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Estudo Sobre a Palavra de Deus

MARCOS
Tradutor
Martins do Vale

Editor
Josué da Silva Matos

2019

www.palavrasdoevangelho.com www.boasemente.com.br

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EVANGELHO SEGUNDO S. MARCOS

CAPÍTULO 1

O Evangelho segundo S. Marcos tem um caráter que difere,


em certos aspectos, de todos os outros. Cada Evangelho,
como temos visto, tem o seu próprio caráter. Cada um deles
se ocupa da Pessoa do Senhor Jesus sob um ponto de vista
diferente: Como uma Pessoa divina, o Filho de Deus; como o
Filho do homem; como o Filho de Davi, o Messias
apresentado aos Judeus, Emanuel. Mas Marcos não se ocupa
de nenhum desses títulos. É o Servo que encontramos neste
Evangelho, e em particular o Seu serviço para levar a Palavra
— o serviço ativo de Cristo no Evangelho.

A glória da Sua Pessoa divina manifesta-se por si, é certo, de


uma maneira muito particular através do Seu serviço, e
apesar do que Ele era, de fornia que evita as suas
consequências.

Todavia, o serviço é o assunto do livro. Sem dúvida, veremos


desenvolver-se o caráter do ensino do Senhor (e, por
conseguinte, a verdade agitando as formas judaicas sob as
quais se havia efetuado), bem como o relato da Sua morte, da
qual tudo dependia para o estabelecimento ida fé. Mas o que
distingue este Evangelho é o caráter de serviço e de Servo
que está ligado à vida de Jesus — a obra que Ele veio realizar
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pessoalmente durante a Sua vida sobre a Terra. É por esta
razão que o relato da história do Seu nascimento se não
encontra em Marcos.

O livro abre com o princípio da pregação do Evangelho.


João Batista é o arauto, o precursor d'Aquele que trouxe estas
boas novas aos homens.
A mensagem é nova — pelo menos no absoluto e completo
caráter que toma, e na sua direta e imediata aplicação.

Não se trata dos privilégios judaicos, que se obtinham pelo


arrependimento e pelo regresso ao SENHOR. Ele ia vir,
segundo a Sua promessa. E João, para preparar o Seu
caminho ante Ele, pregava o arrependimento para remissão
dos pecados. Era disto que eles necessitavam: Remissão dos
pecados para todo o contrito, eis o essencial, o objetivo
formal -da missão de João Batista.

O arrependimento e a remissão dos pecados dizem


claramente respeito à responsabilidade do homem, neste caso
de Israel, no seu estado natural diante de Deus; e, clarificando
essa responsabilidade quanto ao estado do homem
relativamente a Deus, na sua condição moral e responsável,
qualificam-no para a recepção da bênção que Deus tinha em
vista — moralmente, no que julga os pecados em princípio,
como Deus o faz; e de uma maneira responsável, no que
Deus os perdoa todos. Por isso a remissão é necessariamente
uma coisa presente e atual. Existe um perdão de governo

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assim como um perdão de justificação, mas o princípio é o
mesmo, e o último é a base ido primeiro.

Simplesmente, quando é governamental é acompanhado por


diversos atos de Deus, deixando o pecado de ser imputado no
tocante às atuais relações com Deus, pois, assim como na
justificação, é uma coisa eternamente verdadeira. Com a
justificação do perdão — como em Romanos 4, mostrando,
pela citação do Salmo 32, o caráter da não imputação dos
pecados—com fundamento na obra de Cristo, e por isso
absoluta e imutável. O pecado não é imputado e nunca o
poderá ser, porque a obra que o tira da vista de Deus está
feita e consumada. Esta obra — eterna, absoluta e imutável
em si mesma — é a base de todas as relações de Deus com o
homem em graça. A graça reina em justiça. Os capítulos 9 e
10 de Hebreus mostram-no desenvolvidamente, quando se
trata da consciência e aproximação de Deus, e isto nos
lugares santas. Encontramos o mesmo em Romanos 3-5, onde
a questão é judicial, um assunto de Julgamento, de ira e de
justificação. É a base de bênção, por grande que ela seja em
si mesma, e não o fim, quer dizer a paz com Deus e a
reconciliação. Aqui tratava-se de todas as bênçãos que Israel
terá pela nova aliança (fundada na morte de Cristo), mas,
sendo rejeitados, aqueles que criam entravam em melhores e
celestiais bênçãos. Em Êxodo 32:14-34 encontramos o
perdão governamental, não a justificação. No caso do grande
pecado de Davi, o pecado foi perdoado, quando foi
reconhecido; a iniquidade foi tirada, mas resultou dali um

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severo castigo, ligado com o perdão, porque ele tinha dado
ocasião aos inimigos do Eterno de blasfemarem.

A glória de Deus em Justiça tinha de ser mantida perante o


mundo (2.a de Samuel 12:13-14).

Tratava-se aqui de uma proposta feita a Israel de um perdão


atual, que será cumprido nos últimos dias; e então, como a
sua longa rejeição terminará em perdão governamental, serão
também — pelo menos o Remanescente — pela morte de
Cristo e pelo derramamento do Seu sangue, perdoados e
glorificados para gozarem das promessas sob a nova aliança
(comparar Atos 3).

Os profetas tinham anunciado, de fato, o perdão, se o povo


voltasse para o Senhor; mas aqui o perdão era o alvo atual da
pregação. O povo sai em massa para se aproveitar dele. A
consciência, pelo menos, era despertada; e, fosse qual fosse o
orgulho dos chefes, o estado espiritual de Israel era sentido
pelo povo, quando qualquer coisa fora da rotina religiosa
atuava sobre o coração e sobre a consciência— quer dizer,
quando Deus falava. Eles confessam os seus pecados (versos
4-5). Talvez em alguns não houvesse senão a consciência
natural, isto é, não haveria realmente uma obra vivificante;
mas, pelo menos, essa consciência era posta em atividade
pelo testemunho de Deus.

Mas João (versos 6-8), rigidamente separado de todo o povo,


e vivendo separado da sociedade humana, anunciava Alguém
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mais poderoso do que ele, cujas sandálias não era digno de
desatar. Aquele que João anunciava não pregaria somente o
arrependimento, ao qual se submetiam pelo batismo da água;
Ele conferiria o Espírito Santo, o poder, àqueles que
recebessem o Seu testemunho. Aqui este Evangelho passa
rapidamente ao serviço dAquele que João assim assinalava.
Apresenta só e mui sumariamente o que O introduzia nesse
serviço.

O Senhor toma lugar entre os arrependidos -do Seu povo, e,


submetendo-Se ao batismo de João, vê o Céu aberto para Si,
e o Espírito Santo descendo sobre Si como uma pomba.

O Pai reconhece-O como Seu Filho, sobre a Terra, em Quem


Se compraz. Em seguida Jesus é levado pelo Espírito Santo
ao deserto, onde foi tentado por Satanás. Durante quarenta
dias vive entre as feras, mas os anjos O servem (versos 9-13).

Vemos aqui toda a Sua posição — o caráter que o Senhor


toma sobre a Terra — todos os traços desse caráter e as suas
relações com o que O rodeava são reunidos nestes dois ou
três versos. Isto já foi tratado pormenorizadamente em
Mateus.

Em seguida João desaparece da cena (verso 14), para dar


lugar ao ministério público de Cristo, do qual ele era apenas o
precursor; e o próprio Cristo Se apresenta na posição de
testemunho, declarando que o tempo está cumprido; que não
se tratava agora nem de profecias nem de dias vindouros; que
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Deus ia estabelecer o Seu reino e que eles deviam arrepender-
se e receber a Boa Nova que naquele próprio momento lhes
era anunciada.

O evangelista passa rapidamente (1) para cada fase do serviço


de Cristo.

(1) Esta rapidez caracteriza Marcos, assim como a palavra


«logo» (eutkéôs).

Tendo apresentado o Salvador como empreendendo o


ministério público que convidava as almas a receberem a Boa
Nova como uma coisa presente (tendo chegado o tempo do
cumprimento dos caminhos de Deus), apresenta-O
convidando outros para fazerem o mesmo trabalho em Seu
Nome, segumdo-O. A Sua Palavra não falha nos seus efeitos:
Aqueles que Ele chama deixam tudo, e seguem-No (2).

(2) é o fato em si mesmo que é apresentado aqui, tal como em


Mateus. A narrativa de Lucas dá-nos ocasião de entrarmos
mais pormenorizadamente no tema da chamada dos
discípulos. Desde os dias de João Batista, eles tinham estado
mais ou menos associados ao Senhor — pelo menos estes
tinham estado.

Em dia de sábado, Ele entra na cidade, para ensinar (versos


21-22). A Sua Palavra não consiste em argumentos que
evidenciem a incerteza do homem, mas vem com a
autoridade d'Aquele que conhece a verdade que anuncia—
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autoridade que era verdadeiramente a de Deus, que pode
transmitir a verdade. Ele fala como Alguém que possui
autoridade — e disso dá sobejas provas. A Palavra, que assim
se apresenta aos homens, tem poder sobre os demónios.

Estava ali um homem possesso (versos 23-26). O espírito


imundo, embora sendo-o, dá testemunho Àquele que falava e
cuja presença ele não podia suportar; mas a Palavra que o
despertava também tinha poder para o expulsar. Jesus
repreende-o — ordena-lhe que se cale e que saia ido homem;
e o espírito imundo, depois de manifestar a realidade da sua
presença e a sua maldade, submete-se, e sai do homem.
Tal era o poder da palavra de Cristo.

Não é de estranhar que a fama deste milagre se expandisse


por toda a região (versos 28); mas o Senhor prossegue a obra,
o Seu serviço, por toda a parte onde Se apresenta (versos 29 e
seguintes). Vai a casa de Pedro, cuja sogra jaz doente com
febre. Cura-a imediatamente; depois, quando declinava o
sábado, trouxeram-Lhe todos os que se achavam enfermos.
Ele, sempre, sempre pronto a servir (precioso Senhor!), cura-
os a todos.
Mas não era para ser rodeado pela multidão que o Senhor
trabalhava; e pela manhã, muito antes de romper o dia, foi
para um lugar deserto para orar. Tal era o caráter do Seu
serviço — feito em comunhão com Seu Deus e Pai, e sob a
Sua dependência. Retira-Se, pois, para um lugar deserto. Os
discípulos encontram-No ali e dizem-Lhe que todos O
procuram; mas o Seu coração está na Sua obra.
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A expectativa geral não O demove a regressar. Prossegue o
Seu caminho a fim de cumprir a obra que Lhe tinha sido
confiada — pregando a verdade entre o povo, porque esse era
o serviço ao qual Ele Se tinha devotado.
Ora, fosse qual fosse a dedicação de Jesus a esse serviço, o
Seu coração não estava insensibilizado pela preocupação;
estava sempre com Deus. Um pobre leproso aproxima-se,
reconhecendo o Seu poder, mas incerto quanto à Sua vontade,
bem como a respeito do amor que exercia esse poder (versos
40 e seguintes). Ora, essa terrível doença não só isolava o
próprio homem, mas também contaminava todo aquele que
tocasse o doente, mesmo ao de leve que fosse. Mas nada
detém o Senhor no serviço a que o Seu amor O chama. O
leproso era um infeliz, escorraçado da sociedade e dos seus
semelhantes e excluído da casa de Jeová. Mas o poder de
Deus estava ali presente. O homem tinha de ser assegurado
ida boa vontade com que o seu abatido coração não podia
contar. Quem se interessaria por um desgraçado como ele?
Ele tinha fé quanto ao poder de
Cristo, mas os seus pensamentos a seu próprio respeito
ocultavam-lhe a extensão do amor que o tinha visitado.
Jesus estende a mão e toca-o...

O mais humilde idos homens aproxima-Se do pecado e


daquilo que era o seu sinal e extermina-o; O Homem que, na
força do Seu amor, tocou o leproso sem ficar contaminado
era Deus, o único que podia remover a lepra que tornava
miserável e proscrito aquele que dela era afligido.
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O Senhor fala com uma autoridade que revela imediatamente
o Seu amor e a Sua divindade: «Quero, sê limpo» (verso 41).
Quero — era o amor de que o leproso duvidava, a autoridade
de Deus, o único que tem o direito de dizer: EU QUERO. O
efeito seguiu-se à expressão da Sua vontade.

É sempre assim quando Deus fala. E quem curava a lepra, a


não ser Jeová? Era Ele o único que desceu o bastante para
tocar esse ser contaminado, que contaminava por seu lado
todos aqueles que tivessem de tratar com ele? Sim, Ele era o
ÚNICO! Mas era Deus que tinha descido, o amor que tinha
descido tão baixo, e que, fazendo-o, se mostrava poderoso
para salvar todo aquele que se Lhe confiasse. Era a
incorruptível pureza em poder, que podia, portanto, atuar em
amor acerca do mais vil, e deleitar-Se em o fazer. Veio ao
encontro do homem contaminado, não para ser contaminado
pelo contato, mas para tirar a contaminação. Tocou o leproso
em graça — e a lepra desapareceu!

Jesus furta-Se às aclamações dos homens e ordena àquele que


tinha sido curado que fosse apresentar-se aos sacerdotes, de
acordo com a lei de Moisés. Mas esta submissão à lei, de
fato, dava testemunho de que Ele era Jeová, porque só Jeová,
segundo a lei, purificava soberanamente o leproso. O
sacerdote era apenas testemunha de que a cura tinha sido
realizada. A cura do leproso -divulgou-se por toda a parte e,
atraindo a multidão, levou Jesus a afastar-Se para lugares
desertos.
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CAPÍTULO 2

Alguns dias depois entrou outra vez na cidade, e logo a


multidão se juntou. Que quadro vivo da vida -de serviço do
Senhor! Ele prega-lhes. Era este o Seu objetivo e o Seu
serviço (veja-se o capítulo 1:38). Mas dedicando-Se ainda ao
humilde cumprimento da tarefa que Lhe está confiada, o Seu
próprio serviço, o Seu amor — pois quem serve como Deus,
quando Ele Se digna fazê-lo? — fazem realçar os Seus
direitos divinos. Ele sabe qual é a verdadeira origem de todos
esses males e pode dar o remédio. «Os teus pecados», diz Ele
ao pobre paralítico, que tinha sido trazido para junto de Si
com uma fé que não se detinha perante as dificuldades,
perseverando apesar delas — perseverança da fé que é
alimentada pelo sentimento da necessidade e pela certeza de
que o poder se encontra n'Aquele que procuramos— «os teus
pecados estão perdoados» (verso 5). Depois dá uma resposta
às murmurações dos escribas e faz calar todos os
contraditores. Jesus exerce o poder que O autorizava a
pronunciar o perdão do pobre enfermo (1).

(1) É preciso distinguir entre o perdão governamental e o


perdão absoluto dos pecados. Simplesmente, tal como é o
homem, o primeiro não poderia existir sem o segundo. Mas
antes de Cristo ser rejeitado e morto, isto não podia ser
plenamente manifestado.

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As murmurações dos doutores punham em evidência, como
doutrina, Aquele que estava ali; tal como o veredicto dos
sacerdotes, que declarava o leproso limpo, punha o selo da
Sua autoridade sobre a verdade que Jeová, o único que curava
Israel, estava ali (verso 12). O que Jesus prossegue é o Seu
serviço, o Seu testemunho; e o efeito é tornar evidente que o
Eterno está ali e que visitou o Seu povo. Era o Salmo 103 que
se cumpria quanto aos direitos e quanto à revelação da Pessoa
de Aquele que assim atuava, Jesus Sai da cidade; o povo
junta-se em volta d'Ele; e de novo Ele os ensina {verso 13). A
chamada de Levi dá lugar a uma nova fase do Seu ministério.
Ele tinha vindo para chamar os pecadores, e não os justos.
Depois diz-lhes que não podia deitar a nova energia divina,
em Si revelada, nas antigas formas do farisaísmo. E havia
uma outra razão para isso — a presença do Noivo. «Podem,
porventura, jejuar os convidados para a boda, enquanto o
Noivo está com eles?» Mas dias viriam em que lhes seria
tirado o Noivo, e seria então o tempo de eles jejuarem (versos
18-20).

Depois Jesus insiste na incompatibilidade dos velhos vasos


judaicos com o poder do Evangelho, que não faria senão
alterar o Judaísmo ao qual pretendiam ligá-lo (versos 21-22).
O que sucedeu quando os discípulos atravessavam as searas
confirma esta doutrina.

As ordenanças perdiam a sua autoridade em presença do Rei


ordenado por Deus, rejeitado e peregrino sobre a Terra. Além
disso, o sábado—sinal da aliança entre Deus e os Judeus —
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tinha sido feito para o homem, e não o homem para o sábado;
portanto, Jesus, o Filho do homem, era Senhor do sábado.
Rejeitado como Filho de Davi, as ordenanças perdiam a sua
força, e eram-Lhe subordinadas.

Como Filho do homem, possuidor (aos olhos de Deus) de


todos os direitos que Deus tinha conferido ao homem, Ele era
Senhor do sábado, o qual fora feito para o homem (versos 25-
28). Em princípio, as coisas velhas tinham passado.

Mais ainda, eram, com efeito, as coisas novas de graça e de


poder que não comportavam a antiga ordem de coisas. Mas
tratava-se de saber se Deus podia agir em graça e abençoar,
em Sua soberania, entre o Seu povo — se Deus devia
submeter-Se à autoridade dos homens, que se aproveitavam
das Suas ordenanças contra a Sua bondade; ou fazer bem de
conformidade com o Seu próprio poder e amor como estando
acima de tudo. Devia o homem circunscrever a operação da
bondade de Deus? E era ela, em verdade, o vinho novo que o
Senhor trazia ao homem.

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CAPÍTULO 3

Tal foi a questão levantada na sinagoga aquando da cura do


homem que tinha uma das mãos mirrada. O Senhor suscita
esta questão publicamente diante das consciências daqueles
que O observavam; mas nem os corações nem as
consciências Lhe responderam — e Ele atua no Seu serviço
segundo a bondade e os direitos de Deus, e cura o homem
(1).

(1) Podemos apenas ver como o antigo sistema, baseado


naquilo que o homem devia ser para Deus, é posto de lado
para introduzir o que Deus é para o homem. Mas tendo o
primeiro sido estabelecido por Deus, nada mais, a não ser as
palavras e as obras de Jesus, teria autorizado os Judeus a
renunciar a ele. Tal como se apresentava, era nítida
oposição e ódio contra a plena revelação d'Aquele que tinha
ordenado o outro sistema (comparar João 15:22-14).

Os Fariseus e os seus inimigos, os Herodianos — pois todos


estavam contra Deus e unidos neste caso — consultam-se
mutuamente acerca de como poderiam destruir a Cristo.
Jesus parte para o mar (2).

(2) Isto é, o mar de Tiberíades.

Ali a multidão segue-O, por causa de tudo o que Ele tinha


feito; de sorte que Ele é obrigado a tomar um barco, a fim de
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poder estar afastado da multidão. Os espíritos submetem-se-
Lhe, obrigados a reconhecer que Ele é o Filho de Deus; mas
Ele proibiu-os de O manifestarem.

Pregar, buscar as almas, dedicar-Se a todos, mostrando-Se,


pelos Seus atos, possuidor do poder divino, ocultando-Se ao
mesmo tempo da observação dos homens para cumprir, sem
os seus aplausos, o serviço que tinha empreendido— tal era a
Sua vida de homem neste mundo.
O amor e o poder divino revelavam-se no serviço que esse
amor O impelia a cumprir, e no cumprimento do qual esse
poder era exercido. Mas isto não podia ser circunscrito pelo
Judaísmo, por muito que o Senhor fosse submetido às
ordenanças de Deus dadas aos Judeus.

Ora, sendo Deus assim manifestado, a oposição carnal do


homem depressa se revela (1).

(1) Eis o segredo de toda a história de Jesus. Filho de Davi,


estando n'Ele todas as promessas feitas aos Judeus, sendo
também o Servo em todas as necessidades e sofrimentos,
embora sendo Deus e Deus manifestado n'Ele
— eis o que o homem não podia suportar. O pensamento da
carne é inimizade contra Deus.

A descrição do serviço de Cristo termina, portanto, aqui, e


aqui se manifesta o seu efeito. Depois, no que se segue, esse
efeito é desenvolvido quanto à iniquidade do homem e
quanto aos desígnios de Deus. Entretanto o Senhor nomeia
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doze dos Seus discípulos para O acompanharem e para irem
pregar em Seu Nome (versos 13-39). Ele podia, não só operar
milagres, mas também comunicar aos outros esse poder, e
fazê-lo por meio de autoridade. Volta a entrar em casa, e a
multidão reúne-se outra vez. E aqui manifestam-se os
pensamentos do homem ao mesmo tempo que os de Deus, Os
Seus amigos procuram-No como a alguém que está fora de si.
Os Escribas, usando da sua influência como eruditos,
atribuem a Satanás o poder que não podiam negar. O Senhor
responde-lhes mostrando que, em geral, todo o pecado podia
ser perdoado; mas que reconhecer o poder e atribuí-lo ao
Inimigo, em vez de reconhecerem Aquele que o exercia, não
era tomar o lugar da incredulidade ignorante, mas sim o de
adversários, blasfemando assim contra o Espírito Santo. Era
um pecado que nunca poderia ser perdoado (versos 23-30).

O «homem forte» estava lá; mas Jesus era mais poderoso do


que ele, pois expulsava os demónios. Tentaria Satanás
destruir a sua própria casa? O fato de o poder de Jesus se
manifestar dessa maneira deixou-os sem desculpa. O
«Homem Forte» de Deus tinha, portanto, vindo: Israel
rejeitou-O e, quanto aos seus chefes, blasfemando contra o
Espírito Santo, colocaram-se a eles próprios sob uma
condenação sem esperança. Por isso o Senhor distingue
imediatamente o Remanescente, que recebia a Sua palavra,
de tudo aquilo que o ligava a Israel segundo a carne. A Sua
mãe ou os Seus «irmãos» são os discípulos que O rodeiam, e
os que fazem a vontade de Deus. Isto põe, realmente, Israel
de lado nesse momento.
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CAPÍTULO 4

Este capítulo introduz o verdadeiro caráter e o resultado do


Seu serviço, e toda a história do serviço que devia realizar-se
num futuro muito distante; assim como a responsabilidade
dos discípulos quanto à parte que teriam nele; e a paz de todo
aquele que se entregasse a Deus, cumprindo-o; as
tempestades que sobreviriam e que exerceriam a fé, enquanto
que Jesus, aparentemente, se não ocupasse dos Seus; e a justa
confiança da fé, assim como o poder que a sustinha.

Todo o caráter da obra, quer nesse momento, quer até à vinda


do Senhor, é descrito neste quarto capítulo.

O Senhor recomeça nele o Seu habitual trabalho de instrução,


mas em relação com o desenvolvimento que acabava de ter
lugar das Suas relações com os Judeus. Ele semeia. Já não
procura fruto na Sua vinha. Vemos, no verso 11, como é
acentuada a distinção entre os Judeus e os Seus discípulos. A
estes era dado conhecer os mistérios do reino de Deus; mas
para aqueles que estavam de fora todas estas coisas eram
tratadas por parábolas. Não repetirei aqui as observações que
fiz quando falei desta parábola em Mateus. Mas o que se
segue a partir do verso 21 pertence essencialmente ao
Evangelho segundo S. Marcos.
Temos visto como o Senhor Se ocupava da pregação do
Evangelho do reino e como confiava a outros também a
pregação do mesmo Evangelho. Ele era semeador, e semeava
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a Palavra. Este era o Seu serviço, e era de igual modo o deles.
Mas acende-se uma candeia para ser escondida? Aliás, nada
será escondido. Se o homem não põe em evidência a verdade
que recebeu, Deus revelará todas as coisas. Que todos tomem
nota disto!
No verso 24 o Senhor aplica este princípio aos Seus
discípulos.

Deviam prestar atenção ao que ouviam, porque Deus agirá a


seu respeito segundo a sua fidelidade no ministério da
Palavra que lhes foi confiada. O amor de Deus enviava aos
homens a palavra da graça e do reino.

E o objetivo do serviço confiado aos discípulos era fazê-la


chegar à consciência dos homens. Cristo comunicava-a aos
discípulos, e estes deviam fazê-la chegar aos outros homens
em toda a sua plenitude. Segundo a medida com que derem
livre curso a este testemunho de amor (conforme o dom que
tiverem recebido), assim lhes será dado a eles no governo de
Deus. Se eles dessem ouvidos àquilo que lhes comunicavam,
receberiam ainda mais; porque, regra geral, todo aquele que
realizasse o que lhe fosse concedido, receberia ainda mais; e
àquele que verdadeiramente o não conseguisse, até o que
tinha lhe seria tirado.

Depois o Senhor revela o que terá lugar acerca de Si próprio.


Ele tinha semeado, e, assim como a semente brota e cresce
sem intervenção alguma do semeador, Cristo deixaria que o
Evangelho se propagasse pelo mundo sem aparentemente
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interferir, sendo o caráter especial do reino o fato de o Rei
não estar nele. Mas quando chegar o tempo da ceifa, o
semeador terá outra vez de se ocupar dela.

Assim seria com Jesus: Ele virá outra vez para Se ocupar da
ceifa. Ele estava pessoalmente comprometido na sementeira e
na ceifa. No intervalo tudo continuaria como se as coisas
estivessem entregues a si próprias, realmente sem a
intervenção do Senhor em Pessoa.
O Senhor emprega outra semelhança para descrever o caráter
do reino (verso 30). A pequenina semente que Ele semeia
tornar-se-á num grande sistema, sumamente elevado na
Terra, capaz de proteger temporalmente aqueles que a ele se
abrigarem.

Assim, encontramos aqui a obra da pregação da Palavra de


Deus; a responsabilidade dos obreiros aos quais o Senhor vai
confiar essa pregação durante a Sua ausência; a atividade do
Senhor no -princípio e no fim, no tempo da sementeira e no
tempo da ceifa, conservando-Se Ele próprio afastado durante
o intervalo desses dois acontecimentos; finalmente, a
formação de um grande poder terrestre como resultado da
verdade que o Senhor pregava e que criara um pequeno
núcleo em redor de Si. Restava ao Senhor mostrar ainda uma
parte da história daqueles que O seguiam: Encontrariam
dificuldades gravíssimas no seu caminho. O Inimigo
levantaria uma grande tormenta contra eles (versos 35-41).
Aparentemente, Cristo não se preocupou com a situação
deles. Eles chamam-No e despertam-No em altos gritos —
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aos quais Ele responde em graça. Ele fala ao vento e ao mar,
e segue-se uma grande bonança. Mas, ao mesmo tempo o
Senhor censura a incredulidade deles. Deveriam ter contado
com Ele e com o Seu poder divino, e não pensarem que Ele
pudesse ser engolido pelas ondas. Deveriam ter-se lembrado
das suas relações com Ele — que, por graça, estavam
associados com Ele.

Que tranquilidade a Sua! O temporal não O perturba.


Consagrado à Sua obra, descansou no momento em que o
serviço não requeria a Sua atividade. Descansou durante a
viagem. O Seu serviço apenas Lhe permitia esses momentos
arrancados pelas circunstâncias ao Seu trabalho.
A Sua divina tranquilidade, que não conhecia a desconfiança,
permitia-Lhe dormir durante a tempestade. Não acontecia
assim com os discípulos; esquecendo o poder, ignorando a
glória d'Aquele que Se encontrava com eles, não pensavam
senão em si próprios, como se Jesus os tivesse esquecido.
Uma palavra Sua mostra em Si o Senhor da Criação.
Tal é o verdadeiro estado dos discípulos, quando Israel é
posto de lado. O temporal levanta-se, e Jesus não parece dar-
lhe atenção. Ora a fé deveria ter reconhecido que eles se
encontravam no mesmo barco com Ele. Quer dizer, se Jesus
deixa a semente que tem semeado para crescer até à ceifa,
nem por isso deixa de estar no mesmo barco; compartilha,
verdadeiramente, a -sorte dos Seus seguidores, ou antes, eles
compartilham da Sua. Os perigos são os mesmos em que Ele
e a Sua obra se encontram. Quer dizer que não há perigo
nenhum! E quão grande é a loucura da incredulidade supor
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por um instante, quando o Filho de Deus veio a este mundo
para cumprir a redenção e os desígnios estabelecidos de
Deus, que aos olhos do homem, por uma tempestade
acidental, Ele e toda a Sua obra se afundavam subitamente no
lago! Encontramo-nos — bendito seja o Seu Nome! —no
mesmo barco com Ele. Se o Filho de Deus não perece, nós
também não pereceremos.

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CAPÍTULO 5

Mas, noutro sentido, os discípulos de Jesus não estão com


Ele. Eles são chamados para servir, quando Ele deixa a cena
do Seu trabalho. É o que nos ensina a história do
endemoninhado Legião, liberto do seu miserável estado. O
homem — e Israel em particular — estava completamente
sob o poder do Inimigo. Cristo, segundo a obra do Seu poder,
libertou completamente aquele a favor de quem o Seu poder
foi exercido. Este homem está agora vestido — já não está nu
— em seu perfeito juízo, e aos pés de Jesus para escutar as
Suas palavras. Mas os habitantes daquela região ficaram
cheios de medo e pediram-Lhe que se retirasse dos seus
termos —o mesmo que o mundo fez com Cristo; e na história
da manada de porcos temos a figura de Israel depois do
Remanescente ter sido curado. Eles são impuros, e Satanás
puxa-os para a destruição. Ora, quando Jesus Se retira, aquele
que pessoalmente sentiu os poderosos efeitos do Seu amor
teria desejado estar com Ele; mas ele devia ir para sua casa e
levar aos seus o testemunho de tudo o que Jesus tinha feito.
Ele devia servir na ausência de Jesus. Em todas estas
narrativas vemos a obra e a dedicação do Servo, mas ao
mesmo tempo vemos o poder divino de Jesus manifestado
nesse serviço.

Nas circunstâncias que seguem a cura do endemoninhado


encontramos o quadro da verdadeira posição de Jesus na Sua
obra (versos 21 e seguintes). Ele é solicitado para curar a
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filha de Jairo — do mesmo modo que veio para curar os
Judeus, se tivesse sido possível. Quando ia para casa de Jairo
para realizar a Sua obra, uma pobre mulher incurável toca
com fé a orla do Seu vestido e é instantaneamente curada. Era
assim com Jesus durante a Sua passagem entre os Judeus. De
entre a multidão que O rodeava algumas almas, pela graça,
tocavam-No por fé. De tacto, a sua enfermidade era em si
mesmo incurável, mas Jesus tinha a vida em Si mesmo,
segundo o poder de Deus; e a fé, locando-O, tirava dali a
virtude. Tais pessoas eram levadas a reconhecer o seu estado,
mas eram curadas. Exteriormente, Jesus estava no meio de
todo o Israel — mas só a fé recolhia d'Ele os benefícios, no
sentimento das suas próprias necessidades e da glória da Sua
Pessoa.

Ora, os remédios eram inúteis para a jovem que constituía o


objetivo daquela viagem. Jesus encontra-a morta; Mas nem
por isso Ele deixa de atingir o Seu alvo: Ressuscita-a, porque
Ele pode dar a vida. E assim aconteceu também a respeito de
Israel: À Sua passagem, os que tinham fé em Jesus eram
curados, por mais incuráveis que fossem em si mesmos; mas,
com efeito, quanto a Israel, a nação estava morta em delitos e
pecados. Aparentemente isto detinha a obra de Jesus. Mas,
110 fim, a graça restaurará a vida a Israel. Vemos como a
perfeita graça de Jesus intercepta o efeito idas más notícias
trazidas da casa de um dos principais da sinagoga. Diz a
Jairo, quando os mensageiros lhe dão a notícia da morte de
sua filha e lhe falam da inutilidade de incomodar mais o
Mestre: «Não temas, crê somente». De fato, embora o Senhor
23
restaure a vida a Israel no fim dos tempos, é todavia pela fé
que isso tem lugar. O caso da pobre mulher, embora na sua
imediata aplicação não vá além dos Judeus, aplica-se
contudo, em princípio, à cura de todos os Gentios que, pela
graça, são trazidos para contatarem Jesus pela fé. Esta
narrativa dá, pois, o caráter do serviço de Jesus e a maneira
como, de fato, tinha de ser efetuado, dado o estado em que o
homem se encontrava.

24
CAPÍTULO 6

No relato seguinte Marcos retoma a história propriamente


dita desse serviço. Simplesmente, vemos Jesus já rejeitado
por um povo cego, não obstante o poder que Ele tinha
manifestado, e que dava testemunho da glória da Sua Pessoa.
Contudo, Ele prossegue o Seu serviço e envia os Seus
discípulos para que nenhum esforço deixe de ser feito; mas
envia-os com o testemunho do Julgamento que esperava
aqueles que se tornassem culpados da rejeição da Sua missão
— rejeição que, aliás, estava já em andamento. No entanto o
Senhor continua a dar provas, em misericórdia e em bondade,
de que o Eterno, cheio de compaixão pelo Seu povo, estava
presente; até que por fim teve de preparar os Seus discípulos
para o resultado certo da Sua obra — para a Sua morte às
mãos dos Gentios, aos quais os principais sacerdotes O
entregariam.
Para os Judeus, Jesus era o carpinteiro, o filho de Maria.

A incredulidade deles detinha a mão benfazeja de Deus a seu


respeito. Jesus prossegue a Sua obra noutro lugar, e envia os
Seus discípulos — ato que implicava a posse de um poder
divino. Era ainda para Israel que a missão d'Ele recebida os
dirigia, e eles deviam pronunciar o Julgamento contra o país
de Emanuel, o país de Israel, como sendo uma terra poluída,
onde o seu testemunho seria rejeitado.

25
Deviam partir confiados na proteção poderosa de Aquele que
assim os enviava, e eles não teriam falta de nada. Ele era o
Senhor soberano, que dispunha de tudo. Cristo pode não só
comunicar bênçãos como sendo Ele próprio um canal de
bênçãos, mas também conferir aos Seus discípulos o poder de
expulsar demónios. Os discípulos cumprem a sua tarefa.

Esta passagem mostra de uma maneira notável a posição e a


glória de Cristo. Ele é o Servo; para os homens, Ele é o filho
do carpinteiro. Neste novo serviço, Ele não toma nenhum
lugar, cumprindo apenas o que Deus Lhe tinha dado para
fazer. Não pode fazer ali nenhum milagre por causa da
incredulidade deles. Ele estava sempre pronto a servir, mas
impedido de falar, limitado no exercício do Seu amor, onde
não se abria uma porta para dar entrada à Sua influência; e a
natureza, que julga segundo o que vê, nunca a abre. Somente,
onde havia necessidade, o Seu amor, nunca cansado, atuava e
devia atuar. O pequeno número de enfermos aproveitava de
um amor que a ninguém despreza, porque o amor nunca
busca os seus próprios interesses.

Mas, no verso seguinte, Aquele que não podia fazer obras


maravilhosas (porque o Seu serviço dependia de condições
divinas, com base nas quais Deus podia encontrar e levar a
efeito as suas relações com os homens, a fim de Se revelar a
Si próprio) confere agora poder aos outros sobre os espíritos
imundos — um poder que é divino. Quem quer que seja pode
operar milagres, se Deus lhe der o poder; mas só Deus o pode
dar. Eles de nada têm falta, porque Emanuel está ali; e
26
anunciam o Juízo, se a sua mensagem for rejeitada. O amor
divino tinha feito d'Ele um Servo inteiramente dependente;
mas o Servo dependente era Deus em graça e em Justiça.

Mas todas estas manifestações de poder têm por efeito


despertar a consciência do rei que então reinava em Israel; e o
evangelista abre para nós a história da oposição homicida das
autoridades em Israel contra as testemunhas da verdade
(versos 14 e seguintes). Herodes tinha mandado matar a João
Batista para satisfazer a iniquidade de uma mulher que lhe
agradava— iniquidade que ele partilhava com ela. Uma
dança valia, para ele, a vida do profeta de Deus. Tal era o
governador de Israel!

Os apóstolos regressam. Jesus afasta-os da multidão curiosa e


necessitada, indo para um lugar deserto; mas a multidão
segue-O. Jesus, rejeitado pelo país que amava, tem
compaixão dos pobres do rebanho e manifesta em favor deles
o poder de Jeová para os abençoar, de conformidade com o
Salmo 132. Farta de pão os pobres. Tendo despedido a
multidão, atravessa o mar a pé, andando sobre as águas;
junta-Se aos discípulos, e o vento cessa — uma figura
daquilo de que falámos quando estudámos o Evangelho
segando S. Mateus. O trabalho dos discípulos estava feito.
Mas os seus corações, ainda muito endurecidos nessa altura,
apesar de todos os milagres que tinham visto, esquecem esses
milagres uns após outros. O Senhor prossegue a Sua obra de
bênção. Bastava tocar-Lhe para serem curados.

27
CAPÍTULO 7

O poder dominante que era exercido entre os Judeus tinha-se


revelado hostil ao testemunho de Deus, e tinha mandado
matar aquele que Ele tinha enviado no caminho da Justiça. Os
Escribas, e os que pretendiam seguir a justiça, tinham
corrompido o povo com o seu ensino e violado a lei de Deus.
Lavavam os copos e os jarros, mas não os seus corações; e
desde que os sacerdotes — a religião — lucrassem com isso,
punham de lado os deveres dos filhos para com os pais. Mas
Deus via os corações, e do coração do homem procedia toda
a sorte de impureza, iniquidade e violência. Era isso o que
contaminava o homem, e não o fato de ter as suas mãos por
lavar. Eis o Julgamento desta religiosidade sem consciência e
sem temor de Deus, e o verdadeiro 'discernimento do que é o
coração do homem aos olhos de Deus, que tem os olhos
demasiado puros para ver o mal.
Mas é preciso que Deus também mostre o Seu coração.

E se Jesus julgava o do homem com a vista de Deus — se


manifestava os Seus caminhos e a Sua fidelidade para com
Israel — mostrava, no entanto, desse modo o que Deus era
para os que sentiam que tinham necessidade d'Ele e que
vinham ia Ele pela fé confessando-O e apoiando-se na Sua
pura bondade. Dos termos de Tiro e de Sidon vem uma
mulher da raça condenada, gentia e siro-fenícia. O Senhor,
em resposta à súplica que ela Lhe dirige para curar a sua
filha, diz-lhe que os filhos (os Judeus) estão em primeiro
28
lugar, e que não convinha tirar o pão aos filhos para o dar aos
cães; resposta desoladora para a pobre mulher, o sentimento
que ela tinha das suas necessidades e da bondade de Deus não
tivesse ultrapassado e posto de lado qualquer outro
pensamento. Estas duas coisas tornavam-na humilde de
coração, e pronta a reconhecer o soberano favor de Deus para
com o povo da Sua eleição neste mundo.

Não tinha Deus o direito de escolher um povo para Si?

E ela não pertencia a esse povo. Mas isso não destruía nem a
bondade nem o amor de Deus. Ela era apenas um cão gentio,
mas era tal a bondade de Deus que até para os cães tinha pão!
Cristo, a perfeita expressão de Deus,
Deus manifestado em carne, não podia negar a Sua bondade e
graça, não podia dizer que a fé tinha pensamentos mais
elevados de Deus do que a realidade, porque Ele mesmo era
amor. A soberania de Deus era reconhecida — nenhuma
pretensão a qualquer direito ida parte -do homem. A pobre
mulher não se apoiava senão na graça. A sua fé apreendia,
com inteligência dada por Deus, a graça que ultrapassava as
promessas feitas a Israel. Penetra no coração do Deus de
amor, revelado em Jesus, do mesmo modo como Ele penetra
no nosso, e saboreia o fruto. Porque era introduzido isto: O
próprio Deus diretamente em presença do homem e em
relação com ele, e o homem tal como era perante Deus — e
não uma regra ou um sistema pelo qual o homem se prepara
para Deus.

29
No milagre seguinte (versos 31-37), vemos o Senhor
conceder o dom de ouvir e de falar a um homem que era
surdo-mudo e incapaz de exprimir os seus próprios
pensamentos.

Não podia beneficiar da Palavra de Deus, nem louvá-Lo. O


Senhor regressou ao lugar onde Se apresentara como luz para
Israel; e aqui trata apenas com o Remanescente.

Tira o homem à parte, fora da multidão. É a mesma graça que


toma o lugar de toda a pretensão à justiça no homem, e se
manifesta aos infelizes. A sua forma, embora exercida agora
a favor do Remanescente de Israel, é apropriada ao estado
tanto dos Judeus como dos Gentios — é a graça. Mas para
estes também ela é a mesma: Ele toma o homem à parte, de
entre a multidão, para que a obra de Deus seja manifestada. A
multidão deste mundo não tinha realmente parte alguma nela.
Vemos aqui Jesus; o Seu coração enternece-se devido ao
estado do homem, e mais particularmente devido ao estado
do Seu amado povo Israel, do qual este pobre surdo-mudo é
uma imagem comovente. Jesus faz ouvir o surdo e falar o
mudo.
Era assim individualmente, e assim será com todo o
Remanescente de Israel nos últimos dias. O próprio Senhor
atua, e faz tudo bem. 0 poder do Inimigo é destruído, a surdez
do homem e a sua incapacidade para usar a sua língua tal
como Deus lha tinha dado são tiradas pelo Seu amor, que
atua com o poder de Deus.

30
O milagre dos pães testemunhava a presença do Deus de
Israel, segundo as Suas promessas. Testemunhava a graça,
que ultrapassava mesmo os limites dessas promessas, vinda
da parte de Deus—do Deus que julgava o estado espiritual do
homem, mau em si, e o daqueles que, segundo a justiça,
pretendiam ter direito a elas. Esta graça resgatava e, em amor,
abençoava o homem, subtraindo-o ao poder de Satanás e
tornando-o capaz de escutar a voz de Deus e de O louvar,
bendizer e adorar.

Nesta parte da história do Senhor há ainda alguns fatos assaz


notáveis que desejo assinalar, pois mostram-nos o espírito em
que Jesus operava nesse momento. Ele retira-Se para longe
dos Judeus, depois de lhes ter mostrado o vazio e a hipocrisia
do seu culto e a iniquidade do coração humano — coração
esse que não era senão uma fonte de corrupção e de pecado.

O Senhor, nesse momento solene, que punha em evidência a


rejeição de Israel, retira-Se para longe, para um lugar onde
não havia oportunidade de operar no meio daquele povo.
Retira-Se para as fronteiras das cidades estrangeiras e
cananeias de Tiro e de Sidon (cap. 7:24) e, de coração
oprimido, não queria mesmo que alguém soubesse onde Ele
se encontrava. Mas a bondade e o poder de Deus tinham sido
sobejamente manifestados e Jesus não poderia agora estar
escondido lá, onde havia tantas necessidades.

A fama das Suas obras tinha-se expandido por toda a parte, e


o olho penetrante da Fé descobria facilmente o que podia
31
responder às suas necessidades. Assim a Fe encontra Jesus,
quando todos aqueles que, aparentemente, tinham direito às
promessas, são enganados por essa mesma pretensão c pelos
seus privilégios. A Fé é o que conhece as suas necessidades e
não conhece outra coisa, e sabe que somente Jesus pode
responder a elas.

O que Deus é para a Fé é manifestado a todo aquele que dela


tem necessidade, segundo a graça e o poder que estão em
Jesus. Escondido dos Judeus, Ele é graça para os pecadores.

Do mesmo modo (cap. 7:33), quando cura o surdo da sua


surdez e da sua dificuldade em falar, condu-lo para fora da
multidão, olha para o Céu e suspira. Oprimido no Seu
coração pela incredulidade do povo, tira, à parte, aquele que
acaba de ser o objeto do exercício do Seu poder.

Olha para a Fonte soberana de toda a bondade, de todos os


socorros para o homem, e aflige-se com o pensamento do
estado em que o homem se encontra.

Portanto, esta cura exemplifica mais particularmente o


Remanescente de entre os Judeus, segundo a eleição da graça
— Remanescente separado, por uma graça divina, da
totalidade da nação, estando a Fé em atividade entre esse
reduzido número.

O coração de Cristo está longe de repelir o Seu povo


terrestre. A Sua alma está abatida pelo sentimento de
32
incredulidade que separa Israel de Si e da salvação.
Entretanto Ele remove a surdez do coração de alguns e solta-
lhes a língua para que o Deus de Israel seja glorificado.

Por ocasião da morte de Lázaro, Cristo também Se aflige por


causa da dor que a morte traz ao coração humano.

Porém, neste caso, para além da dor, havia ainda um


testemunho público de como Deus sofre com o sofrimento do
homem, que Ele criou à Sua imagem e semelhança.

Veremos, no Capítulo 8, um outro exemplo do que acabamos


de referir. Jesus conduz o cego para fora da cidade Ele não
abandona Israel, desde que haja Fé ali, mas separa da
multidão aquele que tem esta Fé, e coloca-o em relação com
o poder, a graça, o céu de onde emana a bênção — bênção
essa que, por conseguinte, se estende também aos gentios. O
poder do Senhor não era exercido no meio de evidente
incredulidade. Isto mostra-nos muito claramente a posição de
Cristo com respeito ao povo. Ele prossegue a Sua obra, mas
retira-Se para Deus, por causa da incredulidade de Israel. Mas
é para o Deus de toda a graça. Ali o Seu coração encontra
refúgio, até que chegue a grande hora da expiação.

33
CAPÍTULO 8

É por isso que, segundo me parece, nos é dado o segundo


milagre da multiplicação dos pães. O Senhor opera em favor
de Israel, não mais como administrando o poder messiânico
no meio do povo (o que, tal como temos visto, era indicado
pelo número doze), mas, apesar da Sua rejeição por Israel,
continuando a exercer o Seu poder de uma maneira divina e
separada do homem. O número sete (2) tem sempre a força
da perfeição sobre-humana — o que está completo: isto,
porém, aplicado ao que está completo, tanto no poder do mal
como no do bem, quando não é humano e subordinado a
Deus.

(2) Note-se que sete é o número dígito indivisível mais


elevado.
Doze é o número mais divisível que há.

Aqui ele é divino. É essa intervenção de Deus, que não se


cansa e que está de acordo com o Seu próprio poder, o objeto
principal da repetição do milagre a manifestar.

Depois disso é-nos mostrado o estado espiritual dos chefes de


Israel e do Remanescente. Os fariseus pedem um sinal; mas
nenhum sinal seria dado a essa geração. O seu estado de
espírito era de completa incredulidade, pois tinham perante
eles abundantes provas de quem Jesus era!

34
Aliás, foram essas mesmas provas que os levaram a pedir-
Lhe um sinal! Por isso o Senhor se afasta deles. Mas o estado
de cegueira espiritual e de pouca inteligência do
Remanescente também se torna bem patente (vers. 16). O
Senhor adverte os Seus de evitarem o espírito e o ensino dos
fariseus, falsos pretendentes a ura santo zelo por Deus; e dos
herodianos, servis sectários do espírito mundano que, para
agradarem ao imperador, punham Deus inteiramente de
lado!...
Empregando a palavra «fermento», o Senhor dá aos Seus
discípulos oportunidade de manifestarem a sua pouca
inteligência espiritual. Se os Judeus não aprendiam nada dos
milagres do Senhor e ainda pediam sinais, os próprios
discípulos também não realizavam o poder divino que se
manifestava neles! É este estado de espírito — e eu não
duvido absolutamente nada — que está assinalado no cego de
Betsaida (vers. 22-26). Jesus toma-o pela mão e condu-lo
para longe da aldeia e da multidão; emprega, para operar (1)
a cura, algo que era de Si próprio, algo que possuía a virtude
da Sua própria Pessoa.

(1) O emblema, em relação com a santidade dos rabinos, era


muito estimado pelos Judeus, no que concerne a essa
relação; mas aqui a sua eficácia ligava-se à Pessoa daquele
que o usava.

E o primeiro efeito representa bem o estado de espírito dos


discípulos. Eles viam, sem dúvida, mas confusamente: viam
«homens como árvores, que andavam»! Mas o amor do
35
Senhor não se cansa da incrédula lentidão de inteligência
deles. Age a seu respeito segundo o poder da Sua própria
intenção e fá-los ver claramente! Em seguida — longe de
Israel — a incerteza resultante da incredulidade é aproximada
da certeza resultante da Fé (por mais obscura que seja a
inteligência desta) e Jesus, proibindo aos Seus discípulos de
falarem do que eles, certamente, criam (o tempo para
convencer Israel dos direitos de Cristo como Messias tinha
passado), anuncia o que Lhe deve acontecer para o
cumprimento dos desígnios de Deus em graça, como Filho do
homem, após a Sua rejeição por Israel (2).

(2) Não temos aqui nada da Igreja nem de Chaves do Reino.


Isso depende de algo que não é introduzido aqui como
fazendo parte da confissão de Pedro: «O Filho do Deus
vivo». Aqui encontramos a glória do Reino vindo em poder,
em contraste com o Cristo rejeitado, profeta-servo em Israel.

De modo que tudo está agora no seu lugar, por assim dizer:
Israel não vê em Jesus o Messias. Por conseguinte Jesus já se
não dirige ao povo como tal. Os Seus discípulos reconhecem-
NO como o Messias, e Ele anuncia-lhes a Sua morte e a Sua
ressurreição.

Ora, pode-se ter a verdadeira fé (e isto é uma verdade prática


muito importante) sem que o coração esteja moldado segundo
a plena revelação de Cristo e sem que a carne seja
praticamente crucificada em proporção da medida de
conhecimento que se tem do objeto da fé. Pedro reconhecia
36
bem, pela revelação de Deus, que Jesus era o Cristo; mas
estava longe de ter o coração limpo segundo os pensamentos
de Deus em Cristo. E quando o Senhor anuncia a Sua
rejeição, a Sua humilhação e a Sua morte, e isto perante toda
a gente, a carne de Pedro, escandalizada pela ideia de ter um
Mestre assim rejeitado e desprezado, mostra a sua energia
ousando repreender o próprio Senhor (vers. 32)!
Esta tentativa de Satanás, de desencorajar os discípulos pela
desonra da Cruz, revolta o coração do Senhor. Todo o Seu
afeto pelos Seus discípulos e a vista dessas pobres ovelhas
perante as quais o inimigo colocava uma pedra de tropeço é a
causa da violenta repreensão de Pedro como sendo o
instrumento de Satanás e falando da parte dele. Mas, para
nós, a razão do ato de Pedro era simples: os seus
pensamentos estavam nas coisas dos homens e não nas de
Deus; porque a Cruz encerra em si toda a glória de Deus. 0
homem prefere a gloria do homem, e por isso Satanás o
governa.
O Senhor chama o povo e os Seus "discípulos e explica-lhes
claramente que, se querem segui-LO, devem tomar o Seu
partido e carregar cada qual a sua cruz. Porque assim,
perdendo a vida, eles a salvariam, e a alma valia mais que
qualquer outra coisa. De resto, se alguém tinha vergonha de
Jesus e das Suas palavras, o Filho do homem se
envergonharia dele quando viesse na glória de Seu Pai com
os santos anjos. Porque, qualquer que fosse a Sua
humilhação, a glória Lhe pertencia! E é para lhes fortalecer a
fé que o Senhor coloca perante os Seus principais discípulos
essas sublimes revelações.
37
CAPÍTULO 9

No Evangelho segundo S. Mateus vimos a transfiguração


anunciada em termos que se referiam ao assunto desse
Evangelho: O Cristo rejeitado tomando a Sua posição
gloriosa de Filho do homem. Em todos os Evangelhos a
transfiguração está em relação com o momento em que esta
transição é claramente posta em evidência, mas com um
caráter particular em cada um deles. Em Marcos temos visto
o serviço humilde e dedicado de Cristo na proclamação do
Reino, fosse qual fosse a glória divina que resplandecesse
através da Sua humilhação. Por consequência, a manifestação
da transição para a glória é anunciada aqui como a vinda do
Reino em poder. Não há nada que distinga mais
particularmente o relato que temos aqui daquele que se
encontra em Mateus, exceto o isolamento de Jesus e dos Seus
três discípulos nesse momento, que é mais fortemente
acentuado no versículo 2, e que os feitos são relatados sem
mais adicionamentos. Em seguida o Senhor ordena-lhes que
não digam nada a ninguém acerca do que tinham visto até Ele
ser ressuscitado de entre os mortos.

Podemos observar aqui que é, com efeito, o Reino em poder


que se manifesta — e não o poder do Espírito Santo pondo o
pecador, como um membro santo do corpo, em relação com
Cristo, a Cabeça, revelando-lhe a glória celeste de Cristo, tal
como Ele está no Céu, à direita do Pai.

38
Cristo está na Terra. Está em relação com as grandes
testemunhas da ordem judaica (a lei e a profecia), mas
testemunhas que lhe cedem inteiramente o lugar, participando
mesmo da glória do Reino com Ele. Cristo é manifestado em
glória sobre a Terra: o homem na glória é reconhecido como
Filho de Deus, do mesmo modo que é conhecido na nuvem,
posto que revelando ali a Sua glória. Não é ainda a nossa
posição sem véu; o véu, quanto à nossa relação com Deus,
está rasgado de alto a baixo e temos plena liberdade de entrar
nos lugares santos pelo sangue de Cristo.

Mas é um privilégio espiritual e não uma manifestação


pública. Quanto a isso o nosso véu, o nosso corpo, não está
rasgado; mas está o ide Cristo, como privilégio de entrada
(1).

(1) A entrada na nuvem não faz parte desta revelação.


Encontramo-la em Lucas. A nuvem, para Israel, era o lugar
onde Deus habita; era uma nuvem luminosa (Mateus 17).

Mas esta posição de glória não podia ser tomada pelo Senhor,
nem estabelecer-se o reino glorioso, a não ser numa nova
ordem de coisas: Cristo devia ressuscitar primeiro de entre os
mortos, para depois a estabelecer. Esta nova ordem não se
conciliava com a apresentação de Jesus como o Messias, tal
como Ele estava então. Por isso ordena aos Seus discípulos
que não digam a ninguém o que tinham visto, senão após a
Sua ressurreição. Devia ser então uma confirmação poderosa
da doutrina do Reino em glória.
39
Esta manifestação da glória confirmava a fé dos discípulos
nesse tempo (do mesmo modo que o Getisêmani lhes
patenteava a realidade dos Seus sofrimentos e dos Seus
combates com o príncipe das trevas), e depois, quando o
Cristo tivesse tomado a Sua nova posição, ela constituiria o
tema e a confirmação do testemunho deles.

Em II Pedro 1:19 podemos ver o caráter desta manifestação e


as suas relações com o Reino terrestre de glória, de que os
profetas tinham falado. Leiamos, pois, essa passagem: «E
temos, mui firme, a palavra dos profetas».
Os discípulos tinham parado no limiar da porta. 'Embora os
seus olhos estivessem abertos, na realidade eles viam
«homens como árvores que andavam». Que quereria dizer
«ressuscitar de entre os mortos»? — perguntavam eles entre
si (vers. 10). A ressurreição era-lhes conhecida. Toda a seita
dos fariseus acreditava nela. Mas este poder, que libertava do
estado onde o homem e mesmo os santos se encontravam,
implicando também que outros ali existiam ainda
abandonados, enquanto esse poder se exercia — eis o que
eles ignoravam totalmente. De que havia uma ressurreição,
na qual Deus ressuscitaria todos os mortos no último dia, eles
não duvidavam. Mas que o Filho do homem fosse a
ressurreição e a vida — o triunfo absoluto do último Adão
sobre a morte, o Filho de Deus tendo a vida em Si mesmo,
manifestado pela Sua ressurreição de entre os mortos
(livremente que, a seu tempo, será também cumprido nos
santos), eis o que eles não entendiam. Eles recebiam, sem
40
dúvida, as palavras do Senhor como verdadeiras, como tendo
autoridade.

Mas o que Ele queria dizer-lhes era incompreensível para


eles.

Ora a incredulidade nunca deixa de encontrar objecções para


se justificar aos seus próprios olhos, que se recusam a
compreender as provas divinas da verdade—objecções assaz
fortes na aparência e que podem perturbar o espírito daqueles
que, pela graça do Senhor, estão dispostos a crer, ou que já
creram, mas que ainda estão fracos na fé.

Os profetas tinham dito que Elias viria primeiro. Os escribas


insistiam nessa afirmação (vers. 11). Impressionados agora
pela glória que confirmava de maneira incontestável as
pretensões de Cristo, os discípulos falam-Lhe desta
dificuldade. A convicção que a visão da glória trazia ao seu
espírito levava-os a confessar a dificuldade acerca da qual
eles se tinham calado anteriormente, não ousando falar dela.
Mas agora a prova é suficientemente forte para lhes dar a
coragem de que careciam para encararem de frente essa
dificuldade.

Com efeito, a Palavra de Deus falava desta vinda, e Jesus


aceita-a como sendo a própria verdade: Elias devia vir
primeiro e restaurar todas as coisas. E ele virá de fato antes
da manifestação da glória do Filho do homem. Mas é preciso
que o Filho do homem sofra primeiramente e seja rejeitado.
41
Isso também estava escrito, do mesmo modo que a missão de
Elias. Aliás, antes desta manifestação de Cristo, que punha os
Judeus à prova quanto às suas responsabilidades, Deus não
tinha deixado de fornecer a este povo um testemunho
segundo o poder e o espírito de -Elias, — mas eles fizeram
com ele tudo o que quiseram. "Estava escrito que o Filho do
homem sofreria antes da Sua glória, tão certo como estava
escrito que Elias viria. Na verdade, como acabamos de dizer,
quanto ao testemunho para os Judeus, aquele que tomava
moralmente o lugar de Elias já tinha vindo. E tinham-no
tratado como iam agora tratar o Senhor.
Paralelamente, João Batista tinha dito que ele não era Elias,
citando Isaías 40, que fala do testemunho; mas não cita nunca
Malaquias 4, que se refere a Elias pessoalmente.

O Senhor (Mateus 11:10) faz uma aplicação de Malaquias


3:1; mas João Batista cita Isaías.

Quando Jesus desceu do monte, a multidão correu para Ele,


espantada, ao que parece, da Sua misteriosa ausência, longe
dos Seus discípulos. Saúda-O com o respeito que toda a Sua
vida lhe tinha inspirado. Mas o que tinha tido lugar, durante a
Sua ausência, não fazia senão confirmar a solene verdade de
que Jesus devia ir-se embora — verdade esta que acabava de
ser posta em evidência por um testemunho mais glorioso. O
próprio Remanescente, os que criam, não sabia aproveitar do
poder que agora se encontrava sobre a Terra.

42
A fé destes crentes não realizava a presença do Messias, o
Poder de Jeová, o Salvador, o Médico de Israel. Para quê,
pois, continuar ainda no meio do povo e dos discípulos?

O pobre pai exprime a sua aflição duma maneira comovente,


por palavras que mostram um coração íntegro, rendido pelo
sentimento das suas necessidades, mas muito fraco na fé.
'Descreve o estado miserável do seu filho; e o seu coração
apresenta um verdadeiro quadro do estado de espírito do
Remanescente, da fé que tinha necessidade de ser fortalecida,
por causa da incredulidade sob a qual estava atrofiada. Israel
não valia mais do que a pobre criança. Mas aquele que tudo
podia estava lá! Isto não era a dificuldade, mas havia fé -para
aproveitar do Seu poder? Tal era a questão.

«Se tu podes» — diz o pai aflito a Jesus. «Se tu podes» —


responde o Salvador — aplica-se à tua fé. «Se tu podes crer,
todas as coisas são possíveis». O pobre pai, homem de
coração recato, confessa, com lágrimas, o seu próprio estado
de fraqueza espiritual, e procura na bondade de Cristo
socorro para as suas necessidades.

Assim, a posição de Israel estava plenamente manifestada.

A Onipotência estava lá para o curar, para o libertar do poder


de Satanás. Mas isso devia ser feito pela fé, por que a alma
devia voltar para Deus. E a fé existia naqueles que, tocados
pelo testemunho do Seu poder e movidos pela graça de Deus,
procuravam em Jesus o remédio para os seus males e o
43
fundamento das suas esperanças. A sua fé era fraca e
vacilante, mas lá, onde Ele se encontrava, Jesus agia segundo
o poder soberano da Sua própria graça e da bondade de Deus,
que encontrava nela própria a sua justa medida. Por muito
longe que possa ir a incredulidade naqueles que aproveitam
da graça de uma dispensação, em toda a parte onde é preciso
responder a uma necessidade, Jesus o faz, quando se olha
para Ele. E isto é, para nós, uma grande bênção e um grande
encorajamento.

Todavia, para que este poder fosse exercido pelo próprio


homem (para o que Deus o chamava), era preciso que o
homem se aproximasse intimamente de Deus —que aquele a
quem este poder fosse confiado se habituasse à comunhão
permanente de Deus, afastando-se de tudo aquilo que o punha
em relação com o mundo e a carne.

Resumamos agora os princípios desta narrativa, tendo em


vista a sua aplicação geral. O Senhor, que se ia embora, para
não ser mais do mundo, até que volte em glória, encontra, ao
descer do monte da transfiguração, um caso do poder de
Satanás sobre o homem, sobre o povo judeu. O homem e
Israel tinham estado sob esse poder quase desde o começo da
sua existência. A fé, que reconhece a intervenção de Deus em
Cristo e ali procura abrigo contra o mal atual, é fraca,
vacilante, preocupada do mal cuja vista lhe esconde em
grande parte o Poder que o domina e que o suprime.

44
Mas o sentimento da necessidade é assaz profundo para que a
fé encontre refúgio neste Poder — o Poder de Deus.

É a incredulidade, que não sabe contar com o Poder presente,


que põe fim às relações de Cristo com o homem.

Não é a miséria deste que faz isso, porque foi a miséria do


homem que trouxe Jesus à Terra. Mas agora a Omnipotência
está presente, e somente é necessária a fé para dela
aproveitar. E se o coração do homem, para fugir ao poder do
inimigo, se volta para Jesus, pode — graças a Deus! —
apresentar ao Senhor a sua incredulidade, como se de
qualquer outra coisa se tratasse. Em Jesus há o amor e o
poder bastantes para toda e qualquer espécie de fraqueza.

A multidão aumenta e comprime-se, atraída pela vista do


poder do inimigo. Poderia o Senhor curar o menino?

Ou poderia Ele deixar o testemunho do poder de Satanás


invadir os corações?... É a curiosidade dos homens, cuja
imaginação está cheia do efeito do poder do inimigo. Mas,
qualquer que fosse a incredulidade do homem, Cristo estava
lá, como testemunho de um Poder que, em amor pelos
homens, destruía os efeitos do poder de Satanás. O povo
acorre. Jesus vê-o e, com uma simples palavra, expulsa o
demónio. Jesus atua segundo as exigências do Seu poder e as
intenções do amor de Deus. O esforço do inimigo provoca a
intervenção do Senhor, que a fraqueza da fé do pai do menino
tendia a fazer parar. Não obstante, se colocamos toda a nossa
45
enfermidade, assim como a nossa miséria perante Cristo, Ele
responde sempre segundo a plenitude do Seu poder. Mas, por
outro lado, se a carne se ocupa das ideias da fé, desvia a
inteligência dos caminhos de Deus.

Enquanto viajava, Cristo ia explicando a Sua morte e o novo


estado que tomaria na Sua ressurreição. Porque censurava Ele
a falta de inteligência espiritual dos Seus discípulos, que lhes
escondia tudo e enchia o seu espírito de ideias de glória
terrestre e messiânica? É aqui que reside o segredo da sua
falta de inteligência espiritual: Jesus tinha-lho dito bem
claramente; mas, pelo caminho, eles discorriam entre si para
saberem qual deles ocuparia o primeiro lugar no Reino (vers.
34). Os pensamentos da carne enchiam os seus corações no
que dizia respeito a Jesus, precisamente em oposição ao que
ocupava o pensamento de Deus a Seu respeito. A
enfermidade apresentada a Jesus encontra uma resposta no
poder e na graça soberana do Senhor. A carne e as suas
concupiscências ocultam-nos, mesmo quando pensamos
n'Ele, todo o valor dos pensamentos de Deus. Era a sua
própria glória que os discípulos procuravam no Reino. A
Cruz, verdadeiro caminho da glória, era-lhes ininteligível.

O Senhor (vers. 31 e seguintes) retoma em seguida com os


discípulos o grande tema que nesse momento estava perante
Ele, a questão que, de qualquer modo, tinha de ser decidida:
Ele devia ser rejeitado. E isola-Se da multidão com os Seus
discípulos, para os instruir sobre este ponto.

46
Mas os discípulos, preocupados com a Sua glória e com os
Seus direitos como Messias, não compreendiam nada dos
Seus discursos. A sua própria fé, tal como ela era, cegava-os
acerca de tudo o que ultrapassava os seus pensamentos,
porque, mesmo ligando-se à Pessoa de Cristo, esta fé —ou
antes, os seus próprios corações, nos quais ela se encontrava
— ligava a Jesus e n'Ele procurava o cumprimento de tudo
aquilo que a carne desejava para seu próprio interesse. Quão
astuto é o coração humano! Vemos revelar-se claramente a
sua subtileza na disputa pela preeminência que os discípulos
mantinham entre eles. A sua fé é demasiado fraca para poder
suportar superioridades ou esclarecimentos que contrariem as
suas ideias (vers. 32).

E essas ideias manifestam-se bem e sem dissimulação entre


eles. Jesus repreende-os e apresenta-lhes como exemplo uma
criancinha, conforme já tinha feito noutras ocasiões. Aquele
que seguia Cristo devia ter um espírito inteiramente contrário
ao espírito do mundo — um espírito em conexão com tudo o
que era fraco e desprezado pelo orgulho do mundo.

Recebendo assim uma criancinha, recebia-se Cristo — e


recebendo-se Cristo recebia-se o Pai. Tratava-se de coisas
eternas e o espírito do homem deve, portanto, ser como o
espírito de uma criança.

O mundo estava de tal modo oposto a Cristo que quem não


era contra Ele era por Ele (1).

47
(1) Alguns têm dificuldade em conciliar estas palavras com a
seguinte passagem: «Aquele que não é por mim é contra
mim». Mas as duas passagens concordam entre si, quando se
tem em conta o ponto principal: Cristo era o critério divino
do estado do homem — e isso resolve a questão. O mundo
estava totalmente, absolutamente contra o Senhor. Se um
homem não estava contra Ele — e aqui não podia haver meio
termo — era por Ele; ora, se um homem não era por Ele, é
porque esse homem era do mundo, e, por conseguinte, contra
o Senhor.

O Filho do homem devia ser rejeitado. Tratava-se da fé na


Sua Pessoa e já não de um serviço individual para Ele. Mas7
e infelizmente, os discípulos pensavam mais neles próprios:
«Ele não nos segue». Eles deviam partilhar a rejeição do seu
Mestre.

E se alguém lhes desse a beber um simples copo de água fria


que fosse, Deus lembrar-se-ia disso. O que quer que fosse
que pudesse fazê-los tropeçar na sua marcha, fosse mesmo o
seu olho direito ou a sua mão direita, eles fariam bem
arrancando-os, porque não eram as coisas de um Messias
sobre a Terra que estavam em jogo, mas as da Eternidade.

Tudo será posto à prova pela perfeita santidade de Deus, e


isso em julgamento, de uma maneira ou de outra, cada um,
bom e mau, será salgado com fogo. Onde houver vida, o fogo
não consumirá senão a carne; porque, quando somos
julgados, somos castigados pelo Senhor, a fim de que não
48
sejamos condenados com o mundo. Se o julgamento atinge os
maus (e, certamente, ele os atingirá), é a condenação, é um
fogo que não se apaga. Mas, para os justos, há também outra
coisa: Eles serão salgados com sal.

O poder da santa graça que liga a alma a Deus e a preserva


interiormente do mal, não faltará aqueles que são
consagrados a Deus, cuja vida é uma oferenda para Ele. Sem
dúvida o sal não é a doçura que agrada e que a graça produz,
mas sim esta energia divina em nós, que une todas as coisas
com Deus e Lhe consagra o coração, ligando-o a Ele por um
sentimento de obrigação e de desejo, rejeitando tudo o que
em si mesmo Lhe é contrário (obrigação que decorre da
graça, e que por isso opera mais poderosamente).

Assim, na prática, era a graça distintiva, a energia da


santidade, que separa de todo o mal e aparta para Deus. 0 sal
era uma boa coisa. Aqui, o efeito produzido na alma, o estado
da alma em si mesma é assim chamado, do mesmo modo que
a graça, que produz esse estado, é também chamada sal.
Assim, os que se ofereciam a Deus eram postos à parte para
Ele — eram o sal da Terra Ora, se o sal perde o seu sabor,
com que poderemos nós salgar?

O sal serve para salgar outras coisas, mas se vier a tornar-se


insípido e precisar de sal para si próprio, nada mais haverá
que o possa salgar! E o mesmo se dá com os Cristãos, Se
aqueles que são de Cristo não derem bom testemunho, onde
encontrar fora deles quem o faça e produza esses próprios
49
Cristãos o efeito desejado? Este sentimento de obrigação a
Deus, que separa do mal, este julgamento de todo o mal no
coração deve encontrar-se em nós mesmos. Não se trata aqui
de julgar os outros, mas de cada qual se colocar perante Deus,
tornando-se assim o sal da Terra, e tendo esse sal em si
mesmo. A respeito dos outros, deve-se procurar a paz. E é a
verdadeira separação de todo o mal que nos torna capazes de
andarmos juntos em paz.

Numa palavra, os Cristãos deviam manter-se separados do


mal, perto de Deus, andando com Deus e estando em paz uns
com os outros.

Seria impossível ter uma instrução mais clara, mais


importante, mais preciosa. Em poucas palavras ela julga, ela
dirige toda a vida cristã.
Mas o termo do serviço do Senhor estava próximo.

Tendo descrito nestes princípios as exigências da Eternidade


e o caráter da vida cristã, Jesus restabelece, nos seus
primeiros princípios, todas as relações de Deus com o
homem, pondo de lado o mundo e a sua glória, assim como a
glória judaica, do ponto de vista do seu cumprimento
imediato, mostrando também o caminho da vida eterna, que
se encontrava na Cruz e no poder de Deus que salva. Não
obstante, e no meio de tudo isto, toma Ele próprio o lugar de
obediência e de serviço — verdadeiro lugar do homem!...

50
Por outro lado, o próprio Deus sendo introduzido no Seu
próprio caráter de Deus, na Sua natureza e nos Seus direitos
divinos — sendo deixadas de lado a especial glória que
pertence às dispensações e as relações que lhes são
próprias!...

51
CAPÍTULO 10

É um princípio admirável como este que se nos apresenta


aqui — as relações da natureza (tais como o próprio Deus as
estabeleceu no princípio) restabelecidas na sua autoridade
original, enquanto o coração é julgado, e, além disso, a Cruz,
único meio de chegar junto de Deus, que tinha sido a fonte
criadora dessas relações. Na Terra, Cristo não podia oferecer
senão a Cruz àqueles que O seguiam.

A glória, a que a Cruz devia conduzir, fora revelada a alguns.

Mas, para Ele, tomara o lugar de servo. Era o conhecimento


de Deus, através de Jesus Cristo, que devia prepara-los para
essa glória e a ela os levar, porque isso era, realmente, a vida
eterna. Todos os outros meios intermediários se tinham
tornado, nas mãos dos homens, hostis a Deus, que os tinha
concedido para Sua manifestação na Pessoa de Cristo.

É por isso que encontramos nos versículos 1-12 a origem das


relações que devem existir entre o homem e a mulher, tal
como tinham saído das mãos criadoras de Deus, Nos
versículos 13-16 vemos o interesse que Jesus tomava pelas
criancinhas, o seu lugar aos olhos compassivos de Deus, e o
valor moral do que elas representavam perante os homens.

No versículo 17 chegamos à lei, ao mundo, e ao coração do


homem, colocado em presença de ambos. Mas ao mesmo
52
tempo vemos que Jesus tem prazer naquilo que é amável na
criatura, como criatura — princípio de um profundo interesse
desenvolvido neste capítulo — aplicando sempre moralmente
a pedra-de-toque (1) a esse mesmo coração.

(1) Pedra-de-toque — pedra de jaspe negro que serve para


avaliar a pureza dos metais que nela se esfregam. Em sentido
figurado significa: meio de prova seguro, em que podemos
confiar.

Pelo que concerne à lei, tal como o coração natural a pode


considerar (isto é, quanto aos atos exteriores que ela exige), o
jovem tinha-a observado. Tinha-a observado com natural
sinceridade, com um rigor que Jesus sabia apreciar como uma
qualidade da criatura, e que devemos sempre reconhecer onde
quer que exista. É importante recordar que Aquele que, como
homem, era perfeitamente separado para Deus — e isto
porque Ele tinha os pensamentos de Deus — sabia
reconhecer ao mesmo tempo as imutáveis obrigações das
relações estabelecidas pelo próprio Deus, e também tudo o
que havia de amável e de atraente na Sua criatura, como tal.

Tendo Jesus os pensamentos de Deus — sendo Deus


manifestado em carne — poderia Ele não reconhecer o que
era de Deus na Sua criatura?! E, fazendo-o, tem de
estabelecer as obrigações das relações em que colocou a Sua
criatura e mostrar a Sua ternura pelas nascentes imagens do
espírito que Lhe era querido. Ele tem de amar a retidão
natural que pode manifestar-se na Sua criatura. Mas tem -de
53
julgar também o verdadeiro estado do homem plenamente
desenvolvido, os afetos que se prendiam aos objetos que
Satanás suscitava, e uma vontade que repelia e abandonava a
manifestação de Deus — levando o homem a deixar as suas
vaidades e a segui-LO, pondo assim moralmente à prova o
seu coração.

De uma outra maneira ainda, Jesus põe em evidência a


perfeição absoluta de Deus. O jovem via o exterior da
perfeição de Cristo, confiando no poder do homem para
realizar o que era bom. Vendo essa realização prática em
Jesus, e embora o não considerasse senão como um simples
rabino, o jovem dirige-se a Ele e, humanamente falando, com
sinceridade, pretende aprender Daquele em quem via tanta
perfeição, a regra da vida eterna. Este pensamento exprime-se
na saudação sincera e cordial que Lhe dirige.

Corre, ajoelha-se em frente desse Doutor, que tinha um lugar


tão alto na sua estima, e diz: «Bom Mestre!».

Os limites humanos dos seus pensamentos acerca dessa


bondade e a sua confiança no poder do homem manifestam-
se por estas palavras: «Que farei para herdar a vida eterna?».

O Senhor compreendendo toda a importância das suas


palavras, responde-lhe: «Porque me chamas bom? Ninguém é
bom senão um só, que é Deus» (vers. 18). Todo aquele que
conhecer Deus respeitará o que Deus criou, quando se
apresentar como tal e no seu devido lugar. Mas somente Deus
54
é bom. O homem, se é inteligente, não tem a pretensão de ser
bom diante de Deus, nem sonha com a bondade humana. Este
jovem esperava, pelo menos, vir a ser bom pela lei (1) e cria
que Jesus era bom como homem.

(1) Pedra-de-toque — pedra de jaspe negro que serve para


avaliar a pureza dos metais que nela se esfregam. Em sentido
figurado significa: meio de prova seguro, em que podemos
confiar.

Ora, as maiores vantagens que a carne podia reconhecer e que


respondiam à sua natureza, não faziam senão fechar mais
ainda ao homem a porta da vida e do Céu. Não sendo o
homem bom, mas sim pecador, a carne aproveitava-se da lei
para fazer a sua própria justiça. E, com efeito, se é necessário
procurarmos a Justiça, é porque não a temos (isto é, somos
pecadores e não podemos alcançar essa Justiça por nós
próprios). Além disso, as vantagens deste mundo, que
parecem tornar o homem mais capaz ide fazer o bem,
prendem o seu coração ao que parece, alimentam o seu
egoísmo e levam-no a dar pouco valor ã imagem de Deus.

Mas os ensinamentos deste capítulo ampliam


consideravelmente este assunto acerca do estado do homem
perante Deus. Os pensamentos da carne acompanham o afeto
do coração daquele que está já vivificado pelo espírito da
graça, agindo pelo atrativo de Cristo, e emprestam-lhe a sua
forma, até que o próprio Espírito Santo comunique a essas
afeições a força da Sua presença, dando-lhes como objeto a
55
glória de Cristo no Céu. Mas, ao mesmo tempo, faz luzir
(para o coração do crente) sobre a Cruz a luz dessa glória,
revestindo a Cruz de todo o valor da redenção que ali foi
consumada, e da graça divina que nela é a fonte, e
produzindo a identidade com Cristo naquele que leva a sua
cruz com Ele.

Pedro não compreendia como se podia ser salvo, se tais


vantagens, como as que os Judeus possuíam nas suas relações
com Deus (e que se apresentavam de modo especial no caso
desse jovem), não faziam senão barrar o caminho do Reino
de Deus. O Senhor reencontra-o nessa mesma posição,
porque a questão agora é justamente a do homem perante
Deus. Enquanto se tratava apenas do homem, isso era
impossível — segunda e «profunda verdade— no que diz
respeito à sua condição de pecador. Não somente não havia
ninguém bom, exceto Deus, mas também ninguém podia ser
salvo, segundo o que o homem era, desprovido da graça do
Senhor. Quaisquer que fossem as suas vantagens, como
meios não lhe teriam servido de nada no seu estado de
pecado.

Mas o Senhor introduz uma outra fonte de esperança—«Para


Deus todas as coisas são possíveis». Tudo isso, e, em boa
verdade, toda esta parte do Evangelho, o mostra, pondo
mesmo de parte o sistema judaico, porque, enquanto que esse
sistema assentava sobre a prova feita da possibilidade de
adquirir, pela posse de leis divinamente estabelecidas, a
Justiça e um lugar na presença de um Deus que até então Se
56
não havia manifestado, agora esta nova fonte de esperança
revelava Deus e conduzia o homem e o coração do homem
para um frente a frente com Ele, como uma coisa presente,
em graça, sem dúvida, mas, no entanto, face a face, tal como
Ele era. Os discípulos, não tendo ainda recebido o Espírito
Santo, estão sob a influência do antigo sistema e não veem os
homens senão como árvores que andam. Este assunto é
plenamente desenvolvido neste capítulo. Na verdade, eles
podiam sonhar com o Reino, mas não era senão com
pensamentos carnais.

Mas a carne, os pensamentos carnais introduzem-se ainda


mais profundamente na carreira da vida de graça. Pedro
lembra ao Senhor que os discípulos tinham abandonado tudo
para O seguirem. O Senhor responde: «Em verdade vos digo
que ninguém (1) há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou
irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de
Mim e por amor do Evangelho, que não receba, já no
presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e
campos, com perseguições; e no mundo por vir a vida eterna»
— mas Pedro não pensava nisso.

(1) Isto saía já das relações dos discípulos mesmo com os


Judeus, e, em princípio, admitia os Gentios.

O Senhor afirma claramente que, quem quisesse segui-LO


não alcançaria neste mundo qualquer vantagem individual ou
particular, mas a Vida Eterna. O Senhor saía assim da esfera
das promessas ligadas ao Messias na Terra, para entrar e
57
fazer entrar os outros naquilo que era eterno. Não se podia,
pois, julgar segundo as aparências no que concernia a
recompensas individuais.

Em 'boa verdade, os discípulos seguiam Jesus e pensavam na


recompensa, mas pouco na Cruz, que era, afinal, o verdadeiro
caminho. Por isso estavam espantados ao verem Jesus dirigir-
Se deliberadamente para Jerusalém, onde queriam matá-LO,
e tiniram medo (vers. 32). Mesmo seguindo-O, estavam longe
de poderem compreender o que o caminho implicava. Por
isso Jesus lho explica frequentemente: Implicava a Sua
rejeição e a Sua entrada no Novo Mundo pela ressurreição.
João e Tiago, pouco tocados ainda pelas comunicações do
Senhor, servem-se da sua fé na realeza de Cristo para
apresentarem o desejo carnal do seu coração, que era o de
estarem um à Sua direita e o outro à Sua esquerda na glória.
E o Senhor de novo os adverte de que eles terão de levar a
cruz com Ele; e tomar Ele mesmo o lugar daquele que deve
realizar o serviço que lhe está confiado, chamando os outros à
comunhão dos Seus sofrimentos. Quanto à glória do Reino,
isto é, quanto ao assentar-se à Sua direita ou à Sua esquerda,
não Lhe competia a Ele concedê-lo; porque era para aqueles a
quem estava preparado. Tal é o lugar de serviço, de
humilhação e de obediência em que este Evangelho no-LO
apresenta sempre. Tal devia ser também o dos Seus
discípulos.

Acabamos ide ver o que representava a carne num jovem


íntegro, que Jesus amava, e nos Seus discípulos, que não
58
sabiam tomar a verdadeira -posição de Cristo. É notável o
contraste entre estes fatos e o pleno triunfo do Espírito Santo,
como podemos ver, comparando este capítulo com Filipenses
3.

Paulo apresenta-se-nos ali como um homem exteriormente


irrepreensível, segundo a lei, tal como o jovem do Evangelho;
mas viu Cristo em glória, e, pelo ensinamento do Espírito
Santo, a Justiça — a Justiça segundo a qual Cristo tomou
lugar na glória, de onde se revelou a Paulo.

Tudo aquilo que tinha sido um ganho era agora uma perda
para Paulo! Pretenderia ele ainda algo de uma justiça carnal,
de uma justiça de homem, ainda que pudesse cumpri-la,
quando tinha visto a Justiça que brilhava na glória de Cristo?!
Paulo tinha agora a Justiça que era de Deus pela fé. Que
valeria, pois, aquela justiça pela qual tinha trabalhado, agora
que possuía a perfeita Justiça que Deus dava pela fé?! Não só
os pecados eram apagados, mas também, por força dessa
Justiça, a justiça do homem se tornara sem valor. Os olhos de
Paulo tinham sido abertos pelo poder do Espírito Santo e pela
presença de Cristo.

Poderiam ainda os atrativos, que conquistavam o coração do


jovem e o retinham no mundo que Cristo deixava, e que,
rejeitando Cristo, tinha rejeitado Deus, reter aquele que já
tinha visto Cristo na Sua glória? É evidente que não!

59
Esses atrativos eram agora para ele como imundície. Paulo
tinha feito a perda de todas as coisas a fim de ganhar Cristo.
Considerava-as como sendo absolutamente sem valor.

O Espírito Santo, revelando-lhe Cristo, tinha-o libertado


inteiramente dessas prisões. Ora, esta manifestação de Cristo
glorificado ao coração vai ainda mais longe. O homem que
rompe assim com o mundo deve seguir Aquele a cuja glória
aspira; e, para isso, tem de colocar-se sob a Cruz. Os
discípulos tinham abandonado tudo para seguirem a Jesus. A
graça tinha-os ligado a Cristo, para O seguirem. O Espírito
Santo ainda os não ligara à Sua glória. Jesus sobe a
Jerusalém. Os discípulos espantam-se e têm medo de O
seguir, embora Ele vá à frente, fortalecendo-os com a Sua
condução e a Sua presença. Paulo procura o poder da Sua
ressurreição, deseja a comunhão dos Seus sofrimentos e de
tornar-se semelhante a Ele na Sua morte.

Em vez de espanto e de terror, há em Paulo plena inteligência


espiritual e desejo sincero de ser conforme a essa morte, que
os discípulos receavam. Ali ele encontrava Cristo e o
caminho da glória que o Senhor lhe tinha revelado. Aliás,
esta visão de Cristo purifica os desejos do coração, mesmo a
respeito da glória. João e Tiago queriam para eles próprios o
melhor lugar no Reino — 'desejo esse que se servia (num fim
carnal e egoísta) da inteligência da fé — inteligência essa que
via apenas a cinquenta por cento e procurava, logo de início,
o Reino, em vez de procurar a glória e o mundo por vir. Paulo
tinha visto a Cristo e o seu único desejo na glória era possuí-
60
LO— «a fim de que eu ganhe Cristo», e um novo estado
conforme a esse desejo.

Não um bom lugar ao pé d'Ele no Reino, mas Cristo mesmo.


É a libertação — o efeito da presença do Espírito Santo,
revelando um Cristo glorificado.
Podemos notar que em cada caso o Senhor introduz a Cruz.
Era a. única passagem deste mundo decaído para o mundo da
glória e da vida eterna (1).

(1) Desde a transfiguração até ao ponto em Que se trata dos


Seus direitos como Filho de Davi, é a Cruz que é sempre
apresentada. O ministério de profeta e de pregador que Ele
tinha realizado até então, terminava (com a transfiguração,
na qual brilhava a Sua glória futura neste mundo) sobre a
Cruz, que devia ser o termo de Seu serviço aqui, na Terra.
Mas, antes de lá chegar, Jesus apresenta-Se como Rei.
Mateus começa pelo Rei, mas Marcos tem essencialmente em
vista o Profeta.

Ao jovem Ele mostra a Cruz; a João e a Tiago, que pedem


um bom lugar no Reino, Ele mostra a taça que eles teriam de
beber, seguindo-O. Segundo a determinação de Deus, a vida
eterna, se bem que recebida já, estava, em possessão e em
gozo, do outro lado da Cruz.

Notemos também que o Senhor estava tão perfeitamente e tão


divinamente acima do pecado em que jazia a natureza, que
podia reconhecer tudo o que nela era de Deus, e mostrar ao
61
mesmo tempo que toda a relação entre o" homem e Deus era
impossível, em face do que o homem é. As vantagens não
constituíam senão impedimentos. Era preciso passar por
aquilo que é a morte da carne. É preciso termos uma Justiça
divina e entrar em espírito (mais tarde entraremos de fato)
num outro mundo, para O seguirmos e estarmos com Ele,
para «ganharmos Cristo». Solene lição esta!...

De fato, só Deus é bom, e — tendo o pecado entrado — se


Deus Se manifesta, é impossível ao homem estar em relação
com Ele. Mas para Deus tudo é possível. E a Cruz é o único
caminho para Deus. Cristo ali conduz, e é preciso segui-LO
nesse caminho, que é o caminho da vida eterna. Quem tiver o
espírito de uma criancinha ali entrará pela graça. O espírito
de serviço e de humilhação de si próprio tem ali o seu
caminho. Cristo ali andou, dando a Sua vida em resgate de
muitos. Aqui termina esta parte da instrução dada pelo
Senhor. A humildade no serviço é o lugar onde Cristo nos
põe. Foi lá que Ele andou. Este capítulo é digno de toda a
atenção que, pela graça, o Cristão lhe puder consagrar,
porque fala do terreno sobre o qual o homem pode
permanecer, e mostra até onde Deus reconhece o que é
natural — e a senda dos discípulos aqui, em baixo.

No vers. 46 começa um outro assunto. O Senhor entra no


caminho idas Suas últimas relações com Israel, apresentando-
Se antes como Rei, Emanuel, do que como o profeta, que
devia ser enviado. Como profeta, o Seu ministério tinha sido
cumprido. Tinha sido «enviado para pregar», dissera Ele aos
62
Seus discípulos. Essa missão conduzira-O à Cruz, como
vimos. E Ele devia, necessariamente, anuncia-lo, como
resultado, aos que O seguiam. O Senhor retoma agora as Suas
relações com Israel, mas como Filho de Davi.

Aproxima-se de Jerusalém, de onde se havia afastado e onde


devia ser rejeitado. E o poder de Deus manifesta-se n'Ele.
Aquele que traz a bênção ao preço do dom de Si próprio entra
por Jericó, cidade da maldição (Josué 6:26).

O pobre cego (1) (e tal era, com efeito, o povo) reconhece


que Jesus, o Nazareno, é o Filho de Davi.

(1) Já fiz notar que o cego de Jericó é, nos três primeiros


"Evangelhos.
O ponto onde começam a história das últimas relações de
Cristo com os Judeus e os Seus sofrimentos finais, estando
terminados o Seu ministério geral e o Seu serviço.

A graça de Jesus responde em poder às necessidades do Seu


povo, que se exprimia pela fé e pela perseverança, apesar dos
obstáculos que a multidão colocava na estrada, multidão essa
que não sentia essas necessidades e apenas seguia Jesus
atraída pelas manifestações do Seu poder, sem que a fé do
coração estivesse ligada a Ele.

Aquela fé, a fé que o cego revelava, tem o sentimento das


necessidades. Jesus para e chama-o, e manifesta, em presença
de todos, o poder divino que, no meio de Israel, respondia à
63
fé que reconhecia em Jesus de Nazaré o verdadeiro Filho de
Davi, o Messias.

A fé deste pobre homem o tinha curado, e ele segue Jesus


estrada fora, de coração sincero e sem medo, porque a fé que
reconhecia Jesus como sondo o Cristo era uma fé divina,
posto que não conhecesse talvez nada ida Cruz que o Senhor
acabava de anunciar aos Seus discípulos, como consequência
da Sua fidelidade e do Seu serviço, coisas em que a fé,
quando é genuína, deve estar sempre presente.

64
CAPÍTULOS 11 E 12

No texto que segue Jesus apresenta-Se a Jerusalém como Rei.


A Sua recepção mostra até que ponto o testemunho que Ele
tinha dado calara fundo no coração dos simples.

E Deus também queria que esta recepção tivesse lugar da


maneira que teve. Há pouca diferença entre o relato que
temos aqui e o de Mateus. Somente o Reino, como tal, é
apresentado mais simplesmente: «O Reino do nosso pai
Davi» (vers. 10).

Com que dignidade Jesus, como Juiz de todas as coisas, toma


agora conhecimento público de tudo o que se fazia no templo,
e dali sai sem nada dizer! O Senhor tinha visitado o Seu
templo, do mesmo modo como tinha entrado na cidade
montado num jumentinho sobre o qual nunca homem algum
se sentara. Julga Israel, na figueira maldita (1).

(1) É o homem sob a antiga aliança, a carne sob a exigência


de Deus, e nunca fruto algum aí crescerá.

A glória do Senhor, da Casa do Eterno, é reivindicada com


autoridade — uma autoridade que Jesus reclama e que exerce
na Sua própria Pessoa. Os escribas e os principais sacerdotes
recuam perante o ascendente que a Sua palavra Lhe tinha
dado sobre o povo. E fosse qual fosse a malícia deles, Jesus
sai da cidade sem ser molestado.
65
No dia seguinte os Seus discípulos espantam-se ao verem que
a figueira tinha secado até à raiz. Jesus assegura-lhes que
tudo o que eles pedirem com fé lhes será feito, mas deverão
agir em graça para gozarem desse privilégio.

Os escribas, os principais sacerdotes e os anciãos,


confundidos, perguntam-Lhe com que autoridade fazia Ele
aquelas coisas, ou quem Lhe deu tal autoridade para as fazer;
mas Jesus dirige-Se à consciência deles de maneira a
demonstrar-lhes a sua incompetência para Lhe fazerem uma
tal pergunta, descobrindo ao mesmo tempo a falta de
sinceridade deles: Não sabiam que responder ã questão do
batismo de João. Com que direito então O submetiam eles às
suas questões a respeito dos Seus próprios direitos?!

Não sabiam decidir nada, quando havia oportunidade de o


fazer. Por outro lado, com a sua resposta, ou teriam
sancionado a obra de Jesus ou teriam perdido a autoridade
sobre o povo ao renegarem o batismo de João, que tinha dado
testemunho de Cristo. Quanto ao ganhá-los...—já não se
tratava disso. Mas que frivolidade que é a sabedoria do
homem em presença de Deus e da Sua sabedoria!
A mudança de dispensação, e o pecado que rejeitava o Rei
têm um lugar mais demarcado no Evangelho segundo S.
Mateus. Em Marcos é dada mais ênfase ao serviço de Cristo
como Profeta. Em seguida Jesus apresenta-Se como Rei,
como já vimos. E, nestes dois Evangelhos, vemos que é Jeová
quem cumpre a missão que Ele se dignou tomar.
66
Consequentemente, encontramos em Mateus acusações mais
pessoais contra os Judeus, como na parábola dos dois filhos
(Mateus 21:28-32), e a particularidade da mudança de
dispensação na parábola das bodas (Mateus 22:1-14). Estas
duas parábolas não se encontram em Marcos.

Neste Evangelho o Espírito de Deus apresenta-nos a imutável


dignidade da Pessoa do Senhor e o simples fato de que o
Profeta e o Rei eram rejeitados — rejeição essa que
acarretava o julgamento de Israel. É, aliás, o mesmo
testemunho geral que vimos em Mateus.

Em seguida o Senhor dá o resumo de toda a lei como


princípio de bênção entre a criatura de Deus e o que
constituía a pedra-de-toque para o coração, na rejeição de
Cristo. Digo para o coração, porque a prova estava realmente
lá, embora fosse apenas na inteligência que ela aparecia.

Mesmo quando se tinha princípios verdadeiramente


ortodoxos (Cristo sendo rejeitado), o coração que não se
ligasse à Sua Pessoa não podia segui-Lo no caminho para
onde a Sua rejeição O conduzia. O sistema dos desígnios de
Deus, que dependia dessa rejeição, era uma dificuldade.

Embora sem o terem compreendido antes, os que estavam


ligados à Sua Pessoa seguiam-No e encontravam-se nesse
mesmo caminho. Assim, o Senhor dá a essência da lei — de
toda a lei — como ensinamento essencialmente divino — e o
67
ponto onde os desígnios de Deus são transplantados para a
nova cena onde devem cumprir-se fora da maldade e da má
vontade do homem. De modo que esses poucos versículos
(cap. 12:28-37) nos apresentam a lei e o Filho de Davi, e Este
tomando o lugar de Filho do homem —o Senhor— à direita
de Deus. Era o segredo de tudo o que se passava. A união do
Seu corpo, a Assembleia, com Ele próprio era tudo o que
faltava. Somente em Marcos o Profeta reconhece o estado
moral que, sob a lei, tende para a entrada no Reino (vers. 34).
Este escriba tinha o espírito de entendimento.

O quadro da condição que trazia o julgamento, que


encontramos em Mateus 23, não nos é dado aqui. Não era o
Seu assunto na ocasião. Jesus, ainda como Profeta, adverte
moralmente os Seus discípulos. Mas o julgamento de Israel,
por ter rejeitado o Filho de Davi, não está aqui, perante os
Seus olhos, da mesma maneira que o encontramos em Mateus
(quer dizer que não é da rejeição que o Espírito Santo se
ocupa agora). O verdadeiro caráter da devoção dos escribas é
assinalado, e os discípulos são prevenidos contra eles. O
Senhor faz-lhes sentir também o que, aos olhos de Deus, dava
verdadeiro valor as ofertas que eram trazidas para o templo.

68
CAPÍTULO 13

Neste capítulo o Senhor tem em vista muito mais o serviço


dos apóstolos, nas circunstâncias em que eles se iam
encontrar, do que o desenvolvimento dos planos e dos
caminhos de Deus acerca do Reino — ponto de vista
apresentado antes, em Mateus, que desenvolve este assunto.
Notaremos que a questão dos discípulos apresenta, de um
modo geral, o assunto que os preocupava. Perguntam quando
se cumprirá o julgamento sobre o templo e quando sucederão
todas as outras coisas. Os versículos 9-13, embora contendo
algumas circunstâncias que encontramos em Mateus 24,
referem-se sobretudo ao que é dito em Mateus 10. Trata-se,
com efeito, da obra que os discípulos realizariam no meio de
Israel e em testemunho contra as autoridades perseguidoras,
sendo o Evangelho pregado em todas as nações, antes que
chegue o fim. Os discípulos deviam tomar, como pregadores,
o lugar que Jesus tinha ocupado no meio do povo. Mas o seu
testemunho devia ir muito mais longe: Encontrariam todos os
sofrimentos possíveis e as mais dolorosas perseguições.

Ora, em dado momento esse serviço devia terminar, e o sinal,


bem conhecido, da abominação da desolação indicaria esse
momento. Eles deviam então fugir. Seriam os dias de
tribulação sem igual, e sinais e maravilhas que, se fosse
possível, enganariam os próprios eleitos. Mas eles estavam
prevenidos. Depois desses 'dias tudo seria abalado e o Filho
do homem viria. O poder tomaria o lugar do testemunho e o
69
Filho do homem ajuntaria os Seus eleitos (de Israel) de todas
as partes da Terra.

Parece-me que neste Evangelho, mais do que em qualquer


outro, o Senhor junta o próximo julgamento de Jerusalém
com o futuro, chamando a atenção para este, porque se ocupa
-mais da conduta dos Seus discípulos «durante esses
acontecimentos. Israel e todo o sistema no meio do qual o
Senhor tinha aparecido deviam ser provisoriamente postos de
lado para introduzir a Assembleia e o Reino no seu caráter
celeste, e em seguida o milénio — isto é, a Assembleia na
Sua glória e o Reino estabelecido em poder — quando o
sistema legal e Israel, sob a primeira aliança, fossem
finalmente postos de lado. Nestes dois períodos, a posição
geral dos discípulos 'seria a mesma. Mas, no segundo, os
acontecimentos seriam mais definitivos e importantes, e é
desses que o Senhor mais particularmente falava. Todavia, o
que estava mais iminente e que para o presente punha de lado
Israel e o seu testemunho, exigia que uma advertência fosse
feita aos discípulos por causa do perigo que os ameaçava — e
eles aqui a recebem.

O esforço dos Judeus para restabelecerem finalmente o seu


sistema, em desprezo de Deus, não fará senão trazer uma
apostasia declarada e o julgamento definitivo. Será o tempo
«da tribulação sem igual, de que o Senhor fala.
Mas desde o tempo da primeira destruição de Jerusalém por
Tito até à vinda do Senhor, os Judeus são considerados como

70
postos de lado e sob este julgamento, seja qual for o grau do
seu cumprimento.

Os discípulos são chamados a velar porque não sabem nem o


dia nem a hora. E é a conduta dos discípulos a este respeito
que está aqui de modo especial perante os olhos do Senhor. Ê
este grande dia e hora em que o Senhor voltará que os anjos e
o próprio Filho, como Profeta, ignoram.
Porque Jesus deve sentar-Se à direita de Deus, até que os
Seus inimigos sejam colocados por estrado 'de Seus pés — e
o momento em que Ele se levantará não foi revelado.

O Pai o tem reservado, disse Jesus, para Sua exclusiva


autoridade.
Veja-se Atos 3, onde Pedro anuncia aos Judeus a volta de
Jesus. Eles rejeitaram o Seu testemunho, e agora esperam o
pleno cumprimento de tudo o que foi dito. Entretanto, os
servos foram deixados para servir durante a ausência do
Mestre. Ele deu ordem ao porteiro em particular para vigiar.
Isto aplica-se aos discípulos nas suas relações com Israel,
mas é ao mesmo tempo um princípio geral. O Senhor dirige-o
a todos os Seus Servos.

71
CAPÍTULO 14

Este capítulo retoma o fio da narrativa, mas em


circunstâncias solenes, que se relacionam com o fim da vida
do Senhor.

Desde então os escribas e os principais sacerdotes


consultavam-se entre si em como poderiam prendê-Lo, à
traição, e matá-Lo, pois temiam a influência ido povo, que
admirava as Suas obras, a Sua bondade e a Sua
complacência.

Teriam, pois, querido evitar prendê-Lo durante a festa,


quando a multidão afluía a Jerusalém. Mas Deus tinha outros
planos. Jesus devia ser o nosso Cordeiro Pascal, adorável
Senhor! E Ele oferece-Se para ser a vítima de propiciação.
Ora, sendo tais os planos de Deus e o amor de Cristo, não
faltavam a Satanás agentes próprios para levarem a cabo tudo
o que ele pudesse fazer contra o Senhor.

Assim, oferecendo-Se Jesus para vítima, dentro em pouco o


povo estaria disposto a entregar, mesmo aos gentios, Aquele
que, pela Sua bondade e pelas Suas obras, o tinha atraído. E a
traição sem dificuldade o entregaria nas mãos dos principais
sacerdotes. Mas os planos de Deus, que O reconhecia e O
apresentava na Sua graça, teriam o primeiro lugar! E a ceia
em Betânia, e a ceia em Jerusalém precederiam — uma a
oferenda e a outra o ato de Judas.
72
Isto porque, seja qual for a maldade do homem, Deus toma
sempre o lugar que quer, e não permite nunca ao poder do
inimigo que esconda os Seus caminhos para a fé, nem deixa o
Seu povo sem testemunho do Seu amor.
Esta parte da história é muito importante. Deus põe em
primeiro lugar os pensamentos e os temores dos chefes do
povo para no-los dar a conhecer. Mas deixa absolutamente
tudo em Suas mãos. E a maldade do homem, a traição e o
poder de Satanás, quando operam da maneira mais enérgica
(e nunca estiveram tão ativos), não fazem senão cumprir os
desígnios de Deus para a glória de Cristo. Antes da traição de
Judas, Jesus recebe o testemunho do afeto de Alaria. Deus
põe o selo desta afeição sobre Aquele que devia ser traído. E,
por outro lado, antes de ser abandonado e entregue, pode
mostrar todo o Seu afeto pelos Seus, na Sua última ceia com
eles, na instituição da Santa Ceia e do Lava-pés. Que belo
testemunho do interesse que Deus põe em cuidar dos Seus
filhos e em consolá-los no mais sombrio momento da Sua
aflição!

Notemos também de que maneira o amor por Cristo encontra,


no meio das trevas que se acumulam em volta dos Seus
passos, a luz que dirige a Sua conduta e a dirige precisamente
para o que mais convinha nesse momento.
Maria não tinha nenhuma revelação profética, mas o perigo
iminente em que o ódio dos Judeus colocava o Senhor Jesus
estimula o seu afeto e leva-a a realizar um ato que devia ser
publicado por toda a parte onde a morte de Cristo e o Seu
73
amor por nós fossem anunciados, no mundo inteiro. É o
verdadeiro conhecimento — a verdadeira direção moral nas
coisas do espírito. O ato de Maria vem a ser uma ocasião de
trevas para Judas, pois é revestido da luz da sabedoria divina,
para o testemunho próprio do Senhor.

Esta sua afeição por Cristo discerne o que convém — ela


compreende o bem e o mal de uma maneira justa e oportuna.
É uma boa coisa preocuparmo-nos com os pobres.

Mas, nesse momento, todo o pensamento de Deus se


concentrava no sacrifício de Cristo. Havia sempre ocasião de
cuidar dos pobres, e é justo faze-lo. Mas pô-los em
comparação com Jesus, no momento do Seu sacrifício, era
pô-los fora do seu lugar e esquecer tudo o que era precioso
para Deus. Judas, que só pensava no dinheiro, compreendia a
situação presente em função do seu próprio interesse. A sua
agudeza 'de espírito era do inimigo: a de Maria era de Deus.
Os acontecimentos precipitam-se: Judas entende-se com os
principais sacerdotes, para lhes entregar Jesus, a troco de
dinheiro. E, com efeito, o contrato é concluído, segundo os
seus pensamentos e os pensamentos deles. É, no entanto,
muito importante observar a maneira como — se posso assim
falar — o próprio Deus domina a situação.

Embora seja este o momento em que a malícia do homem


está no auge e em que o poder de Satanás se exerce no mais
alto grau, tudo se cumpre perfeitamente e no momento exato,
da maneira e pelos instrumentos requeridos por Deus. Nada,
74
nem a menor coisa, Lhe escapa. Nada se realiza a não ser
aquilo que Ele quer, como Ele quer, e quando Ele quer. Que
consolação para nós! E, nas circunstâncias que nos ocupam,
que emocionante testemunho!

O Espírito Santo relata, pois, o desejo, fácil de compreender,


dos chefes do povo e dos escribas de evitarem a ocasião da
festa para prenderem Jesus. Mas era um desejo inútil!

Aquele sacrifício devia cumprir-se nessa altura — e cumpre-


se!

Aproximava-se, porém, o momento da última Páscoa da vida


de Jesus — Páscoa essa em que Ele próprio devia servir de
cordeiro, e não deixar à fé outro memorial a não ser o de Si
próprio e da Sua obra. O Senhor envia então os Seus
discípulos a fim de prepararem tudo o que era necessário para
celebrarem a festa. À tarde senta-Se com os Seus discípulos
para conversar com eles e testemunhar-lhes, pela última vez,
o Seu afeto por eles, como seu companheiro.
Mas é também para lhes anunciar que um deles o trairá
(porque Ele devia sofrer tudo, até a traição, conforme estava
escrito). Com este pensamento, pelo menos o coração de cada
um dos onze começa a entristecer-se (1) — porque o traidor
devia ser um daqueles que comiam do mesmo prato com Ele.
Mas, ai desse homem! Contudo, nem o pensamento de uma
tal iniquidade nem a dor do Seu coração podem fazer parar o
curso do amor de Cristo.

75
(1) Há algo de muito belo e de muito comovente na pergunta
dos discípulos.
Os seus corações estavam seriamente rendidos, e as palavras
de Jesus tintam neles todo o peso de um testemunho divino.
De modo nenhum pensavam em traí-Lo, exceto Judas. Mas as
Suas palavras eram seguramente verdadeiras, as suas almas
reconheciam-no, e eles sentiam desconfiança de si próprios
ao ouvirem as declarações de Cristo. Não havia neles a
orgulhosa certeza de que eles O não trairiam, mas os seus
corações inclinavam-se perante as solenes e terríveis
palavras de Jesus. Judas evita a questão, mas depois, para
não dar ares de se julgar superior aos outros, formula-a — e
é para ser designado pessoalmente pelo Senhor, o que
constituiu verdadeiro alívio para os outros discípulos
(26.25).

E Ele lhes dá as provas desse grande amor na última Ceia.


Era d'Ele, do Seu sacrifício, e não de uma libertação temporal
que eles deviam lembrar-se dali para o futuro. Tudo se
condensava n'Ele, e no fato de Ele morrer sobre a Cruz.

Em seguida dando-lhes o Cálice, estabelece o fundamento da


Nova Aliança no Seu sangue (em figura), apresentando-lho
como participação na Sua morte — verdadeira bebida de
vida. Depois de terem bebido todos dele, Jesus diz-lhes que
aquilo é o selo da Nova Aliança — coisa bem conhecida dos
Judeus, desde Jeremias, acrescentando que esse sangue era
derramado por muitos. A morte devia, pois, entrar ali, para
estabelecer a Nova Aliança e para pagar o resgate de muitos.
76
Mas, para isso, era necessária a morte, e que os laços
terrestres entre Jesus e os Seus discípulos ficassem
destruídos.

Jesus não beberia mais do fruto da vide (sinal dessas


relações) antes de renovar esses laços com eles, no Reino de
Deus. Quando o Reino fosse restabelecido, Ele estaria de
novo com eles, e renovaria esses laços de intimidade (sob
outra forma e de maneira mais real e mais excelente). Mas
agora tudo mudava. Em seguida cantam um hino e saem para
se dirigirem ao lugar habitual, no Monte das Oliveiras.

As relações de Jesus com os Seus discípulos aqui, na Terra,


deviam ser, com efeito, quebradas, mas isso não era porque
Ele os abandonasse. Jesus consolidava ou, pelo menos,
manifestava, na Sua última ceia com eles, os sentimentos do
Seu coração e a força (do Seu lado) desses para os outros
laços. Mas eles seriam escandalizados por causa da Sua
posição, e abandoná-Lo-iam. Mas era a mão de Deus que
estava em tudo isso! Ele feria o Pastor. Mas, uma vez
ressuscitado de entre os mortos, Jesus retomaria as Suas
relações com os Seus discípulos — com os pobres do
Rebanho.

Iria à frente deles para a Galileia, para lá onde essas relações


tinham começado, longe do orgulho da nação, e onde,
segundo a Palavra de Deus, a Luz tinha resplandecido no
meio deles.

77
A morte estava perante Ele. Era necessário sofrê-la, para que
as relações, quaisquer que elas fossem, se restabelecessem
entre Deus e o homem. O Pastor seria ferido pelo Senhor dos
Exércitos. A morte era o julgamento de Deus. Poderia o
homem sustê-lo? UM só o podia fazer!

Pedro, amando demasiado a Cristo para que o seu coração


pudesse abandoná-Lo, avança demasiado no caminho da
morte, para logo recuar, prestando assim um mais relevante
testemunho da sua incapacidade para atravessar o abismo que
se abria perante os seus olhos, na Pessoa do seu desprezado
Mestre. Aliás, para Pedro não havia senão o exterior do que é
a morte. A fraqueza, que lhe inspirava o seu terror, tornava-o
incapaz de olhar o abismo que o pecado tinha aberto diante
dos nossos pés. No preciso momento em que Jesus anuncia
tudo o que ia acontecer, Pedro tenta enfrentar essa situação.
Sincero no seu afeto, não sabia o que era o homem posto a nu
perante Deus, e em presença do poder do inimigo, que tinha a
morte por arma.

Pedro tinha já tremido de medo, mas a presença de Jesus, que


inspira afeição, não implica que a carne, que nos impede de O
glorificar, seja morta no verdadeiro sentido do termo. Aliás,
ele não sabia nada acerca desta verdade.

É a morte de Cristo que revelou o nosso verdadeiro estado,


trazendo o único remédio possível para a nossa condição de
pecadores — a morte e a vida em ressurreição. Como a Arca

78
no Jordão, Cristo estava sozinho na morte, para que o Seu
povo resgatado pudesse atravessá-la em seco.

Jesus avança para o termo da Sua provação — provação que


não fazia senão demonstrar a Sua perfeição e a Sua glória, e
glorificar a Deus, Seu Pai, ao mesmo tempo; mas provação
que não Lhe evitava nada daquilo que teria tido o poder de O
reter, se alguma coisa houvesse que pudesse fazê-lo— e foi
até à morte e ao peso da cólera de Deus, peso que nós não
podemos conceber.

Aproximou-Se do combate e do sofrimento, não


irrefletidamente, como Pedro, que ali se lança, por ignorar a
natureza desse combate, mas aproxima-Se dele com pleno
conhecimento, colocando-Se em presença de Seu Pai, perante
quem tudo é pesado e medido, e onde a vontade dAquele que
Lhe impunha uma tal obra é claramente demonstrada na Sua
comunhão com Ele; de modo que Jesus a realiza tal como
Deus a considerava, segundo a extensão e a intenção de Seus
pensamentos e da Sua natureza, numa perfeita obediência à
Sua vontade.

Jesus afasta-Se sozinho, para orar ao Pai. E, espiritualmente,


atravessa toda a extensão dos Seus sofrimentos, e suportando
toda a angústia na comunhão ide Seu Pai.

Tendo esses sofrimentos diante dos Seus próprios olhos,


coloca-os perante o coração de Seu Pai, a fim de que, se fosse
possível, passasse de Si aquele Cálice. Se não, seria, pelo
79
menos, da mão de Seu Pai que Ele o receberia. Ali estava a
piedade, pela qual Ele fora sempre escutado e as Suas orações
atendidas. Estava ali como homem — feliz por ter os Seus
discípulos velando com Ele, feliz por Se isolar e derramar
Seu coração no seio de Seu Pai, no estado de dependência de
um homem que ora. Que sublime espetáculo!...

Pedro, que dizia querer morrer pelo seu Mestre, nem sequer é
capaz de velar com Ele! O Senhor mostra-lhe, com doçura, a
sua inconsequência, reconhecendo que, com efeito, o seu
espírito estava cheio de boa vontade, mas que a carne era sem
valor no combate com o inimigo e na provação espiritual.

A narração de Marcos, revelando todo o estado espiritual dos


homens com quem Jesus se tinha associado, e passando
rapidamente de um acontecimento a outro acontecimento, de
maneira a relacioná-los entre si, é tão surpreendente como o
desenvolvimento mais circunstanciado dos outros
Evangelhos.

É imprimido um caráter moral em cada passo que se dá nesta


história, dando-lhe, do seu conjunto, -um interesse que nada
saberia igualar (salvo Aquele que está acima de todas as
coisas e de todos os pensamentos) a não ser a Pessoa
d'Aquele que está aqui perante nós. Ele, ao menos, velava
junto de Seu Pai; porque, depois de tudo, e dependente como
foi em graça, que podia o homem fazer por Ele?
Completamente homem como era, sobre UM só Ele se devia
apoiar, e assim Ele foi o Homem Perfeito. Indo de novo para
80
orar, volta para ver os Seus dormindo ainda, e de novo Ele
apresenta o Seu caso a Seu Pai. Desperta então os discípulos,
porque era chegada a hora em que eles nada poderiam fazer
por Ele.

Judas aproxima-se com o seu beijo. Jesus submete-Se. Pedro,


que dormira durante a veemente oração do seu Mestre,
desperta para ferir, quando Este Se submete como um
cordeirinho indo para o matadouro. Pedro fere um dos
assistentes e corta-lhe uma orelha. Jesus argumenta com os
que tinham vindo para O prenderem, recordando-lhes que,
quando Ele estava (humanamente falando) constantemente
exposto ao poder deles não O tinham prendido. Mas havia
outra razão para que isso tivesse lugar agora — os desígnios e
a Palavra de Deus haviam de cumprir-se. Era o cumprimento
fiel da obra que Lhe estava destinada. Todos O abandonam e
fogem, porque quem, senão Ele próprio, podia seguir o
caminho até ao fim?
Na verdade um jovem tentou ir mais longe, mas logo que os
agentes da autoridade lhe põem a mão em cima, agarrando o
lençol de linho fino em que se embrulhava, ele salva-se,
abandonando-o e fugindo. Quanto mais a gente se aventura,
fora do poder do Espírito Santo, no caminho onde se encontra
o poder do mundo e da morte, tanto maior é a vergonha com
que teremos de arcar—se Deus nos permite dali escapar. O
jovem fugiu desnudo!...

As testemunhas faltam, não em malícia, mas em firmeza de


testemunho, e mesmo a força nada podia contra Ele, antes do
81
momento que Deus tinha fixado. É a confissão de Jesus, a
Sua fidelidade ao proclamar a verdade na congregação, a
causa da Sua condenação. O homem nada pode fazer, posto
que tenha feito tudo quanto à sua vontade e à sua
culpabilidade. O testemunho dos inimigos de Jesus, a afeição
de Seus discípulos — tudo faltai Eis o homem!

É Jesus que rende testemunho à verdade. Jesus que vela com


o Pai — Jesus que Se submete àqueles que nunca tinham -
podido apoderar-se d'Ele, até chegar a hora designada por
Deus. Pobre Pedro! Foi mais longe do que o jovem no jardim.
E encontramo-lo aqui, a carne no lugar do testemunho, no
lugar onde esse testemunho se deve prestar, perante o poder
daquele que a tal se opõe e dos seus instrumentos!

Mas ai! Pedro não se escapará. A Palavra de Cristo será


verdadeira, se a de Pedro for falsa — O Seu coração será fiel
e pleno de amor, se o de Pedro (como o de todos nós) for
infiel e cobarde. Jesus confessa a verdade, e Pedro nega-a.
Todavia, a graça do nosso adorável Senhor não lhe falta; e,
tocado por ela, cobre a face e desfaz-se em lágrimas.

Mas a Escritura tem de cumprir-se: Ele será entregue nas


mãos dos gentios. Ali, Ele é acusado de ser Rei. E a Sua
resposta, que Ele é, de fato, Rei, deve ter sido certamente, a
causa da Sua morte. Mas era a verdade!
A confissão que Jesus fizera diante dos principais sacerdotes
(vers. 61-62) refere-se às Suas relações com Israel, como já
vimos noutras passagens deste Evangelho.
82
O Seus serviço era a pregação na congregação de Israel. Jesus
apresenta-Se, de fato, como Rei, como Emanuel. Agora
confessa que é, para Israel, a esperança do povo. «Tu, tu és»,
dissera o sumo sacerdote, «o Cristo, o Filho de Deus
Bendito?» (vers. 61). Era, segundo o Salmo 2, o título e a
posição gloriosa d'Aquele que era a esperança de Israel.

Mas Jesus acrescenta o que Ele será (isto é, o caráter que Ele
ia tomar, ao ser rejeitado por esse povo, caráter esse no qual
Ele devia apresentar-Se ao povo rebelde). Seria o que está
escrito nos Salmos 8 e 110, e também no capítulo 7 de
Daniel, com os seus resultados — a saber, o Filho do homem
à direita de Deus e vindo sobre as nuvens do céu. O Salmo 8
não apresenta Cristo senão de uma maneira geral. O Salmo
110 e o capítulo 7 de Daniel falam do Messias da maneira
particular segundo a qual Cristo Se anuncia aqui. A blasfémia
que o sumo sacerdote Lhe atribuía não era senão a rejeição da
Sua Pessoa. Porque o que Jesus dizia encontrava-se bem
expresso na Palavra de Deus — nas Sagradas Escrituras.

83
CAPÍTULO 15

Perante Pilatos, Jesus faz uma boa confissão, dando


testemunho à verdade, ali, onde a glória de Deus o exigia e
onde esse testemunho se opunha ao poder do inimigo.

A tudo o mais Ele não responde nada. Deixa-os fazer o que


eles querem — e o evangelista não entra em nenhum detalhe.

Prestar esse testemunho era o último serviço e o último dever


que Ele tinha de cumprir. Esse testemunho está prestado. Os
Judeus preferem Barrabás, o sedicioso e assassino. E Pilatos,
dando ouvidos à multidão, aliciada pelos principais
sacerdotes, entrega Jesus, para ser crucificado.

O Senhor sofre os insultos dos soldados, que juntam o


orgulho e a insolência da sua classe à dureza do carrasco,
cujas funções executam. Triste espécimen da natureza
humana, este! O Cristo, que vinha para os salvar, estava, de
momento, sob o poder deles. Jesus usava o Seu poder, não
para Se salvar a Si próprio, mas para livrar os outros do poder
de Satanás. Finalmente, conduzem-No ao Gólgota, para O
crucificarem. Ali, dão-Lhe a beber uma mistura
entorpecedora, que Ele recusa. E como era tudo o que eles
faziam ou podiam fazer, crucificam-No, com dois
malfeitores, um à Sua direita e outro à Sua esquerda,
cumprindo assim tudo o que estava escrito a Seu respeito. Era
a hora do poder das trevas; era a hora dos Judeus e dos
84
principais sacerdotes. Tinham atingido o desejo dos seus
corações.

Mas, assim procedendo, e sem disso se aperceberem, tornam


manifestas a glória e a perfeição de Jesus. O Templo não
poderia erguer-Se, sem ser assim primeiramente abatido!

E, como instrumentos, eles confirmam o fato que Jesus lhes


anunciara. Por outro lado, Ele salvava os outros e não Se
salvava a Si próprio. São as duas partes da perfeição da morte
de Cristo em relação com o homem.

Mas, quaisquer que fossem os pensamentos de Cristo e os


Seus sofrimentos em relação aos homens (esses cães, esses
touros de Basan), a obra que Ele teve de cumprir tinha uma
profundidade que se estendia muito para além desse mundo
exterior. As trevas cobriam a terra — testemunho simpático e
divino daquilo que cobria, de uma obscuridade muito mais
intensa, a alma de Jesus, abandonado de Deus, por causa do
pecado do homem, mas que mostrava lá, incomparavelmente
mais que em qualquer outro lugar, a Sua perfeição absoluta,
enquanto que as trevas marcavam, de maneira exterior, a Sua
inteira separação das coisas alheias, estando toda a obra
apenas entre Ele e Deus, segundo a Sua perfeição. Mal
compreendido pelos homens, tudo se passa entre Ele e Deus.
E Jesus, tendo soltado de novo um grande brado, expira (vers.
37).

85
A Sua obra estava concluída. Que teria Ele mais que fazer
num mundo onde não vivia senão para cumprir a vontade de
Deus? Tudo estava já completo, e, necessariamente, Ele vai-
se embora. Não falo de uma necessidade física, porque Lhe
restava ainda toda a Sua força. Mas, rejeitado pelo mundo, a
Sua misericórdia para com esse mesmo mundo já não tinha
ali lugar. A vontade de Deus estava perfeitamente cumprida
por Ele próprio. Tinha bebido na Sua alma o Cálice da morte
e do julgamento do pecado. Nada mais Lhe restava senão
morrer. E expira, obedecendo até ao fim, para começar num
outro mundo (quer para a Sua alma separada do corpo, quer
na glória) uma vida onde o mal não poderá nunca entrar, e
onde o homem novo será perfeitamente feliz na presença de
Deus.

A Sua obra estava terminada. A Sua obediência tinha um


termo na morte — a Sua obediência, e, por consequência, a
Sua vida, enquanto vivida no meio de pecadores. Qual teria
sido, pois, o alvo de uma vida onde não houvesse mais
obediência a cumprir?! Ora, a Sua obediência era perfeita, até
na morte — e Ele expira! Desde então o caminho do
Santuário está aberto. O véu foi rasgado de alto a baixo.

O centurião, um gentio, reconhece em Jesus, na Sua morte, a


Pessoa do Filho de Deus. Até então o Messias e o Judaísmo,
andavam juntos. Na morte de Cristo separam-se. O Judaísmo
rejeita o Cristo — e Este torna-Se o Salvador do mundo. O
véu já não esconde Deus. E era tudo o que o Judaísmo podia
fazer a este respeito. A manifestação da perfeita graça está ali
86
para o gentio que — porque Jesus entrega a Sua vida com um
brado que prova a existência de uma tal força — reconhece
que o Príncipe da Vida, o Filho de Deus, estava ali. Pilatos
também se espanta de que Ele já esteja morto. E não acredita
senão quando o centurião lho certifica. Quanto à fé — longe
da graça e até mesmo da justiça humana — ele não se
inquieta absolutamente nada com isso.

Mas a Sua morte não O arranca dos corações dos simples,


que O amam (que talvez não tenham estado no combate, mas
que a graça fazia sair agora dos seus lugares de refúgio). Não
O arranca dos corações dessas mulheres piedosas, que O
tinham seguido e O tinham muitas vezes provido nas Suas
necessidades alimentares.

Não O arranca do coração de José de Arimateia que, embora


tocado no seu íntimo, não O tinha seguido ainda, mas que se
sente enfim fortificado pelo testemunho da graça e da
perfeição de Jesus (a integridade do Conselheiro encontra nos
fatos, não um motivo de temor, mas algo que o determina a
fazer-se conhecer como discípulo de Jesus!), Aquelas
mulheres e José de Arimateia ocupam-se, cada um por seu
lado, do corpo de Jesus. Esse tabernáculo do Filho de Deus
não é deixado sem os cuidados que eram devidos pelos
homens Àquele que acabava de os deixar. De resto, a
Providência de Deus, assim como a Sua obra nos seus
corações, tinha provido a tudo: O corpo de Jesus é colocado
no túmulo e todos aguardam o fim do sábado para concluírem
cada qual o seu trabalho a respeito d'Ele.
87
As mulheres tomaram conhecimento do lugar em que Jesus
fora sepultado— diz-nos o Evangelista.

CAPITULO 16

O último capítulo está dividido em duas partes — fato este


que tem dado lugar a perguntas sobre a autenticidade dos
versículos 9-20. A primeira parte do capítulo, nos versículos
1-8, relata o fim da exposição, na sua relação com o
restabelecimento do que estudámos neste Evangelho — as
relações do Profeta de Israel e do Reino com o povo (ou, pelo
menos, com o Remanescente do povo eleito). Os discípulos, e
Pedro, que o Senhor menciona individualmente
(verdadeiramente em graça, por causa da sua renegação),
deviam ir ao Seu encontro na Galileia, como Ele lhes tinha
dito. Lá se restabeleceriam as relações de Jesus Ressuscitado
com os pobres do Rebanho, que confiavam e esperavam n'Ele
(sendo apenas reconhecidos por estar todo o povo perante
Deus). As mulheres não dizem nada aos outros.

O testemunho de Cristo Ressuscitado era confiado só aos


Seus discípulos, a esses Galileus desprezados! A Providência
de Deus usou do terror como meio de impedir as mulheres de
falarem da Ressurreição de Cristo, como teriam naturalmente
feito.

88
Nos versículos 9-20 temos outro testemunho. Os discípulos
não aparecem aqui como um Remanescente eleito, mas sim
na incredulidade natural do homem. A mensagem é enviada
ao mundo inteiro. Maria de Magdala (Maria Madalena),
anteriormente possessa de sete demónios, escrava absoluta
desse poder terrível, é encarregada agora de comunicar aos
discípulos do Senhor a Sua Ressurreição! Em seguida o
próprio Senhor Jesus lhes aparece e confia-lhes a missão que
lhes tinha destinado (vers. 12-15). Diz-lhes para irem por
todo o mundo e pregarem o Evangelho a toda a criatura. Já
não se trata especificamente do Evangelho do Reino. Todo
aquele que, no mundo inteiro, crer e se unir a Cristo pelo
batismo, será salvo; aquele que não crer será condenado.
Tratava-se, portanto, ou da salvação ou da condenação. O
crente era salvo; aquele que recusava a mensagem era
condenado.

De resto, se alguém, convencido da verdade, recusava juntar-


se aos discípulos, confessando o Senhor, a sua condição seria
das piores. Por isso é dito: «Aquele que tiver crido e que tiver
sido batizado». Sinais de poder acompanhariam os crentes,
que seriam preservados do poder do inimigo.
O primeiro sinal seria o seu poder e domínio sobre os
demónios; o segundo, a prova dessa graça que ultrapassava
os estreitos limites de Israel, dirigindo-se a todo o mundo:
Falariam novas línguas...

O poder do inimigo, manifestado no mal, não teria efeito


sobre eles: pegariam em serpentes, e, se alguma coisa
89
mortífera bebessem, não lhes faria mal. Se impusessem as
mãos sobre enfermos, ficariam curados... Numa palavra: o
poder de Satanás sobre o homem seria derrubado, e a graça
proclamada a todos os homens.

Tendo-lhes confiado assim a sua missão, Jesus sobe ao Céu e


senta-se à direita de Deus — lugar de onde partirá o Poder
para abençoar e de onde Ele voltará para colocar os pobres do
Rebanho na posse do Reino. Mas, enquanto esperam, os
discípulos substituem-No, estendendo a esfera da sua ação até
aos confins da terra. E o Senhor confirma a sua palavra por
sinais e prodígios que os acompanham.

Julgar-se-á, talvez, que me alonguei pouco acerca dos


sofrimentos de Cristo, no que escrevi sobre Marcos. Mas este
assunto jamais será esgotado. É tão vasto como a Pessoa e a
Obra de Cristo. Deus seja bendito! Em Lucas temos mais
detalhes. E eu sigo a ordem dos pensamentos que me
apresenta o Evangelho, e parece-me que, no que toca à
Crucificação de Cristo, é o cumprimento da Sua obra que o
Evangelista tem em mente. O seu grande tema era o Profeta.
Tinha, pois, de contar a Sua história até ao fim.

E assim nós possuímos, numa narração sucinta, mas clara,


um quadro muito completo dos acontecimentos que marcam
o fim da vida do Senhor como homem, aqui, na Terra — do
que Ele teve de cumprir como servo de Seu Pai. Foi esta
ordem do Evangelho que eu segui.

90
FIM DO EVANGELHO SEGUNDO S. MARCOS

John Nelson Darby nasceu como filho mais novo de uma


família aristocrática irlandesa famosa em 18 de novembro de
1800 na cidade de Westminster (Londres). O seu pai, Lord
John Darby of Leap Castle (Kings County) era descendente
de uma antiga família normanda; a sua mãe, que ele já perdeu
enquanto ainda bem novo, descendia da conhecida família
Vaughan do País de Gales. O fato de que o famoso general-
demarinha, Lord Nelson, foi padrinho do pequeno João a
pedido dos pais, mostra como essa família era de renome. Á
honra do Lord recebeu o segundo nome Nelson.

Enquanto rapaz, John Nelson Darby estudou em Westminster


School e, a desejo de seu pai, a partir de 1815 fez faculdade
em Trinity College, Dublin, Irlanda. A primeira parte de seus
estudos terminou em 1819 com condecoração:

Recebeu a "Classical Gold Medal". Em seguida fez faculdade


de direito que terminou em 1822. Por causa da sua
consciência, John Nelson Darby renunciou às perspectivas
excelentes oferecidas nessa profissão. Já em 1820 entrou em
profunda crise interna. Levou uma vida ascética, jejuando,
fazendo exercícios religiosos e atendendo regularmente aos
cultos na igreja, porém não chegou à clareza de fé. Em uma
91
carta procedente do ano 1871 John Nelson Darby escreve:
"Depois de ter me convertido pela graça do Senhor, ainda
passei uns seis ou sete anos debaixo da vara disciplinadora da
Lei. Senti que Cristo é o único Salvador, porém ainda pude
afirmar de possuí-Lo ou de estar salvo por meio dEle. Estava
orando, jejuando, dando esmolas — coisas que sempre são
boas quando feitas numa maneira espiritual —, mas não
possuí paz interior. Ainda assim senti de que se o Filho de
Deus Se deu a Si Mesmo por mim, então pertencia a Ele com
corpo e alma, com posses e bens. Finalmente, Deus me
deixou entender que estava em Cristo, unido com Ele pelo
Espírito Santo".

Não sabemos nada certo referente aos seus estudos nos anos
1822 a 1825, senão que se ocupava com o pensamento de
optar por uma carreira eclesiástica. O seu pai ficou tão
indignado com isso ao ponto de deserdar o filho. Um tio,
porém, lhe deixou de herança uma considerável fortuna de
sorte que ele durante toda a sua vida era independente. No
ano 1825 foi ordenado diácono ("deacon") e no ano seguinte
sacerdote da Igreja Anglicana. A sua primeira paróquia foi
Calary em County Wicklow na Irlanda. Enquanto ali, se
esforçava bastante de cuidar com devoção dos membros da
paróquia que moravam, na sua maioria, bem dispersos e eram
pobres.

92
Durante esse tempo, a sua posição quanto a igreja do estado
já foi abalada, como mostra o seu primeiro panfleto que data
do ano 1827 ("Considerations addressed to the Archbishop of
Dublin etc." — "Considerações dirigidas ao Arcebispo de
Dublin etc."). Nesse panfleto, ele tomou posição contra a
exigência do Arcebispo Magee, que queria que os católicos
que naqueles dias passaram em massa para a Igreja
Anglicana, jurassem lealdade ao rei britânico. A sua
determinação e ação destemida teve por resultado uma
repreensão oficial. Mais e mais foi desconcertado com
respeito à igreja do estado.

Por ocasião de uma cavalgada pela paróquia, caiu do cavalo e


foi ferido tanto na perna que havia de permanecer em Dublin
durante todo o inverno de 1827/1828 para tratamento. Esse
tempo utilizou para estudo intenso da Bíblia. Foi ali que
encontrou, aparentemente, a verdadeira e profunda paz com
Deus que há tantos anos lhe faltara, como a carta citada
revela. Durante a sua permanência em Dublin, chegou a
conhecer John Gifford Bellet, Dr. Edward Cronin,
FrancisHutchinson e Mr. Brooke. Em seguida da sua volta à
paróquia renunciou ao ofício de sacerdote, embora ainda não
se desligasse da igreja oficial. Assumiu um cargo na "Missão
Interna" (uma instituição apoiada pela Igreja Anglicana
destinada à obra missionária dentro do país) e anunciou até
1832 o evangelho aos católicos da Irlanda de maneira muito

93
abençoada. De várias fontes apreendemos que ele se reuniu
com os novos amigos por diversas vezes desde o inverno
1827 / 1828 para o partir do pão.
Um desses amigos era Anthony Norris Grove. Tornaram-se
cada vez mais claros para os amigos os pensamentos de Deus
referente à Igreja (eclésia) do Deus vivo, à volta de Cristo, à
ação do Espírito Santo bem como aos dons e ofícios na
Igreja.
Nesse tempo, entre 1827 e 1832, aconteciam também as
reuniões conhecidas por conferências de "Powerscourt".
Essas ajudaram para esclarecer o ponto de vista bíblico dos
assuntos em questão, e finalmente John Nelson Darby se
desligou oficialmente da Igreja Anglicana.

Os conhecimentos adquiridos por ele e seus amigos eram


resultado de estudos bíblicos feitos com diligência e
sobriedade. Eles conservaram firmemente todas as bases da
fé cristã. O seu alvo foi anunciar novamente o evangelho em
sua simplicidade, pureza e plenitude originais. Além das
grandes verdades da Reformação — parcialmente já perdidas
outra vez naqueles dias — John Nelson Darby e seus irmãos
proclamaram verdades esquecidas ou obscurecidas desde os
dias dos apóstolos, a saber:

94
1 — a Igreja (eclésia) de Deus, o Corpo de Cristo engloba
todos os verdadeiros crentes que, desde o dia de Pentecostes
em Atos 2 estão ligados a Cristo, sua Cabeça no céu por meio
do Espírito Santo (Ef 4:4).

2 — Essa unidade encontra a sua expressão na Ceia do


Senhor à Sua Mesa (1 Co 10:17).

3 — A volta do Senhor para arrebatamento dos crentes antes


dos juízos finais é o próximo grande evento esperado pelos
cristãos (1 Co 15:51-54; 1 Ts 4:16 - 5:2).

4 — Todos os crentes são sacerdotes e têm livre acesso a


Deus, o Pai (1 Pe 2:5). O Senhor, porém, deu à Sua Igreja
dons especiais para a sua edificação (Ef 4:11-12) — dons
esses que devem ser distinguidos dos ofícios (anciãos /
presbíteros e diáconos, cuja denominação oficial hoje não é
mais possível devido à ausência dos apóstolos, embora a sua
função, o seu ministério, ainda é exercido por irmãos
reconhecíveis como tais — a partir de "devido" é acréscimo
do tradutor).

95
São essas apenas algumas poucas das importantes verdades
das Sagradas Escrituras novamente reconhecidas e realizadas
naqueles dias.

Para isso, após o seu desligamento da igreja oficial, se abriu


um campo amplo de trabalho para John Nelson Darby. Já em
1830 a obra se estendeu de Dublin a Limerick e outras
cidades irlandesas. Também em Cambridge, Oxford e
Plymouth (nome esse que, em parte, até hoje ainda está sendo
mencionado em íntima ligação com os "irmãos") bem como
em Londres surgiram maiores ou menores testemunhos da
Igreja. John Nelson Darby viajou por todo o país no serviço
do Senhor.

No ano 1837, John Nelson Darby iniciou as suas atividades


na Suíça, onde trabalhou abençoadamente em Genebra e
Lausanne. Nos anos 1840 a 1845 viajou outra vez pela Suíça
e França. Ali a obra, de uma maneira semelhante, se
espalhou.
Nos anos 1847 a 1853 diversas viagens o levaram a esses
países, onde serviu às congregações e reuniu os irmãos nas
conferências para o estudo da Palavra de Deus.

96
No início do ano 1853 ouviu de um grupo de crentes da
região Renânia na Alemanha. Em seguida houve uma troca
de cartas com Carl Brockhaus resultando em uma visita de
John Nelson Darby a Elberfeld em 1854. Durante a viagem,
John Nelson Darby ficou por alguns dias nos Países Baixos,
fazendo a primeira visita aos irmãos em Haarlem, Amsterdam
e Winterswijk. Esses irmãos também estavam se reunindo em
separação das denominações eclesiásticas existentes. Na
primavera de 1855, novamente foi a Elberfeld, para iniciar a
tradução do Novo Testamento para o alemão. Em conjunto
com Carl Brockhaus e Julius Anton von Poseck traduziu
inicialmente o Novo Testamento. Nos anos 1869 a 1870
também traduziram o Velho Testamento para o alemão.
Nessa ocasião, Hermanus Cornelius Voorhoeve (da Holanda)
ocupou o lugar de Julius Anton von Poseck.

Os anos 1855 a 1857, John Nelson Darby passou


primordialmente no continente europeu, principalmente
estava na França, na Alemanha (nos anos 1855 e 1857), nos
Países Baixos e na Suíça. Nos anos seguintes, 1858 a 1859,
permaneceu em Londres, onde trabalhou na tradução do
Novo Testamento para o francês impresso finalmente em
1859 em Vevey. A Bíblia completa em francês foi
completada em 1881 com a colaboração de alguns irmãos.
Enquanto isso, traduziu e publicou, em 1870, uma tradução
para o inglês do Novo Testamento (o Velho Testamento,

97
mais tarde, foi completado seguindo as suas instruções
deixadas para trás).

No ano 1861 escreveu a um amigo: "Você sabe que sonhei de


um novo campo de trabalho — algo onde ainda não estive e
aonde o evangelho, tal como eu o entendo, ainda não tem
sido levado. Não me alegro em ir a um campo onde já
trabalhei. Se tornou para mim algo velho. Amo anunciar o
Nome do Senhor a pessoas que ainda não O conhecem." Esse
desejo se cumpriu no final do ano 1862.

Nos anos 1862-63, 1866 a 1868, 1870, 1872-73 e finalmente


em 1874 a 1877 visitou os Estados unidos e o Canadá.
Durante a última viagem também chegou a visitar a Nova
Zelândia.

Depois de sua última viagem para além-mar, John Nelson


Darby visitou mais uma vez a Alemanha (1878), a Suíça, a
Itália e a França. Na avançada idade de 79 anos voltou à
Inglaterra, onde ainda trabalhou como escritor até o seu
falecimento em 1882.
As suas obras completas (editados por seu amigo William
Kelly) englobam 34 volumes ("Collected Writings of J. N.
Darby").
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Acrescentam-se ainda 7 volumes de notas e comentários
("Notes and Comments"), 3 volumes de miscelânias
("Miscellaneous Writings") e 3 volumes de cartas ("Letters").
A sua obra mais conhecida e talvez a mais preciosa é a
"Sinopsis dos livros da Bíblia" ("Sinopsis of the Books of the
Bible"), na qual John Nelson Darby dá uma panorâmica de
toda a Bíblia.
Ele igualmente é conhecido como poeta. Conhecido são os
seus "Spiritual Songs" ("Hinos Espirituais") e os muitos hinos
no hinário inglês dos irmãos.

Nos últimos meses do ano 1880 John Nelson Darby sofreu


muito. Teve problemas de respiração bem como de coração.
Em dezembro houve uma leve melhora da forma que pôde
escrever a um conhecido: "Pela bondade de Deus estou indo
muito melhor. Na verdade nem entendo que estive tão perto
da morte. Embora não com muita frequência, ainda assim
posso ir às reuniões. Também posso fazer o meu trabalho
costumeiro. É certo que nos meses que seguirão haverá uma
mudança acontecendo comigo frente a minha iminente
despedida desse mundo, porém não há mudança com vistas à
doutrina e os meus pontos de vista. Isso não mudou; tudo
encontrei confirmado. É um doce e lindo pensamento, que
tudo aquilo que ensinei o fiz em Deus. No meu interior tenho
certeza de que pertenço a um outro mundo... por quanto

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tempo ainda pertencerá a mim não sei. Para a saída, a palavra
do amado Senhor é importante: "Não são do mundo, como eu
do mundo não sou" (Jo 17:16). — Nesse sentido a mudança é
perceptível e estou a esperando."

No ano 1881, John Nelson darby ainda estava trabalhando na


edição de seu hinário inglês. No dia 15 de dezembro de 1881,
escreveu o prefácio para a Bíblia francesa que foi publicada
em 1882. No final de janeiro, a sua constituição física lhe
permitiu cumprir apenas a metade de suas tarefas diárias. Nas
últimas semanas foi recebido e cuidado na casa do irmão
Hammond em Bournemouth. Foi ali que ele faleceu no dia 29
de abril de 1882. Numa lápide simples e branca do cemitério
de Bournemouth se lê as palavras:

John Nelson Darby

Como um desconhecido e bem-conhecido.


faleceu no Senhor em 29 de abril de 1882
81 anos
2 Coríntios 5:21

100
“Senhor, me deixa esperar em Ti,
a minha vida seja consagrada a Ti,
desconhecido aqui na terra, servo Teu,
então herdar a felicidade do céu.”
J. N. D.

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