Você está na página 1de 11

História das Ideias políticas

VI. CRISTANDADE E IDADE MÉDIA

O cristianismo tem sua origem em Jesus Cristo, Messias (Salvador) da


tradição profética hebráica e logos encarnado da filosofia grega. Embora
um facto religioso, o nascimento de Jesus Cristo constitui, historicamente, a
maior revolução de todos os tempos; porquanto criou uma nova situação
espiritual para a cultura universal, sem paralelo na história da Humanidade.
Como facto histórico, o cristianismo foi culturalmente condicionado pelo
pensamento greco-romano, muito em particular, acabando ele próprio, por
condicionar a cultura dos demais povos com os quais entrou em contacto.1
Mas como, de um facto inicialmente religioso, o Cristianismo passou a uma
filosofia, que não tardou a inserir-se na história do pensamento como um
grandioso conjunto de soluções racionais, de ordem teórica e prática, dadas
aos mais prementes problemas da vida e do espírito humano?

Culturalmente falando, e como facto religioso, o Cristianismo surgiu com


um pequeno número de doutrinas filosóficas, mas um grande número de
ideias morais e religiosas, que acabariam rapidamente, por influenciar,
sobremaneira, a mundividência dos variados povos do universo. Logo no
início da sua caminhada, ao encontrar-se com a filosofia grego-romana, o
Cristianismo sentiu a necessidade de definir muitas das suas posições
filosóficas e teológicas, tendo sido posto perante o dilema de rejeitár por
completo a filosofia greco-romana, ou assimilá-la para se robustecer com
ela.2

Optando pela segunda hipótese, o cristiniasmo, que trazia consigo


numerosas ideias morais e religiosas, mas poucas ideias filosóficas, acabou
por dar lugar a conceitos e ideias novos, antes desconhecidos dos europeus,
muito em particular; dentre os quais há a destacar a crença num Deus
pessoal, Uno e Trino; a criação do mundo ex nihilo, Deus visto como
Providência inteligente cuja vontade é lei e norma para todos os seres. A
existência de uma alma individual criada à imagem e semelhança de Deus,
que com Ele mantém as relações de um tu e eu; o dogma do pecado
original como afastamento do homem da graça divina.

Embora o Evangelho desenvolva uma desconfiança em relaçãao ao poder


político, há, com São Paulo, um reconhecimento da esfera política da vida.
Mas depois dele, o direito natural greco-romano torna-se teocêntrico, e
surge, com o tempo, a desvalorização do político em detrimento do
1
Luís Cabral de Moncada; op. cit, p. 46
2
Idem; op. cit,, p. 48
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
1
História das Ideias políticas

religioso. Quer isto dizer, que depois de São Paulo, o direito natural dos
gregos passa a identificar-se com a vontade de Deus. E a justiça, antes vista
como máxima virtude no homem e no Estado, transforma-se numa relação
viva e existencial entre o homem e Deus. É assim, que em matéria de
direito, passa a predominar uma concepção negativa do Estado, com o
homem visto como sendo de uma natureza sujeita ao pecado e descontrole
das paixões. Se em São Paulo, portanto, o direito e o Estado são vistos
como manifestação duma lei natural e da vontade de Deus, a partir da
Patrística, a Igreja passa a ser entendida como uma comunidade de espírito,
implantada e crescendo no seio de uma comunidade de homens.

A partir da Patrística, o Reino de Deus não tem nada que ver, para o
cristianismo, com questões políticas, embora este influencie em definitivo a
política: o poder deixou de ser visto como um direito próprio dos
governantes ou autoridade do Estado sobre os cidadãos, para tornar-se um
serviço à comunidade, exigindo aos governantes, mais deveres do que
direitos e menos privilégios do que responsabilidades.3

VI.a). SANTO AGOSTINHO DE HIPONA

François Chatelet diz-nos, que para melhor apresentar o pensamento de um


grande pensador, o melhor é escolher uma ideia mestra, em torno da qual
toda a sua reflexão se organiza.4 No caso de Santo Agostinho, para
tentarmos melhor situar o seu pensamento, impõe-se uma breve
retrospetiva do momento histórico que torna Santo Agostinho possível. Ora
a visão agostiniana do mundo é pessimista, porque emerge dum passado
maniqueísta e de uma vida desregrada, pressente a crise e o desabar trágico
do mundo e da civilização romanos.

Ultrapassadas as crises dos primeiros séculos, por volta do século IV d.C,


novos problemas e nova situação histórica se apresentavam para o
Cristianismo. Novos problemas e nova situação histórica se colocavam ao
cristianismo, como a questão de como a Igreja devia prover às suas
múltiplas necessidades de organização política e jurídica interna, mas
sobretudo, como, perante a necessidade de defender e propagar o
cristianismo e a fé cristã, resolver problemática até aí desconhecida, das
relações entre a Igreja e o Estado.5

3
Diogo Freitas do Amaral; História das Ideias políticas, Almedina, Coimbra, 1998, tomo I, p. 152
4
François Chatelet (Direcção de); História da filosofia. De Platão a S.Tomás de Aquino, Lisboa, Dom
Quixote, 1995, vol I, p. 217
5
Diogo Freitas do Amaral; op. cit., p. 152
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
2
História das Ideias políticas

Aurélio Agostinho é o principal doutrinário do pensamento jurídico e


político do cristianismo, depois de São Paulo de Tarso. Respondendo à
nova situação histórica concreta, o Bispo de Hipona dá projeções novas, de
índole política aos problemas colocados ao cristianismo de seu tempo;
permitindo o alargamento das primitivas concepções da Igreja acerca do
direito e do Estado. Nascido em Tegaste, em 354 d. C., filho de um pai não
cristão, Patrício, e mãe cristã, Santa Mónica, Santo Agostinho morreu em
430 d. C. Observe-se que Tegaste e Hipona eram localidades da então
província romana de Cartago, que fazem parte da Argélia e Tunísia de hoje.

Santo Agostinho é o verdadeiro pensador político da Igreja, de São Paulo


até São Tomás de Aquino (século XII); o maior jusfilósofo da Cristandade,
pelo que toda a filosofia cristã do direito e do Estado até à Idade Média é
lhe devedora. Ora o maior problema que se colocava aos intelectuais
cristãos do tempo de Aurélio Agostinho, era de saber em que medida o
cristianismo era responsável pelo descalabro do Estado romano e do mundo
antigo, que por todos os lados, soçobravam, particularmente, depois que
Roma havia sido saqueada pelos bárbaros em 410 d.C.

Tendo sido um aluno brilhante, Santo Agostinho ensinou Gramática,


Retórica e Eloquência em Cartago, antes de ser convidado para ir a Milão,
ensinar Retórica, viagem durante a qual, em encontro com Santo Ambrósio,
então bispo daquela cidade, converteu-se ao cristinamismo. Retirado da
vida pública, escreveu, enquanto bispo de Hipona, mais de trezentos e vinte
(320) obras e opúsculos, dentre os quais se destacam As Confissões e a
Civitas Dei. A Civitas Dei, obra apologética, é sua maior obra política, que
assenta numa visão filosofico-histórica, que considera a humanidade como
o teatro de um drama trascendente entre duas forças ou grandezas de
essência metafísica. De um lado, a Cidade de Deus, «comunidade de todos
aqueles, que neste mundo, vivem segundo o espírito e buscam a justiça»,
oposta à Cidade terrena, ou «comunidade dos que vivem segundo a carne e
unicamente para a satisfação dos seus apetites de concupiscência e
domínio».

Santo Agostinho, fortemente influenciado por Platão, defende que razão e


fé são inseparáveis, uma vez que a razão está na fé e a fé radica na razão.
Conhecimento e fé, afirma ele, percorrem o mesmo caminho comum para
Deus, já que «não se sabe tudo o que se crê, mas crê-se em tudo o que se
sabe».6 Para o cristianismo em geral, e Santo Agostinho, em particular, o

6
François Chatelet; op. cit, p. 217

João Roberto Soki


Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
3
História das Ideias políticas

homem é um ser social, que desenvolve relações verticais, para com Deus,
e de tipo horizontal, para com os semelhantes. Daí que sua perspectiva
jurídico-política é condicionada por dois conceitos basilares: a concepção
de Deus visto como vontade, de um lado, e o dogma do pecado original, de
outro, que como verdadeiro delito de natureza, afastou definitivamente o
homem da graça divina, impactando negativamente, toda a sua vida.

Partindo da experiência da própria, passada longe da verdade que é o


cristianismo, até por volta de seus trinta e dois (32) anos, Santo Agostinho
desenvolve uma ideia muito pessimista da natureza humana. Muito
pessimista, Santo Agostinho nunca depositou grande confiança na natureza
humana, afirmando a necessidade da graça; a necessidade de afirmação de
um elemento sobrenatural para a realização das virtudes puramente
naturais. O pecado original corrompera a natureza humana na sua essência,
como um verdadeiro delito da natureza, de modo tal, que o princípio de
justiça reside, segundo Santo Agostinho, na vontade divina, sendo justo o
que Deus quer porque o quer. A justiça exprime-se, assim, num complexo
de preceitos e imperativos, emanados de Deus, que o homem deve observar
para merecer a salvação eterna.

Concebendo eminentemente Deus como vontade, e considerando os efeitos


perniciosos do pecado original, Agostinho faz uma leitura muito pessimista
da condição humana. Já, que o pecado original atingiu o homem até à sua
substância, anulando a graça divina e a comunhão inicial que mantinha
com Deus. E por conseguinte, toda a obra humana tornou-se pecaminosa e
imperfeita, pelo que apenas se salva nesta condição, aquele a quem Deus,
por sua livre vontade, decidir se salve. Concebendo portanto Deus como
eminentemente vontade, e o pecado original como desnaturação da
substância humana, Santo Agostinho distingue três (3) tipos de lei
hierarquicamente estruturadas:

a) A lei divina, conexada com a ideia de creatio ex nihilo, é a expressão da


vontade de Deus. Eterna, é imutável, porque exercida sem condições
temporais para a sua execução, e universal, porque absoluta, perfeita,
infalível, infinitamente boa e justa; a tudo ordena. Fonte última do direito
positivo, por intermédio da lei natural, a lei divina é cognoscível através da
lei natural, mas incompreensível para o homem.

b) A lei natural é a transcrição da vontade divina no coração do homem,


que lhe permite distinguir o bem do mal, o justo do injusto. Imutável, é
permanente e universal, servindo de paradigma ao direito positivo; a lei
natural é o elemento intermédio entre a lei divina e a lei positiva.
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
4
História das Ideias políticas

c) A lei positiva ou humana é um conjunto de normas criadas, que servem


para regular as relações inter homines. Mas contrariamente à lei eterna e à
natural, a lei positiva, essencialmente mutável, temporal e imperfeita, está
sujeita a desvios e incorrecções, que derivam das imperfeições e pobreza de
espírito humanas. Encontra a sua última fundamentação na lei divina,
através da mediação da lei natural. É de notar, que para Santo Agostinho,
só uma lei positiva inspirada na lei divina, considerada paradigma da lei
natural, pode constituir-se em verdadeiro direito.

Da teoria agostiniana do direito, decorrem duas interpretações:

 O direito é visto como fundamentação teórica da primazia da Igreja


sobre o Estado, sendo a Igreja depositária na história, das verdades e
princípios do cristianismo e única sociedade perfeita e superior, que
deve dar moralmente, forma ao Estado.

 Há desvalorização e minimização do papel do Estado perante a


Igreja, tido como mero instrumento dos fins especiais desta.
VI. b) SÃO TOMÁS DE AQUINO

São Tomás de Aquino nasceu em Rocca Secca, a meio caminho entre


Roma e Nápoli, no ano de 1225. Morreu em 1274, aos quarenta e nove
anos. Para melhor compreender sua doutrina de lei, convém enquadrar o
pensamento de São Tomás de Aquino no espaço e no tempo, começando
por considerar algumas das importantes condicionantes históricas e
culturais que o influenciaram. Caído o Império Romano do Ocidente em
poder dos bárbaros, em 476 d.C., a única potência, que durante quase um
milénio, fica de pé no meio do caos e confusão, é a Igreja Católica, que
passa a considerar-se herdeira e continuadora da ideia romana de unidade.
A Igreja vai transformar-se, deste modo, e pouco a pouco, numa poderosa
organização política, social e religiosa.

O pensamento de São Tomás de Aquino é fortemente condicionado pela


sua concepção cristã e teocêntrica do mundo e da vida, e pela assimilação
da filosofia aristotélica, que acabava de desembarcar na Europa, através
dos árabes Averróis e Avicena, muito em particular. Não olvidando os
elementos da nova situação histórica, étnica, social e política da Europa em
renascimento, quaando, historicamente falando, por volta do séc. IX d. C.,
a Igreja sente uma necessidade sempre crescente de evangelizar os povos
do Norte da Europa, para submeter os bárbaros ao seu poder. Para o
possível casamento entre a cultura germânica e o pensamento teológico-
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
5
História das Ideias políticas

filosófico cristão, o cristianismo medieval teve de pactuar com algumas


tendências opostas, centrífugas e particularistas dos germânicos. E a Igreja
teve de sofrer a influência de mentalidades novas, passando a assimilar
algumas ideias dos bárbaros e povos germânicos. Dentre as quais, há a
destacar a ideia de nação, de direito e de personalidade.7

Em consequência da evolução histórica, cultural e social do encontro entre


a cultura bárbara dos germânicos e o cristianismo, que agora rivalizam com
ciúme recíproco, a partir de meados do séc X d. C, surgem duas doutrinas
políticas, que permanentemente se confrontam: a teocracia papal ou
curialismo, com os Pontífices a pretender, que como representantes
directos de Deus na terra, eles devem ter a plenitude do poder, inclusive
sobre o Estado. ao passo que por sua vez, os reis e imperadores defendem
o direito divino dos reis, pretendendo ser os representantes de Deus na
terra, com marcada interferência na gestão da Igreja.8

Ora tanto a Igreja como o Estado, consideram-se os herdeiros e


continuadores da ideia romana de universal. E da luta entre o poder
temporal e o poder curial, temos, por um lado, que a realeza vai tender
para um cesaropapismo, teocracia papal ou curialismo, com o poder
secular a procurar intervir, sempre mais absorventemente, nos assuntos
eclesiásticos. Enquanto o Papa, na sua luta pela libertação da Igreja em face
do poder civil, arvora-se em único juiz das condições de legitimidade de
todos os soberanos temporais, arrogando-se o direito de excomungar os
reis, príncipes e imperadores, anulando os deveres de fidelidade dos
súbditos para com eles.

Não é demais observar, que com a queda do Império Romano do Ocidente,


uma longa noite cai sobre o mundo cristão ocidental, quando tudo o que
eram letras, ciência, ilustração e cultura, entrou em profundo declínio.
Todas as ciências necessárias para a existência duma cultura de espírito
desapareceram no seio da sociedade civil. Perante tal panorama, só a Igreja
soube oferecer algum asilo ao que conseguira salvar-se da cultura antiga,
pelo que o saber refugiou-se nos mosteiros e escolas episcopais. A todos
esses condicionalismos históricos deve acrescer-se a recepção de
Aristóteles na Europa do séc XII, todos ingredientes que condicionam o
surgimento do pensamento teológico, filosófico, jurídico e político de São
Tomás de Aquino, que seguindo os passos de Santo Agostinho, procura

7
Luís Cabral de Moncada; op. cit. p. 69
8
Luís Cabral de Moncada, p. 71
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
6
História das Ideias políticas

fazer uma síntese da teologia com a filosofia, reconhecendo que a teologia


baseia-se na fé e a filosofia na razão.

Apesar, de na Idade Média, prevalecer politicamente a tese de que todo o


poder emana originariamente de Deus, mas pertence ao senhor feudal, que
o transmite aos filhos como herança, juntamente com seus bens e vassalos;
demarcando-se de santo Agostinho, São Tomás de Aquino apresenta uma
diferente atitude perante o dogma do pecado original e seus efeitos sobre a
natureza humana, nas relações com a graça divina. É asssim, que São
Tomás defende que os efeitos do pecado original não foram tão destrutivos
para a vida do homem: não se tornou substância mas simples mácula para a
natureza humana.9 Porque apesar do pecado de Adão e Eva, continua o
Aquinate, há ainda no homem, uma virtude original, susceptível de, com a
ajuda da graça, lhe permitir colaborar mais activamente na obra da sua
salvação. Para Tomás de Aquino, os efeitos do pecado original não foram
tão destrutivos, porque a graça vem apenas completar a natureza.

Fique assente, que a construção tomista do social se nos mostra, mais


directamente tributária daquele pequenino desvio de atitude inicial perante
o problema da graça. Antes de mais, Agostinho e Tomás têm posição
diferente perante o problema das relações entre a vontade e a inteligência,
entre o bem e o justo. Em segunda instância, enquanto em Santo Agostinho
Deus é essencialmente vontade, sendo o bem a simples manifestação do
seu querer; em São Tomás, Deus é antes de tudo, um ser de natureza
racional, sendo o bem a manifestação da sua razão em harmonia com essa
natureza. Segue-se que para São Tomás, Deus não pode deixar de querer o
bem, já que este é o bem.

Como bom aristotélico, o homem é, para São Tomás, uma substância


composta de matéria (corpo) e forma (alma), que se particulariza em meio a
outros seres com alma, pela faculdade intelectual. Para o Aquinate,
portanto, somente a razão aufere ao homem o conhecimento a partir da
experiência sensível das coisas. E o intelecto só constrói o conhecimento
pela interacção com os próprios objectos de conhecimento, tanto que «nada
está no intelecto, que primeiro não passe pelos sentidos».10 A liberdade é,
por isso, para São Tomás de Aquino, «a capacidade de o homem julgar
aquilo que é certo e errado, justo e injusto». Partindo do conceito de logos,
que entende como inteligência divina, essência criadora e princípio
ordenador do mundo; fundamento da lei eterna e lei natural, Tomás de
9
Idem; op. cit, p. 77
10
«Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu», in Eduardo C.B. Bittar e Guilherme Assis de
Almeida; op. cit , p. 193
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
7
História das Ideias políticas

Aquino admite na sua concepção de direito, três tipos de lei, tal como em
Santo Agostinho:

a) A lei eterna, promulgada por Deus, que tudo ordena, em tudo está, tudo
rege, é a manifestação da razão divina que governa o mundo. Divina, ela é
incompreensível para o homem, mas parcialmente cognoscível pelas suas
manifestações; intemporal e inespacial, é imutável e universal, porquanto
princípio e fim do todo universal, já que «todo o conjunto do universo está
submetido ao governo da razão divina». A lei eterna é directriz para tudo,
porque é uma ordem imperativa, regente do todo, a partir da razão divina,
que a tudo inspira.

b) A lei natural, é comum aos homens e aos animais, que existe na


natureza e conhecida através da razão. Ao contrário de Santo Agostinho de
Hipona, a lei natural é, em São Tomás, a participação racional do homem
na ordem cósmica, que estatui aquilo que o homem deve fazer ou deixar de
fazer. A lei natural caracteriza-se pela universal e imutável, é cognoscível
através da razão humana. A lei natural é portanto a forma racional e
intelectual de participação do homem na lei eterna, que apresenta três
características básicas.

Segundo o Doutor Angélico, a lei natural é uma lei racional, porque fruto
da razão prática e sinderética11 do homem. É rudimentar, porquanto serve
apenas de princípio norteador ou origem do direito positivo, não
correspondendo à totalidade do direito. Ademais, a lei natural é insuficiente
e incompleta, porquanto necessita da direito positivo para efectivar-se. Isto
é, necessita a lei natural de leis positivas complementares que tornem
concreto o que reside na natureza.12 Observe-se, que São Tomás de Aquino
distingue o direito natural e o direito por lei (direito positivo), pelo que
somente seria lei o preceito substancialmente justo e justo seria
naturalmente o que acorda com a razão. O justo natural é imprescindível
para a aplicação do justo por lei, como justiça inter-homines.

c) A lei positiva é uma criação do próprio homem, fruto da convenção; é a


concretização e aplicação particular dos princípios da lei natural na
sociedade humana. Em Tomás de Aquino, o direito positivo deve retratar o
que a lei natural preceitua e preceituar o que é dado pela natureza, que da
natureza decorre e não o contrário: «tudo o que é contrário à lei natural é

11
Sinderética (relativo à sindérese, que é, segundo os Escolásticos, uma faculdade natural de julgar com
rectidão; bom senso. Senso moral
12
Eduardo C.B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida; op. cit, p. 196
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
8
História das Ideias políticas

juridicamente injusto, ilegítimo e iníquo».13 A lei humana enquanto jus


positum deriva do justo natural, que é o parâmetro para a actuação do
direito positivo. Assim sendo, «toda a lei criada pelos homens só teria
natureza de lei se em consonância com a lei natural; [e] só seria justa se não
contrariasse a natureza».

Atente porém, que apesar de distinguir, como Santo Agostinho, três tipos
de leis, São Tomás de Aquino não estabelece nenhuma ordem hierárquica
entre elas, de maneira que apenas a lei eterna está acima das outras duas,
porquanto manifestação da razão divina que governa o universo. A lei
natural e a humana colocam-se ao mesmo nível, porque a lei natural é
princípio e fonte da lei positiva. É de suma importância, notar que em São
Tomás de Aquino, a lei eterna é o princípio regulador e normativo da
actividade do mundo, enquanto a natural é a participação da lei eterna na
criatura. Convém observar ainda, que não se deve confundir em São
Tomás, lei eterna e lei divina, que não são a mesma coisa: a lei eterna é
expressão da razão divina, que governa todo o universo; enquanto a lei
divina é a mais alta forma de participação da lei eterna aos homens. A lei
divina é a lei revelada, e chama-se direito divino em São Tomás de Aquino,
«o que foi divinamente promulgado e abrange, em parte, o justo natural
mas cuja justiça escapa aos homens, e em parte, o justo por instituição
divina».

O Doutor Angélico preocupa-se com a natureza do poder e das leis, onde se


nota com força a influência de Aristóteles, porque a Idade Média configura
duas instâncias de poder: o Estado, de natureza secular e temporal, voltado
para as necessidades mundanas, é caracterizado pelo exercício da força
física. Ao passo que a Igreja, de natureza espiritual, voltada para os
interesses da salvação da alma e que deve encaminhar o rebanho para a
verdadeira religião, por meio da força da educação e da persuasão.

Atente-se que tanto em Agostinho como Tomás de Aquino, a lei natural


não o é enquanto referida à natureza física do universo, ao cosmos, mas é
natural em função da própria natureza e essência do homem, que faz dele
necessariamente, um animal racional, social e político. Ainda influenciado
pela visão agostiniana, Aquino mantém a hierarquia entre Igreja e Estado,
considerando discutível o carácter ético do último, cujo respeito que lhe é
devido cessa, quando este promulga leis injustas, às quais deve recusar-se
obediência, se contrárias às leis divinas. E também no caso de se impor a
tirania ao povo, contra a qual será legítima a resistência, salvo se dessa

13
Idem; p. 200. Confrontar nota nº 4 a rodapé
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
9
História das Ideias políticas

resultar maior dano ou a tirania for o justo castigo pelos pecados cometidos
pelo povo.

Na Summa Theologica, sua monumental obra, São Tomás de Aquino, diz


que a justiça é uma relação de igualdade entre pessoas e não entre coisas ou
relação de coisas com pessoas; a justiça é uma prática, que atribui a cada
um o seu, à medida que cada um possui uma medida, e que nem todas são
materialmente iguais. A justiça tem a ver com uma actividade da razão
prática de discernir o meu do seu e o seu do meu.14

São Tomás de Aquino estabelece uma relação entre direito e justiça,


visto que o direito tem a ver com a justiça porque é justo. Justiça e direito
interrelacionam-se, visto que o direito visa estabelecer, de maneira plena, a
justiça. O direito não é justiça, a maior das virtudes, mas busca a realização
da justiça. O jus positum é derivado do justo natural, porque o justo natural
é o parâmetro para a actuação do legislador positivo, enquanto o justo por
natureza é imprescindível à necessidade de aplicação da justiça inter
homines. O homem no convívio social, necessita de regras convencionais
para que possa garantir a pacificidade dessa interacção no meio social. O
direito natural, que o homem conhece pela experiência, é insuficiente,
necessitando de leis positivas complementares, leis que tornam concreto o
que reside na natureza. Se o direito positivo for adequado ao direito natural,
é um bem para a comunidade civil, se for sua corruptela, perde sua força
coerciva dada pela razão, ficando-lhe somente a que lhe é dada pela
convenção.

Chegados até aqui, podemos permitir-nos um pequeno balanço


comparativo, entre a filosofia grega e pagã e a filosofia de matriz cristã,
pelo que impõe-se, resumidamente dizer, que embora o cristianismo tenha
adoptado muitos conceitos e perspectivas da filosofia grega, são notáveis
alguns dos mais importantes elementos de ruptura entre a Antiguidade
clássica e a Escolástica, resumíveis em três aspectos principais: Deus,
conhecimento e verdade.

Se com seu advento, o cristianismo introduz na cultura europeia, conceitos


novos, antes desconhecidos dos gregos e romanos (criação do universo ex
nihilo, Revelação, Deus Pessoa Trina, Bem, verdade, etc), em primeiro
lugar, as perspectivas jusnaturalista e antropocentrista dos greco-romanos
dão lugar a um direito teocêntrico. Em relação ao direito e ao Estado, se os
pré-socráticos deduzem da sua visão cosmocêntrica, o jusnaturalismo, da

14
Idem;
João Roberto Soki
Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
10
História das Ideias políticas

necessidade de moralizar a política e valorizar o ser contra o ter, Platão


repudia a sofística, dando origem a um antropocentrismo ético, pelo qual
defende a separação entre realidade e aparência; entre sujeito que conhece e
objecto conhecido; entre essência e aparência mutante, finita e enganadora.

Aristóteles apresenta um modelo de sociedade, fundamentalmente


constituída por dois elementos: de um lado a família - núcleo de todas as
outras formas sociais posteriores - é uma sociedade pré-política, e de outro
lado, o indivíduo. Sendo a família anterior ao Estado, aí predomina a
autoridade do pai sobre a esposa e os filhos; do senhor sobre o escravo.
Quer Aristóteles dizer, que a sociedade com suas leis, vem em primeiro
lugar, e só depois aparece o indivíduo, que sem alternativa, deve submeter-
se às leis da comunidade, seja esta família ou Estado.

A primeira grande ruptura entre filosofia grega e o cristianismo assenta,


porém, no facto, que a antiguidade grega havia posto Deus em relação com
o Cosmo, quando o cristianismo pôs Deus em relação com a história:
encarnado em Jesus Cristo, Deus nasceu em local e momento concretos.
A segunda maior ruptura entre as duas épocas, tem a ver com o processo de
conhecimento: a filosofia grega caracteriza-se por insistir nos limites do
conhecimento humano; encontrando-se todas as escolas, quanto aos seus
fundamentos e critérios de justificação, num plano de igualdade. Der facto,
a filosofia grega apresenta uma pluralidade de escolas em diálogo
permanente e tolerância recíproca, quando o cristianismo se apresenta
como a própria Verdade revelada, situando seu fundamento justificativo
num plano superior ao das doutrinas filosóficas com as quais tem de
dialogar.

E quanto à verdade, reconhecendo as escolas filosóficas gregas, que


nenhuma delas é detentora exclusiva da verdade, mantêm um diálogo
permanente e tolerância recíproca. Ao contrário do cristianismo, que se
considera como a própria Verdade revelada, colocando-se, por isso, num
plano de superioridade, em relação às culturas com as quais entra em
diálogo.

João Roberto Soki


Faculdade de Direito, Universidade Católica de Angola – UCAN
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” nº 24. C.p. 2064 Sanatório/Palanca
Luanda (Angola)
11

Você também pode gostar