsés II, possivelmente o faraó do Êxodo, reivindicava ser filho do deus
Ptá, que assumia a forma de um bode (HOUSE, 2005). A bestialidade
rompe os laços familiares estabelecidos quando Deus determinou que
Eva, e não um animal, completasse Adão (Gn 2.18-25).

Tomar parte nessas cinco práticas sexuais proibidas põe em risco o futuro de
Israel na Terra Prometida. De fato, Deus decide remover os cananeus por causa
da teologia e ética corrompidas que tinham (18.24-28). Os israelitas que
preferem atos abomináveis à santidade devem ser eliminados da nação
escolhida, para que o pecado não se espalhe (18.29,30).

Em Levítico 19, Yahweh reafirma que a busca de santidade por Israel


fundamenta-se no princípio de que Deus é santo. O autor Cari Henry comenta
que

santidade não é uma qualidade intrinsicamente humana. Deus é o


Santo de Israel não porque esteja ligado a Israel, mas porque ligou
Israel a si mesmo. Somente na e mediante a revelação divina deste
fato é que Israel se torna uma nação santa, um povo santo, uma
semente santa, uma congregação santa, um reino santo de
sacerdotes

A chave para a posição de Israel como nação santa é o desejo de guardar as leis
e decretos divinos porque Yahweh é seu Deus (19.37). Dessa forma
relacionamento e fidelidade se unem para criar santidade. Entre o alicerce da
santidade (19.2) e sua expectativa (19.2,37) encontram-se desafios que
27

caracterizam o comportamento do povo santo. Em Levítico 19 praticamente


todos os Dez Mandamentos são relembrados e explicados, o que torna este
capítulo uma das grandes declarações éticas das Escrituras junto com textos
como de Amós 5, Miquéias 6, Ezequiel 18 e Jó 31.

• Israel deveria exibir santidade honrando os pais, temendo exclusivamente


a Yahweh, guardando o sábado, rejeitando a idolatria e obedecendo às
exigências sacrificiais (19.3-8).
• Israel deveria exibir santidade em relacionamentos interpessoais (19.9-18).
• Israel deveria exibir santidade preservando os decretos de Yahweh em
diversas áreas da vida (19.19-37).
• Israel deveria exibir santidade executando as punições prescritas por
Yahweh (20.1-27).
• Os sacerdotes deveriam viver como um supremo exemplo de santidade e
dedicação em Israel (21.1–22.33).
• A presença santa de Yahweh entre o Seu povo exigia a observância
meticulosa de Suas festas religiosas (23.1-44).
• A presença santa de Yahweh entre o Seu povo exigia provisão suficiente
dos elementos de culto e uma rápida punição para aqueles que
menosprezassem aquele que era o objeto da adoração de Israel (24.1-23)
• As atividades de Israel na terra deveriam ser governadas pelos princípios
do descanso sabático e da redenção (25.1-55).
• A conduta de Israel deveria ser governada pelas cláusulas pactuais de
bênção e maldição impostas por Yahweh, seu suserano (26.1-46)
• Atos de dedicação voluntária a Yahweh além dos requisitos da aliança
nunca deveriam ser considerados opcionais (27.1-34).

4.2. FESTAS DE ISRAEL E JESUS

O povo de Israel, como nação santa, também tinha de entender que santidade
envolvia um compromisso com os dias santos declarados de convocação à
presença do Senhor. Os dias separados para as celebrações eram o sábado
semanal (Lv 23.3), a Páscoa e a Festa dos Pães sem fermento (4-8), a Festa das
Primícias (9-14), a Festa das Semanas (15-22), a Festa das Trombetas (23-25), o
Dia da Expiação (w. 26-32) e a Festa dos Tabernáculos (33-44). O propósito
destas ocasiões era múltiplo, mas na estrutura da santidade era para lembrar o
28

povo de Deus de que não só pessoas, lugares e ações são santos, mas o tempo
também é santo.

Tem de haver dias separados do calendário de atividades “seculares” e de


interesse próprio para que o povo-servo pondere sobre o significado da sua
existência e da tarefa santa à qual eles foram chamados. Os dias e tempos
especiais os colocava em contato de modo singular com a Pessoa e propósitos
do Deus eterno.

Além do significado para Israel, cada Festa apontava também para algo que
aconteceria no futuro, como um sinal profético do que haveria de vir.

O Sábado

A observância do sábado serve de base para todas as festas israelitas. Presente


no próprio alicerce da criação (Gn 2.2,3) e incluído como parte dos Dez
Mandamentos de Êxodo 20.1-17, o sábado é o lembrete mais consistente, na
verdade semanal, de que o povo santo serve a um Deus santo (23.3).
Interromper o trabalho a cada semana indica que os israelitas não são mais
escravos dos egípcios ou do próprio trabalho. Descansar também permite que
Israel permaneça em comunhão com seu Deus. O sábado também aponta para
o descanso oferecido ao crente por Cristo (Hb 4.1-11).

A Páscoa

Deveria ser celebrada no dia 14 de Nisã, abrindo o calendário litúrgico de Israel


(23.4, 5). Recapitulava a redenção do Egito (Êx 12.1-30), e contemplava a
redenção realizada por Cristo (1 Co 5.7).

A festa dos Pães sem Fermento

Deveria ser celebrada entre os dias 15 e 21 de Nisã com assembleias e sacrifícios


públicos (23.6-8). Recapitulava a saída apressada do Egito (Êx 13.1-10) e
contemplava a comunhão pura com o Messias (1 Co 5.7, 8).

A Festa das Primícias

Deveria ser celebrada na Terra Prometida no dia 16 de Nisã com a apresentação


de um molho de espigas de cevada e sacrifícios dedicatórios (23.9-14).
Antecipava as generosas colheitas que Yahweh lhes daria em Canaã;
29

contemplava a ressurreição de Cristo, que é um penhor da ressurreição do


crente (1 Co 15.20, 23).

A Festa das Semanas

Deveria ser celebrada no dia 6 de Sivã com ofertas de cereais, holocaustos e


uma oferta pelo pecado em favor da nação (23.15-21). Antecipava a alegria pela
plena colheita de grãos; contemplava o pleno desfrute das bênçãos espirituais
do povo de Deus em Pentecostes (At 2.1-4).

A Festa das Trombetas

Deveria ser celebrada no dia 1 de Tisri com um dia de descanso e um holocausto


buscando o favor de Yahweh para com a nação (23.23-25).

O Dia da Expiação

Deveria ser celebrado no dia 10 de Tisri com um dia de descanso e jejum, e os


sacrifícios prescritos (Lv 16; 23.26-32). Retratava a necessidade de purificação
eficaz do pecado; contemplava a propiciação efetuada por Cristo sobre a cruz
(Hb 9.7; 10.3, 19-22) e a futura aceitação de Sua oferta por Israel (Zc 12.10.).

A Festa dos Tabernáculos (Cabanas)

Deveria ser celebrada entre os dias 15 e 21 de Tisri, com ofertas dedicatórias e a


permanência em abrigos temporários para recordar a peregrinação no deserto
(23.33-44). Recapitulava a peregrinação no deserto e contemplava a futura
alegria de Israel no reino messiânico (Zc 14.16).

4.3. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

O decreto de permitir o mal

Levítico não contém muitos elementos narrativos por meio dos quais seja
possível estabelecer como se dá a atividade de Deus na História. O decreto de
permitir o mal fica implícito nas descrições dos sacrifícios e das deficiências
espirituais que os motivavam, bem como nas longas listas de alimentos e
práticas proibidos, que revelam tanto a alienação da criatura de seu Criador
quanto a alienação entre criatura e criatura.

O juízo contra o mal


30

O juízo contra o mal transparece no sistema de expiação vicária, em que vida é


preço de vida diante de um Deus santo e justo. O incidente dramático de
Nadabe e Abiú (10.1,2) serve para indicar, de maneira clara, a importância da
absoluta fidelidade às estipulações da aliança, mesmo àquelas que parecessem
mais banais. O contexto sugere os crimes de usurpação de autoridade,
insubordinação à legislação pactual e possível embriaguez, um contraste
marcante com o ideal de santidade exigido de quem se propunha a servir
perante Yahweh. Encontra-se o mesmo rigor nas maldições contra a
desobediência pactual prometidas em 26.14-39.

A libertação do juízo para os/pelos eleitos

O livramento por meio da semente escolhida não recebe grande ênfase em


Levítico, em que apenas a restauração da nação, depois do castigo pela
desobediência (26.40-45), pode ser diretamente relacionada a esta linha do
plano mestre de Yahweh.

O decreto de abençoar os eleitos

A bênção aos eleitos, por fim, transparece no desfrute da Terra Prometida e da


comunhão com Yahweh por meio da obediência pactual (26.1-13). Israel possui a
certeza, todavia, de que Deus jamais o abandonaria, nem descartaria as
promessas pactuais feitas a Abraão (26.44, 45).
31

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HENRY, C. Deus revelação e autoridade. São Paulo: Hagnos, 2017.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

STOTT, J. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida, 2006.


Veremos hoje:

1. A TEOLOGIA DE NÚMEROS

1.1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS


1.2 PREPARAÇÃO NO SINAI
1.3 INÍCIO DE PEREGRINAÇÃO NO DESERTO

2. A TEOLOGIA DE NÚMEROS — CONTINUAÇÃO

2.1 A INCREDULIDADE DE ISRAEL


2.2 BALAÃO, PROFETA DE DEUS OU ADVINHO PAGÃO?
2.3 BAAL-PEOR E A IDOLATRIA
2.4 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

3. ALIANÇA RENOVADA —DEUTERONÔMIO

3.1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS


3.2 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

4. OS DISCURSOS DE MOISÉS

4.1 O PRIMEIRO DISCURSO – PRÓLOGO HISTÓRICO


4.2 O SEGUNDO DISCURSO – ESTIPULAÇÕES DA ALIANÇA
4.3 O TERCEIRO DISCURSO – RATIFICAÇÕES DA ALIANÇA
4.4 ADMINSTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS
1

1. A TEOLOGIA DE NÚMEROS

Se o Senhor se agradar de nós, ele nos fará entrar nessa terra, onde manam
leite e mel, e a dará a nós. Somente não sejam rebeldes contra o Senhor. E não
tenham medo do povo da terra, porque nós os devoraremos como se fossem
pão. A proteção deles se foi, mas o Senhor está conosco. Não tenham medo
deles! Números 14.8,9

Números é parte da sequência da história de Israel. O livro está entre o êxodo e


a entrada na Terra Prometida.

Estude Números com os olhos bem atentos ao que já passou, às promessas de


Deus em Gênesis, à libertação do Egito e à santidade descrita em Levíticos.
Perceba como Números retoma cada um desses assuntos. Olhe à frente e veja
como cada ato de Deus em Números prepara a próxima geração para a
conquista planejada em Êxodo, preparada em Deuteronômio e, posteriormente,
descrita em Josué.

1.1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

O título hebraico desse livro é bemiḏbar (“no deserto de”), uma alusão à
localização da maior parte dos acontecimentos nele registrados. O título grego,
Ἄριθ μοί, que sobrevive no título em português, enfatiza os dois recenseamentos
nele registrados (que estão longe de ser o elemento mais importante do livro).

Números serve ao propósito de demonstrar como Deus age em fidelidade para


com a Sua aliança, apesar da resistência obstinada do povo escolhido. O
decreto divino de conceder a terra de Canaã a Israel será cumprido, ainda que
seja (sob a ótica humana) retardado pela incredulidade e infidelidade da própria
nação.

O texto assinala que um ano se passou desde que os israelitas saíram do Egito
(1.2). A jornada entre o Sinai e Cades-Barneia, passando pelo golfo de Ácaba,
levaria normalmente apenas onze dias (Dt 1.2). A rota direta consumiria poucos
dias a menos e, passando por Edom e Moabe, dificilmente mais de duas
semanas. A narrativa deixa claro que o período de 40 anos foi uma punição pela
falta de fé: ninguém da geração incrédula teve permissão para entrar na terra
(Nm 14.20-45).
2

De outro lado, Números indica-nos como Deus usou o deserto para preparar
uma geração disposta a confiar Nele e cumprir a Sua vontade em plena
dependência. O breve, mas eloquente, discurso de Josué e Calebe, em 14.7-9,
resume bem o conteúdo do livro. Yahweh agradou-se de um povo que não se
agradou Dele, e que, por essa razão, perdeu o privilégio de ver cumprida a
promessa em sua geração.

Data e autoria

Os argumentos em favor da autoria mosaica de Números estão ligados aos de


Gênesis, Êxodo e Levítico. O livro tem forte apoio nas tradições judaica e cristã,
com base em repetidas ocasiões de comunicação entre Yahweh e Moisés (1.1; 2.1;
4.1 etc.), e na extrema familiaridade de seu autor com os detalhes da narrativa.

A data naturalmente englobaria o período em que Israel vagou entre o Egito e


Canaã. Uma vez que o capítulo 26 apresenta Israel nas planícies de Moabe, o
livro deve ter sido escrito por volta de 1405 a.C., antes da importante transição
na liderança, de Moisés para Josué.

A Mensagem de Números

Apesar de sua forma ser ainda mais fluída que a dos livros que o precederam na
coleção mosaica, o livro de Números tem uma mensagem específica. Tomando
por base uma divisão tríplice do livro:

• Preparação no Sinai, 1.1–10.10


• Peregrinação no Deserto, 10.11–22.1
• Preparação na Transjordânia, 22.2–36.13

O autor Carlos Osvaldo Pinto propõe a seguinte mensagem resumida para


Números: “O estabelecimento de Israel como nação na Terra Prometida sob a
autoridade de Yahweh foi adiado devido à incredulidade do povo e de sua
rebeldia contra os líderes designados por Deus” (PINTO, 2006).

Lugares importantes em Números

Monte Sinai: Cenário dos acontecimentos descritos de Êx 19 até Nm 10.

Cades: Israel acampou vinte vezes antes de chegar a Cades (Nm 33.16-36).
Quase sete capítulos (Nm 13 -20) narram o que se passou quando o povo estava
3

ali. O tabernáculo permaneceu armado neste local por aproximadamente 38


anos.

Vales de Moabe: Os textos referentes a este local são Nm 21; 33. 36-48.

Planícies de Moabe: A história de Balaão é o fato marcante deste lugar. Boa


parte dos acontecimentos relatados em Números se passa lá (Nm 22- 36).

Possível rota do Êxodo

A pessoa e o caráter de Deus em Números

• Deus é imanente

Números enfatiza, de muitas maneiras, a presença constante de Deus entre Seu


povo e com ele. A nuvem que cobria o tabernáculo demonstrava que Yahweh
não era um Deus distante e inacessível, mas que permanecia entre o povo,
mesmo em face de suas frequentes falhas.

Balaão, vidente pagão e teólogo involuntário, afirmou que o Senhor seu Deus é
com ele, no meio dele se ouve a aclamação de um rei (23.21). Igualmente, os
cananeus reconhecem o fato (14.14), mas Israel constantemente desprezava
essa realidade tão preciosa. Vale também lembrar que essa presença se
manifestava em graça (Arca, Dia de Expiação), mas também em ira e disciplina
(11.25; 16.19, 42; 20.6).

• Deus é poderoso
4

Enquanto que em Gênesis o poder de Deus é visto em sua força criativa e


destrutiva, e em Êxodo é demonstrado por Sua soberana intervenção nos
fenômenos da natureza, em Números ele se encontra na provisão sobrenatural
para uma população enorme (cf. 11.4-6, 31-35; 20.1-13) e nos meios incomuns
pelos quais Yahweh disciplina os pecados de Seu povo. Todos eles estão
relacionados a manifestações da ira divina por intermédio de fenômenos raros
como a abertura da terra, o florescer da vara de Arão e a cura pelo olhar para
uma serpente de bronze.

• Deus demonstra ira

Com esta expressão, quer-se dizer que Yahweh se levanta em ira santa contra
violações e violadores de Seus justos padrões morais e pactuais.

• Arão e Miriã (12.9)


• Nação incrédula em Cades (14.10-12)
• Violador do Sábado (15.32-35)
• O próprio Moisés (20.12,13)

Se termos como essencial e secundário se aplicam a Yahweh, o Deus eterno,


podemos dizer que a ira divina é um atributo “secundário”, a manifestação
terrena de sua santidade ou verdade ofendidas. Essa ira, embora “tardia” em sua
manifestação, é tão segura quanto as misericórdias e as promessas da aliança.

Uma das questões principais levantadas pelo livro de Números gira em torno
deste atributo. “Podemos nós, como nação, sobreviver à ira de Yahweh, uma
vez que tantos e tão grandes sucumbiram diante dela? ”. Balaão traz a resposta,
às vezes crítica, às vezes cômica, mas correta na predição de que a promessa
patriarcal ainda era válida e ainda seria cumprida (23.20 e 24.9).

• Deus é misericordioso

A despeito dos repetidos fracassos da geração do Êxodo e das falhas da


geração do deserto às portas da Terra Prometida, Yahweh repetidamente
manifestou a Sua misericórdia, isto é, Sua aprovação para com a intercessão
feita por Moisés (e Arão) para que Ele poupasse a Israel a porção merecida da
justa ira de Deus. Assim acontece no caso de Miriã (12.9-15), com toda a nação
em Cades (14.10-20), depois da rebelião de Corá (16.41-50) e no episódio das
serpentes, próximo a Edom (21.4-8).
5

• Deus é fiel

Talvez o mais notável atributo divino encontrado no livro de Números é a


fidelidade demonstrada por Yahweh para com o Seu povo errante. Ele mantém
Sua promessa incondicional aos patriarcas, a despeito das sucessivas falhas do
povo em se conformar às promessas condicionais de bênção encontradas na
aliança do Sinai.

1.2. PREPARAÇÃO NO SINAI: NÚMEROS 1.1—10.11

Os eventos de Números 1.1—10.11 apresentam Deus como o dirigente e inspirador


de Israel. Um dos momentos maiores das Escrituras, a outorga da lei divina no
monte Sinai, termina aqui, contudo não antes de Yahweh revelar como Israel
marchará, quem será responsável pela infraestrutura de adoração e como Israel
poderá permanecer santo perante Deus. Além dessas instruções espirituais
vitais, Yahweh também dirige Israel ao proporcionar uma nuvem que mostra à
nação quando e aonde viajar (9.15-23).

Alguns estudiosos tentam apresentar uma explicação natural para a nuvem, mas
a própria existência de uma nuvem em todas as estações e o momento exato de
ela erguer-se e mover-se numa direção específica indicam sua natureza
miraculosa. A nuvem simboliza a presença de Deus no meio do povo.
Especificamente Deus está presente para liderar, guiar e inspirar reverência.

Uma vez mais a presença de Yahweh se manifesta entre o povo de uma maneira
tal que indica que Deus ama Israel o suficiente para guiá-los, que mostra que
Deus se move entre seres humanos, que demonstra que Israel depende
totalmente da presença divina e que ilustra como Deus, embora presente, não é
como os seres humanos. Yahweh possui a capacidade de estar presente, mas,
ao mesmo tempo, separado. Pode-se simultaneamente sentir e ver tanto
proximidade quanto distância.

A disposição de Israel em seguir a nuvem na parte inicial do livro demonstra


“que a essa altura de sua caminhada com o Senhor, Israel era obediente e seguia
a orientação do Senhor”. Tal obediência inclui a observância da primeira Páscoa
(9.1-14), o que indica que a santidade, presença e graça contínuas de Yahweh
inspiram Israel a usar o passado para ser fiel no presente.
6

1.3. INÍCIO DA PEREGRINAÇÃO NO DESERTO: NÚMEROS 10.11–22.1

Enquanto a nação continua parada no monte Sinai, o povo parece bem capaz
de obedecer ao Senhor. Contudo, três dias depois de iniciada a viagem rumo a
Canaã eles se veem queixando-se das circunstâncias.

Queixas coletivas e individuais de Israel:

• O povo se cansa do maná e sente saudades dos dias maravilhosos de


escravidão no Egito, quando tinham comida melhor (11.1-9).
• Moisés queixa-se das reclamações infantis de Israel (11.10-15).
• Josué, o ajudante de Moisés, queixa-se quando Deus chama os anciãos
para aliviar o fardo da liderança que estava sobre os ombros de Moisés
(11.28).
• Devido a um problema não mencionado com a esposa de Moisés, Miriã e
Arão queixam-se da autoridade de Moisés (12.1,2).

Fica claro que Israel duvida de Deus, Moisés duvida de Deus, Josué duvida de
Deus, e Miriã e Arão duvidam de Deus. Resta ver se a dúvida vai descambar em
descrença ou se é possível restaurar a fé.

A resposta de Deus é continuar a chamar pessoas para tarefas específicas e


corrigir crenças indevidas:

• Ao designar e capacitar anciãos que partilharão do fardo da liderança,


Deus vem ao encontro das preocupações de Moisés (11.24-27).
• Yahweh responde aos desejos alimentares de Israel ao enviar codornas e
em seguida uma praga a todos os que rejeitaram a constante provisão do
Senhor (11.18-20; 11.31-34).
• A capacidade divina de produzir tal quantidade de carne silencia as
dúvidas de Moisés (11.21- 23), e uma declaração humilde de seu líder vem
ao encontro das preocupações de Josué (11.28-30).
• Miriã e Arão aprendem que a posição especial que ocupam não lhes dá o
direito de rebelar-se contra Moisés, chamado a liderar Israel e receber a
revelação divina (11.4-8).
• Yahweh atinge Miriã com lepra, curando-a somente quando Moisés
intercede por ela (12.10- 16).
7

Certamente cada israelita sabe agora como só a obediência à autoridade


permite que cada indivíduo santo da nação santa desabroche em sua chamada
específica.

Cada israelita possui, então, um chamado único e importante como membro do


povo escolhido de Deus. O êxodo, a aliança, o tabernáculo, a nuvem da
presença e o maná substancioso — tudo isso é testemunho da grandeza de
Yahweh e da importância que Deus atribui a Israel.
8

2. A TEOLOGIA DE NÚMEROS — CONTINUAÇÃO

E o Senhor disse a Moisés: "até quando este povo me tratará com pouco caso?
Até quando se recusará a crer em mim, apesar de todos os sinais que realizei
entre eles? Números 14.11

2.1. A INCREDULIDADE DE ISRAEL: NÚMEROS 13.1—22.1

Situada no centro do livro, essa passagem de Números relata acontecimentos


que possuem trágicas implicações pessoais, históricas e teológicas.

Estacionado nas imediações de Canaã, por ordem de Deus Israel envia espiões
para examinar a Terra Prometida (13.1-16). Doze líderes tribais, dos quais Josué é
o mais conhecido, são escolhidos para a tarefa. Recebem instruções para
apresentar um relatório completo sobre Canaã (13.17-20) e fazem-no conforme
determinado (13.21-27). Nenhum deles tem qualquer palavra negativa sobre a
frutuosidade da terra. A palavra primeira, com que Deus se comprometera com
Moisés, de dar a Israel “uma terra boa e vasta” parece estar na iminência de se
concretizar (Êx 3.7-10). Yahweh tem sido fiel.

Os espiões de Israel não interpretam que a exatidão da descrição divina da


terra, a obra salvadora divina no êxodo, a oferta divina da aliança ou a direção
divina no deserto signifiquem que Israel pode, de fato, possuir a terra que viram.
Não acreditam que o Deus que dirigiu seu passado histórico seja capaz de
determinar seu futuro imediato. Nessa nova situação enxergam apenas as
cidades fortificadas de Canaã e os exércitos experientes, facilmente
esquecendo-se do Deus que afogou os carros de faraó no Mar de Juncos. Desse
modo, com exceção de Calebe e Josué (13.30; 14.6), os líderes aconselham o
povo a permanecer no deserto em vez de atacar os cananeus (13.31-33).

É bem compreensível que as pessoas se entristeçam, mas na grande maioria


acreditam no relatório em vez de na sua herança teológica (14.1-4). Tornam a
desejar que ainda fossem escravos, temem pela vida dos filhos e decidem
escolher um novo líder e voltar para o Egito. Uma última vez Moisés Arão, Josué
e Calebe exortam o povo a abraçar a promessa de terra (14.7), a aceitar a
liderança de Yahweh (14.8), a obedecer a Deus (14.9) e a escolher fé em vez de
medo (14.9). Como reação ao esforço desses líderes, o povo ameaça apedrejá-
9

los (14.10). A fé e a obediência sumiram da maioria do povo. Resta apenas um


grupo remanescente pequeno e fiel.

A repreensão de Javé compreendeu a exclusão da geração do êxodo de Canaã


e a morte dos espias incrédulos (14.22-25).

• A geração do êxodo não entraria em Canaã em razão de sua rebelião


(14.22-25).
• Toda a geração do êxodo morreria no deserto, com exceção de Josué e
Calebe (14.26-35).
• Os dez espias incrédulos morrem de uma praga (14.36-38).

A ira de Deus atinge o âmago de todo pecado, a saber, a incredulidade. Durante


um período de 38 anos Yahweh remove cada pessoa responsável por esse
fiasco. Deus recomeça em Números 15 exatamente como no momento do
chamado a Abrão para sair de Ur, pois aqui Deus oferece leis relacionadas à
posse da terra. Essas leis abordam os temas principais de Levítico.

A incredulidade de Israel e a desobediência resultante dos episódios em


Números custam caro. Nem mesmo o povo escolhido pode negligenciar a
instrução de Yahweh e escapar ileso. A volta de Israel para Cades encerra o
ciclo de punição e estabelece o estágio de preparação para a conquista de
Canaã (20.1–22.1).

• Miriã morreu e foi sepultada em Cades, depois que os israelitas


completaram o ciclo de peregrinação (20.1).
• A nova murmuração de Israel contra Yahweh levou Moisés a um orgulho
pecaminoso e a roubar de Yahweh a glória devida a Ele por suprir Seu
povo (20.2-13).
• A murmuração pela falta de água continua a mesma depois de 38 anos de
disciplina divina (20.2-5).
• A provisão graciosa e paciente de Yahweh exigia que Moisés falasse
àquela rocha, que daria a água necessária (20.6-8).
• O ato de arrogância de Moisés trouxe honra sobre si mesmo e sobre Arão
ao bater duas vezes na rocha (20.9-11).
• A disciplina de Yahweh foi a exclusão de Moisés e de Arão de Canaã
(20.12, 13).
10

Devido à falta de fé, Moisés não poderá partilhar da bênção da Terra Prometida.
A questão não é se ele guardou a lei ou não. O problema é que ele não confiou
em Deus nessa ocasião, a causa básica de sua desobediência. Contudo, apesar
desse castigo a longo prazo, o Senhor ainda espera que Moisés lidere Israel até
que seu sucessor ocupe seu lugar. Ao desempenhar esse papel, Moisés
demonstra uma vontade de servir sem receber recompensas tão desejadas e,
desse modo, distancia-se do israelita mediano, que vivia se queixando e se
revoltando praticamente em cada oportunidade.

2.2. BALAÃO, PROFETA DE DEUS OU ADIVINHO PAGÃO? NÚMEROS 22—24

Aqui, procuraremos definir o verdadeiro caráter de Balaão. Balaão era natural de


Petor, na Mesopotâmia, localidade próxima à cidade de Mari. Descobertas
arqueológicas revelam que existia na região um elaborado sistema religioso,
cujas atividades se assemelhavam às do ganancioso vidente da narrativa de
Números.

Sistema religioso sincrético da Mesopotâmia

A História nos mostra que, na época de Moisés, havia bastante contato entre a
Mesopotâmia e o Egito, de modo que não é de estranhar a aparente
11

familiaridade de Balaão com o nome e as atividades de Yahweh e Seu povo


escolhido, Israel.

O fato de Balaão demonstrar conhecimento detalhado sobre Yahweh não


aponta tanto para sua ligação pessoal com Ele quanto para a soberana
capacidade divina de utilizar até mesmo a rebeldia humana para cumprir Sua
vontade. Quando Números é visto sob a ótica do exercício da soberania divina,
apesar da obstinada resistência humana, Balaão serve como o exemplo de tal
princípio.

Para os mais determinados, que consideram Balaão um “crente que perdeu sua
salvação”, vale observar que ele jamais é designado como um ‫( נָבִיא‬nābî ʾ,
profeta), mas como um ‫( קֹסֵם‬qōsēm, “adivinho”), uma pessoa a quem os israelitas
deviam rejeitar totalmente (Dt 18.10). O fato de Deus ter-se revelado a ele em
sonhos não o torna um profeta legítimo, pois o mesmo aconteceu a reis pagãos
como Abimeleque (Gn 20.3) e Nabucodonosor (Dn 4), em relação aos quais não
há, nem pode haver, qualquer reivindicação profética.

Sua participação no drama de Números

Balaque, rei de Moabe, apavorado com a ameaça israelita, busca os serviços


profissionais de Balaão. A obtenção de vantagens sobre outras pessoas por
intermédio da mágica era prática comum no Oriente Médio antigo.

Balaão, embora advertido por Yahweh contra a atividade proposta por Balaque,
cede à ganância e insiste em ir. Yahweh o adverte contra seus motivos nefastos,
mas permite que Balaão acompanhe os dignitários moabitas, pois em Sua
soberania os usaria para revelar Seu imutável desígnio quanto a Israel, naquela
que é uma das profecias mais abrangentes do Antigo Testamento.

O famoso incidente da mula é outro ingrediente (até humorístico) desse drama


de rebeldia versus soberania. Que a mula tenha falado (sem possuir cordas
vocais capazes disso) só é problema para aqueles que não creem no poder
sobrenatural de Deus. O mais notável é que Balaão tenha demorado tanto a
perceber que a mula era uma ilustração de sua própria obstinação contra a
vontade revelada daquele Deus em quem não acreditava, mas a quem
respeitava.
12

É interessante notar que os temores que levaram Balaque a convocar Balaão


eram infundados, pois, como parentes distantes dos israelitas, os moabitas nada
tinham a temer (Gn 19.26-37; Dt 2.9). Reais ou não, tais temores acabaram por
unir Balaque (“devastador”) e Balaão (“devorador”) contra Israel.

É impossível deixar de notar dois contrastes marcantes na narrativa de Balaão.


O primeiro é a diferença entre a atitude da geração do êxodo – que recuou
diante de um inimigo já derrotado – e a dos moabitas – que viam Israel como um
inimigo invencível. O outro contraste é aquele entre a tentativa humana de
subverter aquilo que Deus estabelecera séculos antes, sua aliança com Abraão,
e a firmeza da vontade do Deus que se comprometera unilateralmente (Gn 15.9-
21) a dar aquela terra a Israel.

A verdadeira natureza de Balaão surge, entretanto, depois de suas três


tentativas frustradas de amaldiçoar o povo. Privado da recompensa prometida
por Balaque, ele recorre aos estratagemas da miscigenação sociorreligiosa para
tentar roubar a Israel o privilégio do cumprimento da aliança. Por tal falsidade,
seu desejo expresso em Números 23.10 não se cumpriu. Seu ato em Baal-Peor
revela quão vago e impessoal era seu conhecimento do Deus de Israel e o
transforma no modelo do falso profeta (2Pe 2.15; Jd 11; Ap 2.14).

Conteúdo e significado de seus oráculos

Conforme já mencionado, os oráculos de Balaão servem ao propósito de


demonstrar à geração do deserto que Yahweh não abriria mão de Suas
promessas mesmo em face de 40 anos de rebeldia e incredulidade.

Oráculo Referência Promessa Paralelo em


Gênesis

1 23.1-12 Crescimento Numérico Gênesis 12.2

2 23.13-26 Segurança e vitória Gênesis 15.1, 14

3 24.1-9 Prosperidade e poder real Gênesis 17.6, 16

4 24.15-19 Dominador e príncipe Gênesis 49.10

5 24.20 Ruína de Amaleque Gênesis 12.3


13

6 24.21-24 Cativeiro para quenitas, Gênesis 12.3


assírios e hebreus (cf. Eber)

2.3. BAAL-PEOR E A IDOLATRIA

Baal-Peor era o deus supremo dos cananeus. Em hebraico, baal significa


“senhor”. Seus adoradores acreditavam ele fosse o responsável pela abundância
da terra e pela fertilidade do ventre. Em Peor, região de Moabe, havia uma
versão local dessa divindade, que era adorada conjuntamente por moabitas e
midianitas. Foi nessa localidade de Sitim, bem defronte de Jericó, que Israel
rompeu a aliança com o seu Deus, pondo-se a cultuar a Baal.

Mulheres moabitas convidam os homens de Israel a participar da adoração de


Baal. Nesse caso a adoração de Baal inclui oferecer sacrifícios, tomar uma
refeição e ter relações com mulheres moabitas (25.1-8). Alguns historiadores
acrescentam que Baal e sua “consorte Anate, identificada de diferentes
maneiras como Asera e Astarte/Astarote, eram venerados por meio das práticas
mais sensuais e orgíacas de que a humanidade tem conhecimento. A idolatria
sexual é tão descarada que um israelita leva uma midianita “para casa”, isto é,
para sua família, à vista do próprio Moisés (25.6). O Israel pós-sinaítico se
entrega ao politeísmo.

Para eliminar o surto idólatra e a praga que Yahweh envia para castigá-lo,
Finéias, filho de Eleazar, executa o israelita e a midianita (25.7-9,14,15).

Em Levítico 18.1-5 e 24—30 Deus advertira contra a adoção de práticas


cananeias de adoração e ordenara que quem quer que esteja envolvido em
adoração politeísta deve ser “eliminado” do meio do povo, de modo que Finéias
provavelmente entende que está purificando Israel de conformidade com a
palavra revelada de Deus.

Além do próprio Balaão, a idolatria de “Baal-Peor ficou indelevelmente marcada


na memória coletiva como um dos pontos mais baixos da história de Israel (Dt
4.3; Os 9.10; SI 106.28).”

2.4. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS


14

O livro de Números oferece um exemplo fascinante do desenvolvimento do


propósito quádruplo de Deus de permitir a existência do mal, de julgar o mal e
triunfar sobre ele em favor da semente escolhida, ou por meio dela, e de
oferecer bênção aos eleitos e, por intermédio deles, a toda humanidade.

1. O decreto de permitir o mal

A cada nova geração, Yahweh confronta os homens com sua inclinação


congênita para o mal. Israel recebeu testes no deserto e, lamentavelmente,
fracassou na maioria deles.

• Cades-Barneia foi o teste crucial, por haver revelado o problema principal


de Israel, sua incredulidade e o consequente menosprezo a Deus (14.23).
• Baal-Peor foi o outro lado desses parênteses de fracasso, revelando o
resultado último da incredulidade e do menosprezo a Deus, que são a
idolatria e a imoralidade mais grosseiras (25.3).

Estes dois incidentes, como registrados por Moisés, deveriam ter servido de
advertência às gerações futuras, que evidentemente não a levaram a sério.

2. A promessa e/ou a ação de julgar o mal

Esta linha de ação divina é particularmente evidente em Números. Cada um dos


fracassos de Israel teve o seu necessário julgamento que, embora não fosse
necessariamente proporcional ao pecado que o causara, revelava o zelo de
Deus para com Sua santidade. O simples fato de que a geração que haveria de
entrar em Canaã foi julgada com maior severidade (24 mil mortes em Baal-Peor
contra 14.700 na rebelião de Corá. Nm 16.49) indicam que Deus não trata o
pecado levianamente e está determinado a puni-lo.

Números também indica que há uma relação entre a extensão da ira de Deus e a
intercessão de Seus servos. Isto não equivale a dizer que a oração, por si só,
altera as decisões divinas ou encurta a disciplina de Yahweh; significa,
outrossim, que soberania, misericórdia e santidade se combinam no exercício da
punição e nos meios pelos quais ela exaure seu curso rapidamente na vida de
alguns e se estende por 38 anos na vida da grande maioria.

Números também indica que o perdão não significa isenção das consequências
do pecado, que são parte do juízo geral contra o pecado. Dois exemplos
15

marcantes desse princípio são a lepra temporária de Miriã e a proibição de que


Moisés entrasse em Canaã.

3. Libertação do mal para/pelos eleitos

Esta linha da atividade divina não se apresenta explicitamente em Números,


embora possa ser inferida de dois incidentes específicos.

Depois do relatório dos espias em Cades, Josué e Calebe destacaram-se como o


remanescente fiel a quem Deus escolhe para herdar a Sua bênção (14.26-38).

A outra ocorrência surge no quarto oráculo de Balaão (24.15-19), em que foi


profetizada a aparição de um indivíduo que exercerá autoridade (24.17 usa as
palavras estrela e cetro; 24.19 fala de um dominador) e destruirá os inimigos de
Israel. A associação com a bênção de Jacó e com o sonho de José aponta para
um conceito de Rei-Conquistador-Salvador que judeus e cristãos têm, por
longos séculos, considerado davídico-messiânico.

4. O decreto de abençoar os eleitos

De uma perspectiva pactual, esta linha de atividade divina limita-se mais aos
oráculos de Balaão. Isso significa que Números, em suas divisões, narrativas e
legais, não acrescenta novas promessas ao estoque já em poder de Israel. No
entanto, tão gritantes haviam sido os fracassos das gerações passada e
presente que foi necessário reafirmar as promessas passadas à medida que
Canaã se aproximava.

Números 23.19, 20 é um começo digno, já que afirma o compromisso imutável


de Yahweh para com os recipientes de Sua aliança. Em suma, Balaão promete
crescimento numérico (23.10), segurança (23.21-23), vitória (21.24),
prosperidade (24.5-7), poder real (i.e., de rei, 24.7b), conquista (24.8, 9) e a
ascensão de um dominador poderoso (24.17-19). Essas promessas constituem
uma reafirmação impressionante das promessas abraâmicas, que Deus anunciou
soberanamente, mediante um relutante profeta pagão, a um povo que não a
merecia. A fidelidade de Deus brilha em meio aos dias escuros do deserto,
iluminando os portais de Canaã.
16

3. ALIANÇA RENOVADA — DEUTERONÔMIO

Estas são as palavras ditas por Moisés a todo o Israel no deserto, a leste do
Jordão, na Arabá, defronte de Sufe, entre Parã e Tofel, Labã, Hazerote e Di-
zaabe.

Deuteronômio 1.1

3.1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Qualquer que seja o padrão de referência, Deuteronômio é um dos livros mais


importantes do cânon. Seu contexto histórico associa as experiências no Sinai e
no deserto à conquista de Canaã e apresenta uma transição da liderança de
Moises para a de Josué.

Devido à sua posição no cânon, Deuteronômio conclui o Pentateuco ao


interpretar na prática Êxodo, Levítico e Números. Suas ênfases teológicas
estabelecem o modo como Israel deve viver na terra que herdará do Deus que o
escolheu.

Seu estilo de exortação e instrução oferece um modelo retórico para


historiadores, profetas, salmistas e sábios do Antigo Testamento. Fora do cânon
hebraico, Deuteronômio está, junto com Gênesis, Salmos e Isaías, entre os
quatro livros veterotestamentários mais citados no Novo Testamento. O próprio
Jesus, em Mateus 4.1-11, emprega passagens de Deuteronômio para resistir às
tentações de satanás. Sem sombra de dúvida, este livro, o ponto alto do
Pentateuco, merece análise teológica cuidadosa.

Título

O título hebraico deste livro é ‫ ֶאלֵה הַדְּ ב ִָרים‬, (ʾellēh haḏdeḇārîm) (“estas são as
palavras”) e aponta para a revelação final recebida pelo grande legislador de
Israel quando a nação se aproximava de seu objetivo de entrar na Terra
Prometida. O título em português é uma transliteração do título grego, dado
pelos tradutores da Septuaginta, Δεύτερος νόμος (deuteros nomos), que significa
“segunda lei”.

Autoria e data
17

A autoria de Moisés tem forte confirmação, tanto no próprio livro como em


outros. À semelhança da maioria dos escritos bíblicos, Moisés escreveu na
terceira pessoa, referindo-se a si próprio mais de 30 vezes nesse livro. Pouco
antes de sua morte, declarou que tinha escrito esta lei antes de entregá-la aos
sacerdotes (Dt 31.9, 24-26).

O livro foi escrito no último ano de Israel no deserto, antes da entrada na Terra
Prometida, aproximadamente em 1410 a.C.

Características literárias

Em nenhum outro livro do Pentateuco a forma literária é tão significativa para a


determinação da mensagem e a compreensão da teologia quanto em
Deuteronômio. O fato de o livro estar disposto segundo os padrões dos
tratados de suserania revela que uma das preocupações do autor foi enfatizar o
caráter e as ações de Deus, como autoridade suprema e as responsabilidades de
Israel, como vassalo, bem como as promessas que Yahweh se obrigava a
cumprir a favor de Israel caso o povo escolhido permanecesse fiel ao
compromisso assumido no Sinai, o qual Deuteronômio evocava e atualizava.

A tabela a seguir estabelece uma comparação entre o tratado de suserania


típico do segundo milênio a.C. e Deuteronômio.

Deuteronômio Tratados de suserania do segundo


milênio

Título (1.1) Título

Preâmbulo Histórico (1.1-5) Prólogo Histórico

Prólogo Histórico (1.6–4.43) Leis e Estipulações

Estipulações da Aliança (4.44–26.19) Colocação do Documento

Renovação da Aliança, Bênçãos e Leitura do Documento


Maldições (27.1–29.1)

Resumo das Exigências da Aliança Invocação das Testemunhas


(29.2–30.20)

Provisão para a Transição (31.1–34.12) Bênçãos e Maldições


18

Sanções da Cerimônia de Votos

• Em Deuteronômio, as estipulações da aliança foram divididas em


estipulações gerais (5.1–11.32) e específicas (12.1–26.19).
• As provisões para a transição, que nos tratados seculares lidavam com a
continuidade da lealdade do vassalo para com o herdeiro do suserano,
descrevem a herança espiritual de Josué, os papéis de mediador da
aliança e de representante da nação, que até esse momento haviam
pertencido a Moisés (31.1-8).
• Em lugar das sanções da cerimônia dos votos, Deuteronômio contém as
bênçãos de Moisés sobre as doze tribos, as quais foram consideradas
proféticas e tinham a força legal de um testamento (33.1-29).
• O livro termina com o obituário de Moisés, algo necessário para dar
validade ao testamento espiritual (34.1-12; cf. Hb 9.16, 17).

Mensagem de Deuteronômio

Conforme o autor e professor Carlos Osvaldo, Deuteronômio foi a fonte maior


das exortações proféticas para que Israel fosse fiel a Deus. Os profetas bíblicos
entenderam bem a mensagem do livro, que foi: “Um amor leal a Yahweh,
expresso em obediência à aliança, é o requisito essencial para a prosperidade e
a permanência na Terra Prometida.”

3.2. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Eugene Merrill indicou que Deus utilizou, como principal instrumento para Sua
autorrevelação, Seus atos poderosos, eventos históricos que a comunidade da
fé pôde reconhecer como divinos. Ele afirma: “Enquanto que em Gênesis o ato
fundamental de Deus é a própria criação, aqui o assunto é menos cósmico; o
foco de Deuteronômio não são as preocupações universais de Deus, mas Seus
propósitos especiais para Seu povo”.

Essa concentração no relacionamento suserano-vassalo sem dúvida contribuiu


para que Deuteronômio se tornasse um favorito entre o povo de Israel, o livro
mais citado, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O Senhor Jesus citou
Deuteronômio para triunfar sobre Satanás (Mt 4.1-11) e para defender Sua
autoridade messiânica, ao definir qual a parte mais importante da Lei (Mt 22.34-
40).
19

O livro é a fonte de exortações proféticas no Antigo Testamento, o parâmetro


pelo qual a sociedade de Israel era medida e, na maioria das vezes, condenada.
Acima de tudo, porém, Deuteronômio foi fundamental para a geração que
crescera no deserto e precisava pensar corretamente a respeito de Yahweh,
para obedecer-Lhe na hora crítica da conquista e desfrutar as bênçãos divinas
na Terra Prometida.

Yahweh está próximo

Este conceito é apresentado quando Israel recebe a ordem de obedecer aos


decretos de Yahweh (cap. 4). A proximidade de Deus é relacionada tanto à
oração quanto à obediência, de modo que Israel pudesse entender que a
presença da glória de Yahweh em seu acampamento, ou melhor, agora na terra,
tornava-O acessível em graça e misericórdia apenas quando a obediência era o
estilo de vida da nação.

A proximidade de Yahweh era entendida por intermédio das teofanias, que


“contribuíam para a Sua aura de majestade e poder e, portanto, persuadiam o
povo de Sua dignidade e autoridade”. Quase sem exceção, essa manifestação se
dava por meio de fogo e escuridão (1.33; 4.11, 2, 33, 36; 9.10, 15; 33.2).

O fogo falava de poder e imanência, da possibilidade de Yahweh ser conhecido,


ainda que parcialmente. A escuridão lembrava que Ele ainda era um Deus
misterioso, que o homem era incapaz de absorver e controlar.

Yahweh é singular

O famoso dito hebreu ‫שמַע יִש ְָּראֵל יהוה אֱֹלהֵינּו יהוה ֶאחָד‬
ְּ (šema ʿyiśrāʾēl ʾăḏōnāy ʾĕlôhênû
ʾăḏōnāy ʾeḥāḏ, “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”), o credo
compacto de Israel (6.4), tem sido de há muito objeto de grande debate. Alguns
entendem o versículo como uma afirmação da unidade de Deus (que Ele é um),
enquanto outros falam de sua unicidade (que Ele é um só).

Os hebreus, entretanto, tinham mais em vista a singularidade de Deus (isto é,


que Ele não tinha igual); seu Deus era um Deus único, sem igual, sem paralelo,
que jamais poderia ser igualado, comparado ou emulado. Esse versículo parece
ter sido um antídoto, ou melhor, uma vacina contra o sincretismo que infestava
Canaã. Não havia possibilidade de associação entre Yahweh e Baal; Yahweh era
20

singular e nenhuma confusão se deveria fazer entre Ele e os falsos deuses das
nações que circundavam Israel.

Sob outro ângulo, Deuteronômio 4.15-19 distingue Yahweh de Sua criação. Em


10.14, Deus é designado como possuidor dos corpos celestes adorados pelos
vizinhos pagãos de Israel. Deuteronômio 12.4 proíbe a adaptação, a
contextualização, por assim dizer, de Yahweh e Seu culto às práticas corruptas e
corruptoras dos cananeus (12.29-32). O sincretismo na adoração levaria
inevitavelmente à confusão com respeito à natureza e caráter de Yahweh, e isto
à corrupção moral, que acabaria por trazer a disciplina prevista na aliança.

Yahweh é ciumento

Este atributo divino manifesta-se mais claramente quando se trata de repartir


com qualquer outro deus seu lugar peculiar de devoção no coração de Seu
povo. O capítulo 4 indica que desde o princípio Yahweh admoestara Israel a não
tratar levianamente Seu zelo por Sua honra e reputação. A idolatria era
zombaria contra Yahweh e exigia castigo e correção. Sua muita bondade era
equilibrada por um zelo que não admitia competição pela lealdade de Seu povo
(4.24; 5.9; 6.15; 13.2-10; 29.20).

O ciúme de Yahweh é um subproduto direto de Sua singularidade (4.35; 6.4), e


Israel não podia se beneficiar de sua relação peculiar com Yahweh enquanto
negava a singularidade do Deus ao Qual alegava estar relacionado em aliança.

Yahweh é amoroso

O amor é um conceito crucial em Deuteronômio, como também é o elemento


que mantém a aliança em funcionamento. O amor tem sua origem em Yahweh
(4.37) e foi expresso em um ato volitivo pelo qual Yahweh determinou
relacionar-se a um povo e, sem qualquer mérito da parte desse povo (7.7-11;
10.14-22), ativamente concretizar aquilo que serviria para o seu bem último. Isso
incluía tanto libertação quanto disciplina (4.20 e 8.5), tanto promessa quanto
preceito (7.11-16).

O amor de Yahweh por Israel é descrito como um relacionamento entre pai e


filho (cf. 1.31), bem à maneira em que eram redigidos os tratados entre
suseranos e vassalos no antigo Oriente Médio (2 Rs 16.7). Particularmente
importante neste contexto era a palavra hebraica ‫[ ֶחסֶד‬ḥeseḏ] (“amor leal”), um
21

termo característico da aliança que significa a fidedignidade pactual de Yahweh,


o Deus que graciosamente se comprometeu com o bem de Seus escolhidos
(cf. 5.10; 7.9, 12; 33.8).

Este relacionamento exigia uma resposta volitiva que podia, como tal, ser
ordenada (6.5; 10.12; 11.1, 13), um amor que se expressava em obediência aos
mandamentos de Yahweh (6.1, 17; 7.11; 8.1) e envolvia a pessoa como um todo
(6.5) e toda a comunidade (29.17[18]; cf. Hb 12.15). A mesma reação foi exigida
pelo Senhor Jesus Cristo. “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos”
(Jo 14.15).
22

4. OS DISCURSOS DE MOISÉS
Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu
Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças. Que
todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensine-as
com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em
casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se
levantar. Amarre-as como um sinal nos braços e prenda-as na testa. Escreva-as
nos batentes das portas de sua casa e em seus portões. Deuteronômio 6. 4-9

4.1. O PRIMEIRO DISCURSO – PRÓLOGO HISTÓRICO: DEUTERONÔMIO 1—4

Deuteronômio começa com uma explicação de seu contexto (1.1-5). No final da


sentença de quarenta anos que tiveram de cumprir no deserto Moisés fala a
Israel (1.3), e fala quando o povo está quase a entrar na terra da promessa (1.1,2).
Estiveram ali antes, mas apenas para se revoltar (Nm 13 e 14).

Moisés fala acerca dos mandamentos revelados por Deus (1.3). Em vez de
entregar quaisquer novas leis, explica que a lei já foi revelada (1.5). Moisés
apresenta um comentário sobre a vontade de Deus, uma exposição que tem o
propósito de tornar claro o que Yahweh já disse.

A mensagem é dirigida “a todo o Israel”, expressão reveladora da união do povo


todo sob a mesma aliança. O que segue é revelação pactual que reflete a
liberdade e soberania divinas ao escolher Israel e relacionar-se com o povo. Essa
revelação revela-se o único caminho que o povo tem para alcançar liberdade e
graça.

Destaques do discurso:

• Moisés começa com um lembrete de que Deus chamou Israel a deixar o


Sinai a fim de possuir a Terra Prometida aos patriarcas (1.6-8).
• A Terra pertence a Yahweh, seu criador (Lv 25.23) e, por isso, é para Israel
uma dádiva que está totalmente ligada ao seu relacionamento com o
Senhor.
• A lei é uma revelação divina que pode ser interpretada e explicada, mas
não alterada (4.2).
• A recusa dos israelitas em obedecer resultará na perda da oportunidade
de possuir Canaã (4.1,2).
23

• Moisés atribui ao exclusivismo na adoração um lugar central no


compromisso de Israel com Yahweh. O povo não deve agir como fez em
Baal-Peor (Nm 25.1-18), se é que quer viver feliz (4.3,4).
• Recordar, recitar e ensinar as verdades ensinadas no Sinai pelo Deus único
fará Israel prosperar e conquistar-lhe-á reputação de nação sábia (4.5-14).
• Embora Deus seja misericordioso e sempre honre a aliança com os
patriarcas (4.29-31), ele está desejoso de permitir Israel sofrer por venerar
deuses que não são Deus (4.27,28).

4.2. O SEGUNDO DISCURSO – ESTIPULAÇÕES DA ALIANÇA: DEUTERONÔMIO 5—28

Moisés passa à sua segunda grande mensagem, que traça as estipulações


genéricas e específicas que Yahweh exige de Israel.

Para as estipulações genéricas de Deuteronômio 5—11 é fundamental o fato de


que Israel deve expressar lealdade total a Deus. Nada menos pode criar
verdadeiramente uma comunidade pactual santa. Esse Deus que merece
dedicação absoluta é o Senhor que transcende o tempo para renovar a aliança
com cada geração sucessiva de israelitas (5.1-33). Yahweh espera lealdade
baseada no amor que permeia todo o povo (6.1- 25), não numa resignação
submissa a um poder mais forte.

Deus ordena que a lealdade exclusiva continue existindo em momentos de


guerra assim como aconteceu em tempos de paz (7.1-26) e adverte o povo a
jamais esquecer-se do Deus que, quando lembrado, sempre traz vida nova por
meio de perdão (8.1—10.11). Finalmente, Moisés lembra a Israel de que o Deus
que seguem merece temor, respeito, amor e obediência (10.12—11.32). Esse
Senhor é capaz de dar-lhes a terra.

Com base nesses princípios genéricos, Moisés detalha, em Deuteronômio 12—16,


expectativas mais específicas e, então, conclui, em Deuteronômio 27 e 28, com
uma declaração sobre as consequências tanto de quebrar a aliança quanto de
obedecê-la. À semelhança das exortações de Deuteronômio 5—11, esses ensinos
não são novos, mas exprimem urgência para o povo que conquistará Canaã.
Aqui Moisés apresenta um Deus que exige adoração séria e cuidadosa (12.1—
16.17), que possui padrões específicos para líderes (16.18—18.22), que estabelece
diretrizes para o comportamento civil numa sociedade santa (19.1—25.19) e que
oferece a Israel a escolha entre a vida e a morte (27.1—28.68).
24

Cada lei demonstra como dedicação total a Yahweh torna-se o comportamento


concreto para a comunidade santa que Deus planeja edificar. Cada mandamento
ajuda Deus a explicar o quanto ele se interessa por cada pequeno detalhe que
afeta o povo amado e escolhido. Cada estipulação fortalece o relacionamento
pactual entre o Criador e a nação eleita.

Destaque do discurso: A confissão de fé

A própria natureza da aliança não é obediência compulsória ou obrigatória, mas


o amor. O amor de Deus é evidente em seu desejo de que tudo vá bem com
Israel (6.1-3). Todos os mandamentos divinos fluem desse amor, que por sua vez
flui do caráter de Deus. Há um só Deus, um só amor e uma só lei. Esses
princípios estão implícitos desde Êxodo 20.2-17, mas agora são explicitamente
expostos na declaração de fé encontrada em Deuteronômio 6.4-9, um texto de
significativa importância canônica.

Três verdades distintas dão forma a essa confissão de fé.

1. O texto diz “O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor” (6.4).

Essas palavras confessam que Yahweh é único e possui um caráter uno. Israel
aprendeu no êxodo que não existe deus como Yahweh (Êx 15.11), pois nenhum
outro deus além de Yahweh agiu ou falou naquela situação histórica crucial.
Uma vez que nenhum outro deus o fez, Israel também aprende que não existe
qualquer outro deus além de Yahweh.

Pelo fato de Deus possuir um caráter constante, o povo pode estar seguro de
que Yahweh é coerente, verídico, revelador e digno de adoração. Algum dia
Israel talvez vá atrás de outros deuses (v. Dt 6.13-15), mas, aprenderão que
“amar outros deuses é ir atrás de nada. Eles não existem. Ele é o primeiro e
único Senhor”. Lido contextualmente junto com os dois primeiros
mandamentos, com 4.39 e com 10.17, este versículo é definitivamente
monoteísta.

2. Deuteronômio 6.5 ordena Israel a amar Yahweh de todo o coração, alma e


mente.

A esta altura o cânon já não deixa dúvida de que Yahweh ama Israel com um
amor terno, imerecido, mas assim mesmo decidido, quase impetuoso, amor este
25

que se recusa a, por fim, deixá-los afundar na idolatria e na correspondente


escuridão e depravação.

Israel deve demonstrar um amor semelhante por Yahweh, o qual, ao contrário


de Israel, o merece. Tal devoção exige desejo emocional (alma), personalidade
espiritual (espírito) e vigor mental e físico (corpo). Desse modo ele inclui todo o
espectro da essência humana. Nenhuma divisão de lealdade ou
compartimentalização da vida ou da personalidade alcançará isso. Não se pode
reter nada de Deus. Esse amor implica uma dependência total de Yahweh, uma
verdade ensinada a Israel pelo menos desde Êxodo 2.23-25. Também implica
uma obrigação de obedecer à verdade.

3. Yahweh ordena ao povo que internalize a aliança e ensine as crianças a


fazer o mesmo (6.6-9).

Cada novo membro da comunidade santa deve receber o ensino dos caminhos
de Deus. A fé não acontece automaticamente. Deve ser entendida e possuída
(6.6), de maneira que cada pai ou mãe deve ensinar sua criança, da mesma
maneira como Moisés vem ensinando-os. A instrução deve ser ministrada com
propósito, incluindo a ponto de tornar-se pública (6.9).

A ideia é de ensinar persistentemente a verdade ou escrevê-la no coração e não


apenas sugeri-la. Esse ensino cuidadoso ajudará a evitar esquecer de Yahweh
em tempos de prosperidade (6.10-12), num novo ambiente (6.13-19) ou quando
surgirem novas gerações, as quais não sabem o que a antiga revelação significa
(6.20- 25).

Só um ensino honrado e correto de uma geração a outra pode manter vivo,


numa cultura politeísta, o amor exclusivo a Yahweh.

4.3. O TERCEITO DISCURSO – RATIFICAÇÃO DA ALIANÇA: DEUTERONÔMIO 29 E 30

Os padrões de Deus estão agora explicados, mas a obra de Moisés não está
terminada. Ele associou o Sinai a Moabe, a primeira geração à segunda, e a
graça de Deus à vida de Israel (29.1). Agora, em sua terceira mensagem ele deve
convocar os israelitas a receber de braços abertos a aliança que determina o
futuro deles. Moisés entende que esse chamado, por meio da palavra revelada
de Deus, intermedeia a vida para Israel (30.15). É também um chamado
26

semelhante à fórmula de convocação de testemunhas, em tratados antigos, para


ratificar a aliança.

Destaques do discurso:

1. A aliança assumida por Israel é o cumprimento das antigas promessas e é


extensiva a futuras gerações (29.10-15).
2. A aliança que receberam é pessoal, compreensível e acessível (29.9-15;
30.11-14). O uso constante que Moisés faz de “vocês” acentua esse detalhe.
A lei desafia Israel a desempenhar tarefas morais e militares difíceis, mas
alcançar esses objetivos não está além de sua capacidade.
3. A aliança desperta Israel para o serviço ao Deus vivo, o qual não possui
semelhança alguma com os ídolos que as nações adoram (29.16-18).
Porque Yahweh vive, Israel vive e pode se relacionar com o único criador,
Yahweh e obedecê-lo.
4. Porque Deus é um ser vivo e relacional, o Senhor manifesta ira face à
infidelidade pactual (29.19-29). A ira é parte da revelação de Deus
(29.27,28), pois serve para educar Israel de que o juízo divino dura
somente até o povo se arrepender, até circuncidar o coração e novamente
amar e servir Yahweh (30.1-10).
5. A revelação divina baseia-se na graça, e a reação de Israel a essa graça
deve se basear na gratidão estimulada pelo amor. A obrigação resulta do
amor; a obrigação não leva ao amor.
6. A dádiva divina da terra é um símbolo físico da graça divina, assim como a
promessa da presença divina é a principal bênção espiritual que Deus
oferece (30.17,18). A falta de obediência amorosa por parte de Israel é a
única maneira do povo perder as bênçãos físicas e espirituais. Doutra
sorte o amor e a vida são inseparáveis (30.19,20).

Continuidade da aliança

• Provisão é feita para a continuidade da aliança sob nova liderança e sob a


benção de seu mediador (31.1–33.29).
• Moisés conduz Josué à função de mediador para garantir a continuidade
da aliança após a conquista da Terra Prometida.
• Diante da notícia definitiva de sua morte, Moisés abençoa a nação como
um segundo Jacó (32.48–33.29).
• As doze tribos são abençoadas conforme as bênçãos da aliança (33.6-25).
27

• Yahweh é celebrado por Seu caráter extraordinário, o que garante o


triunfo final de Israel (33.26-29).
• O final doce-amargo da gloriosa vida de Moisés está registrado
(postumamente) como o final da era do êxodo (34.1-12).
• A morte de Moisés aconteceu em Moabe, fora de Canaã (34.5-8).
• Moisés foi sucedido por Josué, apesar de nunca igualado por ele (34.9-12).

4.4. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

Por não conter trechos significativos de narrativa histórica, Deuteronômio não


se presta muito à análise das quatro linhas de intervenção divina na história,
tendo em vista o cumprimento do plano de restaurar a soberania mediada de
Yahweh (Gn 1.16-28). Mesmo assim, traços desses temas encontram-se no livro,
ao lado de outros aspectos mais proeminentes.

A permissão do pecado

Embora haja referências esparsas sobre a presença do mal em Israel e entre os


habitantes de Canaã, a quem Israel desapossaria, é no capítulo 4 que mais
fortemente se percebe a realidade de que Yahweh soberanamente decide
permitir o mal (incredulidade e idolatria) e determina a punição e a restauração
de Seu povo escolhido.

A promessa/ação de julgar o pecado

Yahweh, ao fazer a promessa da posse da terra a Abraão (Gn 15), afirmou que
ainda não se enchera a medida da iniquidade dos moradores de Canaã. Mais de
cinco séculos depois, em Deuteronômio 7 a hora do ajuste de contas chegou
para os cananeus e seus vizinhos. O juízo severo seria administrado pelos
israelitas invasores sob a forma de um ‫( ח ֶֶרם‬ḥerem, “anátema” ou “edito de
aniquilamento”), a destruição completa de algo ou alguém como um ato de
adoração a Yahweh (cf. 7.2).

Um detalhe que precisa ser observado é que o plano divino incluía um


cronograma relativamente extenso (7.22, 23), que, conforme a onisciência de
Yahweh, antevia não apenas a resistência dos cananeus, mas a própria
incapacidade dos israelitas de confiar plenamente em Yahweh para essa
conquista.
28

O decreto de livramento para os/pelos eleitos

Em Sua função de suserano e com o compromisso assumido de fazer valer as


promessas feitas aos patriarcas, Yahweh liga o livramento para os eleitos com a
sua atividade disciplinadora. A libertação é parte do compromisso pactual para
qualquer ocasião histórica em que Israel, por ter rompido sua parte no acordo,
venha a sofrer as disciplinas da aliança e, reconhecendo seu erro, volte-se a
Yahweh em arrependimento e fé. Em Deuteronômio, Yahweh aparece como o
Deus poderoso para salvar e desejoso de assim fazer (4.34, 37; 5.15; 6.21,22;
7.19).

O decreto de abençoar os eleitos

Deuteronômio apresenta Yahweh como o Deus Redentor (5.6; 6.21-23; 7.8; 8.14;
13.5-10), que abençoa Seu povo com a libertação, e como o Deus Guerreiro (1.4,
30, 42; 2.15, 21, 22; 3.2, 3, 21, 22; 5.15; 7.1, 2; 9.3-5), que sai à frente de Seu povo e
em benefício deste realiza poderosos feitos, especialmente a conquista de
Canaã (ainda fato futuro, ao tempo em que o livro foi escrito).

Esse livro foi escrito, porque Deus não tem interesse em nos dar apenas a
vitória, mas em nos tornar vitoriosos. Deus estava ensinando o povo os
princípios não apenas de conquista, mas de permanência no ambiente da
conquista.
29

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.
Veremos hoje:

1. A TEOLOGIA DE JOSUÉ

1.1 O DEUS QUE LUTA POR ISRAEL


1.2 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS
1.3 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

2. DISCIPLINA E LIBERTAÇÃO

2.1 JUÍZES – QUESTÕES INTRODUTÓRIAS


2.2 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS
2.3 O TESTE DE FIDELIDADE

3. O CICLO DE JUÍZES

3.1 A VIDA E CARREIRA DOS JUÍZES


3.2 CENAS DO FRACASSO
3.3 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

4. A TEOLOGIA DE RUTE

4.1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS


4.2 A SOBERANIA DE DEUS
4.3 A GRAÇA DE DEUS
4.4 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS
1

1. A TEOLOGIA DE JOSUÉ

Em Josué, Juízes e Rute, os princípios básicos da relação humana com Deus são
trabalhados à medida que a história de Israel vai se desdobrando.

Em Josué, a história é primariamente positiva. Vitória e sucesso acompanham o


povo de Deus, enquanto o segue fielmente. O livro de Josué valida as
afirmações de Moisés registradas em Deuteronômio 28.1-14, que diz que Deus
abençoaria os filhos de Israel enquanto eles permanecessem fiéis ao concerto
mosaico.

Em Juízes, o curso dos acontecimentos é primariamente negativo. Quando o


povo de Deus faz o que é certo aos seus próprios olhos, ao invés de fazer o que
é certo aos olhos de Deus, sofrem derrota e fracasso. Juízes prova o aviso de
Moisés em Deuteronômio 28.15-68, que diz que Deus amaldiçoaria os filhos de
Israel quando eles se bandeassem do concerto.

O livro de Rute demonstra que, mesmo no meio de um ambiente apóstata,


quando os indivíduos escolhem confiar em Deus e dedicar-se a Ele, o Senhor os
abençoa e media bênçãos através deles.

Josué, Juízes e Rute validam a revelação dada no Pentateuco. Assim, neste


sentido, eles são a culminação dos livros que os precedem. Também preparam o
terreno para a revelação posterior apresentada em Samuel, Reis e outros livros
históricos do Antigo Testamento.

1.1. O DEUS QUE LUTA POR ISRAEL

Como prometi a Moisés, todo lugar onde puserem os pés eu darei a vocês. Seu
território se estenderá do deserto ao Líbano, e do grande rio, o Eufrates, toda a
terra dos hititas, até o mar Grande, no Oeste. Ninguém conseguirá resistir a
você, todos os dias da sua vida. Assim como estive com Moisés, estarei com
você; nunca o deixarei, nunca o abandonarei. Josué 1.3-5

O livro de Josué recebe seu título do nome do personagem central da narrativa,


Josué, filho de Num, um efrateu nascido no Egito, a quem Moisés havia
preparado para ser seu sucessor, e que efetivamente liderou Israel na conquista
2

da Terra Prometida. O título hebraico é ַ‫( י ְהֹושֻׁע‬yehôs̆uaʿ), enquanto a LXX usa a


forma helenizada Ἰησοῦς (Iēsous).

A tradição talmúdica sustenta que Josué foi o autor do livro, e a nota de sua
morte foi registrada por Eleazar, filho de Arão. O último versículo teria sido
acrescentado por um editor mais recente. O conteúdo do livro sustenta tal
tradição.

O livro oferece uma base teológica, histórica e canônica para fazer uma revisão
dos ensinos do Pentateuco e preparar os leitores para as convicções que
dominarão os livros que vêm logo em seguida no Antigo Testamento.

Existe amplo consenso sobre as convicções teológicas básicas de Josué, e


também existem certas questões que o livro suscita na mente da maioria dos
intérpretes. Ninguém questiona seriamente o fato de que Josué continua os
temas teológicos iniciados em Deuteronômio.

Josué acredita que a força de Israel não é maior do que a consagração do povo
à aliança descrita por Moisés nas falas finais a Israel. A postura na guerra deve
conformar-se aos padrões encontrados em Deuteronômio 7 e Deuteronômio 20.
Deve- se distribuir a terra conforme Moisés anunciou em Números 32, 34 e 35.
Deve-se observar os cultos de Páscoa e de renovação da aliança. Devido a essa
obediência, pode-se esperar que Deus lute por Israel de uma maneira
semelhante a dos milagres do êxodo (Dt 27 e 28).

Contudo, mesmo levando-se em conta esses princípios, ainda restam


dificuldades. Para a maioria dos teólogos, a principal delas é o conceito global
de guerra santa, uma prática que parece contradizer passagens bíblicas, muitas
delas no próprio livro de Deuteronômio, que falam do amor e da bondade de
Deus. Se Josué for lido isoladamente do restante do Antigo Testamento, esse
problema é mais intenso do que se considerado a partir de uma perspectiva
canônica.

O cânon não trata da morte dos cananeus de forma arbitrária ou com pouco
caso. Pelo contrário, a partir de Gênesis 15-16 prepara o leitor para esse material
difícil. Ali o texto dá a Israel quatrocentos anos no Egito para que os amorreus
mudem seu estilo de vida. Levítico 18.24-30 dá-se ao trabalho de dizer que o
povo de Canaã está envolvido em práticas imorais e repulsivas, as quais
obrigam Yahweh a julgá-lo. O que acontece não é uma missão odiosa mandada
3

por Deus. É, sim, juízo divino para o pecado que Deus relutantemente tem
castigado desde o Jardim do Éden.

Deuteronômio 27—28 deixou mais do que claro que, se Israel pecar de forma
parecida, também sentirá os efeitos da ira do Senhor. Nesses relatos Israel não
possui qualquer carta branca moral. É apenas o instrumento humano de
intervenção divina nos negócios humanos e está nessa missão com base numa
revelação acontecida na história, da parte de Deus por intermédio de Moisés.

Josué se desenrola de uma maneira relativamente simples.

Em Josué 1—12 Israel conquista o grosso de Canaã de acordo com as promessas


de Deus. Aqui Deus é descrito como o Deus de Israel, o Deus de toda a terra
(2.11) e o Deus que luta por Israel. O Senhor prepara Josué para ocupar o lugar
de Moisés (1.1-18), em seguida prepara o povo para lutar pela terra que herdará
de Deus (2.1—5.15), e então conduz o povo à vitória (6.1—12.24). Como em
Êxodo 15, o Senhor é descrito como um guerreiro que dá a Israel a vitória sobre
nações aparentemente mais numerosas e poderosas.

Josué 13—21 descreve a divisão da terra. Aqui Deus é visto como o Deus que dá
ao povo um lugar de descanso. Ironicamente Israel tem de lutar para possuir as
regiões mais distantes e remotas da terra de descanso, o que indica que não
mudou a expectativa divina de fidelidade e obediência.

Josué 22—24 descreve cerimônias de renovação da aliança que apresentam a


chave para a posse da terra a longo prazo. Aqui Yahweh é o Deus que espera
uma consagração real na vitória, em tempos de sofrimento e em tempos de
abundância. Essas cerimônias comprovam que o Senhor ainda é o mesmo Deus
que pediu a Abraão que sacrificasse Isaque, que pediu a Jacó para abandonar
os ídolos do lar, que chamou Moisés, que renovou a aliança nas planícies de
Moabe.

Cada uma dessas seções está arraigada na teologia proposta na Lei.

• Não há nenhum desvio do monoteísmo.


• Não há nenhuma hesitação diante da palavra escrita que Moisés deu ao
povo.
• Não há nenhuma dúvida de que a terra que está invadindo vem de Deus,
uma dádiva que Israel não merece de forma alguma.
4

Ainda assim, cometem-se erros. O povo é tão humano quanto seus pais. Mas, ao
contrário de seus genitores, confessa seus erros e aprende a evitar os castigos
severos que são resultado de ignorar a palavra explícita de Deus. Pelo fato do
povo assim proceder, o livro de Josué descreve, na prática, o maior triunfo
teológico e histórico já experimentado pela nação.

1.2. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Estando Josué já perto de Jericó, olhou para cima e viu um homem de pé,
empunhando uma espada. Aproximou-se dele e perguntou-lhe: "Você é por nós,
ou por nossos inimigos? Josué 5.13

Yahweh é poderoso

Três incidentes específicos são usados pelo autor do livro para destacar o poder
de Yahweh como a causa fundamental do sucesso de Israel:

• A travessia do Jordão
• A queda das muralhas de Jericó
• O prolongamento do dia durante a batalha de Gibeão.

Cada um desses acontecimentos tem uma conotação polêmica, já que


envolviam forças naturais supostamente sob controle dos deuses cananitas. O
uso de estratégias claramente contrárias à lógica humana ressalta o fato de que
a capacidade bélica de Israel estava não em seus exércitos, mas no poder de
seu Deus, que lutava por ele.

Yahweh é fiel

O livro abre com a garantia divina de que Sua fidelidade capacitaria Josué para
a tarefa de substituir Moisés e conquistar a terra. Os memoriais erguidos no
Jordão e as suas margens demonstravam que Israel percebia a fidelidade de
Yahweh como a razão de sua chegada à Terra Prometida (4.3-9, 18).

Fiel em todas suas aparições nas Escrituras, Calebe é o troféu da fidelidade de


Yahweh em sua corajosa conquista da terra dos anaquins. O poder de Deus em
vencer os mais temíveis inimigos (gigantes) é ressaltado no triunfo de Calebe,
que tinha 85 anos ao empreender a sua conquista.
5

O resumo deste tema em Josué encontra-se nos capítulos 11.15, 16 e 23.14, 15, em
que se enfatiza não apenas a fidelidade de Deus em realizar as bênçãos, mas
também o castigo pela infidelidade da nação.

Yahweh odeia o pecado

Uma das figuras usadas para Yahweh no Pentateuco é a de um guerreiro (Êx


14.4; 15.3; Dt 3.22). No livro de Josué a figura ganha contornos ainda mais
evidentes com a manifestação do ‫́( שר ְצבָא יהוה‬śar ṣeḇāʾ ʾăḏônāy, príncipe da hoste
do Senhor), que é entendido como uma cristofania (5.13; 6.5).

A atividade de Yahweh como o líder de Israel no campo de batalha precisa ser


entendida como Sua vindicação da santidade divina ofendida por vários séculos
devido ao estilo de vida depravado dos cananeus. O câncer moral que se
instalara em Canaã nascera na tenda de Noé, após o dilúvio (Gn 9.20-27), e se
perpetuara no caráter e na conduta dos descendentes de Cão (a maldição
corporativa de Noé foi lançada contra o neto, porque ele haveria de reproduzir
o caráter profano do pai).

Depois de séculos em que os testemunhos piedosos de Abraão e


Melquisedeque foram ostensivamente rejeitados e toda sorte de maldade se
tornara lugar-comum, Yahweh lançou-se à luta contra os cananeus e usou os
israelitas para eliminar do mundo uma sociedade corrupta e corruptora.

A prova de que tal tratamento não era cruel, arbitrário e caprichoso é que o
pecado de Israel foi punido com igual severidade (Js 7), de modo que a
santidade de Deus ficasse evidente a todos, israelitas e cananeus. Outra prova é
que a misericórdia divina podia se estender a não-israelitas, desde que, pela fé,
se colocassem sob a mão de Yahweh .

Josué percebeu claramente que a absoluta santidade de Yahweh tornava


impossível a Israel adorá-lo sem incorrer em falhas, que haveriam de suscitar a
ira disciplinadora do Deus da aliança (24.19, 20). Em certo sentido, Josué
profetizava os acontecimentos trágicos do livro de Juízes e apontava para a
necessidade de uma provisão ainda maior que a oferecida pela lei mosaica.

1.3. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS


6

O livro de Josué apresenta uma série de incidentes que realça a intervenção de


Deus na História – tempo e espaço – para o cumprimento de Seu propósito
maior, a restauração de Sua soberania mediada sobre a criação. O
estabelecimento de Israel em Canaã era parte integrante desse processo, como
já fora prometido aos patriarcas e reiterado a Moisés, quando da saída do povo
do Egito (Êx 15.17, 18).

1. A permissão do pecado

O episódio mais marcante é certamente o pecado de Acã, que combinou


ganância com precipitação, presumindo ser capaz de melhor prover suas
necessidades ou desejos do que Yahweh. A visão de que Yahweh obteria glória,
mesmo por meio de tal situação, aparece em Josué 7.19. O efeito corporativo de
uma transgressão individual ressalta a razão pela qual Yahweh, no final do livro,
se mostra tão severo em Suas exortações contra o pecado da infidelidade. O
temor que o próprio Josué sentiu (8.1), indica que mesmo uma tragédia desse
porte tem seu efeito benéfico, quando o povo de Deus leva a sério Sua
santidade e o zelo que Ele tem por Seu nome.

Outro episódio que ressalta esse aspecto do propósito de Deus é a trama dos
gibeonitas, levianamente aceita por Josué e pelos anciãos de Israel (9.1-27). Este
foi o primeiro de vários enclaves cananitas que restariam entre os israelitas, e
que Deus usaria para pôr à prova o coração de Seu povo (Jz 1.19-36; 2.1-3, 20-
23).

2. A promessa/ação de julgar o pecado

Mais uma vez, é o incidente de Acã que fornece o principal exemplo da ação
divina contra o pecado. A verdade é que, se levarmos em conta Gênesis 15.16,
todo o livro é um exemplo dessa ação.

A circuncisão dos israelitas ao atravessar o Jordão é um episódio que revela o


empenho de Yahweh em remover barreiras de pecado e desobediência que
impeçam Seu povo de desfrutar plenamente as bênçãos que Ele deseja lhes
conceder. A geração que no deserto fora privada da participação formal na
aliança abraâmica precisava, agora, no momento mais crítico de sua breve
estada na Terra Prometida, aprender o sentido da dependência de Yahweh. A
desobediência e alienação, características de Israel no Egito, foram ali
7

extirpadas simbolicamente e o povo foi preparado para desfrutar as bênçãos


das duas alianças (Js 5.1-12).

A determinação divina de punir o mal é reforçada pela exortação final de Josué


quanto ao perigo da miscigenação com os cananeus, que acabaria por produzir
o castigo pactual de expulsão da Terra Prometida (23.12, 13).

3. O decreto de livramento para os eleitos e por eles

Em meio aos predestinados à destruição, em Canaã, uns poucos viveram por ter
lançado Sua sorte com o povo de Deus.

Raabe e sua família escaparam à destruição maciça de Jericó (caps. 2 e 6) e os


gibeonitas escaparam duas vezes à destruição completa, uma vez por meio de
mentira e engano, e outra pela fidelidade que um voto em nome de Yahweh
impusera a Israel (caps. 9 e 10).

4. O decreto de abençoar os eleitos

Essa determinação divina aparece sempre atrelada à obediência aos preceitos


da aliança contidos na lei de Moisés (1.6-8; 23.6-8). Josué, o líder do povo, seria
abençoado se perseverasse na observância da Lei, e igualmente toda a nação se
beneficiaria se mantivesse Yahweh como o único objeto de sua devoção.

O exemplo individual de Calebe se destaca no livro de Josué, como prova de


que a fidelidade a Yahweh, mesmo em meio à dúvida e à oposição, acabaria
tendo recompensa fiel e gratificante (14.6-15).
8

2. DISCIPLINA E LIBERTAÇÃO

Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo.
Juízes 17.6

2.1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Lido a partir de certa perspectiva, Juízes é um livro bem direto. Sua teologia
espelha as advertências de Deuteronômio 28.15-68, pois o povo comete
idolatria, sofre as consequências do seu pecado, arrepende-se e clama a
Yahweh por ajuda, recebe auxílio e então volta-se de novo para a idolatria (Jz
2.6—3.6).

A idolatria envolvida soa parecida com a de Êxodo 32—34 e Números 25, como
também soa parecida a resposta do Senhor à transgressão. Ademais, Israel tem
uma sequência de líderes que aparentemente ocupam o lugar de Moisés e
Josué, mas que não alcançam os mesmos padrões estabelecidos por aqueles
dois homens ou por Deuteronômio.

Finalmente, Israel depara-se com novos e difíceis adversários, os quais não têm
qualquer intenção de entregar Canaã a seus inimigos hebreus.

Lido, no entanto, a partir de outra perspectiva o livro é mais complexo,


terrivelmente deformado, sombrio e brutal. Assassinato, estupro, idolatria,
perversão e traição tornam-se o pano de fundo para teologia. A ironia permeia o
todo. Significativas falhas de caráter aparecem em pessoas que, espera-se,
conduzam o povo de volta a Deus ou pelo menos para longe do inimigo.
Fracassos abundam. Derrotas são normais.

Título

Esse livro recebe seu título dos homens (e da mulher) que, sob a direção
espiritual e capacitação militar de Yahweh, mediaram a teocracia durante o
período entre a morte de Josué e a coroação de Saul como o primeiro rei de
Israel. O nome hebraico do livro é ‫שפטִים‬
ְ (́šōp̄eṭîm), e o nome grego é κριταῖ
(kritai), ambos significando “juízes”.
9

Data

O livro oferece pelo menos uma indicação clara de sua data de composição, a
frase várias vezes repetida, naqueles dias não havia rei em Israel (18.1; 19.1),
indica uma data entre a inauguração da monarquia (c. 1050 a.C.) e a divisão do
reino ao tempo de Roboão (c. 930 a.C.), já que apenas Israel é mencionado.

Autoria

A determinação da autoria do livro é uma questão bem mais difícil que a de sua
data. O Talmude afirma que Samuel foi seu autor, mas isto é muito difícil de
provar. Quem quer que tenha sido o autor de Juízes fez uso de diversas fontes
originadas nas várias tribos de Israel.

A perspectiva teológica do autor em demonstrar a infidelidade de Israel às


estipulações da aliança tem o tom de uma denúncia profética, mas não pode ter
sido escrito por qualquer das duas pessoas que aparecem no livro como
profetas, Débora (5.4) e um anônimo (6.7), pois ambos viveram muito no início
do período para testemunhar seus acontecimentos posteriores. Assim o autor
pode ser associado com a escola de profetas que já existia ao tempo de Samuel
(1 Sm 10.9).

Mensagem

Conforme o autor Carlos Osvaldo, a mensagem de Juízes se resume da seguinte


maneira: “O fracasso da teocracia no período dos juízes deveu-se à infidelidade
de Israel à aliança e à falta de uma liderança espiritual e política permanente.”

2.2. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Yahweh é justo

Embora Juízes pinte um quadro sombrio da vida de uma nação que se afastou
dos preceitos de vida exigidos por seu Deus, tal quadro serve para realçar a
justiça de Yahweh em fazer cumprir as maldições de Sua aliança. Pode-se
afirmar, fundamentado em Juízes, que Yahweh prefere manter Sua reputação a
permitir a ideia de que Seu caráter santo seja violado sem consequências.

Yahweh é soberano
10

O autor de Juízes menciona diversas causas pelas quais Israel não foi capaz de
efetivamente possuir toda a terra de Canaã (armamento superior dos cananeus
[1.19]; determinação dos cananeus [1.27]; e pura apostasia [2.2, 11-13]). A razão
principal, todavia, parece ser a determinação soberana de Yahweh em utilizar o
remanescente cananita para provar (e reprovar) as gerações subsequentes à
conquista (3.1-4). Essa perspectiva dupla é típica da mentalidade teocêntrica de
Israel, embora pareça contraditória a nossos olhos ocidentais.

Em Juízes, duas linhas de ação revelam essa faceta do caráter de Yahweh. A


frase, e os entregou nas mãos de, que traduz as expressões hebraicas ‫וי ִתְ נֵם ְבי ָד‬
(wayyṯnēm beyaḏ) e ‫( וי ִ ְמכ ְֵרם ְבי ָד‬wayymkerēm beyaḏ), [2.15 e 3.8; 4.2; 10.7], tira do
campo meramente sócio-político as constantes opressões a que Israel foi
sujeito, e coloca-as em uma esfera maior, que abrange céus e terra.

Em contrapartida, a expressão ַ‫שיע‬


ִ ‫́( וי ָ ֶקם יהוה מֹו‬wayyāqem ʾădōnay môšîaʿ, “e
Yahweh suscitou um libertador”) indica que também a solução dos problemas
de Israel tinha sua origem no Deus que soberanamente atraía de volta Seu povo
rebelde.

Embora apenas Otniel e Eúde sejam assim designados, a comissão de Débora,


de Gideão e de Jefté, todos péssimos candidatos do ponto de vista humano,
indica a determinação divina de utilizar o que menos teria mérito próprio, para
melhor evidenciar Seu poder. De igual modo, o nascimento sobrenatural de
Sansão prova a intervenção soberana de Yahweh em favor de Seu povo.

Yahweh é misericordioso

Em cumprimento às estipulações da aliança, Yahweh disciplinou o Seu povo


rebelde, mas isso não O tornou insensível ao seu sofrimento e à possibilidade de
que viesse a ser exterminado pelos que o oprimiam. A constância da
misericórdia de Yahweh é mais comovente que a irracionalidade e cegueira de
Israel. Juízes prova que a misericórdia de Yahweh nunca é sobrepujada pelo
pecado do homem, e que o penitente sempre encontrará um Deus de braços
estendidos a recebê-lo.

2.3. O TESTE DE FIDELIDADE: JUÍZES 1.1—3.6

A morte de Josué inicia uma nova era de quebra da aliança, o que os esforços
de renovação da aliança em Josué 23 e 24 procuraram adiar. A cena histórica
11

influencia os compromissos teológicos de Israel que a essa altura, tendo ficado


sem liderança forte e confrontados por inimigos poderosos que defendem seus
sistemas de crenças, muda seus compromissos de fé.

A reação divina à falta de fé é entregar Israel às nações estrangeiras e deixar


que os deuses dessas nações se tornem uma armadilha para o povo (2.1-5).
Dessa forma o Senhor pode testar a resolução que o povo tomou de servir o
Deus vivo (2.21-23). Devido a casamentos mistos e à idolatria resultante, Israel
não passa no teste (3.1-6). Essa reprovação traz à memória dos leitores a
catástrofe de Baal-Peor (Nm 25.1-18).

Os deuses de Canaã revelam-se uma armadilha para Israel porque são o


contrário dos princípios declarados na Lei. A religião cananeia era politeísta,
permeada por uma sexualidade resultante de sua ênfase na fertilidade e repleta
de imagens. Ela simbolizava tudo o que, aos olhos de Deus, estava errado em
Canaã (Lv 18.24-30), ligava o povo escolhido às práticas que Deus condenou no
seu elogio à fé de Abraão (Gn 15.16) e, numa situação de guerra santa, colocava
os israelitas na situação vulnerável de estar do lado errado da ira de Yahweh (Dt
18.15-68).

Juízes 2.16-19 apresenta os problemas teológicos básicos do livro. Quando Israel


segue os deuses cananeus, que tinham em Baal seu grande expoente, Yahweh
entrega o povo a nações opressoras (2.11-15). Essa parte da provação não raro
leva a nação a pedir a ajuda de Deus, a qual vem na forma de juízes que
conduzem o povo à liberdade (2.16-18).

Então o Senhor levantou juízes, que os libertaram das mãos daqueles que os
atacavam. Mesmo assim eles não quiseram ouvir os juízes, antes se prostituíram
com outros deuses e os adoraram. Ao contrário dos seus antepassados, logo se
desviaram do caminho pelo qual os seus antepassados tinham andado, o
caminho da obediência aos mandamentos do Senhor. Sempre que o Senhor lhes
levantava um juiz, ele estava com o juiz e os salvava das mãos de seus inimigos
enquanto o juiz vivia; pois o Senhor tinha misericórdia por causa dos gemidos
deles diante daqueles que os oprimiam e os afligiam. Juízes 2.16-18

O texto de Juízes provoca uma pausa na teologia canônica do descanso de


Israel na terra prometida. O povo experimenta o cumprimento físico das
promessas a Abraão, mas não desfruta os benefícios da fidelidade pessoal, os
12

quais são o verdadeiro centro do que Deus começou a fazer quando chamou
Abraão a sair de Ur.

O povo não percebe que o objetivo de Yahweh não era apenas dar ao povo
escolhido um pedaço de terra, por mais significativo que fosse tal dádiva, mas
solucionar o problema do pecado mediante a criação de um sistema de perdão
dentro de uma nação que poderia agir como reino de sacerdotes para todo o
mundo. O fato de os juízes não conseguirem motivar o povo a obedecer à
aliança também cria um dilema de liderança, o qual marcará o restante do
Antigo Testamento.

Essa passagem também levanta a questão de quando, por que e como Deus
testa pessoas da aliança. Em Gênesis 22 o texto declara sem rodeios que
Yahweh decide testar Abraão para ver quem é mais importante para o patriarca:
Yahweh ou Isaque. Esse teste mostra que a fé deve ter precedência sobre
bênçãos fisicamente observáveis que Deus dá aos fiéis. O mesmo é válido em
Juízes. Os israelitas agem como se viver em Canaã fosse tudo o que desejam
considerar a respeito da aliança. Deus não permite que se deem a esse luxo. O
Senhor, sem quaisquer reservas, comprometeu-se com Israel (2.1) e espera o
mesmo do parceiro da aliança.

O anjo do Senhor subiu de Gilgal a Boquim e disse: "Tirei vocês do Egito e os


trouxe para a terra que prometi com juramento que daria a seus antepassados.
Eu disse: Jamais quebrarei a minha aliança com vocês. Juízes 2.1

A fidelidade absoluta de Yahweh é boa notícia para os israelitas, pois só


precisam retornar ao monoteísmo firme e resoluto para voltar a receber as
plenas bênçãos da aliança. Passar no teste é do interesse do povo e decidirá em
parte como o problema do pecado é solucionado para todas as nações.
13

3. O CICLO DE JUÍZES

3.1. A VIDA E CARREIRA DOS JUÍZES: JUÍZES 3.7—16.31

O que vem a seguir não será uma história de sucesso teológico, nessa parte do
texto temos a vida e a carreira dos juízes. Há juízes que cometem muitos dos
mesmos erros do povo e, às vezes, fazem coisas piores que o povo. Nesses
capítulos a decadência do povo equipara-se ao declínio moral dos juízes.

Nas primeiras narrativas dos juízes (Otniel, Eúde, Débora), o separar-se de


Yahweh tem origem no povo — “fizeram o que o Senhor reprova”. Com Gideão,
o desviar-se de Yahweh tem origem no próprio juiz, e o povo continua no estilo
de vida que vinha tendo. Em vez de ensinar ao povo, o juiz aprende com eles.
Finalmente, com o último juiz, a fé judaica torna-se aliança vazia e promessa
vazia, algo desprovido de sentido para Israel.

Assim mesmo os juízes são o meio de o Senhor ajudar a nação escolhida e são
os instrumentos humanos mediante os quais Deus permanece fiel ao próprio
caráter e aos israelitas. Isso ressalta talvez a época dificílima e o baixo nível do
caráter da nação.

Síntese de alguns juízes

Débora é a mais impressionante dentre os três primeiros juízes, ela desempenha


um papel duplo no relato, pois é ao mesmo tempo profetiza e juíza (4.4). Todo
o Israel vem até ela, uma juíza, em busca de conselho (4.5). Como profetiza,
anuncia o desejo divino de que os israelitas combatam seus inimigos e esperem
pela vitória divinamente outorgada (4.6,7). Ela convence Baraque a liderar as
forças de Israel, e o povo conquista de fato uma grande vitória, o que ela
imortaliza num cântico (5.1-31).

A carreira de Gideão reflete o relacionamento que a nação tinha com Yahweh


naquela época. Ele recebe um chamado divino para liderar a nação (6.11-18). Em
diversos pontos esse chamado assemelha-se ao de Moisés. Assim, ele tem apoio
divino, e esse apoio resulta numa vitória miraculosa sobre os opressores, os
midianitas (6.11—7.25). A semelhança de Israel, após a vitória Gideão volta-se
para práticas religiosas questionáveis. Dos israelitas ele toma ouro e faz um
manto de ouro, uma situação parecida demais com o incidente do bezerro de
ouro e, portanto, incapaz de oferecer algum consolo teológico. Israel usa o
14

manto para revoltar-se contra Deus (8.27). Gideão precisou ter fé para livrar
Israel, mas essa fé não remove a idolatria do futuro imediato, seja do próprio
Gideão, seja de Israel.

Jefté (11.29) e Sansão (13.25;14.6,9;15.14,19), mesmo juízes capacitados pelo


Espírito, são pessoalmente incapazes de serem fiéis à aliança.

Numa carta diplomática Jefté fala favoravelmente do deus de Edom (11.24), um


gesto pragmático que revela que ele é alguém que praticamente não está
inclinado a remover os não-deuses denunciados por Moisés. Pior ainda, ele
contamina a adoração de Yahweh. Ele faz um voto de, caso Deus lhe conceda
vitória na guerra, sacrificar, quando estiver de volta, o que quer que saia de sua
casa (11.30,31), sem dúvida esperando que algum animal saísse da casa. Em vez
disso, sua filha sai para encontrar-se com ele, e, violando leis acerca da
redenção de primogênitos (Nm 18.16; Lv27.1,2) e leis que proibiam sacrifícios
humanos (Lv 18.21), ele cumpre o voto. Na melhor das hipóteses, Jefté é alguém
que mistura a adoração de Yahweh com práticas politeístas e não conhece os
reais padrões divinos. Dessa forma ele representa a condição espiritual do povo
em geral.

Sansão é uma personagem ainda mais instável do que Jefté. O anjo de Deus
anuncia o nascimento de Sansão, o que o coloca em marcante destaque, algo
que não se via desde a experiência de chamado de Gideão (13.1- 23). Sem
dúvida esse juiz é, como o próprio Israel, escolhido por Deus para propósitos
especiais. A singularidade de Sansão é ressaltada pelo fato de ele ser nazireu
desde o nascimento, chamado que, de acordo com Números 6.1-21, significa que
ele não deve tomar bebida forte, não deve tocar em cadáveres e não deve
cortar o cabelo. Ele deve ser santo para o Senhor. Deus abençoa-o, enchendo-o
com o Espírito do Senhor (13.24,25). Dessa maneira ele consegue operar
grandes atos de força e bravura porque Yahweh deseja usá-lo para castigar os
inimigos de Israel (Jz 15.4). A reação divina diante da dor do povo escolhido é
dar-lhe um líder incrivelmente capacitado.

Sansão tem uma forte inclinação por mulheres filisteias, apesar do que a lei diz a
respeito de casamento com quem não adora Yahweh (v. Dt 7.3) e apesar das
objeções de seus pais contra essa quebra de tradição. As suas inclinações,
atraem-no a uma esposa (14.5-20), a uma prostituta (16.1) e a uma amante (16.4-
17), todas elas filisteias. Muito depois de quebrar os demais votos de nazireu, sua
15

amante filisteia corta-lhe o cabelo, o poder de Deus abandona-o, e ele tem os


olhos vazados e é levado cativo pelos inimigos (16.18-22). No fim ele se vinga,
matando adoradores de Dagom, um deus cananeu da colheita.

Como o povo de sua época, Sansão termina a vida sem liberdade, fazendo tudo
ao seu alcance para lançar um golpe em seus adversários. Fez tudo que se
esperava dele, quer dizer, exceto consagrar-se sem ressalvas ao Deus que
reagiu com misericórdia a cada uma das súplicas sinceras de livramento feitas
pelo povo.

3.2. CENAS DO FRACASSO: JUÍZES 17—21

Em nenhum momento de Juízes 17—21 o texto declara que o senhor traz uma
nação estrangeira para punir Israel, mas descreve o povo escolhido como
pessoas entregues aos resultados da própria iniquidade. O principal resultado é
uma guerra civil causada pela impiedade sem freios do povo. Até esse momento
do livro Deus vem reagindo com justiça e misericórdia. Agora o senhor reage,
deixando que a nação se entregue às suas tendências violentas e destrutivas, as
quais são a consequência natural de sua fé dividida em Yahweh e de seu amor
ostensivo por outros deuses.

A veneração de ídolos e o desrespeito ao nome de Yahweh estão no centro do


desmoronamento teológico e ético de Israel.

Um homem chamado Mica rouba prata da mãe e então confessa o roubo para
ela. Alegre e satisfeita por ter a prata de volta, ela consagra o metal para a
confecção de um ídolo, após o que, o filho contrata um levita de Belém para ser
sacerdote desse ídolo e da família (17.1-13). Entendendo a aliança mosaica de
forma totalmente errada, Mica acha que Deus irá abençoá-lo porque conseguiu
um levita para dirigir a adoração do ídolo (17.13). No episódio seguinte, alguns
danitas planejam conquistar uma cidade calma e tranquila e pedem ao levita
que consulte Yahweh se devem atacar a cidade. O sacerdote do ídolo diz que o
Senhor está com eles (18.1-6). Quando conquistam a cidade, ficam tão satisfeitos
com o levita, que o levam como seu sacerdote, prometendo-lhe o tempo todo
maior salário e reconhecimento. Ameaçam matar Mica, que quer seu sacerdote
de volta (18.7-30). Assim que se instalam, adoram o ídolo feito pela mãe de Mica
(18.31).
16

Sem dúvida esses relatos apresentam uma sequência chocante de violações da


aliança, todas sob o pretexto de adoração conforme as normas.

Essa lista de ofensas e a razão disso acontecer acham-se explicadas em Juízes


17.6. “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia
certo”. Fé e obediência não significavam praticamente nada, conforme fica
demonstrado no relato seguinte.

Talvez, dentre os relatos que encontramos nas Escrituras, nenhum outro seja
moralmente mais repugnante do que o de Juízes 19. A degeneração moral e
social de Israel é ilustrada pelos episódios de atrocidade em Gibeá e pela guerra
nacional contra Benjamim (19.1–21.25).

• O estupro coletivo e o assassinato de uma mulher de Benjamim, em Gibeá,


demonstram que Israel descera ainda mais fundo que seus vizinhos
pagãos em sua degeneração moral (19.1-30).
• A insensibilidade dos benjamitas com a atrocidade em Gibeá provocou
uma ação disciplinar excessiva contra a tribo, que praticamente a
extinguiu (20.1-48).
• O suprimento de esposas para os sobreviventes benjamitas ilustra o
subterfúgio espiritual e a desintegração social de Israel (21.1-24).
• A avaliação do período demonstra a necessidade que Israel tinha de
mediação centralizada da teocracia (21.25).

Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo.
Juízes 21.25

3.3. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

A permissão do mal

Naturalmente a passagem em que tal decreto é mais evidente se encontra em


3.1-4, que resume as muitas causas “humanas” para o fracasso de Israel na
conquista absoluta da terra.

O Deus que haveria de produzir o bem maior da monarquia teocrática,


“suportou com paciência” a irresponsabilidade humana, e a utilizou
soberanamente para atingir seus fins. De igual modo, as flagrantes deficiências
dos juízes, mesmo quando influenciados pelo Espírito de Deus (Sansão e
17

Gideão), indicam que a presença do elemento humano nos planos de Deus,


longe de limitá-los ou prejudicar sua concretização, acaba por confirmá-los em
seus matizes de graça e poder.

A promessa/ação de julgar o mal

Juízes é a ilustração deste aspecto do propósito de Deus no Antigo Testamento.


O ciclo de desvio-disciplina-alívio revela que essa atividade divina se aplica não
apenas a Seu povo em pecado, mas também aos instrumentos humanos que
Yahweh utiliza para discipliná-lo (Is 10.5, 12s.).

Esses ciclos (3.6–16.31) sempre iniciam com uma volta ao pecado. Esse pecado,
principalmente de natureza religiosa, possivelmente causado pelo apelo ao
baalismo em uma sociedade agropastoril e pelo constante problema de
casamentos mistos entre os israelitas e os povos vizinhos (3.6, 7). O pecado
trouxe a desintegração da sociedade e a opressão dos inimigos, que somente o
arrependimento e a busca a Deus pela obediência poderiam superar.

Exemplos:

O primeiro ciclo registrado é o da invasão dos arameus (3.6-11), que foi causada
pelo conhecido binômio esposas estrangeiras – deuses estranhos (3.6, 7). Oito
anos de opressão, sob o jugo dos arameus (3.8), colocaram Israel de joelhos
(3.9), e Yahweh supriu livramento por intermédio de Otniel (3.9, 10). A soberania
de Yahweh sobre as nações é enfatizada como a causa da vitória de Otniel e do
período de repouso que se seguiu (3.10, 11).

O segundo ciclo registrado envolveu o ataque e a opressão dos moabitas,


inimigos de Israel ao leste (3.12-30). Dessa vez, a disciplina envolveu
especificamente o pagamento de tributo (3.17) e reivindicações territoriais
contra a terra de Israel (cf. 3.19, em que a palavra “ídolos” pode indicar marcos
de propriedade moabitas). O livramento envolveu a morte do rei moabita por
Eúde, um benjamita canhoto que, sob pretexto de comunicar uma mensagem
secreta dos deuses, assassinou Eglom em sua residência real temporária,
próximo a Gilgal (3.16-25).
18

Gráfico representativo dos Ciclos de Desvio – Disciplina - Desafogo

O objetivo central da ação judicial de Yahweh é a idolatria sincrética a que Israel


se entregou à medida que conviveu com as nações que viviam em Canaã e que
contaminou até mesmo a família do grande legislador Moisés. Nada menos que
a severidade prometida na lista de maldições de Deuteronômio 28 poderia ter
impedido a implosão da teocracia.

A libertação do mal através de uma semente escolhida

Muitos exemplos de “eleição” para serviço se acham em Juízes, mas os dois


mais marcantes são os de Gideão e Sansão. Ambos envolveram uma
manifestação do anjo do Senhor e uma capacitação especial do Espírito Santo
para a tarefa a cumprir.

Nos dois casos, todavia, a narrativa deixa claro que as possibilidades inerentes
aos propósitos divinos foram, de alguma forma, tolhidas pela inadequação dos
escolhidos em relação à plenitude das funções que lhes foram dadas.

Gideão, humilde a princípio, assume uma atitude orgulhosa ao arrogar-se em


sacerdote (quer usando uma estola sacerdotal quer erguendo uma imagem de
ouro, 8.24-28) e ao arrogar-se rei, apesar de rejeitar a coroa.
19

Sansão, por seu turno, desperdiçou a capacitação sobrenatural que lhe fora
concedida pelo Espírito, violando cada uma das imposições de seu voto de
nazireu e vivendo uma vida de sincretismo moral, que refletia o sincretismo
religioso de seu povo.

Apesar dessas deficiências, de tal modo era eficaz a vocação para o


cumprimento dos propósitos libertadores de Deus, que foram mais os que
matou na sua morte do que os que matara na sua vida (16.30).

Isso não significa que Deus pactua com o mal, pois o preço de tal negligência
para com o privilégio recebido foi a completa ruína da família, no caso de
Gideão, e a humilhação e morte inglória, no caso de Sansão.

O decreto de abençoar os eleitos

Este aspecto do propósito de Deus, em Juízes, fica confinado aos períodos em


que o povo se coloca sob a liderança de um juiz e a terra desfruta paz (Israel
retém sua soberania). Em geral, todavia, retrata uma nação que se alienou de
Yahweh e das bênçãos inerentes à obediência a Ele. A expectativa de Israel é
retratada na visão sincrética de Mica e sua mãe, que viam em uma imagem a
representação de Yahweh e confundiam as falsas promessas da idolatria
cananita com as perspectivas de glória contidas na aliança (Jz 17.2, 13).
20

4. A TEOLOGIA DE RUTE

O cetro não se apartará de Judá, nem o bastão de comando de seus


descendentes, até que venha aquele a quem ele pertence, e a ele as nações
obedecerão. Gênesis 49.10

4.1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Em Josué e Juízes, o foco da revelação está na terra que Deus prometeu aos
descendentes de Abraão. Em Rute, o foco passa para a semente que Ele
prometeu. Em particular, a semente em vista é a que viria da tribo de Judá para
dominar o povo de Deus (Gn 49.10).

O título desse breve livro é o nome de seu personagem principal, uma mulher
moabita chamada Rute. A etimologia desse nome é incerta, embora esteja
frequentemente ligado à palavra hebraica ‫́( ְרעּות‬reʿûṯ), que significa “amizade,
companheirismo”.

Rute, descendente de Ló (que escolheu sair da Terra Prometida na esperança


de achar maior bênção em outro lugar), inverteu a decisão do seu antepassado
e mudou-se para a Terra Prometida na busca das bênçãos do Senhor. Por causa
desta decisão, Deus a abençoou abundantemente.

Contexto histórico

A narrativa tem como pano de fundo o período dos juízes (1.1), um tempo de
apostasia e, consequentemente, caos moral e social em Israel. Em consonância
com as maldições da aliança, uma fome assolou a terra, forçando uma família
efratita a migrar para a terra vizinha de Moabe.

O livro relata os eventos que constituiriam o curso normal de uma família


migrante. A segunda geração casa com membros da sociedade receptora e a
migração dá lugar ao assentamento e à aculturação.

Soberanamente, porém, Yahweh intervém e usa a tragédia para atingir alvos


mais elevados na história, oferecendo um contraste notável de fé, lealdade e
graça ao estado lastimável do povo escolhido durante aquela era.

Mensagem de Rute
21

A soberania e bondade de Yahweh transformam tragédia individual em bênção


nacional por meio da fé pujante de uma mulher gentia e um israelita
compromissado (PINTO, 2006).

Em geral, o principal tema teológico em Rute é o trabalho externo do propósito


divino pela instrumentalidade humana. Mais especificamente, a soberania de
Deus e a sua graça recebem muita atenção em Rute.

4.2. A SOBERANIA DE DEUS

O Senhor lhe retribua o que você tem feito! Que você seja ricamente
recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar
refúgio! Rute 2.12

O princípio teológico subjacente ao livro de Rute é o desenrolar do propósito


soberano de Deus por meio de instrumentos humanos. Isso é feito de modo
diferente de outros livros do Antigo Testamento, em que Yahweh intervém mais
abertamente por meio de sonhos, declarações proféticas, aparições ou atos
milagrosos. O paralelo mais notável é o livro de Ester, em que o nome de Deus
sequer é mencionado.

Em Rute, a soberania de Yahweh é ressaltada por sua presença nas duas breves
orações contidas no capítulo 2, nas quais Boaz expressa o desfecho do livro em
relação a Rute, reivindicando-o de Yahweh (2.12), e Noemi o faz em relação a
Boaz (2.20).

Outros episódios que sugerem a soberania de Yahweh são a morte dos filhos de
Noemi, que fornecem a Rute a oportunidade de conhecer pessoalmente Yahweh
como o seu Deus, a menção da casualidade humana do encontro de Rute e
Boaz, um notável artifício literário do autor, destinado a produzir no leitor a
sensação inversa, causalidade divina, e, a reversão da sorte de Noemi e Rute, da
viuvez e esterilidade em Moabe para a vida em família e a concepção (1.4, 5 e
4.13-15).

Em Rute, Yahweh intervém soberanamente para levar adiante a promessa feita


a Abraão, a saber, de lhe constituir uma numerosa descendência (Gn 12.2),
promessa que foi ampliada na bênção de Jacó a Judá, de cuja família viria o
cetro sobre Israel (Gn 49.10).
22

A genealogia no final do livro sutilmente liga as alianças abraâmica e davídica


como a indicar que Yahweh soberanamente interveio aqui como no caso de
Judá e Tamar, de cuja união surgiu a mais importante família em Israel.

O livro de Rute atesta que o plano de Deus não pode ser frustrado nem mesmo
pela anarquia egoísta do seu povo que dominou o período dos juízes. Deus está
no governo de toda história!

4.3. A GRAÇA DE DEUS

Rute, porém, respondeu: não insistas comigo que te deixe e não mais a
acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e
o teu Deus será o meu Deus!

Rute 1.16

O livro de Rute revela muito sobre o plano de Deus. Mas também faz importante
contribuição para compreendermos como Deus trata as pessoas.

Uma das características dos procedimentos de Deus com as pessoas é a sua


propensão— poderíamos dizer, a sua preferência — em trabalhar com indivíduos
e através de indivíduos que as pessoas consideram material improvável. O livro
de Juízes também mostra este fato. Muitos juízes eram indivíduos improváveis
de Deus usar por causa do sexo (Débora), pouca fé (Gideão), formação familiar
(Jefté) ou devassidão moral (Sansão). Mas, Rute era especialmente pouco
promissor. Era mulher, era estrangeira, era membro de uma nação inimiga dos
israelitas. Além disso, era viúva e pobre. Estava assim excluída da participação
na aliança, segundo a lei de Moisés, e sem quaisquer perspectivas humanas,
como a própria Noemi quis fazê-la perceber.

A experiência de Rute demonstra que Yahweh sempre esteve disposto a


receber quem se achegasse em fé evidenciada por compromisso, a despeito de
sua origem étnica ou religiosa. Quem se aproxima de Yahweh como crente, nEle
encontrará aceitação e realização. Este fato mostra a graça de Deus que escolhe
pessoas não pelo mérito delas, mas pelo Seu amor.

Rute entrou na terra por causa da fé no Senhor (1.16). Submeteu-se às leis de


Israel como expressão do seu compromisso com Deus (2.3; 3.9). Por
conseguinte, foi respeitada pelos israelitas e também usada por Deus no seu
23

plano de levar bênção para o mundo inteiro. A chave era a fé no Senhor. Pode
ser que ela tivesse mais fé que muitas outras mulheres dos seus dias. A
confiança no Senhor venceu todas as outras limitações e qualificou-a para o uso
de Deus.

Rute teria sido vista com desaprovação pelos outros israelitas, porque ela era
mulher moabita, mas também porque era necessitada e viúva. Boaz viu além da
necessidade exterior e posição social inferior, contemplando-lhe o caráter
excelente e íntegro que foi purificado, podemos presumir, pela fé no Senhor.
Semelhante a Deus, Boaz estava disposto a colocar Rute em seus planos por
causa da fé dela e pelo que tinha acontecido na sua vida. Boaz e Deus não só
anularam a lei mosaica, mas também a tradição e as convenções sociais por
causa da fé de Rute. A graça de Deus superabundou no caso de Rute.

A última seção do livro de Rute refere-se a Perez (4.18). Perez era filho de Judá
que nasceu de uma mulher cananeia. A referência a Perez relaciona Davi à
linhagem de Judá da família de Abraão. A referência a Perez também exalta
ainda mais a graça de Deus, lembrando ao leitor que Deus, na história antiga, foi
gracioso com outra estrangeira e a incorporou na família de Israel, inclusive na
linhagem especial de bênçãos da mesma maneira que ele fez com Rute.

4.4. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

A permissão do mal

A fome, enviada por Yahweh como disciplina contra Seu povo, é o elemento de
tragédia que Ele utiliza para abrir as comportas de Sua graça. Igualmente, as
mortes do marido e filhos são instrumentos para que Noemi venha a conhecer o
verdadeiro significado da plenitude (1.20, 21). Em escala menor, a falta de
compromisso do resgatador mais próximo é um mal que culmina com a perfeita
solução para os problemas de Noemi e Rute, o descanso verdadeiro na provisão
de Yahweh.

A promessa/ação de julgar o mal.

Esta linha de ação não se apresenta no livro de Rute, exceto talvez na disciplina
nacional mencionada em 1.1. Alguns expositores preferem estender essa
disciplina às mortes de Elimeleque e seus filhos, mas o texto não oferece
sustento a essa tese. É fato que a tradição judaica considera a morte dos
24

rapazes uma punição por ter deixado Judá, mas tal razão não encontra eco na
teologia mosaica. Uma ligeira possibilidade de significado judicial na morte de
Malom e Quiliom acha-se em Deuteronômio 4.27.

A libertação do mal por meio de uma semente escolhida

Boaz é o instrumento usado para esse resgate, seguindo o padrão milenar do


levirato (do latim levir, “cunhado”), em que a família era preservada pela união
matrimonial de um irmão do morto com a cunhada. Esse costume, já conhecido
na era patriarcal (cf. Gn 38), foi ampliado em Israel para incluir a posse da terra
(Dt 25; Lv 25).

O decreto de abençoar os eleitos

A soberana atuação de Yahweh transforma a vida de uma mulher desiludida e


desamparada em canal de bênção para toda a nação pactual (evidente na
genealogia davídica, ao fim do livro). Rute edifica sobre as promessas
abraâmicas de uma grande nação e de que reis viriam da semente de Sara. Boaz
e Rute, especialmente focalizados em relação à bênção de Yahweh, são os
canais pelos quais Noemi fora abençoada com o descanso e a plenitude
personificados em Obede (4.15).
25

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009.


Veremos hoje:

1. A TEOLOGIA DE SAMUEL

1.1 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS EM 1 SAMUEL


1.2 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS EM 2 SAMUEL
1.3 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

2. A TEOLOGIA DE REIS

2.1 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS


2.2 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS
2.3 TEMAS TEOLÓGICOS EM REIS
2.4 O MINISTÉRIO PROFÉTICO DE ELIAS E ELISEU

3. A TEOLOGIA DE ESDRAS E NEEMIAS

3.1 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS


3.2 A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

4. ESTER — O LIVRO DA PRESERVAÇÃO

4.1 A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS


4.2 PROPÓSITO E DESENVOLVIMENTO
4.3 O COMPROMISSO DE DEUS COM ISRAEL
4.4 FESTA DE PURIM
1

1. A TEOLOGIA DE SAMUEL

Samuel, porém, respondeu: "Acaso tem o Senhor tanto prazer em holocaustos e


em sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? A obediência é melhor
do que o sacrifício, e a submissão é melhor do que a gordura de carneiros.

1 Samuel 15.22
O livro de Samuel está situado numa posição central e estratégica no que se
refere às questões históricas, teológicas, canônicas e críticas. Esses relatos
fazem ligação entre a era de incerteza experimentada por Israel com a liderança
dos juízes, o surgimento da monarquia com Saul e o relativo desenvolvimento
da monarquia com Davi. Esses relatos também registram a luta de Israel para
subjugar os inimigos que ainda não haviam sido dominados desde a conquista
(Jz 2.1-5).

Tais detalhes históricos possuem tremendas implicações militares, sociais,


econômicas e políticas. Além disso, Samuel dá continuidade à ênfase do Antigo
Testamento na singularidade de Yahweh, no fracasso humano, na condição que
Israel ocupa de ser um povo eleito, na soberania divina e na bênção divina. Ao
fazê-lo, o livro descreve a promessa divina a Davi de constituir um reino eterno
(2Sm 7.1-29), um compromisso que domina o cenário teológico do restante do
cânon.

Título

Os dois livros de Samuel recebem o nome do homem que proporcionou a


transição entre o período tumultuado dos juízes e a centralização do governo
de Israel sob Saul e Davi. O título na Bíblia Hebraica é ‫שמּואֵל‬
ְׁ (šemûʾēl).

Quando as Escrituras do Antigo Testamento foram traduzidas para o grego, os


judeus de Alexandria reuniram Samuel e Reis, sob o título de Βασιλείων (basileiōn,
“Dos reinos”) e subdividiram a coleção em quatro livros. Ainda hoje as igrejas
ortodoxas gregas se referem a 1 e 2 Samuel como 1 e 2 dos Reinos.

1 e 2 Samuel servem para dar à nação de Israel, mais especificamente a seus


líderes, uma visão apropriada da monarquia nos limites de sua categoria mais
ampla, a teocracia.
2

A mensagem de Samuel

O autor Carlos Osvaldo Pinto propõe a seguinte mensagem para a obra


completa de Samuel: A vitalidade da teocracia depende da graça
restauradora de Yahweh, concedida à nação e seus representantes depois
de serem disciplinados por abandonar a fidelidade a Deus e a aliança
deuteronômica (PINTO, 2016).

1.1. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS EM 1 SAMUEL

• A soberania de Deus

É quase impossível deixar de perceber este tema nos livros de Samuel, e seus
exemplos mais luminosos ocorrem no primeiro volume. A intervenção em favor
de Ana e sua contínua fertilidade, depois de Samuel ter sido efetivamente
dedicado a Yahweh, são o primeiro exemplo da capacidade divina de controlar
a vitalidade do indivíduo em resposta à fé humilde.

Talvez a demonstração mais dramática da soberania de Yahweh surja na


narrativa da arca (1Sm 4 – 6). Ao contrário do que pensam alguns comentaristas
que a consideram uma narrativa isolada inserida ao acaso no texto, essa divisão
demonstra não só a superioridade de Yahweh sobre os deuses com quem Israel
flertava (supondo que eles concediam vida melhor aos povos à volta), mas
também a necessidade de uma atitude correta em relação ao culto em Israel.

Yahweh soberanamente remove aqueles que se consideravam acima dos


requisitos da lei (3.34; 4.10, 11), soberanamente humilha Dagom, lançando o
ídolo por terra diante da arca da aliança e quebrando sua cabeça e mãos como
sinal da impotência de Dagom diante de Yahweh, soberanamente pune os
filisteus com uma praga devastadora, ensinando-os que Ele não é um mero
amuleto ou fetiche a ser carregado como troféu de batalha, mas o verdadeiro
Deus do universo.

Ainda em Israel, essa soberania é apresentada no caso dos moradores de Bete-


Semes e Quiriate-Jearim, em que os primeiros sofrem por sua atitude profana
em relação à arca, e os últimos são abençoados por sua reverência.

A soberania divina é exercitada de acordo com as bênçãos e maldições


estipuladas na aliança. O arrependimento nacional, sob a liderança de Samuel,
3

trouxe a vitória (7.3-12) e o alívio (temporário) da opressão dos filisteus (7.13). O


padrão operacional de Yahweh fica claro: O Deus soberano abençoará a nação
enquanto esta permanecer humilde e for conduzida por um indivíduo escolhido
por Ele.

E Samuel disse a toda a nação de Israel: "Se vocês querem voltar-se para o
Senhor de todo o coração, livrem-se então dos deuses estrangeiros e dos
postes sagrados, consagrem-se ao Senhor e prestem culto somente a ele, e
ele os libertará das mãos dos filisteus". 1 Samuel 7.3

Mesmo quando o povo interveio com seu pedido de um rei, a soberania de


Yahweh superou a vontade humana, demonstrando Seu desprazer em relação à
visão antropocêntrica dos israelitas, mas suprindo um líder que haveria de
comprovar a verdade de Sua advertência (1 Sm 8; 12.18).

E o Senhor lhe respondeu: "Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo;
não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei. 1 Samuel
8.7

Os dois incidentes mais conhecidos do livro também apontam para a soberania


de Yahweh: o combate entre Davi e Golias (17) e a entrevista de Saul com a
médium de En-Dor (28). No primeiro incidente, a confiança em Yahweh é
soberanamente recompensada com a vitória, a despeito da força e experiência
militar do adversário. No segundo, Deus usa Samuel para demonstrar a
inutilidade dos esforços desesperados de Saul para escapar ao soberano
veredicto divino de tirar de sua dinastia o trono de Israel.

• A lealdade pactual

Embora a palavra ‫( ֶחסֶד‬ḥeseḏ, “amor ou lealdade pactual”) seja usada apenas


uma vez no livro, com referência a Yahweh (20.14), o conceito permeia o livro.
Aqueles que se humilham, os que confiam em Yahweh para a realização do
impossível, e aqueles que se alinham com o ungido de Yahweh são objeto de
Seu ‫ ֶחסֶד‬. Ana, o povo de Quiriate-Jearim, Samuel, Saul (no início do reinado),
Jônatas e Abigail são exemplos marcantes.

A lealdade pactual, todavia, opera nos dois sentidos. As maldições sobrevêm


aos que arrogantemente rejeitam a direção de Yahweh em suas vidas. Os
4

exemplos principais são Eli e seus filhos, os moradores de Bete-Semes, Saul (do
meio para o fim do reinado) e Nabal.

Jônatas é a aparente contradição. Apesar de aparecer no livro como um


exemplo de lealdade, ele encontra uma morte trágica em Gilboa. A razão de tal
fato se acha em outro princípio relacionado à aliança – o da solidariedade
corporativa. A rejeição pessoal de Saul também significou a rejeição corporativa
de sua família. Jônatas anteviu esse fato, mas não previu que seu filho, e não ele
mesmo, seria o beneficiário da lealdade pactual de Davi (20.12-15; 41-42).

Esse conceito da lealdade pactual de Deus tem por referencial não apenas a
aliança deuteronômica, mas também a abraâmica, que subjaz o propósito
aparente do autor em descrever o funcionamento da aliança deuteronômica na
história da nação.

• A imutabilidade de Deus

Deus é imutável. Entretanto, em 1 Samuel é um campo de batalha para uma


percepção clara sobre a doutrina da imutabilidade de Deus. O conceito aparece,
primeiramente, nas narrativas da transição teocrática nos capítulos 8 a 12, em
que o porta-voz de Yahweh parece vacilar entre a aprovação e a rejeição da
monarquia. A rejeição divina não se relacionava ao conceito de monarquia em si
(uma antiga expectativa israelita, Gn 49.10), mas ao conceito popular de um rei
que viesse a ser a garantia humana de uma vida segura para Israel, em Canaã. A
monarquia seria o instrumento escolhido, mas a fonte das bênçãos da aliança só
poderia ser o doador da aliança.

Outra passagem controvertida é o relato, no capítulo 15, da rejeição de Saul, em


que o autor parece afirmar que Deus mudara de ideia em relação à escolha de
Saul como rei (15.10,35), e, também, afirma categoricamente a imutabilidade
divina (15.29). Essa aparente contradição é explicada satisfatoriamente pelo uso
de linguagem antropomórfica. A mudança em um procedimento visível é
explicada como uma mudança emocional na pessoa de Deus, quando, na
realidade, é o desenvolvimento de Seu propósito imutável que incluía novos
meios, instrumentos e direções, dando assim ao autor humano das Escrituras a
impressão de que o plano de Deus havia sido alterado.

• O incidente de En-Dor
5

O episódio relatado em 1Sm 28 é um dos mais polêmicos e debatidos de toda a


Bíblia. A questão é proposta na tentativa de explicar o que é relatado nos
versículos 13 e 14, ou seja: é possível que Samuel tenha realmente voltado dos
mortos na consulta de Saul à médium de En-Dor?

Ao longo de toda a Bíblia, qualquer forma de feitiçaria e necromancia é


condenada (Êx 22.18; Lv 20.6,27; Dt 18.9-12; Is 8.19). O rei Saul conhecia esse fato
e até mesmo havia expulsado todos os feiticeiros da terra de Israel (1Sm 28.3).
Contudo, em desobediência a Deus, dirigiu-se à feiticeira em En-Dor, pedindo-
lhe que consultasse a Samuel no mundo dos mortos (1Sm 28.11-19). O problema
aqui e que ela parece ter sido bem-sucedida em sua tentativa, supostamente
validando os poderes da feitiçaria que a Bíblia tão severamente condena.

Voltarei o meu rosto contra aquele que procurar médiuns e espíritas para segui-
los, prostituindo-se com eles. Eu o eliminarei do meio do seu povo. Lv 20.6

Os homens ou mulheres que, entre vocês, forem médiuns ou espíritas, terão que
ser executados. Serão apedrejados, pois merecem a morte. Lv20.27

Quando entrarem na terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá, não procurem
imitar as coisas repugnantes que as nações de lá praticam. Não permitam que
se ache alguém entre vocês que queime em sacrifício o seu filho ou a sua filha;
que pratique adivinhação, ou dedique-se à magia, ou faça presságios, ou
pratique feitiçaria ou faça encantamentos; que seja médium ou espírita ou que
consulte os mortos. O Senhor tem repugnância por quem pratica essas coisas, e
é por causa dessas abominações que o Senhor, o seu Deus, vai expulsar aquelas
nações da presença de vocês. Dt 18.9-12

Corrigindo a má interpretação

Alguns creem que a feiticeira fez um milagre através de poderes demoníacos, e


realmente trouxe Samuel de volta dos mortos. Em apoio a essa visão citam
passagens que indicam que demônios têm poder para fazer milagres (Mt 7.22;
2Co 11.14; 2Ts 2.9,10; Ap 16.14). As objeções a essa visão incluem o fato de que a
morte é final (Hb 9.27). Os mortos não podem retornar (2Sm12.23) porque
existe um enorme abismo fixado por Deus (Lc 16.24-26), e demônios não são
capazes de usurpar a autoridade de Deus sobre a vida e a morte (Jó 1. 10-12).
6

Outros têm sugerido que a feiticeira não fez realmente que subisse Samuel, mas
simplesmente forjou ter feito isso. Sustentam essa afirmação referindo-se a
demônios que enganam pessoas que procuram contato com os mortos (Lv
19.31; Dt 18.11; 1Cr 10.13), e também usando o argumento de que os demônios
algumas vezes declaram a verdade (At 16.17). As objeções a essa visão incluem
o fato de que a passagem parece dizer que Samuel retornou de entre os mortos,
que ele entregou uma profecia como sendo Samuel e que esta se cumpriu, e
que não seria comum que demônios tivessem declarado a verdade de Deus,
uma vez que o diabo é o pai da mentira (Jo 8.44).

Um outro ponto de vista é que a feiticeira não teria trazido Samuel de entre os
mortos, porém o próprio Deus teria intervindo para reprender Saul por seus
pecados:

• Samuel parecia ter realmente voltado (14,20), mas nem humanos nem
demônios possuem o poder de trazer alguém de volta de entre os mortos
(Lc 16.24-31; Hb 9.27).
• A própria feiticeira pareceu ter ficado surpresa com a aparição de Samuel
de entre os mortos (v.12).
• Há uma condenação direta à feitiçaria no verso 9.
• Deus algumas vezes fala em lugares inesperados, através de meios não
usuais, como foi com a jumenta de Balaão (Num 22).

As maiores objeções a essa forma de ver a descrição de 1 Samuel são que o


texto não diz explicitamente que Deus fez esse milagre, e que a moradia de uma
feiticeira é um lugar improvável para tê-lo feito. Deus é soberano para decidir
quando e onde Ele mesmo intervém, contudo, nem todos os milagres são
classificados como tais (Mt 3.17; 17.1-9). Um ato milagroso é capaz de falar por si
próprio.

A Palavra de Deus deixa bem claro que o verdadeiro profeta seria medido pela
veracidade. Não há motivos para crer que o suposto “Samuel” fosse o profeta e
que teria retornado dentre os mortos, visto que sua profecia não se cumpriu
quando:

• Disse a Saul que ele e seus filhos estariam mortos. Nem todos os filhos
morreram no combate (2Sm 2.10).
7

• Disse que seriam entregues nas mãos dos filisteus. Saul não foi capturado
vivo pelos filisteus, mas suicidou-se (1Sm31.4).

Dessa forma, percebe-se pala profecia do suposto “Samuel” que ele não falou a
verdade, sendo, portanto, um demônio, e não o espírito do profeta.

Além do mais, a Bíblia não diz que Saul viu o “profeta”, e sim que a feiticeira o
viu. Satanás, e não o profeta, falou através da feiticeira.

1.2. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS EM 2 SAMUEL

Quanto a você, sua dinastia e seu reino permanecerão para sempre diante
de mim; o seu trono será estabelecido para sempre". 2 Samuel 7.16

• Yahweh é gracioso

A graça de Deus jamais é mencionada explicitamente no livro, mas permeia toda


a narrativa. Ela é mais claramente demonstrada nos dois eventos-chave do livro:
o estabelecimento da aliança davídica e o pecado de Davi com Bate-Seba.

No primeiro evento (7.1–17), a graça fica evidenciada na maneira pela qual Deus
assume o cuidado de Davi (e, por meio dele, de toda a nação). Em vez de
permitir que Davi Lhe construa uma casa (que O tornaria, de alguma forma,
devedor ao rei), Yahweh promete abençoar Davi de tal forma que tudo que seus
descendentes pudessem oferecer a Ele seria apenas uma ínfima resposta àquela
demonstração inicial do amor divino. O amor leal de Yahweh não é o fruto do
amor leal do homem, mas a causa.

A graça criativa de Yahweh também é vista na elevação de um humilde pastor à


condição de grande rei (7.9), a quem vassalos prestarão homenagem. O próprio
Davi demonstra surpresa diante de tal demonstração (7.19).

Sempre estive com você por onde você andou, e eliminei todos os seus
inimigos. Agora eu o farei tão famoso quanto os homens mais importantes
da terra. 2 Samuel 7.9

E, como se isso não bastasse para ti, ó Soberano Senhor, também falaste
sobre o futuro da família deste teu servo. É assim que procedes com os
homens, ó Soberano Senhor? 2 Samuel 7.19
8

A graça de Deus também brilha em perdão, pelo fato de que o hediondo crime
de Davi, embora jamais tolerado, é perdoado. Adultério e homicídio
premeditado são tratados não conforme a Lei Mosaica, que prescrevia a pena
capital para ambos (Lv 20.10; Êx 21.14), mas de acordo com a graça que detecta
o arrependimento e a confiança no caráter misericordioso de Yahweh.

Essa mesma graça é demonstrada no capítulo 24, quando o castigo divino é


suspenso antes que o anjo exterminador chegue a Jerusalém. Embora haja
envolvimento humano em intercessão, esta não é apresentada como a causa do
ato divino de libertação, mas como seu mero (embora importante) instrumento.

• Yahweh é severo

A contrapartida da graça é a severidade (Rm 11.22). Em Sua santidade, Deus não


permite que se zombe de Sua pessoa ou de Seu caráter. Portanto, o desprezo
de Saul pelo Senhor e Sua aliança (Arca, gibeonitas) é punido pela justiça divina
sobre seus descendentes que, com a exceção de Mefibosete, morrem
violentamente ou são submetidos à vergonha da esterilidade (Mical, no capítulo
6).

As mesmas consequências do pecado estão presentes, de maneira chocante, na


vida de Davi. As ondas de choque de seu pecado fragmentam os sonhos de sua
família de maneira quádrupla (de “conformidade” com seu julgamento em 2 Sm
12.6):

Então, Davi encheu-se de ira contra o homem e disse a Natã: "Juro pelo
nome do Senhor que o homem que fez isso merece a morte! Deverá pagar
quatro vezes o preço da cordeira, porquanto agiu sem misericórdia". 2
Samuel 12.5,6

• O filho de seu adultério morre.


• Sua bela filha Tamar é violentada pelo próprio irmão.
• Absalão mata seu irmão Amnom.
• Suas concubinas tornam-se objeto do exibicionismo de Absalão, em sua
ousada tentativa de tomar o trono de Israel.

A vida de Davi é prova clara de que o perdão espiritual não garante isenção da
vergonha, do sofrimento e da tristeza, que invariavelmente acompanham o
9

pecado em suas muitas formas. Yahweh escolheu perdoar a culpa sem poupar-
lhe as consequências.

Um exemplo final da severidade de Yahweh se acha na narrativa da arca em 2


Samuel 6. Uzá, apesar de bem-intencionado, estava agindo fundamentado em
uma mentalidade humana e supersticiosa. Davi e seus homens tinham instruções
mosaicas bem claras sobre como transportar a arca. O método que escolheram
sugere uma tentativa de duplicar o sucesso dos filisteus 70 anos antes. No
entanto, para surpresa de Uzá, e consternação tardia de Davi, a presença santa
de Yahweh e o respeito obediente devido a Ele não podem ser tratados com
leviandade.

Yahweh é soberano

A maioria das referências à soberania de Yahweh está centralizada na pessoa de


Davi. Pacientemente, ele espera que Yahweh torne realidade a promessa de ser
o rei ungido de Israel, buscando a direção do Senhor (2.1,2) e esperando um
pedido unificado das doze tribos.

Passado algum tempo, Davi perguntou ao Senhor: "Devo ir para uma das
cidades de Judá? " O Senhor respondeu que sim, e Davi perguntou para
qual delas. "Para Hebrom", respondeu o Senhor. 2 Samuel 2.1

A soberania de Yahweh talvez apareça na esterilidade de Mical, depois de sua


repulsa ao entusiasmo de Davi diante da arca do Senhor. A despeito das causas
de tal esterilidade (uma intervenção sobrenatural ou a simples recusa, por parte
de Davi, em manter relações sexuais com ela – o que certamente seria a sorte
mais amarga), a soberana rejeição divina da linhagem de Saul foi assim
efetuada.

O respeito que Davi tinha pela soberania de Yahweh transpira no relato da


barragem de ofensas que Simei dispara contra o rei deposto (16.5-14). Davi,
quando lhe é oferecida a possibilidade de livrar-se de tal incômodo físico e
moral, recusa o gesto de lealdade de Abisai, aludindo à possibilidade de que o
próprio Yahweh tivesse soberanamente ordenado as ações de Simei (16.10).

Confiança semelhante subjaz em seu pedido para que Deus transtorne o


conselho de Aitofel. Sua crença, todavia, não o impediu de empregar os serviços
de Husai e de estabelecer uma rede de espionagem na corte de Absalão.
10

Embora 2 Samuel não apresente um quadro claro da escolha davídica de um


sucessor, indícios da soberana escolha divina de Salomão podem ser
encontrados no relato de seu nascimento (12.24). O menino, da inevitável
vergonha associada ao passado recente de sua mãe, foi elevado à posição de
escolhido. Jedidias “amado do Senhor”, seu nome alternativo, derivado da
mesma raiz verbal que o nome “Davi”, sugere que a mensagem de Natã a Davi
tinha algo a ver com a escolha divina de Salomão como herdeiro do trono (1 Rs
1.13,30; 1 Cr 21.9,13).

Depois Davi consolou sua mulher Bate-Seba e deitou-se com ela, e ela teve
um menino, a quem Davi deu o nome de Salomão. E o Senhor o amou. 2
Samuel 12.24

Assim, em certo sentido, a chamada “narrativa da sucessão” deveria chamar-se


“narrativa da eliminação”, pois nela Deus vai soberanamente afastando os
candidatos impróprios, enquanto opera, simultaneamente, as terríveis
consequências do pecado de Davi.

Uma última demonstração da soberania de Yahweh surge no capítulo 24,


quando é creditada a Ele a origem do censo. 1Crônicas 21 atribui tais
pensamentos a Satanás, que seria o agente designado soberanamente por
Yahweh. O fato notável é que Yahweh soberanamente administra o uso satânico
do orgulho e ambição humanos para punir algum pecado nacional não
identificado (24.1) e produzir o bem maior na clara definição do local onde Seu
culto ficaria centralizado e a unidade religiosa da nação seria obtida.

1.3. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

• A permissão do mal

O primeiro exemplo desta linha de atividade de Deus é a conduta escandalosa


dos filhos de Eli (2.12-17), cuja distorção do culto para fins egoístas, quando a
arca é capturada pelos filisteus, por fim se volta contra eles mesmos. É possível
dizer o mesmo dos filhos de Samuel, cuja ética distorcida e indulgente contrasta
dramaticamente com a conduta inatacável de seu pai como juiz (8.2, 3; 12.3).

Há ainda, é claro, Saul e sua conduta progressivamente rebelde, contra Yahweh


e as exigências de Sua aliança (13.7-14; 15.1-23), e maldosa, contra Davi, seu
sucessor escolhido por Deus.
11

• A promessa/ação de julgar o mal

Estas promessas, em termos de exaltação dos humildes e queda dos arrogantes,


estão contidas no cântico de Ana (2.1-10). Em todo o livro, encontramos o tema
na ameaça profética contra a casa de Eli (2.27-36) e em seu trágico
cumprimento (4.1-12).

O mesmo tema resplandece no triunfo da arca sobre os deuses dos filisteus


(caps. 4–6), na execução de Agague por Samuel (15.32, 33), na remoção do
Espírito de Yahweh de Saul devido a sua rebeldia (16.14), e na derrota final do
rei pelas mãos dos filisteus (cap. 31).

• A libertação do mal para/por uma semente escolhida

Esta linha de ação divina tem seu primeiro exemplo na narrativa do nascimento
de Samuel e em sua gradativa capacitação para servir como o agente divino de
libertação (caps. 1–3, 7). Saul desperdiça sua oportunidade de tornar-se o
instrumento escolhido por Deus, a despeito de agir assim por algum tempo
(caps. 11, 14–15 [em que, todavia, Jônatas desempenha o papel mais positivo]).
Davi torna-se a semente escolhida, e, após poucos parágrafos, o autor
demonstra a disposição do jovem pastor em cumprir tal papel como também
sua capacidade de agir como libertador (17; 18.7, 14). A despeito de falhas éticas,
que o autor não faz qualquer questão de esconder, Davi permanece como o
principal libertador de Israel, à medida que Saul vai desaparecendo de cena
devido à sua conduta autodestrutiva. Quando o livro termina, com a família de
Saul dizimada, Davi aparece como a única alternativa para que Israel sobreviva
como nação livre.

• O decreto de abençoar os eleitos

Esta quarta linha de ação divina não é muito proeminente em 1 Samuel, pois sua
aparição aguarda a plena manifestação de Davi como o regente escolhido de
Yahweh, o rei cuja casa Ele promete estabelecer para sempre. Apesar disso, há
indícios presentes em 2.9, 10, quando Ana antevê a bênção de Yahweh sobre os
humildes e a escolha de um ַ‫שיח‬
ִׁ ‫( ָמ‬mās̆îah, “Ungido”), como também na promessa
do profeta anônimo a Eli (2.35), em que Yahweh promete abençoar e
estabelecer a casa de Seu sacerdote fiel (promessa cumprida em Zadoque).
12

Dentro do propósito quádruplo de Deus de permitir a existência do mal, de


julgar o mal, de vencer o mal em favor de uma semente escolhida, ou por meio
dela, e de conceder Sua bênção aos eleitos, o livro de 2 Samuel opera como o
elemento de focalização.

Presumindo que a monarquia já havia sido definida como o agente temporário


de Deus em Israel (a despeito da falha grotesca de Saul), Yahweh julga o mal
dentro da nação e liberta Seu povo escolhido (disciplinando Davi e removendo
candidatos indignos ao trono), ao garantir a Israel não apenas alívio de
opressões estrangeiras, mas domínio sobre antigos inimigos, de modo que a
nação possa desfrutar a plenitude das bênçãos da aliança.
13

2. A TEOLOGIA DE REIS

Dá, pois, ao teu servo um coração cheio de discernimento para governar o


teu povo e capaz de distinguir entre o bem e o mal. Pois, quem pode
governar este teu grande povo? " 1 Reis 3.9

Os dois livros de Reis compreendem, na verdade, uma única obra literária, que a
tradição judia preservou como uma unidade chamada ‫( ְׁמ ָלכִׁים‬melāḵîm, “reis”).
Essa obra foi dividida em duas partes pelos tradutores da Septuaginta, uma
tradição continuada pela Vulgata e outras traduções.

O livro de Reis defende, talvez mais do que qualquer outra obra canônica, um
compromisso de todo o coração com o único Deus que existe, cria, faz aliança e
dá a terra.

• Se desenrolam as lutas cotidianas dos servos fiéis de Yahweh contra os


defensores da idolatria.
• Reis e reinos surgem e caem, cada um dependendo da vontade de Deus
para sua existência.
• Torna-se evidente o pleno impacto da obediência ou desobediência de
Israel à aliança.
• A probabilidade de perder a Terra Prometida torna-se pela primeira vez
uma realidade.

Tudo o que se desenrolou em Josué, Juízes e Samuel chega ao apogeu. Israel


alcança o ápice de sua força religiosa, econômica e política durante o reinado de
Salomão (c. 970-930 a.C.), para então dividir-se após sua morte, e então
desintegrar-se e sofrer o exílio em 587 a.C. Essa decadência possui profundas
implicações históricas e teológicas para o restante das Escrituras.

Mensagem

O autor Carlos Osvaldo Pinto propõe a seguinte mensagem para a obra


completa de Reis:

Infidelidade nacional para com as alianças deuteronômica e davídica trouxe


o juízo deliberado de Yahweh sobre a monarquia teocrática depois de várias
demonstrações de Sua paciência e misericórdia em virtude das promessas
davídicas que aguardavam um cumprimento final (PINTO, 2006).
14

2.1. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Yahweh é apresentado no livro de Reis primariamente como o Deus das


alianças. Ele é o mesmo Deus que se revelou a Israel no Sinai (1 Rs 19), e que
agora se mostra fiel nas demonstrações de misericórdia e na execução da
justiça de acordo com as promessas da aliança.

Yahweh é santo

Este atributo é visto mais frequentemente no julgamento contra os que violam


os preceitos da aliança mosaica do que em declarações formais encontradas no
texto. Reis é, ao lado de Juízes, o exemplo principal da justiça de Yahweh, isto é,
de Sua santidade em ação. Assim, o juízo contra Salomão vem porque a
santidade e a singularidade de Yahweh são ofendidas por sua tolerância com a
idolatria e posterior adesão a ela (1 Rs 11). De igual modo, Jeroboão perde a
bênção de Yahweh e traz maldição sobre sua dinastia em razão de suas
perversões idólatras, que se tornaram o padrão pelo qual Israel media o mal.

Talvez o exemplo mais dramático do zelo de Yahweh por Sua santidade é o do


homem de Deus que foi morto por um leão por não obedecer estritamente à
ordem que havia recebido (1 Rs 13.11-33). O exemplo mais conhecido, é claro, é a
confrontação entre Elias e os profetas de Baal (18.16-40), em que a santidade e
a singularidade de Yahweh foram magnificamente vindicadas.

Yahweh é gracioso

Ele demonstra Seu amor leal a Seus servos (1 Rs 8.22), derrama copiosamente
riqueza e sabedoria (3.12-14), restringe o julgamento à vista do arrependimento
do mais vil pecador (21.28,29), cura estrangeiros e revela-lhes Seu caráter (2 Rs
5.1-19a), como também não abre mão de Seus propósitos graciosos mesmo
quando Seu profeta sugere que um Israel crivado de pecados chegou “ao fim da
picada” pactual (1 Rs 19.9-18).

As profundezas da graça de Yahweh encontram-se, todavia, em Sua


preservação da linhagem davídica, mesmo em face da mais grosseira idolatria e
infidelidade moral. Salomão (1 Rs 11.35), Abião (15.4) e até mesmo o piedoso
Ezequias (2 Rs 20.12-21) são exemplos de tal graça preservadora expressa nos
termos das promessas incondicionais das alianças abraâmica e davídica.
15

Yahweh é fiel

A fidelidade divina já é reconhecida por Salomão como o elemento chave em


sua subida ao trono e na construção do templo (1 Rs 8.20). Falhas humanas
subsequentes não invalidam as promessas de Deus, assim como a presença de
nuvens escuras não invalida a realidade do sol.

O desfecho sobre a reabilitação de Joaquim é uma indicação clara da fidelidade


pactual de Yahweh. Além disso, o Deus que chama para Si a responsabilidade
de cumprir Suas alianças é também fiel em preservar um remanescente para o
qual tais promessas venham, por fim, a tornar-se realidade (1 Rs 19.18).

Uma nota de advertência é que essa fidelidade às promessas inclui as


promessas de juízo. Mesmo a profunda conversão e devoção de Josias é
incapaz de deter a maré da ira pactual de Yahweh contra o entulho idólatra e
imoral acumulado por um Manassés (2 Rs 23.26), cuja influência acompanhou
Judá até 586 a.C., quando Nabucodonosor destruiu Jerusalém.

2.2. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

O decreto da permissão do mal

No livro de Reis o mal aparece na luta espiritual pelo coração dos reis,
primariamente os da linhagem de Davi, que são confrontados com a escolha de
seguir os passos de seu ilustre antepassado ou os caminhos tortuosos da
idolatria, quer em sua versão conforme Jeroboão, quer na versão balística.

Outras forças do mal são: a guerra entre os reinos (Norte-Sul) e, no plano


político da teocracia, a subserviência a potências estrangeiras com vistas à
segurança e à sobrevivência da nação, muitas vezes às custas dos tesouros
sagrados de Israel. Tal prática foi condenada veementemente pelos profetas
como adultério pactual.

A ação divina em julgar o mal

Essa atividade assumiu formas diversas em Reis. O mal em Israel e Judá foi
muitas vezes purgado por meio de invasão e opressão estrangeira (Yahweh
usou egípcios, sírios, moabitas, filisteus, assírios e babilônios para isso). No plano
interno, o juízo foi mediado por profetas (Elias e Eliseu) e reis (Jeú, que
16

desmantelou o aparato estatal do culto a Baal montado por Acabe e Jezabel [2


Rs 9 e 10] e Jeoás, que puniu o idólatra e arrogante Amazias; 2 Cr 25.14).

A promessa de libertar do mal

É essa promessa que garante a subsistência de Judá na época do cisma de


Jeroboão (1 Rs 11.12,13), no tempo da apostasia de Abias (15.4,5), no tempo da
trama diabólica de Atalia para eliminar a linhagem de Davi (2 Rs 11.1), e no quase
aniquilamento de Judá durante a invasão de Senaqueribe (19.24; 20.6).

O decreto de abençoar os eleitos

Essa linha de ação divina está presa à aliança davídica, que, no livro, é mais
notável pelo fracasso de seus representantes; isso mantém acesa na mente do
leitor a questão de quando viria o Filho de Davi, tão esperado.

O propósito divino de restabelecer Seu governo por intermédio de um rei


davídico exigia o surgimento de alguém maior do que Davi. Mesmo seus
descendentes mais piedosos, Ezequias e Josias, fracassaram na tarefa de vencer
o mal (Gn 4.7). A linhagem davídica é preservada no cativeiro, e os leitores
chegam ao fim do relato insatisfeitos com o resultado, mas esperançosos
quanto ao futuro, aguardando a aparição do Filho de Davi e do pleno
cumprimento da aliança.

2.3. TEMAS TEOLÓGICOS EM REIS

Dois temas teológicos são destaques em Reis como instrumentos da teocracia,


o culto e a profecia.

O culto

Uma grande parte da teologia do Antigo Testamento gira em torno do culto


mosaico e do lugar onde este era realizado. A própria nação só ganhou tal
status quando o tabernáculo foi inaugurado e a presença de Yahweh tornou-se
visível ao povo. Com a entrada em Canaã, tornou-se necessário definir
claramente o que era um culto aceitável.

Uma aparente tensão, que existiu desde o começo da habitação em Canaã, foi a
centralização do culto exigida em Deuteronômio 12, 14 e 16 e a existência dos
17

famosos ‫( בָמֹות‬bāmôt, “altos”), em que todo Israel, dos camponeses aos


monarcas, adorou.

Quando o templo foi construído, Israel partiu de uma premissa básica, a de que
o templo não poderia conter ou limitar Yahweh, que era universal e onipresente
(1 Rs 8.27). O templo era o local de Sua manifestação em glória, beleza,
santidade e justiça, onde o desfavorecido e explorado podia buscar ajuda (8.21).
A universalidade de Yahweh era vista no fato do estrangeiro poder orar a Ele,
caso tivesse se identificado com Seu povo (8.41-43), e no fato de que a oração
de Israel no Exílio seria ouvida se dirigida ao templo (8.46-51). Certamente essa
passagem é a base da ação de Daniel quando confrontado com o edito de Dario
(Dn 6) e com o fato dos 70 anos de cativeiro preditos por Jeremias estarem se
cumprindo (Dn 9). Essa prática permanece na mentalidade islâmica.

Infelizmente, com o passar dos séculos, a confiança foi desviada Daquele que
habitava no templo para o Templo em si, o mesmo erro que Israel praticou em
relação à arca (1 Sm 4).

A profecia

O movimento profético teve em Samuel seu “fundador” oficial. A “escola de


profetas”, ainda incipiente e “carismática” em 1 Samuel 10, aparece mais
organizada e “teológica” nas narrativas de Elias e Eliseu.

Os profetas aparentemente desfrutavam uma condição implicitamente aceita


pela nação, que os colocava acima dos reis. Isso pode ser creditado ao fato de
que Moisés era visto como o profeta por excelência e que servira de
intermediário entre Yahweh e Israel. A etimologia da palavra hebraica ‫( ַנָבִׁיא‬nāḇîʾ)
é incerta, mas é certo que em Reis, os profetas ungem e repreendem reis, dão
conselho baseado em revelação divina e acompanham os exércitos à guerra
(Obede e Eliseu são dois exemplos) como porta-vozes de Deus.

Elias e Eliseu são dois casos peculiares no movimento profético em Reis, pois
cumprem uma função sócio-político-religiosa singular, a de ministrar a graça
pactual de Yahweh na resistência ao baalismo e no desmantelamento do
aparato religioso criado para sustentar essa falsa religião.
18

Enquanto o ministério de Elias foi primariamente de julgamento, o de Eliseu foi


de misericórdia, o que fornece um paralelo marcante aos ministérios de João
Batista e de Jesus.

2.4. O MINISTÉRIO PROFÉTICO DE ELIAS E ELISEU

Os relatos dos ministérios de Elias e Eliseu são importantes não só como


biografias dos representantes do movimento profético, mas também como
tratados de fé que celebram personagens centrais do drama religioso de Israel.
Elias e Eliseu representam monumentos de fé inabalável em Yahweh como Deus
dos israelitas. Eles serviram de testemunho vivo da fidelidade de Deus a Israel e
a sua supremacia sobre o deus cananeu Baal.

• O Profeta Elias

O nome Elias significa “Jeová é meu Deus.” Um nome relevante numa época em
que o culto a Baal ameaçava extinguir o culto a Yahweh em Israel. Seu
ministério se desenvolveu principalmente no período do reinado de Acabe.

Acabe, rei de Israel, casou com a princesa de Sidom, Jezabel. Seu reinado foi
marcado pelas loucuras de sua esposa e pela adoração a Baal. Surgindo
inesperadamente do deserto e pondo-se diante do rei corrupto, o profeta lhe
falou ousadamente: “Tão certo como vive o Senhor, Deus de Israel em cuja
presença estou, nem orvalho nem chuva haverá nestes anos, segundo a minha
palavra” (1Rs 17.1). Deus lhe deu poder para fechar os céus de tal modo que não
chovesse durante três anos e meio.

Ele também pediu que descesse fogo do céu diante dos profetas de Baal no
monte Carmelo. Elias foi um grande profeta do seu tempo, trazendo duras
advertências ao povo idólatra. Segundo a pregação de Elias, apenas por
intermédio de Deus viria a fertilidade da terra. Em tempos de seca e flagelos
agrários, o povo era tentado a olhar para Baal, o deus da fertilidade cananita, e
buscar socorro. Elias é enfático em sua mensagem contra essa ilusão do povo,
mostrando que só Deus pode socorrer.

Além de sua mensagem principal, os textos sobre Elias relatam uma batalha
entre eles e os profetas de Baal (1Rs 18), a predição da seca (1Rs 17.1), as ações
milagrosas de provisão e ressurreição (1Rs 17.2-24), sua fuga para a região de
19

Berseba (1Rs 19). Também pregou contra a apropriação indevida de terras pelo
rei Acabe (1Rs 21).

O profeta alcançou a mesma honra concedida a Enoque (Gn 5.24), de ser


transladado para o céu sem ver a morte. Um carro e cavalos de fogo apareceu
quando ia com Eliseu para o oriente do Jordão, foi levado para o céu em um
redemoinho (2Reis 2.1-12). Este fato ocorreu pouco antes de Jorão, rei de Israel
subir ao trono (2Reis 2.1-18; 3.1) e, no reinado de Jeosafá rei de Judá (3.11). Se a
trasladação de Elias ocorreu no tempo indicado, foi durante a sua vida que ele
profetizou sobre os fatos futuros de Jorão, justamente como havia feito acerca
dos atos de Hazael e Jeú (1Reis 19.15-17).

• O profeta Eliseu

Eliseu, filho de Safate, habitava em Abel-Meolá do vale do Jordão. Seu nome


significa “Deus é salvação” ou “Deus salva”. Estava conduzindo um dos arados
da lavoura de seu pai com 12 juntas de bois quando o profeta Elias o encontrou
e lançou sobre ele sua capa (1Rs 19.19). Eliseu compreendeu o significado deste
ato; despediu-se de seus pais e amigos e seguiu o profeta.

Ele foi o sucessor de Elias, seu ministério durou cinquenta anos. Atuou na
política bem mais que seu mestre Elias. Foi Eliseu que ungiu Jeú, e mandou que
ele exterminasse a família de Acabe. Eliseu, assim como Elias, se mostrou zeloso
pela adoração a Yahweh e foi contra o sincretismo religioso. Como Elias
também realizou milagres, inclusive ressurreição (2Rs 4.32-36). O ministério
desse profeta foi marcado por uma série de milagres que revelavam sabedoria e
poder, operados em nome do Senhor. O efeito de tais milagres tinha por fim,
provar que Yahweh era o único Deus.

• Os milagres e profecias de Eliseu e Elias

Elias

1. Com sua capa abriu o rio Jordão (2Reis 2.8)


2. Profetizou uma grande seca (1Reis 17.1; Tg 5.17)
3. Aumentou o azeite e farinha da viúva (1Reis 17.14-16);
4. Deu vida ao filho da viúva (1Reis 17.21-23)
5. Destruiu o altar de Baal (1Reis 18.36-38)
6. Decretou o fim da seca (1Reis 18.42,45)
20

7. Ungiu Eliseu profeta em seu lugar (1Reis 19.16)


8. Desarmou os siros diante de Israel (1Reis 20.28)
9. Lavrou a sentença do rei Acabe (1Reis 21.19, 20);
10. Profetizou a sentença de Jezabel (1Reis 21.23)
11. Profetizou a morte de Acazias (2Reis 1.3-6);
12. 102 homens são consumidos pelo fogo (2Reis 1.10-12);
13. Profetizou a ruína e morte de Jorão rei de Judá (2Cr 21.12-20).

Eliseu

• Abriu o rio Jordão (2Reis 2.14);


• Sarou as águas de Jericó (2Reis 2.22-23);
• 42 adolescentes despedaçados por duas ursas (2Reis 2. 23,24);
• Providenciou água a três reis (2Reis 3.15-20);
• Aumentou o azeite da viúva (2Reis 4.6-7);
• O filho da Sulamita (2Reis 4.14-17);
• Ressuscitou o menino (2Reis 4.19-35);
• Tirou a morte da panela (2Reis 4.41);
• A multiplicação dos pães (2Reis 4.42-44);
• Curou Naamã da lepra (2Reis 5.14);
• Colocou lepra em Geazi, seu auxiliar (2Reis 5.27);
• Fez nadar um machado (2Reis 6.6, 7);
• Revelou ao rei de Israel o esconderijo dos siros (2Reis 6.9-12);
• Deu visão espiritual a Geazi (2Reis 6.17);
• Cegou os siros (2Reis 6.18);
• Tornou a devolver-lhes a visão (2Reis 6.20);
• Livrou-se da morte por revelação divina (2Reis 6.31-32);
• Previu alimentação ao povo de Samaria (2Reis 7.1, 18);
• Sentenciou Benadade à morte (2Reis 8.10, 15);
• Profetizou o mal que Hazael faria a Israel (2Reis 8.12; 10.32);
• A unção de Jeú a rei (2Reis 9.1-3,6);
• A vitória de Jeoás (2Reis 13.17, 19,25);
• Sentenciou a morte de um capitão (2Reis 7.2, 19,20);
• Anunciou uma seca por sete anos (2Reis 8.1);
• A derrota dos moabitas (2Reis 3.18-24);
• Depois de morto ressuscitou um defunto (2Reis 13.21).
21

3. A TEOLOGIA DE ESDRAS E NEEMIAS

Desde os dias dos nossos antepassados até agora, a nossa culpa tem sido
grande. Por causa dos nossos pecados, nós, os nossos reis e os nossos
sacerdotes temos sido entregues à espada e ao cativeiro, ao despojo e à
humilhação nas mãos de reis estrangeiros, como acontece hoje. Mas agora,
por um breve momento, o Senhor nosso Deus foi misericordioso, deixando-
nos um remanescente e dando-nos um lugar seguro em seu santuário, e
dessa maneira o nosso Deus ilumina os nossos olhos e nos dá um pequeno
alívio em nossa escravidão. Esdras 9.7,8

3.1. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Antes de iniciar a consideração da teologia de Esdras e Neemias, é relevante


notar que o parágrafo inicial do livro é uma repetição literal da conclusão de 2
Crônicas.

Sem entrar na discussão da identidade do autor (ou autores) dessas obras, esse
fato singelo sugere que há uma continuidade temática entre as duas obras, além
da óbvia continuidade histórica. Há também uma preocupação com a visão que
os exilados que voltaram a Judá para reconstruir a comunidade da aliança
tinham de seu Deus e do processo histórico em que estavam envolvidos.

As obras (Crônicas, Esdras e Neemias) procuram inculcar esperança, alertando


para seu custo, que era a restauração do culto e da adoração em um templo
reconstruído, operado por meio de um sacerdócio puro em uma cidade
restaurada como comunidade de adoradores.

Mensagem

Para o autor Carlos Osvaldo, a mensagem de Esdras e Neemias podem ser


resumidas da seguinte maneira:

Esdras

O restabelecimento de Israel como comunidade adoradora na Terra


Prometida exigia um reavivamento da verdadeira religião da aliança com a
separação necessária das influências gentias para a lealdade ao Deus das
promessas(PINTO,2006).
22

Neemias

A reconstrução de Jerusalém como cidade escolhida de Deus exige a


restauração de seu povo como uma comunidade adoradora em sintonia com
a santidade de seu Soberano Restaurador (PINTO,2006).

Yahweh é gracioso

A melancólica situação do povo de Judá depois da volta do exílio é o pano de


fundo adequado para uma consideração realista da graça de Yahweh. Esdras e
Neemias, ainda que as gloriosas expectativas proféticas aguardassem seu
cumprimento maior, viam a simples presença de um remanescente em
Jerusalém como o penhor de algo ainda maior. Em suas orações intercessórias
(Ed 9 e Ne 9), encontramos as expressões mais claras dessa convicção.

Esdras 9.8,9 menciona não apenas a preservação do remanescente, mas o favor


que este encontrara aos olhos dos reis da Pérsia. Ali, Yahweh é identificado
como um Deus misericordioso (o hebraico usa o substantivo ‫[ תְׁ ִׁחנָה‬teḥinnâ],
derivado do verbo ‫[ חָנן‬ḥānan]), e “bondoso” (o hebraico usa a expressão ‫ויט ָעלֵינּו‬
‫ ֶחסֶד‬, [wayyaṭ ʿalênû ḥeseḏ ]) cuja conotação específica é a lealdade pactual de
Deus ao responder aos pedidos de alívio de uma comunidade que se vê ainda
como escrava dos gentios, mas tem um pé fincado na fidelidade de Deus ao
amor eletivo que separou Israel como povo escolhido.

Em Neemias 9, a graça de Deus se revela uma vez mais no atendimento aos


clamores dos israelitas sob a disciplina da aliança (9.27,28). Neemias emprega a
palavra ‫[ רחֲמִׁ ים‬raḥămîm], termo mais antropomórfico, que indica as entranhas de
uma pessoa e está associado a respostas benevolentes motivadas por emoção.

No versículo 31, Neemias combina os adjetivos ‫( ָרחּום‬rāḥûm) e ‫( חָנּון‬ḥānûn), que


formavam a confissão de fé básica de Israel, desde o Sinai (Êx 34.6, em que a
ordem é inversa), e que, combinados, falam da graça misericordiosa,
condescendente e paciente de Yahweh, incansável em Sua benevolência para
com Seu povo pactual.

Graças, porém, à tua grande misericórdia, não os destruíste nem os


abandonaste, pois és Deus bondoso e misericordioso. Agora, portanto,
nosso Deus, ó Deus grande, poderoso e temível, fiel à tua aliança e
misericordioso, não fiques indiferente a toda a aflição que veio sobre nós,
23

sobre os nossos reis e os nossos líderes, sobre os nossos sacerdotes e


profetas, sobre os nossos antepassados e sobre todo o teu povo, desde os
dias dos reis da Assíria até hoje. Neemias 9.31,32

O contexto dessa passagem é uma renovação da aliança, o que deveria levar-


nos a considerar a expressão “fiel à Tua aliança e misericordioso” (heb. ‫שֹומֵ ר הב ְִׁׁרית‬
‫וְׁה ֶחסֶד‬, [s̆ômēr haḇberîṯ wehaḥeseḏ]), em 9.32 que poderia ser traduzida “sue
guardas com amor leal à aliança”, apontando, mais uma vez, para as contínuas
manifestações da graça de Yahweh para com Israel.

3.2. A ADMINISTRAÇÃO DOS PROPÓSITOS DE DEUS

As quatro linhas de ação de Deus, na história, por meio das quais ele opera para
restabelecer Sua soberania mediada sobre o universo, estão claramente
presentes em Esdras e Neemias.

A permissão do mal

Ambos os autores ressaltam que o mal que sobreveio ao povo de Israel fora
predito e permitido por Deus. Na verdade, em uma típica expressão da
cosmovisão judaica, o castigo que sobreveio à nação foi atribuído diretamente a
Deus (Ne 9.27; Ed 5.12), ainda que agentes humanos o tivessem executado. A
tolerância divina para com o pecado em Seu povo (Ne 9.16-18, 26) nunca
poderia ser interpretada como indiferença ou ignorância.

O decreto de punir o mal

As duas grandes orações intercessórias de Esdras e Neemias ressaltam que


Yahweh ativamente se envolveu na punição às diversas quebras de lealdade
pactual do povo de Israel, desde o bezerro de ouro (Ne 9.18) até os dias
sombrios, quando profetas eram mortos, e a idolatria grassava no final da
história de Judá (Ne 9.26).

Esdras via a punição do mal em Israel como algo frequente que vinha desde os
antepassados e era, na verdade, a marca registrada da nação (Ed 9.7), pois o
alívio era temporário (9.8) e a punição menor que a merecida (9.13).

O decreto de libertar os eleitos


24

Novamente, uma profunda consciência da intervenção libertadora de Yahweh


perpassa as duas obras. Desde o decreto de Ciro (Ed 1) até a superação das
estratégias e intrigas dos samaritanos e outros vizinhos (Ed 4; Ne 4; 6), a
percepção era a de que Yahweh agia para devolver ao Seu povo uma medida de
liberdade, que lhe permitisse experimentar a bênção divina na terra da aliança.

Pode parecer, pelo palavreado da oração de Esdras, que o escriba-sacerdote


tinha uma visão negativa da situação em que Israel se encontrava em sua época,
mas palavras como “um pequeno alívio em nossa escravidão” (Ed 9.8) e “somos
escravos” (9.9) devem ser entendidas no contexto maior das promessas
pactuais a Abraão e Davi.

Esdras reconhecia que a intervenção era divina, e que era apenas o prenúncio
de coisas maiores. A própria continuação do versículo indica que ele via a volta
da comunidade pós-exílica e seu estabelecimento em Jerusalém e arredores
como um renascer. Além do mais, as intervenções soberanas de Deus na história
persa recente (Ed 5.5) demonstravam que Seu povo podia continuar contando
com Sua graça libertadora em seu favor.

O decreto de abençoar os eleitos

Tanto Esdras quanto Neemias entenderam que a continuidade da bênção para o


remanescente dependia de uma resposta de fé manifesta em obediência. Como
uma comunidade de adoradores, centrada no templo e não em um trono
davídico, Israel só garantiria sua bênção guardando-se puro.

Por isso, tanto o sacerdote quanto o governador se empenharam muito em


preservar a pureza racial − não por mera xenofobia, mas pelo efeito corruptor
dos casamentos na adoração da comunidade. O exemplo de Salomão, por cuja
idolatria Israel fora privado das bênçãos no passado, deveria falar alto aos
ouvidos da comunidade pós-exílica (Ed 9.10-14; Ne 13.23-27). A disposição
benevolente de Yahweh deveria ser correspondida com amor não dividido e
com repugnância evidente pelos deuses dos vizinhos pagãos.

Conclusão

Os livros de Esdras e Neemias transmitem aos seus intérpretes tanto esperança


quanto frustração. Deus restabeleceu Israel na Terra Prometida, num local
25

escolhido de adoração, numa posição estratégica segura; concedeu-lhe um


sacerdócio definido, uma pureza social e uma normatividade doutrinária.

A soberania de Yahweh, sua clemência, compaixão e fidelidade foram todas


provadas em reais circunstâncias históricas mais uma vez. O povo correspondeu
bem a esses atributos divinos e às obras que necessariamente os acompanham.
Um remanescente sincero serve a Yahweh agora. No entanto, as promessas de
longo prazo ainda esperam cumprimento. Está claro, contudo, que a fonte para
futuras bênçãos está no Deus das Escrituras, o qual inspira a fidelidade do
remanescente em relação a Yahweh e sua palavra.
26

4. ESTER — O LIVRO DA PRESERVAÇÃO

Pois, se você ficar calada nesta hora, socorro e livramento surgirão de outra
parte para os judeus, mas você e a família de seu pai morrerão. Quem sabe
se não foi para um momento como este que você chegou à posição de
rainha? Ester 4.14

4.1. A PESSOA E O CARÁTER DE DEUS

Como estudar a teologia de um livro que sequer menciona o nome de Deus?


Pode parecer tarefa ingrata ou, até mesmo, impossível, mas basta ler o livro
com atenção para perceber que embora o nome de Yahweh esteja ausente, Sua
atuação é evidente nas entrelinhas do livro de Ester.

Mensagem

Para o autor Carlos Osvaldo, a mensagem de Ester pode ser resumida da


seguinte maneira:

A fidelidade de Deus à aliança abraâmica é demonstrada na maneira


soberana e providencial como Ele preserva Seu povo do ódio gentílico,
mesmo quando Israel está alheio à intervenção divina na história
(PINTO,2006).

Yahweh é soberano

Esta, sem dúvida, é a faceta que mais se percebe em Ester. Naturalmente, não
há declarações explícitas a respeito, mas os olhos da fé podem perceber no
cuidado providencial de que os personagens principais do livro − Ester e
Mardoqueu − são alvo.

A ascensão improvável de Ester ao favor real (cap. 2), a ocasional percepção de


um plano assassino por Mardoqueu (cap. 2), o intervalo prolongado entre a
concepção do plano e sua execução (cap. 3), a boa vontade real para Ester em
uma hora crítica (cap. 5) e uma combinação inesperada de insônia real e de
oportuna leitura de crônicas do reino (cap. 6), testemunham que havia a mão
invisível a mover a luva da História em favor de Seu povo.
27

Declarações abertas − ainda que indiretas − confirmam o ponto de vista


mencionado. Uma vem do judeu Mardoqueu, que afirma que o livramento
certamente chegaria para os judeus de outra parte, caso Ester recusasse agir
como intermediária (4.13). A outra vem de uma pagã − Zerés − esposa de Hamã.
Ela reconhece que seria impossível ao marido triunfar sobre Mardoqueu, por ele
ser judeu (6.13). Isso testemunha um sentimento generalizado de que havia
alguém protegendo sobrenatural e soberanamente aquele povo.

Yahweh é fiel

A inversão da sorte, motivo comum no livro de Ester, aponta para o


cumprimento de promessas abraâmicas de tratamento punitivo ou
recompensador para indivíduos e/ou nações em vista do tratamento que deram
para a descendência de Abraão.

Apesar de sua meteórica ascensão na corte persa e de seu sonho ambicioso de


se beneficiar às custas do genocídio dos judeus, Hamã cai vitimado não apenas
por sua ganância e ódio, mas porque ele, sem saber, assume a postura de
inimigo da promessa divina, à qual Yahweh é sempre fiel.

De outro lado, Mardoqueu, recusando-se a se prostrar diante de um simples


mortal, tem sua lealdade ao Senhor celestial e ao senhor terreno recompensada
com grande honra e fama, perpetuadas no livro e na Festa de Purim.

É de se notar que embora o decreto para extermínio dos judeus visasse todo o
império, a ênfase recai sobre os moradores de Susã, judeus que não haviam se
comprometido com o retorno a Jerusalém e com a reconstrução da
comunidade judia pós-exílica. Yahweh, mesmo diante da indiferença de grande
parte de Seu povo, se manteve fiel à preservação de Israel, Seu povo pactual.

Os atos de Deus

Yahweh age para proteger Sua aliança dos inimigos

Quando as forças do mal, canalizadas pela ambição e ódio de um indivíduo e


seu clã, ameaçam a existência de Israel, Yahweh intervém. Ainda que a natureza
de tal intervenção fique muito a dever à grandiosidade do êxodo ou da
conquista, revela a consistência da fidelidade de Deus ao povo que canalizaria
as bênçãos às demais nações.
28

Yahweh age para valorizar Sua aliança entre os judeus

O retrato que se tem do povo judeu no começo da ação de Hamã é a de um


grupo amedrontado e acuado por seus inimigos − numericamente inferiores. É
evidente a associação com as maldições da aliança em Levítico 26 e
Deuteronômio 28, em que um pequeno número de inimigos poria um grande
número de israelitas em fuga.

Depois da intervenção de Yahweh, no entanto, o quadro é outro. Há uma


percepção de que o povo se une em torno daqueles que o livraram −
humanamente falando, Mardoqueu e Ester. Unir-se em torno deles, no entanto, é
reconhecer a providente mão de Deus em favor de Seu povo pactual, e valorizar
Israel como povo separado, distinto (como o próprio Hamã dissera; 3.8).

4.2. PROPÓSITO E DESENVOLVIMENTO

Ester demonstra como Deus trabalha por meio das circunstâncias e detalhes
aparentemente acidentais para cumprir Sua antiga promessa de proteção,
recompensa, e castigo, dependendo de como o indivíduo ou a nação tratasse
Israel (Gn 12.1-3). No entanto, o principal propósito do livro é demonstrar como
Deus provou ser fiel, mesmo quando Israel, quase em sua totalidade, se manteve
alheio a Sua intervenção na História. A Festa de Purim é um meio de Israel
relembrar tal fidelidade e regozijar-se por sua manifestação histórica nos dias de
Mardoqueu.

Esse tema da soberana intervenção de Deus em guardar Sua lealdade pactual


aparece logo no início do livro. Xerxes reunira um enorme número de oficiais,
provavelmente em preparação para alguma campanha militar (1.1-9). Xerxes,
embriagado com vinho, exige que Vasti, sua favorita na época, seja trazida
diante de seus oficiais para exibir sua beleza. A recusa de Vasti, talvez motivada
pelo aspecto nebuloso de sua aparição, provocou a fúria de Xerxes (1.10-12) e a
recomendação de seus conselheiros de que Vasti fosse removida de seu lugar
de honra no harém para não encorajar um “movimento feminista” por todo o
império (1.13-20).

O capítulo 2 contém a ideia do livro na qual apresenta Ester, uma judia, sendo
trazida ao harém real como uma entre muitas “candidatas”, conforme a
recomendação dos conselheiros (2.1-10). No palácio real, Ester conquista a
29

admiração e simpatia de todos que a encontram, mas especialmente do


homem-chave, o eunuco Hegai, responsável pelo prolongado tratamento de
beleza ao qual toda nova “esposa” do rei era submetida (2.10-14). Ester,
mantendo sua nacionalidade em segredo (2.10), conquistou o rei que ficou tão
satisfeito que ela foi escolhida como substituta de Vasti (2.15-18).

Ester 3 expõe o conflito do livro e o principal antagonista da história. Hamã, um


dos oficiais da realeza, odeia Mardoqueu por este não haver se curvado diante
dele (3.1-5). Assim, ele calunia os judeus e obtém a permissão para aprovar uma
lei irrevogável que permite a aniquilação dos judeus por seus inimigos (3.6-15).

O autor deixa claro que esse decreto, levado a todas as 127 províncias, era uma
monstruosidade, que nem mesmo os persas pagãos conseguiam entender (3.12-
15). Para os judeus isso foi como um toque fúnebre, já que o império persa
ocupava possivelmente todo o Oriente Médio e toda a Ásia Menor, incluindo
ainda o Egito, Sudão, e parte da Índia. Escapar, seria impossível!

O capítulo 4 contém as únicas indicações veladas da piedade judia tradicional


quando os israelitas de todo o império se lamentam e jejuam por causa do
decreto fatal. O autor focaliza as ações de Mardoqueu, sendo ele o elemento
chave na resolução do conflito da narrativa (4.1-3). Ester, protegida pelo
isolamento palaciano, precisa ser informada, e Mardoqueu provê não apenas os
fatos, mas também um desafio, para que ela use sua posição influente a fim de
assegurar a misericórdia real para seu povo (4.4-8).

A relutância de Ester oferece a Mardoqueu a oportunidade de expressar sua


convicção de que outras forças além dos reis da Pérsia controlam o destino de
Israel, e que Ester deveria tirar proveito dos privilégios que sua elevação
“circunstancial” à posição de rainha lhe traziam (4.9-14). A reação de Ester
poderia sugerir fatalismo (E se eu perecer, pereci [4.16]) se ela não tivesse se
comprometido, e a suas servas, a jejuar, o que implicitamente indica oração
(4.15-17).

Ester, violando o protocolo da corte, aparece diante do rei sem ser convocada;
essa quebra de protocolo poderia ter lhe custado a vida, mas outra vez a
soberania de Deus prevalece e sua petição é reconhecida (5.1-3). Enquanto o
plano de Ester para interceder pelos judeus incluía banquetes para o rei e Hamã
(5.4-8), Deus usaria tais planos para concretizar os Seus. Ester, ao adiar sua
30

petição, esperava receber favor do rei. O adiamento teve duas consequências:


Hamã aprofundou sua determinação de destruir Mardoqueu, que ainda se
recusava a se curvar diante dele (5.9-14), e instigado pela esposa construiu uma
forca para esse fim. Xerxes, por outro lado, não dormiu à noite, outra
circunstância providencial que lhe permitiu saber da lealdade de Mardoqueu,
apesar de não ter lhe dado o apropriado reconhecimento por ter salvo sua vida.
O resultado final dessa investigação noturna foi a elevação de Mardoqueu (6.1-
9) e a humilhação pública de Hamã diante do judeu (6.10-14).

O ritmo da narrativa se acelera enquanto o narrador descreve o segundo


banquete, no qual Ester denuncia o genocídio planejado por Hamã (7.1-6), e
Xerxes confunde o pedido de clemência de Hamã com uma tentativa de
molestar sexualmente a rainha, uma impressão que sela a sorte de Hamã (7.7,8).
Harbona, o eunuco, faz uma terceira acusação contra Hamã, a de tentar matar o
mais recentemente honrado amigo do rei, Mardoqueu (7.9a). O cruel Hamã é
atingido pela própria trama, quando é empalado (tipo de execução persa) na
forca preparada por ele para Mardoqueu (7.9b). Esse tema literário de reversão
da sorte é como que um resumo do livro.

O restante do livro trata da reversão dos efeitos do edito genocida que ainda
vigorava devido à natureza da lei persa. O rei deixa o assunto na mão de
Mardoqueu (8.1-8), que redige um edito autorizando os judeus a se armar e
defender suas vidas e propriedades contra seus inimigos (8.9-17). A data seria a
mesma, o 14º dia do mês de adar, a mesma data que o sorteio (Purim) havia
apontado para o genocídio planejado por Hamã.

O capítulo 9 contém a descrição da resistência judia e o triunfo sobre os


inimigos (9.1-17). A defesa judia, em Susã, estendeu-se por mais um dia para
garantir que outro ataque não se seguiria (9.11-17). O restante do capítulo
contém a instituição da Festa de Purim como uma recordação do livramento
dramático de outro genocídio antijudeu e instruções para sua celebração (9.18-
32).

O livro termina com um relato da grandeza de Xerxes e Mardoqueu (10.1-3).


Esse pode ter sido o desejo do autor, indicar que os reis da Pérsia foram
agentes da providência divina para proteção e restauração de Seu povo, com os
judeus fiéis que Ele levantaria para feitos específicos (10.1-3).
31

4.3. SÍNTESE CANÔNICA: O COMPROMISSO DE DEUS COM ISRAEL

O autor e professor Brevard Childs destaca que o relato de Ester 9. 20-33


proporciona o fundamento canônico mais poderoso em todo o Antigo
Testamento para o significado religioso do povo judeu num sentido étnico. Ele
acredita que isso ocorre por causa da importância cultual dada ao Purim: ao
torná-lo uma cerimônia obrigatória (9.21,27,29,31,32), ao conceder-lhe uma data
determinada a ser observada (9.21,31), ao estabelecer a maneira exata pela qual
deve ser celebrado (9.19,22) e ao registrar todas essas decisões por escrito,
especialmente no texto das Escrituras. A inclusão de Ester no cânon realça a
necessidade da sobrevivência de Israel.

A sobrevivência é tão certa quanto sagrada, porque o Senhor precisa manter


todas as promessas que exijam a participação judaica. Todas as nações ainda
devem ser abençoadas por Abraão. Davi ainda deve receber um reino eterno. A
Terra Prometida deve receber Israel de volta, e a nova aliança ainda precisa ser
iniciada. Portanto, além do fato de que Deus não sanciona o assassinato do
inocente, Israel deve sobreviver para que todo o programa da teologia bíblica
seja completado. O Purim proporciona mais uma evidência de que o Senhor
permanece na direção da história humana.

Sem dúvida, o presente capítulo atribui uma atuação divina maior do que alguns
comentaristas poderiam aceitar. Afinal de contas, não foi dito que o Senhor
realizou qualquer coisa em Ester, ao menos não explicitamente. A teologia de
Ester é sutil e está encoberta numa aproximação inicial. Contudo, como parte
do cânon, o livro participa de uma apresentação contínua das obras de Deus e
de seus ensinamentos na história. Sua presença no cânon assinala Ester como a
parte de um todo teológico, e essa parte testemunha que os planos de Deus
para Israel não podem ser contrariados pelos que odeiam os judeus. Na
realidade, Ester indica que os planos de Deus para todas as pessoas,
independente de raça ou status pactual, não podem ser contrariados. Deus é
soberano sobre judeus e gentios em Ester, da mesma forma como ocorre no
resto do cânon.

4.4. FESTA DE PURIM

O livro de Ester se explica com a Festa de Purim (9.16-32). Estabelecida por


Mordecai como uma celebração do livramento do povo judeu de um extermínio,
32

a Festa de Purim é a primeira e única festa de significado perpétuo não


estabelecida por Moisés.

Diferentemente de outras festas, como a Festa dos Tabernáculos e a Páscoa,


que encontramos ainda em prática nos tempos de Jesus, não há referência
alguma à Festa de Purim nos Evangelhos. Entretanto, evidências da assimilação
dessa festa pela cultura judaica constam em textos não canônicos, como de
2Macabeus 15.36, que cita o Purim como o dia de Mordecai.

Como a Bíblia explica o nome dessa festa deriva da palavra Pur, que significa
“sortes” (9.24), era um costume persa de lançar sortes por meio de dados no
início do ano para estabelecer datas para eventos importantes. Os dias 14 a 15
de adar (9.21) teriam sido uma dessas datas, apropriadas por Hamã para
executar o terrível plano de exterminar os judeus. Tal costume era fruto de uma
profunda crença em um destino premeditado pelos persas, de forma que a
transformação de um dia de luto e sofrimento em dia de festa e alegria foi mais
do que libertação do povo de Deus: foi uma comprovação e afirmação da
soberania de Deus acima de qualquer crença generalizada em um destino
predeterminado.

Essa festividade sempre foi popular entre os judeus, desde seu início. Além de
leitura do livro de Ester, e dos gritos de vaias toda vez que o nome de Hamã é
lido, o leitor do relato pronuncia todos os nomes dos filhos de Hamã de um só
fôlego, indicando que foram enforcados juntos. No segundo dia de celebração
há um culto religioso formal, são entoados hinos, há encenação teatral e são
apresentadas recitações. Alimentos e presentes são distribuídos entre os pobres
como um gesto de generosidade, em memória da generosidade de Deus para
com seu povo (9.19).

Princípios da Festa de Purim

A Festa do Purim revela que uma situação nunca é tão desesperadora que não
exista uma brecha para Deus agir e revertê-la para o bem de quem O busca.

A celebração do Purim ensina que as lembranças dos eventos desafiadores e


traumáticos do passado devem se tornar a base, não da reclamação, mas da
celebração.
33

A comemoração do Purim consiste em viver passando adiante as lições que


levaram a mudanças e obtiveram resultados positivos durante a história da
nossa vida.

O Purim é um monumento no tempo que dá um significado positivo ao presente


e perspectiva ao passado; sem monumentos somos destinados a viver sem
raízes.

O Purim é um lembrete para cada geração de que as tragédias podem se


transformar em triunfos; portanto, não se deve perder a fé, a coragem, o ânimo
e a alegria.

O Purim é uma lembrança antiga para os povos modernos que se não houver
perspectiva para o futuro nada poderá libertar alguém preso aos medos e
lamentos do passado.

Aplicação

No passado, Jesus morreu numa cruz por nossos pecados e deixou o memorial
da Santa Ceia para olharmos para trás com perspectiva positiva e cheios de
esperança para o futuro (Mateus 26.26-29).

No presente, devemos reconhecer que Jesus morreu para que sejamos libertos
do pecado, livres dos decretos de condenação e morte e, alegres pelo fato dEle
ter revertido a situação terrível do pecador (Efésios 2.1-7).

No futuro, olhamos para o dia em que nossa esperança está firmada,


aguardando o nosso Libertador Jesus Cristo vir nas nuvens com poder e glória
para estarmos com Ele eternamente; então, Ele aniquilará todos os nossos
inimigos (2Tessalonicenses 2.8).
34

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2013.

CHILDS, B. Introduction to the Old Testament as Scripture. Edição Hardcover,


1979.

GEISLER, N. Resposta às Seitas. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009


Veremos hoje:

1.TEOLOGIA DE JÓ

1.1 O PROPÓSITO DO LIVRO


1.2 O DEUS QUE PERMITE A PROVAÇÃO
1.3 O DEUS IMUTÁVEL
1.4 O DEUS QUE RESPONDE AO FIEL
1.5 O DEUS JUSTIFICADOR DO FIEL

2. A CELEBRAÇÃO DA SOBERANIA DE DEUS

2.1 O PROPÓSITO DE SALMOS


2.2 A DOUTRINA DE DEUS EM SALMOS

3. A SOBERANIA MEDIADA EM SALMOS

3.1 O HOMEM COMO VICE-REI DE DEUS


3.2 O REI MESSIÂNICO

4. A TEOLOGIA DE CÂNTICO DOS CÂNTICOS

4.1 O PROPÓSITO DO LIVRO


4.2 O DESEJO SEXUAL
4.3 O CASAMENTO
4.4 SEPARAÇÃO E SATISFAÇÃO MATRIMONIAL
4.5 COMPROMISSOS MATRIMONIAIS
1

1. TEOLOGIA DE JÓ

Na terra de Uz vivia um homem chamado Jó. Era homem íntegro e justo; temia
a Deus e evitava o mal.

Jó 1.1

1.1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

O livro de Jó é um dos mais dramáticos do Antigo Testamento; é, também, um


dos mais belos quanto ao aspecto literário e teológico. Trata-se de um texto
intrigante dentro do quadro bíblico, uma vez que reflete alguns princípios
doutrinários aparentemente inquestionáveis.

É impossível ter certeza quanto ao autor deste livro. As principais suposições


apontam para Moisés ou Salomão. Normalmente, as evidências em favor de
Moisés consideram que Uz se situa próxima a Midiã, onde Moisés viveu por
quarenta anos e teria conhecido a história. Em favor da autoria de Salomão está
o fato de que ele escreveu os demais livros de sabedoria (parte de Provérbios,
Eclesiastes e Cântico dos Cânticos), bem como a presença de alguns temas
semelhantes a Eclesiastes no livro de Jó. A suposição da autoria de Salomão
considera que ele teria sido inspirado por Deus a escrever sobre tempos muito
antes do seu tempo, assim como Moisés foi inspirado a escrever sobre Adão e
Eva. Também já sabemos que os povos antigos possuíam grandes bibliotecas e
podem ter deixado material de pesquisa para os autores inspirados.

O que se sabe, a partir de evidências internas do livro, é que a história se passa


nos tempos patriarcais, pouco antes ou, ainda, no tempo de Abraão e após a
intervenção de Deus em Babel. A idade de Jó (42.16), a estrutura familiar
patriarcal e o papel sacerdotal do pai (1.1-5), a avaliação da riqueza de Jó por
meio de seus rebanhos (1.3;42.12), a referência aos caldeus ainda como nômades
e não estabelecidos em sua terra (1.17) e a ausência de qualquer referência às
alianças de Deus com seu povo servem de base para afirmar Jó como
contemporâneo de Abraão.

O propósito do livro de Jó é muito debatido, visto que o tema em destaque no


livro — a questão do sofrimento — é deixado sem resposta, bem como a forma
de se enfrentar o sofrimento aparece apenas no fim do livro, sem muito
2

destaque. Entretanto, na epopeia da história de Jó, é possível discernir três


assuntos a serem transmitidos para seus leitores:

1. A realidade do sofrimento, a dificuldade de entendê-lo, a necessidade de


paciência e submissão ao enfrentá-lo.
2. A soberania incontestável de Deus sobre toda a criação (inclusive sobre
anjos e Satanás).
3. A refutação de uma teologia retributiva, em que apenas os maus sofrem
ou que a única causa do sofrimento é o pecado.

Mensagem do livro

A soberania inescrutável de Deus em Seu lidar com Suas criaturas é


vindicada mediante o ciclo de prosperidade – sofrimento – e recuperação na
vida de Jó, quando este é levado do ceticismo e justificação de si mesmo
para uma atitude de humilde fé.

1.2. O DEUS QUE PERMITE A PROVAÇÃO: JÓ 1 E 2

Desde o início, o autor estabelece o fato de que nenhum dos sofrimentos de Jó


acontece por causa de qualquer pecado específico de sua parte. Jó 1.1- 5
retrata-o como um homem de caráter elevado. Declaradamente, ele teme a
Deus e, assim, vive de modo correto diante de Deus e entre os seres humanos
(1.1). Ele alcançou a maturidade que a literatura de sapiência inspira em seus
leitores. Ele tem dez filhos, extensa riqueza e devoção evidente (1.2-5). Duas
coisas que o autor de Jó pretende salientar: o caráter de Jó e sua
prosperidade; aquele sendo constante, esta, efêmera; aquele como
essencial. Situando o caráter de Jó e sua relação com Deus no primeiro plano
de importância.

O livro de Jó trata essencialmente da relação do homem com Deus,


centralizando-se em duas perguntas. A primeira pergunta é: “Por que o homem
adora a Deus?”. Satanás sugeriu que o motivo por trás da adoração de Jó era
engrandecimento centrado em si mesmo (1.9-11). Esse assunto atinge o cerne da
relação entre o homem e Deus. O que Satanás queria dizer era que Deus não
tem meio de induzir o homem a adorá-lo, exceto subornando-o,
recompensando-o pela devoção oferecida. Se isso é verdade, então a adoração
é adulterada; já não é adoração voluntariosa do homem a Deus. Adoração
egoísta não é adoração.
3

A segunda pergunta é: “Como o homem pode reagir a Deus se Ele não se


interessa pelos problemas do homem?” Jó, o modelo do sofrimento imerecido,
apresenta respostas certas e erradas a Deus em tempos de adversidade. Ele
questionou Deus, almejando uma explicação da sua experiência dolorosa. Mas
ele não amaldiçoou a Deus como Satanás predissera duas vezes (1.11; 3.4). A
atitude de Jó foi, a princípio, elogiável: “Bendito seja o nome do Senhor” (1.21); e:
“Receberemos o bem de Deus e não receberíamos o mal?” (2.10).
Imediatamente após os dois ataques de Satanás, Jó “não pecou” (1.22; 2.10). Até
aqui, Jó sofreu a perda da família, da propriedade, dos criados e da saúde,
contudo ele ainda considera Yahweh merecedor de lealdade e adoração.
Quando os amigos chegam, eles encontram uma figura espantosamente
arruinada, cujo sofrimento não o fez abandonar Deus (2.11-13).

1.3. O DEUS IMUTÁVEL: JÓ 3—37

Essa seção contém o diálogo entre Jó e seus amigos. Jó começa a discussão


com um lamento (3.1-26). Em seguida, o protagonista fala aos seus três amigos,
Elifaz, Bildade e Zofar, em Jó 4—31. Eliú, um quarto amigo, conclui a sequência
com uma longa oração (32—37).

O objetivo dos discursos está em explorar a natureza de Deus, pois a ênfase da


narrativa muda da provação do caráter de Jó para a definição de Deus. Agora a
reputação do Senhor está em prova, em parte porque Yahweh é o único Deus,
em parte porque Deus testa o crente.

Discursos

Tese dos amigos de Jó Tese de Jó

Jó estava sofrendo tanto por causa de um Deus estava sendo duro demais com ele,
pecado não confessado (provavelmente um castigando demasiadamente um homem justo
pecado terrível), pelo qual Deus o estava e temente ao Senhor
castigando.

Argumentos dos amigos de Jó Contra-argumentos de Jó

Todos pecaram. Não há ser humano justo Sou pecador, sim. Mas sou justo e inocente
sobre a terra (15.14-16;25.4). diante de Deus (9.2-3,20-22;19.4;31.4-37).

Deus sabe que sou inocente. Ele me conhece e


sabe que sou temente a Ele e que sempre
4

procurei ser justo e bom (10.7;23.10-12;29.14-


Deus conhece o seu pecado, ainda que você 17).
o negue (11.4-6;15.5-6;22.5).

Você está louco ou vaidoso demais para dizer Não sei por que Deus me castiga assim, mas sei
que é inocente e que não merece o castigo que não fiz nada (tão grave) para merecer
divino (8.2-7,20-22). tanto sofrimento. Minha consciência está limpa
(10.2-3;13.14-24;27.2-6).

O justo recebe bênçãos de Deus; já o Deus permite, sim, que perversos prosperem e
perverso é punido por Deus com sofrimento sejam felizes, bem como que justos tenham
(4.8-9;5.3-16;11.10-20;15.20-35;18.5-21;20.4-8). dificuldades e não experimentem alegria na
vida (9.22;21.7-13,19-25).

Você se rebelou contra Deus e o acusa de Deus é todo poderoso e faz o que quer. Isto é
injustiça (34.5,7,36-37). parte do plano dele, que estou achando difícil
de aceitar (9.4-12;10.12-13;23.13-14).

Uma teologia incompleta tem colocado a reputação de Deus em risco. Sem uma
avaliação do fato de que Yahweh permite o sofrimento como meio de mostrar
que ele merece ser servido sob todas as condições, os amigos decidem que
aquele homem aparentemente íntegro é de fato um terrível pecador. Não
completamente ciente de todos os fatos, Jó cogita com seriedade sobre a
noção de que Deus talvez não seja amoroso e justo. Sem esse conhecimento,
seus amigos consideram Deus insensível e categórico, enquanto Jó vê Yahweh
como muito rigoroso e quase insuportável. De qualquer modo, tal retrato de
Deus pouco se assemelha ao do contexto integral da Lei, dos Profetas e dos
Salmos.

1.4. O DEUS QUE RESPONDE AO FIEL: JÓ 38.1—42.6

Parte da irritação dos amigos teve origem na insistência de Jó em apresentar


uma contenda contra Deus, o que forçaria o Senhor a justificar o que aconteceu.
Eliú pensa que precisa e deveria falar por Deus, já que os outros amigos
falharam na contestação a Jó e porque o Senhor não fala diretamente aos seres
humanos.

Os quatro amigos não acreditam que Jó seja fiel a Yahweh, nem pensam que
Deus o responderia se ele fosse íntegro. Para eles, o Senhor é indiferente,
contentando-se em falar aos seres humanos por visões misteriosas (v.4.12-21),
5

desastres naturais ou aflições (v.33.14-22). Mesmo Jó considera que a sabedoria


do Senhor está além do alcance humano (v.28.1-28).

Porém, os dois pronunciamentos do Senhor nessa seção provam o erro de Jó e


dos seus amigos sobre a atitude de Deus em relação às pessoas.

Yahweh se revela em uma teofania e desafia Jó a responder-Lhe.

Então o Senhor respondeu a Jó do meio da tempestade. Disse ele: "Quem é


esse que obscurece o meu conselho com palavras sem conhecimento?
Prepare-se como simples homem; vou fazer-lhe perguntas, e você me
responderá. Jó 38.1-3

As ponderações de Deus utilizam uma série de questões no intuito de expor a


ignorância de Jó sobre os desígnios divinos e, também, pretendem restabelecer
a integridade do Senhor. Para alcançar esses objetivos, Yahweh enfatiza a
teologia da criação em seu primeiro discurso. São usadas metáforas
fundamentais para realçar o papel do Senhor como Deus único e Criador
exclusivo.

• Deus é o mestre construtor, o parteiro do mar, o oficial comandante da luz


e o proprietário dos mais íntimos segredos do mundo (38.4-24).
• Deus fundou tudo sobre a terra (38.4-7), tanto a ordem inanimada da
existência (38.25-38) quanto tudo o que é animado (38.39— 39.30).
• O Criador cita toda a criação (v. 38.25-41).

Jó não sabe como tais coisas são feitas e mantidas, assim, ele confessa a
necessidade de calar-se perante Deus (40.3-5).

O poder de Deus é enfatizado em 40.6—41.34. Aqui, o Senhor pergunta se Jó


pode domesticar as grandes criaturas do mar que aterrorizam os marinheiros.
Só o Criador e mantenedor tem a força para assim o fazer.

A manifestação de Deus remove a culpa de Jó ao não considerar os pecados


que os amigos sugeriram ter ele cometido. Deus enobrece Jó por tratá-lo
seriamente. Jó aprendeu que Deus está ao seu lado, e esse conhecimento
satisfez suas exigências. Em outras palavras, Jó descobriu que o Senhor revelou
a si mesmo e aos seus desígnios para o crente. Eles não são abandonados a
6

perseguir demandas sem fim que acabam apenas com a morte. Seu defensor/
redentor de fato vive e se comunica com ele.

Meus ouvidos já tinham ouvido a teu respeito, mas agora os meus olhos te
viram. Jó 42.5

Síntese canônica: a resposta de Deus aos sofredores

Essa parte do livro de Jó repercute em vários textos canônicos nos quais Deus
ouve os clamores dos aflitos e age a seu favor:

• As súplicas de Israel em Êxodo 2.23-25 são respondidas pelo êxodo.


• Os repetidos pedidos de ajuda da nação, em Juízes, são respondidos com
a libertação.
• Davi confessa que Deus o salvou de todas as crises de sua atribulada vida
(2Sm 22; v. SI 18).
• Deus responde à dor de Elias (1Rs 19.1-18).
• À crise política de Ezequias (2Rs 19.1-37).
• O desejo de clareza espiritual de Josias (2Rs 22.14-20).
• Yahweh poupa a vida de Jeremias e Amós.
• Os salmos 18, 22 e 40 expressam contentamento sobre como Deus age
diretamente na história para salvar o fraco.

Portanto, os lamentos de Jó, como os daquelas personagens, são ouvidos, não


ignorados. A prova canônica mais contundente é que o fiel não é abandonado
para enfrentar os problemas da vida sem uma revelação importante, com a qual
possa afrontar esses desafios. Deus liberta porque Deus é o Criador. Jó é a
criação de Deus e seu fiel servidor.

1.5. O DEUS JUSTIFICADOR DO FIEL: JÓ 42.7-17

A manifestação de Deus poderia ser considerada libertadora o bastante para o


perturbado Jó, mas o Senhor faz mais.

1. Deus reprova os amigos por não se expressar corretamente sobre o


Senhor, como o fez Jó. Assim, Jó precisa interceder por eles (42.7-9).
2. Deus dá a Jó uma nova família e restabelece suas posses (42.10-15).
3. Deus dá a Jó uma vida longa (42.16,17).
7

Tudo, exceto os filhos perdidos, retorna ao sofredor. Seus amigos são forçados
a admitir que estavam errados sobre o que disseram. A retomada da amizade
depende da intercessão de quem eles haviam acusado. A disposição de Jó em
fazê-lo demonstra sua honradez e generosidade.
8

2. A CELEBRAÇÃO DA SOBERANIA DE DEUS

Estudar a pessoa e os atos de Deus em Salmos é um exercício devocional


e teológico precioso para qualquer pessoa, não importa quão madura ou
jovem seja na fé cristã. (PINTO, 2016)

2.1. O PROPÓSITO DE SALMOS

Os Salmos não são narrativas históricas. São canções destinadas a invocar, a


celebrar e a agradecer a soberania de Deus sobre a vida de indivíduos e da
nação eleita em termos típicos do Oriente Médio antigo.

Nesse gênero literário, que é caracterizado por linguagem bem delimitada e


ampliada, não se deve esperar correspondência homogênea ou exata entre
poesia e realidade em todos os aspectos e detalhes. Isso não significa dizer que
os Salmos não têm base ou fundo histórico. Significa, outrossim, que a história é
filtrada pela experiência pessoal ou comunitária e, por isso, não é possível
perceber tão claramente em Salmos o desenrolar real das quatro linhas de ação
de Deus – a permissão do mal, o juízo contra o mal, a libertação dos eleitos e a
bênção para os eleitos – que acompanhamos ao longo dos livros históricos.
Percebe-se o anseio para que as três últimas linhas de ação de Deus se
manifestem e a confiança de que um dia o mal permitido será efetivamente
julgado.

Salmos nos oferece testemunhos de relacionamentos vibrantes entre


adoradores e seu Deus no transcurso de momentos históricos variados – de
vitórias militares a invasão e exílio, de cura e libertação a angústia e quase
morte. Nos salmos, encontramos orações e hinos de pessoas que confiavam em
Deus e se voltavam para Ele em busca de refúgio das provações da vida. Robert
Alden, com muita propriedade, escreveu: “Não é no Novo Testamento que se
encontra a melhor literatura devocional, e sim, no Antigo, no livro de
Salmos.

Nos Salmos, mais do que em qualquer outro lugar da Bíblia, pode-se ouvir bater
o coração dos santos. Neles encontramos as expressões mais exaltadas da
grandeza de Deus; os gemidos mais amargos dos pecadores e dos aflitos. Nos
Salmos, encontramos algo para qualquer pessoa, seja qual for seu estado de
espírito”.
9

Assim, encontramos nos Salmos a revelação feita por Deus, mediada pelas
orações e hinos dos fiéis, de Sua soberania, afirmada e ansiada em meio aos
desafios da vida. O autor Carlos Osvaldo propõe que a mensagem global de
Salmos seja a seguinte:

A soberania de Deus é invocada e celebrada em petição e louvor por


aqueles que, em meio à instabilidade da vida, anseiam por vê-la
estabelecida definitivamente na terra em cumprimento das promessas
pactuais a Israel (PINTO, 2006).

2.2. A DOUTRINA DE DEUS EM SALMOS

É supérfluo dizer que Yahweh é o personagem central de Salmos. Seja como


alvo da petição seja como motivo do louvor e exultação dos salmistas, o Deus
de Israel é o ponto de convergência de todos os poemas do livro.

Um sem-número de categorias pode ser levantado para analisar a pessoa e a


atividade de Deus nesse livro. Analisaremos alguns dos principais atributos
exaltados pelos salmistas.

Yahweh é o Criador

O Senhor Reina! Vestiu-se de majestade; de majestade vestiu-se o Senhor e


armou-se de poder! O mundo está firme e não se abalará. O teu trono está
firme desde a antiguidade; tu existes desde a eternidade. As águas se
levantaram, Senhor, as águas levantaram a voz; as águas levantaram seu
bramido. Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais
poderoso do que as ondas do mar é o Senhor nas alturas. Os teus
mandamentos permanecem firmes e fiéis; a santidade, Senhor, é o
ornamento perpétuo da tua casa. Salmos 93.1-5

Nos panteões da Mesopotâmia, Canaã e Egito a atividade criadora era atribuída


a divindades distintas e ocorria em circunstâncias, na maioria das vezes,
bizarras. Ainda mais, os deuses do Oriente Médio eram excessivamente
imanentes, ao ponto de, em alguns casos, quase serem dependentes da criação.

Yahweh, em contraste, ainda que imanente, era anterior e superior à criação


(ponto de destaque no do Antigo Testamento).
10

Salmos apresenta Yahweh como Criador e, portanto, autoridade suprema sobre


a criação e sua história. Ele é o Senhor eterno de um mundo que firmou
soberanamente no tempo e no espaço, em contraste com a origem (e
existência) caótica e aleatória preconizada em outras religiões (93.1–5). Duas
subdivisões se prestam ao exame em Salmos:

1. Yahweh como Criador da ordem natural

O pensamento de um longo processo de evolução das espécies nunca poderia


ser desenvolvido a partir do livro de Salmos (nem do livro de Gênesis). Os
salmistas, bem como outros autores do Antigo Testamento, tinham uma noção
de tal modo elevada de Yahweh como Primeira Causa que pouco (se algum)
destaque davam a causas secundárias.

Ele é criador do ‫( ֵּתבֵּל‬ṯēḇēl, “o cosmos, mundo organizado”, 93.1) que a Ele


pertence por direito de criação (24.1). Os peregrinos de Sião, refletindo Gênesis,
cantavam que sua proteção vinha de Quem tinha direito de autor sobre tudo
(‫ָָארץ‬
ֶ ‫ע ֹשֶה שָ מַ י ִם ו‬, ʿōseh šāmayim wāʾāreṣ, “autor do céu e da terra”, 121.2; 124.8; 134.3).

O hino anônimo ao final do saltério acrescenta à gama de obras divinas também


o mar (‫י ָם‬, yām; 146.6). A frequência com que este era apresentado como um
elemento caótico e descontrolado, nos próprios Salmos (cf. 93.3,4) e na
literatura poética do Oriente Médio antigo, ressalta quão significativa era a
associação do tremendo poder de Yahweh com ideias como “auxílio” e
“esperança”, que o poeta desconhecido vinculava ao relacionamento com o fiel
Deus de Jacó.

Davi vai buscar no relato da criação a referência à lua e às estrelas – estas


mencionadas quase casualmente em Gênesis 1 – (‫י ֵָּר ַַח וְכֹו ָכבִים‬, yārēaḥ weḵôḵāḇ’m, Sl
8). A importância desses astros como divindades, no Oriente Médio antigo,
torna ainda mais dramática a afirmação de que os céus são “obra dos teus
dedos”. A linguagem antropomórfica completa o retrato de um Deus
gloriosamente transcendente e superior a Sua criação. Interessantemente, o
verbo usado em relação à lua e às estrelas é o verbo ‫( ּכֹון‬kôn), o mesmo usado
para o “mundo” no Salmo 93, mencionado acima.

Yahweh, por fim, é apresentado como o criador do homem, Sua obra-prima (8.5,
6 [4, 5]). Devemos observar que o salmo 8 não é uma mera expressão de alegria
11

pela beleza ou perfeição da natureza e do homem à parte do Deus que os criou.


Fazer isso seria elevar homem e natureza ao nível de Deus – o que seria
panteísmo. O salmo 8 pertence ao verdadeiro teísmo – considerando a
maravilha da criação como razão para louvar um Deus que é perfeito e
benevolente como Criador, Regente e Sustentador de toda a criação.

Outra famosa passagem relacionada à origem do homem é o Salmo 104, um


salmo (assim chamado) de criação. Mais uma vez, apesar da presença do verbo
‫( ב ָָרא‬bārāʾ) e apesar de várias alusões à criação primitiva (104.5; 104.26 – com o
uso do verbo ‫יָצַר‬, yāṣar), a referência não é criação original do homem, que é
mais inferida do que afirmada. A principal referência no Salmo 104.30 é a
renovação divina de vida na terra, em uma passagem que parece favorecer a
doutrina do criacionismo, a intervenção direta de Deus na formação de toda
alma. A passagem é silenciosa no que diz respeito às causas mediadoras,
afirmando apenas que o Espírito de Deus é o agente imediato no processo.

Quando sopras o teu fôlego, eles são criados, e renovas a face da terra.
Salmos 104.30

O Salmo 139.13-16 é a mais singular das passagens da “criação” encontrada nos


Salmos. Aqui, outro termo é traduzido por “criar”, a saber, o verbo ‫ ָקנָא‬, (qānāʾ)
que significa “conseguir, adquirir”, e que é usado no poema a respeito de Deus
como originador, criador. Além disso, é feita uma alusão às obras de Deus com
o uso da palavra ‫( ַמ ֲעשֶה‬maʿăśeh), um derivativo do verbo “criativo” ‫( ָעשָה‬ʿāśâ).
Davi expressa uma profunda convicção que todos os homens eram produto da
atividade criativa de Yahweh.

Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim
foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir. Salmos 139.16

2. Yahweh como Criador de Israel

Uma certeza está presente em salmos de diversos tipos (hinos, lamentos da


nação, louvores declarativos nacionais, cânticos de Sião e salmos reais): Israel
possui para com Yahweh um relacionamento que o distingue das demais
nações. Essa era a razão das reivindicações e das esperanças expressas nos
poemas do saltério hebraico.
12

Ainda que, como ocorre em nossos hinos pátrios, a nação seja idealizada e
descrita em termos que superam em muito a realidade, o fato de Israel dever
seu surgimento e existência como nação a Yahweh não é mera poesia, mas um
fato que fica evidente em várias passagens, algumas das quais se reportam,
como o evento histórico marcante, aos patriarcas, outras ao êxodo e outras à
aliança davídica.

No Salmo 95, que combina salmo de louvor descritivo com exortação profética,
o termo ‫( ע ֹשֶה‬ʿōśeh, “Criador”) tem referência específica a Israel como nação de
adoradores e rebanho do qual Yahweh é o pastor (v. 6). O mesmo termo é
empregado em 100.3. O Salmo 149.2 é ainda mais enfático, retratando a dívida
de gratidão que Israel tinha para com Yahweh como seu ‫ עֹשֶה‬e dívida de lealdade
para com Yahweh como seu Rei.

Alegre-se Israel no seu criador, exulte o povo de Sião no seu rei! Salmos
149.2

O Salmo 105 exorta a nação a ser grata a Yahweh, divulgar Sua grandeza e
confiar nEle. Os versículos 6 a 11 destacam o evento-chave nesse
relacionamento, a fidelíssima promessa a Abraão, Isaque e Jacó – Sua aliança
perpétua e Seu juramento ligado à preservação do povo e à posse da terra. O
êxodo do Egito (com os eventos relacionados, a doação da lei e instituição do
culto), que foi o estabelecimento formal de Israel como nação, é celebrado nos
versículos 23 a 43 do mesmo salmo, que termina sua resenha histórica com a
conquista de Canaã e o cumprimento inicial da promessa feita aos patriarcas
pelo Criador da nação.

O Salmo 74, lamento da nação, dedica uma de suas seções (74.12–17) a recordar
o fato de que a criação de Israel foi também um ato de redenção no qual o Rei
eterno trouxe “salvação sobre a terra” (‫ָָארץ‬
ֶ ‫י ְשּועֹות ְבק ֶֶרב ה‬, yešûʿôṯ beqereḇ hāʾāreṣ,
lit. “salvação no meio da terra”).

Mas tu, ó Deus, és o meu rei desde a antiguidade; trazes salvação sobre a
terra. Salmos 74.12

Por fim, o Salmo 114 apresenta Israel como o santuário em que a presença santa
e gloriosa de Yahweh se faria sentir na terra (1,2). Este salmo ecoa as palavras
de Moisés em Êxodo 15.17,18. Ali, a ênfase se acha na terra de Canaã como o
local escolhido por Yahweh para Sua habitação entre os homens. Ambas
13

passagens encontram sua base na aliança abraâmica e no relacionamento


peculiar que Yahweh soberanamente escolheu estabelecer com aquele ramo da
família semita (Dt 7.7-11).

Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó saiu do meio de um povo de


língua estrangeira, Judá tornou-se o santuário de Deus, Israel o seu domínio.
O mar olhou e fugiu, o Jordão retrocedeu; os montes saltaram como
carneiros, as colinas, como cordeiros. Por que fugir, ó mar? E você, Jordão,
por que retroceder? Por que vocês saltaram como carneiros, ó montes? E
vocês, colinas, porque saltaram como cordeiros? Estremeça na presença do
Soberano, ó terra, na presença do Deus de Jacó! Ele fez da rocha um açude,
do rochedo uma fonte. Salmos 114.1-8

• Yahweh como Rei

A palavra hebraica ‫( ֶמלְֶך‬meleḵ, “rei”) aparece 2.523 vezes no Antigo Testamento,


das quais 67 vezes em Salmos. Destas, 23 vezes se referem a Yahweh. Além de
afirmar sua majestade em declarações diretas, os salmos apontam, com
frequência, para atividades que eram atribuições do rei nas diversas culturas do
Oriente Médio antigo e que Yahweh, que libertara Israel do Egito com a
promessa de ser rei sobre e entre Seu povo (Êx 15.17,18), cumpria em seu
relacionamento com Israel.

1. Ele é juiz justo.


2. Ele é pastor cuidadoso.
3. Ele é guerreiro poderoso.
4. Ele é suserano da aliança.

Deus como Juiz em Salmos

Yahweh, que é Rei sobre as nações, aparece como alguém que ama a justiça e a
retidão em 33.5 e 99.4. Essas duas qualidades formam a base para Seu exercício
de autoridade (97.2).

Ele exerce Sua justiça em favor dos oprimidos e desvalidos (113.7, 9; 146.7-9), no
tempo e no espaço, embora a realidade muitas vezes contrarie tal promessa.

Quatro elementos atenuam essa aparente contradição:


14

Primeiramente, os salmos pertencem ao contexto da aliança com Israel. A


natureza revelatória desse pacto concedia a Israel uma perspectiva e uma
valorização da vida que não encontram paralelos no Oriente Médio antigo. Na
história de Israel, as estéreis e os desprezados foram muitas vezes elementos-
chave na realização dos propósitos de Yahweh.

Em segundo lugar, os salmos são poemas escritos sobre generalizações e


princípios idealizadores que revelam o caráter de Deus e Sua vontade geral,
mais que instâncias específicas na história.

Em terceiro lugar, como o princípio operacional de Yahweh é “terceirizar” Sua


atividade (por isso o reino é chamado de “mediatório”), a administração dessa
justiça depende de instrumentos falíveis, a quem Deus exorta e repreende
quando deixam de cumprir seu papel (Sl 82).

Por fim, o anseio expresso no Salmo 96.10-13 demonstra que a justiça


eventualmente será vindicada quando o Supremo Juiz intervier na história
humana para efetivamente implantar Seu reino em toda a sua plenitude.

Deus como juiz em Israel

Deus, como justo juiz, executa (ou executará, escatologicamente) sentenças


contra os inimigos de Seu povo. Um exemplo disso se acha nos cânticos de
Sião, como o Salmo 46.8,9, que retrata a vitória final e o estabelecimento
definitivo da paz, de que as vitórias históricas de Israel eram apenas um
prenúncio, e o Salmo 48.4-6, que retrata poeticamente a grande conflagração
final em que, por amor a Jerusalém, Yahweh intervirá para cumprir
terminalmente Suas promessas pactuais (Zc 14).

A soberania de Yahweh em exercitar Sua justiça em favor de Seu povo se vê no


Salmo 75.3[2], ‫( ּכִי ֶא ַקח מֹועֵּד ֲאנִי ֵּמיש ִָרים ֶאשְפ ֹט‬k’ ʾeqqaḥ môʿēḏ ʾănî mêsarim ʾešpōṭ,
“quando chegar o tempo determinado, julgarei retamente”). Os servos de Deus
que sintam o desapontamento e o peso da injustiça humana podem se consolar
com a realidade de que haverá um ajuste divino de contas (59.5-8; 83.1-18; 78.9-
31; 106.13-42). É necessário lembrar, como o Salmo 78 aponta, que essas
intervenções judiciais de Yahweh em favor de Israel podiam ser suspendidas por
causa da infidelidade pactual da nação.
15

Um último elemento pertinente à atividade de Yahweh como juiz em Salmos é


Sua ação como vindicador de Seus servos justos. Davi pede a Yahweh uma
“sentença” (‫מִשפָט‬, mišpāṭ; 17.2-5) e clama por ser vindicado como justo ( ‫שָפ ֵּטנִי יהוה‬
‫ּכִי־אֲ נִי בְתֻ מִ י ָה ַלכְתִ י‬, šŏn̄ṭēnî yhwh kî ʾănî beṯummî hālai ̄tî’). Como vários outros
sofredores justos, em Salmos, cuja experiência espelhava de modo típico-
profético, o Justo Sofredor que é Cristo, Davi esperava que a demonstração
última de sua integridade e retidão viria do Grande e Justo Juiz (5.4 e 7.9-11).

Deus como pastor em Salmos

O rei ideal em Israel era retratado como um pastor, talvez derivado da imagem
do grande rei Davi (Sl 78.70-72). Desde a mais remota antiguidade, governantes
foram legitimados por sua alegada capacidade de pastorear seu povo. Hamurábi
e muitos outros governantes do Oriente Médio antigo foram chamados de
“pastores” ou foram descritos, oral e pictoriamente, como “pastoreando” seus
súditos. No Antigo Testamento, no entanto, é Yahweh quem cuida de Seu povo
e o sustenta. A primeira referência surge em Gênesis 48.15, ao passo que Isaías
(40.11) representa os profetas que descrevem Yahweh como o pastor que reúne,
cura e alimenta Seu rebanho, Israel.

Em Salmos, a constância e fidelidade de Yahweh como pastor é invocada em


28.9 e sua função como ‫( רֹעֵּה ש ְָראֵּל‬rōʿēh, yiśrāʾēl, “pastor de Israel”) serve para
alavancar um pedido de restauração do povo em tempo de opressão pelos
inimigos (Sl 80.1).

A posição privilegiada de Israel nesse relacionamento é descrita no Salmo 100,


em que a nação é retratada como ‫( צ ֹאן מ ְַרעִיתֹו‬ṣōʾn marʿîṯô “ovelhas do seu pasto”).
Profetas como Jeremias, Ezequiel e Oséias utilizam essa figura que retrata o
terno e amoroso coração de Yahweh.

Além desse relacionamento nacional, Yahweh é o Pastor do crente como


indivíduo (Sl 23.1), em uma atividade que provê ao fiel tudo aquilo de que
realmente necessita nesta vida. Essa individualização parece ser única no
contexto religioso do Oriente Médio antigo, aproximando-se do relacionamento
Pai-filho presente no Novo Testamento.

Deus como guerreiro em Salmos


16

Uma das atividades mais importante do rei no contexto do Oriente Médio antigo
era a de guerreiro, o líder da nação em suas batalhas − fossem elas de conquista
ou de sobrevivência.

Entre as nações pagãs os deuses eram frequentemente representados como


guerreiros.

Deus, como forte Rei-Guerreiro, protege Seu povo e particularmente o rei como
Seu ungido. Davi, na empolgante teofania do Salmo 18, descreve a resposta de
Yahweh ao seu grito de angústia.

O salmo 35 (v. 1-3) é uma cápsula poética dessa visão de Deus em Salmos.
Diante dos mais temíveis adversários e dos constantes conflitos que uma vida
de retidão e identificação com os propósitos de Yahweh pode trazer, a certeza
e confiança dos salmistas era de que havia um guerreiro – armado para a defesa
e o ataque. Yahweh, além de Ele mesmo lutar pelos fiéis, capacita Seus servos
para a batalha (Sl 144.1,2). Por outro lado, a nação se sentia abandonada por seu
maior herói quando, devido a sua infidelidade pactual, Yahweh não empreendia
a guerra santa em favor dos exércitos israelitas (Sl 44.10,11[9,10]).

Deus é o suserano da aliança

Javé separou Abraão e seu clã dentre as nações para fazer deles Seu povo
pactual (95.6; 100.3; 149.2). Em cumprimento às promessas da aliança, fez
crescer o povo no Egito (105.24) e de lá os libertou milagrosamente (105.26-38),
moldando-os em uma nação por meio da lei e do culto e cumpriu Suas
promessas pactuais dando-lhes a terra de Canaã (105.42-45). O salmo 136
resume essa visão com o refrão ‫( ּכִי לְעֹולָם ַחסְּדֹו‬ḵî leʿ ôlām ḥasdô, “porque a sua
benignidade dura para sempre”).

Yahweh, como criador de Israel, Yahweh tinha direitos de propriedade e


autoridade sobre o povo. O salmo 149.2 aponta esse fato ao colocar em
paralelismo as expressões ‫ ( עֹשֶה‬ʿośeh, “criador”) e ‫( ֶמלְֶך‬meleḵ, “rei”), e o salmo
114.1,2 indica que Israel, em virtude de sua libertação do cativeiro egípcio,
tornou-se ‫( ק ֹדֶ ש‬qōḏeš, “santuário”) e ‫שלָה‬
ָ ‫( ֶמ ְמ‬memšālâ, “domínio”).

Duas outras palavras em Salmos refletem essa relação especial de Israel com
Yahweh. A nação era a “herança” (‫נַ ֲחלָה‬, naḥălâ) de Yahweh (33.12; 106.5-40) e
Seu “tesouro pessoal” (‫ ְסגֻלָה‬, seḡullâ; 135.4). As duas palavras são termos técnicos
17

utilizados em Deuteronômio (4.20; 7.6; 9.26; 26.18) para designar Israel como
vassalo pactual de Yahweh, o suserano da aliança. Israel, devido a essa relação,
podia clamar por socorro em suas dificuldades, mas em contrapartida devia
lealdade exclusiva a Yahweh. A ausência de socorro presumia infidelidade
pactual.

Breve menção deve ser feita aos mediadores da aliança. Moisés aparece em
alguns salmos como o instrumento da libertação (77.20; 105.26), e ainda como
preservador da aliança no momento crítico de incredulidade e apostasia no
deserto (106.23). A lei (‫תֹורה‬,
ָ tôrâ) era, para o israelita fiel, a revelação da vontade
de Yahweh e obedecê-la significava prazer e realização (cf. Sl 19.7-13; 119).
Assim, era um instrumento mediatório no cumprimento da vontade do suserano
na vida do vassalo. Israel, como nação vassala do Grande Rei, recebera a lei
como doação real (147.19) e, em obediência a ela (103.18), deveria mostrar
absoluta lealdade a Yahweh, confiando Nele como seu Deus e Protetor (115.9-11)
e rejeitando todos os outros deuses (40.4; 115.2-11).

Davi, no entanto, foi a epítome do conceito de mediador da aliança em Salmos.


Yahweh o havia tirado do pastoreio de ovelhas para fazer dele o “pastor de
Jacó” (78.71), assumindo assim uma função que o próprio Yahweh exercia em
escala muito maior.

Yahweh havia estabelecido com Davi uma aliança especial (2Sm 7). Davi e seus
descendentes desfrutavam a posição de “filho de Deus” (Sl 2.7) e “primogênito”
(89.26,27).

O contexto desse relacionamento era o que se chama de uma aliança de doação


real, na qual o grande rei concedia a um servo ou vassalo fiel o privilégio de
“adoção”, de tornar-se “filho”, além de outros privilégios, geralmente associados
à posse de terra extensiva aos descendentes (em caso de reis-vassalos, o
estabelecimento de uma dinastia).

A posição e função mediatórias de Davi e seus descendentes eram seguras, pois


estavam confirmadas por juramento divino perpétuo (89.3, 28–37; 132.11). As
condições impostas – obediência (132.12) e disciplina pela desobediência (89.30-
32) – diziam respeito ao pleno desfrute das bênçãos decorrentes da aliança, não
a sua validade ou certeza (89.33-37).
18

3. A SOBERANIA MEDIADA EM SALMOS

Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais e o coroaste de


glória e de honra. Salmos 8.5

3.1. O HOMEM COMO VICE-REI DE DEUS

Observamos diversas vezes que o reino é uma (talvez a) noção teológica


fundamental no Antigo Testamento, noção essa introduzida pelo relato da
criação em que o homem, a imagem de Deus, foi autorizado a governar em
nome de Deus, por assim dizer, como representante dele (Gn 1.26-28). O salmo
8 dedica-se a essa ideia e, na verdade, pode ser entendido como um comentário
sobre o texto de Gênesis. Nesse salmo, Davi primeiro exalta o Senhor pela
majestade de seu nome e de sua glória transcendente (v. 1). Até mesmo as
crianças são capazes de apreender a sublime verdade da realidade de Deus, e
os louvores delas são tão genuínos e poderosos a ponto de desconcertar seus
adversários de coração endurecido (v. 2; Mt 21.14-16).

A questão central do salmo refere-se a como Deus, à luz de sua pessoa e das
obras exaltadas, pode prestar atenção na reles humanidade. A imensidão da
criação e a intrincada relação de suas partes quando comparadas com a finitude
da humanidade fazem o salmista perguntar em espanto: “Que é o homem, para
que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes?”
(v. 4). Mas não é só a criação do homem que o deixa atônito, mas também o
papel exaltado reservado a ele. O homem foi designado para ser um pouco
menor que ‘êlõhim, coroado de glória e de honra (v. 5).

Há várias interpretações para esse termo hebraico. Alguns consideram que o


termo se refere a Deus mesmo, ou seja, foi designado um papel tão exaltado
para o homem a ponto de ele ser quase divino. Em favor dessa interpretação
está o fato de que o homem é coroado de uma maneira que lembra o próprio
esplendor de Deus. Contra essa percepção está a difundida verdade bíblica da
transcendência de Deus que o separa totalmente de toda sua criação, incluindo
a humanidade.

Em que sentido o homem pode ser apenas um pouco (mê‘at) diferente de Deus
e ainda manter a necessária distância ontológica dele?
19

A epístola aos Hebreus, seguindo a Septuaginta, entende 'êlõhim como uma


referência a anjos (aggeloi), e não a Deus (Hb 2.7). Pode ser muito que ’êlõhim
tenha de ser entendido genericamente como “os poderosos”, ou afins, um
recurso bem atestado em outras passagens (Jó 1.6; 2.1; SI 82.1). Assim, a palavra
grega aggebi seria uma interpretação aceitável da identidade dos “poderosos”,
uma vez que nenhum outro ser sobre-humano é conhecido no Antigo
Testamento. Portanto, o homem foi designado para uma posição que, embora
um tanto diferente da dos “poderosos” (e talvez inferior a ela), todavia,
autoriza-o a governar sobre todas as coisas da terra.

Essas coisas são encontradas nos versículos 6-8 na ordem inversa da


encontrada no relato da criação (Gn 1.20-25) e na ordem da criação (Gn 1.26-
28). Aqui, as ordens mais altas (rebanhos e manadas) aparecem primeiro, como
logo abaixo da humanidade, e, depois, as ordens mais baixas (aves e peixes).
Deus designou o homem como governante (mãsãl) sobre todas essas coisas,
tendo posto todas elas “sob os seus pés [do homem]” (v.6). A imagem aqui é
exatamente a mesma de Gênesis 1.28, em que é dito ao homem para subjugar a
terra e governar sobre tudo que existe nela.

O Novo Testamento cita o Salmo 8 em apoio à ideia de que foi confiado à


humanidade, embora ela esteja um pouco abaixo dos poderosos (isto é, os
anjos), o domínio universal (Hb 2.5-9). Contudo, o autor admite implicitamente o
limite da autoridade do homem na presente era, limitação essa a ser atribuída à
condição de caído do homem (Rm 8.18-21). O autor também sugere que a
intenção original de Deus seria restabelecida por meio da obra redentora de
Cristo. Jesus, em sua encarnação como homem, compartilhou com a
humanidade certas restrições em virtude de sua identificação com o homem (Fp
2.5-11); e essas restrições incluíam sua condição temporária abaixo dos anjos (Hb
2.9a).

No entanto, a morte vicária de Jesus por toda a humanidade comprou sua


soberania absoluta sobre todas as coisas, incluindo os anjos, e a raça humana,
por meio dela, foi restaurada ao seu papel de vice-rei sob o comando de Deus e
encarregada de governar sobre todas as coisas, como Deus pretendia que fosse
desde o início.

Salmos 115.16 acrescenta uma nota a essa afirmação declarando que “os mais
altos céus pertencem ao Senhor, mas a terra ele a confiou ao homem”. As
20

hostes angelicais podem, na verdade, desfrutar de algum tipo de papel superior


nos céus, mas quando elas se movem entre os homens na terra o fazem como
“ministradores enviados para servir aqueles que hão de herdar a salvação” (Hb
1.14; Dt 33.2,3).

3.2. O REI MESSIÂNICO

A restauração da livre soberania de Deus e do papel da humanidade associado à


soberania Dele só será possível pela obra de restauração e de redenção
realizada por intermédio do ungido que, embora seja da descendência de Davi,
no livro de Salmos, assume um papel que transcende a mera humanidade e se
identifica com um personagem que não é nada menos que uma divindade. Esse
arrojado conceito, além de se alinhar com a revelação transmitida por
intermédio dos profetas (por exemplo, Is 7.14; 9.6,7; 11.1-5; Jr 23.5,6; Mq 5.2), é,
no mínimo, esclarecido e expandido em várias passagens poéticas do saltério.
Dentre essas várias passagens, faremos um breve exame dos o Salmos 2 e 132.

O Salmo 2

Um salmo real (de coroação) atribuído a Davi pelo Novo Testamento (At 4.25),
vê as nações da terra como implacavelmente hostis ao Senhor e “contra o seu
ungido” (v. 2; hebraico, mêsihô). Esse ungido, no contexto do Salmo, é o próprio
Davi ou um rei davídico, conforme a menção do versículo 6 ao “rei em Sião”
deixa claro.

A isso, segue-se a extraordinária asserção de que o rei, o “ungido”, não é


ninguém menos que o Filho de Deus, com certeza, não em um sentido
ontológico em seu cenário histórico, mas, pelo menos, em termos do papel
divino que Davi tinha de desempenhar (1Cr 17.11-14). Ele e seus sucessores, como
fundadores de uma dinastia de reis, herdarão essas mesmas nações rebeldes
como sua possessão ('ãhtizzâ) pessoal (v. 8), depois, o salmo, alinhado com
Gênesis 49.10 que fala da promessa de Jacó para Judá concernente ao rei por
vir dessa tribo, diz que ele “as quebrará com vara de ferro e as despedaçarás
como a um vaso de barro” (v. 9). A única esperança para as nações é o
reconhecimento do Senhor como Rei e (no sentido literal) “beijar o filho”, ou
seja, prestar homenagem ao rei davídico que virá para julgar e destruir todos
que permanecerem impenitentes (10-12).
21

A ligação das palavras ungido, rei e filho conduz claramente à ideia, apropriada
pelo Novo Testamento (At 13.33; Hb 1.5; 5.5), de um governante davídico que
tem mais que a mera capacidade e a natureza do homem. No próprio salmo, a
justaposição de “o Senhor” e “ungido” (v. 2) e “Senhor” e “filho” (11,12) aponta
firmemente nessa direção. O rei por vir não se assentará só no trono de Davi,
mas no trono do Senhor mesmo, condição que a revelação do Novo Testamento
deixa fora de qualquer dúvida (cf. Mt 19.28; Fp 2.11; Hb 8.1; 12.2; Ap 19.16;22.3).

Salmos 132.1-12.

O poeta apela ao Senhor para que honre Davi por seu desejo de construir um
templo no qual o Senhor possa habitar entre seu povo (1-5), pedido que,
conforme se verifica, foi negado (2Sm 7.5-11). Mas havia algo maior à espera de
Davi e seu povo, pois o Senhor jurou que nunca faltaria um descendente de Davi
para se sentar em seu trono (v.11). A eternidade da promessa argumenta
claramente por um rei por vir cujo reinado, como o do Senhor, duraria para
sempre.
22

4. A TEOLOGIA DE CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem levá-
lo na correnteza. Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para
adquirir o amor, seria totalmente desprezado. Cânticos 8.7

4.1. O PROPÓSITO DO LIVRO

A reflexão teológica sobre o cânon do Antigo Testamento depende do que o


texto reconhece e questiona sobre o caráter de Deus. Essa tarefa é facilitada
pela abundância de afirmações claras na Bíblia, as quais revelam os aspectos da
pessoa e obra do Senhor. Para se entender, no entanto, muitas das seções é
necessária uma análise esmerada, mas até mesmo essas passagens são muitas
vezes elucidadas pela clareza de outros textos. Assim, o fato de que dois livros
no cânon, Cântico dos Cânticos e Ester, absolutamente não citem ou
mencionem o Senhor apresentam certos desafios aos que estudam o Antigo
Testamento.

Talvez mais do que qualquer outro livro do Antigo Testamento, o livro de


Cântico dos Cânticos precise ser interpretado à luz do próprio cânon. Seu
arranjo, suas ênfases temáticas e a ligação com outros livros de sabedoria, tudo
isso merece atenção. Desse modo, a força de outras inquietações teológicas no
livro fica mais evidente, e sua contribuição sem igual para o todo torna-se, da
mesma forma, mais clara. Esses elementos combinados produzem um modo de
navegar por entre as leituras não-históricas e não- teológicas do texto.

A posição de Cântico dos Cânticos nas Escrituras dá continuidade às noções


iniciadas em Provérbios. Ao longo de Provérbios, o amor pela esposa e o
distanciamento das mulheres pecaminosas são enfatizados repetidamente. O
livro conclui com uma longa e desafiadora descrição de uma esposa virtuosa
temente ao Senhor e que serve perfeitamente à família e à comunidade (Pv
31.10-31). Cântico dos Cânticos completa o ciclo iniciado em Provérbios 31.

A ênfase de Cântico dos Cânticos sobre a sexualidade tem paralelo nas


Escrituras. Por exemplo, Gênesis 1 e 2 reflete uma relação homem-mulher em
que a unidade total é evidente. Eles estão nus e não se envergonham (Gn 2.25).
Nenhum texto do Antigo Testamento se aproxima tanto da situação de Gênesis
quanto as declarações dos amantes em Cântico dos Cânticos. O amor deles
23

recaptura Gênesis 2.25 tanto quanto é possível num mundo pecaminoso,


caracterizado por causas confusas e completo engano. Outras passagens
pertinentes podem ser mencionadas. À medida que se fazem analogias entre o
amor de Deus por Israel e o amor refletido em Cântico dos Cânticos, é possível
se maravilhar mais uma vez com a pureza desse amor. O sentimento aqui
descrito mostra a vergonha do amor adúltero que Israel demonstra por Yahweh
em, por exemplo, Oséias 1—3.

O teólogo Brevard S. Childs observa que a inclusão de Cântico dos Cânticos


entre os livros de sabedoria significa que o texto deve ser lido como o esforço
“para se entender, por meio da reflexão, a natureza do mundo da
experiência humana em relação à realidade divina”. Portanto, o livro não
pode ser interpretado simplesmente como uma coleção de cânticos de amor
mundanos, mas como o tipo de amor que Deus aconselha a todo casal que o
imite.

Os perigos associados às paixões sem controle tornam essencial que a


sabedoria, divinamente revelada, seja o padrão dos relacionamentos amorosos
humanos. O livro oferece uma liberdade extática para a qual Provérbios fornece
os limites apropriados. O equilíbrio teológico é assim alcançado pela inclusão de
ambos os livros no cânon.

Conforme o autor Carlos Osvaldo Pinto, o propósito de Cântico dos Cânticos é:


Exaltar o valor do amor conjugal como uma preciosa dádiva divina que deve
ser obtida em pureza e preservada com perseverança (PINTO, 2006).

Tal propósito é alcançado da seguinte maneira:

1. Apresentando o verdadeiro amor como um compromisso paciente que


aguarda seu legítimo desfrute (1.2–3.5).
2. Indicando que o verdadeiro amor é fisicamente consumado sob a bênção
de Deus (3.6–5.1).
3. Descrevendo como o verdadeiro amor se fortalece por meio da resolução
de conflitos e do elogio mútuo (5.2–8.4).
4. Indicando que o verdadeiro amor se origina em Deus e é obtido por meio
de escolhas responsáveis (8.5-12).
5. Indicando que o verdadeiro amor é um desejo interminável de suprir os
anseios mais profundos do cônjuge (8.13,14).
24

4.2. O DESEJO SEXUAL: CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1.2—3.5

Sem o desejo de estar junto, a união amorosa não pode durar. Nenhuma falta de
afeto existe nesse casal! A alegria surge tanto na possibilidade de reencontro
(2.8,9), quanto no tempo que passam juntos (2.10-13). Nenhuma das vezes em
que um deles busca pelo outro é tratada como inconveniente (3.1-4). Eles
acreditam que a vida é cheia de plenitude quando estão na presença um do
outro ou até mesmo quando se imaginam juntos.

As primeiras duas seções do livro possuem uma utilidade ímpar aos leitores do
Antigo Testamento, pois nenhuma outra passagem da Bíblia faz referência à
paixão que precede o casamento. Talvez a determinação de Boaz em se casar
com Rute sugira a mesma emoção (Rt 3.1—4.12), contudo o tom do relato é
imensamente moderado em comparação a Cântico dos Cânticos 1.2—3.5.

Elogio, adoração, desejo, alegria e impaciência na ausência do outro precedem


o compromisso que não será facilmente abalado ou quebrado. No contexto de
sabedoria, esses versos indicam como alguém pode começar a evitar a mulher
pecaminosa tão vividamente descrita em Provérbios 5.1-6; 7.6-27 e 9.13-18. No
contexto canônico, tais passagens permanecem como orientações para amar a
pessoa revelada pelo Senhor.

4.3. O CASAMENTO: CÂNTICO DOS CÂNTICOS 3.6—5.1

A seção começa com Salomão vindo se casar com sua amada (3.6-11)7, um dia
caracterizado como um tempo de alegria no coração (3.11). Muito em breve, seu
desejo será unido à intimidade sexual, mas somente depois que uma declaração
pública de compromisso selar a união com sua pretendida.

Síntese canônica: o casamento

Algumas passagens anteriores mantêm correspondência com a ênfase sobre o


casamento encontrada em Cânticos. Alguns textos estão em Gênesis, onde Deus
cria os seres humanos à sua imagem (Gn 1.26) e, ainda ao mesmo tempo, como
homem e mulher (Gn 1.27), começando a discussão de como os homens e
mulheres relacionam-se uns com os outros.

Gênesis 2.18-25 reporta a inconveniência do homem viver sem a mulher e


introduz o compromisso vitalício entre os dois. Gênesis 2.25 também descreve a
25

perfeita harmonia matrimonial como nudez sem remorsos, outro modo de dizer
que o primeiro casal era físico, sexual, emocional e espiritualmente uno. Cântico
dos Cânticos 1.2— 5.1 não repete exatamente essa unidade original, mas fica
muito perto de fazê-lo.

E deixado em grande parte ao Gênesis e aos Cântico dos Cânticos descrever o


tipo de paixão que conduz ao compromisso permanente. Porém, conforme o
desenvolvimento de Cântico dos Cânticos, mais textos do Antigo Testamento
tornam-se pertinentes à discussão sobre o amor, o casamento e a fidelidade
conjugal.

4.4. SEPARAÇÃO E SATISFAÇÃO MATRIMONIAL: CÂNTICO DOS CÂNTICOS 5.2—8.4

No casal, não importa quão comprometido esteja um com o outro, os cônjuges


não podem estar juntos todo o tempo. A separação é tão inevitável durante o
casamento como quando ocorria antes da união. Então o amante sábio deve
estar preparado para a separação. Com efeito, o texto indica que o tipo de
paixão e expectativa que conduz ao casamento também deveria marcar o
desejo do casal de permanecer junto após o matrimônio. A paixão deveria se
aprofundar e amadurecer. Em 2.8—3.5, a mulher buscou seu amante
incansavelmente, e ela também o faz de maneira determinada em 5.2—6.3.

Parte da satisfação numa relação de longo prazo depende de exaltar a pessoa


amada e merecer exaltação por parte dela. O homem responde ao desejo da
mulher por ele com extraordinários elogios. Para ele, a esposa não possui
nenhuma falha física ou desvios de personalidade (6.4—7.9). Em resposta, ela
promete mais do que satisfazer seu desejo por ela. Ela o amará alegremente e
será amada (7.10—8.4).

4.5. COMPROMISSOS MATRIMONIAIS: CÂNTICO DOS CÂNTICOS 8.5-14

Até mesmo o mais ardente e estimado cônjuge pode tornar-se vítima do ciúme
e da insegurança. Assim, é importante que o voto de constância seja feito entre
os parceiros no casamento. O amor deve significar um selo no coração, ser tão
forte quanto a morte, tão inextinguível quanto uma chama perpétua e mais
apreciado do que a riqueza (8.6,7).

Quando um homem ama uma mulher desse modo, a resposta dela deve ser
desejá-lo ao seu lado (8.14). A sabedoria exige que o amor crie a certeza sobre a
26

natureza duradoura das relações matrimoniais. Tal garantia somente virá por
palavras que complementem a paixão física.

Síntese canônica: a constância do casamento

A constância é inerente às declarações do cânon sobre o casamento. Somente a


morte separa Sara de Abraão (Gn 23.2), Jacó de Raquel (Gn 35.19) ou Ezequiel
da sua esposa (Ez 24.15-18). Até mesmo o texto fundamental do divórcio no
Pentateuco, Deuteronômio 24.1-4, trata a dissolução do casamento como o
último recurso a ser empregado para que a terra não seja maculada. Malaquias
2.14-16 declara com clareza que Deus odeia o divórcio, resultado de um
tratamento traiçoeiro entre os cônjuges. Provérbios 5.15-23 no mínimo insinua
que a alegria de tomar um cônjuge na juventude é para durar toda a vida, ou o
quanto ambos viverem.

Também é apropriado comentar que o amor conjugal descrito em Cânticos, e


em outros lugares do cânon, é heterossexual por natureza. Levítico 18.22 e 20.13
mostram que o Antigo Testamento está bem informado do relacionamento
homossexual. Sua negação naquelas passagens e a ênfase sobre os laços
matrimoniais homem-mulher no restante do cânon apontam para a conclusão
de que o casamento heterossexual é o único tipo sancionado no Antigo
Testamento. As declarações de Paulo em Romanos 1.18-32 também concordam
com essa conclusão. De modo algum, as Escrituras afirmam que todas as
relações heterossexuais são perfeitas, como já se pode perceber. Como Childs
observa, a visão do Antigo Testamento sobre os relacionamentos homem-
mulher

revela que a estruturação divina da vida humana, na forma homem e


mulher, possui um potencial para a maior alegria ou para a mais profunda
aflição. O AT testemunha continuamente como a intenção de Deus para
humanidade foi distorcida em aberrações heterossexuais (Jz 20; 2Sm 13).
Da mesma forma, o AT vê a homossexualidade como uma distorção da
criação, a qual mergulha nas sombras, afastando-se da graça divina
(CHILDS, 1979).

É importante lembrar que os comentários deste capítulo sobre o amor, a paixão,


o compromisso e a constância não são feitos com o propósito de afirmar que
Salomão exemplificou esses princípios. É exatamente o contrário. Seus
matrimônios não foram concebidos em amor, nem eram monógamos por
natureza. Ele se casou sem hesitação por razões políticas (1 Rs 3.1). Suas uniões
27

imprudentes consequentemente contribuíram para sua decisão de tolerar a


idolatria (1Rs 11.1-8). Não há nenhuma evidência que ele haja desprezado as
esposas com as quais se comprometeu, mas também qualquer prova de que
haja demonstrado sentimentos profundos por elas.

De maneira paradoxal, o livro Cântico dos Cânticos pode ser, por isso mesmo,
uma obra até mais importante do que seria se o rei fosse um modelo de marido.
O cânon apresenta o melhor de Salomão nesse caso, enquanto da mesma forma
contrapõe essa representação com os relatos em 1 e 2Reis. Cântico dos Cânticos
oferece a sabedoria centrada em Deus a todos que a quiserem atender, e o fato
de que o próprio Salomão nem sempre atendeu a seus ensinamentos não
silencia seu valor nem os tornam inválidos.
28

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

CHILDS, B. Introduction to the Old Testament as Scripture. Edição Hardcover,


1979.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009


Veremos hoje:

1. PROVÉRBIOS: O LIVRO DA SABEDORIA

1.1 O PROPÓSITO DO LIVRO


1.2 A ESSÊNCIA DA SABEDORIA
1.3 A FUNÇÃO DA SABEDORIA

2. COMO PODEMOS OBTER SABEDORIA?

2.1 ACESSIBILIDADE À SABEDORIA


2.2 PERSONAGENS EM PROVÉRBIOS

3. ECLESIASTES: O LIVRO DA REFLEXÃO

3.1 A MENSAGEM DE ECLESIASTES


3.2 TEMAS TEOLÓGICOS
3.3 SÍNTESE CANÔNICA

4. QUAL O PROPÓSITO DA VIDA?

4.1 O TEMOR DO SENHOR É O SIGNIFICADO DA VIDA


4.2 A TEOLOGIA SAPIENCIAL
1

1. PROVÉRBIOS: O LIVRO DA SABEDORIA

O temor do Senhor é o princípio do conhecimento, mas os insensatos


desprezam a sabedoria e a disciplina. Provérbios 1.7

1.1. O PROPÓSITO DO LIVRO

Junto com Jó e Eclesiastes, Provérbios faz parte da “literatura de sabedoria” do


Antigo Testamento. Neste gênero literário, as grandes dúvidas da alma são
levantadas e respondidas, tais como “Por que o justo sofre?” (Jó) e “Qual o
significado real da vida?” (Eclesiastes). Jó e Eclesiastes constituem sabedoria
especulativa. Provérbios— com sua sabedoria proverbial — responde à pergunta
“Como ser bem-sucedido e feliz na vida?” ou “Como formar um caráter
piedoso?”

O livro é uma coleção de coleções, todas sobre o tema “sabedoria”. Há


compilações maiores inseridas no livro:

• “Os Provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel” (Pv 1—24).


• “Outros provérbios de Salomão, compilados pelos servos de Ezequias, rei
de Judá” (25—29).
• “Ditados de Agur, filho de Jaque” (cap.30).
• “Ditados do rei Lemuel: uma exortação que sua mãe lhe fez” (cap.31).

Ainda há vários grupos menores que podem ser considerados subdivisões, por
exemplo:

• “Ditados dos sábios (22.17—24.22).


• “Outros ditados de sabedoria” (24.23-34).
• O prólogo (1.1-7) e o epílogo (31.10-31) provavelmente foram adicionadas
mais tarde.

O fato de Provérbios ser uma antologia — praticamente um livro de recortes —


de coletâneas, implica que ele não foi compilado num período específico. Ainda
assim, de acordo com o texto bíblico, é obvio que Salomão foi a fonte primária
do livro (como autor ou colecionador desses pequenos conselhos de sabedoria).
Em 1Reis 4.32, lemos que Salomão “compôs três mil provérbios.”
2

Fica claro que a função teológica do livro é fornecer orientação para o cidadão
do Reino de como ordenar sua vida diante de Deus, o rei, e seus irmãos seres
humanos. A sabedoria em vista não é essencialmente de natureza meditativa e
filosófica, mas, antes, fundamentada na Torá, na observação do cosmo com
todos seus mistérios e lições, na experiência humana e na interação intuitiva de
tudo que podia, e pode ser conhecido de Deus, em todas as formas que ele
escolhe se manifestar e se relacionar a tudo isso.

Essas não são meras reflexões dos homens, mas a sabedoria de Deus mesmo
mediada por meio de instrumentos inspirados que, por isso, não repetem a
sabedoria acumulada dos sábios da Antiguidade, mas falam sempre a palavra
atual e relevante de Deus.

Os Destinatários

Na introdução do livro, dois são os destinatários indicados: os jovens e os


simples (1.4). Tanto a figura do simples quanto a do jovem sugere alguém que
ainda não descobriu como viver de forma correta ou não optou por tal caminho.
Assim, o livro de Provérbios é, ao mesmo tempo, redentor e guia a seus leitores.

Breve concordância de temas em Provérbios

Tema Provérbios

Adultério 5.1-4;6.20-35;29.3

Alimento 10.3;12.11;23.20-21;25.16;30.8

Amor 8.17;10.12;15.17;27.5

Caminhos 2.8;13.15;14.12;16.7,25;20.24;22.6

Disciplina 1.2-3;3.11-
12;5.23;10.17;12.1;13.18,24;19.18;23.13

Embriaguez 20.1;23.31-35;31.4

Empréstimos 6.1-5;20.16;22.7,26-27

Esposa 12.4;14.1;18.22;21.9,19;27.15;31.10-31
3

Família 5.15-19;6.20;13.1;14.1;22.6;23.24-25

Fofoca 16.28;20.19;26.20

Inimizade 16.7;24.17;25.21;27.6

Insensatez 10.18;12.15;14.16;15.5;26.3-5

Ira 14.29;15.1;22.24;29.22;30.33

Morte 5.5;7.27;8.36;9.18;17;14.32;15.11,24

Orgulho 6.17;11.2;16.5,18;21.4

Pecado 14.9;16.4;20.9;24.9,20;28.13

Pobreza 14.31;19.1,17;22.2;30.8

Preguiça 6.6-11;12.27;22.13;24.30-34;26.13-16

Repreensão 3.11-12;12.1;15.5;25.12

Riquezas 10.15;11.4;18.11;23.5;28.20

Sono 1.20-23;3.13-20;8;9.1-6

Suborno 17.8,2318.16;21.14;28.21

Temor 1.7;9.10;14.16;15.16;29.25

Aplicação prática e certeira

O autor fez uso de vários tipos de relações para guiar o leitor à compreensão
dos princípios expostos no livro e a ligação desses princípios com a vida.
Vejamos alguns tipos de relação encontrados no livro que promovem maior
entendimento e aplicação do ensino de Provérbios.

a. Do mundo natural para o hábito diário: para ensinar, o autor estabelece


relações entre a vida de certos animais e a vida humana. Ao descrever o
4

mundo das formigas, por exemplo, apresenta a maneira como eles


trabalham como modelo a ser seguido pelo preguiçoso (6.6-8)
b. Do comportamento para o coração: Salomão também mostra como a
atitude de uma pessoa revela seu coração. Em 6.16-19, por exemplo, ele
descreve o homem de Belial, imagem facilmente identificada pelo israelita
como aquele que se opõe a Deus. Sua descrição se inicia pela observação
do comportamento desse homem, depois revela o que está no coração
dele.
c. Lista de classificações: em vários textos, o autor usa números para
classificar o valor ou a identidade do que está sendo descrito. Em 6.16-19,
por exemplo, ele apresenta “seis coisas que aborrecem ao Senhor, a
sétima a Sua alma abomina.”
d. Personificação de virtudes abstratas: os capítulos 8 e 9 são exemplos
disso. Salomão transforma a abstrata sabedoria num personagem, com
pensamentos, desejos e conselhos oferecidos na primeira pessoa do
singular. Dessa forma ele estreita às relações entre a sabedoria e o
aprendiz, a fim de facilitar o ensino.
e. Opostos que se esclarecem: a sabedoria humana diz que os opostos se
atraem, mas em Provérbios eles se esclarecem. Um oposto ajuda a
entender o outro, e a característica de um contrasta e esclarece a do
outro. Os Provérbios 10—15 são repletos de exemplos disso: “Aquele que
aceita ser repreendido anda no caminho da vida, mas quem não aceita cai
no erro.” (10.17)
f. Conselhos diretos e seus motivos: algumas vezes o autor de Provérbios
vai direto ao ponto, dando conselhos que em si já trazem uma aplicação
prática. Em seguida apresenta os motivos ou as razões por que esse
conselho é valioso. “Não se associe com quem vive de mau humor, nem
ande em companhia de quem facilmente se ira; do contrário você acabará
imitando essa conduta e cairá em armadilha mortal. (22.24,25)
g. Comparações: nos capítulos 25, 26 e 27 predominam as comparações.
Por meio delas o autor ilustra o ensino, comparando atitudes, desejos,
palavras e ações humanas com fatos, animais e objetos conhecidos:
“Como o cão volta ao seu vômito, assim o insensato repete a sua
insensatez.” (26.11)
5

1.2. A ESSÊNCIA DA SABEDORIA

O livro faz logo de início a afirmação: “o temor do senhor é o princípio (ou


essência; hebraico, rê sit) do conhecimento, mas os insensatos desprezam a
sabedoria e a disciplina” (1.7). Esse se torna, basicamente, o lema do livro (9.10;
15.33; 111.10), a linha que junta suas partes, mas que também fornece o segredo
da verdadeira sabedoria. Ela não vem pela educação, observação, filosofia nem
pela introspecção, mas pelo reconhecimento da soberania de Deus em todas as
áreas da vida e a submissão a ela. Temer ao Senhor é obedecer-lhe, e na
obediência a Ele a pessoa escolhe a vereda da verdadeira sabedoria. Escolher
não temer ao Senhor é desprezar o conhecimento (1.29), mas temê-lo é
encontrar o conhecimento (2.5).

Esse tipo de sabedoria não pode estar divorciado da atitude e do


comportamento apropriados. Na verdade, se diz que só o justo é sábio porque
apenas ele teme ao Senhor de verdade. A própria sabedoria personificada diz:
“Temer o Senhor é odiar o mal” (8.13), ou seja, homens e mulheres sábios
demonstram seu grau de sabedoria por meio de seu estilo de vida.

Outro provérbio mostra o valor protetor do temor ao Senhor: “Pelo temor de


Jeová os homens desviam-se do mal” (16.6). Mas o temor ao Senhor também é a
fonte de vida relevante (14.27), de satisfação (15.16) e de riqueza e honra (22.4).
Só o Senhor pode conceder sabedoria (2.6), pois a sabedoria, em última análise,
consiste de conhecê-lo pessoal e intimamente (30.3).

De todos os tesouros dos céus e da terra, a sabedoria é o mais precioso. O


homem sábio diz a respeito dessa inestimável dádiva: “Como é feliz o homem
que acha a sabedoria, o homem que obtém entendimento, pois a sabedoria é
mais proveitosa do que a prata e rende mais do que o ouro. É mais preciosa do
que rubis; nada do que você possa desejar se compara a ela” (3.13-15). Ter
sabedoria deveria ser a principal aspiração do indivíduo, pois tê-la e abraçá-la
traz honra e glória para seu possuidor (4.7-9).

1.3. A FUNÇÃO DA SABEDORIA

O papel da sabedoria no livro de Provérbios atua em duas dimensões, a celestial


e a terrena. O livro declara que a sabedoria foi o facilitador da criação de Deus,
6

o instrumento por meio do qual ele estabeleceu as fundações da terra e pôs os


céus no lugar (3.19,20). Em Provérbios 8, a personificação da sabedoria diz que
estava presente quando Deus criou todas as coisas, mas não só como
observadora. “eu estava ao seu lado, e era o seu arquiteto ('ãmôn); dia a dia eu
era o seu prazer e me alegrava continuamente com a sua presença. Eu me
alegrava com o mundo que ele criou, e a humanidade me dava alegria” (27-31).

A personificação aqui, em Provérbios, traz à mente a descrição que Paulo fez de


Cristo, em quem “estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento” (Cl 2.3) e que, no mesmo contexto, era o agente da criação.
Paulo afirma que “nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as
visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades;
todas as coisas foram criadas por ele e para ele” (Cl 1.16; Jo1.3).

A vida também brota da sabedoria e é enriquecida por ela. Ela declara que
aqueles que a encontram acham a vida e o favor divinos, mas os que não a
encontram estão destinados à morte (Pv 8.35,36). Claro que isso é porque a
sabedoria procede de Deus e é a única fonte da vida aqui e agora e para
sempre.
7

2. COMO PODEMOS OBTER SABEDORIA

2.1. ACESSIBILIDADE À SABEDORIA

Permanece a questão: como se pode adquirir sabedoria? Claro que ela se


origina no Senhor e é revelada na Torá, no culto e na criação; mas como ela é
transmitida ou aplicada na esfera prática, no dia-a-dia? O livro de Provérbios
fornece três respostas:

• Por meio da instrução dos pais.


• Da disciplina divina.
• Da monarquia, a extensão terrena do governo do Reino de Deus.

Na hierarquia da administração do Reino de Deus, a primeira e mais básica


unidade é a família sob a liderança do pai e da mãe. Desde o início, o livro de
Provérbios enfatiza esse aspecto fundamental do Reino: “Ouça, meu filho, a
instrução (músar) de seu pai e não despreze o ensino (tôrâ) de sua mãe” (1.8;
4.1; 6.20; 23.22; Dt 6.7-9; 11.18-21). Não fazer isso, resulta em grande perda para o
próprio indivíduo (20.20; 30.17), além de sofrimento e desgosto incontáveis
para os pais deste (10.1; 15.20; 17.21,25; 19.13,26; 28.7; 29.3,15); todavia, a
submissão obediente a eles e o reconhecimento do papel dos pais concedido
por Deus traz recompensa e bênção para estes e seus filhos (23.24,25). Na
verdade, os que vivem de acordo com essa estrutura são sábios (13.1), mas os
que se negam a fazer isso não são nada além de insensatos arrogantes (15.5).

Um dos propósitos declarados no livro de Provérbios é a facilitação da


obtenção de “sabedoria e [de] disciplina (músar)” e a aquisição de um “viver
com disciplina e sensatez (músar haskêl)” (1.2,3). O livro nos diz que “os
insensatos desprezam a sabedoria e a disciplina” (1.7), pois os insensatos (isto é,
os ímpios) preferem viver a vida sem restrições nem limites (5.12; 12.1; 15.5).
Contudo, a vida sem restrição nem instrução traz mágoa no aqui e agora para o
errôneo insensato (13.18; 15.32) e para os que ele influencia (10.17). Mais trágico
ainda, a vida indisciplinada, no fim, resulta em morte prematura (5.23; 15.10).

É notável — contudo, não surpreendente — a atenção que o livro de Provérbios


dedica à monarquia, especialmente como agente do Senhor na implementação
do governo dele na terra de forma sábia e justa. A maior parte do livro é
atribuída a Salomão, que certamente tinha plena consciência da importância da
8

monarquia davídica e cuja ênfase no rei escolhido de forma divina e cuja vice-
regência do governo do Senhor, claro, são consistentes com os grandes temas
teológicos do Antigo Testamento.

A sabedoria personificada estabelece o palco ao observar: “Por meu intermédio


os reis governam, e as autoridades exercem a justiça; também por meu
intermédio governam os nobres, todos os juízes da terra” (8.15,16). Quando eles
se submetem, o Senhor controla o coração deles como “ribeiros de águas, assim
é o coração do rei na mão do Senhor; a tudo quanto quer o inclina” (21.1; ARC).
A combinação do propósito soberano de Deus e o governo do homem está
clara — os reis humanos assentam-se no trono, mas apenas como instrumentos
de um Deus onipotente.

Uma vez que isso é verdade, o cidadão do Reino deve temer ao Senhor e ao rei,
pois eles trabalham em harmonia (24.21,22). Não obstante, os reis devem admitir
suas limitações e reconhecer que reinam sob o comando do Senhor. Eles devem
demonstrar “bondade” (hesed) e “fidelidade” ('emet) se quiserem ter esperança
de manter seu trono; isto é, eles devem ser sensíveis aos termos da aliança que
lhes permite esse grande privilégio de, antes de tudo, servir a Deus (20.28).

A teologia do livro de Provérbios gira em torno do tema central da sabedoria


como o meio fundamental de acesso a Deus e como o segredo de viver de
forma a agradá-lo. Ser sábio é ser piedoso, mas ser insensato é demonstrar a
ausência de conhecimento do Senhor e de submissão à vontade dele. O livro de
Provérbios, junto com os outros livros de sabedoria, é um manual do cidadão do
Reino, um guia do comportamento que agrada ao Senhor e que capacita os
seres humanos — e especialmente Israel — a realizar os objetivos para os quais
foram criados e para os quais, como redimidos e escolhidos, foram chamados na
realização dos desígnios de Deus para a história e através dela.

2.2. PERSONAGENS EM PROVÉRBIOS

Três palavras principais (kesil, ‘ewil e nabal) designam personagens insensatas


no livro de Provérbios. Infelizmente a tradução destes termos não é sempre
coerente.

• Tolo
• insensato
9

• estulto
• néscio
• louco

Essas palavras às vezes são usadas para traduzir o mesmo termo em hebraico.
Por isso é necessário conferir o termo original para fazer um estudo de
vocábulos mais exato.

Mais dois termos completam o quadro de personagens tolas no livro:

• O simples (peti)
• Escarnecedor (lets)

Juntos estes cinco termos descrevem aqueles que trilham o caminho da


estultícia que leva a destruição. Se for possível sugerir uma escala para as
palavras para tolice, o ‘ewil seria o degrau abaixo do kesil e somente um passo a
cima do nabal.

Uma palavra ainda mais forte é lets, muitas vezes traduzida “escarnecedor”. O
insensato ‘ewil não é somente um tolo kesil por causa de suas escolhas, mas
porque ele é também insolente.

Enquanto alguns destes termos pareçam ser intercambiáveis às vezes, kesil se


refere mais ao “tolo natural”, não porque tenham deficiências intelectuais, mas
pelo fato de tomar decisões erradas, enquanto ‘ewil indica um “tolo decidido”,
alguém obstinado e insolente.

O simples (peti)

• Aberto para sedução


• Engano
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• Ingênuo que precisa ser ensinado


• Simples, “mente-aberta”

“O termo descreve alguém que é simples, ingênuo, inexperiente,


excessivamente aberto e por isso facilmente induzido ao erro. Uma
pessoa simples que lhe falta discernimento para distinguir entre o certo e
errado, entre o comportamento sábio ou insensato. É muitas vezes sem
pensamento e impulsivo.” (ZUCK,2009)

Peti em Provérbios

• Ingênuo (crédulo)

O inexperiente acredita em qualquer coisa, mas o homem prudente vê bem


onde pisa. (14.15)

• Parado e atolado na sua necedade (fica contente em ficar onde


está/estagnado)

Até quando vocês, inexperientes, irão contentar-se com a sua inexperiência?


Vocês, zombadores, até quando terão prazer na zombaria? E vocês, tolos, até
quando desprezarão o conhecimento? (1.22)

• Inclinado para o mal e estultícia (rejeita correção e sabedoria, ignora


conselhos)

Venham todos os inexperientes! " aos que não têm bom senso ela diz: "a água
roubada é doce, e o pão que se come escondido é saboroso! " (9.16,17)

• Uma tendência para imoralidade

E vi entre os inexperientes, no meio dos jovens, um rapaz sem juízo. Ele vinha
pela rua, próximo à esquina de certa mulher, andando em direção à casa dela.
(7.7,8)

• Ainda pode ser instruído (por palavras, experiência ou observação)

Ajudarão a dar prudência aos inexperientes e conhecimento e bom senso aos


jovens. (1.4)

Os simples, em resumo, são:


11

• Ingênuos
• Facilmente induzidos ao erro e enganados
• Seduzidos pela própria cobiça
• Correm grande risco de se tornarem insensatos e escarnecedores.

O tolo (kesil)

O termo se refere a um caminho de vida que é atraente ao imaturo, mas que


pode levar a destruição e ruína. O termo é muitas vezes associado com ‘ewil.

• Odeia conhecimento

Visto que desprezaram o conhecimento e recusaram o temor do Senhor. (1.29)

Mantenha-se longe do tolo, pois você não achará conhecimento no que ele falar.
(14:7)

• Falta-lhe autocontrole

O tolo dá vazão à sua ira, mas o sábio domina-se. (29.11)

• Não vive debaixo de autoridade

O filho sábio dá alegria a seu pai, mas o tolo despreza a sua mãe. (15.20)

Não sabe lidar com dinheiro

De que serve o dinheiro na mão do tolo, já que ele não quer obter sabedoria?
(17.16)

• Contamina a outros

Não responda ao insensato com igual insensatez, do contrário você se igualará a


ele. (26.4)

O kesil (tolo/insensato) em Provérbios parece ser especialmente não-ensinável,


provavelmente porque ele não sabe como viver debaixo da autoridade. Ainda
existe a possibilidade de que alguém, em algum dia, possa ensiná-lo a viver
sabiamente.
12

Resumo:

• Sua conversa o revela, pois ele fala sem parar, seu monólogo é inútil e
muitas vezes perigoso.
• Traz vergonha para si mesmo e para sua família, especialmente seus pais.
• Cria situações desagradáveis e perigosas para todos que se associam a
ele.
• Não tem interesse em ser mais do que já é.
• Sua capacidade de concentração é praticamente zero, e é facilmente
distraído.
• Falta-lhe autocontrole, sua ira explode com facilidade.
• Não é de confiança.
• Seu estilo de vida leva à vergonha, tristeza, dor e destruição para ele e
seus amigos.

O insensato (‘ewil)

O ‘ewil parece um pouco pior que o kesil, pois enfatiza deficiência espiritual e
moral, até mesmo insolência moral mais que estupidez. Esta distinção, porém, é
mais uma questão de ênfase do que diferença principal, pois ambos os termos
possuem estes atributos.

• Odeia sabedoria e disciplina (não teme a Deus)

O temor do Senhor é o princípio do conhecimento, mas os insensatos


desprezam a sabedoria e a disciplina. (1.7)

• Faz parte da natureza humana

A insensatez está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a livrará


dela. (22.15)

• Fala demais (sem escutar)

Quem responde antes de ouvir, comete insensatez e passa vergonha. (18.13)

• É um péssimo mordomo

Quem causa problemas à sua família herdará somente vento; o insensato será
servo do sábio. (11.29)
13

• Arrogante e sem arrependimento

A intriga do insensato é pecado, e o zombador é detestado pelos homens.


(24.9)

• Ruína e destruição

Os sábios de coração aceitam mandamentos, mas a boca do insensato o leva à


ruína. (10.8)

A mulher sábia edifica a sua casa, mas com as próprias mãos a insensata
derruba a sua. (14.1)

Resumo:

O insensato ‘ewil parece muito semelhante ao Kesil. Provérbios enfatiza as


seguintes falhas no seu caráter:

• Não é ensinável, odeia a disciplina, instrução e correção.


• Seu estilo de vida leva a provocação e brigas, e, no fim, à ruína.
• Não faz bem para ninguém e é odiado por todos.
• A insensatez faz parte da natureza humana e precisa ser transformada
pelo Senhor.

O estulto/ estúpido/ insensato (nabal)

Em Provérbios inclui os conceitos associados a kesil e ‘ewil. Enfatiza o que é


insensível, sem graça, moralmente poluído, uma mente fechada a razão.

• Inapropriado

Os lábios arrogantes não ficam bem ao insensato; muito menos os lábios


mentirosos ao governante! (17.7)

• Causa tristeza para sua família

O filho tolo só dá tristeza, e nenhuma alegria tem o pai do insensato. (17.21)

• Arrogante, dominante, insuportável

Três coisas fazem tremer a terra, e quatro ela não pode suportar: O escravo que
se torna rei, o insensato farto de comida. (30.21,22)
14

Resumo:

• O nabal é profano, arrogante, ingrato, teimoso, imoral, inapropriado e


insensível.
• Enfatiza indiferença moral e religiosa.
• Alguém que trata o que é sagrado com desprezo, muitas vezes levando a
imoralidade.
• Os termos associados com nabal enfatizam fortemente o aspecto
vergonhoso, arrogante e dominante de uma pessoa.

Aplicações Práticas

Como lidar com as três classes de insensato/tolo em Provérbios (o kesil, ‘ewil e


o nabal).

Como evitar ser um insensato

• Aprender a amar a sabedoria e o temor do Senhor (1.22;8.5;14.7;15.7;23.9)


• Disciplinar suas conversas (12.23;13.16;15.2;17.7)
• Pedir perdão pelos pecados (14.9)
• Honrar aos pais e ouvir seus ensinamentos (15.5, 20)
• Dar ouvidos à reprovação e correção e aceitar a disciplina (17.10;23.9)
• Falar a verdade (17.24)
• Escolher seus amigos e companheiros com cuidado (13.20;14.7,24;
26.4;17.12)
• Desenvolver autocontrole (sexual: 5.23; temperamental: 12.16; das
palavras: 20.3)

O escarnecedor (lets)

A palavra descreve alguém que despreza, trata com menosprezo, aqueles que
são menos privilegiados, ou aqueles a quem o escarnecedor deve ser submisso.

• Orgulhoso e arrogante

O vaidoso e arrogante, chama-se zombador; ele age com extremo orgulho.


(21.24)
15

• Não ensinável (rejeita correção e toma vingança)

O zombador não gosta de quem o corrige, nem procura a ajuda do sábio. (15.12)

• Ridiculariza o pecado e nega sua responsabilidade

Os insensatos zombam da ideia de reparar o pecado cometido, mas a boa


vontade está entre os justos. (14.9)

• Zomba de autoridades e da justiça

A testemunha corrupta zomba da justiça, e a boca dos ímpios tem fome de


iniquidade. (19.28)

• Causa discórdia e contendas

Quando se manda embora o zombador, a briga acaba; cessam as contendas e


os insultos. (22.10)

• Colhe o castigo por tudo que semeou

A intriga do insensato é pecado, e o zombador é detestado pelos homens.


(24.9)

• Seu destino pode servir para instruir aos outros, especialmente o


simples.

Açoite o zombador, e os inexperientes aprenderão a prudência; repreenda o


homem de discernimento, e ele obterá conhecimento. (19.25)

Quando o zombador é castigado, o inexperiente obtém sabedoria; quando o


sábio recebe instrução, obtém conhecimento. (21.11)

Resumo:

• O escarnecedor é pior que o nabal (arrogante, ateu), pois ele solta sua
personalidade venenosa sobre todos que chegam perto dele.
• Está cheio de si mesmo, orgulhoso, arrogante, não ensinável, ele é a única
autoridade que conhece.
• Nega seu pecado, despreza e zomba da confissão.
• Por onde passa surgem dificuldades.
16

• A única coisa positiva sobre o escarnecedor é que seu castigo inevitável


pode servir como lição objetiva para o simples, que talvez ainda possa
corrigir os erros dos seus caminhos.

Aplicações Práticas

• Reconhecer que o Senhor resiste ao soberbo, mas dá graça aos humildes


(3.34).
• Desenvolver um espírito ensinável que aceita correção, disciplina e
reprovação enquanto há tempo (1.22,23;9.7,8;15.12;19.25).
• Pedir perdão e fazer restituição pelo pecado (14.9).
• Aprender a viver debaixo de autoridades (19.28;30.17).
• Ter compaixão sobre todos, especialmente os pobres e menos-
privilegiados (17.5).
17

3. ECLESIASTES: O LIVRO DA REFLEXÃO

Contudo, quando avaliei tudo o que as minhas mãos haviam feito e o


trabalho que eu tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil,
foi correr atrás do vento; não há qualquer proveito no que se faz debaixo do
sol. Ec 2.11

3.1. A MENSAGEM DE ECLESIASTES

A Literatura Sapiencial do Antigo Testamento procura, entre outras coisas,


encontrar ordem, propósito e sentido na vida. Jó e Provérbios já argumentaram
de diferentes maneiras que Deus é o único que revela as verdades que
permitem às pessoas viverem sabiamente num mundo ordenado, embora
algumas vezes turbulento.

Eles declararam que o respeito por Deus começa no processo de sabedoria (Pv
1.7) e que a sabedoria divina é encontrada somente por meio da busca diligente,
facilitada pela revelação divina (Jó 28; Pv 8). Tanto Jó quanto Provérbios
concluem que Deus cria e distribui o conhecimento que torna a vida suportável
e até mesmo agradável (Jó 38.1— 42.6; Pv 2.1-15; 8.22-36).

Nenhum dos livros alega que o mundo é sempre um lugar amistoso para os
justos ou para os pecadores. Antes, eles examinam o poder e a sabedoria
inerentes na criação e, dessa forma, investigam os limites da revelação e tentam
explicar as complexas questões da vida. E dentro de tal estrutura canônica que
Eclesiastes deve ser interpretado; por estar dentro do mesmo contexto literário
e histórico, o livro aproxima-se da comunidade da fé.

Eclesiastes é resultado de uma análise profunda e reflexiva por parte de


Salomão acerca da vida em todos os seus aspectos. Seu propósito se traduz no
incentivo ao temor do Senhor como o verdadeiro sentido da vida. Para isso, o
autor busca transmitir aos leitores a inutilidade de tudo o que se pode
conquistar se não houver o temor do Senhor, ao mesmo tempo que demostra,
por meio de seu exemplo pessoal, a incapacidade de solucionar seu dilema
existencial por si só.
18

Embora a sabedoria transmitida por Salomão em Eclesiastes seja para todo ser
humano, aplicável em todos os aspectos da vida, o autor destaca um grupo
seleto de leitores a quem todas as potencialidades avaliadas no livro são
latentes e reais: os jovens.

Alegre-se, jovem, na sua mocidade! Seja feliz o seu coração nos dias da sua
juventude! Siga por onde seu coração mandar, até onde a sua vista alcançar;
mas saiba que por todas essas coisas Deus o trará a julgamento. (11.9)

3.2. TEMAS TEOLÓGICOS

Dois temas teológicos são destaques em Eclesiastes: o Deus Criador e a


decadência humana.

• Deus é caracterizado em Seu papel de Criador

O nome exclusivo de Deus em Eclesiastes é ‫‘( אֱֹלהִים‬elohîm), usado quarenta


vezes. Deus é transcendente (5.2), Criador (11.5; 12.1), doador da vida (8.15; 9.9) e
organizador da vida (3.1-8). Ele controla os ciclos da existência terrena (1.5-7) e
dela cuida como um Pastor (12.11).

• Deus é apresentado como pessoal e justo

O autor atribui a Deus atividades de intelecto (percepção e discernimento


[5.20]), de emoção (agrado [2.26; 7.26] e ira [5.6]), e de vontade (benevolência
[2.24-26; 3.13; 5.18-19; 6.2] e generosidade [2.26; 5.19; 6.2]). Ele possui um
caráter moral santo (5.1,2) e exercerá justiça (3.17; 8.13).

• Deus é apresentado como inescrutável

Eclesiastes demonstra que mesmo a sabedoria do povo a quem Yahweh se


revelou não consegue abranger todo o propósito divino e as maneiras pelas
quais o Criador lida com as criaturas (3.11; 8.17; 9.1; 11.6). Tal particularidade
divina, todavia, não é egoísta ou malévola, nem mesmo isolacionista; tem, antes,
como objetivo, que o homem tema a Deus (3.14).

• O homem é apresentado como um ser finito e que deriva sua


existência de Deus
➢ O homem é criatura (11.5; 12.1)
➢ Preso à terra (5.2)
19

➢ Sujeito à morte (3.19,20; 6.6).


• O homem é apresentado como um ser complexo

Eclesiastes usa duas palavras hebraicas para “homem”, ‫( ָא ָדם‬ʾāḏām, usada 49


vezes no livro e ligada à origem “terrena” do homem), e ‫( ִאיׁש‬ʾîš, usada dez vezes
no livro e ligada à ideia do homem como indivíduo). Além de sua carne ou corpo
(‫בָשָ ר‬, ḇāśār), por meio da qual o homem experimenta as dificuldades do mundo
paradoxal em que vive (11.10; 12.10), ele possui uma parte imaterial que funciona
em três níveis:

➢ Alma (‫נֶפֶׁש‬, nen̄eš,), o centro dos desejos humanos de alegria e realização


(6.2-3; 7.9) e sede da investigação e contemplação espiritual (7.28).
➢ Espírito (ַ‫רּוח‬, rûaḥ), que pode ser uma referência ao temperamento do
indivíduo (7.8, 9) e ao princípio animador da vida (3.19, 21; 12.7).
➢ Coração (‫לֵב‬, lēḇ) a designação mais frequente do ser interior do homem e
que inclui seu intelecto (1.13), suas emoções (7.3,4) e sua vontade (7.7;
8.11).

• O homem é apresentado como um ser pecador

O Mestre (1.1) cria na universalidade do pecado (7.20) e na depravação total do


homem (9.3). Tais fatores redundam em várias formas de pecado:

➢ Opressão (4.1-3; 5.8).


➢ Inveja (4.4).
➢ Ganância (5.10)
➢ Orgulho (7.8)
➢ Ira (10.4).
➢ Imoralidade (7.26).

A ideia do obscurecimento espiritual do homem está presente em Eclesiastes


(3.11; 11.5). Uma das consequências do pecado, na qual o Mestre concorda
plenamente com a sabedoria tradicional, é a morte prematura (7.17; 8.13). O
pecado do homem, combinado com a imprevisibilidade da vida torna o trabalho
humano pouco ou nada recompensador (1.3; 3.9), penoso (2.17) e deturpado
pela inveja (4.4). Quando, porém, o trabalho, a despeito de tais problemas, é
20

visto como parte de um “pacote” vindo de Deus, ele pode ser desfrutado (3.22;
8.15; 9.9).

• O homem é apresentado como um ser mortal

A morte, em Eclesiastes, é um fato do qual não se pode escapar. Todos


morrerão (2.14-16; 3.18-20) e o homem não pode alterar o que já está
determinado, o dia de sua morte (3.2; 8.8). A morte significa a entrega do
espírito a Deus (3.21; 12.7).

• O homem é apresentado como um ser moralmente responsável

Diante de uma vida curta que não pode controlar, o homem deve, acima de
tudo:

➢ Temer a Deus (3.14; 5.7; 7.18; 8.12,13; 12.13).


➢ Lembrar-se de Deus (12.1, 6).
➢ Adorar sinceramente a Deus (5.1,2).
➢ Ser sábio (2.13; 4.13-16; 8.5).
➢ Ser diligente (9.10; 11.2-6).
➢ Desfrutar a vida (2.24-26; 3.12,13, 22; 5.18-20; 8.15; 9.7-9; 11.8,9).

3.3. SÍNTESE CANÔNICA: ECLESIASTES E GÊNESIS 1—3

Eclesiastes interage com as ideias teológicas encontradas anteriormente nas


escrituras.

1. O texto afirma prontamente convicção de que Deus criou os céus e a


terra, e dotou os seres humanos de uma habilidade especial para saber
que o mundo material não é tudo o que existe. Os seres humanos são
dotados de um senso de eternidade (3.1- 14), faceta de sua existência
criada à imagem de Deus (Gn 1.26-31).
2. O Mestre concorda que Deus concedeu o trabalho aos seres humanos
(2.24-26; 3.22). Essa convicção também se origina de Gênesis 1.26-31,
assim como a percepção do mestre de que o trabalho é um meio possível
de alegria, ou benefícios, na terra.
3. O livro coincide com os textos de sabedoria anteriores, Salmos, Jó e
Provérbios, os quais exaltam a sabedoria acima da insensatez (2.13; 4.13-
21

16). O Mestre afirma que as obras de Deus são planejadas para ajudar as
pessoas a temerem ao Senhor (3.14), objetivo maior da adoração (5.7).

Ao mesmo tempo, o livro esforça-se para contextualizar as limitações da vida.


Essas constrições derivam de Gênesis 2 e 3 e talvez representem as melhores
reflexões canônicas sobre a frustração intelectual de viver num mundo
decadente, pecador. Mais adiante, o Mestre reconhece que o trabalho é um
presente de Deus, mas percebe que o trabalho tem o inconveniente de não ser
eterno. Assim, ele não é completamente satisfatório (2.17-26; 5.18-20). Gênesis
3.17-19 já revelara que essa frustração surgiria. O trabalho permanece
necessário, até mesmo desejável, num mundo de pecado, mas não satisfaz o
trabalhador.

Finalmente, o Mestre se debate por ter a eternidade em seu coração, mas a


mortalidade no corpo (3.11). A morte aguarda o Mestre, e ele deseja saber se os
humanos vivem depois de morte (3.19-21). Ele lida novamente com o assunto em
9.10 e 12.7 de um modo mais definitivo, esse verso (3.21) focaliza a generalidade
da morte, não a falta de uma vida após a morte. Ao mesmo tempo, a questão
sobre o que acontece depois da morte é deixada em aberto. A esperança não
está totalmente ausente. A morte é a penalidade reservada pela desobediência
no Éden (Gn 2.15-17; 3.1-5). O Mestre luta com o que a realidade significa,
plenamente consciente que a morte é inevitável. O sentido, aqui, não deriva de
uma vida eterna. O significado deve vir do Criador, que permite à criatura
buscar respostas satisfatórias.

A sabedoria fornece uma base para o sentido. O trabalho, a família, a reflexão e


a sabedoria são melhores do que a preguiça, a solidão, a negligência e a
insensatez. O Mestre não acredita que todas as visões de mundo e padrões de
vida sejam iguais. Ele não afirma que Deus não revela nada, apenas que a
revelação não remove a vaidade. Apenas a sabedoria não é o bastante para
satisfazer, como o resto do livro atesta.
22

4. QULA O PROPÓSITO DA VIDA?

Além de ser sábio, o mestre também ensinou conhecimento ao povo. Ele


escutou, examinou e colecionou muitos provérbios. Ec 12.9

4.1. O TEMOR SO SENHOR E O SIGNIFICADO DA VIDA

Salomão, ao encerrar sua obra, afirma que “ensinou conhecimento ao povo”


(12.9). Seu propósito parece ter sido didático e estar relacionado a suas
exortações finais.

Sua análise dos afazeres do homem levou-o a concluir que o esforço humano,
por mais nobre que seja, não pode dar ao indivíduo realização na vida, que é
inapelavelmente deformada pelas muitas “astúcias” do homem (7.29). Portanto,
seu propósito parece ter sido:

Estimular o temor do Senhor como a chave para uma vida significativa em


um mundo que é, em tudo o mais, desprovido de significado.

Tal propósito é atingido da seguinte maneira:

1. Demonstrando que os esforços humanos são desprovidos de


significado em um mundo que não traz realização pessoal ao homem
(1.2-11).

Esta primeira divisão do livro introduz a observação inicial sobre a natureza da


vida (1.2). À luz da natureza enigmática da vida, os esforços do homem não lhe
trazem realização (1.3). Essa observação inicial é confirmada pela aparente falta
de contribuição do homem a um mundo que está irremediavelmente preso a
ciclos enfadonhos (1.4-11). Além da natureza repetitiva da vida, o homem está
enredado em um mundo em que o passado logo perde sua significância e tudo
que se realiza é rapidamente esquecido (1.11).

2. Demonstrando, por meio de sua busca empírica por significado, que o


homem não pode derivar proveito da vida, a não ser que a desfrute
sob o temor de Deus (1.12 – 6.9).

O mestre nos versículos 1.12-18, apresenta um resumo de sua investigação e


indica seu princípio direcionador. Seu escopo foi todo o campo do esforço
(atividade) humano (1.13) e seu princípio direcionador foi a sabedoria (‫ ָח ְכמָה‬,
23

ḥoḵmâ, 1.13). Ele afirma que a vida se apresenta como uma série de paradoxos
desprovidos de sentido (1.14,15) que mesmo a sabedoria humana sem paralelo
não conseguiu resolver. Em última análise, sua capacidade de discernir e
entender ideias e situações serviu apenas para torná-lo mais agudamente ciente
dos problemas insolúveis da vida.

A seguir, a busca por significado levou o mestre a buscar o prazer como a


avenida pela qual a vida pudesse ser vivida em toda sua intensidade. Isso,
todavia, levou à frustração (2.1-11). Ele declara a futilidade de suas tentativas
(2.1,2) e lista as áreas de sua busca de modo a não deixar dúvidas na mente de
seus leitores.

• Desfrutar os prazeres do vinho (2.3).


• Tornar-se um renomado construtor (2.4-6).
• Acumular riquezas e propriedades (2.7, 8a).
• Desfrutar os prazeres sensoriais da arte e do sexo (2.8b).

Tudo isso se mostrou inútil (‫ ֵאין י ִתְ רֹון‬, ʾên yiṯrôn, em 2.11) como fundamento para
trazer significado à vida.

Um outro caminho pelo qual o mestre buscou encontrar realização foi o


trabalho (2.18-23). No entanto, esse caminho negou-lhe satisfação duradoura,
uma vez que o homem não tem garantia de que será capaz de desfrutar o
resultado de seus cansativos labores (2.18), tendo, às vezes, de deixá-lo para
descendentes menos qualificados (2.19), o que é desestimulante para alguém
cuja mente e, até mesmo, cujo sono estão absorvidos em seu trabalho (2.20,
23).

Depois de percorrer esse caminho, o mestre chega a sua primeira conclusão


(2.24-26). Embora o homem não obtenha vantagem real nesta vida e não seja
capaz, depois da morte, de desfrutar o resultado de seu esforço, o gosto obtido
com o trabalho e o desfrute das necessidades básicas para a sobrevivência
humana são uma dádiva de Deus (‫ ִמיד ָהאֶֹלהִים‬, miyyaḏ hāʾĕlōh’m, “vem da mão de
Deus”, 2.24), que tem um cuidado especial por aqueles que buscam o bem
(2.26). No entanto, mesmo esta conclusão, não elimina a natureza paradoxal da
vida (ַ‫ ֶחבֶל ו ְְרעּות רּוה‬, ḥeḇel wereʿûṯ rûaḥ, 2.26b).
24

A tentativa do mestre de provar a incapacidade humana de extrair proveito da


vida leva-o, portanto, a considerar a maneira soberana pela qual Deus
estruturou o tempo (3.1-8). Por isso, além do esforço humano ser frustrado e
frustrante, a ânsia por significado eterno (ou, pelo menos, duradouro) nesta vida
que (3.11b – ‫ ֶאת־הָעֹלָם נָתן ְב ִלבָם‬, ʾeṯ hāʿōlām nāṯan belibām,” pôs no coração do homem
o anseio pela eternidade) permanece insatisfeita, pois o homem não pode
compreender o plano todo-abrangente de Deus.

Ambição e tragédias são outros dois fatores que o mestre acrescenta a sua lista
de razões pelas quais o trabalho não garante realização na vida (5.10-17). Tudo
isso produz seu refrão e sua conclusão: a vida – com suas incoerências – deve
ser desfrutada como uma dádiva divina, não como um enigma a ser entendido e
resolvido (5.18-20).

Como confirmação final de sua tese de que a vida não oferece proveito além de
seu próprio desfrute, o mestre levanta a questão da prosperidade desperdiçada,
de riquezas e fama que não podem ser desfrutadas por causa de alguma
tragédia ou de excessiva ganância. A morte nivela ricos e pobres, sábios e
insensatos, de modo que o indivíduo fique satisfeito com o que tem nesta vida
enigmática (6.1-9).

3. Demonstrando que o homem não pode encontrar ou conhecer o


significado da vida a não ser que a desfrute sob o temor de Deus
(6.10—11.6).

Em 6.10-12, o homem é apresentado como incapaz de discernir tanto o futuro,


que Deus determinou, quanto o presente que passa por ele sem ser
aproveitado. Assim, em 7.1 – 8.17, a sabedoria, apesar de possuir méritos
relativos, é incapaz de ajudar o homem a sondar os propósitos de Deus para o
mundo e para o próprio homem. A sabedoria pode ajudar o homem e protegê-
lo em tempos de angústia, mas não é capaz de ajudá-lo a discernir o propósito
da prosperidade ou da adversidade (7.1-14).

Além do mais, a sabedoria não oferece proteção adequada contra reviravoltas


do destino e atos irresponsáveis causados pela extensão e profundidade do
pecado. A insensatez (“mulher que serve de laço, cujo coração é uma armadilha
e cujas mãos são correntes”, 7.26) traz a humanidade (pelo menos, a maior
25

parte dela) presa em suas garras e assim o homem desperdiça o dom divino da
justiça e da retidão (7.15-29).

Essa divisão termina com a indicação de que a sabedoria não tem explicação
adequada para o enigma da retribuição divina. A sabedoria pode levar o
indivíduo à obediência civil (conformidade social), mas isso não garante que ele
esteja a salvo do uso errado que outros façam da autoridade (8.1-9). Mesmo a
sabedoria não pode explicar adequadamente a natureza aparentemente
aleatória da retribuição divina (8.10-17). O versículo 17 é a mais clara admissão
encontrada nas Escrituras de que a sabedoria em si mesmo fracassa como
instrumento de encontrar propósito na vida.

Então percebi tudo o que Deus tem feito. Ninguém é capaz de entender o
que se faz debaixo do sol. Por mais que se esforce para descobrir o sentido
das coisas, o homem não o encontrará. O sábio pode até afirmar que
entende, mas, na realidade não o consegue encontrar (8.17).

Por fim, apesar de suas deficiências, a sabedoria nos acautela a respeito de


palavras impensadas contra os que estão em autoridade justamente devido à
natureza aleatória da vida; a crítica particular pode resultar em confrontação
pública com consequências perigosas (10.12-20).

A despeito de nossa ignorância quanto ao futuro, a vida deve ser encarada com
entusiasmo (11.1-6), como indicam as repetidas exortações, nesta seção, para
que se desfrute a vida (8.15; 9.7-10).

4. Exortando seus leitores a desfrutar a vida responsavelmente sob o


temor de Deus (11.7 –12.14).

Por tudo o que o mestre afirmou até agora, é apropriado que conclua seus
comentários com observações sobre a juventude, a velhice e a morte. O papel
de Deus nos três é o núcleo de suas declarações. De fato, ele recomenda aos
jovens para aproveitar a vida, pois em breve eles serão velhos e incapazes de
assim o fazer. Porém, eles deveriam fazê-lo sabendo que o Criador da vida (12.1)
é também o juiz de cada um (11.9; 12.). Tal consciência deve ser sóbria, porém,
na verdade, não tão sóbria a ponto de desaparecer toda a alegria.
26

Lembre-se do seu Criador nos dias da sua juventude, antes que venham os
dias difíceis e antes que se aproximem os anos em que você dirá: "Não
tenho satisfação neles” (12.1).

O mestre aconselha aos leitores que se “lembrem” (12.1) de Deus antes que o
transcurso do tempo os leve ao encontro da morte. Quando a morte chegar, o
corpo retorna ao pó, o espírito retorna a Deus e todos os julgamentos finais
serão feitos (12.7; v. 11.9). Toda a vida vem de Deus, e toda a vida deve retornar
a Deus. No entanto, apesar do seu retorno a Deus, o espírito humano não é
divino. Ao contrário, ele permanece sob o poder do Criador. Desse modo, a
morte é um meio pelo qual as pessoas se tornam mais próximas de Deus.

O parágrafo final do livro exige dos leitores a atitude apropriada que tornará
possível o verdadeiro desfrute da vida, isto é, o temor a Deus, manifesto em
obediência aos Seus mandamentos, à luz de Seu juízo que abrangerá a tudo e a
todos.

Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: Tema a Deus e guarde os
seus mandamentos, pois isso é o essencial para o homem. Pois Deus trará a
julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja
bom, seja mal (12.13-14).

4.3. A TEOLOGIA SAPIENCIAL

A literatura sapiencial israelita é de fato inconfundível; entretanto, possui vários


pontos em comum com a Lei, os Profetas e o restante das Escrituras.

Por exemplo, essa literatura, como o Pentateuco, dá ênfase ao Deus uno que
criou a terra, os seres humanos e todo o conhecimento útil à raça humana. Ela
também equipara o pecado com a insensatez e o temor com a obediência,
semelhante à aliança do Sinai. Os seres humanos são totalmente incapazes de
conhecer a Deus, ou os caminhos de Deus, sem a ajuda divina tanto na Lei
quanto na literatura sapiencial. Somente Deus é a fonte de conhecimento para a
vida justa. As matérias de sabedoria compartilham certas preocupações
encontradas também nos Profetas.

Jó, Provérbios e Eclesiastes condenam a opressão, a injustiça e outras formas


de romper com os padrões de Deus. Eles também mostram a realidade de
julgamento que espera pelas pessoas que pecam nos seus caminhos. O Deus
27

que concede a sabedoria aos tolos pecadores não aceita facilmente a rejeição
da vida baseada na instrução. Deus também não assiste passivamente a
ocorrência da maldade. Jó e Eclesiastes questionam o ritmo e o motivo por trás
do julgamento divino, contudo eles afirmam que isso acontece segundo os
critérios de Deus. Nenhuma menção ao castigo universal no dia do Senhor
aparece, mas o julgamento de indivíduos tem um lugar proeminente. As sanções
se aplicam a cada um a seu tempo.

As Escrituras, como um todo, discutem a luta para servir a Deus num mundo
marcado pela dor e pelo desastre. Muitos salmos lamentam as lutas da vida,
como em Jó e Eclesiastes. Lamentações, Ester, Daniel, Esdras e Neemias se dão
em tempos e lugares que testam a fibra espiritual do povo de Deus. Provérbios,
Cântico dos Cânticos e Crônicas provam que a vida pode ser normal, até mesmo
alegre; assim, o quadro quase nunca será completamente sombrio. Talvez
Eclesiastes melhor sintetize a luta humana para agir em meio a uma realidade
perturbadora para alcançar a alegria e plenitude.

Num mundo pós-Gênesis 3.14-19, o temor do Senhor, a expectativa de


julgamento e o prazer das dádivas de Deus, que incluem a sabedoria, mantêm o
crente longe da insensatez. Pode ser sem sentido e inútil procurar saber tudo o
que Deus sabe, mas não procurar a sabedoria deixa as pessoas sem as dádivas
de Deus, o que o mestre admite ser pior.

Em boa parte, as escrituras sapienciais provam que o pecado, a morte e a


insensatez não são tudo o que os seres humanos podem alcançar. Elas mostram
que as pessoas podem descobrir os caminhos revelados por Deus que
demonstram que são feitas à sua imagem. Os livros seguintes a Eclesiastes
trazem exemplos de indivíduos que seguiram o caminho que a sabedoria
oferece ao justo.

Sobretudo, não pode haver dúvida de que as escrituras sapienciais confirmam a


manifestação de Deus no cânon.

• Jó questiona Deus.
• Provérbios assegura que somente um Deus é o criador da sabedoria.
• Cântico dos Cânticos conclui que o amor acontece como um presente de
Deus, e em nenhuma parte o livro idolatra a paixão.
• Eclesiastes investiga a atividade do Criador.
28

Esses livros procuram tornar os caminhos de Deus mais compreensíveis ao


próximo. Para fazê-lo, eles utilizam a revelação anterior e consideram as
implicações de tal revelação. Seja com satisfação ou com sofrimento, esses
escritores tiveram o temor do Senhor como seu ponto de partida e sua
conclusão.
29

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

CHILDS, B. Introduction to the Old Testament as Scripture. Edição Hardcover,


1979.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009


Veremos hoje:

1. A TEOLOGIA DE ISAÍAS

1.1 O PROPÓSITO DO LIVRO


1.2 A REBELIÃO DE JUDÁ
1.3 O JULGAMENTO DE JUDÁ
1.4 A RESTAURAÇÃO DE JUDÁ

2. O RENOVO DO SENHOR

2.1 O SERVO MESSIÂNICO


2.2 A IDENTIDADE DO SERVO
2.3 O SERVO SALVADOR
2.4 O SERVO E JESUS

3. A TEOLOGIA DE JEREMIAS

3.1 O PROPÓSITO DO LIVRO


3.2 O CONCERTO QUEBRADO
3.3 O JULGAMENTO VEM DO NORTE

4. A PROMESSA DA NOVA ALIANÇA

4.1 RESTAURAÇÃO FUTURA


4.2 O NOVO CONCERTO
4.3 RENOVAÇÃO E NOVA ALIANÇA
1

1. A TEOLOGIA DE ISAÍAS

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre
os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso,
Pai Eterno, Príncipe da Paz. Ele estenderá o seu domínio, e haverá paz sem fim
sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, estabelecido e mantido com justiça e
retidão, desde agora e para sempre. O zelo do Senhor dos Exércitos fará isso.
Isaías 9.6,7

1.1. O PROPÓSITO DO LIVRO

Pouquíssimos livros do Antigo Testamento têm a destreza que Isaías demonstra


na utilização da teologia bíblica recebida ao introduzir novos conceitos
teológicos. Isaías analisa a dádiva e a quebra da aliança, o papel dos profetas em
advertir e encorajar o povo escolhido, a soberania de Deus sobre todas as nações
e as promessas davídicas — para mencionar apenas uma pequena porção de seus
temas relevantes.

Ao mesmo tempo, de um modo ainda não visto no cânon, a profecia estabelece


uma associação entre o remanescente e o futuro, a natureza eterna do reino
davídico, os pecados vigentes naquela instituição e a interação entre Deus e os
gentios. Essa combinação do Antigo com o Novo torna Isaías um impressionante
documento teológico.

Por muito tempo, os estudiosos, afirmaram Isaías, o profeta, como único autor do
livro que leva seu nome. No final do século XVIII, os estudos críticos propuseram
que, na verdade, Isaías era escrito por dois autores diferentes: Isaías de Jerusalém,
o profeta propriamente dito: e Isaías da Babilônia. Contudo, tanto a tradição
judaica como a cristã referem-se a Isaías, filho de Amoz, morador de Jerusalém,
como único responsável pelo livro. Este ponto de vista crê na inspiração plena
das Escrituras e considera perfeitamente possível que Deus tenha dado
evidências muito detalhadas a respeito do futuro para seu profeta.

Isaías, o filho de Amoz, é conhecido entre os estudiosos como o “príncipe dos


profetas do Antigo Testamento”. É também por excelência o “profeta
messiânico”, devido as várias referências que faz ao Messias, Jesus. Seu nome dá
título ao livro por ele escrito, como acontece com todos os demais livros
proféticos no Antigo Testamento. O significado de seu nome é “Javé é Salvação”
2

ou “O Senhor é Salvação”, nome que se encaixa muito bem com sua mensagem
profética.

Isaías teve um ministério de sessenta anos. Estima-se que ele profetizou de 740
até 680 a.C. Seu ministério começou no ano da morte do rei Uzias (2Rs 15.1-7) e
terminou, segundo a tradição judaica, no reinado de Manassés (2 Rs 21.1-18).

Para entender o propósito de Isaías temos que dividir o livro em duas partes. Na
primeira (caps. 1 — 39), Isaías anuncia o juízo do Senhor, pois o Deus Santo iria
disciplinar os israelitas por andarem em pecado, sem arrependimento, longe de
sua aliança com o Senhor. Na segunda parte (caps. 40 — 66), Isaías consola seus
leitores afirmando que o mesmo Deus que vai castigá-los tirando da Terra
Prometida e do templo, também vai restaurar os que se arrependerem, para que
desfrutem de uma nova e melhor relação com Deus, assim voltarão à Terra
Prometida e adorarão no templo.

Assim, o propósito e a mensagem do livro podem ser resumidos da seguinte


maneira: A salvação prometida por Javé consiste na remoção da presente
ordem rebelde e no estabelecimento de uma ordem teocêntrica sob a direção
de Seu servo, em Quem as bênçãos universais são concretizadas (PINTO,
2006).

1.2. A REBELIÃO DE JUDÁ

Mesmo antes de falar sobre seu chamado para o ministério (Is 6), o profeta tratou
da iniquidade do Reino do Sul, seu próprio povo. “Abandonaram o Senhor,
desprezaram o Santo de Israel e o rejeitaram” (Is 1.4b). Essa linguagem,
claramente, refere-se à infidelidade da aliança, similar à comparação de Israel à
esposa adúltera, feita por seu contemporâneo Oséias. O Senhor, ao se referir ao
povo dessa nação como pagão (Sodoma e Gomorra, 1.10), citou a adoração
hipócrita deles como algo que ele odeia porque não passava de representação
(1.11-14). Esse povo não compreendeu todo o espírito da aliança que clama por
justiça social (1.17) e lealdade exclusiva ao Senhor (1.29). O remédio seria o
arrependimento, e o Senhor responderia a isso com o perdão (1.18,19) e
restauração (1. 24-28).

Em outra passagem, o Senhor chama seu povo de “filhos obstinados” (Is 30.1)
que, em vez de confiar Nele, buscavam o Egito por ajuda, formando alianças com
o povo do qual Ele os libertara para que fizessem aliança exclusivamente com Ele
3

(Is 30.1-5). Embora eles fossem o povo servo do Senhor, tornaram-se surdos e
cegos à vontade de Deus. “Pois eles não quiseram seguir os seus caminhos; não
obedeceram à sua lei”, disse o profeta (Is 42.24).

Além disso, a deserção deles não era uma escolha recente. O Senhor, ao se dirigir
a Israel, disse: “Seu primeiro pai [isto é, Jacó] pecou; seus porta-vozes [os
profetas] se rebelaram contra mim” (Is 43.27), estabelecendo uma história de
deslealdade. Em outro trecho, ele descreve seu povo como “traiçoeiro”, “desde o
nascimento [...] rebelde” (48.8). Por fim, o Senhor, usando o mais ousado dos
termos, chamou-os de “filhos de adivinhas” e “prole de adúlteros e de
prostitutas”, uma alusão à idolatria deles (57.3), e repetiu mais uma vez o epíteto
“ninhada de rebeldes”, acrescentando ainda “prole de mentirosos” (v. 4).
Certamente, essas atitudes e ações pedem uma resposta severa, e esta não
demorou a chegar.

1.3. O JULGAMENTO DE JUDÁ

A rebelião de Judá contra o Senhor foi estimulada pelos deuses das nações e suas
práticas religiosas perversas e resultou em anseio por isso tudo. Isaías enumerou
uma série desses comportamentos no início de seu livro (Is 2.6-8) e anunciou que
o Senhor dos Exércitos tinha “um dia reservado” em que os altivos e os
orgulhosos de Judá, junto com seus ídolos, seriam humilhados e apenas Deus
seria exaltado (2.12-18).

Nesse dia haveria seca, anarquia política e espiritual e desintegração social (3.1-
7), resultando no julgamento de Deus (13,14). A tragédia é que o Senhor havia
plantado seu povo como uma vinha em um pedaço de terra escolhido, esperando
que eles produzissem bom fruto. Quando chegou a hora da colheita, entretanto,
ele apenas encontrou uvas azedas (Is 5.1-4). A única solução seria tirar a cerca
protetora da vinha para que pudesse ser pisoteada pelos que passassem por ali
(5,6). Pior que isso, o povo de Judá iria para o exílio, deixando a terra aberta para
estrangeiros para que a explorassem. A razão para essa triste perspectiva era que
o povo de Deus havia rejeitado a instrução do Senhor dos Exércitos e desprezado
“a palavra do Santo de Israel.”

Por isso, assim como a palha é consumida pelo fogo e o restolho é devorado
pelas chamas, assim também as suas raízes apodrecerão e as suas flores,
4

como pó, serão levadas pelo vento; pois rejeitaram a lei do Senhor dos
Exércitos, desprezaram a palavra do Santo de Israel. Is 5.24

O chamado de Isaías para o ministério veio junto com as notícias pessimistas de


que, independentemente de quão persistente e fiel ele fosse na proclamação da
palavra de arrependimento, o povo não daria importância a ela (Is 6.9,10) e,
portanto, veria suas cidades serem arruinadas, ficarem sem habitantes, até que
todos fossem para o exílio (11,12).

Depois, em um cenário histórico específico e passível de ser identificado — a


iminente invasão da Assíria em 735 a.C. — o Senhor avisou Isaías que ele traria “as
poderosas e devastadoras águas do Eufrates” contra a nação de Judá, referindo-
se metaforicamente às tropas assírias que logo viriam para assolar a terra (Is 8.6-
8). Os arameus e os filisteus já haviam tomado o território de Israel (Is 9.12), e a
maldição de Israel já fora selada por causa da ausência de arrependimento (v. 13).
Se isso era verdade em relação à nação vizinha do Norte, como Judá esperaria
escapar de sua sina? Até mesmo Israel contribuiria com a queda de Judá antes
de ir para o exílio (v. 21).

O dia da devastação iminente é chamado de “dia de tumulto, pisoteamento e


pavor”, provocado pelo “Soberano, o Senhor dos Exércitos” (22.5). O Senhor
desempenha o papel de guerreiro, liderando os exércitos das nações estrangeiras
contra sua nação pecadora. Quaisquer que fossem as medidas defensivas
adotadas, elas, em razão da ausência de arrependimento, seriam inadequadas
para evitar a destruição (22.12,13). Em um oráculo dirigido especificamente a
Jerusalém, o Senhor salienta a ironia de que, embora tenha sido “a cidade onde
acampou Davi”, ela seria cercada e humilhada (Is 29.1-4).

O Senhor, ao comandar os exércitos que não podem ser contados, virá contra sua
nação escolhida com “trovões e terremoto e estrondoso ruído, com tempestade
e furacão e chamas de um fogo devorador” (29.5,6). Aqueles que sobreviverem
serão perseguidos até que nada reste na terra, exceto o remanescente que será
deixado “como um mastro no alto de um monte, como uma bandeira numa colina”
(29.17).

O julgamento que acabamos de descrever não se limita apenas a Israel e a Judá,


mas, no grande e escatológico dia do Senhor, estender-se-á a toda a terra. Em Is
24—27, trecho conhecido como “o pequeno apocalipse”, descreve-o em termos
5

do caos que existiu na criação, antes que o Senhor trouxesse ordem e estrutura a
tudo. Naquele dia, em vez de criação, ele “vai arrasar a terra e devastá-la” (Is 24.1)
até que seja totalmente arruinada. A razão é que a humanidade quebrou “a aliança
eterna” (v. 5), os princípios do mandato da criação por meio do qual a raça
humana tinha de exercitar sua autoridade como a imagem de Deus. A história da
raça humana, a começar com Adão e Eva, sempre foi de resistência incessante à
soberania de Deus e ao desígnio de seu reino (v. 4). Essa insubordinação não
pode ficar sem ser desafiada para sempre. Há de vir o dia em que a ira terrível do
Senhor será desencadeada e a criação, por assim dizer, reverterá ao estado em
que as coisas podem e devem começar novamente.

Isaías descreve isso da seguinte maneira: “Abertas estão as comportas dos céus;
tremem os alicerces da terra. A terra foi despedaçada, está destruída, totalmente
abalada! ” (24.18b, 19).

No entanto, apenas a terra e seus habitantes não são os únicos a ser culpados e
a merecer a retaliação divina. O profeta mencionou a questão subjacente, aquela
dos poderes conflitantes — quer nos céus quer na terra (v. 21). Desde o início, os
exércitos demoníacos liderados pelo maligno, junto com seus servos terrenos —
os governantes malignos das nações — que conspiraram contra o domínio do
Senhor. Chegará o dia deles, o tempo de sua derrota e confinamento, na verdade,
“como prisioneiros numa masmorra” (v. 22). A seguir, “o Senhor dos Exércitos
reinará no monte Sião e em Jerusalém, glorioso na presença dos seus líderes!” (v.
23). E finalmente, o Reino de Deus irromperá, e seus santos assumirão suas
posições, como sujeitos e vice-reis desse reino.

1.4. A RESTAURAÇÃO DE JUDÁ

Judá pecara gravemente contra o Senhor, mas ainda havia esperança de evitar o
julgamento dele e, além disso, de haver dias melhores no futuro imediato e no
remoto. Isaías, logo no início de seu ministério, registrou o apelo do Senhor para
que seu povo “refletisse” com Ele, pois poderia haver perdão e purificação para
eles (Is 1.18,19). Uma vez que isso acontecesse, Jerusalém poderia ostentar o
maravilhoso título de “cidade de retidão, cidade fiel.”

Restaurarei os seus juízes como no passado, os seus conselheiros, como no


princípio. Depois disso você será chamada cidade de retidão, cidade fiel.
(1:26)
6

As passagens de julgamento que observamos acima parecem deixar pouco


espaço para exceções: alguém sobreviveria de alguma maneira ou teria o plano
de Deus para o povo escolhido chegado a um irreparável fim? A resposta é clara:
as promessas de Deus da aliança ficariam seguras e sempre haveria uma
semente de Abraão para executá-las. Isaías, bem como outros profetas, refere-
se à minoria fiel como o remanescente, uns poucos que permaneceriam fiéis
independentemente do que acontecesse.

Naquele dia o remanescente de Israel, os sobreviventes da descendência de


Jacó, já não confiarão naquele que os feriu, antes confiarão no Senhor, no
Santo de Israel, com toda a fidelidade. Um remanescente voltará, sim, o
remanescente de Jacó voltará para o Deus Poderoso. (10.20,21).

No contexto de Isaías 10, esse retorno, físico e espiritual, tem de ser entendido
como o retorno do exílio assírio, do qual não há evidência histórica. Por essa
razão, a força propulsora da passagem é escatológica com a Assíria
representando todas as forças hostis ao Senhor e ao seu povo (10. 24-34).

Várias passagens deixam claro que se pretende que esse retorno seja entendido
como o retorno real para uma terra real. Isaías 14.1 declara que “o Senhor terá
compaixão de Jacó; tornará a escolher Israel e os estabelecerá em sua própria
terra”; e os capítulos 26 e 27 terminam com a nota triunfante de que “naquele dia
o Senhor debulhará as suas espigas desde as margens do Eufrates até o ribeiro
do Egito, e vocês, israelitas, serão ajuntados um a um”. A seguir, os exilados que
ficaram confinados na Assíria e no Egito (isto é, em todos os lugares) “virão e
adorarão o Senhor no monte santo, em Jerusalém” (Is 27.12,13).

Eles retornarão para uma terra quase paradisíaca em produtividade, uma terra
tão abençoada pelo Senhor que o profeta é obrigado a usar linguagem
hiperbólica para fazer justiça a ela. “Regatos de água fluirão sobre todo monte
elevado e sobre toda colina altaneira”, diz ele, “a luz da lua brilhará como o sol, e
a luz do sol será sete vezes mais brilhante, como a luz de sete dias completos” (Is
30.25,26). A libertação deles da escravidão e sua restauração pelo Senhor será
tão magnífica que a própria terra parecerá um verdadeiro jardim do Éden.

O amor à aliança manifestado aqui se fundamenta nas promessas feitas aos


patriarcas nos tempos antigos. O Senhor escolhera Abraão, quando este era
apenas um indivíduo, para gerar uma nação incontável (Is 51.1,2). Com certeza, os
7

propósitos Dele, agora, não poderiam ser frustrados apesar de Israel caminhar
para julgamento. Do contrário, o Senhor consolará Sião e “tornará seus desertos
como o Éden” (v. 3). A alusão ao Éden estende a promessa para muito além de
Abraão, voltando à própria criação e ao que todos os eventos da criação
representam para a teologia que explica a existência de Israel. A menos que a
nação de Israel voltasse para a terra e assumisse seu ministério de serva, o grande
desígnio para a redenção humana fracassaria totalmente, pelo menos, da forma
como o Senhor a pretendia. Eles tinham de voltar a Sião para que lá, no lugar de
habitação do Senhor, pudesse ser dito a Israel: “O seu Deus reina! ” (Is 52.7).
Depois, e só então, “todos os confins da terra verão a salvação de nosso Deus”
(v. 10).
8

2. O RENOVO DO SENHOR

Um ramo surgirá do tronco de Jessé, e das suas raízes brotará um renovo.

Isaías 11.1

2.1. O SERVO MESSIÂNICO

Desde o início da revelação do Antigo Testamento houve indícios, cada vez


maiores e mais claros, de um indivíduo especial que o Senhor chamaria e
capacitaria para libertar o mundo do pecado e do afastamento de Deus. A
primeira aparição desse indivíduo foi na enigmática menção à semente da mulher
(Eva) que esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3.15), na antecipação da
descendência real de Judá (Gn 49.10, na estrela de Jacó (Nm 24.17) e, por fim, na
descendência de Davi cujo trono o Senhor estabeleceria para sempre (1 Cr 17.11-
14).

Até esse ponto, a figura em vista era um descendente real de Davi sobre o qual
pouco é dito em relação a serviço e salvação. Amós não tem nada a dizer a
respeito de um messias nem Oséias, a não ser por uma passagem deste que
Mateus interpreta de forma messiânica (Os 11.1; cf. Mt 2.15). Todavia, o relato de
Isaías é rico em alusões e predições messiânicas.

A primeira referência é feita no capítulo 4 ao “Renovo (semah) do Senhor” que


seria “belo e glorioso” e acompanharia a purificação do pecado de Sião e a
restauração da glória de Deus (Is 4.2-6). O termo renovo, como título messiânico,
ocorre em outras passagens dos relatos de Isaías (11.1), de Jeremias (23.5; 33.15)
e de Zacarias (3.8; 6.12) — todos com fortes associações intertextuais com o
governante de Judá profetizado por Jacó (Gn 49.11).

A figura mais famosa do ponto de vista da teologia cristã é Emanuel de Isaías 7


(cf. Mt 1.22,23). Isaías disse ao rei Acaz, depois deste recusar um sinal do Senhor
em relação à ameaça que a Síria e Israel representavam para Judá, que o Senhor,
apesar de tudo, daria um sinal ao rei. “A virgem” ficará grávida e dará à luz um
filho e o chamaria Emanuel (Deus conosco; v. 14). Esse é um exemplo clássico de
texto messiânico que, embora tenha um sentido limitado em seu contexto
histórico, vai além disso representando um contexto Cristológico futuro.
9

O caráter incomum — na verdade, sobrenatural — do Messias nasceu da referência


adicional de Isaías a ele quando “um menino nos nasceu” e “um filho nos foi dado”
que, em um futuro distante, governará sobre Israel. Seus títulos — “Maravilhoso
Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz” — não deixam dúvida
de que o Messias é mais que mortal (Is 9.6). Todavia, “Ele estenderá o seu
domínio, e haverá paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino,
estabelecido e mantido com justiça e retidão, desde agora e para sempre” (v. 7).
Além disso, ele é da realeza, um descendente de Davi (Gn 49.10; 1 Cr 17.11 -14).

Isaías 11.1-5 deixa clara a combinação da identidade dele como Renovo com sua
identidade davídica. Aqui, a descendência de Davi é chamada o “ramo” (hõter, só
aqui) do tronco de Jessé sobre o qual:

• O Espírito do Senhor virá com vários dons, capacitando-o a realizar suas


funções reais (v. 2).
• Ele terá percepção intuitiva (v. 3b).
• Julgará com equidade (v. 4a).
• Infligirá julgamento aos ímpios (v. 4b).

Claramente, o texto como um todo tem nuanças escatológicas (11.6-9), Jesus, não
obstante, citou essa passagem como o anúncio de seu ministério público histórico
(Lc 4.18).

2.2. A IDENTIDADE DO SERVO

Parte da revelação de Yahweh acerca do futuro inclui uma descrição de um servo


ideal que fará tudo o que Israel fracassou em fazer em seu papel de servo de
Deus. Pode-se observar a existência de pelo menos quatro textos em que esse
servo aparece: 42.1-4; 49.1-6; 50.4-9 e 52.13— 53.12. Esses textos falam de um
indivíduo, ao passo que passagens como 41.8; 42.19; 43.10; 44.1,2,21; 45.4 e 49.3
(dentro de 49.1-6) referem-se a todo o Israel como servo de Deus.

De modo quase uniforme, Israel é descrito como um servo frágil e imperfeito,


enquanto o servo indivíduo realiza a vontade de Deus sem qualquer insucesso.
Aquele servo será reformado e redimido, mas o último não precisa de nenhuma
redenção. Conforme se revela em Isaías 40—55, o servo indivíduo torna-se o
modelo para o servo corporativo, que no restante do livro é identificado com o
remanescente.
10

Muitos estudiosos discordam dessa avaliação. Além dessa opção, pelo menos
sete possibilidades (se não houver mais) foram propostas. Essas ideias incluem a
de que o servo é:

• Israel.
• Um profeta.
• Um servo real.
• Uma personagem histórica específica.
• Um segundo Moisés para o segundo êxodo.
• Uma personalidade corporativa.
• Um indivíduo simbólico que personifique uma combinação dos melhores
traços de servo encontrados nas Escrituras.

Cada ponto de vista possui pontos fortes e fracos, mas o próprio texto aponta
para um servo que renova o servo de Deus Israel mediante ensino, liderança,
morte e distribuição de recompensas. Assim, essa pessoa deverá alcançar no
futuro ainda mais do que Abraão, Moisés e Davi alcançaram no passado. Nessa
pessoa as alianças assumirão forma concreta, e o Deus único que se revela será
glorificado.

O servo de Deus é chamado por Deus, é cheio do Espírito de Deus, está disposto
a sofrer e é incapaz de fracassar (42.1-4)

• O Criador chama o servo para ser uma luz para as nações.


• Um operador de cura.
• O cumprimento de predição divina (42.5-9).

Essas imagens ecoam Gênesis 1 e 2, Gênesis 12.1-9 e Êxodo 19.5,6. O servo


indivíduo é um agente de salvação para o servo corporativo, que está cego e tem
sofrido a ira de Yahweh (42.10-25).

Os dois tipos de servo aparecem em 49.1-6. Yahweh chamou a nação desde o


nascimento (49.1), uma expressão que se refere a Israel em 44.2 e 24, e então
preparou esse servo para o serviço (49.2). Contudo, esse servo, em vez de
glorificar a Deus, sucumbiu à exaustão e ao desânimo, algo semelhante ao
encontrado em 40.27-31 (49.3,4). Por isso o segundo servo, que também é
chamado desde o ventre materno (49.5), recebe a incumbência da dupla tarefa
de restaurar Israel (49-5) e ser uma luz para os gentios (49.6). O desejo de Deus
11

é que a salvação, que à luz de Isaías 40— 48 deve ser definida como adoração ao
único Deus, se estenda “até os confins da terra” (49.6).

Só por meio desse segundo servo é que o remanescente terá coragem suficiente
para cumprir Êxodo 19.5,6.

Agora, se me obedecerem fielmente e guardarem a minha aliança, vocês


serão o meu tesouro pessoal dentre todas as nações. Embora toda a terra
seja minha, vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa’.
Essas são as palavras que você dirá aos israelitas.

Então reis darão honra ao Santo de Israel (49.7), seu Criador e Senhor. Quando
Yahweh trouxer o povo de volta do exílio (49.8-13), este aprenderá que Deus não
o abandonou (49.14-23) e saberá que o Senhor é capaz de livrá-los do déspota
(49.24—50.3). O objetivo é também ensinar aos israelitas a ter fé em Yahweh
(49.23), e que o Senhor é seu redentor (49.26).

2.3. O SERVO SALVADOR

Vejam, o meu servo agirá com sabedoria; será levantado e erguido e muitíssimo
exaltado. Is 52.13

Isaías 52.13—53.12 focaliza a humilhação e morte vicária do Servo como o meio


pelo qual o plano de Javé se concretizará. Essa parte da Escritura é considerada
importantíssima para a teologia bíblica, visto que os escritores do Novo
Testamento entendem que essa é uma convincente descrição do ministério e
morte de Jesus.

Essa passagem amplia o papel do servo sofredor, papel este inicialmente descrito
em 50.4-9, pois Deus declara que o servo prosperará e será exaltado só depois
de suportar uma dor terrível (52.13-15). As nações ficarão pasmas com as
experiências do servo (52.13), como também ficarão os israelitas (53.1). Os dois
grupos têm de ser incluídos porque ambos receberam a promessa de redenção
(v. 9.2-7; 49.6; 50.10,11). O que surpreende os gentios e faz os israelitas duvidarem
se desdobra em quatro partes específicas.

1. Isaías 53.1-3 descreve o comportamento do servo e a rejeição que sofre


pelos seus semelhantes. Ele não possui nenhuma beleza física para atrair as
pessoas a si, de sorte que os que julgam com base na aparência exterior,
12

neste caso aparentemente todos os envolvidos, afastam-se dele (53.2). Ele


experimenta angústia e tristeza (53.3).
2. Isaías 53.4-6 descreve o sofrimento do servo como substitutivo. Embora
observadores considerem-no alguém afligido por Deus (53.4), na verdade
ele sofre a favor de outros com o objetivo de curá-los (53.5). Assim, “o servo
não sofre infrutiferamente. Pelo fato de sofrer as dores de outros, outros
são livres de dor.
3. Isaías 53.7-9 trata da morte do servo. Ele morre de modo humilde (53.7),
injusto (53.8) e em condição de pobreza (53.9). A passagem também
acentua “o fato de que o servo assumiu a tarefa de morte vicária, de que
com submissão e sem resistência e, portanto, com intenção tomou a si essa
função mediadora, até a morte, e de que, ao fazê-lo, agiu de acordo com o
propósito de Yahweh.
4. Isaías 53.10-12 anuncia a recompensa futura que o servo receberá devido
ao seu ministério. Em todo esse tempo a passagem confessa que o servo
carrega culpa, ou é “uma oferta pela culpa”. O autor Walther Zimmerli,
assinala que Isaías associa o servo ao sistema sacrificial e ao sofrimento dos
profetas.

De acordo com Levítico 10.17, o animal sacrificado como oferta


pelo pecado “carrega” ou “leva embora” a culpa da
comunidade. Acima de tudo, de acordo com Levítico 16.22, no
grande dia da expiação o bode expiatório enviado para o
deserto até Azazel, sobre quem é posta a culpa (e castigo) da
comunidade, leva embora essa culpa.

O agente salvador de Yahweh, o Servo, triunfa por meio da humilhação e morte


vicária em cumprimento do plano divino (52.13–53.12). Depois de ser oferta pelo
pecado, obviamente mediante sua morte, o servo “prolongará seus dias” e
receberá bênção de Yahweh.

A salvação de Yahweh

• A salvação de Yahweh trará a frutificação e expansão de Israel (54.1-3).


• A salvação de Yahweh restaurará para sempre o relacionamento da aliança
de Israel com Ele (54.4-10).
• A salvação de Yahweh dará a Israel incomparável glória e inviolabilidade
contra qualquer tipo de ataque (54.11-17).
13

• A salvação de Yahweh será graciosamente estendida a todos que O


buscam (55.1-13).
• O papel do Messias como Redentor efetivamente estenderá aos gentios as
bênçãos da aliança de Deus com Davi (55.1-5).
• O irresistível e incompreensível plano de salvação de Yahweh deve ser
recebido com arrependimento e confiança, enquanto a oferta está
disponível (55.6-11).
• Os efeitos universais da salvação divina serão alegria para a humanidade e
renovação para a natureza (55.12,13).
• A salvação de Yahweh significa a extensão de Suas bênçãos e comunhão
aos considerados não-merecedores dela (56.3-8).
• A salvação de Yahweh exige a condenação e exclusão dos ímpios em Israel,
que rejeita Sua oferta de paz universal (56.9–57.21).
• A salvação prometida por Yahweh acontecerá enquanto Ele remove os
repetidos pecados de Israel para restaurar sua glória e executar juízo, por
meio do Messias, sobre a iniquidade mundial, trazendo arrependimento e
regozijo (58.1–66.24).
• A salvação prometida por Yahweh se estriba no Messias e Seu ministério
duplo, de libertação e justiça, o qual restaurará Sião e se vingará de seus
inimigos (61.1–63.6).
• O estabelecimento final da salvação de Yahweh significará a condenação
da adoração falsa, o renascimento de Israel e júbilo mundial sobre Seus
justos julgamentos que fazem separação entre os redimidos e os ímpios
para sempre (66.1-24).

2.4. O SERVO E JESUS

Todos os principais temas de redenção no Antigo Testamento se unem nos


relatos de Isaías sobre o servo sofredor. A salvação para todas as pessoas repousa
na crença no relato sobre o servo (53.1). Por meio do servo, Deus abençoará todas
as nações (v. Gn 12.1-9), fará de Israel uma nação santa (v. Êx 19.5,6), legitimará a
lei (v. Dt 8.3), dará a Davi um reino eterno (v. 2Sm 7.7-17) e proporcionará um
futuro para o remanescente.

Os escritores do Novo Testamento apresentam Jesus como o servo descrito em


Isaías.
14

• Mateus 8.17 e 12.18-21 citam Isaías 53.4 e 42.1-4 respectivamente como


pontos de referência para o ministério de cura de Jesus.
• Mateus 26.67 e Lucas 22.63 se referem a Isaías 50.4-9, visto que falam de
Cristo suportar zombaria e espancamento.
• João 12.38-40 cita Isaías 53.1 e Isaías 6.9,10 juntos como prova de que o
Salvador prometido enfrentaria incredulidade.
• Paulo cita a passagem de Isaías 53.1 como argumento a favor da
necessidade da pregação como meio de gerar fé (Rm 10.16).
• Em 1Pedro 2.24 e Romanos 4.25, apresentam Isaías 53.5 como prova da
morte expiatória de Jesus.
• Filipe diz ao eunuco etíope que Isaías 53.7,8 refere-se a Jesus (AT 8.26-39).
• Mateus 27.57 diz que Isaías 53.9 prediz o fato de que um homem rico
emprestará seu túmulo a Jesus.
• É possível que Paulo esteja refletindo sobre Isaías 53.12 quando analisa
como a morte de Jesus torna os pecadores justos.
• O próprio Jesus cita Isaías 53.12 quando tenta explicar sua morte a seus
discípulos (Lc 22.37).
• O apóstolo Paulo emprega Isaías 49.6 para legitimar seu ministério aos
gentios (v. AT 13.44-52; 26.19-23).

Talvez seja possível ampliar a lista, mas a questão está clara. Os escritores dos
Evangelhos e o apóstolo Paulo acreditavam que as passagens sobre o servo os
ajudaram a identificar Jesus como o Rei davídico prometido.
15

3. A TEOLOGIA DE JEREMIAS

3.1. O PROPÓSITO DO LIVRO

Jeremias viveu e profetizou durante os dias finais de Judá. Foi chamado para ser
profeta quando ainda era jovem, denunciou os pecados do povo e advertiu que
em breve o julgamento acometeria a terra. Hostilidade intensa e oposição
ferrenha de reis, sacerdotes e profetas o levaram a clamar pelo Senhor
desesperadamente e às vezes com grande angústia. Contudo, permaneceu fiel à
missão profética e continuou exortando o povo de Deus mesmo depois da queda
de Jerusalém. Foi levado ao Egito contra a sua vontade por um grupo de
refugiados de Judá. Jeremias advertiu os exilados a viverem lá e a não colocar a
confiança na ajuda de outros países.

Como tantos outros profetas pré-exílicos que deixaram escritos, a mensagem de


Jeremias se concentra na relação de Deus com o povo do concerto, incluindo ao
mesmo tempo muitos oráculos de julgamento contra as nações circunvizinhas.
Jeremias acusou Judá de quebrar o concerto mosaico e anunciou que as
maldições do concerto cairiam sobre a nação. Em particular, chamou a atenção à
idolatria do povo que ele, como fizera Oséias antes dele, comparou ao adultério.
Previu, também, o dia em que o Senhor derrubaria as poderosas e hostis nações
circunvizinhas, restauraria o povo à Terra Prometida e faria um novo concerto
com eles.

Mensagem

O intenso julgamento de Yahweh contra a infidelidade nacional à aliança é o


princípio necessário para o Seu programa de estender a plenitude da bênção
ao remanescente de Israel, cuja restauração Ele mesmo garante (PINTO,
2006).

Uma das características exclusivas do livro de Jeremias é a enorme quantidade


de material biográfico. O livro inclui muitos dos lamentos de Jeremias, relatos de
ações simbólicas que ele executou e narrativas dos encontros com reis injustos,
sacerdotes corruptos e profetas mentirosos. Esse material contribui para a
teologia do livro, fornecendo insight sobre a relação do verdadeiro profeta com
Deus, ilustrações concretas das mensagens do profeta e prova tangível do grau
da corrupção da nação antes da queda.
16

Podemos resumir a teologia do livro de Jeremias da seguinte forma: O julgamento


de Deus cairia sobre Judá por ter quebrado o concerto com Ele. O povo adorava
outros deuses, e os líderes religiosos e civis eram desesperadamente corruptos.
Espada, praga e fome devastariam a terra e muitos seriam levados em cativeiro.
Deus também julgaria as nações arrogantes e em seguida restabeleceria o povo
à Terra Prometida. Faria um novo concerto com os reinos do Norte e do Sul
reunidos e no lugar dos reis e sacerdotes ineficazes dos dias de Jeremias colocaria
um rei davídico ideal (o Messias) e um sacerdócio purificado.

3.2. O CONCERTO QUEBRADO

Jeremias lembrou ao povo sobre as obrigações do concerto e o acusou de


quebrar o acordo com o Senhor. Ao longo da história de Israel, o povo quebrou
os termos do concerto e sofreu a disciplina de Deus (11.7,8). O povo da geração
de Jeremias seguiu nos passos dos antepassados rebeldes (11. 9,10). Rejeitaram a
lei de Deus (9.13) e ostensivamente desobedeceram aos padrões mais básicos,
maltratando-se uns aos outros e adorando outros deuses. Por causa da
desobediência persistente, um julgamento severo e inevitável estava prestes a
acontecer (11.11-17).

A quebra do concerto tomou muitas formas, mas o pecado mais odioso da nação
de Judá foi ter rejeitado o Senhor a favor de outros deuses. Apesar da bondade
de Deus com Israel, o povo se voltou aos ídolos de madeira e metal inúteis,
inanimados e feitos pelos homens (1.16; 2.5,8-12; 10.3-5,8,9,14,15; 16.18-20).

Jeremias especificou certas deidades e práticas pagãs que eram especialmente


atraentes ao povo:

• Adoraram Baal, o deus cananeu da tempestade e da fertilidade (2.8,23; 7.9;


9.14; 11.13,17; 12.16; 19.5; 23.13,27; 32.29,35).
• Queimaram crianças no fogo como ofertas a Baal (19.5) e a Moloque (32.35;
cf. Lv 18.21; 20.2-5; 2 Rs 23.10).
• Adoraram à deusa mesopotâmica Ishtar, chamada em Jeremias a “Rainha
dos Céus” (7.18;44.17-19,25).

O culto à deusa Ishtar (deusa Astarote dos filisteus) envolvia o ritual de assar
bolos à sua imagem, queimar incenso e derramar ofertas de bebida. Logo após à
destruição de Jerusalém, os exilados no Egito retomaram esta prática, afirmando
17

que a queda da cidade foi a consequência de terem abandonado este ritual


(44.15-19).

Para enfatizar como era repulsivo aos olhos de Deus o comportamento idólatra
do povo, Jeremias o comparou à infidelidade conjugal. A adoração a Baal debaixo
de árvores sagradas dos lugares altos era comparável a uma adúltera que se
entrega aos amantes (3.1).

Jeremias também denunciou a injustiça que caracterizava a sociedade judaica.


Os ricos oprimiam violentamente os pobres e não defendiam a causa das viúvas
e órfãos (2.34; 5.26-28; 7.5,6). Os reis de Judá, que tinham de promover e manter
a justiça na terra (21.11; 22.2-4), eram os piores ofensores.

Apesar destas violações óbvias do concerto, o povo ainda oferecia sacrifícios ao


Senhor e cria nas promessas de salvação proferidas pelos falsos profetas. Estes
profetas garantiam para o povo que a calamidade não viria e que o futuro seria
cheio de paz e prosperidade (5.12;8.11; 14.13,15; 27.9; 28.2-4). A base para esta falsa
mensagem de esperança era que a nação possuía a lei mosaica (8.8) e o Templo
do Senhor estava entre eles (7.4). O Senhor ressaltou que não achou os sacrifícios
aceitáveis (6.20). Desde os dias de Moisés, sempre considerara que a obediência
sincera era mais fundamental do que o ritual sacrificatório (7.21-12).

Os falsos profetas seriam objeto especial da ira divina. O motivo principal para
pronunciarem profecias de salvação era a ganância, porque eles eram ricamente
recompensados quando falavam palavras tranquilizadoras ao povo (6.13; 8.10). As
mensagens dos falsos profetas eram uma ilusão, pois eram derivadas de métodos
próprios de adivinhação e visões (14.14; 23.16,26-38; 29.8).

Em contraste com estes falsos profetas, Jeremias foi escolhido por Deus antes do
nascimento e recebera a comissão especial de proclamar a palavra de julgamento
de Deus (1.4-19). Diferente dos falsos profetas, que não tinham revelação divina
genuína, Jeremias devorava, por assim dizer, a palavra de Deus (15.16) e estava
tomado pelo forte desejo de anunciá-la (20.9). Ele era um dos “atalaias” de Deus
(6.17), enviados para avisar ao povo do concerto que se convertesse dos seus
maus caminhos (7.25; 25.4).

Talvez a evidência mais tangível da rejeição do povo à autoridade de Deus seja o


tratamento severo dados aos mensageiros proféticos que fielmente proclamavam
a sua palavra. Jeoaquim mandou matar um dos colegas proféticos de Jeremias:
18

Urias, filho de Semaías (26.20-23) e a vida de Jeremias também foi ameaçada em


várias ocasiões.

O livro registra em detalhes a perseguição que Jeremias enfrentou.

Referências Perseguição e Opositores


sofrimento

11.18-23 Plano de assassinar Moradores de Anatote


Jeremias

15.15-21 Opressão e solidão de Israelitas ímpios


Jeremias

19-14 — 20.2 Tortura de Jeremias, Sacerdote Pasur


preso a um tronco

26.7-24 Prisão e tentativa de Moradores de Jerusalém


condenação à morte

28.10-16 Profecia desafiada Profeta Hananias


publicamente

36 Destruição do livro e Rei Jeoaquim


tentativa de prisão

37.11-21 Falsa acusação, prisão e O capitão da guarda de


açoite de Jeremias Jerias

38.1-6 Confinamento de Príncipes de Jerusalém


Jeremias numa cisterna

39.8—40.1 Cativeiro de Jeremias até Exército babilônico


Ramá

42.1—43.4 Rejeição de Jeremias por Remanescentes de Israel


seus compatriotas

Em face da perseguição, Jeremias orou ao Senhor em numerosas ocasiões. Ele


serve de exemplo piedoso e fonte de encorajamento para todos que sofrem
opressão de homens maus. Jeremias afirmou inocência (11.19; 15.10,17) e lealdade
(15.15,16; 17.16; 18.20), apelou a Deus como justo Juiz (11.20; 12.1; 20.12) e Protetor
(17.17; 20.11), e pediu-lhe que vingasse os inimigos do profeta (11.20; 12.3,4; 15.15;
17.18; 18.21-23; 20.12).

Sob a pressão de intensa oposição e hostilidade, Jeremias às vezes se abalava


emocionalmente. Questionou por que os maus prosperavam (12.1,2), amaldiçoou
o dia em que nasceu (imediatamente depois de louvar ao Senhor como seu
Libertador, 20.13-18) e reclamou que a sua fidelidade à obra de Deus lhe trouxera
19

nada mais que dificuldade (20.8). Embora o Senhor repreendesse o profeta


(15.19), ele também o incentivou a permanecer fiel à missão, prometeu-lhe
proteção e assegurou que os inimigos seriam castigados (11.21-23; 15.11.20,21).

3.3. O JULGAMENTO VEM DO NORTE

Quando o Senhor comissionou Jeremias, mostrou-lhe a visão de uma panela


fervente que se inclina do Norte. Explicou que o conteúdo da panela representava
os exércitos dos reinos que ficavam no Norte que se derramariam na terra como
instrumentos do julgamento de Deus sobre o povo pecador (1.13-15). Muitas
passagens bíblicas, como também os desenvolvimentos históricos, afirmam que
este invasor do Norte com os exércitos babilônicos de Nabucodonosor e seus
aliados (25.9,26), que destruíram Jerusalém e o templo em 586 a.C.

Por meio deste invasor, a quem Deus se referiu por seu “servo” (25.9), seriam
realizadas as antigas maldições do concerto (Lv 26; Dt 28). Como advertira
Moisés há muito tempo (Dt 28.49), uma nação distante, cujo idioma o povo não
entenderia, conquistaria o povo do Senhor (5.15).

O exílio em terra estrangeira e a subserviência a reis estrangeiros seriam um


castigo apropriado aos que tinham cultuado deuses estrangeiros (5.19; 16.10-13).
O período de servidão de Judá na Babilônia duraria 70 anos (25.11,12; 29.10).
Podemos entender este número literalmente (embora aproximado). Mas também
indica um período de vida típico (SI 90.10) ou é símbolo de um período de castigo
apropriado ou completo. Em todo caso, dá a entender que poucos dos que
testemunharam a destruição da terra estariam vivos para ver a restauração.

Para ilustrar o julgamento vindouro, o Senhor deu ao povo lições práticas e muito
claras (16.1-9). Orientou que Jeremias se abstivesse:

• De se casar
• Lamentar os mortos
• Participar de banquetes (16.1-9).

Lições práticas:

• O estilo de vida celibatário de Jeremias pressagiava a dizimação das


famílias da nação. A espada e a fome privariam as famílias de maridos/pais,
esposas/mães e filhos.
20

• A recusa do profeta em participar de funerais previa o dia em que o povo


não teria tempo ou oportunidade de enterrar os mortos, muito menos
chorar formalmente por eles.
• Festejar era impróprio, pois o julgamento de Deus logo daria fim às
celebrações alegres de toda a terra.

Em outra ocasião, Jeremias levou uma botija à entrada da Porta do Sol, perto do
vale do filho de Hinom (também chamado Tofete), que servia de entulho para
restos de cerâmica quebrada, e a quebrou diante de vários observadores (19.1-
15). Da mesma maneira que o profeta quebrou a botija, assim o Senhor “dissiparia
o conselho de Judá e de Jerusalém” e o faria em pedaços.

O vale do filho de Hinom era um local de adoração pagã, onde o povo sacrificava
aos deuses estrangeiros e até oferecia os próprios filhos em holocausto (7.31). No
futuro, os cadáveres das pessoas encheriam este vale e Jerusalém se tomaria,
como Tofete, um lugar contaminado.

O capítulo final do livro (52), descreve como se cumpriram as profecias de


julgamento proferidas por Jeremias.

Nabucodonosor sitiou Jerusalém de 588 a 586 a.C. Ao término deste período, a


fome tomara conta da cidade. O rei Zedequias e outros tentaram fugir em
segredo da cidade, mas foram capturados pelos babilônios. Nabucodonosor
matou os filhos de Zedequias diante dos olhos do rei, depois o cegou e o levou
para Babilônia, onde ficou pelo resto da vida. Em 586 a.C., os babilônios invadiram
a cidade, pilharam e destruíram o Templo, e levaram milhares de pessoas para o
cativeiro.
21

4. APROMESSA DA NOVA ALIANÇA

4.1. RESTAURAÇÃO FUTURA

A visão de Jeremias sobre o futuro de Judá não era totalmente sombria e triste.
Ele previu o tempo em que o povo voltaria do exílio e reconstruiria Jerusalém. Os
reinos do Norte e do Sul seriam reunidos sob a liderança de um rei davídico ideal
e um sacerdócio purificado. O Senhor estabeleceria um novo concerto com o
povo, capacitando-o a permanecer leal a Ele.

A Volta do Exílio

Assim que os 70 anos tivessem transcorrido, o Senhor mostraria compaixão do


remanescente do povo e, como pastor atento, o tiraria da terra do exílio para
levá-lo de volta à Palestina, à Terra Prometida aos pais (12.15; 16.15; 23.3; 29.10).
De todas as direções viria uma grande multidão, até os habitualmente
considerados incapazes ou impróprios para viajar (31.7,8).

Esse poderoso ato de libertação faria a nação se esquecer do antigo êxodo sob
a liderança de Moisés. Já não se juraria: “Juro pelo nome do Senhor, que trouxe
os israelitas do Egito”. Antes, dirão: “Juro pelo nome do Senhor, que trouxe os
israelitas do Norte e de todos os países para onde ele os havia expulsado”
(16.14,15; cf. 23.7,8).

Como prova de que a terra voltaria a ser habitada, o Senhor deu outra lição
prática por intermédio do profeta (32.1-44). Enquanto o exército babilônico
sitiava Jerusalém, o Senhor mandou que Jeremias comprasse um campo do primo
Hananel. Jeremias colocou a escritura de compra em um jarro de barro para que
fosse conservado, e anunciou: Porque assim diz o Senhor dos Exércitos, Deus de
Israel: Casas, campos e vinhas tornarão a ser comprados nesta terra” (v. 15).

O profeta seguiu as instruções do Senhor, mas ficou um pouco confuso. Louvou


ao Senhor como rei soberano do universo, que realizara ações poderosas a favor
de Israel, mas também expressou a confusão sobre a significação deste ato
simbólico que lhe foi pedido para fazer. Com os babilônios esperando fora dos
muros da cidade como instrumento do julgamento de Deus sobre o povo
pecador, não fazia sentido para Jeremias comprar terra como se a vida tivesse de
continuar normalmente em Judá (32. 24,25). Lembrando Jeremias da sua primeira
22

afirmação de fé, o Senhor declarou: Eu sou o Senhor, o Deus de toda a


humanidade. Há alguma coisa difícil demais para mim? (32.27).

O Senhor explicou que, depois do tempo do julgamento, ele juntaria o seu povo,
lhe daria a capacidade de obedecer lealmente aos seus mandamentos e faria um
novo e eterno concerto com ele (32.37-41). O povo de Deus ocuparia a terra
novamente e compraria e venderia propriedades (32.42-44). A compra simbólica
de Jeremias previa este dia de restauração além do julgamento.

As Bênçãos Restabelecidas

O povo de Deus teria cura espiritual e desfrutaria das bênçãos divinas de paz e
prosperidade. Os israelitas do Norte e do Sul voltariam à terra (30.10; 31.27; 33.7)
e se alegrariam com colheitas frutíferas, rebanhos e manadas abundantes
(31.4,5,24; 33.10-13). As tribos do Norte iriam de boa vontade a Jerusalém (31.6)
para celebrar as bênçãos do Senhor (31.12-14). Tendo recebido perdão (33.6,8),
as pessoas já não lamentariam que estavam sendo forçadas a sofrer pelos
pecados dos seus pais, mas reconheceriam que Deus trata com justiça os homens
individualmente (31.29,30; Ez 18.1-32).

A Cidade de Jerusalém

Jerusalém seria o foco da nação restaurada. A cidade seria reconstruída em sua


totalidade (30.17; 31.38-40) e purificada aos olhos de Deus (31.40). As ruas antes
desoladas estariam cheias de pessoas (30.17,19,20). As tribos do Norte fariam
peregrinações até ela (31.6,12-14) e o povo de Judá pronunciaria bênçãos sobre
ela (31.23). Como objeto das bênçãos abundantes de Deus, a fama da cidade se
espalharia e traria glória a Deus entre as nações (33.9).

A Nova Liderança

Com exceção de Josias, os reis dos dias de Jeremias estavam desagradando ao


Senhor (2 Rs 23.32,37; 24.9,19). Em contradição à promessa davídica, Deus
anunciou ao rei Joaquim (também chamado Jeconias) que nenhum dos seus
descendentes ocuparia o trono davídico (22.28-30). A dinastia davídica foi
humilhada, visto que os três dos quatro últimos reis de Judá foram levados em
cativeiro (2 Rs 23.33,34; 24.15; 25.6,7).

Como 1 e 2 Reis, o livro de Jeremias termina com o quadro digno de pena de


Joaquim preso no palácio do rei babilônico (52.31-34). A vergonha do trono
23

davídico não duraria para sempre. O Senhor levantaria um novo rei davídico, o
Messias, para reinar sobre o povo.

Em contraste com os reis injustos dos dias de Jeremias, este rei promoveria a
justiça na terra (23.5; 33.15). Como protetor do povo de Deus, Ele seria chamado
“o Senhor é a nossa Justiça [ou melhor, “Libertação”, ou “Defesa”] (23.6). Por
meio deste rei, o juramento eterno e indestrutível de Deus a Davi se cumpria
(33.17,20,21,26; cf. 2 Sm 7.16; SI 89.36). Através deste rei davídico se cumpriam
também as promessas de Deus aos descendentes de Abraão (33.26).

Em contraste com os sacerdotes corruptos do tempo de Jeremias (6.13;20.1-6;


26.11), um sacerdócio levita purificado serviria ao Senhor no futuro dia da
restauração (33.18,21,22). Em cumprimento da promessa feita aos levitas, a eles
nunca faltaria descendente que estivesse diante do Senhor para oferecer,
continuamente, holocaustos, queimar ofertas de cereal e apresentar sacrifícios
(33.18). Como no caso dos descendentes de Davi, o Senhor também aplicou o
tema do concerto Abraâmico de numerosos descendentes ao sacerdócio levita
dos fins dos tempos (33.22).

4.2. O NOVO CONCERTO

A promessa de novo concerto é o destaque do retrato de Jeremias sobre a


restauração futura da nação (31.31-37; 32.40;50.5). Este concerto seria novo no
sentido que diferiria e substituiria o antigo concerto estabelecido nos dias de
Moisés. A diferença não estaria na demanda básica do próprio concerto, mas na
capacidade do povo de obedecer. Sob o antigo concerto, Deus como “esposo”
de Israel, exigiu a fidelidade do povo, mas eles se rebelaram contra a autoridade
e desobedeceram aos mandamentos. Estabelecendo a relação do novo concerto
com as tribos do Norte e do Sul reunidas, o Senhor perdoaria os seus antigos
pecados. Novamente lhes exigiria devoção, mas desta vez colocaria dentro deles
o desejo e a capacidade para permanecerem fiéis a Ele.

Sob o antigo concerto, os israelitas precisavam exortar seus patriotas a


obedecerem ao Senhor, pois a tendência da nação era se afastar de Deus. Na era
vindoura, tal exortação seria desnecessária, pois todos os israelitas possuiriam um
temor inato do Senhor (32.40) e a capacidade para segui-Lo. Como Moisés previu
muito tempo antes (Dt 30.6), o coração do povo seria transformado. As
exigências do Senhor seriam, por assim dizer, escritas no “coração” em vez de ser
24

nas tábuas de pedra (Dt 6.6). Essa futura geração leal estava em nítido contraste
com as pessoas do tempo de Jeremias, em cujo coração estava gravado o pecado
(17.1) e cuja capacidade para o mal era desesperadamente inerente.

O novo concerto também contém a promessa que Deus nunca mais rejeitaria o
povo e o extinguiria como nação. Essa promessa seria tão digna de confiança
quanto às leis da natureza divinamente decretadas imutáveis e o fato de que o
universo infinitamente vasto não pode ser medido ou vasculhado pelo homem
finito (31.35-37).

Nova Aliança

A profecia da nova aliança (31.31), entregue por meio de Jeremias, é um marco na


história do povo de Deus, pois seria a resposta definitiva de Deus ao rompimento
da antiga aliança, estabelecida no Sinai por meio de Moisés e da lei (31.32). A nova
aliança é uma profecia que se executa em duas partes.

A primeira se realizou em termos espirituais, graças ao sacrifício de Cristo (Lc


22.29; Hb 8.6-12), se cumprindo a partir do Dia de Pentecostes, quando o Espírito
Santo passou a habitar nos crentes tanto judeus como gentios. A presença do
Espírito Santo no salvo (1Co 6.19; 1Pe 2.5) torna real a inscrição da lei do Senhor
na mente e no coração do Seu povo (31.33-34).

A segunda etapa se cumpre fisicamente, e ainda não se realizou, de forma que se


cumprirá quando o povo de Israel for restabelecido na Terra Prometida (31.38-
40). A realização definitiva dessa profecia se destina ao fim dos tempos, como
Paulo explica (Rm 11.25-27), e significa a restauração por completo do povo de
Israel, tanto física, como espiritual, assim como profetizou Ezequiel (36.24-27).

4.3. RENOVAÇÃO E A NOVA ALIANÇA

A visão que Jeremias tem da renovação corresponde a afirmações mais


abrangentes encontradas em Isaías. O profeta Isaías funde as alianças davídica,
mosaica e abraâmica na obra do servo. Jeremias situa o cumprimento desses
pactos na introdução da nova aliança. Quando a nova aliança entrar em vigor, as
outras serão nela reunidas e por ela cumpridas e explicadas. Os dois profetas
acreditam que um novo tempo virá quando um povo de Deus purificado e fiel
herdar uma cidade gloriosa onde adoram ao Senhor sob a liderança de um
25

descendente de Davi. A lei de Deus será obedecida, e Deus governará sobre


súditos de Israel e das nações.

Ezequiel partilha de uma maneira parecida de encarar o futuro. Também enxerga


a destruição de Jerusalém como disciplina pela idolatria e rebeldia (Ez 1—33) e
acha que a disciplina renovará, no futuro, tanto o povo (Ez 37) quanto a cidade
(Ez 40—48). Ezequiel baseia essas esperanças num governante davídico que
serve sob uma nova aliança (Ez 37.24- 28). A situação de Ezequiel e os
simbolismos que escolhe variam bastante dos de seus antecessores, contudo essa
mudança de técnica não muda o fato de que basicamente ele está de acordo com
a mensagem profética que herdou.

A passagem da nova aliança é de importância vital para escritores do Novo


Testamento. Jesus, que diz que Isaías 61.1-3 se cumpre nele (Lc 4.18), por ocasião
da última ceia informa seus discípulos de que o cálice que tomam é o sangue da
nova aliança (Lc 22.20; Mt 26.28; Mc 14.24). Paulo cita as afirmações de Jesus
como prova de que os cristãos celebram a nova aliança ao tomar a ceia (1Co 11.23-
26). O autor de Hebreus interpreta, em 8.8—9.22, a morte de Cristo à luz de
Jeremias 31.31-34, entendendo que o sangue de Jesus purifica do pecado e
estabelece uma nova aliança com quem crer. Para o autor de Hebreus, a morte
de Cristo reúne as alianças com Davi, Abraão e Moisés e dá-lhes um novo
significado. Jeremias 31.31-34 proporciona a chave teológica que abre todas essas
portas.
26

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009


Veremos hoje:

1. TEOLOGIA DE EZEQUIEL

1.1 O PROFETA DOS SINAIS


1.2 A PRESENÇA QUE CAPACITA
1.3 PROFECIAS CONTRA JERUSALÉM
1.4 PROFECIAS CONTRA AS NAÇÕES
1.5 O PRÍNCIPE DE TIRO

2. A RESTAURAÇÃO DE ISRAEL

2.1 A RENOVAÇÃO DE ISRAEL


2.2 O FUTURO DE ISRAEL
2.3 A PRESENÇA RENOVADORA DE DEUS

3. TEOLOGIA DE DANIEL

3.1 O PROFETA DA INTEGRIDADE


3.2 PROPÓSITO E DESENVOLVIMENTO

4. A SOBERANIA DE DEUS SOBRE O FUTURO

4.1 AS VISÕES DE DANIEL


4.2 DANIEL E O NOVO TESTAMENTO
4.3 FIDELIDADE E HONRA
1

1. TEOLOGIA DE EZEQUIEL

"Filho do homem", disse ele, "eu o fiz sentinela para a nação de Israel; por isso
ouça a palavra que digo e leve-lhes a minha advertência. Ez 3.17

1.1. O PROFETA DOS SINAIS

O profeta Ezequiel juntamente com Daniel é um dos profetas que atuaram no


cativeiro. Enquanto Jeremias profetizou na cidade de Jerusalém, Ezequiel
profetiza entre os exilados na Babilônia. Ele foi levado para a Babilônia na
segunda leva de cativos, junto com o rei Joaquim, nove anos depois que Daniel
já se encontrava lá. Seu ministério não teve uma extensão tão grande comparado
aos ministérios de Isaías e Jeremias. Ele profetizou por 20 anos
aproximadamente. O conteúdo literário de seu livro, no entanto, está entre os
maiores dos livros proféticos.

O nome ―Ezequiel aparece apenas duas vezes no Livro (1.3; 24.24) e em nenhum
outro lugar do Antigo Testamento. Significa no hebraico (‫יחזקאל‬- Y’echezqe’l) Deus
fortalece, Deus fortalecerá ou Deus prevalecerá, um nome apropriado, já que
Ezequiel enfrentou duras consequências em função de ser um profeta do Senhor.

Embora saiba-se menos de Ezequiel do que de Jeremias, alguns fatos sobre ele
são revelados no texto e ajudam a esclarecer sua teologia. Além de ser um
exilado, Ezequiel era um sacerdote (1.2,3), o que talvez explique sua preocupação
com o templo, ritual e santidade. Era casado (24.16) e desfrutou mais prestígio na
comunidade do que Jeremias (3.1; 20.1). Acima de tudo, Ezequiel era um profeta
que às vezes perdia a consciência ao receber suas visões. Ele realizou atos
simbólicos para explicar suas visões e tinha uma boa compreensão da palavra
escrita de Deus. Por esse motivo, ao transmitir a palavra de Deus, ele pregava o
cânon, contava suas visões e encenava mensagens. Fica clara sua preocupação
com seu público, com a palavra de Deus, com a santidade e com a fidelidade à
mensagem.

Ezequiel e Daniel são as principais obras do Antigo Testamento que influenciaram


o estilo apocalíptico que surgiu no período interbíblico.

Por meio de suas visões e sinais, Ezequiel busca transmitir aos judeus exiliados a
mensagem de que a glória do Senhor permanecia intacta diante da destruição de
2

seu povo. Para isso, o profeta afirma o compromisso de Deus em fazer com que
todas as nações conheçam seu nome, certificando que o que aconteceu ao povo
era parte do plano divino de julgar o pecado de Israel e revelar sua glória a todo
o mundo. O autor Carlos Osvaldo, resume a mensagem do livro da seguinte
maneira:

A manifestação universal da glória de Yahweh virá quando Jerusalém


for humilhada com destruição e cativeiro, e depois restaurada como
habitação da glória de Yahweh quando Ele obtiver a vitória máxima
contra Seus inimigos e julgar o pecado de todas as nações (PINTO,
2006).

A teologia de Ezequiel combina seu contexto com as necessidades de seu


público. A necessidade que tinham de saber que Yahweh está presente com eles
coincide com o interesse sacerdotal de Ezequiel em cultivar a santa presença de
Deus conforme prescrito na Lei, e seu chamado profético ajuda-o em sua
proclamação, guardando-o de pecados que contaminam.

Suas convicções proféticas também o ajudam a imaginar um Deus santo e um


povo santo vivendo juntos num perfeito lugar sagrado. Sua sensibilidade
espiritual ajuda suas mensagens a transcender seus contextos físicos e temporais
imediatos de uma maneira benéfica para públicos que viveriam muito depois dele.
Ele procura descrever a presença sagrada e descobre que um uso vasto de
simbolismo é a melhor maneira de transmitir ideias tão sublimes.

As convicções teológicas de Ezequiel revelam-se nas quatro partes do livro.

1. Ezequiel 1—3 ele encontra um Deus que está presente para chamar. Esse
Deus é capaz de ver todas as coisas e estar em todos os lugares ao mesmo
tempo e está sempre presente para abençoar os fiéis. Ezequiel descobre-
se cheio desse Espírito, ou presença, do Senhor.
2. Ezequiel 4—24 o profeta descreve um Deus que está presente para julgar.
Esse trecho apresenta Yahweh retirando-se do templo para o monte das
Oliveiras, onde permanece a observar o povo, talvez à procura de
arrependimento, mas certamente a preparar o juízo.
3. Ezequiel 25—32 concentra-se no juízo de Yahweh sobre as nações, uma
ênfase que o associa a profetas que o antecederam.
4. Ezequiel 33—48 o texto declara que Yahweh está presente também para
renovar. O mesmo espírito que enche Ezequiel enche também a nação
3

morta, de maneira que a presença de Deus traz cura. O livro conclui sua
ênfase na presença, vislumbrando uma Jerusalém futura onde a adoração
é pura e o relacionamento do povo com seu Senhor é imediato e não
mediado. A nação está, afinal, pronta para se colocar diante do Deus santo.

Ezequiel não é fácil de se ler. O livro contém muitas imagens estranhas e pode ser
repetitivo. Ainda assim, o livro faz uma contribuição importante para a teologia
com sua descrição de Yahweh como o Deus, diferente dos seres humanos, está
acima e além da esfera humana, mas ao mesmo tempo, sem alterar seu caráter,
fica ao lado das pessoas e habita com elas. Esse tipo de presença consola, mas
também cria um respeito saudável pelo Deus da aliança.

1.2. A PRESENÇA QUE CAPACITA: EZEQUIEL 1—3

A experiência do chamado de Ezequiel é em muitos aspectos diferente da de


Moisés, Isaías e Jeremias, contudo também existem semelhanças notáveis. Cada
um deles ou vê um sinal incomum ou então tem visões que deixam a impressão
do poder e da presença avassaladora de Deus.

As visões que Ezequiel tem de quatro criaturas (1.4-14), de rodas (1.15-21), de um


firmamento (1.22-25) e de Yahweh num glorioso trono (1.26- 28) não são comuns.
Mas também não é comum ver um arbusto em chamas no deserto, vislumbrar
Deus entronizado no templo ou ter visões de panelas fervendo. O chamado de
Ezequiel traz perante ele “a aparência da figura da glória do Senhor” (1.28).

Na presença de Deus o profeta se prostra com o rosto no chão, uma reação que
tem paralelo na relutância de Moisés em servir, no sentimento de pecaminosidade
de Isaías e na baixa autoestima e temor de Jeremias. Deus aparece a Ezequiel, e
essa presença o afeta profundamente. Ele aprende que a glória de Deus não se
manifesta apenas na Terra Prometida, o que significa que Yahweh é “o Senhor,
livre de todas as limitações terrenas, e capaz de governar o universo todo”
(HOUSE, 2005).

O Deus que está presente para chamar também está presente para comissionar.
A tarefa de Ezequiel não será mais fácil do que a de Isaías ou a de Jeremias.
Yahweh dirige-se a Ezequiel, chamando-o de “filho do homem” (2.1), um nome
que o Senhor emprega 92 vezes no livro. A expressão distingue Ezequiel dos
seres divinos na visão e também realça a dependência que o profeta tem do
Espírito de Deus para capacitá-lo.
4

O Espírito de Deus entra nele, ajuda-o a ficar firme e torna possível ao profeta
ouvir e, mais tarde, partilhar a palavra (2.2). Ele é um verdadeiro profeta, pois está
na presença de Deus e recebe a palavra de Yahweh. Sua posição de mensageiro
autentica seu ministério. A obra direta de Deus em sua vida assegura o sucesso
no que deve fazer.

Seu público não será receptivo, de maneira que Ezequiel deve seguir plenamente
as instruções de Deus. Israel é rebelde e obstinado, mas Ezequiel não deve temer
(2.3-7). Esses versículos fazem paralelo com Isaías 6.9,10, passagem onde Isaías
ouve acerca da relutância do povo em ouvir, e Jeremias 1.17-19, onde Jeremias
recebe a advertência de não temer seus inimigos. O plano de Deus é que, mesmo
que Israel desobedeça, terá tido, no seu meio, um profeta para adverti-lo (2.5; 2Rs
17.13,14).

Ezequiel recebe a instrução de comer um rolo da palavra de Deus, um documento


que simboliza escritos mais antigos e uma nova revelação que ele receberá (2.8—
3.3). Sua palavra será inspirada pelo Espírito e entregue diretamente pelo Senhor.
Dessa forma fica assegurado seu papel de verdadeiro profeta.

Ezequiel é chamado de “sentinela” (3.17), uma imagem muitas vezes empregada


no Antigo Testamento para indicar profetas (Is 56.10; Jr 6.17; Os 9.8; Hc 2.1). E
uma imagem particularmente apropriada para profeta, pois, à semelhança dos
soldados-sentinela da antiguidade, eles advertem acerca de ameaças que surgem
no horizonte. A vida espiritual de Israel se encontra nas mãos de Ezequiel. Deus
o considerou responsável pelas pessoas a quem deixar de advertir e não se
arrepender (3.16-21). O trecho final do chamado e comissionamento de Ezequiel
destaca o total afastamento entre Deus que dá a Sua palavra e o povo que se
recusa a viver de acordo com ela.

1.3. PROFECIAS CONTRA JERUSALÉM: EZEQUIEL 4—24

À semelhança de Jeremias, Ezequiel, após descrever o chamado e a instrução,


passa a trabalhar entre o povo mediante a encenação de atos simbólicos e a
proclamação da palavra de Deus. Com frequência seus feitos simbólicos criam
oportunidades de pregação, algo que também acontece na experiência de
Jeremias (Jr 11—20). Essa seção apresenta a saída de Deus, por etapas, da área
do templo para um lugar onde as ações do povo podem ser observadas,
5

denunciadas e corrigidas. A seção também é marcada por três sumários da


história israelita, vinculando ao passado a obra presente de Yahweh.

A mensagem de Ezequiel sobre Jerusalém era que seus pecados a alcançariam


com humilhação, destruição e exílio. Cinco símbolos comunicam a iminência do
terceiro cerco contra Jerusalém (4.1–5.4).

• A realidade do cerco é retratada por meio do alto-relevo de Jerusalém em


um tijolo (4.1,2).
• A natureza implacável do cerco é retratada pela panela de ferro (4.3).
• A culpabilidade das nações é retratada pela imobilidade do profeta (4.4-8).
• As privações traumáticas durante o cerco são retratadas pelo pão impuro
(4.9-17).
• O destino de Jerusalém é retratado pelo raspar e descartar do cabelo de
Ezequiel (5.1-17).

Dois sermões explicam a causa e a natureza do juízo iminente de Deus.

• A causa do juízo é a idolatria (6.1-14).


• A natureza do juízo é total e dolorosa devastação (7.1-27).

O juízo pode não ser a palavra final de Yahweh, mas é algo necessário para que
o exílio crie um remanescente que crê.

Ezequiel 8—11 revela quão profunda se tornou a falta de conhecimento teológico


por Israel. Quatro visões descrevem a profanação e a destruição de Jerusalém e
a partida da glória Shekinah.

• A visão das abominações no templo mostra a profundidade da impureza


de Judá (8.1-18).
• A visão do escriba e os destruidores revelam a intensidade da punição
contra Jerusalém (9.1-11).
• A visão dos querubins e fogo revela o modo da destruição de Jerusalém
(10.1-22).
• A visão dos líderes arrogantes de Judá revela que o juízo é rápido e começa
com a remoção da glória Shekinah (11.1-25).

Sete mensagens explicam as causas do juízo que Yahweh enviará contra


Jerusalém.
6

1. Falsos profetas e profetisas que haviam diluído os pecados da nação eram


uma causa de sua queda e partilhariam da sua punição (13.1-23).
2. A idolatria dos anciãos e sua busca hipócrita pela palavra de Deus tornam
seu juízo certo e a intercessão por Judá inútil (14.1-23).
3. A parábola da videira – A infidelidade de Jerusalém faz dela não só culpada,
mas tão inútil para o Senhor quanto um pau de videira (15.1-8).
4. A parábola da adolescente desviada – A profunda ingratidão de Israel para
com Yahweh e Seu amoroso zelo, mostrada em seu adultério espiritual, lhe
trará o juízo necessário e uma graciosa restauração do seu Soberano
Senhor (16.1-63).
5. A parábola das duas águias – A volubilidade de Israel na política contribuirá
para sua queda nacional, que será revertida pela restauração divina de um
remanescente (17.1-24).
6. O cínico descaso de Israel quanto à sua atual culpa torna o seu juízo
necessário, embora Yahweh ofereça arrependimento e livramento para os
indivíduos (18.1-32).
7. O lamento simbólico de Ezequiel – Os príncipes de Judá são tomados como
prisioneiros devido a sua fama entre as nações, e Judá é deixada sem um
líder (19.1-14).

O povo da época de Ezequiel acreditava que não tinha feito nada de errado para
merecer aquele destino. Todo pecado tem consequências corporativas, e é
possível sofrer pelos pecados de outros, mas essas não são as únicas
possibilidades. O povo se recusa a considerar que os pecados enumerados em
Ezequiel 8—19 podem trazer disciplina divina.

Ezequiel 21—24 conclui a seção sobre a avaliação que Deus faz de Judá com um
enfoque já bem conhecido. O profeta diz que a espada da Babilônia destruirá
Jerusalém (21.1-32). Ele afirma que o castigo sobrevirá por causa da idolatria,
opressão e derramamento de sangue (22.1-31). Para ilustrar os terríveis efeitos do
cerco à Jerusalém, o Senhor pede a Ezequiel que realize seu mais difícil ato
simbólico. Sua esposa, seu prazer (24.16), morrerá, mas apesar disso ele não deve
prantear (24.16-18). Esse ato acontece para mostrar ao povo que perderá seu
prazer, Jerusalém, e não haverá pranto exceto pelo pecado (24.19-24).

1.4. PROFECIA CONTRA AS NAÇÕES: EZEQUIEL 25—32


7

A segunda metade de Ezequiel começa no capítulo 25 com uma série de oráculos


dirigida às nações circunvizinhas de Israel. Em linha com os oráculos dos outros
Profetas Maiores (e muitos dos Profetas Menores também), estas mensagens não
só revelam a preocupação do Senhor pelo povo do concerto, mas também pelo
mundo inteiro. O Deus de Israel também é o Deus das nações. Na realidade, a
escolha de Israel tinha o propósito expresso de fornecer por ele um povo-servo
que mediaria a salvação do Senhor a todas as pessoas.

O primeiro oráculo na série diz respeito a Amom, a nação a leste da Palestina


central (Ez 25.1-7). Amom, com Moabe, era da descendência de Ló e suas filhas,
com as quais este se envolveu incestuosamente (Gn 19.38). Esta relação de
sangue com Israel, descendente de Abraão, tio de Ló, tornou a alegria de Amom
pela profanação do templo do Senhor ainda muito mais odiosa do que já era. A
fim de que Amom reconheça a realeza do Senhor e o seu favor especial para
Israel, Amom cairá diante dos exércitos do Leste, presumivelmente os babilônios
(Ez 25.4).

Moabe, irmão de Amom, é o próximo na acusação do profeta. Junto com Amom,


Moabe será derrotado por invasores vindo do Leste desta vez, porque Moabe
menosprezou os escolhidos de Deus os comparou a todas as outras nações. Isto
relembra o julgamento do concerto Abraâmico: “Amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem” (Gn 12.3).

Outra nação a sofrer julgamento é Edom. A hostilidade de Edom contra Israel é o


motivo de seu julgamento. O motivo particular para o julgamento de Deus em
Edom registrado no capítulo 25 de Ezequiel é o fato de que “Edom agiu
vingativamente para com a casa de Judá” (Ez 25.12). O ódio que Edom tinha de
Israel era não menor que o ódio que Edom tinha de Deus. A desolação de Israel
também abrangerá Edom (v. 14). Isto dará uma consequência para Edom: “E
saberão que eu sou o Senhor” (v.15).

Outras nações também recebem profecias de julgamento por seus atos contra
Israel e toda sua rebelião e insubordinação.

O propósito do julgamento das nações é bastante evidente. Elas difamaram o


povo escolhido de Deus, desta forma amaldiçoando-os (Gn 12.3), e em
alinhamento com a própria promessa do concerto de Deus aos patriarcas, estas
8

nações devem ser amaldiçoadas também. Ezequiel claramente expõe a convicção


monoteísta de que o Deus que criou as nações pode julgá-las.

1.5. O PRÍNCIPE DE TIRO: EZEQUIEL 28

Não há dúvidas que o capítulo 28 de Ezequiel seja uma profecia contra a cidade
de Tiro. Entretanto, a descrição do governante (28.2) dessa cidade levanta uma
questão: tal personagem diz respeito apenas a um monarca fenício histórico ou
tem um significado simbólico e espiritual, identificando em tal figura o próprio
Satanás?

O ideal é assumir as duas possibilidades para tal passagem. A primeira considera


o príncipe de Tiro como governante histórico na época de Ezequiel, a saber,
Itobaal II, que refletiu o espírito de um povo que se tornou soberbo por conta das
riquezas e do destaque político que tiro ganhou em seu domínio no comércio
naval (28.2-5). Para ele, o paraíso havia se tornado suas riquezas materiais
(28.12,13), o que distorceu a posição privilegiada que Deus concedera a essa
nação na história (28.12-17) e, por conta de tamanha soberba, lhe sobreviria o
castigo.

Tal descrição se adequa a qualquer criatura que, por seu orgulho e soberba,
usurpa em seu coração o lugar de Deus, de forma que o governante de Tiro
também pode ser interpretado como uma representação de Satanás, um anjo
destacado por Deus em todos os sentidos (28. 12-14), mas que perdeu sua glória
por conta da iniquidade (28.19), ao tentar assumir o lugar de Deus (28.2).

A Babilônia se tornou rebelde contra o Senhor, devido a sua obstinação


usurpadora de se achar maior que Deus, dadas as suas glórias terrenas (Ap 17—
18). O pecado de cobiçarmos algo além do que nos pertence, menosprezando a
glória e soberania de Deus pela ilusão das riquezas e forças pessoais, foi o mesmo
que causou a queda de satanás, de tantas pessoas e nações ao longo da história.
É esse pecado que move interesses e guerras na atualidade e que continuará
ferindo à humanidade até o fim dos tempos, algo contra o qual devemos lutar e
vigiar diariamente.
9

2. A RESTAURAÇÃO

Darei a eles um coração não dividido e porei um novo espírito dentro deles;
retirarei deles o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Então
agirão segundo os meus decretos e serão cuidadosos em obedecer às minhas
leis. Eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. Ezequiel 11.19,20

2.1. A RENOVAÇÃO DE ISRAEL: EZEQUIEL 33—39

O ministério e a profecia de Ezequiel entram numa nova etapa em Ezequiel 33.


Muitos dos temas e estratégias encontrados em Ezequiel 1—32 continuam
presentes, mas cativeiro e a queda de Jerusalém foi conquistada (33.21,22) dão
início a um ministério predominantemente positivo e consolador por parte de
Ezequiel. A perda da cidade santa (33.21-23) leva o povo a se ajuntar para ouvir
Ezequiel pregar, contudo isso não os conduz ao arrependimento (3.24-33). Ao
contrário, parece tratar a profecia como uma espécie de entretenimento. Yahweh
tem de atuar diretamente para mudar seu coração, um fato que Jeremias já
ressaltou e Ezequiel mencionou em 11.19,20.

A ação divina específica de restaurar começa com uma troca de líderes. Os líderes
(“pastores”) da nação estão corrompidos, de maneira que Yahweh se incumbirá
de reunir as ovelhas e trazê-las do cativeiro (34.11-16) e separá-las dos bodes
(34.17-19). Criar um remanescente é, portanto, uma tarefa que o Senhor tem de
realizar. Uma vez reunido, o rebanho ou remanescente será colocado debaixo de
liderança davídica e receberá uma aliança de paz que propicie proteção
permanente (34.20-31).

Devido ao passado de Israel, a única maneira de se criar uma nação santa é


mediante a atuação do Espírito de Deus (36.24-27). O Espírito de Deus adquire
ainda maior importância em Ezequiel 37.1-14. Ele ressuscita Israel dentre os
mortos, o que significa que, a partir do nada, Yahweh terá de criar um povo santo.
Não existe nem mesmo um coração de pedra. Esse texto reforça a noção de que
um dia não haverá propriamente um remanescente, pois, todos aqueles em Israel
serão vivificados pelo Espírito de Deus e, desse modo, terão condições de cumprir
Ezequiel 36.26,27. O mesmo Espírito que capacita Ezequiel a pregar (37.1)
capacitará Israel a viver e a retornar à terra (37.11-14). Esse Espírito criará um povo
purificado de idolatria (37.15-23). Além disso, essa situação ocorre não por causa
10

do arrependimento que o profeta espera em Ezequiel 4—24, mas como impacto


direto da ação divina no coração dos israelitas e de Israel como um todo.

Uma vez restaurado na terra, Israel jamais será tirado dali. Derrotas como aquelas
infligidas pela Assíria e pela Babilônia não serão mais possíveis. Grandes nações
poderão invadir a terra, mas serão repelidas pelo Senhor (38.1—39-16). Essas
vitórias não acontecerão apenas por causa de Israel. Pelo contrário, elas têm o
propósito de mostrar a santidade de Deus às nações e de ajudá-las a confessar a
grandeza do Senhor (38.23; 39.21-29).

Então as nações perceberão que a história, incluindo as derrotas passadas de


Israel, ocorre para mostrar a natureza do Senhor (39.21-29). As coisas não
acontecem por acontecer, nem os países determinam o fluxo dos
acontecimentos. A história depende do Deus santo cujo nome santo deve ser
honrado, a fim de que a vida humana tenha sentido.

2.2. O FUTURO DE ISRAEL: EZEQUIEL 40—48

O conceito que Ezequiel tem de um Israel restaurado não para num povo
renovado. Em Ezequiel 40—48 ele continua com seu propósito, vislumbrando um
templo reconstruído e com adoração revitalizada. Essa parte da profecia
contrapõe-se a Ezequiel 8—11, texto em que os espaços sagrados se tornam tão
profanados que Yahweh recusa-se a habitar ali. Agora o Senhor constrói um local
onde interagirá com adoradores que respeitam e honram o Deus verdadeiro.
Yahweh habitará para sempre com os fiéis.

Levando em conta a origem sacerdotal de Ezequiel, não é surpresa que o relato


da Jerusalém restaurada comece com uma descrição de um templo glorificado.
Desde Êxodo 25—31 o cânon tem dado ênfase à importância de um santuário
central onde o povo de Deus pode concentrar sua atenção em seu
relacionamento com Yahweh. Deus escolhe se encontrar com Israel nesse espaço,
da mesma forma como o povo decide concentrar ali sua atenção no Senhor. O
que torna o tabernáculo ou templo santos é a presença do Senhor e a guarda dos
mandamentos de Deus. A falta de uma realidade ou de outra torna aquele espaço
igual a qualquer outro lugar.

O templo como lugar da habitação do Senhor será a fonte de bênçãos para o


mundo inteiro. Desta fonte, águas de refrigério curativo fluirão, de forma que
“viverá tudo por onde quer que passar esse rio” (Ez 47.9). Este é um quadro das
11

bênçãos milenares, quando os desertos florescerão como a rosa e as fontes


brotarão na terra seca e sedenta. Em torno do templo estarão as partilhas de terra
das tribos. Os antigos limites da promessa entrarão em vigor (Ez 47.15-20), e
nesses limites as tribos tomarão seus respectivos lugares (Ez 48.1-29). O templo
estará no meio da cidade que, por sua vez, estará entre as partilhas de Judá e
Benjamim. Assim se cumprirão as promessas do concerto davídico sobre o
Príncipe que sairá de Davi para reinar eternamente sobre o povo de Deus. Não
admira que o nome da cidade venha a ser conhecido desde então por Yahiveh
shammah. “O Senhor Está Ali” (Ez 48.35).

2.3. A PRESENÇA RENOVADORA DE DEUS

Vários textos do Antigo Testamento apoiam as afirmações de Ezequiel acerca da


presença renovadora do Senhor no povo, na cidade, na adoração e na terra. Ao
incentivar, por volta de 520-516 a.C., Israel a reconstruir o centro de adoração,
Ageu partilha do desejo de Ezequiel de um novo templo. Apesar do início
humilde, Ageu espera que a glória desse templo suplante a de seus antecessores
(2.1-9). Ageu também quer o templo restaurado e partilha da visão que Ezequiel
tem de uma Jerusalém renovada que seja santa ao Senhor e forneça água viva a
toda a terra.

Malaquias repete a preocupação de Ezequiel com a pureza de adoração dentro


da comunidade de fé. A semelhança de Ezequiel, Malaquias deseja que um povo
renovado habite a Jerusalém reconstruída. Esses dois profetas pós- exílicos que
vivem na terra baseiam em ideias encontradas em Ezequiel, ou pelo menos em
ideias semelhantes às de Ezequiel, suas profecias de restauração teologicamente
fundamentadas.

Outras passagens partilham a ênfase de Ezequiel na presença de Yahweh na


cidade santa. Por exemplo, Isaías 60—62 acentua a glória de Sião, concluindo com
a afirmação de que Jerusalém não será abandonada (62.12). Semelhantemente
Salmos 46, 48 e 76 consideram Jerusalém o lugar da habitação de Deus. Todas
essas referências indicam que seus autores acreditam que apenas a presença de
Yahweh garantirá um futuro brilhante para o povo escolhido.

Além dessas questões, o livro de Ezequiel como um todo concorda com cinco
elementos-chave encontrados em Isaías e Jeremias.
12

1. Ezequiel 21.25-27; 34.23-31 e 37.15-28 reiteram comentários encontrados


em Isaías e Jeremias sobre o rei davídico vindouro que proporcionará a
liderança santa que os reis maus de Israel se recusaram a dar (Is 9.2-7; 11.1-
10; Jr 23.1-8). Ezequiel chama o rei de servo de Deus, o que pode ser um
vínculo direto com o servo em Isaías. Todos esses profetas veem 2Samuel
7 como o texto central sobre a glória futura de Israel.
2. Todos os três profetas ressaltam que o governante davídico presidirá sobre
um Israel que desfruta uma aliança nova, ou eterna, com Yahweh. Ezequiel
34.25-31 e 37.24-28 chamam esse acordo de aliança de paz; Isaías 42.6;
54.10-17; 55.3; 59.21 e outras passagens descrevem a aliança como eterna;
e Jeremias 31.31-37 e 53.14-26 se referem a ela como nova e também eterna.
Jeremias 33.17,18 e Ezequiel 44.9-31 concordam que sacerdotes
administrarão a aliança, ao passo que Isaías 59.21 encontra paralelo na
convicção generalizada de Ezequiel sobre o Espírito de Deus produzir essa
aliança. Todos os três profetas acreditam na necessidade de uma nova
situação, e os três acham que, uma vez instituída, a nova aliança não
precisará ser substituída. Nenhum deles deposita alguma fé na disposição
da nação em se arrepender, de modo que todos afirmam que Deus terá de
agir unilateralmente para poder alcançar essa situação ideal.
3. Cada uma das profecias declara que somente os fiéis constituirão o povo
de Deus, quando, sob o governante davídico, a nova aliança se tornar
realidade. Em Isaías 60—62 e 66.18-24 são somente os fiéis os que habitam
em Sião junto com Deus. Todo o povo da nova aliança conhecerá o Senhor,
de acordo com Jeremias 31.31-34. Em Ezequiel 40—48 (v. 11.19,20; 36.26,27)
somente os justos, transformados pelo Espírito, habitarão junto com o
Senhor na nova Jerusalém. Na comunidade escolhida não haverá membros
não regenerados, pois, a obra direta de Deus no coração dos crentes os
separa dos que continuam a rejeitar o Senhor.
4. Isaías 66.18-24 e Ezequiel 25—48 fazem, no final dos tempos, separação
entre os ímpios e os fiéis. O castigo alcançará os ímpios, ao passo que uma
nova Jerusalém e uma comunhão constante com Deus esperam os fiéis.
Essas questões não estão expostas detalhadamente, contudo estão
suficientemente explicadas para propor ideias específicas para futuros
autores bíblicos (especialmente no Novo Testamento) desenvolverem.
5. Todos os três profetas acreditam que o passado pecaminoso de Israel torna
necessárias tais atividades futuras. Isaías 1—5, Jeremias 2—6 e Ezequiel 8—
13

11, 16, 20 e 23 concordam que o povo escolhido escolheu romper a aliança.


No centro de toda ruptura da aliança se encontra a idolatria, o pecado que
dá início a uma reação em cadeia de infidelidade espiritual. Assim, por mais
que Ezequiel e seus antecessores acolham a renovação, não deixam de, ao
mesmo tempo, ressaltar o pecado e a disciplina.

Conclusão

Ezequiel contribui para a teologia bíblica de várias maneiras, mas destaca-se a


ênfase na natureza capacitadora do Espírito de Deus. Para Ezequiel o Espírito
inspira a profecia, capacita o remanescente, cria a futura comunidade de fé,
transforma o coração humano e ressuscita Israel dentre os mortos.

Essas convicções sobre o Espírito de Yahweh levam aos ensinos de Ezequiel


sobre a presença constante de Deus. O Espírito de Deus pode estar em qualquer
lugar, até mesmo na Babilônia, e onde o Espírito está o Senhor está presente, seja
para abençoar, seja para disciplinar.

Enquanto o Senhor está presente, existe esperança para o futuro. Para Ezequiel,
tal esperança era mais real do que o exílio, mais destruidora do que a perda
pessoal, mais irrefutável do que o desespero egoísta do povo. O Deus único que
está presente era, para ele, o Deus que podia sustentar os fiéis no exílio.
14

3. A TEOLOGIA DE DANIEL

Daniel, contudo, decidiu não se tornar impuro com a comida e com o vinho do
rei, e pediu ao chefe dos oficiais permissão para se abster deles. Daniel 1.8

3.1. O PROFETA DA INTEGRIDADE: DANIEL

O título desse livro, em hebraico, grego e nas línguas ocidentais é o mesmo, Daniel
(em hebraico ‫דָּ נִיִאֵל‬, dāniyyēʾl, “Deus é meu juiz”), o personagem principal do livro.

Daniel deve ter nascido durante o reinado de Josias (640-609 a.C.), uma vez que
provavelmente era um adolescente quando foi capturado e exilado em Babilônia
(Dn 1.3). Ele testemunhou a rápida ascensão da Babilônia sob a liderança de
Nabopolassar e o declínio igualmente rápido da Assíria no derradeiro quarto do
século 7 a.C.

O declínio de Judá, por sua vez, foi igualmente brutal depois da morte de Josias
na batalha em Megido (609 a.C.), quando o jovem rei tentou impedir que os
exércitos egípcios levassem ajuda aos assírios cercados em Harã. A suserania
egípcia sobre Jeoiaquim, rei de Judá (609-597 a.C.), foi breve e terminou com a
vitória de Nabucodonosor em Carquêmis (605 a.C.). Pouco depois da batalha, o
príncipe caldeu foi até Judá e impôs vassalagem a Jeoiaquim, levando como
reféns algumas pessoas da nobreza e levando consigo objetos do templo como
prova de conquista (Dn 1.1).

O livro de Daniel cobre o período que vai de 605 a 536 a.C., 70 anos dramáticos
que testemunharam a ascensão e a queda do império babilônico e a ascensão da
Medo-Pérsia como o poder dominante no Oriente Médio.

A própria ascensão de Daniel à fama e ao poder foi rápida, uma vez que seu
contemporâneo Ezequiel o menciona como modelo de sabedoria e virtude (Ez
14.14,20). Ezequiel começou seu ministério em 593 a.C. (Ez 1.1, 2), isso indica que
foram necessários pouco mais de quinze anos para que a reputação de Daniel
atingisse grandes proporções.

Ao todo, Daniel serviu durante o reinado de cinco reis da Babilônia e dois


governantes persas (presumindo que Dario, o Medo, não seja Ciro, o Persa, por
delegação de quem o general medo teria exercido autoridade em Babilônia).
Além de oferecer uma perspectiva interna das cortes pagãs e do trato de Deus
15

com os soberanos seculares de seu tempo, Daniel oferece informação sobre a


ascensão do império macedônio e oferece detalhes significativos do prolongado
conflito entre os poderes que sucederam a Alexandre.

Daniel é um dos poucos homens das Escrituras em torno de quem Deus


desenvolveu um bloco de revelação. Sua vida contém combinação de sonhos,
visões, milagres e revelação direta que faz dele um dos personagens mais
singulares da Bíblia.

O autor Carlos Osvaldo Pinto, destaca da seguinte maneira a mensagem de


Daniel:

A soberania divina sobre a História garante a sobrevivência de Israel


como nação durante o tempo em que, por meio das nações
gentílicas, Yahweh purifica Seu povo e prepara Israel para sua
gloriosa redenção na vinda e no reinado do Filho do Homem (PINTO,
2006)

• Gênero e estrutura do livro

Embora Daniel geralmente seja classificado como gênero apocalíptico de


literatura, o livro contém mais de um gênero. A primeira divisão principal,
capítulos 1 – 6 contêm principalmente narrativas históricas, com um capítulo
dedicado ao material apocalíptico. O conteúdo do capítulo é apocalíptico em
natureza, embora a forma em que é comunicado – uma visão concedida a um rei
pagão – difira do costumeiro meio de comunicação, geralmente um êxtase ou
uma visão angelical.

Nos capítulos 7 – 12 encontram-se as características típicas da literatura


apocalíptica – a presença de mensageiros e intérpretes celestiais, uma
abordagem teleológica da história, eventos cataclísmicos que conduzem ao
estabelecimento do reino celestial sobre a terra, e o uso de linguagem altamente
simbólica. Mesmo nessa divisão, todavia, pelo menos uma parte pode ser
legitimamente identificada como profética, uma vez que lida com a predição de
eventos históricos futuros.

A estrutura do livro pode ser vista de ângulos diferentes. Os capítulos 1 – 6 são


narrativas relacionadas às atividades de Daniel na Babilônia durante o império
neobabilônico e o estabelecimento do Medo-Persa como o poder dominante no
Oriente Médio.
16

Os capítulos 7 – 12 relatam as visões de Daniel sobre Israel e o estabelecimento


do reino divino. Na primeira divisão, Daniel interpreta os sonhos de outras
pessoas; na segunda, os anjos interpretam suas visões.

À luz de tais observações, parece melhor dividir o livro em três seções principais,
como se segue:

1. Contexto histórico de Daniel e seu ministério (1.1-21).


2. As intervenções soberanas de Deus na história gentílica (2.1–7.28).
3. As intervenções soberanas de Deus na história israelita (8.1–12.13).

3.2. PROPÓSITO E DESENVOLVIMENTO: DANIEL 1—6

O propósito do livro é estimular esperança na restauração futura de Israel


demonstrando como Yahweh está concretizando Seus objetivos para a nação por
meio de impérios humanos até que o reino divino seja estabelecido.

O livro é classificado como literatura apocalíptica, embora boa parte de seu


material seja estritamente histórico (capítulos 1 – 6). Esses dois estilos literários
são unidos pelo tema da soberania de Yahweh na história e pelo propósito de
encorajar Israel a manter suas esperanças no cumprimento das alianças
abraâmica e davídica a despeito da triste situação em que a nação se encontrava
desde a destruição de Jerusalém pelos babilônios em 586 a.C.

A primeira divisão do livro, que apresenta as circunstâncias históricas da presença


de Daniel na corte babilônica, serve ao propósito do livro indicando como Yahweh
poderia sustentar, proteger e demonstrar favor a um judeu exilado mesmo em
meio às mais adversas condições (1.3-7) em resposta à determinação desse
indivíduo em obedecer a Sua lei a qualquer preço (1.8-16). Fidelidade traz favor e,
eventualmente, fama (1.17-21).

A segunda divisão do livro, que enfatiza as soberanas intervenções de Yahweh na


história gentílica, contribui para o propósito do livro apresentando o programa
divino para as nações (capítulos 2 e 7), enfatizando que quando a História coloca
os fiéis de Deus em situações aflitivas devido ao orgulho e à arrogância de
governantes humanos, Ele é fiel e poderoso para livrá-los (capítulos 3 e 6), e
demonstrando quão efetivamente Yahweh pode humilhar homens que, em
virtude de um momento de triunfo passageiro, presumem que obtiveram vitória
sobre Aquele que é Vencedor por toda a eternidade (capítulos 4 e 5).
17

O aspecto histórico no capítulo 2 apresenta Nabucodonosor exigindo a descrição


e explicação de seu sonho, com a ameaça de mudança total de sua liderança por
meio de execução coletiva (2.1-13). A isso se segue a petição que Daniel e seus
amigos fazem a Deus por sabedoria e percepção, petição que Deus concede
(2.14-23), capacitando-o a relatar e interpretar o sonho (2.24-45). A seguir,
encontra-se a concessão de honrarias reais a Daniel e seus companheiros (2.46-
49).

O capítulo 3 relata o livramento miraculoso dos amigos de Daniel na ocasião em


que Nabucodonosor tentou afirmar sua suserania sobre o império, obrigando
todos os seus vassalos e subalternos a adorar uma estátua que ele mandou
construir próximo a Babilônia.

Essa narrativa transcende sua realidade histórica, oferecendo um quadro da


milagrosa preservação de Israel em resposta a sua fidelidade. Esse incidente pode
ter acontecido em 594 a.C., quando Zedequias, rei de Judá, fez uma visita a
Babilônia (Jr 51.59,60) com outros reis vassalos. O propósito da cerimônia em
Daniel 3, todavia, parece ter sido mais do que político, pois ela envolvia adoração
(3.1-7); por ter recusado a prostrarem-se perante a imagem, os três jovens
administradores incorreram na indignação real (3.8-18), sendo submetidos à
prova da fornalha de fogo ardente (3.19-23). Sua milagrosa libertação teve forte
impacto emocional sobre o rei, que acabou por honrar a eles e ao Deus de Israel
(3.24-30).

O capítulo 4 contém uma história mais pessoal que serve o propósito de


demonstrar a soberania de Yahweh sobre o homem e Sua disposição de
manifestar Seu caráter àqueles que se humilham perante Ele. O orgulho de
Nabucodonosor por suas realizações é o estopim dos eventos descritos em seu
sonho (4.9-18, 20-26). O maior monarca do mundo foi humilhado a ponto de
assemelhar-se a um animal antes de perceber Quem realmente detém as rédeas
do poder sobre os reinos da terra (4.31-37).

O mesmo padrão de orgulho humano e humilhação se acha presente no capítulo


5, em que, no entanto, Deus não oferece uma segunda oportunidade. Belsazar,
príncipe regente em nome de seu pai, Nabucodonosor, procurou encorajar seu
desanimado exército com uma celebração sem limites, para a qual ordenou que
fossem trazidos os utensílios de ouro do templo de Yahweh em Jerusalém, que
serviriam como prova da supremacia babilônica sobre outros deuses e suas
18

nações (5.1-4). Sua festa blasfema foi interrompida por um sinal divino, a célebre
escrita na parede (5.5-9), que é interpretada e aplicada à arrogância e idolatria
de Belsazar (5.13-28).

Ao contrário de Nabucodonosor, Belsazar não recebe uma segunda


oportunidade, pois naquela mesma noite (5.30,31), os persas invadiram a
Babilônia e executaram o devasso e arrogante príncipe.

O capítulo 6 apresenta outra confrontação entre a idolatria e a fidelidade a


Yahweh. Agora, a questão não é prostrar-se perante um ídolo, mas orar a um ser
finito e mortal.

A fidelidade de Daniel no recém-formado governo persa levou a uma trama em


que ele foi acusado perante Dario (6.10,11) e condenado à execução na cova dos
leões (6.12-18). Na cova dos leões Daniel foi milagrosamente preservado,
acabando por ser libertado pelo próprio rei e reconduzido a seu cargo, ao passo
que seus acusadores receberam a punição antes designada para ele (6.19-24). A
soberania de Yahweh é reconhecida por mais um governante mundial (6.25-28).

Deus é soberano na vida das pessoas e na história do mundo.

A soberania de Deus no livro de Evidências da soberania de Deus


Daniel

Na vida de Daniel (Dn 1) Daniel foi escolhido é levado para o


palácio, foi respeitado pelos servos do
rei e se destacou aos olhos do próprio
rei.

Sobre os reinos da terra (Dn 2) Deus revelou ao rei Nabucodonosor,


por um sonho e interpretação, o futuro
dos reinos da terra.

Sobre os falsos deuses (Dn 3) Nem o maior deus de ouro (nem outro
qualquer) é como o Senhor, que livra
do fogo e da morte quem Ele desejar.

Sobre a vida do rei Nabucodonosor Nem o maior rei da terra pode fazer
(Dn 4) algo contra os propósitos do Senhor,
que dá poder a quem Ele escolhe, e tira
quando e como desejar.

Sobre a vida do rei Belsazar (Dn 5) Deus conhece cada um e julgará a


todos conforme suas ações.
19

Sobre a vida e a morte (Dn 6) Só Deus pode fechar a boca de leões


famintos e livrar da morte a quem Ele
desejar.
20

4. A SOBERANIA DE DEUS SOBRE O FUTURO

Inclina os teus ouvidos, ó Deus, e ouve; abre os teus olhos e vê a desolação da


cidade que leva o teu nome. Não te fazemos pedidos por sermos justos, mas
por causa da tua grande misericórdia. Daniel 9.18

4.1. AS VISÕES DE DANIEL: DANIEL 7—12

Enquanto Daniel 1—6 enfoca os eventos sobre a terra que são afetados pela
soberania divina, os capítulos de 7 a 12 destacam as visões futuras que Daniel
recebe do Senhor. Assim, se a ação na primeira metade do livro opera da terra ao
céu, então a segunda se move do céu para terra. Cada capítulo apresenta Deus
como o único que conhece, revela e governa a história.

O capítulo 7 cobre o mesmo assunto do capítulo 2. Uma visão de quatro animais


(7.1-8), de Yahweh, como o Ancião de Dias [o Eterno] (7.9-12), e do Filho do
Homem (7.13,14) é seguida por uma detalhada interpretação do curso do poder
gentílico sobre a história humana (7.15-28).

O elemento novo nessa visão é a revelação sobre o “pequeno chifre” do tempo


escatológico, um governante mundial que emergirá do quarto animal/reino (7.21-
28). Ele cometerá o último e maior ato de arrogância contra o Senhor e seus
servos (7.25), que será diretamente punido pelo Filho do Homem, quando este
estabelecer Seu reino sobre a terra (7.26-28).

Começando com o capítulo 8, o foco da atenção deixa de ser a história mundial


e passa a ser a história de Israel.

O capítulo 8 contém um esboço da história do povo escolhido sob a hegemonia


persa e helênica, representadas por um carneiro e um bode, respectivamente (8.1-
14). O grande chifre do bode representa Alexandre o Grande, e os quatro chifres
resultantes de sua quebra aludem aos quatro reinos estabelecidos depois da
divisão do império macedônio entre os quatro principais generais de Alexandre.

O pequeno chifre do capítulo 8 parece ser mais historicamente localizado como


Antíoco IV Epífanes (ou Epifânio), que reinou de 175 a 163 a.C. Os números desse
capítulo, os quais têm sido grosseiramente mal interpretados ao longo da história,
mais provavelmente se referem ao tempo transcorrido da remoção do altar de
sacrifícios por Antíoco IV e sua restauração por Judas Macabeu 3 anos depois. A
21

interpretação da visão é concedida por um anjo, uma característica marcante da


literatura apocalíptica (8.15-27).

O capítulo 9 contém aquilo que alguns consideram a profecia crucial do Antigo


Testamento, pois traça o programa divino para o povo de Israel. A visão foi
concedida em resposta à oração de confissão e petição feita por Daniel (9.3-19)
depois de entender (de acordo com a predição de Jeremias) que o castigo de
Israel duraria 70 anos.

A resposta divina está alinhada com o número setenta. O ponto de partida das
70 semanas de anos é o decreto de Artaxerxes autorizando a reconstrução das
muralhas de Jerusalém, promulgado em Nisã de 444 a.C. A data limite das
primeiras 69 semanas é a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém no dia 9 de Nisã
de 33d.C. A última semana, ainda futura, guarda o tempo de perseguição dos
santos descrita no capítulo 7, que servirá de preparativo para o estabelecimento
do reino descrito nos capítulos 2 e 7.

A visão final de Daniel encontra-se nos capítulos 10 – 12. O capítulo 10 fala do


conflito espiritual em que Daniel se achou envolvido (10.12-14) e de seu sofrimento
físico e sua recuperação associados à própria visão (10.1-11, 15-19). Começando
com 10.20, o mensageiro angelical descreve, a médio prazo, a história da terra de
Israel, o período de tempo em que a nação israelita se viu apanhada no conflito
entre os reinos helênicos da Síria e do Egito, muitas vezes em uma gangorra bélica
que ameaçava a sobrevivência de Israel e da fé israelita.

Quatro reis persas se seguiriam a Ciro antes que a supremacia persa fosse
quebrada pelos gregos (11.2). A isso se seguiria a conquista do império persa pelos
macedônios (11.3) e a divisão do vasto império de Alexandre (11.4). Dessa divisão
surgiram as guerras siro-egípcias entre as dinastias dos Selêucidas e dos
Ptolomeus, respectivamente, que duraram mais de cem anos (11.5-20). Daniel deu
particular atenção ao papel de Antíoco IV Epífanes, que representou a mais séria
ameaça à cultura, fé e raça judias (11.21-35).

A parte final da visão trata da realidade última da qual Antíoco era uma
manifestação histórica em escala menor (11.36–12.3). Essa passagem está ligada
com a septuagésima semana do capítulo 9 e com o pequeno chifre do capítulo 7.
Nações de toda a bacia mediterrânea se envolverão em um conflito final, em que
o rei de semblante feroz encontrará seu fim e castigo (11.40-45).
22

Daniel promete que o remanescente fiel de Israel será preservado em meio aos
sofrimentos da septuagésima semana (12.1, 5-11), ao passo que os que morreram
na justiça têm a promessa da ressurreição física (12.2,3), de modo a desfrutar a
bênção definitiva do reino milenar (12.12, 13).

Assim, o livro termina com a concretização do objetivo da História. Na verdade,


apresenta o objetivo inquestionável da revelação bíblica, apontando ao homem o
plano divino de “fazer convergir em Cristo todas às coisas, tanto as que estão nos
céus como as que estão na terra” (Ef 1.10). Nesse plano e para esse plano, a
preservação de Israel é um elemento chave, e o livro de Daniel demonstra sua
verdade e realidade.

4.2. DANIEL E O NOVO TESTAMENTO

Daniel se tornou um dos principais livros de referência para a literatura


apocalíptica do século I d.C. Sua influência está presente inclusive no pequeno
“Apocalipse de Jesus”, quando o Mestre fala sobre o “sacrilégio terrível” (Mt 24.15;
Mc 13.14), em referência ao termo que aparece três vezes em Daniel (Dn
9.27;11.31;12.11). Além disso, um dos títulos que os Evangelhos dão a Jesus, “Filho
do Homem”, já havia sido empregado no texto de Dn 7.13,14 como uma referência
direta do profeta ao Messias, aquele que estabelece o domínio eterno.

Outras menções a Cristo em Daniel:

Dn 2.24-35,44-45: a pedra que foi cortada sem auxílio de mãos e fere a estátua,
estabelecendo o reino de Deus, ela se refere à segunda vinda e ao
estabelecimento do reino de Cristo na terra.

Dn 9.25-26: o Messias (Ungido) vem, é removido, e logo em seguida há a


destruição da cidade, o que se refere à primeira vinda de Cristo e à destruição de
Jerusalém em 70 d.C.

4.3. FIDELIDADE E HONRA

Imagine um jovem inteligente, de boa aparência, de família nobre e pronto para


viver seus melhores anos, quando, de repente vê seu país ser destruído e é levado
a uma terra estrangeira para servir ao rei que devastou seu povo. Provavelmente
Daniel tinha 16 a 18 anos quando isso aconteceu. Com mais três amigos, ele foi
levado escolhido para servir ao rei Nabucodonosor no palácio da Babilônia.
23

Ao serem levados para a Babilônia, Daniel e seus três amigos receberam nomes
babilônicos como uma afirmação de domínio. É curioso ver como o significado
de seus nomes hebraicos exaltavam ao Senhor e como seus novos nomes
remetiam a deuses babilônicos. Mesmo tendo o próprio nome trocado, não
abandonaram suas origens nem sua identidade espiritual. Juntos demonstraram
fidelidade inabalável Deus, fortalecida por uma amizade profunda que tinha
Yahweh como elo fundamental.

Nome hebraico Significado Nome babilônico Significado

Daniel Deus é meu juiz Beltessazar Bel protege o rei

Hananias O Senhor é Sadraque Temor de Aku


gracioso.

Misael Quem é como Mesaque Quem é como


Deus? Aku?

Azarias O Senhor ajuda Abede-Nego Servo de Nebo

A firmeza espiritual de Daniel já fica evidente nos primeiros dias no exílio, quando
decidiu permanecer fiel aos valores que aprendeu em sua terra.

Estudioso das Escrituras e grande homem de oração, Daniel foi escolhido por
Deus para receber sonhos e visões proféticas referentes até à segunda vinda de
Cristo.

O que podemos aprender com a vida de Daniel?

• Daniel escolheu a integridade como estilo e vida. Desde muito jovem, com
sua decisão de não se tornar impuro com a comida do rei, já evidenciava
convicção e total confiança em Deus (Dn 1).
• Deus valoriza a firmeza da fé, do caráter e do coração.
• O conhecimento e a cultura não estão dissociados de Deus. Daniel se
dedicou a cultura dos caldeus e aprendeu o máximo possível, destacando-
se por fazer um trabalho excelente. Se ao mesmo tempo em que estudamos
mantivermos nosso coração fiel e submisso a Deus e à sua Palavra, o nosso
conhecimento pode ser usado por Deus para cumprir seus propósitos (Dn
1).
24

• O Senhor usa seus fiéis onde quer que estejam. Daniel foi usado no governo
de reis incrédulos; não há ambiente em que Deus não possa manifestar sua
presença.
• Deus pode fazer o impossível por meio de seus servos. Era humanamente
impossível saber o que o rei sonhou e dar uma interpretação fiel ao sonho
dele. Mas, Deus fez o impossível por meio de Daniel, revelando-lhe o sonho
e a sua interpretação. (Dn 2)
• Os filhos de Deus serão perseguidos. Jesus nos advertiu sobre isso (Mt 5.
10-12). Apesar de ter sido perseguido injustamente, Daniel não se abalou,
mas permaneceu firme ao lado do Senhor, mostrando disposição para
morrer por sua fé (Dn 6).
• Uma vida de oração constante fortalece o espírito frente às adversidades
da vida.
• O Senhor não despreza o coração contrito e nem a oração daquele que se
humilha e reconhece o pecado. Em sua oração Daniel não apenas se
humilhou diante de Deus e confessou seus pecados, como também os
pecados de toda a nação (Dn 9).
• Por meio da oração constante e do estudo dedicado a Palavra de Deus, o
Senhor nos releva verdades preciosas que podem tanto abençoar a nós
como a muitos outros.
25

BIBLIOGRAFIA

Bíblia. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2007.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.

ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009


1. OSEIAS – JOEL – AMÓS

1.1 A EXPRESSÃO DO AMOR DE DEUS

1.2 O PROFETA DA ESPERANÇA

1.3 O PROFETA DA JUSTIÇA SOCIAL

2.OBADIAS – JONAS – MIQUEIAS

2.1 O JULGAMENTO DA ARROGÂNCIA

2.2 A MISERICÓRDIA DIVINA

2.4 A IMPORTÂNCIA DA OBEDIÊNCIA

3.NAUM – HABACUQUE – SOFONIAS

3.1 A MENSAGEM DE CONSOLO

3.2 FÉ EM MOMENTOS DE CRISE

3.3 O PROFETA DO DIA DO SENHOR

4.AGEU – ZACARIAS – MALAQUIAS

4.1 O PROFETA DA RECONSTRUÇÃO

4.2 O PROFETA DO RENOVO

4.3 LEALDADE À ALIANÇA


1

1. TEOLOGIA DOS PROFETAS MENORES

A coleção dos Profetas Menores é formada pelos seguintes livros: Oseias, Joel,
Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e
Malaquias. Essa estrutura vem da Bíblia Hebraica e, posteriormente, da Vulgata
Latina. A Septuaginta (antiga versão grega do Antigo Testamento) apresenta nos
seis primeiros livros uma disposição diferente da Hebraica, dispondo os livros
assim: Oseias, Amos, Miqueias, Joel, Obadias e Jonas.

É importante ressaltar que o valor e a autoridade dos escritos dos Profetas


Menores em nada diferem dos Profetas Maiores. Tal classificação é puramente
pedagógica, visando tão somente facilitar a compreensão da presença de uma
estrutura literária nos livros proféticos do Antigo Testamento.

Um dado importante é que todos os profetas, de Isaías a Malaquias, viveram entre


os séculos 8 a 5 a.C, tendo alguns deles sido contemporâneos. O período
abrangeu o domínio de três potências mundiais: Assíria, Babilônia e Pérsia. Oseias,
Isaías, Amós, Jonas e Miqueias, por exemplo, viveram antes do exílio babilônico
(Os 1.1; Is 1.1; Am 1.1; 2 Rs 14.23-25 cf. Mq 1.1), e outros, como Ageu e Zacarias, no
pós-exílio (Ag 1.1; Zc 1.1).

1.1. A EXPRESSÃO DO AMOR DE DEUS: OSEIAS

Possivelmente nenhum outro profeta paga um preço mais elevado por sua
chamada do que Oseias. Como outros profetas, ele prega as verdades sobre a
aliança já afirmadas no cânon. Diferentemente de outros profetas, ele passa por
uma profunda angústia pessoal devido à traição de sua esposa. Ao amar essa
mulher, apesar do fracasso dela em permanecer fiel ao marido, Oseias demonstra
a Israel o amor perseverante de Deus a um Israel que constantemente se desvia.

Esse amor é apresentado em duas partes do texto. Os capítulos 1—3 expressam


o amor que Deus tem por uma nação idólatra e adúltera, ao passo que Oseias 4—
14 descreve o amor persistente que o Senhor tem por um povo imoral. No entanto,
todos os pecados da nação escolhida são tratados como infidelidade semelhante
ao adultério, tornando-se difícil separar essa metáfora de qualquer análise da
teologia de Oseias.
2

O chamado de Oséias tem desencadeado um importante debate devido à sua


natureza pouco convencional. Yahweh lhe diz para casar-se com uma prostituta
e ter “filhos da infidelidade”, a fim de mostrar o adultério espiritual de Israel (1.2).
Muitos estudiosos acham impossível acreditar que o Senhor mandaria um profeta
se casar com uma mulher de passado questionável e então adquirir a liberdade
dela, comprando-a da escravidão, depois dela pecar ainda mais. Porém, o sentido
mais claro do texto é que o Senhor de fato pediu a Oseias que se casasse com
uma mulher sexualmente promíscua antes do casamento.

Desse modo, a vida de Oseias encontra paralelo no chamado a Isaías para que
estivesse nu e descalço durante três anos (Is 20.1-6), ou na ordem a Jeremias para
que evitasse funerais e esquecesse casamento (Jr 16.1-9) ou na responsabilidade
de Ezequiel em evitar derramar lágrimas quando sua amada esposa morresse (Ez
24.15-27). Todos esses atos também rompem com importantes convenções
sociais, de modo que não é impossível que o Senhor exija um sacrifício
semelhante da parte de Oseias, embora o sacrifício exigido de Oséias pareça ser
o mais pesado.

É possível que seu casamento com uma mulher desonrada se encaixe na história
de Israel. Afinal, Ezequiel 20 considera que Israel era idólatra antes mesmo do
êxodo, um ponto de vista refletido em Josué 24.2 e Amós 2.4, que diz que Judá
segue mentiras que seus antepassados seguiram, muito provavelmente referência
à adoração de ídolos no passado remoto da nação. O incidente do bezerro de
ouro deixa pelo menos implícito que o povo tinha algum conhecimento prévio de
idolatria antes de sair do Egito. Com base nessas passagens, certamente é
plausível que Gômer (esposa de Oseias), tendo tido anteriormente algum tipo de
desvio sexual, exemplifique o ponto de vista da profecia sobre as práticas de
adoração que Israel teve antes do estabelecimento da aliança sinaítica.

Desde o início, o casamento de Oséias com Gômer demonstra a graça e o amor


imensurável e perdoador que Yahweh tem pelo povo escolhido. Os nomes dos
filhos de Oseias refletem a deterioração da situação de Israel diante de Deus. A
nação é desprovida não apenas de seus privilégios, mas também de tudo que ela
colocou no lugar de Deus − idolatria espiritual, intrigas políticas e prosperidade
material.

• O nome de Jezreel: O juízo virá por causa do pecado de Israel.


3

• O nome de Lo-Ruama: o favor abençoador de Deus seria tirado de Israel


por um tempo.

• O nome de Lo-Ami: o Senhor rejeitaria Israel como seu povo em razão de


sua persistente infidelidade.

À semelhança dos filhos de Isaías, essas crianças têm nomes simbólicos,


propositadamente dados para proclamar a mensagem profética de catástrofe
vindoura.

A natureza do pecado de Gômer e do de Israel é a mesma. Ela é muito


provavelmente uma prostituta sagrada de Baal, e a nação tem se envolvido na
adoração de Baal (2.8-20). O que Elias combateu cem anos antes permanece
ameaçador nesse momento da história de Israel. Gômer acha que seus amantes a
tem alimentado e vestido, embora na verdade tenha sido seu marido quem o fez,
e Israel erroneamente acredita que Baal torna fértil a terra, quando é Yahweh
quem verdadeiramente os tem sustentado (2.8).

Por meio de juízo e posterior renovação o Senhor removerá da terra o culto a


Baal (2.16-20).

O amor de Deus por Israel é simbolizado mais uma vez, quando Oseias compra
sua esposa da escravidão que ela havia aceitado (3.1-5). Essa atitude serviria para
exemplificar como o Senhor agiria com Israel: resgataria seu povo com
misericórdia e se reconciliaria com ele por amor. Por isso, até os filhos de Oseias
tiveram seus nomes mudados (2.1,23):

• Lo-Ruama (“Desfavorecida”) tornou-se Ruama (“Favor”)

• Lo-Ami (“Não-Meu-Povo’) tornou-se Ami (“Meu Povo”)

Israel foi infiel ao Senhor e adorou outros deuses, por isso se tornou merecedor
do castigo divino; contudo, o Senhor continuaria amando e cuidando do seu povo
(4—14).

Com a própria história de vida, Oseias ilustrou o relacionamento de Deus com


Israel, deixando evidente o tema central de sua mensagem: a infidelidade de Israel
e o amor imutável de Deus. As pessoas não apenas ouviriam suas palavras, mas
veriam no relacionamento a concretização da mensagem que pregava. Oseias
envolveu toda sua vida na missão pedagógica que recebeu do Senhor. Submete-
4

se completamente às orientações divinas: abriu mão dos próprios desejos e


sentimentos, dispondo-se a formar uma família disfuncional, aprender a amá-la
incondicionalmente e a doar-se por ela.

A vida e a mensagem de Oséias convergiram para o mesmo objetivo: ensinar o


amor e graça de Deus a um povo rebelde e infiel. Dessa maneira, Oséias não
apenas pregou a graça e o amor divino, mas o “encarnou”, como Cristo faria, anos
mais tarde, de forma ainda mais excelente.

1.2. O PROFETA DA ESPERANÇA: JOEL

Joel, cujo nome é uma genuína profissão de fé israelita (significa “Yahweh é


Deus”), oferece pouca informação sobre si mesmo. Ele é o filho de um
desconhecido chamado Petuel (1.1). Suas várias referências a Jerusalém e ao
templo (1.9; 2.15-17,23,32; 3.1) sugerem que ele nasceu em Judá e que talvez tenha
sido um morador de Jerusalém. Suas referências ao sacerdócio do templo
induzem alguns a considerá-lo um sacerdote, ou um profeta do templo. Isso é
possível, mas não definitivo, já que ele não se inclui entre os sacerdotes (1.13,14;
2.17).

O livro trata da ameaça de julgamento de Deus contra Judá, que Ele ilustra com
a recente e devastadora praga de gafanhotos. A esperança de Judá repousa no
arrependimento e na misericórdia divina, que trará, com os julgamentos do Dia
do Senhor, Sua abundante misericórdia ao restaurar a nação à glória e fartura.
Assim, segundo o autor Carlos Osvaldo, o propósito do livro pode ser assim
enunciado:

Promover arrependimento nacional e fé em Yahweh como o Deus que julgará


cosmicamente a humanidade de modo a trazer as bênçãos de que Israel é
receptor e canal.

Joel atinge seu propósito desenvolvendo-o nas três partes que compõem sua
profecia.

Na primeira parte (1.2-20), o profeta descreve a praga de gafanhotos que


ameaçara a vida da nação. Joel conclama a nação a considerar o caráter incomum
desse julgamento divino (1.2-4), depois exorta todas as camadas sociais a chorar
suas perdas, causadas pelos gafanhotos devoradores (1.5-13). Tal julgamento
5

exige arrependimento nacional (1.14) e aponta para o iminente Dia do Senhor (1.15-
20).

Na segunda parte, Joel anuncia os julgamentos cósmicos de Deus, que incluem


uma violenta invasão militar da Palestina (2.1-11). Essa invasão é descrita com
referência à recente praga de gafanhotos. Joel apresenta tal julgamento como
próximo no tempo (2.1,2), altamente destruidor (2.3-5) e irresistível (2.6-11).

Na terceira parte, esse julgamento cósmico é apresentado como o ponto inicial


do tempo de arrependimento e restauração para Israel, enquanto o Senhor
castiga as nações gentílicas opressoras e abençoa o remanescente espiritual e
materialmente (2.12–3.21).

A convocação profética ao arrependimento nacional (2.12-17) é seguida pela


promessa divina de restauração benevolente em resposta ao arrependimento de
Israel (2.18-27). O Espírito de Deus completará e garantirá a restauração. Todo o
povo do Senhor receberá o Espírito de Deus. Desta vez, contudo, o
derramamento do Espírito assinalará os tempos do fim. Cada crente conhecerá a
palavra e a vontade do Senhor, situação semelhante à afirmação de Jeremias
31.31-34 de que todo o Israel conhecerá o Senhor devido ao coração
transformado. É esse Espírito que Ezequiel 36.24-32 declara que fará com que o
coração do povo seja transformado, de pedra para carne, e assim criará uma
comunidade restaurada para uma terra restaurada. Na literatura profética não se
pode fazer separação entre restauração e o derramamento do Espírito de Deus.

O texto de Atos reflete a certeza de Pedro de que o derramamento do Espírito é


parte da restauração escatológica. Todo o povo de Deus conhece o Senhor e
partilha do Senhor, fato ressaltado por estar cheios do Espírito. Uma leitura
canônica dos profetas torna a interpretação petrina plausível e precisa. Sem o
Espírito, é impossível haver uma renovação total do remanescente, da terra ou de
Sião.

Israel recebe depois a promessa de um futuro glorioso que inclui sua renovação
espiritual (2.28-32), vingança dos seus inimigos (3.1-8), livramento sobrenatural
do ataque estrangeiro escatológico (3.9-17) e paz e prosperidade sob a presença
do próprio Deus com o Seu povo, que cumprirá, portanto, seu papel na aliança
como o canal de bênçãos de Yahweh para o mundo (3.18-21).

• O Dia do Senhor e os Profetas Menores


6

O Dia do Senhor é um dos principais temas nos livros proféticos, sendo recorrente
nos Profetas Menores. Há 19 menções explícitas ao Dia do Senhor no Antigo
Testamento, sendo que cinco se encontram no livro do profeta Joel. Segundo ele,
o Dia do Senhor é seguido pelo arrependimento do povo (2.12-17) e traz
livramento e bênçãos por parte de Deus (2.18-27) ao apontar para um futuro
glorioso de reconciliação, em que haverá renovação espiritual (2.28-32),
julgamento de outras nações (3.1-17) e um período de paz sobre o povo de Deus
(3.18-21).

Como outros profetas apresentam o Dia do Senhor

Profeta Significado

Amós Dia de grande escuridão para o mundo e Israel.

Obadias Um tempo de julgamento.

Sofonias Dia de grande ira do Senhor.

Zacarias Dia de intensa defesa de Jerusalém pelo Senhor, quando todas as nações estarão
reunidas contra ela.

Malaquias Dia em que o Senhor destruirá os cruéis. Será precedido pelo mistério de Elias.

Resumo e princípios do livro de Joel

Referências Nos tempos de Joel Verdade central Princípios

Jl 1.1 —2.11 Deus enviou uma Julgamento do Preste atenção: Deus


grande e terrível pecado da nação pode usar catástrofes
praga de gafanhotos, corrompida. e calamidades como
que devastou toda a avisos divinos de seu
terra. juízo.

Jl 2.12-27 Deus estava farto de Deus convida ao Fuja da religiosidade:


avivamentos arrependimento arrependa-se
espirituais. Era hora sincero e profundamente,
de seu povo se compromisso total. busque ao Senhor de
quebrantar e todo coração e
demonstrar dedique-se
arrependimento intensamente a levar
profundo e um relacionamento
duradouro. íntimo com Deus.
7

Jl 2.18—3.21 Deus tinha um plano Deus preservará e Comprometa-se com


maravilhoso de abençoará os que se o Senhor e creia nas
restauração para seu comprometem com promessas Dele.
povo. Ele.

1.3. O PROFETA DA JUSTIÇA SOCIAL: AMÓS

Amós era natural de Tecoa, aldeia ao sul de Jerusalém e exerceu o seu ministério
durante os reinados de Uzias, rei de Judá, e de Jeroboão II, filho de Joás, rei de
Israel (1.1; 7.10). Foi, de acordo com a tradição judaico-cristã, contemporâneo de
Oseias, Jonas, Isaías e Miqueias, no período assírio. Apesar de ser apenas um
camponês de Judá, “boieiro e cultivador de figos silvestres” (7.14) e de não fazer
parte da escola dos profetas, foi enviado por Deus a profetizar em Betel, centro
religioso do Reino do Norte (4.4) e enfrentou forte oposição em seu ministério.

Todo o sistema político, religioso, social e jurídico do Reino de Israel estava


contaminado. Foi esse o quadro que Amós encontrou nas dez tribos do Norte. O
profeta tornou pública a indignação de Yahweh contra os abusos dos ricos, que
esmagavam os pobres. Ele se levantou contra as injustiças sociais e contra toda
a sorte de desonestidade que pervertia o direito das viúvas, dos órfãos e dos
necessitados (2.6-8; 5.10-12; 8.4-6). Na lista de iniquidade, estavam incluídos ainda
o luxo extravagante, a prostituição e a idolatria (2.7; 5.12; 6.1-3).

O livro se divide em duas partes principais. A primeira consiste nos oráculos que
vieram pela palavra (1-6) e a segunda, nas visões (7-9). O discurso de Amós é um
ataque direto às instituições de Israel, confrontando os males que assolavam os
fundamentos sociais, morais e espirituais da nação. O assunto do livro é a justiça
de Deus. O discurso fundamenta-se em denúncias e ameaças de castigo,
terminando com a restauração futura de Israel (9.11-15).

Mensagem

A indiferença complacente de Israel para com as exigências morais da aliança


mosaica torna sua religião abominável e faz inevitável seu julgamento pelo
Deus que inspeciona os pecados das nações, mas soberanamente promete
restaurar para Seu povo as bênçãos da aliança davídica (PINTO, 2006).

• O julgamento das nações


Em Amós, o julgamento divino é dirigido não apenas contra Israel e Judá, mas
também contra seis outros países. Cada uma dessas nações comete atrocidades
8

que exigem que o Deus justo as julgue. A lista a seguir mostra os problemas
listados no texto.

1. A Síria demonstrou crueldade e violência excessivas em tempos de guerra


(1.3-6). Trataram as pessoas como se estas fossem objetos.

2. Gaza capturou cidades e vendeu seus moradores como escravos (1.6-8).


Muito provavelmente essas cidades não eram protegidas. Esse gesto foi
cheio de maldade e também de covardia.

3. Tiro vendeu aliados como escravos (1.9,10). Mentiras e ganho pessoal


determinavam sua política externa.

4. Edom manifestou contra outros uma ira que não tem fim. Essa ira não
demonstra nenhuma compaixão (1.11,12). Despedaça suas vítimas como se
fosse algum tipo de animal selvagem.

5. Amom cometeu atrocidades de guerra como rasgar o ventre de mulheres


grávidas (1.13-15). As mulheres e seus filhos ainda não nascidos dificilmente
representariam uma ameaça para o exército amonita.

6. Moabe profanou sepulturas (2.1-3). Seu desejo de vingança não acaba nem
mesmo quando o inimigo morre.

A capacidade que Deus tem de julgar essas terras demonstra sua soberania sobre
toda a terra. Deus sabe e vê o que fazem, o que revela a onipresença e a
onisciência do Senhor. Yahweh considera esses países responsáveis por suas
ações.

O julgamento de Israel

Amós fornece uma clara definição de quebra da aliança. É cometer adultério,


praticar atos violentos, mentir, oprimir os outros e perverter a justiça. No centro
da quebra da aliança acha-se a idolatria. Quando Israel se desvia de Yahweh,
necessariamente quebra os padrões estabelecidos pelo Senhor.

Assim, Amós também proporciona um quadro claro do castigo ameaçado em


Levítico 26 e Deuteronômio 27 e 28. Deus continua a prometer castigo para a
quebra da aliança, e não pode haver dúvida alguma de que Deus cumprirá essa
9

promessa. A boa notícia é que depois dessa devastação haverá renovação. O


Deus que ruge (1.2) será, no final, também o Deus que cura.

O livro termina com uma mensagem positiva e de esperança. “Dias virão”, que
certamente se refere ao dia depois do dia do Senhor, Deus restaurará a dinastia
de Davi e a nação (9.11,12). Israel possuirá a Terra Prometida, e a fertilidade da
terra ultrapassará em muito a que estavam vendo (9.13-15). Então o povo de Deus
habitará para sempre na terra (9.15).
10

2. OBADIAS – JONAS - MIQUÉIAS

2.1. O JULGAMENTO DA ARROGÂNCIA: OBADIAS

Obadias profetizou a punição de Edom por sua arrogância conta o Senhor e pelas
maldades praticadas contra Israel. Além disso, o livro é uma afirmação da aliança
de Deus com Jacó e seus descendentes diante da perturbação e do sofrimento
que Edom causou ao povo de Deus.

Os edomitas eram descendentes de Esaú. Por causa do guisado que Jacó usou
para comprar de Esaú a sua primogenitura, o nome da tribo passou a ser “Edom”
que, em hebraico, significa “vermelho” (Gn 25.30). Eles povoaram o monte Seir
(Gn 33.16; 36.8,9,21) e, rapidamente, transformaram-se em uma poderosa nação
(Gn 36.1-43; Êx 15.15; Nm 20.14). Seu rei negou passagem a Israel por seu território,
quando os filhos de Jacó saíram do Egito e peregrinavam no deserto a caminho
da Terra Prometida. Mesmo assim, Deus ordenou aos israelitas que tratassem os
edomitas como a irmãos (Dt 23.7). Contudo, o ódio de Edom contra Israel cresceu
e atravessou séculos.

O livro de Obadias é dividido em quatro partes, cada qual relacionada a um


aspecto da ruína prometida a Edom.

Na primeira parte, o profeta descreve tal ruína como certa e completa. Nações
serão reunidas por Deus para a batalha e os inacessíveis palácios de Edom serão
pilhados, enquanto seus motivos de orgulho, seus valentes guerreiros e sábios
veneráveis, serão destruídos. Mesmo que outras nações sejam poupadas da total
destruição, Edom será saqueada pelas próprias nações em quem ela confiava
como aliadas.

O orgulho leva à ruína. Por viverem nas cavernas montanhosas de Seir (v.3), os
edomitas confiavam na segurança que lhes proporcionava a topografia de seu
território — uma fortaleza naturalmente inconquistável. Edom não sabia que
aquilo que é inacessível ao homem é acessível a Deus (v.4). A arrogância humana
é insuportável, mas a soberba espiritual é repugnante; os que assim agem estão
destinados ao fracasso (Pv 16.18; 1Pe 5.5).

A segunda divisão do livro descreve as causas do castigo de Edom.


11

• A violência injustificada contra o indefeso Judá traria a eliminação nacional


(v. 10).

• O desprezo e falta de compaixão de Edom contra Israel em seu dia de


sofrimento são a segunda acusação (v. 11,12). O tema de injustificada
violência contra os refugiados indefesos reaparece nos versículos 13 e 14.

A seguir, Obadias utiliza o constante tema do Dia do Senhor e o relaciona ao


castigo retributivo de Deus contra Edom e todas as nações que se opõem a Israel.
A taça de prazer de Edom, bebida às custas do sofrimento de Jerusalém, será
substituída pela taça da punição de Edom no tempo em que Jerusalém for
abençoada. Nisso, Edom serve como modelo para todos os inimigos de Yahweh
(v. 15,16).

A mensagem final relaciona a ruína de Edom com a restauração final de Israel (v.
17-21). Os ingredientes básicos de tais passagens são:

• A santidade de Sião (v. 17).

• A possessão da terra por Israel (v. 17,19, 20).

• A função judicial de Israel (v. 18).

• A reunião dos exilados israelitas (v. 20).

• O estabelecimento de uma teocracia direta centralizada em Sião (v. 21).

Sem sombra de dúvida, Obadias ressalta ainda mais a ênfase que os profetas dão
aos pecados dos gentios e ao direito que Yahweh tem de julgar a terra. As
atividades de Edom demonstram que somente a intervenção direta do Senhor
poderá salvar os gentios. Não há nenhum arrependimento à vista. Por isso, o dia
de Yahweh deverá vir como um agente purificador para todas as pessoas e não
apenas para Israel. É justamente essa intervenção direta que fornece o cenário de
Jonas.

2.2. A MISERICÓRDIA DIVINA: JONAS

Jonas ajuda a afastar quaisquer temores que talvez tenham surgido devido a
certas afirmações em Joel, Amós e Obadias. São temores de que o Senhor não se
importaria com nações não judias. Jonas prova que, na verdade, Deus ama até os
12

assírios e se importa com esses que são os mais cruéis e poderosos dentre os
antigos inimigos de Israel.

Mensagem

A soberania de Yahweh em conceder salvação, apesar da atitude de Seu


servo, deve motivar obediência humilde e interesse amoroso pela
humanidade (PINTO, 2006).

Jonas se desenrola de modo bem simples dentro da estrutura narrativa.

• Primeiro, 1.1-16 relata o chamado divino a Jonas e a fuga do profeta em face


daquele chamado.

• Segundo, 1.17—2.10 abrange o tempo que Jonas passou na baleia e sua


decisão de aceitar a missão de pregação em Nínive. Agora o Senhor é
apresentado não apenas como quem escolhe o profeta, mas também como
o Deus que preserva a vida de Jonas por intermédio do grande peixe.

• Terceiro, 3.1-10 escreve o ministério de Jonas aos assírios. O sucesso do


profeta apesar do seu esforço tão pequeno realça a ação direta de Deus na
cura do povo.

• Quarto, 4.1-11 revela a ira de Jonas com a misericórdia de Yahweh. Uma vez
mais o que se quer ensinar é o amor do Senhor por todas as pessoas. Em
contraste, o profeta se queixa da bondade de Deus, apesar do fato de que
ele mesmo havia se beneficiado do livramento divino. É perceptível a ironia
existente em todo o relato.

• O Perdão para quem se arrepende

A mensagem de Jonas ao povo de Nínive é que os moradores da cidade serão


destruídos em quarenta dias (3.1-4). Reagindo à fala de Jonas, seguem a
sequência perfeita rumo ao arrependimento.

• Acreditam na palavra de Deus (3.5).

• Humilham-se (3.5-8).

• Mudam seus caminhos perversos (3.8).


13

• Colocam-se debaixo da misericórdia de Deus (3.9).

É difícil imaginar uma reação mais total ou inesperada diante de uma mensagem
profética. Até este momento no cânon os profetas ainda não experimentaram
uma semelhante reação positiva à sua pregação. O povo de Nínive tem esperança
de que o Senhor seja misericordioso, e suas esperanças se concretizam. O senhor
se compadece de todo aquele que se arrepende.

2.3. A IMPORTÂNCIA DA OBEDIÊNCIA: MIQUEIAS

Mas, quanto a mim, graças ao poder do Espírito do Senhor, estou cheio de


força e de justiça, para declarar a Jacó a sua transgressão, e a Israel o seu
pecado. Miquéias 3.8

O título do livro indica que Miquéias profetizou durante os reinos de Jotão, Acaz
e Ezequias. Isto abrange um período de uns quarenta anos, aproximadamente
entre 740 e 700 a.C (1.1). Como alguns outros profetas, Miquéias é praticamente
desconhecido, exceto por pequenos detalhes dados pela própria profecia. Seu
nome hebraico ‫ מִיכָה‬mîḵî é uma versão abreviada de ‫ מִי ָכי ְהּו‬mîḵāyehû), “Quem é
como Yahweh?”

Sua cidade natal era Moresete, uns quarenta quilômetros a sudoeste de


Jerusalém, nas colinas próximas a Laquis e Gate. Como o nome de seu pai não é
mencionado, parece razoável concluir que ele era um homem de origem humilde.
Alguns autores sugerem que Miquéias não era profeta por “profissão”, e que
talvez fosse um camponês ou pequeno proprietário; isto de certo modo pode ser
o motivo de sua preocupação pelos pobres explorados de Israel, sujeitos a grande
miséria por uma nobreza sem caráter (PINTO, 2006).

Apesar de sua origem humilde, Miquéias certamente influenciou sua sociedade,


como Jeremias 26.17-19 deixa claro, creditando-o com pelo menos parte da
responsabilidade pelo reavivamento que aconteceu no reinado de Ezequias.

O livro contém uma coleção de breves oráculos agrupados em sete capítulos


divididos em três partes principais (1,2; 3-5; 6,7). O assunto do livro é a ira divina
em relação aos pecados de Samaria e de Jerusalém. Miqueias dirigiu seu discurso
contra a idolatria, censurou com insistência a opressão aos pobres e denunciou o
colapso da justiça nacional (1.5; 2.1,2; 3.9-11). Além disso, anunciou, de antemão, o
14

local do nascimento do Messias, em Belém (5.2 cp. Mt 2.1,4-6). O profeta chegou


a ser citado pelo Senhor Jesus (7.6 cp. Mt 10.35,36).

Mensagem

O juízo divino contra a opressão e a idolatria nutridas por falsos líderes será
contrabalançado pela manifestação do Messias como Líder e Pastor de Israel,
bem como Juiz e Benfeitor das nações (PINTO, 2006).

A primeira mensagem de Miqueias (1.2–2.13) apresenta o juízo vindouro de Deus


sobre Israel e Judá. A causa central para a ruína da Samaria foi sua idolatria (1. 7),
um pecado que transbordou para Judá (1.9), e o qual estenderia para lá a
destruição a ser provocada contra Samaria.

A segunda parte da primeira mensagem (2.1-5) dá uma lista dos muitos motivos
pelos quais o reino de Judá seria punido. Havia claras violações das estipulações
da aliança mosaica. Os primeiros cinco versículos denunciam ganância nacional,
um espírito de perverso materialismo que levou os poucos que possuíam terras a
usar de astúcia e dolo para acrescentar ainda mais à riqueza mal adquirida. A
punição para isso seria a divisão de seu patrimônio entre invasores estrangeiros
zombadores.

Miqueias, denuncia a nação por sua má vontade em ouvir os verdadeiros profetas


e sua avidez em seguir aqueles cuja motivação eram as bebidas inebriantes, em
vez do Espírito divino (2.6-13). Mesmo esse duro retrato de uma nação que se
engana e destrói a si mesma, porém, contém um raio de esperança no qual o
Senhor promete uma restauração completa tanto do povo quanto da terra sob a
liderança do ‫( הַפ ֵֹּרץ‬han̄pōrēṣ) “aquele que abre o caminho” (v.13), uma figura para
o Messias que é novamente usada pelo profeta no capítulo 5.

A segunda mensagem (3.1–5.15) também tece os fios de juízo e livramento. O


capítulo 3 contém uma denúncia contra a ganância nacional, na qual cidadãos
que subiam socialmente são igualados a carniceiros em sua cruel e sistemática
exploração dos pobres.

Especialmente destacados por seus oportunismo e uso mercenário de seu cargo


são os profetas, que tiravam vantagem do seu papel para lucrar
fraudulentamente, ajustando suas mensagens de bênção ou maldição à
15

quantidade de dinheiro a ser derivada delas (3.5-7). A nota pessoal em Miquéias


3.8 sugere que ele também sofria oposição da organização religiosa de Israel.

Aos líderes hipócritas que pervertiam a justiça na esperança de que o templo faria
Sião invencível (3.9-11), Miqueias prometeu a total destruição tanto da cidade
quanto do templo (3.12), assim como Jeremias faria um século depois.

O triste retrato de uma Sião devastada dá espaço a uma visão do reino


Messiânico, em que Sião é o centro da vida política e religiosa para uma
humanidade renovada, que não conhece a ameaça de guerra e que todos os
homens podem pacificamente desfrutar de sua terra e de seus frutos (4.1-4). Esse
primeiro parágrafo termina com uma aplicação de tal esperança para os tempos
do próprio Miqueias: Judá andará (ou precisará andar) com o Senhor seu Deus.

O contraste entre condenação e livramento está presente nas referências ao juiz


(‫ׁשפֵט‬, šōn̄ēṭ), vindo de Jerusalém (5.1), e ao Governante (‫מֹוׁשֵל‬, môšēl), que sairá de
Belém (5.2) e reunirá Israel depois de seu longo período de dispersão nacional.

O reinado desse Governante será marcado pelo livramento definitivo de Israel de


seu inimigo (aqui representado pela Assíria, 5.4-6), pelo papel de bênção
atribuído a Israel entre as nações (5.7-9) e pela eliminação de todas as outras
fontes de confiança e segurança para Israel, a saber, seus exércitos, suas alianças
e seus ídolos (5.10-15).

A terceira mensagem de Miquéias (6.1) começa com o fio da condenação (e uma


exortação comum a todas as três seções de condenação - a ordem para ouvir (1.2
e 3.1)). A disputa judicial de Deus com Seu povo é testemunhada pelos elementos
da criação: ao lembrar Israel de Sua proteção e bondade no passado, o Senhor
acentua a infidelidade da nação (6.1-15).

O profeta responde pela nação, perguntando se a religião ritualista exagerada


bastaria para expiar seus pecados diante de Deus, para o qual a resposta óbvia é:
“NÃO”. Deus exige nada menos do que conversão nacional a uma vida de
conformidade interna a Sua santidade, justiça e amor (e fé expressa por meio de
sacrifício [6.6-8]).

A resposta da nação pelos lábios do profeta é de profunda contrição e confissão.


Ele lamenta a falta de piedade e a corrupção generalizada (7.1-3) e sente a falta
de solidariedade familiar e social (7.4-6). Contudo, em meio a total escuridão, uma
16

luz de esperança brilha, a própria pessoa de Yahweh, o Deus de Israel, que


disciplinará, mas também restaurará, a nação, mesmo em seu estado mais
miserável (7.7-10).

O último fio, que amarra toda a profecia, é novamente o fio de livramento, que
aqui descreve como Israel será reunido dos seus lugares de exílio (7.11-13).
Arrebatado pela visão, o profeta ora pela intervenção pastoral de Deus (7.14) e
prevê o papel glorioso do Israel perdoado e restaurado sob o governo de seu
Deus perdoador e gracioso, que fará valer Suas promessas verdadeiras aos
patriarcas (7.15-20).
17

3. NAUM – HABACUQUE - SOFONIAS

3.1. A MENSAGEM DE CONSOLO: NAUM

A informação existente sobre Naum, o profeta, é muito limitada. Seu nome


hebraico ‫( נָחּום‬nāḥûm) significa “consolado” e bem pode ser que haja uma ligação
proposital entre esse nome e o consolo derivado de sua mensagem de castigo
completo contra a feroz inimiga de Israel, Nínive.

Quando Naum anunciou a sua profecia contra Nínive, já fazia um século e meio
que Deus havia dispensado a sua misericórdia à grande, poderosa e perversa
cidade. No tempo de Jonas, o Senhor se compadeceu dos ninivitas, poupando-os
de iminente destruição. Infelizmente, o tempo passou e eles vieram a se esquecer
do perdão divino, voltando a pecar contra Deus. Por isso, o profeta Naum
proclama a ruína inevitável de Nínive. Agora, o juízo divino é irreversível!

Mensagem

A violenta derrota de Nínive e a restauração misericordiosa de Judá revelam


a soberania de Deus na História e Sua retidão em julgar, razões para a
esperança daqueles que nEle confiam (PINTO, 2006).

O livro é apresentado como um ‫( מַ ָּׂשא‬maśśāʾ), oráculo ou fardo, uma mensagem


de maldição. Como tal, ela é parecida com à pregação de Jonas, exceto que um
século antes a possibilidade de arrependimento ainda estava aberta. A pouca
duração do arrependimento de Nínive tornara seu julgamento inevitável.

O capítulo 1 apresenta um dos quadros mais tocantes de Deus no Antigo


Testamento. Seu caráter zeloso (‫[ קַּנֹוא‬qannôʾ]) e Sua ira (‫[ נֹּקֵם‬nōqēm] são

perfeitamente associados com a Sua longanimidade (‫[ א ֶֶרְך ַא ַפי ִם‬ʾereḵ ʾan̄payim])
e seu poder, de modo a demonstrar sua natureza complementar, em vez de
contraditória (1.2,3).

Yahweh é retratado como o Grande Vingador, capaz de alterar toda a terra em


favor daqueles com quem Ele estabelece Seu pacto (1.4-8). Com eles, Ele é terno
e bom, envolvendo-se pessoalmente (‫י ָדַ ע‬, yāḏaʿ) com suas vidas (1.7).
18

O texto diz que a Assíria receberá a ira irreversível de Deus, e seu pesado jugo de
impostos e opressão militar contra Judá será removido de uma vez por todas (1.9-
14). Portanto, a profecia de Naum é de boas novas para Judá (1.15) e faz eco à
promessa de libertação descrita em Isaías (Is 40.9; 52.7). Judá seria liberta e
depois deveria renovar seu compromisso com Yahweh.

O capítulo 2 contém a descrição do ataque contra Nínive. Os exércitos


combinados de Ciáxares, da Média, e Nabopolassar, da Babilônia, cercaram Nínive
em 615 a.C. e mantiveram o cerco por 3 anos. Naum oferece uma rápida descrição
dos horrores, selvageria, saque indiscriminado e destruição generalizada dos
últimos dias da grande cidade.

O capítulo 3 revela algumas das causas para a destruição final de Nínive. Violência
indiscriminada (v. 1) e devassidão espiritual e política (v. 4) haviam marcado a
história da Assíria desde o início (Gn 10.8-12). A mais absoluta vergonha da
destruição é descrita em termos de nudez e desdém público (3.5-7).

Em seguida, Naum ataca a arrogância autossuficiente de Nínive. Seus muros


magníficos não impediriam a destruição por vir. Quando o Senhor declara: ‫ִהנְנִי‬

‫( ֵא ַלי ְִך‬hinnî ʾēlayiḵ) “Eis que estou contra ti” (2.13; 3.5), não há escape possível.

As metáforas multiplicam-se em um esforço para comunicar a absoluta


inabilidade de Nínive escapar.

Bebedeira e fragilidade feminina comunicam a inabilidade das tropas em manejar


bem suas armas (3.11,13).

Uma figueira com frutos maduros anuncia que a hora do julgamento divino se
aproxima (3.12).

As preparações frenéticas para repelir o cerco são descritas e declaradas inúteis,


pois o coração de seu povo e de seus líderes estava lento e desorientado, (3.18)
e incapaz de enfrentar a situação. O elogio fúnebre e vergonhoso de Nínive é de
que sua queda seria saudada com alegria por todas as nações.

3.2. FÉ EM MOMENTOS DE CRISE: HABACUQUE


19

Segundo Habacuque 1.1, o escritor do livro foi o próprio Habacuque. Pouco se


sabe sobre esse profeta, e nada há de relevante acerca de sua identidade no livro.
Sabe-se que ele foi contemporâneo de Jeremias, Ezequiel, Daniel e Sofonias.

Dois detalhes do livro ajudam a situá-lo historicamente. Em 2.4, a menção aos


caldeus sugere uma data próxima do fim do século 7 a.C., e o lamento em 1.2-4 é
compreendido pelos estudiosos como uma referência à decadência moral do
povo pouco tempo depois da morte do rei Josias, em 609 a.C., quando suas
reformas foram revestidas no governo do rei Jeoaquim.

O propósito do livro espelha o significado de seu nome, “aquele que abraça”. O


profeta busca transmitir conforto aos que estavam indignados diante da
corrupção do povo de Deus. Em sua voz, Habacuque assume os questionamentos
dos israelitas piedosos e compartilha respostas capazes de gerar convicção e fé
no coração dos aflitos, ao mesmo tempo em que induz os ímpios ao
arrependimento.

A mensagem

A fé que se baseia na revelação passada do caráter e poder de Deus permite


que o justo se regozije no futuro exercício da justiça divina apesar dos
aparentes paradoxos do presente (PINTO, 2006).

A profecia de Habacuque se originou na profunda preocupação do profeta pela


manifestação da justiça divina em sua sociedade. Em sua época havia exploração
sem precedentes dos pobres pelos ricos; foi um tempo de religião e líderes
religiosos corruptos, de reis fracos e imaturos que preferiam buscar a glória
passageira em vez do bem-estar de seu povo (Jr 22.13-17).

O clamor de Habacuque.

O que ocorria em Judá ia de encontro ao conhecimento que Habacuque possuía


a respeito do Deus de Israel. Mas, como é possível Aquele que é justo e santo
tolerar tamanha maldade? O profeta expressa sua perplexidade na forma de
lamentos: “Até quando, SENHOR [...]?” (1.2; Sl 13.1,2); “Porque [...]?” (1.3; Sl 22.1).
Essas perguntas indicam que, há tempos, Habacuque orava a Deus em busca de
solução.

A descrição do pecado.
20

Assim, o profeta resume o quadro desolador do seu povo: Por que me fazes ver
a injustiça, e contemplar a maldade? A destruição e a violência estão diante
de mim; há luta e conflito por todo lado (1.3).

• injustiça e maldade;

• destruição e violência;

• luta e conflito (1.3).

A Bíblia ARA (Almeida Revista e Atualizada) emprega o termo “opressão”. A


Bíblia TB (Tradução Brasileira) usa “perversidade” no lugar de “maldade”. A
estrutura poética nessa descrição revela a falência da justiça e o abuso opressor
das autoridades em relação aos pobres.

O colapso da justiça nacional.

A frouxidão da lei era consequência da corrupção generalizada. Na esfera


judiciária, a sentença não era pronunciada, ou quando dado o veredicto, este
sempre beneficiava os poderosos (1.4). A sociedade sequer se lembrava da lei.
Esta era o poder coercitivo para manter a ordem pública, garantir a segurança e
os direitos do cidadão (Dt 4.8; 17.18,19; 33.4; Js 1.8). Mas, a influência das
autoridades piedosas não foi suficiente para mudar o estado das coisas. Somente
o Senhor onipotente de Israel é quem pode fazer plena justiça.

A espera de Habacuque.

Sabedor de que Deus lhe responderá, o profeta prepara-se para ser arguido por
Deus. Ele se posiciona como uma sentinela (2.1) — figura comumente empregada
para descrever os profetas bíblicos. Sua função era ficar alerta para escutar a
palavra de Deus e transmiti-la ao povo (Is 21.8; Jr 6.17; Ez 3.17).

A visão.

A resposta divina veio ao profeta através de uma visão transmitida com agilidade
e nitidez, dispensando a necessidade de que alguém lesse e a interpretasse (2.2),
pois se tratava de uma mensagem que, apesar de futurística, era claríssima: A
Babilônia desaparecerá da terra para sempre! No entanto, Judá, apesar do
castigo, sobreviverá (Jr 30.11). O desafio era crer na mensagem! Ainda que seu
cumprimento tardasse, Deus é fiel para cumprir a sua palavra (2.3; Jr 1.12).
21

Oração de Habacuque

Habacuque conclui com uma oração (ou salmo) de confiança. O fato de terminar
com louvor e confiança faz da profecia uma espécie de mini saltério moldado por
um jeito e ênfase típicos dos profetas. O julgamento do mal e a confiança em
Deus em épocas de dificuldade continuam sendo os temas centrais, mas agora a
ênfase é a misericórdia do Senhor em meio a disciplina. (3.1-19).

A oração expressa o anseio de que Deus redima os fiéis mediante a remoção dos
perversos. Esse ato significaria misericórdia para os oprimidos. É essa
misericórdia que o profeta anseia ver, e Habacuque sabe que só Deus é capaz de
operar essa obra. O profeta concentra sua atenção exclusivamente no que Deus
pode fazer. Habacuque pede a Deus que se revele, tal como fizera durante o
período do êxodo, quando Yahweh livrou Israel ao esmagar seus opressores (3.3-
15). Isso seria uma renovação da obra divina e revelatória; isso seria misericórdia
para os justos, que vivem pela fé. Por esse tipo de obra o profeta se satisfaz em
esperar (3.16). Pela fé ele aguardará, embora tudo pareça deprimente ao redor
dele (3.17-19). A palavra de Deus é suficiente para alimentar essa fé.

3.3. O PROFETA DO DIA DO SENHOR: SOFONIAS

Sofonias ministrou durante um período de recuperação política e social para


Judá. O rei Josias havia arrancado Judá da fossa religiosa para onde Manassés e
Amom haviam empurrado o povo de Deus. Reforma era a palavra oficial desde
628 a.C., com impulso significativo em 622 a.C., quando o Livro da Lei foi
encontrado no templo. No entanto, apesar das realizações militares e religiosas
de Josias, apenas um pequeno remanescente seguiu com plena dedicação ao rei
em seu retorno a uma fé centrada em Yahweh. Por isso, Sofonias (e Jeremias
depois dele) denunciou o pecado e anunciou a iminência e severidade do
julgamento por vir.

Sofonias tem mais referências ao Dia do Senhor do que qualquer outro profeta.
Seu tema predominante é julgamento, manifesto tanto na versão histórica
iminente do Dia do Senhor quanto em sua plenitude escatológica. Sua percepção
da proximidade do ‫( יֹום יהוה‬yôm yhwh, “Dia do Senhor”) é um bom resumo do
livro. “Calem-se diante do Soberano Senhor, pois o dia do Senhor está próximo.
O Senhor preparou um sacrifício; consagrou os seus convidados” (1.7). Esta ênfase
22

no julgamento é complementada pelas promessas de proteção divina e


preservação do verdadeiro remanescente.

Mensagem

O iminente Dia do Senhor será tempo de terror para a idólatra Judá e as


arrogantes nações circunvizinhas, mas tempo de ternura para o
remanescente de Israel que confia em Deus e partilhará as bênçãos
prometidas (PINTO,2006).

O profeta, descreve como o julgamento cairá sobre Judá por sua idolatria e
complacência espiritual (1.4–2.3). Juízo alcançará todas as camadas da sociedade
contaminadas pelo pecado (1.4-13). Apesar dos esforços reais, o culto a baal
sobreviveu e encontrou refúgio na própria Jerusalém (1.4). Um misto de idolatria
e astrologia (também denunciado em Jeremias [19.13]) revela influência da
Mesopotâmia, enquanto a influência amonita é denunciada na adoração de
Milcom, com seus bárbaros sacrifícios humanos. O sincretismo religioso se tornou
normal em Judá.

As conexões de Sofonias com a família real não o impediram de denunciar os


príncipes de Judá por seu amor à roupa importada, o que indicava aceitação
interior dos valores morais e espirituais pagãos (1.8).

Suas acusações se estendem por todos os segmentos da sociedade, o rico e o


pobre, que acreditavam ser Yahweh indiferente quanto ao certo ou errado (1.12).
Esta parte também inclui uma promessa específica de exílio e cativeiro (1.13).

Após descrever as razões do castigo, Sofonias anuncia a natureza abrangente da


intervenção divina (1.14-18). Será tempo de guerra sem precedentes (1.14,16),
destruição (1.15), distúrbios atmosféricos (1.15) e perda de vidas humanas (1.17).
Todas as coisas preciosas e importantes para os homens serão inúteis para livrá-
los da ira do Deus que abrangerá toda a terra. Quanto a isso, o juízo iminente de
Judá é apenas uma amostra do julgamento escatológico maior que ainda há de
vir.

O parágrafo final desse texto é uma exortação ao remanescente fiel para separá-
lo da nação (2.1-3). Aqueles que haviam humildemente buscado Sua justiça,
receberiam uma promessa especial de preservação do violento ataque
provocado pela ira divina (2.3).
23

O segundo grande texto desta divisão (2.4–3.8) apresenta os juízos de Yahweh


contra as nações arrogantes em torno de Judá.

• A Filístia será reduzida a pastagens e o remanescente de Israel herdará sua


terra (2.4-7).

• Amom e Moabe em sua arrogância serão reduzidas a um deserto árido, e


Israel herdará suas terras (2.8-11).

• A distante Etiópia será alcançada pela espada do julgamento divino (2.12).

• A Assíria será banida da História apesar de seu presente poder e


impunidade (2.13-15).

Depois do juízo das nações, Sofonias volta sua atenção uma vez mais para Judá.
A mesma técnica empregada por Amós é encontrada em Sofonias. Jerusalém é
acusada de rebelião e deslealdade pactual (3.1,2), um pecado que permeia todas
as camadas da sociedade. Autoridades civis se aproveitam do povo que deveriam
proteger (3.3), profetas e sacerdotes pervertem os padrões espirituais e morais
que eles deveriam promover entre o povo.

Os pecados de Jerusalém são ainda mais hediondos à luz das demonstrações


constantes da justiça e fidelidade de Yahweh. Seus justos decretos são
anunciados pelos profetas (3.5); Seu amor fiel se manifestou em Seus muitos
livramentos das nações inimigas (3.6), e, no entanto, Judá permanece irredutível
em sua obstinada desobediência (‫ׁשחִיתּו‬
ְ ‫ׁשכִימּו ִה‬
ְ ‫ ִה‬, hiškîmû hišḥîṯû, “Mas eles ainda
estavam ávidos por fazer todo tipo de maldade”, 3.7). Um espírito de ansiedade
para fazer o mal se apossou de Judá à medida que ela tomava o mesmo rumo de
seus vizinhos.

A terceira divisão do livro diz respeito ao trato amoroso de Deus com a


humanidade após Seu julgamento. Gentios recebem a promessa de renovação
espiritual e a possibilidade de servir ao Senhor em harmonia (3.9,10).

Israel será o recipiente das bênçãos pactuais: a nação será purificada e reunida
(3.11), à medida que o remanescente buscar ao Senhor e nEle achar refúgio do
pecado e de suas temíveis consequências (3.12,13). Jerusalém se regozijará no
perdão divino (3.14,15) e na presença do Senhor em seu meio (3.16,17). Finalmente,
24

de acordo com as promessas pactuais em Deuteronômio 26.18,19, Israel será


restaurada a um lugar de honra e reputação entre as nações (3.19,20).

Descrição do erro em Sofonias

A fim de apontar a gravidade da situação e alcançar seu público-alvo. Sofonias


investe na descrição dos erros, cometidos por Judá e por outras nações. Ao
descrever claramente esses erros, Sofonias não dá espaço para dúvidas acerca
da proximidade do Dia do Senhor nem sobre a razão pala qual o juízo do Deus
seria tão severo.

Referências Erro Descrição

1.2-6 Idolatria/ Sincretismo Adorar Baal/ministrar a


religioso/ ídolos/adorar o sol, a lua e as
estrelas. Jurar pelo Senhor e por
Maloque.

1.7-13 Adoção de costumes Se vestir igual aos pagãos/adorar ao


pagãos Senhor como os pagãos adoram
seus deuses.

1.7-13 Desonestidade e violência Lucrar pela desonestidade e


violência e usar esses lucros para
ofertar aos falsos deuses.

1.7-13 Incredulidade Não crer na justiça de Deus e ficar


indiferente ao Senhor.

2.8-15 Escárnio Zombar e insultar do povo de Deus/


se gabar de conquistar Israel.

3.1-7 Rebeldia Não aceita disciplina

3.1-7 Opressão Agir sem justiça com o povo.

3.1-7 Infidelidade Agir com falsidade e


deslealdade/enganar/profanar as
coisas sagradas/violar a lei de Deus.

3.1-7 Indiferença Ignorar a disciplina do Senhor/


desprezar as oportunidades de
Deus/ permanecer no pecado.
25

4. AGEU – ZACARIAS - MALAQUIAS

4.1. O PROFETA DA RECONTRUÇÃO: AGEU

De Joel até Ageu passaram-se mais de 300 anos. A hegemonia política e militar,
nessa fase da história mundial, estava com os persas, pois os assírios e babilônios
não existiam mais como impérios. Quanto ao pecado de Judá, este não era a
idolatria, pois o cativeiro erradicara de vez essa prática. O problema agora,
igualmente grave, era a indiferença, a mornidão e o comodismo espiritual dos
judeus em relação à obra de Deus.

Mensagem

A reconstrução do templo reflete o arrependimento pela indiferença para


com a glória de Deus e a fé na concessão definitiva das bênçãos prometidas
na aliança (PINTO,2006).

A mensagem foi primariamente dirigida aos dois líderes da nação restaurada,


Zorobabel, o governador, e Josué, o sumo sacerdote. Ambos eram diretamente
aparentados com os líderes pré-exílicos, Jeoiaquim (no âmbito político) e
Jeozadaque (no âmbito religioso) e, portanto, responsáveis pela condução da
vida em Judá na ocasião.

Os judeus foram repreendidos por suas prioridades distorcidas (1.3-6), por


perseguir desenfreadamente seu conforto material enquanto adiavam seu
compromisso religioso. Tal indiferença para com a casa de Deus, a qual deveria
ser o centro da vida nacional, e o desejo de possuir casas que não eram apenas
seguras, mas luxuosas, trouxeram à nação sofrimentos econômicos e sociais,
como a fome, pobreza e inflação.

A correção de Deus começa com autoavaliação cuidadosa, “Considerai os vossos


caminhos”, 1.5, 7). A nação teve de rever sua falta de compromisso com sua
principal prioridade e se ocupar em promover a glória de Yahweh na construção
do templo (1.7). A questão chave era a glória de quem a nação buscava.

Judá ainda estava sob os princípios de bênção e maldição da aliança mosaica (cf.
Lv 26 e Dt 28). Sua negligência produzira completo fracasso de seu sistema
econômico. Quanto mais eles retinham do Senhor devido a suas condições
precárias, mais perdiam em sua economia agrícola. Era uma situação de perda
26

inescapável que só poderia ser quebrada por uma renovação de compromisso


com o Senhor (1.9-11).

O texto 1.12-14 contém a reação do povo à primeira mensagem de Ageu. A


começar pelos líderes, a nação toda respondeu positivamente ao desafio do
profeta e ao encorajamento divino (1.13). Conclui-se que eles obedeceram à voz
do Senhor contida nas palavras de Ageu.

A causa dessa reação se acha em 1.14, “o Senhor suscitou o espírito [...] de todo
o resto do povo” ARA. Na verdade, este versículo apresenta um impressionante
contraste com 1.2, em que os judeus foram chamados de “este povo”. Quando
obedecessem ao Senhor, sob Sua capacitação, os ouvintes de Ageu se
posicionariam para receber o título de ‫ׁשא ִֵרית‬
ְ (šeʾēr’ṯ, “remanescente”), aquele
grupo de pessoas especialmente caras ao coração de Deus, frequentemente
mencionado nos profetas. A eles se aplicava a promessa, “Eu estou com vocês,
declara o Senhor” (1.13). O trabalho da reconstrução do templo foi retomado
(1.14,15)

• Uma glória maior: Ageu 2.1-23

E possível identificar as últimas mensagens de Ageu como parte do plano geral


de Deus de uma glória futura maior. A primeira mensagem é de que o novo
templo terá uma glória maior do que a de Salomão (2.9). Antevendo um desânimo
devido à diferença de beleza física, ou “glória”, entre a antiga construção e a nova
(2.1-3), Deus leva Ageu a encorajar o povo e seus líderes (2.4).

Coragem, Zorobabel", declara o Senhor. "Coragem, sumo sacerdote Josué,


filho de Jeozadaque. Coragem! Ao trabalho, ó povo da terra! ", declara o
Senhor. "Porque eu estou com vocês", declara o Senhor dos Exércitos.

Três promessas são feitas ao povo para ajudá-lo a crer em que seu pequeno
templo será mais glorioso que o anterior.

• Yahweh promete estar com Israel de modo parecido como esteve durante
o êxodo (2.4,5). Deus não se esqueceu da aliança sinaítica.

• O Espírito de Yahweh habitará entre eles, dessa forma eliminando qualquer


motivo de temor (2.5).
27

• O Deus que governa a terra encherá o templo com os tesouros das nações
(2.6-8). A presença permanente de Deus e o conhecimento universal de
Yahweh embelezarão esse templo.

Passagens anteriores servem de base para as promessas de 2.1-9.

• Êxodo 29.45,46 afirma que Yahweh tirou os israelitas do Egito a fim de


habitar no meio deles.

• Êxodo 33.12-17 relata a promessa divina de estar presente em Israel quando


a nação for conquistar Canaã.

• Isaías 63.7-14 declara que o Espírito Santo de Deus se entristeceu quando


Israel pecou no deserto, mas assim mesmo conduziu posteriormente o
povo à terra prometida.

A função do Espírito em cada um desses textos é guiar Israel, sustê-lo e dar-lhe


vitória, e o Espírito tem os mesmos objetivos em Ageu 2.1-9. O contexto de Isaías
63.7-14 torna-o bem aplicável a Ageu 2.1-9, visto que ambos os textos tratam
tanto da glória de Deus quanto da renovação da nação na terra prometida.

A segunda mensagem de Ageu (2.10-19) destaca a renovação decisiva do povo.


Antes do início da construção do templo, tudo que faziam era impuro (2.10-14).
Agora, no entanto, o Senhor os abençoou como o remanescente santo. Todas as
suas necessidades serão atendidas (2.15-19), o que reflete uma restauração da
bênção mencionada em Levítico 26.6-13 e Deuteronômio 28.1-14. Deus honrará o
arrependimento deles. Desde os dias de Josias (c. 640-609 a.C.) e de Ezequias
(c. 715-687 a.C.) Israel não dava ouvidos a um profeta e consequentemente não
desfrutava as bênçãos de Deus. Os israelitas recebem glória que há décadas não
se via.

Finalmente, a terceira mensagem de Ageu trata da glória da linhagem davídica.


Aqui o profeta afirma que Zorobabel, um descendente de Davi e líder de Israel na
época do próprio profeta, é alguém especial para o Senhor. Ele será como “um
anel de selar” cujo proprietário é o Senhor (2.20- 23). Essa promessa está prevista
para “aquele dia” no futuro (2.23). A linhagem davídica está sendo preservada
para glória futura. O próprio Zorobabel não é o futuro rei, mas sua existência
significa que um futuro filho de Davi terá a oportunidade de surgir. A linhagem de
28

Davi não desapareceu, o que significa que também não desapareceu a esperança
futura de Israel.

4.2. O PROFETA DO RENOVO: ZACARIAS

Embora atue à mesma época de Ageu, ministrando ao mesmo povo por muitas
das mesmas razões, a personalidade e o estilo de Zacarias são bem diferentes de
Ageu.

Zacarias é um visionário que emprega linguagem simbólica para comunicar suas


mensagens. Dessa maneira Zacarias se parece bastante com Ezequiel. Ambos os
profetas anteveem uma Jerusalém renovada, com um templo restaurado em seu
centro. Ambos acreditam que o rei davídico será fundamental nessa restauração,
ambos enfatizam o Espírito de Deus e ambos se concentram no futuro.

Zacarias concorda com a preocupação de Ageu quanto à construção do templo,


mas por outro lado oferece esperança de uma purificação generalizada para toda
a Santa Cidade de Jerusalém, na condição de capital do reino de Deus na terra.
Jerusalém é, em última instância, o interesse básico de Zacarias.

Os oráculos de Zacarias são apocalípticos. Eles foram entregues por visão


(capítulos 1-6) e palavra (7-14). O assunto do livro é o Messias de Israel. Há
diversas referências diretas e indiretas a Zacarias no Novo Testamento (Zc 9.9 cf.
Mt 21.5; Zc 11.13 cf. Mt 27.9,10; Zc 12.10; Ap 1.7). A vinda do Messias e os demais
eventos escatológicos predominam os capítulos 9-14.

Mensagem

O estabelecimento futuro do reino do Messias serve de motivação para a


reconstrução do Templo e submissão às exigências da aliança, que provam a
confiança dos judeus no Deus que controla o presente e o futuro de Israel e
das nações (PINTO,2006).

Zacarias pode ser dividido em cinco partes.

1. O profeta começa o livro afirmando a justiça das maneiras como no


passado o Senhor tratou Israel (1.1-6).

2. Uma série de oito visões descreve Deus como “zeloso [ou ciumento] com
Jerusalém e Sião” (1.7—6.15; v. 1.14). Cada visão estende o domínio de
29

Yahweh sobre a criação. Em todos os momentos Jerusalém e o templo são


os pontos centrais da atividade de Deus.

3. Em 7 e 8 o texto anuncia o Deus que perdoa e abençoa.

4. Como anúncio de uma restauração final em 9—11, o texto apresenta Deus


como o pastor e protetor de Israel. Agora a profecia ressalta a vinda do
Salvador prometido para conduzir o povo escolhido.

5. Em 12—14 a profecia se concentra no Deus que habita em Sião. Quando a


presença do Senhor encher a cidade, o resultado será uma renovação total,
e Jerusalém será santa ao Senhor (14.20,21). Naquele tempo tanto o templo
quanto a cidade anunciarão a glória do Senhor.

As visões de Zacarias

A primeira visão (mensageiros montados em cavalos, 1.7-17)

Indica que apesar das esperanças de uma divina reorganização dos reinos ainda
não ter se materializado (cf. Ag 2.6,7), Yahweh continuava no controle e cuidava
de Jerusalém com tal zelo que garantiria a reconstrução da cidade e do templo.

A segunda visão (quatro chifres e quatro artesãos, 1.18-21)

Registra as intervenções providenciais de Yahweh na História, levantando nações


como instrumentos dos Seus juízos e determinando sua queda por meio de novos
instrumentos utilizados para alcançar Seus propósitos para Seu povo.

A terceira visão (o homem com um cordel de medir, 2.1-13)

Encorajava o povo, ao prometer que o próprio Yahweh habitará com Seu povo
em uma Jerusalém renovada e repovoada após Seu julgamento contra os
inimigos de Israel.

A quarta visão (as vestes de Josué, o Sumo Sacerdote, 3.1-10)

Encoraja a nação, ao demonstrar que a purificação de Israel (representada por


Josué, o representante autorizado da nação) é uma ação misericordiosa de
Yahweh. Ele, no futuro, purificará completamente a nação de seu pecado por
intermédio do Renovo, trazendo uma época de paz sem precedente para Israel.
30

A quinta visão (o castiçal e as duas oliveiras, 4.1-14)

Tem como objetivo encorajar o povo mostrando que apesar de alguns


considerarem o esforço para a reconstrução do templo sem importância, Deus
estava envolvido nisso e Sua capacitação pelo Espírito era a ajuda necessária para
a complementação do projeto que os dois agentes de Deus, sacerdócio e realeza,
haviam iniciado.

A sexta visão (o pergaminho volante, 5.1-4)

Encoraja a conformidade à aliança ao relembrar Israel das maldições impostas


àqueles que quebram a vontade revelada de Deus. Os dois mandamentos
mencionados provavelmente representam as duas tábuas da Lei e demonstram a
inerente incapacidade de Israel em obedecer a Deus.

A sétima visão (a mulher dentro da vasilha, 5.5-11)

Foi dada como lembrete de que o mal estava ligado à Babilônia e para
desencorajar qualquer esperança política ou econômica que Israel pudesse ter
com respeito ao lugar que eles haviam sido instruídos a abandonar (2.7).

A oitava e última visão (as quatro carruagens, 6.1-8)

Relaciona-se tematicamente à primeira; portanto, ela fala do controle de Deus


sobre a terra, com a diferença de que aqui a ira de Deus (espírito) parece se
acalmar, o que sugere que seu povo foi vingado. A propósito, essa ideia é seguida
pela ação simbólica da coroação de Josué, o sumo sacerdote, por meio da qual
Yahweh indica a unificação dos dois cargos na pessoa do Renovo, o qual Josué
tipifica (6.9-15). Essa seção termina com uma promessa condicionada à
obediência de Israel.

O Apocalipse do Antigo Testamento

O livro de Zacarias é considerado o “Apocalipse do Antigo Testamento”, devido


à sua posição no cânon e a semelhança com esse livro, ao anunciar e revelar
certos acontecimentos futuros com detalhes. Zacarias, assim como todos os
profetas que anunciam a vinda do Messias, não pôde ver o tempo que separa as
duas vindas de Cristo, entretanto, é possível identificar em sua profecia
referências à primeira vinda (9.1 —11.17) e outros para a segunda (12.1 —14.21). Vale
31

destacar que Zacarias apresenta o Messias na figura de um rei pastor que é ferido
(13.7), mas também governa as nações 912.8-9).

Obediência e submissão

A obediência e submissão são o eixo que alinha toda a mensagem de Zacarias em


toda sua abrangência temporal. Diante de um futuro glorioso, em que os povos
buscarão ao Senhor e se submeterão à sua vontade por conta do exemplo de
obediência de Israel (8.20-23), o profeta mostra ao povo que a glória futura pode
ser vivida a partir do presente, com um relacionamento de obediência e
submissão ao Senhor.

Obediência e submissão, no livro de Zacarias, são apresentadas como uma


relação mútua entre Deus e Israel. Enquanto Deus cuida e beneficia de seu povo,
ele deve responder de forma adequada, submetendo-se aos estatutos do Senhor.
Assim, a promessa de Deus acerca da purificação do povo (3.4,5) traz a
responsabilidade de obedecer (3.7). Uma vez que essa é uma relação de
mutualidade, a negligência e desobediência de Israel, ao não ouvir as palavras do
Senhor (7.8-12), resultou no mal contra o povo, pois Deus, por conseguinte,
também não ouviu seu clamor (7.13-14).

Essa relação entre Deus e seu povo não deve ser vista de modo pejorativo. A
motivação à obediência não é o medo pelo qual a desobediência pode trazer, mas
a resposta adequada à misericórdia de Deus. O Senhor sempre leva em conta o
bem do seu povo e espera que os seus pratiquem o bem e obedeçam a Ele,
segundo os estatutos e mandamentos que lhes foram entregues (8.14-17).

4.3. LEALDADE A ALIANÇA: MALAQUIAS

Uns setenta anos depois de Ageu e Zacarias terem exortado os israelitas a


reconstruírem o templo, Malaquias, o último dos profetas canônicos, ministrou em
Jerusalém. A essa altura o templo estava funcionando, mas a adoração era
superficial. Jerusalém tinha voltado a ser o lar de muitos judeus, contudo Neemias
achou necessário reconstruir o muro da cidade, repovoá-la e ajudar o povo a
renovar a aliança. O povo enfrentava depressão social, econômica e espiritual.
Essa profecia declara que o Israel pós-exílio prosperará só quando o povo for
renovado por uma visão inteiramente nova do amor de Yahweh e por uma
regeneração de seu desejo de amar, honrar e servir ao seu Senhor.
32

Malaquias, em claro contraste com os outros profetas, não fala a Israel em uma
proclamação profética aberta, mas emprega um estilo de dialética ou debate, no
qual traz acusações divinas contra Israel, apresenta a recusa da nação em aceitar
tais acusações e apresenta prova de sua condição de culpada.

Mensagem

A decadência na vida moral e religiosa de Judá devido à sua falta de


confiança na benevolência pactual de Yahweh será visitada com um
julgamento purificador que combina severidade e graça, trazendo assim
esperança aos que se arrependem (PINTO, 2006).

O livro começa com a afirmação de uma doutrina muito cara a todos os profetas,
ou seja, o amor incondicional de Yahweh por Israel (1.1-5), um tema cuja origem
remonta a Deuteronômio 7. Esse amor incondicional se manifestou na eleição de
Jacó em vez de Esaú, e também na dispersão irreversível dos edomitas, em
contraste com a obra soberana de Deus que trouxe os israelitas de volta de seu
exílio na Babilônia. Apesar das persistentes dúvidas quanto à fidelidade de Deus,
tudo que Israel devia fazer era olhar a sua volta para ver a diferença com que
Yahweh os tratava, quando comparados às outras nações.

O segundo debate (1.6–2.9), centraliza na falta de respeito de Israel por Yahweh


como seu Pai e Senhor, isso foi demonstrado por seu desprezo pelos sacrifícios
adequados exigidos pela legislação deuteronômica (cf. Dt 14.21). Os sacerdotes
são criticados por sua frouxidão moral, ao receber como oferta a Deus aquilo que
nenhum senhor humano teria aceitado. A intensidade do problema é trazida a
público por uma comparação entre a adoração impura e relutante de Israel e a
adoração pura a ser oferecida entre os gentios (1.11). Esse versículo pode sugerir
um contraste entre a adoração oferecida entre as nações pelos judeus exilados
em suas sinagogas, ou, mais provavelmente, a adoração escatológica dos gentios
convertidos a Yahweh.

A função dos sacerdotes levitas como professores e protetores dos valores


espirituais de Israel é o outro lado desse debate. Os ideais deuteronômicos para
os levitas (cf. Dt 14.23; 33.10) foram grosseiramente violados e aquela geração
sacerdotal seria envergonhada diante do povo ao qual fora chamada a servir e
cujos pecados eles não apenas tinham ignorado, mas até encorajado.
33

O terceiro debate (2.10-16) diz respeito ao duplo pecado de desconsideração pela


singularidade de Yahweh (primeiro mandamento) demonstrado nos casamentos
com adeptos dos cultos pagãos e na infidelidade conjugal (sétimo mandamento).
Dessa maneira, não apenas a realidade do relacionamento singular de Yahweh
com Israel se diluía, mas sua imagem terrena de casamento monogâmico e
indissolúvel também era destruída. Em termos explícitos (2.16), Malaquias
expressa a visão divina do divórcio e previne contra o que está por trás da
dissolução do casamento: a infidelidade espiritual.

O quarto debate (2.17–3.6) lida com o cinismo social de Israel. Na expectativa de


que o próprio Deus demonstrasse seu tipo de justiça, a nação adotara uma
postura ética perversa, baseada na premissa errada de que Yahweh não se
importava mais com a justiça e de que o bem e o mal eram para Ele a mesma
coisa (2.17b). O desejo por justiça se provaria mais do que Israel poderia suportar,
pois Deus iniciaria o julgamento entre Seu povo mandando um mensageiro
escatológico que prepararia o caminho para o aparecimento de Yahweh no meio
de Seu povo.

O quinto debate (3.7-12) trata da frouxidão religiosa de Israel. O diagnóstico


divino é trágico, mas não é novo; os judeus do tempo de Malaquias
demonstravam a mesma displicência que seus antepassados quanto à religião
verdadeira. Para eles, uma crise era tempo de se apegar ao pouco que tinham, ao
passo que Deus queria a entrega daquele pouco para que recebessem Dele em
abundância (3.10).

O sexto e último debate (3.13-15), mais uma vez, trata da abordagem cínica de
Israel para com a vida, questionando desta vez a necessidade ou proveito da
religião, da adoração a Yahweh. Essa passagem é um quadro sombrio da vida
quando a confiança em Deus é trocada pela dúvida na existência e valor da
religião verdadeira, obediência e esperança em uma recompensa justa da parte
de Deus. Depois, o materialismo decadente se instala. O futuro ainda provaria que
há valor em servir a Yahweh e manter uma religião verdadeira. Mesmo aqueles da
geração de Malaquias que não haviam se curvado ao ceticismo cínico da época
seriam recompensados com um relacionamento íntimo com Yahweh (3.17) e
escapariam ao julgamento abrasador que varreria a maioria incrédula (4.1-3).

A exortação para que se lembrassem “da lei” parece indicar que Israel deveria
voltar à lealdade à aliança enquanto, como comunidade verdadeiramente
34

adoradora, esperava a manifestação do mensageiro de Deus diante do


escatológico Dia do Senhor (4.4-6). Malaquias parece sugerir que o dia já se
aproximava, que o cenário estava pronto e que o futuro continha tanto a
oportunidade para arrependimento e restauração, quanto a possibilidade de
rebelião e rejeição, o que traria maldição, uma palavra assustadora que indicava
as ameaças de invasão, fome, doença e exílio contidas em Deuteronômio 28–30.

Conclusão

Malaquias conclui tanto os doze quanto os profetas. Como trecho de conclusão


dos doze, a profecia encerra o mapeamento que o livro faz do pecado de Israel e
das nações, do castigo inevitável desse pecado e da renovação que vem após o
juízo. Situado em aproximadamente 450 a.C., Malaquias completa a odisseia
histórica dos doze, que principiou antes da derrota de Samaria frente aos assírios,
passou pela destruição de Jerusalém pelos babilônios e chegou até a dominação
do povo escolhido e da terra prometida pelos persas. Assim os doze cobrem
cerca de trezentos anos de decadência, queda e início de recuperação. Malaquias
também realça o futuro vislumbrado pelo restante dos doze, que se concentra na
intervenção de Deus na história em favor do remanescente.

Em outras palavras, Malaquias é o último dos doze na sequência de descrições


intencionais de Deus que cumpre Suas promessas. Essas promessas incluem
bênçãos para o remanescente que se afasta do pecado bem como lamentos para
os perversos que se recusam a obedecer a Yahweh. Conforme os Profetas já
haviam indicado, a palavra de Deus determina o curso da história à medida em
que Israel e as nações ou creem nessa palavra e obedecem-na ou rejeitam-na e
adoram outros deuses. Toda a tristeza prometida pelos profetas pré-exílicos se
concretiza, de modo que a vitória assegurada ao remanescente certamente
também se materializou em Cristo Jesus e em seu Reino.
35

BIBLIOGRAFIA

BÌBLIA. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2013.

CHILDS, B. Introduction to the Old Testament as Scripture. Edição Hardcover,


1979.

GEISLER, N. Resposta às Seitas. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.

HOUSE, P. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

MERRILL, E. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações,


2009.

PINTO, C. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos,


2006.
ZUCK, R. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009

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