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FILOSOFIA

DA RELIGIÃO

PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ziiles, Urbano . .
Filosofia da R elig ião / Urbano Z iile s .— .São Paulo: Paulus, 1991 . — (Coleção Filosofia)

Bibliografia
ISBN 978-85-349-0928-0

1. Religião — Filosofia l. "t itulo. H. Série.

90-1138 CDD-200.1

índice para catálogo sistemático:


1. Filosofia e religião 200.1
2. Religião: Filosofia 200.1

Coleção FILOSOFIA

• Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras, 8. Mondin


• O homem, quem é ele? - elementos de antropologia filosófica, B. Mondin
• Curso de Filosofia (3 vols.), Battista Mondin
• História da Filosofia (3 vols.), G. Reale e D. Antiseri
• Filosofia da religião, U, Ziiles
• Os sofistas, W. K. C. Guthrie
» Quem é Deus? - elementos de teologia filosófica, B. Mondin
• Os filósofos através dos textos _ de Platão a Sartre, W .A A .
• Tomismo no Brasil, F. A. Campos
• A filosofia na antigüidade cristã, C. Stead
• A educação do homem segundo PlatSo, E. F. B. Teixeira
• Léxico de metafísica, A. Molinaro
• Filosofia para todos, Gianfranco Morra
• Realidade e existência: Lições de Metafísica _ Introdução e Ontologia, I. Kant
• Mefaffs/ca: Curso s/sfemáí/co, A. Molinaro
• Introdução à filosofia de Aristóteles, M.-D. Philippe
• Filosofia, encantamento e caminho: Introdução ao exercício do filosofar, V. de Paiva
• Corpo, alma e saúde: O conceito de homem de Homero a PlatSo, G. Reale
• Cristo na filosofia contemporânea: de Kant a Nietzsche - Vol. I, S. Zucal (org.)
• Cristo na filosofia contemporânea: O século X X - Vol. II, S. Zucal (org.)
• O argumento ontolôgico: A existência de Deus de Anselmo a Schelling, F. Tomatis
• Deus nas tradições filosóficas (2 vols.), J. A. Estrada
• O fenômeno religioso: A fenomenologia em Paul Tillich, T. A. Goto
• Filosofia social: A responsabilidade social do filósofo, A. Berten
• Filosofia política, A. Berten
• Aventura pós-modema e sua sombra, E. B. Teixeira
• Teoria do conhecimento e teoria da ciência,' U. Ziiles
• Discurso do método, Descartes
• Filosofia da educação, T. Koninck
• Silêncio e contemplação: Uma introdução a Plotino, G. Bal
• Lógica e dialética: Lógica, Dialética, Decadiaiética, M. Ferreira dos Santos
• Filosofia da comunicação, Jean-Marc Ferry
• Estética: Fundamentos e questões de Filosofia da Arte, Peter Kivy (org.)
• Dionísio Pseudo-Areopagita: Mística e Neoplatonismo, Cícero Cunha Bezerra
• Uma Filosofia da História em Platão: O percurso histórico da cidade platônica de /4s Leis, Gerson Pereira Filho
• P or que São Tomás criticou Santo Agostinho - Avlcena e o ponto de partida de Huns Escoto, Étienne Gilson
URBANO ZILLES

FILOSOFIA DA
RELIGIÃO
Digitalizado por: jolosa
Revisão
H. Dalbosco

Impressão e acabamento
PAULUS

8a edição, 2010

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ISBN 978-85-349-0928-0
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA
DA RELIGIÃO

A religião é estudada pela história, pela psicologia, pela fe-


nomenologia, pela psicanálise e pela sociologia. Todas essas ciên­
cias estudam metodicamente a consciência religiosa concreta e
suas múltiplas objetivações na história. A filosofia da religião tenta
esclarecer a possibilidade e a essência formal da religião na exis­
tência humana. Em outras palavras/estuda a consciência do ho­
mem e de sua autocompreensão a partir do absoluto enquanto
atingível pela inteligência/A filosofia da religião é uma reflexão
realizada com a única ajuda da razão, sendo seu objeto a religião
e as condições em que esta é possível.)
Da mesma maneira que o ato filosófico não fundamenta a
existência humana, mas tenta esclarecê-la, assim também a filo­
sofia da religião não fundamenta, nem inventa a religião, mas
tenta esclarecê-la, servindo-se das exigências propriamente filo­
sóficas. A filosofia da religião tematiza a abertura do homem para
o mistério que o envolve de maneira positiva, aceitando-o, ou de
maneira negativa, rejeitando-o. Tematiza, pois, a relação do ho­
mem com o santo ou numinoso no horizonte da autocompreensão
humana.
O objeto da filosofia da religião é a religião. Mas pode a religião
ser objeto da filosofia? O que se entende por religião? O que se
entende por filosofia?

1.1. O que é religião?

À primeira vista, pode-se pensar que todos saibam o que se


significa com a palavra religião e religioso. Talvez tal pressuposi­
ção esteja certa enquanto se refere às manifestações mais osten­
sivas. Mas quando se trata de precisar a essência da religião logo
6 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

surgem dificuldades sem fim. Quem poderá fixar os limites entre


o verdadeiramente religioso e o puramente cultural, folclórico ou
social? O que, por exemplo, entre nós, é da essência religiosa numa
festa de primeira comunhão, de um casamento na igreja etc, e o
que não? Se se trata de manifestações, como descobriremos o que
manifestam?
Se compararmos o fenômeno religioso .com o fenômeno social
ou similar, podemos dizer que designamos a estrutura especial do
homem definida por sistema de relações com os outros homens.
Poder-se-ia descrever o fenômeno religioso como um mundo de
estrutura estritamente relacionai? Mas com que ou com quem o
homem se relaciona na religião? No fundo de toda a situação
verdadeiramente religiosa encontra-se a referência aos funda­
mentos últimos do homem: quanto à origem, quanto ao fim e
quanto à profundidade. O problema religioso toca o homem em sua
raiz ontológica. Não se trata de fenômeno superficial, mas implica
a pessoa como um todo. Pode caracterizar-se o religioso como zona
do sentido da pessoa.fEm outras palavras, a religião tem a ver com
o sentido último da pessoa, da história e do mundo.)
Para orientar nossa reflexão filosófica precisamos, desde já,
determinar melhor o objeto visado. Desde a Antiguidade, por re­
ligião entende-se a relação do homem com Deus ou com o divino.
Mas logo a consciência crítica indaga: O que é o homem? O que é
Deus? O que vincula a ambos? O que é religião?
Quando se fala da relação do homem com Deus designa-se, an­
tes de tudo, uma maneira própria de ser do homem. Em relação a
Deus, o homem, na religião, toma a atitude de quem se sente desa­
fiado, de quem experimenta um apelo. A religião realiza-se na exis­
tência humana. O apelo de Deus como a resposta do homem verifi­
cam-se na existência. O homem sabe-se relacionado e determinado
por algo que é maior do que ele mesmo. Assim sua existência reli­
giosa se constitui a partir do divino. Por isso, na filosofia da religião,
não se fala só do homem, mas também daquilo que é diferente dele,
que o transcende. A partir do divino, a existência humana se especi­
fica como religiosa. Temos, porém, conceito filosófico de Deus? Como
o homem se comporta diante do mistério de Deus?
No discurso religioso ocorrem conceitos que se opõem à filoso­
fia como, por exemplo, revelação e redenção. Esses expressam tuna
realidade oriunda da transcendência, enquanto religião expressa
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 7

uma série de atos espirituais e criações culturais do homem. A


revelação fala do divino, de algo que penetra na vida; a religião
refere-se a uma realidade de vida e a uma realidade cultural.
Surge então a pergunta: poderá a filosofia tematizar a revelação?
Que será da religião sem a revelação?
No cristianismo, por exemplo, a revelação é a penetração do
incondicionado no mundo condicionado. Portanto, a filosofia da reli­
gião se confronta com a doutrina da revelação. Quem determinará
os limites entre filosofia e teologia? Como será a eventual contradição?
Haverá algo em comum entre a doutrina da revelação e a filosofia?
Haverá o caminho da síntese? Parece que a tarefa da filosofia da re­
ligião é achar este ponto comum para uma solução de síntese inter­
na. Será isso possível, ao menos em relação com o cristianismo?
Por outro lado, não basta relacionar a filosofia com a teologia.
Toda a ciência deve ser situada no conjunto das ciências. A filosofia
pertence às ciências do espírito. Poderemos detectar nela três
aspectos: a) a filosofia; b) a história; c) a sistemática. Na filosofia
desenvolve seu campo de sentido; na história recolhe o material
que as ciências do ser apresentam e interpreta, de maneira sis­
temática e criticamente, os dados.
Paul Tillich descreve a relação entre filosofia da religião e
teologia: “Filosofia da religião é doutrina das funções religiosas e
de suas categorias. Teologia é apresentação normativa e siste­
mática da plenificação concreta do conceito de religião” (p. 14). A
metafísica, segundo Tillich, “é orientação para o incondicional na
esfera teórica das funções do espírito” (p. 16). E isto apenas en­
quanto for religiosa.
Em síntese, podemos dizer que, nos últimos séculos, para a
filosofia, o fenômeno religioso, praticamente universal na huma­
nidade, no seu conjunto tendeu a polarizar-se num termo supremo:
a Realidade Suprema, de algum modo transcendente com relação
ao homem e ao mundo, mas com o qual o homem pode entrar, de
algum modo, em relação pessoal.

1.2. Poder-se-á justificar a religião perante a razão?

A filosofia nasceu, na antiga Grécia, como atitude crítica na


vida concreta do homem. Nasceu como tentativa de formular a
8 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

questão da verdade desta vida em sua globalidade. Como a reli­


gião era parte desta vida concreta, os filósofos não podiam deixar
de formular a questão da verdade da religião, de sua significação
para a vida humana e a questão filosófica sobre Deus. Essas
questões foram formuladas no horizonte de piressuposta totalidade.
Ora, a pergunta pela realidade em sua totalidade inclui a pergunta
pela possibilidade de tal totalidade. Neste contexto da tematização
da unidade de todo o real surgiu a questão filosófica de Deus.
A filosofia grega pensou a totalidade do real como cosmos.
Neste cosmos pensou a presença do divino como fundamento ori­
ginário (Anaximandro), como ser imutável (Parmênides), como
Logos enquanto ordem do mundo (Heráclito), òu ainda como noús
enquanto princípio do movimento do mundo (Anaxágoras). A to­
talidade do real ou do cosmos era pensada a partir da objetivida­
de mundana. A revolução copemicana no pensamento, no fim da
Idade Média e no começo dos tempos modernos, consiste na volta
para a subjetividade pensante. Tematiza-se o sujeito como con­
dição de possibilidade não só do conhecimento, como também da
ação objetiva do homem no mundo. O homem moderno questiona
o acesso imediato do real e passa a falar da realidade através da
mediação da subjetividade; desenvolve novo método de investi­
gação e conhecimento, apoiando-se unicamente na razão e na
experimentação científica.
( A grande virada antropocêntrica, na filosofia ocidental mo­
derna, também modificou radicalmente a problemática de Deus.
As ciências, visando a dominar a natureza através da descoberta
da regularidade dos fenômenos naturais, dispensam a hipótese de
causa primeira J Mas o pensamento moderno não consegue pensar
a subjetividade humana em seu relacionamento teórico e prático
com o mundo sem referência, positiva ou negativa, a Deus. A
questão de Deus passa a ser tematizada não mais a partir do
mundo, e sim através da mediação do homem e de suas relações
com o mundo, ou seja, a partir da subjetividade.
Indaga-se: haverá no homem capacidade subjetiva específica
ou dimensão própria que tenha como correlato a religião? Seria tal
a priori algo como um sentimento universal e irracional? Ou será
religião algo que precede a todos os conteúdos categoriais da
consciência? Não será que toda a filosofia, enquanto autocom­
preensão do hcm em no horizonte de uma razão ontológica
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 9

transcendental a priori, já implica uma filosofia da religião, ao


menos de maneira atemática?
A filosofia da religião, como disciplina própria, é recente. Para
sua constituição foi decisiva a filosofia de I. Kant, o idealismo
alemão, a obra do cardeal Newman, de M. Blondel, a filosofia
dialógica de F. Ebner e M. Buber, a fenomenologia de E. Husserl,
M. Scheler e a filosofia da existência através de G. Mareei, M.
Heidegger e K. Jaspers. Entre os católicos, em nosso século, des-
tacam-se ainda os estudos de Romano Guardini, J. Maritain, K
Rahner, B. Welte e outros. Constatamos, hoje, a existência de uma
linha de investigação, mas não de uma unidade de enfoque.
£ Como já dissemos, a filosofia da religião não se confunde com
a teologia, pois esta tematiza a relação homem-Deus a partir da
livre revelação de Deus ao homem, ou seja, a partir de Deus] Com
B. Welte,^podemos dizer que a filosofia da religião é filosofia; e
filosofia que não seesclarece a partir de outras ciências, mas a
partir de si mesmaT-Quando o homem filosofa, ele mesmo pensa.
O pensar filosófico é forma radical da liberdade humana.\
A atividade do pensamento exerce-se numa abertura para além
do próprio homem, para além de sua subjetividade. Pensar é a
busca do encontro do homem com o mundo, entre o pensante e o
pensado. Com isso, o pensamento vincula-se ao objeto de sua
atividade, sem com ele confundir-se. Seu objeto é aquilo que se lhe
oferece no mundorAssim a liberdade do pensar está vinculada ao
objeto. O pensar tem compromisso com a realidade. Podemos dizer
que o pensamento filosófico deve ser fundado e, ao mesmo tempo,
fundante.fDeve visar com exatidão o objeto e expressá-lo em
conceitos e em linguagem tão precisa que permitam reconhecê-lo.
Desta maneira, o pensamento filosófico está vinculado ao ser e à
essência do objeto.
O sujeito do filosofar é o homem. Diz Feuerbach que “a religião
assenta na diferença essencial que existe entre o homem e o ani­
mal, pois os animais não têm nenhuma religião” (A essência do
cristianismo, p. 4). O homem existe como compreensão de si
mesmo e do ser. Pensando, desenvolve-se a si mesmo. Pensa e
indaga a si mesmo indagando o mundo. Indaga à luz do ser, como
algo que é. Busca o verdadeiro ser das coisas como globalidade. A
v indagação filosófica tematiza, pois, o ser do ente. Nesta perspec­
tiva, a filosofia da religião é diferente das ciências da religião.
10 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Como o pensamento não está limitado à pura facticidade, in­


clui a questão crítica do verdadeiro ser e do ser inautêntico ou falso
do objeto. A reflexão filosófica indaga o fáctico pelo seu ser verda­
deiro, ou seja, pela súa verdade. Em outras palavras, o pensamento
filosófico não se contenta com as coisas como se apresentam.
Sempre está a caminho. Nunca é definitivo, porque o ser do ente
manifesta-se inesgotávelíT>ra, a filosofia da religião tem a religião
como objeto de seu pensar. Tenta esclarecer o ser e a essência da
religião. Indaga, pois, o que é, propriamente, religião?
A religião é um dado que está aí e não se funda na filosofia.
Não é filosofia. Desde Blaise Pascal, costuma-se opor o Deus dos
filósofos ao Deus de Abraão, Isaac, Jacó, ou seja, ao Deus de Jesus
Cristo. Certamente há influência mútua entre a filosofia e a reli­
gião. O filósofo encontra a religião como o diferente, o outro. Mas
a religião realiza-se como acontecimento humano, como uma for­
ma da vida humana. São homens que crêem em Deus, rezam, se
reúnem em assembléia para o culto. Na fé em Deus, os homens
indagam sempre, de alguma forma, a si mesmos. Embora não
produzam a religião, cabe-lhes uma liberdade responsável perante
si mesmos, ou seja, perante a razão crítica.
Radicada na compreensão, que o homem tem do ser e de si
mesmo, a religião pode ser considerada como capítulo fundamen­
tal da antropologia filosófica. Expressa-se em linguagem humana,
em categorias humanas e possibilidades do pensamento humano.
Apresenta um aspecto histórico, mas não se reduz a ele. Expres­
sa-se em linguagem fáctica, mas não se reduz ao puro fáctico. No
Ocidente, de maneira generalizada, na consciência popular, er­
roneamente se reduz a realidade ao fato. A religião cristã perdeu
sua evidência, assim, na sociedade moderna e na consciência
cultural/Tudo isso, entretanto, não justifica o silêncio da filosofia
na indagação pelo ser e pela essência da religião. Ao contrário, se
se conseguir uma visão da essência da religião consegue-se lima
posição crítica em relação ao próprio fato e toma-se possível es­
clarecer o direito e o sentido da religião na vida humana.
A existência religiosa do homem desenvolve-se em muitas
dimensões, como, por exemplo, a interior e a exterior. Na primeira
situa-se a fé e a meditação; na segunda, o culto e a pregação. É
verdade que, em geral, por religião só se entende o exterior, o
“manto cultuai” (P. Tillich). Pode-se dizer, preliminarmente, que
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 11

é a crença na garantia divina oferecida ao homem para sua sal­


vação e, ao mesmo tempo, seu comportamento (culto, ética) para
obter e conservar tal garantia.
Como a religião é anterior à filosofia, a reflexão filosófica bus­
cará refletir sobre sua maneira de ser e sobre sua essência. Tal re­
flexão, porém, também terá conseqüências, ou seja, a religião cri­
ticamente refletida. Segundo Hegel, a religião e a filosofia têm em
comum a busca da verdade: “A filosofia tem seus objetivos em co­
mum com a religião porque o objetivo de ambas é a verdade, no
sentido mais alto da palavra, isto é, enquanto Deus, e somente
Deus, é a verdade” (Enciclopédia, § 1). Mas, segundo Hegel, a re­
ligião se distingue da filosofia enquanto exprime a verdade não sob
a forma de conceito, e sim sob a forma da representação e do sen­
timento. “A religião é a relação com o Absoluto na forma do senti­
mento, da representação, da fé; e no seu centro que tudo compreen­
de, tudo está somente como algo acidental e evanescente” (Prin­
cípios da Filosofia do Direito, § 270). Em outras palavras, o que na
religião é instituído de modo acidental, e confuso, é demonstrado
pela filosofia com caráter de necessidade (.Enciclopédia, § 573).

1.3. Uuimnismo e religião

( A religião não é fenômeno situado fora do tempo. Não esclare­


ce problemas eternos, mas os que se colocam em determinadas
circunstâncias) Hoje nos defrontamos com problemas radicados no
iluminismo ou dele derivados. Com Hegel, podemos caracterizar
toda a história ocidental à maneira de processo progressivo da
tomada de posse pelo homem de sua liberdade. Esta história da
liberdade entrou em nova fase no começo da era moderna, quan­
do a liberdade e o pensamento se tomaram conscientes e críticos
^tcerca de si mesmos. Como se sabe, Kant descreveu o iluminismo
como “a saída do homem da sua minoridade culpada. A minoridade
é a incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem a di­
reção de outrem... Sapere ande! Tem a coragem de servir-te do teu
próprio entendimento! Tal é o lema do iluminismo!” (Crítica da
razão pura).
O iluminismo ainda não está ultrapassado. Surge como pro­
cesso que perpassa toda a história espiritual do Ocidente. Repre­
12 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

senta, antes de tudo, um processo de emancipação. O homem li­


berta-se da tutela da autoridade e da tradição. Quer ver, julgar e
decidir por si mesmo. O homem toma-se ponto de referência da
realidade, transformando-se em medida do homem e do mundo, o
qual é pensado a partir do homem e projetado para o homem.
A virada antropológica moderna modificou, fundamental­
mente, toda a nossa realidade sociocultural. No campo político
levou ao reconhecimento da liberdade e igualdade de todos os
homens, à declaração dos direitos universais do homem e à revo­
lução francesa. Como movimento de democratização, substituindo
a ordem social hierárquica e patriarcal pela ordem associativa de
membros iguais e livres, provocou profunda crise de autoridade.
No campo do conhecimento, as modernas ciências experi­
mentais transformaram totalmente nossa visão de mundo e con­
duziram ao comportamento racional perante a realidade. Per­
manece e prevalece o que resiste à crítica racional. A ciência e a
técnica dão ao homem pelo menos um suposto senhorio sobre as
coisas para sua manipulação e o planejamento racional. O resul­
tado é um mundo hominizado e secularizado, despido dos vestígios
de Deus.
O iluminismo também repercutiu sobre a religião, de modo
especial sobre o cristianismo. Sua imagem do homem e do mundo
estava por demais vinculada a uma época definitivamente ultra­
passada. Com isso a fé tomou-se objeto de suspeita como ideologia
de ordem ultrapassada e como força reacionária.
No Ocidente, o problema da religião adqüiriu novas conotações
a partir do século XVIII. Talvez se pudesse caracterizar esta nova
situação como a ruptura entre o mundo judaico-cristão e o mundo
profano, com a em ancipação da razão crítica, que visa ao
discernimento da verdade da religião. Os pressupostos, no, Oriente,
são outros. Depois do iluminismo, no Ocidente, também os pres­
supostos da Idade Média e da Antiguidade perderam sua evi­
dência. Nos tempos modernos, a subjetividade e a razão críticas,
no processo de emancipação iluminista, sentiram a necessidade do
conhecimento.
No Ocidente, já nos séculos XVII e XVIII, inicia um movimen­
to de emancipação, quando os teólogos aplicam o método históri-
co-crítico das ciências profanas à leitura e interpretação da Bíblia.
Tomou-se claro o abismo cavado entre as concepções míticas da
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 13

Bíblia e as concepções próprias da época. O progresso, nas ciências,


conduziu naturalmente a certa demitologização das concepções
religiosas. Da mesma forma o questionamento crítico da metafísica
repercutiu nas formulações do cristianismo, cujas doutrinas ha­
viam sido formuladas em linguagem metafísica. A constituição dos
Estados modernos como sistemas de garantias da liberdade e do
direito e da sociedade moderna como sistema baseado na satisfa­
ção de necessidades, levou ao questionamento de tradições morais,
sociais, políticas de instituições sociais com as quais a Igreja se
havia identificado em grande parte. Assim, com o movimento
iluminista, o cristianismo tradicional e ambiental entra em crise.
Aumenta a tensão entre a subjetividade crítica e sua interioridade,
de um lado, e, de outro, as instituições religiosas tradicionais.
Como conseqüência, dentro da própria Igreja católica, hoje, cres­
ce o número dos que apenas parcialmente ainda se identificam com
ela, com sua doutrina e com suas orientações práticas.
Na atual situação do processo de emancipação iluminista en­
contramos três atitudes unilaterais a respeito do fenômeno reli­
gioso.

a) Negação total da religião

É a atitude que declara a religião como consciência falsa ou


simples ideologia para, como tal, dever negá-la. Essa atitude en­
contra-se em Feuerbach, Nietzsche e Freud e em alguns marxis­
tas. (Trata-se de atitude com caráter mais romântico que, em
Feuerbach, parte da concepção de vida, de vida natural não alie­
nada do homem e da humanidade. Alimenta-se, pois, da saudade
do paraíso perdido.jNa forma mais cética, como em Freud, espera
que, no futuro, com o fim da ilusão religiosa, a humanidade esteja
em condições de, corii a ajuda da ciência e da razão crítica, cons­
truir a harmonia total. Esta tendência conduz à liquidação da
religião em nome da razão, que pretende ser a única possuidora
da verdade, considerando a religião como uma ilusão.
Em sua Crítica da filosofia hegeliana do direito, três anos
depois que Feuerbach publicara A essência do cristianismo (1841),
Karl Marx escreveu: “Para a Alemanha está essencialmente ter­
minada a crítica da religião, e a crítica religiosa é o pressuposto
de toda a crítica” . Feuerbach desmascara a fé em Deus como
14 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

projeção humana. Mais tarde F. Engels também assumiu essa


crítica, escrevendo em L. Feuerbach e o fim da filosofia clássica
( 1886):

“De um golpe, Feuerbach desfez a contradição ao recolocar o materialismo


no trono... Fora da natureza e do homem nada existe, e os seres supe­
riores que a nossa fantasia religiosa criou apenas são reflexos fantásti­
cos de nosso ser... É preciso ter vivido o efeito libertador deste livro para
fazer-se uma idéia do assunto”.

Os representantes dessa crítica esperam, com recurso à na­


tureza e à ciência e com o desmascaramento da alienação religiosa,
obter a transformação da consciência humana. Vêem a causa dessa
alienação na falta de conhecimento científico e na falta de domínio
do inconsciente. Enfim, esperam a superação ou o fim da religião
com base no domínio tecnológico sobre as forças da natureza.
Evidentemente Marx e Engels se equivocaram. Os pais da
moderna crítica da religião tinham confiança exagerada na razão,
na ciência e no progresso. O desejo de libertar a humanidade da
ilusão de Deus e da tirania da fé religiosa reverteu, ele mesmo, em
ilusão. Não só na filosofia, como também na psicologia profunda
e na sociologia, hoje se buscam fundamentos para a existência da
fé em uma realidade chamada Deus.
Marx negara a religião como ideologia, como instituição soci­
al e política reacionária que obstaculiza o progresso da humani­
dade. (Segundo ele, a religião impede a libertação total do homem
porque ou justifica o status quo desumano de situações político-
sociais ou busca uma reconciliação ilusória, apelando ao além para
deixar aqui tudo como está.
Essa forma de crítica da religião tinha força de convencer en­
quanto se esperava a realização de uma sociedade mais humana
e mais justa através do socialismo marxista. Entretanto, hoje, os
argumentos outrora aduzidos também perderam sua força. O ho­
mem aumentou seu poder sobre a natureza através da ciência e
da técnica. Mas não há indícios para sociedade mais humana como
simples resultado de tal evolução, tanto no regime capitalista como
no socialista. Karl Marx, com base nas tensões sociais da socieda­
de burguesa, acreditava que transformando a filosofia hegeliana
da história e o materialismo através de sua análise da consciência
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 15

de classe do proletariado, podia constatar tendências para trans­


formações revolucionárias, capacitando o proletariado a ser o su­
jeito da história. Com o passar do tempo, tanto a teoria como a
práxis marxistas perdem sua força de convencimento. Nada ga­
rante que o marxismo, hoje, seja menos manipulado a favor dos
poderosos do que a religião que outrora criticara, ou seja, que o
próprio marxismo não seja uma religião sem Deus.
Em resumo, a negação radical e total da religião hoje se vê em
circunstâncias pouco cômodas e deverá rever sua posição ou, pelo
menos, diferenciá-la melhor, pois, no mínimo, necessita de
autocrítica. Esta tendência confunde a expressão com o expres­
sado, crendo ter esclarecido este quando apenas explicou aquela.

b) Aceitação total da religião

Durante séculos e milênios, a religião era tema na filosofia


como qualquer outro. Por isso, todos os grandes filósofos dela
trataram de uma ou outra forma. Desde o século XVII, surgem
esforços apologéticos para justificar a religião no mundo moderno
porque esta (o cristianismo) se distanciou da evolução histórica do
mundo técnico-científico. Os limites de tal filosofia da religião
aparecem na chamada teologia natural, na filosofia transcen­
dental, existencial e personalista do nosso século.
A teologia natural é de grande atualidade. Interroga pelo lugar
da fé na experiência humana. Mas quando essa teologia quer
provar demais, nada prova. Poder-se-á perguntar até que ponto a
distância de Deus ou de sua ausência não expressam a auto-re-
clusão do homem. A fé, como fundamento da religião, constitui
também ato íntegro e totalmente humano. Tem que se reconhecer
como humanamente cheia de sentido e intelectualmente honesta
e responsável.
A teologia natural, marcada pela metafísica do século XVIII,
parte da natureza da razão compreendida de maneira teleológica,
deduzindo afirmações materiais sobre a essência de Deus, do
mundo e do homem. Julga, desta maneira, poder fornecer, com os
meios e métodos da razão, novo fundamento à religião. Entretanto,
isso não mais convence à subjetividade crítica moderna. Quis-se
buscar verdades absolutas, eternas, fora da história. Ora, depois
da aplicação do método histórico-crítico à própria Bíblia, tais ob­
16 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

jetivos não se justificam mais. Por sua abertura ao ser, a razão


conduz necessariamente à religião como expressão de uma di­
mensão transcendente da existência humana. M. Blondel escre­
veu que “a expectativa de uma religião é natural”. Ora, toda a
apologia da religião hoje deverá enfrentar o problema da histo-
ricidade.
A fundamentação da religião pela filosofia transcendental,
como a tentaram Joseph Maréchal, Karl Rahner, E. Coreth e
outros é, nos seus pressupostos e nas suas conseqüências, a-his-
tórica. O eu transcendental permanece ambivalente. Por um lado,
é diferenciado do eu histórico e, por outro, identificado com o meu
eu. O objetivo do método transcendental é mostrar que, sem re­
flexão consciente, pode-se interpretar o homem como aberto para
as verdades religiosas historicamente mediadas. Fala da anima
naturaliter christiana. Essa forma de religião talvez convencesse
enquanto a tradição sociocultural e o meio eram determinados pela
cultura judaico-cristã. Mas, no fundo, é a tentativa de uma fun­
damentação formal, não mediada historicamente.
A fundamentação existencialista e personalista da religião, em
nosso século, também assenta em pressupostos que perderam sua
evidência. Após as duas guerras mundiais tinham uma função
crítica, ao menos na Europa. Na teologia católica, o personalismo
é um corretivo necessário ao menos para a neo-escolástica. A
teologia existencial tornou-se corretivo, entre os protestantes, para
o liberalismo cultural dos séculos XIX e XX. Entretanto limitam
a religião a uma privatização e a privam, de certo modo, do mundo
socioeconômico-político. Além disso,, assumem atitude de crítica
unilateralmente negativa para com a evolução técnico-científica.
Em resumo, esta tendência geralmente ocorre entre crentes
que praticam a filosofia da religião sob o sinal da concordância.
Com diferentes estratégias, querem os representantes dessa
tendência mostrar a profunda solidariedade entre razão e religião.

c) Descrição empírica e análise das diferentes concepções


e instituições religiosas

Com Max Weber, E. Durkheim, Lévy-Bruhl e L. Strauss for­


maram-se grupos que estudam as religiões do ponto de vista
histórico, psicológico, sociológico, da análise da linguagem, enfim,
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 17

mediante pesquisas empíricas. Contentam-se cóm descrições e


análises detectando as estruturas comuns em fenômenos dife­
rentes. Os representantes desta corrente geralmente interpretam
o mundo atual como resultado do processo de secularização, con-
tentando-se com afirmações meramente formais sobre o fenôme­
no da religião.

1.4. Tarefas da filosofia da religião

A filosofia da religião atualmente se encontra em situação


precária dentro do conjunto. Não deve ser identificada simples­
mente com religião filosófica ou com filosofia religiosa. Trata-se
de indagação filosófica que usa métodos filosóficos com objetivos
filosóficos. Mas não é qualquer filosofia capaz de criticar correta­
mente o mundo humano da fé e da religião. As filosofias que
pretendem simplesmente explicar a religião ou reduzi-la a ele­
mento não religioso como libido ou situação socioeconômica alie­
nada não servem, como veremos adiante. Da mesma maneira, não
servem para estabelecer corretamente o sentido da religião hoje
as filosofias que se põem diretam ente a serviço da fé (são
Boaventura, santo Tomás de Aquino), pois não se trata da simples
recuperação de certos dogmas, p. ex., a transcendência do Abso­
luto, pela filosofia. Cabe investigar se o fenômeno religioso é ori­
ginário e irredutível no homem, e se leva, por sua natureza, a um
termo supremo chamado Deus.
Na questão, se a religião é fenômeno originário no homem,
encontramos um afrontamento de posições: a) uma série de teorias
que tendem a reduzir o religioso como reflexo de situação defi­
ciente: ignorância,, impotência etc., negam sua originalidade e a
irredutibilidade. (Assim Feuerbach vê a religião como alienação,
Marx como ópio do povo, Nietzsche como debilidade gregária e
Freud como sobrevivência nociva e patológica da imagem paterna
na idéia de Deus;jb) outras filosofias reduzem o fenômeno religioso
a uma perspectiva exclusivamente racional, seja moral (Kant), seja
especulativa (Spinosa, Hegel); c) entretanto a fenoinenologia da
religião (R. Otto, M. Scheler, M. Eliade e outros) reconhece e co­
meça a descrever as irredutíveis estruturas do sagrado como
contraposto ao profano.
18 INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Há razões para ^acreditar que muitas formas tradicionais de


religião desapareçam. Com isso, todavia, não se pode concluir o
desaparecimento da religião como tal. Trata-se, antes, de exami­
nar a possibilidade e a necessidade de uma filosofia da religião no
mundo marcado pelo iluminismo e a conseqüente secularização.
Essa tentativa terá a função de esclarecer racionalmente a reli­
gião, que perdeu sua evidência e, ao mesmo tempo, a insuficiência
das tradicionais provas da existência de Deus como da declaração
do “deus está morto”. Hoje a filosofia da religião deverá formular
questões que angustiam os indivíduos, as igrejas e a sociedade.
Como? Quais seriam tais questões?
No Ocidente, marcado profundamente pela religião e cultura
judaico-cristã, parece haver três questões fundamentais:

a) Entre a tradição religiosa e as experiências da intersubje-


tividade crítica moderna surgiu um abismo profundo. O processo
do iluminismo age de maneira dialética sobre a tradição religio­
sa: destrói e conserva. Destrói, por exemplo, certas concepções de
Deus como o deus que sanciona instituições e regimes políticos
indefensáveis por ser indigno de nossa fé. Mas o processo do
iluminismo também pode purificar o conceito de Deus e conservar
a autêntica tradição da fé. Assim a situação de crise pode rever­
ter em nova oportunidade.

b) A relação do cristianismo e das igrejas para com as religiões


não cristãs modificou-se profundamente. Também no Ocidente, o
cristianismo deixa de ser a religião que integra a sociedade glo­
bal. Os pagãos não mais estão fora da sociedade e o cristianismo
carece da evidência racional de ser a única verdadeira religião.
Tomou-se uma religião ao lado de muitas outras. A tentativa de
interpretar todas as religiões não cristãs simplesmente como cifras
de uma fé filosófica ou declarar os não cristãos de cristãos anô­
nimos não satisfaz.

c) O lugar e a função da religião e das igrejas no novo mundo


político-social modificaram-se radicalmente. O iluminismo, que
declara a liberdade de todos como princípio da ética e da política
e exige instituições que favoreçam e garantam a liberdade e o di­
reito de todos os homens, questiona radicalmente a tradição antiga
e medieval. Neste mundo, a filosofia da religião tem papel en­
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO 19

quanto dura a exigência de conhecer criticamente a verdade reli­


giosa.
Dentro da perspectiva delineada, propomo-nos estudar o fun­
damento antropológico da religião para, depois, examinar seu
conteúdo formal e material. Primeiro examinaremos a alternati­
va razão e/ou fé ou fé e/ou razão, partindo de questões clássicas
propostas por Descartes, Pascal, Kant, Hegel e filósofos como
Wittgenstein, Popper e outros. Por fim, indagaremos criticamente
posições do ateísmo como o de Feuerbach, Marx, Freud, Nietzsche
e Sartre.

Bibliografia
FEUERBACH, Ludwig, A essência da religião, Campinas, Papirus, 198S.
___________, A essência do cristianismo, Campinas, Papirus, 1988.
HEGEL, G. W. F., Enzyklop&die der philosophischen Wissenschaften, Frankfurt a. M.,
Hamburg, Suhrkamp, 1970 (v. 3).
___________, Princípios da filosofia do direito, Lisboa, Guimarães, 1986.
NEWMAN, John Henry, Grammar o f assent, New York, Doubleday & Coitpany, 1955.
RAHNER, Karl, Teologia e antropologia, São Paulo, Paulinas, 1969.
TILLICH, Paul, Beligionsphilosophie, Stuttgart, Kohlhammer, 1962.
WELTE, Bemhard, Religionsphilophie, Freiburg i. Br., Herder, 1978.
STACCONE, Giuseppe, Filosofia da religião, Petrópolis, Vozes, 1989.
2

DESCARTES E PASCAL:
A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

A atitude fundamental do homem para com Deus e, com isso,


a base antropológica da religião é a fé. É conhecido o famoso dito
do grande poeta alemão W. Goethe segundo o qual “a história é
combate entre a fé e a incredulidade”. Para muitos, esse combate
está chegando a seu fim. Julgam que a fé está derrotada, que a
discussão sobre ela até já se tom ou irrelevante e que Hegel e
Nietzsche descreveram bem a nossa situação social e espiritual
dizendo que “Deus está morto”. Parece um acaso sempre mais raro
que um ateu inquieto não descanse enquanto seu coração não
repousar em Deus.
Hoje se fala muito em crise de fé. Aos ouvidos de muitos a
palavra crise ecoa como ruína. Entretanto o sentido original da
palavra “crise” significa situação de decisão. Em outras palavras,
^ parece que a fé perdeu sua evidência racional. Mas uma crise pode
conduzir tanto à ruína como transformar-se em kairós ou renasci­
mento. Uma crise de fé pode levar à renovação e ao aprofundamento
de sua compreensão.
Hoje verificamos que a época das luzes não era sem pressupos-
tos^Era animada pela fé quase ilimitada na razão e na liberdade,
fé que hoje nos parece um pouco ingênua. |Aprópria liberdade do
homem tomou-se problemática. Sabemos que também a razão
nunca começa no ponto zeroÍA própria pergunta pela razão e pela
liberdade é, historicamente, condicionada. Podemos perguntar: é
realmente racional a confiança ilimitada na razão? ^
O homem passa, hoje, por nova experiência de sua finitude. A
atitude do neopositivismo e do racionalismo tradicional já perde­
ram sua evidência de convencer. Já não se podem minimizar
questões metafísicas e religiosas. ^Como pode o homem saber de
seus limites se não discerne algo para além de si mesmo? J
22 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

2.1. Contexto histórico

Aj á clássica questão da modernidade, “ou fé ou razão”, tem longo


contexto histórico. Religião e filosofia da religião não se situam
fora do tempo. A fé se insere no contexto histórico em que pensa­
mos. Nossa atual situação é determinada pela racionalidade
crítica e pela razão científica.
A situação filosófica costuma desenvolver-se em dois planos.
Por um lado, confrontamo-nos com as grandes idéias filosóficas
formuladas em nosso tempo. Tais idéias só se tomam relevantes
se forem significativas. Por outro lado, nas formulações filosóficas
certos elementos da consciência reinante adquirem uma tônica.
Estabelece-se interação entre a consciência dominante e a filoso­
fia. Formam-se modelos de convencimento, reivindicando cada
qual a interpretação da existência humana global. Como visão do
mundo, as idéias filosóficas têm dupla generalidade: a) determi­
nam a consciência geral; b) determinam-na de tal modo que, em
vista do mundo no qual vivem, nele se orientam.
Parece que nunca se consegue separar a filosofia elaborada
rigorosamente da filosofia como cosmovisão ou ideologia. Trata-se
de dois aspectos importantes em nossa situação histórica quando
nos ocupamos filosoficamente da religião. Para a finalidade práti­
ca podemos discernir as idéias filosóficas de nosso tempo em dois
grandes grupos os quais eliminam o espaço religioso. De um lado
estão as tendências de idéias orientadas para as modernas ciên­
cias empíricas e exatas. É a filosofia que tende a ser filosofia da
ciência. Neste grupo situa-se tudo o que podemos designar de
neopositivismo e grande parte da chamada filosofia lingüística e
do racionalismo crítico. De outro está a tendência que se ocupa com
a crítica da sociedade. A este segundo grupo pertencem a Escola de
Frankfurt e o Marxismo. Ambas as tendências têm em comum
certo racionalismo que tende a excluir tudo que extrapola o crivo
crítico da razão. Como se chegou a esta situação?
A filosofia moderna ocidental está profundamente marcada
pelo cristianismo, de modo especial pelo catolicismo. No século
XTV, a filosofia escoláscica entrou em decadência para ceder lugar
a nova racionalidade, prática e voltada para a transformação
terrestre. Com o Humanismo e o Eenascimento rompe-se o vínculo
com o velho mundo feudal e cria-se novo método de investigação e
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 23

conhecimento que se apóia unicamente na razão e na experimen­


tação científica. Com a superação do recurso às autoridades
questiona-se não só o Império, mas também Igreja católica en­
quanto instituição organizadora da vida social, política e ideológica
do homem medieval. Para a Igreja católica houve três grandes
catástrofes no campo da fé: o cisma entre Oriente-Ocidente (1054);
a Reforma (século XVI) e a condenação de Galileu. Desde então
aprofundou-se o abismo entre a Igreja e a cultura moderna. Quan­
to ao mau uso da Bíblia, Descartes escrevera de maneira magis­
tral: “É usar a Bíblia para um fim para o qual Deus não a deu e,
portan-to, abusar dela quando dela se quer extrair o conhecimento
de verdades que só pertencem às ciências humanas e não servem
para a nossa salvação” (carta de 1638).
A filosofia moderna substitui o tema Deus, central na filosofia
medieval, pelo tema homem. Com Descartes realiza-se um retomo
ao modo de filosofar dos antigos filósofos gregos, que ignoravam
qualquer revelação divina e investigavam a realidade do mundo só
pela luz natural da razão.

2.2.^bescartes: Penso, logo sou

Muitas vezes, hoje, duvida-se da existência de Deus. Não só


isso. Desde os tempos longínquos, de modo especial nos tempos
modernos, o homem busca certeza absoluta para sua própria
existência. Onde encontrá-la?
A certeza matemática, para questões de toda ordem, tomou-se
o ideal para filósofos. Essa busca, primeiro tentou-a de maneira
exemplar Rerié Descartes (1596-1650). Descartes desconfiou da
filosofia destituída de base científica (Copémico, Kepler e Galileu).
No Discurso do método procurou novos caminhos para encontrar
certeza absoluta. Obrigou-nos, através de sua filosofia, a refletir
criticamente sobre a questão da existência de Deus, a relação entre
fé e razão, entre teologia, filosofia e ciência. Tentou ler o livro do
mundo e do próprio éu. Escreveu Regras para a direção do espírito
com o objetivo de afastar tudo que impede uma evidência matemá­
tica. Esse ideal já está nas primeiras regras: “Os estudos devem ter
por fim dar ao espírito uma direção que lhe permita proferir juízos
sólidos e verdadeiros sobre tudo o que se lhe apresenta” (regra 1).
24 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

A regra 2 diz: “Os objetos de que nos devemos ocupar são apenas
aqueles que os nossos espíritos parecem conseguir conhecer de
maneira certa e indubitável”.
De acordo com esta regra, o princípio mais radical deve ser
evidente por si mesmo, isto é, intuitivo. A intuição revela a idéia
como clara e distinta, de modo a resistir a qualquer dúvida. A
intuição é “um conceito da mente pura e atenta, tão claro e distinto
que daquilo que se entende não possa ficar absolutamente nenhu­
ma dúvida”. A idéia dara é “uma percepção presente e aberta à
atenção da mente” como coisa que está diante dos olhos. A idéia
distinta “é aquela que, sendo clara, de tal modo está separada e
depurada de todas as outras, que não encerra em si absolutamente
nada mais do que aquilo que é claro”. A idéia clara e distinta por
excelência é aquela que resiste a toda a dúvida. Surge, assim, o
problema da dúvida universal e metódica.
A dúvida de fato não se estende objetivamente a tudo porque
o cogito resiste ao esforço universal de dúvida, evidenciando-se
como fundamento primordial:

“Notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era
necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. £ notando que esta
verdade, penso, logo sou, era tão firme e tão segura que as mais extrava­
gantes suposições dos céticos não podiam abalá-la, julgava que podia
aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que busca­
va” (Discurso do método, 4).

Desta forma o cogito-sum, ou seja, o penso como englobando


também necessariamente a realidade do sujeito pensante, tomou-
se o protótipo da idéia clara e distinta. O cogito inclui tudo o que
pode ser pensado.
Prescindindo das tradições, segundo ele, o indivíduo singular
determina o que pode saber realmente com juízos fundados.
Descartes procedeu como se a história do pensamento começasse
com ele. Tentou uma fundamentação radicalmente nova da filoso­
fia e do saber humano em geral. A teoria passou a ser meio para
realizar a vida, não mais o objetivo último da vida. Segundo ele, as
características do conhecimento humano são: intuitivo, inato e
independente das coisas.
Depois de examinar o mundo pela experiência prática, Descar­
tes voltou-se ao próprio eu, prescindindo da tradição e da autori­
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A PÉ 25

dade para começar tudo ab ovo. Terminou com o magister dixit.


Examinou tudo com a própria razão. Rompeu com o passado, ou
seja, com Aristóteles, Tomás de Aquino, como diz na primeira
regra do discurso. Depois de duvidar de toda a autoridade tradi­
cional resolveu

“jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse


evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação
e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse
tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma
ocasião de pô-lo em dúvida” (Discurso do método, 2).

Descartes usara a dúvida como caminho paira encontrar fun­


damento sólido e inabalável. Esquematizou este caminho no
Discurso do método e o precisou melhor nas Meditações (1641)
quanto às provas da existência de Deus e à essência da alma
humana de maneira sistemática.
De que se pode duvidar, segundo Descartes?
Nada do que Descartes aprendera o satisfaz. Desconfia do que
lê nos livros, dos dados dos sentidos porque são enganosos como o
mostram, de maneira contundente, a ilusão ótica, as alucinações
e os sonhos. Apenas a lógica (estudara o Órganon de Aristóteles)
e a matemática proporcionam conhecimento seguro. Entretanto
são ciências formais que não nos levam a conhecer a realidade. No
Discurso do método diz que

“da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais
excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto,
nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute e por
conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presun­
ção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas
opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre
uma e mesma matéria, sem que jamais possa existir mais de uma que
seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente
verossímil” (1- Parte).

Partindo da desconfiança universal, Descartes adota o proce­


dimento conhecido por dúvida metódica, ou seja, de não aceitar
nada que não ofereça garantia absoluta de verdade. Procura um
método e um critério da verdade absoluta. Por isso, na segunda
parte do Discurso, enuncia as quatro regras:
26 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

a) o critério geral de verdade é a evidência e suas duas


condições: a clareza e a distinção;
b) “dividir cada uma das dificuldades que eu examino em
parcelas quantas possíveis e quantas necessárias são para
melhor resolvê-las”. É a chamada regra da análise;
c) “ordenar meus pensamentos, começando pelos objetos mais
simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como
por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo
até uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos
outros”. É a chamada regra da síntese;
d) “fazer em toda a parte enumerações tão completas e revisões
tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”. E a chamada
regra de comprovação.
Descartes ^ssumiu a dúvida não para desesperar, mas obter
clareza: a) duvidou dos sentidos; b) duvidou do que nos acontece em
estado de sono e acordado, pois tais estados não se distinguem
essencialmente; c) duvidou de Deus, pois poderia haver um espí­
rito maligno enganador. Não poderia ser tudo uma simples ilusão?
Mas uma dúvida tão radical não conduz ao ceticismo?
Descartes reduziu todos os problemas a problemas de tipo
matemático. Procedeu de maneira muito diferente da de S.
Boaventura que, na Idade Média, reduzira todos os problemas a
problemas de tipo teológico. Para Descartes, é verdade o que
conheço clara e distintamente.
Descartes procura um ponto arquimédico de apoio. Esse ponto
não pode ser a realidade empírica, pois os sentidos enganam-nos.
Na dúvida radical encontra o apoio no “penso, logo existo”. Nas
Meditações diz que “se Deus me engana, eu sou enquanto penso”.
Surge a clareza e a distinção. Enquanto penso, sou. O fato da
própria existência e não só do pensar é o fundamento da certeza.
A partir daí repropõe a questão do eu, de Deus e das coisas
materiais. Para encontrar Deus, não parte do mundo, mas de si
mesmo. Primeiro, no esquema causai: causa-efeito, com as catego­
rias platônicas de perfeição e imperfeição. Deus é a causa de toda
a perfeição. A idéia de Deus é inatano homem. Depois, de maneira
ontológica, vai da idéia à existência. Para determinar a existência
de Deus é preciso saber antes o que é Deus, a essência divina.
Conhecemos de maneria clara e distinta que Deus é o ser mais
perfeito e que de sua perfeição também faz parte sua existência.
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 27

Para conhecer o que Deus é, não se precisa raciocinar, pois é idéia


inata. Por isso com a idéia platônica da perfeição de Deus —
intuição racional — também é dada sua existência. E como temos
certeza de sua existência?
Quando Descartes trata da demonstração de Deus deve ter-se
presente que, em seu método, para saber se uma coisa existe, é
necessário que antes se saiba o que tal coisa é. Se não se soubesse
o que Deus é, jamais se poderia demonstrar sua existência. Em
outras palavras, a questão da essência passoua preceder a questão
da existência em Descartes. A existência de algo deduz-se a partir
da idéia clara e distinta do que algo é, ou seja, da essência. Assim
para demonstrar a existência de Deus, o ponto de partida será
necessariamente o conhecimento da essência divina. Para conhe­
cer o que Deus é, todavia, não precisamos de discurso racional
algum, pois dele temos idéia clara e distinta em nós.
Como nasce a idéia clara e distinta de Deus em mim?

Na terceira das Meditações escreve:


“E certamente não se deve achar estranho que Deus, ao me criar, haja
posto em mim esta idéia para ser como que a marca do operário impressa
em sua obra: e não é tampouco necessário que essa marca seja algo
diferente da própria obra. Mas pelo simples fato de Deus me ter criado,
é bastante crível que ele, de algum modo, me tenha produzido à sua
imagem e semelhança e que eu conceba essa semelhança (na qual a idéia
de Deus se acha contida) por meio da mesma faculdade pela qual me
concebo a mim próprio (...) Esse mesmo Deus, digo eu, do qual existe uma
idéia em mim, isto é, que possui todas essas altas perfeições de que nosso
espírito pode possuir alguma idéia, sem, no entanto, compreendê-las a
todas, que não é sujeito a carência alguma e que nada tem de todas as
coisas que assinalam alguma imperfeição” (na39).
Na quarta das Meditações prossegue:
“E quando considero que duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e
dependente, a idéia de um ser completo e independente, ou seja, de Deus
apresenta-se a meu espírito com igual distinção e clareza; e do simples
fato de que essa idéia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que
possuo esta idéia, concluo tão evidentemente a existência de Deus e que
a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha
vida, que não penso que o espírito humano possa conhecer algo com maior
evidência e clareza” (n22).
28 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

A existência da idéia de Deus no pensamento não pode ser


explicada a não ser pela impressão direta de Deus.

2.2.1. Provas da existência de Deus

As provas cartesianas da existência de Deus são, a rigor, três.


A primeira tem como ponto de partida a idéia de Deus (aspecto
existencial) e conclui que a realidade objetiva da idéia de Deus
exige como causa a realidade formal que pensa, isto é, Deus. A
segunda demonstração parte do eu pensante que tem a idéia de
Deus e conclui que o ser que tem a idéia de Deus e não é Deus, tem
que ser causado por Deus. A tèrceira pr^va parte da idéia de Deus
(aspecto essencial) e conclui que o ser infinitamente perfeito
contém em si a existência que é uma perfeição. As duas primeiras
provas podem ser chamadas a posteriori e a última a priori ou a
simultâneo. Segundo Descartes, a idéia de Deus é clara e distinta,
melhor ainda, é a mais clara e mais distinta de todas eis idéias.
Como obtemos o conhecimento da essência divina?
O conhecimento da essência divina obtemo-lo aplicando a intuição
racional à idéia clara e distinta, de infinito e perfeição, que representa
fielmente a natureza de Deus. Para entender este método é preciso
saber que o cogito não dá apenas a existência do eu sem determinação
essencial, mas dá a existência do eu como ser pensante, como
substância que pensa. Este ser pensante contém em si pluralidade de
idéias. Entre elas está a idéia de Deus. Partindo da intuição racional,
única norma segura de verdade, e da idéia de Deus, poder-se-á
concluir, segundo Descartes, efetivamente que Deus existe. Trata de
diversas maneiras da questão da existência de Deus em quatro
escritos: Discurso do método (4®parte), Meditações (2re4r),Princípios
de filosofia (l9 parte) e Resposta às segundas objeções.
Citemos um exemplo dos Princípios: “Pode-se demonstrar que
há um Deus, apenas porque a necessidade de ser ou existir está
compreendida em a noção que temos dele” (n9 14). Pouco mais
adiante: “Que embora não compreendamos tudo o que está em
Deus, não há todavia nada que não conheçamos tão claramente
como as suas perfeições” (na 19). E ainda: “Que não sendo nós a
causa é Deus, e que, por conseqüência, há um Deus” (20). Deus é,
no fundo, o princípio que garante a interpretação do mundo.
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 29

O caminho cartesiano vai do cogito a Deus, a verdade objetiva.


Pelo fato de eu duvidar, sou imperfeito e limitado, por que conhecer
é perfeição maior do que duvidar, segundo Descartes. Desta
maneira não posso ser a causa de minha própria imperfeição de
ser, pois se eu mesmo fosse a causa, eu me daria todas as perfeições
contidas na idéia de Deus, que está em mim. Portanto, a causa de
minha imperfeição é um ser perfeito, Deus. Assim Descartes
conclui a prova da existência de Deus do cogito, no qual o homem
tem a idéia de Deus. Este ser, que é causa de si mesmo, é
perfeitíssimo. O eu do ser imperfeito remete a uma causa perfeita.
O argumento ontológico pode resumir-se da seguinte forma.
Considerando que dentro de mim há a idéia inata de Deus devo
concluir que não fui eu que o criei, pois sou ser finito. Por outro lado,
não posso deduzi-la do mundo exterior, que também é finito. Este não
pode ser causa do infinito. Descartes conclui por aí que a idéia de Deus
ou do Ser infinito, que está em nós, deve ter por causa o próprio Deus.
Portanto, Deus existe. A idéia inata é como a marca que o operário ou
artesão imprime em sua obra. Aqui Descartes, de certa forma, retoma
o argumento ontológico de santo Anselmo de Cantuária: “Deus quo
maius cogitari non possit”. Admite que é impossível pensar a Deus
como ser perfeitíssimo sem pensá-lo necessariamente existente. Deus
existe em virtude de sua própria essência.
As provas da existência de Deus, segundo Descartes, baseiam-
se na idéia inata, ou ainda partem da existência do eu pensante.
Como a existência de Deus marca a passagem da evidência
imediata do cogito para a verdade objetiva, a partir da prova da
existência de Deus prova-se a existência do mundo. Deus é a fonte
criadora e o fundamento de toda a verdade.

2.2.2. Qual a idéia que Descartes tem de Deus?

Nas Meditações escreve:

“Com o nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável,


independente, onisciente, onipotente, e pela qual eu mesmo e todas as
demais coisas que existem (se é verdade que algumas existem) temos sido
criados e produzidos” .

Se Deus fosse espírito enganador, não poderia ser perfeito, diz


Descartes. Engano é sinal de imperfeição. A idéia inata de Deus
30 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

não deriva, pois, do mundo sensível. Chega-se à certeza do mundo


a partir da certeza de Deus. Ele garante a confiança na razão
criada. O espírito humano distingue a essência das coisas. Essas
são determinadas pela extensão enquanto o espírito o é pelo
pensamento.
É, então, a razão base da fé?
O que permaneceu não é o sistema cartesiano, mas sua atitude
científica, seu estilo de pensar e seu método. A revolução cartesiana
consiste essencialmente em ter ele transferido o lugar da certeza
original de Deus para o homem, para a razão humana. Parte-se,
agora, da certeza de si próprio para a certeza de Deus. O teocentrismo
medieval passa a ser substituído pelojmtropocentrismo. Por isso
Descartes é considerado o pai do pensamento moderno. Salienta o
sujeito em relação ao objeto, a consciência em relação ao ser, a
liberdade pessoal em relação à ordem cósmica. Com ele inicia a
moderna antropologia filosófica e a teoria do conhecimento como
disciplina filosófica autônoma.
A partir da certeza de si mesmo, Descartes tenta fundar a fé
como fundamento filosófico da religião cristã. Mas não quis ser
reformador religioso. É, em primeiro lugar, metafísico e não físico.
Sempre aceitou a fé na revelação cristã. Nos Princípios chega a
afirmar: “E que é preciso crer em tudo o que Deus revelou, embora
ele esteja acima do alcance do nosso espírito” (ne 25). Mas, sendo
cristão, Descartes não elaborou uma filosofia cristã. Em sua
filosofia, Jesus Cristo não ocupa lugar importante. Faz filosofia
como cristão. E como relaciona Descartes fé e razão, análise
racional e certeza da fé cristã?
A fé constitui exceção das regras gerais da evidência. Apresen­
ta a certeza maior, pois não é ato de intelecto cognoscente, mas da
vontade. Assim, na filosofia de Descartes, cabe distinguir:
a) capacidade de conhecimento (luz natural da razão e divina);
b) não há um reino específico da filosofia cristã;
c) contudo não há verdades contraditórias entre filosofia e
revelação cristã.

.2.2.3. Crítica à crítica de Descartes

Descartes brotou do ambiente renascentista como espírito


pujante que soube sintetizar os problemas mais candentes que
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 31

preocupavam os homens de seu tempo. Influenciado pelo


Renascimento e estendendo raízes à Idade Média conseguiu recu­
perar o interesse pela metafísica. Sua exigência de rigorj.de
clareza e disciplina metódica abriram novas e fecundas perspecti­
vas para a filosofia posterior.
Sem dúvida, Descartes era liberal. Mas seu método é rigoroso
e tenta superar o ceticismo em busca de nova certeza, também
sobre Deus. Não aceita a teoria da dupla verdade. Tenta harmoni­
zar fé e razão.
Descartes tem algumas coisas em comum com a tradição
agostiniana como, por exemplo, a intuição, idéias inatas etc. O a
priori da fórmulapenso, logo sou é a intuição ou captação imediata
do cogito, ou, a intuição do ser no pensar. Em Regras diz:

“No que respeita aos objetos considerados, não é o que o outro pensa ou
o que nós próprios conjeturamos que é preciso procurar, mas o que
podemos ver por intuição com clareza e evidência, ou o que podemos
deduzir com certeza: nem é de outro modo, com efeito, que se adquire a
ciência” (n. 3).

Em Agostinho já encontramos o recurso à dúvida e ao cogito e


o estudo do eu: “si enim fallor, sum” (Cidade de Deus). Entretanto
a concepção da filosofia de Descartes difere muito daquela de
Agostinho. Este vê filosofia e teologia numa grande unidade.
Descartes distingue claramente fé e razão, filosofia e teologia.
Ambos os pensadores distam não só no tempo, mas também na
filosofia.
Descartes aprendeu a filosofia tomista no colégio dos jesuítas
em La Flèche. Certamente sofreu alguma influência. Em carta de
1640 cita expressamente Tomás de Aquino. Assim mesmo, na
questão da relação entre fé e razão há diferenças profundas. Em
Tomás de Aquino, a fé necessita de fundamentação na penetração
racional sólida; o ato de fé, apesar das verdades não evidentes, é
ato da razão cognoscente; o conhecimento racional não pode ser
limitado de maneira racionalista ou matemático. Mas, essencial­
mente, na questão da fé e da razão, há coincidências com a teoria
tomista dos planos.
Descartes distinguiu a coisa pensante e a coisa extensa. Disso
decorrem conseqüências para a relação corpo-alma. O corpo é a
máquina. A alma é espírito, constituído pelo pensamentp,,como
32 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A PÉ

consciência, como eu. É objeto da filosofia. Pelo espírito, capaz de


pensar, o homem é livre. Corpo e alma são distintos e separáveis.
Descartes acentua a dualidade, que tem como conseqüência, na
questão do conhecimento, a dualidade sujeito-objeto. Por isso, ao
tentar demonstrar a existência de Deus não parte do cosmos, e sim
do próprio sujeito. No argumento causai, o cogito não depende do
conhecimento de Deus, mas vice-versa. Quanto ao argumento
ontológico hoje temos sérias dúvidas, pois se se parte de uma
essência perfeita (idéia inata) dificilmente é necessário chegar à
existência. Desde Kant objeta-se que do conceito de Deus apenas
se pode concluir sua possibilidade e não sua realidade. Tal argu­
mento só podia convencer no horizonte de pressupostos de um
realismo de idéias, como realidades autônomas. Para Descartes, a
idéia certamente não era vazia.
Dizíamos que Descartes reconhece certa autonomia da razão
em relação à fé. Esta, em seu tempo, passa a basear-se menos na
autoridade (Bíblia, magistério, concüios, papas etc.) por sua in­
fluência. Para chegar à clareza tinha que se recorrer à razão, do­
ravante, com todo o rigor lógico. O saber científico adquiriu lugar
próprio em relação à teologia. Se outrora tinha-se que justificar a
razão ante a fé, agora ocorre o inverso. Rompe-se a síntese entre fé
e razão, nos tempos modernos. Nasce o iluminismo moderno.
Segundo Kant, o homem, pelo uso de sua razão, entra em sua
maioridade. No século XVII, passa-se, assim, a odiar a ordem, a
hierarquia, a autoridade, a disciplina, a Igreja, os dogmas de fé etc.
Entretanto podemos indagar ao próprio Descartes: se o ho­
mem, a partir da própria consciência, pode erigir um fundamento
tão sólido, um edifício, uma ciência universal, para viver, por que
ainda perguntar para além? Por que não silenciaria a questão da
fé a fim de se libertar da autoridade e viver apenas conforme sua
razão? Enfim, por que ainda ser cristão?
Se o homem pode conhecer a existência de Deus pelo caminho
da razão, por que ainda iria além desse Deus dos filósofos, que lhe
pode ser comum com os não cristãos, à procura do Deus de Abraão,
de Isaac e de Jacó, o Pai de Jesus Cristo? Por que o homem racional
ainda recorreria aos mistérios da fé, se já conhece o essencial por
si mesmo? Não carece a fé de clareza? Por que Descartes, como
conseqüência de seu próprio método, deixouintocável a autoridade
da Igreja, do Estado, da fé, dos dogmas? Na verdade, a fé, em seu
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 33

sistema filosófico, não é um apêndice perfeitamente dispensável?


Giuseppe Staccone afirma que na filosofia de Descartes “encontra-
se a raiz do ateísmo moderno” (p. 72).
Muitas vezes Descartes inicia dizendo, como no Discurso do
método, que

“o bom senso é a coisa do mundo mais bem partilhada, pois cada qual pensa
estar tão bem provido dele, que até os que são mais difíceis de contentar em
qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm”.

Caberia indagar se o homem pode ser reduzido à razão? Na


consciência, além do pensar não há também querer, sentir, fanta­
sia, emoções e paixões, com sua realidade própria?
Tem-se a impressão de que Descartes praticou mais em sua
filosofia do que aquilo sobre que refletiu teoricamente. Pressupõe,
desde o começo, que a dúvida se funda na verdade? Não aceitou sua
existência já antes de reconhecê-la pela dúvida? Não acreditava
ele na existência de Deus antes de tentar demonstrá-la? Não
praticou ele, na sua dúvida, extraordinária confiança na realida­
de? Não fez isso por estar situado e protegido pela fé cristã? Não foi,
na prática, a fé o pressuposto da razão? É o Deus cartesiano da
razão o Deus da religião?
Em resumo, com Descartes, nos tempos modernos, a razão
adquire nova posição perante a fé, a verdade natural perante a
verdade sobrenatural, a filosofia em relação à teologia. Funda­
menta esta autonomia da razão na consciência do sujeito. Deixou,
todavia, questões fundamentais sem resposta.

2.3. P a scal: cre d o , u t in telligam

Descartes buscara a certeza da razão. Mas a certeza científica


é certeza para a vida? Há diferença entre fé e certeza científica?
Com essas e outras perguntas, na luta entre o homo mathematicus
e o homo religiosus, Blaise Pascal (1623-1662) se defrontou cedo.

2.3.1. Pascal e Descartes

Pascal escreveu obras importantes no campo da ciência e da


matemática. Mas, em geral, é conhecido no mundo inteiro através
34 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

de seus Pensées. Esta obra surgiu de fragmentos escritos com o


objeto de elaborar uma grande apologia do cristianismo contra os
incrédulos. Não se dirige à razão para demonstrar e convencer,
mas ao coração. Nesta obra, cujo plano não se conseguiu reconstituir,
quer mostrar ao ateu e libertino o caminho do conhecimento de si
mesmo e de sua miséria à necessidade psicológica de Deus: “A
ordem do pensamento é de começar por si, e pelo seu autor e sua
finalidade” (n. 146). Examina os fatos para formular o problema e,
para resolvê-lo, propõe hipóteses.
Pascal era contemporâneo e conterrâneo de Descartes. Entre
eles há muitas semelhanças e diferenças. Ambos eram matemáti­
cos. Pascal já com 16 anos de idade se destacara entre os melhores
matemáticos de seu tempo. Cedo também se salientou na física.
Com 19 anos, como engenheiro, inventou e construiu a primeira
máquina de calcular que, de certa forma, não deixa de ser um
precursor de nossos atuais computadores.
Descartes é o homem do método na matemática, na filosofia e
na física. Estudara com os jesuítas em La Flèche. Tentou orientar
sua vida na ciência. Pascal é o homem dopathos. Nunca frenqüentou
escola. Orienta sua ciência na vida concreta. Interessa-se por
questões difíceis. Enquanto Descartes é racionalista, Pascal não o
é. Para ele não basta a razão. Indaga por conhecimento intuitivo,
conhecimento rápido e imediato. Não é teórico sistemático, mas
testemunho. Em seu estilo literário une clareza e precisão com
momentos de rara poesia. Ao lado da razão, segundo ele, há
também o sentimento. Tanto o sentimento como a razão, cada qual
tem seu limite. Nos Pensées diz:

“Os que estão acostumados a julgar pelo sentimento nada compreendem


das coisas do raciocínio, pois querem logo chegar a perceber com um golpe
de vista e não têm o hábito de procurar os princípios. E outros, pelo
contrário, que estão habituados a raciocinar por princípios, nada compre­
endem das coisas do sentimento, procurando nelas princípios e não
podendo vê-las de golpe” (n. 3).
2.3.2. Espírito geométrico e espírito de finura

Segundo Pascal, espírito e razão são, de um lado, conhecimento


por conclusões, mediado, enquanto o sentimento é conhecimento
intuitivo imediato. Claro, sentimento aqui não significa sentimen-
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 35

talismo. Pascal opõe o coração à razão, mas com a palavra coração


não designa simplesmente o irracional-emocional em oposição ao
lógico-racional. A palavra coração designa o núcleo ou o centro da
pessoa humana. Coração é o ponto de partida do dinamismo, o
espírito humano não apenas especulativo, mas como amante. Só
assim se compreende a muito citada frase: “O coração tem suas
razões que a própria razão desconhece; percebe-se isso em mil
coisas” (n. 277). Esta é, pois, a lógica do coração.
Pascal relativiza a certeza puramente racional e matemática:
“Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo
coração” (n. 282). Com o coração, de maneira intuitiva imediata,
conhecemos os primeiros princípios: há espaço, tempo, movimen­
to, números. Se a razão não o consegue demonstrar, é inútil
combatê-lo. Não pressupõe a própria razão algo? Pascal prossegue:

“E sobre esses conhecimentos do coração e do instinto e que a razão deve


apoiar-se e basear todo o seu discurso. O coração sente que há três dimen­
sões no espaço e que os números são infinitos; e a razão demonstra, em
seguida, que não há dois números quadrados dos quais um seja o dobro
do outro. Os princípios se sentem, as proposições se concluem” (n. 282).

Esclareceram-se os limites da razão?

“E é tão inútil e ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus
princípios primeiros, para concordar com eles, quanto seria ridículo que
o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela
demonstra, para recebê-los” (n. 282).

Desde logo Pascal distingue o espírito de geometria e o espírito


de finura:

“O que faz, portanto, que certos espíritos sutis não sejam geômetras é que
eles não podem de todo voltar-se para os princípios da geometria; mas o
que faz com que alguns geômetras não sejam sutis, é que não vêem o que
está na frente deles, e que, estando acostumados aos princípios nítidos e
grosseiros da geometria e a só raciocinar degois de terem visto bem e bem
manejado os seus princípios, perdem-se nas coisas da finura, onde os
princípios não se deixam manejar de igual modo. São apenas entrevistos;
mais pressentidos do que vistos; é preciso esforço infinito para tomá-los
sensíveis a quem não os sente por si próprios: são coisas de tal maneira
delicadas e tão numerosas, que é necessário um sentido muito delicado
36 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

e muito preciso para senti-las, e para julgar reta e justamente de confor­


midade com esse sentimento, sem poder o mais das vezes demonstrá-las
em ordem, como na geometria, porque não lhes possuímos, do mesmo
modo, os princípios, e tentá-lo seria um não acabar mais. E preciso, num
instante, ver a coisa num só golpe de vista, e não pela marcha do
raciocínio, ao menos até certo grau” (n. 1).

Descartes transferira o espírito da geometria (esprit de


geométrie) para a filosofia e para as ciências. Para Pascal há, ao
lado do espírito de geometria, o espírito de finura (esprit de finesse),
dissemos antes. Neste sentido refere-se muito criticamente a
Descartes. Observa: “Escrever um capítulo contra os que
aprofundam demais as ciências: Descartes” (n. 76). Prossegue:

“Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia,
passar sem Deus, mas não pode evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr
o mundo em movimento; depois do que não precisa mais de Deus” (n. 77).

Na matemática pode-se obter a certeza e a evidência. Na


filosofia e nas ciências isso é impossível. Pascal, que nunca foi
apenas matemático e físico, mais tarde dedicou seu estudo ao
homem:

“Passei longo tempo no estudo das ciências abstratas, e a pouca comuni­


cação que se pode ter delas desgostou-me. Quando comecei o estudo do
homem, a que essas ciências abstratas não lhe são próprias e que me
desviava mais da minha condição penetrando-as, do que a outros,
ignorando-as” (n. 144). '

2.3.3. A existência dramática

Pascal parte do drama da existência humana concreta, para


conhecer a grandeza e a miséria do homem. Na cosmovisão
medieval o homem ocupava lugar determinado. As descobertas
modernas deixaram tudo confuso. O homem sente-se só e perdido
no universo, pois não mais percebe os vestígios do Criador: “O
silêncio etemo desses espaços infinitos me apavora” (206). Descre­
ve o drama de modo que nele participa o homem todo, com seus
sentimentos, com sua imaginação, sua razão, seus erros e suas
esperanças; descreve a natureza humana com cores sombrias,
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A PÉ 37

como abismo de contradições, cpmo enigma vivo. Depois de acen­


tuar a miséria, fixa a grandeza “O homem é visivelmente feito
para pensar; é que toda a sua dignidade e todo seu mérito e todo o
seu dever consiste em pensar corretamente” (146). “O homem não
passa de caniço, o mais fraco da natureza, mas é caniço pensante”
(347). Pascal não isola o homent do mundo, como o fizera Descar­
tes. Pergunta: o que é o homem perante o infinito?
Primeiro Pascal descreve a grandeza e a miséria do homem no
universo cósmico. Pergunta: qu<5m é o homem dentro da natureza?

“Nada em relação ao infinito: ttfdo em relação ao nada; um ponto


intermediário entre tudo e nada. Iiifinitamente incapaz de compreendc>r
os extremos, tanto o fim das coisas como o seu princípio permanecem
ocultos num segredo impenetrável» e é-lhe igualmente impossível ver o
nada de onde saiu e o infinito que 0 envolve” (72).

Neste mundo de dimensões infinitas, no espaço e no tempo, o


homem sente-se perdido, inseguro- Nele flutuando buscamos um
apoio firme:

“Ardemos no desejo de encontrai uma plataforma firme e uma base


última e permanente para sobre e)a edificar uma torre que se erga até o
infinito; porém, os alicerces ruem e a terra abre-se até o abismo. Não
procuremos, pois, segurança e firm eza . Nossa razão é sempre iludida pela
inconstância das aparências e nída pode fixar o finito entre os dois
infinitos que o cercam e dele se afastam” (72).

Pascal examina, outrossini, ° homem em suas dimensões


cotidianas: “Este homem n a s c i d o para conhecer o universo, para
julgar as coisas e dirigir um Estado, acha-se inteiramente ocupado
em correr atrás de uma lebre” (140). O que se oculta atrás de caça,
dança, jogo, esporte, aventuras amorosas? Não é o medo da
solidão? Para Pascal, toda a infelicidade do homem se origina da
incapacidade de permanecer sónum quarto. O homem não suporta
o tédio:

“Nada é mais insuportável ao h<,mem do que um repouso total, sem


paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu
nada, seu abandono, sua in su fic iê n cia , sua dependência, sua impotência,
seu vazio. Incontinenti subirá do fundo da alma o tédio, o negrume, a
tristeza, a pena, o despeito, o desj>rez° ” (131).
38 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

Nesta situação muitos dizem:

“Não sei quem me pôs no inundo; nem o que é o mundo, nem o que sou eu
mesmo; vivo numa terrível ignorância acerca de todas as coisas; não sei
o que é o meu corpo, o que são meus sentidos, a minha alma e essa parte
mesma de mim que pensa o que digo, que medita sobre tudo e sobre ela
própria, e não se conhece mais do que o resto (...) Assim como não sei de
onde venho, não sei para onde vou: e só sei que, saindo deste mundo, cairei
para sempre no nada, ou nas mãos do Deus irritado, ignorando a qual
dessas duas condições serei dado eternamente em quinhão. Eis o meu
estado, cheio de fraqueza e de incerteza” (194).

A que podem levar tais análises da existência cotidiana? A


problemática de Pascal não é mais profunda do que a de Descartetí?

2.3.4. A aposta da fé

Em Pascal não se trata apenas da incerteza do conhecimento


humano, mas da incerteza da vida. Kierkegaard, Heidegger e
Sartre analisaram mais profundamente essa ameaça, essa
inquietude ou desproporção do homem. Pascal salienta a grandeza
e a miséria do homem: “A grandeza do homem é grande à medida
que ele se conhece miserável” (397). Toda a miséria mostra
grandeza: “Todas essas misérias provam sua grandeza. São misé­
rias de grande senhor, misérias de rei destronado” (398). Com­
preender o homem em sua realidade, para Pascal, significa manter
simultaneamente as contrariedades de sua existência concreta
como contradições permanentes. Desta forma chega a método
novo, estruturado dialeticamente, para compreender a realidade.
Em cada verdade deve manter-se presente o contrário. Este
método lhe permite abranger as grandes contradições de sua
época: dogmatismo e ceticismo, idealismo e naturalismo, o
racionalismo de Descartes e o irracionalismo de Mérés etc. Essas
contradições mostram que “o homem transcende infinitamente o
homem” (434) e que em nenhuma posição humana pode chegar à
plenitude e ao repouso.
Diante da situação concreta de incerteza surge a pergunta:
como poderá o homem decidir? Pascal indaga:

“Que fará, pois, o homem nesse estado? Duvidará de tudo? Duvidará que
desperta, que o beliscam, que o queimam? Duvidará que duvida? Duvi­
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 39

dará que existe? Não podemos chegar a este ponto; tenho, como fato, que
nunca houve pirronismo efetivo perfeito. A natureza sustenta a razão
impotente e impede que extravague até este ponto” (434).

Na questão entre ceticismo ou dogmatismo, Pascal mostra


toda a contradição da existência humana. Chegou a filosofia a seu
limite? Pascal responde:

“Conhece, pois, soberbo, que paradoxo és tu mesmo. Humilha-te, razão


impotente; cala-te, natureza imbecil, aprftnde que o homem ultrapassa
infinitamente o homem, e ouve de teu senhor a tua condição verdadeira
que ignoras. Escuta a Deus” (434).

Não se exige aqui do homem um salto? É a aposta da fé. Não a


filosofia, mas a mensagem cristã responde ao enigma da existência
humana. A razão subordina-se à fé: em Cristo foram reconciliadas
todas as contradições (684). No acontecimento de sua presença,
Deus atinge o homem na contradição de sua existência, e no
acontecimento da graça de Cristo, o salto aventureiro da fé permite'
ao homem atingir o Deus real e vivo e nele sua existência autêntica
e salvífica.
Depois da morte de Pascal, um empregado encontrou, por
acaso, um bilhete costurado em sua roupa, considerado seu testa­
mento, que sempre carregava consigo. Conta a história que, no dia
23 de novembro de 1654, à noite, dias depois de um acidente com
a carruagem na ponte de Neuilly, experimentou profunda crise
psicológica, por vezes também chamada de sua segunda conversão.
Neste memorial escreve:

“O ano de graça do Senhor de 1654, segunda-feira, 23 de novembro, dia


de S. Clemente, papa e mártir, e outros do martirológio. Vigília de S.
Crisógono, mártir e de outros. Desde cerca de dez horas e meia da noite
até meia noite e meia, fogo.
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, e não dos filósofos e dos
sábios. Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz. Deus de Jesus Cristo.
Deus meu e Deus vosso. Teu Deus será meu Deus’. Esquecido do mundo
e de tudo, exceto de Deus. Não se encontra a ele fora do caminho ensinado
no Evangelho. Grandeza da alma humana. “Pai justo, o mundo não te
conheceu, mas eu te conheci’. Alegria, alegria, lágrimas de alegria. Dele
me separei: deriliquerunt me fontem aquae vivae. ‘Meu Deus, vós me
abandonareis?’ Que não me separe dele eternamente. ‘Esta é a vida
40 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

eterna: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro e aquele que
tu enviaste, Jesus Cristo. Jesus Cristo. Jesus Cristo. Jesus Cristo. Eu me
afastei dele, evitei-o, neguei-o e crucifiquei-o. Que eu jamais dele me
separe. Não se conserva a não ser pelos caminhos ensinados no Evange­
lho. Renúncia total e doçura. Submissão total a Jesus Cristo e a meu
diretor. Alegria eterna por um dia de provação na terra. Non obliviscar
sermones tuos. Amém”.

Pascal não se contenta com um Deus metafísico. O memorial


recorda o Êxodo. Procura a certeza não na própria consciência, nem
no conceito, numa idéia de Deus, nem no Deus dos filósofos, mas no
Deus vivo da Bíblia. Busca o fundamento da certeza na fé. Assim, em
antítese a Descartes, poder-se-ia formular: “creio, logo sou”.
Pascal não procura certeza matemática. Por outro lado, tam­
bém não se trata de certeza irracional. Ele tem clareza de que o
homem só reconhece a Deus pelo coração: “É o coração que sente
Deus, e não a razão. Eis o que é fé: Deus sensível ao coração, não
à razão” (278). Pascal, entretanto, não menospreza a razão: “Não
há nada tão conforme à razão como a retratação da razão” (272),
pois “a única tentativa da razão é reconhecer que há uma infinida­
de de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar
a percebê-lo” (267). Para Pascal, ao contrário de Descartes, é claro:

“O conhecimento de Deus sem o da própria miséria faz o orgulho. O


conhecimento da própria miséria sem o de Deus faz o desespero. O
conhecimento de Jesus Cristo encontra-se no meio, porque nele encon­
tramos Deus e nossa miséria” (527).

Pascal não era menos crítico que Descartes. Estava igualmen­


te interessado na razão, na liberdade e na certeza. Mas percebeu
os limites cartesianos. Percebeu que a certeza racional, baseada na
consciência do próprio eu, não era fundamento tão inabalável. Sua
posição é moderada: não excluir a razão, nem absolutizá-la:

“É preciso saber duvidar quando necessário, afirmar quando necessário.


Quem assim não faz, não entende a força da razão. Há os que pecam
contra esses três princípios, ou afirmando tudo como demonstrativo, por
falta de conhecimentos em demonstrações; ou duvidando de tudo, por não
saberem quando é preciso submeter-se; ou submetendo-se a tudo, por
ignorarem quando é preciso julgar” (268).
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 41

Pelo exposto, vemos que Pascal não atribui grande valor às


provas filosóficas da existência de Deus:

“As provas metafísicas de Deus acham-se tão afastadas do raciocínio dos


homens e tão embrulhadas, que pesam pouco; e, ainda que isso servisse
para alguns, serviria apenas durante o instante em que vissem essa
demonstração; mas, uma hora depois, receariam ter-se enganado” (543).

Pascal contudo elaborou o argumento da aposta, um argumento


ad hominem. Baseia-se este no cálculo de probabilidades. Parte da
experiência nas casas de jogo. Não podemos provar a existência de
Deus com certeza, mas podemos apostar e tomar partido enquanto
sua existência ou não existência podem ser proveitosas ou não
para a felicidade nossa neste e no outro mundo. Esta felicidade
apostamos no jogo da moeda cara ou coroa. Podemos ganhar ou
perder. Pelo cálculo de probabilidades devemos avaliar os riscos de
ganhar ou perder.
A razão não pode decidir se existe Deus ou não, pois entre nós
e Deus há distância infinita. Por isso apostemos cara ou coroa, a
favor da existência de Deus. Se ganhamos, ganhamos tudo. Se
perdemos, nada perdemos. Portanto, é racional apostar e correr o
risco de nos equivocarmos numa aposta em que temos todas as
probabilidades de ganhar e nenhuma de perder: “Apostai, pois,
que ele existe, sem hesitar” (233). Pascal afirma:

“Se somente se devesse fazer alguma coisa com certeza, nada se deveria
fazer pela religião, pois ela não oferece certeza. Mas quantas coisas se
fazem naincerteza: viagens marítimas, batalhas! Digo, portanto, que não
se deveria fazer absolutamente nada, porque nada é certo; e que há mais
certeza na religião do que em vermos o dia de amanhã; pois não é certo
que vejamos o amanhã, mas é certamente possível que não o vejamos.
Não se pode dizer o mesmo da religião” (234).

2.3.5. Crítica à crítica de Pascal

Descartes vê a relação entre fé e razão de maneira diferente de


Pascal. Aquele discute o domínio da clareza matemática e das
ciências exatas. Pascal aposta na capacidade do ato intuitivo do
homem global. A decisão pela fé não acontece na abstração racio­
nal, mas na profundidade do coração humano. Pascal inverte o
42 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ

caminho cartesiano. Para ele importa a certeza existencial de


Deus para chegar à certeza existencial de si mesmo. No centro de
sua reflexão, ao contrário de Descartes, situa o especificamente
cristão: Jesus Cristo. Não é a fé exceção da regra geral da evidên­
cia, mas a certeza matemática. Não há separação entre fé e razão.
Pascal é o primeiro protesto de grande pensador moderno contra
a filosofia separada da fé e negadora dela. Miguel Sciacca diz:
“Pascal é o primeiro pensador que, cônscio das exigências do
pensamento moderno, se empenha a dar nova síntese de razão e
tradição, de fé e ciência” (v. 2, p. 85). A fé, segundo Pascal, é à base
da razão.
Para Pascal, como para Descartes, o pensar é importante. Mas,
para Pascal, o espírito humano é muito mais que piora razão. Por
isso não funda a certeza última no cogito, mas no creio da men­
sagem bíblica. Para ele, o ponto de partida agostiniano é: credo, ut
intelligam. Sua fé é cristocêntrica. Enquanto Descartes separa
claramente o domínio da razão e o da fé, filosofia e teologia, dando-
se apoio mútuo, Pascal, como santo Agostinho, defende a unidade:
pensa-se na fé e crê-se no pensar. Pascal desconfia de uma filosofia
da pura razão. Verdadeira filosofia só é aquela que se funda na fé
cristã. Assim está em primeiro plano o credo, ut intelligam. A
distinção entre razão e coração, este como nova faculdade de
conhecimento direto e imediato, preludia a distinção posterior de
Kant entre razão pura e razão prática: “Conhecemos a verdade não
só pela razão, mas também pelo coração” (282),
Podem-se formular algumas questões à filosofia de Pascal: não
cedeu muito ao tédio da vida, renunciando a valores humanos?
Com isso não favoreceu a evolução do atual ateísmo humanista ou
humanismo ateu? E preciso diminuir os conhecimentos matemá-
tico-científicos para valorizar a fé?

B ib liog ra fia

DESCARTES, René, Regras para a direção do espírito, Lisboa, Estampa, 1977, 2- ed.
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WEISCHEDEL, Wilheim, Der Gott der Philosophen, Munique, Deutscher Taschenbuch
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3

KANT E HEGEL:
A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

Sem menosprezar a importância histórica de uma das figuras


centrais da filosofia moderna, Immanuel Kant (1724-1804), de­
vemos reconhecer que o verdadeiro giro histórico-filosófico veri­
ficou-se com Descartes. Kant realiza o giro copemicano no campo
da teoria do conhecimento enquanto diz que doravante nosso co­
nhecimento não se orientará mais nos objetos, mas esses devem
orientar-se em nosso conhecimento (prefácio à segunda edição da
Crítica da razão pura). A reviravolta kantiana caracteriza-se pela
palavra transcendental. Em primeiro lugar, com esta palavra de­
signa a tematização das condições a priori do conhecimento hu­
mano. Neste sentido escreve na introdução à Crítica da razão pura:

“Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa


menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, enquanto este deve
ser possível a priori” (p. 53).

Em segundo lugar, transcendental refere-se àquilo que é desco­


berto. Por isso Kant fala, p. ex., de lógica e analítica transcen­
dental. Enfim, transcendental pode referir-se às conclusões das
duas significações anteriores como uso transcendental etc. Assim
podemos dizer que pensar transcendentalmente é indagar pelas
condições de possibilidade do conhecimento de objeto determina­
do no próprio sujeito deste conhecimento. Em outras palavras,
indagar transcendentalmente é mostrar como o material recebido
de fora, pelos sentidos, é transformado mediante a atividade do
sujeito cognoscente em objeto do conhecimento. Este não é re­
presentação ou reprodução do real, mas uma constituição do objeto
através de diferentes elementos, ou seja, uma espécie de produção
da atividade criadora do homem. Assim o ponto de partida do
conhecimento humano, segundo Kant, é a razão que imprime suas
46 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

forças puras (categorias) nos objetos para assim constituí-los. Kant


parte do a priori transcendental, ou seja, pergunta pelas condições
de possibilidade do conhecimento em geral. Sua obra é essen­
cialmente crítica, pois questiona a perspectiva objetivista. Na
questão da existência de Deus tenta um caminho entre a afirma­
ção dogmática e a demonstração racional concludente.
Na lógica afirma que a verdadeira filosofia consiste em res­
ponder a quatro perguntas: a) que posso saber? b) que devo fazer?
c) que posso esperar? d) que é o homem? Segundo ele, a metafísica,
a moral, a religião e a antropologia ocupam-se dessas perguntas.
A última resume as três primeiras.

3.1. Kant; ra zã o c r ític a e relig iã o

Immanuel Kant interessou-se, desde a juventude, de maneira


especial, por duas questões. De um lado, o tema moral e religioso,
profundamente vivido desde a infância e, de outro, a ciência físi-
co-matemática como a explicara Newton e havia estudado na
universidade. Diz, na Crítica da razão pura, que Deus, liberdade
e imortalidade sempre foram “objetivos supremos de nossa exis­
tência” e, por isso, são problemas importantes para sua filosofia.
No prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura diz:

“Só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo,


a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que
podem tomar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o ce­
ticismo que são sobretudo perigosos para as escolas e dificilmente se
propagam no público” (p. 30).

3.1.1. A crítica da razão pura

A filosofia de Kant, como a de Descartes, parte de uma teoria


do conhecimento. E, antes de mais nada, uma teoria do conheci-
mento. Segundo Kant, o conhecimento é constituído por juízos. Do
ponto de vista lógico, os juízos podem ser divididos em analíticos
e sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles em que o predicado
está contido no conceito do sujeito. Por exemplo: o triângulo tem
três ângulos. Tal juízo é analítico porque se tomo mentalmente o
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 47

conceito de triângulo e o analiso, logicamente, nele encontro im­


plícita a idéia de três ângulos. Tais juízos são explicativos: “Os
juízos analíticos nada dizem no predicado que não esteja pensado
realmente no conceito do sujeito, embora não de modo claro e com
consciência uniforme” (Prolegômenos para toda a metafísica fu­
tura, p. 25).
Juízos sintéticos são aqueles em que o conceito do predicado
não está contido no conceito do sujeito. Por exemplo: o calor dilata
os corpos. Os juízos sintéticos consistem em unir sinteticamente
elementos heterogêneos no sujeito e no predicado. Trata-se de
juízos extensivos no sentido de aumentarem o conhecimento dado.
Os juízos analíticos fundamentam-se no princípio de identi­
dade e de contradição:

“Todos os juízos analíticos baseiam-se inteiramente no princípio de


contradição e são, por natureza, conhecimentos a priori, quer os con­
ceitos que lhes servem de matéria sejam ou não empíricos. Pois, assim
como o predicado de um juízo analítico afirmativo está já pensado ante­
riormente no conceito do sujeito, não pode ser negado por ele sem con­
tradição, assim também o seu contrário, num juízo analítico, mas ne­
gativo, será negado necessariamente pelo sujeito e, sem dúvida, em
conseqüência do princípio de contradição” (Prolegômenos, p. 25).

Nos juízos analíticos repete-se, no predicado, aquilo que já está


implícito no sujeito. São juízos de identidade. Pode chamar-se tal
juízo analítico de tautologia. Enquanto os juízos analíticos são
verdadeiros, universais e necessários, o contrário tem que ser
necessariamente falso. Como não têm origem na experiência, são
a priori ou independentes da experiência e devem ser pensados
como anteriores. Os juízos sintéticos baseiam-se na experiência ou
percepção sensível. A experiência realiza-se aqui e agora. A validez
desses juízos limita-se à experiência sensível, que é singular. São,
por isso, juízos particulares, pois sua verdade está restringida ao
lugar e ao tempo e são contingentes, pois seu contrário não é im­
possível. Porque oriundos da experiência também podem ser
chamados juízos a posteriori.
Ora, com juízos analíticos não se pode constituir uma ciência,
pois as tautologias nada acrescentam ao nosso saber. Da mesma
forma, juízos sintéticos a posteriori não constituem o conheci­
mento científico, pois são juízos particulares e contingentes. Kant
48 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

postula, então, juízos sintéticos a priori que sejam universais e


necessários e que acrescentam algo de novo ao conhecimento. A
tais juízos chega-se pela intuição evidente, uma intuição não
sensível. Na matemática e na física encontramos tais juízos. Por
exemplo: a linha reta é a mais curta entre dois pontos. Nesse juízo
os conceitos de curto e magnitude não estão incluídos no conceito
de linha reta, nem vêm da experiência. Também na física encon­
tramos juízos sintéticos a priori: “Em todo o movimento que se
transmite de um corpo a outro, a ação é igual à reação”.
Em que se fundamentam os juízos sintéticos a priori na ma­
temática? Fundam-se nas formas de intuição: espaço e tempo.
Espaço e tempo são formas puras a priori, não conceitos de coisas
reais, mas intuições. Assim espaço e tempo fundam a possibilidade
de juízos sintéticos. Espaço e tempo independem da experiência
sensível. São intuição pura, forma de apreensão, ou seja, são
condição de possibilidade do conhecimento das coisas, condição
transcendental para essas serem objetos do conhecimento. Para
conhecer, inserimos, nos objetos reais, os caracteres do espaço e
do tempo. Projetamos neles, a priori, o caráter de espaciais, por
exemplo, na geometria. Da mesma maneira, na aritmética, o
tempo é uma condição de possibilidade dos juízos sintéticos a
priori. Para somar, dividir, subtrair etc., eu preciso intuir o tem­
po a priori. Espaço e tempo são, pois, formas da sensibilidade, ou
seja, da faculdade de ter percepções sensíveis. O espaço é a forma
da experiência ou das percepções externas; o tempo é a forma das
vivências ou percepções internas. Desse problema Kant trata na
primeira parte da Crítica da razão pura sob o título de estética
transcendental, entendendo por estética a teoria da percepção,
teoria da faculdade de ter percepções sensíveis.
Na segunda parte da Crítica da razão pura trata de analítica
transcendental onde mostra como são possíveis juízos sintéticos
a priori na física. Mostra que aí as categorias são'as condições da
possibilidade dos juízos sintéticos a priori. Como? Conclui esta
parte:

“A analítica transcendental alcançou, pois, o importante resultado de


mostrar que o entendimento nunca pode a priori conceder mais que a
antecipação da forma de uma experiência possível em geral e que, não
podendo ser objeto da experiência o que não é fenômeno, o entendimen­
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 49

to nunca pode ultrapassar os limites da sensibilidade, no interior dos


quais unicamente nos podem ser dados objetos. As suas proposições
fundamentais são apenas princípios da exposição dos fenômenos e o or­
gulhoso nome de ontologia, que se arróga a pretensão de oferecer, em
doutrina sistemática, conhecimentos sintéticos a priori das coisas em si
(por exemplo, o princípio da causalidade) tem de ser substituído pela mais
modesta denominação de simples analítica do entendimento puro” (p.
263-64).

Em outras palavras, a coisa em si, o númeno, escapa à possi­


bilidade do conhecimento. Só podemos conhecer os fenômenos.
Kant tentara responder a três perguntar na Crítica da razão
pura: a) Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na mate­
mática? b) Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na fí­
sica? c) São possíveis os juízos sintéticos a priori na metafísica?
Nas duas primeiras partes responde as duas primeiras perguntas.
Na dialética transcendental (terceira parte) tenta responder à
terceira.
Segundo a metafísica tradicional, a razão busca três conheci­
mentos fundamentais: a) a alma (síntese das vivências subjetivas);
b) o universo (síntese das vivências objetivas) e c) Deus (síntese
final e suprema). Kant constata que nenhum desses objetos pode
ser conhecido pela razão pura, pois todos eles estão além da ex­
periência possível, de acordo com as condições acima expostas. Por
isso Kant afirma que os juízos sintéticos a priori não são possí­
veis na metafísica. Portanto, a metafísica como ciência é impos­
sível. Nos Prolegômenos afirma simplesmente:

“Se existisse realmente uma metafísica que pudesse afirmar-se como


ciência, poder-se-ia dizer: aqui está a metafísica, deveis aprendê-la e ela
convencer-se-á irresistível e invariavelmente de sua verdade” (p. 31).

Segundo Kant, a metafísica quer conhecer o incognoscível.


Concluirá Kant que, então, é simplesmente impossível falar de
realidades metafísicas como Deus e alma? Absolutamente não.
Para Kant existe não apenas a ciência, mas também a consciência
moral, não só a razão pura, mas também a razão prática. A
metafísica é impossível como conhecimento teorético ou espe­
culativo. Mas pode haver outros caminhos de acesso aos objetos
da metafísica.
50 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

Kant desenvolveu sua doutrina sobre Deus no confronto com


Leibniz e Wolff, ainda no período pré-crítico. Nesse período rejeita
o argumento cartesiano fundado no conceito de universalidade da
reàlídade mediante a distinção tradicional entre existência pen­
sada e existência real. Mais tarde, ainda no período pré-crítico,
refuta mais uma vez o argumento cartesiano: a existência não é
predicado, nem determinação de alguma coisa, mas é a posição
absoluta de algo. Distingue três elementos: a) o passo desde um
existente que experimentamos até uma coisa independente; b) esta
última mostra-se simplesmente como necessária; c) esse necessário
identifica-se com o infinitamente perfeito. Kant considera que não
se prova o passo ou trânsito de .uma causa independente até a
necessidade da mesmaymas apenas sua possibilidade.
No período crítico (depois de 1770), realiza mudança em sua
concepção. Aquilo que considerava como fundamento da possibi­
lidade real converte-se em ideal transcendental puramente sub­
jetivo, que é a condição para compreendermos a possibilidade de
coisas limitadas. Na Crítica da razão pura diz: “Só há três for­
mas p ossíveis de, provar a existên cia de Deus pela razão
especulativa”, ou seja, a) a prova ontológica (da idéia do Ser
perfeitíssimo deduz-se analiticamente a existência); b) a prova
cosmológica (da contingência do mundo infere a existência do Ser
necessário); c) a prova físico-teleológica (da ordem e da harmonia
existentes no universo infere a existência de Deus como mente
ordenadora). Para Kant, as duas últimas pressupõem a prova
ontológica, isto é, a passagem da idéia do Ser necessário à sua
existência. Examina as três e mostra que não são concludentes.
Kant diz que o argumento ontológico considera a proposição
“Deus existe” como analítica, ou seja, admite que o predicado da
existência esteja contido na essência do sujeito. Observa:

“Já tereis cometido.uma contradição, quando no conceito de uma coisa a


que vós desejásseis pensar unicamente na sua possibilidade, teríeis in­
troduzido, seja mesmo sob nome oculto, o conceito de sua existência’’.
No uso lógico, ser não é predicado real, mas cópula de um juízo.
Assim dizerque Deus é não é afirmar um predicado novo do con­
ceito de Deus e, por conseqüência, “o real não contém nada além
do simples possível”. No caso do ser perfeitíssimo ou Deus, a
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 51

existência não pode ser acrescida sinteticamente, porque de Deus


não há conteúdo sensível, pois está além da experiência. Como a
experiência é o limite do conhecimento humano, a razão pura não
pode demonstrar a existência de Deus.
O argumento cosmológico, que parte da contingência do mundo
para a necessidade do ser supremo, segundo Kant, deixa de provar
dois elementos: a) Da experiência do ser contingente conclui-se a
necessidade do ser necessário como causa. Ora, esta passagem é
ilegítima, pois o princípio de conexão causai só tem validade e
sentido no mundo dos fenômenos, ou seja, no mundo da experiência
empírica, b) Além disso, caberia provar que esse necessário é o ser
perfeitíssimo e realíssimo ou Deus. Se o conceito de Deus implica
tal necessidade, dele infere-se a existência do Ser supremo. Ora,
essa prova baseia-se na prova ontológica e não na experiência.
Parte do empírico para concluir fora da experiência, querendo
provar algo fora das premissas. Com isso nada prova.
O argumento teleológico ou da finalidade, embora digno de
respeito, também é falaz. Segundo Kant, passa-se da ordem do
mundo até seu ordenador. Mas este argumento também carece de
valor objetivo, de modo que as provas da existência de Deus re­
dundam em idéia ou ilusão transcendental.
Para Kant, é impossível demonstrar racionalmente a exis­
tência de Deus. Somos incapazes de juízos científicos sobre Deus
porque ele não ocorre no espaço e no tempo. Juízos científicos
devem dizer uma verdade que é, ào mesmo tempo, necessária (a
priori) e nova (sintética), ou seja, “juízos sintéticos a priori que,
embora não fundados na experiência sensível (a priori), contudo
ampliam nosso conhecimento (sinteticamente) e não apenas ex­
plicam (analiticamente)”. Segundo Kant, apenas são possíveis na
matemática e na ciência natural e não na metafísica tradicional,
que é apenas metafísica das aparências.
Negando as provas da existência de Deus, Kant afirma que
Deus não existe?
Absolutamente não.'Kant não quer firmar uma posição de
agnóstico ou de ateu. A crítica de Kant não significa resignação
da razão, e sim a convicção ético-religiosa de que devem ser res­
peitados os limites da razão. Assim a distinção das provas da
existência de Deus não destrói a. fé em Deus nem funda o ateís­
mo. Kant afirma que a razão humana tem a tendência natural de
52 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODEBNA E A RELIGIÃO

ultrapassar esses limites. Em outras palavras, afirma uma ne­


cessidade metafísica arraigada no ser do próprio homem. Nesta
perspectiva, a idéia de Deus permanece como ideal, como concei­
to teórico necessário e limite. Mas como pode corresponder a esta
idéia puramente reguladora de Deus uma realidade? Kant res­
ponde que pela razão prática, ou seja, não o sei pela ciência, mas
pela moral. Pela razão pura conheço o que é, pela razão prática o
que deve ser. Diz que moralmente é necessário aceitar a existência
de Deus. Assim o que não se pode provar pela razão pura toma-se
um postulado da razão prática. Depois de eliminar Deus da ordem
do pensamento e da realidade, postula a existência de um Deus
justo que fundamente a relação entre virtude e felicidade.

3.1.2. A crítica da razão prática

Se na Crítica da razão pura Kant chega à conclusão de que a


metafísica é impossível como ciência teorética, conclui, outrossim,
que o conhecimento científico é apenas uma atividade ao lado de
outras como é o viver, o trabalhar, o produzir etc. Assim pode haver
outro caminho de acesso aos objetos metafísicos. Se a razão
teorética não chega aos mesmos, também não os poderá negar.
Kant pergunta: existem outros caminhos e quais são?
Entre as muitas atividades do homem existe uma forma que
se chama de consciência moral. Essa é um fato tão indiscutível
como o próprio conhecimento e contém certo número de princípi­
os que orientam a vida dos homens. Nesse conjunto de princípios
que constituem a consciência moral, encontra a base para apre­
ender os objetos metafísicos. Com Aristóteles, Kant chama a
consciência moral e seus princípios de razão prática para mos­
trar que, na consciência moral, atua algo que não é a razão
especulativa, mas são princípios racionais. Trata-se de princípios
aplicados à ação.
Através da análise desses princípios da consciência moral,
Kant chega aos qualificativos morais: bom, mau, moral etc. Esses
qualificativos, a rigor, não se podem predicar das coisas, mas só
da pessoa humana. Por que só se podem predicar esses qualifi­
cativos do homem? Porque o homem pratica atos e neles pode
distinguir-se o que faz efetivamente daquilo que quer fazer, Uma
vez feita essa distinção, vemos que os predicados morais originam-
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 53

se daquilo que o homem quer fazer. Em outras palavras, o que pode


ser realmente bom ou mau é a vontade humana.
Em que consiste essa vontade?
Kant diz que todo o ato voluntário se apresenta à consciência
sob a forma de mandamento ou imperativo: tem que fazer isto, isto
deve ser feito. Tais imperativos podem ser hipotéticos ou categó­
ricos. Os primeiros são condicionais: “Se quiseres viver, deves
alimentar-te”. Os segundos são incondicionais: “não mates o se­
melhante”. A moralidade corresponde aos imperativos categóricos,
pois se não mato por causa do medo das conseqüências de parar
numa cadeia, minha conduta, na consciência, não é moral; pois a
vontade íntima não age de maneira moral. Na interioridade do
sujeito, o imperativo tomou-se imperativo categórico. Em síntese,
uma ação é moral, para Kant, quando feita simplesmente por
respeito ao dever, independentemente de seu conteúdo empírico.
Esta é a lei moral universal: o imperativo categórico.
Em que se fundamenta esta lei universal e, de outro lado, a
vontade pura?
Kant distingue entre autonomia e heteronomia da vontade. A
vontade autônom a é a que dá a si mesma sua própria lei;
heterônoma é a vontade quando recebe a lei passivamente de algo
ou de alguém. Kant propõe uma moral autônoma, isto é, a lei moral
originada na vontade. Tal lei só pode ser formal, ou seja, sem con­
teúdo empírico, nem metafísico. Trata-se de ordem da razão.
A partir desta autonomia da vontade encontra o postulado da
liberdade. Sem ser livre, a vontade não poderia ser autônoma, nem
ser moralmente meritória, boa ou má. Se a consciência moral é fato
tão indiscutível como a ciência, desse fato pode-se inferir a liber­
dade como condição de possibilidade da própria consciência moral,
que é ato de valorização, não de conhecimento de coisas em si
mesmas. Entramos no mundo das coisas supra-sensíveis através
de intuições de caráter moral. Assim o nosso eu não se põe a si
mesmo apenas como sujeito cognoscente mas, ao mesmo tempo,
como consciência moral numa atitude valoradora. O primeiro
postulado metafísico é, pois, a liberdade.
O segundo postulado da razão prática é a imortalidade. Se o
mundo inteligível não está sujeito às formas do espaço e do tempo
nem das categorias, a vontade pura justifica a crença na imorta­
lidade da alma.
54 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

Como, no mundo da consciência moral, não há diferença entre


o ideal e o real, entre o que efetivamente sou e o que queria ser, ao
contrário do mundo fenomênico, no qual os valores morais—justiça,
bondade etc. — não estão realizados, é necessário que além deste
mundo haja um mundo metafísico no qual o que é seja idêntico com
o que deve ser. Este é um postulado que requer uma unidade sin­
tética superior entre esse ser e o dever ser. A essa síntese unitária
Kant chama Deus. Além do mundo fenomênico deve haver, pois, um
ente no qual nossa aspiração se realize. Tal ente é Deus. Enfim, a
primazia da razão prática sobre a teorética permite-nos o acesso à
verdade metafísica. Enquanto a razão teorética nos permite co­
nhecer este mundo real fenomênico, a razão prática nos conduz até
Deus, ao reino das almas livres e imortais.
Como valorizar a atitude de Kant em relação às provas da
existência de Deus?
A teoria do conhecimento de Kant só em parte foi aceita. Não
se pode aceitar que toda a determinação do mundo depende só da
subjetividade humana, das condições transcendentais. Por outro
lado, também não existe conhecimento puramente objetivo. O
conhecimento sempre está condicionado pelo sujeito.
Na questão da existência de Deus, Kant apela à razão prática,
que se manifesta na ação moral do homem. Compreende o homem
não apenas como ser, mas como dever ser. Rejeita as provas pu­
ramente racionais da existência de Deus. Fala da existência de
Deus como postulado da razão prática. Mostra que, pela razão
crítica ou piora, não se demonstra a existência de Deus nem sua
não-existência. Deus é, para Kant, a condição (transcendental) de
possibilidade da moral e da felicidade.
A pergunta a ser feita a Kant é se o imperativo categórico do
dever moral, que postula o “sumo bem” ou a existência de Deus,
no fundo, não é um resto da tradicional fé cristã na existência de
Deus? Não poderia igualmente o imperativo categórico, “tu deves”,
conduzir “para além do bem e do mal” de Nietzsche ou para o
absurdo de Camus? Não se deveria levar mais a sério a alternativa
do niilismo de valores como possibilidade? Por que o bem tem
preferência sobre o mal?
Se, com Kant, admitimos que todos os homens desejam a feli­
cidade, contudo não podemos pressupor que tal desejo se realiza­
rá. Donde sei que há felicidade? Não pode o anseio do homem por
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 55

felicidade desembocar no vazio? Não se deve pressupor Deus para


dar sentido à vida? Kant compreende Deus como condição de pos­
sibilidade de autonomia moral do homem. Mas pode separar-se
tanto a razão pura da razão prática? Ou é a razão pura totalmen­
te neutra, sem pressupostos e interesses? É a razão prática sem
conhecimento teórico? É irrelevante a confiança na realidade como
realidade? Ou é a razão prática complemento da razão pura?
A razão prática, segundo Kant, depende apenas do imperati­
vo categórico ou incondicional. Tal imperativo não é ordem exterior
que massacre a liberdade, mas algo que brota da lei moral interior
que postula a liberdade do homem. Assim o primeiro postulado da
razão prática, que garante a moralidade, é a liberdade humana.
O segundo postulado é a imortalidade da alma. O terceiro postu­
lado é a existência de Deus, o bem supremo. Esses três postulados
são exigências necessárias, embora não demonstráveis. Neles
baseia-se toda a ética de Kant.
Sendo o caminho da razão pura insuficiente, Kant opta pela
prova moral da existência de Deus. Estuda “a existência de Deus
como um postulado da razão prática”. O suporte, para esta prova,
está no bem supremo, que reúne em si moralidade e felicidade e
que constitui o objeto adequado da lei moral. Formalmente o nú­
cleo desta prova está, como vimos, no imperativo: “Nós devemos
comentar o bem supremo (qualquer seja)”. Assim, de fato, a ar­
gumentação de Kant se funda na capacidade de sentido da exis­
tência humana e da realidade em geral, ou seja, a moralidade está
em concordância com a realidade. A razão não tolera alguma se­
paração definitiva entre virtude e felicidade, porque o valor moral
enquanto valor absoluto e a dignidade desejada são materialmente
idênticos. Confirma esta interpretação do postulado de Deus pela
nova concepção na crítica do juízo (§§ 86-91). A Visão teleológica
da realidade é tal que a subordinação da natureza à realização do
bem supremo conduz a uma teologia moral. A palavra de Deus não
é revelação divina, mas o imperativo moral dentro de nós.
Qual o valor do postulado kantiano e do conhecimento com ele
adquirido?
O fundamento de nossa fé não depende das provas da exis­
tência de Deus, nem coincide com o fundamento da demonstração.
Este último é teórico-especulativo e o primeiro é ético-prático.
Neste sentido Kant diz: “Tive, pois, de suprimir o saber (de Deus)
56 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

para obter lugar para a fé” (Prefácio à 2® ed. da Crítica da razão


pura, p. 27). O argumento de Kant, baseado na necessidade da
razão prática, conduz a “um conhecimento de Deus, mas só numa
relação prática”. Kant estabelece uma metafísica de fundamento
prático. Entretanto, a realidade dessas idéias metafísicas per­
manece problemática para a razão pura.
Se o problema do sentido úitimo da realidade só pode receber
resposta no campo ético, justifica-se o passo seguinte de Kant para
a religião: “Assim a lei moral conduz, através do conceito de bem
supremo, à religião; isto é, ao conhecimento de todos os deveres co­
mo mandamentos divinos”. O conceito genuíno de Deus conduz à
moral. Essa perspectiva é a chave para seu importante escrito sobre
a religião dentro dos limites da razão. Esta obra nasceu no contex­
to imediato do iluminismo alemão. Pressupõe os princípios reli­
giosos já obtidos à manifestação histórica do cristianismo da época.
De um lado, a crítica da razão prática honra a consciência do
homem. Mas por que Kant nega à razão pura o que concede à razão
prática? Trata-se de dois diferentes tipos de conhecimento? Como
se relacionam entre si? O que justifica o privilégio outorgado à
razão prática de atingir a realidade, negando-o à razão pura? Ba­
seado em que, atribui maior evidência à ordem prática? Como
provar que o imperativo categórico exige o postulado da existência
de Deus? Por que as provas morais valem mais que as especu­
lativas? Kant diz que Deus existe porque sem ele a virtude hu­
mana não poderia ser definitivamente feliz. Mas se o homem pode
existir sem Deus, por que não pode ser feliz sem ele? Em outras
palavras, o que permite e justifica inferir, na razão prática, da
simples possibilidade de sermos felizes, o que não é permitido a
partir da contingência do universo? Se é forte o aspecto destrutivo
da crítica kantiana, certamente não o é, da mesma maneira, o
aspecto construtivo. Não seria o ateísmo uma conseqüência lógica
possível? Enfim, por que Kant continua sendo cristão?
Podemos agora perguntar: como seria a religião kantiana na
prática?

3.1.3. A religião dentro dos limites da razão

Na obra A religião dentro dos limites da razão (1793) trata de


quatro aspectos: na primeira parte trata do mal radical (pecado
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 57

de origem); na segunda, vida e obra de Cristo, sem nunca men­


cionar o nome de Jesus Cristo; na terceira, da Igreja invisível; na
quarta, da Igreja como instituição. Em lugar do Jesus histórico põe
a humanidade como ser moral; converte a Igreja em ser ético co­
mum que deve congregar todos os homens numa “república sob leis
virtuosas”. Está clara a tendência a dissolver a religião na mora­
lidade, tentativa que culmina em idéias como “Deus não é vim ser
fora de mim... Deus é a razão moral prática”. A religião identifi-
ca-se com a consciência, sem necessidade do conceito de Deus.
Kant quer interpretar a “religião da razão pura” e a partir dela
a “religião revelada”. Ambas são como dois círculos concêntricos,
sendo o interior e mais restrito o da religião da razão. Tenta re­
duzir a religião revelada a seus conceitos morais para conciliá-la
com a da razão, para conciliar razão e Escritura, de maneira que,
seguindo a primeira, se vá de encontro à revelada.
A concepção moralista de religião evidencia-se no próprio es­
quema da obra, pois a religião aparece como símbolo da luta en­
tre o bem e o mal como dois princípios no homem. Na primeira
parte faz longas elucubrações do mal na natureza e do mal radical.
Bem e mal pertencem não à natureza, e sim ao ato livre e res­
ponsável do homem. Na natureza, como princípio subjetivo da
liberdade, funda-se a possibilidade do mal e da inclinação a ele.
Confronta-se com a disposição para o bem.
Na segunda parte do livro insere a pessoa de Jesus Cristo (sem
nomeá-lo), os dogmas cristãos da encarnação e redenção, no con­
texto dialético da luta entre o bem e o mal. O princípio bom tem o
direito de dominar sobre o homem. Cristo é o ideal personificado
do princípio bom, no qual se cumpriu a perfeição moral. Todos os
homens devem elevar-se a este ideal.
Na terceira parte diz que o homem deve proteger sua liberdade
e tom ar possível o triunfo do bem, mediante uma sociedade go­
vernada pelas leis da virtude. Esta será sociedade ético-civil ou
república moral. Tal república moral é uma Igreja que, enquanto
não é objeto de experiência possível, se chama Igreja invisível.
Deve ser universal, fundada na fé religiosa pura. Tudo o que Deus
exige dos homens é conduta moralmente boa. Como os homens são
impotentes para conhecer as coisas não sensíveis, tendem a con­
siderar a religião como culto, serviço a Deus, baseado em pres­
crições externas e leis. Organizam a Igreja visível que só se pode
58 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

fundar numa revelação transmitida pela Tradição e Escritura.


Atribui-se, então, autoridade divina a esta Igreja organizada. A
fé religiosa pura é inteiramente fundada na razão. Só esta se pode
reconhecer como necessária e caracteriza a verdadeira Igreja. A
fé numa religião de culto, ao contrário, é a fé de escravo e merce­
nário, pois o culto em si não tem valor moral, mas é imposto pelo
medo e pela esperança. As religiões reveladas, como o cristianis­
mo, apenas são meio para introduzir uma religião moral pura.
Na quarta parte, Kant fala do verdadeiro e falso culto, religião
e sacerdócio. Para ele, a única verdadeira religião é a moral. A
revelada é imposta e servil. A verdadeira religião apenas encerra
leis ou princípios práticos de necessidade absoluta. Seu único culto
é cumprir o dever moral como mandamento de Deus. Fora da boa
conduta, para Kant, tudo o que os homens crêem poder praticar
para se tomarem agradáveis a Deus é pura ilusão religiosa e fal­
so culto.
De maneira análoga, Kant vê o sacerdócio, consagrado ao falso
culto do princípio bom, ligado ao despotismo espiritual sobre os
fiéis. Define:

“O sacerdócio é a constituição de uma Igreja em que reina o culto fetichis-


ta, isto é, onde, em lugar de princípios morais, são leis estatutárias, regras
de fé e observância o que constitui a base e essência do culto” (p. 176).
Na comunidade ética da Igreja invisível todos são ministros ou
servidores que trabalham livremente. Na Igreja de culto falso,
porém, os doutores convertem-se em oficiais ou funcionários,
dignitários eclesiásticos que transformam o ministério em impé­
rio. Esses pastores apresentam-se a si e a tudo como lei divina,
sacrificando a liberdade própria da religião natural. A este culto
falso chama de fetichismo.
Com clareza, Kant erige o princípio da consciência como fio
condutor no domínio da fé. Segundo ele, há três formas de fé ilu­
sória quando ultrapassamos os limites da razão: a) a crença nos
milagres como superação das leis da experiência empírica; b) a
ilusão pela qual se admitem realidades além dos conceitos racio­
nais ou a crença nos mistérios; c) a ilusão que nos leva a empregar
meios naturais para produzir o efeito de provocar a influência
sobrenatural de Deus sobre nossa moralidade ou a crença nos
meios da graça.
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 59

Kant assume atitude negativa em relação à oração como culto


formal e interior de Deus. É a simples declaração de nossos desejos
a alguém que não precisa dela. Jiüga, todavia, conveniente alguma
freqüência às Igrejas para estreitar a comunhão dos fiéis. Mas a
fé supersticiosa logo introduz cerimônias idolátricas de adoração
de Deus. Apesar disso julga também conveniente a consagração
solene de ingresso na comunidade dos fiéis que, no cristianismo,
é o batismo. Mas fazer dele um meio de graça é superstição. Coi­
sa semelhante diz da Eucaristia ou ceia.
A questão da essência do cristianismo esvazia-se em simples
idéia humana, num cristianismo sem Cristo e sem Igreja, sem
história da salvação. A perspectiva puramente moral da religião
está na conhecida definição: “religião é (do ponto de vista subjetivo)
o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos”.
Assim mesmo, Kant, já com 74 anos de idade, na polêmica entre
as faculdades de filosofia e teologia, escreve: “E bom que não sa­
bemos, mas cremos que existe um Deus”.

3.1.4. Crítica à crítica de Kant

Sob a aparência de crítica moderada, Kant faz crítica demo­


lidora da religião. Tem-se a impressão de que está totalmente
alheio à fé cristã. Reduziu a religião simplesmente à moral autô­
noma e radonalista. Mas a crítica kantiana da religião também é
vulnerável sob alguns aspectos fundamentais. O que permite ao
homem admitir a realidade do eu, da liberdade humana e da
existência de Deus? Se Kant destruiu a lógica das provas da
existência de Deus, certamente não eliminou seu conteúdo religio­
so. Deus não pode ser conhecido como simples objeto. Não se pode
demonstrar sua existência em simples silogismo lógico. Mas com
isso não está dito que admitir a existência de Deus seja ato ir­
responsável perante a razão, que esta só pode admitir o que é
imediatamente verificável através da experiência? Poder-se-á
perguntar: tem sentido a existência de Deus? Até quem não crê,
pode compreender a proposição “Deus existe” como se pode com­
preender “uma montanha é de ouro”. E Deus uma realidade?
Desde que se admite que a realidade não se reduz ao mundo
empírico e nele se admite uma dimensão de profundidade, não se
pode negar simplesmente a existência de Deus. Podemos admitir
60 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

uma confiança (fé) original no homem todo que, na atitude práti­


ca, mas racionalmente plausível, me permite admitir a realidade
metafísica.
Concordamos com Manfredo Araújo de Oliveira quando no seu
excelente estudo sobre Filosofia transcendental e religião resume
a contribuição de Kant para o problema de Deus:

“a) A reviravolta transcendental, que significou a tematização da me­


diação subjetiva no conhecimento humano. Kant libertou, apesar de sua
parcialidade, o pensamento humano da ingenuidade objetivista de um
pensamento puramente voltado para o objeto, esquecido de que o objeto
só é objeto para um sujeito e que, portanto, a subjetividade é um mo­
mento essencial no processo do conhecimento; b) o resultado de sua fi­
losofia teórica, isto é, a impossibilidade de um conhecimento de Deus, o
que vai abalar uma das convicções fundamentais de todo o pensamento
ocidental até então e tomar possíveis posições novas posteriores a res­
peito do problema de Deus; c) o tratamento em filosofia da problemática
de Deus a partir do problema da liberdade, que também já antecipa, de
certo modo, a questão fundamental, que se vai pôr, posteriormente, com
clareza cada vez maior, da relação do homem enquanto ser livre (au­
tônomo) e Deus. De certa maneira, Kant antecipa o cerne da questão”
(p. 16).

Em síntese, Kant priva a religião de todo o fundamento


especulativo, instalando-a na esfera moral. Ele a reduz ao metro
das normas éticas da razão prática. Fora disso tudo é superstição
e imposição eclesiástica (dogmas, ritos, hierarquia etc.). Resta to­
davia a pergunta: não é a própria posição kantiana uma nova
posição dogmática sob aparência crítica? Apesar disso, o pensa­
mento crítico de Kant foi uma oportunidade, infelizmente perdi­
da, para o cristianismo entrar no mundo da modernidade.

3.2. Hegel: Deus como fundamento da religião

Na religião, o homem sabe-se determinado por Deus (deuses)


e a ele relacionado. Por isso Deus é o princípio a partir do qual se
constitui religião. Ora, isso pressupõe que, de alguma forma, Deus
seja acessível ao homem. Entretanto esse acesso não é evidente
já pelo simples fato de muitos homens de nosso tempo não crerem
nele.
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 61

Na história da filosofia, grandes pensadores tentaram mostrar


o acesso a Deus pela vida racional. Tais tentativas foram chama­
das erroneamente de provas da existência de Deus, pois certa­
mente não se trata de provas no sentido dado a este termo pelas
ciências modernas. As chamadas provas da existência de Deus,
depois de Kant, parecem definitivamente refutadas. Surge, então,
a pergunta: como pode ou deve o homem pensar Deus? Essa
questão adquiriu conotação crítica desde Descartes e Pascal.
A questão de Deus não é apenas confronto com a ciência mo­
derna, mas também com a filosofia moderna. Nos tempos mo­
dernos, a questão chegou ao auge no sistema filosófico de Georg
Friedrich Hegel (1770-1831), um dos maiores gênios da filosofia
de todos os tempos. Em A gaia ciência, Nietzsche disse que “sem
Hegel não haveria Darwin”. Sem Hegel também não haveria a
crítica da religião de Feuerbach e Marx, Emst Bloch, R. Garaudy,
G. Lukács e muitos outros.
Hegel nasce e vive no meio do iluminismo. Sua religiosidade
jovem alimenta-se do espírito iluminista da época. Conduz o
idealismo alemão ao ápice da sistematização. Hegel, todavia, é
atual não só por seus seguidores, mas também através de seus
inimigos, como Kierkegaard e Marx. Roger Garaudy, em sua obra
Para conhecer o pensamento de Hegel, escreve:

“É sobretudo por isso que o pensamento hegeliano foi particularmente


destruidor para a religião revelada: se é falso dizer que Hegel era ateu,
é incontestável que a esquerda hegeliana, depois Feuerbach e Marx,
encontrou nele os princípios metodológicos de uma crítica religiosa que
conduzia necessariamente ao ateísmo” (p. 192).

3.2.1. O jovem Hegel: teólogo

Hegel é, sem dúvida, o pensador mais difícil entre os difíceis


pensadores alemães. Cedo percebeu os limites do iluminismo. Os
intelectuais alemães, em sua época, haviam aderido com entu­
siasmo à revolução francesa de 1789. Entretanto, com a cruel di­
tadura revolucionária dos jacobinos (1792-93), começaram as
restrições. Os alemães preferiam uma evolução ou “revolução do
espírito” à revolução político-social. Ao contrário dos franceses, que
excluíram a religião, para os alemães, a religião exercia papel
62 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

importante. Hegel preferiu a atitude crítica em relação à religião.


Não queria terminar com a religião, mas renová-la na sociedade
moderna como autêntica religião do povo, fundando-a na razão,
sem eliminar fantasia e sentidos. A posição crítica do jovem Hegel
é a seguinte: não quer uma tradição acrítica, mas também não quer
uma razão sem tradição. Nisso parece sintetizar Descartes e
Pascal.
O jovem Hegel recebeu muitas influências: “o espírito do povo”
de Montesquieu e Herder, Rousseau e outros. Na família foi
educado no cristianismo protestante, no qual o acento era o aspecto
racional e moral da religião. Cedo interessou-se por problemas
religiosos e pela filosofia sob o aspecto religioso. Com 18 anos de
idade começou a estudar teologia no seminário protestante de
Tubinga. Aí conviveu com Hoelderlin e Schelling. No seminário lia
muito Rousseau, Schiller, Herder e Lessing.
Os escritos do jovem Hegel versam problemas de conteúdo
teológico ou político-religioso. Suas reflexões concentraram-se no
problema religioso.
No escrito Religião popular e cristianismo (1793) vê a religião
não como assunto privado, e sim com valor educativo. Na sua Vida
de Jesus (1795) mostra a influência da religião ética kantiana,
livre de dogmas e da letra bíblica. A pessoa de Cristo perdeu sua
transcendência. Jesus aparece como personificação do ideal da
virtude, como pregador da religião da razão, hostil à religião ju­
daica. Em A positividade da religião cristã (1796-1799) apresen­
ta Jesus como sábio, como Sócrates, mestre que ensinava uma
religião puramente moral. Segundo Hegel, foram os discípulos que
transformaram o ensinamento de Jesus num sistema eclesiástico
e dogmático, em religião positiva. Desenvolve o tema da alienação
do homem como busca de apoio no além quando o próprio homem
se tom a incapaz de construir a vida moral por si mesmo. Sente,
então, necessidade de sinais e milagres, de fundar sua fé mima
pessoa (Cristo). O indivíduo, entrando no cristianismo, renuncia
ao direito de determinar por si mesmo o que é verdadeiro, bom e
justo, assumindo o dever de aceitar o que lhe é imposto pela fé,
ainda que em contradição com a razão. A alienação é, para Hegel,
sinônimo de escravidão e de opressão. Hegel passou a caracterizar
a concepção religiosa judaico-cristã como relação senhor-escravo.
O Deus transcendente 4 o senhor dominador; o homem é o escravo,
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 63

sob o jugo de seu senhor. Nesta relação, os homens se nadificam e


situam o etemo, o divino, totalmente fora de si. Em síntese,^ o jo­
vem Hegel foi teólogo, mas teólogo secularizador.
A teoria da alienação, segundo Hegel, é aplicada ao campo
moral. O homem situa-se numa dependência absoluta de Deus
dominador. A lei é simples expressão da vontade de Deus. Ao
homem cabe então apenas obedecer. Essa atitude, para Hegel, é
imoral. Considera inaceitável a perspectiva filosófica de Kant
referente ao imperativo categórico. O princípio kantiano, como
toda a moral kantiana, segundo ele, procedem de pessimismo
antropológico luterano. Por isso Kant aniquila o homem, sepa­
rando radicalmente a sensibilidade da razão, estabelecendo, na
interioridade do homem, uma nova sujeição do indivíduo à do­
minação universal (da razão). Decorre daí não o homem livre, e
sim o mártir do dever. Hegel, espírito otimista, não sujeita sim­
plesmente o particular ao universal, a sensibilidade à razão. Quer
o homem livre da lei e do dever para praticar o bem espontanea­
mente. O homem deve tomar-se universal concreto.
Durante sua estada, como professor particular, em Frankfurt
(1796-1800) situa o caráter fundamental da realidade na noção de
vida. Esta é o infinito, a totalidade divina que abrange tudo, que
mais tarde chamará idéia. O ideal que se manifesta na realidade,
que se realiza no múltiplo, é a vida. Apresenta a oposição entre
finito-infinito, a unidade e a multiplicidade e a reintegração dos
seres múltiplos na unidade. O uno ou o todo pluraliza-se ou con­
cretiza-se numa série de modos nos quais vive a vida que é o todo.
O pensamento, que em si é uma forma de vida, pensa a unidade
das coisas como um infinito, como vida criadora livre da mortali­
dade dos indivíduos. Esta vida criadora Hegel a chama Deus. Tal
vida deve ser concebida como espírito.
Na juventude, Hegel acentua que o fim e a essência de toda a
religião verdadeira é a moralidade do homem. Mas não se limita
à experiência religiosa do indivíduo. Toma-se-lhe importante o fato
da religião positiva. Rejeita, contudo, a positividade de cada reli­
gião, indagando pela sua origem ou fundamento. Para além da
religião positiva indaga pelo fundamento da experiência religiosa
no sentido de atingir o vínculo imediato entre o divino e o humano.
Desta maneira supera a interpretação puramente moral da reli­
gião no sentido de Kant. Diz que, no sentido puramente moral, a
64 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

religião só serve para ser “religião privada” porque só respeita a


razão. Hegel exige o empenho do homem global: sentidos e razão.
A porta de entrada no pensamento hegeliano é o fenômeno do
amor. Nele, por primeiro, descobre o caráter dialético da realidade.
O ponto de partida é o fato da auto-alienação na realização do
amor: o amor, esquecendo-se a si mesmo, sai da existência amorosa
e vive no outro. No amor, o homem perde-se a si mesmo e encon­
tra-se no outro. Mas, no amor, há ainda o separado, não como
separado, mas como unidade.
Hegel conclui que aquilo que acontece no amor só é possível
de compreensão a partir de um todo. Na dialética do amor realiza-
se a vida. O amor é modificação da vida. E a vida é o que anima
todo o vivente e no qual radica tudo que vive. Esta vida abrangente
mostra a mesma estrutura do amor. Também a vida, a partir de
sua essência, é dialética. Na origem é una; divide-se na multipli­
cidade dos viventes para, finalmente, reencontrar-se na unidade.
Identificando, explicitamente, esta vida global com Deus, Hegel
encontrou o princípio de sua teologia filosófica. Se o divino é pura
vida, também a divindade tem caráter dialético. O fato de atingir
o divino, permite-lhe tomar posição no absoluto. Deus não é con­
clusão de seu sistema, mas ponto de partida.
Hegel não tenta demonstrar a existência objetiva de Deus.
Antes indaga como o homem chega a pensar Deus. Interpreta isso
a partir da confluência das possibilidades humanas. A raiz é a
consciência da própria divindade. Com isso só chega a Deus como
presente, na imanência, não ao Deus transcendente. Ousa, então,
a tese de que o Deus transcendente resulta da fantasia humana
como hipostatização do amor.
Num fragmento da juventude, no qual explica o dogma da
Trindade, já delineia a dialética do absoluto. O pai significa a
totalidade divina, ou seja, a vida da criança em união inconsciente
com o todo; o filho designa o homem comum, o homem que se
desenvolve num estado de separação no seu eu finito, no meio do
mundo das determinações; o Espírito Santo significa a condição do
homem que superou o estado de alienação e fez o retomo cons­
ciente à totalidade divina. Esse restabelecimento da unidade é no
espírito e na vida, não no conceito ou na obediência à lei. Assim
o dogma trinitário serve a Hegel como paradigm a dos três
momentos de sua genial dialética: a) concepção da realidade una
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 65

(das E inige); b) as realidades separadas (die G etrennten) e


c) a realidade outra vez u n ificad a ou recon cilia d a (das
Wiederverreinigte).
Segundo o jovem Hegel, a religião reconcilia a reflexão e o
amor, unindo-os no pensameno. A vida religiosa, que é a vida do
amor, realiza a exigência da filosofia de reconciliar as oposições:
o finito e o infinito. O objetivo racional de Hegel é sempre a re­
conciliação dos contrários: religião privada e religião popular, li­
berdade e necessidade, finito e infinito. A forma mais elevada da
reconciliação é a identidade sujeito-objeto do espírito cognoscente.

3.2.2. O Hegel maduro: filósofo

Depois de 1800, depois da fase explicitamente teológica, Hegel


quer compreender, pela filosofia, como a religião realiza tal exi­
gência. Tenta realizar o que antes declarara impossível. Subordina
a. religião à filosofia. Busca nova lógica do movimento da vida. É
a transição do Hegel teólogo para o Hegel filósofo. Doravante vê,
como tarefa da filosofia, a construção do absoluto pela consciência,
superando oposições. O finito, segundo ele, não pode ser pensado
sem pensar o infinito, pois não é conceito isolado e com conteúdo
próprio. O finito consiste em ser momento do verdadeiro infinito.
O finito é atingido de negação, mas não é simples negação, uma
vez que é limitado por outro que não é ele mesmo. Por isso devemos
negar a negação e afirmar que o finito é mais que finito, ou seja,
que é momento da vida do infinito. Encontra o processo lógico que
resolve a oposição entre o finito e o infinito, ou seja, o processo
dialético. Finito e infinito não são dois mundos separados.
Hegel parte do idealismo de Fichte e Schelling. O tema próprio
de sua filosofia é o infinito e sua relação com o finito, relação de
unificação de ambos os termos no princípio absoluto. Este é
identidade, mas não identidade indiferenciada (como queria
Schelling), mas contendo dentro de si a oposição (identidade nas
diferenças), que se resolve na reconciliação dos contrários. A
identidade e harmonia acontecem no fim do processo dialético. O
absoluto é o pensamento que se pensa a si mesmo, o que eqüivale
a dizer que o absoluto é espírito, o sujeito autoconsciente.
Segundo Hegel, Deus deve ser visto como aquele que passa por
uma história e nela se revela. Este é o tema de sua obra filosófica
66 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

fundamental, a Fenomenologia do espírito (1807). Para Hegel, em


todos os problemas do homem e do mundo, em última análise, se
trata do próprio Deus. Quer repropor a questão de Deus no come­
ço da filosofia como único fundamento de tudo, como único prin­
cípio do ser e do conhecer. Ironiza a posição daqueles que querem
reduzir a problemática de Deus à problemática do homem.
Talvez a Fenomenologia do espírito seja a sua obra mais ge­
nial, mas também a mais obscura. É sua primeira obra sistemá­
tica. Hegel vem de Descartes: o caminho que a razão natural do
homem tem a seguir, é o da dúvida ou até do desespero. Quer do
ponto de vista da razão natural, quer do ponto de vista autenti­
camente científico, ou seja, da impressão sensível imediata atra­
vés de todas as formas da consciência, a razão deve elevar-se até
o espírito consciente de si mesmo. Trata-se, pois, de caminho que
introduz o indivíduo desde seu estado inculto do conhecimento
comum, ou das formas inferiores da consciência sensível até o
plano do saber filosófico, ou saber do absoluto. Este processo pode
ser chamado de “autobiografia do espírito” ou “experiência da
consciência”. Nessa obra aparecem os postulados fundamentais do
idealismo hegeliano: o absoluto como espírito que se desenvolve
em três momentos: o absoluto em si, por si e retomo a si, a dialética
triádica deste devir, na qual cada momento é superação do ante­
rior, a identificação do real e do ideal na consciência etc. Como o
espírito absoluto, também a religião tem uma história fenomeno-
lógica, uma história cronológica e ideal. São três os momentos da
evolução do fenômeno religioso: a) a religião natural ou dos povos
orientais (dos persas, hindus e egípcios); b) a religião estética
(gregos); c) a religião revelada ou cristã com a interpretação
hegeliana. A arte e a religião são formas inferiores da autocons­
ciência que prepara o saber absoluto. Através de suas diversas
manifestações, o espírito finalmente conhece-se a si mesmo. Chega
ao conhecimento absoluto que é o conhecimento do absoluto.
Para Hegel, não tem sentido uma teoria do conhecimento, pois
nunca se sai do conhecimento. O absoluto sempre já está em nós.
Com isso a relação sujeito-objeto encontra-se numa síntese global:
o espírito é a síntese de toda a realidade. Para conhecer-se a si
mesmo, o espírito precisa da história. Toda a experiência singular
encontra-se em contexto histórico.
Como Hegel relaciona religião e filosofia?
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 67

Nos fragmentos deixados pelo jovem Hegel, ele fala de “eleva­


ção à vida infinita” e esta elevação é a religião. Hegel atribui tal
elevação não à filosofia, e sim à religião. A filosofia é a reflexão
compreensiva porque reflete sobre idéias, pensa em termos de
oposição. A ela se opõe a religião que pensa em termos de totali­
dade. Na religião, a vida finita se eleva à vida infinita. Isso, se­
gundo Hegel, só é possível porque o próprio finito é vida. Por isso
pode elevar-se à vida infinita.
O jovem Hegel dá, pois, preferência à religião. Na maturidade
não mais atribui o acesso ao infinito à religião, mas à filosofia.
Tenta superar a oposição entre filosofia e religião, reconciliando-
as. Essa tentativa já aparece clara no prefácio da Fenomenologia
do espírito. O intelecto analisa ou separa. No e pelo pensamento
sempre já acontece a mediação entre pensante e pensado. Assim,
no próprio pensamento da vida infinita, realiza-se a reconciliação
que une pensante e pensado. Nessa síntese Hegel estabelece nova
unidade entre Deus e homem. O espírito é o todo a partir do qual
Deus e homem, ambos espíritos, se tomam compreensíveis. En­
quanto, na juventude, situa a possibilidade de pensar o absoluto
na elevação religiosa, na maturidade parte da própria filosofia. A
partir deste absoluto tenta recolocar Deus no início da filosofia. A
razão ocupa o lugar que, nos fragmentos da juventude, era ocupado
pela elevação religiosa.
A religião agora marca o segundo momento do devir do espírito
absoluto. Além de alguns parágrafos da Fenomenologia do espí­
rito, Hegel ministrou quatro cursos (1821-1823) sobre a filosofia
da religião. Aí tomou posição menos crítica e mais conciliadora em
relação ao cristianismo. Na discussão com os teólogos diz que

“Deus não é espírito vazio, mas o espírito. E o espírito não é o só puro


nome, determinação superficial, mas um ser cuja natureza se desenvolve,
concebendo a Deus como essencialmente tríplice na unidade” (El concepto
de religión, pp. 95-96).

Diz que

“religião e filosofia coincidem em um só e mesmo objeto porque o conteúdo


da religião é a verdade universal e absoluta, e a filosofia chama de idéia
ao ser supremo e absoluto. Deus é a verdade absoluta. Deve ser repre­
sentado como universal absolutamente concreto”.
68 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

Este Deus é uno e há um só Deus. Deus como ser universal, não


tem limite, nem finitude, nem particularidade. Deus é a substância
absoluta. Identifica o Deus da religião com o espírito absoluto.
Em Lições sobre a filosofia da religião, Hegel examina o as­
pecto fenomênico da consciência religiosa. Primeiro as formas da
consciência religiosa: o sentimento, a intuição e a representação.
Sendo a religião necessária ao homem, sendo essencial à religião
a relação entre Deus e a consciência, a primeira forma de religião
é a imediaticidade dessa relação, própria do sentimento, que em­
bora dê certeza da existência de Deus, não a justifica. O sentimento
é individual, acidental e mutável. A intuição que se tem de Deus
na arte, é momento mais elevado. Mas a intuição apresenta um
dualismo entre o sujeito intuinte e o objeto intuído. A religião, ao
contrário, exige a unidade da consciência religiosa e de seu objeto.
Esta acontece na representação (Vorstellung). A contradição re­
solve-se à medida que a religião se transforma em verdadeiro
saber. A este saber o homem deve chegar pela fé. Em El concepto
de religión lemos:

“A religião enquanto fé, sentimento e intuição ingênuos consiste, em


geral, no saber e na consciência imediatos. Em outra parte, verifica-se o
abandono da imediaticidade do espírito, o ponto de vista da reflexão, a
relação da religião e do conhecimento como sendo algo externo, um em
frente ao outro. A filosofia da religião consiste, ao contrário, no conhe­
cimento pensante, compreensivo da religião; nela identifica o conteúdo
absoluto, a substânda e a forma absoluta (conhecimento)” (p. 115).

A religião situa-se no nível do pensamento e não só do senti­


mento. Quando um conteúdo se dá no nível do sentimento, cada
um fica preso do seu ponto de vista subjetivo. Reduzir o conteúdo
divino (a revelação de Deus, a relação do homem com Deus, a
existência de Deus para o homem) a mero sentimento, significa
limitar-se ao ponto de vista da subjetividade particular, ao arbítrio.
Para Hegel, “o verdadeiro é algo em si universal, essencial,
substancial; e o que é assim, só existe para o pensamento”. Deus
é exatamente a verdade substancial que só pode ser concebida pelo
pensamento. A verdade é o todo e o todo é o absoluto e este é Deus.
Como todo, só é pensável e atingível pela mente humana.
Quando a fé procura esclarecer-se e tomar-se consciente deve
intervir a reflexão religiosa. Nesta fase encontram sua função as
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 69

provas da existência de Deus, que Hegel analisou em seu curso em


1829. Aí tenta reabilitar as provas condenadas por Kant. Entre­
tanto Hegel não defendeu as provas da existência de Deus porque
as considerasse provas racionais. Deus é o ser absoluto. As provas
nascem da necessidade de satisfazer à razão e representam a
elevação da mente a Deus.
Em Lições sobre a filosofia da religião, Hegel diz que a dou­
trina sobre Deus só pode ser concebida como a doutrina sobre a
religião. Por religião entende a relação do sujeito, da consciência
subjetiva, com Deus. Nesta definição fala-se de Deus. Hegel diz
ainda que a religião tem como único objeto Deus. Assim a filosofia
da religião só se refere a Deus através da religião. Imediatamente
refere-se à atitude religiosa do homem para com Deus.
Por outro lado, Hegel acentua o lado objetivo de Deus. Quer
falar não só da religião, mas de Deus. Tem como objetivo o co­
nhecimento de Deus. A religião é ação da consciência humana, mas
esta brota de ação originária de Deus. A religião é produto do
espírito divino, não invenção humana. Ação humana e ação divi­
na encontram-se na religião. Deus está presente na ação humana.
Para Hegel, até a lógica é “apresentação” de Deus, é a “teologia
metafísica”, pois em todo o saber humano Deus está presente. Para
ele, há uma série de sinônimos para designar Deus. Deus é “a vida
infinita”, “o absoluto”, “a verdade”. Deus é também “o conceito”
(Begriff), “a idéia”, é, enfim, “o espírito absoluto”.
Hegel escreve:

“Para nós, que temos religião, o que é Deus é algo conhecido, um conteúdo
que pode ser pressuposto na consciência subjetiva. Cientificamente, Deus
é inicialmente um nome geral e abstrato que ainda não recebeu nenhum
conteúdo (Gehalt) verdadeiro; porque só a filosofia da religião é o desen­
volvimento científico e conhecimento daquilo que é Deus e só através dela
se experimenta cognoscitivamente o que Deus é; do contrário absoluta­
mente não necessitaríamos da filosofia da religião; somente esta deve
desenvolver-nos aquele tema” (Lições sobre a filosofia da religião, p. 250).

3.2.3. Como Hegel chega a Deus?

Para Hegel, é insuficiente a consciência imediata de Deus. Em


Lições sobre a filosofia da religião diz que há dois caminhos para
conhecer a Deus: o empírico e o especulativo. No caminho empírico
70 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

partimos do fato de que o homem sabe de maneira imediata de


Deus. Segundo Hegel, todos os homens têm consciência de Deus.
Mas, como há também a negação de Deus, toma-se problemática
a prova da existência de Deus a partir da universalidade da idéia
de Deus. Se há certeza sobre a existência de Deus, na consciência
dos homens, ainda não se provou que esta é verdadeira. Além
disso, não existe imediaticidade absoluta da consciência, pois na
minha consciência de Deus existe uma relação entre mim, o
cognoscente e o objeto, Deus. Assim, segundo Hegel, toda a
imediaticidade é mediata. Apesar disso diz que a proposição “nós
sabemos de maneira imediata de Deus é grande princípio, quena
sua essência devemos manter”. Diz ainda que é o simples princí­
pio filosófico do próprio conhecimento que nossa consciência sabe
de maneira imediata de Deus, que o homem tem certeza de saber
de Deus, de seu ser. Mas a filosofia só pode tomar tal proposição
como ponto de partida.
Hegel critica a filosofia da religião de seus contemporâneos F.
D. E. Schleiermacher (1768-1834) e Friedrich H. Jacobi (1743-
1819). Diz que não reconheceram a necessidade de transcender a
certeza imediata de Deus. Entretanto essa consciência imediata
do saber sobre Deus, para Hegel, é apenas o ponto de partida
empírico. A insuficiência está em permanecer no saber imediato
de Deus. Quando se diz que não se pode conhecer a Deus, a filoso­
fia reduz Deus a abstrato vazio. Nesse caso, a atitude religiosa
reduz-se à subjetividade: “Só sabemos de nossa relação com Deus,
mas não o que Deus é”. Esse recuo à subjetividade total, Hegel
designa-o “o último degrau da degradação do homem”. Segundo
ele, não se trata de permanecer na certeza imediata de Deus, mas
de conhecê-lo verdadeiramente. Isso significa ter conceito deter­
minado e concreto de Deus.
Hegel diz:

“A religião é para todos os homens; a religião não é filosofia, a qual não


é para todos os homens. A religião é o modo como todos os homens se
fazem conscientes da verdade, e estes modos são especialmente o senti­
mento, a representação e também o pensamento intelectual. O conceito
da religião há de ser considerado deste modo geral segundo o qual a
verdade chega a todos os homens, e deste modo o segundo momento nesta
consideração é constituído pela relação do sujeito enquanto sente, re­
presenta e pensa” (El concepto de religión, p. 121).
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 71

Hegel mostra a insuficiência do sentimento de Deus. Reflete


sobre o sentimento e a representação de Deus. O primeiro é sub­
jetivo, o segundo refere-se mais ao aspecto objetivo do conteúdo.
Mas para Hegel, importa indagar: pode-se dizer algo com certeza
a partir do sentimento? Este certamente é individual. Em outras
palavras, não encontramos o Ser de Deus no sentimento, com
certeza objetiva. Nem tudo que está no sentimento subjetivo é
verdadeiro. Segundo Hegel, tomar a Deus como produto do sen­
timento acaba em ateísmo. Contudo não despreza o sentimento,
pois a religião deve ser sentida, deve estar no sentimento, do
contrário não é religião. Nem por isso o sentimento pode ser cri­
tério decisivo para a verdade do saber sobre Deus, pois o senti­
mento não aduz razões e não fala por razões. Por isso deve-se ir
além dos sentimentos: “Trata não do sentimento como sentimento,
mas do conteúdo envolto nessa forma para ver se um sentimento
é de natureza verdadeira e autêntica”.
A forma de representação (Vorstellung) diz respeito ao aspec­
to objetivo, ao conteúdo da certeza. Nessa objetividade, a verdade
é “para todos os homens”. Hegel diz que a representação é a ma­
neira como Deus está primariamente na consciência. Mas também
o conteúdo, por estar numa representação, não é ipso facto ver­
dadeiro. A representação de Deus ainda está vinculada aos senti­
dos. Temos imagens de Deus. Temos consciência de que são ape­
nas imagens e não a realidade. A representação não abrange a
verdade, mas transcende para o pensamento, para o conceito, para
libertar-se do sensível. A representação situa-se entre a percepção
sensível imediata e o próprio pensamento. Como a necessidade da
filosofia é a penetração pelo pensar, também a representação é
insuficiente para o saber de Deus na religião.
Segundo Hegel, Deus só é verdadeiramente no e para o pen­
samento. Por isso as formas do sentimento e da representação se
movimentam para a esfera do pensamento, no qual a consciência
religiosa chegará a si em seu conceito. E aqui é preciso distinguir
o pensar como reflexão e o pensar como conceito. No caminho
empírico só se trata do pensar reflexivo. Para o pensamento não
há imediato, pois tudo é mediado dialeticamente. E a mediação não
se refere às determinações internas de um objeto, e sim à relação
dos objetos entre si. No pensamento reflexivo, o conteúdo não se
apresenta como casual, mas necessário.
72 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

Para o pensamento, segundo Hegel, o finito não é algo para si.


Exige o outro para ser; é através do outro. Assim o finito tem como
necessário o conceito oposto de infinito. Afirma o Ser, negando-o.
Ora, o pensamento reflexivo é finito. Mas o objeto da filosofia da
religião é Deus, infinito. Este é uma definição do absoluto. Como
o finito se relaciona então com o infinito?
Primeiro a reflexão distingue finito e infinito. Se parte do in­
finito, desaparece o finito. Este é superado, pois o infinito não seria
mais infinito, se fora dele houvesse um finito, que o limitasse. Na
religião tal contradição manifesta-se, segundo Hegel, nos seguintes
termos: “A oposição é absoluta; enquanto eu sou, Deus não é e,
quando Deus é, desaparece o eu finito”. Este é o fim do pensamento
reflexivo encontrado na contradição irreconciliada e absoluta.
Neste horizonte diz-se, segundo Hegel, que o finito não pode co­
nhecer o infinito. Há, então, duas saldas: ou o finito se dissolve no
infinito ou permanece como eu finito em oposição ao infinito. No
último caso até se pode atribuir ao finito o ser absoluto. Acentu­
ando o finito de tal maneira, o infinito permanece transcendente
puro: “Deus determina-se aqui apenas como transcendente ao
finito”. Mas o transcendente é apenas a negação do finito posto
como real. Separa-se o finito e o infinito. Tal é o postulado de Kant
e Fichte, para os quais a idéia do absoluto como o transcendente
assume a forma do dever. Em tal concepção, o próprio homem não
participa do infinito. No dever inicia a abertura para o infinito, mas
o pensamento reflexivo fixa-se no finito. Assim não se consegue
compreender o infinito como presente no próprio finito. Como o
infinito transcendente é inacessível, o absoluto reduz-se a puro
anseio do homem: “Deus, para nós, não passa de uma busca no
sentimento de nossa finitude”. Tal busca permanece sem pers­
pectiva enquanto o intelecto se prende totalmente à finitude. Este
é o ponto de vista da consciência subjetiva. O eu finito absolutiza-
se e a reflexão se autodestrói.
Do ponto de vista da consciência finita, ou seja, no caminho
empírico, que parte do saber imediato pelo sentimento e pela re­
presentação até o pensamento reflexivo, não se pode conhecer
Deus. A subjetividade impede tal acesso. Por isso é preciso pro­
curar novo caminho, o especulativo do conceito. Aí se situa o lugar
próprio da religião. A forma do pensamento é a absoluta e nela a
verdade aparece como é em si e para s’ . O pensamento puro não
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 73

tem o sentimento e a representação como condição. Só no caminho


especulativo pode-se conhecer Deus, segundo Hegel. O pressuposto
de todo o sistema hegeliano é que, desde o começo, o espírito ab­
soluto se manifesta em toda a realidade e em todas as ciências.
Entretanto Hegel afirma que este absoluto se revela melhor na
arte, na religião e na filosofia, ou seja, na filosofia da religião.
O caminho especulativo do verdadeiro pensamento filosófico
começa precisamente onde o pensamento empírico se perdeu, ou
seja, na oposição entre finito e infinito. Hegel desenvolve a
dialética, entendendo os dois momentos separados. A essência da
oposição é, então, a unidade da identidade e da diferença. Assim
finito e infinito, embora diferentes, indicam um para o outro. Se
se disser o que é infinito, seja a negação do finito, diz-se o próprio
finito. Da mesma forma, o infinito só é infinito em relação ao finito.
Cada um dos termos só pode ser definido em relação a seu oposto.
A partir dessa situação, segue que cada um — finito e infinito
— só é o que é porque existe o oposto. Cada qual, sob este aspecto,
funda-se no outro. O finito tem seus limites no infinito. Um é a
negação do outro, sendo apenas através do negado. O infinito só é
o que é pela negação do finito. O infinito, por outro lado, só é como
finito porque há no finito o infinito. A conseqüência, para a questão
de Deus, é que Deus é igualmente o finito e o infinito, não se po­
dendo isolar um momento do outro. Ambos formam uma unidade
dialética. Nesta unidade permanecem, todavia, as diferenças. O
finito é momento do processo do infinito. Deus entra no finito e
retorna a si mesmo. Deus é Deus vivo através deste processo
etemo: “Deus é o movimento para o finito e, através dele, como
superação do finito, o movimento em si mesmo”. O espírito abso­
luto se finitiza para tomar-se saber em si mesmo. Da mesma forma
a auto-superação do finito o eleva ao infinito, pois a essência do
finito é o infinito. Por isso o resultado do processo de auto-supe­
ração do finito é o ser do infinito.
O acontecimento essencial em todo o processo da dialética
finito-infinito é a auto-superação do finito no infinito. Por isso o
infinito é o conceito fundamental na filosofia hegeliana. Como pode
acontecer isso? Como pode Hegel assumir o ponto de partida no
absoluto, o ponto de vista do absoluto?
No começo está o eu finito. Como este chega ao absoluto, a
Deus? Hegel responde: só porque sempre já ultrapassa seus li­
74 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

mites. E isso mostra-se no fenômeno da consciência. Quem sabe


alguma coisa, sabe ao mesmo tempo a determinação do saber pelo
objeto. Sabe isso a partir do objeto. Sabendo sua finitude, ultra­
passa-a. É o que acontece na elevação do finito para o infinito, como
elevação do homem a Deus. Trata-se de elevação do espírito, que
é a elevação como espírito pensante. O eu aliena-se da finitude. A
elevação, de fato, realiza-se a partir de uma tendência interior do
homem. O eu renuncia a si mesmo, libertando-se de si mesmo,
renunciando à sua particularidade.
A essência do homem, como espírito, é ser espelho de Deus, diz
Hegel. O pensar é elevar-se do particular ao geral. No pensamen­
to desaparece todo o partictdar. O espírito eleva-se do casual e
temporal para o infinito e etemo. O geral, no qual a individuali­
dade imerge, é, para Hegel, “a idéia divina”. A elevação orienta-
se para Deus. No saber de Deus tenho Deus como objeto, nele me
fundo e afundo. No fim do processo está o saber que o homem é
unidade com Deus. Na elevação descobre-se a si mesmo como di­
vino. Enfim, Deus é a verdadeira realidade e, na elevação, o ho­
mem se experimenta como participante da mesma. A consciência
finita é momento do próprio espírito ou a verdade do espírito finito
é o espírito absoluto. Por outro lado, o próprio Deus desce ao ho­
mem e possibilita a elevação do homem até ele. Por isso é neces­
sário que o divino, para ser espírito, se finitize no humano.
A elevação pensante tem como momentos preparatórios a de­
voção, o culto e a fé. Hegel designa a devoção também de “união
mística” como sentimento da unidade do divino e humano. É uma
pré-forma da elevação filosófica. O culto também pode ser descri­
to como elevação a Deus. Trata-se de elevação para além do finito,
para a união com Deus. Hegel até chega a afirmar que a filosofia
se justifica pela devoção e pelo culto, pois a elevação religiosa
pertence ao fundamento da experiência do filosofar.
Outro momento do culto é a fé. Hegel a define como “a consci­
ência da verdade absoluta, daquilo que Deus é em si e para si”.
Chama-a “o testemunho do espírito sobre o espírito absoluto”.
Trata-se, em resumo, da divindade do espírito humano. Hegel
pensa a fé, o culto e a devoção não a partir do homem, mas a par­
tir de Deus. A fé não é, para ele, a maneira mais elevada de o ho­
mem ter certeza de Deus, pois esta pertence à filosofia.
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 75

3.2.4. A existência de Deus

Que diz Hegel a respeito das tradicionais provas da existência


de Deus?
Hegel considera o iluminismo o maior inimigo da filosofia.
Tenta recuperar a demonstração da existência de Deus. Atribui à
crítica de Kant o descrédito dado às provas. Entretanto não ignora
tal crítica e critica a crítica de Kant por ter desconhecido o fun­
damento daquelas provas. O problema, segundo Hegel, é que Kant
levanta a questão da capacidade de conhecer Deus sem considerar
a essência de Deus. Esta é maneira abstrata que permanece pri­
sioneira do saber finito. Hegel busca novo caminho, ou seja, o
caminho da elevação pensante até Deus.
Hegel vê como importantes as provas da existência de Deus
porque nelas o verdadeiro consiste em mostrarem a elevação do
homem a Deus, um caminho obscurecido enquanto atribuído à
razão. Para ele, trata-se de caminho necessário do pensamento.
Deriva tal necessidade da natureza do homem, fundada na es­
sência do espírito.
Como Kant, também Hegel distingue a prova ontológica, a
cosmológica e a físico-teleológica. Ressalva, contudo, que essas não
são as únicas possíveis. A prova cosmológica e a físico-teleológica
partem do finito e a ontológica da idéia de Deus. Isso significa que
também a elevação do espírito deve ser entendida de dupla ma­
neira: partindo ou do ser finito ou do ser infinito (El concepto de
religión, pp. 247ss).
Hegel analisa em pormenores a prova cosmológica tradicional
da existência de Deus. Parte de um ser casual para fundá-lo num
ser necessário. Dá-lhe a formulação: “Porque existe finito, existe
infinito”. A meta da prova é Deus, como necessidade absoluta, que
também pode ser chamada infinito. Busca o infinito, a necessidade
absoluta de Deus. Segundo ele, a prova tem o caráter de conclu­
são da casualidade para a necessidade absoluta. Reconhecendo a
formulação tradicional como insuficiente, tenta reabilitá-la me­
diante a dialética. Mostra que está fundada na experiência da
“elevação do espírito até Deus”, pois “transcender para o infinito
está no próprio finito como negação de si mesmo” e, por isso, “o não
ser do finito é o ser do infinito”. Também o necessário deve ser visto
em seu processo dialético.
76 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

Enquanto Hegel mostra a insuficiência da prova cosmológica


e da teleológica, diz que a ontológica é a única verdadeira. Diz que
“a prova ontológica parte do conceito”. O conceito é considerado al­
go objetivo e é determinado como se opõe ao objeto e à realidade.
O começo e o interesse está em m ostrar que a este conceito
corresponde ser. O caminho é o seguinte: coloca-se o conceito de
Deus e mostra-se que não pode ser concebido a não ser como inclu­
indo em si o Ser. Enquanto se distingue o conceito de ser, só existe
subjetivamente em nosso pensamento; subjetivamente é o imper­
feito que só cai no espírito finito. Quer mostrar-se que não é ape­
nas nosso conceito, que também existe independentemente de nosso
pensamento (Lecciones sobre filosofia de la religión, pp. 306-311).
Hegel distingue entre conceito finito e conceito infinito. É da
essência do conceito finito que nele o conceito e ser são separados.
Nesta esfera concede razão à crítica de Kant. Mas, segundo Hegel,
na prova ontológica não se trata de conceito finito, pois “o conceito
absoluto, o conceito em si e para si” é o “conceito de Deus”. Nele
está superada a finitude da subjetividade. Por Kant não ter feito
tal distinção, afirma que “do conceito não se pode concluir a rea­
lidade”. No conceito absoluto há unidade entre conceito e ser, diz
Hegel. Por isso o conceito de Deus é idêntico com o ser. Também
aqui Hegel põe o absoluto ou Deus no começo de sua filosofia. Na
verdade a prova ontológica expressa o próprio sistema hegeliano
enquanto o finito é absorvido no infinito, enquanto Deus se faz
consciente na autoconsciência humana:

“O homem conhece a Deus só enquanto Deus se conhece a si mesmo nos


homens. Este saber é a autoconsciência de Deus, mas também o saber
que Deus tem dos homens, e tal saber é o saber que os homens têm de
Deus” (Enciclopédia, § 564)

Na leitura da história das religiões distingue primeiro três


momentos da consciência religiosa abstrata: a) a universalidade:
Deus é concebido como universal indiferenciado, como a realidade
infinita e verdadeira; b) a particularidade: Deus é concebido como
objeto oposto, que implica a consciência de mim mesmo como se­
parado e alienado dele, como pecador; c) a individualidade: o re­
tom o do particular ao universal, do finito ao infinito, sendo su­
perados a separação e a alienação. Vê o desenvolvimento históri­
co das religiões no esquema dialético em três etapas:
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 77

a) a religião natural: a idéia de Deus aparece como a potência


ou substância absoluta da natureza, ainda não se revelando como
espírito. Nesta fase distingue, em três etapas, a religião mágica,
a religião da substância e as religiões da Pérsia, Síria e do Egito.
Segundo Hegel, são religiões que correspondem à consciência
abstrata do universal indiferenciado;
b) a religião da individualidade espiritual: Deus é concebido
como espírito, como pessoa individual ou pessoas individuais. Aqui
Hegel situa a tríade: judaísmo, religião grega e romana. Esta úl­
tima, com seu panteão, significa reduzir o politeísmo ao absurdo;
c) a religião absoluta ou cristianismo: Deus se revela como
espírito absoluto. Corresponde ao terceiro momento da consciên­
cia religiosa, como síntese ou unidade dos primeiros. O espírito
infinito ou Deus é transcendente e imanente ao homem. Finito e
infinito são vistos como unidos. Por isso o conteúdo da religião
cristã é a unidade do divino e do humano na encarnação de Deus
em Jesus Cristo.
Hegel diz:

“A religião consumada é aquela na qual o conceito de religião retomou a


si — onde a idéia absoluta, Deus, enquanto espírito segundo sua verdade
e seu caráter manifesto, constitui o objeto da consciência. As religiões
anteriores nas quais a determinabilidade do conceito é menor, mais
abstrata e defeituosa, são religiões determinadas que constituem etapas
de transição do conceito de religião até seu acabamento. Esta religião
revelada é, pois, a cristã. A religião cristã mostra-se-nos como a religião
absoluta” (El concepto de religión, p. 126).

Entretanto, para Hegel, como já vimos, o centro do mistério


cristão não é Jesus Cristo, mas a Trindade. Como o espírito abso­
luto é o pensamento e como tal se distingue de si mesmo, também
Deus não é uma unidade indiferenciada, mas trindade de pessoas
em sua infinita vida espiritual. Essa trindade corresponde aos três
momentos da dialética da idéia do espírito: o Pai é o permanecer
imutável de Deus, como idéia em si; o Filho ou deus-homem, é a
manifestação de Deus fora de si na natureza; o Espírito Santo é o
retomo do mundo a Deus e sua reconciliação com ele.
Como avaliar o sistema hegeliano quanto à questão de Deus e
da religião?
78 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

3.2.5. Crítica à crítica de Hegel

Hegel é o filósofo da razão absoluta. Significa o ápice do idea­


lismo alemão. Tem como objetivo fundamentar uma metafísica
isenta da crítica kantiana. Por isso não quer tirar conclusões da
experiência que a ultrapassem, mas indagar pela essência e pelas
condições da própria experiência. Seu objeto é o evidente, ou seja,
investiga o que se considera o conhecido. A essência do pensamento
de Hegel é a dialética. Para ele, pensar é o processo de unificação.
Metafísica e lógica coincidem: “Tudo que é real é racional; tudo o
que é racional é real” (Enciclopédia, § 6). Não há distinção entre o
pensamento absoluto e o ser absoluto; o pensamento não é senão
pensamento do Ser e o Ser não é senão pensamento. Pensamento
e ser se identificam: o pensamento é ser e o ser épensamento. O que
Kant separa, Hegel trata de unir: Ser e pensar. Assim a dialética
aparece como regra formal de procedimento, mas em todos os ní­
veis de reflexão aparece como uma forma nova. Forma e conteúdo
nela são inseparáveis. Por isso a dialética é também a essência das
coisas. O pensamento em todos os seus objetos sempre se ocupa
consigo mesmo, de maneira que sempre se confronta consigo
mesmo. A consciência, que é dialética, vê as coisas como dialéticas.
A verdade nunca está numa posição fora do contexto, mas “o
verdadeiro é o todo”. O singular é o que é pelo contexto. Este
pensamento de contextos que leva a sério as contradições como mo­
mento da realidade, dificulta a interpretação das obras de Hegel.
Nos escritos da juventude, publicados postumamente, tenta
compreender a realidade espiritual na religião, no Estado e na
História. Primeiro serve-se da filosofia de Kant e do iluminismo.
Vê todo o sentido da fé numa religião da razão é o ponto alto do
desenvolvimento religioso da humanidade. Jesus aparece, contudo,
como representante e mestre da fé moral da razão. Como também
o Evangelho foi falsificado numa religião positiva do Estado,
contrapõe uma religião do povo fundada na razão moral. Na ju­
ventude exerceu papel fundamental o conceito de vida e de amor.
A vida é a unidade original e a propriedade fundamental de toda
a realidade. Contudo pode opor-se a si mesma e na reflexão sus­
pender a unidade original. A mediação entre os contrários é o
amor, o qual supera a separação sem que o separado deixe de
existir. Por isso amor é essencialmente conciliação, um encontrar-
KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO 79

se a si mesmo no outro. O amor é unidade dialética e constitui uma


das experiências fundamentais do sistema filosófico de Hegel.
Poder-se-á perguntar a Hegel: é a identidade especulativa
entre finito e infinito mais que sonho idealista? Certamente Hegel
conhece a diferença entre finito e infinito, entre Deus e homem,
mas tentou superá-la no saber absoluto do espírito absoluto. A
reconciliação absoluta é possível pela filosofia? A superação dos
contrários no espírito absoluto é mais que afirmação dogmática?
Sem dúvida, a dialética do amor do jovem Hegel poderia
alargar a dialética do conhecimento. O jovem Hegel fez uma ex­
periência do amor que une, sem dominar e ser dominado, que
respeita o outro como o outro. Mas caberá ver Deus no mundo,
transcendente na imanência. A dialética do amor cria novo espaço
para o ser de Deus e a liberdade do homem.
Podemos perguntar ainda: é na concepção hegeliana de história
tudo tão racional? Na sua filosofia da história desaparece o drama,
a arbitrariedade, a injustiça concreta. Tudo é absorvido pela sín­
tese especulativa. Não nega especulativamente a realidade
empírica concreta? Os fatos históricos falam outra linguagem que
a sistematização hegeliana. Aí nem tudo é tão racional e lógico.
Não forçou Hegel tudo para dentro de seu sistema? Certamente
ele responderia que se trata do sistema absoluto, do eu absoluto:
de Deus como é em si, que se aliena e a si retoma, do sistema deste
Deus no mundo. Não é o Deus deste sistema um prisioneiro de si
mesmo? Não está este Deus envolto na necessidade de um sistema
de ciência? Claro, não pretendemos defender a idéia de um Deus
dominador, onipotente e arbitrário. Mas também não concorda­
mos com um Deus distante da realidade concreta. Deus é vivo na
história e no mundo, não apenas na idéia de um sistema.
Enfim, para Hegel, existe Deus?
Para responder esta questão hoje não basta a convivência
pacífica entre teologia e ciência. Pressupõe o diálogo crítico entre
teologia e pensamento moderno. E aqui destaca-se o diálogo com
Hegel. Nos tempos modernos muda não só a visão do mundo, mas
também a visão de Deus. Não mais basta o apelo de Pascal ao Deus
da Bíblia ou o procedimento de Descartes que, pressupondo uma
visão modema do mundo, prescinde do Deus bíblico e apela a um
Deus abstrato dos filósofos. Hegel tentou superar a divisão entre
a ciência e a fé, entre o Deus da Bíblia e o absoluto filosófico atra­
80 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO

vés da mediação. Entretanto absorve a fé na ciência e o Deus bí­


blico na do absoluto filosófico. Não soube manter a diferença
adequada entre Deus e homem. Hegel tem razão quando insiste
em unir Deus e homem. Deus nunca é produto do homem. Também
não se pode identificar a razão divina e a humana, embora sejam
inseparáveis. Em toda a unidade deve manter-se a diferença en­
tre ciência divina e humana. Entretanto deve-se reconhecer a
Hegel o mérito de ter superado o conceito grego de Deus. A
metafísica clássica dos gregos, como foi assumida por teólogos
cristãos, é insuficiente para superar uma ingênua compreensão
antropomórfica de Deus. Platão introduziu, no Ocidente, a divisão
dualista entre Deus e mundo. Aristóteles trouxe o mundo platônico
das idéias para este mundo. Mas Deus dá um empurrão inicial ao
mundo e o deixa entregue a si mesmo. Descartes consolidara este
dualismo. Hegel, entretanto, buscou a mediação para ver Deus e
mundo numa unidade. Isso significa que o Deus transcendente é
imanente ao mundo. Deus está neste mundo e este está em Deus,
o infinito no finito. Deus tomou-se próximo. Platão situara Deus
(os deuses) fora do tempo. Aristóteles também acentua sua
imutabilidade como ato puro. É o primeiro motor imóvel. Segun­
do Hegel, Deus não é imóvel e imutável, estático. É histórico, ou
seja, é vivo e atuante na história. Como etemo, Deus funda a
história do homem e do mundo, sendo, ao mesmo tempo, origem,
centro e futuro do homem e do mundo. A religião tenta apresentar
o espírito absoluto como revelação de Deus. Na filosofia da religião,
Hegel tenta recuperar as provas da existência de Deus, tendo como
centro um esclarecimento especulativo da Trindade. Enquanto a
religião apresenta o absoluto como objeto da fé, a filosofia
hegeliana tenta pensá-lo.

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4

WITTGENSTEIN E POPPER:
A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

Nos tempos modernos, a luta entre a fé e a razão deu ganho


de causa à razão. Deus e religião sempre mais foram silenciados.
Até se chegou a proclamar a morte de Deus. Entretanto hoje co-
meça-se a perguntar: é irreversível o caminho para o ateísmo ou
tem a fé em Deus ainda futuro, quem sabe novo faturo?
Em nosso século reina a tendência forte, na filosofia, que se
orienta nas ciências empíricas. A própria filosofia toma-se teoria
da ciência. O processo do iluminismo conduziu o homem ao uso de
sua própria razão. Mas vive ele só da razão? Não se tom a irra­
cional a absolutização da razão e do conhecimento científico?
Vontade e sentimento, fantasia e emoção não podénrser reduzidos
à pura razão científica. O ideal da ciência modema é: método
adequado, clareza e exatidão. Isso, para muitos, significa sim­
plesmente matematização dos problemas. No campo do quantita­
tivo e mensurável deve imperar o espírito geométrico, a objetivi­
dade e a neutralidade. Com isso todavia não está dito que se possa
ou deva estender o método matemático-científico, com reivindi­
cação exclusiva, a todos os campos do espírito hum ano. A
matematização, a quantificação e a formalização são insuficien­
tes para abranger fenômenos qualitativos específicos da existên­
cia humana como a arte, a música, a religião, o amor, a fé, etc. É
justo indagar por uma lógica puramente formal, por uma análise
da linguagem ou construir uma teoria da ciência segundo o método
da verificação ou falsificação de proposições empíricas. Também
os filósofos devem sêrvir-se da lógica, da análise lingüística e da
teoria da ciência. O problem a começa quando se pretende
absolutizar tais ciências e quando a filosofia se reduz à lógica for­
mal ou a simples questão de método. A filosofia-também não pode
reduzir-se à mera destruição crítica. Os métodos estão em função
do conteúdo ou do objeto.
84 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

Neste horizonte, a ciência moderna teve que silenciar a questão


de Deus, pois ele não ocorre na experiência como objeto. Mas pode
a ciência ter pretensões absolutas sem deixar de ser ciência? Se a
ciência for fiel a seu ideal metódico, abster-se-á de pronunciar
juízos sobre o que extrapola o horizonte de sua experiência. Com
isso reconhecerá seus próprios limites, pois não tem respostas a
todos os problemas existenciais do homem. Certamente a razão
científica não substitui a fé em Deus, nem a religião. A filosofia
se faz com uma racionalidade crítica (Descartes e Kant), mas deve
combater o racionalismo ideológico caracterizado por dogmatismo
racionalista. Tal tendência parece manifestar-se sempre mais em
nosso século, na filosofia da ciência, como exemplificam as filo­
sofias de Ludwig Wittgenstein, Karl Popper e outros. Nessas fi­
losofias Deus e religião não ocorrem porque são objeto que não
interessa. Desconfia-se de que o discurso sobre Deus e religião não
tenha sentido ou seja absurdo, ao menos do ponto de vista lógico.

4.1. Ludwig Wittgenstein: o empírico e o místico

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) escreveu em estilo original


e atraente. Foi pensador que viveu apaixonadamente o que pen­
sava. Por isso despertou muita curiosidade. À originalidade de sua
obra reflete uma vida inquieta e fora dos padrões convencionais.
Parte da idéia de que a linguagem tem limites impostos por sua
estrutura interna, limites que manifestam os limites do próprio
pensamento. Seu pensamento é, sem dúvida, dos mais influentes
e originais de nosso século, embora durante sua vida tenha pu­
blicado muito pouco de sua produção intelectual.
Através de seu Tractatus logico-philosophicus (1921),
Wittgenstein representa a formulação clássica do problema da
teoria da ciência. Embora ele mesmo tenha abandonado sua po­
sição original em obras posteriores, permaneceu a influência de­
cisiva dessa obra. Nela unem-se o racionalismo cartesiano e o
empirismo inglês. Proposições da matemática e da lógica e da ciên­
cia empírica podem ser proposições com sentido.
No Tractatus busca uma linguagem que responde ao seguinte
postulado: “O que se pode dizer, em geral se pode dizer claramente;
e o que não se pode falar, se deve calar” (prefácio). Tal linguagem
W1TTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

pode reduzir-se a algumas frases elementares, formadas pela


conexão de alguns nomes (4.22). Na frase os nomes representam os
objetos (3.22) e sua conexão proporciona o conteúdo. A existência
de um conteúdo, Wittgenstein chama de fato (2) e ao conjunto de
fatos chama mundo (1.1). A frase reflete a realidade do fato, tendo
com ela em comum a forma lógica. Em outras palavras, a estrutura
da frase e da realidade se correspondem. A forma lógica não se diz,
mas se mostra (4.12). Por isso as proposições da lógica nada dizem
(6.11). Uma frase, que diz algo, apresenta um fato. Por isso o con­
junto de proposições verdadeiras descreve o mundo como a tota­
lidade dos fatos e representa toda a ciência natural((4.11). As pro­
posições sobre o inefável carecem de sentido. Através dessa filosofia
do Tractatus influenciou o Círculo de Viena e todo o neopositivismo.
O neopositivismo do Círculo de Viena concentra todo o inte­
resse nas chamadas proposições de base ou protocolares enquanto
expressam o conteúdo de observações. Todas as demais proposições
ou sentenças só adquirem valor cognoscitivo se podem ser redu­
zidas a estas sentenças elementares. A questão que se propôs é a
segu in te: É p ossível form ular tais sentenças de modo
intersubjetivamente válido? Inicialmente se identificou a não-
verificabilidade como sinônimo de falta de sentido. Depois o pro­
blema da verificação, também no neopositivismo, recebeu, aos
poucos, soluções diferenciadas.
A tarefa da filosofia, segundo o Tractatus, é o esclarecimento
lógico das proposições científicas. A filosofia não representa uma
doutrina ao lado das ciências. Antes consiste numa terapia, ou seja,
não resolve problemas filosóficos, mas apenas cura enquanto os
faz desaparecer, reduzindo-os à mera análise de linguagem. No
Tractatus diz que a

“finalidade da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. A fi­


losofia não é teoria, mas atividade. Uma obra filosófica consiste essen­
cialmente em comentários. A filosofia não redunda em proposições filo­
sóficas, mas em tomar claras as proposições” (4.112).

Neste ponto pouco altera sua posição nas Investigações filo­


sóficas (1951). Diz:

“Não queremos refinar ou completar de modo inaudito os sistemas de


regras para o emprego de nossas palavras. Pois a clareza, à qual aspi­
86 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

ramos, é na verdade uma clareza completa. Mas isto significa apenas que
os problemas filosóficos devem desaparecer completamente (...) Resol-
vem-se problemas, não um problema. Não há um método da filosofia, mas
sim métodos, como que diferentes terapias” (n. 133).

A partir da posição do Tractatus é conseqüente não dizer nada


de Deus e da religião, pois os fatos são o único objeto da ciência e,
pela mediação da ciência, também o único objeto da filosofia. Os
fatos são mensuráveis, determináveis. Claro, determinações são
limites. O infinito não é mensurável. Portanto, a ciência, conse­
qüentemente a filosofia, trata do finito, dos fatos.
Wittgenstein, no caminho da racionalidade científica, radica­
liza Descartes, pois este ainda reconhecera à fé e à teologia idéi­
as, embora não claras e distintas. Wittgenstein, que unira o logicis-
mo matemático de B. Russell com o empirismo inglês, afirma que
todas as proposições que ultrapassam a ciência carecem de sentido:

“A maioria das proposições e questões escritas sobre temas filosóficos não


são falsas, mas absurdas. Por isso não podemos em geral responder a
questões dessa espécie, apenas estabelecer seu caráter absurdo. A
maioria das questões e das proposições dos filósofos se apóiam, pois, no
nosso desentendimento da lógica da linguagem” (4.003).

4 .1 .1 . E o que não se pode falar?

A conseqüência do Tractatus é que não só certas proposições


filosóficas, mas todas as afirmações com conteúdo metafísico ou
religioso, enquanto se referem a algo não mundano, são absur­
das. Da religião apenas se pode falar como factum, mas "Deus não
se revela no mundo” (6.432). Conforme o Tractatus, há proposi­
ções com sentido no campo intramundano: “Os limites de minha
linguagem denotam os limites de meu mundo” (5.6). Mas ao
mesmo tempo diz que o “o sentido do mundo deve estar fora dele”
(6 .4 1 ) e “existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é o
místico? (6.522). Portanto, Wittgenstein não cala acerca de Deus
e do místico, sendo inconseqüente, de certa forma, com os princí­
pios estabelecidos.
Por que Wittgenstein fala do indizível?
Para a vida humana ele é muito importante: “Sentimos que,
ainda que a todas as possíveis questões científicas fosse dada
WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ 87

resposta, nossos problemas vitais não teriam sido tocados. Sem


dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e esta é precisamente a
resposta” (6.52) e

“observa-se a solução dos problemas da vida no desaparecimento desses


problemas. (Esta não é a razão por que os homens, para os quais o sentido
da vida se tomou claro depois de longo duvidar, não podem mais dizer
em que consiste esse sentido?)” (6.521).

Há algo fora da linguagem e fora do mundo?

4.1.2. O místico

Wittgenstein responde: sim. É o místico. Se a linguagem des­


critiva, se aquilo que se pode dizer se identifica com a totalidade
das proposições da ciência natural, resta perguntar: o que aconte­
ce com as proposições da metafísica, da ética, da estética e da re­
ligião? Segundo ele carecem de sentido, porque tentam ultrapas­
sar o limite da linguagem e, portanto, do mundo. Admite que haja
coisas importantes que não se podem dizer, mas apenas mostrar,
como é o místico. Conforme a lógica de nossa linguagem, só se pode
dizer como é a realidade e nada sobre o que é. Sentido e carente de
sentido são, em primeiro lugar, categorias lógicas. Wittgenstein
não afirma, como o Círculo de Viena, que se deve eliminar a metafí­
sica. Não nega a existência do indizível. As proposições metafísicas
contudo não se situam dentro dos limites da linguagem. Por isao
não passam de pseudoproposições. Não há discurso possível sobre
as essências, nem sobre o mundo considerado como um todo. E o
que se situa para além dos limites da linguagem não pode ser as­
severado pela própria linguagem. Só pode ser mostrado ou exibi­
do. Os limites da linguagem, para ele, coincidem com os limites do
discurso factual. Ora, as proposições filosóficas não são factuais.
Wittgenstein nega a realidade da fé e da religião?
Não. Nega-lhes o sentido factual. Jean Ladrière, em Articu­
lação do sentido, escreve com propriedade:

“Portanto, sua posição de modo algum é ateísta; exclui, sem dúvida, a


possibilidade de discurso concernente à existência de Deus, mas elabora
um procedimento que conduz ao reconhecimento desta existência. Este
procedimento não pode ser explicitado sob a forma de raciocínio, de ar­
88 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

gumentação constrangedora do ponto de vista lógico; contudo, não se pode


dizer que seja irracional, posto que se apóia na linguagem” (p. 70).

Lendo atentamente a última parte do Tractatus e o prefácio,


temos a impressão de que Wittgenstein situa os problemas mais
profundos fora da linguagem. Deixa, todavia, certa ambigüidade.
De uma parte, o indizível tem conotação positiva e, de outra, pa­
rece compartilhar a atitude positivista de menosprezo. Inegavel­
mente a distinção entre o dizer e o mostrar caracterizam a filosofia
de Wittgenstein. Parece que, no Tractatus, o mais importante é
aquilo que não foi dito.
O mundo, com seu contingentismo, não pode fundar o valor.
Este deve ter sua origem fora do próprio mundo, em algo neces­
sário, que, evidentemente, também, não pode ser a lógica. A pro­
posição 6.41 perm itiria concluir que o homem, no sentido
metafísico, estando fora do mundo, poderia ser a fonte de valor.
Mas interpretações mais recentes bem mostram que Wittgenstein
afirma a necessidade de Deus como ser necessário e fonte do valor.
Assim, através do problema ético, chega a questão de Deus, quase
como exigência de sua visão total de mundo. Se Deus é, por defi­
nição, exterior ao mundo, é, ao mesmo tempo, interior porque o
mundo dele depende. A parece aqui o velho problem a da
transcendência e imanência de Deus. Claro, Deus não pode ser,
segundo o Tractatus, uma conclusão lógica dá ciência. Que tipo de
afirmação então faz? Na realidade tira uma conclusão metafísica,
embora negue a possibilidade da metafísica no plano do discurso
lógico. Com isso o místico é apenas outro nome para a metafísica.
E Wittgenstein disse muito para além da ciência e da lógica. Na
prática ultrapassou os limites de sua teoria.
Wittgenstein nega a possibilidade de constatar o metafísico,
no sentido tradicional. Isso, segundo ele, significa que a experiên­
cia do místico é indizível na linguagem lógica postulada. Tal po­
sição tem conseqüências sérias para a filosofia. De certa maneira
condena-a ao silêncio. Reduz toda a filosofia a ser crítica da lin­
guagem e “esclarecimento lógico do pensamento”. Os problemas
da vida são indizíveis.
Wittgenstein está convencido de que na ciência há problemas,
mas, em princípio, são solúveis. Na vida é diferente. Aí os pro­
blemas aparecem, quando já desapareceram. Mostrando clara­
WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ 89

mente o exprimível ou expressável, quer mostrar o inexprimível


ou místico como o mais importante na vida. O místico, sendo o
imediato, é o limite do interrogar. Para ele, os temas místicos (o
mundo como globalidade, a vida e a morte, a felicidade) não são
objeto de investigação filosófica. Comparada com a ciência, a fi­
losofia é sem sentido. Carece de objeto próprio.
Em resumo, pode-se concluir que soluções filosóficas a priori
carecem de sentido. Para Wittgenstein, de um lado, existe ciência
e, de outro, existe vida. Não existe metafísica. Contudo não é indi­
ferente em relação à vida e à filosofia. Entretanto vida e ciência
constituem esferas independentes. Esta visão hoje pode ser con­
testada radicalmente, visto carecer do sentido mais recente dado
à investigação, pois a ciência não se apóia apenas era proposições
figurativas, ou seja, em fatos. A solução dos problemas da vida, para
Wittgenstein, deve ser procurada fora da filosofia porque esta deve
guardar silêncio em face ao campo dos valores e da metafísica.
Talvez esta tenha sido a principal razão por que, depois de escrito
o Tractatus, Wittgenstein tenha se retirado do convívio dos filóso­
fos, pois, resolvidos todos os problemas filosóficos, foi conseguido
muito pouco.
Poder-se-ia comparar a posição de Wittgenstein com a de Kant?

4.1.3. Wittgenstein e Kant

No Tractatus há um processo que permite traçar os limites


entre o exprimível e o inefável e mostrar que um mundo apenas é
possível à medida que ele pode ser exprimido lingüisticamente;
para Kant, entretanto, a experiência possui não só forma, mas
também conteúdo. Enquanto no Tractatus o mundo é um pres­
suposto situado aquém da experiência, sem conteúdo propria­
mente dito, para Kant, as proposições sintéticas a priori se refe­
rem, exclusivamente, à forma da experiência. Enquanto, no
Tractatus, a linguagem não tem capacidade auto-referencial, se­
gundo Kant, é possível formular proposições significativas no
domínio transcendente; enquanto, no Tractatus, as questões
metafísicas, éticas e estéticas, como as religiosas, não são passíveis
de formulação lingüística, Kant recorre à razão prática.
Kant. tentou demarcar os limites do pensamento; Wittgenstein,
os limites da linguagem. Kant delimitou o conhecimento factual;
90 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

Wittgenstein, o discurso factual. Ambos relegaram a metaíísica a se­


gundo plano. Enquanto Kant situava as verdades da religião e da moral
na Crítica da razão prática, Wittgenstein as situa no campo místico/
Wittgenstein rejeitou a metafísica como sistema filosófico.
Neste ponto aproxima-se de Kant, estabelecendo limites lógicos ao
conhecimento. Mas, embora rejeite a metafísica como sistema,
desde o Tractatus até as Investigações defronta-se sempre com algo
que não pode ser dito, que todavia se mostra. A primeira vista, é
mais radical do que Kant, que menosprezou o discurso metafísico
de seu tempo, garantindo lugar para o homem expressar a cons­
ciência que tem do dever moral. Kant admitira uma linguagem
que, excedendo os limites do que pode ser analisado logicamente
pode ser dito em conceitos como Deus, imortalidade da alma etc.
Para Wittgenstein, a consciência da vida moral e prática situa-se
fora do âmbito da filosofia. Trata-se de metafísica do silêncio.
Todo o Tractatus depende da concepção da linguagem. Cabe,
pois, examinar se a fundamentação de sua teoria da linguagem é
suficientemente sólida. A concepção de linguagem do Tractatus
parte do fato de que o homem faz figurações da realidade. Primeiro
a linguagem é o conjunto das proposições elementares, e estes
conjuntos de nomes que figuram, num perfeito paralelismo, os
fatos atômicos, conjuntos de coisas ou objetos. A proposição é
concebida como reprodução exata do fato que representa. A pro­
posição elementar é a que mantém contato direto com a realidade.
Pelo princípio de extensionalidade, as proposições ou são ele­
mentares ou complexas. As últimas são funções de verdade das
elementares. Como há paralelismo completo entre linguagem-
mundo, proposição-fato, o que vale da linguagem vale também do
fato, do mundo. Cada proposição é um átomo lingüístico como o
mundo é um conjunto de átomos ontológicos.
Toda a linguagem está baseada nas proposições elementares
entendidas essencialmente como figurações de fatos atômicos, ou
seja, empíricos. A primazia da linguagem em face ao mundo e à
concepção especular e passiva da proposição é o ponto de partida
do qual deriva tudo. A questão é: como poderão as proposições
elementares, sendo determinadas, gerar proposição universal? A
concepção de linguagem do Tractatus não permite integrar as leis
científicas e, conseqüentemente, não consegue fundamentar uma
filosofia da ciência. O próprio conceito de filosofia como crítica da
WITTGENSTEIN E POPPER; ATiACIONALIDADE CIENTÍFICA B A FÉ 91

linguagem é anulado pelo fato de expor concepções de mundo,


substância, fatos, objetos etc., no sentido tradicional de filosofia.

4.1.4. Crítica à crítica de Wittgenstein

Embora, à primeira vista, a partir da concepção de linguagem


seja possível a existência de metafísica, materialmente tal se
encontra no Tractatus, como já mostramos. Afirma a existência de
domínio metafísico centrado no problema do orando e do homem.
Embora não se possa-falar da metafísica, dela Wittgenstein con­
segue falar muito.
Da discutível concepção de linguagem deriva igualmente dis­
cutível concepção de mundo. Como o mundo não passa de um
derivado da linguagem, objetos e fatos atômicos, na verdade, são
elementos puramente lógicos e convencionais. Assim o atomismo
funda-se exclusivamente em razões lógicas, não ontológicas ou
físicas. Tudo isso porque esquece o fundamento antropológico da
linguagem, pois a linguagem é vinculada ao homem, seu elemento
ativo, síntese de racionalidade e sensibilidade. O homem cria a
linguagem. Nela, nas proposições mais elementares, está presente
o geral. Para o homem, perceber é já conceber. As proposições mais
elementares são síntese de individual e universaL Wittgenstein
ignora o papel ativo do sujeito e o caráter universal que a razão
confere ao conhecimento humano.
A forma lógica, como postulado para o paralelismo linguagem-
mundo, é pressuposto nada evidente. Antes parece um deus ex
machina para resolver todos os problemas. É realidade metafísica
que não se pode dizer, mas só mostrar.
Embora verbalmente rejeite a metafísica como carente de senti­
do, há no Tractatus afirmações metafísicas implícitas e explícitas, as
últimas sob o nome de místico. Entre as afirmações metafísicas im­
plícitas podemos citar três tipos: a) a existência e caracterização da
forma lógica, da substância e seus objetos; b) as teorias sobre a lin­
guagem, o mundo, a filosofia, a ciência, a lógica etc; c) a metafísica
explícita nas proposições sobre a ética e o místico. É esta metafísica
que dá à concepção de linguagem caráter provisório. A interpretação
dada à obra pelo neopositivismo fixou-se na concepção de Kngnagprn
e silenciou os pressupostos metafísicos. Ao mesmo tempo que o
Tractatus apresenta determinada concepção de linguagem que exclui
92 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

a metafísica, não só a pressupõe, mas até a formula. Em resumo, é


obra cheia de contradições e de caráter provisório. Por isso justifica-
se a segunda grande obra do autor, da qual aqui não trataremos.
Portanto, dizer que Deus não é logicamente pensável nem dizível não
significa dizer que Deus não existe. Deus apenas não é questão de
lógica ou de ciência empírica.

4.2. O ra cion a lism o cr ític o d e K arl P o p p e r

O movimento iniciado com o racionalismo moderno favoreceu


um movimento de secularização. Por outro lado, em nosso século,
toda uma tendência da filosofia seguiu o caminho da analítica
traçada por G. E. Moore e B. Russell. A investigação do dado
empírico absorveu cada vez mais as ciências e abandonou a in­
vestigação metafísica como tentativa estéril e ilusória. Restou,
então, para a filosofia, a tarefa de clarificação e análise lógica do
discurso sobre o mundo. Questões últimas, como a do transcen­
dente e de Deus, silenciam-se, na filosofia. Grande parte dos filó­
sofos contemporâneos passa a ocupar-se de muitos problemas sem
entrar nos problemas da filosofia da religião, que, para alguns, não
passam de pseudoproblemas. Para as questões tradicionais, como
a existência de Deus, não há resposta possível uma vez que sequer
se pode formular a pergunta com propriedade. Nesta linha de
pensamento cabe salientar a influência de Karl Popper.
Karl Raimund Popper (1902...), desde sua Lógica da pesquisa
científica (1935), em seu racionalismo crítico dedica-se ao estudo do
progresso ou da evolução do conhecimento científico. Popper formou
o núcleo das idéias de seu racionalismo longe do neopositivismo. Nega,
justamente, a necessidade de se partir dos “enunciados protocolares”
sobre fatos para depois generalizá-los através da indução. Segundo
Popper, não existe indução alguma. Diz que a conclusão desde algu­
mas afirmações especiais, verificadas pela experiência para chegar
à teoria, é improcedente. Em outras palavras, as teorias jamais se
podem verificar empiricamente.

4.2.1. O método crítico

Popper desenvolve sua lógica da investigação empírico-cientí-


fica como teoria da construção de teorias. Para definir um sis­
WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ 93

tema teórico ou em pírico estabelece como critério não sua


verificabilidade, mas sua falseabilidade, o que significa que, desde
logo, não se pode qualificar um sistema como definitivamente
positivo pela via empírica:

“O método descrito pode ser chamado método crítico. É método de ex­


periências e eliminação de erros, de propor teorias e submetê-las aos mais
severos testes que possamos projetar. Se em vista de certas admissões
limitadoras, só é considerado possível número finito de teorias concor­
rentes, este método pode levar-nos a isolar a teoria verdadeira pela eli­
minação de todos os concorrentes. Normalmente, — isso é em todos os
casos em que o número de teorias possíveis é infinito — este método não
pode verificar qual das teorias é verdadeira; nem o pode fazer qualquer
outro método. Ele permanece aplicável, embora inconclusivo” (Conhe­
cimento objetivo, p. 17).

Popper caracteriza o seu método:

“A diferença fundamental entre meu processo e o processo para o qual


apresentei há muito tempo a etiqueta de ‘indutivista’ está em que dou
ênfase a argumentos negativos, tais como exemplos negativos ou contra-
exemplos, refutações e tentativas de refutações — em suma, crítica —,
ao passo que a indutivista dá ênfase a ‘exemplos positivos’ dos quais
extrai ‘inferências não demonstrativas’ ” (Conhecimento objetivo, p. 30).

Segundo Popper, um sistema empírico-científico deve poder


falir na experiência. Com tal proposta metodológica acredita ter
resolvido o problema pelo modo de conjectura e refutação. A
indução, nesse método, manifesta-se inútil.
Popper distancia-se da filosofia lingüístico-analítica porque não
está interessado em definições ou em análises lingüísticas de palavras
ou conceitos. Pretende delimitar a ciência empírica não só em relação
à metafísica, mas também em relação à matemática e à lógica. Se­
gundo ele, o radicalismo positivista destrói não só a metafísica, mas
todo o conhecimento empírico. Por quê1^ Porque a maioria das pro­
posições empíricas também não são verificáveis. Considera que
Descartes substituiu a autoridade da Bíblia e de Aristóteles pelo cogito
e os empiristas a substituíram pelos sentidos. Descartes conclui
certezas por dedução e os empiristas por indução.
Para Popper, não existem tais certezas fundamentais como as
postuladas da razão e/ou dos sentidos. Já a observação através dos
94 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

sentidos é interpretação. Segundo ele, no início de todo o conheci­


mento há conjecturas ou hipóteses. Por isso teorias não se conclu­
em da experiência/Antes de tudo são hipóteses, projetos criadores,
que só têm valor hipotético. Precisam de verificação através de
método crítico, ou seja, da eliminação de erro. Através desse mé­
todo não podemos verificar proposições universais como “todos os
cisnes são brancos”. Quando muito podemos tentar falsear. Neste
caso bastaria constatar um único caso de exceção para falsear a
generalização. Portanto, uma única proposição singular poderá
refutar uma proposição universal: “Todas as teorias são hipóteses;
todas podem ser derrubadas” (Conhecimento objetivo, p. 39).
A posição de Popper em relação ao positivismo lógico pode ser
caracterizada da seguinte maneira:
a) é absurdo buscar uma ciência universal com linguagem
universal;
b) a filosofia não pode ser reduzida à mera “análise lógica” ou
mera “análise da linguagem”;
c) a linguagem não pode ser reduzida a símbolos matemáticos;
d) não existe um único método como seja o matemático-cien-
tífico;
e) conceitos não claros são inevitáveis no início da construção
de uma teoria;
f) há problemas genuinamente filosóficos que não se podem
esclarecer com os meios da ciência empírica: “Somos buscadores
da verdade, mas não somos seus possuidores” (Conhecimento ob­
jetivo, p. 53). Popper diz que

“o que parece indução é raciocínio hipotético, bem testado e bem corro­


borado e de acordo com a razão e o senso comum. Pois há um método de
corroboração — a tentativa séria de refutar uma teoria quando uma
refutação parece provável. Se essa tentativa falhar pode-se conjeturar,
em terreno racional, que a teoria é boa aproximação da verdade — me­
lhor, de qualquer forma, do que sua predecessora” (Conhecimeno obje­
tivo, p. 100).

4.2.2. Teoria científica e religião

Compreende-se, assim, que Popper seja autocrítico e objetivo


quando se trata de atitudes e valores religiosos. Reconhece que
muitos objetivos e ideais da cultura ocidental se devem ao cristi­
WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ 95

anismo, como é a liberdade e a igualdade. Quanto à questão da


liberdade diz que a única posição racional e também e única ati­
tude cristã perante a história da liberdade está em reconhecer que
nós mesmos somos responsáveis pela construção de nossa vida, e
que só nossa consciência, e não o êxito mundano, pode ser nosso
juiz. Reconhece que pessoalmente é movido por uma espécie de fé.
E isso já se manifesta em sua própria atitude científica: “Admiti­
mos certamente que nós não sabemos, mas conjecturamos. Esse
nosso conjecturar orienta-se por uma fé acientífica, metafísica, de
que existem algumas leis e normas que podemos desvelar e des­
cobrir”. Nesta mesma perspectiva ainda afirma: “Fica, pois, claro
que de modo algum o enfoque racionalista pode fundar-se sobre
argumentos ou experiências, e que um racionalismo universal é
insuficiente e insustentável”. E isso significa que o homem que
aceita o enfoque racionalista, age assim porque, sem uma reflexão
racional, aceitou uma proposta, uma resolução, uma fé ou uma
forma de comportamento que, no que a ele se refere, teria que
chamar-se irracional. Como quer que seja, podemos qualificá-lo
como uma fé irracional na razão. Por isso Popper pode dizer que

“não sente nenhuma animosidade contra um misticismo religioso e se­


ria um dos primeiros a opor-me à tentativa de reprimi-lo. Não sou alguém
que dou a palavra à intolerância religiosa. Mas reclamo para a fé na
razão, para o racionalismo ou sentimento humanitário o mesmo direito
a contribuir para melhorar as condições humanas que para qualquer
outra confissão de fé”.

A posição de Popper, na questão do conhecimento, situa-se


entre o ceticismo e o positivismo racionalista. Contra o otimismo
dos positivistas diz que não temos conhecimento seguro, que nosso
conhecimento é um adivinhar crítico, uma rede de hipóteses e
conjecturas. Em princípio, também em Popper, de maneira aná­
loga ao Tractatus de Wittgenstein, conhecimento é concebido como
determinação do determinado e, portanto, limitado e fáctico. As
teorias são proposições ou sistemas de proposições que se referem
aos fatos. Não esqueçamos que Popper estuda a formação de teo­
rias no campo das ciências empíricas. Ora, o determinado e limi­
tado em sua determinação, o fáctico e, portanto, o não-necessário
são pressupostos que, em princípio, prescindem de Deus, que na
religião sempre é o infinito, o ilimitado e absoluto e incompreen­
96 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

sível, que no seu absoluto transcende o fato. Em conseqüência,


uma teoria sobre Deus e, com isso, uma possível filosofia da reli­
gião não se enquadram numa teoria científica no sentido de Karl
Popper.
Como valorizar, então, a racionalidade científica moderna e
contemporânea?

4.2.3. Crítica à crítica da racionalidade científica

Em nosso século há muitos pensadores analíticos que tomam


a linguagem científica como norma e declaram carente de signi­
ficação (ao menos lógica) toda a linguagem que não se adapte aos
critérios estabelecidos para a linguagem da ciência. O positivismo
lógico primitivo (Círculo de Viena, o Tractatus), que se envolvia
com pressupostos metafísicos, hoje, entretanto, está definitiva­
mente superado. Bradley já mostrara que ninguém pode negar a
possibilidade de uma metafísica sem converter-se, ipso facto, em
sócio metafísico, pois o próprio princípio da verificação empírica
não é tautologia nem empiricamente verificável, mas metafísico.
R. Camap diz que a possibilidade de verificação deve ser en­
tendida em sentido lógico, não em sentido empírico. Em outras
palavras, o sentido de uma sentença não depende da impossibili­
dade de técnica de sua verificação atual, mas da possibilidade
lógica de sua verificação. O critério empirista de significação então
pode ser formulado nos seguintes termos: a verificabilidade de um
enunciado é a condição necessária para que seja considerado como
dotado de sentido. Neste contexto, proposições sobre a existência
ou não-existência de Deus carecem de sentido porque não existe
possibilidade lógica de sua verificação. Deus é, então, um
pseudoproblema filosófico.
Mas o critério de sentido mostrou-se insuficiente para explicar
a própria atividade de ciência experimental. Popper deu sua
contribuição neste sentido, mostrando que nosso saber não começa
com certezas últimas, e sim com conjecturas, modelos e hipóteses
com os quais interpreta a própria percepção sensível. Assim pro­
posições universais, embora tenham valor heurístico, são, em
princípio, inverificáveis.
Outros adotam posição mais flexível. Assim Ayer diz que todo
o discurso inverificável acerca de Deus transcendente carece de
WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

conteúdo lógico, de maneira que é absurdo não só afirmar mas


também negar a existência de Deus. Mas, em geral, tanto
neopositivistas como analíticos mostram-se pouco favoráveis a
conceitos metafísicos tradicionais como Deus e alma. Para Gilbert
Ryle, por exemplo, a concepção cartesiana de homem não se li­
bertou do “dogma do fantasma dentro da máquina”, e tenta mos­
trar que não existe o fantasm a m etafísico. Richard Bevan
Braithwaite reconhece que as afirmações religiosas não são
tautologias, nem proposições empiricamente verificáveis, mas daí
não conclui que são expressões sem sentido ou meramente
emotivas. Segundo ele, também afirmações morais sãc empirica­
mente inverificáveis. Mas isso não impede que sirvam de orien­
tação à conduta e lhes confere certo tipo de significação. Com o
princípio de utilização de que “a significação de toda a afirmação
é dada pela forma como é utilizada” trata-se, segundo Braithwaite,
de saber como são utilizadas as afirmações religiosas. Assim a
fràse “Deus é amor”, compêndio da religião cristã, declara a in­
tenção do cristão de seguir um estilo de vida agapástica. A religião
é considerada como certo estilo de vida.
O que os empiristas conseguem mostrar é que as afirmações
sobre Deus são distintas das afirmações sobre fatos empíricos
quaisquer. Mas em que consiste tal diferença? Braithwaite está
certo em mostrar a relação entre a linguagem religiosa e conduta
prática. Erra, contudo, ao reduzir as mesmas a asserções morais.
Dizer que o discurso religioso é significativo quando se refere a um
Deus de características temporais, leva-nos a perguntar: tal Deus
satisfaz as exigências da consciência religiosa?
Cabe destacar que alguns pensadores, como K. Popper, não
compartilham a idéia de que a filosofia deva limitar-se à análise
lógica. Semelhante filosofia meramente analítica, segundo Popper,
tom a-se tão pouco informativa acerca de Deus como acerca do
mundo. A filosofia analítica exerce apenas o papel de prolegômeno
a uma filosofia da religião. Esquece, todavia, que a linguagem é
uma função da existência humana. Todo o discurso é discurso de
alguém numa situação determinada e concreta. Se se quiser fa­
zer análise da linguagem religiosa é preciso pô-la em estreita re­
lação e correlação com a análise da existência humana nela ex­
pressa. Neste ponto emerge a filosofia da existência.
98 WITTGENSTEIN E POPPER: A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ

B ib liog ra fia
ASCOMBE, G. E. M., Introduccián al Tractatus de Wittgenstein, Buenos Aires, El Ateneo,
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FEUERBACH:
SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

Outrora Sócrates foi condenado à morte por ser ateu. Entretan­


to Sócrates não negara a Deus, mas apenas a veneração dos deuses
da tradição grega. O ateísmo, no sentido próprio e atual, não só nega
pluralidade de deuses e/ou determinado culto a Deus, mas é a negação
de Deus, ao menos como absolutização do próprio homem. Ora, tal
negação era difícil na Antiguidade e na Idade Média.
O ateísmo moderno nasce com a radicalização do numinismo
francês e, depois, com Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud. Tal
ateísmo penetrou em todas as camadas sociais e, sob o pretexto de
cientificidade, ameaça a fé em Deus e o cristianismo. O homem passa
a autodeterminar-se de maneira atéia. A orientação atéia não ocorre
só no comunismo, mas também a ciência e a técnica, como certas
correntes filosóficas contemporâneas, são atéias em sua orientação.
Assim, hoje, quem quiser viver a fé em Deus terá que confrontar-se
também com esse tipo de ateísmo. Decisivo é que agora o ponto de
partida para a consideração filosófica do problema de Deus e da re­
ligião não é mais a natureza, mas o próprio homem. Feuerbach realiza
uma interpretação antropológica da religião, ou melhor, uma redução
antropológica. Como pura antropologia, a nova religião é atéia. Nega
a Deus para afirmar o homem, só o homem.
Para algumas ideologias modernas não há libertação do homem
sem negação de Deus. Postulam total autonomia econômica e política
do homem, sem nenhuma referência a valores religiosos ou meta­
físicos. Tais ideologias partem do pressupostóque a religião é expres­
são e causa da alienação humana. Nesta linha situa-se o ateísmo de
Feuerbach e Marx. Para Feuerbach, “o conhecimento que o homem
tem de Deus é apenas o autoconhecimento do homem, de sua própria
essência”. Para ele, a nova filosofia é a redução total da teologia e de
toda a filosofia à antropologia, pois “o ser absoluto, o Deus do homem,
é a sua própria essência” CAessência do cristianismo, p. 47).
100 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

Ludwig Feuerbach (1804-1872) elaborou um materialismo


para o qual só existe o homem e a natureza e “nada mais”. Seres
superiores são apenas reflexo de nossa realidade. Sua obra mais
marcante é A essência do cristianismo (1841). Antes de Marx,
Feuerbach é o principal representante da “esquerda hegeliana”.
O próprio Karl Marx declara em 1844: “Feuerbach é nosso maior
profeta. Não há outro caminho até a verdade que aquele que pas­
sa por Feuer-bach (arroio de fogo); é o purgatório do presente”.
Naquela época, Marx cria que, na Alemanha, a crítica da religião
estava acabada com Feuerbach.
Feuerbach, reagindo contra Hegel e o racionalismo em geral,
proclama o sensismo ou empirismo antropológico. É a intuição
sensível (sinnliche Anschauung) que nos dá o ser ou a essência
(Wesen) imediatamente idêntica com a existência. Portanto, o real
em sua realidade é o que é objeto dos sentidos. Só o ser sensível é
ser verdadeiro, real e só mediante os sentidos, não com o pensa­
mento puro, é-nos dado um objeto propriamente como tal.
O ponto de partida da nova íilosoíia proposta por Feuerbach é
o ser real. A realidade fundamental é a natureza, não a consciên­
cia ou o pensamento, que são derivados ou secundários. O ser é o
sujeito, diz Feuerbach, e o pensamento, o predicado:

“A verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o


sujeito, o pensamento é o predicado. O pensamento provém do ser, mas
não o ser do pensamento” (Princípios, p. 31).

Portanto, para alcançar a verdade do ser é preciso passar do


pensamento abstrato para a realidade sensível, da essência para
a existência, da representação e fantasia para a intuição imedia­
ta sensível.
Aqui interessa-nos a crítica da religião e o ateísmo de
Feuerbach e sua fundamentação. Feuerbach resume sua evolução
espiritual nos seguintes termos. Deus foi meu primeiro pensamen­
to; a razão, o segundo; o homem, o terceiro e último”. Propõe-se a
elaboração de uma antropologia humanista. Neste caminho sentiu-
se obcecado pela religião que constitui o tema permanente de sua
investigação e reflexão. No prefácio à segunda edição de A essência dó
cristianismo diz: “Meu objeto principal é o cristianismo, é a religião
enquanto objeto imediato, êssencia imediata do homem” (p. 34).
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 101

5.1. Crítica do cristianismo e da religião

Feuerbach desenvolve sua crítica da religião nas obras A


êssencia do cristianismo (1841), Princípios da filosofia do futuro
(1843), A essência da religião (1845) e Teogonia (1857). Seu mé­
todo de indagação pode ser chamado de método genético-crítico,
ou seja, pergunta como e de onde surge a religião. Segundo ele, a
origem da religião funda-se na diferença entre o homem e o animal,
ou seja, na consciência do homem:

“A religião baseia-se na diferença essencial que existe entre o homem e


o animal. Os animais não têm nenhuma religião” (A essência do cristi­
anismo, p. 4).

A diferença entre homem e animal consiste na consciência, na


qual o homem tem por objeto de reflexão sua própria essência, sua
própria espécie. Esta consciência pode converter em objeto outra
realidade, outras coisas, de modo especial, seu próprio ser. Sinal
disso é o pensamento, a linguagem e o amor humanos. Essa di­
ferença entre o homem e o animal não só fundamenta a religião,
mas também seu próprio objeto. Religião é o comportamento do
homem perante seu próprio ser infinito. Nisso está sua verdade.
Por outro lado, a falsidade da religião está em o homem tom ar
independente de si mesmo o seu próprio ser infinito, separando-o
e opondo-o como diferente de si, produzindo a bipolaridade Deus
e homem, alienando, assim, o último, ou seja, empobrecendo-o.
Feuerbach afirma:

“O que é para a religião o primeiro, Deus, é em si, como foi demonstrado,


quanto à verdade o segundo, pois ele é somente a essência objetiva do
homem, e o que é para ela o segundo, o homem, deve, portanto, ser es­
tabelecido e pronunciado como o primeiro” (A essência do cristianismo,
pp. 309-310).

Feuerbach formula, de maneira mais sistemática, sua crítica


radical do cristianismo e da religião em A essência do cristianis­
mo. O seu objeto principal é o cristianismo, cuja dissolução em puro
antropomorfismo propõe-se demonstrar. No prefácio à primeira
edição começa dizendo que nessa obra o leitor “encontra os pen­
samentos aforísticos e polêmicos, esparsos em diversos trabalhos,
102 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

sobre religião e cristianismo, teologia e filosofia especulativa da


religião concentrados” (p. 17).
Desde o prólogo propõe-se como objetivo a inversão total do
cristianismo, reduzindo a teologia à antropologia, mostrando que
todos os predicados atribuídos a Deus se referem aó homem. A obra
divide-se em duas partes: na primeira parte trata da essência
autêntica, ou seja, antropológica, da religião. Diz no prefácio: “Na
primeira parte mostro que o verdadeiro significado da teologia é
a antropologia, que entre os predicados da essência divina e hu­
mana não há distinção, são idênticos” (pp. 29 e 30). “Deus é ho­
mem, o homem é Deus; não sou eu, é a própria religião que renega
o Deus que não é homem, mas somente um ens rationis” (p. 29). Diz
que “a primeira parte é, portanto, a prova direta; a segunda, a
prova indireta de que a teologia é antropologia” (p. 30).
Feuerbach está convencido de que a teologia se identifica com
a antropologia, a essência de Deus com a essência humana. O
ponto de partida e o princípio de sua demonstração centra-se na
concepção singular de homem e de religião. A religião funda-se na
diferença essencial entre homem e animal, pois os animais não têm
religião. Entretanto o essencial do homem é a consciência. Trata-
se aqui da consciência do gênero ou da humanidade. Esta cons­
ciência da humanidade constitui-se “pela razão, pela vontade e
pelo coração” . Portanto, se pensas o infinito, sentes e confirmas a
infinitude da faculdade de sentir. O objeto da razão é a razão
enquanto objeto de si mesma; o objeto do sentimento, o sentimento
enquanto objeto de si mesmo” (p. 50). Logo, a consciência, em
sentido próprio, é sempre consciência do infinito.
O homem não só é fundamento, mas também o objeto da re­
ligião:

“Na relação com os objetos sensíveis é a consciência do objeto facilmente


discernível da consciência de si mesmo; mas no objeto religioso a Cons­
ciência coincide imediatamente com a consciência de si mesmo. O objeto
sensorial está fora do homem, o religioso está nele, é mesmo íntimo” (p.
55). Por isso, “a consciência de Deus é a consciência que o homem tem
de si mesmo” (p. 55).

Feuerbach critica a religião por não dar a devida importância


à vida presente pondo toda a esperança de libertação no céu. Por
isso o homem religioso, segundo ele, não se compromete com a
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 103

mudança e transformação, com a injustiça, o sofrimento e a misé­


ria deste mundo. A religião leva-nos a aceitar todas essas coisas
resignadamente sem lutar contra elas, projetando nossa felicidade
no outro mundo. Afirma:
“Quando a vida celestial é uma verdade, é a vida terrena uma mentira,
quando a fantasia é tudo, a realidade não é nada. Quem crê numa vida
celestial eterna, para ele esta vida perde o seu valor. Ou antes, já perdeu
o seu valor: a crença na vida celestial é exatamente a crença na nulida-
de e imprestabilidade desta vida” (A essência do cristianismo, p. 202).
Pouco mais adiante:
“O céu nada mais é do que o conceito do que é verdadeiro, bom, válido,
daquilo que deve ser; a terra nada mais é do que o conceito do que é falso,
ilegítimo, daquilo que não deve ser” (A essência do cristianismo, p. 209).
Feuerbach argumenta que o ateísmo é necessário para que as
classes oprimidas possam lutar por sua libertação, pois “só o ho­
mem pobre tem um Deus rico”. Quer mostrar que o correlato
metafísico da fé inexiste; que Deus, objeto da crença, não existe.
O homem projeta a idealização de suas qualidades próprias em um
ser transcendente. Feuerbach nega, pois, o correlato metafísico da
fé, não a projeção. Ao projetar a si mesmo, o homem aliena-se de
si mesmo, gerando a divisão em si mesmo. A alienação religiosa,
segundo ele, é tomar como Deus algo que, na verdade, é apenas
expressão do próprio homem, ilusão, ídolo.
O jovem Feuerbach queria ser teólogo. Seu primeiro pensa­
mento foi Deus. Desejava tomar-se pastor luterano. Desde 1823
estudou teologia em Heidelberg. Através dos professores de dog­
mática interessou-se por Hegel e foi a Berlim. Num segundo mo­
mento voltou-se para a razão. Tomou-se hegeliano. No contato com
Hegel, decidiu-se pela filosofia. Em 1828 doutorou-se em filosofia
pela universidade de Erlangen. Em 1829 foi nomeado professor
adjunto. Até 1832 lecionou história da filosofia, lógica e metafísica.
Mas sua obra Pensamentos sobre morte e imortalidade (1830),
publicada sem o nome do autor, foi apreendida pela polícia e
identificada, pondo-o em conflito com as autoridades acadêmicas.
Num terceiro momento Feuerbach distanciou-se de Hegel e
dedicou-se ao homem. De hegeliano transformou-se em ateu.
Pretende superar a distância entre imanência e transcendência
104 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

não só no pensamento, como Hegel, mas também na realidade


prática. Busca a vida neste mundo. Em 1836, afasta-se da uni­
versidade de Erlangen. Depois do casamento recolhe-se ao silên­
cio na aldeia de Bruckberg, dedicando-se totalmente à filosofia.
Chega à conclusão de que razão e fé, filosofia e teologia, iluminismo
e cristianismo são inconciliáveis. Quando Hegel afirma que a
consciência do homem sobre Deus é a autoconsciência de Deus,
Feuerbach responde que o ser absoluto, o Deus dos homens, é seu
próprio ser:

“Como o homem pensar, como for intencionado, assim é o seu Deus:


quanto valor tem o homem, tanto valor e não mais tem o seu Deus. A cons­
ciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhe­
cimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Por
seu Deus conheces o hamem; e, vice-versa, pelo homem conheces o seu
Deus. Ambas as coisas são idênticas” (A essência do cristianismo, p. 55).

Feuerbach admite a unidade do infinito e do finito. Mas, ao


contrário de Hegel, põe o infinito no homem e não no absoluto. E
o homem, para Feuerbach, é “corpo consciente”, não puro pensa­
mento. Critica o idealismo de Hegel postulando uma teoria do
conhecimento materialista. Diz que apesar de Hegel apelar à
percepção sensível, sua filosofia não começa com a percepção
sensível, mas com a idéia de percepção sensível. Com isso, o se­
cundário toma-se o primeiro, absolutizando-se a consciência em
relação ao ser, subordinando o método dialético ao sistema; em vez
de tomar a realidade (a natureza) como o critério para a filosofia,
esta toma-se o critério para a realidade. Feuerbach quer uma fi­
losofia que possa satisfazer todas as exigências humanas e con­
siderar o homem em sua realidade concreta material. Professa o
sensismo, para superar o idealismo hegeliano, porque os sentidos
nos proporcionam a essência das coisas.
No tempo de Feuerbach, o cristianismo especulativo de Hegel
passou a ser interpretado de duas maneiras: a) como tentativa de
justificar as verdades cristãs racionalmente para tomá-las acei­
táveis para o homem modemo. Desta forma, a religião é assumida
positivamente na filosofia (direita hegeliana); b) como tentativa
de apresentar as verdades cristãs como forma transitória para a
filosofia, a razão especulativa e seu saber absoluto. Desta maneira
a religião seria assumida negativamente ou dissolvida na filosofia
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 105

(esquerda hegeliana). Entendendo Hegel da segunda maneira,


podia chegar-se à conclusão de que ele, em última análise, já era
ateu. Por isso, segundo Hegel, deveria substituir-se a religião
cristã pela filosofia.
A filosofia especulativa de Hegel agora só permite à religião
dizer o que ela mesma pensou. Feuerbach situa-se entre os que
sacrificam a religião à filosofia; os representantes da teologia cristã
da época sacrificavam a filosofia à religião. Neste contexto
Feuerbach escreveu A essência do cristianismo. A teologia aí é
reduzida à antropologia. Deus, religião e imortalidade são des­
tronados e é proclamada a república filosófica na qual “o homem
é deus para o homem”.
A tese fundamental de Feuerbach em relação a Hegel é a se­
guinte: “O mistério da teologia é a antropologia” (Princípios, p. 19).
O homem toma-se o ponto de partida da nova filosofia: “O come­
ço da filosofia não é Deus, não é o absoluto, nem o ser como
predicado do absoluto ou da idéia — o começo da filosofia é o finito,
o determinado, o real” (Princípios, p. 24). Diz Feuerbach que a
“nova filosofia faz do homem, com a inclusão da natureza, en­
quanto base do homem, o objeto único, universal e supremo da
filosofia — faz, pois, da antropologia, com inclusão da fisiologia, a
ciência universal” (Princípios, p. 97). Neste sentido ainda diz:

“A lógica hegeliana é a teologia reconduzida à razão e ao presente, a


teologia feita lógica. Assim como o ser divino da teologia é a quintessência
ideal ou abstrata de todas as realidades, isto é, de todas as determinações,
de todas as finidades, assim também a lógica (...) A essência da teologia
é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem;
a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensa­
mento do homem posto fora do homem” (Princípios, p. 21).

Feuerbach parte não tanto do homem individual, pois não se


consegue compreendê-lo totalmente quando se o considera isola­
do. O eu precisa da complementação do tu para ser realmente eu:

“0 homem singular por si não possui em si a essência do homem nem


enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem
está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem
— uma unidade que, porém, se funda apenas na realidade da distinção
do eu e do tu” (Princípios, p. 98). Pouco adiante afirma: “O homem para
106 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

si é um homem (no sentido habitual); o homem com o homem — a uni­


dade do eu e do tu — é Deus” (Princípios, p. 98).

A relação necessária do eu com o tu, segundo Feuerbach,


também é importante para a filosofia: “A verdadeira dialética não
é o monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é diálogo entre
o eu e o tu” (Princípios, p. 99). Assim pode concluir: “O princípio
supremo e último da filosofia é, pois, a unidade do homem com o
homem” (Princípios, p. 99). Mas Feuerbach não pára na com-
plementação do eu pelo tu. A essência do homem não só se atua­
liza no encontro do eu com o tu, mas na totalidade da humanida­
de, da espécie humana: o outro é o representante da espécie.
Através do tu o olhar se abre para a humanidade, pois no outro
tenho a consciência da humanidade. A espécie é, para Feuerbach,
o homem pleno. Por isso a medida da espécie é a medida absoluta,
lei e critério do homem. O homem assim concebido ocupa o lugar
do absoluto em Hegel.
Feuerbach apresenta uma antropologia que busca unidade
entre o eu, o tu e nós (comunidade), entre indivíduos e espécie,
história universal e história individual, atribuindo ao amor o pri­
mado sobre o pensamento. Encontra essa unidade no próprio
homem. Este, tendo consciência de si mesmo, é capaz de tomar sua
própria essência como objeto de sua consciência. No caso, o eu
finito, enquanto indivíduo, experim enta-se a si mesmo em
facticidade existencial como infinitamente distante do que pode e
deve ser. Com isso, na consciência humana, emerge a tensão
fundamental entre o eu (o indivíduo singular e finito) e a espécie-
homem (infmitude). A religião nasce onde o homem considera essa
sua essência como separada de si como Deus. Neste caso Deus é a
projeção daquilo que o homem deseja ser. Nada mais.
Deus, nesta perspectiva, é o próprio ser humano alienado de
si mesmo: a essência de Deus é a autoconsciência do homem. O
homem afirma em Deus o que nega em si. O ateísmo é, então, o
caminho necessário para o homem redescobrir sua dignidade,
reconquistando sua essência perdida. A questão do ser ou não ser
de Deus toma-se a questão do ser ou não ser do homem. A este
homem, assim definido, Feuerbach dá o lugar que Hegel dera ao
absoluto. O homem (espécie) converte-se no ser supremo, na me­
dida de todas as coisas e de toda a realidade. Esse posicionamento
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 107

fundamenta toda a sua crítica da religião, do cristianismo e da


teologia. Percebeu logo o perigo da identificação que Hegel fizera
entre consciência finita e consciência infinita, entre Deus e homem.
Basta mudar a posição do ponto de vista de Hegel, e o espírito
humano não é assumido no absoluto, mas o espírito absoluto passa
a ser reduzido ao espírito finito do próprio homem. A consciência
humana passa, então, a ser consciência do infinito: “A consciência
de Deus é a autoconsciência do homem, o conhecimento de Deus
o autoconhecimento do homem”. O panteísmo idealista transfor­
ma-se em materialismo ateu. A única base para sua filosofia é a
realidade sensível. Por isso a nova filosofia deverá ter por objeto
o homem em sua totalidade: razão, vontade e coração.

5.2. A v erd ad e da relig iã o é a a n trop ologia

Feuerbach aplica sua tese antropológica ao cristianismo: “O


mistério da teologia é a antropologia”. O homem definido em sua
totalidade ocupa o lugar que Hegel dera ao absoluto. O homem con-
verte-se em ser supremo. Feuerbach desenvolve, assim, um mate-
rialismo que tenta esclarecer o homem e o mundo a partir de si
mesmo. O ponto de partida da filosofia não mais é Deus, como em
Hegel, e sim o próprio homem: “O primeiro objeto do homem é o
homem”. O homem não é mais o homem cartesiano da razão, e sim
o homem corpóreo, concreto. Vê-o não como indivíduo isolado, mas
como espécie. O eu precisa do tu. Valorizaohomemnão só emrelação
ao tu, mas em relação à humanidade. O homem é o eu e o tu em sua
reciprocidade. O outro representa o gênero humano, a espécie, que
é o homem perfeito e o critério do homem e da verdade. A espécie
humana é o critério de todas as coisas. Para Feuerbach, filosofia
antropológica significa filosofia do homem e para o homem: o ho­
mem como o ser mais elevado para o homem, ou seja, o homem é
deus para o homem: “Cfhomem é o começo da religião, o homem é
o centro da religião, o homem é o fim da religião” (A essência do
cristianismo, p. 223). Quando Feuerbach afirma que “o homem é
deus *para o homem”, de modo especial nos escritos
\ mais recentes,
como em Princípios da filosofia do futuro (1843), concebe o homem
como ser social, em sua convivência com outros homens: o homem
com o homem, a unidade de eu e tu, é deus.
108 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

Segundo nosso autor, a religião pertence à infância da


humanidade.Vítima de ilusão, o indivíduo projeta em Deus seus
próprios atributos, qualidades e poderes, que são os da essência
humana enquanto presente no conjunto dos homens. Deus é o
conceito personificado da espécie humana, e airéligião produto
puramente humano. Nada mais. O pressuposto fundamental é: “A
consciência do infinito não é outra coisa que a consciência da
infinitude da consciência ” (A essência do cristianismo, p. 44).
Assim o conceito de Deus aparece como projeção do homem. Como
este não consegue satisfazer todas as necessidades, pela imagi­
nação cria a Deus. Deus é apenas a projeção ou o reflexo que o
homem faz de si mesmo. É como reflexo no espelho, ilusão. Eis a
origem da alienação religiosa. Por isso as propriedades de Deus
são as propriedades do homem: homo homini Bens est. Em A es­
sência do cristianismo diz que a religião é a divisão do homem
consigo mesmo porque considera a Deus como a um ser oposto a
si, exterior. Deus então não é o que é o homem e o homem não é o
que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o ser finito; Deus é
perfeito, o homem imperfeito; Deus é etemo, o homem temporal;
Deus é onipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem
pecadorípeus e homem são dois extremos: Deus é absolutamen­
te positivo, o conteúdo de todas as realidades; o homem é ò ne­
gativo, o nada (A essência do cristianismo, p. 77). Para libertar o
homem, é preciso transformar a questão numa questão do homem,
traduzir a teologia para a antropologia, buscar a felicidade do céu
na terra. A tese fundamental de Feuerbach é a seguinte:

“A religião, pelo menos a cristã, é o relacionamento do homem consigo


mesmo ou, mais corretamente, com a sua essência; mas o relacionamento
com a sua essência como outra essência. A essência divina não é nada
mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abs­
traída das limitações do homem individual, isto é, real, corporal,
objetivada, contemplada e adorada como outra essência própria, diver­
sa da dele — por isso todas as qualidades da essência divina são quali­
dades da essência humana” (A essência do cristianismo, p. 57).

O cristianismo é a velha religião que deve morrer para nascer


a nova religião do humanismo:

“O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para
o homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus:
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 109

Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a


religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a
confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos
seus segredos de amor” (A essência do cristianismo, pp. 55-56).

Feuerbach destrona Deus e diviniza o homem. Segundo ele, os


amigos de Deus devem tomar-se amigos do homem neste mundo.
Deus é apenas a personificação da espécie humana: o homem vê
sua essência fora de si, objetivando-a, ou seja,)Deus é a manifes­
tação do interior do homem.),Assim a Bíblia deverá ser corrigida,
pois não é Deus que criou o homem, mas “o homem criou Deus à
sua imagem e semelhança” (A essência do cristianismo, p. 158). O
homem é o grande projeto e Deus a sua projeção.
Para Feuerbach, negar o sujeito Deus não é elim inar os
predicados que dele se afirmam. Esses conservam sua dignidade
sem o sujeito Deus, pois devem ser aplicados ao próprio homem.
Exemplifica: dizer que Deus é inteligente é projeção da razão hu­
mana. Deus é a objetivação da inteligência humana em geral.
Dizer que Deus é o ser moralmente perfeito é a projeção da von­
tade humana. É a lei da moralidade humana personificada. Não
Deus, mas a consciência humana é o juiz. Dizer que Deus é amor
é a projeção do coração humano. Deus é a essência objetivada do
amor humano em geral. Deus não é amor, mas o “amor é Deus”, e
fora dele não há outro Deus. Feuerbach pergunta-se: o que amo,
pois, em Deus e com Deus? Responde: “o amor que desde logo é
amor ao homem”. Nesta perspectiva, as diferenças entre as reli­
giões e as diversas concepções da divindade e de Deus têm funda­
mento antropológico: são as diferenças entre o homem pagão e o
homem cristão, que sempre projetam Deus de acordo com sua
imflgftm e semelhança. A religião pertence ao estado infantil da
humanidade e do indivíduo, precedendo à filosofia tanto na histó­
ria do indivíduo como da humanidade. O progresso na religião é
apenas o progresso do conhecimento que o homem adquire de si
mesmo.
Feuerbach interpreta os dogmas cristãos como projeção do
próprio homem: o Deus encarnado é apenas a manifestação do
homem divinizado e nada mais: “O Deus encarnado é apenas o
fenômeno do homem endeusado” (A essência do cristianismo, p.
93). O mistério do amor de Deus para com o homem é apenas o
110 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

mistério do amor do homem para consigo mesmo “e nada mais”.


O sofrimento de Deus é o sofrimento do homem por outros homens.
O mistério da Trindade é o mistério da vida social. Na Trindade
divina reflete-se a comunidade humana do eu, do tu e do nós:
“Deus pai é o Eu. Deus filho o Tu. Eu é razão, Tu é amor; só razão com
amor e amor com razão é espírito, é o homem total” (A essência do cris­
tianismo, p. 111).
Pouco adiante prossegue:
“O Deus trino é um Deus rico de conteúdo, daí se tomar uma necessida­
de quando se abstrair do conteúdo da vida real. Quanto mais vazia for a
vida, tanto mais rico, mais concreto será o Deus. O esvaziamento do
mundo real e o enriquecimento da divindade é um único ato. Somente o
homem pobre possui um Deus rico. Deus nasce do sentimento de uma
privação; aquilo de que o homem se sente privado (seja uma privação
determinada, consciente, seja inconsciente) é para ele Deus. Assim, o
desesperado sentimento do vazio e da solidão necessita de um Deus no
qual exista sociedade, uma união de seres que se amam intimamente”
(A essência do cristianismo, p. 116).
Segundo Feuerbach, o mistério da ressurreição de Cristo é o
desejo satisfeito do homem por uma certeza imediata de sua
imortalidade pessoal. Em resumo, a fé em Deus é a fé no homem
e “nada mais”, na infinitude e verdade de seu próprio ser; o ser
divino é o ser humano em sua liberdade e ilimitação absolutas:
“A religião é a primeira consciência do homem de si mesmo. As religiões
são sagradas exatamente porque são as tradições da primeira consciên­
cia. Mas o que é para a religião o primeiro, Deus, é em si, como foi de­
monstrado, quanto à verdade o segundo, pois ele é somente a essência
objetiva do homem, e o que é para ela o segundo, o homem, deve, por­
tanto, ser estabelecido e pronunciado como o primeiro. O amor ao ser
humano não pode ser derivado, ele deve ser primitivo. Só então toma-se
o amor um poder verdadeiro, sagrado, seguro. Se a essência de Deus é a
mais elevada essência do homem então também praticamente deve ser
a mais elevada e primeira lei o amor do homem pelo homem. Homo
homini Deus est” (A essência do cristianismo, pp. 309-310).

Começo, centro e fim da religião, para Feuerbach, é o próprio


homem. A essência do homem, ao contrário dos animais, não é só
o fundamento da religião, mas também seu objeto. Substitui, pois,
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 111

a “religião de Deus” pela “religião do homem”. A falsidade da reli­


gião é relacionar-se o homem consigo mesmo como se fosse outro,
transcendente. Com isso o homem se empobrece e se aliena. O
homem pobre projeta um Deus rico. Como Deus e homem são vistos
separadamente, também o homem se divide. Para o homem, a reli­
gião é uma relação para consigo mesmo, como sua essência, mas
considerando-a como algo estranho e diferente dele. É a divisão do
homem consigo mesmo porque considera Deus e homem com duas
coisas distintas e opostas: “A religião é a autoconsciência primária
e indireta do homem”. Feuerbach nega a Deus para afirmar o
homem. Por isso precisamos amar não a Deus mas o homem; crer
não em Deus mas no homem; interessar-nos não pelo além, mas
pelo aquém. Em síntese, o mistério da religião é o ateísmo.
Em A essência do cristianismo Feuerbach examina a religião
cristã, uma religião da interioridade e do espírito. Mas nisso já se
esgota toda a religião? Como é a idéia de Deus nas chamadas re­
ligiões naturais?
A esta problemática tenta responder em A essência da reli­
gião (1845). Nesta obra põe a natureza como fundamento da ori­
gem e forma da religião. Transforma seu humanismo em mate-
rialismo grosseiro. Diviniza a matéria, da qual o homem é parte.
Funda a religião no sentimento de dependência da natureza,
imprimindo-lhe, contudo, o homem sua própria imagem. Num
célebre aforismo, formulado pela primeira vez numa recensão do
livro Teoria dos alimentos do pensador materialista holandês J.
Moleschott e depois repetido, diz que “o homem é o que come”
(citado por Urdanoz, v. IV, p. 440).
Em A essência da religião, o divino define-se como predicado
da natureza e dos fenômenos naturais. A natureza ou divindade
manifesta-se sob dois aspectos: vivo por ela, porque me cria, me
sustenta, e isto me faz feliz; mas também experimento os aspectos
obscuros da natureza, que me submete a suas catástrofes. A ver­
dadeira base da filosofia agora é a natureza.
Por natureza Feuerbach entende a natureza sensível, real, tal
como se manifesta de maneira imediata aos sentidos, a natureza pura,
sem Deus. Diz que a natureza é o princípio e ponto de partida da
religião. Por isso o Deus, que o homem separa de si mesmo, não é outra
coisa que a própria natureza. Substitui o Deus da religião por natu­
reza. Transforma, desta maneira, a teologia em fisiologia.
112 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

Em A essência da religião, o fator subjetivo para esclarecer a


religião é o sentimento de dependência e o fator objetivo é a na­
tureza. Aquilo de que depende a existência do homem parece-lhe
Deus. Transformar a dependência sentida em liberdade é o sentido
do sacrifício. O sentimento de dependência da natureza é a razão;
a superação dessa dependência é a finalidade da religião. Ou seja,
a divindade da natureza é o fundamento da religião, mas a di­
vindade do homem é a finalidade última de toda a religião. Desta
maneira também aqui tudo desemboca na antropologia. Des­
mascarando e desmitificando a Deus e aos deuses, quer ajudar o
homem a reencontrar-se a si em si mesmo, superando a depen­
dência, o temor e a ignorância. Deste modo o ateísmo não é apenas
negação, mas negação da negação que nega o homem: “Quanto a
Deus, quero dizer que nego a negação do homem”. O ateísmo é o
caminho para afirmar a verdadeira essência do homem, restitu-
indo-lhe sua divindade.
Em resumo, Feuerbach tenta nova hermenêutica da religião.
Pergunta: por que o homem produz a religião? Que é que ela sig­
nifica? Denomina seu método de histórico-filosófico. Diz que os
símbolos religiosos não são vazios, nem se referem a Deus, mas
ao próprio homem. Religião é antropologia. Tudo o que o homem
fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é
do que confissão de seus desejos, projetos e aspirações. Por isso
precisamos amar não a Deus, mas ao homem: crer não em Deus,
mas no homem; interessar-nos não pelo além, mas pelo aquém. A
pergunta que se poderia fazer a Feuerbach é a seguinte: não é seu
secularismo antropológico ou seu humanismo ateu uma ideologia
de tipo religioso?

5.3. Crítica à crítica de Feuerbach

No fundo, Feuerbach é filósofo clássico e metafísico. Apesar de


seu materialismo, nunca conseguiu acesso ao real e, por isso,
nunca deixou de ser idealista. Depois de seduzido por suas idéias,
Karl Marx o coloca entre os ideólogos.
Feuerbach esforça-se por superar a filosofia teológica tradi­
cional, de modo especial como a apresenta o sistema de Hegel.
Entretanto o seu sucesso é apenas parcial. Tanto na sua inter­
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 113

pretação antropológica como em sua interpretação da natureza


permanecem elementos metafísicos, pois tanto a natureza como
a espécie humana são caracterizadas como infinitas sem funda­
mentação crítica suficiente.
Feuerbach quer ser ateu consciente. Rejeita todas as inter­
pretações da realidade a partir de um além de tipo metafísico ou
religioso. Conclui sua doutrina dizendo que Deus não existe, ao
menos não de maneria separada do homem e da natureza. Mas o
conceito de ateísmo é insuficiente para caracterizar sua posição.
O ateísmo designa apenas o aspecto negativo. Positivamente
afirma a realidade da natureza e do homem.
Até certo ponto podemos dizer que a palavra-chave da posição
de Feuerbach é “inversão” e seu objetivo a elaboração de uma
antropologia humanista. Se o homem, diferentemente dos animais,
possui religião, é porque é dotado de consciência no sentido estrito,
que tem por objeto “seu gênero, sua essencialidade”. Se a consciên­
cia de Deus é a autoconsciência do homem, isto o sabe a filosofia e
não a religião. Mas à filosofia cabe estabelecer a verdade e denun­
ciar a alienação que a religião gera. Vítima de ilusão, o indivíduo
religioso projeta em Deus seus próprios atributos, suas qualida­
des e seus poderes, que são os da essência humana enquanto está
presente no conjunto dos homens. Ora, não é convincente a críti­
ca que Feuerbach faz da religião? Não está realmente fundada sua
crítica? Em todo o caso, sua crítica permanece tão atual que nela
todos os ateísmos posteriores buscam argumentos. Por quê?
Em primeiro lugar, a importância de Feuerbach para o pro­
blema da crítica religiosa consiste em ter ele tomado o tema da
religião tema central de seu pensamento. Todas as suas análises
partem de alguns critérios determinantes para sua antropologia.
Adapta tudo ao seu sistema apriorista. Com seu método genético-
crítico tenta explicar não só o fato da religião, mas até seus con­
teúdos. E tudo decide com um dogmático “e nada mais”. Sua an­
tropologia é a única chave para explicar tudo. Em outras palavras,
é o único dogma inquestionável.
Em segundo lugar, não se deve exagerar nem menosprezar a
crítica que Feuerbach faz da religião, de modo especial do cristi­
anismo. Teologia e filosofia da religião deverão indagar os fun­
damentos de seu ateísmo numa discussão crítica. Talvez a per­
gunta fundamental a ser feita seja a seguinte: diz a orientação da
114 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

intencionalidade da consciência para um infinito algo sobre a


existência ou não-existência de uma realidade independente da
consciência? Feuerbach nunca demonstrou a não-existência de
Deus. Toma-se acrítico quando fala do homem individual como se
fosse o homem em geral em relação às próprias projeções. Mas não
é o homem real o individual, o finito e concreto? Ou tem a espécie
humana uma reâlidade à margem dos indivíduos finitos, os únicos
que existem? Não é a essência do gênero humano também uma
abstração ou uma autoprojeção objetivada? Não projeta o indivíduo
algo para fora de si? Em resumo, não carece a apoteose da espécie
humana de fundamentos mais sólidos, pois a finitude como defi­
nição do' homem não se identifica com o homem concreto? Em
momento algum Feuerbach fundamentou a infinitude da essência
humana. Simplesmente a postulou.
Na verdade, Feuerbach reconhece a finitude do indivíduo. Mas
a espécie humana, para ele, é infinita. O indivíduo só toma cons­
ciência de sua finitude no confronto com a infinitude da espécie.
A essência da espécie, que é a essência absoluta do indivíduo, é
infinita. Aqui revela-se que Feuerbach não conseguiu libertar-se
totalmente da metafísica teológica. Quando fala da infinitude do
hom em , de suas forças, da espécie, recorre a pressuposto
metafísico. Dificilmente poderá conciliar-se tal pressuposto com
a tendência à absolutização da realidade sensível. Assim a idéia
da infinitude é postulado metafísico tanto para sua antropologia
como para sua fisiologia.
Feuerbach tenta fundamentar seu ateísmo a partir da história
e da psicologia. Anuncia o fim do cristianismo, dizendo que “para o
lugar da fé eíitrou a descrença; para o lugar da Bíblia, a razão; para
o lugar da religião e da Igreja, a política; a terra substituiu o céu; o
trabalho substituiu a oração; a necessidade material, o inferno; o
homem, o cristão” (Princípios, p. 16). Caberia perguntar: Não co­
meteu o erro do círculo vicioso ao apresentar como suposto indiscu­
tível o que possivelmente só poderá ser o resultado de uma análise
diferenciada do fenômeno da religião e do cristianismo? Feuerbach
simplesmente supõe que a religião seja ilusão “e nada mais”. Ora, já
os primeiros críticos seus perguntaram se o pão é produto da fome
e a luz produto dos olhos e se, por sua vez, a religião e o cristianismo
tinham que demonstrar sua realidade e verdade só porque respon­
dem a necessidades do homem e satisfazem seus desejos e anseios.
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 115

No prefácio à segunda edição de A essência do cristianismo


afirma: “O cristianismo já está tão deturpado e em desuso que até
os representantes oficiais e eruditos do cristianismo, os teólogos,
não sabem mais ou pelo menos não querem saber o que é o cris­
tianismo’’ (p. 26). “Apenas mostrei o mistério da religião cristã,
apenas o arranquei da teia contraditória das mentiras e tapeações
da teologia— e com isso certamente cometi um sacrilégio. Por isso,
mesmo sendo minha obra negativa, irreligiosa, ateísta, que se
medite entretanto que o ateísmo (pelo menos no sentido deste li­
vro) é o mistério da própria religião, que a própria religião, em
verdade, não na superfície, mas no fundo, não na sua opinião e
fantasia, mas em seu coração, em sua verdadeira essência, em
nada mais crê a não ser na verdade e divindade da essência hu­
mana” (p. 29).
Feuerbach critica o cristianismo por ter feito desaparecer o
homem como humanidade, como espécie, como comunidade uni­
versal, substituindo-a pelo conceito de Deus. Com isso não quer
eliminar a moral, pois, segundo eléj a justiça, a bondade e o amor
têm fundamento em si mesmos. Mas não explica por que razão e
Bíblia, política e religião, trabalho e oração, céu e terra, Deus e
homem são irreconciliáveis ou por que se excluiriam necessaria­
mente. Não poderá um cristão ser mais humano que xun ateu? Se
Feuerbach, com sua tese secularista, profetizou o fim do cristia­
nismo, constatamos, sem dificuldade maior, que essa tese até hoje
ainda não se realizou.
Afirma categoricamente que o homem deve renunciar ao
cristianismo para tornar-se realmente homem. Mas a funda­
mentação histórica do ateísmo, como Feuerbach a faz, não resiste
a exame mais crítico. A rigor constata o fato de que o cristianismo
se encontra numa crise mortal. Daí, todavia, não se pode concluir
simplesmente o postulado do ateísmo como necessidade lógica, pois
poderia concluir-se igualmente na necessidade de reavivar o
cristianismo. Por isso custa aceitar a tese feuerbachiana da filo­
sofia da história por carecer de qualquer fundamento mais sólido.
Extrapolou para o futuro. Hoje nós, numa retrospectiva, consta­
tamos que sua profecia não se realizou. Ao contrário, podemos
admitir que também o ateísmo proposto já entrou em crise por falta
de fundamentos racionais, existenciais e até históricos. Assim sua
fundamentação histórica também não passa de um postulado
116 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

dogmático. Feuerbach não só anuncia o fim do cristianismo. Diz


que também da filosofia não se deve esperar a salvação: “A filosofia
hegeliana é a última grandiosa tentativa para restaurar o cris­
tianismo já perdido e morto através da filosofia e, claro está, me­
diante a identificação, tal como em geral acontecia nos tempos
modernos, da negação do cristianismo com o próprio cristianismo”
(Princípios, pp. 63-64). Se o homem, na prática, ocupa o lugar do
cristão, teoricamente a essência humana também deve ocupar o
lugar da essência divina.
E Deus, então, simplesmente produto de nosso desejo?
Feuerbach tentou fundamentar, outrossim, seu ateísmo psi­
cologicamente. Afirma que “o que o homem não é realmente, mas
deseja ser, converte em seu Deus, ou isso é seu Deus”. Diz ainda:
“Se o homem não tivesse desejos, não haveria religião alguma”. Em
outras palavras, o homem crê em Deus porque deseja ser feliz. Os
deuses são os desejos do homem, pensados como realidade objetiva.
Segundo ele, a religião ainda se funda no sentimento de depen­
dência. Assim, em última instância, a religião é produto do instinto
de autoconservação do homem, do egoísmo humano. Com a palavra
“egoísmo” Feuerbach designa um fazer valer o próprio ser, o amor
do homem a si mesmo como instinto de conservação, sem o qual o
homem não pode viver. A representação de Deus é, então, apenas
imaginação humana. O homem deve destruir essa sua criação
ilusória para redescobrir sua dignidade e recuperar sua essência
perdida. Em tudo isso pode haver um pouco de verdade. Mas a
explicação psicológica não diz tudo sobre o complexo fenômeno
humano da fé em Deus. Esta certamente tem fundamentos psi­
cológicos importantes. Mas não se pode excluir, de antemão, que
os desejos do homem tendam para uma realidade. Por que os
anseios, os desejos e as necessidades do homem não poderiam ter
correlato real? Não é o pressuposto de mera projeção afirmação
gratuita? Falar humanamente de Deus ainda não significa que
Deus se reduza à mera realidade humana.
Concordamos com Feuerbach que alguma coisa não existe
simplesmente porque a desejo. Mas o ateísmo de Feuerbach fun­
da-se todo ele nessa única conclusão, ou seja, numa conclusão
logicamente falha. Por que, então, não poderia concluir psicolo­
gicamente de minha experiência que o mundo não existe? Em
outras palavras, nada impede que à minha experiência psicológica
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 117

corresponda algo real, ou seja, no caso, que ao desejo de Deus


corresponda ou, pelo menos, possa corresponder a realidade
ontológica de Deus. Até se poderia objetar: não é seu ateísmo, ele
próprio filho do desejo, uma projeção ilusória? É claro que pelo fato
de ainda não se ter demonstrado a existência de Deus com a razão
instrumental não se pode concluir simplesmente sua não-exis-
tência. Desta forma a fundamentação psicológica do ateísmo
também não passa de simples postulado.
Feuerbach defendeu o ateísmo mais intuitivamente, ou seja,
sem fundamentá-lo crítica e cientificamente. Apesar disso cons­
tituiu-se numa provocação permanente, num desafio. É ateu
consciente. Seu ateísmo é refletido, decidido e programático.
Permaneceu no campo da antropologia para acabar com a religião.
Entretanto seu contemporâneo Max Stimer, como K. Marx e F.
Engels, todos seus amigos e admiradores, cedo o acusaram de
exercer vim culto religioso à natureza universal do homem. O
compêndio da crítica da religião de Feuerbach é que “o homem deve
ser o supremo para o homem”. Mas que homem é o supremo para
o homem? Como defini-lo? Qual é a medida do homem e de acordo
com que imagem é definido? Não pode esta exaltação da huma­
nidade conduzir a novos esvaziamentos do próprio homem? O que
justifica esperar o homem futuro como justo, amoroso e bondoso?
Se Feuerbach designa a religião como ilusão infantil, que o
homem moderno já venceu há muito tempo, tal posição logo
relembra A. Comte com sua periodização da história. O pai do
positivismo francês, em sua teoria dos três estádios, afirma, com
Feuerbach, que na época da ciência, a religião apenas representa
compreensão do mundo muito primitiva e mitológica. Ora, em vista
desta colocação pode argüir-se se a relação entre religião, filoso­
fia e ciência realmente é de sucessão, ou antes caminham lado a
lado de maneira simultânea. Neste último caso, a história não
superaria a religião, mas como estrutura interna apenas signifi­
caria a mudança da consciência religiosa.
Nas suas afirmações sobre o cristianismo, Feuerbach ignora
totalmente as afirmações sobre a alteridade de Deus que, por isso,
não se sujeita simplesmente ao esquema da projeção do desejo.
Ignora também que a teologia sempre acentuou que, em seu dis­
curso analógico sobre Deus, há mais diferenças que semelhanças.
Mas, nem por isso, deve-se menosprezar a crítica que faz da reli­
118 FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO

gião e do cristianismo. Apesar das unilateralidades, propõe pro­


blemas ainda não resolvidos. Assim, por exemplo, ainda que al­
guém rejeite o sensismo e a finitização da teologia filosófica de
Hegel, não poderá negar que a posição feuerbachiana, na vida
prática, se tom ou comum para grande parte da humanidade oci­
dental de hoje, aderindo à fé neste mundo. O que significa que o
homem hoje não mais se experimenta a si num mundo divinizado,
mas totalmente hominizado? A falta de experiência religiosa
significa ausência total de Deus ou pode intuir-se uma orientação
na qual dever-se-ia procurar o lugar no qual Deus se tomasse
outra vez visível como Deus do futuro? Seria talvez a comunidade?
Como se poderá falar de Deus num mundo secularizado? Poderá
o anúncio da fé hoje pressupor que a necessidade religiosa re­
presenta uma estrutura humana fundamental? Poder-se-á eli­
minar o dualismo Deus e mundo, aquém e além, como subjaz em
muitas concepções da fé, sem perder a causa de Deus?
Feuerbach morreu com 68 anos de idade. Mas as questões por
ele formuladas perduram e não mais devem ser ignoradas. Seu
drama é também o drama do homem contemporâneo que simul­
taneamente rejeita Deus e aceita o divino. Substitui-se a “religião
de Deus” pela “religião do homem”. Devemos reconhecer que, por
um lado, teólogos e igrejas muitas vezes defendem Deus contra os
homens, o além contra o aqui. A religião histórica muitas vezes
defendeu Deus às custas da humanidade, o ser cristão às custas
do ser homem. Na história do cristianismo muitas vezes Deus foi
fabricado de acordo com os anseios e as necessidades ou finalidades
do momento, criando Deus à sua imagem e semelhança. Muitas
vezes a Igreja católica também usou de Deus para cuidar dos
próprios interesses. Por isso, sob alguns aspectos, a crítica de
Feuerbach é pertinente enquanto se refere a manifestações his­
tóricas do cristianismo.
Por outro lado, através da crítica de Feuerbach mostra-se que
o discurso sobre Deus não pode ser o da superação da oposição
entre Deus e mundo num movimento dialético do espírito. Tal
possibilita não só o panteísmo como também o ateísmo. Onde se
interpreta mal a Deus também há o perigo de interpretar mal o
homem. A questão é até que ponto Feuerbach tematiza o homem
real. Tomou-se o pai do ateísmo moderno. Sua influência passa,
através de K Marx, F. Engels, M. Stimer a F. W. Nietzsche até
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 119

concepções imanentistas do homem nas filosofias contemporâne­


as. Na idéia de que o homem só é homem na relação com o tu
anunciam-se, outrossim, motivos das filosofias da existência e do
personalismo contemporâneos. Entretanto, para afirmar o homem,
não é preciso negar a Deus, pois, na verdade, é impossível ser
amigo de Deus sem sê-lo dos homens.

Bibliografia

FEUERBACH, Ludwig, A essência do cristianismo, Campinas, Papirus, 1988.


___________. A essência da religião, Campinas, Papirus, 1989.
____________ Princípios da filosofia do futuro, Lisboa, Edições 70, 1988.
FORMENT, Eudaldo, El problema de Diós en la metafísica, Barcelona, Promociones
Publicaciones Universitárias, 1986.
KÜNG. Hans, Existiert Gott? Munique, R. Piper, 1978.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Filosofia transcendental e religião, S. Paulo, Loyola, 1985.
UKDANOZ, Teofilo, História da filosofia, V. 5. Madri. B.A.C. 1975.
WEGNER, Karl-Heinz, ba crítica religiosa en los tres últimos siglos, Barcelona, Herder,
1986.
6

KARL MARX:
A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

Sem dúvida, um dos mitos contemporâneos mais debatidos


está ligado ao nome de Karl Marx (1818-1883): o marxismo. Com
este nome designa-se um movimento de idéias não só filosóficas,
econômicas, mas também políticas e sociais. Em nosso estudo
ocupar-nos-emos com o pensamento marxista enquanto crítica da
religião, ateísmo e a fundamentação dada ao mesmo por Karl
Marx. Portanto, aqui não trataremos do pensamento marxista em
sua globalidade.
A doutrina de Karl Marx nasce, no século XIX, da confluência
do materialismo da ciência natural com o socialismo francês, pe­
netrada e anim ada pelo espírito dialético de Hegel. Lênin,
continuador da ideologia marxista e fundador do partido, diz: “A
teoria de Marx é o verdadeiro herdeiro do que de melhor produziu
a humanidade no século XIX, na forma da filosofia alemã, da
economia política inglesa e do socialismo francês”.
Karl Marx nasceu a 5 de maio de 1818 em Tréveros, cidade que
remonta ao tempo dos romanos, e exercia importante papel na
cultura da região, no século XIX, como ponto de encontro do libe­
ralismo revolucionário vindo da França e do conservadorismo do
antigo regime liderado pela Prússia. Na Prússia a filosofia de
Hegel convertera-se numa espécie de ideologia oficial. O Estado
prussiano tomara como apoio direto a idéia hegeliana de que o
Estado moderno encarna os ideais da moral mais objetivos e
manifesta a razão no domínio da vida social. Em julho de 1836,
Marx matriculou-se na universidade de Berlim, capital da Prússia.
Nesta época, as idéias liberais conquistavam a Prússia, pois o
governo de Frederico Guilherme IV (1795-1861) anunciara a
abertura política. O liberalismo alemão, influenciado pelas idéias
da revolução francesa, abriu fogo contra o aliado mais fraco do
Estado, que era a Igreja e a religião.
122 KARL MABX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

Os discípulos de Hegel aí constituíram a esquerda hegeliana,


que elaborou uma crítica a partir do interior do próprio sistema
hegeliano, separando o método revolucionário do sistema reacio­
nário. Entre esses discípulos destacaram-se David Strauss (1808-
1874), que submetera os textos sagrados a uma interpretação da
crítica histórica; Bruno Bauer (1809-1872), Moses Hess (1812-
1875) e Max Stirner (1806-1956) que puseram na ordem do dia do
debate o socialismo e o anarquismo. Todo o pensamento da es­
querda hegeliana foi aglutinado por L. Feuerbach numa crítica
mais consistente da religião. O jovem Marx, depois de estudar
direito durante um ano em Bonn (1835), foi a Berlim e aí se inte­
grou no clube dos doutores da esquerda hegeliana. Nascido judeu,
educado na religião cristã (protestante), tomou-se ateu, pois os
membros do clube dos doutores professavam o ateísmo. Marx
defendeu sua tese de doutorado em 1841, em Jena, sobre o ma-
terialismo de Epicuro e Demócrito. Note-se que seu ateísmo
também é anterior à elaboração de sua própria teoria.
Com 24 anos de idade assumiu a chefia da redação do jornal
Rheinische Zeitung, em Colônia. Pela primeira vez entrou em
contato mais direto com a questão social. Mas o jornal foi fechado
pela censura, embora nesse jornal ainda tivesse atacado o comu­
nismo e o socialismo.
Marx casou-se na Igreja luterana e sua mulher, além de cuidar
da casa e dos filhos, ajudava-o na datilografia e correção dos
manuscritos. Em 1843 transferiu-se para Paris. Aí levou vida
burguesa, recebendo auxílios da Alemanha. Em Paris fez algumas
amizades importantes. Entrou em contato com as idéias revolu­
cionárias do socialismo de Fourier, Owen, Saint-Simon e, através
do anarquista Bakunin, com Proudhon. Em Paris despertou ainda
para a miséria do proletariado industrial, embora ele mesmo
nunca tenha sido operário; iniciou longa amizade com Friedrich
Engels e começou a ocupar-se com economia política. Tomou co­
nhecimento da aliança comunista de Londres e participou de al­
guns encontros secretos, sem filiar-se. Enfim, em Paris, tomou-
se socialista e comunista. Reconheceu a possibilidade gigantesca
do movimento organizado de trabalhadores e tomou-se o teórico
do proletariado.
Em 1845 deixou Paris e passou a residir em Bruxelas. Aí es­
creveu a Sagrada Família e depois A ideologia alemã (1845), A
KARL MARX; A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGH&CO 123

miséria da filosofia (1847) e o Manifesto Comunista (1848) com


Engels. Expulso da Bélgica, voltou, por breve tempo, à Alemanha,
donde, após a revolução de 1848, foi expulso, indo a Londres. Al
fixou residência para o resto da vida. Em Londres escreveu suas
obras principais, como O capital, cujo primeiro volume publicou em
1867. Também aí viveu com o auxílio de amigos, de modo especial
de Engels.
Marx era ateu muito antes de ser comunista. Sua atitude
anticapitalista não foi pressuposto, mas confirmação. Aceitara o
ateísmo da esquerda hegeliana de Berlim e de Feuerbach. Em
breve, o ateísmo materialista tomou-se simples evidência. Tal
ateísmo determinou não só o cientista analítico, mas também o
lutador político e o profeta Marx. A inteligência de Marx conseguiu
que o ateísmo se tomasse o fundamento e a ideologia para o so­
cialismo até nossos dias. Antes de ser dentista, Marx já apostara
no ateísmo.
i^tO novo humanismo de M arx é ateísmo e comunismo: “O
ateísmo é o humanismo pela superação da religião, e o comunis­
mo é o humanismo pela superação da propriedade privada”, es­
creveu nos manuscritos econômico-filosóficos de Paris.

6.1. O que Marx recebeu de Hegel?

Sem a dialética o materialismo marxista seria pouco signifi­


cativo. Ora, Marx herdou a dialética de Hegel. Dele recebeu
também a interpretação dialética da história. Aprendeu de Hegel
a essência social do homem, a significação do fator trabalho para
sua autocompreensão, o reconhecimento da alienação. Aceitou de
Hegel não só o profundo sentido pela história, mas também o ca­
ráter totalizante e totalitário de seu sistema.
Por outro lado, Marx rejeitou o idealismo, que é o cerne do
sistema hegeliano, e substituiu-o pelo materialismo. Neste ponto
predominou a influência de Feuerbach. Segundo Marx, Feuerbach
demonstrou que a filosofia não é outra coisa que a religião for­
mulada em pensamento e realizada de maneira pensante; fun­
damentou o verdadeiro materialismo e a ciência real; traduziu a
dialética do espírito para a dialética da matéria real e concreta;
interpretou a história não do espírito absoluto,, mas do sujeito
124 KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

concreto da história do homem, da espécie humana, do proleta­


riado (socialismo materialista). Ao contrário de Hegel, Marx não
tem o objetivo de só entender o processo histórico, mas de
transformá-lo. Continua a dissolver o conservadorismo hegeliano,
processo iniciado por Feuerbach. A filosofia marxista critica Hegel
por se ter refugiado no pensamento abstrato. Segundo Marx,
também para Feuerbach faltou a atitude revolucionária da práxis.
O que significa isso na prática?
O homem concreto, em primeiro lugar, não é consciência, mas
ser, matéria, corpo. Seu mundo não é o mundo abstrato dos pen­
samentos, e sim das relações sociais, concretas. Seu trabalho não
é a autoprodução da consciência, senão o trabalho prático do
operário no processo de trabalho. Por isso a superação da alienação
não se realiza só no pensamento, mas deve realizar-se na vida
prática da sociedade. Marx transpõe, assim, a dialética hegeliana
do plano do espírito para o plano das necessidades materiais, in­
terpretando a história e a política em função da luta de classes.
Insere a dialética hegeliana na relação realista e imediata homem-
natureza e homem-trabalho. No prefácio à segunda edição de O
capital, Karl Marx escreveu em 1873:

“Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere do


hegeliano, mas é também a sua antítese. Para Hegel, o processo de pen­
samento, que ele, sob o nome de idéia, transforma em sujeito autônomo,
é o demiurgo do real, real que constitui apenas sua manifestação externa.
Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material,
transposto e traduzido na cabeça do homem” (p. 20).

Para Marx, a dialética da existência desenvolve-se no plano


prático das necessidades materiais do homem e não no plano
teórico-ideal. O econômico ou material é a infra-estrutura. O resto
é epifenômeno ou superestrutura, pois matéria e consciência são
apenas dois aspectos de uma e mesma realidade e atividade
material.
Segundo Marx, a sociedade capitalista gerou a burguesia e o
proletariado. Assim o próprio regime capitalista gerou sua nega­
ção, ou seja, o proletariadóí(Pretende criar, pela revolução comu­
nista, a sociedade perfeita, ou seja, a sociedade sem classes. Nesta
sociedade homogênea, para Marx, não mais haverá exploração e
serão satisfeitas todas as necessidades materiais de todos. Com
KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 125

isso automaticamente cessará a alienação, não havendo mais ne­


cessidade da idéia de Deus!j Termina, então, o processo dialético
da história. Marx, todavia, não esclarece porque desaparecem as
classes na sociedade marxista, ou seja, porque a tese marxista não
geraria sua antítese.
Na questão da religião e da crítica religiosa, Marx está em
oposição a Hegel. Situa-se do lado de Feuerbach. Dele aceitou não
só o materialismo, mas também a crítica da religião. Marx crê que
Feuerbach concluiu essa crítica na Alemanha. Também aqui,
quanto ao conteúdo, o ateísmo precede ao comunismo. Enquanto,
para Feuerbach, a religião permaneceu tema polêmico durante
toda a vida, para Marx o ateísmo é vim postulado evidente, tão
evidente que dispensa qualquer investigação mais séria de sua
parte. Deus não passa de uma projeção do homem. Marx sequer
examina seriamente qualquer outra hipótese. Por isso, religião não
passa de produção e alienação do homem. O homem cria a religião.
Marx quer detectar as causas que geram o conflito originante da
religião e superá-las, destruindo-as.

6.2. Como Marx interpreta o homem?

Bem cedo Marx manifesta reservas em relação a Feuerbach.


Já nas teses sobre Feuerbach (1846) aparecem tais discordâncias.
Para Marx, o materialismo de Feuerbach é ainda contemplativo,
metafísico e, por isso, religioso. E preciso entendê-lo como ativi­
dade revolucionária, como práxis. O filósofo deve ceder lugar ao
revolucionário.
Feuerbach contudo não só preparou o caminho sendo apenas
simples e casual predecessor. Muitas vezes permanece compa­
nheiro fiel de Marx no campo das idéias. Em Feuerbach, na obra
Princípios da filosofia do futuro, há inícios da valoração da his­
tória, do social e da práxis do homem. Aí a crítica feuerbachiana
da religião também já tem aspecto político e social. O próprio Marx
aí encontra fundamentos filosóficos para o socialismo.
Marx critica Feuerbach pela carência da dimensão social do
homem que, na realidade, é “o conjunto das relações sociais” (6®
tese), por ter ignorado a origem social do fenômeno religioso.
Feuerbach, segundoQvtarx, concebe o homem como espécie, mas
0^
J
126 KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

apenas reflete sobre as relações naturais e negligencia o contexto


social, o processo da autogênese do homem. Marx faz a análise
político-econômica concreta das condições materiais e sociais, do
papel do trabalho, da produção, do surgimento das relações de
produção e das relações sociais em geral que provocam o apare­
cimento da alienação religiosa.-
De acordo com Marx, Feuerbach isolara o indivíduo de maneira
abstrata na história. (Marx situa-o historicamente dentro do
grande processo, dentro das necessidades sociais) Critica o mate­
rialismo da época por conceber o objeto, a realidade na perspecti­
va contemplativa e não na atividade ou práxis. Enquanto Feuer­
bach espera a transformação da sociedade através do iluminismo,
mudança de consciêrícia e apela ao indivíduo da sociedade bur­
guesa, tentando superar o egoísmo pelo amor, Marx analisa a
emancipação humana como questão social do ponto de vista eco­
nômico, político e ideológico, não como problema do indivíduo, e
sim de classes. Marx exige mudança de atitude em relação à
prática política. Espera a transformação através da revolução
social. Apela à classe operária ou proletária para a luta política,
luta de classes, luta do proletariado explorado contra a burguesia
exploradora. O socialismo deve tomar-se proletário e o proleta­
riado deve tomar-se socialista. Concretamente, Marx postula a
revolução comunista, postula uma ciência do homem real em sua
evolução histórica concreta e uma prática revolucionária.

6.3. O que é relig iã o p ara M arx?

Em 1844 Marx iniciou a introdução à Crítica da filosofia do


Estado de Hegel, com Feuerbach, “para a Alemanha, a crítica da
religião está essencialmente terminada, e a crítica da religião é o
suposto de toda a crítica”. Para Marx, a religião aliena o homem.
A alienação religiosa deve ser esclarecida a partir da situação
histórico-social concreta. Mas a religião é a expressão da alienação
do homem e não seu fundamento. Antes, é o resultado. A essência
da alienação do homem encontra-se no contexto econômico, no tipo
de relações de produção geradas no mundo capitalista. Aí há duas
classes sociais: os proprietários dos meios de produção e os não-
proprietários. Destruindo essa estrutura econômica também se
KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 127

destrói a religião que é seu produto. São as estruturas econômi­


cas que, segundo Marx, geram a falsa consciência, que é a religião.
Assim a idéia de Deus é o resultado de uma economia alienante.
A religião é o aroma de uma sociedade alienada. E um momento
necessário do mundo alienado porque o justifica. Seu protesto
contra este mundo permanece sem conseqüências porque propõe
uma solução para além da história. A religião apenas oferece a
libertação espiritual do homem, a libertação imaginária e ilusória.
Somente a práxis revolucionária será capaz de emancipar radi­
calmente o proletariado industrial, dispensando o protesto e o
consolo da religião.
Para Marx, a religião é uma consciência errônea do mundo.
Enquanto protesto contra as situações humanas é protesto
ineficiente porque desvia a atenção deste mundo e de sua trans­
formação para outro, para o além. Desta maneira a religião age
como calmante: “É ópio do povo”. A religião hipnotiza os homens
com falsa superação da miséria e assim destrói sua força de re­
volta. Atua como força conservadora no campo social e econômico.
Que significa isso?
A crítica de Marx constrói-se sobre o eixo das alienações. Por
alienação não entende o que Hegel entendera no sentido de
exteriorização (Entüusserung), mas um caráter pejorativo, histó­
rico ou real. Trata-se de situações em que o homem se perdeu a si
mesmo. Distingue a alienação religiosa, a alienação política, a
alienação social, a alienação econômica e a alienação filosófica.
Aqui só nos interessa mais de perto a primeira.
Na alienação religiosa, o homem projeta, segundo Marx, para
fora de si, de maneira vã e inútil, seu ser essencial e perde-se na
ilusão de um mundo transcendente. Aceita, pois, o conceito
feuerbaehiano de alienação. A religião nada mais é que a projeção
do ser do homem num mundo ilusório. Com ela aliena-se a si
mesmo. A religião faz o sujeito predicado, alçando Deus sobre as
nuvens, em vez de dar-se conta de que o céu está sobre a terra.
Enquanto Feuerbach se contentara em denunciar intelectual­
mente a alienação religiosa, sem indagar as causas, Marx admite
que a religião é uma ilusão, não, porém, ilusão puramente inte­
lectual. E uma maneira da existência humana intrinsecamente
falsa. A religião nasce, segundo Marx, da convivência social e
política perturbada dos hottiens. O crente suspira por uma felici­
128 KARL MARX; A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

dade ilusória para esquecer sua desgraça presente. Por isso a re­
ligião é ópio do povo. Para libertar o proletariado e a humanidade
da miséria, é preciso destruir o mundo que gera a religião.
Não se pode dizer que, para Marx, a religião é simples inven­
ção de sacerdotes falsários ou de dominadores. É a manifestação
da humanidade sofredora em busca de consolo. O slogan de que “a
religião é o ópio de povo” era comum entre críticos da época de
Marx. É ópio para o povo, um calmante para as massas que so­
frem a miséria produzida pela exploração econômica. Mas os ex­
ploradores burgueses também precisam da religião. Para os ex­
ploradores é consolo inútil, narcótico e, para os outros, justifica­
ção, calmante para sua consciência.
Marx conclui que, sendo a religião reflexo espiritual da misé­
ria real do homem numa sociedade opressora, a superação da re­
ligião não se dará só pela crítica intelectual. A luta contra a reli­
gião tem seu aroma espiritual. É a imagem falsa do mundo. A crí­
tica do céu toma-se a crítica da terra. Para eliminar a alienação
religiosa é preciso eliminar todas as condições de miséria que a
originam. A religião é, pois, epifenômeno ou superestrutura. Mu­
dando a infra-estrutura econômina, a superestrutura mudará
automaticamente. A contradição fundamental, segundo Marx, não
está pois na religião, e sim no nível do modo de produção dos bens
materiais.
Como, então, poder-se-á superar a alienação religiosa?
A superação realiza-se partindo da práxis. De nada serviria
privar o povo do ópio e não mudar nada. A crítica da religião con­
siste em libertar o povo da ilusão. Por isso a crítica religiosa deve
ser seguida da crítica política e da revolução prática a fim de es­
tabelecer a verdade neste mundo. Do ponto de vista econômico, a
alienação religiosa tem sua origem na divisão do trabalho porque,
na sociedade capitalista, os meios de produção tomaram-se pro­
priedade privada; no processo tecnicizado da produção industri­
al, os operários só têm o trabalho para vender. Por ele recebem um
preço. Mas este é menor que o produto, pois o dono dos meios de
produção retém a plus-valia, de modo que seu capital se acumule
às custas dos verdadeiros trabalhadores. Ora, a alienação religi­
osa funda-se, segundo Marx, na alienação econômica. Por isso é
preciso mudar as relações de produção, eliminando a proprieda­
de privada dos meios de produção. Como a religião integra a su-
KARL MARX; A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 129

perestrutura, mudando a infra-estrutura, também ela mudará, ou


melhor, desaparecerá. Por isso não há necessidade, teoricamen­
te, de combatê-la, pois ninguém sentirá sua falta. Em outras pa­
lavras, a consciência religiosa morrerá por si mesma.
Marx preconizara a revolução nos países mais industrializa­
dos, como a Inglaterra. Entretanto isso não ocorreu. Friedrich
Engels transformou o ateísmo em cosmovisão com base no mate­
rialismo dialético e histórico. Engels buscou apoio na ciência, na
teoria da evolução e na teoria da conservação da energia. Tentou
uma leitura e interpretação materialista da história das religiões.
Diz que toda a religião é apenas o reflexo fantástico, na cabeça dos
homens, daquelas forças exteriores que dominam sua existência
cotidiana, um reflexo no qual as forças naturais assumem a for­
ma de sobrenaturais. No começo da história são as forças da na­
tureza. Depois surgem as forças sociais. A seguir todos os atributos
naturais e sociais dos muitos deuses são vinculados a um único
Deus onipotente, reflexo do homem abstrato. No mundo da eco­
nomia burguesa diz-se: “O tomem pensa e Deus ajuda” . Para
Marx, Deus é apenas consolação interesseira.
Na verdade, importa que o homem assuma ele mesmo a
transformação social e as forças estranhas desaparecerão, essas
forças que ainda se refletem na religião. Karl Kautsky (austría­
co) e Lênin, apoiados na teoria m aterialista da evolução de
Haeckel, opõem ciência e religião. E a cosmovisão marxista, de
fato, serve como substituto ateu da religião ou transformou-se
numa religião sem Deus. Mais tarde Lênin, não mais convencido
de que a religião desaparecera automaticamente com a própria
evolução social, passa a combatê-la ativamente. Se, para Marx, “a
religião era ópio do povo” agora passa a ser vista como “ópio para
o povo”. E o partido deverá combater toda a ignorância e escravi­
dão religiosa. Embora a luta de classes estivesse em primeiro
plano, Lênin rejeitou a religião e desenvolveu a perseguição, uma
perseguição que chegou ao auije com Stalin.
Marx radicalizou o ateísm) de Feuerbach, o qual estava sem­
pre em polêmica com a teologia e a religião. Em Feuerbach trata-
se de ateísmo mediado, sempre envolto com ar “religioso”. Marx
voltou-se diretamente a este mundo .^0 ateísmo é a negação de
/ Deus e a afirmação da essênca do homem.
130 KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

6.4. Crítica à crítica de Marx

O marxismo parte da miséria da humanidade e da necessidade


de libertação. Marx proclama um humanismo, uma sociedade da
qual as massas não mais sejam oprimidas e exploradas por po­
derosos. Luta contra a sociedade capitalista que tem por Deus o
capital. Quer terminar com a exploração do homem pelo homem.
O sentido da revolução do proletariado é superar a divisão de
trabalho, a propriedade privada dos meios de produção mediante
a ditadura do proletariado. Constata-se que, entretanto, as pre­
visões de Marx falharam sob muitos aspectos. Mostrou-se que é
possível a melhoria do proletariado sem revolução. Marx desco­
nhecera a força de adaptação, no próprio capitalismo, através da
organização em sindicatos e organizações operárias.
A crítica religiosa de Marx, em primeiro lugar, deve ser vista
como crítica ideológica do cristianismo burguês de sua época. Marx
entendia por ideologia uma falsa consciência historicamente ne­
cessária. Com isso não quer dizer que a ideologia é simplesmente
mentira ou engano intencionado. Quer expressar antes o estado
de consciência de uma época. A ideologia é falsa quando quer li­
bertar o homem de sua situação concretamente condicionada
através de verdades eternas. Marx ignora o elemento utópico. Até
certo ponto é prisioneiro deste seu conceito restritivo de ideologia.
Em sua análise parte quase exclusivamente do cristianismo
burguês do século XIX. Para ele, a religião é apenas aspecto da
ideologia burguesa como reflexo ideal das relações de produção.
Ora, essas são o objeto próprio de sua crítica e não propriamente
a religião. Pelo vínculo histórico da religião com as relações de
produção compreende-se que a Igreja estivesse vinculada a po­
derosas forças contrárias ao progresso e à liberdade e que, por isso,
Marx considerasse o cristianismo como seu inimigo. Mas disso não
se pode concluir que o cristianismo sempre deva ser reacionário
nem que o marxismo sempre deverá combater a religião, nem que
o marxismo sempre será força progressista.
Primeiro Marx se interessa pelo ateísmo e depois pela questão
social. Responsável por seu ateísmo não é, pois, a miséria social,
mas a influência da esquerda hegeliana. O ateísmo precede seu
socialismo e comunismo. Os argumentos principais de seu ateísmo
busca-os em Feuerbach. Marx tentou ultrapassar a fundamenta­
KARL MARX; A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 131

ção psicológica através das condições sociais. Mas seu ateísmo é,


a priori, uma aposta. Quem aposta deseja a realidade de seu de­
sejo. Também quanto à posição de Marx cabe dizer: a indiscutível
influência dos fatores psicológicos sobre a religião e o conceito de
Deus não permitem concluir a existência ou a não-existência de
Deus. Da mesma forma a indiscutível influência de fatores
socioeconômicos sobre a religião e o conceito de Deus não permitem
concluir a existência ou não-existência de Deus.
•f É certo que o homem pensa Deus, forma imagens e conceitos.
Com isso, contudo, não se demonstra que Deus é apenas produto
\do pensamento humano. Obra humana são as idéias sobre Deus.
Se concedemos que a idéia de Deus muda com as relações econômi­
cas e, até certo ponto, seja reflexo do homem, com isso de modo
algum se prova que Deus é apenas projeção humana. Assim o
ateísmo de Marx, anterior a toda a sua crítica socioeconômica, não
é mais que uma hipótese, um postulado não provado, uma reivin­
dicação dogmática. Ademais, Marx nunca estudou a fundo a religião.
Apenas se interessou por seu papel, de fato, na sociedade. A ide­
ologia revolucionária e a vontade revolucionária muitas vezes
obscureceram e influenciaram suas análises cientificaiM arx era
mestre em crítica destrutiva e medíocre na crítica construtiva. Vê
o mal só fora do homem, na estrutura social e econômica. É, cer­
tamente, muito ingênuo quanto à sua própria estrutura ontológica.
Não percebe a alienação ontológica como fundamento de todas as
demais. Por isso, no capitalismo radicalizou os aspectos negativos
e no socialismo só via os aspectos positivos.
Marx analisou a função da religião na sociedade do século XIX.
Como será a situação na sociedade socialista? Para Marx é claro e
evidente que desaparecerá automaticamente com a superação da
propriedade privada e as oposições de classes. Sequer levantou a
hipótese de que a religião poderia assumir novas formas. Isto se
chama de prognose científica ou é apenas desejo do pensamento?
A prognose da revolução socialista também não se realizou nos paí­
ses mais industrializados, mas em países agrários e aí com a violên­
cia da força e do terror. Além disso, o socialismo só consegue manter-
se com a força militar. Onde está o projetado reino da liberdade?
No Ocidente, o capitalismo, entretanto, também se mostrou
corrigível, ao menos em alguns países europeus. Nos países so­
cialistas nada indica uma sociedade sem classes até o presente
132 KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

momento, nem o desaparecimento do Estado, nem da religião. Pelo


contrário, nos países comunistas, o Estado tomou-se todo-pode-
roso. Com a identificação do Estado com o partido, instalou-se não
só uma nova classe, mas também um capitalismo de Estado, às
custas do povo trabalhador. Enquanto se diz que, no Ocidente, “o
homem é explorado pelo hom ed”, no socialismo os indivíduos são
explorados com a consolação de construir um paraíso futuro. Para
quem? Desta forma, 70 anos depois da revolução vermelha, pode-
se perguntar seriamente: É a revolução ópio do povo?
A religião e as igrejas foram objeto do terror do partido e da
repressão. Impôs-se a educação atéia nas escolas, conservou-se a
legislação stalinista contra a religião. O ateísmo é matéria obri­
gatória nas universidades. A doutrina religiosa é rigorosamente
proibida. Seminários foram fechados. Tudo isso em nome dos di­
reitos humanos e da liberdade. Apesar de todo o tipo de terror na
perseguição religiosa, informações dizem que um terço da popu­
lação russa continua dizendo-se cristã (ortodoxa) e um quinto da
atual população adulta é cristã praticante. Quem faz uma aposta
arrisca a possibilidade de perder o jogo. Nada indica, até o pre­
sente, que Marx ganhou sua aposta.
O ateísmo de Marx, como o de Feuerbach, mostra-se sem funda­
mentos racionais sólidos. Mas o que dizer de sua crítica da religião?
Ela contém, infelizmente, muita verdade. Sob alguns aspectos deverá
ser levada a sério. Não se pode negar o abuso político e os interesses
políticos atuantes na religião histórica. Muitas vezes, na história, a
pregação cristã deu importância ao pecado individual, ignorando o
social, a miséria das massas. Muitas vezes, por exemplo, a Igreja
católica, como outras Igrejas, menosprezou a questão social, desa­
creditando, na prática, a fé em Deus. Muitas vezes a hierarquia da
Igreja identifica-se com a burguesia dominante. Os problemas sociais
do proletariado não se resolvem só com princípios.
Marx partiu da conduta do clero, de teólogos e da hierarquia
para concluir a essência do cristianismo e da religião. Entretanto
não percebeu que o cristianismo não justifica uma moral de es­
cravos; que igualmente não justifica opressão e discriminação; que
não se deve identificar com os interesses da classe dominante; que
não pode ser uma instituição anti-social; que, embora tenha as­
pectos sociais, não é necessariamente anti-social. Marx nunca
analisou a função de protesto da religião.
KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 133

Será o marxismo necessariamente ateu? Pode um cristão


também ser marxista?
Para corrigir o marxismo totalitário, ao lado das questões do in­
divíduo e da natureza, certamente também se propõe a do sentido do
todo, de seu fundamento, ou seja, a questão de Deus de maneira nova.
A questão é: Será o marxismo necessariamente ateu?
Com certeza isto vale do marxismo ortodoxo (Marx, Engels,
Lênin e Stalin). Aí á religião e a ciência excluem-se mutuamente
como métodos de apreender a realidade e transformá-la. Marx
dizia que a crítica da religião é condição e pressuposto de toda a
crítica. Para Lênin, a luta contra a religião é o ABC de todo o
materialismo e, por isso, também do marxismo. Este, na sua for­
ma ortodoxa, deve ser ateu, como é o caso do marxismo russo e
chinês.
No Ocidente, entre marxistas revisionistas ou heterodoxos, até
no Partido Comunista Italiano, critica-se não só o catolicismo de
Estado, mas também o ateísmo do Estado Soviético, convidando
crentes a se alistarem no partido comunista. Será apenas tática?
Talvez. Mas também é certo que hoje os marxistas divergem nas
interpretações de Marx. Como, no Ocidente, justamente países de
tradição católica têm maior miséria social, muitos leigos e até
clérigos simpatizam com o marxismo. Para muitos, o marxismo
hoje se apresenta como única esperança para redimir a miséria das
grandes massas.
Pode, então, o cristão ser marxista hoje?
Trata-se de uma questão que, no mínimo, deverá ser diferen­
ciada nos países de regime socialista e nos ocidentais, como deve
ser diferenciada nos países subdesenvolvidos e nos desenvolvidos
economicamente. Dever-se-á discernir doutrina (ateísmo), orga­
nização e tática. Seria muita ingenuidade contentar-se com uma
condenação global. É preciso ver o que, no caso concreto, se entende
por marxismo. Certamente é preciso reconhecer e desmascarar
energicamente a alienação marxista da futura sociedade sem
classes, reexaminar a posição em relação à propriedade privada,
à luta de classes e à estatização como em relação à concepção
materialista da história e à doutrina do determinismo do proces­
so histórico. Mas para qualquer diálogo mais sério é preciso exigir
também o reexame do ateísmo como doutrina partidária, o que
parece iniciar com a perestróika de Gorbachev.
134 KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO

Sem dúvida, é hora do empenho social dos cristãos. É hora de


acordar e agir. A reserva crítica ao marxismo não deve significar
aprovação do capitalismo. Sem dúvida, o cristão pode ser socialista,
mas para ser cristão não precisa ser socialista. Para o cristão, há
diversas opções políticas possíveis. Em questões como luta de
classes, violência, terror, paz, justiça, não precisa da autoridade
de Marx, pois tem a de Cristo. O marxismo dogmático carece de
respostas convincentes para questões sobre o sentido da vida, como
questões sobre o que vem após a morte. O sentido da sociedade
comunista em geral, como progresso, socialização, humanização,
sociedade sem classes certamente não satisfaz nem substitui a
questão do sentido para a pessoa individual.
O marxismo ortodoxo ainda está fundado sobre o dogma do
ateísmo como dogma infalível. Esse dogma é condição para o
programa da maioria dos partidos comunistas hoje. Tudo isto não
dispensa o argumento da práxis. Racionalmente poder-se-á provar
que a essência da religião não é ser “ópio do povo”. Entretanto, tais
argumentos não convencem sem a práxis. A verdade da fé em Deus
deverá verificar-se na práxis do dia-a-dia. Deverá verificar-se na
prática que a fé em Deus não sanciona a injustiça social.
No confronto entre a fé em Deus e a cosmovisão ateísta do
marxismo há que discernir:
a) A tese marxista segundo a qual a religião sempre procede
de situações sociais nas quais o homem se sente oprimido não
exaure a questão, pois coisa análoga valeria do próprio ateísmo e,
quem sabe, do próprio marxismo. Sabemos que a religião não é
apenas produto da miséria social. Cabe demonstrá-lo não só na
teoria, mas também e, sobretudo, praticamente. Por outro lado,
por que perseguir a religião, se ela morrerá automaticamente com
a transformação social proclamada por Marx?
b) Em relação à recente crítica marxista da religião, a Teologia
poderá argumentar que hoje o cristianismo luta pela dignidade do
homem todo e de todos os homens. Mas há que reconhecer também
os limites da ciência em relação à questão do sentido da existência
humana.
Apesar das críticas, o marxismo hoje exerce força sedutora,
favorecida pelas inúmeras crises sociais e ideológicas, a sedução
mítica de um messianismo redentor e libertador para a transfor­
mação do mundo e da sociedade. Neste sentido, é uma religião
KARL MARX: A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 135

atéia, cuja doutrina e promessas se impõem como dogmas indis­


cutíveis. Os cristãos criticam o marxismo não por causa de seu
humanismo, mas por causa de seu humanismo mutilado.
Feuerbach e Marx significam ruptura profunda entre cristianis­
mo e tradição cultural, instaurando, de um lado, um humanismo
superteológico baseado no primado da fé (Lutero) e, de outro, o
humanismo ateu. De um lado, busca-se a salvação na fé e despreza-
se o mundo e, de outro, busca-se a salvação somente através da cul­
tura, na sua evolução histórica, da qual a religião é apenas um mo­
mento transitório. Assim pode-se dizer que a crise do mundo moderno
é, antes de tudo, crise de humanismo, crise provocada pela ruptura
entre religião e cultura. Este processo adquiriu expressão máxima na
filosofia da história de Hegel, que reduzira o cristianismo a um grande
episódio da história universal, um fenômeno que se explica todo ra­
cionalmente. Na síntese hegeliana, o cristianismo deixa de ser religião
para ser apenas cultura. Desta síntese origina-se, de um lado, a so­
lução social de Feuerbach e Marx como humanismo absoluto e, de
outro, a solução religiosa que rompe com o mundo e a sociedade como
a tentou Kierkegaard.

Bibliografia

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WEISCHEDEL, Wilhelm, Der Gott der Philosophen, Munique, DTV, 1979, v. I.


FREUD: A PROVOCAÇÃO
DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

A partir do século XIX surgiram diversas tentativas de fun­


damentar o ateísmo radical cientificamente, pois as ciências
conquistaram enorme prestígio. De Feuerbach derivou não só o
ateísmo materialista, mas também o ateísmo psicanalítico de
Sigmund Freud (1856-1939). Desta maneira, o ateísmo já não se
restringe ao proletariado marxista, mas também penetra ampla­
mente na burguesia ocidental através da psicanálise.
Sigmund Freud, o fundador da moderna psicanálise, afirma:
“Deus é uma ilusão infantil”. Segundo depoimentos de biógrafos,
Freud cresceu sem fé em Deus e na imortalidade e, conforme al­
guns, nunca parece ter sentido maior falta. Entretanto, toda a sua
obra está repleta de críticas à religião. Tenta apresentar uma
concepção científica do mundo para substituir a religião, substi­
tuindo a idéia de Deus pela ciência. Para ele, toda a religião reduz-
se a processo psicológico. Em nome da ciência, a religião deve ser
abandonada por ser uma doença, uma neurose.
Quem era Sigmund Freud?
Nasceu em Freiberg, na Morávia, em 1856, numa família ju ­
daica ortodoxa e como tal foi educado. Quando tinha três anos de
idade, sua família mudou-se para Viena onde passou a maior parte
de sua vida. Quando fez trinta e cinco anos, seu pai o presenteou
com uma Bíblia. Mas na infância fizera experiências anti-religi­
osas. De um lado, uma empregada católica da família o obrigava
a acompanhá-la à missa aos domingos. De outro, experimentou
certo anti-semitismo por parte de cristãos, experiências negativas
da religião.
Estudou medicina numa época em que, nas universidades,
reinava o nlima em que a ciência natural era vista como a única
solução para todos os problemas. Freud acreditava na ciência como
seu mestre, o fisiólogo Emst Brücke, a apresentava. Para ele, a
138 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

fé na ciência significava a transição para o ateísmo. Durante anos


ocupou-se com a neurologia. Daí passou a estudar as neuroses.
O ateísmo de Freud é anterior à criação da psicanálise. Não
só. Ele mesmo reconhece em O futuro de uma ilusão:

“Nada do que eu disse aqui sobre o valor de verdade das religiões precisa
do apoio da psicanálise; já foi dito por outros muito antes que a psica­
nálise surgisse” (Os pensadores, p. 112).

Desde 1885 foi docente privado de neuropatologia na Univer­


sidade de Viena. Da fisiologia passou à psicologia. Cedo constatou
que atrás das manifestações de neuroses geralmente estão latentes
desordens sexuais do passado e atuais. Passou então a investigar
a vida sexual dos neuróticos.
Morreu a 23 de setembro de 1939, em Londres.

7.1. O c o n flito : natureza e cu ltu ra

Freud foi influenciado profundamente por Charles Darwin e


sua teoria evolucionista e por seu mestre Brücke, defensor do
materialismo mecanicista. Descobriu semelhanças entre seu
próprio pensamento e o pessimismo de Schopenhauer. Em Freud
manifesta-se uma crítica religiosa atéia. Para ele, o homem é um
ser insatisfeito, que deseja sempre maior felicidade. Mas entre seu
desejo e a realidade há enorme distância. O infinito contudo não
passa de um produto do desejo e da fantasia do espírito humano,
pois é apenas uma idéia, ou seja, uma ilusão. Em idade avançada
escreve:

“Dir-nos-emos que seria muito bom se existisse um Deus que tivesse


criado o mundo, uma Providência benevolente, uma ordem moràl do
universo e uma vida posterior; constitui, porém, fato bastante notável
que tudo isso seja exatamente como estamos fadados a desejar que seja.
E seria ainda mais notável se nossos lamentáveis, ignorantes e
espezinhados antepassados tivessem conseguido solucionar todos esses
difíceis enigmas do universo” (Os pensadores, p. 109).

Para Freud, a questão não é se Deus existe, pois de antemão


não existe e sequer foi problema existencial explícito para ele.
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 139

Pergunta: por que existem a religião e a fé? Por que a humanida­


de chega a crer em algo que de fato não existe, ou seja, por que o
homem chega à idéia de Deus?
A psicanálise freudiana tem pressupostos antropológicos. De
maneira análoga a Feuerbach, Freud quer defender o homem
através da tentativa de descobrir a gênese psicológica da religião
e da idéia de Deus. A psicanálise freudiana nasceu da diagnose e
terapia de indivíduos e tinha como objetivo libertar o homem de
suas doenças psíquicas. Todo o homem nasce aparelhado com as
mais variadas disposições instintuais cujo curso definitivo é de­
terminado pelas experiências da primeira infância. Se os homens
buscassem simplesmente a realização de seus desejos acabariam
destruindo-se uns aos outros. Os indivíduos fazem então um pacto
de defesa mútua contra as ameaças da natureza mais forte. Surge
assim a cultura como tarefa para o homem autoconservar-se di­
ante do poder supremo da natureza.
Para defender-se contra a força ameaçadora da natureza, o ho­
mem a humaniza, transformando-a em elementos pessoais. Essa
tarefa, segundo Freud, é continuação, sob outra forma, da condição
infantil, ou seja, da atitude da criança diante do pai. De um lado, a
criança teme o pai; de outro, sabe que pode contar com ele para sua
defesa contra os perigos. Transportando esta projeção para a natu­
reza, o homem olha-a como a um pai todo-poderoso, que chama Deus
ou deuses. Por isso a religião é a perpetuação do infantilismo na vida
humana. O homem desamparado busca um pai benévolo.
Como Freud fundamenta essa tese?
Parte da oposição de forças contrárias: a natureza e a cultura
(civilização). Supõe que a cultura é a característica que distingue
o homem do animal. À natureza é força agressiva, cega e irracional.
A cultura significa todo o saber e poder conquistados pelo homem
para dominar a natureza e satisfazer as próprias necessidades e
todas as organizações necessárias para regular as relações dos
homens entre si e a distribuição dos bens naturais.
Para a antropologia freudiana é determinante considerar o
homem como ser instintivo, que está condicionado, no fondo, pelos
instintos e impulsos, inclusive em sua vida consciente. Não pode
satisfazer os instintos sem limitações e sem renúncias. O homem
é, pois, um ser conflitivo e o domínio dos conflitos representa a
autêntica tarefa da vida humana. A saúde psíquica exige uma
140 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

consideração da dureza da vida e da realidade porque o homem


não consegue satisfazer todos os desejos dos impulsos. Mas quando
não consegue a superação dos conflitos ou só o faz de maneira
aparente e superficial, poderá chegar a sintomas neuróticos de
maior ou menor alcance. O que decide sobre a doença, nesse caso,
não são os conflitos ou não-conflitos, mas a forma mais ou menos
bem sucedida de dominá-los.
Freud, o fundador da psicanálise, na Introdução à psicanálise
(1916) ele mesmo resume os fundamentos da psicanálise da se­
guinte maneira: a) os processos psíquicos são em si mesmos in­
conscientes e os processos conscientes são somente atos isolados,
frações da vida psíquica total; b) os processos psíquicos inconsci­
entes são dominados, na maior parte, pelas tendências que podem
ser qualificadas sexuais no sentido restrito ou lato do termo. Este
último pressuposto é, na verdade, uma característica funda­
mental da psicanálise freudiana, que consiste essencialmente na
tentativa de explicar a vida inteira do homem, e não só aquela pri­
vativa ou individual, mas também a pública ou social, recorrendo
a uma única força que é o impulso sexual ou a libido no sentido
técnico do termo.
Segundo Freud, do contraste entre os impulsos sexuais do
subconsciente e as superestruturas morais e sociais constituídas
por proibições e censuras acumuladas durante a infância, nascem
os seguintes fenômenos: a) os sonhos como expressões deformadas
e simbólicas dos desejos reprimidos (Interpretação dos sonhos,
1900); b) os atos falhos, ou seja, os erros de distração e até as
brincadeiras e o humorismo; c) as doenças mentais curáveis
através da confissão e da conservação do paciente; d) a sublimação,
ou seja, a transferência do impulso sexual para outros objetos,
transferência que pode dar origem aos chamados atos espirituais:
arte, religião, metafísica etc. Através do processo de sublimação,
os impulsos egoístas, satisfeitos na fantasia, tomam-se social­
mente úteis. Mas trata-se de satisfação substitutiva; e) os com­
plexos, sistemas ou mecanismos associativos com certa constância,
aos quais devem ser atribuídas as maiores perturbações mentais,
como o complexo de Edipo. O termo complexo, todavia, foi intro­
duzido mais tarde por Jung.
Na obra O ego e o id (1923), Freud apresentou uma teoria
psicológica que divide o espírito em três aspectos: o ego, o superego
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 141

e o id. Essa teoria foi aceita amplamente pela psicologia contem­


porânea e mostrou-se muito útil na teoria da personalidade e na
descrição e interpretação de doenças mentais. O ego é organiza­
ção e consciência e, por isso, está em contato com a realidade e
procura submetê-la a seus fins. E parte do id que, sob influência
do mundo externo, sofreu desenvolvimento especial. O superego,
que geralmente pode chamar-se de consciência moral, é constituído
pelo conjunto de proibições impostas ao homem nos primeiros anos
de vida e o acompanham, mesmo de forma inconsciente; o id é
constituído pelos impulsos múltiplos da libido, orientada sempre
para o prazer. O ego organiza a defesa, assegura a adaptação à
realidade, regula os conflitos, opera a censura e representa a ra­
zão, a sabedoria, a percepção e a memória. Freud escreve:

“Com referência aos acontecimentos internos, em relação ao id, ele de­


sempenha esta missão obtendo controle sobre as exigências dos instintos,
decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando essa satisfação
para ocasiões e circunstâncias favoráveis no mundo externo ou supri­
mindo inteiramente as suas excitações (...) O ego esforça-se pelo prazer
e busca evitar o desprazer” (Os pensadores, p. 200).

O id é a parte mais antiga da mente como um depósito de


forças instintivas, inteiramente inconsciente. Dominado pelas
paixões e movido pelo impulso instintivo, o id não apresenta
conflitos. Nele encontram-se juntas as contradições e antíteses
que, muitas vezes, se adaptam mediante compromissos:

“À mais antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica damos o nome


id. Ele contém tudo que é herdado, que se acha presente no nascimento,
que está ausente na constituição — acima de tudo, portanto, os instintos,
que se originam da organização somática e que aqui (no id) encontram a
primeira expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas” (Os
pensadores, p. 199).
O superego, por um lado, é representante dos aspectos restri­
tivos da psique e, por outro, indica as aspirações da consciência.
Sob o primeiro aspecto, o superego é conseqüência, segundo Freud,
das regras impostas pelos pais e projeção das próprias agressões
da criança; sob o segundo, nasce a identificação e a interiorização
primeiro dos pais e, depois, de educadores e demais modelos ide­
ais. Freud descreve:
142 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

“Observar-se-á que, com toda a sua diferença fundamental, o id e o


supergo possuem algo em comum: ambos representam as influências do
passado — o id, a influência da hereditariedade; o superego, a influência,
essencialmente, do que é retirado de outras pessoas, enquanto o ego é
principalmente determinado pela própria experiência do indivíduo, isto
é, por eventos acidentais e contemporâneos” (Ospensadores, pp. 200-01).

Em suas análises da religião, Freud pergunta: de onde as


concepções religiosas têm sua força? Responde que são realização
dos desejos mais antigos, mais fortes e mais intensos da huma­
nidade: “O segredo de sua força é a força desses desejos” (Os
pensadores, p. 107).
A religião origina-se, conforme Freud, do complexo paterno
significando grande alívio para os conflitos da infância do indiví­
duo. Mas é uma ilusão porque deriva dos desejos e como tal
aproxima-se dos delírios psiquiátricos. Caberá substituir a ilusão
pela ciência para que a humanidade possa sair de sua infância. A
maturação da humanidade exige a superação da fase religiosa,
dando primazia à inteligência sobre a vida dos instintos. A psi­
canálise será ajuda neste sentido. Como?

7.2. R e lig iã o e p sican álise

Freud dedicou alguns de seus estudos especificamente à reli­


gião: Totem e tabu (1913); O futuro de uma ilusão (1927); Moisés
e a religião monoteísta (1938). Todas essas obras contêm hipóte­
ses muito ricas em fantasia sobre a origem e natureza da religião,
baseadas sempre num ateísmo postulado e dogmático. Mas a re­
ligião é tema permanente na maioria de suas obras.
A intuição fundamental de Freud parece ser: todo o psíquico
primeiro é inconsciente. Os processos inconscientes são os pro­
cessos primários e os conscientes os secundários. Toma como ob­
jeto de seu método científico o inconsciente. Em geral, a consciên­
cia, o eu, rejeita os impulsos inconscientes. Em alguns casos nem
permite o confronto. Através do mecanismo de rejeição, que o eu
tem, são banidos para o subconsciente. Aí não desaparecem mas
acumulam energia. Por conseqüência, buscarão substitutos na
forma de sonhos ou até na forma de sintomas neuróticos e corpo­
rais. Desde o subconsciente atuam sobre o consciente do homem.
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 143

Por isso a tarefa da terapia é não negar simplesmente os afetos


neuróticos, mas interpretá-los como repressões. É preciso trazê-
los à consciência em ação conjunta entre o paciente e o terapeuta.
Sem censura, o paciente conta os seus sonhos e tudo que mo­
mentaneamente o atormenta. Desta maneira, o paciente aprende
a conhecer-se em sua profundidade e em sua superficialidade. A
este procedimento Freud chamou de psicanálise.
Freud percebeu que a resistência do paciente contra a
conscientização só pode ser descoberta e superada se o analista
domina a arte de interpretar, deixando ao paciente o andamento
da análise e o ordenamento do material. A transferência do pa­
ciente para o terapeuta é decisiva no procedimento terapêutico.
Possibilita tanto a influência do médico como a rejeição do pacien­
te. Surge então o que costuma chamar “aliança terapêutica”. Tendo
o médico uma como espécie de duplicata de uma pessoa da expe­
riência de outrora, o paciente pode reviver suas relações senti­
mentais reprimidas, positivas ou negativas, para com pessoas
importantes do passado (pais, irmãos). Só assim é possível des­
cobrir estruturas atuantes do subconsciente, interpretá-las e for­
mular as motivações inconscientes. Desta maneira, segundo
Freud, possibilita-se a cura duradoura. O paciente deverá amar e
trabalhar outra vez. Esta, aliás, é a meta da terapia.
Qual o melhor caminho para chegar a esta meta?
O caminho melhor para o reino misterioso do inconsciente é a
interpretação dos sonhos. O sonho, por mais absurdo que possa
parecer, à primeira vista, tem sentido a partir do inconsciente.
Muitas vezes é a realização de desejos reprimidos e necessita de
interpretação. Traumas reprimidos podem ser analisados e com­
preendidos com a ajuda dos sonhos. Sonhos e atos falhos são ca­
minhos para chegar ao núcleo da vida psíquica, ou seja, ao in­
consciente. Entretanto Freud não obteve grande sucesso editorial
com sua obra Interpretação dos sonhos (1900). Durante seis anos
só conseguiu vender 351 exemplares. Em seu curso sobre o as­
sunto, durante o ano de 1900, apenas se inscreveram três alunos.
A partir da interpretação dos sonhos, a psicanálise adquiriu
posição própria para compreender a vida psíquica. Com a ajuda
da interpretação dos sonhos, o analista consegue regredir ao ma­
terial esquecido da infância. Através da busca das situações de
conflito sexual, das quais decorrem repressões, Freud chegou a
144 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

investigar os primeiros anos da infância e mostrou sua importân­


cia para todo o desenvolvimento ulterior do homem global. Quando
Freud falava de sexualidade infantil, naquele tempo, muitos ci­
entistas se chocavam. Para Freud, a libido não está vinculada aos
órgãos genitais. Tem o significado amplo dos impulsos da energia
sexual, comum a crianças e adultos, em busca do prazer. Com este
conceito ampliado de sexualidade, Freud consegue desenvolver
uma teoria: as fantasias do desejo (complexo de Édipo); suas fases
iniciais auto-eróticas: orais, anais, genitais; suas fixações a de­
terminados momentos do processo do desenvolvimento, suas re­
pressões a esses momentos no caso de repressões; sua sublimação
ou aplicação a obras culturais etc.
Em síntese, cabe reconhecer as principais conquistas cientí­
ficas de Freud: a) suas teorias sobre o inconsciente e sua maneira
de trabalhar (processo primário e interpretação do sonho); b) a
teoria da libido (vida sexual infantil). A psicanálise passou a ser
aplicada à literatura, à arte, à história das religiões, não apenas
como instrumento de esclarecimento universal. Para a crítica da
religião, o conceito fundamental de Freud é repressão, porque
religião é apenas neurose. O que a consciência reprime para o
subconsciente não se esquece, nem desaparece sem mais, mas
continua operando no subconsciente e influi na vida consciente do
homem. Este é o pressuposto da psicologia profunda. Às vezes
Freud identifica repressão com mecanismo de defesa, porque in­
conscientemente o homem impede que desejos penetrem na
consciência. Tais mecanismos de defesa permitem certo domínio
dos conflitos através de uma solução substitutiva (sublimação).
Tais soluções, porém, custar-lhe-ão caro porque causarão senti­
mento de angústia, sentimento inconsciente de culpabilidade e o
desejo de autopunir-se.

7.3. A religião: neurose obsessiva

As repressões realmente debilitantes ocorrem na primeira


infância quando a criança deve exercer as primeiras renúncias dos
instintos e impulsos. A neurose é a fuga do adulto ao mundo in­
fantil. Aí os conflitos que não foram resolvidos na infância cele­
bram sua ressurreição. Freud vê a religião como regressão do
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 145

adulto ao mundo ideal da criança. Nessa regressão, o pai exerce


papel importante devido ao complexo de Édipo. Representa fase
decisiva entre os 4-6 anos de idade. No seu relacionamento cari­
nhoso com a mãe, a criança sente o pai como rival. Divide o amor
da mãe com o pai. Por isso formam-se desejos agressivos em re­
lação ao pai que, não raro, transformam-se no desejo de matá-lo.
Mas, ao mesmo tempo, a criança sabe que precisa do pai. Com isso
constitui-se o conflito entre amor e ódio, afeição e hostilidade,
admiração e medo do pai. Tais desejos serão exilados para o porão
do subconsciente. E a criança aprende o que se proíbe e o que se
permite em seu meio cultural, apropriando-se internamente desses
preceitos e dessas proibições. Assim forma-se o superego. Este é um
fator cultural transmitido através do pai e atua na criança e no
adulto como censura.
O neurótico não quer aceitar a dura realidade da vida e do
mundo como é. Não a nega, apenas não quer saber dela. O sonho
não respeita tanto a censura como a vida consciente. Por isso, no
sonho, pode manifestar-se o que o homem deseja de maneira in­
consciente. A pergunta é: O que tudo isso tem a ver com a religião?
Qual a origem da religião? Qual sua essência?
Na obra Totem e tabu (1913), Freud diz que a vida religiosa do
homem primitivo girava em tomo do totem. As tribos eram divi­
didas em diversos clãs, tendo, cada qual, seu totem. No começo era
um animal comestível e era visto como antepassado do clã. Depois
de seus membros comerem sua carne criam transmitir o caráter
totêmico através da geração. Além da obrigação de respeitar a vida
do totem observavam a exogamia.
Partindo da teoria evolucionista de Darwin, Freud acreditava
que o homem primitivo vivia de maneira quase animal. As hordas
de machos, na caça às femeas, tinham que submeter-se ao mais
poderoso, que exercia poder despótico. Segundo a interpretação de
Freud, os outros machos uniram-se e o assassinaram. Outro ma­
cho, o mais forte, o imita e lhe sucede. Repete-se o crime. Assim
teria continuado até que decidiram um pacto entre todos eles re­
conhecendo instituições como o respeito ao totem da tribo. Este os
mantinha unidos. Reconheceram ainda a obrigação da exogamia
para evitar a luta entre eles na conquista das fêmeas. Este seria
o começo da organização social, baseada na renúncia ao compor­
tamento instintivo.
146 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

Para recordar o pacto, celebravam um banquete sacrificial.


Neste rito totêmico participavam todos os membros da tribo. Como
o animal sacrificado também era considerado sagrado, Freud in­
dica que tinha o mesmo valor que o deus a quem se oferecia o
sacrifício. Por isso, ao comer, absorvia-se a substância divina que
protegia contra os perigos e fortalecia a todos.
Como os irmãos já haviam assassinado o pai, este rito recor­
dava o antigo homicídio com sentimento de culpa e o animal sa­
crificado convertia-se na substância do pai. De um lado, o sacrifício
totêmico unia-os com o pai primitivo. De outro, a morte do animal
servia para recordar a unidade dos irmãos e seu triunfo sobre o
pai tirano. O mesmo sentimento de culpa faz os irmãos cumprirem
uma série de obrigações, as mesmas que antes haviam rejeitado.
Comprometem-se a respeitar a vida do totem, que representa o pai;
a respeitar as mulheres do clã por cuja posse haviam assassinado
o pai. Portanto, é o sentimento de culpa que estabelece as proibi­
ções ou tabus do totemismo. E o sentimento de culpa que originou,
pois, a religião. E o núcleo desta consciência de culpa é o complexo
de Édipo. O pai representa um tirano dominador que impõe leis e
seus filhos o matam por ódio.
Para Freud, a origem da religião é questão meramente psico­
lógica. Ele ficara fascinado pela teoria evolucionista de Darwin e
do antropólogo E. B. Tylor. Segundo o último, a etapa que prece­
de a religião é o animismo, ou seja, a fé numa alma que tudo vi-
vifica, o totemismo, a veneração dos animais. Segundo o esquema
evolutivo, no plano do animismo e do totemismo, todo o culto é
magia: ritos, palavràs e ações que automaticamente produzem
seus efeitos. Nesta fase, o homem queria dominar a realidade.
Vendo a ineficiência da magia, sobretudo contra a morte, teria
surgido a fé nos deuses e, conseqüentemente, a religião. O homem
projeta a idéia de domínio a alguns deuses que podem ser influ­
enciados pelos mortais. Mais tarde teria aparecido o pensamento
científico. Nesta fase o homem aceita os limites de sua própria
condição tomando consciência de que a natureza é indomável. O
esquema trífásico ou de três momentos, como já o conhecemos em
Hegel e em Augusto Comte, também o encontramos em Freud:
magia-religião-ciência. A ciência vai eliminando a religião aos
poucos. Quanto mais o homem progredir no conhecimento cien­
tífico, aceitará, de um lado, seus limites e, de outro, aos poucos
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 147

abandonará a religião. Como instrumento na dominação da na­


tureza, será substituída pela ciência.
Segundo Freud, a neurose é o mosteiro para o qual costumam
retirar-se aqueles que estão iludidos da vida ou que se sentem fra­
cos para enfrentá-la. Na religião, o homem foge da dura realida­
de, escondendo-se num mundo ideal da infância. Por isso a reli­
gião é ilusão. Em carta escrita a um amigo em 1/1/1920, lemos: “O
fundamento último da religião é o desamparo infantil do homem”.
A origem da religião é, pois, o inconsciente, ou seja, o irracional.
Na sua concepção, o lugar da religião é a cultura. Certos im­
pulsos não são satisfeitos, são sublimados. No processo de subli-
mação, os impulsos egoístas tornam-se socialmente úteis e satis­
feitos na fantasia. Evita-se o sofrimento e a sublimação toma-se
gratificante. Os grandes campos culturais da humanidade (arte,
religião, metafísica e ciência) são sublimação de impulsos instin­
tivos mais originais. A religião aparece como temor e medo do
castigo e desejo de consolo. É a resposta à dureza da vida. Com isso
a religião é um aspecto neurótico da cultura. Na verdade não é uma
resposta ao desejo humano de saber, não lhe proporciona consolo
autêntico e, enfim, exige do crente renúncia ao impulso, renúncia
que é a maior que se lhe podia exigir. Assim Freud está convencido
de que a ciência assumirá a tríplice função da religião:

“exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade


do destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-
los pelos sofrimentos e pelas privações que uma vida civilizada em comum
lhes impôs” (Os pensadores, p. 97).

Freud rejeita, pois, a religião como mundo ilusório e neurótico


e defende a ciência.

7.4. A religião: m era ilu sã o infantil

Vimos que a origem da religião aparece, em Freud, como a


nostalgia que o homem tem de um pai onipotente que o console e
proteja, em sua angústia pela dureza da vida. Assim o fundamento
último da religião, segundo ele, é o desamparo infantil do homem.
Diante da natureza, o homem-menino foija-se deuses segundo o
148 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

modelo do pai. Na verdade ignora as deusas femininas. A religião


toma-se, assim, fuga da realidade. Freud exclama: “O homem não
pode permanecer criança. O infantilismo deve ser superado”.
Considerava a religião simplesmente desnecessária para o sujeito
mentalmente sadio por ser uma “neurose obsessiva e universal da
humanidade”.
Quatro anos antes da morte, depois de passar pela ciência
natural, medicina e psicoterapia, reconheceu que na juventude e
na velhice seu maior problema sempre foi a religião. Seu escrito
sobre O futuro de uma ilusão (1927) diz que concepções religiosas
são proposições doutrinárias sobre fatos e relações da realidade
externa que comunicam algo que não se encontrou e reivindicam
que nelas se creia. Mas em que se fundamentam? Diz Freud:

“Quando indagamos em que se funda sua reivindicação a ser acreditada,


deparamos três respostas, que se harmonizam de modo excepcionalmente
mau umas com as outras. Em primeiro lugar, os ensinamentos merecem
ser acreditados porque já o eram por nossos antepassados; em segundo,
possuímos provas que nos foram transmitidas desde esses mesmos
tempos primeiros; em terceiro, é totalmente proibido levantar a questão
de sua autenticidade” (Os pensadores, p. 104).

Freud não nega que a religião tenha exercido papel positivo


para a humanidade:

“A religião, é claro, desempenhou grandes serviços para a civilização


humana. Contribuiu muito para domar os instintos associais. Mas não
o suficiente. Dominou a sociedade humana por muitos milênios. Se
houvesse conseguido tomar feliz a maioria da humanidade, confortá-la,
reconciliá-la com a vida e transformá-la em veículo de civilização, nin­
guém sonharia em alterar as condições existentes. Mas em vez disso, o
que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pes­
soas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a
como um juízo do qual gostariam de se libertar” (Ibidern, p. 112).

Em outras palavras, Freud apresenta a seguinte idéia de re­


ligião: a) Devemos crer sem exigir provas racionais. Pergunta: por
quê? Ele mesmo responde: será porque se sabe da carência de
fundamentação? b) Devemos crer porque nossos antepassados
creram. Não creram eles muitas coisas que hoje não mais podemos
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 149

crer? c) Devemos crer por causa de provas da tradição. Qual é a


procedência de tais provas? Não são as provas atuais, como as dos
espíritas, produções meramente psíquicas? Em resumo, as dou­
trinas religiosas não passam, para Freud, de meras ilusões.
Segundo ele, também os filósofos dão o nome de Deus a uma
vaga abstração criada por eles e dizem-se deístas, orgulhando-se
de terem descoberto um conceito muito mais elevado e puro de
D eus, em bora seu Deus nada m ais seja que um a som bra
inexistente:

“Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que


tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o
material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da
infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse
dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza
e do Destino, e contra os danos com que o ameaçam a própria sociedade”
(Os pensadores, p. 98).

Pergunta: Que são essas idéias religiosas à luz da psicologia?


Qual seu valor real? Responde:

“Tentei demonstrar que as idéias religiosas surgiram da mesma neces­


sidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização,
ou seja, da necessidade de defesa contra a força esmagadoramente su­
perior da natureza” (Os pensadores, p. 100).

Em outras palavras, não há nenhuma realidade atrás daqui­


lo que é a religião? De onde veio a força que as concepções reli­
giosas exerceram sobre os homens durante milênios? Freud explica
a religião por sua gênese psíquica. Descobriu um modelo na in­
terpretação dos sonhos e dos sintomas neuróticos como realização
de desejos e o aplica à religião. Nesta perspectiva, representações
religiosas não derivam da experiência e do pensar, mas são ilusões,
“realização dos desejos mais antigos, mais fortes e mais intensos
da humanidade”. Que desejos? Dos desejos da criança desampa­
rada que busca proteção diante dos perigos da vida. Imortalidade
e Deus são desejos infantis derivantes, em última análise, do
complexo de Édipo não curado. Essa perspectiva Freud aplica-a
não só ao indivíduo como à humanidade.
A cultura cria as concepções religiosas para o indivíduo. A
religião nasce da necessidade de proteção contra a força da natu­
150 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

reza e do destino. Como? Recorrendo às forças sobrenaturais e


personificando-as. Como o homem se sente impotente cria deuses
poderosos, deus de temor e de consolação. Tais deuses têm a tarefa
de banir o terror da natureza, reconciliar com o destino e oferecer
ao homem um ideal de vida.
Na obra Moisés e a religião monoteísta descreve a evolução do
totemismo primitivo até o monoteísmo. O animal totem passa a ser
símbolo do pai divinizado. Este Deus passa a ter cada vez mais
traços humanos e criam-se outros deuses de acordo com as dife­
rentes imagens dos homens em suas situações sociais, chegando
ao politeísmo. Evolui-se ao monoteísmo quando Moisés converte
o pai tirano no Deus único. De um lado, os judeus sentiam a sa­
tisfação de terem o Deus mais forte e, de outro, proibindo fazer
imagens desse Deus, abriam caminho para a racionalidade.
Freud tenta uma explicação do cristianismo, desrespeitando
todos os dados históricos. Paulo de Tarso, que tinha mentalidade
judia e era, ao mesmo tempo, romano e, por isso, tinha captado o
sentimento de culpa da sociedade helênica, que esperava um
salvador, inventou o pecado original. No fundo, Paulo expressou
que a humanidade era culpada do assassínio do pai e devia expiá-
lo. Para tanto inventou Cristo. Sem provar nada, apresenta sim­
plesmente Cristo como agitador político-social-religioso, do qual
Paulo teria feito o símbolo do irmão maior que expiou a culpa.
Como o pecado original tinha que ser o assassínio do pai, o cris­
tianismo reflete melhor o sentimento ambivalente de ódio e amor,
a consciência de culpa que, em última análise, manifesta o com­
plexo de Édipo. Este crime primitivo também o vê expresso nos
ritos cristãos como na Eucaristia.
Em síntese, aceitando a explicação freudiana da religião, seu
conceito de Deus, toma-se impossível crer e manter uma atitude
religiosa. Libertando a humanidade do complexo de Édipo será
livre da religião e desaparecerá a neurose obsessiva. Só a ciência
(psicanálise) poderá curar essa doença. Todas as doutrinas reli­
giosas reduzem-se a mera ilusão. Preocupa-se apenas com a na­
tureza psicológica das idéias religiosas e não com seu conteúdo.
Entretanto caberia perguntar honestamente: poderia o homem
suportar a dureza da vida sem a consolação da religião? A religião
não fez os homens mais felizes. Se tem favorecido a moral igual­
mente favoreceu muitas vezes a imoralidade. Para ele, a influên­
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANAIÍTICO 151

cia da religião tende a diminuir rapidamente para ceder lugar ao


espírito científico. Como resultado de uma necessidade, a neuro­
se do complexo de Édipo desaparecerá. Pela educação, o homem
sairá de sua infância e a religião será desnecessária. A fé na ciência
substituirá a fé em Deus. O que a ciência não nos fornece também
a religião não poderá fornecer. A religião é hostil à ciência. Por isso
Freud termina o capítulo IX de O futuro de uma ilusão citando um
verso de Heine:

“Den Himmel überlassen wir


Den Engeln und den Spatzen”.
(Deixemos o céu aos anjos e aos pardais).

Conclui essa obra com a profissão dogmática: “Não, nossa


ciência não é ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciên­
cia não nos pode fornecer, podemos conseguir em outro lugar” (Os
pensadores, p. 128).

7.5. C rítica à crítica d e F reu d

Perguntamos: O que é ciência e o que é mito na doutrina


freudiana?
Freud escreveu com o entusiasmo próprio de sua época, na
perspectiva da teoria evolucionista do mundo e da religião. Nessa
época foram lançadas muitas hipóteses ousadas e ingênuas que
hoje estão definitivamente superadas. Por outro lado, já em seu
tempo, algumas de suas teorias sobre a evolução das religiões
estavam definitivamente superadas. Mas, no fundo, a questão da
verdade histórica nunca interessa muito a Freud. De antemão
form ulara uma teoria da religião, uma teoria im utável e
dogmática, que apenas queria confirmar com material selecionado
segundo seus interesses. Aliás, ele mesmo só procurou justificar
sua própria posição ateísta depois de acertar sua decisão pessoal.
Seu objetivo não é criticar aspectos deficientes desta ou daquela
religião, mas identifica simplesmente toda a religião com neurose.
Segundo Freud, a angústia humana, a nostalgia do pai, o re­
morso do assassino prim itivo seriam as causas psíquicas
determinantes da religião. Simplesmente desprezou a hipótese
152 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

segundo a qual a religião deriva de um sentimento religioso pri­


mário e independente de fatores ocasionais derivados do complexo
de Édipo.
Perguntamos: Como valorar criticamente a crítica que Freud
faz à religião?
Em O conflito das interpretações, Paul Ricoeur observa criti­
camente:

“A psicanálise é, assim, à sua maneira própria, uma exegese, que nos


permite ler o drama edipiano por detrás do texto oficial da consciência
moral, e uma energia que liga as energias investidas no recalque às forças
tomadas de empréstimo ao id, vale dizer à profundidade da vida. Dessa
forma, o superego, situado acima do ego, toma-se um tribunal, uma
instância que vigia, julga e condena (...). Foi assim que Freud pôde
elaborar o que poderíamos chamar de uma patologia do dever ou da
consciência. Ademais, a gênese da neurose fomeceu-lhe uma chave para
interpretar, em termos genéticos, os fenômenos de totem e tabu recebidos
da etnologia. Tais fenômenos, nos quais Freud acreditou ver a origem de
nossa consciência ética e religiosa, aparecem como o resultado de um
processo de substituição que remete à figura oculta do pai, herdeira do
complexo de Édipo. Por sua vez, o Édipo individual serviu de modelo para
uma espécie de Édipo coletivo pertencendo à arqueologia da humanidade.
A instituição da lei é, assim, vinculada a um drama primitivo, o famoso
assassino do pai. Todavia, é difícil dizer se temos aí apenas o mito da
psicanálise, o mito freudiano, ou se Freud atingiu, realmente a origem
radical dos deuses" (p. 371).

Não é nada fácil ver um mínimo de coerência entre o que ele


diz a respeito da religião e o que faz, pois, ainda aos 80 anos de
idade, dedica-se ao estudo do judaísmo. Nos últimos cinco anos
dedicou-se intensamente a escrever seu livro Moisés e a religião
monoteísta. Por quê? Suas conclusões anteriores, na verdade, não
teriam sido tão seguras e definitivas? Nunca ficou realmente sa­
tisfeito com suas próprias opções e soluções? Teria percebido que
sua psicanálise não era apenas um instrumento científico, mas
apresentava também pretensões de substituir a religião?
As suas teses muito cedo receberam críticas e restrições não
só das igrejas, mas também dos seus próprios discípulos. Assim
Alfred Adler (1870-1937) e Carl Gustav Jung (1875-1961), embo­
ra aceitassem a teoria freudiana do inconsciente e muitos outros
aspectos de seu mestre, contudo questionaram aspectos funda­
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 153

mentais: pode-se conceber o inconsciente tão negativamente como


simples reservatório de desejos reprimidos? Pode-se conceber o
impulso de maneira tão mecânica? Pode-se reduzir tudo à libido?
Pode-se considerar a estrutura individual da pessoa apenas numa
retrospectiva, sem prospectiva?
Adler, como Freud, era de ascendência judaica. Adler dedicou-
se mais à síntese que à análise, mais à prospectiva que a retros­
pectiva. Separou-se do mestre por considerar que este reduzia tudo
ao comportamento sexual. Carl Gustav Jung foi cristão. Também
ele rejeitou a teoria freudiana da libido como explicação para tudo.
Ambos afastaram-se do círculo de Freud não por discordância
religiosa, mas científica. Ambos discordaram também da crítica
da religião como a apresentou dogmaticamente. Adler, em sua
análise da religião, não parte do complexo de pai. Vê como ilusó­
ria a concepção mecanicista de Freud por carecer de orientação e
rumo. Para Adler, a divindade é a manifestação mais brilhante da
meta de perfeição do homem. Desta maneira psicologia e religião
convergem, pelo menos, na idéia de perfeição da humanidade como
meta. Adler pode ser tolerante com a religião enquanto esta serve
à mesma meta que a psicologia. Deus é a idéia de perfeição que o
homem busca. Entretanto, para Adler, a realidade última também
é o homem. Jung, por sua vez, distanciou-se explicitamente do
ateísmo de Freud. Enquanto Freud nega a religião, Adler a tolera,
Jung a vê com muita simpatia. Desta maneira Adler e Jung
relativizaram muito a crítica da religião feita por Freud. Mas a
crítica feita por Jung a Freud não eliminou a questão fundamental:
é a religião apenas um pensamento do desejo ou realidade? É Deus
apenas uma idéia psicológica ou realidade objetiva?
Na verdade, os historiadores e cientistas nunca levaram muito
a sério a teoria freudiana do animismo, do totemismo e da magia
por ter sido preconcebida a partir do complexo do Édipo sem maior
fundamento na realidade histórico-objetiva. Tais teorias não re­
sultam de tuna pesquisa científica, mas de postulados que atendem
a seus interesses pessoais. A teoria evolucionista, que parte do
animismo, mostrou-se um postulado dogmático ao qual falta todo
e qualquer embasamento científico. Neste campo, os pesquisadores
hoje são muito mais prudentes e chegam até a perguntar: de an­
temão pode-se dizer que as religiões são menos reais e menos
verdadeiras que a própria ciência? É tão científico querer explicar
154 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

simplesmente a religião a partir de algo não religioso como a


magia? Não poderia estar o próprio monoteísmo na origem histó­
rica da religião, tese defendida pelo antropólogo Wilhelm Schmidt
numa extensa obra de doze volumes? Freud partiu do pressuposto
de que o processo do fenômeno religioso tem sido essencialmente
evolutivo. Desde o reconhecimento do mana ((força superior difusa)
ou desde a atribuição do caráter numênico a símbolos protetores
do grupo social {totem), a certas normas de conduta primaria­
mente inibitivas {tabu), a forças naturais ocultas (animismo), aos
espíritos dos antepassados até, enfim, após uma longa evolução,
chegar ao conceito de Deus único e universal. Diante das con­
cepções evolucionistas, W. Schmidt e sua escola, através de estudos
empíricos das crenças dos povos atuais de civilização primitiva,
desacreditaram muito as teorias evolucionistas, mostrando a
presença do ser supremo na consciência religiosa já em estádios
muito primitivos. Schmidt até levantou a hipótese de uma reve­
lação primitiva. Os dados científicos disponíveis hoje não permitem
recusar, sem mais, ccmo dados igualmente primitivos formas e
indícios de crenças num Ser supremo. Os dados científicos hoje
disponíveis, a rigor, não confirmam a teoria da degeneração, que
parte do monoteísmo ao politeísmo, nem a teoria da evolução, que
parte do animismo para chegar ao monoteísmo. Do ponto de vista
estritamente científico, aliás, é preciso reconhecer honestamente
que a religião originária permanece tão desconhecida como a data
e o lugar do nascimento do primeiro homem. Todas as teorias sobre
a origem da religião, a rigor, não passam de hipóteses e conjecturas
formuladas, geralmente, no horizonte de determinada ideologia.
A teoria de Freud não faz exceção. Mircea Eliade chega a qualificar
as hipóteses de Freud em Totem e tabu como meras “novelas de
terror” que se reduziram à moda cultural apenas pelo oportunismo
do sucesso da psicanálise em relação à psicologia tradicional, mas
certamente não por causa de seu fundamento científico.
Hans Küng mostrou, de maneira convincente, que o ateísmo de
Freud não é conseqüência de sua psicanálise. Desde o tempo de es­
tudante já era ateu. Portanto seu ateísmo é anterior. Antes procura
justificar o que já decidira previamente. Nisto há muita semelhança
entre Feuerbach e Freud. Por isso podem fazer-se algumas obser­
vações críticas comuns a ambos. Como em Feuerbach, também a
crítica de Freud à religião não passa de hipótese não demonstrada.
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 155

Do ponto de vista <áentífico, é muito simplório concluir, do fato de


mostrar a importância do inconsciente do homem, a existência ou não-
existência de Deus. Pelo fato de a religião poder ser ópio do povo
(Marx), um meio de consolação (Freud) certamente não se conclui que
necessariamente o é ou precisa sê-lo. A religião pode ser ilusão, ex­
pressão de uma neurose ou imaturidade psíquica, mas não precisa
sê-lo. Se toda a fé humana, o amor e a esperança têm um momento
de projeção, disso não é preciso inferir que seu objeto se reduza à mera
projeção ou ilusão.
O psicanalista Gregory Zilboorg, conhecido por seus estudos
profundos sobre a relação psicanálise e religião, afirma que “as
idéias de Freud sobre a religião foram aceitas ou rejeitadas com
excessiva pressa e sem crítica adequada” (p. 31). Partindo da
distinção entre conhecimento científico e conhecimento religioso,
diz que não é possível medir um pelo outro, pois não têm um de­
nominador comum: “Freud parece ter compreendido a sua oposi­
ção pessoal contra a religião como baseada em sua psicologia ci­
entífica” (p. 37). Algum dia poderia algum crítico esperto da ciência
empírica inverter a crítica de Freud dizendo “que se deveria banir
a ciência, por ser ela um escoadouro para a desordenada e infantil
curiosidade sexual do homem, e nada mais do que a expressão
formalizada da fé do indivíduo em si próprio e no seu supremo
domínio da natureza do homem. Semelhante crítico poderia, in­
clusive, afirmar que a ciência é uma adaptação infantil e neurótica
que leva à destruição da vida quando afirma que desejamos con­
seguir o contrário” (p. 39). Pouco mais adiante, Zilboorg observa:
“Freud irritou com as restrições que a tradição religiosa impõe às
nossas necessidades biológicas, particularmente às eróticas. Mas,
quem sabe, podia ter ele considerado tal fato de um ângulo dife­
rente, se lhe tivesse ocorrido que essas restrições e esses tabus são
mais antigos ainda do que vossas religiões monoteístas” (p. 42).
O cientista, como pessoa, pode não ser homem bom; pode ou não
ser religioso. Pode ser indiferente ao problema religioso e até
avesso a ele: “O maior cientista pode ser e, geralmente, assim
acontece, teólogo muito medíocre, e ser incrédulo muito ingênuo”
(p. 51). Este é, certamente, o caso de Freud quando trata a religião
como superstição ou como enfermidade, pois significa vestir-se da
respeitabilidade científica com o propósito de negar aquilo de que
não se entende.
156 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

O problema fundamental da crítica de Freud à religião não é


a sua explicação psicológica da fé. Do ponto de vista psicológico,
até podemos admitir que todo o amante projeta sua própria ima­
gem sobre a amada. Daí, contudo, não ousamos concluir que a
amada simplesmente não exista, que apenas seja ilusão. Aqui a
teoria freudiana do desejo tem seus limites, limites que ele, infe­
lizmente, não observou. Por que, então, ao desejo do homem por
Deus não pode corresponder a real existência de Deus? Por que
se desqualificaria, sem mais, o pensamento do desejo? Não se
oculta, nessa tese freudiana, o desejo de que não exista? O próprio
ateísmo de Freud não deriva da ciência e, sim, do desejo.
Partindo da experiência religiosa atual do homem e dos re­
sultados da ciência histórica das religiões caberá à filosofia in­
vestigar se o fenômeno religioso é originário e irredutível do ho­
mem, e se leva, naturalmente, à idéia de um ser supremo ou Deus.
Na questão da originalidade e da irredutibilidade, posições atéias
como as de Feuerbach, Marx e Freud tendem a vê-lo como uma
situação deficiente. Mas é fácil ver que o fenômeno religioso in­
terpretado por Freud como “sobrevivência nociva da imagem pa­
terna na idéia de Deus” é teoria muito parcial através de inegáveis
aspectos deficientes da sua história e em função de pressupostos
(não de conclusões) estranhos. Interpretações igualmente parciais
são as teorias filosóficas que observam o fenômeno religioso de
ângulo exclusivam en te racion al, seja m oral (K ant), seja
especulativo (Hegel). Por isso, em nosso século, a filosofia
fenomenológica (R. Otto, M. Scheler, M. Eliade e outros) tenta
descrever as irredutíveis estruturas do sagrado, da oposição entre
o sagrado e o profano.
A explicação da gênese psicológica da fé em Deus não destruiu
a própria fé em Deus, muito menos Deus. Freud analisou as
concepções religiosas do ponto de vista psicológico, na perspectiva
de uma prévia reivindicação dogmática, pois o que se pode dizer
sobre a natureza psicológica das concepções religiosas não decide
absolutamente nada sobre seu conteúdo real e seu verdadeiro
valor. Freud simplesmente substituiu a fé em Deus pela fé na
ciência. Em que ciência? A pergunta agora passa a ser a seguinte:
pode a fé na ciência substituir a fé em Deus? Até o momento nada
indica que o ateísmo antropológico de Feuerbach, o ateísmo soci­
ológico e político de Marx e o ateísmo psicanalítico de Freud se
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 157

tomem a convicção universal da humanidade. A própria ciência


hoje passa por crise profunda, não menos profunda que a crise
religiosa. Hoje não sabemos se reina maior ceticismo em relação
à fé em Deus ou em relação à própria ciência e seu progresso.
Certamente a sexualidade pode ser reprimida. Mas não se pode
reprimir igualmente o futuro, a esperança, o sentido da vida e a
religião? Não pode o próprio ateísmo de Freud ser ele mesmo
pensamento do desejo ou apenas uma ilusão?
Para Freud a psicanálise tomou-se, mais que um método ci­
entífico, um substituto da religião. Nem por isso deverá identificar-
se seu ateísmo simplesmente com a psicanálise. Embora seu
ateísmo seja totalmente infundado, deverá levar-se a sério sua
crítica da religião. Enquanto cristãos, no passado e no presente,
muitas vezes desvalorizaram a racionalidade científica a favor da
fé, Freud valorizou unicamente a fé na ciência contra a fé em Deus.
Mas é ingênuo pensar, com Freud, que patologias só ocorram no
campo religioso. Como simples realização dos desejos e não apoi­
ada na verdade interior, a religião toma-se apenas satisfação de
necessidades. Mas é a religião apenas isso? De fato, na Igreja,
houve muito abuso do poder e da própria imagem de Deus. Por isso
não é novidade que a conduta religiosa (mas não só ela) comporta
deformações neuróticas. As neuroses religiosas acontecem, na
pregação e na catequese, na educação em geral, quando se vê a
Deus apenas como o Deus que julga e castiga a todos e a tudo, um
Deus mesquinho. Neste sentido, as análises freudianas podem
servir de alerta ao crente. Da mesma maneira a tese de que a re­
ligião exerça a função de consolo deve ser examinada mais criti­
camente, pois religião não precisa significar fuga do mundo e da
vida.
Freud não distinguiu a essência religiosa de sua prática his­
tórica e patológica. Simplesmente identificou a prática religiosa
e conteúdos da fé com neurose e, sem mais, faz isso a partir de
algumas conclusões analógicas. Para ele, religião e-neurose tinham
semelhança tão grande que simplesmente as identifica. Mostrou-
se incapaz de entender a religião porque se fixou na idéia de que
a religião do adulto é mera repetição das vivências infantis. As
teorias freudianas sobre a origem da religião não são o resultado,
pois, de investigação científica, e sim antes são postulado
dogmático em defesa dos interesses do próprio Freud.
158 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

Freud atribui ao crente motivos para sua fé que o próprio


crente pode não aceitar. Simplesmente afirma que a religião é algo
ilusório e a fundamenta numa idéia infantil, sem perguntar como
a humanidade poderia ter chegado à idéia de Deus por outros
caminhos. O pressuposto é que aquilo que se pode desejar neces­
sariamente não pode existir. O homem deverá chegar a si mesmo
aprendendo a dominar seus impulsos, o peso de sua própria his­
tória e o problema de sua consciência de culpa. Até aí nada demais.
Entretanto não respeita os limites da psicanálise. Limita-se a uma
perspectiva psíquica e reducionista. O homem, todavia, não se
reduz ao psíquico e muito menos a uma perspectiva freudiana. Sua
interpretação do inconsciente também não é a única possível. A
psicanálise, por exemplo, poderá curar sentimentos neuróticos de
culpa, mas certamente não liberta da culpa como tal; poderá curar
doenças psicossomáticas, mas não responderá a questões últimas
sobre o sentido ou o absurdo da vida, da mesma maneira como não
curará alguém que cortou suas veias. Sua meta é a conscien­
tização, não o perdão; a cura, não á salvação. A questão do sentido
e do absurdo é questão certamente não só para doentes, mas es­
pecialmente para sãos.
Pode-se concordar com Freud no sentido de que a libido exerce
papel importante no inconsciente. Mas Freud certamente exagerou
esse papel da sexualidade. Em nossa consciência somos condiciona­
dos, mas não simplesmente determinados pelo inconsciente. Se a
sexualidade for reprimida isto também pode ter conseqüências para
a religião. Mas parece sintoma patológico querer reduzir a religião a
pessoas sexualmente reprimidas. Da mesma forma, embora reco­
nhecendo a importância das experiências infantis, não se pode atri­
buir significação exclusiva aos traumas sexuais in fa n tis Sem dúvida,
as experiências sexuais do adolescente e do adulto também são de­
cisivas. Mas, nem todas as perturbações neuróticas e todos os conflitos
têm origem exdusiva na vida sexual. Podem ter outras causas. Por
isso a terapia freudiana não é a única e, talvez, nem sempre a mais
indicada para superar tais conflitos. O homem necessita de nm«
prospectiva. Precisa olhar não só para o passado, mas também para
o futuro. Neste ponto a religião pode ser muito importante. Com isso
não se quer menosprezar a importância da educação sexual aberta e
honesta. Nem sempre, entretanto, será suficiente a análise de gênese
dos conflitos no passado.
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 159

O eixo central da psicanálise freudiana é o complexo de Édipo.


Por tal expressão denominou ao conjunto de relações que vinculam
a criança a seus pais. Essas relações, segundo ele, constituem o
núcleo central da personalidade e seu desenvolvimento irregular
seria o principal responsável pelas neuroses e psicoses. Mas do
ponto de vista rigorosamente científico, o complexo de Édipo (do
homem) e o correspondente complexo de castração (da mulher) não
foram provados como fenômenos universais, embora não tenham
faltado tentativas neste sentido. O que causa a insegurança da
pessoa na infância parece ser a circunstância mais ampla e global
da família, da sociedade e do mundo. Problemas sexuais mostram-
se, muitas vezes, mais uma conseqüência do que causa do caráter
neurótico. Por isso fixações de relações incestuosas da infância não
devem ser generalizadas. Apesar disso, com a teoria do complexo
de Édipo, Freud toca em pontos altamente vulneráveis das rela­
ções infantis com os pais. Isso todavia não deve impedir cientistas
de demitizar ou, pelo menos, relativizar essa teoria. Neste ponto,
como em outros, muitos psicanalistas apenas descobrem o dogma
que eles mesmos projetam. Vêem, então, seus filhos (os pacientes)
acharem os ovinhos do coelho que eles mesmos esconderam. Todos
falam do complexo de Édipo, muitos crêem nele, mas ninguém
jamais o viu.
Qual a verdade expressa no complexo de Édipol
A primeira relação do recém-nascido estabelece-se com a mãe
ou sua representante. Tal relação é muito importante para toda
a vida posterior. Normalmente o pai é a segunda pessoa nas re­
lações da criança, mas de importância nada inferior. Na relação
criança-mãe-pai certamente podem surgir conflitos, conflitos que
podem ajudar a esclarecer a própria compreensão de religião. Daí,
contudo, não se poderá concluir, com Freud, que a religião decorre
de uma neurose compulsiva universal. Jung conclui, ao contrário,
que a falta de uma religião vivida e viva pode ser uma causa de
muitas neuroses. O que está sendo questionado, pois, é o próprio
conceito freudiano de ciência.
Caberia aqui a palavra de outro psicoterapeuta, também de
Viena e também judeu como Freud. Referimo-nos a Viktor Frankl
(1905), o fundador da terceira escola vienense de psicoterapia
(Logoterapia). Segundo Frankl, o homem não é dominado apenas
por um impulso inconsciente (Freud) ou por um psíquico incons­
160 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

ciente (Jung), mas também por um inconsciente espiritual. Na obra


A presença ignorada de Deus, Frankl afirma que

“a psicanálise não somente adotou a objetividade, mas sucumbiu diante


dela. A objetividade finalmente levou ao objetivismo ou coisificação, isto
é, fez do ser humano uma coisa. A psicanálise encara o paciente como
sendo regido por mecanismos, e o terapeuta como aquele que sabe lidar
com tais mecanismos. Ele é a pessoa que conhece a técnica de consertar
mecanismos defeituosos” (p. 19).

Frankl critica “o materialismo que permeia todo o pensamento


psicanalítico”. Tudo funciona sob energismo instintal e dinamismo
emocional sobre o ego. Mas, “em última análise, o ego, do ponto de
vista psicanalítico, não passa de um joguete de impulsos. Ou, como
disse o próprio Freud certa vez, o ego não manda em sua própria casa”
(p. 21). A análise existencial de Frankl concentra-se não no autômato
do aparato psíquico, mas na autonomia da existência espiritual.
Enquanto a psicanálise percebe o homem como tal autômato psíquico,
a análise existencial percebe o espiritual como o especificamente
humano. A análise existencial procede a uma revisão do conceito de
inconsciente admitindo não só a existência de um inconsciente
instintal, mas também tom inconsciente espiritual.
Como Frankl chega a este postulado?
Constata que, no dia-a-dia, o psicoterapeuta se encontra com
questões de cosmovisão, questões que devem ser levadas a sério.
Tais questões não podem ser tratadas simplesmente como subli­
mação da libido (Freud), ou como simples expressão de um in­
consciente coletivo (arquétipo). Segundo Frankl, aqui aparece a
questão negligenciada por Adler, Jung e Freud, a questão do
sentido da vida. A cura de neuroses e conflitos não se dá ao nível
da psique, mas a partir do espírito (Logos). Justamente por isso
não se deve reprimir a religiosidade. Frankl até exige uma
psicoterapia orientada no espírito. Vai mais longe. Tenta con­
vencer o leitor sobre a realidade de uma religiosidade inconsciente
e de uma relação inconsciente com Deus. Diz que “religiosidade
genuína não tem caráter de impulso, mas antes de decisão” (p. 49).
Conclui que “poderíamos aventurar-nos a dizer que Deus é de fato
um Deus vingativo, pois em alguns casos a existência neurótica
parece ser o preço que o ser humano paga por sua atrofiada relação
com a transcendência” (p. 52).
FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO 161

Poder-se-á objetar a Frankl que lhe falta a mediação. Entre­


tanto dever-se-á reconhecer honestamente que antecipou em dé­
cadas o sentimento do absurdo e da neurose de massas, um sen­
timento que se alastra em nossos dias. Percebeu que a psicoterapia
deve confrontar-se com questões espirituais e, de maneira sin­
gular, com a questão do sentido e, por decorrência, com a questão
de Deus.
Para superar o tabu sexual poder-se-á prescindir de Freud.
Hoje não se reprime o espiritual muito mais que o sexual? Não é
o próprio domínio do sexo um problema muito sério? Podemos
discutir até se hoje urge mais a recuperação da libido ou a recu­
peração do sentido da vida. Ou não é hoje a repressão moral e
religiosa um problema muitas vezes bem maior que a repressão
sexual?
O ateu Freud rejeitou o cristianismo. Quando fala do amor o
concebe, até quase no fim da vida, como determinado pela libido.
Só no fim da vida reconheceu que o amor e a própria vida tem
raízes mais profundas que a libido. Sob a ameaça de Hitler ape­
lou publicamente para um amor sem metas sexuais.
Nos séculos XIX e XX, o iluminismo e a crítica da religião têm
em comum a rejeição da religião em geral vinculada à religião
institucionalizada. Rejeita-se Deus porque se rejeita a Igreja
concreta. De maneira análoga ao comunismo, que propôs uma
sociedade sem classes e, na verdade, muitas vezes obteve como.
resultado uma sociedade com a diferença de classes mais acen­
tuada e, com isso, perdeu muito de sua credibilidade, também se
pode questionar o cristianismo por sua práxis histórica. Contudo
as grandes teorias, como a teoria da projeção de Feuerbach, a
teoria do ópio do povo de Marx, a teoria da ilusão de Freud não
conseguiram provar que Deus é apenas uma projeção do homem,
uma consolação condicionada por interesses ou só uma ilusão
infantil sem fiituro. Todas essas teorias atéias não demonstraram
a não-existência de Deus. Antes, se fundamentam numa fé
indemonstrável, seja na natureza do,homem (Feuerbach), seja na
futura sociedade socialista (Marx), seja ainda na ciência racional
(Freud). Todos os grandes ateus partem de um dogma por eles
inventado. Por isso pode-se perguntar se o próprio ateísmo não é
ele mesmo uma projeção do homem, um consolo por interesses ou
uma ilusão infantil. É claro que com isso ainda não se funda­
162 FREUD: A PROVOCAÇÃO DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO

mentou positivamente a fé em Deus e o ateísmo continuará a ser


um desafio e uma provocação a ser levada a sério em nossos dias.
Mas, se até o momento o freudismo robusteceu a fé dos incrédulos,
talvez chegue, em breve, a hora em que comece a iluminar a fé dos
crentes através de análises mais críticas.

B ib liogra fia

FRANKL, Viktor, A presença ignorada de Deus, S. Leopoldo, Sinodal, 1985.


FREUD, Sigmund, Obras completas, Rio de Janeiro, Imago, 1977.
___________, Os pensadores, S. Paulo, Abril S/A Cultural e Industrial, 1978.
FORMENT, Eudaldo, El problema de Dios en la metafísica, Barcelona, PPU, 1986.
JXJNG, Carl Gustav, O homem à descoberta de sua alma, Porto, Tavares, 1975.
KÜNG, Hans, Existiert Gott? Munique, R. Piper, 1978.
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WEGER, Karl-Heinz, La critica religiosa en los tres últimos siglos, Barcelona, Herder, 1986.
ZILBOORG, Edgar, Psicanálise e religião, Petrópolis, Vozes, 1969.
8

NIETZSCHE:
O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

No meio do ufanismo europeu do progresso da ciência e da


tecnologia, no século XIX, quando a Prússia im punha sua
hegemonia, F. W. Nietzsche proclamou o niilismo e o ateísmo.
Nessa época, na Europa, surgiram perguntas como: Muda alguma
coisa, se admitimos que Deus não existe? É a palavra Deus uma
palavra igual a todas as outras? Não precisa o homem libertar-se
da opressão de Deus? F. W. Nietzsche assume o papel do louco e
proclama: “Deus está morto”. Diz que o cristianismo só gerou
conformismo e mediocridade.
Nietzsche defende o ateísmo como sendo a posição própria da
nova cultura. Nega a Deus porque é inimigo da vida, pois Deus
surge em virtude de uma tendência hostil à vida. Diz que o conceito
de Deus, inventado como antinomia contra a vida e a religião é,
essencialmente, um processo de aviltamento do homem. Os temas
centrais de toda a sua filosofia são: a morte de Deus, o super-ho-
mem, a vontade de potência ou dominação e o eterno retomo. O
homem deve emancipar-se através do ato de recusa a Deus.

8.1. Quem foi Friedrich Wilhelm Nietzsche?

Foi o primeiro filho do pastor protestante de Rocken. Nasceu


a 15 de outubro de 1844. Viveu, pois, os primeiros anos de sua vida
num lar de pastor luterano. Na mocidade pensara em seguir a
carreira do pai e do avô, ou seja, tomar-se pastor. Seu pai morreu
em 1849 e logo depois a mãe mudou-se para Naumburgo. Ali
Nietzsche viveu em companhia de sua mãe, da avó e de duas tias,
ou seja, numa comunidade feminina.
Em 1854 entrou para o ginásio de Naumburgo e quatro
anos depois recebeu bolsa para freqüentar o célebre colégio de
164 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

Pforta, um internato. Nesta época começou a afastar-se do


cristianismo.
Durante os anos de estudo mostrou interesse pela cultura
grega. Em 1864 dirigiu-se a Bonn para» estudar filologia clássica.
Ligou-se logo a uma “república”(d» estudantes levando vida ale­
gre e boêmia. Primeiro eãtudou Teologia e Filosofia. Entre seus
professores estimava muito a Friedrich Ritschl. Quando este se
transferiu para a universidade de Leipzig acompanhou-o. Aí to­
mou contato com a obra de Schopenhauer, decidiu-se pelo ateísmo
e completou sua separação do cristianismo.
Por recomendação de Ritschl, Nietzsche tomou-se professor de
Filologia clássica na Universidade de Basiléia (Suíça), em 1869.
Ritschl, na recomendação, escrevera:

“São muitos os espíritos jovens que desabrocharam sob meus olhos du­
rante mais de trinta e nove anos,;mas< nunca conheci um jovem que
amadureceu tão rápido em sua idade tão jovem como esse Nietzsche.
Prevejo que, se viver por muitos anos (e Deus o queira), será um dos
primeiros fílólogos alemães”.

Em Basiléia fez amizade com o músico Richard Wagner. Mas,


quando Wagner aderiu ao cristianismo, Nietzsche afastou-se dele.
Em 1879 pediu demissão na Universidade de Basiléia por causa
de sua saúde fortemente abalada. Morreu em Weimar, em 25 de
agosto de 1900, vitimado por pneumonia.
Pode caracterizar-se sua atitude de pensador, com Ph. R. Giles,
em quatro proposições:
a) Atacar somente as coisas para as quais não poderia encon­
trar companheiros, permanecendo só;
b) Atacar somente coisas vitoriosas ou esperar até que se
tomem tais;
c) Não atacar nunca as pessoas; servir-se delas como uma
possante lente de aumento com que se pudesse tom ar visível al­
gum mal comum, mas oculto, difícil de ser pesquisado;
d) Atacar somente coisas das quais se exclui qualquer antipa­
tia pessoal para as quais lhe falta todo e qualquer sentimento de
esperanças tristes (Giles, p. 59).
A vasta obra de Nietzsche apresenta caráter fragmentário,
aforístico, totalmente assistemático. Consiste numa série de idéi­
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 165

as-força, escrita numa linguagem brilhante. Na evolução de seu


pensamento podem-se distinguir três etapas importantes.
A primeira etapa corresponde a seus trabalhos estético-filo-
sóficos: Origem da tragédia (1871), Considerações extemporâneas
(1873-76). A segunda etapa corresponde às obras como Humano
demasiado humano (1878), Aurora (1871), A gaia ciência (1882).
E o chamado período científico no qual se aproxima do positivismo
e dos iluministas franceses do século XVIII. Este período signifi­
ca ruptura profunda. Separou-se inteiramente de Wagner e de
Schopenhauer com um “adeus” aos heróis de sua juventude. Busca
sua expressão pessoal. Na terceira etapa parece encontrar seu
caminho pessoal próprio. Escreveu obras como Assim falava
Zaratustra (1883-85), Além do bem e do mal (1886), Genealogia da
moral (1887) e as obras póstumas como Ecce homo, Vontade de
poder, O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos e OAnticristo. Nesta
terceira etapa passam para o primeiro plano os grandes temas da
morte de Deus, o nascimento do super-homem, a vontade de po­
tência e o eterno retomo.
Nietzsche não se orienta em alguns conceitos ou numa visão
de mundo ou em algum sistema, e sim na paixão de buscar as
raízes da vida através de uma crítica radical de tudo que existia.
Evita pensar em termos de sistema para pensar em termos de
problemas. Põe a filosofia a serviço da vida concreta do homem.
Para Nietzsche, o homem é o animal mais forte porque é o mais
astuto. Apesar disso, é o mais enfermiço porque se desviou de seus
instintos. Por isso também é o animal mais interessante. É su­
perior aos outros animais através da cultura seguindo a consciên­
cia que lhe diz: Sê tu mesmo quem és! Faze sempre o que quise-
res; mas sê, desde logo, daqueles que podem querer. A cultura
consiste em superar toda e qualquer discrepância entre a
interioridade e a exterioridade. Eugen Fink afirma que não se pode
interpretar a sua obra sem considerar sua vida, da qual é, até certo
ponto, espelho:
“Com efeito, a vida de Nietzsche é ainda mais secreta do que a sua obra.
Mas a faceta extraordinária do seu destino, a sua paixão e, por outro lado,
a sua pretensão de messianismo, o inaudito patético da sua atitude que
assusta, irrita, perturba e enfeitiça — tudo isso incita-nos a volver o olhar
para o homem em vez de nos ocuparmos apenas da obra (...). Os seus
livros são todos escritos em estilo confessional; ele não é autor que se
166 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

deixa ficar no segundo plano (...) Todos os seus livros não passam de
monólogos consigo próprio (...) O brilho da linguagem de Nietzsche, a sua
extrema subjetividade, induzem-nos constantemente a desviar os olhos
da obra para o autor, que nela de mil maneiras se espelha” (p. 11).

8.2. D eu s está m orto

A crítica religiosa de Nietzsche está vinculada intimamente à


sua concepção de vida e de religião. Considerava a vida o valor
supremo. A religião é destruidora da vida, uma categoria da ne­
gação teórica e prática da vida. Vê o cristianismo como “platonismo
para o povo”. Assim a religião é a autodilapidação instituciona­
lizada do homem.
Em Humano demasiado humano (1881) afirma:

“Nunca houve religião que contivesse, nem mediata, nem imediatamente,


nem em dogma nem em parábola, uma verdade. Porque foi de inquieta­
ção e da necessidade que cada religião nasceu. Foi através dos erros da
razão que a religião se insinuou na existência; terá talvez, ao ver-se posta
em perigo pela ciência, introduzido falsamente uma teoria filosófica no
seu sistema, para que ali a encontrem estabelecida mais tarde; mas trata-
se de artimanha de teólogos, surgida no tempo em que uma religião
duvida já de si própria” (§ 110).
Pouco mais adiante prossegue:

“Quando, uma manhã de domingo, ouvimos repicar os velhos sinos,


perguntamos a nós próprios: será realmente possível? Isso faz-se por
causa de um judeu crucificado há dois mil anos e que se dizia o Filho de
Deus. A prova de semelhante afirmação não existe. A religião cristã é,
em nossos tempos, uma velharia que subsiste, vinda de tempos muito
recuados (...). Poder-se-á crer que se acredite ainda em semelhante coi­
sa?” (§ 113).
Nietzsche ainda afirma que “o cristianismo nasceu para dar
alívio ao coração; mas agora precisa primeiramente magoar o
coração, para poder depois aliviá-lo. Conseqüentemente perecerá”
(§ 119). Golpeia a instituição eclesial. Considera-a um “manicô­
mio” , o “tipo de Estado” mais mentiroso, “a cidade da ruína”.
Vinculado ao “deus máximo”, o cristianismo, no seu conjunto, é
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 167

“um sistema, uma visão coerente e completa das coisas”, que, como
estrutura de domínio espiritual, tira sua força repressiva da ação
narcotizante das ficções nele reunidas. Em qualquer caso, é incrí­
vel debilitamento da vontade. Apóia-se no ressentimento dos
humildes e débeis, sendo uma manifestação da decadência. Ele­
vou a ignorância à categoria de virtude. Declarou pecado a dúvi­
da e envenenou o eros, pervertendo-o a ponto de tomar-se vício.
Em O Anticristo escreve:

“O cristianismo defendeu tudo quanto é fraco, baixo, pálido, fez um ide­


al da oposição aos instintos de conservação da vida potente; até corrom­
peu a razão das naturezas intelectualmente poderosas, ensinando que
os valores superiores da intelectualidade não passam de pecados, extra-
vios e tentações” (p. 16; n. 5).

Para Nietzsche, em O Anticristo, nada é tão doentio “como a


piedade cristã” (p. 19). “Que aborto de falsidade deve ser o homem
moderno, para não se envergonhar de se chamar ainda cristão” (p.
65). “No fundo só existiu um cristão e esse morreu na cruz”. O
Evangelho morreu na cruz. “O que desde então se chamou ‘Evan­
gelho’ era já o contrário do que o Cristo havia vivido: uma má
mensagem, um dys-angelium” (p. 65). “O cristianismo promete
tudo, mas não cumpre nada” (p. 70), pois “quando se não coloca o
centro de gravidade da vida na vida, mas sim no ‘mais além’ — no
nada — tira-se à vida o seu centro de gravidade” (p. 72). Afirma
categoricamente: “Negamos a Deus enquanto Deus... Se nos de­
monstrassem esse Deus dos cristãos, ainda acreditaríamos menos
nele” (p. 82). Afirma categoricamente: “Eu condeno o cristianismo;
faço contra a Igreja cristã a mais terrível das acusações que nunca
acusador algum pronunciou. E para mim a maior corrupção que
se possa imaginar; teve a vontade de derradeira corrupção
imaginável” (p. 115). E conclui:

“Chamo o cristianismo a única grande calamidade, a única grande per­


versão interna, o único grande instinto de ódio, que não encontra meios
bastante venenosos, suficientemente subterrâneos, bastante pequenos;
o título, única e imortal desonra da humanidade” (p. 116).

Para Nietzsche, o cristianismo é uma “singular tentativa de


negar o mundo”. Converteu-se nesse sistema de ficção niilista
168 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

devido à sua origem, porque “no fundo só houve um cristão e este


morreu na cruz”. O que, historicamente, se estabeleceu como
cristianismo é o resultado da obra de Paulo de Tarso que “com o
cinismo lógico de rabino” falsificou a felicidade proclamada por
Jesus, reduzindo todo o simbolismo de Jesus a um sistema de
“barbáries”. O cristianismo ensina que o reino de Deus está nos
corações dos homens, mas traiu essa intuição fundamental quando
transformou o Reino em outro mundo, um mundo do além. Tal
deslocação do centro de gravidade da vida para o além é o nada,
pois tira o centro de gravidade para a própria vida. Sócrates foi o
primeiro filósofo da vida porque pôs o pensamento a serviço da vida
e não a vida a serviço do pensamento. Mas tanto o socratismo como
o cristianismo são decadentes porque lutam contra os instintos.
Para Nietzsche, a razão e toda a vida psíquica tem a finalidade
de estar a serviço da vida biológica. A partir desta visão só pode
sustentar o ateísmo, ou melhor, sua visão de mundo e homem é
conseqüência de seu ateísmo.
Surpreende que, até certo ponto, Nietzsche exclua Jesus de sua
crítica. Entretanto seu Jesus, qualificado como nazareno, é pouco
mais que um “decadente interessante”, do qual irradia o “encan­
to comovedor da mistura do sublime, o enfermiço e o infantil”.
Teria que retomar o cristianismo de hoje a esse Jesus? O cristia­
nismo está condenado a sucumbir como todas as demais coisas. Crê
assistir “ao fato da agonia do cristianismo, testemunhar o grande
espetáculo em cem atos que reserva aos próximos dois séculos na
Europa”, porque “Deus morreu”. Esta afirmação é o centro de toda
a crítica religiosa de Nietzsche. Conclui o Ecce homo com a frase
polêmica: “Dionisos diante do Crucificado”. Dionisos é o deus do
sofrimento, mas o sofrimento sempre é compensado pela sombria
alegria da procriação. Dionisos é a própria vida com dois rostos: a
vida plena de sofrimento e a vida plena de alegria. Mas o Cruci­
ficado é o símbolo, para ele, de sofrimento que abjura este mundo
terreno, que como uma espécie de grande indicador mostra para
além desta vida uma vida supraterrena, no além. A seus olhos, o
Crucificado representa uma moral hostil à vida, o ultramundano
ilusório da religião e da metafísica.
Vale a pena transcreverm os integralm ente o texto da
contraparábola do § 125 em A gaia ciência sobre o insensato ou
louco:
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 169

“Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e
desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: ‘Procuro Deus!
Procuro Deus!’ Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam
em Deus, o seu grito provocou grande riso. Ter-se-á perdido como uma
criança?’ dizia um. ‘Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarca­
do? Terá emigrado?’ Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O
louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘Para onde foi
Deus?’, exclamou, é o que lhes vou dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos
nós, nós todos, que somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como
conseguimos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu tuna
esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos quando despren­
demos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde vai ela agora?
Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos
incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos
os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando
através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?
Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites? Não será preciso acen­
der os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho
que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da
decomposição divina...? Os deuses também se decompõem! Deus morreu!
Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como haveremos de
nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possui
de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob o nosso punhal.
Quem nos há de limpar deste sangue? Que água nos poderá lavar? Que
expiações, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza
deste ato é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios
nos tomemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela? Nunca
houve ação mais grandiosa e, quaisquer que sejam, aqueles que poderão
nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais
elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história” (pp. 145-46).

O texto é um a contraparábola e sugere o caos que se desenca­


deia como conseqüência da m orte de D eus, caos evocado nas
im agens do frio crescente e das trevas que avançam. Só que toda
esta perda é a condição para a entrada do homem para um a histó­
ria superior a toda a história havida até aqui. Evoca a im agem
anselm iana de que é “m aius quo cogitari non potest”. Tudo conduz
ao assassínio de Deus como filho do mundo, com sua pura relação
afirmativa com a realidade. N este sentido Nietzsche fala que de­
veríamos aprender a “tirar da morte de Deus um a vitória perma­
nente sobre nós” e elim inar as últim as sombras do Deus morto. Vê
como conseqüência da morte de Deus o eclipse solar “como prova­
170 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

velmente ainda não houve sobre a terra”. Os que recebem esta


notícia da morte “ficam iluminados por ele como por uma nova au­
rora”. Nas palavras de Zaratustra expressa sinteticamente “todos
os deuses morreram. Agora queremos que viva o super-homem”.
Nietzsche tem consciência de que com sua destruição não fica
afetada a realidade do numinoso em geral, mas só o “deus moral”.
Vejamos como continua o texto do parágrafo 125 de A gaia
ciência:

“O insensato calou-se depois de pronunciadas estas palavras e voltou a


olhar para os seus ouvintes: também eles se calavam, como ele, e o fi­
tavam com espanto. Finalmente atirou a lanterna ao chão, de tal modo
que se partiu e apagou. ‘Chego cedo demais’, disse ele então, ‘o meu tempo
ainda não chegou. Esse acontecimento enorme está ainda a caminho,
caminha e ainda não chegou ao ouvido dos homens. O relâmpago e o raio
precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as ações precisam
de tempo, mesmo quando foram efetuadas, para serem vistas e enten­
didas. Esta ação ainda lhes está mais distante do que as mais distantes
constelações; e foram eles contudo que a fizeram’. Conta-se ainda que este
louco entrou nesse mesmo dia em diversas igrejas e entoou o seu requiem
aeternam deo. Expulso c interrogado teria respondido inalteravelmente
a mesma coisa: ‘O que são estas igrejas mais do que túmulos e monu­
mentos fúnebres de Deus?’ ”
Nesta parábola Nietzsche afirma duas coisas: a) Deus está
morto, b) Os homens assassinos não se deram conta deste suces­
so. Insiste na idéia de que Deus está morto em Assim falava
Zaratustra, pois é justamente Zaratustra, o profeta persa, através
do qual expressa o essencial de seu pensamento. Prega a morte
de Deus e o nascimento do super-homem. Zaratustra sabe que
Deus está morto, embora a humanidade ainda não tenha plena
consciência de sua morte, como no caso do ancião que reza:
“Quando Zaratustra esteve só, falou assim a seu coração: será
possível que este velho em seu bosque ainda não tenha ouvido falar
que Deus está morto?” (III, prólogo, n. 2).
Com a morte de Deus morreram todos os demais valores que
giravam em tomo do conceito de Deus. Doravante a crença em
Deus não mais sufoca a vida. Zaratustra prega o materialismo:

“Eu os conjuro, meus irmãos: permanecei fiéis à terra e não creiais a quem
lhes falar de esperanças supraterrenas. São envenenadores, sabendo ou não.
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 171

São depredadores da vida, são moribundos e também eles estão envene­


nados; a terra está cansada deles: oxalá desapareçam” (III, prólogo, n. 3).
Para Nietzsche, a religião é a destruição de tudo quanto há de
nobre, de alegre, na vida humana. Por isso é inimiga mortal da
humanidade, numa profunda corrupção do homem. E crime con­
tra a humanidade do homem, pois transforma-o em covarde, em
fraco, ou seja, em escravo. O “além”, criado pelo homem, é apenas
um nada, que considera Deus. Nesta perspectiva, a morte de Deus
significará a liberdade do homem. Só a morte de Deus possibilitará
a emancipação do homem.
A primeira parte de Assim falava Zaratustra tem como tema
central a morte de Deus. Já no primeiro discurso sobre as três
metamorfoses mostra a modificação do ser humano pela morte de
Deus. O camelo significa o modo de ser na grandeza, que se inclina
diante da hegemonia de Deus. É o homem preso ao “tu deves”, o
homem submisso. No deserto transforma-se em leão, ou seja, luta
contra Deus e a moral objetiva. Cria liberdade, negando a Deus,
a moral objetiva e a coisa metafísica em si como ilusões da alie­
nação idealista. O leão opõe ao “tu deves” o “eu quero”. Transfor­
mando-se em criança, adquire a liberdade criadora. Nessas me-
” táforas do camelo, do leão e da criança, apresenta não só o homem
que se liberta a si mesmo, mas também a gênese do super-homem.
A idéia metafísica de um além nasce de fonte terrestre original.
É apenas como sonho através do qual se quer a libertação. A partir
da morte de Deus tudo é reavaliado. A terra ocupa o lugar de Deus.
Convencendo-se de que Deus morreu, o homem se abre livremente
para suas possibilidades. No lugar do Deus cristão e do reino das
idéias platônicas põé a terra. Após a morte de Deus, o homem fala
para o homem, invocando sua possibilidade suprema: o super­
homem. Mesmo após a morte de Deus, Nietzsche trata de manter
o caráter heróico da existência humana, suscitando a atmosfera
de grandeza do homem.

8.3. Que significa declarar que Deus está morto?

Se Deus é invenção da debilidade humana, sua negação será


a superação do próprio homem. E preciso Deus morrer para nascer
o super-homem. Ao homem novo diz Zaratustra:
172 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

“Mas agora este Deus está morto. Homens superiores, esse Deus era
vosso maior perigo. Só desde que ele jaz na tumba voltastes a ressusci­
tar. Só agora chega o grande meio-dia, só agora o homem superior se
converte em Senhor'’ (III, Do homem superior, n. 2).

É necessário matar Deus para que o homem possa realizar sua


liberdade. A morte de Deus é a aurora de humanidade nova.
Para Nietzsche, afirmar que Deus está morto é afirmar uma
realidade histórica. A idéia de Deus tomou-se vazia, sem vitali­
dade alguma no mundo. O que existe são os homens e algumas
comunidades religiosas. Mas para que ainda servem igrejas a não
ser para serem túmulos e monumentos de Deus?
Nietzsche não só aceita a morte de Deus, mas também as suas
conseqüências. Sente o nada infinito. Como profeta desse aconte­
cimento e do niilismo universal, deu-se conta de que doravante
nenhum problema poderia ter autêntico fundamento. Tudo pai­
raria sobre um nada infinito.
A morte de Deus, entretanto, não só é ausência de apoio e o
niilismo absoluto da existência humana. Há também um aspecto
positivo. Desapareceu Deus como princípio de tudo e, com isso,
terminou a opressão e a ameaça que limitava o homem. No hori-
zonte humano aparece nova aurora da liberdade. Claro, poder-se-
ia indagar se esta liberdade atraente não é apenas um desejo in­
terior do próprio homem. Não será que o homem sempre deseja
esta morte? Não seria esta morte um pressuposto oculto?
O filósofo alemão Berhard Welte mostrou que a chave do ate­
ísmo nietzschiano e de sua influência está no interior do próprio
homem que o possibilita. O homem deseja evitar um Deus vivo.
Trata-se de um ateísmo fundado na vontade do próprio homem.
Para Nietzsche, a fórmula Deus está morto não é enunciado de um
fato verificado nem a lamúria de alma enlutada, nem a ironia de
inteligência lúcida. E uma decisão existencial do próprio homem.
Veja-se que Nietzsche não afirma “Deus não existe”, nem “não
creio em Deus” Afirma “quero que Deus não exista”. Nisso está
sua atitude profética, não propriamente o pensador. Não critica
os argumentos de seus adversários. Simplesmente os despreza.
Classifica as doutrinas desses simplesmente como doença. Para
ele, Deus é apenas um pesadelo que leva a uma fuga do mundo e
das grandes tarefas humanas.
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 173

Segundo a interpretação de Welte, o assassínio de Deus é ne­


cessário para o homem realizar-se livremente. Concede que a
morte de Deus leva à uma transmutação de todos os valores tra­
dicionais. Agora viver é inventar valores. Eclipsa a.razão, e a moral
vai à falência. Restam ruínas trágicas. O homem moderno toma-
se inquieto. O assassínio de Deus convulsiona a vida do homem
que deverá assumir seu lugar. Repudia a Deus e o substitui pelo
super-homem. Mais tarde, em agosto de 1881, caminhando em Sils
Maria, no Alto Engadine (Suíça), desperta para a idéia do etemo
retomo, a qual se tom a a idéia-mestra de sua última filosofia.
Segundo essa idéia não há começo nem fim. Afirma e nega simul­
taneamente o tempo. Cada um de seus instantes tem caráter de
eternidade. Cada homem já viveu, exatamente, número infinito
de vezes, a mesma vida que vive hoje.
Em A gaia ciência já afirmara:

“Depois de Buda ter morrido, ainda se mostrou durante séculos a sua


sombra numa caverna; uma sombra enorme e aterradora. Deus morreu;
mas tais são os homens que haverá talvez ainda, durante milênios, ca­
vernas nas quais se mostrará sua sombra... E nós..., é ainda necessário
que vençamos sua sombra” (n. 108).
E Nietzsche acrescenta:

“De fato, nós, filósofos, livres espíritos, sabendo que o antigo Deus está
morto, sentimo-nos iluminados como por uma nova aurora; o nosso co­
ração transborda de gratidão, de espanto, de pressentimento e de ex­
pectativa... eis que, enfim, também se não está claro, o horizonte de novo
parece livre, eis que enfim os nossos barcos podem voltar a partir e vo­
gar diante de todos os perigos; voltará a ser permitida ao pioneiro
qualquer tentativa de conhecimento; o mar, o nosso mar, de novo volta
a abrir-nos todas as suas extensões; talvez nunca tivesse havido mar tão
pleno” (n. 343, pp. 232-233).
O que vem depois da morte de Deus? Se Deus morrer, seu lu­
gar deve ser ocupado pelo homem que acredita em si mesmo.

8.4. A agonia do homem

Como conseqüência da morte de Deus vem o niilismo. Se Deus


está morto, pergunta-se: não erramos num nada infinito? O nada
174 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

passa a ocupar o lugar de Deus. Todos os valores se desvalorizam.


E o homem atual entra em agonia.
Nietzsche via sua época como o fim da metafísica, da morte de
Deus e do ateísmo. Tudo isso ele designa com o termo niilismo. O
niilism o é inerente ao cristianismo. A moral tradicional e a
metafísica são “movimentos niilistas”, pois são tendências da vida
que visam ao nada, ainda que durante muito tempo tenham
mascarado este nada com a aparência de ser supremo, ou seja,
Deus. Deus era apenas a máscara do nada. Falando do ponto de
vista da moral tradicional, tanto Dèus como o ultramundano
metafísico ocultam apenas o nada. “Não há verdade, não há natu­
reza absoluta das coisas, não há coisas em si...” A transcendência
dos valores é apenas uma fantasmagoria, um nada. Por um lado,
o niilismo é a desvalorização de todos os valores tradicionais:
moral, metafísica e religião. Chega-se ao fim da história desses
valores. Por outro, o niilismo anuncia já nova visão. E sinal de
decadência, da degenerescência da vida, ou seja, toma visível a
decadência de longa tradição. Em A vontade de potência afirma que
“o niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais sinistro de
todos os hóspedes?”
O niilismo é histórico, ou seja, um fenômeno que se pode ex­
perimentar. Um de seus aspectos é a morte de Deus. O lugar de
Deus foi ocupado pelo nada. De outro lado, o advento do niilismo
é necessário porque todos os valores serão desvalorizados. Para
Nietzsche, os valores em si nada são; são apenas criação do homem.
O homem atribui valor às coisas para dominar a vida. Assim o
mandamento cristão do amor é a afirmação dos fracos. Quando
falamos em valores, falamos sob a perspectiva da vida. Os valores
originam -se da necessidade da vida. Não têm significação
metafísica ou religiosa. Se os valores forem projetados na religião,
considerados como valores dissociados da vida, tomam-se hostis
à própria vida. Esta é a decadência porque a moral reverte o
instinto em negação da vida. Esse afastamento da vida, expresso
na moral, Nietzsche chama de “volta ao nada”. Por isso a moral
da decadência é, essencialmente, niilista: a vontade para o nada
domina sobre a vontade de viver. Claro, chama-se o nada de além,
Deus ou até a verdadeira vida. O niilismo é a lógica da decadência.
Manifesta-se, assim, que os supremos valores degeneram. A morte
de Deus é o fim da moral ou o advento do niilismo. A moral pensada
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 175

como remédio contra o niilismo prático e teórico mostra-se como


origem do próprio niilismo.
Nietzsche vê o cristianismo como modelo de toda a inversão e
subversão de valores. Compreende este primariamente como
doutrina moral, metafísica, que deu ao homem um valor absoluto.
Ora, tal cristianismo é platonismo para o povo. A metafísica é
distanciamento da vida, que é a única realidade. Assim o cristia­
nismo é uma religião niilista porque venera o nada como Deus. A
moral cristã encontra-se num processo de autodestruição e hoje
mostra seu caráter niilista. Substitui-se, aos poucos, a autoridade
de Deus pela autoridade da consciência, ou seja, a autoridade da
razão. O niilismo pleno está a caminho. Trata-sè agora de viver
sem Deus e sem moral.
Quando Nietzsche reflete mais sobre a essência do niilismo
encontra uma ambigüidade: o niilismo do forte e o niilismo do
fraco. O primeiro é ativo e o segundo passivo. O niilismo da fra­
queza decorre da falta de força de construir-se um mundo com
sentido à maneira da metafísica. Ê o niilismo do cansaço. Exaure-
se a força criadora de sentido e entra-se no estado de resignação.
O niilismo da força, ao contrário, faz crescer a vontade de poder a
ponto de dispensar tais atitudes. O niilismo ativo é o não mediante
a ação. Nietzsche fundamenta, pois, seu ateísmo no interior do
próprio homem, no sentimento de potência. Trata-se de funda­
mentação psicológica. Integra a essência do homem a vontade
existencial, ou seja, aquilo pelo qual o homem quer algo consigo
mesmo, quer algo no além das coisas concretas. Esta vontade é algo
a priori. A pergunta é: o que é este primordial que se quer que
possibilita todo o querer?
Segundo ele, é algo comum a todo o homem. É algo já posto que
não depende do livre-arbítrio. Da profundidade do homem surge
uma voz que lhe diz: quero ser. Esta voz é a voz da vontade exis­
tencial. O que esta quer é ser. Esse querer ser, depois de formu­
lado, toma-se potência e domínio. No impulso da potência começa
toda a realização da existência humana. De acordo com esses
pressupostos, a origem da religião está no sentimento de autone-
gação, como expressão da decadência da vida. A vontade de ser
encontra seus limites. Mas a voz interna da vontade existencial,
desde o começo, tem infinitude. E um poder sem limites. Havendo,
no homem e na humanidade, algo de poder incondicionado que
176 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

quer ultrapassar todo o limite, o querer infinito, explica-se a morte


de Deus por ser Deus o poder que limita o querer infinito. Assim,
para o homem tornar-se poderoso deve matar Deus.
Se o homem, sem Deus, continua desejando o infinito temos
que ser fiéis à terra até encontrar esse infinito. Tal poder busca-
se na unidade, longe de toda a divisão interna. A dualidade não
realiza porque não é plenamente Ser nem plenamente poder. Toda
a luta de Zaratustra é o desejo de unidade, de realização total do
homem no próprio humano: “Permanecei fiéis à terra, meus ir­
mãos, com o poder de vossa virtude”.
A idéia nietzschiana do eterno retorno está relacionada inti­
mamente com este impulso para a unidade. A unidade do poder
ilimitado é unidade vivida aqui e agora. Há eterno retomo. A voz
da vontade existencial diz: quero ser. Esta vontade é de essência
divina e no fundo diz: quero ser Deus. Divino é meu interior do qual
brotam todos os demais “eu quero”. Esta imagem de Deus é a raiz
última de seu próprio ateísmo. Querendo o homem ser Deus, é
claro que não quer que haja outro Deus. Celebra então a morte de
Deus, resultante da dialética entre o “eu quero” concreto e o “eu
quero” oculto. O divino é o oculto. Quando Deus e homem se se­
param temos a religião. Para recuperar a unidade originária, o
homem deve exclamar: “Deus está morto”. Apesar disso a vonta­
de existencial de poder continua insaciável na busca de poder
infinito. Busca-o no infinito. A solução nietzschiana é, então, o
super-homem. Todas as transformações de Zaratustra levam
Nietzsche a concluir: “O super-homem está muito dentro de meu
coração, é a primeira e a única coisa — não o homem” . É algo
completamente distinto da realidade humana.
Interessante é a fundamentação histórica que Nietzsche dá a
seu ateísmo. Afirma que a história de Deus acabou. Deus não
morreu agora. Sempre estava morto. Diz que em Deus se santificou
a vontade para o nada. O Deus foi criado do nada. Agora a cons­
ciência tomou-se capaz de desmascarar este nada. A morte de
Deus, por isso, é obra do homem. Nada muda esta realidade,
mesmo que muitos ainda não tenham tal consciência. Por este
m otivo, o homem louco pode dizer: “Cheguei muito cedo...”
Nietzsche considera-se o profeta que anuncia o que virá.
Primeiro, a morte de Deus significa, pois, a irrupção de grande
caos. Tomou-se problemático não apenas o discurso sobre Deus,
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 177

mas sobre tudo que adquire sua segurança e certeza a partir daí.
O homem sofre com a morte de Deus porque sempre procura o deus
morto. Este é o homem louco que em pleno dia sai à praça com
lanterna à procura de Deus. Nietzsche não só afirma que Deus está
morto, mas apresenta esta morte como fato incontestável decor­
rente de necessidade histórica. Doravante não mais se pode falar
de Deus no sentido do cristianismo, nem da filosofia, pois Deus é
apenas um conceito ao qual nada corresponde.

8.S. A su p era çã o d o niilism o

No caos da destruição de todos os valores tradicionais só resta


ao homem estabelecer novas metas a partir do eu que valora, quer
e cria, que é a medida e o valor das coisas. Agora é o homem criador
que estabelece a meta para a humanidade futura. Ousamos a
aventura de viajar ao longe. Mas a superação definitiva do niilismo
será obra do homem vindouro. Será o anticristo, o senhor sobre
Deus e o nada.
A meta da história da humanidade não está no fim, mas em
seus espécimes superiores. Estes espécimes superiores são o
sentido da vida e da história. Por isso Nietzsche não atribui valor
infinito a cada indivíduo, mas apenas a alguns. Dentre os homens
só alguns diferem dos animais: são os super-homens. Distinguem-
se pela vontade de potência, ou seja, a vontade de superar a si
mesmos.
Para nascer o novo, é necessário que o velho morra. Primeiro
é necessário destruir os valores tradicionais. O niilismo é uma
passagem obrigatória. Se é a transmutação de todos os valores, só
pode ser superado através da criação de novos valores. Ora, a
deficiência principal dos antigos valores está em seu caráter
metafísico, de se terem sobreposto à realidade da vida. Nisso pe­
receram. Por isso o fundamento dos novos valores só pode ser a
vida, a natureza. A moral deverá ser naturalizada. Condição para
nova ordem de valores é a aceitação radical da vida e do mundo.
Este sim é o não a tudo que é fraco ou tom a fraco e o sim a tudo
que é forte e fortalece.
Nietzsche encontra a superação do niilismo na idéia do eter­
no retomo. Esta é a idéia das idéias. É o centro de sua pregação
178 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

profética. Esta idéia passou a ocupar o lugar da metafísica e da


religião. Substitui a imortalidade da alma, da religião cristã, para
satisfazer o anseio de eternidade que o homem tem. Mas a idéia
nietzschiana do eterno retomo tem, à primeira vista, dois aspec­
tos contraditórios. Por um lado, é expressão do niilismo acabado
e, por outro, superação dele.
Em Assim falava Zaratustra Nietzsche anuncia a superação do
niilismo mediante a idéia do eterno retomo: “Toda a verdade é
tortuosa; o próprio tempo é um círculo” (terceira parte). Num diá­
logo com o anão encontram-se as idéias fundamentais:

“Olhe para este instante! continue. Deste pórtico, no momento, segue


para trás uma larga e eterna rua; atrás de nós há uma eternidade.
Tudo quanto é capaz de correr já não deve ter percorrido alguma vez esta
rua? Tudo o que pode acontecer não deve ter acontecido, ocorrido, já
alguma vez?
E se tudo já existiu por aqui, que pensa você, anão, deste instante? Esse
vestíbulò não deve também... ter existido por aqui?
Não estão as coisas tramadas de forma tal que este instante atrai após
si o seguinte? Por conseqüência... até a si mesmo?
(...) Não devemos voltar eternamente por essa larga e sombria rua?” (p.
120).

A eternidade do tempo e a finitude da energia no mundo são


os pressupostos da idéia do etemo retomo. A finitude da quanti­
dade de energia impede o surgimento do novo. O devir nada muda.
O etem o retomo é a forma extrema do niilismo, o nada etemo.
Como então esta idéia é superação do niilismo? Enquanto com esta
idéia se aceita a existência, aceita-se o absurdo como absurdo.
Niilismo é sinônimo de perda de todo o sentido. Mas não é a idéia
do etemo retomo ela mesma um dar sentido?
Zaratustra proclama não só a morte de Deus, mas anuncia o
super-homem. À morte de Deus contrapõe o nascimento do super­
homem: “Todos os deuses morreram; agora viva o super-homem”
(Assim falava Zaratustra, p. 60).
O tema central de toda a obra de Nietzsche é a luta contra o
cristianismo. Nele nada perdoa e tudo ataca: o Deus cristão, a
Igreja e sobretudo os sacerdotes como inventores dos dogmas para
dominar o povo. Jesus era judeu rebelde que, na maturidade,
pregou a subversão da moral; pregou a rebelião aos míseros e
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 179

pecadores do povo simples, foi delinqüente político e morreu por


sua própria culpa.. Apresenta uma imagem bem sombria de são
Paulo, “o inventor do cristianismo”. Paulo pregou “a péssima nova”
e “a mentira do Jesus ressuscitado”.
Nietzsche acusa o cristianismo como culpado de toda a degene-
ração e de toda a decadência do mundo moderno. E verdadeiro
niilismo porque “quando se não coloca o centro de gravidade da vida
na vida, mas sim no mais além — no nada — tira-se à vida o seu
centro de gravidade” (O Anticristo, n. 43). O mais além destrói a vida.
O cristianismo é centro de espíritos doentes, “foi até ao presente a
maior desgraça da humanidade”, “tem necessidade da doença” (O
Anticristo, n. 51). Por isso hoje é vergonhoso ser cristão.
Rejeitou o cristianismo com sua escatologia e esperança no
além sem contentar-se todavia com uma vida efêmera porque sabe
da vontade de viver sempre. Por isso fala da “vontade de eternizar”
(A gaia ciência, n. 370). Para conciliar o tempo e a eternidade
aceitou a idéia do eterno retomo de todas as coisas, eternizando
esta vida aqui. Desenvolve a idéia, pela primeira vez, em A gaia
ciência (n. 341) e depois em Assim falava Zaratustra já se toma
tema central. Rejeitou o mito cristão para dar embasamento cien­
tífico ao mito do eterno retomo. O devir não tem meta alguma, não
desemboca num ser. Por isso deve-se admitir tempo infinito no
passado e no futuro. O que importa é a vontade de potência, ou
seja, a vontade de viver.

8.6. Crítica à crítica de Nietzsche

Nietzsche não fundou escola própria na filosofia. Entretanto


exerce influência profunda no século XX. Pode ser comparado a
Marx e a Freud. Os três têm em comum, embora por diferentes
caminhos, a luta contra a ilusão religiosa, contra o cristianismo e
os valores morais e contra uma ordem de verdades etem as.
Nietzsche influencia nos meios intelectuais, nos quais sua atitu­
de rebelde atrai.
Sua filosofia caracteriza-se como filosofia da vida. Sob este
aspecto tem traços comuns com a filosofia vitalista de H. Bergson
e Ortega y Gasset. O símbolo de seu vitalismo é o Dionisos pagão.
Sob outro aspecto, situa-se entre os filósofos antiintelectualistas
180 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

e individualistas. As massas inferiores têm valor em si só enquanto


servem à formação do tipo superior do super-homem. Foi inimigo
total da doutrina da igualdade social.
Mesmo depois de ter atacado o cristianismo por todos os lados,
em 1881 escreveu a seu amigo Peter Gast: “Não importa o que eu
tenha a dizer sobre o cristianismo, não posso esquecer que sou-lhe
devedor das melhores experiências de minha vida espiritual; e
espero que, no fundo do meu coração, jamais venha a ser ingrato
para com ele” (apud Lavrin, Janko. Nietzsche, p. 60).
Por que Nietzsche atacou o cristianismo?
Rejeitou toda e qualquer religião, de modo especial o cristia­
nismo, por causa da enfatização que deu ao além em detrimento
de nossa existência terrena:

“O que significa possuir aqueles conceitos mentirosos, aqueles servos da


moralidade, como alma, espírito, livre-arbítrio, Deus, se seu objetivo é
apenas o de arruinar fisiologicamente a humanidade? Quando se põe de
lado a importância dos instintos de autoconservação, do aumento da
energia orgânica, isto é, do aumento da vida, quando a anemia é eleva­
da a ideal e o desprezo pelo corpo se transforma em salvação da alma,
quando se faz isso, não se estará simplesmente ministrando uma receita
para a decadência?” (Ecce homo).

Atacou o cristianismo com fanatismo total. Serviu-se de cer­


tas formas do cristianismo histórico nas quais só via debilidade e
mentira. Rejeitou a idéia de um Deus vingador. E difícil verificar
até que ponto sua fúria anti-religiosa não oculta um cristão po­
tencial ou reprimido. Não será por acaso que, para ele, “Pascal é
o único cristão lógico”. Não era Nietzsche um cristão reprimido sob
a forma de anti-religião apaixonada? O certo é que, recusando-se
a ser cristão, cortejou um sucedâneo místico no píano do homem
biológico. Com seriedade previa as conseqüências da morte de Deus
para o mundo, o desmoronamento de todo o sistema moral baseado
em sua existência. Defendeu o corpo contra a usurpação da alma
e do transcendente. Considera “decrépitos e enfermos” os que
desprezam o corpo e a terra, os que inventaram o mundo celeste e
as gotas de sangue do redentor.
Nietzsche fez de Zaratustra o destruidor da velha moral. O
profeta Zaratustra (ou Zoroastro) outrora fundou uma religião na
qual a moralidade era fenômeno metafísico e fim em si mesmo.
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 181

Ressuscitou este profeta com o fim de fazê-lo corrigir o erro de


outrora em nome da terra, do corpo e do super-homem.
Do ponto de vista religioso, sua atitude fundamental é niilista
a tudo que se refere ao espiritual, em sua negação de Deus e todos
os valores morais. Apresenta-se como ateu convicto e a partir desta
posição tenta resolver todos os problemas da vida. Eugen Fink
afirma:

“A apurada psicologia do desmascaramento que Nietzsche acabou por


manejar com perfeito virtuosismo passa a ser aplicada a ele próprio.
Nietzsche surge então como homem que sofre profundamente, como ser
destroçado a quem a vida prejudicou. Só a partir de uma incapacidade
de se desembaraçar do cristianismo é possível explicar o ódio selvagem
e infernal contra tudo o que é cristão; só a partir do seu aperfeiçoamento
moral, da sua absoluta retidão se pode explicar a sua crítica da moral, o
seu moralismo; só a partir das suas misérias e privações de sofredor é
possível compreender o seu hino de louvor à vigorosa vida selvagem, ao
homem forte, à grande saúde. A imagem de Nietzsche é definida em
função mais de aspectos periféricos da sua obra do que do cerne de sua
filosofia” (p. 10).
São indiscutíveis as suas conquistas psicológicas. Desenvolveu
a arte da análise psicológica de maneira magistral. Mostrou, ou-
trossim, faro apurado para os acontecimentos históricos. Possui
fantasia exuberante, olhar de profeta e visionário. E artista que
ora se esconde na figura do “espírito livre” (Humano demasiado
humano), ora na figura do “príncipe Vogelfrei” (Assim falava
Zaratustra), ora na figura de Dionisos. Mas a possibilidade de
explicar a religião e a fé em Deus psicologicamente não exclui a
possibilidade de encontrar uma realidade na experiência religio­
sa, uma vez que o encontro com a realidade também tem pressu­
postos psicológicos. Desta maneira, a fundamentação psicológica
de seu ateísmo é insuficiente.
Nietzsche fundamenta seu ateísmo não só psicológica, mas
também historicamente. Essa fundamentação também é proble­
mática. Do fato de a fé e a “idéia de Deus” se terem enfraquecido
em nossos dias, não se pode concluir que nada lhes corresponde.
Pode ser apenas uma crise. Assim a afirmação nietzschiana da
morte de Deus deverá ser entendida apenas como uma interpre­
tação da situação presente e futura para levar a sério o ateísmo.
182 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

De maneira alguma se deve concluir a vitória definitiva do ateís­


mo como necessária. É apenas uma possibilidade lógica.
Dever-se-á enfrentar o desafio do niilismo criticamente. A este
desafio não se responde fixando-se em alguns erros no campo da
ciência ou em contradições das linhas fundamentais como eterno
retomo e super-homem. Nele temos não só o eterno retomo, mas
também a vontade de potência.
Nietzsche não fundamentou sua idéia do etemo retomo na
ciência, e sim num antigo mito. Substitui, pois, a fé judaico-cristã
por outra fé. Do ciclo dos astros, das estações do ano etc., não se
pode inferir como necessária a idéia do etemo retomo. Claro, nes­
ta concepção levada radicalmente a sério, não há novidade. Na ver­
dade, é mito que serve a Nietzsche como substituto da religião ou,
como ele mesmo diz, como “a religião das religiões”. Ele simples­
mente pressupôs, em discurso profético e patético, um ateísmo que
não é conseqüência lógica e necessária da ciência nem de sua fi­
losofia. Dispõe esta apenas a serviço de uma opção existencial
pessoal feita muito antes, e agora tenta justificá-la racionalmen­
te perante si e perante o mundo. Até certo ponto repete Feuerbach
com sua teoria de que Deus é criação do homem. De outro lado,
antecipa as teses de Freud segundo as quais o cristianismo é ilu­
são, com a diferença de que o cristianismo se distingue “do mun­
do dos sonhos, por este último espelhar a efetividade, enquanto
ele (o cristianismo) falsifica, desvaloriza, nega a efetividade” (O
Anticristo, § 15). Nietzsche contentou-se em tentar mostrar a gê­
nese psicológica da crença em Deus porque pensava que com isso
destruiria essa crença.
De onde, segundo Nietzsche, se origina a crença em Deus?
Segundo ele, origina-se, de um lado, do sentimento de potência
e, de outro, do sentimento de impotência. Ambos os sentimentos
são entendidos como processos psicológicos. Tenta desmascarar a
religião como invenção e apresentar o ateísmo, com todas as
conseqüências, como evidente. De maneira especial considera
inaceitável o Deus cristão. Entretanto, seu ateísmo era sofrimento
e caos. Apresenta uma série de substitutos de Deus: o super-ho­
mem, a idéia do etemo retomo etc.
Nietzsche encarna, muitas vezes, um simples fanatismo
anticristão. Torna-se agressivo. Carece de investigação mais
tranqüila e objetiva. Faltam-lhe conhecimentos mais proftmdos em
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 183

teologia, história e ciência. Seu discurso muitas vezes é de des­


prezo. Apesar desse desprezo pelo cristianismo nutre certo respeito
por Jesus de Nazaré, colocando-o, porém, contra a própria Igreja.
Simplesmente nega toda a realidade metafísica para negar a
existência de Deus e da alma.
Por um lado, Nietzsche nega a religião e a existência de Deus
por se chocar com sua maneira histórica concreta de ser. Por ou­
tro, tem pressupostos filosóficos que dificultam seu acesso a Deus.
W. Weischedel mostra que, se na tradição se faz distinção entre
fé e ciência, se há opções fundamentais ou pela fé ou pela razão,
Nietzsche nega tanto a certeza da fé como a certeza da razão. Com
isso, a rigor, não há certeza absoluta nenhuma. Nada é certo. Este
niilismo atinge não só a atitude ou certeza subjetiva, mas também
a objetiva. Nietzsche não só discute sobre onde se situa uma cer­
teza ultima — na fé ou na razão, no sujeito ou no objeto — mas
conduz toda esta problemática ao absurdo. Duvida da possibilidade
de toda e qualquer certeza. Com isso privou os princípios do Ser
de sua tradicional evidência. Como então ainda se poderá escla­
recer o mundo e a vida com os princípios do Ser se esses perderam
sua evidência?
O niilista nietzschiano aceita o fato. Mas ao interrogar para
além do que aparece, desconfia de tudo. Sua própria vida parece
inútil, absurda, sem valor, em resumo, nada. Tal fé niilista re­
percute em tudo. Tudo toma-se vazio, absurdo, nada. Tudo que é,
também poderia não ser. O niilismo é a escola da desconfiança.
Pergunta-se: é o mundo da realidade fática a verdadeira realidade
ou nada? Com isso Nietzsche questiona a tradição ocidental en­
quanto ela reconhece ao todo, ao mundo, ao homem e às coisas não
só o Ser, mas também o ser verdadeiro, o ser bom, etc. Nietzsche
vê nisso apenas um resto da fé. Doravante, no horizonte do niilismo
radical, não se pode afirmar mais identidade fundamental (uni­
dade), sentido (verdade) e valor (bondade) a tudo que é e enquanto
é. Os clássicos transcendentais do uno, verdadeiro e bom são
questionados radicalmente. Não há unidade, verdade e bondade
do Ser. O niilista vê essas categorias fundamentais apenas rela­
cionadas com o nada, com o mundo ilusório. O niilista radical
afirma que tudo carece de fundamento, de sentido e de valor. Não
se trata de um nada ontológico. O nada abrange tudo.
O que significa isto para o problema de Deus?
184 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

Weischedel mostra que a dúvida metódica (Descartes) e a dú­


vida existencial (Pascal) não começam com a questão de Deus, mas
com a questão do próprio Ser. Para o niilismo nenhuma proposi­
ção sobre o Ser é evidente. Contra a possibilidade do niilismo ra­
dical não há argumentação racional contundente como ele mesmo
também é racionalmente indemonstrável. Por isso pode perguntar-
se: Não instaura Nietzsche uma nova metafísica?
Embora expressamente não queira fazer nova metafísica,
certamente trabalha com pressupostos metafísicos. Se questiona
a verdade, podemos indagar a partir de quê? Responderá: a par­
tir da vida. Neste caso a vida é o princípio a partir do qual ques­
tiona a verdade. Verdadeiro então é o que serve à vida. Esta tor­
na-se critério para a verdade e a falsidade. Com isso toma-se a
verdade última, a instância suprema.
Nietzsche interpreta a vida como vontade de potência ou domi­
nação (Wille zur Macht). Seu verdadeiro princípio metafísico seria
essa vontade de potência, o absoluto de sua filosofia. Deste contexto
participa a idéia do super-homem. Transcende o homem atual
porque este deve ser superado pelo super-homem. Deus está morto
e agora quer que viva o super-homem. Este é o homem do futuro:
“O super-homem é o sentido da terra” e da repetição da vida.
Sua negação da existência de Deus é uma constante: “Deus é uma
conjectura (...). Se houvesse deuses, como poderia suportar não ser
um deus? Por isso não há deuses”. A única desculpa de Deus é que
não existe. Do antiteísmo deriva sua atitude contra o cristianismo.
Apresenta seu ateísmo como libertação do homem, como novo
humanismo. Não existindo Deus, os instintos da vida podem desen­
volver-se porque nada os reprime. Com o triunfo do ateísmo, a hu­
manidade se liberta do dever, do pecado. A felicidade do homem é
agora seguir seus próprios instintos, prescindindo de Deus. Enquanto
humanismos anteriores buscavam um sentido absoluto, uma finali­
dade definitiva para o homem, mostrando que tal não existe, cai-se
no niilismo. Nietzsche tenta superá-lo. Seu êxito, contudo, foi ilusório.
Nietzsche aplicou uma apurada psicologia do desmascara-
mento em sua crítica à metafísica e à tradição ocidentais. Apesar
de toda a fragilidade que apresenta, apesar da falta de embasa­
mento mais sólido, merece ser levado a sério. Por outro lado,
certamente é chegada a hora de aplicar este mesmo método de
desmascaramento à leitura de sua própria obra.
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 185

O ateísmo de Nietzsche, como o ateísmo moderno em geral,


apresenta-se como novo humanismo, com nova ética que preten­
de libertar definitivamente o homem de sua alienação religiosa.
Postula a negação de Deus para recuperar o homem em sua hu­
manidade integral. Transfere a fé em Deus para o outro (Deus:
nada), o que é da essência do próprio homem. Trata-se de tentati­
va de superar a alienação religiosa. O ateísmo moderno propõe-
nos o velho problema da conciliação do ser necessário e do ser con­
tingente, do infinito e do finito, da coexistência de Deus e do ho­
mem, o problema do humanismo cristão e da esperança cristã.
O ateísmo de Nietzsche, como todo o ateísmo moderno, em sua
crítica da religião, não distingue entre religião autêntica e formas
históricas concretas. Na história concreta dos tempos modernos
há, sobretudo, três acontecimentos mais importantes diante dos
quais a reação dos cristãos falhou: a) o advento da ciência mo­
derna (Galileu, Descartes e Darwin); b) a secularização da vida
política com a introdução das liberdades democráticas; c) a revo­
lução social sob a pressão das massas operárias. Durante muito
tempo, os cristãos não perceberam que nesses processos havia algo
positivo: a promoção do homem. Assim o ateísmo moderno lançou,
de um lado, o desafio de conciliar a providência divina com a li­
berdade humana, as questões referentes à fundamentação e à
norma de moralidade; de outro, a maneira de conceber os atributos
de Deus e o modo de conceber o Absoluto.

8.7. O ateísmo sartreano

Como para Feuerbach e Nietzsche, também para o filósofo


existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) Deus não tem
existência real. No fim de sua obra filosófica L ’être et le néant (O
ser e o nada) afirma que

“toda a realidade humana é uma paixão, uma vez que ela projeta perder-
se para fundar o ser e para constituir, ao mesmo tempo, o ser-em-si que
escapa à contingência para ser o seu próprio fundamento, o ens causa sui
(o ser, causa de si) que as religiões chamam Deus. Assim a paixão do
homem é oposta à paixão de Cristo, porque o homem se perde enquanto
homem para fazer nascer Deus. Mas a idéia de Deus é contraditória, e
nós nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil” (p. 747).
186 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA

Já que o ser-para-si (ou o ser da consciência) é puro nada, a


paixão do homem é ser-em-si. Mas como desejo do ser-em-si (do ser
objetivo de fato), a consciência tende para o ideal de uma cons­
ciência. Ora este ideal pode chamar-se Deus:
“Pode-se dizer assim que aquilo que melhor toma compreensível o pro­
jeto fundamental da realidade humana é que o homem é o ser que projeta
seu Deus. Sejam quais forem depois os mitos e os ritos da religião con­
siderada, Deus é sensível em primeiro lugar ao coração do homem como
aquilo que o anuncia e define no seu projeto último e fundamental. E se
o homem possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus, esta
não lhe é conferida nem pelos grandes espetáculos da natureza nem pela
potência da sociedade; mas Deus, valor e objetivo supremo da transcen­
dência, representa o limite permanente a partir do qual o homem se faz
anunciar o que ele próprio é. Ser homem é tender a ser Deus; ou, se se
prefere, o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus” (p. 691).
Mas não passa de um Deus falido.

Na conferência sobre O existencialismo é um humanismo tenta


responder às objeções feitas à nova filosofia: a) apresenta uma
visão sombria da vida e escandaliza com seu naturalismo, b) que
acentua um pessimismo negro e desumano. Responde a tais obje­
ções dizendo que aos existencialistas é comum a tese: “a existên­
cia precede a essência”. Enquanto os ateus do século XVIII ainda
apresentavam o homem como possuidor de natureza hum ana,
Sartre diz: “O existencialismo ateu, que eu represento, é mais
coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser
no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes
de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem”
(Os pensadores, pp. 5-7). Assim, “não existe natureza humana, já
que não existe um Deus para concebê-la” (p. 6). “O homem nada
mais é do que aquilo que faz de si mesmo: é esse o primeiro prin­
cípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de sub­
jetividade” (p. 6).
Sartre logo faz uma declaração sumária: “De início, o homem
é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de
musgo (...) e o homem será apenas o que ele projetou ser” (p. 6).
Será isso através de decisão consciente e livre, porque o homem é
liberdade. O homem escolhe-se a si próprio, seu próprio ser, “para
criar uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser”.
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 187

O bem depende dessa escolha. Por isso a conseqüência é que “o


homem é totalmente responsável por sua existência” e de todos os
homens. Se não há natureza humana universal, para Sartre,
contudo, existe uma condição.
O objetivo de Sartre neste escrito programático é apresentar
o existencialismo, em estilo popular, como humanismo, definindo
o homem pela ação, pondo seu destino nele próprio: “O homem só
existe à medida que se realiza; não é nada além do conjunto de seus
atos, nada mais que sua vida” (p. 13). O humanismo existencialista
de Sartre, todavia, é ateu. O homem projeta-se continuamente e
persegue fins transcendentes para poder existir. Mas esta
transcendência constitutiva do homem não é relação com Deus:

“O existencialismo nada mais é do que o esforço para tirar todas as


conseqüências de uma posição atéia coerente (...) não é tanto ateísmo no
sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele
declara, mais exatamente: ainda que Deus existisse, nada mudaria; eis
nosso ponto de vista” (p. 22).
Sartre nega Deus para afirmar o homem, de maneira seme­
lhante a Nietzsche. Seu ateísmo também é postulatório, ou seja,
não racionalmente provado. Depois de negar dogmaticamente
Deus e toda a realidade supra-sensível na base de sua filosofia, faz
do homem mera “paixão inútil”. Com seu niilismo e sombrio pes­
simismo deriva o ser do nada e o homem defronta-se com a única
opção do absurdo. A explicação do homem e do mundo a partir do
nada só pode provocar a náusea.

Bibliografia
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1972.
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WEGER, Karl-Heinz, La critica religiosa en los tres últimos siglos, Barcelona, Herder, 1986.
WEISCHEDEL, Wilhelm, Der Gott der Philosophen, Munique, DTV, 1971
CONCLUSÃO

Percorremos longo caminho através dos tempos modernos e


contemporâneos indagando pela questão de Deus e da religião.
Quando falamos de religião, na filosofia moderna ocidental, evi­
dentemente nos referimos, quase sempre, ao cristianismo. Em
nosso caminho encontramos três questões básicas levantadas pelo
iluminismo: a relação entre a razão e a fé, a Igreja e a sociedade e
o sentido do homem e do mundo.
Constatamos, nos tempos modernos, muitas e diferentes con­
cepções de religião, algumas contraditórias, outras semelhantes.
Nesta diversidade é difícil encontrar uma concepção comum, pois
muitas vezes os diferentes pontos de vista são incompatíveis en­
tre si. Vivemos na luta de cosmovisões antagônicas. Mas, por outro
lado, o conflito entre os diferentes pontos de vista não é puro caos.
Pode-se considerar o conjunto também como diálogo permanente
entre homens livres. Diante desta situação complexa poder-se-ia
dar lugar a um ceticismo definitivo e radical.
O caminho andado certamente induz a certo relativismo. No
que diz respeito à problemática da religião, parece que a verdade
absoluta e definitiva permanece inacessível. Se admitirmos uma
revelação divina, esta sujeita-se a ser interpretada em palavras
humanas falíveis. Mas negar toda a possibilidade de conhecimento
de Deus seria atitude tão dogmática e arrogante como a de mui­
tos teólogos. Não se resolvem problemas fugindo deles. Precisamos
tentar vislumbrar respostas parciais, uma vez qne não temos a
esperança da verdade absoluta.
A filosofia predominante nunca é independente do contexto
cultural e social em que emerge. Hoje percebemos problemas no­
vos, mas nunca percebemos tudo de vez. Nossas perguntas surgem
em situações concretas e tentamos responder-lhes em situações
determinadas. Este relativismo caracteriza-nos como seres finitos.
190 CONCLUSÃO

Mas, se as maneiras possíveis de entender a religião são muitas e


nenhuma tem a garantia de ser a verdade definitiva, a religião não
é apenas questão teórica. É questão prática que envolve uma ati­
tude de toda a pessoa. Por isso não podemos deixar de tomar de­
terminada posição, enfrentando o risco da crença ou da descren­
ça. A própria indiferença é uma posição. A opção corre por nossa
conta, por conta da liberdade humana.
Como deverá ser nossa opção?
Nossa opção religiosa deve ser razoável, ou seja, não deve sa­
crificar o intelecto. Deve ser contemporânea. De todas as épocas
podemos aprender muito, mas carecemos de uma concepção de
religião adequada à nossa época atual. Nossa concepção de reli­
gião deve ser compreensiva ou global, ou seja, deve envolver a
pessoa inteira e não só um ou outro aspecto. A religião não se re­
duz à mera questão prática porque implica dimensões cognitivas
e afetivas. Toda concepção de religião tem caráter perfectível.
Hoje tomamos consciência de que o iluminismo também não é
movimento sem pressupostos. A época das luzes fundamenta-se
numa atitude de fé ilimitada na razão e na liberdade. Hoje tal fé
nos parece acrítica. A liberdade do homem, mais que nunca, hoje
perdeu sua evidência. Tomamos consciência dos condicionamen­
tos biológicos, psicológicos, sociológicos etc. Sabemos que a razão
nunca começa na estaca zero. A própria pergunta pela razão e pela
liberdade é historicamente condicionada. Por isso hoje começamos
a perguntar: é muito racional a confiança ilimitada na razão?
Somos nós realmente livres? Numa época em que Deus e a sua
autoridade constituíam pressuposto inteligível e universalmente
aceito, a referência a Deus, como fundamento e garantia da fé, era
suficiente. Em nossa época pós-iluminista, a referência a nma
verdade absoluta que exija obediência incondicional, aparece como
expressão do pensamento autoritário. Os representantes do
racionalismo crítico, como Karl Popper e outros, discernem, tan­
to no pensamento religioso como no filosófico, a fuga para atitu­
des engajadas e o perigo do monopólio de uma cosmovisão. Ao
pensamento fundado na infalibilidade opõem o princípio do
falibilismo. Rejeitam todo e qualquer princípio absoluto e apenas
aceitam princípios hipotéticos, provisórios e limitados que se
submetam à experiência e à prova crítica. Ao pensam ento
monolítico e fechado opõem um pensamento pluralista e radical­
CONCLUSÃO 191

mente aberto. Reina amplamente hoje a rejeição da pergunta por


um fundamento último também em filosofias como nas mais re­
centes de Heidegger e na dialética negativa de Th. W. Adorno.
Assumem-se temas da teologia negativa, pois pressupõe-se que o
absoluto é transcendente e inabarcável. Já Tomás de Aquino,
inspirado pela corrente da teologia negativa, confessou que, sobre
Deus, sabemos mais o que ele não é do que o que ele é. Ora, quem
realmente acreditar em Deus sempre maior deve estar disponível
para experiências novas e novos conhecimentos.
Hoje o homem faz nova experiência de sua finitude e dela toma
consciência. Percebe os limites da razão e da liberdade. Com isso
surge nova abertura para a problemática religiosa, abertura que
se manifesta em correntes filosóficas como o próprio neopositivis-
mo e o racionalismo crítico. Como poderia o homem perceber seus
próprios limites sem vislumbrar algo para além desses limites?
Não pertence à liberdade do homem pensar, sonhar e aspirar a
algo para além de tudo que existe ao alcance de sua experiência
empírica?
Blaise Pascal caracterizou adequadamente a experiência fun­
damental do homem como experiência da grandeza e da miséria,
ou seja, como tensão entre a transcendência permanente e a in­
serção na facticidade do que existe, entre o ser e o sentido do ser.
Em nossos dias tudo indica que a questão da fé adquire novo lu­
gar a partir da pergunta pelo sentido. A partir daí poderão surgir
novas possibilidades para falar de Deus e da religião. Na verda­
de, nada indica o fim da fé em Deus e da religião.
Não negamos que hoje se pode ter a impressão de que muitos
homens vivem vida humana sem fé em Deus, sem necessidade de
religião. Tais pessoas, aparentemente, dispensam ritos e formas.
Por outro lado, muitos crentes sentem um abismo entre sua fé e a
experiência cotidiana. Nessa apagam-se os vestígios de Deus e a
religião aparece, então, como simples superestrutura. Como,
nessas condições, restituir à fé seu lugar na vida?
Evidentemente esse desafio não se enfrentará com mero re­
curso às provas clássicas da existência de Deus. As provas não
substituem a fé. Esta também conhece a experiência da ausência
de Deus. Mas, apesar de tudo, temos que reconhecer a legitimi­
dade da filosofia ou teologia natural. Para o cristão, por exemplo,
a fé, sem dúvida, é graça. Constitui, todavia, ato humano. É o
192 CONCLUSÃO

homem que crê. Como ato humano exige razões. Deve ter sentido
e ser intelectualmente honesta e responsável. Do contrário não
seria digna de Deus, nem do homem.
A fé deve, pois, ser humanamente compreensível. Isto pressu­
põe que tenha lugar na experiência humana. A teologia não pode
vir só de cima. Mas também não pode vir só de baixo, reduzindo-
se a dados antropológicos e sociológicos. Por outro lado, Deus não
pode ser tapa-buraco ou hipótese para a explicação dos fatos ain­
da não clareados pela razão. Através de um Deus sem mundo na­
turalmente chegaremos a um mundo sem Deus ou ateu.
A questão de Deus, como conteúdo da fé, hoje se nos propõe
como pergunta pelo sentido da realidade global. Podemos repri­
mir a pergunta pelo sentido último. Apesar disso não deixaremos
de viver a partir de um projeto significativo. A questão do sentido
manifesta-se na busca da felicidade, de realização, de amor. O
sentido aparece onde o mundo se transforma em mundo do homem
ou mundo hominizado.
A questão do sentido é inevitável para o homem. Este distin­
gue-se do animal por sua abertura ao mundo. Tem que criar seu
ambiente. Somos dom e tarefa ao mesmo tempo. Diariamente o
homem deve forjar-se a si mesmo, seu rosto humano. Assim a
questão do sentido é originária e pertence essencialmente à exis­
tência humana. A formulação da questão do sentido pode variar
através da história.
A metafísica medieval indagara a respeito do sentido da rea­
lidade perguntando pela razão última daquilo que existe. Per­
guntava: por que existe algo e não o nada? Inferiu, desta interro­
gação, a existência de Deus, ou seja, de uma causa absoluta, fun­
damento de tudo. Vimos que, para o homem moderno, essa via
cosmológico-ontológica tomou-se empiricamente impossível. O
homem moderno, que vê o mundo como criação sua e o conheci­
mento não como representação mas produção, não encontra mais
vestígios de Deus, mas só seus próprios vestígios. Assim a ques­
tão do sentido deslocou-se. Tomou-se a si mesmo como ponto de
referência da realidade. O homem descobriu as profundezas da sua
própria alma. Procura Deus na consciência e na liberdade. A pos­
sibilidade do encontro com Deus aparece na profundidade do ho­
mem. Mas também o caminho antropológico mostrou-se proble­
mático, como vimos em Feuerbach e Freud. Não acabará o homem
CONCLUSÃO 193

por encontrar-se apenas a si mesmo? De outro lado, Marx mostrou


que o homem real só existe em suas relações sociais e pessoais
concretas. O homem existe apenas no interior da história da hu­
manidade. Agora a questão do sentido emerge na história.
Constata-se que não podemos limitar-nos apenas à realidade
da natureza como existe perante nós, nem ao ser do homem. O
mundo é marcado pelos fatores socioculturais. Este mundo confi­
gurado pelo homem é processo histórico sempre aberto. Novos
aspectos exercem nova fascinação. Este mundo histórico é também
mundo de crises, no qual o homem oscila entre esperança e an­
gústia ante o futuro. Nesta situação, o homem deve reformular a
questão do sentido. Poder-se-á compreender a história como eter­
no retomo? Desembocará no nada ou em plenitude de ser?
A questão pelo sentido transforma-se em questão do futuro. O
mundo atual é de desarmonia, pois ainda não é verdadeira e ple­
namente humano. A ciência e a técnica revelam-se, cada dia, mais
impotentes para mostrar o sentido para o homem e para a socie­
dade humana. O todo envolve aspectos fragmentários da ciência
e da técnica. Assim a questão do sentido não pode ficar ao arbí­
trio de cada indivíduo.
A pergunta que se propõe, neste novo contexto, é a seguinte:
ainda há lugar para o discurso significativo e responsável sobre
Deus? A transcendência para cima foi substituída pela transcen­
dência para frente, para o futuro. Poderá reorientar-se a esperança
cristã simplesmente como força revolucionária a serviço de futu­
ra; ordem social mais justa? Em outras palavras, encontrar-se-á
Deus sempre do lado do exército mais forte? Não pode ele estar do
lado dos mais fracos e por isso não efetuar nenhuma revolução,
nem contribuir para o progresso? O futuro da fé cristã não se iden­
tifica simplesmente com um futuro histórico a partir de baixo.
Não experimentamos a história simplesmente como história
do progresso. Nela experimentamos, outrossim, a injustiça, o ódio
e a mentira. Ora, o sofrimento e a injustiça muitas vezes apare­
cem com as maiores objeções contra Deus. Como acreditar no Deus
onipotente e misericordioso, se ele permite a fome de massas? Que
faremos? Teremos de protestar. No próprio protesto transparece
algo incondicional que merece atenção. A injustiça brada por jus­
tiça absoluta, pois a injustiça e a mentira não devem ter a última
palavra. As forças do mal nos envolvem e ninguém consegue sal­
194 CONCLUSÃO

var-se sozinho com suas próprias forças. A pergunta pelo sentido


da nossa existência e da nossa ação na história revela-se como
possível acesso ao que a Bíblia chama o Deus da esperança.
A injustiça e o sofrimento podem-se interpretar como alienações
historicamente reais e responsáveis e, até certo ponto, modificáveis
pelo próprio homem. Além dessas ainda há a alienação metafísica
do homem: a experiência de sua finitude. Esta finitude experimen­
tamo-la diante da realidade e, de modo especial e drástico, perante
a morte. Aqui faliram todas as utopias intra-históricas. Emerge a
questão do sentido de maneira radical: que valor tem a vida e a
criatividade do homem? Tudo, no fim, terminará no vazio e no nada?
Podemos nós, como seres finitos, apreender o infinito ou devemos
renunciar a um sentido último? Não se deve, evidentemente,
identificar Deus com as aspirações e os dinamismos do homem pa­
ra o infinito. Do ponto de vista puramente racional, permanece
aberta a interrogação pela realidade deste infinito, Deus ou nada.
Constatamos que, para viver humanamente, importa pressu­
por um sentido da vida. Assim a experiência da finitude lança-nòs
para o infinito, apesar de toda a finitude. Embora a felicidade não
seja óbvia, podemos experimentá-la em momentos fugazes. Assim
nossa experiência apresenta, por um lado, o aspecto da indispo-
nibilidade do todo e, do outro, a facticidade do sentido. Perante o
homem é inútil salvar um sentido incondicional sem Deus. Uni­
camente Deus, enquanto senhor de toda a realidade, pode superar
a alienação implicada na finitude e garantir o futuro para além
da morte. Só ele pode fundamentar o sentido da nossa existência.
Como é possível apresentar hoje a fé em Deus de maneira sig­
nificativa e intelectualmente honesta? Não através de qualquer
prova da existência de Deus. Devem-se levar a sério tanto as ex­
periências do absurdo como os sinais e os vestígios do sentido. O
sentido absoluto só o poderemos apreender no modo da esperan­
ça. Permanece a esperança que o definitivo será o sentido e não o
absurdo, a justiça e não a injustiça, a verdade e não a mentira. Ora,
só o que a tradição chama Deus pode dar sentido à finitude hu­
mana. Assim Deus entra no discurso inteligível como a força do
futuro, como a energia que nos liberta e encoraja. Mas Deus não
seria o futuro absoluto da história se não fosse também a origem
absoluta de toda a realidade. Assim retomamos as questões da
metafísica clássica numa perspectiva histórica.
CONCLUSÃO 195

Deus é a força do futuro, com isso queremos dizer que ele é a


resposta à situação fundamental do homem. Esta resposta não
elimina, antes, vivifica a criatividade humana. A fé em Deus con­
fere então à planificação humana o seu sentido último, como
inspirador da ação humana. A esperança no futuro último possi­
bilita projetos dentro da história, libertando-nos da angústia
existencial e enchendo-nos de coragem. E certo que as objeções
feitas pelo ateu, muitas vezes, atingem compreensões errôneas de
Deus, da religião e da fé. Deus como sentido último não é tão
mesquinho que cerceie a liberdade humana, mas antes promove
as possibilidades naturais. Sob este ponto de vista, o ateísmo
contemporâneo poderá ser um purgatório para a própria fé, ao
menos para a fé cristã.
Por outro lado, caberá perguntar ao ateu se tem uma propos­
ta melhor, se tem uma resposta melhor para a busca do sentido
do homem e da humanidade. Na discussão entre crença e ateís­
mo é preciso sair do nível acerca do mundo daqui e do além. A
discussão verdadeira é qual atitude, a fé ou a descrença, faz mais
justiça à realidade do homem. A fé reencontra seu lugar na expe­
riência do homem, pois quem está em jogo é o próprio homem e
sua esperança na história. Enfim, se é difícil crer em Deus, mais
difícil é viver sem ele.

Bibliografia

BOFF, Leonardo (Coord), Mestre Eckhart: A mística de Ser e de Não Ter, Petrópolis, Vo­
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OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, Filosofia transcendental e religião, São Paulo, Loyola,
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STACCONE, Giuseppe, Filosofia da Religião, Petrópolis, Vozes, 1989
ZILLES, Urbano, O problema do conhecimento de Deus, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1989.
ÍNDICE

5 1 — INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIÃO


5 1.1. - O que é religião?
7 1.2. - Poder-se-á justificar a religião perante a razão?
11 1.3. - Iluminismo e religião
17 1.4. - Tarefas da filosofia da religião
21 2 — DESCARTES E PASCAL:
A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ
22 2.1. - Contexto histórico
23 2.2. - Descartes: penso, logo sou
28 2.2.1. —Provas da existência de Deus
29 2.2.2. - Qual a idéia que Descartes tem de Deus?
30 2.2.3. - Crítica à crítica de Descartes
33 2.3. - Pascal: credo, ut intelligam
33 2.3.1. - Pascal e Descartes
34 2.3.2. - Espírito geométrico e espírito de finura
36 2.3.3. - A existência dramática
38 2.3.4. —A aposta da fé
41 2.3.5. - Crítica à crítica de Pascal
45 3 — KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A
RELIGIÃO
46 3.1. - Kant: razão crítica e religião
46 3.1.1. - A crítica da razão pura
52 3.1.2. - A crítica da razão prática
56 3.1.3. - A religião dentro dos limites da razão
59 3.1.4. - Crítica à crítica de Kant
60 3.2. - Hegel: Deus como fundamento da religião
61 3.2.1. - O jovem Hegel: teólogo
65 3.2.2. - O Hegel maduro: filósofo
3.2.3. - Como Hegel chega a Deus?
3.2.4. - A existência de Deus
3.2.5. - Crítica à crítica de Hegel
83 4 — WITTGENSTEIN E POPPER:
A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ
84 4.1. - Ludwig Wittgenstein: o empírico e o místico
86 4.1.1. - E o que não se pode falar?
87 4.1.2. - 0 místico
89 4.1.3. - Wittgenstein e Kant
91 4.1.4. - Crítica à crítica de Wittgenstein
92 4.2. - 0 racionalismo crítico de Karl Popper
92 4.2.1. - 0 método crítico
94 4.2.2. - Teoria científica e religião
96 4.2.3. - Crítica à crítica da racionalidade científica
99 5 — FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU
ATEÍSMO
101 5.1. —Crítica do cristianismo e da religião
107 5.2. - A verdade da religião é a antropologia
112 5.3. - Crítica à crítica de Feuerbach
121 6 — KARL MAÉX: A APOSTA
DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO
123 6.1. - 0 que Marx recebeu de Hegel?
125 6.2. - Como Marx interpreta o homem? X"
126 6.3. - 0 que é religião para Marx?
130 6.4. - Crítica à crítica de Marx
137 7 — FREUD: A PROVOCAÇÃO
DO ATEÍSMO PSICANALÍTICO
138 7.1. - 0 conflito: natureza e cultura
142 7.2. - Religião e psicanálise
144 7.3. - A religião: neurose obsessiva
147 7.4. —A religião: mera ilusão infantil
151 7.5 - Crítica à crítica de Freud
163 8 — NIETZSCHE: 0 DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA
163 8.1. - Quem foi Friedrich Wilhelm Nietzsche?
166 8.2. - Deus está morto
171 8.3. —Que significa declarar que<Deus está morto?
173 8.4. - A agonia do homem.
177 8.5. - A superação do niilismo
179 8.6. - Crítica à crítica de Nietzsche
185 8.7. - 0 ateísmo sartreano
189 CONCLUSÃO
(

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