Você está na página 1de 17

FILOSOFIA DA

RELIGIÃO

Gabriel Bonesi Ferreira


Deus e religião
nos sistemas
de pensamento
medievais: fé e razão
na filosofia cristã
Objetivos de aprendizagem
>> Examinar a constituição da filosofia cristã na Antiguidade Tardia a partir
do contato entre a fé cristã e o pensamento filosófico dos períodos
precedentes.
>> Explicar como a filosofia escolástica retomou a questão do diálogo entre
fé e razão.
>> Caracterizar a separação entre filosofia, teologia e espiritualidade no pen-
samento pós-escolástico.

Introdução
O período histórico entre a Antiguidade Tardia (aproximadamente 300 d.C.) e o
fim da Idade Média (século XV) foi uma época de grandes formulações acerca da
fé cristã, da teologia e da sua conexão com a filosofia. Os conceitos e produções
filosóficas da Antiguidade grega e do período helenístico foram amplamente uti-
lizados em um contexto de expansão do cristianismo, formulando suas principais
doutrinas e bases teológicas.
2 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

Neste capítulo, você conhecerá as primeiras formulações da filosofia da religião


desse longo período histórico. A produção filosófico-teológica foi bastante vasta,
tendo em vista, inclusive, que se trata de um período de mais de mil anos, com
grandes movimentos paradigmáticos que se iniciaram com a patrística, passando
pela escolástica e chegando até o pensamento pós-escolástico, predecessor do
pensamento moderno.

A filosofia cristã na Antiguidade


Jesus Cristo deixou sua mensagem de modo oral, pois nada de sua doutrina foi
escrito por ele próprio. Após sua morte, sua doutrina passou a ser fixada em
alguns escritos já no século I. A constituição da cristandade e das doutrinas
cristãs não foi um processo simples e demorou vários séculos até sua relativa
estabilização. Reale e Antiseri (1990) dividem em três períodos a conturbada
tarefa de construção de uma identidade cristã pelos padres gregos:

„„ século I, quando os padres apologistas não enfrentavam efetivamente


os problemas filosóficos, concentrando-se em temas morais e ascéticos;
„„ século II, quando os padres apologistas passaram realizar uma defesa
do cristianismo mediante argumentos filosóficos, mesmo encontrando
frequentes oponentes;
„„ do século III ao início da Idade Média (séc. V), quando elementos filo-
sóficos passaram a fazer parte do debate entre fé e razão, em especial
a filosofia platônica, momento em que a filosofia assumiu um papel
importante na construção da doutrina cristã.

Os problemas a serem enfrentados pelos pensadores da cristandade nas-


cente foram bastante variados, como o problema da Trindade, da encarnação,
das relações entre liberdade e graça e das relações entre fé e razão. No debate
desses temas, foram utilizados os conhecimentos e conceitos filosóficos
prévios, pois os debates são eminentemente metafísicos e antropológicos,
e envolvem temas como geração, criação, emanação, substância, hipótese,
livre-arbítrio e muitos outros que eram estudados na filosofia (REALE; ANTI-
SERI, 1990). Desse modo, em linhas gerais, o período que é conhecido como
patrística se refere aos primeiros séculos após a morte de Jesus Cristo e se
estende até aproximadamente o início da Idade Média, no século V.
A patrística costuma ser dividida entre grega e latina. Na Grécia, já sofrendo
forte influência e debate do pensamento filosófico, a relação entre filosofia
e fé cristã começou antes, com a apropriação pelo pensamento cristão de
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 3

diversos elementos da filosofia grega. Quanto à patrística latina, antes de


Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, os padres latinos se interessavam
pouco pelo filosofia. Não se pode negar a importância dos padres gregos
e latinos do período da patrística, mas, sem dúvida, Santo Agostinho foi o
mais notório entre esses filósofos, pois com seu pensamento e obra “[...]
determinou uma reviravolta decisiva na história da Igreja e do pensamento
do Ocidente” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 429). A influência do pensamento de
Santo Agostinho foi a mais duradoura entre os estudiosos da patrística nos
mais diversos campos da filosofia, dogmática e teologia, assim como na vida
social e caritativa, por isso deve ser estudado com mais detalhes.
Quando se estuda a filosofia de Santo Agostinho, é comum destacar
a relação intrínseca entre sua vida e obra. Santos e Costa (2015, p. 88)
afirmam que “[...] a própria experiência filosófica de Agostinho nada mais
é do que uma interpretação de sua própria vida. E essa experiência se
resume em uma busca ininterrupta de Deus”. De fato, diversos aconteci-
mentos da vida pessoal de Agostinho influenciaram profundamente sua
filosofia, dentre quais é possível destacar, como expõem Reale e Antiseri
(1990): a figura de sua mãe Mônica, uma devota cristã; a obra Hortênsio,
de Cícero, que o converteu à filosofia; além de sua posterior adesão a
outras correntes filosóficas, primeiro ao maniqueísmo, doutrina racio-
nalista e materialista que adere a um dualismo radical entre bem e mal,
e segundo a uma tendência à filosofia cética. Ademais, houve momentos
decisivos que levaram à conversão de Agostinho ao cristianismo, dentre
os quais se pode destacar o encontro com o bispo Ambrósio, a leitura
de livros neoplatônicos e livros do apóstolo Paulo, com quem aprendeu
o sentido da fé, da graça e do Cristo redentor. Por fim, na última fase da
sua vida, Agostinho envolveu-se em debates polêmicos e batalhas contra
os heréticos em uma série de obras e discussões que tiveram profunda
influência na construção da doutrina cristã.

Agostinho nasceu em 13 de novembro de 354, em Tagaste, Numídia


(atual Souk Ahras, Argélia). Faleceu em 28 de agosto de 430, aos 75
anos, em Hipona, atual Annaba, Argélia. Agostinho foi canonizado em 1298 e
reconhecido como Doutor da Igreja, título conferido a indivíduos de notória
importância no campo da teologia e doutrina católica. Existem até hoje diversas
ordens religiosas católicas e anglicanas que seguem a linha de pensamento e
os ensinamentos de Santo Agostinho.
4 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

Agostinho passou por diversas fases em sua filosofia, mas foi a fé cristã
que mudou os rumos de sua filosofia. A esse respeito, Reale e Antiseri (1990,
p. 434) comentam que:

[...] a conversão e a fé em Cristo e em sua Igreja mudaram também o modo de


viver de Agostinho, abrindo-lhe novos horizontes para o seu próprio pensar. A fé
tornou-se substância de vida e pensamento e, assim, tornou-se não só horizonte
de sua vida, mas também de seu pensamento.

A relação entre a fé e a razão de Agostinho é apresentada por Santos e Costa


(2015) a partir de duas grandes concepções: a intellige ut credas (compreende
para crer) e a crede ut intelligas (crê para compreender). Com a primeira,
Agostinho reforçava a importância da razão filosófica, da inteligência para
atingir e compreender Deus. Por outro lado, a filosofia sem Deus, sem a fé,
ficaria restrita a um horizonte limitado. Segundo essa visão, a inteligência
é um meio necessário para acreditar em Deus. A inteligência é capaz, no
plano natural, de condicionar a fé, enquanto no plano sobrenatural isso se
inverte: a fé condiciona a inteligência, de modo que “[...] é preciso, antes de
tudo, aderir e acreditar no pensamento divino para poder compreendê-lo”
(SANTOS; COSTA, 2015, p. 92).
Crer para compreender, por seu turno, significa que somente a fé é capaz
de garantir a sabedoria. A filosofia e a inteligência são um prêmio da fé, e a
aceitação da fé permite alcançar a verdadeira sabedoria. Ao mesmo tempo
em que existe uma precedência da fé em relação à razão, a verdade presente
na filosofia deriva da fé em Deus (SANTOS; COSTA, 2015). O ser humano, por
ser dotado de inteligência e vontade livre, tende à verdade absoluta e ao bem
infinito, uma vez que a inteligência não se contenta com os saberes limitados;
ela anseia conhecer a verdade absoluta (SANTOS; COSTA, 2015).
A produção literária de Agostinho foi grande, tendo se debruçado sobre
diversos temas. O problema da origem do mal e da liberdade são temas bas-
tante relevantes em seu pensamento, os quais serão abordados a seguir. O
problema do mal está ligado ao problema da criação. Agostinho entende que
Deus é o criador de tudo, é sumamente bom e é o próprio bem. O problema
do mal, então, é o seguinte: se Deus é o bem e tudo provém Dele, de onde
provém o mal?
Para resolver esse problema, a primeira conclusão é que o mal não é uma
substância ou um ser, mas a deficiência ou privação de ser, isto é, o mal é a
ausência de bem ou a escolha de um bem menor, de um bem mais afastado
do bem de Deus. Essa conclusão encontra-se bem sintetizada na seguinte
passagem da obra Confissões (AGOSTINHO, 1997, p. 117):
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 5

E aquele mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância. Porque, se o fosse,
seria um bem. Na verdade, ou seria substância incorruptível, e, portanto, um grande
bem; ou seria substância corruptível, e então, se não fosse boa, não se poderia
corromper. Desse modo, vi e me pareceu evidente que criaste boas todas as coisas,
e que nada existe que não tenha sido criado por ti. E porque não as criaste todas
iguais, cada uma em particular existe porque é boa, e tomadas em conjunto são
muito boas. De fato, o nosso Deus criou todas as coisas muito boas.

O problema do mal é analisado também em outros três níveis, conforme


a classificação de Reale e Antiseri (1990):

„„ Metafísico-ontológico — o mal no cosmos não existe, o que existem


são graus inferiores de ser em relação a Deus. Os seres humanos po-
dem interpretar equivocadamente como males aquilo que veem como
“defeitos no universo”, a exemplo de efeitos climáticos devastadores,
animais nocivos, etc. Porém, trata-se, na realidade, de um equívoco
interpretativo, fruto da ignorância humana incapaz de ver e compreen-
der o universo em seu conjunto. Para Agostinho, se fôssemos capazes
de compreender a obra divina como um todo, veríamos que o universo
tem seu sentido e razão de ser, por isso o veríamos como positivo. Em
resumo, o que é interpretado como mal na realidade é fruto de nossa
ignorância e incapacidade de compreender o universo em seu conjunto.
„„ Mal moral — para Agostinho, trata-se de um pecado que depende
da má vontade. Deus dotou a humanidade de vontade e liberdade. A
vontade deveria tender a Deus, ao bem supremo. Mas existem vários
bens criados e finitos e muitas vezes a vontade tende a eles. O que
aparenta ser substancialmente o mal é, na verdade, uma escolha por
um bem hierarquicamente inferior frente ao bem maior. Assim, o mal
moral decorre da escolha incorreta entre os múltiplos bens existentes.
„„ Mal físico — por sua vez, como as doenças, os sofrimentos e a morte são
consequências do pecado original e, portanto, consequências do mal
moral. Assim, os males físicos são consequências da corrupção da alma,
da escolha moral no pecado original. “Na história da salvação, porém,
tudo isso tem um significado positivo” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 456).

Os conceitos de vontade, liberdade e graça estão interligados ao problema


do mal. Reale e Antiseri (1990) explicam que para Agostinho a liberdade é
própria da vontade e não da razão. Por esse motivo, mesmo que razão conheça
o bem, a vontade pode escolher não o fazer. Embora vontade e razão estejam
interligadas, são faculdades autônomas. Em razão do livre-arbítrio, os seres
6 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

humanos são capazes de escolher, por sua vontade ou má vontade, se afastar


do bem maior. “Mas o arbítrio da vontade é verdadeiramente livre, em sentido
pleno, quando não faz o mal” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 457).
É nesse sentido que a graça se torna essencial. A graça não suprime a
vontade, mas faz com que ela tenda às escolhas boas, pois a vontade se
transformou em má devido ao pecado original. O livre-arbítrio permite que
os seres humanos escolham entre fazer o mal ou o bem, mas o que efeti-
vamente marca a liberdade é a capacidade de fazer o bem e de escolhê-lo
em detrimento do mal, que é garantido pela graça divina. Por isso, a graça
não é oposta à liberdade, mas é condição necessária para o exercício de sua
verdadeira liberdade, do verdadeiro livre-arbítrio.

A filosofia escolástica e a questão


do diálogo entre fé e razão
A passagem da patrística à escolástica acompanha a transição da Antiguidade
para o Medievo. A figura de Boécio demarca essa passagem, sendo conhecido
como “o último dos romanos e o primeiro dos escolásticos”, que viveu entre
o final do séc. V e início do VI. Santos e Costa (2015, p. 115) comentam: “Boécio
fez filosofia e teologia em um mundo culturalmente dissolvido e outro que
ain­da não havia se realizado. O que caracterizava os intelectuais de seu tempo
era o esforço recompilador: reunir, classificar, sistematizar.”
O fechamento das escolas pagãs no séc. VI por Justiniano demarcaram o fim
da cultura pagão, do séc. VI ao século XIII, quando surgiram as primeiras uni-
versidades. Nesse contexto, as escolas abaciais ou monacais foram o principal
refúgio cultural (REALE; ANTISERI, 1990). Do século V ao século VIII, as principais
discussões mantidas eram a respeito dos “universais” e dos problemas lógicos.
Foi a partir do século IX que começaram as primeiras teorizações sobre a razão
em função da fé, um dos debates centrais e característicos da escolástica.
Escoto Erígena, pensador irlandês de destaque no século IX, apresentou a
primeira teorização da razão em função da fé. Muitos foram os pensadores do
período conhecido como escolástica ou pré-escolástica, desde pensadores de
tradição cristã até outros de cultura árabe, entre os quais se destaca Avicena
e Averróis, cujos escritos passaram a ser discutidos pelos pensadores cristãos.
Tendo em vista a amplitude do tema, teremos de concentrar nossos estudos
em Anselmo de Aosta, também conhecido como Anselmo de Cantuária ou
Santo Anselmo (séc. XI) e Tomás de Aquino (séc. XIII), dois dos mais influentes
pensadores desse período.
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 7

Santo Anselmo é comumente definido como um pensador pré-escolás-


tico, visto que à sua época ainda não havia grandes sistematizações entre
filosofia e teologia, marca indelével da escolástica. Apesar disso, foi um
dos inaugurais e mais relevantes pesadores que realizaram as primeiras
teorizações da razão em função da fé, o que fica evidente em suas provas
da existência de Deus (SANTOS; COSTA, 2015). Para tanto, apresentou duas
provas: uma a posteriori e outra a priori, que pretendem comprovar a
existência de Deus.

Provas a posteriori
Esse argumento pressupõe dois princípios “1º as coisas são desiguais
em perfeição; 2º tudo o que possui mais ou menos uma perfeição deve-
-se à sua participação nessa perfeição, tomada sob sua forma absoluta”
(GILSON, 1995, p. 294). Assim, são provas em que se parte do mundo para
provar Deus, daí o nome a posteriori. A primeira consequência ou argu-
mento é observar que existem uma variedade de coisas que se julgam
boas, maiores, menores e desiguais. Como tudo deve ter uma causa, a
causa das coisas boas em particular deve ser a bondade única e absoluta.
A existência de coisas boas e imperfeitas indica que não são perfeitas em
essência, mas que participam de uma bondade absoluta exterior a elas
(SANTOS; COSTA, 2015). O mesmo raciocínio se aplica à grandeza qualitativa:
se existe uma variedade de grandeza e uma gradação hierárquica delas,
exige-se a existência de uma grandeza suprema, da qual todas participam
gradativamente.
O segundo argumento está relacionado ao ser das coisas: tudo que existe
deve ter uma causa, visto que do nada não pode provir nada. Assim, remon-
tando às causas dos seres, deve haver uma só causa que existe por si mesmo,
visto que seria irracional que as causas dependam mutuamente uma das
outras em uma origem única de todas as causas.
O terceiro argumento se fundamenta na hierarquia dos diferentes graus
de perfeição observados na natureza. Os diferentes graus de perfeição se
mostram qualitativamente iguais, mas quantitativamente diferentes; por
isso, ao se remontar os graus de perfeição necessariamente se chegará a algo
superior que ordene todas as coisas e seja a perfeição primeira e absoluta
(REALE; ANTISERI, 1990).
8 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

Prova a priori, ou argumento ontológico


Esse argumento parte do seguinte dado: “Deus é aquilo do qual nada maior
pode ser pensado”. Essa afirmação pode ser entendida e pensada por qualquer
pessoa, mesmo pelo ateu ou pelo “insensato”, mesmo que não perceba ou
acredite na existência de Deus. Quem nega a existência de Deus nega sua
existência na realidade, mas consegue conceber em seu pensamento a fórmula
citada. Existir na realidade é maior do que existir na inteligência. Se Deus é o
ser em relação ao qual não se pode conceber outro maior, é contraditório que
exista essa verdade apenas na inteligência, pois se é o maior deve ter a sua
existência na realidade. Dito de outro modo: “[...] se Deus é o ser em relação
ao qual nada pode ser maior, não é possível considerá-lo como existente
no pensamento, mas não na realidade, porque, nesse caso, ele não seria o
maior” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 497).
Com essa concepção, Anselmo de Aosta buscou construir uma estru-
tura lógica com argumentos racionais, por meio de um exercício dialético
puro, capaz de provar a existência divina (REALE; ANTISERI, 1990), o que
evidencia de modo claro a utilização da razão a serviço da fé. A prova a
priori é fruto da busca de Anselmo por uma prova da existência de Deus que
considerava mais clara, concisa e simples em relação à prova a posteriori
(SANTOS; COSTA, 2015).
Tomás de Aquino (Figura 1) é considerado um dos maiores pensadores
ocidentais e, sem dúvida, um dos mais importantes pensadores do período
medieval. No pensamento de Tomás de Aquino, existe uma autonomia da
filosofia em relação à teologia. De todo modo, a razão e a filosofia estão
integradas à fé, de forma que tanto a filosofia quanto a teologia tratam
de Deus, dos seres humanos e do mundo. Reale e Antiseri (1990, p. 554)
explicam que, nesse caso, a distinção entre a filosofia e a teologia “[...] está
no fato de que a primeira oferece um conhecimento imperfeito daquelas
mesmas cosias que a teologia está em condição de esclarecer em seus
aspectos e conotações específicos relativos à salvação”. Gilson (1995, p.
655) complementa que “[...] uma dupla condição domina o desenvolvimento
da filosofia tomista: a distinção entre a razão e a fé e a necessidade de
sua concordância”.
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 9

Figura 1. Imagem da Abadia de Fossanova, na Itália, onde Tomás de Aquino passou seus
últimos dias.
Fonte: Buffy1982/Shutterstock.com.

Desse modo, Tomás de Aquino entende que a teologia não substitui a fi-
losofia, uma vez que a razão constitui uma característica inerente dos seres
humanos, e deixar de utilizá-la seria o mesmo que ignorar uma exigência
primordial e natural. Além disso, reconhece que a razão também se mostra
como um instrumento relevante para pensar sobre nós mesmos e sobre o
mundo, além da filosofia ter sido fonte de saberes para toda a tradição cristã.
A fonte da verdade é única e, por isso, tanto a filosofia quanto a teologia são
ferramentas para alcançá-la, sem perder de vista a dependência radical de Deus.
Como a filosofia e a teologia de Tomás de Aquino foram bastante influen-
ciadas pela filosofia Aristóteles, diversas de suas provas ou caminhos para
a prova de Deus parecem muito similares às do filósofo grego. Assim, Tomás
de Aquino apresenta cinco caminhos para a prova da existência de Deus,
conforme divisão apresentada por Reale e Antiseri (1990).
10 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

Caminho da mutação
Trata-se de um argumento muito próximo ao de Aristóteles e utiliza os concei-
tos de ato e potência. O movimento é analisado como a passagem da potência
ao ato. Assim, uma coisa só muda se for em potência e é movida por aquilo
que é em ato e, portanto, capaz de mover. Um ser em si não pode ser em ato
e em potência ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto; portanto, tudo aquilo
que muda (que é em potência) é movido por um ato. Desse modo, é forçoso
reconhecer a existência de um imutável que deu causa o movimento. Pensar
em uma série infinita de motores seria deslocar o problema e não explicar a
razão última da mutação. Assim, esse imutável é Deus.

Caminho da causalidade eficiente


Essa prova gira em torno da pergunta: “[...] como é possível que alguns entes
sejam a causa de outros entes?” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 564). Esse argumento
se sustenta em dois elementos:

„„ que todas as causas eficientes (categoria de causa que torna possível


um objeto ou coisa) foram causadas por outras causas;
„„ a necessidade da existência de uma causa eficiente incausada, ou
seja, que é causa das outras, mas não teve origem em outra causa.

Assim, ao se remontar às cadeias causais, é impossível não chegar a uma


causa eficiente primeira, isto é, que foi a primeira causa e produziu as demais,
mas não é produzida. Chegar à causa primeira é o mesmo que chegar a Deus.

Caminho da contingência
O argumento se desenvolve com base na constatação de que as coisas são
geradas e se corrompem, isto é, nascem, se desenvolvem e morrem. São,
portanto, seres contingentes não necessários: podem tanto existir (ser) quanto
não existir ou deixar de existir (não ser). Se tudo fosse contingente, poderia
existir um tempo em que não houvesse nada e, por isso, também agora nada
existiria. Desse modo, a existência atual dos entes somente é admissível se
houver uma causa que nunca foi e não é contingente, mas necessária, porque
é sempre em ato, e essa causa é Deus.
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 11

Caminho dos graus de perfeição


Existe uma gradação dos entes de acordo com o nível mais ou menos perfeito
do ser. Um ente que tem mais perfeição será mais uno, mais verdadeiro e
bom. Possuir mais ou menos perfeição não deriva da essência de cada ser,
pois se fosse da própria essência ele seria pleno de ser, seria seu ser em
absoluto, consequentemente perfeito. Por consequência, os entes que não
são dotados de ser de modo absoluto devem ser partícipes do ser absoluto.
O ser absoluto deve ser Deus e fonte do que existe de algum modo.

Caminho do finalismo
Segundo Tomás de Aquino, muitas coisas que não possuem conhecimento
agem em função de um fim. Como esses entes são privados de conhecimento,
não agem por si só, mas para agir em função de um fim é necessário o conhe-
cimento desse fim. Assim, é forçoso concluir que é necessário um Ordenador
(Deus) que seja “[...] dotado de conhecimento e em condições de dar ser aos
entes daquele modo específico no qual de fato eles operam” (REALE; ANTISERI,
1990, p. 566). Em resumo, deve existir um ser inteligente capaz de dirigir e guiar
as coisas naturais a seus fins, pois sem essa ordenação ou direcionamento
as coisas não poderiam por si só alcançar o fim que alcançam.

Separação entre filosofia, teologia


e espiritualidade no pensamento
pós-escolástico
O século XIV é o último da Idade Média. Seu contexto histórico-social evidencia
diversas transformações em curso, e parte delas terá a filosofia como causa
e consequência. Dentre os eventos históricos e sociais relevantes do período,
é possível destacar o aparecimento dos Estados nacionais e a diminuição
do poder de influência política da Igreja, a ascensão da burguesia como um
grupo social relevante, além da gradativa passagem do sistema econômico
feudal para o sistema mercantilista. No campo do conhecimento, o equilíbrio
entre filosofia e teologia, razão e fé vai se perdendo.
Nesse contexto, a figura de Guilherme de Ockham, que viveu na Inglaterra
entre o final do século XIII e meados séc. do XIV, expressa essa mudança.
Gilson (1995, p. 797) escreve que o estudo de Guilherme de Ockham permite
constatar “[...] que a crítica interna feita contra ele mesmo pelo que se chama,
12 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

com um termo bastante vago, de filosofia escolástica, provocou a sua ruína


bem antes da filosofia moderna ter logrado constituir-se”.
Guilherme de Ockham defendia radicalmente a separação entre a fé e a
razão, de modo que a filosofia não devesse ser considerada serva da filosofia.
A teologia passava a ser sustentada não por sua estrutura racional, mas pela
força de coesão da fé, de tal modo que “[...] o plano do saber racional, baseado
na clareza e evidência lógica, e o plano da doutrina teológica, orientado pela
moral e baseado na luminosa certeza da fé, são planos assimétricos” (REALE;
ANTISERI, 1990, p. 615). O filósofo defendia a incompatibilidade entre a fé e a
razão, visto que a razão não é capaz de fornecer suporte algum ao que é reve-
lado pela fé. Com essa posição, Ockham não pretende negar a validade da fé
ou da razão, mas demarcar a independência da primeira em relação à segunda.
Desse modo, Guilherme de Ockham propunha a distinção entre conheci-
mento intuitivo e abstrativo. Para ele, “[...] um conhecimento certo é aquele
que é imediatamente evidente ou se reduz a uma evidência imediata” (GIL-
SON, 1995, p. 797). Esse tipo de conhecimento é conceituado como intuitivo,
fundamental, que atesta diretamente a existência ou não de uma realidade.
Esse conhecimento resulta diretamente da realidade sensível como a única
capaz de efetivamente garantir a certeza sobre uma realidade, permitindo o
conhecimento singular e direito do que se experiencia.
Já o conhecimento abstrativo está ligado ao conhecimento intuitivo e constrói
a partir dele a generalização do conhecimento particular. O conhecimento abstra-
tivo trata dos universais e das verdades necessárias e precede o conhecimento
captado a partir do contato direto com o objeto. Para Guilherme de Ockham, o
conhecimento abstrativo não pode ser considerado verdadeiro conhecimento,
pois se fundamenta na realidade do universal. A realidade do universal é, para
ele, mera construção da alma, e baseia-se em conceitos que nada mais são do que
meros nomes e construções de nosso intelecto, e, por isso, não podem ser reali-
dades ou algo fundamentável na realidade (REALE; ANTISERI, 1990). Em resumo,
o universal é considerado por Guilherme como desprovido de existência real.
Guilherme de Ockham concebe o mundo como um locus de coisas indivi-
duais e múltiplas que não estão ligadas por nexos imutáveis ou necessários.
Somente é possível compreender de fato os objetos individuais na medida
em que a universalidade é uma construção arbitrária do intelecto sem cor-
respondência com a realidade. Dessas concepções, Ockham fundamenta o
princípio de economia de pensamento, que tem como máxima “não se devem
multiplicar os seres sem necessidade”, que ficou conhecido como a navalha de
Ockham (REALE; ANTISERI, 1990), método utilizado como crítica à metafísica
e à gnosiologia tradicional.
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 13

Com esses fundamentos, Ockham nega o conceito de substância, que


nada mais seria do que uma construção do intelecto. O laço metafísico de
causa e feito também é rejeitado. Ockham afirma que até é possível enunciar
leis sobre os fenômenos, mas não esse laço metafísico necessário ou uma
cadeia necessária de causas, do mesmo modo que não é possível demonstrar
que exista uma causa final para qualquer fenômeno, posto que os efeitos de
causa ocorrem independente de se postular um fim para ele.
As críticas de Ockham têm consequências profundas, como a exclusão de
entes e conceitos que considera supérfluos, a começar pelos entes e conceitos
metafísicos que, segundo sua interpretação, imobilizam ou obscurecem a
realidade e a ciência (REALE; ANTISERI, 1990). Isso produz ainda duas outras
consequências: a de que o conhecimento fundamental é o conhecimento
empírico, visto que os conceitos universais são desprovidos de conhecimento
direto com a realidade, e a de que não é necessário admitir conceitual ou
intelectualmente nada que esteja fora dos indivíduos.
As críticas ao pensamento escolástico levadas às últimas consequências
por Ockham acabaram gerando um movimento de questionamento máximo
da razão como meio de acesso a Deus ou como meio minimamente confiável
de conhecimento para atingir a revelação divina (REALE; ANTISERI, 1990).
Pela ideia de que a fé não é minimamente demonstrável ou fundamentável
pela razão, pode-se passar a considerar o misticismo como o único caminho
capaz de reestabelecer a relação entre Deus e suas criaturas e justificar a fé.
Esse movimento ficou conhecido como mística renana, ou misticismo es-
peculativo alemão. Reale e Antiseri (1990) classificam-no como misticismo em
razão da concepção de que Deus está além de toda possibilidade conceitual,
e como especulativo porque trabalha com conceitos e temas filosóficos, em
especial com doutrinas neoplatônicas.

Durante os séculos XII e XIV, desenvolveu-se uma espécie de mística


na Alemanha que veio a ser chamada de mística renana. É chamada
assim porque seus principais expoentes e adeptos viviam ao longo do rio Reno.
O teólogo alemão Mestre Eckhart é um dos mais conhecidos expoentes desse
pensamento. Eckhart morreu por volta de 1327 e em 1939 o papa João XXII
condenou 28 de suas proposições, declarando 17 como heréticas e 11 como
escabrosas, temerárias e suspeitas de heresia (REALE; ANTISERI, 1990). Entre
as teses incriminadas, estão aquelas que atestavam a eternidade do mundo,
que o homem é puro nada e a possibilidade de nos transformarmos em Deus,
conforme a tese da união máxima da alma com a deidade.
14 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã

O principal expoente dessa doutrina foi o Mestre Eckhart, que tem como
ponto central de sua obra a justificação da fé sem suporte na razão, susten-
tando a unidade entre Deus e os seres humanos, entre o sobrenatural e o
natural. Para Eckhart, Deus é “[...] aquele que tem o privilégio de ser puro de
todo ser (puritas essendi) e que, em razão dessa pureza mesma em relação
ao ser, pode ser a causa do ser” (GILSON, 1995, p. 865). Desse modo, Deus cria
o ser e é a própria Sabedoria. Ainda que Deus possa, em algumas passagens
da obra de Eckhart, ser identificado como sendo o ser, isso deve ser lido como
o ser pelo qual todas as coisas existem, e não como criatura.
A pureza da essência divina expressa sua unidade, que é ao mesmo tempo
Intelecto, pois somente o Intelecto é perfeitamente uno. Como consequência,
se Deus é ser porque é uno, nada mais pode ser uno, pois não podem coexistir
duas infinitudes. Ademais, nada além de Deus é uno, então nada mais além
de Deus é ser (GILSON, 1995).
Dessa forma, as criaturas, por si só, são um puro nada. Deus está em todas as
criaturas, pois sem Deus nada é. Deus está acima do ser e, por isso, ao contrário
do ser que pode ser conhecido, Deus é inefável (REALE; ANTISERI, 1990). Como
Deus existe e está em tudo, o caminho dos seres humanos é abandonar-se Nele,
permitir que a razão seja capturada por Deus e aprofundar-se nele.
O retorno dos seres humanos a Deus se dá por meio da alma humana, na
qual Eckhart identifica uma centelha do intelecto divino. Para que essa união
mística seja possível, é necessário que haja, de início, a unidade do homem e
de Deus. Para concretizar essa união, é necessário também “[...] uma ascese do
estado de separação e de distanciamento, para alcançar a cidadela interior da
alma, que é a única livre em razão de sua própria vontade” (GILSON, 1995, p. 869).
Assim, é necessária uma alma livre de toda a coisa criada para possibilitar
que a alma seja capaz de captar a Deus e estar pronta para recebê-lo (REALE;
ANTISERI, 1990). A alma está ligada em seu íntimo à deidade, mas pode se
afastar dela. A primeira condição para o reencontro da alma com Deus é
compreender que, independentemente da centelha divina, em si mesmo não
se é nada. Uma vez que isso é constatado, torna-se possível a recondução
da alma a Deus (GILSON, 1995).
O reencontro com Deus pressupõe a renegação de si próprio, o abandono
de si em favor de Deus para que se alcance a essência pura e a elevada virtude
chamada pobreza, porque nesse momento a alma perde seu sentido com o
retorno a Deus. Desse modo:
Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã 15

[...] prece, fé, graça, sacramentos não são mais que preparativos e meios para um se
erguer a uma visão mais elevada. Necessários quando a alma começa a se destacar
de si mesma e das coisas, eles se tornam inúteis a partir do momento em que se
consuma na alma como que uma nova natividade de Deus (GILSON, 1995, p. 870).

Desse modo, com base nesses pensadores, é possível verificar que pro-
gressivamente a teologia e a filosofia foram se distanciando, com o mesmo
ocorrendo, consequentemente, entre a fé e a razão. A Idade Moderna costuma
ser vista como o momento histórico da cisão entre conhecimento teológico,
filosofia e o início da ciência. O estudo desses pensadores demonstra que
o processo histórico é complexo e que os paradigmas medievais já vinham
sendo abandonados em movimentos internos de questionamentos, fosse
por uma postura empirista de Ockham ou mesmo em uma visão mais aguda
à fé encontrada em Eckhart.

Referências
AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus,
1997.
GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo:
PAULUS, 1990.
SANTOS, B. S.; COSTA, R. da. História da Filosofia Medieval. Vitória: Universidade Fede-
ral do Espírito Santo, Secretaria de Ensino a Distância, 2015. Disponível em: https://
acervo.sead.ufes.br/arquivos/pdf-visualizacao-historia-da-filosofia-medieval.pdf.
Acesso em: 4 out. 2020.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.

Você também pode gostar