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RELIGIÃO
Introdução
O período histórico entre a Antiguidade Tardia (aproximadamente 300 d.C.) e o
fim da Idade Média (século XV) foi uma época de grandes formulações acerca da
fé cristã, da teologia e da sua conexão com a filosofia. Os conceitos e produções
filosóficas da Antiguidade grega e do período helenístico foram amplamente uti-
lizados em um contexto de expansão do cristianismo, formulando suas principais
doutrinas e bases teológicas.
2 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã
Agostinho passou por diversas fases em sua filosofia, mas foi a fé cristã
que mudou os rumos de sua filosofia. A esse respeito, Reale e Antiseri (1990,
p. 434) comentam que:
E aquele mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância. Porque, se o fosse,
seria um bem. Na verdade, ou seria substância incorruptível, e, portanto, um grande
bem; ou seria substância corruptível, e então, se não fosse boa, não se poderia
corromper. Desse modo, vi e me pareceu evidente que criaste boas todas as coisas,
e que nada existe que não tenha sido criado por ti. E porque não as criaste todas
iguais, cada uma em particular existe porque é boa, e tomadas em conjunto são
muito boas. De fato, o nosso Deus criou todas as coisas muito boas.
Provas a posteriori
Esse argumento pressupõe dois princípios “1º as coisas são desiguais
em perfeição; 2º tudo o que possui mais ou menos uma perfeição deve-
-se à sua participação nessa perfeição, tomada sob sua forma absoluta”
(GILSON, 1995, p. 294). Assim, são provas em que se parte do mundo para
provar Deus, daí o nome a posteriori. A primeira consequência ou argu-
mento é observar que existem uma variedade de coisas que se julgam
boas, maiores, menores e desiguais. Como tudo deve ter uma causa, a
causa das coisas boas em particular deve ser a bondade única e absoluta.
A existência de coisas boas e imperfeitas indica que não são perfeitas em
essência, mas que participam de uma bondade absoluta exterior a elas
(SANTOS; COSTA, 2015). O mesmo raciocínio se aplica à grandeza qualitativa:
se existe uma variedade de grandeza e uma gradação hierárquica delas,
exige-se a existência de uma grandeza suprema, da qual todas participam
gradativamente.
O segundo argumento está relacionado ao ser das coisas: tudo que existe
deve ter uma causa, visto que do nada não pode provir nada. Assim, remon-
tando às causas dos seres, deve haver uma só causa que existe por si mesmo,
visto que seria irracional que as causas dependam mutuamente uma das
outras em uma origem única de todas as causas.
O terceiro argumento se fundamenta na hierarquia dos diferentes graus
de perfeição observados na natureza. Os diferentes graus de perfeição se
mostram qualitativamente iguais, mas quantitativamente diferentes; por
isso, ao se remontar os graus de perfeição necessariamente se chegará a algo
superior que ordene todas as coisas e seja a perfeição primeira e absoluta
(REALE; ANTISERI, 1990).
8 Deus e religião nos sistemas de pensamento medievais: fé e razão na filosofia cristã
Figura 1. Imagem da Abadia de Fossanova, na Itália, onde Tomás de Aquino passou seus
últimos dias.
Fonte: Buffy1982/Shutterstock.com.
Desse modo, Tomás de Aquino entende que a teologia não substitui a fi-
losofia, uma vez que a razão constitui uma característica inerente dos seres
humanos, e deixar de utilizá-la seria o mesmo que ignorar uma exigência
primordial e natural. Além disso, reconhece que a razão também se mostra
como um instrumento relevante para pensar sobre nós mesmos e sobre o
mundo, além da filosofia ter sido fonte de saberes para toda a tradição cristã.
A fonte da verdade é única e, por isso, tanto a filosofia quanto a teologia são
ferramentas para alcançá-la, sem perder de vista a dependência radical de Deus.
Como a filosofia e a teologia de Tomás de Aquino foram bastante influen-
ciadas pela filosofia Aristóteles, diversas de suas provas ou caminhos para
a prova de Deus parecem muito similares às do filósofo grego. Assim, Tomás
de Aquino apresenta cinco caminhos para a prova da existência de Deus,
conforme divisão apresentada por Reale e Antiseri (1990).
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Caminho da mutação
Trata-se de um argumento muito próximo ao de Aristóteles e utiliza os concei-
tos de ato e potência. O movimento é analisado como a passagem da potência
ao ato. Assim, uma coisa só muda se for em potência e é movida por aquilo
que é em ato e, portanto, capaz de mover. Um ser em si não pode ser em ato
e em potência ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto; portanto, tudo aquilo
que muda (que é em potência) é movido por um ato. Desse modo, é forçoso
reconhecer a existência de um imutável que deu causa o movimento. Pensar
em uma série infinita de motores seria deslocar o problema e não explicar a
razão última da mutação. Assim, esse imutável é Deus.
Caminho da contingência
O argumento se desenvolve com base na constatação de que as coisas são
geradas e se corrompem, isto é, nascem, se desenvolvem e morrem. São,
portanto, seres contingentes não necessários: podem tanto existir (ser) quanto
não existir ou deixar de existir (não ser). Se tudo fosse contingente, poderia
existir um tempo em que não houvesse nada e, por isso, também agora nada
existiria. Desse modo, a existência atual dos entes somente é admissível se
houver uma causa que nunca foi e não é contingente, mas necessária, porque
é sempre em ato, e essa causa é Deus.
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Caminho do finalismo
Segundo Tomás de Aquino, muitas coisas que não possuem conhecimento
agem em função de um fim. Como esses entes são privados de conhecimento,
não agem por si só, mas para agir em função de um fim é necessário o conhe-
cimento desse fim. Assim, é forçoso concluir que é necessário um Ordenador
(Deus) que seja “[...] dotado de conhecimento e em condições de dar ser aos
entes daquele modo específico no qual de fato eles operam” (REALE; ANTISERI,
1990, p. 566). Em resumo, deve existir um ser inteligente capaz de dirigir e guiar
as coisas naturais a seus fins, pois sem essa ordenação ou direcionamento
as coisas não poderiam por si só alcançar o fim que alcançam.
O principal expoente dessa doutrina foi o Mestre Eckhart, que tem como
ponto central de sua obra a justificação da fé sem suporte na razão, susten-
tando a unidade entre Deus e os seres humanos, entre o sobrenatural e o
natural. Para Eckhart, Deus é “[...] aquele que tem o privilégio de ser puro de
todo ser (puritas essendi) e que, em razão dessa pureza mesma em relação
ao ser, pode ser a causa do ser” (GILSON, 1995, p. 865). Desse modo, Deus cria
o ser e é a própria Sabedoria. Ainda que Deus possa, em algumas passagens
da obra de Eckhart, ser identificado como sendo o ser, isso deve ser lido como
o ser pelo qual todas as coisas existem, e não como criatura.
A pureza da essência divina expressa sua unidade, que é ao mesmo tempo
Intelecto, pois somente o Intelecto é perfeitamente uno. Como consequência,
se Deus é ser porque é uno, nada mais pode ser uno, pois não podem coexistir
duas infinitudes. Ademais, nada além de Deus é uno, então nada mais além
de Deus é ser (GILSON, 1995).
Dessa forma, as criaturas, por si só, são um puro nada. Deus está em todas as
criaturas, pois sem Deus nada é. Deus está acima do ser e, por isso, ao contrário
do ser que pode ser conhecido, Deus é inefável (REALE; ANTISERI, 1990). Como
Deus existe e está em tudo, o caminho dos seres humanos é abandonar-se Nele,
permitir que a razão seja capturada por Deus e aprofundar-se nele.
O retorno dos seres humanos a Deus se dá por meio da alma humana, na
qual Eckhart identifica uma centelha do intelecto divino. Para que essa união
mística seja possível, é necessário que haja, de início, a unidade do homem e
de Deus. Para concretizar essa união, é necessário também “[...] uma ascese do
estado de separação e de distanciamento, para alcançar a cidadela interior da
alma, que é a única livre em razão de sua própria vontade” (GILSON, 1995, p. 869).
Assim, é necessária uma alma livre de toda a coisa criada para possibilitar
que a alma seja capaz de captar a Deus e estar pronta para recebê-lo (REALE;
ANTISERI, 1990). A alma está ligada em seu íntimo à deidade, mas pode se
afastar dela. A primeira condição para o reencontro da alma com Deus é
compreender que, independentemente da centelha divina, em si mesmo não
se é nada. Uma vez que isso é constatado, torna-se possível a recondução
da alma a Deus (GILSON, 1995).
O reencontro com Deus pressupõe a renegação de si próprio, o abandono
de si em favor de Deus para que se alcance a essência pura e a elevada virtude
chamada pobreza, porque nesse momento a alma perde seu sentido com o
retorno a Deus. Desse modo:
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[...] prece, fé, graça, sacramentos não são mais que preparativos e meios para um se
erguer a uma visão mais elevada. Necessários quando a alma começa a se destacar
de si mesma e das coisas, eles se tornam inúteis a partir do momento em que se
consuma na alma como que uma nova natividade de Deus (GILSON, 1995, p. 870).
Desse modo, com base nesses pensadores, é possível verificar que pro-
gressivamente a teologia e a filosofia foram se distanciando, com o mesmo
ocorrendo, consequentemente, entre a fé e a razão. A Idade Moderna costuma
ser vista como o momento histórico da cisão entre conhecimento teológico,
filosofia e o início da ciência. O estudo desses pensadores demonstra que
o processo histórico é complexo e que os paradigmas medievais já vinham
sendo abandonados em movimentos internos de questionamentos, fosse
por uma postura empirista de Ockham ou mesmo em uma visão mais aguda
à fé encontrada em Eckhart.
Referências
AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus,
1997.
GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo:
PAULUS, 1990.
SANTOS, B. S.; COSTA, R. da. História da Filosofia Medieval. Vitória: Universidade Fede-
ral do Espírito Santo, Secretaria de Ensino a Distância, 2015. Disponível em: https://
acervo.sead.ufes.br/arquivos/pdf-visualizacao-historia-da-filosofia-medieval.pdf.
Acesso em: 4 out. 2020.