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De Santo Agostinho a Rousseau: Mil e

Quatrocentos Anos de Filosofia

Filósofos Cristãos
A partir do século IV, com o enorme – e rápido – avanço do cristianismo na Europa, os pensadores
começaram a aproximar ainda mais a filosofia da teologia. Seus trabalhos foram fundamentais na
adaptação das obras dos gregos clássicos (sobretudo Platão e Aristóteles) para que refletissem
suas ideias cristãs. Mas suas obras não se resumiram à ideologia cristã, contribuindo
substancialmente para o progresso das investigações filosóficas.
Ao retomarem os textos gregos clássicos, os filósofos cristãos contribuíram decisivamente para sua
preservação e divulgação. Embora adaptando as ideias platônicas e aristotélicas às suas, totalmente
influenciadas pelo cristianismo, filósofos como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino foram
fundamentais tanto para o estabelecimento da doutrina cristã como para o desenvolvimento
filosófico durante a Idade Média.
Contudo, quando falamos em Europa cristã, doutrina cristã ou mesmo cristianismo, faz-se
necessário elucidar sobre qual cristianismo estamos falando. Estamos nos referindo ao cristianismo
defendido pela Igreja que, no século XI, após o cisma do Oriente, passa a chamar-se Igreja Católica
Romana ou, simplesmente, Igreja Católica. Enquanto a Europa Oriental terá forte tradição ortodoxa,
a Europa Ocidental vivenciou um domínio católico.
Porém, antes do cisma, a Igreja já era dominante na Europa, pelo menos desde o século IV, e esse
predomínio do catolicismo norteou o pensamento da época, uma vez que discordar da palavra da
Igreja poderia acarretar sérias consequências.
A Igreja Católica inspirou-se no Império Romano para estabelecer seu modelo de governo, pois
pretendia criar uma estrutura poderosa e duradoura. Com sede em Roma, a Igreja exercia forte
controle sobre quase todas as atividades culturais, educativas, festivas e, obviamente, religiosas e
teológicas.
Dessa maneira, todo o pensamento da época ficava restrito aos campos delimitados pela Igreja e
sua doutrina. E o grande criador da doutrina cristã em seus primeiros anos foi Agostinho de Hipona,
posteriormente canonizado e denominado Santo Agostinho.
Ainda na Idade Média, dois importantes momentos devem ser relembrados para enfatizarmos o
crescimento da influência católica na Europa: a Reforma Gregoriana e a “Santa” Inquisição.
Durante os doze anos de seu papado (1073-1085), Gregório VII realizou profundas mudanças na
Igreja. Em primeiro lugar, fortaleceu e purificou o clero. Fortaleceu de duas maneiras: a Doutrina da
Transubstanciação garantia exclusividade aos sacerdotes na realização das missas e na absolvição
dos pecados.  Até então, as pessoas só podiam se arrepender e confessar seus pecados no leito de
morte, o que dava pouco poder à Igreja sobre o que eles faziam durante a vida.
E o sacerdote passa a ter poder para excomungar os heréticos. A purificação do clero ocorreu por
meio da instituição do voto do celibato. Com isso, distanciava os sacerdotes dos leigos, garantindo
mais respeito do povo em relação ao clero.
Outro ponto importante da reforma foi a que estabelece o Papa como “o rei dos reis”, “representante
de Deus na Terra” e portador “das chaves do Céu e do Inferno”. Assim, estabelecia a supremacia do
poder papal sobre os reis. Os reis eram coroados pelo Papa, num claro sinal de submissão.
Obviamente, tais reformas causaram uma série de problemas políticos nos séculos seguintes, com o
crescimento do poder dos reis e dos Estados Nacionais.
Sobre a Santa Inquisição, Tribunal do Santo Ofício ou, simplesmente, Inquisição, temos o fato que
melhor ilustra o domínio da Igreja sobre os europeus ocidentais. Fundada em 1233, pelo Papa
Gregório IX, a Inquisição perseguia e julgava os acusados de heresia, isto é, aqueles que
discordavam e/ou contrariavam a fé cristã. Como as crenças heréticas cresciam na Europa, Gregório
IX cria a Inquisição para impedir uma revolta contra a Igreja (que viria a acontecer, de fato, três
séculos depois).
As mais duras inquisições foram a francesa e a espanhol.  Nestes países, na maior parte dos casos,
os acusados não tinham direito a julgamento e, consequentemente, não podiam se defender das
acusações.
Quando alguém era acusado de heresia, era intimado a comparecer ao tribunal, comandado por um
membro do clero. Quem confessasse a heresia e dizia-se arrependido, pagava uma pesada multa e
era perdoado (como poucos tinham condições de pagar, acabavam presos ou mortos). Os que não
confessavam, eram torturados e, geralmente, enfrentavam a morte na fogueira. A Igreja inquiria,
julgava e condenava, mas quem cumpria a execução era o Estado.
Abandonada durante o século XV, a Inquisição é retomada no século XVI para combater luteranos,
calvinistas, etc., além de tentar barrar a crescente popularidade da razão científica, como aconteceu,
por exemplo, com o julgamento do cientista italiano Galileu Galilei. Porém, ela acabou apenas por
fortalecer essas dissidências de seu pensamento.

Santo Agostinho
Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste, cidade situada onde hoje é a Argélia, em 354, atualmente
chamada Annaba, que à época pertencia ao Império Romano. Agostinho de Hipona (por causa da
última cidade em que viveu) ou, depois de sua canonização, de Santo Agostinho, foi um dos mais
importantes pensadores cristãos. Viveu em um período de intensas transformações sociais e
políticas em meio à desintegração crescente do Império Romano. Seu pensamento influenciou a
doutrina cristã por mil anos, como observa Olyver:
A teologia de Santo Agostinho tornou-se fonte doutrinária fundamental para a Europa cristã durante
os mil anos seguintes, pois alimentou o cristianismo de um sistema de crenças coerentes que o
Velho Testamento por si só não fornecia (OLYVER, 1998, p. 46).

 
Sua obra, embora teológica, não é uma simples afirmação religiosa. Ele busca explicar a existência
de Deus e de suas obras de forma cada vez mais profunda. Assim, busca uma justificativa filosófica
para o cristianismo, adaptando e modificando a filosofia de Platão. Ele busca explicar as Sagradas
Escrituras por meio do pensamento filosófico platônico. Dessa maneira, conferiu traços cristãos ao
pensamento de Platão, no que se convencionou chamar de neoplatonismo.
Converteu-se ao cristianismo aos trinta anos depois de uma juventude entregue aos “prazeres
mundanos”. Tornou-se bispo de Hipona e lá viveu até sua morte. Teve uma intensa produção
literária com quase cem livros, dos quais podemos destacar Confissões, A cidade de Deus, Do
Livre-Arbítrio e Sobre a Trindade.
Ele desejava desesperadamente descobrir a verdade. Acreditava em Deus, mas a simples crença
não lhe bastava e suas perguntas sem respostas lhe atormentavam. Em uma sociedade na qual se
acreditava piamente na possibilidade de passar a eternidade no inferno, “queimando no enxofre”,
escrever, falar ou mesmo pensar sobre Deus podia ser bastante arriscado.

Um difícil dilema que Agostinho tentou responder foi: Se Deus é todo-poderoso, onipresente,
onisciente e onipotente, e se Deus é o Supremo Bem, por que há maldade e sofrimento no
mundo? Sua resposta foi bastante original e se sustenta na capacidade do ser humano de tomar
decisões, ou seja, na existência do livre-arbítrio.
Inicialmente acreditava em uma compreensão maniqueísta de que existe o Bem e o Mal, que se
encontravam em constante batalha. Tal pensamento é bastante comum nas religiões orientais e
mesmo no cristianismo. Assim, as coisas boas eram obras de Deus, e as ruins, do diabo. Um
assassinato seria obra do Mal.
Para os maniqueístas, a bondade originava-se na alma, e a maldade, no corpo. A tentação é
corpórea, os desejos e pontos fracos também. Isso nos conduziria ao mau caminho. Assim, para os
maniqueístas, a questão da maldade é simples, pois eles não veem Deus como onipotente.
Entretanto, mais velho e maduro, Agostinho abandona a tese maniqueísta, o que lhe traz profundas
inquietações. Como afirma Warburton:
Em uma idade mais avançada, Agostinho rejeitou a abordagem maniqueísta. Ele não conseguia
entender por que a luta entre o bem e o mal seria interminável. Por que Deus não vencia a batalha?
Não era certo que as forças do bem eram mais fortes que a do mal? Por mais que os cristãos
aceitassem a possível existência de forças do mal, elas nunca são tão grandes quanto a força de
Deus. Mas se Deus era verdadeiramente todo-poderoso, como Agostinho passou a acreditar, os
problemas do mal permaneceriam. Por que Deus permitia o mal? Por que havia tanto mal? A
solução não é nada fácil. Agostinho pensou exaustivamente sobre esses problemas, e sua principal
solução baseou-se na existência do livre-arbítrio: a capacidade humana de decidir o que fazer. Esse
argumento costuma ser chamado de defesa do livre-arbítrio e trata-se de uma teodiceia – a tentativa
de explicar e defender a ideia de como um Deus bom permitia o sofrimento (WARBURTON, 2011, p.
36-37).
Com isso, Agostinho responde a uma das mais inquietantes perguntas da doutrina cristão de
outrora. E defende que o livre-arbítrio é algo positivo, pois nos concede a chance de vivermos uma
vida moralmente boa (e isso significava seguir os Dez Mandamentos). Podemos cometer o mal,
roubando, matando ou desejando a luxúria, nos apegando aos bens materiais. Esses desejos e
impulsos poderiam ser controlados por nosso lado racional. Aqui, vemos uma clara adaptação do
pensamento platônico. Os seres humanos têm o poder da razão e devem usá-lo. É isso o que nos
distingue dos demais animais.
Mas, para Agostinho, somos impelidos a praticar o mal, a pecar, desde o pecado original de Adão e
Eva. Ao nascermos, carregamos conosco um pouco desse pecado. O pecado original era
transmitido, geração após geração, pela reprodução sexual.
Dessa forma, para Agostinho, o mal existe, mas não é fruto de Deus, e sim das escolhas que somos
livres para fazer. Essa ideia ainda é muito forte entre parte dos cristãos de hoje, quase dezessete
séculos depois de ter sido escrita. E Deus pode permanecer onipotente, onipresente e onisciente,
praticando apenas o bem.
Agostinho morreu em Hipona em 430, deixando uma marca indelével no pensamento ocidental. Sua
influência vai muito além do cristianismo, e acaba por moldar a Europa medieval como um homem
do fim da Idade Antiga que teve suas ideias retomadas por séculos. Como observa Marías:
Santo Agostinho é uma das figuras mais interessantes do seu tempo, do cristianismo e da filosofia. A
sua personalidade originalíssima e rica deixa uma marca profunda em todas as coisas onde põe a
mão. A filosofia e a teologia medievais, isto é, o que se chamou a Escolástica, toda a dogmática
cristã, disciplinas inteiras como a filosofia do espírito e a filosofia da história, ostentam a marca
inconfundível que lhe imprimiu. Mais ainda: o espírito cristão e o da modernidade revelam uma
influência decisiva de Santo Agostinho: e tanto a Reforma como a Contrarreforma recorreram, de um
modo especial, às fontes agostinianas (MARÍAS, 1959, p. 126).
Outra forte influência agostiniana foi sobre a política. Embora na época em que viveu a Igreja ainda
não fosse tão organizada e poderosa como viria a ser, Agostinho defendia que o Estado, mesmo
sendo uma instituição separada, devia ser fiel às práticas e ensinamentos da Igreja. Séculos depois,
essa ideia foi usada para justificar o Absolutismo na Europa, pois se acreditava que um Estado, para
ser fiel à prática religiosa, obrigatoriamente deve ter um governo absoluto. E tanto a Igreja quanto os
reis se beneficiaram disso.

A filosofia Medieval
Numa visão positivista da história, a Idade Média termina em 476. Mas, do ponto de vista do
pensamento ocidental, podemos apontar como data terminal a morte de Santo Agostinho em 430. A
partir de então, inicia-se na Europa uma filosofia profundamente influenciada pelas ideias do Bispo
de Hipona que será chamada de Escolástica. Ela durará até o século XV, ou seja, são dez séculos
de história.
Obviamente, um período de tempo tão longo não foi homogêneo. O mundo estava convulsionando-
se (e, por mundo, entende-se Europa) com o fim do Império Romano do Ocidente e a desintegração
dos reinos bárbaros. Da mistura desses dois elementos culturais (bárbaros e romanos) surgirá algo
novo, enquanto a cultura antiga parecia desaparecer. Os intelectuais desse período de quatro
séculos (séculos V a IX) têm como tarefa primordial “salvar o que restou”. Como observa Marías:
Em primeiro lugar, há uma grande lacuna de quatro séculos, do século V ao século XV, em que
propriamente não há filosofia. [...] salvar o que se encontra, salvar os restos da cultura que está
naufragando. Essa é a missão dos intelectuais desses quatro séculos. O seu labor não é, nem pode
ser criador; apenas compilador. Em Espanha, em França, na Alemanha, na Inglaterra, alguns
homens, por idêntico processo, vão recolhendo com cuidado o que se sabe da Antiguidade,
reunindo tudo em livros do tipo enciclopédico, nada originais, puros repertórios do saber greco-latino.
Esses homens salvarão a continuidade da história ocidental e encherão com labor paciente o vazio
desses séculos de fermentação histórica, para que possa surgir mais tarde a comunidade europeia
(MARÍAS, 1959, p. 137-8).
Podemos destacar nesse período o espanhol Santo Isidoro de Sevilha (570-646); na Itália, Boécio
(480-525); na Inglaterra, Beda, o Venerável, depois canonizado como São Beda (673-735), e
Alcuíno (730-804). Como dito por Marías (1959), a obra destes pensadores não foi original. Embora
seu saber se conservasse sem rigor intelectual e de maneira desordenada, essa etapa de
acumulação e compilação de conhecimento forma a base do conhecimento especulativo que se dará
nos séculos posteriores.
No século IX, a figura do irlandês João Escoto (800-877) se destaca no pensamento europeu.
Durante a década de 1840, o rei Carlos, o Calvo, convida Escoto para ser árbitro de um debate
teológico. Como fruto dessa arbitragem, escreve um tratado intitulado Sobre a predestinação divina,
no qual questiona a obra de Santo Agostinho. Para Escoto, a razão é a “verdade de Deus”, ela tem
mais poder e, portanto, deve prevalecer sobre a devoção a Deus, que é a religião. A vontade de
Deus é o livre-arbítrio da investigação racional humana e deve estar acima da doutrina religiosa.
Discordar de Santo Agostinho no século IX era algo passível de punições como a excomunhão e até
a morte. Mas, sob a proteção de Carlos, o Calvo, João Escoto não sofreu perseguições.
Outro importante nome do pensamento medieval foi Santo Anselmo. Nasceu em Piemonte (Itália)
em 1033, mas passou grande parte de sua vida entre a França e a Inglaterra.  Tem em Santo
Agostinho sua grande influência.
O tema principal de sua obra é a tentativa de provar a existência de Deus. Dizia que, por uma
questão de lógica, o fato de termos uma ideia de Deus prova que Deus realmente existe. Pode-se
dizer que, com Santo Anselmo, tem início, efetivamente, o que hoje chamamos de Escolástica, pois
com ele ela adquire um perfil definido, que se consolida com São Tomás de Aquino.

São Tomás de Aquino


No século XIII, a Europa vivenciava uma revolução cultural com universidades surgindo por todo o
continente, nas quais se ensinavam as “sete artes liberais”: gramática, lógica, retórica, aritmética,
geometria, música e astronomia. Com o aumento da erudição de uma parte cada vez maior da
população, as antigas teses católicas, baseadas em Santo Agostinho, começaram a ser
questionadas. E é nesse contexto que surge a obra de São Tomás de Aquino.

Nascido em 1225, o napolitano Tomás de Aquino foi um dos primeiros alunos da Universidade de
Nápoles. Foi filho de uma rica família, dos Condes de Aquino, uma das mais importantes da região,
surpreendeu seus familiares quando decidiu tornar-se monge dominicano. Revoltada, sua família
mandou prendê-lo quando ele tinha 21 anos para que ele “pensasse melhor”. Mas foi na prisão que
escreveu sua primeira obra sobre teologia e filosofia.
Em 1255, aproximadamente, aceita a cadeira de Teologia da Universidade de Paris, mudando-se
para a França. Lá, foi bastante influenciado pelos dominicanos, que estudavam a filosofia grega
antiga, em especial, as obras de Aristóteles. Cerca de três anos depois, retorna à Itália.
Sua discordância com Santo Agostinho e Platão sobre a origem do conhecimento foi mal vista por
muitos de seus contemporâneos. Embora autor de uma vasta obra e professor e teólogo bastante
ativo por toda a vida (fundou escolas em Florença, Paris e Nápoles), teve suas obras condenadas
nas Universidades de Paris (onde lecionara anos antes) e Oxford. Somente na primeira metade do
século XIV, cerca de cinquenta anos após o seu falecimento, teve suas obras devidamente
reconhecidas.
Enquanto Agostinho e Platão acreditavam que todo o conhecimento humano deriva de ideias
universais, Tomás de Aquino afirmava exatamente o oposto: “[...] todo o conhecimento humano
deriva de experiências particulares que podem ser transformados nos conceitos abstratos das ideias
universais” (OLYVER, 1998, p. 51). Com o reconhecimento de suas teses, consegue libertar o
pensamento escolástico das ideias neoplatônicas.
Assim como Santo Anselmo fizera dois séculos antes, acreditava que a razão poderia explicar a
existência de Deus. Argumentava que a criação divina mais magnífica era o ser humano. Assim,
desenvolver a razão, característica exclusivamente humana, era uma maneira de glorificar o nome
de Deus. Portanto, o progresso da razão, de nossa compreensão da natureza, não era obstáculo à
fé católica.
Aquino fazia uma clara distinção entre teologia e filosofia: enquanto a primeira baseava-se na
Revelação divina, a segunda fundamenta-se no exercício da razão humana. Enquanto a filosofia é
obra humana, a teologia não é feita pelo homem, mas por Deus, ao revelar-se.
Na tentativa de provar a existência de Deus, expõe em sua obra Suma teológica a tese da Causa
primeira, baseada no pensamento aristotélico. Aquino parte da ideia de que tudo que existe surgiu
de uma relação de causa e efeito. Pense você: uma caneta, por exemplo, é fruto de muitas causas –
da criação e fabricação, das causas que produziram suas matérias-primas etc. Mas o que causou a
existência da matéria-prima? E o que causou estas causas?
Mas essa cadeia de causas e efeitos poderia retroceder eternamente? Para Aquino, a resposta é
não. Se retrocedermos às causas de tudo o que existe no cosmos, perguntando sempre “o que
causou?”, em algum momento responderíamos “nada”, ou seja, uma “causa não causada”. Ele
acreditava que, nesse momento, deveria haver uma causa primeira, a causa não causada, que tinha
desencadeado toda a série de causas e efeitos. Essa causa primeira, no seu entendimento, seria
Deus. Nos termos da própria Summa Theologica, I,q.2, 2.3:
A primeira e mais clara se funda no movimento. É inegável, e consta pelo testemunho dos sentidos,
que no mundo há coisas que se movem. Pois bem, tudo o que se move é movido por outro, já que
nada se move mais que enquanto está em potência a respeito daquilo para o qual se move. Mas,
mover requer estar em ato, já que mover não é outra coisa que fazer passar o que está em ato, à
maneira como o quente em ato, por exemplo, o fogo faz que uma lenha, que está quente em
potência, passe a estar quente em ato. Muito bem: não é possível que uma mesma coisa esteja, ao
mesmo tempo, em ato e potência a respeito do mesmo, senão a respeito de coisas diversas, o que,
por exemplo, é quente em ato, não pode ser quente em potência, e sim, que, em potência, é, ao
mesmo tempo, frio. É, pois, impossível que uma coisa seja, por isso é da mesma maneira, motor e
móvel, como também o é o que se move a si mesma. Por conseguinte, tudo o que se move é
movido por outro. Mas, se o que move a outro é, por sua vez, movido, é necessário que o mova um
terceiro, e, a este, outro. Não se pode porém seguir indefinidamente, porque assim não haveria um
primeiro motor e, por conseguinte, não haveria motor nenhum, pois os motores intermédios, não
movem mais que em virtude do movimento que recebem do primeiro, da mesma forma que um
bastão nada move a não ser que o impulsione a mão. Por conseguinte, é necessário chegar a um
primeiro motor, que não seja movido por ninguém, e este é o que todos entendem por Deus
(AQUINO, 2011, pp.127-128).
Essa teoria é a segunda das chamadas cinco vias, ou as cinco maneiras de provar a existência de
Deus. Marías sintetiza as afirmações, constantes da Summa Theologica I, q.2, que trata desse tema,
da seguinte maneira:
São Tomás, que repele a prova ontológica de Santo Anselmo, demonstra a existência de Deus, de
cinco maneiras, que são as famosas cinco vias:
1ª - Pelo movimento: existe o movimento; tudo o que se move é movido por outro motor; se um
motor se move, precisará de outro para o fazer mover, e assim até o infinito. Isso seria impossível
porque não haveria nenhum motor se não houvesse um motor primeiro, e este motor primeiro é
Deus.
2ª - Pela causa eficiente: há uma série de causas eficientes: tem de haver uma primeira causa,
porque se não houvesse, não haveria nenhum efeito, e essa causa primeira é Deus.

3ª - Pelo possível e pelo necessário: a geração ou corrupção mostram que há entes que podem ser
ou não ser; esses entes, houve um tempo em que não foram, e terá havido um tempo em que não
houvesse nada, e nada havia chegado a ser. Tem de haver um ente necessário por si mesmo, e
este ente chama-se Deus.
4ª - Pelos graus de perfeição: há diversos graus de todas as perfeições, que se aproximam mais ou
menos das perfeições absolutas, e por isso são graus dessas coisas absolutas; há, pois, um ente
que é sumamente perfeito, que é o ente supremo; este ente é a causa de toda a perfeição e de todo
o ser e chama-se Deus.

5ª - Pelo governo do mundo: os entes inteligentes tendem para uma ordem, não por acaso, mas pela
inteligência que os dirige; há um ente inteligente que ordena a natureza e a impele para o seu fim.
Esse ente é Deus.

Estas são, em suma, as cinco vias. A ideia fundamental que as anima é Deus, invisível e infinito,
demonstrável pelos seus efeitos visíveis e finitos (MARÍAS, 1959, p.177-8).
Quanto a sua ideia de Estado, o tomismo, como é denominada a filosofia de Tomás de Aquino,
novamente muito influenciado pelo pensamento aristotélico, vê o homem como um animal social e
político. Para Aquino, a sociedade existe para o indivíduo, e não o contrário. A melhor forma de
governo seria uma monarquia moderada, e a pior, a tirania.
Como dito anteriormente, a obra de São Tomás de Aquino sofreu resistência de muitos setores à
época. Foi atacada com hostilidade por muitos, sobretudo por contradizer, em vários aspectos, o
pensamento platônico-agostiniano. Todavia, aos poucos sua obra foi sendo cada vez mais aceita
dentro do próprio clero, e acabou por consolidar-se como fundamento da teologia católica moderna.
Em 7 de março de 1274, com menos de 50 anos, faleceu Tomás de Aquino, enquanto viajava para
acompanhar o Segundo Concílio de Lião, ou Lyon, para o qual havia sido convocado pelo Papa
Gregório X; o décimo-quarto ecuménico, realizado em 1274, tentou realizar a união com a Igreja
Ortodoxa e pregou a cruzada para libertar de novo Jerusalém das mãos dos muçulmanos. Em 1323,
foi canonizado como São Tomás de Aquino.
Renascimento e Filosofia
Costuma-se chamar de Renascimento um período da história europeia, aproximadamente do século
XIV ao XVI – ou seja, fins da Idade Média e início da Moderna, período de intensas transformações
em praticamente todas as áreas da vida humana. Porém, o termo é mais comumente utilizado para
designar as transformações ocorridas nas artes, ciências e filosofia.
Três importantes fatos históricos precisam ser relembrados para ajudar-nos a entender um pouco
mais sobre o Renascimento: o primeiro, em seu início (século XIV), é a Peste Negra, uma das mais
violentas epidemias já vivenciadas pela humanidade, que dizimou quase metade da população
europeia. O segundo, entre o fim do século XV e início do XVI, é a descoberta do Novo Mundo –
Colombo chega à América em 1492. E o terceiro, que terá início na Alemanha em 1517, é a Reforma
Protestante (cujos expoentes foram Lutero e Calvino) e sua resposta católica, a Contrarreforma.
O Renascimento teve sua origem nas cidades-estados italianas como Pisa, Siena e, principalmente,
Florença. Ricas e prósperas cidades comerciais, muitas de suas famílias lucravam comerciando as
especiarias orientais com o restante da Europa. Muitos de seus habitantes mais ricos utilizavam
parte de sua riqueza patrocinando sábios e artistas. Era a prática do mecenato.
O Renascimento espalha-se pela Europa. É desse período que surgem alguns dos maiores gênios
da humanidade, Michelangelo e Rafael Sanzio, nas artes, Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, nas
ciências, e Leonardo da Vinci, que se enquadraria em qualquer das áreas, além de tantos outros
que, injustamente, não foram citados.
Umas das principais características do pensamento renascentista era a valorização do ser humano.
Contrapondo-se à visão medieval de que Deus deveria ser o centro das atenções humanas, os
renascentistas colocavam o homem no centro, naquilo que chamamos de antropocentrismo. Não
seriam mais os instrumentos divinos que nos fariam compreender o mundo, mas, sim, as
ferramentas de que dispõe o homem: o estudo e a observação, isto é, a ciência. Dito de outra forma,
era pela razão humana que se conseguiria compreender o mundo, não mais pelas explicações
religiosas. Isso, para os renascentistas, significava voltar à Antiguidade Clássica, Grécia e Roma
antigas, a “era de ouro” da humanidade que, depois, mergulharia na “Idade das Trevas” – como
muitos referiam-se à era medieval.
Na filosofia, o Renascimento também nos legou alguns de seus principais nomes. A valorização das
descobertas obtidas por meio da exploração geográfica e científica, e as descobertas sobre o
homem – como os estudos sobre anatomia de Vesalius – formariam a base para as investigações
filosóficas do período. O movimento mais comumente associado ao Renascimento é o humanismo.
O termo, todavia, não era usual à época, tornando-se comum somente no século XIX.  Bastante
heterogêneo, podemos dizer que o humanismo valorizava as artes e ciências humanas.
Alguns dos pilares da sociedade moderna, sobretudo a filosofia política ocidental, encontram-se nas
obras de pensadores como Nicolau Maquiavel, Francis Bacon e Thomas Hobbes. São eles que
abordamos a partir de agora.

Nicolau Maquiavel (1469-1527)


Nicolau Maquiavel nasceu em Florença e lá viveu a maior parte de sua vida. Com 25 anos viu sua
cidade ser conquistada por franceses e, mais tarde, por espanhóis. Seu interesse pela política o fez
ser indicado para um cargo diplomático (segundo chanceler) no novo governo. Na função, viajou
pela Europa, encontrando-se com reis e papas. Observou e participou do universo político europeu
da época, com suas intrigas, vinganças e manipulações.

Em 1512, a família Médici (destituída do poder em 1494 pelos invasores franceses) retoma o
controle da cidade e Maquiavel é preso. Alguns de seus colegas são executados, mas Maquiavel é
libertado – porém, banido de Florença, a cidade que tanto amava. Passa a viver em uma fazenda
próxima à cidade onde se dedica às letras.
Seu primeiro e mais famoso livro baseava-se em suas experiências como diplomata. O
Príncipe (1513), no caso, é o governante. Poderia ser um rei, imperador ou qualquer coisa que o
valha. Este livro é uma espécie de “manual” sobre a arte de governar. São várias recomendações
aos governantes e o livro era dedicado a Lorenzo II, então patriarca dos Médici. Talvez o interesse
de Maquiavel fosse poder retornar à Florença como uma espécie de conselheiro político. Todavia,
isso não ocorreu.
Aquela que talvez seja a grande inovação de O Príncipe é no que se baseava Maquiavel. Ele não se
baseava em princípio morais ou abstratos, e sim na experiência humana, em seu conhecimento
sobre a história política e, principalmente, naquilo que havia presenciado (seu modelo de governante
teria sido César Bórgia, filho ilegítimo do Papa Alexandre VI, que constituiu um principado na região
da Romanha, Itália, na primeira década do século XVI). Assim, como ele próprio afirmava, estava
fazendo uma nova forma de teoria política. Para Maquiavel, o que um governante deveria ter
era virtú que, em italiano, significa “firmeza” ou valor.
Maquiavel estava decidido que sua filosofia deveria ser enraizada naquilo que realmente acontece.
Ele mostrava aos leitores o que queria dizer por meio de uma série de exemplos da história recente,
envolvendo principalmente pessoas que ele conhecia. Por exemplo, quando César Bórgia descobriu
que os membros da família Orsini planejavam derrubá-lo, os levou a crer que não sabia de nada.
Induziu os líderes a se encontrar com ele em um lugar chamado Sinigaglia. Quando chegaram, ele
matou todos. Maquiavel aprovou a armadilha. Para ele, parecia um bom exemplo
de virtú (WARBURTON, 2011, p. 53).
A visão fria - “realista” como ele preferia dizer – com que Maquiavel encarava os fatos e sua
inspiração em César Bórgia como modelo de governante fizeram com que ele fosse julgado e
condenado por muitos que o leram. O termo maquiavélico é até hoje usado com um sentido
pejorativo, de alguém que arquiteta planos desleais ou malévolos.
Numa interessante – e elucidativa – analogia, Maquiavel dizia que os governantes deveriam ser “um
pouco raposas, um pouco leões”. A raposa, sorrateira e capaz de farejar armadilhas, e o leão, forte e
seguro. Não poderia ser sempre raposa, nem sempre leão, mas uma mistura de ambos. Deveria,
portanto, conseguir perceber as armadilhas de seus oponentes e ser forte para derrotá-las.
Acreditava Maquiavel que um príncipe, se tivesse de escolher entre ser temido ou amado, deveria
escolher o primeiro. Um príncipe amado pelo seu povo pode perder esse amor em momentos de
adversidade. Já o medo é menos passageiro. Um príncipe temido pode até realizar algumas boas
ações para seu povo que isso não lhes fará perder o temor. Mas o ideal, dizia, seria ter os dois: o
amor e o medo de seus súditos. E usa, novamente, César Bórgia para exemplificar isso, como
aponta Warburton:
Em outra ocasião, quando Bórgia assumiu o controle de uma região chamada Romanha, colocou no
poder um comandante particularmente cruel, Remirro de De Orco, que apavorava o povo obrigando-
o a lhe obedecer. Quando a região acalmou-se, Bórgia quis afastar-se da crueldade de De Orco.
Então o matou, esquartejou o corpo e deixou os pedaços na praça da cidade para que todos vissem.
Maquiavel aprovou essa abordagem repulsiva, que levou Bórgia a conseguir o que queria: manter do
seu lado o povo da Romanha. O povo estava feliz por De Orco ter morrido, mas ao mesmo tempo
percebeu que Bórgia devia ter encomendado o assassinato, e isto os amedrontava. Se Bórgia era
capaz desse tipo de violência contra seu próprio comandante, ninguém estaria seguro. Portanto, aos
olhos de Maquiavel, a atitude de Bórgia foi valorosa: ela demonstrava virtú e era exatamente o tipo
de coisa que um príncipe sensível deveria fazer (WARBURTON, 2011, p. 54).
Ao agir tão violentamente contra De Orco, Bórgia conseguiu o amor e o temor do povo da Romanha.
Aqui percebemos outro importante fundamento do pensamento maquiavélico, expresso em sua frase
mais famosa: “os fins justificam os meios”. O príncipe virtuoso é aquele disposto a fazer tudo aquilo
que for necessário para manter-se no poder. Quando executou seu comandante, César Bórgia
conseguiu evitar que a população local viesse a se organizar contra De Orco (e, consequentemente,
contra Bórgia). Assim, a morte de De Orco acalmou os ânimos, contendo uma possível rebelião. O
que, na visão de Maquiavel, era o melhor para o Estado. Portanto, os fins (evitar a rebelião)
justificam os meios (a morte cruel de De Orco).

Francis Bacon, Fundador da Ciência Moderna


Tanto Bacon como Thomas Hobbes – do qual trataremos a seguir – não são, especificamente,
renascentistas, quanto à cronologia de suas obras (a maior parte da produção de Bacon e toda a de
Hobbes ocorreram no século XVII). Todavia, ambos eram movidos pelas ideias emergentes de sua
época, relacionadas à exploração científica, características do Renascimento. Ambos se opunham
ao domínio da teologia sobre as questões científicas. Eles foram tão importantes que originaram
uma nova corrente filosófica chamada de Empirismo, grande corrente da filosofia inglesa.
Francis Bacon nasceu em Londres, em 1561. Ingressou na carreira política bastante jovem, sendo
eleito para a Câmara dos Comuns, algo similar a nossa Câmara dos Deputados, aos 23 anos.
Galgou vários postos até ser nomeado lorde Chanceler e receber os títulos de Barão de Verulam e
Visconde de Saint-Alban. Porém, no mesmo ano em que recebeu os títulos de nobreza, foi
condenado por receber suborno enquanto atuava como juiz (prática extremamente comum na
Inglaterra da época). Pagou uma elevada multa e foi proibido de exercer cargos públicos. Dedicou-
se, então, à filosofia.
Bacon é considerado um dos fundadores da ciência moderna. Seu combate à influência teológica
sobre a ciência e a filosofia e, principalmente, sua elaboração de um método científico lhe
asseguram tal título. Defendia uma investigação empírica da realidade, isto é, baseada em uma
observação metódica de seu objeto de estudo. O conhecimento seria determinado pela experiência
sensível.
Seu método indutivo combate a influência aristotélica (talvez por ter estudado em Cambridge, então
reduto platônico na Inglaterra) e constitui uma nova forma de estudarmos os fenômenos naturais. O
conhecimento viria da observação sistemática de tais fenômenos, que teriam seus dados descritos e
analisados para se chegar à hipótese verdadeira.
Bacon acreditava que a ciência devolveria o “império do homem” sobre as coisas. A mentalidade
científica tinha, como obstáculos primordiais, alguns preconceitos que deveriam ser combatidos, aos
quais ele denominou ídolos do saber. Nas palavras do próprio Bacon, em seu Novum Organum,
entre os aforismos 39 e 44, do livro I, o tema deve ser posto da seguinte maneira:
São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes
assinamos nomes, a saber: ídolos da Tribo; ídolos da Caverna; ídolos do Foro e ídolos do Teatro.

A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para
afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consistem, posto que a
doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos
sofísticos com a dialética vulgar.

Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana.
E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas
as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não
com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios
das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.

Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das
aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta
e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à
educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles
que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo
preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranquilo; de tal forma que o espírito humano —
tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo
ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus
pequenos mundos e não no grande ou universal.

Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos


indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e
consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, e as palavras
são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam
espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se
munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as
palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a
inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.

Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas
filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer
que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que
figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e
seitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas
dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos
sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das
ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo,
falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano
esteja acautelado (BACON, 2007, p. 13;14).
Bacon vivia sua ciência todos os dias. Em 1626, realizava um experimento sobre o frio e sua
capacidade de conservar a carne em meio ao rigoroso inverno londrino. Por sua experiência, acabou
adoecendo (bronquite) e faleceu poucos meses depois.

Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem”


Nascido em Westport, Inglaterra, em 1588, Thomas Hobbes foi um bebê prematuro e uma criança
doente. Por isso, desenvolveu o hábito de praticar exercícios físicos, levando uma vida saudável.
Como resultado, viveu por 91 anos (faleceu em 1679), em uma Inglaterra onde a expectativa média
de vida girava em torno dos 35 anos. Sua longa vida possibilitou que convivesse com muitos
pensadores – conheceu Bacon, Galileu e Descartes.
Escreveu sobre o Estado e sua relação com os indivíduos. Sua obra é tão importante para a filosofia
política que suas ideias são debatidas – e aplicadas – até hoje. Em seu principal livro, O Leviatã, 
tenta mostrar o quanto necessitamos de um Estado forte o bastante para nos impor a Lei e a Ordem.
O Leviatã é um monstro bíblico que habita os mares. Ao assim intitular sua obra, queria mostrar o
quão forte deve ser o Estado.
Hobbes, como Maquiavel, acreditava que os seres humanos são egoístas por natureza. Assim, faz-
se necessária a atuação de uma força capaz de regrar a vida em sociedade. Dizia que a verdadeira
natureza humana não possui razão, justiça, moral ou verdade, só existem os desejos e as
necessidades. Em seu “Estado de Natureza” o homem vive sob constante ameaça de morte, pois
sem leis vigora a luta pela sobrevivência. Portanto, sem leis, “o homem é o lobo do homem” (homo
hominis lupus). É preciso um Estado forte para nos proteger de nós mesmos.
Os pactos com os quais concordam todos os homens reunidos para a instituição de uma república,
se redigidos sem que se exija um poder de coerção, não oferecem segurança razoável para nenhum
deles que assim pactua, nem devem ser chamados leis, e deixam ainda os homens no seu estado
de hostilidade natural. Pois visto que a vontade da maioria dos homens é governada apenas pelo
medo, e que onde não há poder de coerção não há medo, segue-se que a vontade da maioria dos
homens servirá a suas paixões de cobiça, luxúria, ira, entre outras, e esses pactos serão violado;
com isso, também os demais, que de outro modo celebrariam tais pactos, ficam liberados e não
possuem nenhuma lei senão a que provém deles mesmos (HOBBES, 2010, p. 108).

 
Segundo Hobbes, há três motores da discórdia: a competência (que gera as agressões por
ganância), a desconfiança (que faz os homens se atacarem para garantirem sua segurança) e a
vanglória, que os torna inimigos uns dos outros por rivalidades de reputação.
Somente um Estado forte o bastante para impor as leis aos indivíduos poderia acabar com a
barbárie. Para tanto, ou seja, para concedermos tal poder a esse Estado, é necessário abrir mão de
muitas de nossas liberdades. “Os indivíduos no estado de natureza teriam de entrar em um ‘contrato
social’, um acordo para abrir mão de suas perigosas liberdades em nome da segurança. Sem o que
ele chamou de ‘soberano’ [...] o ‘soberano’, ao qual se refere Hobbes, pode ser um rei, imperador ou
mesmo o parlamento a vida seria um inferno” (WARBURTON, 2011, p. 59).
Essa ideia de contrato social permeia nossa sociedade até hoje. Em uma época de governos
absolutistas, sua teoria foi utilizada para justificar o poder total dos governantes. Assim, o contrato
entre os indivíduos e seus governantes acarretava em um alto preço a ser pago: o poder absoluto,
ilimitado, do Estado sobre seus indivíduos. Motivo pelo qual seus detratores o acusaram de defender
o autoritarismo.
Assim, para Hobbes, a justificativa para a existência do Estado era a dicotomia entre anarquia e
ordem, inerente ao ser humano. Sem o controle de uma força maior, “soberana”, estaríamos
condenados à barbárie. O homem é o lobo do homem.

O Iluminismo
O Iluminismo foi o grande momento de afirmação da razão ocidental. O século XVIII, chamado de
“século das luzes”, foi a época de esplendor desse movimento de renovação intelectual pela qual a
Europa passava. A França, local onde o pensamento iluminista mais teve repercussão, teve uma
grande revolução popular – a maior de todas – profundamente influenciada (e praticamente movida)
por esse novo modo de pensar.
Podemos dizer que o Iluminismo deu continuidade a uma renovação que havia se iniciado séculos
antes com o Renascimento. Porém, seus pensadores foram mais contundentes, e suas obras
tiveram ainda mais impacto sobre o pensamento moderno. Talvez nenhuma outra época tenha nos
legados filósofos em tamanha quantidade e qualidade como o século das luzes.
Época de extrema valorização da razão, cuja luz iluminaria um mundo contaminado pela ignorância,
conforme pode ser exemplificado pela publicação, em 1752, da primeira Enciclopédia, escrita e
organizada por Diderot e D´Alembert, que pretendiam organizar e divulgar todo o conhecimento
iluminista. Proibida pela Igreja, foi, à sua época, o que hoje classificaríamos como um “best seller”.
Selecionamos alguns dos expoentes desse período. Tarefa dificílima, pois inevitavelmente teremos a
ausência de nomes importantes. Optamos por abordar o pensamento do francês René Descartes,
do holandês Baruch de Espinosa, dos britânicos John Locke e David Hume, finalizando com a teoria
revolucionária do francês Jean-Jacques Rousseau.

René Descartes
Nascido em 1596 na França, na cidade de La Haye, inicialmente denominada La Haye en Touraine,
tornou-se La Haye-Descartes em 1802, e Descartes em 1967 (hoje a pequena cidade tem o nome
de seu cidadão mais ilustre), René Descartes é um dos nomes mais importantes do pensamento
ocidental de todos os tempos. “Fundador da ciência moderna” (juntamente com Bacon), “pai da
matemática moderna” e, principalmente, “fundador da filosofia moderna” são algumas das maneiras
pelas quais esse brilhante filósofo, matemático e físico é conhecido. Isso nos dá uma pequena ideia
do tamanho de sua influência na formação do mundo moderno.

Embora também considerasse primordial a observação, como Bacon, Descartes opõe-se a ele
afirmar que o principal fundamento do empreendimento científico é o raciocínio dedutivo.
Descartes considerava o conhecimento produzido até então problemático, pois ele se fundamentava
em probabilidades. Acreditava que a busca por certezas e verdades, era fundamental.
Descartes teria tido, em certo momento de sua vida, um “falso despertar”: sonhara que estava
acordando e começando o dia; porém, acordou de fato e percebeu que não tivera um sonho. Se
acreditou – erroneamente – ter acordado uma vez, como saberia que não estava, ainda, sonhando?
Como poderíamos, então, ter certeza de algo? Assim, Descartes desenvolve o que ficou conhecido
como método da dúvida cartesiana, ou método da dúvida metódica.
O método desenvolvido por Descartes partia de uma premissa básica e simples: não acredite em
algo que tem uma possibilidade (por menor que seja) de não ser verdadeiro. E, em sua busca pelas
certezas, ele inicia analisando as certezas sensíveis, isto é, oriundas de nossos sentidos: visão,
audição, olfato, tato e paladar, e chega à conclusão de que não podemos confiar totalmente em
nossos sentidos (pense no exemplo de um pedaço de ferro, reto, dentro de uma piscina: ao
olharmos através da água, ele pode não parecer totalmente reto). Assim, a dúvida seria o caminho
para se chegar ao conhecimento.
Seu método consistia de quatro etapas básicas:
A única coisa capaz de provar nossa existência é nosso pensamento. Algo que não existe não pode
pensar. Se estamos sonhando, ou se somos um experimento de laboratório com alguém induzindo
nossos pensamentos, ainda assim temos de existir. E dessa ideia, cogito ergo sum (penso, logo
existo), advém o que chamamos de dualismo cartesiano: nossa mente é separada do corpo e
interage com ele.
Para Descartes, havia mais certeza de que ele tinha uma mente do que um corpo. Podia se imaginar
não tendo um corpo. Todavia, seria impossível pensar em si sem mente, pois, ao pensar, provaria
que tem uma mente. Ao debruçar-se sobre a ideia de existir ou não Deus, chega à conclusão que
Deus existe, pela ideia da marca. “Deus existe porque ele deixou uma ideia implantada em nossa
mente – não teríamos uma ideia de Deus se Ele não existisse” (WARBURTON, 2011, p. 67).
Sobre a base do Cógito (“penso, logo existo”), Descartes constrói seu inovador sistema filosófico
baseado inteiramente no intelecto – muito mais confiável que os sentidos. Essa ruptura entre corpo e
intelecto (dualismo cartesiano) o leva a acreditar que o reino do intelecto contém ideias inatas,
anteriores a qualquer experiência sensorial. E os sentidos, como vimos, podem ser responsáveis
pelos demônios da dúvida. Faz-se necessário realçar que, embora o dualismo cartesiano seja um
“divisor de águas” na história da filosofia, tal ideia existia na Antiguidade no pensamento de Platão e
Aristóteles.
Embora fosse um católico convicto, suas ideias não foram bem aceitas por todos, recebendo
ataques, inclusive, de membros da Igreja, sobretudos dos membros da Companhia de Jesus, os
Jesuítas.
Em outubro de 1649, a convite da rainha Cristina, da Suécia, Descartes muda-se para Estocolmo.
Aparentemente, não se adapta muito bem à vida na Corte. O rigoroso inverno sueco causa-lhe uma
pneumonia, que tira sua vida em fevereiro de 1650. Assim morria René Descartes, que dedicara a
vida a buscar verdades, certezas, combatendo os demônios da dúvida

Espinosa
Baruch de Espinosa nasceu em Amsterdã, Holanda, em 1632. Filho de uma família judia espanhola
(que havia migrado para Portugal antes de deslocar-se para os Países Baixos). Embora seguisse
formalmente a religião da família, suas ideias o levaram receber o “chérem” (equivalente judaico da
excomunhão católica) de sua sinagoga em 1656, o que acabou aproximando-o do cristianismo,
embora nunca tenha professado oficialmente essa religião. Seu nome hebreu, Baruch, fora
latinizado, tendo-o usado na forma de Benedictus (Benedito).
Como muitos pensadores de sua época, preocupava-se com a relação entre filosofia e teologia. E
sua obra mistura as duas, teologia e filosofia. Diferente das teologias tradicionais, que afirmam que
Deus vive fora do mundo terreno (no Céu, ou no Espaço), sua visão de Deus era de que Ele era
infinito e universal. “Deus é o mundo”. Tanto que, quando se referia a ele, escrevia “Deus ou
Natureza”.
Se Deus é tudo, seus propósitos não podem ser divididos em Bem e Mal. Deus, na verdade, não
teria propósitos específicos, pois ele é a encarnação de tudo; o passado, o presente e o futuro. Um
ente “absolutamente infinito”. Ele é a origem de todas as coisas, e todas as coisas procedem dele.
Deus é a substância primordial.
Deus, para Espinosa, é impessoal, sem características humanas. Portanto, não puniria os “pecados”
humanos. Essa ideia de que Deus é a natureza foi criticada por muitos de seus contemporâneos,
sobretudo teólogos. Porém, foi mais aceita nos séculos seguintes.
Teria recusado uma oferta para lecionar na Universidade de Heidelberg para “não perder a
liberdade”. Teria se recusado a seguir as “normas ideológicas” da instituição que lhe tirariam a
liberdade de pensamento.
Levou uma vida simples e humilde, sustentando sua paixão pela filosofia trabalhando como óptico,
polindo lentes.
Apaixonado pela geometria, terminava as seções de seus livros com a sigla “QED”, abreviação
de quod erat demonstrandum, que significa como queríamos demonstrar, expressão comum em
livros de geometria.
Embora tivesse recebido diversas influências, como era de se esperar em uma Europa (e, mais
especificamente, na Holanda) em plena efervescência intelectual iluminista, podemos apontar duas
influências principais em seu pensamento: o Racionalismo cartesiano (sua exaltação da
racionalidade humana) e a filosofia política de Thomas Hobbes.
Sua principal obra, Ética demonstrada à maneira dos geômetras, ou simplesmente Ética, divide-se
em cinco partes:
 Primeira parte: Acerca de Deus
 Segunda parte: Acerca da Natureza e da origem da mente
 Terceira parte: Acerca da origem e da natureza das paixões
 Quarta parte: Acerca da servidão humana, ou da força das paixões
 Quinta parte: Acerca da potência do intelecto, ou da liberdade humana
Quanto a sua teoria política, embora inspirada em Hobbes, divergia dele. Enquanto, para Hobbes, os
seres humanos são naturalmente egoístas e competitivos – e, portanto, deveriam submeter-se a um
Estado absoluto –, Espinosa defende que o homem vive em uma constante luta pela
autopreservação, pela sua perpetuação. E os cidadãos nunca poderiam abdicar dessa luta.
Esse processo de busca da autopreservação não pode ser totalmente transferido ao Estado. A
soberania do Estado, e sua capacidade de mantê-la, dependem de sua habilidade de manipular e
determinar as opiniões dos indivíduos quanto a sua própria autopreservação. Assim,
comparativamente com o Estado absoluto de Thomas Hobbes, Espinosa defende uma forma de
governo com poderes mais  limitados.
Baruch (ou Benedito) de Espinosa faleceu jovem, aos 44 anos, em 21 de fevereiro de 1677, vítima
de uma tuberculose. Sua obra, porém, perdurou, influenciando muitos pensadores dos séculos
seguintes, como Goethe e Einstein. O genial físico alemão revelou em carta que, embora não
conseguisse a coragem para acreditar em um Deus pessoal, acreditava no Deus de Espinosa.

John Locke
O filósofo inglês John Locke (1632-1704) viveu em período turbulento da história inglesa. Passou por
toda a turbulência que levou à deposição do Absolutismo na Inglaterra, culminando na Revolução
Gloriosa de 1688.  Encerrando o período de quase meio século de lutas entre o Parlamento e a
Monarquia, a Revolução Gloriosa ocorre quando Guilherme III é coroado Rei da Inglaterra e assina a
Declaração de Direitos, limitando o poder  real frente ao Parlamento. Um ditado inglês define bem o
novo regime que se inicia: “O Rei reina, mas não governa”.
É provável que, ainda jovem, tenha assistido à execução do rei Carlos I em 1649. Tendo
presenciado ou não, o fato é que a execução do rei, e a posterior instauração do regime comandado
por Oliver Cromwell, lhe causaram grande impacto.
Assim como Maquiavel e Hobbes, sua filosofia política causou grande impacto em sua época.
Todavia, podemos dizer que sua influência atual é ainda maior, pois parte considerável do que se
entende por direitos políticos hoje em dia é influenciado por seu pensamento.
Médico por formação, filósofo por paixão, Locke descendia de uma família de comerciantes,
constituindo, portanto, parte da burguesia que crescia em número e poder na Inglaterra do século
XVII. Tal ascensão os levaria a contestar e derrubar o poder dos reis e nobres ingleses; a burguesia
assumiria o controle político. Locke cresceu nesse ambiente, e sua formação foi influenciada por
esse contexto. Mas suas ideias também influenciaram, e muito, essa luta.
De fato, embora o capitalismo estivesse em via de consolidação e o poderio econômico da
burguesia fosse inconteste, em toda parte o regime político permanecia monárquico e, com isso, o
poderio político da realeza e o prestígio social da nobreza também.  Para que o poderio econômico
da burguesia pudesse enfrentar o poder político dos reis e das nobrezas a burguesia precisava de
uma teoria que lhe desse uma legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a
hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Em outras palavras, assim como sangue e
hereditariedade davam à realeza e à nobreza um fundamento natural para o poder e o prestígio, a
burguesia precisava de uma teoria que desse ao seu poder econômico também um fundamento
natural, capaz de rivalizar com o poder político da realeza e o prestígio social da nobreza, e até
mesmo suplantá-la. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira
formulação coerente será feita pelo filósofo inglês John Locke, no final do século XVII e início do
século XVIII. [...]

O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal
finalidade é garantir o direito natural de propriedade (CHAUÍ, 2012, p. 466-7).
Mas, antes de abordarmos a propriedade privada como direito natural, faz-se necessária uma
explicação da teoria do conhecimento desse célebre filósofo inglês.
Locke foi o expoente do Empirismo inglês. Sua teoria do conhecimento diverge da de Descartes,
Platão e Aristóteles; como Bacon, ele não acredita na existência de ideias inatas. Todo o
conhecimento advém da experiência, da educação, da vida, daí empirismo. Em sua principal
obra, Ensaio sobre o Entendimento Humano, expõe sua teoria.
 Todas as ideias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos que a mente é, como dissemos, um
papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como ela será suprida? [...]
De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra,
da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o
próprio conhecimento (LOCKE, 1973, p. 165).

 
Embora sua teoria do conhecimento tenha negado a existência de ideias inatas, de conhecimento “a
priori” na mente humana, ela foi além. E essa talvez tenha sido a maior inovação do pensamento de
Locke: ele aplicou seu empirismo sobre as relações políticas e sociais de sua época.
Se não temos ideias inatas, também não podemos ter um poder inato. Para Locke, ao nascermos,
somos como uma “folha de papel em branco” (tabula rasa). Essa ideia opunha-se frontalmente à
filosofia política reinante na Europa do século XVII, marcada pelo absolutismo de direito divino. A
Doutrina do Direito Divino foi uma teoria elaborada pelo célebre cardeal francês Jacques Bossuet
(1627-1704), que defendia que o direito dos reis absolutistas governarem com poderes absolutos
lhes havia sido conferido por Deus, não cabendo aos humanos contestarem Seus desígnios.
Assim, para Locke, o poder deveria ser conferido ao governante por meio de um acordo firmado por
este com a sociedade. Ou melhor, a sociedade lhe impõe esse contrato social. Não é o povo que
deve servir ao Estado, e sim o Estado que deve servir ao povo. O cidadão tem, sob determinadas
circunstâncias, o direito de refutar a autoridade do Estado.
Ainda sob sua base empirista, Locke conclui que, se não temos ideias inatas, então, ao nascer,
ninguém é bom ou mal: somos todos iguais. E, se somos todos iguais, então devemos ter os
mesmos direitos. São os direitos naturais. São eles o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Ou
seja, o Estado tem a obrigação de garantir e preservar esses direitos a todos os seus indivíduos.
Essa é a justificativa para a existência do Estado: garantir tais direitos. E, como dito no parágrafo
anterior, caso o governante não cumpra essa tarefa, cabe ao indivíduo se rebelar contra ele,
contestando sua autoridade – nesse ponto, Locke diverge frontalmente de Thomas Hobbes.
David Hume
Nascido em Edimburgo, Escócia, em 1711, David Hume , nascido Davi Home, muda a grafia (e
pronúncia) de seu nome para Hume quando mora na Inglaterra, no início da década de 1730, pois o
incomodava a dificuldade dos ingleses em pronunciarem seu nome do modo correto – o escocês.
Ele é um dos mais importantes nomes da filosofia britânica. Divergia de seus colegas iluministas,
pois se mostrava cético quanto ao apoio entusiástico à racionalidade humana. Por muito tempo, seu
ceticismo destrutivo foi apontado como a parte principal de seu pensamento.

Hume dá continuidade ao empirismo de Bacon e Locke, levando-o ainda mais adiante. Para Hume,
a filosofia não pode ir além da experiência. Sua ideia era de que a capacidade humana de fazer
julgamentos sobre o mundo, ou seja, nossa percepção, origina-se de uma distinção
entre impressões e ideias. Sendo que as primeiras têm um poder maior sobre a percepção humana
do que as segundas. Isso porque elas surgem dos sentidos. As impressões, advindas dos sentidos,
são a base de nossas ideias. Aqui se percebe claramente uma crítica ao pensamento cartesiano,
uma vez que Descartes afirmava que não podemos confiar em nossos sentidos. Enquanto para
Descartes o conhecimento se deriva da razão, para Hume a fonte do conhecimento são os sentidos.
Todavia, Hume admitia não saber a causa das impressões humanas na mente.
Outro ponto a ser ressaltado no pensamento de Hume é sua teoria da causalidade. Não há
conexões necessárias permanentes entre os objetos. Os efeitos que são por nós atribuídos ao
objeto são apenas resultados da sequência de experiências e observações, mas não são de todo
confiáveis.
[David Hume] [...] leva mais adiante o empirismo de Locke, afirmando que as relações são exteriores
aos seus termos. Explicando, as relações não são observáveis, portanto não estão nos objetos. Elas
são modos que a natureza humana tem de passar de um termo a outro, de uma ideia particular a
outra. E esses modos são fruto do hábito ou da crença.

Por exemplo, tendo observado a água ferver a100 graus, podemos dizer que toda água sempre
ferve a 100 graus. Ou, vendo o sol nascer todos os dias, assumimos que amanhã também nascerá.
O que observamos, no entanto, é uma sequência de eventos sem nexo causal. O que nos faz
ultrapassar o dado e afirmar mais do que pode ser alcançado pela experiência é o hábito criado
através da observação de casos semelhantes, a partir do que imaginamos que este caso se
comporte da mesma forma que os outros.

Assim, a única base para as ideias ditas gerais é a crença, que, do ponto de vista do entendimento,
faz uma extensão ilegítima do conceito (ARANHA; MARTINS, 1992, p. 80-81).
Quanto à razão moral, Hume – neste ponto fiel ao espírito iluminista – entendia a moralidade não
como uma construção de uma autoridade superior, divina. A moralidade era uma construção da
natureza humana. E, em sua concepção de moralidade, opõe-se a Hobbes e aproxima-se de Locke,
pois rejeita o argumento de Hobbes de que o homem é uma criatura egoísta, violenta e solitária em
seu estado de natureza. Hume entende de forma contrária: os seres humanos têm a disposição
natural de se unir e viver em comunidade.

Jean-Jacques Rousseau
Nascido em Genebra, Suíça, em 1712, filho de um relojoeiro protestante, Jean-Jacques Rousseau
teve uma infância difícil. Afasta-se do pai aos 10 anos (sua mãe, Suzanne, falecera em seu parto), e
passa a viver com uma tia até os 16. Porém, em uma noite, enquanto caminhava pelo campo,
perdeu a noção do tempo e, ao retornar à cidade, encontrou seus portões fechados, pois grande
parte das cidades europeias eram cercadas por muros, e fechavam seus portões durante as noites.
A atitude mais sensata seria aguardar a manhã seguinte até que os portões fossem abertos. Mas o
jovem Jean-Jacques tomou outra decisão, deu meia volta e foi embora.
Após muito viajar – viveu em Turim, Itália, onde se converteu ao catolicismo – estabeleceu-se
definitivamente na França (primeiro mora em Lyon e, em 1742, muda-se para Paris), conseguindo
seu sustento lecionando música (o que, aliás, garantiria seu sustento por toda a vida). Após ganhar
um prêmio da Academia de Dijon, em 1750, ganha fama. Redigiu um ensaio em resposta à questão:
“O renascimento das artes e das ciências ajudou a corromper ou purificar a moral?”. Sua polêmica e
surpreendente resposta: “corromper”. Enquanto todos esperavam um elogio às ciências e às artes,
Rousseau disse o contrário. A partir daí, insere-se no cenário intelectual europeu do século XVIII
como um de seus mais ativos e atacados nomes.
Em 1749, Rousseau faz algumas visitas a Diderot que estava preso num castelo devido à publicação
da obra Carta sobre os cegos. Em uma dessas visitas, Rousseau lê num jornal a questão proposta
pela Academia de Dijon para o prêmio do ano seguinte. É assim que surge ocasião da redação
do Discurso sobre as ciências e as artes. Rousseau ganha o prêmio e a fama da noite para o dia.
Após a redação de suas críticas às ciências e às artes, Rousseau compõe uma ópera chamada
o Adivinho da Aldeia, representada em 1752 perante o rei Luís XV. Em 1753, também a partir de
uma questão proposta pela Academia de Dijon, Rousseau redige o Discurso sobre a Origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens. Desta vez, Rousseau não ganha o prêmio, apesar
de ter elaborado uma obra mais profunda e rigorosa que a primeira (BRANDÃO, 2009, p. 566).
Seu Discurso sobre a Origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens respondia à
questão: “Qual é a origem da desigualdade entre os homens?” e “ela é autorizada pela lei natural?”. 
Em sua resposta, Rousseau começa distinguindo dois tipos de desigualdade:
 Desigualdade natural ou física, que se refere aos atributos físicos e mentais de cada indivíduo.
 Desigualdade moral ou política é a que presenciamos na sociedade, entre ricos e pobres, poderosos
e oprimidos.
Em seguida, Rousseau volta ao homem em seu estado de natureza (como Hobbes ou Locke) e
afirma que, em seu estado de natureza, o homem vivia isolado, esporadicamente encontrando-se
com outros homens. Aos poucos, o homem percebeu que com a união de seus esforços aos de
outros homens teria mais chances de vencer os desafios naturais. Começaram, assim, a surgir as
primeiras aglomerações, comunidades. Rousseau considera que este teria sido o momento mais
feliz da humanidade, quando o homem vivia em comunidades para auxílio mútuo de seus indivíduos,
na qual a propriedade ainda era coletiva.
A sociedade, ou o estado de sociedade, segundo Rousseau, tem início com a instauração da
propriedade privada. Começara com um engodo, quando alguém teria dito pela primeira vez, “isto é
meu” e tomado para si o que antes era de todos. E a propriedade se estabelece, então, por meio da
força, o que gera conflitos. Os conflitos serão tantos que, em determinado momento, há um acordo
que estipulará regras, que são as leis. Para Rousseau, esse é um segundo engodo, pois são os
detentores da riqueza que propõem essas leis visando protegerem a si mesmos. Desta forma, para
Rousseau, a propriedade privada é a origem da desigualdade.
Na segunda metade da década de 1750, envolve-se em desentendimentos com outros pensadores
iluministas, como seu “grande rival” Voltaire (de quem criticara um poema) e D´Alembert (discussão
sobre teatro). Rousseau atacou o Poema sobre o desastre de Lisboa. Em 1764, Voltaire teria
publicado um panfleto anônimo criticando Rousseau por ter abandonado seus cinco filhos em um
orfanato.
Em 1761, publica suas duas principais obras que seriam proibidas e queimadas na França e na
Suíça nos anos seguintes: Do Contrato Social e Emílio ou da educação.
Em Do Contrato Social, Rousseau imagina como deveria ser a relação entre o Estado e seus
indivíduos. A ideia de contrato ou pacto social já havia sido defendida por Hobbes (que defendia o
contrato para que o homem tivesse sua vida protegida) e por Locke (proteção à propriedade).
Todavia, para Rousseau, o “soberano” é o povo.
Para Rousseau, a única maneira de se atingir a liberdade seria por meio da imposição da vontade
geral, ou seja, da soberania popular. Esse pensamento é a base das democracias modernas e do
sufrágio universal, pois a vontade geral é a vontade da maioria. Mesmo os discrepantes devem
atender a essa vontade.
Essas ideias influenciaram determinantemente os revolucionários franceses. Por isso, Rousseau é
considerado por muitos como o filósofo que estabeleceu as bases intelectuais da Revolução
Francesa.
Perseguido na Europa continental por suas ideias, acaba por refugiar-se na Inglaterra. Inicialmente
auxiliado por David Hume, briga com ele tempos depois. Retorna à França em 1767 valendo-se de
um pseudônimo, só voltando a usar seu nome três anos depois. Dizia haver um complô dos demais
filósofos contra ele.
Em 2 de julho de 1778, na pequena cidade francesa de Ermenonville, falecia Jean-Jacques
Rousseau, cujas ideias iriam, onze anos mais tarde, sob as mãos dos revolucionários franceses,
começar uma revolução que mudaria o mundo.

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