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DA RELIGIÃO
PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ziiles, Urbano . .
Filosofia da R elig ião / Urbano Z iile s .— .São Paulo: Paulus, 1991 . — (Coleção Filosofia)
Bibliografia
ISBN 978-85-349-0928-0
90-1138 CDD-200.1
Coleção FILOSOFIA
FILOSOFIA DA
RELIGIÃO
Digitalizado por: jolosa
Revisão
H. Dalbosco
Impressão e acabamento
PAULUS
8a edição, 2010
© P A U L U S -1 9 9 1
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ISBN 978-85-349-0928-0
INTRODUÇÃO A UMA FILOSOFIA
DA RELIGIÃO
Bibliografia
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2
DESCARTES E PASCAL:
A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ
A regra 2 diz: “Os objetos de que nos devemos ocupar são apenas
aqueles que os nossos espíritos parecem conseguir conhecer de
maneira certa e indubitável”.
De acordo com esta regra, o princípio mais radical deve ser
evidente por si mesmo, isto é, intuitivo. A intuição revela a idéia
como clara e distinta, de modo a resistir a qualquer dúvida. A
intuição é “um conceito da mente pura e atenta, tão claro e distinto
que daquilo que se entende não possa ficar absolutamente nenhu
ma dúvida”. A idéia dara é “uma percepção presente e aberta à
atenção da mente” como coisa que está diante dos olhos. A idéia
distinta “é aquela que, sendo clara, de tal modo está separada e
depurada de todas as outras, que não encerra em si absolutamente
nada mais do que aquilo que é claro”. A idéia clara e distinta por
excelência é aquela que resiste a toda a dúvida. Surge, assim, o
problema da dúvida universal e metódica.
A dúvida de fato não se estende objetivamente a tudo porque
o cogito resiste ao esforço universal de dúvida, evidenciando-se
como fundamento primordial:
“Notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era
necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. £ notando que esta
verdade, penso, logo sou, era tão firme e tão segura que as mais extrava
gantes suposições dos céticos não podiam abalá-la, julgava que podia
aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que busca
va” (Discurso do método, 4).
“da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais
excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto,
nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute e por
conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presun
ção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas
opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre
uma e mesma matéria, sem que jamais possa existir mais de uma que
seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente
verossímil” (1- Parte).
“No que respeita aos objetos considerados, não é o que o outro pensa ou
o que nós próprios conjeturamos que é preciso procurar, mas o que
podemos ver por intuição com clareza e evidência, ou o que podemos
deduzir com certeza: nem é de outro modo, com efeito, que se adquire a
ciência” (n. 3).
“o bom senso é a coisa do mundo mais bem partilhada, pois cada qual pensa
estar tão bem provido dele, que até os que são mais difíceis de contentar em
qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm”.
“E é tão inútil e ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus
princípios primeiros, para concordar com eles, quanto seria ridículo que
o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela
demonstra, para recebê-los” (n. 282).
“O que faz, portanto, que certos espíritos sutis não sejam geômetras é que
eles não podem de todo voltar-se para os princípios da geometria; mas o
que faz com que alguns geômetras não sejam sutis, é que não vêem o que
está na frente deles, e que, estando acostumados aos princípios nítidos e
grosseiros da geometria e a só raciocinar degois de terem visto bem e bem
manejado os seus princípios, perdem-se nas coisas da finura, onde os
princípios não se deixam manejar de igual modo. São apenas entrevistos;
mais pressentidos do que vistos; é preciso esforço infinito para tomá-los
sensíveis a quem não os sente por si próprios: são coisas de tal maneira
delicadas e tão numerosas, que é necessário um sentido muito delicado
36 DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ
“Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia,
passar sem Deus, mas não pode evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr
o mundo em movimento; depois do que não precisa mais de Deus” (n. 77).
“Não sei quem me pôs no inundo; nem o que é o mundo, nem o que sou eu
mesmo; vivo numa terrível ignorância acerca de todas as coisas; não sei
o que é o meu corpo, o que são meus sentidos, a minha alma e essa parte
mesma de mim que pensa o que digo, que medita sobre tudo e sobre ela
própria, e não se conhece mais do que o resto (...) Assim como não sei de
onde venho, não sei para onde vou: e só sei que, saindo deste mundo, cairei
para sempre no nada, ou nas mãos do Deus irritado, ignorando a qual
dessas duas condições serei dado eternamente em quinhão. Eis o meu
estado, cheio de fraqueza e de incerteza” (194).
2.3.4. A aposta da fé
“Que fará, pois, o homem nesse estado? Duvidará de tudo? Duvidará que
desperta, que o beliscam, que o queimam? Duvidará que duvida? Duvi
DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 39
dará que existe? Não podemos chegar a este ponto; tenho, como fato, que
nunca houve pirronismo efetivo perfeito. A natureza sustenta a razão
impotente e impede que extravague até este ponto” (434).
eterna: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro e aquele que
tu enviaste, Jesus Cristo. Jesus Cristo. Jesus Cristo. Jesus Cristo. Eu me
afastei dele, evitei-o, neguei-o e crucifiquei-o. Que eu jamais dele me
separe. Não se conserva a não ser pelos caminhos ensinados no Evange
lho. Renúncia total e doçura. Submissão total a Jesus Cristo e a meu
diretor. Alegria eterna por um dia de provação na terra. Non obliviscar
sermones tuos. Amém”.
“Se somente se devesse fazer alguma coisa com certeza, nada se deveria
fazer pela religião, pois ela não oferece certeza. Mas quantas coisas se
fazem naincerteza: viagens marítimas, batalhas! Digo, portanto, que não
se deveria fazer absolutamente nada, porque nada é certo; e que há mais
certeza na religião do que em vermos o dia de amanhã; pois não é certo
que vejamos o amanhã, mas é certamente possível que não o vejamos.
Não se pode dizer o mesmo da religião” (234).
B ib liog ra fia
DESCARTES, René, Regras para a direção do espírito, Lisboa, Estampa, 1977, 2- ed.
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DESCARTES E PASCAL: A RACIONALIDADE MODERNA E A FÉ 43
KANT E HEGEL:
A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO
Diz que
“Para nós, que temos religião, o que é Deus é algo conhecido, um conteúdo
que pode ser pressuposto na consciência subjetiva. Cientificamente, Deus
é inicialmente um nome geral e abstrato que ainda não recebeu nenhum
conteúdo (Gehalt) verdadeiro; porque só a filosofia da religião é o desen
volvimento científico e conhecimento daquilo que é Deus e só através dela
se experimenta cognoscitivamente o que Deus é; do contrário absoluta
mente não necessitaríamos da filosofia da religião; somente esta deve
desenvolver-nos aquele tema” (Lições sobre a filosofia da religião, p. 250).
Bibliografia
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4
WITTGENSTEIN E POPPER:
A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FÉ
ramos, é na verdade uma clareza completa. Mas isto significa apenas que
os problemas filosóficos devem desaparecer completamente (...) Resol-
vem-se problemas, não um problema. Não há um método da filosofia, mas
sim métodos, como que diferentes terapias” (n. 133).
4.1.2. O místico
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FEUERBACH:
SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO
“O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para
o homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus:
FEUERBACH: SUA CRÍTICA DA RELIGIÃO E SEU ATEÍSMO 109
Bibliografia
KARL MARX:
A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO
dade ilusória para esquecer sua desgraça presente. Por isso a re
ligião é ópio do povo. Para libertar o proletariado e a humanidade
da miséria, é preciso destruir o mundo que gera a religião.
Não se pode dizer que, para Marx, a religião é simples inven
ção de sacerdotes falsários ou de dominadores. É a manifestação
da humanidade sofredora em busca de consolo. O slogan de que “a
religião é o ópio de povo” era comum entre críticos da época de
Marx. É ópio para o povo, um calmante para as massas que so
frem a miséria produzida pela exploração econômica. Mas os ex
ploradores burgueses também precisam da religião. Para os ex
ploradores é consolo inútil, narcótico e, para os outros, justifica
ção, calmante para sua consciência.
Marx conclui que, sendo a religião reflexo espiritual da misé
ria real do homem numa sociedade opressora, a superação da re
ligião não se dará só pela crítica intelectual. A luta contra a reli
gião tem seu aroma espiritual. É a imagem falsa do mundo. A crí
tica do céu toma-se a crítica da terra. Para eliminar a alienação
religiosa é preciso eliminar todas as condições de miséria que a
originam. A religião é, pois, epifenômeno ou superestrutura. Mu
dando a infra-estrutura econômina, a superestrutura mudará
automaticamente. A contradição fundamental, segundo Marx, não
está pois na religião, e sim no nível do modo de produção dos bens
materiais.
Como, então, poder-se-á superar a alienação religiosa?
A superação realiza-se partindo da práxis. De nada serviria
privar o povo do ópio e não mudar nada. A crítica da religião con
siste em libertar o povo da ilusão. Por isso a crítica religiosa deve
ser seguida da crítica política e da revolução prática a fim de es
tabelecer a verdade neste mundo. Do ponto de vista econômico, a
alienação religiosa tem sua origem na divisão do trabalho porque,
na sociedade capitalista, os meios de produção tomaram-se pro
priedade privada; no processo tecnicizado da produção industri
al, os operários só têm o trabalho para vender. Por ele recebem um
preço. Mas este é menor que o produto, pois o dono dos meios de
produção retém a plus-valia, de modo que seu capital se acumule
às custas dos verdadeiros trabalhadores. Ora, a alienação religi
osa funda-se, segundo Marx, na alienação econômica. Por isso é
preciso mudar as relações de produção, eliminando a proprieda
de privada dos meios de produção. Como a religião integra a su-
KARL MARX; A APOSTA DO ATEÍSMO SOCIOLÓGICO 129
Bibliografia
“Nada do que eu disse aqui sobre o valor de verdade das religiões precisa
do apoio da psicanálise; já foi dito por outros muito antes que a psica
nálise surgisse” (Os pensadores, p. 112).
B ib liogra fia
NIETZSCHE:
O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA
“São muitos os espíritos jovens que desabrocharam sob meus olhos du
rante mais de trinta e nove anos,;mas< nunca conheci um jovem que
amadureceu tão rápido em sua idade tão jovem como esse Nietzsche.
Prevejo que, se viver por muitos anos (e Deus o queira), será um dos
primeiros fílólogos alemães”.
deixa ficar no segundo plano (...) Todos os seus livros não passam de
monólogos consigo próprio (...) O brilho da linguagem de Nietzsche, a sua
extrema subjetividade, induzem-nos constantemente a desviar os olhos
da obra para o autor, que nela de mil maneiras se espelha” (p. 11).
“um sistema, uma visão coerente e completa das coisas”, que, como
estrutura de domínio espiritual, tira sua força repressiva da ação
narcotizante das ficções nele reunidas. Em qualquer caso, é incrí
vel debilitamento da vontade. Apóia-se no ressentimento dos
humildes e débeis, sendo uma manifestação da decadência. Ele
vou a ignorância à categoria de virtude. Declarou pecado a dúvi
da e envenenou o eros, pervertendo-o a ponto de tomar-se vício.
Em O Anticristo escreve:
“Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e
desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: ‘Procuro Deus!
Procuro Deus!’ Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam
em Deus, o seu grito provocou grande riso. Ter-se-á perdido como uma
criança?’ dizia um. ‘Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarca
do? Terá emigrado?’ Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O
louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘Para onde foi
Deus?’, exclamou, é o que lhes vou dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos
nós, nós todos, que somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como
conseguimos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu tuna
esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos quando despren
demos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde vai ela agora?
Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos
incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos
os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando
através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?
Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites? Não será preciso acen
der os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho
que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da
decomposição divina...? Os deuses também se decompõem! Deus morreu!
Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como haveremos de
nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possui
de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob o nosso punhal.
Quem nos há de limpar deste sangue? Que água nos poderá lavar? Que
expiações, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza
deste ato é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios
nos tomemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela? Nunca
houve ação mais grandiosa e, quaisquer que sejam, aqueles que poderão
nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais
elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história” (pp. 145-46).
“Eu os conjuro, meus irmãos: permanecei fiéis à terra e não creiais a quem
lhes falar de esperanças supraterrenas. São envenenadores, sabendo ou não.
NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA 171
“Mas agora este Deus está morto. Homens superiores, esse Deus era
vosso maior perigo. Só desde que ele jaz na tumba voltastes a ressusci
tar. Só agora chega o grande meio-dia, só agora o homem superior se
converte em Senhor'’ (III, Do homem superior, n. 2).
“De fato, nós, filósofos, livres espíritos, sabendo que o antigo Deus está
morto, sentimo-nos iluminados como por uma nova aurora; o nosso co
ração transborda de gratidão, de espanto, de pressentimento e de ex
pectativa... eis que, enfim, também se não está claro, o horizonte de novo
parece livre, eis que enfim os nossos barcos podem voltar a partir e vo
gar diante de todos os perigos; voltará a ser permitida ao pioneiro
qualquer tentativa de conhecimento; o mar, o nosso mar, de novo volta
a abrir-nos todas as suas extensões; talvez nunca tivesse havido mar tão
pleno” (n. 343, pp. 232-233).
O que vem depois da morte de Deus? Se Deus morrer, seu lu
gar deve ser ocupado pelo homem que acredita em si mesmo.
mas sobre tudo que adquire sua segurança e certeza a partir daí.
O homem sofre com a morte de Deus porque sempre procura o deus
morto. Este é o homem louco que em pleno dia sai à praça com
lanterna à procura de Deus. Nietzsche não só afirma que Deus está
morto, mas apresenta esta morte como fato incontestável decor
rente de necessidade histórica. Doravante não mais se pode falar
de Deus no sentido do cristianismo, nem da filosofia, pois Deus é
apenas um conceito ao qual nada corresponde.
“toda a realidade humana é uma paixão, uma vez que ela projeta perder-
se para fundar o ser e para constituir, ao mesmo tempo, o ser-em-si que
escapa à contingência para ser o seu próprio fundamento, o ens causa sui
(o ser, causa de si) que as religiões chamam Deus. Assim a paixão do
homem é oposta à paixão de Cristo, porque o homem se perde enquanto
homem para fazer nascer Deus. Mas a idéia de Deus é contraditória, e
nós nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil” (p. 747).
186 NIETZSCHE: O DESAFIO DO ATEÍSMO NIILISTA
Bibliografia
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LAVRIN, Janko, Nietzsche: uma introdução biográfica, Rio de Janeiro, Bloch Editores,
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homem que crê. Como ato humano exige razões. Deve ter sentido
e ser intelectualmente honesta e responsável. Do contrário não
seria digna de Deus, nem do homem.
A fé deve, pois, ser humanamente compreensível. Isto pressu
põe que tenha lugar na experiência humana. A teologia não pode
vir só de cima. Mas também não pode vir só de baixo, reduzindo-
se a dados antropológicos e sociológicos. Por outro lado, Deus não
pode ser tapa-buraco ou hipótese para a explicação dos fatos ain
da não clareados pela razão. Através de um Deus sem mundo na
turalmente chegaremos a um mundo sem Deus ou ateu.
A questão de Deus, como conteúdo da fé, hoje se nos propõe
como pergunta pelo sentido da realidade global. Podemos repri
mir a pergunta pelo sentido último. Apesar disso não deixaremos
de viver a partir de um projeto significativo. A questão do sentido
manifesta-se na busca da felicidade, de realização, de amor. O
sentido aparece onde o mundo se transforma em mundo do homem
ou mundo hominizado.
A questão do sentido é inevitável para o homem. Este distin
gue-se do animal por sua abertura ao mundo. Tem que criar seu
ambiente. Somos dom e tarefa ao mesmo tempo. Diariamente o
homem deve forjar-se a si mesmo, seu rosto humano. Assim a
questão do sentido é originária e pertence essencialmente à exis
tência humana. A formulação da questão do sentido pode variar
através da história.
A metafísica medieval indagara a respeito do sentido da rea
lidade perguntando pela razão última daquilo que existe. Per
guntava: por que existe algo e não o nada? Inferiu, desta interro
gação, a existência de Deus, ou seja, de uma causa absoluta, fun
damento de tudo. Vimos que, para o homem moderno, essa via
cosmológico-ontológica tomou-se empiricamente impossível. O
homem moderno, que vê o mundo como criação sua e o conheci
mento não como representação mas produção, não encontra mais
vestígios de Deus, mas só seus próprios vestígios. Assim a ques
tão do sentido deslocou-se. Tomou-se a si mesmo como ponto de
referência da realidade. O homem descobriu as profundezas da sua
própria alma. Procura Deus na consciência e na liberdade. A pos
sibilidade do encontro com Deus aparece na profundidade do ho
mem. Mas também o caminho antropológico mostrou-se proble
mático, como vimos em Feuerbach e Freud. Não acabará o homem
CONCLUSÃO 193
Bibliografia
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ÍNDICE